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A pesquisa científica em Mamirauá: instrumento de consolidação do manejo


participativo e da conservação da biodiversidade

Helder Lima de Queiroz

Dentre as muitas relevantes transformações ocorridas no cenário da conservação da


biodiversidade em território brasileiro nos últimos 20 anos, certamente a consolidação das
Unidades de Conservação de Uso Sustentável como instrumento fundamental para a
promoção da proteção e da conservação da diversidade biológica amazônica destaca-se
como uma das mais notáveis.

Um dos principais fatores que diferenciam as Reservas de Desenvolvimento Sustentável de


outras Unidades de Conservação de uso direto é a aplicação da pesquisa científica aos
princípios de envolvimento da população local e de gestão participativa da própria Unidade
de Conservação dos recursos naturais renováveis existentes em seu interior e nas suas áreas
imediatamente circundantes. A pesquisa científica está posta como o principal instrumento
de consolidação das técnicas de uso do espaço e dos recursos naturais dentro do contexto de
conservação da biodiversidade, que, em última análise, é a função precípua de uma
Unidade de Conservação.

O modelo ou abordagem de conservação preconizada na experiência de Mamirauá


considera que o uso sustentado do ambiente atua tanto como promotor da efetiva proteção e
conservação da biodiversidade local, como também da mitigação de sérios problemas
sociais que enfrentam aquelas comunidades que habitam a área desde muito. A
permanência das populações humanas locais no interior da unidade nunca foi colocada em
dúvida, e ao contrário de ser entendida como uma fonte de problemas, conforme os
paradigmas de conservação vigentes ainda em meados da década dos 80 do século passado,
era e é entendida como parte fundamental da solução para o problema maior.

Por um lado, em determinados ecossistemas amazônicos de alta produtividade, densidade


humana proporcionalmente maior e com um consolidado histórico de exploração, é quase
impossível identificar extensas áreas com relevância biológica e alto valor ambiental que
ainda estejam inabitadas. Por outro lado, a ausência de moradores em determinado local
terminaria por facilitar a ação de agentes invasores que potencialmente poderiam causar
danos irrecuperáveis aos componentes da biodiversidade local. Assim, os moradores locais,
ligados àquela área por vínculos históricos, familiares e de tradição, poderiam continuar a
viver nos seus assentamentos habituais e desfrutar dos benefícios oferecidos pelos mesmos
recursos naturais tradicionalmente explorados, ou mesmo por aqueles ainda por ser
utilizados. Sua presença como manejadores responsáveis dos recursos naturais seria a
garantia de perpetuação desses recursos e de outros componentes importantes da
biodiversidade.

Esta situação implica em colocar em pleno funcionamento os conceitos de manejo dos


recursos naturais dessas Unidades de Conservação em níveis de sustentabilidade,
especialmente executado com base comunitária. Ocorre que as técnicas de manejo
sustentado implicam, por sua vez, na existência ou disponibilidade de conhecimento acerca
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de diversos aspectos da biologia dos recursos naturais e de outros componentes da


biodiversidade (especialmente seus processos ecológico-evolutivos), acerca de fatores
ambientais condicionantes à sobrevivência e manutenção desses componentes da
biodiversidade, e acerca dos próprios modos, tradicionais ou não, de exploração de toda
essa diversidade biológica. Tais conhecimentos e saberes podem ser obtidos a partir do
conhecimento tradicional daquelas populações, mas também devem ser corroborados,
corrigidos, quando necessário, ou mesmo produzidos quando inexistentes, pelos métodos
da pesquisa científica.

Daí se compreende porque a construção de um sólido programa de pesquisas científicas


sempre esteve no alicerce do ‘modelo de RDS’ proposto. Para a compreensão do real papel
da pesquisa científica em Mamirauá, é necessário oferecer um breve relato da implantação
dos programas científicos nesta experiência de uso sustentado. Enquanto outros autores
fazem neste volume um relato da experiência mais ampla de Mamirauá e da sua relação
com as populações locais, o presente texto pretende dar mais evidência ao componente
científico desta experiência e como este componente interage com os moradores que estão
envolvidos nos processos de gestão participativa.

