Você está na página 1de 12

HISTÓRIA DA IGREJA - I

A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

PRIMEIRAS
MUDANÇAS E OS
ESCRITOS
PÓS-APOSTÓLICOS
Aula 7

Nesta aula veremos sobre os novos rumos da história da igreja, uma


vez que ela entrou em uma fase de transição, deixando para trás
o período apostólico. A igreja agora é desafiada a permanecer liga-
da ao ensino da primeira geração de apóstolos, ao mesmo tempo
em que sobrevive às perseguições e às novas heresias. A igreja
cristã experimentou importantes mudanças nas últimas décadas do
primeiro século. Essas mudanças foram tanto de caráter teológico
quanto institucional. Um dado significativo é que temos poucas in-
formações sobre esse período de transição (anos 70 a 95). Nenhum
documento importante dessa época chegou até nós. Quando os
documentos reaparecem a partir do ano 95, nos deparamos com
uma igreja mais organizada e centralizada administrativamente,
bem como com ênfases teológicas um tanto quanto diferentes
daquelas do Novo Testamento. São os primórdios do surgimento
da “igreja católica”, outro nome usado para identificar a igreja nessa
segunda fase.

87
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

A IGREJA “CATÓLICA”
No segundo século, diante dos crescentes desafios externos
(acusações e perseguições imperiais) e problemas internos (surgi-
mento de heresias e diversidade teológica), a igreja sentiu a neces-
sidade de definir mais claramente a sua identidade institucional e
teológica. Houve uma preocupação em organizar a igreja, fazendo
uma estruturação maior ao redor dos bispos, na tentativa de prote-
ger a igreja das falsas acusações e das heresias que surgiam em seu
meio. O objetivo visado era a obtenção de maior unidade estru-
tural e uniformidade doutrinária. Desse processo resultou a “igreja
católica”. A expressão “igreja católica” é encontrada pela primeira
vez numa carta escrita pelo bispo Inácio de Antioquia à Igreja de
Esmirna, por volta do ano 110. A palavra vem do grego katholikos
e significa geral, universal (de kata = “de acordo com” + holos = “o
todo”). A partir do segundo século, a expressão foi utilizada para
designar a igreja verdadeira, apostólica e ortodoxa, em oposição
aos movimentos dissidentes e aos grupos heterodoxos ou heréticos.

Desafios enfrentados pela Igreja


1. Desafios externos
A igreja, desde seu início, enfrentou falsas acusações e terríveis
perseguições pelo Estado Romano. O governo imperial se incomo-
dava com o crescimento do cristianismo e com os "mistérios" que
envolviam os cristãos, que se negavam a participar das cerimônias
religiosas realizadas pelos romanos, bem como aceitar que o impe
rador fosse adorado como um deus. Este foi, sem dúvidas, o prin-
cipal motivo das perseguições. Outro desafio externo enfrenta-
do pela igreja nessa fase foram os ataques de ilustres intelectuais
pagãos como Luciano de Samosata, Galeno e Celso na segunda
metade do século II, e Porfírio, no terceiro século. Numa época em
que o cristianismo crescia a olhos vistos e incomodava seriamente
o paganismo, esses homens cultos escreveram obras influentes em
que os cristãos eram acusados de serem ignorantes, supersticiosos
e inimigos da cultura e do conhecimento.
2. Desafios internos
Os principais desafios internos do segundo e terceiro séculos foram
algumas interpretações da fé cristã consideradas heréticas pelo gru-
po majoritário. Esses movimentos que serão analisados foram taxa-
dos de “hereges” por ultrapassar os limites da ortodoxia católica.
Deve se lembrar que o cristianismo absorveu os seus convertidos

