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Apologia de Émile Boutroux

Introdução a: Émile Boutroux, Aristóteles, Rio, Editora Record,


2000, Vol. 2 da Biblioteca Record de Filosofia.

Tradução de Olavo de Carvalho e Carlos Nougué (1)

Introdução e notas de Olavo de Carvalho

Apesar do previsível boicote da imprensa incultural, o livro de Constantin


Noica, As Seis Doenças do Espírito Humano, fez sucesso e a primeira
edição já está quase esgotada. Ainda durante este mês de janeiro irá para
as livrarias, segundo informa a Record, o Volume 2 da Biblioteca de
Filosofia que essa prestigiosa editora publica em convênio com
o Instituto Brasileiro de Humanidades. Trata-se do Aristóteles de Émile
Boutroux, a melhor introdução breve ao pensamento de Aristóteles que
alguém já escreveu neste mundo. (O volume 3, A Origem da Linguagem,
de Eugen Rosenstock-Huessy, está em fase de revisão.) – O. de C.

O texto que se vai ler foi redigido inicialmente por Émile Boutroux como
verbete para a Grande Encyclopédie (Paris, 1886) e depois incluído pelo
autor nos seus Études d’Histoire de la Philosophie (1897). Com seus
cento e tantos anos de idade, ainda é uma das melhores introduções ao
estudo da filosofia de Aristóteles (2), e, fora um ou outro ponto corrigido
pela pesquisa mais recente ~ do qual dou ciência nas notas de rodapé ~,
dificilmente se encontrará um guia mais seguro para orientar os primeiros
passos do estudante que ingressa no assunto.

A causa dessa vitalidade reside não só no extenso conhecimento que o


autor tinha das obras do Estagirita e de seus comentadores antigos e
modernos, porém, muito mais que isso, na conaturalidade entre seu
espírito e o do mestre que ele celebra como encarnação suprema do
gênio grego.

Excetuando-se talvez F. W. von Schelling e Félix Ravaisson, que o


antecederam sob mais de um aspecto, ninguém no século XIX estava
mais dotado para apreender a intimidade do pensamento de Aristóteles
do que o autor de De la Contingence des Lois de la Nature (1874), título
que, para quem sabe do que se trata, já é toda uma declaração de
aristotelismo.

Para captar o sentido dessa afinidade, é preciso compreender o que


Boutroux queria dizer com a “contingência das leis da natureza”.

A história das concepções modernas sobre o mundo físico pode-se


dividir, grosso modo, em duas épocas: o império do mecanicismo e a era
da física indeterminista. O primeiro origina-se no século XVII, com Galileu,
alcançando seu apogeu na centúria seguinte com Descartes e Newton. A
segunda esboça-se no século XVIII, com Leibniz, mas não alcança sua
plena expressão senão dois séculos depois, com Max Planck e Werner
Heisenberg. O confronto desses dois estilos de pensar a natureza
confirma o dito de Arthur O. Lovejoy segundo o qual toda a história
intelectual do Ocidente é apenas um conjunto de notas de rodapé a
Platão e Aristóteles. Pois, no sentido mais rigoroso dos termos, o
mecanicismo clássico é platônico e o indeterminismo moderno
é aristotélico.

Platônico quer dizer, até certo ponto, pitagórico. A noção pitagórica de


que Deus escreve o livro da natureza em caracteres matemáticos, longo
tempo abandonada no Ocidente, foi vigorosamente retomada pela ciência
renascentista, dando surgimento à concepção mecanicista de que, uma
vez apreendidas as equações fundamentais do universo, tudo o mais se
poderia conhecer por dedução matemática.

Nada mais distante da verdade histórica do que a crença popular de que


a nova ciência se voltou para a observação do mundo natural,
negligenciada pelos escolásticos. A primeira objeção que estes
levantaram contra a lei galilaica da inércia foi, precisamente, que ela se
opunha aos fatos observados. Galileu inventou, isto sim, o experimento
matematizado, o que é o mesmo que dizer: o experimento idealizado, que
não corresponde a nenhum fato particular da experiência, mas sim à
“fórmula” matemática por trás dos fatos. A ciência assim concebida não
lidava com a natureza dada na experiência, mas com estruturas gerais
que, governando invisivelmente os acontecimentos naturais, só são
apreensíveis sob a forma de relações matemáticas. É patente a inspiração
platônica deste recuo da mente desde a multiplicidade sensível à unidade
de umas quantas fórmulas.

