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Como diz Chesterton, Há quase tanta superstição em beijar a Bíblia quanto em consultar o

dicionário. O homem moderno, sobretudo o homem da cidade, pensa que tudo o que está
impresso passou de alguma maneira por um exame e recebeu um diploma, que é de algum
modo verdadeiro em si mesmo… O homem moderno acredita antes na enciclopédia do que na
testemunha ocular; dá mais crédito ao que noticia o jornal do que aos olhos de quem
presenciou o fato. Ele compra o jornal na manhã seguinte para descobrir o que realmente se
passou no evento de que ele mesmo participou na noite anterior. Tudo isso pôs a Bíblia numa
situação mais do que curiosa. Chesterton resumiu bem o problema há quase cem anos, mas a
sua análise permanece ainda muito precisa. Ele está certo, de modo particular, ao dizer que “a
ignorância sobre essas coisas está crescendo”. Em primeiro lugar, há os fundamentalistas, que
recorrem à Bíblia sem a menor consideração pela autoridade que, na verdade, fixou o cânon
bíblico. Trata-se, segundo Chesterton, “de uma mitologia, segundo a qual o elefante se apoia
sobre o casco da tartaruga, e a tartaruga, por sua vez, não se apóia em coisa nenhuma”. Há, em
segundo lugar, os setores mais laxistas, que são no fundo bastante estritos, para quem só
algumas passagens da Bíblia podem ser ensinadas em público, ao passo que todo o restante é
inapropriado. Em terceiro lugar, há os modernistas, que acusam a Igreja Católica de ter feito na
“idade das trevas” aquilo que os laxistas têm feito agora: selecionar arbitrariamente certos
trechos da Bíblia e esconder o resto do povo. (Esta é a acusação à Igreja que se faz, por
exemplo, no conhecido “O Código da Vinci”.) A Igreja, diz Chesterton, “tem sido acusada de
esconder a Bíblia; mas, ainda que isso fosse verdade, seria algo muito menos surpreendente do
que a fez a Reforma, que teve grande êxito em esconder tudo o mais”. O protestantismo foi
muito bem sucedido em esconder da civilização ocidental a sua própria história. E há, por outro
lado, a única Igreja que manteve íntegra a Bíblia, enriquecendo com seus textos a liturgia,
cantando dia após dia as suas orações, aplicando sua sabedoria atemporal a estes tempos. É a
mesma Igreja que teve o cuidado de preservar outros documentos antigos que não só atestam
a veracidade das Escrituras, mas ainda demonstram qual a diferença entre um texto inspirado e
outro não. A Igreja Católica, que ainda ensina tudo o que está contido nas Escrituras, pode
indicar em que parte da Bíblia se encontra o fundamento de cada um de seus ensinamentos: o
Batismo é um nascer de novo (cf. Jo 3, 5); o vínculo matrimonial é indissolúvel (cf. Mc 10, 11) e
reflexo da união entre Cristo e sua esposa, a Igreja (cf. Ap 19, 7); é necessário confessarmos
nossos pecados (cf. Tg 5, 16) a um sacerdote (cf. Mt 8, 4); Jesus fundou uma Igreja, constituiu o
seu primeiro chefe (cf. Mt 16, 18), conferiu a seus Apóstolos a autoridade de perdoar os
pecados (cf. Jo 20, 23) e disse que, ao menos que lhe comamos o corpo e o sangue, não
teremos em nós vida alguma (cf. Jo 6, 53). Isto nos traz de volta ao ecumenismo no despertar
da Reforma. Ainda temos o grande dever de apelar ao amor a Deus e ao seu Filho que temos
em comum com nossos amigos protestantes; mas temos também a responsabilidade de fazê-
los olhar com honestidade para a Bíblia e para o conjunto da história, para o que realmente
aconteceu quando os reformadores separaram a Bíblia da Igreja. Não se trata de uma missão
impossível. Eu mesmo já a vi ser cumprida com sucesso. Foi um católico fiel, amoroso e sem
medo de dizer a verdade que, com paciência, me levou da igreja batista para a Igreja uma,
santa, católica e apostólica. Ele primeiro apelou àquilo que tínhamos em comum; em seguida,
fez-me cair na conta daquilo que me estava faltando. Ele conseguiu fazê-lo porque já havia
percorrido o mesmo caminho. O seu nome era G. K. Chesterton. Lutero contra Santo Tomás
Martinho Lutero não se rebelou contra um Papa corrupto, nem contra um clero imoral. Sua
verdadeira revolta foi contra um discreto frade dominicano, falecido havia mais de duzentos
anos: Santo Tomás de Aquino. Há quinhentos anos, havia muita corrupção na Igreja Católica.
Bispos e abades acumulavam dinheiro e tinham amantes abertamente, e usavam seu privilégio
eclesiástico para ganhar poder político. A venda de indulgências havia saído do controle e
causou incontáveis danos não apenas à verdadeira piedade, mas ao entendimento correto do
Purgatório e das orações pelos defuntos. Foi um escândalo que abrangeu toda a cristandade.
No entanto, não foi apenas Lutero que falou claramente contra essa situação. Santa Catarina
de Siena, Santa Brígida da Suécia e outros confrontaram a hierarquia corajosamente e, em
alguns casos, com muita eficácia. Três séculos e meio antes, um pequeno frade chamado
Francisco de Assis fez uma reviravolta numa Igreja mundana simplesmente ao escolher viver
sua própria vida de acordo com o que Jesus pregou nos Evangelhos. O resultado? Uma reforma
genuína. Lutero teve a oportunidade de se tornar um dos maiores santos da história da Igreja.
