Você está na página 1de 51

Karl Marx – As Lutas de Classes

Sumário
I - De fevereiro a junho de 1848
A derrota de junho de 1848
II - De junho de 1848 a 13 de junho de 1849
III - De 13 de junho de 1849 a 10 de março de 1850

I
De fevereiro a junho de 1848

Com exceção de alguns poucos capítulos, cada divisão importante dos anais
da revolução de 1848 a 1849 traz por título "Derrota da revolução!".
Nessas derrotas, não foi a revolução quem sucumbiu. Foram os tradicionais
apêndices pré-revolucionários, resultantes de relações sociais que não se
tinham ainda aguçado até se transformarem em violentas contradições de
classes: pessoas, ilusões, ideias, projetos que o partido revolucionário
não havia desenvolvido antes da revolução de fevereiro e os quais ele não
podia realizar com a vitória de fevereiro, mas apenas por uma série de
derrotas.
Em uma palavra: não foi por suas conquistas tragicômicas imediatas que o
progresso revolucionário abriu o seu caminho; pelo contrário, foi somente
fazendo surgir uma contrarrevolução forte, compacta, foi na criação de um
adversário e no seu combate que o partido da subversão pôde enfim se
tornar um partido realmente revolucionário.
O objetivo das páginas que se seguem é demonstrar como isso se deu.

A derrota de junho de 1848

Após a revolução de junho, quando o banqueiro liberal Laffitte conduziu em


triunfo o seu compadre, o duque de Orleáns, à Prefeitura, ele deixou
escapar estas palavras: "Agora é o começo do reinado dos banqueiros".
Laffitte havia traído o segredo da revolução. A burguesia francesa não
reinava sob Luís-Filipe, apenas fazia parte do reino: banqueiros, reis da
Bolsa, reis das estradas de ferro, proprietários de minas de carvão e de
ferro, proprietários de florestas e a parcela dos proprietários de terras
ligados a eles, aos que compõem a chamada aristocracia financeira. Ela
reinava, ela ditava as leis às Câmaras, distribuía os cargos públicos,
desde os ministérios até as tabacarias.
A burguesia industrial propriamente dita formava uma parcela da oposição
oficial, o que equivale a dizer que era minoria nas Câmaras. Sua oposição
se tornou cada vez mais decidida à medida que o desenvolvimento da
hegemonia da aristocracia financeira se tornava mais evidente; depois dos
tumultos de 1832, 1834 e 1839, que ela afogou em sangue, chegou a crer
estar assegurado o seu domínio sobre a classe operária. Grandin,
fabricante de Rouen, o órgão mais fanático da reação burguesa, tanto na
Assembleia Nacional Constituinte quanto na Legislativa, era o adversário
mais violento de Guizot na Câmara dos Deputados. Léon Faucher, conhecido
mais tarde por seus esforços inúteis para se guindar ao papel de Guizot da
contrarrevolução francesa, nos últimos dias de Luís-Filipe combateu a
golpes de pena em favor da Indústria e contra a especulação e seus
seguidores do governo. Bastiat, em nome de Bordeaux e de toda a França
vinícola, fazia agitação contra o sistema dominante.
A pequena burguesia em todas as suas nuances e a classe camponesa estavam
completamente excluídas do poder político. Enfim, encontravam-se na
oposição oficial, ou completamente fora do Estado legal, os representantes
ideológicos e os porta-vozes das classes que acabamos de citar, seus
eruditos, seus advogados, seus médicos, etc., aqueles que, afinal, eram
considerados como as "capacidades".
Desde o início, a penúria financeira pôs a monarquia de julho sob a
dependência da alta burguesia. Esta dependência se tornou a fonte
inesgotável de apuros financeiros crescentes. É impossível subordinar a
gestão do Estado ao interesse da produção nacional sem estabelecer o
equilíbrio do orçamento, ou seja, o equilíbrio entre as despesas e as
receitas do Estado. E como estabelecer esse equilíbrio sem reduzir a
marcha do Estado, ou seja, sem prejudicar interesses que eram como que
sustentáculos do sistema dominante, e sem reorganizar a situação dos
impostos, ou seja, sem atirar uma considerável parte do fardo fiscal sobre
os ombros da grande burguesia?
O endividamento do Estado era, muito pelo contrário, o interesse direto da
fração da burguesia que governava e legislava com as Câmaras. O déficit do
Estado era o próprio objeto de suas especulações e a fonte principal do
seu enriquecimento. Ao fim de cada ano, novo déficit. Ao cabo de quatro ou
cinco anos, novo empréstimo. Ora, cada novo empréstimo fornecia à
aristocracia uma nova oportunidade para lesar o Estado, que, mantido
artificialmente à beira da falência, era obrigado a tratar com os
banqueiros dentro das condições as mais desfavoráveis. Cada novo
empréstimo era uma nova oportunidade para fraudar o público que empregava
seus capitais em juros sobre o Estado. E isto se dava com operações da
Bolsa, em cujos segredos o Governo e a maioria da Câmara eram iniciados.
Em geral, a instabilidade do crédito público e o conhecimento dos segredos
de Estado permitiam aos banqueiros, assim como a seus confrades nas
Câmaras e no trono, provocar flutuações extraordinárias e bruscas na
circulação dos títulos públicos, cujo resultado constante não podia ser
outro senão a ruína de inúmeros pequenos capitalistas e o enriquecimento
fabulosamente rápido dos grandes especuladores. Se o déficit orçamentário
era o interesse direto da fração da burguesia no poder, explica-se que o
orçamento extraordinário, nos últimos anos do governo de Luís-Filipe,
tenha excedido em muito o dobro do montante atingido nos tempos de
Napoleão, ultrapassando os quatrocentos milhões de francos. Além disso, as
somas enormes passando assim entre as mãos do Estado davam ocasião a
contratos de remessa fraudulentos, de corrupções, de malversações e de
trapaças de todas as espécies. A pilhagem do Estado, à grande, tal como se
praticava com os empréstimos,• repetia-se em detalhes nas obras públicas.
As relações entre a Câmara e o Governo se encontravam multiplicadas sob a
forma de relações entre certas administrações e certos empreiteiros.
Assim como as despesas públicas em geral e os empréstimos públicos, a
classe dominante explorava também as construções de linhas ferroviárias.
As Câmaras lançavam sobre o Estado os principais encargos e asseguravam à
aristocracia financeira especuladora os frutos de ouro. Podemos lembrar os
escândalos que explodiram na Câmara dos Deputados quando se descobriu, por
acaso, que todos os membros da maioria, aí compreendida uma parte dos
ministros, eram acionistas das mesmas empresas de vias férreas às quais
eles confiavam depois, na condição de legisladores, a execução de linhas
de estradas de ferro por conta do Estado.
Por outro lado, a menor reforma financeira esbarrava na oposição dos
banqueiros. Foi o caso, por exemplo, da reforma postal. Rothschild
protestou, O Estado tinha o direito de diminuir as fontes de rendimento
que lhe serviam para anular os juros de sua dívida sempre crescente?
A monarquia de julho não passava de uma sociedade anônima fundada para
explorar a riqueza nacional francesa, cujos dividendos eram partilhados
entre os ministros, as Câmaras, duzentos e quarenta mil eleitores e sua
clientela. Luís-Filipe era o diretor dessa sociedade com Robert Macaire
sobre o trono. O comércio, a indústria, a agricultura, a navegação, os
interesses da burguesia industrial eram ameaçados e lesados
incessantemente por esse sistema. Por isso, essa mesma burguesia
industrial havia escrito em sua bandeira, durante as jornadas de julho:
Governo a preço baixo.
Enquanto a aristocracia financeira ditava as leis, dirigia a gestão do
Estado, dispunha de todos os poderes públicos constituídos, dominava a
opinião pública pela força dos fatos e pela imprensa, em todas as esferas,
da corte até as tabernas mais mal afamadas, via-se reproduzir a mesma
prostituição, a mesma trapaça desavergonhada, a mesma sede de
enriquecimento, não pela defesa, mas pela escamoteação da riqueza alheia
já existente: era sobretudo na cúpula da sociedade burguesa que o
satisfazer de ambições as mais malsãs e as mais desregradas se
desencadeava e entrava a cada instante em conflito com as próprias leis
burguesas; porque é lá, onde o desfrute se torna infame, onde o ouro, a
lama e o sangue se misturam, que inevitavelmente a riqueza proveniente do
jogo procura se realizar. A aristocracia financeira, tanto em sua forma
econômica quanto em seus desfrutes, é apenas a ressurreição do proletário
em farrapos nas cúpulas da sociedade burguesa.
Quanto às parcelas da burguesia francesa que não estavam no poder, ela se
insurgia contra a corrupção.
O povo gritava: "Abaixo os grandes ladrões! Abaixo os assassinos!",
quando, em 1847, nos teatros mais ilustres da sociedade burguesa, se
representavam publicamente aquelas cenas que acompanhavam geralmente o
proletariado em farrapos nos bordéis, nos hospitais e nas casas de loucos,
diante dos juízes, nas prisões e no cadafalso.
A burguesia industrial via os seus interesses ameaçados, a pequena
burguesia estava moralmente indignada, a imaginação popular se revoltava.
Paris estava inundada de panfletos: "A dinastia Rothschild", "Os judeus,
reis da época", etc., onde se denunciava, se ofendia, com mais ou menos
espírito, a dominação da aristocracia financeira.
Nada pela glória! A paz em todos os cantos e para sempre! A guerra impõe o
custo de três e quatro por cento. Eis o que havia escrito em sua bandeira
a França dos judeus da Bolsa. Também sua política estrangeira naufragava
em uma série de humilhações do sentimento nacional francês, que reagia
mais vivamente do que quando a anexação da Cracóvia pela Áustria havia
consumado a pilhagem da Polônia, do que quando Guizot, na guerra do
Sonderbund helvético, se tinha posto ativamente ao lado da Santa-Aliança.
A vitória dos liberais suíços nessa imitação de guerra restituiu a
confiança à oposição burguesa na França, a rebelião sangrenta do povo em
Palermo agiu como uma descarga elétrica sobre a massa popular paralisada e
despertou suas grandes lembranças e suas paixões revolucionárias.
Enfim, dois acontecimentos econômicos mundiais precipitaram a explosão do
mal-estar geral e amadureceram o descontentamento até a revolta.
A doença da batata e as péssimas colheitas de 1845 e 1846 acentuaram a
efervescência geral no povo. O encarecimento do custo de vida em 1847
provocou na França, como em todo o resto do continente, conflitos
sangrentos. Face às orgias escandalosas da aristocracia financeira, era a
luta do povo pelos meios de existência os mais elementares! Em Buzançais,
executavam-se os amotinados da fome; em Paris, escroques saciados
escapavam aos tribunais graças à família real!
O segundo grande acontecimento econômico que apressou a explosão da
revolução foi uma crise geral do comércio e da indústria na Inglaterra.
Anunciada já durante o outono de 1845 pela derrota maciça dos
especuladores em ações de estradas de ferro, detida durante o ano de 1846
por uma série de medidas marginais, como a supressão iminente dos direitos
de duana sobre o trigo, essa derrota foi finalmente acionada no outono de
1847 com a falência de grandes comissários coloniais de Londres, que foi
seguida de perto pela quebra de bancos provinciais e o fechamento de
fábricas nos distritos industriais ingleses. As repercussões da crise não
se tinham ainda esgotado no continente quando eclodiu a revolução de
fevereiro.
Os prejuízos causados no comércio e na indústria pela crise econômica
tornavam mais insuportável a onipotência da aristocracia financeira. A
oposição burguesa provocou em toda a França a campanha dos banquetes em
favor de uma reforma fiscal que devia conquistar para si a maioria nas
Câmaras e derrubar o Ministério da Bolsa. Em Paris, a crise industrial
tinha ainda por consequência particular lançar sobre o comércio interior
uma massa de fabricantes e de grandes comerciantes que, nas condições do
momento, não podiam mais fazer negócios sobre o mercado exterior. Eles
criaram grandes estabelecimentos cuja concorrência causou a ruína de um
sem-número de merceeiros e lojistas. Daí uma quantidade enorme de
falências nesta fração da burguesia parisiense; daí sua ação
revolucionária em fevereiro. Sabe-se como Guizot e as Câmaras contra-
atacaram essas propostas de reforma com uma provocação ambígua; que Luís-
Filipe se decidiu tarde demais a formar um ministério Barrot; que o povo e
o exército chegaram à luta; que o exército foi desarmado em consequência
da atitude passiva da guarda nacional e que a monarquia de julho teve que
ceder o seu lugar.
O Governo provisório nascido das barricadas de fevereiro refletia
necessariamente em sua composição os diversos partidos que dividiam entre
si a vitória. Não podia ser mais que um compromisso entre as diferentes
classes que haviam derrubado juntas o trono de julho, mas cujos interesses
se opunham. Era composto em sua maioria por representantes da burguesia. A
pequena burguesia republicana era representada por Ledru-Rollin e Flocon;
a burguesia republicana por gente do National, a oposição dinástica por
Crémieux, Dupont de lEure, etc. A classe operária só tinha dois
representantes, Louis Blanc e Albert. Lamartine, enfim, no Governo
provisório, não representava qualquer interesse real, qualquer classe
determinada; era a própria revolução de fevereiro, o levante comum com
suas ilusões, sua poesia, seu conteúdo imaginário e seus di cursos. Mas,
no fundo, o porta-voz da revolução de fevereiro, tanto por sua posição
quanto por suas opiniões, pertencia à burguesia.
Se Paris, em consequência da centralização política, domina a França, os
operários dominam Paris nos momentos de abalos revolucionários. A primeira
manifestação da existência do Governo provisório foi a tentativa de fugir
a essa influência predominante lançando de uma Paris excitada um apelo ao
sangue-frio da França. Lamartine contestou o direito dos combatentes das
barricadas proclamarem a República, afirmando que somente a maioria dos
franceses tinha poder de fazê-lo: que era preciso esperar pelo seu voto,
que o proletariado parisiense não devia manchar sua vitória com uma
usurpação. A burguesia não permite ao proletariado nada mais que uma
usurpação: a da luta.
Em 25 de fevereiro, por volta do meio-dia, a República ainda não tinha
sido proclamada, no entanto todos os ministérios já estavam repartidos
entre os elementos burgueses do Governo provisório e entre os generais,
banqueiros e advogados do National. Mas, desta vez, os operários estavam
resolvidos a não mais tolerar uma escamoteação semelhante àquela de julho
de 1830. Estavam prontos para iniciar um novo combate e impor a República
pela força das armas. Foi com esta missão que Raspail se dirigiu à
Prefeitura. Em nome do proletariado parisiense, ele ordenou ao Governo
provisório que proclamasse a República, declarando que se esta ordem do
povo não fosse executada em duas horas retornaria à frente de duzentos mil
homens. Os cadáveres dos combatentes mal haviam esfriado, as barricadas
não tinham sido retiradas, os operários ainda estavam armados e a única
força que se lhes podia opor era a guarda nacional. Em tais
circunstâncias, as considerações políticas e os escrúpulos jurídicos do
Governo provisório desapareceram bruscamente. O prazo de duas horas não
fora ainda esgotado quando todos os muros de Paris exibiam em caracteres
gigantescos:
"República francesa! Liberdade, Igualdade, Fraternidade!"
Com a proclamação da República com base no sufrágio universal, iam-se
apagando até se tornarem simples lembranças os objetivos e os motivos
estritos que tinham lançado a burguesia na revolução de fevereiro. Em vez
de apenas algumas frações da burguesia, eram todas as classes da sociedade
francesa que se achavam repentinamente projetadas na órbita do poder
político, forçadas a abandonar os camarotes, a plateia e a galeria para
representar pessoalmente no palco revolucionário! Com a realeza
constitucional, sumiam igualmente uma aparência de poder público que se
opunha arbitrariamente à sociedade burguesa e toda uma série de lutas
subalternas que essa espécie de poder exige!
Impondo a República ao Governo provisório e, através deste, a toda França,
o proletariado se punha imediatamente no primeiro plano enquanto partido
independente; mas, no mesmo lance, atirava um desafio à França burguesa. O
que ele havia conquistado fora o terreno para a luta por sua emancipação
revolucionária, mas não a própria emancipação.
Era preciso, ao contrário, que a República de fevereiro pudesse
aperfeiçoar antes de tudo a dominação da burguesia, fazendo entrar, ao
lado da aristocracia financeira, todas as classes capitalistas na esfera
do poder político. A maioria dos grandes proprietários de imóveis, os
legitimistas, foram tirados da nulidade política à qual a monarquia de
julho os tinha condenado. Não fora sem razão que a Gazette de France havia
conduzido a agitação em acordo com os jornais de oposição; não fora sem
razão que La Rochejaquelein, na Câmara, na sessão de 24 de fevereiro,
havia adotado o partido da revolução. Pelo sufrágio universal, os
proprietários nominais que formam a grande maioria dos franceses, os
camponeses, foram instituídos os árbitros do destino da França. Enfim, a
República de fevereiro fez surgir a dominação burguesa com toda evidência,
derrubando a coroa atrás da qual se dissimulava o capital.
Da mesma forma que, nas jornadas de julho, os operários tinham deposto
pela luta a monarquia burguesa, nas jornadas de fevereiro foi a República
burguesa. Da mesma forma que a monarquia de julho foi obrigada a se
apresentar como uma monarquia cercada de instituições republicanas, a
República de fevereiro teve que se declarar uma República cercada de
instituições sociais. O proletário parisiense impôs também este
compromisso.
Foi um operário, Marche, quem ditou o decreto onde o Governo provisório,
recém-formado, se comprometia a assegurar a existência de trabalhadores
para o trabalho, a fornecer trabalho para todos os cidadãos, etc. E como
alguns dias mais tarde ele esqueceu essas promessas e parecia ter perdido
de vista o proletariado, vinte mil operários marcharam sobre a Prefeitura,
aos gritos de: "Organização do trabalho! Constituição de um ministério
especial do Trabalho!". Contra a sua vontade, e depois de longos debates,
o Governo provisório nomeou uma comissão especial permanente encarregada
de procurar os meios de melhorar as condições de vida das classes
trabalhadoras! Essa comissão foi formada por delegados das corporações
profissionais de Paris e presidida por Louís Blanc e Albert. Foi-lhe
destinado o Luxemburgo como sala de sessões. Deste modo, os representantes
da classe operária se viam banidos da sede do Governo provisório, do qual
a facção burguesa conservava em suas mãos o poder do Estado real e as
rédeas da administração; e ao lado dos ministérios das Finanças, do
Comércio, dos Serviços Públicos, ao lado do Banco e da Bolsa, erguia-se
uma sinagoga Socialista cujos grandes sacerdotes, Louis Blanc e Albert,
tinham por missão descobrir a terra prometida, proclamar o novo evangelho
e dar trabalho ao proletariado parisiense. Diferentemente de todo poder de
Estado comum, eles não dispunham de qualquer orçamento, de qualquer poder
executivo. Era com suas cabeças que eles deveriam derrubar as pilastras da
sociedade burguesa. Enquanto o Luxemburgo procurava a pedra filosofal,
cunhava-se na Prefeitura a moeda de valor legal.
E no entanto as reivindicações do proletariado parisiense, na medida em
que elas ultrapassavam os limites da República burguesa, não podiam
adquirir outra existência senão aquela, nebulosa, do Luxemburgo.
Fora com a burguesia que os operários tinham feito a Revolução de
fevereiro; foi ao lado da burguesia que eles procuraram fazer prevalecer
os seus interesses; assim como fora com a maioria burguesa que eles haviam
instalado um operário no próprio Governo provisório. Organização do
trabalho! Mas é o assalariado a atual organização burguesa existente do
trabalho. Sem ele, nada de capital, nada de burguesia, nada de sociedade
burguesa. Um ministério especial do Trabalho! Mas não são os ministérios
das Finanças, do Comércio e dos Serviços Públicos os ministérios do
Trabalho burguês? A seu lado, um ministério do Trabalho proletário só
podia ser um ministério da Impotência, um ministério de Promessas
Piedosas, uma comissão do Luxemburgo. Assim como os operários acreditavam
se emancipar ao lado da burguesia, assim também eles pensavam realizar uma
revolução proletária ao lado de outras nações burguesas e dentro das
fronteiras nacionais da França. Mas as condições de produção da França são
determinadas por seu comércio exterior, por sua posição no mercado mundial
e pelas leis deste último. Como a França as romperia sem uma guerra
revolucionária europeia aguardada, como compensação, pela Inglaterra, o
déspota do mercado mundial?
Uma classe que concentra em si os interesses revolucionários da sociedade,
desde o instante em que se revoltou encontra imediatamente em sua própria
situação o conteúdo e a matéria de sua atividade revolucionária: esmagar
seus inimigos, tomar as medidas impostas pelas necessidades da luta; e são
as consequências de seus próprios atos que a impulsionam para frente. Ela
não se entrega a nenhuma pesquisa teórica sobre a sua própria missão. A
classe operária francesa ainda não havia chegado a esse ponto; era incapaz
ainda de consumar sua própria revolução.
O desenvolvimento do proletariado industrial tem por condição geral o
desenvolvimento da burguesia industrial. É somente sob a dominação desta
que sua existência toma uma amplitude nacional permitindo-lhe elevar sua
revolução ao nível de uma revolução nacional; é somente aí que ele, o
proletariado industrial, cria ele mesmo os meios de produção modernos que
se tornam também os meios de sua libertação revolucionária. Somente a
dominação da burguesia industrial extirpa as raízes materiais da sociedade
feudal e prepara o terreno sobre o qual uma revolução proletária é
possível. A indústria francesa é mais evoluída e a burguesia francesa mais
desenvolvida no ponto de vista revolucionário do que a do resto do
continente. Mas a revolução de fevereiro não foi diretamente dirigida
contra a aristocracia financeira? Tal fato provou que a burguesia
industrial da França não reinava. A burguesia industrial não pode reinar
senão onde a indústria moderna modelou à sua maneira todas as relações de
propriedade; e a indústria não pode adquirir este poder senão onde ela
conquistou o mercado mundial, pois as fronteiras nacionais não são
suficientes ao seu desenvolvimento. Ora, a indústria francesa só continua
em grande parte dona do mercado mundial graças a um sistema proibitivo
sujeito a modificações mais ou menos importantes. Se, por consequência, o
proletariado francês possui, no momento de uma revolução em Paris, um
poder e uma influência reais que o incitam a combater além de suas forças,
no resto da França ele está concentrado em alguns pontos espalhados, onde
a indústria se centraliza, e desaparece quase que completamente sob o
número superior de camponeses e de pequenos burgueses. A luta contra o
capital, desenvolvida sob a forma moderna, em sua plenitude que é a luta
do assalariado industrial contra a burguesia industrial, foi na França um
fato parcial que, após as jornadas de fevereiro, podia alimentar o
conteúdo nacional da revolução menos ainda, desde que a luta contra as
formas de exploração inferiores do capital, a luta dos camponeses contra a
usura da hipoteca, do pequeno burguês contra o grande comerciante, o
banqueiro e o fabricante - resumindo, contra a bancarrota -, estava ainda
naufragada na revolta geral contra a aristocracia financeira em geral.
Também é facilmente explicável que o proletariado de Paris tenha procurado
fazer triunfar seus interesses sobre os interesses da burguesia em lugar
de reivindica-los como os interesses revolucionários da própria sociedade,
e que tenha feito descer a bandeira vermelha diante da bandeira tricoloro
Os operários franceses não podiam dar um único passo à frente, nem tocar
em um único fio de cabelo do regime burguês, antes que as outras classes
colocadas entre o proletariado e a burguesia - camponeses e pequenos
burgueses revoltados contra aquele regime, contra a dominação do capital -
, tivessem sido obrigadas pela marcha da revolução a se aliar aos
proletários, sua vanguarda. Foi somente pela espantosa derrota de junho
que os operários puderam conquistar esta vitória.
A comissão de Luxemburgo, esta criação dos operários de Paris, tem o
mérito de ter revelado, do alto de uma tribuna europeia, o segredo da
revolução do século XIX: a emancipação do proletariado. O Moniteur
explodiu, quando teve que oficialmente difundir as "exaltações
desordenadas" que, até então, estavam enterradas nas obras apócrifas dos
socialistas e que, tal como as lendas distantes meio aterradoras, meio
ridículas, só vinham de tempos em tempos soar aos ouvidos da burguesia. A
Europa despertou sobressaltada, na surpresa do seu entorpecimento burguês.
Assim, no espírito dos proletários que confundiam sempre a aristocracia
financeira com a burguesia, na imaginação de bravos republicanos que
negavam mesmo a existência das classes ou admitiam-na, no máximo, como uma
consequência da monarquia constitucional, nas palavras hipócritas das
frações burguesas até então excluídas do poder, a dominação da burguesia
se achava abolida com a instauração da República. Todos os monarquistas se
transformaram então em republicanos e todos os milionários de Paris em
operários. A palavra que correspondia a essa imaginária eliminação das
relações de classe era fraternidade; a fraternização e a fraternidade
universais. Negação inofensiva dos antagonistas de classes, equilíbrio
sentimental entre interesses de classe contraditórios, exaltação
entusiasta acima da luta de classes, a fraternidade foi realmente a divisa
da revolução de fevereiro. Era um simples mal entendido que separava as
classes e, em 24 de fevereiro, Lamartine batizou o Governo provisório: "Um
governo que acaba com esse terrível mal entendido que existe entre as
diferentes classes." O proletariado de Paris se deixou levar a esta
generosa embriaguês de fraternidade.
Por seu turno, o Governo provisório, uma vez obrigado a proclamar a
República, tudo fez para tomá-la aceitável à burguesia e às províncias. Os
horrores sangrentos da primeira República francesa foram condenados com a
abolição da pena de morte por crime político; a imprensa foi liberada para
qualquer tipo de opinião; o exército, os tribunais e a administração
ficaram, com algumas poucas exceções, nas mãos de seus antigos
dignitários; não foram exigidas explicações a nenhum dos grandes culpados
da monarquia de julho. Os republicanos burgueses do National se divertiam
trocando os nomes e as roupas da monarquia pelos da velha República. A
seus olhos, a República não passava de um novo traje de baile para a velha
sociedade burguesa. O mérito principal da jovem República foi o de não
assustar ninguém, de, antes, se assustar ela própria continuamente e, por
sua mansidão, sua vida passiva, o de conquistar o direito à vida e ao
desarmamento das resistências. Para as classes privilegiadas do interior,
para as potências despóticas do exterior, proclamou-se em bom som que a
República era de natureza pacífica: viver e deixar viver era o seu lema.
