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A CIÊNCIA NA IDADE MODERNA


A revolução cientifica do século XVII
O silêncio desses espaços infinitos me apavora.
(Pascal)
“O silêncio desses espaços infinitos me apavora
os pensamentos estraçalhados de Pascal
são a crise de uma consciência excepcional
no limiar de uma nova era o místico Pascal contempla o céu estrelado numa vã espera
de vozes o céu calou-se estamos sós no infinito deus nos abandonou ‘daquela estrela à
outra a noite se encarcera em turbinosa vazia desmesura daquela solidão de estrela
O silêncio de Pascal
àquela solidão de estrela (leopardi via haroldo de campos) nenhum ufo
no dose contact of the third kind a solidão “cósmica” de Pascal é o pendant do vazio
de sua classe social
cuja hegemonia está para terminar os germes da revolução francesa que vai derrubar a
nobreza e colocar a burguesia no poder já estão no ar
Pascal ouse nos céus o tremendo silêncio de unia classe que já disse tudo que tinha que
dizer pela boca da história.
tuição da teoria geocêntrica, aceita durante mais de vinte séculos. A nova teoria
heliocêntrica não retirou apenas a Terra do
“leopardi viu liaroldo de campos”: citação de versos do poeta italiano Leopardi através
de uma recriação do poeta coucretista brasileiro Haroldo de Campos.
2 tiFO: “unknown flying object”, ou seja, OVNI, “objeto voador não-identificado”.
“no dose contact of lhe third kind”: nenhum contato imediato de terceiro grau.
III
1. Introdução
(Paulo Lerninski, in Folha de S. Paulo. 27 jul. 1985. Folha Ilustrada.)
O poeta Paulo Leminski (1944-1989) se refere, entre outras coisas, à
revolução científica do século XVII, quando se deu a substituição centro do universo,
mas também esfacelou uma construção estética que ordenava os espaços e hierarquizava
o “mundo superior dos Céus” e o “mundo inferior e corruptível da Terra”. Galileu
geometrizou o universo, igualando todos os espaços. Ao descobrir a Via Láctea,
contrapôs, a um mundo fechado e finito, a idéia da infinitude do céu. Por isso faz
sentido a frase de Pascal: “O silêncio desses espaços infinitos me apavora”...
A questão, no entanto, não é apenas científica. Se fosse, Galileu não teria
sido obrigado a abjurar sua teoria nem teria sido recolhido a prisão domiciliar. Há algo
mais que se quebra, além da ordem cósmica, e cujas causas são anteriores a esse
período.
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Vimos que o modo de produção escravista determina uma concepção de ciência


puramente contemplativa e desligada das preocupações com a técnica. Isso se explica
pela desvalorização do trabalho manual, ofício de escravos. Também na Idade Média a
situação não é muito diferente, pois as classes antagônicas são constituídas pelos
senhores e servos da gleba: nobres guerreiros e servos laboriosos.
Ora, a situação se altera com o advento da nova classe comerciante
emergente, a burguesia, saída dos burgos formados nos arrabaldes das cidades por
antigos servos que, com seu trabalho, compravam a liberdade e a de suas cidades,
desobrigando-se da obediência aos senhores feudais.
Então, o valor do novo homem que surge se encontra não mais na familia ou
linhagem, mas no prestígio resultante do seu esforço e capacidade de trabalho. O modo
de produção que começa a vigorar é o capitalista, e com ele se dá a superação dos
valores medievais. A classe ociosa, opõe-se o valor do trabalho; à riqueza baseada em
terras, opõe-se o valor da moeda, dos metais preciosos, da produção manufatureira em
crescimento, da procura de outras terras e mercados.
O renascimento científico deve ser compreendido, portanto, como a
expressão da nova ordem burguesa. Os inventos e descobertas são inseparáveis da
ciência, já que, para o desenvolvimento da indústria, a burguesia necessitava de uma
ciência que investigasse as forças da natureza para, dominando-as, usá-las em seu
benefício. A ciência não é mais a serva da teologia, deixa de ser um saber
contemplativo, formal e finalista, para que, indissoluvelmente ligada à técnica, possa
servir à nova classe.
Reconhecido o terreno onde germinam as novas idéias, podemos
compreender melhor o impacto que elas causaram, já que são a expressão do
esfacelamento do mundo feudal.
2. Características do pensamento moderno