Porém, ele não acreditava estar reformando a Igreja apenas por necessidade de uma limpeza
interna. Ele disse explicitamente que não devemos condenar uma doutrina porque o homem
que a prega leva uma vida pecaminosa. Ao contrário: “O Espírito Santo… é paciente com os que
são fracos na fé, como é ensinado em Rm 14, 15… Eu teria pouquíssimas coisas contra os
papistas se eles ensinassem a verdadeira doutrina. Sua vida perversa não causaria nenhum mal
significativo.” Lutero não acreditava estar reformando a Igreja apenas por necessidade de uma
limpeza interna. São palavras ditas pelo próprio reformador. Ele não se separou da Igreja
Católica por causa de sacerdotes e bispos que se portavam de forma inadequada. Ele pensava
e ensinava que a doutrina católica era falsa. Rejeitava o Magistério, a autoridade doutrinal da
Igreja. Se os bispos tivessem rasgado suas batinas e se coberto com sacos e cinzas, isso poderia
ter feito um bem enorme para a Igreja e o mundo, mas não há nenhuma evidência de que teria
feito Lutero mudar de ideia, porque o que ele tinha em mente era uma nova teologia.
Hipócritas que afastaram potenciais seguidores de Cristo ao longo da história da Igreja. Isso
ainda acontece. Mas o argumento para por aí. Se o incrédulo quer culpar bispos corruptos por
suas próprias dúvidas a respeito da veracidade da fé católica, por que não é atraído novamente
para a Igreja pelo testemunho dos santos? Por que São Francisco de Assis, Santa Catarina de
Siena ou, mais recentemente, Santa Teresa de Calcutá não são suficientes para fazer com que
ele supere suas dúvidas sobre a Igreja? Santos inspiram santidade porque são santos. Rebeldes
inspiram rebelião, até contra si. A santidade é sempre uma opção melhor do que a ruptura com
a Igreja fundada por Jesus Cristo e levada adiante pelos Apóstolos escolhidos por Ele. Foi essa
Igreja que construiu a cristandade. Mas, como apontou um observador, Martinho Lutero não
se rebelou contra um Papa corrupto, mas contra um discreto frade dominicano, falecido havia
mais de duzentos anos: Santo Tomás de Aquino. Chesterton diz: “A essência da doutrina
tomista era a confiabilidade da Razão; a essência da doutrina luterana é a completa
inconfiabilidade dela.” Santo Agostinho, verdadeiro santo e gigante entre os convertidos, era
limitado sob certo aspecto. Ele só conhecia a filosofia de Platão. Santo Tomás introduziu
Aristóteles na filosofia cristã, mas os agostinianos platonistas nunca aceitaram isso. Abordavam
a realidade objetiva de um modo diferente. Um desses agostinianos era um monge chamado
Martinho Lutero. Chesterton argumenta que a Reforma foi na verdade a revanche dos
platonistas. Poderíamos dizer que ela começou com uma diferença de ênfase, ou que teve
início como uma discussão entre monges, mas a ênfase de Lutero na emoção em lugar da
razão, na verdade subjetiva em lugar da objetiva e, infelizmente, no determinismo em lugar do
livre-arbítrio, abriu as portas para um ataque não apenas à escolástica, mas à filosofia como
um todo. O luteranismo, diz Chesterton, tinha uma teoria que era a destruição de todas as
teorias; na verdade, tinha sua própria teologia que era, ela própria, a morte da teologia. O
homem não podia dizer nada a Deus, de Deus ou sobre Deus, a não ser proferir uma súplica
inarticulada por misericórdia e pela ajuda sobrenatural de Cristo, num mundo em que todas as
coisas naturais são inúteis. A razão era inútil; a vontade também. O homem não podia mover-
se alguns centímetros, assim como uma pedra não pode fazê-lo. O homem não podia confiar
no que estava em sua mente, assim como um nabo não pode fazê-lo. Não sobrava nada na
terra ou no céu, exceto o nome de Cristo elevado naquela imprecação solitária; terrível como o
grito de um animal em agonia. Santo Tomás e Lutero são “as dobradiças da história”, e Lutero
conseguiu se tornar um problema grande o suficiente para ofuscar a imensa figura de Santo
Tomás. “Lutero de fato inaugurou o espírito moderno de dependência de coisas que não são
simplesmente intelectuais.” Tinha uma personalidade forte. Era um brigão. Alegava ter
autoridade sobre a Sagrada Escritura e a alterou por conta própria, acrescentando uma palavra
aqui e outra ali em sua própria tradução a fim de acomodar sua própria teologia. Quando
confrontado com o ato, “contentou-se em gritar para os questionadores: ‘Digam a eles que o
Dr. Martinho Lutero assim o deseja!’ É o que chamamos hoje de Personalidade… Ele destruiu a
Razão e substituiu a Sugestão.” Lutero conseguiu se tornar um problema grande o suficiente
para ofuscar a imensa figura de Santo Tomás. Lutero e todos os outros reformadores não
podem culpar a Igreja pelas consequências de seus próprios atos. É normal falar da corrupção
de certos bispos na Alemanha, mas parece que ninguém quer discutir a verdadeira heresia de
Lutero e tudo o que aconteceu na sua esteira, desde a fragmentação do cristianismo em
milhares de denominações à desintegração da filosofia em uma especulação independente,
limitada e bizarra após a outra, porque perdemos o simples bom senso, a razão e a realidade
que outrora foram articulados de forma tão clara por Santo Tomás.

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