Além do mais, pouco depois da revolução de fevereiro, os alemães, os
poloneses, os austríacos, os holandeses, os italianos se revoltaram, cada
povo de acordo com a sua situação. A Rússia e a Inglaterra ainda não
tinham chegado a tanto; a primeira era contida pelo terror, enquanto a
segunda se encontrava em estado de ebulição. A República, então, não via
uma única nação inimiga diante de si. Assim, nada de grandes complicações
exteriores que pudessem reavivar as chamas, precipitar o processo
revolucionário, empurrar para adiante o Governo provisório ou, se fosse o
caso, lançá-lo ao mar. O proletariado parisiense, que via na República a
sua própria criação, aclamava naturalmente cada ato do Governo provisório
que lhe permitia tomar pé com maior facilidade na sociedade burguesa. Ele
se deixou empregar docilmente por Caussidiêre nas funções de policial para
proteger a propriedade em Paris, assim, como deixou se concluírem
amigavelmente os conflitos salariais entre operários e patrões por Louis
Blanc. Considerava como ponto essencial o manter imaculada a honra
burguesa da República aos olhos da Europa.
A República não encontrou qualquer resistência dentro ou fora de casa. Foi
o que a desarmou. Sua missão não foi a de transformar revolucionariamente
o mundo; consistiu apenas em adaptar-se às condições da sociedade
burguesa. Nada testemunha mais eloquentemente o fanatismo com que o
Governo provisório se entregou a tal missão do que as medidas financeiras
que tomou.
O crédito público e o crédito privado estavam naturalmente abalados. O
crédito público baseia-se na crença de que o Estado se deixa explorar
pelos judeus das Finanças. Mas o velho Estado havia desaparecido e a
revolução era dirigida antes de tudo contra a aristocracia financeira. As
oscilações da última crise comercial na Europa ainda não haviam terminado.
As bancarrotas ainda se sucediam.
O crédito privado estava então paralisado, a circulação frouxa, a produção
estagnada, antes que explodisse a revolução de fevereiro. A crise
revolucionária intensificou a crise comercial. Ora, o crédito privado
baseia-se na crença segundo a qual a produção burguesa em toda a amplitude
de suas relações, a ordem burguesa, é inviolada e inviolável. Qual não
devia ser o efeito de uma revolução que punha em questão o fundamento da
produção burguesa, a escravidão econômica do proletariado, e decifrava
face a Bolsa a esfinge do Luxemburgo? A revolta do proletariado é a
supressão do crédito burguês, porque é a supressão da produção burguesa e
de seu regime. O crédito público e o crédito privado são o termômetro
econômico que permite medir a intensidade de uma revolução. À medida que
eles, os créditos, baixam, sobem o ardor febril e a força criadora da
revolução.
O Governo provisório queria despojar a República de sua aparência
antiburguesa. Era-lhe necessário antes de tudo procurar assegurar o valor
de troca dessa nova forma de Estado, seu preço na Bolsa. Com o preço
corrente da República na Bolsa, o crédito privado tornou necessariamente a
subir.
Para afastar até mesmo a suspeita de que ele não queria ou não podia fazer
frente às obrigações legadas pela monarquia, para restabelecer a confiança
na moralidade burguesa, na solvabilidade da República, o Governo
provisório recorreu a uma fanfarronada tão pueril quanto indigna. Antes do
prazo de vencimento legal, pagou aos credores do Estado os juros de cinco,
quatro e meio e quatro por cento. A arrogância burguesa, a segurança dos
capitalistas foram despertadas bruscamente quando eles viram a pressa
ansiosa com que se procurava comprar a sua confiança.
O embaraço financeiro do Governo provisório não foi atenuado com este coup
de théâtre que o privava dos poucos recursos disponíveis. Não era possível
esconder por mais tempo a penúria financeira e coube aos pequenos
burgueses, empregados e operários o pagamento pela agradável surpresa
feita aos credores do Estado.
As cadernetas de poupança cujo montante, ultrapassassem os cem francos
foram declaradas não reembolsáveis em dinheiro. Os valores depositados em
poupança foram confiscados e convertidos, por decreto, em dívida não
reembolsável do Estado. O pequeno burguês, já bastante maltratado,
irritou-se com a República. Recebendo bônus do Tesouro, em lugar de sua
caderneta de poupança, ele foi obrigado a ir vendê-los na Bolsa e a se
entregar nas mãos dos judeus da Bolsa, os mesmos contra os quais tinha
feito a revolução de fevereiro.
A aristocracia financeira, que reinava na monarquia de julho, tinha no
Banco a sua catedral. Assim como a Bolsa administra o crédito público, o
Banco governa o crédito comercial.
Diretamente ameaçado pela revolução de fevereiro, não só em sua dominação,
mas em toda a sua existência, o Banco aplicou-se, desde o início, a
desacreditar a República generalizando a suspensão do crédito. Bruscamente
ele suspendeu todo crédito aos banqueiros e aos comerciantes. Como esta
manobra não provocou contrarrevolução imediata, o Banco dirigiu seu
contragolpe contra si próprio. Os capitalistas retiraram o dinheiro que
haviam depositado em seus porões. Os possuidores de notas de banco
precipitaram-se a suas caixas para trocá-las por ouro e dinheiro.
O Governo provisório podia, sem recorrer à violência, de maneira legal,
levar o Banco à falência; bastava-lhe manter uma atitude passiva e
abandonar o Banco a sua própria sorte. A bancarrota do Banco era o dilúvio
varrendo em um piscar de olhos do solo francês a aristocracia financeira,
o mais forte e o mais perigoso inimigo da República, o pedestal de ouro da
monarquia de julho. Uma vez em falência o Banco, a burguesia seria
obrigada a considerar como uma última tentativa desesperada de salvação a
criação pelo governo de um banco nacional e a subordinação do crédito
nacional ao controle da nação.
O Governo provisório, ao contrário; deu curso forçado às notas de banco.
Fez melhor ainda. Transformou todos os bancos de província em sucursais do
Banco da França, permitindo-lhe lançar sua rede sobre o país inteiro. Mais
tarde, comprometeu as florestas patrimoniais como garantia do empréstimo
feito com o Banco. Foi assim que a revolução de fevereiro consolidou e
expandiu diretamente a "bancocracia" que devia destruir.
Nesse meio tempo, o Governo provisório arrastava-se ante o pesadelo de um
déficit crescente. Era em vão que ele mendigava sacrifícios patrióticos.
Apenas os operários atiravam-lhe sua esmola. Era preciso recorrer a uma
medida heroica, a promulgação de um novo imposto. Mas sobre quem? Os lobos
da Bolsa, os reis do Banco, os credores do Estado, os capitalistas, os
industriais? Não era um modo de fazer a burguesia aceitar tranquilamente a
República. Era, por um lado, pôr em perigo o crédito do Estado e o crédito
do comércio, que se procurava, por outro lado, comprar ao preço de tão
grandes sacrifícios, de tão grandes humilhações. Mas era preciso que
alguém pagasse. E quem foi o sacrificado ao crédito burguês? O Jacques
Bonhomme, o camponês.
O Governo provisório estabeleceu um imposto adicional de quarenta e cinco
cêntimos por franco sobre os quatro impostos diretos. A imprensa
governamental tentou fazer crer ao proletariado de Paris que esse imposto
afetaria de preferência a grande propriedade imóvel, os donos do bilhão
outorgado pela Restauração. Mas, na realidade, o imposto atingiu antes de
tudo a classe camponesa, o que equivale à grande maioria do povo francês.
Foi ela quem teve que pagar as despesas da revolução de fevereiro, foi
nela que a contrarrevolução encontrou o seu principal apoio. O imposto de
quarenta e cinco cêntimos era uma questão de vida ou de morte para o
camponês francês; ele tornou-o uma questão de vida ou de morte para a
República. A República para o camponês da França foi, dali por diante, o
imposto de quarenta e cinco cêntimos; e, no proletariado de Paris, ele via
o esbanjador que se divertia às suas custas.
Enquanto a revolução de 1789 havia começado por liberar os camponeses dos
encargos feudais, a revolução de 1848 anunciava-se por um novo imposto
sobre a população rural, a fim de não pôr em perigo o capital e de
assegurar o funcionamento do mecanismo do Estado.
O único meio pelo qual o Governo provisório podia descartar-se de todos
esses inconvenientes e tirar o Estado do seu velho caminho era declarando
a bancarrota do Estado. É lembrado como na Assembleia Nacional Ledru-
Rollin foi tomado, tarde demais, de uma virtuosa indignação, declarando
que recusava essa sugestão do judeu bolsista Fould, tornado Ministro das
Finanças. Fould havia lhe estendido o fruto da árvore da sabedoria.
Reconhecendo as dívidas que a velha sociedade burguesa havia atirado sobre
o Estado, o Governo provisório recolheu-se à sua discrição. Ele se tornara
o devedor envergonhado da sociedade burguesa, em vez de se impor como o
credor que ameaçava e que tinha de recuperar os créditos revolucionários
remontando a muitos anos. Era-lhe necessário consolidar as relações
burguesas vacilantes para se liberar de obrigações que só podiam ser
cumpridas no quadro dessas relações. O crédito se tornou uma condição de
sua existência, e as concessões, as promessas feitas ao proletariado,
cadeias que ele precisava romper. Até mesmo a simples expressão
"emancipação dos trabalhadores" representava um perigo intolerável para a
nova República, porque era um protesto permanente contra o
restabelecimento da confiança que repousa no reconhecimento ininterrupto e
inalterável das relações econômicas de classes existentes. Era preciso
então romper com os operários.
A revolução de fevereiro tinha jogado o exército para fora de Paris. A
guarda nacional, ou seja, a burguesia em suas variadas nuances, constituía
a única força. Todavia, ela se sentia intimamente inferior ao
proletariado. Além disso, era obrigada, não sem opor-lhe a mais tenaz das
resistências, não sem criar centenas de obstáculos, a abrir pouco a pouco
suas fileiras para deixar entrar os proletários armados. Restava, então,
uma única saída: jogar uma parcela do proletariado contra a outra.
Com esse objetivo, o Governo provisório formou vinte e quatro batalhões de
proteção do território com mil homens cada um, compostos de jovens de
quinze a vinte anos. Eles pertenciam em sua maioria ao proletariado em
farrapos que, em todas as grandes cidades, constitui multidão nitidamente
distinta do proletariado industrial: celeiros de ladrões e criminosos, de
todos os tipos, dejetos vivos da sociedade, indivíduos sem profissão
legal, vadios, sem dignidade e sem teto, diferentes segundo o grau de
cultura da região à qual pertencem, mas apresentando sempre o caráter de
lazzaroni. Tendo se dado que o Governo provisório os recrutava muito
jovens, eles eram absolutamente influenciáveis e capazes dos maiores atos
de heroísmo e da mais exaltada abnegação, mas também dos atos do mais
sórdido banditismo e da venalidade mais infame. O Governo provisório
pagava-os à razão de um franco e cinquenta por dia, ou melhor, comprava-
os. Dava-lhes uma farda especial, ou seja, diferenciava-os exteriormente
dos operários em macacões. Como chefes foram-lhe dados oficiais retirados
do exército permanente, ou então chefes eleitos por eles próprios, jovens
filhos de burgueses cujas fanfarronices sobre a morte pela pátria e
devotamento à República os seduziam.
Era assim que ele tinha, face ao proletariado de Paris, um exército tirado
do seu próprio meio, forte, de vinte e quatro mil homens jovens, robustos,
de uma louca temeridade. O proletariado aclamou a garde mobile durante
suas marchas por Paris. Reconhecia nela os seus combatentes de vanguarda
sobre as barricadas. Considerava-a a guarda proletária, em oposição à
guarda nacional burguesa. Seu engano era perdoável.
Além da garde mobile, o governo decidiu ainda reunir em torno de si um
exército de operários industriais. Centenas de milhares de operários,
atirados na rua pela crise e pela revolução, foram recrutados pelo
Ministro Maríe para as pretensas oficinas nacionais. Sob este nome pomposo
dissimulava-se somente a ocupação de operários em trabalhos de aterro
fastidiosos, monótonos e improdutivos em troca de um salário de vinte e
três sous. Workhouses ingleses ao ar livre, eis o que eram essas oficinas
nacionais. E nada mais. O Governo provisório acreditou ter formado com
essas oficinas um segundo exército proletário contra os próprios
operários. Mas desta vez a burguesia se enganou sobre essas oficinas
nacionais, assim como os operários tinham se enganado sobre a garde
mobile. A burguesia havia criado um exército para a rebelião.
Contudo, um objetivo estava sendo atingido.
Oficinas nacionais, assim se chamavam as oficinas populares preconizadas
por Louis Blanc no Luxemburgo. As oficinas de Marie, concebidas em
oposição direta ao Luxemburgo, por sua insígnia comum deram lugar a
enredos cujos equívocos eram dignos dos valetes da comédia espanhola. O
Governo provisório, o próprio, espalhou secretamente o boato de que essas
oficinas nacionais eram uma invenção de Louis Blanc, o que parecia mais
crível visto ser Louis Blanc, o profeta das oficinas nacionais, membro do
Governo provisório. E na confusão armada, meio ingênua, meio
intencionalmente, pela burguesia parisiense, na opinião em que eram
artificialmente conservadas a França e a Europa, essas work-houses eram a
primeira realização do socialismo que, com elas, era atado ao pelourinho.
Não era pelo seu conteúdo, mas pelo seu título, que as oficinas nacionais
davam consistência ao protesto do proletariado contra a indústria
burguesa, contra o crédito burguês e contra a República burguesa. Foi
então que sobre as oficinas nacionais caiu todo o ódio da burguesia. Ela
havia encontrado ao mesmo tempo o ponto sobre o qual dirigir seu ataque,
uma vez suficientemente fortalecida para romper às claras com as ilusões
de fevereiro. Todo o mal-estar e todo o amargor dos pequenos burgueses se
voltaram no mesmo momento contra as oficinas nacionais, este alvo comum.
Era com verdadeiro furor que eles calculavam as somas absorvidas por
aqueles proletários preguiçosos enquanto a sua própria sorte se tornava a
cada dia mais intolerável. Uma mesada do Estado por um faz de conta de
trabalho, eis o que era o socialismo!, rosnavam eles de si para si. As
oficinas nacionais, os discursos do Luxemburgo, os desfiles dos operários
por toda a Paris, eis onde procuravam a causa de sua miséria. E ninguém
era mais fanatizado contra as pretensas maquinações dos comunistas do que
o pequeno burguês, desesperadamente empurrado para a bancarrota.
Assim, no corpo a corpo cada vez mais próximo entre a burguesia e o
proletariado, a primeira tinha em mãos todas as vantagens, todos os postos
decisivos, todas as camadas médias da sociedade, no momento exato em que
as ondas da revolução de fevereiro rebentavam sobre todo o continente; em
que cada mala do correio trazia um novo panfleto revolucionário, ora da
Itália, ora da Alemanha, ora dos confins do sudeste da Europa e alimentava
a embriagues geral do povo dando-lhe testemunhos contínuos de uma vitória
que ele havia já consumado.
Em 17 de março e 16 de abril tiveram lugar os primeiros combates dos
postos avançados da grande-luta de classes escondida sob as asas da
República burguesa.
17 de março revelou a situação equívoca do proletariado que não permitia
qualquer ato decisivo. Sua manifestação, nas origens, tinha por objetivo
reconduzir o Governo provisório ao caminho da revolução, conseguir, de
acordo com as circunstâncias, a exclusão dos seus membros burgueses e
exigir o adiamento da data das eleições para a Assembleia Nacional e para
a guarda nacional. Mas em 16 de março a burguesia, representada pela
guarda nacional, fez uma demonstração hostil ao Governo provisório. Aos
gritos de "Abaixo Ledru-Rollín!", ela marchou sobre a Prefeitura. E em 17
de março o povo foi obrigado a gritar "Vila LedruRollin!", "Viva o Governo
provisório!". Foi obrigado a tomar, contra a burguesia, o partido da
República burguesa cuja existência lhe parecia posta em questão. O povo
consolidou o governo em vez de derrotá-lo. O 17 de março levou ao
melodrama, e quando o proletariado de Paris exibiu uma vez mais, naquele
dia, o seu corpo gigantesco, a burguesia, a que fazia parte e a que não
fazia parte do Governo provisório, estava mais que resolvida a esmagá-lo.
Em 16 de abril o Governo provisório, em conivência com a burguesia, armou
uma confusão. Os operários estavam reunidos em grande número no Champ-de-
Mars e no hipódromo para preparar as eleições do estado maior da guarda
nacional. De repente, de uma ponta a outra de Paris, com a rapidez de um
raio, espalhou-se o boato de que os operários estavam reunidos com armas
no Champ-de-Mars, sob o comando de Louis Blanc, Blanqui, Cabet e Raspail,
para se dirigirem à Prefeitura, derrubar o Governo provisório e proclamar
um governo comunista. Soou o alerta geral. Ledru-Rollin, Marrast,
Lamartine disputaram mais tarde a honra desta iniciativa: em uma hora, cem
mil homens estão às armas, a Prefeitura ocupada em todos os pontos por
guardas nacionais; por toda a Paris ecoam os gritos de "Abaixo os
comunistas! Abaixo Louis Blanc, Blanqui, Raspail, Cabet!". Um mundo de
delegações vem trazer sua solidariedade ao Governo provisório, todos
prontos para salvar a pátria e a sociedade. Quando os operários surgem
enfim diante da Prefeitura para entregar ao Governo provisório uma coleta
patriótica feita no Champ-de-Mars, ficam sabendo, atônitos, que a Paris
burguesa, num simulacro de combate organizado com a maior seriedade,
guerreou a própria sombra.
O "terrível" atentado de 16 de abril forneceu o pretexto para a chamada do
exército de volta a Paris - real objetivo da comédia grosseiramente
montada -, assim como ensejou manifestações federalistas reacionárias na
província.
Em 4 de maio reuniu-se a Assembleia nacional saída das eleições gerais com
sufrágio universal direto. O sufrágio universal não tinha mais a virtude
mágica que lhe haviam atribuído os republicanos mais antigos. Em toda a
França, ou pelo menos na maior parte da França, os franceses viam os
cidadãos como tendo os mesmos interesses, o mesmo discernimento, etc.
Assim era o seu culto do povo. Mas em vez do povo imaginário, as eleições
têm por objetivo nítido o povo real, ou seja, os representantes das
diferentes classes nas quais ele se subdivide. Vimos por que camponeses e
pequenos burgueses tiveram que votar sob o comando da burguesia
inteiramente no ardor da luta e dos grandes proprietários impacientes pela
restauração. Mas se o sufrágio universal não era a miraculosa varinha
mágica pela qual bravos republicanos o haviam tomado, tinha o mérito,
infinitamente maior, de desencadear a luta de classes, de fazer com que as
diferentes camadas médias da sociedade pequeno-burguesa perdessem
rapidamente suas ilusões e suas decepções ante as provações da vida, de
alçar em um só golpe todas as frações da classe dos exploradores à cúpula
do poder e arrancar-lhes desta maneira as máscaras enganadoras, enquanto a
monarquia, com seu sistema censitário, só deixava se comprometerem
determinadas frações da burguesia e guardava as outras discretamente, nas
coxias, cingindo-as com a auréola de uma oposição comum.
Na Assembleia nacional constituinte que se reuniu em 4 de maio, os
republicanos burgueses, os republicanos do Nacional, comandaram. Os
legitimistas e os orleanistas não ousaram se mostrar primeiro senão sob a
máscara do republicanismo burguês. Era apenas em nome da República que
podia ser iniciada a luta contra o proletariado.
É de 4 de maio, e não de 25 de fevereiro, que data a República, melhor
dizendo, a República reconhecida pelo povo francês, e não a República
imposta pelo proletariado parisiense ao Governo provisório, não a
República das instituições sociais, não a imagem onírica que passava
diante dos olhos dos combatentes das barricadas. A República proclamada
pela Assembleia nacional, a única legítima, é a República que não é uma
arma revolucionária contra a ordem burguesa, que é sobretudo a
reconstituição política, a consolidação política da sociedade burguesa;
resumindo, a República burguesa. É o que se afirma em alto e bom som na
tribuna da Assembleia nacional. E toda a imprensa burguesa, tanto a
republicana quanto a antirrepublicana, faz coro.
E vimos como a República de fevereiro não era, na realidade, e nem poderia
ser, nada mais do que uma República burguesa; como, por outro lado, o
Governo provisório foi, por pressão direta do proletariado, obrigado a
proclamá-la uma República dotada de instituições sociais; como o
proletário parisiense já era capaz de ir além da República burguesa, de
outras formas que não em ideia, em imaginação; como, por todos os lugares
onde ele passava realmente à ação, era para prestar serviços a ela, à
República; como as promessas que lhe tinham sido feitas se tornavam um
perigo insuportável na nova República; e como toda a existência do Governo
provisório se reduzia a uma luta contínua contra as reivindicações do
proletariado.
Na Assembleia nacional, era a França inteira que se fazia juiz do
proletariado parisiense. Ela rompeu logo com as ilusões sociais da
revolução de fevereiro, proclamou prontamente a República burguesa e
apenas a República burguesa. Ela excluiu logo da comissão executiva que
nomeou os representantes do proletariado: Louis Blanc e Albert. Ela
rejeitou a proposta de um ministério especial do Trabalho. Ela recebeu com
uma tempestade de aplausos a declaração do ministro Trelat: "Não se trata
de outra coisa senão de fazer voltar o trabalho às suas antigas
condições".
Mas tudo isso não era suficiente. A República de fevereiro fora
conquistada pelos operários com a ajuda passiva da burguesia. Os
proletários se consideravam, com todo o direito, os vencedores de
fevereiro e tinham as pretensões arrogantes dos vencedores. Era preciso
que eles fossem vencidos nas ruas, era preciso mostrar-lhes que eles
sucumbiriam no momento em que lutassem, não com a burguesia, mas contra
ela. Assim como a República de fevereiro, com suas concessões socialistas,
precisou de uma batalha do proletariado unido à burguesia, contra a
monarquia, assim também uma segunda batalha se tornava necessária para
liberar a República de suas concessões socialistas, para pôr em relevo a
República burguesa, mostrá-la detendo oficialmente o poder. Era com armas
na mão que a burguesia devia recusar as reivindicações do proletariado. E
o verdadeiro local de nascimento da República burguesa não é a vitória de
fevereiro, é a derrota de junho.
O proletariado precipitou a decisão quando, em 15 de maio, invadiu a
Assembleia nacional, tentando em vão reconquistar sua influência
revolucionária, sem outro resultado senão o de levar seus decididos
líderes aos cárceres da burguesia. "É preciso acabar com isso!" Com este
grito a Assembleia nacional deu livre curso à sua resolução de forçar o
proletariado ao combate decisivo. A Comissão executiva promulgou uma série
de decretos provocativos, como a proibição de manifestações populares,
etc. Do alto da tribuna da Assembleia nacional constituinte, os operários
foram diretamente provocados, injuriados, hostilizados. Mas o ponto de
ataque, como vimos, continuavam sendo as oficinas nacionais. Foi pensando
nelas que a Assembleia constituinte indicou categoricamente à Comissão
executiva que só esperasse o momento de ouvir seu próprio projeto
transformado em ordem da Assembleia nacional.
A Comissão executiva começou tornando mais difícil a admissão às oficinas
nacionais, mudando o salário por dia em salário por produção, exilando em
Sologne os operários que não fossem nascidos em Paris, sob o pretexto de
fazer-lhes executar trabalhos de aterro. Esses trabalhos de aterro eram
apenas, na realidade, uma fórmula de retórica com a qual era preparado o
seu exílio, como operários já desiludidos ensinaram a seus camaradas.
Enfim, em 21 de junho, surgiu um decreto no Moniteur ordenando a demissão
brutal de todos os operários solteiros das oficinas nacionais ou seu
alistamento no exército.
Os operários não tinham mais escolha: ou morriam de fome ou começavam a
luta. Eles responderam, em 22 de junho, com a formidável insurreição onde
se deu a primeira grande batalha entre as duas classes que dividem a
sociedade moderna. Foi uma luta pela manutenção ou o extermínio da ordem
burguesa. Rasgava-se o véu que escondia a República.
Sabe-se que os operários, com uma coragem e um talento inigualáveis, sem
líderes, sem um plano comum, sem recursos, a maioria sem armas, fizeram
frente durante cinco dias ao exército, à garde mobile, à guarda nacional
que afluiu da província. Sabe-se que a burguesia se vingou de suas mortais
angústias com uma brutalidade espantosa e massacrou mais de três mil
prisioneiros.
Os representantes oficiais da democracia francesa estavam de tal maneira
presos à ideologia republicana que precisaram de várias semanas para
começar a suspeitar qual era o sentido do combate de junho. Ficaram como
que idiotizados com a nuvem de poeira na qual se esvaía a sua República
imaginária.