Antecedentes: a estratégia de pesquisa de Mamirauá em seus primeiros anos (1990 –


1995)

A decretação da Estação Ecológica Mamirauá (EEM) em 1990 deflagrou uma série de


negociações que culminaram com a proposição de um amplo projeto de implantação da
nova Unidade de Conservação do Estado do Amazonas. A idéia surgiu de um grupo de
pesquisadores liderados e aglutinados em torno de José Márcio Ayres, que já possuía
alguns anos de experiência de trabalho de campo na parte sul da recém criada Estação e
tinha bom conhecimento de toda a região, adquirido ao longo do seu estudo de doutorado
sobre a ecologia dos uacaris-brancos. Tais propostas foram concebidas no âmbito do Museu
Paraense Emílio Goeldi (MPEG), a instituição que reunia a maior parte dos pesquisadores
envolvidos no desenvolvimento da idéia do Projeto, envolvendo o CNPq e a secretaria de
ciência, tecnologia e meio ambiente do governo amazonense.

A criação do Projeto Mamirauá só se concretizou em 1992, embora os primeiros


documentos proponentes tenham sido elaborados ainda em 1990, como resultado de
negociações que se alongaram pelo ano anterior. Como a apreciação e avaliação, por parte
dos futuros apoiadores, da principal proposta de financiamento prolongou-se bastante além
do esperado, foi formado um fundo interino por aqueles organismos (ODA, WWF-UK e
WCI) para custear um pequeno número de atividades de pesquisa realizadas entre fins de
1990 e no decorrer de 1991. Estas atividades foram, basicamente, o levantamento e
diagnose da situação, ou status de conservação e ameaças presentes na área da recém-criada
Estação Ecológica. Foram feitos levantamentos demográficos e sócio-econômicos em toda
a região hoje conhecida como Área Focal de Mamirauá, e foi implementado o sistema de
monitoramento do desembarque pesqueiro na cidade de Tefé, especialmente visando
identificar a participação da pesca comercial na Estação Ecológica Mamirauá na produção e
no consumo de pescado no nível regional.
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O Projeto Mamirauá, conforme ficou amplamente conhecido mais tarde, foi iniciado
formalmente apenas em 1992, com a aprovação daquela proposta inicial e com a decorrente
transferência dos primeiros recursos. Naquele momento, algumas pesquisas já haviam sido
postas em funcionamento, e outras, já anteriormente planejadas e consideradas prioritárias,
começaram quase que imediatamente. Desde o primeiro momento, a estratégia de pesquisa
era estabelecida pelos coordenadores do Projeto. Havia se firmado, já em 1992, um
pequeno grupo de pesquisas relacionado ao estudo de organismos aquáticos. Neste mesmo
momento sedimentou-se o sistema de monitoramento do desembarque pesqueiro em Tefé e
Alvarães, e foi iniciada uma pesquisa sobre a ecologia e pesca de grandes bagres. Do
mesmo modo, se estabeleceram os primeiros contatos para estudar os principais mamíferos
aquáticos de Mamirauá, junto ao Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e
outras instituições. Com isso, sedimentou-se uma Coordenação de Sistemas Aquáticos
englobando todos estes estudos. As pesquisas que estudariam os botos e os peixes-boi
locais tiveram seu começo neste período. Também se observou nesta época uma abordagem
mais sistêmica do ambiente aquático, abordando questões mais ligadas à composição e
ecologia da comunidade de peixes. Um estudo da composição da fauna aquática,
especialmente de invertebrados, e as suas relações tróficas (relações que caracterizam a
cadeia alimentar de um determinado ecossistema, determinando quais espécies se
alimentam de uma espécie em particular, e de quais outras espécies esta se alimenta), foi
instalado. Criou-se condições para atrair um grupo de pesquisadores do Inpa para estudos
de limnologia dos corpos d’água de Mamirauá e arredores. E finalmente, num segundo
momento, foram instalados os estudos para uso sustentado dos dois principais recursos
pesqueiros: os pirarucus e os tambaquis. E foi incluído no grupo um estudo para o uso
sustentado de acarás-disco (e de outras espécies de importância ornamental) e para pesquisa
em ecologia evolutiva das espécies de peixes elétricos da várzea.