88
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

de três grandes fontes (judeus, gregos e romanos) e dessas fontes


surgiram tipos de cristianismo antagônicos, uma vez que os conver-
tidos trouxeram consigo elementos de mentalidade estranhos à fé
cristã.
As principais heresias desse período foram:
• Ebionismo: Desde o inicio havia uma seita judaizante que queria
impor as leis cerimoniais do judaísmo aos gentios convertidos ao
cristianismo. Originou-se na Palestina no fim do século I e posterior-
mente espalhou-se pela Ásia Menor. Ensinava a universalidade da
lei mosaica como sendo necessária para a salvação. Defendiam a
oposição a Paulo. Criam que Jesus foi o Messias, mas que não era
divino por natureza, foi somente um homem sobre quem o Espírito
Santo desceu no momento do batismo. Aguardavam o milênio imi-
nente e eram ascéticos.
• Gnosticismo: Foi uma filosofia religiosa de natureza altamente es-
peculativa que surgiu no primeiro século, mas tornou-se uma grande
ameaça para o cristianismo majoritário a partir de meados do sécu-
lo II (c. 130-160). Partindo de uma concepção dualista acerca do
mundo (espírito x matéria), propôs uma reinterpretação radical da
fé cristã, negando doutrinas como a criação divina, a encarnação
de Cristo e a ressurreição do corpo. A salvação vinha através do
conhecimento (gnosis) acerca da verdadeira origem e destino da
alma. Esse conhecimento mais profundo era transmitido somente
aos iniciados. Gonzales fala que de todas as interpretações do cris-
tianismo que apareceram no segundo século, nenhuma foi tão
perigosa, nem esteve tão perto de triunfar, como o gnosticismo¹. Os
gnósticos criam que tudo o que fosse matéria era essencialmente
má e que o espírito é por natureza bom, sendo assim alguns criam
que deveriam castigar o corpo para debilitar o seu poder sobre o
espírito (asceticismo), outros criam que, uma vez que o espírito é
o que importa, devemos dar liberdade total ao corpo e as suas pai
xões (libertinagem).
• Docetismo: Era o entendimento de que Jesus Cristo não havia
de fato assumido uma natureza humana, corpórea. Antes, ele tinha
apenas uma aparência de humanidade (daí, docetismo, do grego
dokéo = parecer), sendo uma espécie de fantasma ou aparição.
Essa posição já é condenada nas epístolas joaninas (ver 1 João 4.2;

1 GONZALEZ, Justo L., E até os confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo - Vol. 1 A era dos
Martires, São Paulo, Vida Nova, 1995, Pg. 96.

89
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

2 João 7). As cartas de Inácio de Antioquia contêm muitas conde-


nações do docetismo.
• Marcionismo: Márcion foi um cristão do Ponto, na Ásia Menor, que
chegou a Roma por volta do ano 144. Partilhando da cosmovisão
gnóstica, ele propôs uma descontinuidade radical entre o Antigo e
o Novo Testamento (o cristianismo não tinha nada em comum com
o judaísmo, sendo uma religião inteiramente nova). Assim sendo,
ele rejeitou por completo o Velho Testamento e o seu Deus, Jeová,
tido como uma divindade inferior, o criador da matéria. Em con-
traste com Jeová (um ser justiceiro e vingativo), o Deus verdadeiro,
o Pai de Jesus Cristo, é um Deus plenamente amoroso e perdoador,
que não condena ninguém. Portanto, no fim todos irão se salvar.
Márcion foi o primeiro indivíduo na história da igreja a elaborar uma
lista de escritos cristãos normativos. O seu cânon continha apenas
o evangelho de Lucas e as cartas de Paulo às igrejas (sem as pas-
torais), tendo excluídas as suas referências ao Velho Testamento.
O cânon marcionita forçou a igreja a elaborar a sua própria lista de
livros autorizados, ou seja, o Novo Testamento.
• Montanismo: Esse antigo movimento de natureza entusiástica ou
carismática, autodenominado “nova profecia”, surgiu na Frígia, Ásia
Menor, na década de 170. Foi iniciado por um cristão chamado
Montano, que era acompanhado de duas profetizas, Priscila e Ma
ximila. Montano considerava-se o instrumento especial do Paracle-
to (o Espírito Santo) e anunciou o iminente fim do mundo e a desci-
da da Nova Jerusalém em sua região, a Frígia. O montanismo foi um
protesto contra o crescente mundanismo da igreja, eles defendiam
o ascetismo, consideravam-se a si mesmos espirituais e os outros
carnais, opunham-se a qualquer tipo de arte e seus seguidores bus-
cavam o martírio.
• Monarquianismo: No segundo século houve intensa reflexão so-
bre a teologia do Logos (Cristo como o Verbo) e suas implicações.
Vários pensadores cristãos, na ânsia de defender a convicção bási-
ca do monoteísmo ou a unidade do Ser Divino (daí, “monarquia”,
isto é, governo de um só), acabaram por negar a divindade ou a
personalidade distinta do Filho e do Espírito Santo. Houve duas
manifestações básicas: (a) Monarquianismo Dinâmico: afirmava que
Jesus era um homem comum que foi adotado por Deus na oca-
sião do seu batismo, sendo revestido do poder divino (daí, “dinâmi-
co”, de dynamis = poder). Essa posição, abraçada pelos ebionitas e
por Paulo de Samósata, também é chamada de adocionismo. (b)
Monarquianismo Modalista: afirmava que Pai, Filho e Espírito Santo

