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Texto-Aula: Absolutismo, Iluminismo e Revolução na França do Século XVIII

O pensamento europeu do Século XVII havia aprofundado o espírito de renovação

que havia herdado e feito notáveis e históricos avanços na direção da formação de uma

visão de mundo realmente moderna e dotada de aspectos que representavam inovações

epocais, que marcariam o período histórico em que vivemos. Também assistiu à

continuação da expansão colonial e imperial no resto do mundo e o estabelecimento da

lógica capitalista de relações sociais, particularmente na Inglaterra, e, de acordo com

alguns, também na Holanda. O processo de centralização política sob a égide do Estado

Absolutista também seguiu a sua marcha, num período marcado por crises e guerras no

contexto da formação de um novo sistema interestatal europeu. Vimos na parte anterior

como surgiu na Inglaterra teorias e conceitos políticos que marcavam uma ruptura não

apenas em relação à lógica de seu tempo mas mesmo no contexto mais amplo da história

da teoria política. O individualismo metodológico e ontológico de Hobbes e também a

sua maneira de Locke, refletiam, como discutimos, correntes de pensamento amplamente

estabelecidas no contexto inglês, incluindo as radicais proclamações de igualdade e

defesa da democracia que surgiram em meio à Guerra Civil Inglesa. Conforme discutimos

na parte anterior, Hobbes e Locke também aram pensadores profundamente ligados às

correntes mais amplas do pensamento filosófico da época, um período que assistia à

verdadeira decolada da “revolução científica” europeia. No Leviatã Hobbes afirma seu

intento de desenvolver uma ciência da política moldada pelos princípios recentemente

desenvolvidos no campo das ciências naturais e da matemática, efetuando uma análise

rigorosamente secular em natureza. Locke talvez tenha alcançado ainda mais

reconhecimento e influência como o teórico da Carta Acerca do Entendimento Humano

do que como o pioneiro da teoria política liberal que ele foi nos Dois Tratados Sobre o

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Governo Civil. Nesse trabalho Locke se filia diretamente ao desenvolvimento científico

que lhe era contemporâneo, crucialmente a nova Física de Isaac Newton, concebendo o

seu papel como filósofo como o de um ajudante nessa monumental empreitada. Suas

teorias aprofundavam a concepção empirista do conhecimento que havia sido

originalmente defendida pelo filósofo inglês e mestre do jovem Hobbes Francis Bacon

(1561-1626), um dos primeiros advogados explícitos da ideia de ciência moderna como

uma ruptura e avanço em relação a todo o conhecimento pregresso. A teoria de Locke do

homem como tabula rasa foi um fundamental ponto de partida para concepções

posteriores do homem desenvolvidas durante o auge do Iluminismo na França. O avanço

de concepções que procuravam uma compreensão racional do mundo e do homem é uma

marca inegável desse período.

Esse século de avanço no campo científico se iniciou de uma maneira pouco

propícia com a histórica queimada do monge e filósofo Giordano Bruno em 1600. Bruno

viveu uma vida de peregrinações e perseguições enquanto escrevia seus trabalhos que,

inspirados por Copérnico e pelos materialistas antigos, particularmente os prescritos

Epicuro e Lucrécio, imaginava um universo infinito de mundos e estrelas, sem centro,

sem início ou final. Tal concepção, desenvolvida de modo puramente filosófico e literário,

era muito mais radical do que a concepção do próprio Copérnico, a qual já havia

enfrentado enorme hostilidade da parte das instituições eclesiásticas fortemente ligadas

aos poderes seculares em ascensão, responsáveis pela Contra-Reforma e a Santa

Inquisição. Não à toa o católico Copérnico publicaria as suas teses apenas no seu leito de

morte. As visões, imbuídas de forte misticismo, de Bruno se revelariam ainda mais

escandalosas e heréticas, e ao profeta do universo infinito foi conferida uma execução

particularmente severa, reservada para casos raros. Galileu Galilei (1564-1642) foi

contemporâneo desses eventos, que marcavam a oposição entre as teorias científicas e

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novas concepções do universo e da natureza que haviam começado a se insinuar ao longo

do Século XVI e as concepções dominantes estabelecidas e abençoadas pelas autoridades

religiosas, que nessa época, e particularmente nas suas regiões católicas majoritárias,

ainda tinham o poder de demarcar o pensamento autorizado do pensamento herético. Esse

papel de “polícia do pensamento” havia sido exercido pela Igreja Católica por longos

séculos, apesar da existência de contracorrentes e heresias. O fato é que nenhuma corrente

de pensamento ou mesmo grande pensador individual não-cristão, ou crítico do

cristianismo, havia existido, seja no cânone ou nas correntes mais obscuras, do

pensamento europeu desde o fim do Império Romano. Nenhum “ateu” deu as suas caras

durante esse longo período, a não ser nos relatos dos inquisidores cristãos e nas suas

fantasias literárias.

O controle do pensamento nos marcos rígidos do cristianismo se mostrou eficaz,

em termos gerais, numa escala histórica realmente impressionante. Galileu não fugiu a

essa regra, como não haviam Copérnico ou o monge Bruno. Contudo, os impressionantes

avanços científicos do grande pensador florentino também o colocaram em rota de colisão

com a Santa Inquisição. Galileu havia primeiro se notabilizado quando, ao aperfeiçoar o

telescópio, conseguiu enxergar os céus de uma maneira que nenhum homem jamais havia

(ele também realizaria outras notáveis realizações científicas, como a lei da queda dos

corpos, que abriu caminho para a teoria da gravidade). Com uma ampliação de 30x a

visão comum, Galileu viu e desenhou crateras na Lua, observou satélites de Júpiter e