Em pouco tempo uma Coordenação de Sistemas Terrestres foi também criada. Esta
envolvia o monitoramento da extração madeireira, e um estudo das populações de árvores
de importância madeireira ocorrendo na Área Focal de Mamirauá, visando o
estabelecimento de normas para uso sustentado deste recurso. Outras pesquisas, já então em
curso, foram também incluídas nesta Coordenação. Agrupam-se aqui o estudo de
comunidades de mamíferos folívoros arborícolas, o estudo de dispersão de sementes na
várzea, e os estudo sobre evolução da reprodução assexuada de plantas alagadas pela
enchente anual. Em menos de um ano foram agregados à este grupo os estudos sobre
répteis (especialmente levantamentos, mas também o estudo da biologia dos jacarés), e um
grande número de outros levantamentos, bem mais curtos, de vários grupos taxonômicos da
fauna ou flora. Estes esforços foram principalmente dirigidos para as plantas vasculares, as
aves, os mamíferos não-voadores, os anfíbios, alguns grupos de insetos, e outros
invertebrados (como os aracnídeos).

Uma identificação clara da estratégia científica de então se configura nestes primeiros anos
do Projeto Mamirauá (de 1990 até 1995). Os esforços de pesquisa ambiental do período
estavam voltados para:

- O levantamento da biodiversidade local, especialmente naqueles grupos


taxonômicos sob maior impacto da presença ou permanência humana na área
protegida;
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- O levantamento das informações básicas necessárias como subsídios aos planos


de uso sustentado dos principais recursos econômicos do local;
- A realização de pesquisa básica em ecologia e evolução de fauna e flora de
ambientes tropicais, que apresentassem ampla repercussão em segmentos da
comunidade científica nacional e internacional, e com boa penetração nas mídia
brasileira e estrangeira.

As principais atividades de pesquisa deste período organizavam e armazenavam as


informação coletada em Bancos de Dados construídos e mantidos pela Coordenação de
Bancos de Dados. Esta coordenação também encarregou-se de estabelecer posteriormente
um Sistema de Informação Geográfica (SIG) para Mamirauá, tarefa que desde então tem
sido uma das preocupações centrais deste grupo.

Participação comunitária

Concomitante ao estabelecimento das pesquisas ambientais, uma Coordenação de


Participação Comunitária foi formada, e incluiu principalmente as ações de extensão
comunitária. Mas seu principal foco foi a articulação política das lideranças locais,
especialmente das comunidades de Mamirauá, o seu envolvimento e sua participação no
processo de planejamento da implementação da Unidade de Conservação. Esta
coordenação também organizou um grande número de estudos a respeito das populações
humanas que habitam Mamirauá.

Os levantamentos iniciais foram constituídos por um censo demográfico e uma amostragem


sócio-econômica com base domiciliar para todas as comunidades internas da Área Focal.
Foram investigados aspectos históricos dos assentamentos locais (comunidades, vilas, sítios
etc.), bem como aspectos e particularidades da cultura local. Estudos de saúde, nutrição e
de antropologia física, foram desenvolvidos para apoiar e complementar os sócio-
econômicos anteriores.

Em momentos posteriores a este também se realizaram levantamentos epidemiológicos, de


saúde comunitária, saúde bucal, saúde reprodutiva etc. Intensas investigações sobre os
padrões de uso dos recursos naturais locais, bem como seu mapeamento, foram
desenvolvidos neste segundo momento da primeira fase.