Quanto à impressão direta que a nova derrota de junho produziu em nós, o
leitor nos permitirá descrevê-la nos termos da Norva Gazeta Renana (Neue
Rheinische Zeitung):
"O último vestígio oficial da revolução de fevereiro, a Comissão
executiva, dissipou-se como um fantasma ante a gravidade dos
acontecimentos. Os foguetes luminosos de Lamartine se transformaram nos
fogos incendiários de Cavaignac. A fraternidade das classes antagonistas
em que uma explora a outra, essa fraternidade proclamada em fevereiro,
inscrita em grandes letras na testa de Paris, em cada prisão, em cada
caserna, sua verdadeira expressão, autêntica, prosaica, é a guerra civil,
a guerra civil em sua forma mais terrível, a guerra entre o trabalho e o
capital. Essa fraternidade resplandecia em todas as janelas de Paris, no
anoitecer de 25 de junho, quando a Paris burguesa brilhava, enquanto a
Paris proletária ardia, sangrava, agonizava. A fraternidade durou apenas o
tempo em que os interesses da burguesia eram irmãos dos interesses do
proletariado. Pedantes da velha tradição revolucionária de 1793, teóricos
socialistas, mendigando pelo povo junto à burguesia, e aos quais se
permitia pregar longas homilias e se comprometer por quanto tempo fosse
necessário a manter adormecido o leão proletário; republicanos que
reclamavam toda a antiga ordem burguesa, menos a cabeça coroada; gente da
oposição dinástica para quem o acaso substituía a derrubada de uma
dinastia pela troca de um ministério; legitimistas que desejavam não se
livrar de seus uniformes, mas mudar-lhes o corte... Estes eram os aliados
com os quais o povo fez o seu fevereiro. A revolução de fevereiro foi a
bela revolução, a revolução da simpatia geral, porque os antagonismos que
cintilaram, então, contra a realeza dormitavam, embrionários, lado a lado;
porque a luta social que fazia o seu segundo plano só havia adquirido uma
existência vaporosa, a existência da frase, do verbo. A revolução de junho
é a revolução odiosa, a revolução repugnante, porque a realidade tomou o
lugar do discurso, porque a República pôs a nu a cabeça do monstro,
derrubando a coroa que a protegia e ocultava. Ordem! Este era o grito de
guerra de Guizot. Ordem!, gritava Sebastiani, este Guizot em ponto menor,
quando Varsóvia se tornou russa. Ordem!, gritou Cavaignac, eco brutal da
Assembleia nacional francesa e da burguesia republicana. Ordem!,
trovejavam os tiros de metralha, despedaçando o corpo do proletariado.
Nenhuma das inúmeras revoluções da burguesia francesa depois de 1789 foi
um atentado contra a ordem, porque cada uma delas deixava subsistir a
dominação de classe, deixava subsistir a escravidão dos operários, deixava
subsistir a ordem burguesa, todas as vezes que foi modificada a forma
política dessa dominação e dessa escravidão. Junho veio causar danos a
essa ordem. Maldito seja junho!” (Neue Rheinische Zeitung, 29 de junho de
1848).
Maldito seja junho!, repete o eco da França.
Foi a burguesia quem levou o proletariado à insurreição de junho. Daí a
sua condenação. Suas reconhecidas necessidades imediatas não o impeliam ao
desejo de obter pela violência a queda da burguesia, ele não possuía ainda
capacidade para tal tarefa. O Moniteur precisou ensinar-lhe oficialmente
que os tempos não eram mais aqueles que a República julgava, a propósito
de prestar homenagens às suas ilusões; somente a derrota o persuadiu
quanto a essa verdade de que a menor melhoria de sua situação continuava a
ser uma utopia no seio da República burguesa, utopia que se transforma em
crime no momento em que queira se tornar real. Suas reivindicações,
excessivas pela forma, pueris pelo conteúdo - e por isso mesmo ainda
burguesas -, com as quais ele queria arrancar a permissão para a revolução
de fevereiro, foram substituídas pela audaciosa palavra de ordem da luta
revolucionária: Derrubada da burguesia! Ditadura da classe operária!
Fazendo de sua sepultura o berço da República burguesa, o proletariado
forçou essa mesma República burguesa a aparecer imediatamente sob sua
forma pura como o Estado cujo confessado objetivo é o de eternizar a
denominação do capital, a escravidão do trabalho. Os olhos sempre fixos no
inimigo coberto de cicatrizes, implacável e invencível - porque sua
existência, para ele, é a condição de sua própria vida, para ela - a
dominação burguesa, liberada de qualquer entrave, devia se transformar
imediatamente em terrorismo burguês. Uma vez o proletariado afastado da
cena, e a ditadura da burguesia oficialmente reconhecida, as camadas
médias da sociedade burguesa, a pequena burguesia e a classe camponesa, à
medida que sua situação se tornava mais insuportável e sua oposição à
burguesia mais rude, se aliariam cada vez mais ao proletariado. A causa de
sua miséria elas haviam encontrado no seu progresso; deviam encontrá-la
agora na sua derrocada.
Quando a insurreição de junho fortaleceu, em todo o continente, a
segurança da burguesia e levou-a a se aliar abertamente à realeza feudal
contra o povo, quem foi a primeira vítima dessa união? A própria burguesia
continental. A derrota de junho impediu-a de assegurar sua dominação e de
fazer o povo parar, meio satisfeito, meio descontente, no nível mais baixo
da revolução burguesa.
Enfim, a derrota de junho revelou às potências despóticas da Europa um
segredo: a França tinha, custasse o que custasse, que manter a paz no
exterior para poder levar ao interior a guerra civil. Assim os povos que
tinham começado a luta por sua independência nacional foram entregues à
supremacia da Rússia, da Áustria e da Prússia, mas, ao mesmo tempo, essas
revoluções nacionais cujo destino foi subordinado ao da revolução
proletária foram privadas de sua aparente autonomia, de sua independência
face à grande subversão social. O húngaro não deve ser livre, nem o
polonês, nem o italiano, enquanto o operário continuar escravo!
Enfim, as vitórias da Santa Aliança deram à Europa uma forma tal que
qualquer novo levante proletário na França será imediatamente o sinal de
uma guerra mundial. A nova revolução francesa será obrigada a abandonar
logo o terreno nacional e a conquistar o terreno europeu, o único onde
poderá levá-lo a revolução social do século XIX. Então, foi apenas pela
derrota de junho que foram criadas as condições que permitiram à França
tomar a iniciativa da revolução europeia. Foi apenas banhada pelo sangue
dos insurrectos de junho que a bandeira tricolor se tornou a bandeira da
revolução europeia, a bandeira vermelha.
E nós gritamos: A revolução está morta! Viva a revolução!

II
De junho de 1848 a 13 de junho de 1849

O 25 de fevereiro de 1848 deu a República à França, o 25 de junho impôs-


lhe a revolução. Depois de junho, revolução queria dizer: derrubada da
sociedade burguesa, quando, antes de fevereiro, a palavra significava:
derrubada da forma de Estado.
O combate de junho tinha sido dirigido pela fração republicana da
burguesia; com a vitória, o poder do Estado voltou-lhe necessariamente às
mãos. O estado de sítio colocava Paris a seus pés, sem resistência, e nas
províncias reinava um estado de sítio moral, a arrogância da vitória cheia
de ameaçadora brutalidade e o amor fanático da propriedade desencadeada
entre os camponeses. Perigo à vista!
Assim como o poder revolucionário dos operários, desmoronou-se a
influência política dos republicanos democratas, melhor dizendo, dos
republicanos no sentido pequeno-burguês, representados na Comissão
executiva por Ledru-Rollin, na Assembleia nacional constituinte pelo
partido de La Mantagne, na imprensa por La Réjorme. Em acordo com os
republicanos burgueses, em 16 de abril eles haviam conspirado contra o
proletariado; durante as jornadas de junho, tinham combatido juntos.
Assim, eles próprios destruíam o plano de fundo no qual o seu partido se
delineava como uma força, porque a pequena burguesia só pode manter uma
posição revolucionária face à burguesia quando tem o proletariado atrás de
si. Eles foram dispensados. O simulacro de aliança, feita com eles a
contragosto, de forma dissimulada, na época do Governo provisório e da
Comissão executiva, foi rompido publicamente pelos republicanos burgueses.
Desprezados e repelidos enquanto aliados, eles desceram ao nível inferior
de meros satélites dos republicanos tricolores dos quais não podiam
extrair qualquer concessão, mas cuja dominação eram abrigados a apoiar
todas as vezes que esta dominação, e com ela a própria República, parecia
posta em questão pelas frações antirrepublicanas da burguesia. Essas
frações, enfim, os orleanistas e os legitimistas, se achavam desde o
início em minoria na Assembleia nacional constituinte. Antes das jornadas
de junho, elas não ousavam reagir por si próprias a não ser sob a máscara
do republicanismo burguês. A vitória de junho levou Cavaignac a ser
saudado, por uns instantes, como o salvador de toda a França burguesa, e
quando, logo após as jornadas de junho, o partido antirrepublicano
recuperou sua independência, a ditadura militar e o estado de sítio em
Paris não lhe permitiram pôr para fora suas antenas a não ser muito
timidamente e com prudência.
Desde 1830, a fração republicana da burguesia, seus - escritores, seus
porta-vozes, suas "capacidades", seus deputados, generais, banqueiros e
advogados, se haviam unido em torno de um jornal parisiense, o National,
que tinha edições secundárias na província. O grupo do National era a
dinastia da República tricolor. Ele se apoderou imediatamente de todas as
funções públicas, dos ministérios, da Diretoria Geral de Polícia, dos
cargos de prefeito, dos postos mais elevados tornados vagos no exército. A
frente do poder executivo estava o seu general, Cavaignac. Seu redator-
chefe, Marrast, se tornou o presidente permanente da Assembleia nacional
constituinte. Ao mesmo tempo, em seus salões, mestre de cerimônia, ele
fazia as honras da República legal.
Até mesmo os escritores franceses revolucionários, por uma espécie de
pudor, ante a tradição republicana, deram crédito ao erro de que os
monarquistas tinham predominado na Assembleia nacional constituinte.
Depois das jornadas de junho, ao contrário, a Assembleia constituinte
ficou sendo a representação exclusiva do republicanismo burguês, e este
aspecto se firma cada vez mais decididamente à medida que desmoronava a
influência dos republicanos tricolores fora da Assembleia. Tratava-se de
defender a forma da República burguesa, eles dispunham dos votos dos
republicanos democratas; tratava-se de seu conteúdo, seu próprio modo de
falar não os distinguia mais das frações burguesas monarquistas, porque
são precisamente os interesses da burguesia, as condições materiais de sua
dominação e de sua exploração de classe que formam o conteúdo da República
burguesa.
Não era pois a monarquia, mas o republicanismo que se realizava na vida e
nos atos dessa Assembleia constituinte que acabou, não por morrer ou por
ser morta, mas por começar a apodrecer.
Durante todo o período de sua dominação, enquanto ela representava no
palco o morceau de bravoure do galã, acontecia no segundo plano um
holocausto ininterrupto: condenações em série, segundo a lei marcial, dos
insurrectos de junho feitos prisioneiros ou sua deportação sem julgamento.
A Assembleia constituinte teve o tato de reconhecer que nos insurrectos de
junho não eram os criminosos que ela julgava, mas os inimigos que ela
esmagava.
O primeiro ato da Assembleia nacional constituinte foi a constituição de
uma comissão de inquérito sobre os acontecimentos de junho e de 15 de maio
e sobre a participação dos líderes dos partidos Socialista e Democrata
naqueles dias. O inquérito era dirigido, diretamente, contra Louis Blanc,
Ledru-Rollin e Caussidiére. Os republicanos burgueses ardiam de
impaciência para se livrarem desses rivais. Eles não podiam confiar a
execução de sua vingança a alguém mais qualificado que Monsieur Odilon
Barrot, o antigo líder da oposição dinástica, o liberalismo em forma de
homem, a "nulidade grave", a mediocridade inata; ele não tinha somente uma
dinastia a vingar, mas contas a exigir dos revolucionários por uma
presidência de ministério perdida, garantia certa de sua inflexibilidade.
Foi então esse Barrot quem foi nomeado presidente da comissão de
inquérito, e ele formou peça por peça, contra a revolução de fevereiro, um
processo completo que pode ser resumido assim: 17 de março, manifestação;
16 de abril, complô; 15 de maio, atentado; 23 de junho, guerra civil! Por
que não estendeu ele suas sábias pesquisas até 24 de fevereiro? O Journal
de débats deu a resposta: 24 de fevereiro é a "fundação de Roma"! A origem
dos Estados se perde em um mito no qual se deve crer sem discussão. Louis
Blanc e Caussidière foram entregues aos tribunais. A Assembleia nacional
consumava a sua própria purificação, por ela começada em 15 de maio.
O projeto de imposto do capital, concebido pelo Governo provisório e
retomado por Goudchaux - sob a forma de imposto hipotecário -, foi
rejeitado pela Assembleia constituinte; a lei que limitava a dez horas o
tempo de trabalho foi revogada, a prisão por dívidas foi restabelecida. A
maior parte da população francesa, a que não sabia ler nem escrever, foi
impedida de ser admitida no júri. Por que não também o direito de voto? A
caução para os jornais foi restabelecida, o direito de associação
restrito.
Mas em sua pressa de restituir às antigas relações burguesas as antigas
garantias, e de fazer desaparecerem todos os traços deixados pelas ondas
revolucionárias, os republicanos burgueses foram de encontro a uma
resistência cuja ameaça constituía um perigo inesperado.
Ninguém, nas jornadas de junho, havia lutado mais fanaticamente pela
salvaguarda da propriedade e pelo restabelecimento do crédito do que os
pequenos burgueses parisienses, proprietários de cafés, donos de
restaurantes, negociantes de vinho, pequenos comerciantes, lojistas,
artesãos, etc. Juntando todas as suas forças, a loja havia marchado contra
a barricada para restabelecer a circulação que leva da rua à loja. Mas,
por trás da barricada, havia os clientes e os devedores; diante dela, os
credores da loja. E quando as barricadas foram derrubadas e os operários
esmagados, quando os guardiães dos magazines, na embriaguês da vitória, se
precipitaram de novo para as suas lojas, encontraram as entradas impedidas
por um salvador da propriedade, um agente oficial do crédito que lhes
apresentava seus títulos cominatórios: letra vencida, prazo vencido,
promissória vencida, loja em baixa, lojista em baixa.
Salvaguarda da propriedade! Mas a casa em que eles moravam não era
propriedade sua, a loja que eles guardavam não era propriedade sua, as
mercadorias que eles vendiam não eram propriedade sua. Nem seu comércio,
nem o prato em que eles comiam, nem a cama onde eles dormiam tampouco lhes
pertenciam. Era justamente face a eles que se tratava de salvar essa
propriedade, em proveito do proprietário que havia alugado a casa, do
banqueiro que havia descontado a letra, do capitalista que havia feito os
adiantamentos em dinheiro, do fabricante que havia confiado a esses
lojistas as mercadorias para serem vendidas, do grande comerciante que
havia dado a esses artesãos o crédito pelas matérias-primas.
Restabelecimento do crédito! Mas, uma vez consolidado, o crédito se
mostrou um deus ativo e cheio de zelo, precisamente atirando para fora de
suas quatro paredes o devedor insolvente com sua mulher e seus filhos,
entregando sua pretensa fortuna ao capital e levando à prisão por dívidas
aquele que se tinha erguido de novo, ameaçador, sobre os cadáveres dos
insurrectos de junho.
Os pequenos burgueses se deram conta, apavorados, que se tinham entregado
sem resistência nas mãos de seus credores ao esmagarem os operários. Sua
bancarrota, crônica desde fevereiro e aparentemente ignorada, foi
declarada pública depois de junho.
Tinham-lhes deixado sua propriedade nominal apenas o tempo de serem
atirados no campo de batalha em nome da propriedade. Agora que se tinha
acertado o grande assunto do proletariado, podia-se acertar igualmente,
por sua vez, a pequena conta do merceeiro. Em Paris, o total de títulos
vencidos somava mais de vinte e um milhões de francos; nas províncias,
mais de onze milhões. Os titulares de arrendamentos comerciais de mais de
sete mil casas parisienses não haviam pago seu aluguel depois de
fevereiro.
Se a Assembleia nacional tinha feito um inquérito sobre a dívida política
remontando a fevereiro, os pequenos burgueses pediam agora, por seu lado,
um inquérito sobre as dívidas civis até 24 de fevereiro. Eles se uniram em
massa no hall da Bolsa e, para cada comerciante capaz de provar que não
tinha falido por outra razão que não fosse em consequência da interrupção
dos negócios, provocada pela revolução de fevereiro, e que seus negócios
iam bem em 24 de fevereiro, eles exigiam com ameaças uma prorrogação de
seus prazos de vencimento por um julgamento do tribunal de comércio e a
obrigação de liquidar seu crédito com um juro moderado. A Assembleia
nacional discutiu essa questão e fez uma proposta de lei, sob a forma de
concordata amigável. A Assembleia hesitou quando soube, de repente, que
naquele mesmo instante, na porta Saint-Denis, milhares de mulheres e
filhos dos insurrectos preparavam uma petição em favor da anistia.
Ante o espectro ressuscitado de junho, os pequenos burgueses tremeram e a
Assembleia se mostrou implacável. As concordatas amigáveis entre o credor
e o devedor foram rejeitadas em seus pontos essenciais.
Depois que os representantes republicanos da burguesia, no seio na
Assembleia, repeliram os representantes democráticos dos pequenos
burgueses, essa ruptura parlamentar tomou seu real sentido econômico
burguês pelo fato de que os pequenos burgueses devedores foram entregues
aos burgueses credores. Grande parte dos primeiros ficaram completamente
arruinados; quanto aos outros, só foram autorizados a continuar seu
comércio sob condições que os tornavam servos dependentes do capital. Em
22 de outubro de 1848, a Assembleia nacional rejeitava as concordatas
amigáveis; em 19 de setembro de 1848, em pleno estado de sítio, o príncipe
Luís Bonaparte e o detento de Vincennes, o comunista Raspail, eram eleitos
representantes de Paris. Quanto à burguesia, ela elegeu o banqueiro judeu
e orleanista Fould. Assim, de todos os lados e ao mesmo tempo, havia
declaração de guerra pública à Assembleia nacional constituinte, ao
republicanismo burguês, a Cavaignac.
Não é necessário explicar longamente como a bancarrota em massa dos
pequenos burgueses parisienses teve repercussões que se estenderam
bastante para além do círculo daqueles que por ela foram atingidos
diretamente, e como ela abalou forçosamente, mais uma vez, o comércio
burguês. No entanto, o déficit público aumentava ainda mais com as
despesas ocasionadas pela insurreição de junho e porque as receitas do
Estado baixavam constantemente com a interrupção da produção, a redução do
consumo e as restrições à importação. Cavaignac e a Assembleia nacional
não podiam recorrer a outro meio que não fosse um novo empréstimo que os
colocava mais ainda sob o jugo da aristocracia financeira.
Se os pequenos burgueses tinham colhido como frutos da vitória de junho a
bancarrota e a liquidação judiciária, por outro lado, os janízaros de
Cavaignac, as gardes mobiles, tiveram sua recompensa nos doces braços das
meretrizes, e os "jovens salvadores da sociedade" receberam homenagens de
toda espécie nos salões de Marrast, o cavalheiro dos tricolores que
representava o duplo papel de anfitrião e de trovador da República legal.
No entanto, as preferências da sociedade pelos gardes mobiles e seu soldo
incomparavelmente mais elevado exasperavam o exército, ao mesmo tempo que
desabrochavam todas as ilusões nacionais pelas quais o republicanismo
burguês, com seu jornal Le National tinha sabido captar sob Luís-Filipe
uma parcela do exército e da classe camponesa. O papel de mediador que
representavam Cavaignac e a Assembleia nacional na Itália do Norte para
entregá-la à Áustria, em acordo com a Inglaterra - este único momento de
poder anulou dezoito anos de oposição do National. Nenhum governo foi
menos nacional que o do National, mais dependente da Inglaterra, enquanto
que sob Luís-Filipe ele vivia da paráfrase diária da divisa de Catão:
Carthaginem esse delendam; nenhum outro mais servil frente à Santa-
Aliança, enquanto que para um Guizot ele tinha pedido que se rasgassem os
tratados de Viena. A ironia da história fez de Bastide, o ex-redator de
política estrangeira do National, o Ministro de Negócios Estrangeiros da
França, a fim de que ele desmentisse cada um de seus artigos com cada um
de seus despachos.
Por um instante o exército e a classe camponesa tinham acreditado que a
ditadura militar poria ao mesmo tempo na ordem do dia francesa a guerra
com o estrangeiro e a "glória". Mas Cavaignac não era a ditadura do sabre
sobre a sociedade burguesa, calou a ditadura da burguesia pelo sabre. E,
em matéria de soldado, no momento bastava-lhe o gendarme. Cavaignac
escondia sob os traços severos da resignação antirrepublicana o deprimido
servilismo às condições humilhantes de seu cargo burguês. O dinheiro não
tem dono! Como a Assembleia constituinte, ele idealizava esse velho refrão
do terceiro estado transpondo-a para a linguagem política: a burguesia não
tem rei, a verdadeira forma de sua dominação é a República.
Elaborar essa forma, fazer uma Constituição republicana, eis em que
consistiu a "grande obra orgânica" da Assembleia nacional constituinte.
Mudar os nomes do calendário cristão para transformá-lo em um calendário
republicano, trocar São Bartolomeu por São Robespierre muda tanto o tempo
ou o vento quanto essa Constituição modificava ou deveria modificar a
sociedade burguesa. Quando ela foi além da mera mudança de costumes, foi
para legalizar fatos já existentes. Foi assim que ela registrou
solenemente a existência da República, a existência do sufrágio universal,
a existência de uma única Assembleia nacional soberana, em lugar de duas
Câmaras constitucionais com poderes limitados. Foi assim que ela registrou
e regularizou a ditadura de Cavaignac, substituindo a realeza hereditária
estabelecida, irresponsável, por uma legalidade eletiva, móvel,
responsável, uma presidência de quatro anos. Foi assim que ela chegou até
a transformar em lei constitucional os poderes extraordinários com os
quais a Assembleia nacional havia, por precaução, munido seu presidente,
após os horrores de 15 de maio e de 25 de junho, no interesse de sua
própria segurança. O resto da Constituição foi caso de terminologia.
Arrancou-se das embalagens da antiga realeza as etiquetas monarquistas e
colou-se etiquetas republicanas. Marrast, o antigo redator-chefe do
National, transformado agora em redator-chefe da Constituição,
desincumbiu-se, não sem talento, dessa tarefa acadêmica.
A Assembleia constituinte parecia aquele funcionário chileno que queria
terminar os relatórios da propriedade imóvel com a regulamentação do
cadastro no exato momento em que os sons subterrâneos anunciavam a erupção
vulcânica que projetaria ao longe o chão sob os seus pés. Enquanto, em
teoria, ela marcava no compasso as formas nas quais se exprimia
republicanamente a dominação da burguesia, na realidade só se mantinha
pela abolição de todas as fórmulas, pela força sem palavras, pelo estado
de sítio. Dois dias antes de iniciar sua obra constitucional, ela
proclamou seu prolongamento. Até então, faziam-se e adotavam-se
constituições desde que o processo de agitação social tivesse chegado a um
ponto de estagnação, desde que as relações novamente formadas entre as
classes se tivessem consolidado, desde que as frações rivais da classe no
poder tivessem chegado a um acordo que lhes permitisse continuar a luta
entre si ao mesmo tempo que dela excluíam a massa do povo enfraquecido.
Essa Constituição, ao contrário, não sancionava qualquer revolução social,
sancionava a vitória momentânea da velha sociedade sobre a revolução.
No primeiro projeto de Constituição, redigido antes dos dias de junho,
encontrava-se ainda o "direito ao trabalho", primeira fórmula desajeitada
onde se resumem as exigências revolucionárias do proletariado. O direito
foi transformado em assistência: qual o Estado moderno que não ampara, de
uma maneira ou de outra, os seus indigentes? O direito ao trabalho é, no
sentido burguês, um contrassenso, um desejo vão, digno de piedade; mas por
trás do direito ao trabalho há o poder sobre o capital, a apropriação dos
meios de produção, sua subordinação à classe operária associada, ou seja,
a supressão do assalariado, do capital e de suas relações recíprocas, Por
trás do "direito ao trabalho" havia a insurreição de junho. Essa
Assembleia constituinte que, na verdade, colocava o proletário
revolucionário à margem da lei, era forçada a rejeitar por princípio uma
fórmula da Constituição, a lei das leis, de lançar seu anátema sobre o
"direito ao trabalho". Ela não ficou nisso. Assim como Platão bania de sua
República os poetas, ela baniu da sua, para sempre, o imposto progressivo.
Ora, o imposto progressivo não é apenas uma medida burguesa realizável no
seio das relações de produção existentes em uma escala mais ou menos
ampla; é também o único modo de ligar as camadas médias da sociedade
burguesa à República "legal", de reduzir a dívida pública e de levar ao
fracasso a maioria antirrepublicana da burguesia.
Por ocasião das concordatas amigáveis, os republicanos tricolores tinham
sacrificado a pequena burguesia à vontade. Eles elevaram esse fato isolado
à altura de um princípio interditando legalmente o imposto progressivo.
Colocaram no mesmo plano a reforma burguesa e a revolução proletária. Mas
que classe ficava como sustentáculo dessa República? A grande burguesia.
Ora, ela era antirrepublicana, E, se explorava os republicanos do National
para consolidar as antigas condições de vida econômica, ela pensava por
outro lado explorar as condições sociais fortalecidas para restaurar as
formas políticas que lhe eram adequadas. Desde o início de outubro,
Cavaignac se viu obrigado a fazer de Dufaure e de Vivien, antigos
ministros de Luís-Filipe, ministros da República, apesar dos rancores e do
clamor dos puritanos sem cérebro de seu próprio partido.
Enquanto que a Constituição tricolor rejeitava todo compromisso com a
pequena burguesia e não sabia trazer qualquer novo elemento da sociedade à
nova forma de Estado, ela se apressava, por outro lado, em levar sua
inviolabilidade tradicional a um ponto em que o antigo Estado encontrava
seus defensores mais ardorosos e mais fanáticos: ela elevou a
inamovibilidade de seus juízes, posta em questão pelo Governo provisório,
ao nível de lei constitucional. O rei que ela havia destronado
ressuscitava às centenas nesses inquisidores inamovíveis da legalidade.
A imprensa francesa discutiu muito sobre as contradições da Constituição
de Monsieur Marrast; por exemplo, a justaposição de dois soberanos, a
Assembleia nacional e o presidente, etc. etc.