Saturno, enxergou as manchas solares, observou estrelas invisíveis à olho nu. De um só

golpe Galileu colocou em questão todo o conhecimento astronômico estabelecido,

representado pelo modelo geocêntrico, originado com Aristóteles e aperfeiçoado pelo

matemático Ptolomeu no Século II, que postulava a terra como um centro imóvel no

centro do universo. As observações de Galileu o levaram à defesa militante do modelo

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copernicano. Denunciado pelas autoridades e pela Igreja, Galileu radicalizou a sua

advocacia, propondo uma leitura teológica que afirmava o papel exclusivamente

espiritual da Bíblia. Numa afirmação que marcou a história, Galileu disse que “a Biblía

nos ensina como ir para o Céu, não como o Céu está”. Ele estava propondo uma radical

divisão de trabalho entre ciência e religião, na qual se deveria reconhecer o caráter

alegórico da Bíblia e os erros ali presentes no que diz respeito ao conhecimento da

natureza. Somente a ciência, baseada na observação e na matemática, poderia permitir ao

homem um verdadeiro conhecimento da obra de Deus no campo da natureza. Essa

declaração de independência da ciência natural não foi bem recebida pelas autoridades

religiosas. Galileu foi colocado em prisão domiciliar e foi julgado pela Santa Inquisição,

sendo forçado a renegar as suas teorias e a viver sob prisão domiciliar perpétua.

Ao menos o bravo pioneiro da ciência moderna escapou da fogueira.

Contemporâneo mais novo de Galileu, o francês René Descartes (1596-1650) não

pretendia terminar os seus dias na fogueira ou na prisão, mas foi bastante hábil em

apresentar o seu radicalismo teórico numa roupagem que se mostrou digerível para a

época. A premissa original de seu célebre Discurso do Método envolve uma negação de

todo conhecimento estabelecido, do qual se deve partir do zero por meio de um raciocínio

lógico e objetivo. Sua conclusão envolvendo o reconhecimento de Deus como a base

última para um mundo racional suavizou a mente dos inquisidores. Descartes acabou por

reafirmar a declaração de independência de Galileu de um jeito que pareceu mais

palatável para os contemporâneos, mas não menos significativo: propondo uma

irredutível dualidade entre corpo e mente, Descartes relegou toda matéria inconsciente

(incluindo a vida animal) ao âmbito da automata, desenvolvendo a concepção

mecanicista da natureza. Esses mecanismos só poderiam ser conhecidos pelo método

analítico ou científico. Descartes, sem cair na fogueira ou na prisão e vivendo uma bela

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vida nos salões das cortes e nobrezas da época, acabava por reafirmar a separação entre

ciência e religião que havia levado ao ocaso de Galileu. As teorias de Descartes se

espalharam rapidamente entre os círculos literários da Europa da época, tendo enorme e

duradoura influência. Um estudioso particularmente notável da obra de Descartes foi o

pensador holandês Baruch Espinoza (1632-1677). Espinoza era o filho de um judeu

português que havia emigrado para a Holanda em busca de refúgio. A Holanda

republicana havia se tornado nessa época um paradeiro mais seguro no contexto das ainda

ardentes lutas e perseguições religiosas e políticas. Mais tarde nesse mesmo século Locke

e uma série de outros parlamentaristas ingleses se refugiariam por longo tempo na

Holanda, e seria o então rei da Casa de Orange que seria o protagonista da Revolução

Gloriosa de 1689. Espinoza, contudo, levaria ao extremo a frágil tolerância reinante nas

Províncias Unidas. Tendo passado por profunda formação na tradição judaica, é

excomungado ainda adolescente por sua visão crítica. No seu mais famoso trabalho, o

Tratado Teológico-Político publicado em 1670, Espinoza questionou a dualidade

cartesiana entre mente e corpo. Para ele não havia coerência lógica na hipótese de tal

separação: a mente humana, como todas as demais entidades da natureza, está submetida

às mesmas regras. Ele afirma um monismo contra a hipótese dualista, afirmando que toda

a realidade natural é marcada por leis universais de funcionamento. Deus nada mais é do

que uma palavra para descrever essa lógica da natureza. Deus e natureza são sinônimos,

não havendo consistência a ideia de um Deus pessoal e caprichoso, que imporia a sua

vontade arbitrária. Uma tal concepção, que compreende Deus como sinônimo da lógica

de funcionamento da realidade ou da Natureza, é conhecida como deísta. Embora procure

se afastar do ateísmo propriamente dito como doutrina, as suas consequências práticas

não são muito diferentes. Enquanto Galileu procurou preservar a Bíblia como fundamento

para a salvação, e Descartes apontou Deus como a garantia última da racionalidade (além

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de fornecer uma nova versão do chamado argumento ontológico para a existência de

Deus), a tese de Espinoza não fornecia nenhum conforto, e no seu lugar promovia uma

doutrina ética plenamente racionalista, associada a uma teoria política republicana, que

apresentava ainda a irreverente tese de que a democracia seria a forma mais natural de

governo humano (apesar de sua compatibilidade prática com as formas oligárquicas mais

típicas da sua Holanda natal). Pode-se dizer que a ousadia e coragem intelectuais de

Espinoza, realizando a mais profunda crítica que a teologia cristã havia recebido em toda

a sua existência como visão de mundo dominante, abriu o caminho para os passos que

seriam dados no contexto do Iluminismo francês. No contexto mais geral da guerra

promovida pela religião dominante contra as concepções científicas e filosóficas

nascentes, o golpe desferido por Espinoza abriu as porteiras para esforços ainda mais

radicais empreendidos no século seguinte.

A França adentra o Século XVIII como a maior potência absolutista do continente

europeu, assim como o seu gigante populacional, posição ocupada havia vários séculos.

O Rei Luís XIV continuava o seu longo reinado que perduraria até a sua morte em 1715.