90
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

são três modos ou manifestações sucessivas (não simultâneas) do


único Deus. Também é conhecido como sabelianismo, por causa
de um de seus defensores (Sabélio). Uma variante dessa posição
é o patripassianismo, a noção de que o próprio Pai sofreu na cruz
(defendida por Práxeas e Noeto).

A defesa da fé cristã e os Pais da Igreja


Com a morte dos apóstolos, a igreja estava agora nas mãos de no-
vos líderes que tinham a incumbência de preservar a sã doutrina,
desenvolver o pensamento cristão e definir a vida litúrgica da igreja.
Diante das acusações externas e das muitas heresias que atacar-
am a igreja, tornou-se necessário oferecer argumentos sólidos que
respondessem às objeções e pensamentos errôneos que se apre-
sentavam em relação à fé cristã. Nesse período pós apostólico os
responsáveis por conduzir a igreja na ortodoxia ficaram conhecidos
como “Pais da Igreja”. Essa expressão se refere ao escritor, pastor
ou teólogo da antiguidade cristã considerado pela tradição como
testemunho autorizado da fé. Havia três qualificações para alguém
ser considerado Pai da igreja: ortodoxia doutrinária, santidade de
vida e antiguidade. O estudo dos pais da igreja geralmente é desig-
nado por dois termos correlatos: patrística e patrologia. A patrística
refere-se ao estudo do pensamento dos pais, da sua teologia e a
patrologia é o estudo histórico dos próprios personagens e da sua
obra. Podemos dividir os pais da igreja em três grandes grupos: Pais
apostólicos, os apologistas e os polemistas.²

Os Pais Apostólicos
O conjunto dos primeiros escritos cristãos posteriores ao Novo Tes-
tamento é conhecido pelo nome de “pais apostólicos.”³ Eles são
designados de “apostólicos” porque surgiram pouco depois dos
apóstolos e revelam uma certa conexão com eles. Os pais apostóli-
cos eram teólogos cristãos centrais para a Igreja que viveram nos
séculos I e II d.C, que se acredita terem conhecido pessoalmente al-
guns dos Doze Apóstolos, ou que foram significativamente influen-
ciados por eles. É importante observar que a expressão “pais apos-
tólicos” não designa somente indivíduos, mas também documentos
anônimos. O período aproximado em que foram produzidos vai de
95 a 150 DC. Os escritos dos pais apostólicos não contêm nenhuma

2 Neste primeiro módulo estudaremos mais profundamente apenas o primeiro grupo, visto que continua
remos a tratar da era patrística no próximo módulo.
3 Os alunos que desejarem ler na íntegra, em português, esses importantes escritos, poderão encon-
trá-los na Coleção Patrística (São Paulo: Paulus Editora), vols. 1 e 2.