Então, a principal contradição dessa Constituição consiste no seguinte: as
classes cuja escravidão social ela perpetuava - proletariado, camponeses,
pequenos burgueses - receberam dela o poder político com o sufrágio
universal; e à burguesia, cujo antigo poder social ela sancionou, retirou
as garantias políticas de tal poder. Ela estreita sua dominação política
em condições democráticas que ajudam a cada instante as classes inimigas a
obter a vitória e que põem em questão os próprios fundamentos da sociedade
burguesa. A umas, ela pede que não procurem sua emancipação política até a
emancipação social; a outras, que não abandonem a restauração social pela
restauração política.
Essas contradições pouco importavam aos republicanos burgueses. À medida
que eles deixam de ser indispensáveis (e eles apenas foram indispensáveis
como campeões da velha sociedade contra o proletariado revolucionário),
logo algumas semanas depois de sua vitória, eles caíam do nível de partido
para o de "igrejinha". Quanto à Constituição, eles a tratavam como uma
grande manobra. O que era preciso constituir nela era, antes de tudo, o
domínio da "igrejinha". O presidente devia prolongar em sua pessoa os
poderes de Cavaignac e a Assembleia legislativa prolongar os da
Constituição. Eles esperavam reduzir o poder político das massas populares
a uma imitação de poder e pensavam jogar o suficiente com essa aparência
de poder para erguer continuamente por sobre a cabeça da maioria burguesa
o dilema das jornadas de junho: ou o reinado do National ou o reinado da
anarquia.
A obra constitucional iniciada em 4 de setembro foi terminada em 23 de
outubro. Em 2 de setembro, a Constituinte tinha decidido não se dissolver
antes de haver promulgado as leis orgânicas que completavam a
Constituição. Entretanto, decidiu pôr no mundo a sua própria criação, o
presidente, logo em 10 de dezembro, bem antes de terminar o período de sua
atividade. Assim estaria ela certa de saudar no homúnculo da Constituição
o filho de sua mãe. Por precaução, dispôs-se que, se nenhum dos candidatos
obtivesse dois milhões de votos, a eleição passaria da nação à
Constituinte.
Precauções inúteis. O primeiro dia da entrada em vigor da Constituição foi
o último dia da Constituinte. Ela procurava o "filho de sua mãe" e
encontrou o "sobrinho de seu tio". Saul Cavaignac fora derrotado seis
vezes.
10 de dezembro de 1848 foi o dia da revolta camponesa. Apenas desse dia
data o fevereiro dos camponeses franceses. O símbolo que exprimia sua
entrada no movimento revolucionário, desajeitado e matreiro, vilão
ingênuo, grosseiro e sublime, uma superstição calculada, o burlesco
patético, um anacronismo genial e estúpido, o travesso da história
mundial, hieróglifo indecifrável pela razão; ele simbolizava até a
confusão a fisionomia da classe que representa a barbárie no seio da
civilização. A República se tinha anunciado a essa classe pelo porteiro;
ela se anunciou à República pelo Imperador. Napoleão era o único homem a
representar realmente os interesses, e a imaginação da nova classe
camponesa que 1789 tinha criado. Ao escrever seu nome na fachada da
República, ela declarava guerra ao estrangeiro e reivindicava seus
interesses de classe ao interior. Napoleão não era um homem para os
camponeses, mas um programa. Foi com bandeiras e ao som da música que eles
foram às urnas, aos gritos de "Chega de impostos, abaixo os ricos, abaixo
a República, viva o imperador!" Por trás do imperador se escondia a
jacquerie. A República que eles derrotavam com seus votos era a República
dos ricos.
10 de dezembro foi o golpe de Estado dos camponeses que derrubava o
governo existente. E a partir desse dia em que eles surpreenderam e deram
um governo à França, seus olhos ficaram obstinadamente fixados sobre
Paris. Por um momento heróis ativos do drama revolucionário, eles não
podiam ser mais relegados ao papel passivo e servil de membros do coro.
As outras classes contribuíram para completar a vitória eleitoral dos
camponeses. A eleição de Napoleão era para o proletariado a destituição de
Cavaignac, a queda da Constituinte, a demissão dos republicanos burgueses.
Para a pequena burguesia, Napoleão era a supremacia do devedor sobre o
credor. Para a maioria da grande burguesia a eleição de Napoleão era a
ruptura aberta com a fração da qual fora preciso se servir por algum
tempo, mas que se tornara insuportável desde que tentou fazer de sua
posição momentânea uma posição constitucional. Napoleão no lugar de
Cavaignac era a monarquia no lugar da República, o início da restauração
monarquista, os dOrléans aos quais se faziam tímidas alusões, a flor-de-
lis escondida sob a violeta. O exército, enfim, votou a favor de Napoleão
contra a garde mobile, contra o idílio da paz, a favor da guerra.
Foi assim que aconteceu, como dizia a Neue Rheinische Zeitung, de o homem
mais simples da França adquirir a mais complexa importância. Precisamente
por não ser nada ele podia sígnífícar tudo, menos ele próprio. Entretanto,
por mais diferente que pudesse ser o sentido do nome de Napoleão na boca
das diferentes classes, cada uma delas escreveu com seu nome em sua
cédula: "Abaixo o partido do Nacional, abaixo Cavaignac, abaixo a
Constituinte, abaixo a República, burguesa!" O ministro Dufaure declarou
publicamente à Assembleia constituinte: "O 10 de dezembro é um segundo 24
de fevereiro."
Pequena burguesia e proletariado tinham votado "em bloco" a favor de
Napoleão, a fim de votar contra Cavaignac e arrancar da Constituinte a
decisão final pela união de seus sufrágios. No entanto, a parcela mais
avançada dessas duas classes apresentou seus próprios candidatos. Napoleão
era o nome comum de tonos os partidos coligados contra a República
burguesa. Ledru-Rollin e Raspail eram os nomes naturais, o primeiro da
pequena burguesia democrática, o segundo do proletariado revolucionário.
Os votos a favor de Raspail - os proletários e seus porta-vozes o
declararam bem alto - deviam ser uma simples demonstração: tanto de
protesto contra qualquer presidência, ou seja, contra a própria
Constituição, quanto de votos contra Ledru-Rollin, o primeiro ato com o
qual o proletariado se destacava, enquanto partido político independente,
do Partido Democrático. Este partido, por outro lado, - a pequena
burguesia democrática e sua representação parlamentar, La Montagne -
tratava a candidatura de Ledru-Rollin com toda seriedade, toda solenidade
que ele costumava empregar para enganar a si próprio. Esta foi, aliás, sua
última tentativa de se impor diante do proletariado como partido
independente. Não somente o partido burguês republicano, mas a pequena
burguesia democrática e sua Montagne, foram derrotados em 10 de dezembro.
A França possuía agora, ao lado de uma Montagne, um Napoleão. Prova que
tanto um quanto outro não passavam de uma caricatura sem vida das grandes
realidades cujos nomes eles portavam. Luís-Napoleão com o chapéu de
imperador e a águia, parodiava tão miseravelmente o antigo Napoleão quanto
La Montagne, com suas frases tomadas emprestadas de 1793 e suas posturas
demagógicas, parodiava o antigo Montagne. Assim, a superstição tradicional
com relação a 1793 foi destruída ao mesmo tempo que aquela com relação a
Napoleão. A revolução só chegou a ter personalidade própria depois de ter
conquistado um nome original; e ela só pôde fazê-lo após ter feito surgir,
imperiosa, no primeiro plano, a classe revolucionário moderna, o
proletariado industrial. Pode-se dizer que o 10 de dezembro já
desconcertava La Montagne e o levava a duvidar de sua própria sanidade,
porque ele rompia, rindo de uma medíocre farsa camponesa, a analogia
clássica com a antiga revolução. Em 20 de dezembro, Cavaignac abandonou
suas funções e a Assembleia constituinte proclamou Luís-Napoleão
presidente da República. Em 19 de dezembro, último dia de sua onipotência,
a Assembleia rejeitou a proposta de anistia em favor dos insurrectos de
junho. Desaprovar o decreto de 27 de junho, com o qual ela havia condenado
à deportação quinze mil insurrectos, escamoteando toda a sentença
judiciária, não era desaprovar a própria batalha de junho?
Odilon Barrot, o último ministro de Luís-Filipe, foi o primeiro ministro
de Luís-Napoleão. Assim como Luís Napoleão não considerou o 10 de dezembro
como o dia de seu poder, e sim o senatus consulte de 1806, ele encontrou
um presidente do Conselho que não considerava o 20 de dezembro como a data
do seu ministério, e sim o decreto real de 24 de fevereiro. Como herdeiro
legítimo de Luís-Filipe, Luís-Napoleão atenuou a troca de governo
conservando o antigo ministério que, de resto, não havia tido tempo de se
desgastar, pois não havia tido tempo de nascer.
Os líderes das frações burguesas monarquistas aconselharam Luís-Napoleão a
tomar tal atitude. A liderança da antiga oposição dinástica, que tinha
feito inconscientemente a transição rumo aos republicanos do National,
estava ainda mais qualificada para formar, com plena consciência, a
transição da República burguesa rumo à monarquia.
Odilon Barrot era o líder do único partido antigo da oposição que não se
havia ainda desgastado na luta sempre vã por um título ministerial. Em uma
sucessão rápida, a revolução projetou todos os antigos partidos de
oposição na cúpula do Estado, a fim de que eles fossem forçados a negar e
a renegar, não somente em atos, mas até mesmo em palavras, suas antigas
formulações e, reunidos todos em uma mistura repugnante, fossem finalmente
atirados na lixeira da história. E nenhuma apostasia foi poupada por esse
Barrot, essa personificação do liberalismo burguês que, durante dezoito
anos, havia ocultado o vazio miserável de seu espírito por trás de
atitudes de simulada gravidade. Se, em certos momentos, o contraste por
demais chocante entre os espinhos do presente e os louros do passado o
assustava, uma olhadela no espelho devolvia-lhe a postura ministerial e a
admiração bem humana por sua própria pessoa. O que se refletia no espelho
era Guizot, a quem tinha sempre invejado e que o tinha sempre dominado, o
próprio Guizot, com a testa olímpica de Odilon. O que ele não via eram as
orelhas de Midas.
O Barrot de 24 de fevereiro somente se revelou no Barrot de 20 de
dezembro. Ele, o orleanista, o voltaireano, escolheu como sacerdote do
culto o legitimista jesuíta Falloux.
Alguns dias mais tarde, o Ministério do Interior foi confiado a Léon
Faucher, economista malthusiano. O direito, a religião, a economia
política! O ministério Barrot continha tudo isso e era também uma união
dos legitimistas e dos orleanistas. Só lhes faltavam os bonapartistas,
Bonaparte continuou dissimulando seu desejo de ser Napoleão, pois
Soulouque não interpretava ainda o papel de Les Toussaint Louverture.
Tão logo se fez sair o partido do National de todos os postos elevados
onde ele se tinha agarrado - Diretoria Geral de Policia, direção dos
Correios, Procuradoria Geral, Prefeitura de Paris -, esses postos foram
ocupados todos por antigas criaturas da monarquia. Changarnier, o
legitimista, recebeu o comando superior da guarda nacional do departamento
do Sena, da garde mobile e das tropas de linha da primeira divisão.
Bugeaud, o orleanista, foi nomeado comandante-chefe do exército dos Alpes.
Essas mudanças de funcionários prosseguiram de forma ininterrupta sob o
governo de Barrot. O primeiro ato de seu ministério foi a restauração da
antiga administração monarquista. Em um piscar de olhos, a cena oficial se
transformou - bastidores, vestuário, linguagem, atores, figurantes,
comparsas, "ponto", posição dos Partidos, tema do drama, conteúdo do
conflito, toda a situação. Apenas a Assembleia constituinte pré-histórica
continuava no mesmo lugar. Mas a partir do momento em que a Assembleia
nacional tinha instalado Bonaparte, em que Bonaparte tinha instalado
Barrot, em que Barrot tinha instalado Changarnier, a França saía do
período da constituição da República para entrar no período da República
constituída. E na República constituída o que tinha a fazer uma Assembleia
constituinte? Uma vez criada a terra, só restava ao seu criador refugiar-
se no céu, A Assembleia constituinte estava disposta a não seguir seu
exemplo: a Assembleia nacional era o último refúgio do partido dos
republicanos burgueses. Se todos os postos de comando do poder executivo
lhe tinham escapado, não lhe restava a onipotência constituinte? Manter-se
a qualquer preço no posto soberano que ela ocupava e de lá reconquistar o
terreno perdido foi o seu primeiro pensamento. Uma vez o ministério Barrot
substituído por um ministério do National, o pessoal da realeza seria
obrigado a deixar imediatamente o palácio da administração e o pessoal
tricolor lá entraria triunfalmente. A Assembleia nacional decidiu derrubar
o ministério, e o próprio ministério forneceu um ensejo de ataque tal que
nem mesmo a Constituinte poderia imaginar algo de mais oportuno.
É lembrado que para os camponeses Bonaparte significava "Chega de
impostos!". Ele já estava instalado em sua cadeira presidencial há seis
dias quando, no sétimo dia, em 27 de dezembro, seu ministério propôs a
manutenção do imposto sobre o sal, cuja supressão o Governo provisório
tinha decretado. O imposto sobre o sal divide com o imposto sobre as
bebidas o privilégio de ser o bode-expiatório do antigo sistema financeiro
francês, sobretudo aos olhos da população do campo. O ministério Barrot
não podia colocar na boca do eleito dos camponeses uma epigrama mais
sarcástica para seus eleitores do que essas palavras: restabelecimento do
imposto sobre o sal! Com o imposto sobre o sal, Bonaparte perdia o seu sal
revolucionário, o Napoleão da insurreição camponesa se dissipava como uma
nuvem, e só restava o grande desconhecido da intriga burguesa monarquista.
E não foi sem intenção que o ministério Barrot fez desse ato de desilusão
grosseira e brutal o primeiro ato governamental do presidente.
Por seu lado, a Constituinte aproveitou avidamente a dupla ocasião de
derrubar o ministério e de se impor ante o eleito dos camponeses como
defensor dos interesses dos camponeses. Ela rejeitou a proposta do
Ministro das Finanças, reduziu o imposto sobre o sal a um terço do seu
montante anterior, aumentando assim em sessenta milhões um déficit público
de quinhentos e sessenta milhões e esperou tranquilamente depois desse
voto de desconfiança a retirada do ministério. Como ela compreendia pouco
o mundo novo que a cercava e a mudança sobrevinda em sua própria posição!
Por trás do ministério havia o presidente, e por trás do presidente havia
seis milhões de cidadãos que tinham depositado na urna eleitoral igual
número de votos de desconfiança contra a Constituinte. A Constituinte
devolveria à nação seu voto de desconfiança. Troca ridícula! Ela esquecia
que seus votos tinham perdido o valor. A rejeição do imposto sobre o sal
só fez amadurecer a decisão de Bonaparte e de seu ministério "de acabar"
com a Assembleia constituinte. O longo duelo que tomou toda uma metade da
existência da Constituinte começou. 29 de janeiro, 21 de março e 3 de maio
são os dias, os grandes dias dessa crise, verdadeiras preliminares do 13
de junho.
Os franceses, Louis Blanc, por exemplo, viram o 29 de janeiro como o
surgimento de uma contradição constitucional, da contradição entre uma
Assembleia nacional soberana, indissolúvel, saída do sufrágio universal, e
um presidente responsável por ela, segundo a lei, mas que, em realidade,
havia sido não apenas sancionado igualmente pelo sufrágio universal e
reunia por isso sobre sua pessoa todas as vozes se repartindo e se
dispersando centenas de vezes sobre os diferentes membros da Assembleia
nacional, mas estava também em plena posse de todo o poder executivo sobre
o qual a Assembleia nacional só paira a título de força moral. Esta
interpretação do 29 de junho confunde a linguagem da luta na tribuna, pela
imprensa, nas associações políticas, com seu conteúdo real. Luis Bonaparte
face à Assembleia nacional constituinte não era um lado do poder
constitucional diante do outro, não era o poder executivo diante do poder
legislativo; era a própria República burguesa constituída face às intrigas
ambiciosas e às reivindicações ideológicas da fração burguesa
revolucionária que a havia fundado e que, atônita, procurava agora fazer
com que a república constituída se parecesse com uma monarquia restaurada
e que queria manter pela violência o período constituinte com suas
condições, suas ilusões, sua linguagem e seu pessoal, e impedir a
República burguesa chegada à maturidade de aparecer em sua forma acabada e
particular. Assim como a Assembleia nacional constituinte representava
Cavaignac de volta a seu seio, Bonaparte representava a Assembleia
nacional legislativa que não se tinha ainda separado dele, ou seja, a
Assembleia nacional da República burguesa constituída.
A eleição de Bonaparte não se podia explicar sem colocar no lugar de um
único nome as suas múltiplas significações, sem ver a sua repetição na
eleição da nova Assembleia nacional. O 10 de dezembro havia anulado o
mandato da antiga Assembleia. Em 29 de janeiro, pois, não eram o
presidente e a Assembleia nacional da mesma República que se confrontavam,
mas a Assembleia nacional da República em potencial e o presidente da
República de fato, duas forças que encarnavam dois períodos em tudo
diferentes do processo de existência da República; era a pequena fração
republicana da burguesia que somente podia proclamar a República, arrancá-
la ao proletariado revolucionário, através dos combates de rua e pelo
terror, e esboçar na constituição os traços fundamentais do seu ideal; e,
de outro lado, toda a multidão monarquista da burguesia, que somente podia
reinar nessa República burguesa constituída, levar à Constituição seus
acessórios ideológicos, e realizar, com sua legislação e sua
administração, as condições indispensáveis à escravidão do proletariado.
A tempestade que caiu em 29 de janeiro se havia formado durante todo
aquele mês. A Constituinte queria, com seu voto de desconfiança, levar o
ministério Barrot a renunciar. O ministério Barrot, ao contrário, propôs à
Constituinte que concedesse a si própria um voto de desconfiança
definitivo, que decidisse o seu suicídio, que decretasse sua própria
dissolução. Rateau, um dos deputados mais obscuros, fez a proposta à
Constituinte sobre a ordem do ministério, em 6 de janeiro, a essa mesma
Constituinte que, desde agosto, havia decidido não se dissolver antes de
ter promulgado toda uma série de leis orgânicas completando a
Constituição. O ministério Fould declarou-lhe francamente que a dissolução
era necessária "para restabelecer seu crédito abalado". Não teria ela
abalado esse crédito ao prolongar o estado provisório, ao pôr de novo em
questão com Barrot, Bonaparte, e, com Bonaparte, a República constituída?
Barrot, o olímpico, transformado em Orlando Furioso, ante a perspectiva de
ver arrancada de si, outra vez, depois de tê-la desfrutado apenas quinze
dias, essa presidência de gabinete enfim obtida; e que os republicanos já
haviam prorrogado certa vez em um decênio de dez meses, Barrot triunfou em
tirania sobre o tirano com relação a essa miserável Assembleia. As mais
suaves de suas palavras foram: "Para ela, não há futuro possível." E, em
realidade, ela não representava outra coisa que não fosse o passado. "Ela
é incapaz de cercar a República das instituições necessárias à sua
consolidação.", acrescentou ele, ironicamente. De fato! Ao mesmo tempo
que, por sua oposição exclusiva ao proletariado, sua energia burguesa se
vira comprometida, por sua oposição aos monarquistas sua exaltação
republicana fora fortalecida. Ela era, então, duplamente incapaz de
consolidar pelas instituições adequadas a República burguesa que ela não
mais compreendia.
Com a proposta de Rateau, o ministério provocou ao mesmo tempo uma
tempestade de petições em todo o país e, diariamente, de todos os cantos
da França, a Constituinte recebia em pleno rosto verdadeiros pacotes de
"cartas de amor" onde se implorava, mais ou menos categoricamente, que ela
se dissolvesse e fizesse o seu testamento. Por seu turno, a Constituinte
provocava contra petições nas quais ela se fazia exortar a continuar
vivendo. A luta eleitoral entre Bonaparte e Cavaignac se repetia sob a
forma de luta de petições pró ou contra a dissolução da Assembleia
nacional. As petições se tornariam os comentários do 10 de dezembro feitos
mais tarde. Esta agitação persistiu durante todo o mês de janeiro.
No conflito entre a Constituinte e o presidente, aquela não podia remontar
às eleições gerais como à sua origem, porque alguém a lembraria o sufrágio
universal. Não podia se apoiar sobre qualquer poder regular, porque se
tratava da luta contra o poder legal. Não podia derrubar o ministério com
os votos de desconfiança, como voltara a tentar em 6 e 26 de janeiro,
porque o ministério não pedia a sua confiança. Só lhe restava uma
possibilidade, a insurreição.
As forças armadas da insurreição eram o partido republicano da guarda
nacional, a garde mobile e os centros do proletariado revolucionário, as
associações políticas. Os gardes mobites, esses heróis das jornadas de
junho, constituíam em dezembro as forças armadas organizadas das frações
republicanas da burguesia, assim como, antes de junho, as oficinas
nacionais haviam formado as forças armadas organizadas do proletariado
revolucionário. Da mesma maneira que a Comissão executiva da Constituinte
concentrou sua brutalidade no ataque às oficinas nacionais, quando
precisou pôr um fim nas exigências tornadas insuportáveis do proletariado,
assim também o ministério de Bonaparte combateu a garde mobile, quando
precisou pôr um fim nas exigências tornadas insuportáveis das frações
republicanas da burguesia. E ordenou a dissolução da garde mobile. Desta,
metade foi dispensada e atirada na rua, a outra metade recebeu, em lugar
de sua organização democrática, uma organização monarquista, e seu soldo
foi rebaixado ao nível do soldo comum das tropas de linha. A garde mobile
se viu na situação dos insurrectos de junho, e todos os dias a imprensa
divulgava confissões públicas, onde a guarda reconhecia seu erro de junho
e implorava ao proletariado que a perdoasse.
E as associações políticas? Desde o momento em que a Assembleia punha em
questão, na pessoa de Barrot, o presidente; e, no presidente, a República
burguesa constituída; e, na República burguesa em geral, todos os
elementos constitutivos da República de fevereiro; desde esse momento,
todos os partidos que desejavam derrubar a República existente, e que
desejavam transformá-la por um processo de regressão violenta na República
de seus interesses e de seus conceitos de classe, se perfilaram ao redor
dela. Mas o que estava feito, estava outra vez por fazer, a cristalização
do movimento revolucionário se fundamentava outra vez, a República pela
qual se combatia era uma vez mais a República vaga das jornadas de
fevereiro que cada partido se reservava definir. Os partidos retomaram por
instantes suas velhas posições de fevereiro, mas sem partilhar as ilusões.
Os republicanos tricolores do National se apoiaram de novo nos
republicanos democratas do La Réforme e os puseram na vanguarda, no
primeiro plano da luta parlamentar. Os republicanos democratas se apoiaram
de novo nos republicanos socialistas - em 27 de janeiro, um manifesto
público proclamou sua reconciliação e sua união - e eles preparam nas
associações políticas seu segundo plano insurrecional. A imprensa
ministerial tratou com razão os republicanos tricolores do National como
insurrectos ressuscitados de junho. Para se manter à frente da República
burguesa, eles puseram em questão essa mesma República. Em 26 de janeiro,
o ministro Faucher propôs uma lei sobre o direito de associação cujo
primeiro parágrafo era assim concebido: "As associações políticas estão
proibidas". Ele propôs que esse projeto de lei fosse posto em discussão
imediatamente, segundo o procedimento de urgência. A Constituinte rejeitou
a proposta de urgência e, em 27 de janeiro, Ledru-Rollln apresentou uma
proposta para que fosse posto em acusação o ministério por violação da
Constituição, proposta essa que contava com duzentas e trinta assinaturas.
A acusação do ministério no momento em que semelhante ato revelava a
confissão inábil da impotência do juiz, ou seja, da maioria da Câmara, ou
ainda o protesto impotente do acusador contra essa própria maioria, tal
foi o grande trunfo revolucionário que La Montagne, irmã caçula, jogou
imediatamente a cada auge da crise. Pobre Montagne, esmagada sob o peso do
próprio nome!
Blanqui, Barbês, Raspail, etc., em 15 de maio, haviam tentado dissolver
pela força a Assembleia constituinte, penetrando, à frente do proletariado
parisiense, na sala de sessões. Barrot preparou para essa Assembleia um 15
de maio moral, querendo ditar-lhe sua própria dissolução e fechar sua sala
de sessões. A Assembleia havia encarregado Barrot do inquérito sobre os
acusados de maio; e era no momento em que ele aparecia diante dela como um
Blanqui monarquista, em que ela procurava diante dele os aliados nas
associações políticas, junto aos proletariados revolucionários, no partido
de Blanqui, era nesse momento que o inexorável Barrot a torturava com sua
proposta de roubar ao júri os acusados de maio e de citá-los diante do
tribunal supremo inventado pelo partido do National, diante da Alta Corte.
Que coisa notável que o medo tenaz de perder um título ministerial tenha
podido extrair da cabeça de um Barrot ironias dignas de um Beaumarchais!
Depois de longas hesitações, a Assembleia nacional adotou sua proposta.
Face aos acusados do atentado de maio, ela retomava seu caráter normal.
Se a Constituinte, ante o presidente e os ministros, era obrigada à
insurreição, o presidente e o ministério, ante a Constituinte, eram
obrigados ao golpe de Estado, pois eles não dispunham de qualquer meio
legal para dissolvê-la. Mas a Constituinte era a mãe da Constituição, e a
Constituição era a mãe do presidente. Com o golpe de Estado, o presidente
rasgava a Constituição e destruía seus títulos republicanos. Ele era então
forçado a mostrar seus títulos imperiais, mas seus títulos imperiais
evocavam os títulos orleanistas e ambos empalideciam diante dos títulos
legitimistas. A derrubada da República legal somente poderia fazer surgir
seu antípoda extremo, a monarquia legitimista, no momento em que o partido
orleanista era apenas, ainda, o vencido de fevereiro, em que Bonaparte era
apenas, ainda, o vencedor de 10 de dezembro, e em que nenhum dos dois
podia ainda opor à usurpação republicana outra coisa que não os seus
títulos monarquistas igualmente usurpados. Os legitimistas tinham
consciência que o momento era favorável; conspiravam à luz do dia. Com o
general Cavaignac, eles podiam esperar encontrar o seu Monk. O advento da
monarquia branca era proclamado tão abertamente em suas associações
políticas quanto o advento da república vermelha nas associações políticas
proletárias.