O seu firme governo havia consolidado a níveis nunca vistos a estabilidade da coroa

francesa, subordinando de forma crescente os poderes locais e afirmando a posição da

França na geopolítica do continente, além de seu império colonial. O “Rei Sol”, num

famoso chiste, afirmara que “O Estado Sou Eu”, ressaltando a solidez da sua posição no

trono mas apontando ao mesmo tempo para as características fundamentais do sistema

absolutista, que havia elevado o modelo da propriedade política típico do feudalismo a

escalas mais vastas e complexas de organização, sem perder de vista a sua essência como

uma forma de propriedade política e de apropriação econômica. Nesse modelo de

Absolutismo Avançado, caracterizado também pela expansão das magistraturas venais,

ou seja, sujeitas à compra e venda, as formas mais altas de riqueza estavam ligadas ao

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pertencimento à corte e às funções estatais, que representavam fontes de renda

provenientes da taxação da imensa maioria camponesa e das classes urbanas. O comércio,

centralizado sob a forma de licenças reais, e dirigido pela lógica do mercantilismo, se

apresentava como mais uma fonte de renda para o estado e a nobreza estatal que

representava o grosso da classe dominante francesa. Tal modelo, embora aperfeiçoado ao

longo do tempo, convivia com as velhas contradições herdadas da história francesa, com

a coroa enfrentando o seu principal problema na antiga e problemática relação com as

autoridades regionais e a estrutura de poderes e títulos herdadas da antiga estrutura feudal.

Esse conflito havia definido desde o Século XVI as bases da luta política na França,

colocando de uma lado os defensores da tese real, a partir do trabalho pioneiro de Jean

Bodin no fim desse século, contra os defensores da tese nobiliárquica, que havia incluído

os autores huguenotes do período das guerras religiosas. Um dos marcos da supremacia

real ao longo desse período foi a não-convocação dos Estados Gerais durante um longo

período que se iniciou em 1614 e terminou em 1788, com a convocação que precipitou

os eventos da Revolução Francesa. A Assembleia dos Estados Gerais, com uma história

que remontava ao período feudal mais remoto, e marcada por uma distribuição de

representantes por meio dos Parlamentos regionais e outras jurisdições políticas, era a

principal forma de mobilização da nobreza contra a coroa, e sua irrelevância marcou o

declínio das forças que buscavam uma afirmação da soberania local contra o poder

central. Tal luta era, desde sempre, também uma luta pelo direito de exploração das

comunidades camponesas. Apesar dessas tensões a França viveu um longo período de

relativa paz interna, entendendo por “paz”, claro, a estabilidade de um sistema sócio-

político baseado no princípio do privilégio e do exercício autocrático do poder.

Esse sistema político convivia em simbiose com o poder de uma Igreja Católica

em grande medida “nacionalizada” e mobilizada pelo poder do rei e do Estado que ele

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comandava. Cardeais e bispos foram importantes estadistas da França absolutista,

nenhum mais do que o lendário Cardeal de Richelieu, principal conselheiro de Luís XIII,

pai do futuro Rei Sol. O Reino da França havia há muito assumido uma posição de

destaque no contexto do mundo católico, e desde suas lutas pela Contra-Reforma havia

assumido o manto de defensor do Catolicismo. Ao mesmo tempo o crescente poder do

rei subordinava a Igreja a suas prioridades, o que se dava contudo num contexto marcado

pela aliança entre Coroa e Igreja como parceiras na gestão de um sistema por eles

dominado. A Igreja era a guardiã do pensamento aceitável, seguindo o Índice de livros

proibidos em permanente crescimento. Como notamos, o Século XVII foi um momento

de avanço notável da nova ciência natural, com o surgimento de perspectivas que

defendiam a liberdade de pensamento como fundamental para o progresso dessa nova

ciência, passando pela separação entre ciência e religião, culminando com a minimização

filosófica da teologia tradicional realizada por Espinoza. Esse espírito de época também

encontrava solo fértil na França, com o avanço da concepção cartesiana e a sua defesa da

análise material para todo o universo inconsciente. As inovações políticas do

republicanismo holandês e do novo parlamentarismo inglês também serviam como

espelhos para uma reflexão crítica sobre o sistema absolutista francês, com a sua

autocracia real e pesada herança feudal. A sociedade francesa havia crescido e se

sofisticado sob o regime absolutista. As cidades haviam crescido, como também haviam

os grupos sociais “médios” urbanos que não pertenciam à nobreza. A competição com a

Inglaterra, empenhada numa política de incentivo da ciência natural, que passou pela

formação da Royal Society, a mais antiga sociedade científica moderna e ainda em

existência, em 1660, impedia uma repressão descontrolada das novas formas de saber. O

arcaísmo modernizado da estrutura absolutista, contudo, se mostrou um alvo perfeito para

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a expansão e radicalização da nova concepção de mundo que vinha se desenvolvendo a

partir dos renascentistas e de Copérnico.

Tomado em sua dimensão mais ampla, pode-se dizer que o Iluminismo francês

representou um movimento intelectual crítico com poucos paralelos na história. Uma

posição crítica em relação à realidade política dominante se tornou a norma e o bom senso

para um amplo grupo de pensadores contemporâneos, para os quais as condições sociais

estabelecidas representavam uma perversão e injustiça, as quais deveriam ser revertidas

por meio de reformas ou de revoluções. O Estado absolutista, com seu patrimonialismo e

sua lógica semi-feudal, e a Igreja Católica, se tornaram os principais alvos da crítica desse

novo modelo de pensador crítico que foi historicamente criado pelas condições que

associamos com o Iluminismo. Esse movimento intelectual ganhou impulso

particularmente na segunda metade do Século XVIII, e contornos mais bem organizados

particularmente com o projeto da Enciclopédia liderado por Denis Diderot, seu principal

editor e redator, que envolveu dezenas dos maiores pensadores franceses da época e que

estabeleceu as bandeiras da defesa da liberdade de pensamento, da ciência e do

“progresso”, uma nova concepção que acabaria por ganhar contornos epocais. Mas o

clima de crítica intelectual já havia se estabelecido antes. As Cartas Persas do Barão de

