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REVISTA DO CFCH • Universidade Federal do Rio de Janeiro
ISSN 2177-9325 • www.cfch.ufrj.br
Edição Especial JICTAC • agosto/2014
que chama atenção para o fato de que aquilo que identificamos como familiar não
necessariamente nos é conhecido (VELHO, 1978).
Embora a proposta de uso do desenho na pesquisa antropológica possa parecer
uma novidade, é importante lembrar que é o desenho foi uma importante ferramenta de
registro na antropologia desde a sua origem. Bronislaw Malinowski produziu uma série
de desenhos registrando objetos rituais e do cotidiano dos nativos das ilhas Trobriand; o
antropólogo português Jorge Dias teve grande parte de seus estudos complementados
por desenhos de Fernando Galhano (1985); Claude Lévi-Strauss produziu também uma
série de desenhos em suas pesquisas no Brasil, como os presentes em Tristes Trópicos,
além de outros só recentemente divulgados pela Biblioteca Nacional da França; apenas
para citar alguns exemplos.
Esse estilo de desenho, realizado mais como um registro “técnico” daquilo que
era visto em campo (objetos, modos de utilizá-los, grafismos, como tatuagens e outras
produções consideradas “artísticas”), foi sendo substituído a partir do surgimento e da
popularização de novas tecnologias de captação da imagem, como a fotografia e o vídeo
(AFONSO, 2004). No entanto, nos últimos anos vemos surgir entre antropólogos de
diferentes países um novo uso do desenho na pesquisa etnográfica. É o caso de Manoel
João Ramos, pesquisador português citado anteriormente que realiza pesquisas de
campo em países africanos como etnógrafo e desenhador. Podemos citar também
Michael Taussig (2011), antropólogo americano que vem pensando a interface entre
desenho e antropologia a partir de seus diários de campo, e ainda Ana Afonso,
antropóloga portuguesa que tem usado o desenho como forma de estimular e acessar a
memória de seus interlocutores de pesquisa (AFONSO, 2004).
Com o aperfeiçoamento tecnológico em torno do registro imagético, seria
razoável pensar essa retomada do desenho nas pesquisas antropológicas como algo sem
sentido. No entanto, se compararmos os desenhos produzidos pelos pesquisadores atuais
e aqueles feitos em pesquisas na antropologia clássica, veremos que se tratam de
propostas bem diferentes. O registro técnico, preciso e objetivo do que é observado em
campo não é a principal preocupação do desenho utilizado por pesquisadores
atualmente. O que percebemos a partir da leitura desses autores e da experiência com
desenhos feitos para a disciplina com os alunos do IFCS é que esse desenho tem usos e
significados completamente diferentes dos que acabamos de mencionar.
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alunas Isaura e Mariana, por exemplo, fizeram seu exercício etnográfico entre as ruas
Gomes Freire e Mem de Sá, no bairro da Lapa, e não precisaram fazer nada além de
sentar à mesa de um bar, retirar o caderno da bolsa e começar a desenhar para que os
garçons iniciassem uma conversa com elas (ver desenho ao lado).
Outro exemplo que ilustra bem esse uso do desenho na pesquisa antropológica
foi o descrito por Diana Bento, que realizou sua pesquisa numa escadaria que liga os
bairros da Lapa e Santa Teresa. Num dos dias de trabalho de campo, a estudante
encontrou Odara, uma transexual que trabalhava num salão de beleza próximo, e
começou a desenhá-la. De acordo com Diana, o desenho fez com que Odara se sentisse
valorizada e se abrisse a uma conversa:
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Rosa Richter
Em muitos trabalhos dos alunos, também foi destacado o ato de desenhar como
um aliado para permanecer mais tempo no campo. Para o trabalho do antropólogo, o
tempo de pesquisa longo é um fator fundamental. Apenas compartilhando o tempo com
as outras pessoas no campo é possível compreender aspectos da cultura, valores e
significações dos grupos pesquisados. É nesse sentido que o desenho se converte num
potente aliado do pesquisador em campo, afastando o constrangimento imposto pelo
“não fazer nada” e prolongando a sua permanência como observador e interlocutor.
Surgiu ainda nos trabalhos o uso do desenho como uma forma de treinar o olhar
pra ver coisas que antes estavam “invisíveis” no campo. Esta pode ser uma versão
visual da ideia de Gilberto Velho (1978) de que aquilo que consideramos familiar nem
sempre é conhecido. Por vezes é preciso olhar de um jeito diferente, com um olhar de
estranhamento, para que surjam novas informações.
Finalmente, um dos trabalhos trouxe a possibilidade de utilizar o próprio
desenho como um dado construído no campo. As alunas Raquel Ribeiro e a Gabriela
Fernandez fizeram pesquisa no bairro da Freguesia e pediram aos moradores que
desenhassem sua percepção em relação às mudanças do bairro. A partir desses registros,
elas observaram um recorte geracional na percepção do espaço: pessoas mais velhas
davam ênfase ao aumento do número carros e prédios na região, enquanto pessoas mais
jovens mostraram-se mais preocupadas com a diminuição do número de árvores.
Os trabalhos mostraram usos importantes e variados do desenho na pesquisa em
antropologia, mas alguns deles expuseram também seus limites. Alguns alunos tiveram
dificuldades em desenhar no campo, alguns pela timidez, outros por resistência dos
interlocutores, que foram mais receptivos à câmera fotográfica.
Como considerações finais, gostaríamos de evidenciar que nossa proposta não é
pensar o desenho como a única ou a melhor ferramenta para o trabalho etnográfico do
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antropólogo, mas sim considerar que o ato de desenhar e produzir desenhos podem ser
aliados enriquecedores e até decisivos no processo de produção de conhecimento
antropológico.
Referências Bibliográficas
AFONSO, Ana. New graphics for old stories: representation of local memories through
drawings. In: Working Images: Visual Research and Representation in
Ethnography. Sarah Pink, László Kürti, Ana Isabel Afonso (orgs). London ; New
York: Routledge, 2004. p. 72-89.
GALHANO, Fernando. Desenho etnográfico de Fernando Galhano. Lisboa: Inst. Nac.
de Investigação Científica. Centro de Estudos de Etnologia, 1985.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia
urbana”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 17, n. 49, p. 11-
29, jun. 2002.
RAMOS, Manoel João. Histórias etíopes. Lisboa, Tinta da China, 2010.
VELHO, Gilberto. “Observando o familiar”. In: Um antropólogo na cidade: ensaios de
antropologia urbana. Hermano Vianna; Karina Kuschnir; Celso Castro (Orgs.). Rio
de Janeiro: Zahar, 2013 [1978].
TAUSSIG, Michael I Swear I Saw This: Drawings in Fieldwork Notebooks, Namely My
Own.Chicago, University of Chicago Press, 2011.