Por uma rebelião felizmente reprimida, o ministério teria se livrado de
todas as dificuldades. "A legalidade nos mata" bradava Odilon Barrot. Uma
rebelião teria permitido, sob pretexto de segurança pública, dissolver a
Constituinte, violar a Constituição no interesse da própria Constituição.
A brutal intervenção de Odilon Barrot na Assembleia nacional, a proposta
de dissolução das associações políticas, a destituição rumorosa de
cinquenta prefeitos tricolores e sua substituição por monarquistas, a
dissolução da garde mobile, o modo brutal com que Changarnier tratou seus
comandantes, a reintegração de Lherminier, esse professor já impossível
sob Guizot, a tolerância para com as fanfarronices legitimistas, eram
também incitações à rebelião. Mas a rebelião continuava surda. Ela
esperava o sinal da Constituinte, não do ministério.
Enfim, chegou o 29 de janeiro, o dia em que se daria o pronunciamento
sobre a proposta de Mathieu (de la Drôme), visando a rejeição
incondicional da proposta de Rateau. Legitimistas, orleanístas,
bonapartistas, garde mobile, La Montagne, associações políticas, todo
mundo conspirava, nesse dia, tanto contra o pretenso inimigo quanto contra
o considerado aliado. Bonaparte, a cavalo, passava em revista uma parte
das tropas na Praça da Concórdia; Changarnier se pavoneava em uma grande
demonstração de manobras estratégicas. A Constituinte encontrou sua sala
de sessões ocupada militarmente. Ela, o centro onde se cruzavam todas as
esperanças, as crenças, as expectativas, as fermentações, as tensões, as
conjurações, a Assembleia com coragem de leão não hesitou mais um instante
quando chegou mais perto do que nunca ao momento de entregar a alma. Ela
parecia aquele combatente que temia não somente usar suas próprias armas,
mas se acreditava igualmente no dever se conservar intactas as armas do
adversário. Desprezando a morte, ela assinou sua sentença de morte e
rejeitou a rejeição incondicional da proposta Rateau. Ela própria em
estado de sítio impôs à sua atividade constituinte limites cuja moldura
necessária tinha sido o estado de sítio de Paris. Ela vingou-se de uma
forma digna de si decidindo, no dia seguinte, um inquérito sobre o susto
que o ministério lhe causara em 29 de janeiro. La Montagne deu provas de
sua falta de energia revolucionária e de sentido político ao deixar o
partido do National fazer dela o arauto das forças armadas naquela comédia
de intrigas. Esse partido fizera uma última tentativa para manter uma vez
mais, na República constituída, o monopólio do poder que ele havia
possuído durante o período de formação da República burguesa. Tal
tentativa fracassou.
Se na crise de janeiro tratava-se da existência da Constituinte, na crise
de 21 de março tratava-se da existência da Constituição. Não está mais em
questão o pessoal do partido nacional, desta vez, mas o seu ideal.
Não precisamos mencionar que os republicanos fizeram pagar menos caro o
sentimento elevado que tinham de sua ideologia do que o gozo terreno do
poder governamental.
Em 21 de março, a ordem do dia da Assembleia nacional incluía o projeto de
lei de Faucher contra o direito de associação: a proibição das associações
políticas. O artigo oito da Constituição garantia a todos os franceses o
direito de associação. A proibição das associações políticas era então um
atentado absolutamente claro à Constituição; e a Constituinte devia ela
própria canonizar a profanação de seus santos. Mas as associações
políticas eram os pontos de agrupamento, os lugares de conspiração do
proletariado revolucionário. A própria Assembleia nacional havia proibido
a coligação dos operários contra os seus burgueses. E as associações
políticas eram outra coisa senão a coligação de toda a classe operária
contra toda a classe burguesa, a formação de um Estado operário contra o
Estado burguês? Não eram eles tanto Assembleias constituintes do
proletariado quanto destacamentos a postos do exército da revolta? O que a
Constituinte devia constituir, antes de tudo, era a dominação da
burguesia. A Constituição não podia, então, manifestamente, entender por
direito de associação outra coisa que não as associações em acordo com a
dominação da burguesia, ou seja, com ordem burguesa. Se, por conveniência
teórica, ela se exprimia de maneira geral, o Governo não estava lá, assim
como a Assembleia nacional, para interpretá-la e aplicá-la nos casos
particulares? E se, na época antediluviana da República, as associações
políticas foram proibidas de fato pelo estado de sitio, não era necessário
proibi-las por lei na República regular, constituída? Os republicanos
tricolores só tinham a opor a essa interpretação prosaica da Constituição
uma fórmula redundante da Constituição. Uma parcela deles, Pagnerre,
Duclerc, etc., votou pelo ministério, dando-lhe assim a maioria. A outra
parcela, o arcanjo Cavaignac e o pai da Igreja Marrast à frente, se
retirou quando o artigo sobre a proibição das associações políticas passou
a uma comissão especial e, com Ledru-Rollin e La Montagne, "reuniu
conselho". A Assembleia nacional estava paralisada, não tinha mais quorum.
Monsieur Crémieux, no gabinete, se lembrou a tempo que esse gabinete dava
direto para a rua e que não se estava mais em fevereiro de 1848, mas em
março de 1849. De repente iluminado, o partido do National entrou de novo
na sala de sessões da Assembleia nacional. Vinha seguido de La Montagne
uma vez mais enganada, que, constantemente atormentada por anseios
revolucionários, procurava também constantemente possibilidades
constitucionais e se sentia sempre melhor em seu lugar atrás dos
republicanos burgueses do que na frente do proletariado revolucionário. A
comédia estava encenada. E fora a Constituinte, a própria, que havia
decretado que a violação da letra da Constituição era a única realização
de acordo com o seu espírito.
Só restava um ponto a acertar: as relações da República constituída com a
revolução europeia, sua política estrangeira. Em 8 de maio de 1849, uma
agitação desusada reinava na Assembleia constituinte, cujo mandato deveria
expirar dali a alguns dias. O ataque do exército francês a Roma, seu recuo
diante dos romanos, sua infâmia política e sua vergonha militar, o
assassinato da República romana pela República francesa, a primeira
campanha da Itália do segundo Bonaparte, estavam na ordem do dia. La
Montagne havia mais uma vez jogado o seu grande trunfo; Ledru-Rollin havia
depositado sobre a mesa do presidente o inevitável ato de acusação contra
o ministério por violação da Constituição, e dessa vez também contra
Bonaparte.
O cenário de 8 de maio se repetiu mais tarde, em 13 de junho. Expliquemo-
nos sobre a expedição romana.
Logo em meados de novembro de 1848, Cavaignac tinha enviado uma frota de
guerra a Civita-Vecchia para proteger o papa, colocá-lo a bordo e conduzi-
lo à França. O papa devia abençoar a República legal e assegurar a eleição
de Cavaignac à presidência. Com o papa, Cavaignac queria atrair os padres,
com os padres os camponeses e com os camponeses a presidência. Propaganda
eleitoral em seu objetivo imediato, a expedição de Cavaignac era ao mesmo
tempo um protesto e uma ameaça contra a revolução romana. Era o germe da
intervenção da França em favor do papa.
Essa intervenção em favor do papa, com a Áustria e Nápoles, contra a
República romana, foi decidida na primeira sessão do Conselho dos
ministros de Bonaparte, em 23 de dezembro. Falloux no ministério era o
papa em Roma e na Roma do papa. Bonaparte não precisava mais do papa para
ser presidente dos camponeses, mas precisava do papa para conservar os
camponeses do presidente. Foi a credulidade dos camponeses que fez dele um
presidente. Com a fé eles perdiam sua credulidade e, com o papa, a fé. E
os orleanistas e legitimistas coligados que reinavam em nome de Bonaparte!
Antes de restaurar o rei, era preciso restaurar o poder que consagra os
reis. Abstração feita de seu monarquismo: sem a velha Roma submissa ao seu
poder temporal, nada de papa; sem papa, nada de catolicismo, nada de
religião francesa; e sem religião o que seria da velha sociedade francesa?
A hipoteca que o camponês possui sobre os bens celestiais garante a
hipoteca que o burguês possui sobre os bens do camponês. A revolução
romana era, então, um atentado contra a propriedade, contra a ordem
burguesa, tão terrível quanto a revolução de junho. A dominação burguesa
restaurada na França exigia a restauração da dominação pontifical em Roma.
Enfim, nos revolucionários romanos combatia-se os aliados dos
revolucionários franceses. A aliança das classes contrarrevolucionárias na
República francesa constituída tinha seu complemento necessário na aliança
dessa República com a Santa-Aliança, com Nápoles e a Áustria. A decisão do
conselho dos ministros de 23 de dezembro não era segredo para a
Constituinte. Já em 8 de janeiro Ledru-Rollin havia interpelado o gabinete
sobre este assunto. O ministério negou, a Assembleia nacional passou à
ordem do dia. Confiava ela nas palavras do ministério? Sabemos que ela
passou todo o mês de janeiro a lhe conceder votos de desconfiança. Mas se
ele estava no seu papel de mentir, ela estava no seu papel de fingir
acreditar em suas mentiras e de salvar, deste modo, as aparências
republicanas.
No entanto, Piemonte era derrotado. Charles-Albert abdicava. O exército
austríaco batia às portas da França. Ledru-Rollin fez uma interpelação
violenta. O ministério provou que só fez continuar na Itália do Norte a
política de Cavaignac, e Cavaignac a política do Governo provisório, ou
seja, de Ledru-Rollin. Além disso, desta vez, ele colheu um voto de
confiança da Assembleia nacional e foi autorizado a ocupar temporariamente
um lugar adequado na Alta Itália para auxiliar assim as negociações
pacificas com a Áustria sobre a integridade do território sardo e sobre a
questão romana. Como se sabe, o destino da Itália se decide nos campos de
batalha da Itália do Norte. Eis por que Roma havia caído com a Lombardia e
o Piemonte; ou então era preciso que a França declarasse guerra à Áustria
e, em consequência. à contrarrevolução europeia. A Assembleia nacional
constituinte tomava subitamente o ministério Barrot pelo Comitê de
segurança pública, ou se tomava ela mesma pela Convenção? Por que então a
ocupação militar de um ponto da Alta Itália? Escondia-se sob esse véu
transparente a expedição contra Roma.
Em 14 de abril, quatorze mil homens, sob o comando de Oudinot, navegaram
em direção a Civita-Vecchia. Em 16 de abril, a Assembleia nacional
concedeu ao ministério um crédito de um milhão e duzentos mil francos para
a conservação, durante três meses, de uma frota de intervenção no
Mediterrâneo. Ela dava assim ao ministério todos os meios para intervir
contra Roma, enquanto fingia fazê-lo intervir contra a Áustria. Ela não
via o que fazia o ministério, não ouvia o que ele dizia. Não se poderia
encontrar tamanha fé em Israel: a Constituinte tinha chegado a não saber o
que devia fazer a República constituinte.
Enfim, em 8 de maio, representou-se a última cena da comédia. A
Constituinte convidou o ministério a tomar medidas rápidas para reconduzir
a expedição da Itália ao objetivo que lhe fora fixado. Bonaparte inseriu,
na mesma tarde, uma carta no Moniteur em que endereçava a Oudinot suas
mais vivas felicitações. Em 11 de maio, a Assembleia repelia o ato de
acusação contra esse mesmo Bonaparte e seu ministério. E La Montagne que,
em lugar de romper esse tecido de mentiras, levou a sério a comédia
parlamentar para representar ela mesma, em seu seio, o papel de Fouquier-
Tinville, não deixou transparecer sob a pele de leão emprestada da
Convenção a pele de bezerro pequeno-burguês que lhe era natural!
A segunda metade da existência da Constituinte se resume assim: ela
reconhece, em 29 de janeiro, que as frações burguesas monarquistas são as
líderes naturais da República constituída por ela; em 21 de março, que a
violação da Constituição é sua realização; e, em 11 de maio, que a aliança
passiva enfaticamente proclamada da República francesa com os povos em
luta significa sua aliança ativa com a contrarrevolução europeia, Esta
miserável Assembleia deixou a cena depois de se ter dado, dois dias antes
do seu aniversário de nascimento, em 4 de maio, a satisfação de rejeitar a
proposta de anistia em favor dos insurrectos de junho. Com seu poder
despedaçado, odiada de morte pelo povo, repelida, maltratada, afastada com
desdém pela burguesia da qual era instrumento, constrangida na segunda
metade de sua existência a renegar a primeira, destituída de sua ilusão
republicana, sem grandes realizações no passado, sem esperanças no futuro,
corpo vivo se decompondo em pedaços, ela não sabia reanimar seu próprio
cadáver a não ser lembrando constantemente a vitória de junho, revivendo-a
em seguida; ela se sustentava amaldiçoando sempre outra vez os malditos.
Vampiro que vivia do sangue dos insurrectos de junho.
Ela deixava atrás de si o déficit público aumentado pelas despesas da
insurreição de junho, pela supressão do imposto sobre o sal, pelas
indenizações concedidas aos plantadores com a abolição da escravatura,
pelos gastos com a expedição romana e pela supressão do imposto sobre as
bebidas, cuja abolição ela decidiu já nos seus últimos estertores; velha
dama com maligna alegria, feliz por colocar sobre os ombros do seu
satisfeito herdeiro uma comprometedora dívida de honra.
Desde o inicio de março a agitação eleitoral havia começado em favor da
Assembleia nacional legislativa. Dois grupos principais se confrontavam: o
partido da ordem e o partido democrata-socialista ou partido vermelho.
Entre eles se encontravam os amigos da Constituição, em nome dos quais os
republicanos tricolores do National tentavam representar um partido. O
partido da ordem se formou imediatamente depois das jornadas de junho; foi
apenas depois que o 10 de dezembro lhe permitiu afastar a "igrejinha" do
National, dos republicanos burgueses, que se revelou o segredo de sua
existência, a coalizão de orleanistas e legitimistas em um partido. A
classe burguesa estava dividida em duas grandes frações que, uma de cada
vez - a grande propriedade imóvel sob a Restauração, a aristocracia
financeira, e a burguesia industrial sob a monarquia de julho -, tinham
guardado o monopólio do poder. Bourbon era o nome real cobrindo a
influência preponderante dos interesses de uma das frações. Orléans era o
que cobria a influência preponderante dos interesses da outra fração: o
reinado anônimo da República era o único jugo sob o qual as duas frações
podiam manter com poder legal seus interesses comuns de classe sem
renunciar à rivalidade recíproca. Se a República burguesa não podia ser
outra coisa senão a dominação acabada, perfeitamente clara, de toda a
classe burguesa, podia ela ser outra coisa senão a dominação dos
orleanistas completados pelos legitimistas e dos legitimistas completados
pelos orleanistas, a síntese de Restauração e da monarquia de julho? Os
republicanos burgueses do National não representavam uma grande fração de
sua classe sob o ponto de vista econômico. Eles tinham como única
importância e como único título histórico o fato de, sob a monarquia, ante
as duas frações burguesas que apenas compreendiam seu regime particular,
terem feito valer o regime geral da classe burguesa, o regime anônimo da
República que eles idealizavam e enfeitavam com arabescos antigos, mas
onde saudavam antes de tudo a dominação do seu grupo. Se o partido do
National duvidou da própria lucidez ao perceber na cúpula da República que
ele havia criado os monarquistas coligados, estes não se enganaram menos,
eles próprios, sobre sua dominação unificada. Eles não compreendiam que,
se alguma de suas frações consideradas à parte era monarquista, o
resultado de sua combinação química deveria ser necessariamente
republicana, e que a monarquia branca e a monarquia azul deviam
necessariamente se neutralizar na República tricolor. Obrigadas, por sua
oposição ao proletariado revolucionário e às classes intermediárias que
agrupavam cada vez mais ao seu redor, a recrutar suas forças conjugadas,
cada uma das frações do partido da ordem, ante os desejos de restauração e
de hegemonia da outra, era levada a fazer prevalecer a dominação comum, ou
seja, a forma republicana da dominação burguesa. Assim, esses monarquistas
que a princípio acreditavam em uma restauração imediata, e que mais tarde,
conservando a forma republicana, espumavam mortais invectivas contra ela,
eis que eles, finalmente, reconhecem não poder se pôr em acordo a não ser
na República e adiam para uma data indeterminada a Restauração. A volúpia
comum do poder fortificava cada uma das duas frações e a tornava ainda
mais incapaz e menos disposta a se subordinar à outra, melhor dizendo, a
restaurar a monarquia.
O partido da ordem proclamou diretamente em seu programa eleitoral a
dominação da classe burguesa, ou seja, a manutenção das condições de
existência de sua dominação, da propriedade, da família, da religião, da
ordem! Ele apresentava naturalmente sua dominação de classe e as condições
de sua dominação de classe como as condições necessárias à produção
material, assim como às relações sociais daí decorrentes. O partido da
ordem dispunha de recursos enormes. Ele organizou suas sucursais em toda a
França; teve a seu soldo todos os ideólogos da antiga sociedade, dispunha
da influência do poder governamental existente; possuía um exército de
vassalos espontâneos em toda a massa de pequenos burgueses e camponeses
que, ainda afastados do movimento revolucionário, viam nos grandes
dignitários da propriedade os representantes naturais de sua pequena
propriedade e de seus pequenos preconceitos; representado que estava em
todo o país por uma infinidade de reizinhos, ele podia punir o repúdio de
seus candidatos como uma insurreição, demitir os operários rebeldes, os
trabalhadores agrícolas, domésticos, pequenos funcionários, empregados das
estradas de ferro, os burocratas recalcitrantes, todos os funcionários que
lhe eram burguesamente subordinados. Ele podia, enfim, por isso e por
aquilo, manter a ilusão de que a Constituinte republicana havia impedido o
Bonaparte de 10 de dezembro de manifestar as suas forças miraculosas. No
partido da ordem, não mencionamos os bonapartistas. Eles não eram uma
fração séria da classe burguesa, mas um amontoado de velhos inválidos e
supersticiosos, e de jovens e incrédulos cavalheiros da indústria. O
partido da ordem triunfou nas eleições e mandou uma grande maioria para a
Assembleia legislativa.
Ante a classe burguesa contrarrevolucionária coligada, os partidos já
revolucionários da pequena burguesia e da classe camponesa teria
naturalmente que se ligar ao grande dignitário dos interesses
revolucionários, ao proletariado revolucionário. Vimos que os porta vozes
democratas da pequena burguesia no Parlamento, ou seja, La Montagne,
tinham sido atirados pelas derrotas parlamentares em direção aos porta-
vozes socialistas do proletariado, e que a verdadeira pequena burguesia
fora do Parlamento tinha sido atirada em direção aos verdadeiros
proletários pelas concordatas amigáveis, pela preponderância dos
interesses burgueses, pela bancarrota. Em 27 de janeiro, La Montagne e os
socialistas haviam festejado sua reconciliação; eles renovaram, no grande
banquete de fevereiro de 1849, seu pacto de aliança. O partido social e o
partido democrático, o partido dos operários e o partido da pequena
burguesia, uniram-se no Partido Socialdemocrata, ou seja, no partido
vermelho.
Paralisada alguns instantes pela agonia que se seguiu às jornadas de
junho, a República francesa, depois da suspensão do estado de sítio,
depois de 14 de outubro, tinha atravessado uma série contínua de emoções
febris. Antes de tudo, a luta pela presidência; depois; a luta do
presidente contra a Constituinte; a luta pelas associações políticas; o
processo de Bourges, que, diante das pequenas figuras do presidente, dos
monarquistas coligados, dos republicanos legais, de La Montagne
democrática, dos doutrinários socialistas do proletariado, fez surgirem os
verdadeiros revolucionários deste mesmo proletariado como monstros
antediluvianos deixados na superfície da sociedade por um dilúvio, ou
ainda como se, sozinhos, eles pudessem preceder a um dilúvio social; a
agitação eleitoral; a execução dos assassinos de Bréa, os ataques
contínuos da imprensa, as invasões policiais violentas do Governo nos
banquetes; as provocações monarquistas impudentes; a exposição das figuras
de Louis Blanc e de Gaussidiêre à execração pública; a luta ininterrupta
entre a República constituída e a Constituinte que fazia, a cada instante,
a revolução voltar ao ponto de partida, que fazia, a cada instante, do
vencedor o vencido, do vencido o vencedor, que, em um piscar de olhos,
lançava por terra a posição dos partidos e das classes, suas separações e
suas ligações; a marcha rápida da contrarrevolução europeia; a luta
gloriosa da Hungria, o recrutamento das defesas alemãs, a expedição
romana, a vergonhosa derrota do exército francês ante Roma: nesse
turbilhão, nessa penosa desordem histórica, nesse dramático fluxo e
refluxo de paixões, de esperanças, de desilusões revolucionárias, as
diversas classes da sociedade francesa teriam necessariamente que contar
em semanas os seus períodos de desenvolvimento, assim como em outros
tempos elas os contavam por meios séculos. Uma parcela importante dos
camponeses e das províncias estava em revolução. Não apenas Napoleão os
tinha decepcionado, mas também o partido vermelho lhes tinha oferecido em
lugar do nome o conteúdo, em lugar da dispensa ilusória dos impostos o
reembolso do bilhão pago aos legitimistas, a regulamentação das hipotecas
e a supressão da usura.
O próprio exército estava contaminado pela febre revolucionária. Votando
em Bonaparte, havia votado pela vitória e ele lhe dava a derrota; havia
votado pelo cabo atrás do qual se esconde o grande capitão revolucionário,
e ele lhe devolvia os grandes generais atrás dos quais se dissimula o cabo
perito em botões de polainas. Não resta dúvida que o partido vermelho, ou
seja, o Partido Democrático coligado, na falta de vitória, pensava
festejar pelo menos o grande triunfo de que Paris, o exército, uma
respeitável parcela das províncias votariam nele. Ledru-Rollín, o líder de
La Montagne, foi eleito por cinco departamentos. Nenhum dos líderes do
partido da ordem conseguiu semelhante vitória. Nenhum nome do partido
proletário propriamente dito. Esta eleição nos revela o segredo do Partido
Democrata-Socialista. Se La Montagne, vanguarda parlamentar da pequena
burguesia democrata, era, por um lado, forçado a se unir aos doutrinários
socialistas do proletariado, este, forçado pela formidável derrota
material de junho a se reerguer através das vitórias intelectuais, não
estando ainda em condições, visto o desenvolvimento das outras classes, de
se apoderar da ditadura revolucionária, era obrigado a se lançar nos
braços dos doutrinários de sua emancipação, dos fundadores de seitas
socialistas; por outro lado, os camponeses revolucionários, o exército, as
províncias se colocavam atrás de La Montagne que, assim, se tornava a
líder do acampamento do exército revolucionário, e, por seu acordo com os
socialistas, tinha afastado todo antagonismo no partido revolucionário. Na
última metade da existência da Constituição, La Montagne, nela,
representava o pathos republicano e tinha feito esquecer seus pecados do
tempo do Governo provisório, da Comissão executiva e das jornadas de
junho. A medida que o partido do National, conforme sua natureza indecisa,
se deixava esmagar pelo ministério monarquista, o partido de La Montagne,
afastado durante a onipotência do National, crescia e prevalecia enquanto
representante parlamentar da Revolução. Com efeito, o partido do National
nada tinha a opor às frações monarquistas a não ser personalidades
ambiciosas e banalidades idealistas. O partido de La Montagne, ao
contrário, representava uma massa flutuante entre a burguesia e o
proletariado cujos interesses materiais exigiam instituições democráticas.
Ante aos Cavaignacs e aos Marrasts, Ledru-Rollín e La Montagne se
encontravam, por consequência, na verdade da revolução e tiravam da
consciência dessa grave situação uma coragem ainda maior, visto que a
manifestação da energia revolucionária se limitava a saídas parlamentares,
à entrega de atos de acusação, às ameaças, às explosões de vozes, aos
discursos tonitruantes e a extremismos que não ultrapassavam o nível das
palavras. Os camponeses se achavam quase na mesma situação dos pequenos
burgueses; tinham quase as mesmas reivindicações sociais a fazer. Todas as
camadas médias da sociedade, à medida que eram exercitadas no movimento
revolucionário, teriam que necessariamente encontrar o seu herói em Ledru-
Rollin. Ele era o personagem da pequena burguesia democrática. Face ao
partido da ordem, era precisamente os reformadores dessa ordem, meio
conservadores, meio revolucionários e absolutamente utópicos, que deviam
antes de tudo ser lançados na frente.
O partido do National, os "amigos da própria Constituição", "os
republicanos puros e simples", foram completamente derrotados nas
eleições. Uma ínfima minoria entre eles foi mandada à Câmara legislativa.
Seus líderes mais notórios desapareceram de cena, até mesmo Marrast, o
redator-chefe, o Orfeu da República legal.
Em 28 de maio, a Assembleia legislativa se reuniu; em 11 de junho, o
choque de 8 de maio se repetiu. Ledru-Rollin colocou, em nome de La
Montagne, um pedido de acusação contra o presidente e o ministério por
violação da Constituição por causa do ataque a Roma. Em 12 de junho, a
Assembleia legislativa rejeitou o pedido de acusação, assim como a
Assembleia constituinte o havia rejeitado em 11 de maio; mas, desta vez, o
proletariado mandou La Montagne para a rua, não, porém, para o combate de
rua, mas para a manifestação de rua. Basta dizer que La Montagne estava à
frente desse movimento para que se saiba que o movimento foi derrotado e
que junho de 1849 foi uma caricatura, tão ridícula quanto indigna, de
junho de 1848. A grande retirada de 13 de junho só não foi eclipsada pelo
relato ainda maior da batalha feito por Changarnier, o grande homem que
improvisou o partido da ordem. Cada momento social precisa de seus grandes
homens; e se ela não os encontra, ela os inventa, como disse Helvetius.