Todas estas atividades denotam um claro direcionamento dos esforços de pesquisa,


voltados para:

- Levantamentos demográficos e do estado social e biológico das populações


humanas locais;
- Descrições dos padrões do uso do solo e dos recursos naturais por estas
populações;
- Pesquisas sobre aspectos sócio-culturais que influenciam a distribuição espacial
dos assentamentos humanos locais, o histórico de sua mobilidade, bem como o
padrão de uso dos recursos naturais do local.
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Os esforços de pesquisa descritos para esta fase estavam completamente direcionados para
a elaboração de um Plano de Manejo de Mamirauá que fosse inclusivo e participativo, mas
que também fosse apoiado em sólida informação científica. Da mesma forma que o
observado com as pesquisas ambientais, as sociais também estabeleceram como base
geográfica as comunidades e os setores de comunidades presentes na Área Focal,
registrando os seus principais resultados no SIG organizado na época. Esta providência foi
de extrema importância para integração das diferentes informações fornecidas pelos grupos
de pesquisa ambiental e social em Mamirauá.

As amostragens socioeconômicas adquiriram uma periodicidade anual desde então,


passarando a compor um dos futuros projetos de monitoramento do IDSM, instalados anos
depois.

A segunda fase do Mamirauá (1995/96 a 2001): implementação do manejo e extensão

Após o desenvolvimento das pesquisas necessárias para redação do Plano de Manejo de


Mamirauá e a sua publicação, o que se deu entre 1995 e 1996, seguiu-se um período de
implementação das normas publicadas naquele documento. Neste período, as atividades de
pesquisa foram bastante reduzidas, e a maioria dos recursos e dos esforços da equipe foram
dirigidos a atividades de extensão e participação comunitária para garantir o uso sustentado
e a proteção efetiva da biodiversidade local.

Apesar disto, pesquisas científicas foram também desenvolvidas nesse período. Algumas
novas pesquisas foram iniciadas, como aquelas para apoiar ou subsidiar as ações de manejo
dos quelônios aquáticos de Mamirauá. Mas o principal grupo de atividades de pesquisa
desenvolvidas no período foi aquele relacionado com o monitoramento do status de
conservação local, o estado geral da biodiversidade e a qualidade de vida da população
humana residente no interior e arredores de Mamirauá.

Os projetos de monitoramento implementados naquele período foram:

- Demografia humana
- Situação sócio-econômica da população local
- Valor de mercado e variações sazonais da cesta básica regional
- Invasões e invasores da Reserva
- Níveis de uso dos recursos:
a) De fauna (peixes-boi, jacarés, quelônios, pirarucus etc.)
b) De flora (madeireiros)
c) Pesqueiros 1 (desembarque no mercado de Tefé)
d) Pesqueiros 2 (produção de espécies-chave em comunidades amostrais)
e) Abundância de espécies do topo da cadeia alimentar (botos, jacarés,
pirarucus etc.)
f) Integridade da cobertura vegetal e transformações do habitat

Este período de implementação das normas de manejo do Plano publicado em 1996 e de


intensificação dos trabalhos de Extensão Comunitária prolongou-se até 2001. Entre 1999 e
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2000 foi criado, a partir do Projeto Mamirauá, o Instituto de Desenvolvimento Sustentável


Mamirauá (IDSM), uma associação elevada à Organização Social (ma OS foi definida pela
Reforma do Estado como uma entidade de direito privado que exerce finalidade pública, e
tem esta função reconhecida pelo Estado, e dele recebe recursos específicos para esta
função, que é regulada por um contrato e acompanhada por um sistema de avaliação de
desempenho) por meio de Decreto Presidencial. Embora formalmente criado, o IDSM
aguardaria mais um ano para ser realmente implementado com sua contratação junto ao
governo federal.

A criação do Instituto Mamirauá e a definição de sua missão institucional: uma nova


fase (a partir de 2001)

Finalmente em 2001 deu-se a implementação do IDSM por meio da assinatura do primeiro


Contrato de Gestão entre o IDSM e o Ministério da Ciência e Tecnologia. Neste contrato o
IDSM compromete-se a executar um conjunto de atividades que foram selecionadas em
comum acordo, e a atingir uma série de metas acordadas no escopo de vários indicadores de
desempenho. Dentre estes indicadores, a pesquisa científica em geral, e o monitoramento
de sistemas ambientais e sociais em particular, desempenham um dos principais papéis.