91
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

teologia elaborada, são antes declarações simples e piedosas das


verdades fundamentais da fé, ditadas principalmente por um inter-
esse pastoral visando a edificação da igreja.
As principais características desses autores e documentos são as
seguintes:
• Ausência de elaborações filosóficas.
• Grande reverência pelo Antigo Testamento.
• Interpretação tipológica e alegórica das Escrituras.
• Familiaridade com as formas literárias do Novo Testamento.
• Preocupação pastoral e prática: exortação à paz, unidade e pure-
za da igreja; ênfase ao episcopado; celebração do martírio.
Apesar de algumas nuances diferentes do que era dito pelos
apóstolos, principalmente em relação a transformar o cristianismo
em um conjunto de regras morais, vemos uma unidade teológi-
ca ainda existente nesses escritos. Apesar de percebermos certa
distância entre os escritos dos pais apostólicos e o evangelho da
teologia neotestamentária, não podemos desprezar a importância
que eles tiveram no passado e ainda têm para nós hoje. Sobre isso,
Roger Olson, escreve:

“As referências a Paulo e aos demais apóstolos são


frequentes, mas apesar disso, a nova fé transforma-
-se cada vez mais em uma nova lei e a doutrina da
justificação graciosa da parte de Deus transforma-se
em uma doutrina de graça que nos ajuda a viver
com retidão’. Obviamente, essa mudança foi sutil e
não radical. Foi um desvio suave, porém perceptí-
vel, dos escritos cristãos do século II em direção ao
legalismo ou o que mais bem poderia ser classificado
como “moralismo cristão”. Embora os pais apostólicos
citassem Paulo mais do que Tiago, era o espírito des-
te que falava mais alto. Talvez por causa da visível
indolência e degradação moral e espiritual entre os
cristãos, tenham enfatizado mais a necessidade de
evitar o pecado, obedecer aos líderes e se esforçar
para agradar a Deus, do que a necessidade de se li-
bertar da escravidão da lei. A despeito dessa mudan-
ça sutil que especialmente os protestantes costuma-
vam ressaltar e lamentar, os pais apostólicos devem

92
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

ser admirados e louvados pela vigorosa defesa que


fizeram da encarnação de Deus em Jesus Cristo
contra as negações dos gnósticos. Alguns morreram
como mártires nas mãos das autoridades romanas
e, portanto, devem ser muito respeitados por con-
fessar, sob risco de morte, a crença em Cristo e no
evangelho, mesmo sob perseguição. Sem dúvida,
sua grande relevância aqui é terem sido os primeiros
teólogos do cristianismo”.4

Conhecendo um pouco os escritos dos Pais Apostólicos


1. Primeira Carta de Clemente de Roma (30-100 d.C)
Clemente foi um dos primeiros bispos da igreja de Roma. Durante
a parte final de sua vida, ele escreveu uma carta para a igreja de
Corinto, por volta do ano 95 d.C. A epístola foi provocada por uma
disputa em Corinto, que levou à derrubada de diversos presbíteros.
Já que nenhum deles foi acusado de ofensas morais, Clemente ar-
gumenta que a sua remoção foi uma punição muito pesada e injus-
tificável. A carta é muito longa - o dobro do tamanho de "Hebreus"
- e inclui diversas referências ao Antigo e Novo Testamento. Essa
carta ficou conhecida como “1 Clemente”, é uma carta prática con-
tra a divisão e a favor da unidade na igreja. Nela ele faz um apelo
à unidade, à paz e à justiça na igreja de Cristo, exortando os cren-
tes a serem submissos aos seus presbíteros. Ele diz à congregação
que a vida cristã deve ser conduzida com temor reverente perante
o Senhor. Suas instruções se baseiam nas Escrituras e apresentam
uma doutrina sólida.
2. Sete Cartas de Inácio de Antioquia (35-107 d.C)
Inácio foi bispo em Antioquia da Síria onde foi preso e condenado
a ser devorado por feras em Roma durante a perseguição do im-
perador Trajano, por ter se recusado a renegar a Cristo e adorar os
deuses romanos. Tudo o que sabemos sobre sua vida é através de
suas sete cartas escritas no caminho rumo ao martírio. Suas cartas
foram às igrejas de Éfeso, Magnésia, Trales, Roma, Filadélfia, Esmirna
e a seu colega Policarpo. Em suas cartas ele fala sobre o martírio e
pede que ninguém tente impedir sua obrigação de testemunhar a
respeito de Cristo “lutando com feras em Roma”. Sua maior preocu-
pação era com o bem-estar da Igreja de Cristo, por isso o foco dos