Racionalismo
Desde o Renascimento, a religião, suporte do saber, vinha sofrendo diversos
abalos com o questionamento da autoridade papal, o advento do protestantismo e a
conseqüente destruição da unidade religiosa. Ao critério da fé e da revelação, o homem
moderno opõe o poder exclusivo da razão de discernir, distinguir e comparar. Ao
dogmatismo opõe a possibilidade da dúvida. Desenvolvendo a mentalidade crítica,
questiona a autoridade da Igreja e o saber aristotélico. Assume uma atitude polêmica
perante a tradição. Só razão é capaz de conhecer.
Antropocentrismo
Enquanto o pensamento medieval é predominantemente teocêntrico
(centrado na figura de Deus), o homem moderno coloca a si próprio no centro dos
interesses e decisões. A laicização do saber, da moral, da política é estimulada pela
capacidade de livre exame. Da mesma forma que em ciência se aprende a ver com os
próprios olhos, até na religião os adeptos da Reforma defendem o acesso direto ao texto
bíblico, cada um tendo o direito de interpretá-lo.
Além disso, o homem moderno descobre sua subjetividade. Enquanto o
pensamento antigo e medieval parte da realidade inquestionada do objeto e da
capacidade homem de conhecer, surge na Idade Moderna preocupação com a
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“consciência da consciência”. O problema central é o problema sujeito que conhece, não


mais do objeto conhecido. Antes se perguntava: “Existe alguma coisa?”, “Isto que
existe, o que é?”. Agora o problema não é saber se as coisas são, mas se nós podemos
eventualmente conhecer qualquer coisa. Das questões epistemológicas, isto é, relativas
ao conhecimento, deriva a ênfase que marcará a filosofia daí por diante.
Saber ativo
Em oposição ao saber contemplativo dos antigos, surge uma nova postura
diante do mundo. O conhecimento não parte apenas de noções e princípios, mas da
própria realidade observada e submetida a experimentações. Da mesma forma, o saber
deve retornar ao mundo para transformá-lo. Dá-se a aliança da ciência com a técnica.
Além da participação de Galileu, Kepler e Newton, outros cientistas se
mostram fecundos: William Gilbert estuda os fenômenos elétricos e descobre as
propriedades do ímã; Mariotte estuda a elasticidade do gás; Von Guericke inventa a
máquina pneumática e a máquina elétrica; Pascal e Torricelli criam o barômetro e
revelam a existência da pressão atmosférica; Huygens desenvolve a teoria ondulatória
da luz.
Na matemática, surge a geometria analítica com Fermat e Descartes; o
cálculo diferencial com Newton e Leibniz; o cálculo das probabilidades com Pascal; o
cálculo infinitesimal com Leibniz e Bernoulli.
A anatomia, desde o século XVI, tivera a contribuição de Vesálio, que,
desafiando a proibição religiosa de dissecação de cadáveres, consegue desenvolver um
estudo mais objetivo da anatomia humana. Servet e Harvey explicam a circulação
sanguínea, Hooke descreve a estrutura celular das plantas.
Nunca antes na história da humanidade o saber fora tão fecundo nem
desenvolvera semelhante capacidade de transformação da realidade pela técnica.
3. A física na idade Moderna
“A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante
nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a
língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua
matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras
geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras: sem
eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto.”
Galileu Galilei (1564-1642), italiano que lecionou nas universidades de Pisa
e de Pádua, foi responsável pela superação do aristotelismo e pelo advento da moderna
concepção de ciência. Escreveu O ensaiador, Diálogo sobre os dois máximos sistemas
do mundo, Discurso sobre duas novas ciências.
Sua vida foi marcada pela perseguição política e religiosa, por defender a
substituição do modelo ptolomaico do mundo (geocentrismo) pelo modelo copernicano
(heliocentrismo). Condenado pela Inquisição, foi obrigado a abjurar publicamente suas
idéias, sendo confinado em prisão domiciliar a partir de l633.
Galileu, O ensaiador, Col. Os pensadores, Sao Paulo, Abril Cultural, 973, p. 119.
Em novembro de 1992 o Vaticano anunciou a reabilitação oficial de Galileu.
Dentre os seis cientistas indicados pelo papa João Paulo 11 para formar a comissão
de estudos da Pontifícia Academia de Ciências encontrava-se o brasileiro Carlos
Chagas Filho.
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Além da astronomia, a contribuição de Galileu foi importante também na