Em 20 de dezembro, existia apenas metade da República burguesa
constituída, o presidente; em 29 de maio, ela foi completada pela outra
metade, a Assembleia legislativa, Em junho de 1848, a República burguesa
que se constituía havia gravado o seu nascimento nos anais da história com
uma batalha inexprimível contra o proletariado; em junho de 1849, a
República burguesa constituída fez o mesmo, mas com uma comédia
inenarrável, representada com a burguesia. Junho de 1849 foi a Nêmesis de
junho de 1848. Em junho de 1849, não foram os operários os vencidos, mas
os pequenos burgueses colocados entre eles e a revolução foram os
derrotados. Junho de 1849 não era a tragédia sangrenta entre o trabalho
assalariado e o capital, mas o espetáculo rico em cenas de prisões, o
espetáculo lamentável entre o devedor e o credor. O partido da ordem tinha
vencido, era o todo-poderoso, precisava agora mostrar quem ele era.

III
De 13 de junho de 1849 a 10 de março de 1850

Em 20 de dezembro, a cabeça de Jano da República constitucional só havia


mostrado uma de suas faces, a face executiva, sob os traços indecisos e
inexpressivos de Luís Bonaparte: em 29 de maio de 1849, ela mostrou sua
segunda face, a legislativa, vincada de rugas deixadas pelas orgias da
Restauração e da monarquia de julho. Com a Assembleia nacional
legislativa, a República constitucional aparecia, pronta, sob sua forma
estática republicana em que a dominação da classe burguesa está
constituída, a dominação comum das duas grandes frações monarquistas que
formam a burguesia francesa, os legitimistas e os orleanistas coligados, o
partido da ordem. Enquanto a República francesa se tornava assim
propriedade da coalizão dos partidos monarquistas, a coalizão europeia das
potências contrarrevolucionárias empreendia, no mesmo movimento, uma
cruzada geral contra os últimos refúgios das revoluções de março. A Rússia
invadia violentamente a Hungria, a Prússia marchava contra o exército
constitucional do Império e Oudinot atacava Roma. A crise europeia
aproximava-se manifestamente de uma reviravolta decisiva. Os olhos de toda
a Europa estavam fixados sobre Paris, os olhos de toda Paris sobre a
Assembleia legislativa.
Em 11 de junho, Ledru-Rollin subiu à tribuna, não fez nenhum discurso, e
formulou um requisitório contra os ministros, nu, sem aparatos, baseado
nos fatos, concentrado, violento.
O ataque contra Roma é um ataque contra a Constituição, o ataque contra a
República romana, um ataque contra a República francesa. O artigo cinco da
Constituição diz: "A República francesa não emprega jamais suas forças
contra a liberdade de nenhum povo", e o presidente dirige o exército
francês contra a liberdade romana. O artigo cinquenta e quatro da
Constituição proíbe ao poder executivo declarar qualquer guerra sem o
consentimento da Assembleia nacional. A decisão da Constituinte de 8 de
maio ordena expressamente aos ministros que reconduzam o mais rapidamente
possível a expedição romana à sua determinação original; proíbe então,
também expressamente, a guerra contra Roma - e Oudinott ataca Roma. Assim
Ledru-Rollin convocou a própria Constituição como testemunha de acusação
contra Bonaparte e seus ministros. A medida monarquista da Assembleia
nacional ele lançou em rosto, ele, o tribuno da Constituição, esta
declaração ameaçadora: "Os republicanos saberão fazer respeitar a
Constituição por todos os meios, até mesmo pela força das armas!" "Pela
força das armas!", repetiu o eco de cem vozes de La Montagne. A maioria
respondeu com um tumulto terrível. O presidente da Assembleia nacional
chamou Ledru-Rollin à ordem. Ledru-Rollin repetiu sua declaração
provocante e depôs finalmente sobre a mesa a proposta de acusação de
Bonaparte e seus ministros. A Assembleia nacional, por trezentos e
sessenta e um votos contra duzentos e três, decidiu, a propósito do ataque
a Roma, pura e simplesmente passar à ordem do dia.
Ledru-Rollin acreditava poder derrotar a Assembleia nacional com a
Constituição e o presidente com a Assembleia nacional?
A Constituição proibia, é verdade, qualquer ataque contra a liberdade de
países estrangeiros, mas o que o exército francês atacava em Roma não era,
segundo o ministério, a "liberdade", mas o "despotismo da anarquia". A
despeito de todas as experiências na Assembleia constituinte, La Montagne
ainda não havia compreendido que a interpretação da Constituição pertencia
apenas àqueles que a tinham feito aceitar? Que era preciso que o seu texto
fosse interpretado em seu sentido viável e que o sentido burguês era o seu
único sentido viável? Que Bonaparte e a maioria monarquista da Assembleia
nacional eram os intérpretes autênticos da Constituição, como o padre é o
intérprete autêntico da Bíblia, e o juiz o intérprete autêntico da Lei? A
Assembleia nacional recém saída das eleições gerais iria se deixar
acorrentar pelas disposições testamentárias da Constituinte morta, cuja
vontade um Odilon Barrot havia feito em pedaços em plena vida? Referindo-
se à decisão da Constituinte de 8 de maio, Ledru-Rollín tinha esquecido
que essa mesma Constituinte rejeitara em 11 de maio sua primeira proposta
de acusação a Bonaparte e seus ministros, que ela absolvera o presidente e
os ministros, que ela, assim, sancionara como "constitucional" o ataque
contra Roma, que ele só fazia interpor recurso contra um julgamento já
feito e que ele, enfim, chamava a Legislativa monarquista de Constituinte
republicana? A própria Constituição recorria à insurreição conclamando, em
um artigo especial, cada cidadão a defendê-la. Ledru-Rollin apoiou-se
neste artigo. Mas os poderes públicos não são igualmente organizados para
proteger a Constituição, e a violação da Constituição não começa somente a
partir do momento em que um dos poderes públicos constitucionais se rebela
contra o outro? E o presidente da República, os ministros da República, a
Assembleia nacional da República estavam no acordo mais harmonioso.
O que La Montagne procurava, em 11 de junho, era uma "insurreição nos
limites da razão pura", ou seja, uma insurreição puramente parlamentar.
Intimidada pela perspectiva de uma rebelião armada das massas populares, a
maioria da Assembleia tinha que quebrar, em Bonaparte e seus ministros, o
seu próprio poder e o significado de sua própria eleição. A Constituinte
não havia procurado de modo análogo anular a eleição de Bonaparte, quando
insistia com tanto ardor no afastamento do ministério Barrot-Falloux?
Os exemplos de insurreições parlamentares nos tempos da Convenção não
faltavam, quando tinham sido postas abaixo, de um só golpe, de alto a
baixo, as relações de maioria a minoria - e por que a jovem Montagne não
teria conseguido fazer o que havia conseguido a antiga? As condições do
momento não pareciam desfavoráveis a tal empresa. A agitação social havia
atingido em Paris um grau inquietante, o exército não parecia mais,
segundo seus votos, muito inclinado ao Governo, a maioria legislativa era
ainda recente, demais para se consolidar, e, além disso, se compunha de
gente idosa. Se La Montagne conseguisse uma insurreição parlamentar, o
leme do Estado ficaria Imediatamente entre suas mãos. Por seu lado, a
pequena burguesia democrata, como sempre, não desejava nada mais
impacientemente que ver começar a luta acima de sua cabeça, nas nuvens,
entre os espíritos dos mortos do Parlamento. Enfim, ambos, a pequena
burguesia democrata e seus representante, La Montagne, com uma insurreição
parlamentar, realizavam seu grande objetivo: quebrar o poder da burguesia
sem retirar as correntes do proletariado, ou sem fazê-lo de outra maneira
que não em perspectiva; o proletariado seria usado sem que se tomasse
perigoso.
Depois do voto de 11 de junho da Assembleia nacional, uma entrevista entre
alguns membros de La Montagne e delegados de sociedades secretas operárias
teve lugar. Os delegados insistiram para que se iniciasse um movimento
naquela mesma noite. La Montagne rejeitou resolutamente esse plano. Ela
não queria, sob nenhum preço, deixar que se tirasse o leme de suas mãos;
seus aliados lhe eram tão suspeitos quanto seus adversários, e com razão.
A lembrança de junho de 1848 agitava mais vivamente do que nunca as
fileiras do proletariado parisiense. Este, no entanto, estava preso à sua
aliança com La Montagne. Ela representava o maior partido dos
departamentos, abusava de sua influência no exército, dispunha da parcela
democrática da guarda nacional, tinha atrás de si o poder moral do
comércio. Começar a insurreição nesse momento, contra a sua vontade, era
para o proletariado, dizimado aliás pela cólera, expulso em massa de Paris
pelo desemprego, repetir inutilmente as jornadas de junho de 1848 sem as
condições que haviam imposto àquele combate desesperado. Os delegados
proletários fizeram a única coisa racional: conseguiram de La Montagne a
promessa de realmente se expor, ou seja, de sair dos limites da luta
parlamentar, no caso de seu ato de acusação ser rejeitado. Durante todo o
13 de junho o proletariado conservou essa atitude de observação cética e
esperou um corpo-a-corpo inevitável, seriamente comprometedor e sem volta,
entre a guarda nacional democrata e o exército, para se lançar então na
batalha e levar rapidamente a revolução para além do objetivo pequeno
burguês que lhe haviam determinado. Em caso de vitória, já se tinha
constituído a Comuna proletária que deveria se pôr ao lado do Governo
oficial. Os operários parisienses tinham aprendido a lição sangrenta de
junho de 1848.
Em 12 de junho, o ministro Lacrosse fez pessoalmente à Assembleia
legislativa a proposta de ser passado logo à discussão o ato de acusação.
Durante a noite, o Governo tinha tomado todas as providências para a
defesa e o ataque; a maioria da Assembleia nacional estava resolvida a
colocar na rua a minoria rebelde, a própria minoria não podia mais recuar,
os dados estavam lançados, trezentos e setenta e sete votos contra oito
rejeitaram o ato de acusação, La Montagne, que se abstivera de voto,
precipitou-se resmungando no hall de propaganda e nos gabinetes da
"Democracia pacífica". Uma vez afastada do prédio parlamentar, perdeu suas
forças, assim como perdia as forças o gigante Anteu sempre que se afastava
de sua mãe, a Terra. Sansões nos limites da Assembleia legislativa, eles
foram apenas filisteus nos limites da "Democracia pacifica". Um debate
desenrolou-se, longo, ruidoso, vazio. La Montagne estava resolvida a impor
o respeito à Constituição por todos os meios, "menos pela força das
armas". Ela foi apoiada em sua decisão por um manifesto e por uma
delegação de "Amigos da Constituição". “Amigos da Constituição", assim se
chamavam as ruínas da "igrejinha" no National, do partido burguês
republicano. Enquanto, dos representantes parlamentares que lhe restavam,
seis tinham votado contra a rejeição do ato de acusação e todos os outros
a favor, enquanto Cavaignac punha o seu sabre à disposição do partido da
ordem, a maior parte extraparlamentar da "igrejinha" aproveitava
avidamente a ocasião de sair de sua posição de pária político e de entrar
em massa nas fileiras do Partido Democrata. Não pareciam eles como arautos
naturais desse Partido que se escondia por trás de seu escudo, debaixo de
seu princípio, debaixo da Constituição?
La Montagne ficou trabalhando até o amanhecer. Ela deu à luz uma
"proclamação ao povo", que surgiu na manhã de 13 de junho em dois jornais
socialistas, em um lugar mais ou menos humilhante. Ela declarava o
presidente, os ministros, a maioria da Assembleia legislativa "à margem da
constituição" e convidava a guarda nacional, o exército e por fim também o
povo "a se revoltar". "Viva a Constituição!", era a palavra de ordem
lançada, palavra de ordem que não significava outra coisa senão "Abaixo a
revolução!"
A essa proclamação constitucional de La Montagne correspondeu, em 13 de
junho, ao que se pode chamar de uma demonstração pacífica dos pequenos
burgueses, ou seja, uma passeata que saiu do Château-dEau e passou pelos
boulevards: trinta mil homens, na maioria da guarda nacional, sem armas,
misturados a membros de seções operárias secretas, desfilando aos gritos
de "Viva a Constituição! ", lançados de maneira mecânica, glacial, pelos
próprios participantes da passeata e que o eco do povo que se precipitava
sobre as calçadas repetia ironicamente em lugar de engrossar, como se
fosse um trovão. A esse canto de múltiplas vozes faltava a voz do coração.
E quando o cortejo passou diante da sede dos "Amigos da Constituição" e
surgiu no alto da casa um arauto a soldo da Constituição, o qual, rompendo
o ar com um gesto decidido do seu chapéu alto, fez chover dos pulmões
ciclópicos, como uma chuva de granizo sobre a cabeça dos peregrinos, a
palavra de ordem: "Viva a Constituição!", esses mesmos peregrinos
pareceram por um instante vencidos pelo cômico da situação. Sabe-se que o
cortejo chegou aos bouleoarês, na entrada da Rue de Ia Paix foi recebido
de uma forma muito pouco parlamentar pelos dragões e caçadores de
Changarnier e se dispersou em todas as direções, lançando ainda atrás de
si alguns raquíticos gritos de "As armas!", a fim de que se completasse a
chamada parlamentar às armas de 11 de junho.
A maioria de La Montagne, reunida na Rue du Hasard, desapareceu quando
essa dispersão brutal do desfile pacifico, boatos confusos de assassinato
de cidadãos desarmados nos boulevards, o tumulto crescente na rua, tudo
parecia anunciar a proximidade de um motim. A frente de um pequeno grupo
de deputados, Ledru-Rollin salvou a honra de La Montagme. Sob a proteção
da artilharia de Paris, que se tinha unido no Palácio nacional, eles
rumaram ao Conservatório de Artes e Ofícios, onde a quinta e a sexta
legiões deveriam chegar. Mas foi em vão que os montagnards esperaram pelas
quinta e sexta legiões: estes prudentes guardas nacionais deixaram na
dúvida os seus representantes, a artilharia de Paris impediu, ela própria,
o povo de reerguer barricadas, um caos confuso tornava qualquer decisão
impossível, as tropas de linha avançaram, as baionetas cruzadas, uma parte
dos representantes foi feita prisioneira, a outra parte escapou. Assim
termina o 13 de junho.
Se 23 de junho de 1848 foi a insurreição do proletariado revolucionário,
13 de junho de 1848 foi a insurreição dos pequenos burgueses democratas,
cada uma dessas duas insurreições sendo a expressão pura, típica, da
classe que a dirigia.
Apenas em Lyon se chegou a um conflito encarniçado, sangrento. Naquela
cidade onde a burguesia e o proletariado se acham diretamente face a face,
onde o movimento operário não é, como em Paris, envolvido e determinado
pelo movimento geral, o 13 de junho perdeu, por consequência, seu caráter
primitivo. Nos lugares da província, porém, onde ele explodiu, não
incendiou - foi um clarão de entusiasmo.
13 de junho fechou o primeiro período de existência da República
constitucional que havia começado sua vida normal, em 29 de maio de 1849,
com a reunião da Assembleia legislativa. Todo o tempo que durou esse
prólogo é preenchido pela luta ruidosa entre o partido da ordem e La
Montagne, entre a burguesia e a pequena burguesia que se irrita
inutilmente contra o estabelecimento da República burguesa em favor da
qual ela havia conspirado, ela própria, ininterruptamente, no Governo
provisório e na Comissão executiva, e pela qual ela havia lutado
fanaticamente contra o proletariado durante as jornadas de junho. O 13 de
junho quebrou sua resistência e fez da ditadura legislativa dos
monarquistas unificados um fato consumado. A partir desse momento, a
Assembleia nacional é apenas o Comitê de segurança pública do partido da
ordem.
Paris tinha posto sob "acusação" o presidente, os ministros e a maioria da
Assembleia nacional; estes viram Paris em "estado de sítio". La Montagne
tinha declarado a maioria da Assembleia "à margem da Constituição", a
maioria citou La Montagne ante a Alta Corte por violação da Constituição e
tornou proscrito tudo o que havia ainda de vigoroso no seu seio.
Enfraqueceram-na a ponto de reduzi-la a um tronco sem cabeça nem coração.
A minoria tinha chegado até a tentar uma insurreição parlamentar; a
maioria elevou seu despotismo parlamentar ao nível de uma lei. Ela
decretou um novo regulamento que suprimia a liberdade da tribuna e dava
poder ao presidente da Assembleia nacional para punir por perturbação da
ordem os representantes através da censura, da multa, da suspensão da
imunidade parlamentar, da expulsão temporária, da prisão. Por cima do
tronco de La Montagne, a maioria suspendeu não a espada, mas a chibata. O
que restava dos deputados de La Montagne deveria, por uma questão de
honra, se retirar em massa. A dissolução do partido da ordem tinha sido
acelerada por tal ato. Ele só podia se decompor em seus elementos
originais, a partir do momento em que a aparência de uma oposição não os
mantinha mais unidos.
Ao mesmo tempo em que se os privava de sua força parlamentar, se despojava
os pequenos burgueses democratas de sua força armada, dispensava-se a
artilharia parisiense, assim como as oitava, nona e décima segunda legiões
da guarda nacional. Em compensação, a legião da alta finança, que em 13 de
junho havia assaltado as gráficas de Boulé e de Roux, quebrado as prensas,
devastado os escritórios dos jornais republicanos, detido arbitrariamente
redatores, compositores, impressores, expedidores, contínuos, essa legião
recebeu do alto da tribuna uma aprovação encorajadora. Por toda a extensão
da França se repetia a dissolução de todas as guardas nacionais suspeitas
de republicanismo.
Uma nova lei contra a imprensa, uma nova lei contra as associações, uma
nova lei sobre o estado de sítio, as prisões de Paris superlotadas, os
refugiados políticos perseguidos, todos os jornais fora das posições do
National suspensos. Lyon e os cinco departamento limítrofes entregues à
chicana brutal do despotismo militar, os substitutos presentes por todo
lado, a multidão de funcionários já frequentemente tão selecionada, mais
uma vez selecionada, tais como os lugares-comuns inevitáveis que repete
sem cessar a reação vitoriosa e que, depois dos massacres e as deportações
de junho, só merecem ser mencionadas porque, desta vez, foram dirigidos
contra Paris, e também contra os departamentos, contra o proletariado e
sobretudo as classes médias.
As leis repressivas que remetiam à decisão do Governo a proclamação do
estado de sítio, estrangulavam ainda mais fortemente a imprensa e
suprimiam o direito de associação, absorveram toda a atividade legislativa
da Assembleia nacional durante os meses de junho, julho e agosto.
No entanto, essa época se caracteriza não pela exploração de fato, mas de
principio, não pelas decisões da Assembleia nacional, mas pela exposição
dos motivos dessas decisões, não pela realidade, mas pela palavra, não
pela palavra, mas pela entonação e pelo gesto que animam a palavra. A
expressão insolente, desrespeitosa, das opiniões monarquistas, os insultos
de uma superioridade desdenhosa contra a República, a divulgação com
afetação frívola dos projetos de restauração, em uma palavra, a violação
fanfarrona das normas republicanas, dão a esse período sua tonalidade e
sua cor particulares. "Viva a Constituição!", foi o grito de batalha dos
vencidos de 13 de junho. Os vencedores estavam então desligados da
hipocrisia da linguagem constitucional, ou seja, republicana. A
contrarrevolução submetia a Hungria, a Itália, a Alemanha, e acreditava-
se, já, estar a Restauração às portas da França. Teve início uma
verdadeira concorrência para ver quem abria a dança entre os líderes das
frações da ordem, alardeando seu monarquismo no Moniteur, se confessando a
se arrependendo dos pecados que pudessem ter cometido pelo liberalismo sob
a República e implorando perdão a Deus e aos homens. Não se passava um dia
sem que na tribuna da Assembleia nacional a revolução fosse declarada uma
desgraça publica, sem que um fidalguete legitimista qualquer de província
constatasse solenemente que jamais havia reconhecido a República, sem que
um dos desertores e traidores poltrões da monarquia de julho contasse,
extemporaneamente, as proezas heroicas que somente a filantropia de Luís-
Filipe ou de outros mal entendidos o haviam impedido de realizar. O que se
devia admirar nas jornadas de fevereiro não era a generosidade do povo
vencedor, mas a abnegação e a moderação dos monarquistas que lhe haviam
permitido vencer. Um representante do povo propôs que uma parte dos
recursos destinados aos feridos de fevereiro fosse atribuída aos guardas
nacionais que, naquelas jornadas, tinham tão bem honrado a pátria. Outro
queria que se decretasse fosse erguida uma estátua equestre ao duque de
Orléans na Praça do Carrossel. Thiers tratou a Constituição de "pedaço de
papel sujo". Uns após outros surgiam na tribuna orleanistas que lamentavam
ter conspirado contra a monarquia legítima, legitimistas que se reprovavam
por ter acelerado a queda da monarquia em geral com sua rebelião contra a
monarquia ilegítima. Thiers que lamentava ter intrigado contra Molé, Molé
contra Guizot, Barrot contra todos os três. O grito de "Viva a República
socialdemocrata!" foi considerado inconstitucional. O grito de "Viva a
República!" foi acusado de socialdemocrata. No dia do aniversário da
batalha de Waterloo, um representante declarou: "Eu receio menos a invasão
dos prussianos que a volta à França dos exilados revolucionários." As
queixas contra o terrorismo organizado em Lyon e nos departamentos
vizinhos, Baraguay dHilliers respondeu: "Prefiro o terror branco ao terror
vermelho." E a Assembleia prorrompia em aplausos frenéticos cada vez que
um epigrama contra a Revolução, contra a República, contra a Constituição,
a favor da monarquia, a favor da Santa-Aliança, caía dos lábios de seus
oradores. Cada violação das menores formalidades republicanas - não
chamar, por exemplo, os representantes de "cidadãos" - entusiasmava os
cavalheiros da ordem.
As eleições complementares de 8 de julho em Paris, realizadas sob a
influência do estado de sítio e com a abstenção de grande parte do
proletariado, a ocupação de Roma pelo exército francês, a entrada em
cortejo das Eminências vermelhas e, após elas, da Inquisição e do
terrorismo dos monges em Roma, todos esses acontecimentos trouxeram novas
vitórias à vitória de junho e aumentaram a embriaguês do partido da ordem.
Enfim, em meados de agosto, metade com a intenção de assistir aos
Conselhos gerais que vinha de se reunir, metade por cansaço das orgias
ideológicas que duravam há muitos meses, os monarquistas decretaram um
recesso de dois meses da Assembleia nacional. Com visível ironia, eles
deixaram uma comissão de vinte e cinco representantes, a nata dos
legitimistas e dos orleanistas, um Molé, um Changarnier, como
representantes da Assembleia nacional e guardiães da República. A ironia
era maior do que eles pensavam. Condenados pela história a ajudar a
derrubada da monarquia que amavam, eles eram designados por ela para
conservar a República que odiavam.
Com o recesso da Assembleia legislativa, terminou o segundo período da
existência da República constitucional, seu período de folia monarquista.
O estado de sítio em Paris uma vez suspenso, a ação da imprensa foi
retomada. Durante a suspensão dos jornais socialdemocratas, no período da
legislação repressiva e das insanidades monarquistas, o Siècle, o velho
representante literário dos pequenos burgueses monarquistas
constitucionais, se republicanizou; La Presse, o velho representante
literário dos reformadores burgueses, se democratizou; Le National, o
velho órgão clássico dos burgueses republicanos, se socializou.
As sociedades secretas cresciam em extensão e em intensidade, à medida que
as associações políticas públicas se tornavam impossíveis. As associações
industriais operárias, toleradas como sociedades puramente comerciais, sem
qualquer valor econômico, tornavam-se, sob o ponto de vista político,
também meios de unir o proletariado. O 13 de junho havia tirado dos
diferentes partidos semi revolucionários os seus líderes oficiais; as
massas que ficaram ganharam com isso a vantagem de agir por iniciativa
própria. Os cavalheiros da ordem haviam intimidado profetizando os
horrores da República vermelha; os excessos grosseiros, as atrocidades
hiperbóreas da contrarrevolução vitoriosa na Hungria, em Bade, em Roma,
desculparam a "República vermelha". Quanto às camadas intermediárias
descontentes da sociedade francesa, elas começavam a preferir os sermões
da República vermelha com suas atrocidades problemáticas às atrocidades da
monarquia branca, com seu caráter de desespero real. Nenhum socialista na
França fez mais propaganda revolucionária do que Haynau. A cada capacidade
de acordo com as suas obras!
No entanto, Luís Bonaparte tirava proveito das férias da Assembleia
nacional para fazer viagens principescas pelas províncias; os legitimistas
mais ardentes iam em peregrinação a Ems, junto ao descendente de São Luís,
e a multidão de representantes do povo, amigos da ordem, faziam intrigas
nos conselhos gerais que acabavam de se reunir. Tratava-se de fazê-los
exprimir o que a maioria da Assembleia nacional ainda não ousava dizer, a
declaração de urgência de uma revisão imediata da Constituição.
Constitucionalmente, a Constituição não podia ser revisada senão em 1852 e
por uma Assembleia nacional convocada especialmente para isso. Mas se a
maioria dos conselhos departamentais se pronunciava neste sentido, a
Assembleia nacional não devia, em nome da França, sacrificar a virgindade
da Constituição? A Assembleia nacional nutria, com relação a essas
Assembleias provinciais, as mesmas esperanças das freiras com relação aos
Pandours na Henriade de Voltaire. Mas os Putiphars da Assembleia nacional
só tinham a tratar, com algumas poucas exceções, com outros tantos Josephs
provincianos. Uma maioria esmagadora não quis compreender a insinuação
apressada. A revisão da constituição foi desgraçada pelos próprios
instrumentos que deviam trazê-la à vida pelos votos dos Conselhos gerais.
A voz da França, e, na verdade, a voz da França burguesa, tinha falado e
se pronunciado contra a revisão.