Montesquieu (1689-1755), publicadas em 1721, um conjunto de diálogos imaginários

entre dois visitantes persas na França do rei Luís XIV, com a sua ácida sátira dos costumes

da corte e da corrupção e irracionalidade associada ao Estado absolutista, representou um

primeiro passo na formação do espírito crítico que marcaria o movimento iluminista. Esse

espírito crítico foi num primeiro momento particularmente associada à figura do icônico

pensador Voltaire (1694-1778). As suas Cartas Inglesas, escritas durante um período de

exílio na Inglaterra, exaltavam o novo modelo parlamentarista então em consolidação no

país e o que Voltaire identificava como a tolerância do sistema social e político inglês.

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Voltaire seguiria pelo resto da vida um admirador do modelo de Monarquia

Constitucional da Inglaterra, como era também o caso do seu contemporâneo e amigo

Montesquieu, os mais velhos entre os pensadores tradicionalmente ligados ao iluminismo

francês. Nas suas Cartas Voltaire elaborou uma crítica ainda mais ácida do absolutismo

francês, do papel dominante da Igreja, contrastando-os negativamente com o espírito

aberto sentido pelo pensador na Inglaterra. Como que confirmando as suas análises, as

Cartas foram imediatamente censuradas e apreendidas quando publicadas em 1734. A

repressão política seria uma constante para boa parte dos pensadores iluministas, e

particularmente para as suas obras, o que não impediria a sua crescente difusão e impacto

com o decorrer do século. Em toda a sua obra Voltaire seguiria na defesa dos ideais

políticos do liberalismo, com a defesa da ciência e sua popularização, e com o

desenvolvimento da sua própria visão deísta, inspirada em Espinoza.

Comparado com os principais autores mais novos associados com o iluminismo

Voltaire acaba se destacando como um representante da sua ala mais moderada. A sua

visão política era guiada pela sua anglofilia que se traduzia numa eloquaz defesa do

liberalismo político, e imaginava uma reforma do sistema francês na direção do

liberalismo parlamentar predominante na Inglaterra, com a sua tolerância e promoção da

ciência. O mesmo pode-se dizer de Montesquieu. Enquanto Voltaire era acima de tudo

um intelectual público, um brilhante polemicista e um difusor das grandes ideias da época,

Montesquieu se constituiu como um dos maiores inovadores no campo da teoria social e

política a surgirem durante o Século XVIII. A sua obra-prima, Do Espírito das Leis,

publicada em 1748, era um esforço muito ambicioso de estabelecimento das bases para

uma nova ciência da sociedade e da política. Vimos como, um século antes, Hobbes

desenvolveu a sua teoria com a intenção de criar uma nova ciência política. O mesmo

objetivo permeia o tratado de Montesquieu. Mas enquanto Hobbes concebia essa ciência

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da política a partir de um modelo que partia de uma concepção do indivíduo e da sua

natureza, postulando uma ontologia da anterioridade do indivíduo em relação à sociedade,

e desenvolvendo uma dinâmica mecânica a partir das características universais dos

indivíduos assim definidos, Montesquieu seguiu um caminho totalmente diverso. O Barão

argumentou que a política não pode ser entendida a partir de uma lógica singular e

autônoma, mas apenas a partir das condições que permitem o seu estabelecimento, as suas

características e o seu modo de funcionamento. Essas condições envolvem todo o

conjunto de características sociais e físicas, incluindo os costumes e religião dominantes,

o tamanho da população e do território, o tipo de clima predominante, o tipo de

moralidade e virtude associado com cada tipo de Estado e sociedade. Muitos identificam,

com boas razões, o trabalho de Montesquieu como um pioneiro direto da Sociologia que

se desenvolveria particularmente no Século XIX. Ele dá um passo fundamental para a

compreensão da sociedade como um tipo variável de realidade cuja lógica é mais

profunda do que as suas aparências formais, incluindo crucialmente as suas formas de

governo. Os tipos de Estado são mais o resultado do que a causa da operação de diferentes

fatores sociais. Tais fatores seriam o “espírito das leis”. A ciência da política não pode se

limitar a uma análise formal das instituições e muito menos de uma concepção genérica

da natureza humana, aqui compreendida como algo diverso e construído, e não como um

conjunto inato de disposições. Para realizar a ciência da política e da sociedade o estudo

histórico e factual se faz fundamental, tanto quanto os experimentos e observações na

ciência natural. A inovação fundamental dessa perspectiva não pode ser exagerada, e ela

seria depois aprofundada de diversas maneiras no desenvolvimento das ciências sociais

modernas.

Montesquieu, com uma disposição e ambição típicas do Iluminismo, tinha como

objetivo elaborar a maior síntese teórica no campo social e político jamais realizada. Tal

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objetivo era uma pedida alta. Apesar disso, ele estabeleceu teorias e conceitos que seriam

profundamente influentes. O principal objetivo do seu tratado era o estabelecimento de

uma nova tipologia política, capaz de superar os antigos modelos gregos, fundamentada

numa explicação das características causais das diferentes formas. Ele propõe uma

tipologia dividida entre três formas dominantes, a república, a monarquia e o despotismo.