O Instituto Mamirauá tem por missão estatutária a realização de pesquisas científicas para
“a Conservação da Biodiversidade com o manejo participativo e sustentável dos recursos
naturais na Amazônia”. (Estatuto do IDSM, Artigo 4)

Esta missão está mais focalizada nas florestas e outros ambientes alagados do Bioma
Amazônico, e está apoiada por uma base científica direcionada ao manejo de Unidades de
Conservação e ao uso sustentado dos recursos naturais, sempre de maneira participativa. A
forma encontrada pelo IDSM para executar esta missão foi o envolvimento e participação
da comunidade local nas ações de conservação da biodiversidade por meio da execução de
atividades de Pesquisa, Extensão e Monitoramento.

De modo similar ao Projeto Mamirauá, porém consistentemente mais elaborada, a


participação das comunidades locais neste processo foi desenhada, e realmente transcorre
desde então, de acordo com os seguintes pressupostos:

a) Somente o envolvimento da população residente pode garantir a conservação da


biodiversidade local, e sua proteção em níveis adequados;
b) Este envolvimento deve se dar da maneira menos traumática e invasiva possível,
preservando-se ao máximo as estruturas culturais já existentes;
c) Deve-se promover a participação da população local em todos os passos da gestão da
Unidade de Conservação e dos seus recursos naturais;
d) Os benefícios da conservação da biodiversidade devem ser clara e igualmente
distribuídos entre a população residente;
e) Um corpo técnico-científico deve monitorar o processo participativo de modo a manter
em foco a missão da unidade de conservação (e do Instituto), e interferir quando
necessário, utilizando as informações e os subsídios originários da pesquisas científicas
realizadas localmente.
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A pesquisa científica do IDSM atua, obviamente, em temas relacionados às ciências


ambientais e às ciências sociais, e a missão do Instituto delimitou as grandes correntes de
investigação nestas duas áreas, da mesma forma como ocorreu durante o período de
existência do Projeto Mamirauá.

São ainda os mesmos temas de conhecimento nos quais, hoje, o Instituto de


Desenvolvimento Sustentável Mamirauá atua. Tais temas podem ser aqui agrupados em
cinco grandes domínios:

1- O conhecimento da biodiversidade amazônica (e especialmente a de suas florestas


alagadas), levantamentos de sua composição e riqueza, sua origem, sua manutenção,
seus processos ecológicos e evolutivos, e seu funcionamento como um conjunto
integrado e complexo de unidades biológicas;

2- A definição dos padrões de uso desta biodiversidade por parte dos habitantes
tradicionais da Amazônia (mas especialmente daqueles que habitam as florestas
alagadas), especialmente em respeito aos padrões de uso dos principais recursos
naturais explorados no(s) local(is) abordados pela pesquisa, envolvendo sua
periodicidade, sua intensidade, sua relevância econômica, social, política e cultural,
assim como outros de seus aspectos mais relevantes;

3- O conhecimento da biologia daqueles componentes estratégicos da biodiversidade,


de modo a promover sua proteção, por meio de sua preservação ou da sua conservação
e uso sustentável, envolvendo estudos de ecologia de estrutura de populações, de
dinâmica populacional, composição de comunidades, interações entre espécies,
dinâmica sinecológica etc.;

4- A investigação de modos de promoção do desenvolvimento social das comunidades


tradicionais amazônicas que habitam as florestas alagadas, em bases sustentadas e com
respeito aos diferentes aspectos da identidade cultural destas comunidades,
especialmente por meio do desenvolvimento de técnicas ou tecnologia de processos
adequadas para permitir o uso sustentado dos componentes estratégicos da
biodiversidade local;

5- O desenvolvimento e a apropriação de tecnologias de baixo impacto ambiental e


adaptadas aos ambientes de alagamento, para incremento da qualidade de vida local,
especialmente direcionados a formas adequadas de habitação, saneamento, geração
alternativa de energia, novos processos de produção etc.