No início de outubro, a Assembleia nacional legislativa se reuniu outra
vez - tantum mutatus ab illo. Sua fisionomia estava radicalmente
modificada. A rejeição da revisão pelos conselhos gerais a tinha
reconduzido aos limites da Constituição e lhe tinha mostrado os limites de
sua duração. Os orleanistas tinham ficado desconfiados com as
peregrinações dos legitimistas a Ems, os legitimistas suspeitando das
conversações orleanistas com Londres, os jornais das duas frações atiçavam
o fogo e pesavam as pretensões recíprocas de seus pretendentes;
orleanistas e legitimistas, unidos, guardavam rancor aos bonapartistas por
suas intrigas que revelavam as viagens principescas, as tentativas mais ou
menos visíveis de emancipação do presidente, a linguagem cheia de
pretensão dos jornais bonapartistas; Luís Bonaparte guardava rancor à
Assembleia nacional que só achava legítima a conspiração legitimista
orleanista, e a um ministério que o traía constantemente em favor da
Assembleia nacional. Enfim, o próprio ministério estava dividido quanto à
política romana e quanto ao imposto sobre o rendimento, proposto pelo
ministro Passy e denunciado como socialista pelos conservadores.
Uma das primeiras propostas do ministério Barrot à Assembleia legislativa
novamente reunida foi um pedido de crédito de trezentos mil francos para
constituir um dote para a duquesa de Orléans. A Assembleia nacional
concordou, acrescentando assim ao registro de dívidas da nação francesa
uma soma de sete milhões de francos. Deste modo, enquanto Luís-Filipe
continuava a fazer, com sucesso, o papel do "pobre soberbo", o ministério
não ousava propor um aumento de salário em favor de Bonaparte e a
Assembleia não parecia disposta a concordar com isso. E Luís Bonaparte
hesitava, como sempre, diante do dilema: Aut Caesar, aut Clichy.
O segundo pedido ministerial de crédito de nove milhões de francos para
pagar as despesas da expedição de Roma aumentou a tensão entre Bonaparte e
os ministros da Assembleia nacional. Luís Bonaparte tinha feito aparecer,
no Le Moniteur, uma carta ao seu oficial-ordenança, Edgar Ney, onde ele
obrigava o governo pontifical às garantias constitucionais. O papa, por
seu lado, havia lançado uma bula - motu proprio - em que ele rejeitava
qualquer restrição ao seu poder restaurado. Com sua carta, Bonaparte
levantava, por uma indiscrição deliberada, a cortina do seu gabinete, para
posar ele próprio diante da galeria como um gênio repleto de boa vontade
mas injustiçado, e prisioneiro dentro de sua própria casa. Não era a
primeira vez que ele representava, cheio de afetação, com o "bater de asas
furtivo de uma alma livre". Thiers, relator da comissão, ignorou
completamente o bater de asas de Napoleão e se contentou em traduzir para
o francês o texto pontifical. Não foi o ministério, mas Victor Hugo, quem
tentou salvar o presidente com uma ordem do dia em que a Assembleia devia
aprovar a carta de Napoleão. Vamos lá! Vamos lá! Foi com esta interjeição
fria e desrespeitosa que a maioria enterrou a proposta de V. Hugo. A
política do presidente? A carta do presidente? O próprio presidente? Vamos
lá! Vamos lá! Quem diabos leva Monsieur Bonaparte a sério? O senhor
acredita, Monsieur Victor Hugo, que nós acreditamos quando o senhor diz
que acredita no presidente? Vamos lá! Vamos lá!
Enfim, a ruptura entre Bonaparte e a Assembleia nacional foi precipitada
pela discussão sobre a volta dos Orléans e dos Bourbons. Na falta do
ministério, o primo do presidente, filho do ex-rei da Westfália, tinha
colocado essa proposta cujo único objetivo era o de levar os pretendentes
legitimistas e orleanistas ao mesmo nível, ou mais baixo, de preferência,
que o do pretendente bonapartista, pois este, pelo menos, estava de fato
na cúpula do poder.
Napoleão Bonaparte foi bastante irreverente para fazer da volta das
famílias reais exiladas, e da anistia dos insurrectos de junho, os artigos
de uma única proposta. A indignação da maioria forçou-o imediatamente a
pedir perdão por essa ligação criminosa do sagrado ao infame, das estirpes
reais à ralé proletária, das estrelas fixas da sociedade aos fogos fátuos
de seus pântanos, e dar a cada uma das duas propostas o valor que lhe era
merecido. A Assembleia nacional rejeitou energicamente a volta da família
real e Berryer, o Demóstenes dos legitimistas, não deixou qualquer dúvida
sobre o significado desse voto. A degradação burguesa dos pretendentes,
eis o objetivo almejado. Deseja-se roubar-lhes a auréola, a derradeira
majestade que lhes resta, a majestade do exílio! O que se pensaria,
gritava Berryer, desses pretendentes que, esquecidos de sua ilustre
origem, voltassem para viver aqui como simples cidadãos! Não se podia
dizer mais claramente a Luís Bonaparte que sua presença não lhe tinha
feito ganhar coisa alguma e que, se os monarquistas coligados precisavam
dele na França, como homem neutro sentado na cadeira presidencial, os
pretendentes sérios à coroa deviam continuar ocultos aos olhares profanos
pelas nuvens do exílio.
Em 1º de novembro, Luís Bonaparte respondeu à Assembleia legislativa com
uma mensagem que anunciava, em termos bastante bruscos, a demissão do
ministério Barrot e a constituição de novo ministério. O ministério
Barrot-Falloux era o ministério da coalizão monarquista, o ministério de
Hautpoul foi o ministério de Bonaparte, o órgão do presidente, ante a
Assembleia legislativa, o ministério dos empregados subalternos.
Bonaparte não era mais o homem simplesmente neutro de 10 de dezembro de
1848. A posse do poder executivo havia agrupado em torno dele inúmeros
interesses, a luta contra a anarquia obrigava o próprio partido da ordem a
aumentar sua influência, e se Bonaparte não era mais popular, o partido da
ordem era impopular. Face aos orleanistas e aos legitimistas, não podia
ele esperar, graças a sua rivalidade e à necessidade de uma restauração
monarquista qualquer, obriga-los ao reconhecimento do pretendente neutro?
É de 1º de novembro de 1849 que data o terceiro período de existência da
República constitucional, período que termina em 10 de março de 1850. Não
é apenas pelo jogo regular das instituições constitucionais, tão admirado
por Guizot, que começa a disputa entre o poder executivo e o poder
legislativo. Ante os anseios de restauração dos orleanistas e dos
legitimistas coligados, Bonaparte representa o titulo de seu poder real, a
República; ante os anseias de restauração de Bonaparte, o partido da ordem
representa o título de sua dominação comum, a República; ante os
orleanistas, os legitimistas, ante os legitimistas, os orleanistas
representam o status quo, a República. Todas essas frações do partido da
ordem, onde cada uma tem, in petto, o seu próprio rei e sua própria
restauração, fazem prevalecer alternativamente, face aos anseias de
usurpação e de afastamento de seus rivais, a dominação comum da burguesia,
a forma sob a qual as pretensões particulares ficam neutralizadas e postas
de lado - a República. Assim como Kant fez da República, única forma
racional de Estado, um postulado da razão prática, cuja realização jamais
é atingida, mas que é preciso procurar constantemente como objetivo e ter
sempre em mente, assim também esses monarquistas fazem da monarquia um
postulado.
Assim, a República constitucional, saída das mãos dos republicanos
burgueses como uma fórmula ideológica vazia, tornou-se nas mãos dos
monarquistas coligados uma forma viva e rica de conteúdo. E Thiers dizia
uma verdade maior do que pensava ao declarar: "Somos nós, os monarquistas,
os verdadeiros sustentáculos da República constitucional."
A queda do ministério de coalizão, a posse do ministério dos empregados
subalternos tem uma segunda significação. Seu ministro de finanças se
chamava Fould. Fould, ministro de finanças, é a entrega oficial da riqueza
nacional francesa à Bolsa, é a administração da fortuna política pela
Bolsa e no interesse da Bolsa. Com a nomeação de Fould, a aristocracia
financeira anunciava sua restauração no Le Moniteur. Esta restauração
completava necessariamente as outras que constituem como que elos da
corrente da República constitucional.
Luís-Filipe jamais tinha ousado fazer de um verdadeiro lince um ministro
das finanças. Mesmo que sua monarquia fosse o nome ideal para a dominação
da alta burguesia, os interesses privilegiados deviam em seus ministérios
trazer os nomes de uma ideologia desinteressada. A República burguesa por
toda parte impelia ao primeiro plano o que as diversas monarquias, tanto
legitimistas quanto orleanistas, traziam escondido nos bastidores. Ela fez
descer à terra o que aquelas haviam divinizado. Ela colocou os nomes
próprios burgueses dos interesses de classe dominantes no lugar dos nomes
de seus santos.
Toda a nossa exposição mostrou que a República, desde o primeiro dia de
sua existência, não derrubou, mas, ao contrário, constituiu a aristocracia
financeira. Mas as concessões que se lhe faziam eram um destino ao qual se
submetia sem se querer fazê-lo nascer. Com Fould, a iniciativa
governamental se tornou aristocracia financeira.
Perguntar-se-á como a burguesia coligada podia suportar e tolerar a
dominação das finanças que, sob Luís Filipe, repousava sobre a exclusão ou
a subordinação das outras frações burguesas?
A resposta é simples.
Antes de tudo, a aristocracia financeira constitui ela mesma um grupo de
uma importância preponderante na coalizão monarquista, cujo poder
governamental comum se chama República. Os corifeus e os luminares dos
orleanistas não são eles os antigos aliados e cúmplices da aristocracia
financeira? Não é ela a falange dourada do orleanismo? No que concerne aos
legitimistas, já sob Luís-Filipe eles haviam estado na prática de todas as
orgias de especulação bolsistas, mineiras, ferroviárias. Enfim, a união da
grande propriedade imóvel com a alta finança é um fato normal. Provam-no a
Inglaterra, a própria Áustria.
Em um país como a França, onde a importância da produção nacional é
imensamente inferior à da dívida nacional, onde a renda do Estado
constitui o objeto mais importante da especulação, e onde a Bolsa forma o
principal mercado para o investimento do capital que se queira investir de
maneira produtiva, em um país assim é preciso que uma multidão enorme de
pessoas de todas as classes burguesas ou semiburguesas participem da
dívida pública, do jogo da Bolsa, das finanças. Todos esses participantes
subalternos não encontram seu apoio e seus líderes naturais na fração que
representa esses interesses nas proporções mais maciças, e que os
representa em sua totalidade?
O que determina o fato de a fortuna pública cair nas mãos da alta finança?
O endividamento sempre crescente do Estado. E o endividamento do Estado? O
exceder contínuo das despesas sobre as receitas, desproporção que é, ao
mesmo tempo, causa e efeito do sistema de em préstimos públicos.
Para escapar a esse endividamento, é necessário que o Estado restrinja
suas despesas, ou seja, simplifique, reduza a máquina governamental, que
governe o menos possível, que se relacione o menos possível com a
sociedade burguesa. Coisa impossível para o partido da ordem, cujos meios
de repressão, cuja intromissão oficial em nome do Estado, cuja presença em
todos os lugares por intermédio de organismos do Estado tinham
necessariamente que aumentar à medida que sua dominação e as condições de
existência de sua classe estavam ameaçadas por todos os lados. Não se pode
reduzir a guarda quando se multiplicam os ataques contra as pessoas e a
propriedade.
Ou, então, é necessário que o Estado procure evitar as dívidas e chegue a
um equilíbrio instantâneo, ainda que provisório, do orçamento, fazendo
pesar sobre os ombros das classes mais ricas as contribuições
extraordinárias. Para subtrair a riqueza nacional à exploração da Bolsa, o
partido da ordem devia sacrificar a sua própria fortuna sobre o altar da
pátria? Não sejamos ingênuos!
Então, sem transformação completa do Estado francês, nada de transformação
do orçamento francês. Com o orçamento atual, necessidade de endividamento
do Estado, e, com o endividamento do Estado, necessidade da dominação do
comércio, das dívidas públicas, dos credores do Estado, dos banqueiros,
dos negociantes de dinheiro, dos linces. Apenas uma fração do partido da
ordem tomava parte diretamente na derrubada da aristocracia financeira: os
fabricantes. Não falamos dos industriais médios, nem dos pequenos, mas dos
administradores dos interesses da fábrica que tinham, sob Luís-Filipe,
formado a grande base da oposição dinástica. Seu interesse é,
incontestavelmente, a diminuição das despesas de produção, portanto a
diminuição dos impostos que entram na produção, portanto a diminuição das
dívidas públicas cujos juros entram nos impostos, portanto a derrubada da
aristocracia financeira.
Na Inglaterra - e os maiores fabricantes franceses não passam de pequenos
burgueses ao lado de seus rivais ingleses - encontramos realmente
fabricantes, um Cobden, um Bright, à frente da cruzada contra o banco e a
aristocracia bolsista. Por que isso não acontece na França? Na Inglaterra,
é a indústria que predomina; na França, é a agricultura. Na Inglaterra, a
indústria precisa do free trade: na França, ela precisa da proteção
duaneira, do monopólio nacional ao lado de outros monopólios. A indústria
francesa não domina a produção francesa, os industriais franceses, em
consequência, não dominam a burguesia francesa. Para fazer triunfar seus
interesses contra as outras frações da burguesia, eles não podem, como os
ingleses, se colocarem à frente do movimento e levar, ao mesmo tempo, ao
extremo seus interesses de classe; precisam seguir a revolução e servir a
interesses que são contrários aos interesses gerais de sua classe. Em
fevereiro, eles haviam negligenciado sua posição; fevereiro tornou-os
pessoas prudentes. E quem é mais diretamente ameaçado pelos operários que
o empregador, o capitalista industrial? Eis porque o fabricante se tornou
necessariamente, na França, o membro mais fanático do partido da ordem. A
diminuição do seu lucro pela finança o que é, comparado com a anulação do
lucro pelo proletariado?
Na França, o pequeno burguês faz o que normalmente devia fazer o burguês
industrial; o operário faz o que normalmente seria a tarefa do pequeno
burguês; e a tarefa do operário, quem a executa? Ninguém. Na França, a
tarefa não é executada; na França, ela é proclamada. Ela não é cumprida em
parte alguma nos limites da nação; a guerra de classes no seio da
sociedade francesa se expandiu até se tornar uma guerra mundial onde as
nações se encontram face a face. A solução apenas se aproxima no momento
em que, pela guerra mundial, o proletário se vê à frente do povo que
domina o mercado mundial, à frente da Inglaterra. A revolução encontrando
ali não o seu termo, mas um início de organização, não é uma revolução de
fôlego curto. A atual geração se assemelha aos judeus que Moises conduziu
através do deserto. Ela não tem apenas um novo mundo a conquistar; é
preciso que ela desapareça para dar lugar aos homens que estarão à altura
do novo mundo.
Voltemos a Fould.
Em 14 de novembro de 1849, Fould subiu à tribuna da Assembleia nacional e
expôs o seu sistema financeiro: apologia do antigo sistema fiscal,
manutenção do imposto sobre as bebidas, retirada do imposto sobre os
rendimentos de Passy!
E no entanto Passy não era um revolucionário, era um antigo ministro de
Luís-Filipe. Era um desses tipos de puritanos da força de Dufaure, um
desses confidentes mais íntimos de Teste, o bode-expiatório de monarquia
de julho. Passy, ele também, tinha feito o elogio do antigo sistema
fiscal, recomendado a manutenção do imposto sobre as bebidas, mas tinha,
ao mesmo tempo, rasgado o véu do déficit público. Ele tinha explicado a
necessidade de um novo imposto sobre os rendimentos, se não se quisesse ir
à bancarrota pública. Fould, que tinha aconselhado a bancarrota a Ledru-
Rollin, intercedeu junto à Legislativa em favor do déficit do Estado.
Prometeu economias cujo segredo se revelou mais tarde: viu-se, por
exemplo, as despesas diminuírem em sessenta milhões e a dívida flutuante
crescer em duzentos milhões - passe de mágica na articulação dos números,
no estabelecimento das contas que conduzem todas, finalmente, a novos
empréstimos.
Com Fould, a aristocracia financeira, ao lado das outras frações burguesas
que a invejavam, não mostrou, naturalmente, tanta corrupção cínica quanto
na época de Luís-Filipe. Mas o sistema continuava o mesmo: aumento
constante das dívidas, dissimulação do déficit. Depois, com o tempo, a
escroqueria bolsista de antigamente se manifestou com maior cinismo.
Provam isso a lei sobre a estrada de ferro de Avignon, as flutuações
misteriosas dos valores do Estado, das quais por algum tempo falou toda
Paris, enfim, as especulações infelizes de Fould e de Bonaparte sobre as
eleições de 10 de março.
Com a restauração oficial da aristocracia financeira, o povo francês não
podia deixar de se ver às vésperas de um novo 24 de fevereiro.
Em um acesso de misantropia contra a sua herdeira, a Constituinte havia
suprimido o imposto sobre as bebidas para o ano da graça de 1850. Não era
com a supressão de antigos impostos que se poderia pagar novas dívidas.
Créton, um cretino do partido da ordem, tinha proposto a manutenção do
imposto sobre as bebidas antes mesmo da prorrogação da Assembleia
legislativa. Fould retomou essa proposta em nome do ministério
bonapartista e, em 20 de dezembro de 1849, dia do aniversário da
proclamação de Bonaparte, a Assembleia nacional decidiu o restabelecimento
do imposto sobre as bebidas.
O primeiro orador em favor dessa decisão não era um financista, era o
líder dos jesuítas, Montalembert. Sua dedução foi de uma simplicidade
impressionante: o imposto é a teta onde mama o governo. O governo são os
instrumentos da repressão, são os órgãos da autoridade, é o exército, a
polícia, os funcionários, os juízes, os ministros, os padres. O ataque
contra o imposto é o ataque dos anarquistas contra os sentinelas da ordem,
que protegem a produção material e espiritual da sociedade burguesa contra
as incursões dos vândalos proletários. O imposto é a quinta divindade, ao
lado da propriedade, da família, da ordem e da religião. Então, o imposto
sobre as bebidas é incontestavelmente um imposto e, além disso, não é um
imposto comum, mas um imposto tradicional, de espírito monarquista,
respeitável. Viva o imposto sobre as bebidas! Three cheers and one cheer
more!
O camponês, quando evoca o diabo, dá-lhe os traços do meirinho, portador
de desassossego. Desde o momento em que Montalembert fez do imposto um
deus, o camponês se tornou ímpio, ateu e se atirou nos braços do diabo, o
socialismo. A religião da ordem tinha zombado dele, os jesuítas tinham
zombado dele, Bonaparte tinha zombado dele. O 20 de dezembro de 1849 tinha
comprometido irremediavelmente o 20 de dezembro de 1848. O "sobrinho do
seu tio" não era mais o primeiro de sua família que tinha sido derrotado
pelo imposto sobre as bebidas, por esse imposto que, segundo a expressão
de Montalembert, "anuncia a tormenta revolucionária". O verdadeiro, o
grande Napoleão declarava em Santa Helena que o restabelecimento do
imposto sobre as bebidas tinha contribuído mais para a sua queda do que
todo o resto, levando-o a ganhar a hostilidade dos camponeses do midi da
França. Objeto já da ira popular sob Luís XIV (ver as obras de
Boisguillebert e de Vauban), abolido pela primeira revolução, ele foi
restabelecido em 1808 por Napoleão sob nova forma. Quando a Restauração
chegou à França, não só os cossacos galopavam diante dela, mas também as
processas solenes de supressão do imposto sobre as bebidas. Naturalmente,
a nobreza não precisava cumprir a palavra ante à "gent taillable à merci
et miséricorde”; 1830 prometeu a supressão do imposto sobre as bebidas.
Não era de sua natureza fazer o que dizia e dizer o que fazia; 1848
prometeu a supressão do imposto sobre as bebidas como prometeu tudo.
Enfim, a Constituição, que não prometeu nada, teve, como já dissemos
antes, uma atitude testamentária segundo a qual o imposto sobre as bebidas
deveria desaparecer em 1º de janeiro de 1850. E foi justamente dez dias
antes do 1º de janeiro de 1850 que a Legislativa o restabeleceu. Assim, o
povo francês continuamente lhe dava caça, e quando o fazia sair pela
porta, via-o entrar pela janela.
O ódio popular contra o imposto sobre as bebidas se explica pelo fato dele
reunir em si todos os lados odiosos do sistema fiscal francês. Seu modo de
cobrança é odioso, seu modo de distribuição é aristocrático, pois, sendo
as porcentagens do imposto as mesmas para os vinhos mais ordinários e para
os mais finos, ele aumenta então em proporção geométrica à medida que
diminui a fortuna dos consumidores, é um imposto progressivo às avessas.
Também provoca ele diretamente o envenenamento das classes trabalhadoras,
fazendo ser mais procurados os vinhos falsificados e fabricados. Ele
diminui o consumo erguendo pontos fiscais na entrada de todas as cidades
com mais de quatro mil habitantes e transformando-as em espécie de países
estrangeiros antecipando os direitos de duana sobre o vinho francês.
Portanto, os grandes comerciantes de vinho, mais ainda os pequenos, os
vendedores de vinho, são também adversários declarados do imposto sobre as
bebidas. E, enfim, diminuindo o consumo, o imposto sobre as bebidas rouba
à produção o seu mercado. Ao mesmo tempo em que ele coloca os operários da
cidade na impossibilidade de pagar pelo vinho, ele coloca os viticultores
na incapacidade de vendê-lo. Ora, a França conta com uma população de doze
milhões de vinhateiros. Compreende-se logo o ódio do povo em geral;
compreende-se sobretudo o fanatismo dos camponeses contra o imposto sobre
as bebidas. Além do mais, no seu restabelecimento, os camponeses não viram
um fato isolado, mais ou menos acidental. Eles têm uma espécie de tradição
histórica que se transmite de pai para filho: nesta escola de história,
murmura-se ao pé do ouvido que cada governo, quando quer enganar os
camponeses, promete a supressão do imposto sobre as bebidas; e que, logo
depois de conseguir o que quer, ele o mantém ou o restabelece. É no
imposto sobre as bebidas que o camponês reconhece o "aroma" do governo,
sua orientação. O restabelecimento desse imposto, em 20 de dezembro,
significava: Luís Bonaparte é como os outros; mas ele não era como os
outros, ele era uma invenção dos camponeses, e, nas petições contra o
imposto sobre as bebidas, que contavam com milhões de assinaturas, eles
cobravam os votos que tinham dado, um ano antes, ao "sobrinho do seu tio".
A população campesina, que ultrapassa os dois terços da população
francesa, é composta em sua maior parte de proprietários rurais
pretensamente livres. A primeira geração, liberada pela Revolução de 1789
dos encargos feudais, nada havia pago pela terra. Mas as gerações
seguintes pagaram, sob a forma de valor da terra, o que seus antepassados
semi servos haviam pago sob a forma de renda, de dízimos, de corveias,
etc. Quanto mais a população crescia, mais a partilha das terras aumentava
e mais o preço do lote subia, pois a demanda crescia à medida que o seu
tamanho diminuía. Quanto mais aumentava o preço que o camponês pagava por
um lote, fosse por tê-lo comprado diretamente, fosse por tê-lo feito
contar como capital por seus coerdeiros, mais o endividamento do camponês,
ou seja, a hipoteca, aumentava na mesma proporção. O título de crédito
feito sobre a terra se chama, efetivamente, hipoteca, caução sobre a
terra. Assim como sobre a propriedade medieval se acumulavam os
privilégios, sobre o lote moderno se acumulam as hipotecas. Por outro
lado, no regime de loteamento, a terra é para o seu proprietário um mero
instrumento de produção. A medida que a terra é fragmentada, sua
fertilidade diminui. O uso da máquina na terra, a divisão do trabalho, as
grandes obras de melhoramento do solo, como os canais, a drenagem, a
irrigação, etc., tornam-se cada vez mais impossíveis, ao mesmo tempo em
que as despesas acidentais da cultura crescem proporcionalmente à divisão
do próprio instrumento de produção. E é assim que o proprietário do lote
possui ou não um capital. Quanto mais a divisão aumenta, e mais o imóvel
constitui com seu inventário extremamente miserável todo o capital do
camponês parcelário; e quando menos o capital se investe na terra, e mais
o pequeno camponês carece de terra, de dinheiro e de conhecimentos para
utilizar os progressos da agronomia; e mais a cultura do solo regride.
Enfim, o produto líquido diminui à medida que cresce o consumo bruto e que
a família inteira do camponês é afastada de qualquer outra ocupação por
sua propriedade e, nem assim, ela é capaz de sustentá-la.
É então na medida em que cresce a população, e com ela a partilha da
terra, que encarece o instrumento de produção, a terra, e que diminui sua
fertilidade; é na mesma medida que declina a agricultura e que se endivida
o camponês. E o que era o efeito se torna, por sua vez, a causa; Cada
geração deixa a outra mais endividada, cada nova geração começa nas
condições mais desfavoráveis e mais duras, a hipoteca gera a hipoteca, e
quando o camponês não pode mais oferecer a sua terra em penhor de novas
dívidas, ou seja, o encargo de novas hipotecas, ele se torna diretamente
presa da usura; e os juros usurários se fazem cada vez maiores.
Acontece então que o camponês francês, sob a forma de juros sobre as
hipotecas feitas sobre a terra, sob a forma de juros sobre os
adiantamentos não hipotecados dos usurários, cede ao capitalista não
apenas a renda da terra, não apenas o lucro industrial, em uma palavra,
não apenas todos os benefícios líquidos, mas até mesmo uma parte do
salário, de sorte que ele cai ao nível do fazendeiro irlandês; e tudo isso
sob o pretexto de ser proprietário privado.
Esse processo foi acelerado na França pelos encargos fiscais sempre
crescentes e pelas despesas de justiça, provenientes fosse diretamente das
próprias formalidades com as quais a legislação francesa cerca a
propriedade imóvel, fosse pelos inúmeros conflitos provocados pelos lotes
que, por toda parte, se tocam e se confundem, fosse pelo furor progressivo
dos camponeses cujo desfrute da sociedade se limita a fazer prevalecer
fanaticamente a sua propriedade imaginária, o direito de propriedade.