Essa tipologia era claramente inspirada em Maquiavel, que substituiu a divisão grega

entre democracia, aristocracia e monarquia (e suas formas degeneradas) por uma divisão

entre repúblicas e principados. A adição da terceira forma, o governo despótico, seria

bastante significativa no contexto da teoria política de Montesquieu e indicativa da sua

posição no contexto dos debates políticos que marcavam o absolutismo francês. As

repúblicas, entre as quais se incluía as democracias gregas, eram típicas de contextos

marcados pela população e território pequenos, por um sentimento de igualdade e por

uma moralidade política baseada na virtude e no bem público. Tal descrição pode parecer

um elogio e defesa do republicanismo, contudo Montesquieu argumentava justamente

que tais precondições rígidas afastavam a viabilidade da república ou da democracia para

o seu contexto contemporâneo. O tipo de virtude política que teria caracterizado a Atenas

democrática ou a Roma republicana não eram mais possíveis no contexto atual. Esse tipo

de organização política fazia demandas extremas e era resultado de conjunturas virtuosas

muito específicas. O tipo de Estado que caracterizava a Europa da sua época não

vislumbrava um retorno de tal forma, relegada na teoria de Montesquieu a um passado

glorioso e remoto. É irônico o quanto essa proclamação de irrelevância se dá às vésperas

de uma renovação histórica monumental e até o momento irreversível da ideia de

democracia, que passaria a marcar todo o debate político moderno, e a se estabelecer

como um dos princípios e justificativas fundamentais para o Estado e a política modernos.

Nesse sentido, uma obra que se pretendia como um tratado definitivo das questões sociais

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e políticas acabou se tornando um divisor de águas no campo da teoria político, mas como

uma visão, nesse sentido pré-moderna, que dispensava a possibilidade da democracia

como uma questão política central. Pode-se dizer dessa obra inovadora que, por toda a

sua originalidade e pioneirismo, ela já nasceu anacrônica.

A distinção entre monarquia e despotismo é o cerne das preocupações não apenas

teóricas mas também políticas de Montesquieu. A obra de Maquiavel não vislumbra

qualquer distinção do tipo. O republicano Maquiavel fez questão de expor no seu Príncipe

o caráter inevitavelmente arbitrário de qualquer poder exercido de modo autocrático no

contexto de um principado. Não existem distinções entre formas de poderes autocráticos:

o melhor que um príncipe pode fazer nesse sentido é reconhecer os limites do seu poder

e governar junto com o corpo cívico em nome do bem comum, com efeito eliminando o

caráter principesco do principado e o aproximando da forma republicana. Maquiavel

recusa a distinção antiga entre monarquia e tirania. É justamente uma tal distinção que

Montesquieu, que não era um republicano, pretendia retomar. De acordo com os antigos,

particularmente Aristóteles, uma distinção poderia ser feita entre uma monarquia

legítima, que governava de acordo com a lei e com o bem público, e o poder ilegítimo do

tirano, que governa de acordo com os seus caprichos, a sua vontade arbitrária. É esse tipo

de distinção que Montesquieu tem em mente. A sua teoria mais ampla já parte, como

vimos, da anulação da república como forma possível de governo para a sua época e

sociedade. A moralidade dominante na sua época, marcada pelo interesse pessoal e pelo

desfrute dos bens materiais fornecidos pelo comércio, agora internacional, eram de todo

incompatíveis com a forma republicana, como era também a vasta extensão territorial e

populacional dos reinos modernos. A monarquia era uma forma de governo que se

mostrava mais eficaz ao lidar com os valores predominantes, baseando a estrutura do

governo na honra, ou seja, na estrutura de privilégios há muito estabelecida. Qual a

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diferença de tal sistema para o governo despótico teorizado por Montesquieu? Bem, em

primeiro lugar, o despotismo seria caracterizado pelo sentimento do medo. Todos seriam

iguais na sua submissão perante o déspota, todos igualmente súditos frente ao Sultão.

Parece que o realmente caracteriza a monarquia nessa concepção não é o poder do rei

propriamente dito, mas sim a existência de extratos intermediários, formados por uma

nobreza (baseada na honra, nos títulos), que se situa entre o rei e os súditos propriamente

ditos. Essa estrutura social impedia o poder arbitrário e despótico do rei. É nesse contexto

que Montesquieu desenvolveu a sua famosa teoria da separação dos poderes. Embora a

sua inspiração principal fosse a Inglaterra, ele aplicou essa teoria ao contexto bastante

diferente da França absolutista. Aqui se tratava da defesa da tese nobiliárquica contra a

tese real, imaginando uma reforma institucional que delegasse os poderes para as

instâncias intermediárias das regiões e dos seus parlamentos, fornecendo as bases para

uma versão francesa da “monarquia constitucional”. Montesquieu entendia que a

instituição da realeza era fundamental para dar unicidade aos vastos estados territoriais

modernos, mas que tal poder, a fim de ser considerado legítimo, deveria ser dividido entre

a realeza e os estratos intermediários. A sua teoria do despotismo não era apenas uma

categoria analítica mas também um juízo político: o poder absoluto e exclusivo do rei era

ilegítimo e levava ao governo do medo, devendo ser temperado por leis e pela nobreza.

O inovador pioneiro do iluminismo acabava por desenvolver uma teoria política

anacrônica no seu básico, apesar da longa carreira que reinterpretações da sua ideia de

divisão dos poderes teria ao longo de todo o período moderno, se fixando na premissa da

separação entre os poderes executivo, legislativo e judiciário a partir da Constituição dos

EUA de 1788.

No período entre a publicação das Cartas de Montesquieu e Voltaire ocorreu um

curioso episódio que marcaria a história posterior do iluminismo em algumas das suas

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manifestações mais contundentes. No ano de 1729, um desconhecido padre do interior da

França, chamado Jean Meslier, deixa uma série de manuscritos no seu leito de morte.