Concomitantemente a estes temas, encontram-se já estabelecidos os projetos de


monitoramento social e ambiental. A maior parte destes projetos científicos já se encontra
implementada, tem duração indefinida e visa acompanhar os sistemas sociais e ambientais
considerados mais relevantes para poder identificar quaisquer tendências com antecedência,
de modo a permitir interferências para correção de rumo, de acordo com as funções de
conservação da biodiversidade e os princípios constituintes do modelo de Mamirauá.
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Estes projetos de monitoramento expandiram-se daqueles cerca de dez criados na segunda


fase (1996-2001) para um total de 25, dos quais 21 já se encontram implementados.
Aqueles temas introduzidos no monitoramento da segunda fase continuam sendo
investigados e acompanhados na atual fase, mas também foram acrescidos os temas
relacionados à espacialização de eventos relevantes para o manejo da unidade e dos
recursos naturais. Deste modo, os processos de monitoramento foram definitivamente
absorvidos na estrutura do IDSM como atividades de pesquisa científica. Desde 2003 os
projetos de monitoramento são anualmente reunidos num evento de disseminação,
divulgação de resultados, identificação de tendências futuras e intercâmbio entre
pesquisadores. O primeiro evento anual contou com a participação de 18 projetos,
apresentando seus respectivos resultados, análises e eventuais tendências apontadas.

Infra-estrutura de apoio à pesquisa no IDSM e a gestão estratégica

O IDSM possui hoje uma invejável estrutura de campo para apoio à pesquisa científica.
Nas duas Unidades de Conservação administradas (Reservas de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá e Amanã) já se encontram instaladas 15 casas flutuantes de
diferentes tamanhos que atuam como bases de campo para apoio à pesquisa e
monitoramento, fiscalização e extensão comunitária. Estas casas flutuantes, contando com
alojamentos e espaço para depósito de materiais e equipamentos de pesquisa, normalmente
possuem também dependências para instalação de laboratórios temporários, rádios de
comunicação VHF e células de energia fotovoltáica.

O Instituto Mamirauá pode dispor de várias embarcações fluviais (cinco barcos regionais de
tamanhos variáveis, mais de 50 lanchas com motores de popa que variam de 15 a 135HP),
de três veículos terrestres, e de um grande número de canoas espalhadas por todas as bases
de campo.

Na cidade de Tefé existe uma infra-estrutura de apoio a pesquisas ainda limitada. Embora
exista uma biblioteca (especializada em ciências ambientais e ciências sociais, com ênfase
na Amazônia) e uma rede de computadores com um dos nós da Rede Nacional de Pesquisas
(o que proporciona acesso à Internet e troca de mensagens eletrônicas), a sede provisória do
IDSM conta com apenas um laboratório que, em alguns momentos, é compartilhado por
vários grupos trabalhando simultaneamente com materiais nem sempre compatíveis entre
si. A futura sede do IDSM, um complexo de 18 edificações que já começaram a serem
erigidas no terreno adquirido pelo CNPq às margens do Lago Tefé para este propósito,
prevê a construção de um grande número de dependências de pesquisa e de vários
laboratórios multiuso.

Os trabalhos de pesquisa do Instituto Mamirauá são supervisionados pela Coordenação de


Pesquisas e pela Diretoria Técnico Científica. É, portanto, a Diretoria Técnico-Científica a
instância de tomada de decisões e de solução de problemas afeitos à pesquisa científica no
Instituto Mamirauá. Ao Diretor Técnico Científico reportam-se todos os pesquisadores,
quando tratando de questões científicas no âmbito do Instituto. A Diretoria Geral do IDSM
é a instância executiva mais alta dentro do Instituto. Quaisquer problemas não solucionados
pela Diretoria Técnico Científica, e também na ocorrência de impasses gerados ou
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aflorados naquelas instâncias, caberá à Diretoria Geral do IDSM a arbitragem e a tomada


de decisão final.