física. Compreendendo as falhas da física antiga, Galileu empreendeu uma mudança
radical no campo da óptica geométrica (lentes, reflexão e refração da luz), termologia
(foi o inventor do termômetro), hidrostática, óptica física (teoria sobre a natureza da luz)
e principal mente no campo da dinâmica, da qual lançou os fundamentos.
Toda essa produção foi possível devido a vários fatores, alguns já
mencionados no capítulo anterior. Galileu tinha uma oficina com plano inclinado,
termômetro, luneta, relógio de água. Embora engenhocas um tanto primitivas, eram
suficientes para mostrar o valor dado à observação, pela qual se torna possível
abandonar a ciência especulativa e caminhar em direção à construção de uma ciência
ativa.
Em oposição ao discurso formal, Galileu solicita o testemunho dos sentidos
e o auxílio da técnica. Valoriza a experiência e se preocupa com a descrição dos
fenômenos. Enquanto a física antiga procura o “porquê” do fenômeno e o explica pelas
qualidades inerentes aos corpos, Galileu se interessa pelo “como”, o que supõe a
descrição quantitativa do fenômeno.
Tal descrição torna-se possível porque Galileu faz distinção entre qualidades
secundárias (cor, odor, sabor) e qualidades primárias (forma, figura, número e
movimento). As qualidades secundárias são subjetivas, enquanto as primárias são
objetivas e passíveis de tratamento matemático, o que permitiu a Galileu assimilar o
espaço físico ao espaço geométrico de Euclides.
Quanto ao movimento, Galileu desfez a diferença aristotélica entre
movimento qualitativo e movimento quantitativo, pois toda mudança torna-se
quantitativa. Com isso, estabelece um corte entre as duas leituras do mundo, pois, onde
Aristóteles via qualidades (corpos pesados ou leves), Galileu descobre relações e
funções. Quando estuda Arquimedes e vê que as leis do equilíbrio dos corpos flutuantes
são verdadeiras, destrói a teoria da “gravidade” e “leveza” dos corpos. “Subir” e
“descer” não atestam mais a ordem imutável do mundo, a essência escondida das coisas.
Por exemplo, onde está a “gravidade” da madeira quando mergulhada na água? Torna-
se “leve”, a ponto de só poder mover-se para baixo se for forçada. Ao explicar “como”
os cor pos caem (e não “por que” caem), Galileu descobre a relação entre o tempo que
um corp leva para percorrer o plano inclinado e o espaço percorrido. Repetidas
experiências confirmam as relações constantes e necessárias donde decorre a lei da
queda dos corpos traduzida numa forma geométrica.
No entanto, não podemos concluir estar diante de uma ciência puramente
experimental e empírica. O procedimento de Galileu não é sempre indutivo, não é
sempre que ele parte dos fatos para as leis. Muitas vezes realiza “experiências mentais”,
pelas quais imagina situações impossíveis de verificar experimentalmente e tira
conclusões desses raciocínio O que dá validade científica aos processos intelectuais é
que os resultados devem ser submetidos à comprovação. Uma grande descoberta
alcançada com esse método foi o princípio da inércia, segundo o qual qualquer objeto
não submetido à ação de uma força permanece indefinidamente em repouso ou em
movimento uniforme. Ora, isso não acontece de fato, pois não é levado em conta o
atrito, mas pode ser pensado como se ocorresse.
Galileu é um dos expoentes que marca o surgimento dos novos tempos: a
ciência nascente não é resultado de simples evolução mas surge de uma ruptura, da
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adoção de nova linguagem, sendo, portanto, o fruto uma revolução científïca. Embora
na citação do início deste item Galileu se refira à “filosofia” (esse saber universal), já
começa ai processo de separação da ciência. Método, grego, significa “caminho”. E esse
caminho Galileu o encontra na união da experimentação com a matemática.
4. A astronomia: o heliocentrismo
Vimos que o geocentrismo se encontra nas obras de Aristóteles,
posteriormente completadas por Ptolomeu (séc. II). Essa concepção perdura durante
toda a Antiguidade e Idade Média: o universo medieval era geocêntrico, finito, esférico,
hierarquizado.
O geocentrismo é de certa forma confirmado pelo senso comum: percebemos
que a Terra é imóvel e que o Sol gira à sua volta. Isto é confirmado no próprio texto
bíblico: uma passagem das Escrituras, Deus fez parar o Sol para que o povo eleito
continuasse a luta enquanto ainda houvesse luz, o que sugere o Sol em movimento e a
Terra fixa.
Foi no século XVI que o monge Nicolau Copérnico (1473-1543) publicou a
obra onde propunha a teoria heliocêntrica. Apresentada timidamente corno simples
hipótese, talvez por temor à Inquisição, a teoria teve pouca repercussão e foi
praticamente ignorada até o início do século XVII, quando ressurgiu como uma bomba
com Galileu e Kepler.
O telescópio, invenção talvez dos holandeses, proporcionou a Galileu
descobertas valiosas: para além das estrelas fixas, haveria ainda infindáveis mundos; a
superfície da Lua era rugosa e irregular; o Sol tinha manchas, e Júpiter tinha quatro
luas! Mas como isso era possível? Vimos que para os aristotélicos o universo era finito,
a Lua e o Sol eram com postos de uma substância incorruptível e per feita, e Júpiter,
engastado em uma esfera de cristal, não podia ter luas que a perfurassem...