Nesses manuscritos o padre desenvolve uma furiosa crítica da religião a qual havia

servido durante toda a sua vida adulta. Entre os que tiveram acesso aos manuscritos

originais estava um advogado que leva uma cópia para Paris, onde rapidamente lança a

primeira edição clandestina do Testamento de Meslier. Boatos correram sobre a história

do padre que havia denunciado a religião, e as edições secretas do livro viraram sucessos

editoriais. Mais tarde Voltaire lança a sua própria versão da obra de Meslier, escrevendo

um prefácio e editando e selecionando a obra de acordo com a sua própria concepção

deísta. O Testamento original era um conjunto de três enormes manuscritos, certamente

redigidos ao longo de um tempo considerável. Numa comovente apresentação da sua

obra, dedicada aos seus párocos, Meslier descreve o seu desgosto com a sua atividade de

padre e, acima de tudo, o medo de perseguição que o levou a sua vida literária paralela.

Diferentemente da edição de Voltaire, o Testamento de Meslier não era deísta:

apresentava um materialismo ateu sem absolutamente nenhuma concessão à visão

religiosa ou a teologia. A teologia é descartada como um medonho castelo de cartas.

Todas as religiões foram baseadas no medo e na ignorância, argumentou Meslier, e todas

foram usadas como forma de tirania política, promoção da desigualdade e da infelicidade

humanas. Todas deveriam ser rejeitadas e superadas, em nome da liberdade e da

felicidade humana. A crítica devastadora do padre Meslier não abarcava apenas a

descrição da religião e da crença em Deus ou nos deuses como mitos, mas também

fornecia a alternativa de um materialismo baseado na ciência e na razão, e uma crítica

política baseada na denúncia da Igreja e da tirania representada pela realeza e pela

nobreza. Uma das maiores bombas literárias jamais detonadas, a obra de Meslier

influenciou e marcou a inauguração da corrente filosófica mais radical do iluminismo,

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marcada pela defesa explicita do materialismo e do ateísmo. Meslier foi, efetivamente, o

primeiro autor moderno a se proclamar ateu, ainda que o tenha feito em seu leito de morte

apenas. O primeiro em milênios de história ocidental pós-cristã. As rachaduras na visão

dominante desferidas pelo deísmo panteísta de Espinoza encontravam agora uma

formulação ainda mais contundente. Uma dos fontes de conflito entre os iluministas,

aliás, sempre foi o que colocou deístas frente a ateus. Deístas como Voltaire e Rousseau

polemizavam com os expoentes do ateísmo moderno, particularmente Diderot e o Barão

D’Holbach (1723-1789). Mas seriam esses últimos que confeririam ao iluminismo pós-

1750 o seu caráter radical e que marcaria profundamente toda a cultura intelectual da

Europa contemporânea, marcando uma ruptura irreversível no campo do pensamento e

elevando a noção de liberdade filosófica e científica, com as consequências políticas que

deveriam se orientar a partir dessa ruptura, a patamares antes impensáveis.

Denis Diderot (1713-1784) é provavelmente o autor mais simbólico de todo o

período iluminista. De modestas origens sociais e uma vida de muitos amores, se

endividou ainda novo. Contudo, rapidamente se destacou em virtude do vigor do seu

raciocínio e da sua impressionante ambição intelectual. Em 1748 se vê preso por suas

ideias radicais, após publicar uma série de obras provocadoras. O caso torna seu nome

conhecido e ele vira uma celebridade nos salões intelectuais típicos da Paris do período,

entre os quais sempre se destacou o salão daquele que se tornaria o melhor amigo e

parceiro intelectual de Diderot, o Barão D’Holbach. Pode-se dizer que os dois formaram

uma das mais impressionantes e influentes duplas filosóficas da história moderna, se

comparando com a formada por Karl Marx e Friedrich Engels no Século XIX. A filosofia

de Diderot, formada em meio a uma impressionante erudição que seria o grande motor

por trás das sucessivas edições da Enciclopédia, consistia numa defesa do novo

materialismo e uma discussão dos seus desdobramentos éticos e políticos, por meio de

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ensaios filosóficos, diálogos e romances. O scholar erudito do qual Diderot era o maior

exemplo era ao mesmo tempo um talentoso artista, o mesmo valendo para seu futuro rival

e desafeto Rousseau, escritor de romances e óperas. Após ser solto de seu confinamento

e com seus novos contatos Diderot procura realizar uma grande ambição: A edição da

Enciclopédia, uma obra que buscaria as maiores mentes da França nos mais diversos

campos do pensamento, com ênfase especial para a ciência, filosofia e história. A

histórica compilação, que enfrentou ao longo dos seus mais de vinte anos de edição a

cargo de Diderot os mais diversos obstáculos políticos, serviu como um símbolo, um

recurso e uma arma para a nova visão de mundo promovida pelos iluministas. Na

concepção de Diderot isso envolvia uma crítica impiedosa das instituições existentes, da

Igreja e do Estado, e a afirmação da promessa de uma emancipação humana, baseada nos

direitos universais derivados da razão e da busca pela justiça. Embora o grau de abstração

no qual seus princípios políticos eram apresentados fosse alto, carecendo de uma

discussão mais clássica nos termos da teoria política, como as feitas por Montesquieu e

Rousseau, essa visão crítica apresentou o potencial de extrapolar o seu momento e

contexto concreto, baseado na crítica do sistema absolutista e seus fundamentos feudais.

A visão central que conjugava crítica da religião e crítica da política, já presente

na obra pioneira de Meslier, se transformava numa consciente e abrangente, embora vaga,

ideia da necessidade de transformação radical da realidade, a fim de que a liberdade, a

felicidade e o progresso humanos fossem realizados. Essa era a promessa da filosofia, e

as concepções iluministas eram muitas vezes identificadas na época, muitas vezes de

forma crítica e pejorativa, como o ponto de vista da filosofia. Os próprios iluministas

eram conhecidos como os philosophes, e forneceram o nosso arquétipo do intelectual

como um crítico da ordem, como um revolucionário em potencial, arquétipo tantas vezes

demonizado pelos detratores e defensores da ordem. Por meio da Enciclopédia Diderot

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alterou as regras do jogo intelectual, e jogou os defensores do ancién régime numa crise

da qual eles não se recuperariam, ao mesmo tempo fornecendo ferramentas e exemplo

para futuras gerações de críticos sociais e revolucionários. A abordagem dos

enciclopedistas era coletiva e resultou num impacto cultural e intelectual profundo.