A Diretoria Geral pode, sempre que julgue necessário, ouvir o Conselho de Diretoria
(formado por todos os Diretores Adjuntos) na resolução de problemas de todas as
naturezas, inclusive científica. Mas existem também outras instâncias colegiadas no
IDSM para tratar de questões científicas e outras afeitas às atividades de pesquisa da
instituição. A principal delas, o Conselho Técnico Científico, é um órgão consultivo,
instalado para subsidiar a Diretoria nestes assuntos. O Conselho Técnico Científico (CTC)
é formado por nove membros. São eles o Diretor Geral e o Diretor Técnico Científico do
IDSM, somados a sete conselheiros atuantes na Amazônia, com idoneidade e prestígio
amplamente reconhecidos. Todos são ligados a instituições de pesquisa (ou de ensino e
pesquisa) da Região Norte, como institutos de pesquisas, universidades e organizações não-
governamentais ambientalistas. Os conselheiros do CTC são especialistas atuando nas
seguintes áreas de pesquisa:

1. Vida Selvagem;
2. Agricultura;
3. Ciências Sociais;
4. Pesca;
5. Recursos Florestais;
6. Biodiversidade;
7. Um representante dos pesquisadores do IDSM.

A identificação de novos temas de pesquisa científica e os níveis de participação local


nos programas

O programa de pesquisas tenta ser uma fonte dinâmica de resolução dos problemas de
manejo, e desta forma deve ser flexível o suficiente para acomodar novas tendências, novas
demandas, e se expandir na direção apontada pelo modelo de conservação em aplicação.
Como uma decorrência natural, o programa deve ser capaz de investigar novos fatores,
processos e sistemas que são identificados por meio da consulta a várias fontes.

Esta constatação partiu de alguns fatos relevantes:

I. O Instituto Mamirauá, desde 1998, também está encarregado da gestão da Reserva de


Desenvolvimento Sustentável Amanã, e há a necessidade urgente de prover esta reserva
com o seu próprio Plano de Manejo;

II. As pesquisas realizadas em Mamirauá até o momento estão longe de abordar todos os
aspectos mais importantes dos habitats do ecossistema de várzea, seus componentes e sua
utilização;

III. A pequena equipe de pesquisadores do IDSM não pode executar muito mais do que já
executa atualmente, e precisa identificar necessidades de pesquisa para atrair novos
executores externos para a mesma.
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Numa consulta interna entre pesquisadores do IDSM, foram identificadas novas linhas de
pesquisa prioritária que deveriam ser abertas pelo Instituto no menor prazo possível. O
referido processo de consulta envolveu os pesquisadores da instituição, mas também alguns
pesquisadores externos que são colaboradores do IDSM por longa data também tiveram a
oportunidade de participar. A lista de temas de pesquisa resultante identifica pesquisas
prioritárias, de natureza temática.

De maneira bastante animadora, já em fins de 2002 e início de 2003 uma série de demandas
por pesquisa científica partiu de algumas comunidades locais. Estas comunidades,
utilizando-se do sistema de consulta, discussão e tomada de decisão postos em prática pelo
grupo de organização política e de alternativas econômicas, conseguiram fazer chegar ao
IDSM algumas demandas específicas sobre pesquisa científica.

Como resultado da vivência em gestão participativa junto aos técnicos e pesquisadores do


IDSM, muitas lideranças comunitárias locais já compreendem que boa parte das atividades
de manejo postas em prática deste 1997/98, hoje bastante bem-sucedidas e com grande
capacidade de geração de renda e de potencial transformação dos padrões de vida locais,
são decorrência de investimentos em pesquisa básica e tecnológica acerca dos recursos
naturais de maior relevância econômica. Em decorrência das amplas discussões ocorridas
com os moradores locais desde 1995 e 1996 para aprovação das regras e recomendações do
Plano de Manejo, já existe a clara percepção de que o conhecimento resultante dos projetos
de pesquisa pode apontar práticas mais adequadas para o uso de vários componentes da
biodiversidade (as comunidades indígenas do interior da área se inserem neste plano
exatamente como as outras comunidades, e participaram, por intermédio de suas lideranças,
dos eventos de aprovação das regras de manejo; como sabemos, nunca encontramos 100%
dos moradores de uma determinada comunidade acatando as normas e restrições,
independentemente da comunidade ser indígena ou não; não tenho conhecimento de
conflitos especificamente relacionados à identidade indígena das comunidades; os conflitos
que eventualmente surgiram foram comuns à maioria das comunidades e foram negociados
de maneira igual para todas elas)