Matematização quer dizer, desde logo, simplificação. A antiga ciência


aristotélica também buscava a simplificação, mas sempre pelo método de
remontar dos seres individuais às suas espécies por meio da abstração e
da classificação, permanecendo sempre estreitamente referida aos dados
sensíveis dos quais havia partido. Na ciência renascentista, o que se
busca já não é a “essência” ~ o conteúdo intelectualmente apreensível
por trás dos dados sensíveis ~, mas apenas a fórmula, a equação que
relaciona uns aos outros esses dados sensíveis, independentemente de
qual seja a “natureza” dos seres considerados. Em ambos os casos a
mente procedia por abstração: mas uma coisa é reduzir vários entes à
unidade de seus traços comuns, suprimindo as variações acidentais,
outra coisa é reduzi-los a suas medidas, proporções e relações. A
descrição científica do mundo perde assim em alcance ontológico e força
explicativa o que ganha em precisão matemática e aplicabilidade técnica.
Todos os dados não redutíveis ao modelo matemático tinham de ser
excluídos da área de investigação, em benefício da coerência do sistema
~ uma perda que, de início, não pareceu grave, porque as relações
matemáticas obtidas podiam, em seguida, ser aplicadas de volta à
natureza sensível, demonstrando-se exatas. A busca da exatidão vai
então cada vez mais substituindo a busca do quid, da essência, até o
ponto em que se torna possível produzir uma descrição
assombrosamente exata e eficaz de algo que não se tem a menor idéia do
que seja.

É absolutamente errado dizer que a nova ciência “derrubou” ou


“contestou” o que quer que fosse da ciência antiga. Ela limitou-se a
mudar de assunto, investigando em outras direções e respondendo a
novas perguntas que jamais tinham interessado à ciência antiga.
Fortemente influenciada por Aristóteles, esta última não acreditava muito
na eficácia do método matemático no domínio das ciências da natureza.
As realidades matemáticas, segundo Aristóteles, são essencialmente
fixas e imutáveis, não podendo por isto corresponder perfeitamente aos
fatos da natureza, que é, por definição, o reino da mutação ~ do
nascimento e da deterioração (genesiV kai ftoraV , guênesis kai ftorás).
Uma ciência da natureza que procedesse principalmente por medições e
comparações matemáticas chegaria, no máximo, a leis de probabilidade
razoável, objeto da dialética, muito abaixo do ideal da certeza
demonstrativa (apodeixiV , apodêixis), que era o objetivo supremo da
ciência aristotélica.

Mas, no primeiro momento, nenhum dos próceres da nova escola pensou


nisso. Os sucessos da física matematizada eram tão estrondosos que
qualquer objeção aristotélica assumia o ar de uma negação insensata do
fato consumado. Toda a mitologia moderna que contrasta a imagem de
uma ciência medieval puramente lógico-verbalista com a da nova ciência
voltada para “a observação da natureza” ~ mitologia que ainda é
transmitida nas escolas, a despeito de já mil vezes desmoralizada pela
pesquisa histórica ~ nasce, paradoxalmente, dos sucessos obtidos pela
aplicação de modelos matemáticos que só sob aspectos muito
determinados e limitados correspondiam à realidade observada. Para
fazer uma idéia de quanto a imagem estereotipada da transição
renascentista chegou a dominar as consciências, basta ver que até um
homem da autoridade de Albert Einstein chega a proclamar que Galileu
libertou a ciência física de um jugo aristotélico de mais de um milênio (3).
Ora, na época de Galileu, não fazia nem três séculos que as concepções
físicas de Aristóteles tinham reingressado em circulação no Ocidente, por
intermédio de Sto. Alberto Magno, suscitando, em vez de aprovação
geral, uma geral hostilidade que só aos poucos foi vencida. Por outro
lado, é fato que o aristotelismo dos escolásticos era de tipo muito
atenuado pela mediação da doutrina cristã, e que um aristotelismo strictu
sensu só vem a surgir, por ironia, justamente no renascentismo italiano,
com Pietro Pomponazzi ~ isto é, no período mesmo do qual a cultura de
almanaque transmitida nas escolas e manuais populares data o fim da
hegemonia aristotélica no pensamento ocidental.
Qualquer que fosse o caso, o sucesso do modelo matemático, ampliado
pelos desenvolvimentos extraordinários que lhe deu Newton, conferiu à
nova ciência a autoridade de uma nova revelação sinaítica. De lado a lado,
o continente europeu é varrido por uma onda de matematismo, que
abrange desde as discussões teológicas até a jardinagem: Descartes
aposta na conversão dos infiéis pela argumentação more geometrico,
enquanto nos jardins de Versalhes a vegetação rebelde é disciplinada até
reduzir-se ao formato de um tabuleiro de xadrez. Deslumbrada pela
claridade das equações que aparentemente tudo explicavam (embora sua
força descritiva viesse justamente de haverem desistido de explicar o que
quer que fosse), ainda no século seguinte ~ que é o da efetiva
propagação européia do mecanicismo, por meio da obra de
Voltaire Élements de la Philosophie de Newton (1738) ~ a exaltação dos
entusiastas chega a ver na nova ciência um novo fiat lux, o retorno ao
momento primordial da criação:

God said: “Let Newton be!” ~ and all was light. (4)

Uma das poucas vozes discordantes é Leibniz. Matemático ele próprio, e


dos maiores, mas igualmente versado na filosofia escolástica
(principalmente portuguesa), que os novos filósofos haviam abandonado
sem exame, ele adverte que

“nem toda a natureza do corpo consiste somente na extensão, isto é,


em grandeza, figura e movimento, mas que importa necessariamente
reconhecer nela algo que tenha relação com as almas e que se
designa habitualmente por forma substancial… Pode-se até
demonstrar que a noção da grandeza, da figura e do movimento não
é distinta como se imagina, e que encerra algo de imaginário e de
relativo às nossas percepções.” (5)

A ousadia desse parágrafo era tanta, que historicamente seu efeito ficaria
retido por mais dois séculos. A época que acabava de encontrar mais um
argumento para o mecanicismo na distinção de Bacon entre as
qualidades primárias e secundárias dos objetos, isto é, entre a grandeza e
as qualidades sensíveis, acreditando piamente na objetividade da
primeira e na subjetividade das últimas, não podia mesmo engolir, da
noite para o dia, a escandalosa proclamação de que a grandeza “tem algo
de imaginário” e de que aquilo que há de real e objetivo nos seres é o seu
individual e irredutívelquid ~ a abominável “forma substancial” dos
escolásticos.

Assim, ficou o dito pelo não dito. A “época das Luzes” faz-se de avestruz,
despede-se de Leibniz com as chacotas de Voltaire (que o caricatura sob
o personagem do Dr. Pangloss) e deixa as objeções para depois, sem
imaginar que renasceriam com força centuplicada no século XX.

Leibniz, no entanto, já prevê que, pelo caminho matematizante, as


ciências iriam acabar desistindo de toda certeza e tendo de se contentar
com as probabilidades razoáveis de que falava o velho Aristóteles.
Retribuindo o mal com o bem, ele se põe a pesquisar a matematização
das probabilidades, terminando por descobrir o cálculo infinitesimal,
incumbido de determinar a partir de que ponto uma diferença pequena se
torna irrelevante, e construindo assim a única esperança de que uma
física reduzida à probabilidade dialética possa conservar ainda o estatuto
de ciência rigorosa. A utilidade dos estudos de Leibniz para a ciência do
século XX é incomensurável.

Mas, antes que o legado leibniziano pudesse ser retomado, foi necessário
uma longa batalha para abalar e enfim destruir as falsas certezas em que
se fundavam as ambições totalitárias do mecanicismo, abrindo assim a
possibilidade de um retorno à modéstia do probabilismo aristotélico-
leibniziano.

Nessa luta, a contribuição de Émile Boutroux é sem dúvida de um valor


que nem sempre os historiadores lhe têm sabido reconhecer. De la
Contingence des Lois de la Nature é, simplesmente, a contestação radical
das “imutáveis leis matemáticas da natureza” em que o mecanicismo
havia apostado o destino da humanidade européia.

A argumentação de Boutroux parte de uma base kantiana. Nas


matemáticas reina a absoluta necessidade lógica, mas os juízos
matemáticos são puramente analíticos, no sentido kantiano, isto é, suas
conclusões já estão contidas em suas premissas. Assim, por mais que
busquemos adaptar as realidades do mundo sensível a um padrão de
exatidão matemática, jamais o conseguiremos por completo, porque, de
um lado, a ciência da natureza não pode contentar-se com puros juízos
analíticos e deve, ao contrário, produzir juízos sintéticos obtidos da
experiência; por outro lado, esses juízos sintéticos não terão outro
fundamento senão a indução, que não poderá jamais obter senão
certezas aproximativas. Os juízos produzidos pela ciência da natureza
não serão nunca juízos categóricos, mas juízos contingentes.