Particularmente importante era a cooperação no interior do círculo intelectual agregado

em torno de Holbach e Diderot, que incluiu outros grandes nomes do iluminismo como

Thomas Naige, Claude Helvetius e Guillaume Raynal. As obras dos autores desse círculo

eram frutos de discussão coletiva realizada ao longo de décadas, e também de parceiras

intelectuais incluindo a própria Enciclopédia, da qual todos foram contribuidores. As

obras de Holbach, originalmente lançadas sob pseudônimos (o Barão era riquíssimo e

respeitada figura da sociedade), O Sistema da Natureza e o Bom Senso, foram afirmações

contundentes do materialismo filosófico e do ateísmo, reunindo mais uma vez crítica da

religião e da política num apelo dramático pela razão e pela liberdade. Uma outra obra

coletiva da Cotérie do Barão D’Holbach, a História das Duas Índias, publicada com o

nome de Raynal mas representando um esforço coletivo incluindo uma participação

central de Diderot, levou a teoria crítica desses iconoclastas para o campo da história

internacional moderna e da história mundial, apresentando a denúncia mais contundente

da expansão europeia a surgir desde a obra de Las Casas no Século XVIII, e colocando

essa crítica no contexto mais geral de um apelo pela libertação e realização do potencial

da humanidade. Em nome dos direitos universais o colonialismo e a escravidão eram

condenadas sem apelação, em meio ao clamor por uma distante mas irreversível

afirmação da dignidade humana, que os autores da história acreditavam existir. Esquecida

na atualidade, essa obra foi o ponto culminante da vertente mais radical do iluminismo

francês clássico e a sua obra mais influente no período, com uma enorme difusão que

marcou época nas correntes de pensamento modernas.

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Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) ocupa uma posição bastante peculiar nesse

contexto. Embora inicialmente amigável com Diderot e Holbach, contribuindo para as

primeiras edições da Enciclopédia com verbetes sobre música e economia política, ele

nunca se encaixou nesse ou em outros grupos de philosophes, e tampouco se identificava

com a ideia do “iluminismo” em si. Nascido na Cidade Livre de Genebra, na Suíça,

Rousseau sempre foi de alguma maneira um estrangeiro na França que acabara por adotar.

Esse estranhamento não era apenas de origem, mas sim uma disposição teórica e

intelectual muito particular que levou Rousseau a um caminho bastante próprio e singular,

com poucos paralelos entre os seus contemporâneos. Retrospectivamente, claro, é fácil e

necessário associá-lo ao período iluminista, especialmente levando em consideração a

duradoura influência da sua concepção da soberania popular, que, de diferentes formas,

vem alimentando toda a história moderna, e em, particular, da reverência que os

revolucionários franceses prestaram ao seu nome, o elevando ao posto de “primeiro

revolucionário”. Contudo, e apesar do espírito filosófico e político revolucionário típico

do período encontrar em suas páginas algumas de suas manifestações mais contundentes,

Rousseau apresentara desde o início uma concepção ambivalente em relação ao

“iluminismo” e uma escolha de abordagens de todo peculiar entre os seus

contemporâneos. Rousseau primeiro ganhou notoriedade com o seu “Discurso Sobre as

Ciências e as Artes”, escrito para um concurso literário promovido pela Academia de

Dijon, que perguntava sobre a contribuição das ciências e das artes para o progresso.

Rousseau negou que havia ocorrido tal progresso, e afirmou que, na medida em que

existiam e refletiam a atual estrutura da sociedade, marcada pela desigualdade e pela

injustiça, tal ciência e artes haviam antes contribuído para a miséria humana. Dada a atual

condição lamentável do homem, contudo, as ciências e as artes poderiam trazer formas

de amenizar o mal. Tal tomada de posição era um ponto fora da curva num contexto mais

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geral de defesa enfática da razão e da ciência e de crítica aberta à religião. Contudo, os

alvos mais tradicionais da razão crítica dos philosophes não eram os mesmos de

Rousseau. Este autor trilhou seu próprio e único caminho, desenvolvendo concepções que

se desdobrariam mais tarde em diferentes direções, associadas com a defesa da igualdade

e da democracia, sendo grande influência na formação dos movimentos sociais que se

desenvolveriam principalmente a partir do Século XIX.

O cerne da teoria social e política de Rousseau, que foi também um notável

romancista (autor da Nova Heloísa) e musicista, além de autor de uma celebrada

autobiografia intelectual, As Confissões, se encontra nos seus dois Discursos – o primeiro

sobre a economia política e o segundo sobre As Origens da Desigualdade – e no seu Do

Contrato Social. O menos conhecido desses textos, o Discurso Sobre a Economia Política,

que serviu de base para o seu verbete sobre o tema publicado na Enciclopédia, lançou as

bases da sua visão. Nesse texto Rousseau articula pela primeira vez a sua visão crítica da

propriedade privada como base para os males da sociedade, tanto os males materiais

associados à desigualdade e à pobreza, quanto os males morais e políticos que dominam

a condição corrompida do Estado e o egoísmo generalizado. Rousseau articula também

uma visão do Estado absolutista como uma forma de propriedade privada, orientada pelo

enriquecimento por meio do aperto fiscal em cima da grande maioria de camponeses. Tais

situações caracterizavam o estado lamentável da sociedade vigente, uma condição de

infelicidade e injustiça. Rousseau procurou explorar as raízes de tal condição no seu