Os fenômenos da física e da astronomia, antes explicados a partir das


diferenças de natureza dos corpos perfeitos e imperfeitos, tornam-se homogêneos já que
não há mais como reconhecer a incorruptibilidade do mundo supralunar: desfaz portanto
a diferença entre Terra e Céus. Além disso, à consciência medieval de um “mundo
fechado”, é contraposta a concepção moderna do “universo infinito”. Vimos que a
noção de infinitude era um atributo divino e Giordano Bruno já pagara demasiadamente
caro por essa ousadia.
O forte impacto dessas novidades desencadeou inúmeras polêmicas até que,
pressionado pelas autoridades eclesiásticas, Galileu se viu obrigado a abjurar. Que
idéias tão terríveis são essas, que tanto ameaçam a ordem estabelecida e que merecem
ser sufocadas?
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5. As transformações produzidas pelas novas ciências

Secularização da consciência
Na nova ciência não há lugar para explicações que recorram à causalidade
divina, como ocorria na antiga astronomia, em que se admitia que o movimento das
esferas celestes era impulsionado pelo Primeiro Motor Imóvel, ou seja, por Deus.
A ciência é secularizada, laicizada, o que significa justamente abandonar a
dimensão religiosa que permeia todo saber medieval. Galileu separa razão e fé,
buscando a verdade científica independentemente das verdades reveladas.
Descentralização do cosmos
O sistema geocêntrico era um todo centralizado, finito, ordenado. No novo
modelo, a Terra é retirada do centro do universo. Com a descoberta de outros mundos,
nem o Sol é o centro. Dá-se, portanto, uma subversão da ordem e, conseqüentemente,
uma ansiedade no homem, que descobre o seu mundo transformado em “poeira
cósmica”, a Terra como simples planeta, um grão de areia perdido na imensidade do
espaço infinito. Mais: o sistema solar é apenas um dos muitos sistemas que compõem o
Céu. O que passa a ser questionado não é apenas o lugar do mundo, mas o lugar do
homem no mundo.
Geometrização do espaço

Para os antigos, sempre houve uma mística do lugar. Havia lugares


privilegiados: Hades (Inferno); Olimpo (lugar dos deuses); o espaço sagrado do templo;
o espaço público da ágora (praça pública); o gineceu (lugar da mulher). Da mesma
forma, havia na física aristotélica a teoria do lugar natural e, na astronomia, a divisão
entre mundo sublunar e mundo supralunar, constituídos de diferentes naturezas e
hierarquicamente situados (um inferior e outro superior).
Para a nova astronomia, o espaço é desmistificado, dessacralizado, isto é,
deixa de ser sagrado. Segundo Koyré, à descentralização do cosmos segue a
geometrização do espaço, o que significa que o espaço heterogêneo dos lugares naturais
se torna homogêneo, é despojado das qualidades e passa a ser quantitativo, mensurável
(isto é, pode ser medido). Podemos dizer, portanto, que há uma “democratização” do
espaço, pois todos os espaços passam a ser equivalentes, iguais, nenhum sendo superior
ao outro.
Não havendo mais diferença entre a qualidade dos espaços celestes e a dos
terrestres, é possível admitir que as leis da física são também da mesma natureza que as
leis da astronomia.
Mecanicismo
A ciência moderna compara a natureza e o próprio homem a uma máquina,
um conjunto de mecanismos cujas leis precisam ser descobertas. As explicações são
baseadas em um esquema mecânico cujo modelo preferido é o relógio.
Ficam excluídas da ciência todas as considerações a respeito do valor, da
perfeição, do sentido e do fim. Isto é, as causas formais e finais, tão caras à filosofia
antiga, não servem para explicar: apenas as causas eficientes são utilizadas nas
explicações científicas.

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