Se Boutrox tivesse parado aí, teria apenas repetido Kant, assinalando um


limite constitutivo do nosso conhecimento experimental. Mas, prossegue
ele, a contingência não está só nos juízos científicos que produzimos
sobre a natureza: está na natureza mesma. A diferença essencial entre as
entidades matemáticas e os seres do mundo físico não reflete apenas
alguma imperfeição da nossa mente, mas a natureza mesma destes e
daquelas. Se não conseguimos reduzir todo o cosmos a umas quantas
equações das quais tudo o mais se pudesse deduzir matematicamente, é
simplesmente porque os seres da natureza não são entidades
matemáticas, formais, imutáveis, alheias ao tempo e ao espaço, mas, ao
contrário, sua forma mesma de existência é a mudança no espaço e no
tempo. Na natureza, ao contrário do que acontece no domínio lógico
formal, podem acontecer coisas novas, imprevistas. A necessidade
natural existe, sim, mas é uma necessidade condicional e relativa. Mais
ainda, não é um só e mesmo padrão de necessidade relativa que impera
em todo o universo, mas este se divide em estratos, que vão subindo da
necessidade mais imperiosa até a quase completa indeterminação, não
vigorando em parte alguma nem o absoluto determinismo nem o acaso
completo. Daí que, sendo impossível alcançar uma perfeita exatidão
matemática nas leis gerais da natureza, a matematização da ciência
natural acabe tomando a forma de um raciocínio de aproximação
probabilística. (6)

O contingencialismo de Boutroux, se por um lado revigora as críticas de


Aristóteles ao método matemático na filosofia natural, por outro enuncia
da maneira mais enfática o programa que mais tarde viria a ser realizado
pelo indeterminismo de Planck e Heisenberg.

O mais interessante, no caso, é que o próprio Aristóteles, ao enfatizar as


limitações do método matemático em física, não apenas se abstém de
negar toda utilidade a esse método, mas ele próprio lança as bases para o
estudo matemático do movimento, indo, portanto, muito além do que, na
época renascentista, puderam perceber tanto seus seguidores quanto
seus detratores (7). Esta observação, posta em relevo bem recentemente,
mostra que o contingencialismo das leis da natureza estava bem mais
próximo do espírito do aristotelismo do que talvez o próprio Boutroux o
houvesse percebido.

É evidente que a dívida de Boutroux não era só com Aristóteles. Ele


aprendeu muito com a teoria do hábitoenunciada pelo seu mestre Félix
Ravaisson, ao qual De la Contingence des Lois de la Nature é dedicado.
Segundo Ravaisson, a capacidade de adquirir hábitos é uma propriedade
geral da natureza. Ravaisson define o hábito como

“a maneira de ser geral e permanente, o estado de uma


existência considerada quer no conjunto dos seus elementos,
quer na sucessão das suas épocas.

Hábito adquirido é aquele que é conseqüência de uma mudança.

Mas o que se entende especificamente por hábito, e que constitui o


assunto deste trabalho, não é somente o hábito adquirido, mas o hábito
que, em decorrência de uma mudança, é contraído em relação a essa
mudança mesma que lhe deu nascimento.

Ora, se o hábito, uma vez adquirido, é uma maneira de ser geral,


permanente, e se a mudança é passageira, então o hábito subsiste para
além da mudança da qual é resultado. Ademais, se ele não se refere,
enquanto hábito e por sua essência mesma, senão à mudança que o
engendrou, o hábito subsiste por uma mudança que já não é e que não é
ainda: por uma mudança possível; ~ eis o sinal mesmo pelo qual deve ser
reconhecido.” (8)

No entender de Ravaisson e Boutroux, as proclamadas “leis” da natureza


são em verdade hábitos, que, embora possam permanecer estáveis por
um tempo impensavelmente longo, nada têm de eterno e imutável.

O contingencialismo não antecipou apenas a física de Planck e


Heisenberg. Ele também resolveu, antecipadamente, todas as
contradições em que viria a debater-se, em seus confrontos com o
mecanicismo das ciências físicas, a escola alemã das “ciências do
espírito” (Geisteswissenschaften). O pressuposto básico de que parte
essa escola é a distinção estabelecida por Wilhelm Dilthey ~ inspirado em
Windelband e Rickert ~ entre “compreensão” e “explicação”, a que
corresponde outra, entre “sentido” e “causa”. Os fatos da natureza,
segundo Dilthey, explicam-se pelas suas causas; os fatos da história e da
cultura compreendem-se pelo seu sentido. Esta radical oposição de
métodos entre ciências da natureza e da cultura foi logo em seguida
relativizada por Max Weber, ao alegar que, embora sem aspirar a formular
leis causais de ordem geral, as ciências da cultura não podem abdicar
totalmente da explicação causal nem do instrumental matemático.