Discurso Sobre a Origem da Desigualdade dos Homens. Partindo em termos gerais da

ideia de estado de natureza desenvolvida pelos teóricos ingleses, Rousseau procurou

aprofundar a antropologia dedutiva e especulativa sobre tal condição. Ele imaginou o ser

humano a partir de seu estado mais primitivo, sem ferramentas e técnicas. Tal como nos

teóricos ingleses, Rousseau parte de um indivíduo isolado, que eventualmente esbarra em

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membros do sexo oposto. Sem estabelecer vínculos duradouros num primeiro momento,

eventualmente formam-se famílias e associações de famílias, na medida em que avançam

as técnicas e as formas de cooperação. A liberdade plena que existe num primeiro

momento começa a dar lugar a relações fixas de dependência mútua, alterando as

condições da liberdade original. Contudo, num primeiro e longo momento do

desenvolvimento humano, supõe Rousseau, as técnicas não são avançadas a ponto de

permitir uma especialização. Todos os homens podem produzir tudo de que necessitam,

e tal condição havia permitido, raciocina Rousseau, uma duradoura fase de relativa paz e

liberdade. Rousseau aponta para as tribos americanas a fim de fundamentar seu

argumento. Essa concepção positiva das sociedades “primitivas”, incomum na sua época

(Diderot, feroz crítico do colonialismo e do racismo, polemizou contra essa ela), seria

depois pejorativamente chamada de teoria do “bom selvagem”. Dada a incessante

propaganda cultural europeia contra as sociedades tribais desde a época dos

“descobrimentos”, tal contraponto não seria um problema. Seja como for, para Rousseau

tal situação refletia um frágil equilíbrio que se perdeu com o desenvolvimento posterior

das técnicas e, acima de tudo, da propriedade privada. Todos esses desenvolvimentos se

dão num contexto do “estado de natureza”, ampliado aqui para embarcar um conjunto de

formas sociais anteriores à formação do Estado. Com o desenvolvimento da metalurgia e

da agricultura se dá a formação da propriedade privada, e com ela aumentam as causas

de conflitos entre os homens, com a cobiça crescendo na mesma proporção da

desigualdade. A partir desse momento a sociedade é movida por uma lógica de

antagonismos, e o surgimento do Estado se dá como forma de pacificar esses

antagonismos em nome da defesa da propriedade privada, garantindo assim a

desigualdade e a fonte de reprodução da discórdia ao longo de eras. Rousseau ironiza a

ideia do pacto social, o apresentando como uma farsa promovida pelos ricos e

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proprietários contra os pobres e não-proprietários. Tal farsa persistiria até o presente,

marcando a condição de injustiça predominante no mundo. Essa concepção crítica sobre

a propriedade privada era uma grande inovação no contexto da teoria política da época,

não tendo praticamente paralelo entre seus contemporâneos, com os únicos parentes

distantes sendo os teóricos puritanos “cavadores” do período da guerra civil inglesa no

século anterior. Essa concepção influenciou as primeiras correntes socialistas que

surgiram durante a Revolução Francesa. Um século depois da formulação de Rousseau o

socialista francês Joseph Proudhon resumiria de maneira radicalizada a tese de Rousseau:

“A propriedade é roubo”.

No Contrato Social, escrito quase uma década após os Discursos, Rousseau

propõe uma discussão voltada para o estabelecimentos das bases de um Estado

verdadeiramente legítimo e justo, um Estado em que não seja uma injustiça ou uma

submissão a obediência. Isso só seria possível com o estabelecimento de um novo

contrato social. Se o pacto social original estabeleceu as bases duradouras para a

desigualdade, a injustiça e o despotismo, o novo contrato social deve estabelecer as bases

para a obediência legítima. A única base para tal legitimidade, Rousseau irá concluir, é

um Estado de todos e para todos. Essa é a premissa fundamental da legitimidade política.

Nenhuma forma de poder arbitrário é legítimo. Ele nunca passa de um suposto direito do

mais forte, que nunca é um direito, é sempre arbítrio, privilégio e violência. Nessa mesma

toada Rousseau nega qualquer legitimidade à conquista e à escravidão como formas de

“direito”. As ideias de poder do rei ou da nobreza não passam de afirmações de “direitos”

particulares, voltados contra o bem comum, nunca realmente legítimas. A única fonte

legítima de poder são os próprios indivíduos reunidos, o povo. Somente o povo pode se

governar, e só se deve obediência legítima a si mesmo; somente quando a soberania

particular de cada indivíduo estiver reunida no contexto de associação maior, unindo

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todos a todos, a obediência pode ser considerada legítima. A única forma legítima de

governo é o governo de todos, o governo do povo. Rousseau assim reivindica de facto a

democracia como forma única de governo legítimo, uma democracia entendida de forma

bem mais enfática do que aquela de extração liberal que ficaria consagrada na era

moderna. Todo poder é uma forma de delegação: os ocupantes dos postos de governo não

passam de servidores da soberania popular. A soberania popular deve ser exercida por

meio da “vontade geral”: a vontade geral, que não se confunde com a vontade particular

ou o interesse geral, procura articular aquilo que os indivíduos têm em comum. Assim

sendo, a tendência é que a vontade geral manifeste sempre o interesse majoritário do

povo, reconhecendo sempre os limites das leis e da justiça. Embora não tenha procurado

articular de forma mais concreta a sua concepção de Estado Popular baseado na soberania

popular, Rousseau procura estabelecer critérios para o estabelecimento de um estado

legítimo e de uma sociedade justa. A sua concepção de soberania popular, depois

consagrada pela Revolução Francesa, se revelaria uma ideia cujas repercussões

permanecem abertas nos dias atuais, e que continua colocando pontos de interrogação

para a política contemporânea.

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