Segundo um quadro estatístico, datado de 1840, o produto bruto do solo na
França se eleva a cinco bilhões, duzentos e trinta e sete milhões, cento e
setenta e oito mil francos. Deve-se deduzir dai três bilhões, quinhentos e
cinquenta e dois milhões de francos pelas despesas de cultura da terra, aí
compreendida a alimentação dos homens que nela trabalham. Sobra um produto
líquido de um bilhão, seiscentos e oitenta e cinco milhões, cento e
setenta e oito mil francos, dos quais se deve deduzir quinhentos e
cinquenta milhões para os juros hipotecários, cem milhões para os
funcionários da justiça, trezentos e cinquenta milhões para os direitos de
registro, de franquias, de hipotecas, etc. Sobra a terça parte do produto
líquido, quinhentos e trinta e oito milhões; repartidos per capita da
população, não chega nem mesmo a vinte e cinco francos de produto líquido.
Naturalmente, não se conta nesse cálculo nem a usura não hipotecária, nem
os honorários de advogados, etc.
Compreender-se-á qual foi a situação dos camponeses franceses quando a
República somou novos encargos aos já existentes. Viu-se que sua
exploração se distingue apenas pela forma da exploração do proletariado
industrial. O explorador é o mesmo: o Capital. Os capitalistas,
propriamente ditos, exploram os camponeses, propriamente ditos, através
das hipotecas e da usura. A classe capitalista explora a classe camponesa
através do imposto do Estado. O título de propriedade é o talismã com o
qual o capital a tem até aqui enfeitiçado, o pretexto sob o qual ele a tem
incitado contra o proletariado industrial. Apenas a queda do capital pode
erguer o camponês, apenas um governo anticapitalista, proletário, pode
fazê-lo sair de sua miséria econômica, de sua degradação social. A
República constitucional é a ditadura de seus exploradores coligados, a
República socialdemocrata, a República vermelha, é a ditadura de seus
aliados. E a balança sobe ou desce de acordo com os votos que o camponês
atira dentro da uma eleitoral. Cabe a ele próprio decidir a sua sorte. Eis
o que diziam os socialistas em panfletos, almanaques, calendários,
folhetos de toda espécie. Essa linguagem se tornava mais compreensível ao
camponês graças às publicações contrárias do partido da ordem, que se
dirigindo a ele, por seu turno, com o exagero grosseiro, a interpretação e
a representação brutais das intenções e das ideias dos socialistas,
atingiam o tom exato em camponês e despertavam o desejo pelo fruto
proibido. Mas a linguagem mais compreensível eram as próprias experiências
que a classe camponesa tinha do exercício do direito do voto, e as
decepções que, na precipitação revolucionária, se tinham abatido
continuamente sobre ela. As revoluções são a locomotiva da história.
A agitação gradual se manifestou entre os camponeses através de diferentes
sintomas. Revelou-se, já, nas eleições da Assembleia legislativa, mostrou-
se no estado de sítio proclamado nos cinco departamentos limítrofes de
Lyon; mostrou-se alguns meses depois de 13 de junho com a eleição de um
montagnard no lugar do antigo presidente da Câmara inencontrável no
departamento de Gironde; mostrou-se, em 20 de dezembro de 1849, com a
eleição de um deputado vermelho em lugar de um legitimista falecido no
departamento de Gard, esta terra prometida dos legitimistas, teatro dos
mais terríveis crimes contra os republicanos em 1794 e 1795, centro do
terror branco em 1815, quando liberais e protestantes foram publicamente
assassinados. Foi após o restabelecimento do imposto sobre as bebidas que
essa revolução da classe mais acomodada se manifestou da maneira mais
visível. As medidas governamentais e as leis de janeiro e fevereiro de
1850 eram quase que exclusivamente dirigidas contra os departamentos e os
camponeses. É a prova mais impressionante do seu progresso.
A circular de Hautpoul, fazendo do gendarme o inquisidor do prefeito, do
subprefeito e antes de tudo do maire, que organizava espionagem até nos
recantos da comuna rural mais distante; a lei contra os professores, que
os subjugava, eles, os luminares, os porta-vozes, os educadores e os
intérpretes da classe camponesa, ao arbítrio do prefeito que os perseguia
de uma com una a outra como um animal a ser caçado, a esses proletários da
classe instruída; a proposta de lei contra os maires, que erguia acima de
suas cabeças a espada de Democles da revolução ,e que confrontava a cada
instante, eles, presidentes das comunas, ao presidente da República e ao
partido da ordem; a ordem que transformava as dezessete regiões militares
da França em quatro paxaliques e que concedia aos franceses a caserna e o
acampamento como salão nacional; a lei sobre o ensino, pela qual o partido
da ordem proclamava que a inconsciência e o embrutecimento da França pela
força são a condição de sua existência. O que eram todas essas leis e
medidas? Formas de tentativas desesperadas do partido da ordem ganhar de
novo os departamentos e os camponeses dos departamentos.
Considerados como meios de repressão, eles eram lastimáveis e iam de
encontro ao seu próprio objetivo. As grandes medidas como a manutenção do
imposto sobre as bebidas, o imposto dos quarenta e cinco cêntimos, a
rejeição desdenhosa das petições dos camponeses pedindo o reembolso dos
bilhões, etc., todos esses raios legislativos vindos do centro caíam sobre
a abandonada classe camponesa como uma chicotada; as leis e medidas
mencionadas fizeram do ataque e da resistência a conversa diária geral em
cada casebre, inoculando a revolução em cada aldeia; elas localizaram a
revolução e a tornaram camponesa.
Por outro lado, essas propostas de Bonaparte, sua adoção pela Assembleia
nacional, não provam a união dos dois poderes da República constitucional,
pelo menos quando se trata da repressão da anarquia, melhor dizendo, de
todas as classes que se insurgem contra a ditadura burguesa? Soulouque não
havia, imediatamente após sua brusca mensagem, assegurado à Legislativa o
seu devotamento à ordem através da mensagem de Carlíer, esta caricatura
obscena, grosseira, de Fouché, como o próprio Luís Bonaparte era a
caricatura vulgar de Napoleão?
A lei sobre o ensino nos mostra a aliança dos jovens católicos e dos
velhos voltaireanos. A dominação dos burgueses unidos podia ser outra
coisa senão o despotismo coligado da Restauração amiga dos jesuítas e da
monarquia de julho se julgando acima do bem e do mal? As armas que uma das
frações burguesas havia distribuído entre o povo contra a outra, em suas
lutas recíprocas pela supremacia, não era preciso tomá-las de volta ao
povo quando este começou a se opor à sua ditadura conjugada? Nada irritou
mais o comércio parisiense do que essa afetada demonstração de jesuitismo,
nem mesmo a rejeição das concordatas amigáveis. Entretanto, as coalizões
continuavam tão bem entre as diferentes frações do partido da ordem quanto
entre a Assembleia nacional e Bonaparte. Não agradou muito à Assembleia
nacional que Bonaparte, imediatamente após seu golpe de Estado, após a
formação de seu próprio ministério bonapartista, tivesse convocado diante
de si os impotentes da monarquia, agora nomeados prefeitos, e feito de sua
agitação anticonstitucional em favor de sua reeleição à presidência a
condição para mantê-los em suas funções; que Carlier tivesse celebrado a
sua posse com a extinção de uma associação política legitimista; que
Napoleão tivesse fundado o seu próprio jornal, o Napoléon, que revelava ao
público as ambições secretas do presidente, enquanto que seus ministros
eram obrigados a desmenti-Ias na tribuna da Legislativa; não a agradou
tampouco essa manutenção insolente do ministério apesar dos inúmeros votos
de desconfiança, nem a tentativa de captar o apoio de suboficiais através
de um elevado soldo diário de quatro sous, e o apoio do proletariado
através de uma espécie de plágio dos Mysteres, de Eugene Sue, o banco de
empréstimos sem juros; desagrado, enfim, ante a insolência com a qual se
fazia propor pelos ministros a deportação para a Algéria dos últimos
insurrectos de junho, para lançar a impopularidade por atacado sobre os
representantes legislativos, enquanto o presidente reservava para si
próprio a popularidade a varejo com alguns atos de benevolência. Thiers
soltou palavras ameaçadoras de golpes de Estado e de decisões levianas, e
a Legislativa se vingou rejeitando qualquer proposta de lei que ele
apresentasse pessoalmente, submetendo a um ruidoso inquérito, cheia de
desconfiança, cada uma daquelas que ele fizesse no interesse geral, para
ver se, aumentando o poder executivo, ele não visava o lucro do poder
pessoal. Resumindo, ela se vingava com a conspiração da indiferença. O
partido dos legitimistas, por seu turno, via com descontentamento os
orleanistas, mais capazes, se apoderarem outra vez de quase todos os
postos e a centralização crescer, enquanto ele procurava por princípio sua
segurança na descentralização. E era a verdade. A contrarrevolução
centralizava à força, ou seja, ela preparava o mecanismo da revolução.
Através do curso forçado das notas bancárias, ela centralizava até mesmo o
ouro e a prata da França no Banco de Paris, criando assim o tesouro de
guerra preparado da revolução.
Os orleanistas, enfim, constataram com despeito que se estava opondo o
princípio da legitimidade ao seu princípio do abastardamento e se viam
negligenciados e maltratados a cada instante como um marido nobre casado
com uma burguesa.
Vimos os camponeses, os pequenos burgueses, as camadas médias em geral,
passarem progressivamente para os lados do proletariado, levados à
oposição declarada contra a República oficial, tratados por esta como
adversários. Revolta contra a ditadura burguesa, necessidade de
modificação da sociedade, manutenção das instituições democrático-
republicanas como seus órgãos motores, agrupamento em torno do
proletariado enquanto força revolucionária decisiva - tais são as
características comuns do que se chama o partido da socialdemocracia, o
partido da república vermelha. Esse partido da anarquia, como o batizaram
seus adversários, é, tanto quanto o partido da ordem, uma coalizão de
interesses diferentes. Da menor reforma da antiga desordem social até a
subversão dessa antiga ordem social, do liberalismo burguês até o
terrorismo revolucionário, esses são os pontos extremos que constituem, ao
mesmo tempo, o ponto de partida e o ponto terminal do partido da
"anarquia".
A supressão dos direitos protecionistas - é socialismo!, porque ela se
opõe ao monopólio da fração industrial do partido da ordem. A
regularização do orçamento do Estado - é socialismo!, porque ela se opõe
ao monopólio da fração financeira do partido da ordem. O livre acesso da
carne e dos cereais estrangeiros - é socialismo!, porque ele se opõe ao
monopólio da terceira fração do partido da ordem, o grande proprietário
rural. As reivindicações do partido livre-cambista, ou seja, do partido
burguês inglês mais avançado, surgiram na França também como
reivindicações socialistas. O voltaireanismo - é socialismo!, porque ele
se opõe a uma quarta fração do partido da ordem, a fração católica.
Liberdade de imprensa, direito de associação, instrução geral do povo, é
socialismo, ainda socialismo! Eles se opõem ao monopólio do partido da
ordem em seu todo.
A marcha da revolução tinha tão rapidamente levado à maturidade a situação
que os amigos das reformas de todas as espécies, que as exigências as mais
modestas das classes médias, eram obrigados a se juntar em torno da
bandeira do partido subversivo mais radical, a bandeira vermelha.
Por mais variado que fosse, aliás, o socialismo das diversas grandes
frações do partido da anarquia, segundo as condições econômicas e todas as
necessidades revolucionárias de sua classe ou de sua fração de classe, ele
estava de acordo quanto a um ponto: proclamar que ele era o meio de
emancipação do proprietário e que a emancipação deste era o seu objetivo.
Mentira deliberada para uns, ilusão para outros, que proclamam o mundo
transformado conforme suas necessidades como o melhor dos mundos para
todos, como a realização de todas as exigências revolucionárias, e a
supressão de todas as coalizões revolucionárias.
Sob as palavras socialistas em geral bastante semelhantes às do partido da
anarquia, se esconde o socialismo do National, de La Presse e do Siêcle,
que quer, de maneira mais ou menos consequente, derrubar a dominação da
aristocracia financeira e liberar a indústria e o comércio de suas antigas
correntes. É o socialismo da indústria, do comércio e da agricultura,
cujos administradores do partido da ordem renegam os interesses à medida
que eles não estão mais em acordo com os seus monopólios privados. Desse
socialismo burguês, que, naturalmente, como cada uma das variedades de
socialismo, congrega uma parcela de operários e de pequenos burgueses, se
distingue o socialismo pequeno burguês propriamente dito, o socialismo por
excelência. O capital persegue essa classe principalmente enquanto credor:
ela pede instituições de crédito; ele a esmaga pela concorrência, ela pede
associações subvencionadas pelo Estado; ele a oprime pela concentração,
ela pede impostos progressivos, restrições à herança, a execução pelo
Estado de grandes obras e outras medidas que entravem violentamente o
crescimento do capital. Como ela sonha com uma realização pacífica do seu
socialismo - exceto, talvez, uma segunda revolução de fevereiro, de alguns
dias -, o processo próximo histórico lhe parece, naturalmente, a aplicação
de sistemas que os pensadores sociais concebem ou conceberam em conjunto
ou isoladamente. Os pequenos burgueses se tornam assim eleáticos ou os
adeptos dos sistemas socialistas existentes, do socialismo doutrinário que
foi a expressão teórica do proletariado durante tanto tempo que ele, o
proletariado, não se encontrava ainda desenvolvido o suficiente para se
tornar um movimento histórico livre e independente.
Assim, enquanto a utopia, o socialismo doutrinário que subordina o
conjunto do movimento a um de seus momentos, que coloca no lugar da
produção comum, social, a atividade cerebral do pedante individual e cuja
fantasia suprime a luta revolucionária das classes com suas necessidades,
por meio de pequenos artifícios ou de grandes sentimentalismos, enquanto
esse socialismo doutrinário que se limita no fundo a idealizar a sociedade
atual, a reproduzir-lhe uma imagem sem qualquer sombra e que deseja fazer
triunfar o seu ideal sobre a realidade social; enquanto o proletariado
deixa esse socialismo para a pequena burguesia, enquanto a luta dos
diferentes sistemas entre si faz surgir cada um dos pretensos sistemas
como a manutenção pretensiosa de um dos pontos de transição da agitação
social contra outro ponto, o proletariado se une cada vez mais em torno do
socialismo revolucionário, em torno do comunismo ao qual a própria
burguesia deu o nome de Blanqui. Esse socialismo é a declaração permanente
da revolução, a ditadura de classe do proletariado, transição necessária
para chegar à extinção das diferentes classes em geral, à extinção de
todas as relações de produção sobre as quais elas se apoiam, à extinção de
todas as relações sociais que correspondem àquelas relações de produção, à
subversão de todas as ideias que emanam dessas relações sociais.
O espaço reservado a esta exposição não permite desenvolver
suficientemente esse assunto.
Vimos que, se dentro do partido da ordem foi a aristocracia financeira
quem tomou necessariamente a frente, no partido da "anarquia" foi o
proletariado. Enquanto as diversas classes unidas em uma liga
revolucionária se agrupavam em torno do proletariado, enquanto os
departamentos se tornavam cada vez menos seguros e a própria Assembleia
legislativa se irritava cada vez mais com as pretensões do Soulouque
francês, as eleições complementares, por tanto tempo adiadas e retardadas
para substituir os montagnards proscritos do 13 de junho, se aproximavam.
Desprezado por seus inimigos, maltratado e diariamente humilhado por seus
pretensos amigos, o Governo só via um modo de sair de sua situação
repugnante e insuportável: o tumulto. Um tumulto em Paris lhe permitiria
proclamar o estado de sítio na capital e nos departamentos e lhe daria
assim o comando das eleições. Por outro lado, os amigos da ordem, face a
um Governo que houvesse alcançado a vitória sobre a anarquia, seriam
obrigados a fazer concessões, caso não quisessem eles próprios aparecer
como anarquistas.
O Governo pôs mãos à obra. No início de fevereiro de 1850, ele provocou o
povo abatendo as árvores da liberdade. Uma vez desaparecidas as árvores da
liberdade, o próprio Governo perdeu a cabeça e recuou, assustado diante da
sua provocação. Mas a Assembleia nacional recebeu essa desajeitada
tentativa de emancipação de Bonaparte com uma desconfiança glacial. A
retirada das coroas dos imortais sobre o obelisco de julho não teve maior
sucesso. Ela forneceu a uma parte do exército a ocasião para manifestações
revolucionárias, e à Assembleia nacional o pretexto para um voto de
desconfiança mais ou menos disfarçado contra o ministério. E foi em vão
que a imprensa governamental ameaçou com a supressão do sufrágio
universal, a invasão dos cossacos. Inutilmente Houtpoul convidou, em plena
Legislativa, a esquerda a descer à rua, declarando que o Governo estava
disposto a recebê-la. Haultpoul não obteve nada mais que uma chamada à
ordem do presidente, e o partido da ordem deixou, com uma secreta alegria
maligna, um deputado da esquerda ridicularizar as ambições usurpadoras de
Bonaparte. Inutilmente, por fim, profetizou-se uma revolução para o dia 24
de fevereiro. O Governo deu um jeito para que o 24 de fevereiro fosse
ignorado pelo povo.
O proletariado não se deixava provocar a qualquer agitação, porque estava
a ponto de fazer uma revolução.
Sem se deixar deter pelas provocações do Governo, que só faziam aumentar a
irritação geral contra o estado de coisas reinante, o comitê eleitoral,
que estava sob a influência dos operários, apresentou três candidatos para
Paris: Deflotte, Vidal e Carnot. Deflotte era um deportado de junho,
anistiado por Napoleão num ato visando à popularidade, era amigo de
Blanqui e havia participado do atentado de 15 de maio; Vidal, antigo
secretário de Louis Blanc na comissão do Luxemburgo, era conhecido como
escritor comunista por seu livro De la répartition des richesses; Carnot,
filho do convencional que havia organizado a vitória, o menos comprometido
dos membros do partido do National, tinha sido ministro do Ensino no
Governo provisório e na Comissão Executiva; seu projeto de lei democrático
sobre o ensino popular era um protesto vivo contra a lei sobre o ensino
devida aos jesuítas. Esses três candidatos representavam as três classes
aliadas: à frente, o insurrecto de junho, o representante do proletariado
revolucionário; ao seu lado, o socialista doutrinário, o representante da
pequena burguesia socialista; o terceiro, enfim, o representante do
partido republicano burguês, cujas fórmulas democráticas, face ao partido
da ordem, adquiriam um sentido socialista, e haviam perdido há muito tempo
o seu sentido próprio. Era, como em fevereiro, uma coalizão geral contra a
burguesia e o Governo. Mas, desta vez, o proletariado estava à frente da
liga revolucionária.
Apesar de todos os esforços, os candidatos socialistas triunfaram. O
próprio exército votou no insurrecto de junho, contra o seu próprio
ministro da Guerra, Lahittte. O partido da ordem foi como que atingido por
um raio. As eleições nos departamentos não lhe serviram de consolo: seu
resultado foi uma maioria de montagnards. A eleição de 10 de março de
18501 Era a negação de junho de 1848: os massacradores e os "deportadores"
dos rebeldes de junho voltavam à Assembleia Nacional, a espinha curvada,
atrás dos deportados e seus princípios desdenhosos. Era a negação do 13 de
junho de 1849: La Montagne, proscrita pela Assembleia nacional, voltava à
Assembleia nacional, mas como o corneteiro avançado da revolução e não
mais como o seu líder. Era a negação do 10 de dezembro: Napoleão havia
sofrido um revés com o seu ministro Lahitte. A história parlamentar da
França conhece apenas um caso análogo: o fracasso de Haussez, ministro de
Charles X, em 1830. A eleição de 10 de março de 1850 anulava, enfim, a de
13 de maio, que tinha dado a maioria ao partido da ordem. A eleição de 10
de março protestava contra a maioria de 13 de maio. O 10 de março era uma
revolução. Por trás das cédulas de voto, a derrota inesperada.
"O voto de 10 de março é a guerra", gritava Ségur dAguesseau, um dos
membros mais destacados do partido da ordem.
Com o 10 de março de 1850, a República constitucional entra em uma nova
fase, na fase de sua dissolução, As diferentes frações da maioria estão
outra vez unidas entre si e a Bonaparte. Elas são outra vez os cavalheiros
da ordem e ele é outra vez o seu homem neutro. Quando elas lembram que são
monarquistas, unicamente porque não têm mais esperanças na possibilidade
da República burguesa; ele, quando lembra que é o presidente, é unicamente
porque não tem esperança de continuar a sê-lo.
A eleição de Deflotte, o rebelde de junho, Bonaparte responde, sob
indicação do partido da ordem, com a nomeação de Baroche como ministro do
Interior; Baroche, o acusador de Blanqui e de Barbês, de Ledru-Rollin e de
Guinard. A eleição de Carnot, a Legislativa responde com o voto da lei
sobre o ensino; à eleição de Vidal, com o estrangulamento da imprensa
socialista. Pelas "trombetadas" de sua imprensa, o partido da ordem
procura dissipar o seu próprio medo. "A espada é sagrada", clama um de
seus órgãos. "É preciso que os defensores da ordem tomem a ofensiva contra
o partido vermelho", diz outro. "Entre o socialismo e a sociedade há um
duelo de morte, uma guerra impiedosa, sem tréguas; nesse duelo
desesperado, é preciso que um ou outro desapareça, se a sociedade não
anular o socialismo, o socialismo anulará a sociedade", canta um terceiro
galo da ordem. Levantem as barricadas da ordem, as barricadas da religião!
É preciso romper com os cento e vinte e sete mil eleitores de Paris! Um
São Bartolomeu dos socialistas! E o partido da ordem acreditou por um
instante na certeza de sua própria vitória. É contra os "comerciantes de
Paris" que seus órgãos se debatem da maneira a mais fanática. O rebelde de
junho, representante eleito pelos comerciantes de Paris! Isto quer dizer
que um segundo junho de 1848 é impossível, Isto quer dizer que um segundo
13 de junho de 1849 é impossível, isto quer dizer que a influência moral
do capital foi destruída, isto quer dizer que a Assembleia burguesa
representa apenas a burguesia, isto quer dizer que a grande propriedade
está perdida, pois o seu vassalo, a pequena propriedade, procura sua
salvação no campo dos não capitalistas.
O partido da ordem torna inevitavelmente ao seu lugar comum: "Maior
repressão!", exclama ele, "dez vezes mais repressão!"; mas o seu poder de
repressão está dez vezes mais fraco, ao passo que a resistência está cem
vezes mais forte. O instrumento principal da repressão, o exército, não
será preciso chamá-la à razão? E o partido da ordem pronuncia as suas
últimas palavras: "É necessário romper o círculo de ferro de uma
legalidade sufocante. A República constitucional é impossível. É
necessário que lutemos com nossas verdadeiras armas: depois de fevereiro
de 1848, nós combatemos a Revolução com as suas armas e dentro do seu
terreno; aceitamos suas instituições, a Constituição é uma fortaleza que
protege os atacantes, não os atacados. Escondendo-nos no ventre do cavalo
de Tróia, na santa Ilium, imitando os nossos ancestrais, os gregos, nós
não conquistamos a cidade inimiga, nós fomos feitos, ao contrário, nós
mesmos, os prisioneiros."
Mas o fundamento da Constituição é o sufrágio universal. A supressão do
sufrágio universal será a última palavra do partido da ordem, da ditadura
burguesa.
O sufrágio universal deu-lhe razão em 24 de maio de 1848, em 20 de
dezembro de 1848, em 13 de maio de 1849, em 8 de julho de 1849. O sufrágio
universal prejudicou a si próprio em 10 de março de 1850. A dominação
burguesa, enquanto emanação e resultado do sufrágio universal, enquanto
expressão da vontade do povo soberano, eis o sentido da Constituição
burguesa. Mas, a partir do momento em que o conteúdo desse direito ao
sufrágio, dessa vontade soberana não é mais a dominação burguesa, a
Constituição terá ainda um sentido? Não é dever da burguesia regulamentar
o direito do voto de maneira tal que ele aceite o razoável, seja sua
dominação? O sufrágio universal, suprimindo constantemente outra vez o
poder público reinante, e fazendo-o emanar outra vez de seu seio, não
suprime toda a estabilidade, não põe a cada instante em questão todos os
poderes estabelecidos, não anula a autoridade, não ameaça fazer da própria
anarquia a autoridade? Depois de 10 de março quem podia ainda duvidar?
Rejeitando o sufrágio universal, no que ela se tinha até então envolvido,
e do qual ela extraía toda a sua onipotência, a burguesia confessa sem
rodeios: "Nossa vitória se manteve até aqui pela vontade do povo; é
preciso consolidá-la agora contra a vontade do povo." E, de uma maneira
consequente, ela procura seus apoios não mais na França, mas fora dela, no
estrangeiro, na invasão.
Com a invasão, segundo Coblence, tendo estabelecido a sua sede na própria
França, ela levanta todas as paixões nacionais contra ela. Com seu ataque
ao sufrágio universal, ela fornece à nova revolução um pretexto geral; e a
revolução precisa de um pretexto assim. Qualquer pretexto particular
separaria as frações da liga revolucionária e faria surgir suas
diferenças. O pretexto geral atordoa as classes semi revolucionárias;
permite-lhes se iludirem elas próprias sobre o caráter determinado da
revolução vindoura, sobre as consequências de sua própria ação. Toda
revolução precisa de um "caso dos banquetes". O sufrágio universal é o
"caso dos banquetes" da nova revolução.
Mas as frações burguesas coligadas já estão condenadas quando se refugiam
à margem da única forma possível de seu poder comum, essa forma a mais
pujante e a mais acabada de sua dominação de classe, a Republica
constitucional, e em direção à forma inferior, incompleta e mais fraca da
monarquia. Elas parecem o velho que para reconquistar suas forças juvenis,
volta a usar as suas roupas de infância e procura, mal e mal, esconder
seus membros encarquilhados. A República das frações burguesas coligadas
tem um único mérito, o de ser a estufa da revolução.
O 10 de março de 1850 traz por epígrafe:
"Depois de mim, o dilúvio".

Você também pode gostar