Esta objeção de Weber foi amplamente aceita pelos cientistas sociais,


mas pouquíssimos dentre eles tiveram a ousadia de levá-la às suas
últimas conseqüências. Que conseqüências? Simplesmente isto: Se o
método causal e matemático não pode ser excluído da ciências humanas,
quem garante que, reciprocamente, o método compreensivo não possa
ser aplicado às ciências da natureza? Falar num sentido dos fatos da
natureza é, para o mecanicista de estrita observância, anátema. A
natureza tal como enfocada pela ciência desde Galileu é pura coisa,
objetividade muda. Toda tentativa de captar nos fatos do universo um
sentido, um valor, é pura “criação cultural”, para não dizer
antropomorfismo primitivo. Mas será mesmo assim? O combate à
concepção coisista da natureza começou, no nosso século, da maneira
mais modesta, em círculos de marginais e excluídos da comunidade
acadêmica. O primeiro deles foi René Guénon. Em O Reino da Quantidade
e os Sinais dos Tempos (1945), ele atacou, com base na cosmologia
vedantina, a redução da ciência natural aos aspectos quantitativos, que
separa artificialmente mundo natural e mundo humano, e exigiu um
retorno a antigas cosmologias que integravam ambos numa visão da
natureza como manifestação visível de realidades espirituais. Titus
Burckhardt, um continuador de Guénon, assim resume a crítica do
mestre:

“A mais mínima percepção, o fato de que apreendamos com os


sentidos um objeto qualquer, de que o incorporemos à rede de
imagens interiores e de que o espírito o reconheça como
verdadeiro e real, constitui um processo indivisível que
demonstra como, neste mundo, condições de tipo muito variado
se inserem umas nas outras, umas em modo espaço-temporal,
outras em modo temporal não espacial e outras, ainda, em modo
supra-espacial e supratemporal. Disto resulta que a ‘realidade’
não consiste em meras ‘coisas’, mas representa uma ordem de
inconcebível sutileza e multiplicidade de níveis. Todos os povos
que não estejam deformados pela modernidade sabem disso.
Ter consciência da multíplice gradação interna da existência faz
parte da experiência primordial humana. Só em virtude de uma
evolução muito peculiar do pensamento foi possível chegar ao
ponto de aceitar uma ciência baseada exclusivamente em dados
numéricos como explicação satisfatória do cosmos.” (9)

Embora Guénon fosse ainda mais fundo na crítica, demonstrando, em Les


Principes du Calcul Infinitésimal(1952), que a ciência quantitativista
acabara perdendo a noção mesma do que era quantidade e entrando
com isto nas mais grotescas contradições, a comunidade acadêmica fez
questão estrita de ignorá-lo.

Mas, aos poucos, críticas semelhantes começaram a brotar de dentro do


próprio grêmio. Edmund Husserl, talvez o filósofo de maior influência nos
círculos acadêmicos europeus de sua época, mostra, em A Crise das
Ciências Européias, que a matematização da imagem da natureza importa
em ignorar diferenças decisivas entre estratos da realidade. Uns anos
depois, a antropóloga Mary Douglas contesta a noção de que todos os
significados entrevistos na natureza por civilizações antigas sejam meras
“criações culturais” arbitrárias, sem conexão com propriedades objetivas
da natureza: sem apoio em dados objetivos da natureza, nenhum
simbolismo é possível. (10) O simbolismo natural não apenas existe mas é
a condição mesma para a existência das culturas. O ataque se radicaliza
quando Seyyed Hossein Nasr, laureado historiador das ciências, lança
sobre a concepção quantitativista da natureza a culpa pelo desastre
ecológico, que, a essa altura, começa a preocupar os meios
científicos. (11) Quase ao mesmo tempo, Raymond Ruyer, biólogo
eminente, informa ao mundo que o conjunto de idéias cosmológicas
informalmente compartilhado pela elite científica norte-americana não só
se opõe radicalmente a todo cientificismo mecanicista mas forma, de
maneira quase espontânea, as bases de uma visão gnóstica do universo.
E uma das bases dessa gnose é justamente a constatação de que todo
materialismo mecanicista toma o mundo pelo avesso:

“O materialismo consiste em crer que ‘tudo é objeto’, ‘tudo é


exterior’, ‘tudo é coisa’. Ele toma por pressuposto o caráter
‘superficial’ da percepção visual e da consciência científica. Ele
toma como ‘lado direito’ o avesso dos seres.” (12)

Em direta oposição a essa visão das coisas, os gnósticos de Princeton


insistiam em que a forma própria de existência de tudo quanto existe é
ser algo em si mesmo, é possuir um quid, uma consistência interna, uma
identidade e, no fim das contas, quase um ego. (13)
De um passo, a ciência do século XX não apenas voltava às formas
substanciais dos escolásticos e de Leibniz mas também demolia o muro
entre ciências da natureza e ciências da cultura, entre “explicação” e
“compreensão”. Na perspectiva de Ruyer, já não seria descabido a um
físico ou a um biólogo indagar, para além das causas e processos,
o sentido de um fato natural. Estava assim aberta a via para a
reconstituição da ciência compreensiva da natureza reivindicada por
Guénon, Burckhartdt e Nasr. E um dos instrumentos que Ruyer apontava
como mais promissores nesse sentido era justamente uma disciplina
científica de criação recente que até então, aplicada unilateralmente ao
domínio das ciências humanas, parecera destinada a fortalecer os
preconceitos matematizantes: a teoria da informação. Nas ciências da
natureza, ela daria o resultado inverso: uma vez enfocado qualquer
fenômeno natural como um processo de transmissão e recepção de
informações, a consideração de um sentido se tornava não apenas uma
possibilidade, mas uma necessidade.