Conseqüentemente, começaram a surgir demandas por pesquisa científica abordando


grupos de recursos de relevância econômica. Demandas específicas foram recebidas por
pesquisas para zoneamento de praias de desovas de quelônios, por pesquisas para o uso
sustentável de alguns recursos florestais não-madeireiros atualmente em uso por várias
comunidades, por pesquisas para a retomada, desta vez sustentável, da retirada de peixes
ornamentais para o mercado regional, nacional e internacional etc. Nota-se que esta
demanda é bastante focalizada, e traz consigo evidências de uma nova fase de maturidade
da população local em sua relação com o IDSM e seus membros.

Tais demandas, acrescidas àquelas resultantes das consultas junto aos pesquisadores, têm
sido levadas para atendimento dentro dos encaminhamentos normais do Instituto
Mamirauá, e algumas delas já se encontram em fase de atendimento.

Mas esta não é a única forma através da qual o programa de pesquisa apresenta
possibilidade de envolvimento e participação da população local. Todas as pesquisas de
campo só são implementadas quando as comunidades afetadas são consultadas e
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concordam com sua realização. Imediatamente costuma-se seguir, sempre que cabível, um
levantamento do conhecimento tradicional local acerca do tópico a ser pesquisado, que
geralmente é consultado junto ao segmento mais afeito ao tópico (pescadores locais,
agricultores e agricultoras familiares locais etc.). Sempre que possível é buscada uma
integração entre o conhecimento tradicional, o empirismo e a experimentação científica
existentes acerca do tópico.

Membros das comunidades locais sempre são envolvidos nas atividades de campo de coleta
de dados. Normalmente este envolvimento é decisivo para que tal coleta seja bem sucedida.
A prática de retorno dos resultados às comunidades têm sido estimulada nos últimos anos,
embora boa parte do retorno se dê nas grandes reuniões de organização, e não no nível
local.

Finalmente, na fase final de execução das pesquisas, quando seus resultados divulgados são
levados a influenciar nos destinos do manejo da Unidade de Conservação ou dos recursos
naturais, todas as comunidades têm a possibilidade de tomar parte decisiva na escolha das
alternativas a serem seguidas. Uma vez exposta a questão em pauta, explicadas as
implicações dos resultados das pesquisas científicas, e ouvidas as posições dos técnicos e
pesquisadores envolvidos nas pesquisas, os representantes de cada uma das comunidades de
Mamirauá têm a oportunidade de votar os encaminhamentos da questão. Somente estas
pessoas possuem direito a voto nas instâncias de tomada de decisão, e não os
pesquisadores. A estes está colocado o papel de aconselhar em face dos resultados da
pesquisa científica. Cabe aos representantes comunitários, devidamente convocados e
credenciados para tal, votar acerca dos caminhos do manejo. Dessa forma, busca-se dar um
nível de participação inédito das populações locais nos processos de tomada de decisão,
gestão territorial da unidade, e manejo sustentado dos recursos naturais explorados
localmente.

O IDSM encontra-se agora conduzindo o 12º ano de implantação e experimentação do


modelo Mamirauá iniciado ainda em 1991. A idéia de gestão participativa associada a
conhecimento científico que integrou a primeira proposta ainda é o principal diferencial
deste modelo. Muitos percalços ocorreram neste período, mas aparentemente o modelo
resiste aos inúmeros problemas contornados, e tem se mostrado bastante eficiente na
resolução do uso sustentado. Muitos ainda são os desafios a serem suplantados para que se
possa afirmar que este modelo realmente atende às enormes demandas colocadas. Mas os
resultados obtidos até o momento são muito animadores. Talvez esta seja uma das formas
através das quais a pesquisa científica tente dialogar com outros conjuntos de
procedimentos e modos de pensamento existentes, contribuindo com a busca de soluções
para os enormes problemas enfrentados no âmbito da conservação da biodiversidade e do
desenvolvimento regional da Amazônia brasileira.

Helder Lima de Queiroz, biólogo, é Diretor Técnico-Científico do Instituto de


Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

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