Não é preciso exagerar, na história da progressiva demolição da fé


mecanicista, o papel que depois de Ruyer desempenharam Thomas
Kuhn, com a teoria das “revoluções científicas”, e Michel Foucault, com a
alegação de que as epistemes ~ sistemas de chaves básicas de todo o
pensamento científico de uma época ~ se sucedem de maneira arbitrária.
A irracionalidade da História ~ até mesmo da História das ciências ~ nada
prova contra a razão. Mas dificilmente a crença na mecanicidade
matemática do universo poderia resistir a um abalo como o que lhe deu o
biólogo Rupert Sheldrake com sua teoria da ressonância mórfica:

“A Natureza é essencialmente habitual. Entre os gregos


desenvolveu-se a idéia de que o mundo é governado por
princípios invisíveis, não-materiais, que transcendem espaço e
tempo. Os pitagóricos conceberam-nos como números e
relações numéricas; os platônicos, como idéias ou Formas
intemporais. Estes pressupostos erigiram-se em fundamentos
da ciência moderna, e do século XVII em diante os princípios
imateriais governantes do universo material foram concebidos
como leis imutáveis moldadas por um Deus matemático.

Até a década de 60, essa velha idéia parecia mais ou menos


inquestionável; o universo mesmo era visto como uma máquina eterna, e
portanto o que poderia ser mais natural do que o fato de leis o
governarem? Mas, com a revolução cosmológica causada pela teoria
do Big Bang, o cosmos tornou-se mais parecido com um organismo em
desenvolvimento do que com uma máquina eterna. Ele parece ter nascido
uns 15 milhões de anos atrás, e ter-se desenvolvido e crescido desde
então. A totalidade da natureza evoluiu; um dia não houve átomos, nem
moléculas, nem estrelas ou planetas, nem cristais ou células viventes.
Todos esses sistemas desenvolveram-se no curso do tempo. Assim, por
que continuaríamos a pressupor que num universo em evolução as leis
que os governam foram fixadas de antemão, antes até que o universo
viesse a existir?

Por que não explorar a possibilidade de que as regularidades da natureza


tenham efetivamente evoluído? Talvez elas dependam de hábitos que se
desenvolvem organicamente dentro do universo, antes que de leis
impostas por uma mente matemática preexistente.”

A idéia de que as regularidades da natureza se assemelham antes a


hábitos do que a leis eternas foi proposta por Sheldrake no livro A New
Science of Life: The Hypothesis of Formative Causation (“Uma Nova
Ciência da Vida: A Hipótese da Causalidade Formativa”), em 1981, e
desenvolvida em The Presence of the Past: Morphic Resonance and the
Habits of Nature (“A Presença do Passado: A Ressonância Mórfica e os
Hábitos da Natureza”, 1988).

Essa hipótese postula que os sistemas auto-organizantes, de


todos os níveis de complexidade ¾ como átomos, moléculas,
cristais, células, organismos, sociedades, planetas e galáxias ¾ ,
são estruturados por campos específicos chamados campos
mórficos, e que estes campos contêm uma espécie de memória
coletiva derivada de coisas anteriores da sua mesma espécie.
Assim, cada cristal de aspirina, por exemplo, ou cada pé de
carvalho, é moldado por um campo que é ele mesmo moldado
pela influência cumulativa dos cristais de aspirina e pés de
carvalho que os antecederam. A influência dos sistemas
similares anteriores, agindo através ou por meio do espaço e do
tempo, ocorre pelo processo da ressonância mórfica, que
envolve uma ação do semelhante sobre o semelhante. (14)

Paracelso ou Agrippa não diriam isso melhor. A teoria da ressonância traz


de volta, precisamente, as velhas noções da analogia, das simpatias,
das correspondências, enfim as similitudes, (15) tão decisivas na filosofia
antiga e medieval da natureza, que a episteme renascentista acreditava
haver banido para sempre e que, historicamente falando, só tinham
sobrevivido, a duras penas, no interior do gueto esotérico perpetuamente
assediado pela inquisição científica moderna.

A ciência deste fim de século pode não estar ainda totalmente livre da
contaminação mecanicista, com o seu cortejo de seqüelas totalitárias.
Mas a ampliação do horizonte das perguntas possíveis foi tal, que hoje
em dia nenhum filósofo ou cientista pode, sem incorrer em pecado de
dogmatismo que não passará despercebido a ninguém, proclamar a
existência de um abismo intransponível entre a ciência moderna e a
ciência antiga e medieval, nem muito menos instalar-se na primeira com a
presunção cega com que, ainda em 1932, um Léon Brunschvicg, lendo os
sábios do passado, se sentia um homem adulto a ouvir histórias de
crianças. (16)

Mas, no século passado ~ no século de Darwin e Spencer, de Haeckel e


Comte ~, essa presunção imperava por toda parte, e
o establishment acadêmico fazia coro quase unânime à profecia de
Renan:

“A ciência não terá destruído os sonhos do passado senão para


lhes pôr no lugar uma realidade mil vezes superior.” (17)
Desafiar essa certeza era expor-se à chacota, ao boicote, ao isolamento.
E o que mais impressiona, na filosofia francesa do século XIX, é a
vigorosa atualidade que apresenta, para nós de hoje, o grupo de
pensadores que, dentro da própria cidadela acadêmica, ousaram opor-se
a esse formidável consenso. Ler hoje Renan ou Comte, ou qualquer dos
outros profetas do império científico-materialista, é sentir o cheiro
inconfundível da morte e do passado. Ler Ravaisson, Ollé-Laprune,
Lachelier, mas principalmente Boutroux, é entrar numa atmosfera que é
nossa e, em certos momentos, é conversar com alguém que nos fala, por
antecipação, do mesmo tipo de ciência que hoje salta do século XX para
o terceiro milênio.

Curiosamente, muito do pensamento desses precursores permanece


desconhecido daqueles que, por descendência direta ou até mesmo
ressonância mórfica, expõem hoje idéias análogas às suas. No parágrafo
de Sheldrake acima citado, fica bem claro que ele ignora por completo
que a doutrina dos hábitos da natureza já fora exposta, com todas as
letras, com mais de cem anos de antecedência, por Émile Boutroux,
partindo de uma idéia de seu mestre Félix Ravaisson.

Nem Ravaisson nem Boutroux jamais esconderam o que suas idéias


deviam a Schelling, a Leibniz e sobretudo a Aristóteles. Idêntica dívida
têm hoje, sabendo-o ou não, os homens de ciência que se abrem ao
estudo dos imprevistos, das singularidades irrepetíveis, do misterioso
acordo entre ordem e desordem que se observa por toda parte num
cosmos bem diferente da máquina, escrava da ordem matemática,
imaginada pela ciência renascentista. (18) A distinção de Aristóteles entre
um reino celeste e metafísico, regido por leis eternas, e um mundo
sublunar ou natural, submetido à mudança e capaz de imitar a
estabilidade do primeiro mediante algum meio-termo entre mudança e
permanência, é uma idéia que ressoa, com toda a sua força, não só nas
descobertas de Sheldrake mas ~ só para dar mais um exemplo ~ na teoria
das catástrofes de René Thom. (19)
Mas a simples capacidade de extrair riquezas de dentro de um legado
aristotélico que estava soterrado sob três séculos de maledicência já
mostra a poderosa independência de pensamento que animava aqueles
dois filósofos franceses, aquela independência que lhes permitia
examinar a ciência antiga com uma visão direta e objetiva, saltando por
cima das viseiras impostas pelo establishment acadêmico de então.

No caso de Boutroux, essa independência soma-se a outro fator, que o


torna, também, um esplêndido historiador da filosofia. É que o filósofo da
contingência, tendo rejeitado as supostas leis eternas da natureza, não
poderia em seguida cair escravo ante pretensas leis de ferro do devir
histórico, a cujo culto a influência hegeliana vinha afeiçoando boa parte
da intelectualidade européia. Como frisou André Canivez, Boutroux, em
seus estudos históricos,

“se opõe ao neo-hegelianismo e insiste numa filosofia da história


que não seja demonstração de uma regularidade
preestabelecida no fundo de singularidades parciais
mutuamente neutralizadas. Ele preferiu trazer à luz a atividade
do livre-arbítrio no fio da continuidade histórica. Não há um
sistema da história. Ela não é a ressurreição das doutrinas
mortas, mas o acionamento de seus recursos inesgotáveis. O
historiador une-se, assim, ao teórico da contingência”. (20)

Não há, de fato, compreensão mais humilde, mais objetiva e mais


profunda de uma filosofia do que aquela que, em vez de “explicá-la” pelo
“seu tempo histórico”, remetendo-a ao museu das idéias
inofensivas, (21) busca, ao contrário, compreender-se a si mesma por ela,
revigorando a sua força e a sua luz originárias e demonstrando mais uma
vez a verdade da sentença de Hoffmansthal: “Para o espírito, tudo está
presente.”

O Aristóteles que o leitor vai encontrar no presente volume ~ e também


aquele que se encontrará nas Lições sobre Aristóteles, do mesmo autor, a
ser publicadas em breve nesta coleção ~ não é portanto um dado
histórico de uma cultura extinta, exibido por um arqueólogo, mas um
tesouro filosófico e científico revivificado por um intérprete capaz de “pôr
em ação os seus recursos inesgotáveis”.

Rio de Janeiro, 31 de Julho de 1999

Olavo de Carvalho

NOTAS

1. Utilizamos para a tradução o texto da 4ª ed., Paris, Alcan, 1925. Por


motivos técnicos, omitimos nesta edição os acentos das palavras
gregas citadas.
2. E, para continuar esses estudos, nada melhor que as Lições sobre
Aristótelespronunciadas por Boutroux na École Normale Supérieure
entre 1879 e 1879, que serão publicadas proximamente nesta
coleção.
3. Albert Einstein e Leopold Infeld, A Evolução da Física, trad. Giasone
Rebuà, Rio, Zahar, 1976, Cap. I (“A ascensão do conceito mecânico”).
4. William Blake.
5. Discours de Métaphysique, § 12.
6. Cf. N. Denyer, “Can physics be exact?”, em F. De Gandt e P. Souffrin
(eds.), La Physique d’Aristote et les Conditions d’une Science de la
Nature. Actes du Colloque organisé par le Séminaire d’Epistémologie
et d’Histoire des Sciences de Nice, Paris, Vrin, 1991, pp. 73-83.
7. Cf. F. De Gandt, “Sur la détermination du mouvement selon Aristote
et les conditions d’une mathématisation”, em F. De Gandt e P.
Souffrin, op. cit., pp. 85-105.
8. De l’Habitude (1838), ed. Jean-François Courtine, Paris, Vrin, 1984,
p. 1. ~ Do Hábito é uma das edições programadas para a presente
coleção.
9. Ciencia Moderna y Sabiduría Tradicional, trad. Jordi Quingles y
Alejandro Corniero, Madri, Taurus, 1979, p. 9. ~ Uma coletânea de
escritos de Burckhardt sobre o tema está programada para a
presente coleção.
10. Símbolos Naturales. Exploraciones en Cosmología, trad. Carmen
Criado, Madri, Alianza Editorial, 1988.
11. The Encounter of Man and Nature. The Spiritual Crisis of Modern
Man, Londres, Allen and Unwin, 1968 (Há tradução brasileira, O
Homem e a Natureza, Rio, Zahar).
12. Raymond Ruyer, La Gnose de Princeton. Des Savants à la Recherche
d’une Réligion, 2ª ed., Paris, 1977.
13. Op. cit., p. 59.
14. “The principles of universal habit”, publicado em: Peter Lorie and Sidd
Murray-Clark, History of the Future: a Chronology, Londres, Pyramid
Books, 1989, pp. 16-19.
15. V. Michel Foucault, Les Mots et les Choses. Une Archéologie des
Sciences Humaines, Paris, Gallimard, 1966, pp. 32 ss.
16. Léon Brunchvicg, Les Âges de l’Intelligence, Paris, P.U.F., 1934 (curso
da Sorbonne em 1932; 4ª ed., 1954).
17. Ernest Renan, L’Avenir de la Science, em Pages Choisies, Paris,
Calmann-Lévy, 1890, p. 231.
18. Que Aristóteles visse nos astros uma estabilidade e permanência
divinas, confundindo assim com o reino metafísico uma parte do
mundo físico, é evidentemente uma aplicação particular errada de
uma distinção geral que, em si, permanece válida. Mas tal era a
atmosfera de hostilidade antiaristotélica (no fundo, antiescolástica ou
anticatólica) no Renascimento, que a criança foi jogada fora com a
água do banho: ao rejeitar as concepções astronômicas de
Aristóteles, a nova ciência desprezou, junto com elas, a fina distinção
entre o domínio físico e o metafísico, que já continha em seu bojo a
antecipação do probabilismo leibniziano. Confundindo o acidental
com o essencial, viciou na raiz suas próprias aspirações de progresso
e acabou por aprisionar-se, pois dois séculos, na ilusão mecanicista.
19. V. René Thom, “Matière, forme et catastrophes”, em M. A. Sinaceur
(org.), Penser avec Aristote, Toulouse, Ères-Unesco, 1991, pp. 367-
398.
20. André Canivez, “Aspects de la philosophie française”, em Yvon
Belaval (org.), Histoire de la Philosophie, Paris, Gallimard
(Bibliothèque de la Pléiade), 1974, t. III, p. 455.
21. V. Olavo de Carvalho, O Futuro do Pensamento Brasileiro, Rio,
Faculdade da Cidade Editora, 2ª ed., 1997, cap. I, § 1, “A história e o
sentido da eternidade”.

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