4 OLSON, Roger, História da Teologia Cristã, Editora Vida, São Paulo, 2003, pg 40.

93
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

seus escritos era acerca da unidade da igreja para que ela se for-
talecesse contra os movimentos heréticos e cismáticos que estavam
surgindo no meio dela. Suas cartas falam sobre divisão na igreja,
contra o docetismo, enfatizando muito a necessidade de o bispo
cuidar e liderar a igreja. Nelas, vemos pela primeira vez a menção
acerca de um bispo local, que marcava uma transição de governo
da igreja. Antes víamos uma liderança mais plural e carismática.
Agora vemos o nascimento de uma organização que cada vez mais
se tornará hierárquica. Nessas cartas vemos também, pela primeira
vez, o uso do termo “Católica” para referir-se à igreja. Alguns autores
argumentam que quando Inácio usa esse termo, ele ainda não está
falando de universalidade (a igreja universal, no mundo), mas do
sentido de unidade, que é “inteiro” e “unido” que é claramente um
contraste em relação às seitas e facções, frutos de heresias. O seu
desejo era de preservar as bases essenciais do cristianismo.
3. Carta de Policarpo aos Filipenses (70-155 d.C)
Policarpo foi bispo de Esmirna, escreveu uma carta aos filipenses
por volta de 110, contendo exortações práticas. A Epístola de Poli-
carpo é uma resposta a um pedido vindo dos próprios filipenses, no
qual eles pedem a ele que os envie algumas palavras de exortação
de fé, que repassem adiante uma carta para a Igreja de Antioquia
e que os envie também quaisquer epístolas de Inácio que ele pu-
desse ter. Nesta carta, Policarpo enfatiza a humanidade de Cristo e
a salvação. Ele fala da fé em Cristo, e o desenvolvimento da mesma
através do trabalho para Cristo na vida diária. Também faz alusão à
Epístola de Paulo aos filipenses e usa citações diretas e indiretas do
Antigo e Novo Testamento, atestando-os como canônicos. Policar-
po exorta os filipenses a uma vida virtuosa, às boas obras e à firme-
za, mesmo ao preço de morte, se necessária, uma vez que tinham
sido salvos pela fé em Cristo. Ao contrário de Inácio de Antioquia,
Policarpo não estava interessado em administração eclesiástica,
mas antes em fortalecer a vida diária prática dos cristãos. Policar-
po foi martirizado no reinado do imperador Antonino Pio. Em um
dos escritos que trazem o seu nome nos é dada a narrativa de sua
morte por testemunhas oculares. Devido a sua idade avançada du-
rante a perseguição ofereceram-lhe a liberdade se amaldiçoasse a
Cristo, ao que ele respondeu: “Eu tenho servido a Cristo por oitenta
e seis anos e ele nunca me fez nada de mal. Como posso blasfemar
contra meu Rei que me salvou?" Quando o colocaram na fogueira,
o fogo não o queimou, e então seus inimigos o apunhalaram até a
morte e depois o queimaram.

94
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

4. Exposição dos ditos do Senhor, de Papias de Hierápolis (60-


130 d.C)
Papias foi bispo de Hierápolis, na Frígia, de quem somente sabemos
alguma coisa através dos escritos de Eusébio e Irineu. Ele era um
homem curioso que tinha o hábito de inquirir sobre as origens do
cristianismo. Papias escreveu, por volta do ano 130, uma obra em
cinco volumes, intitulada: Explicações das sentenças do Senhor. Ba-
seado, principalmente, na tradição oral dos discípulos e apóstolos,
Papias apresenta uma coleção de ditos, sentenças e feitos de Jesus
e de seus discípulos. Trata ainda da origem dos evangelhos de Ma-
teus e Marcos. Destes cinco volumes, restam apenas 13 pequenos
fragmentos, conservados nas obras de Ireneu de Lião e de Eusébio
de Cesaréia. Esses fragmentos que restaram são de inestimável va
lor porque põe o leitor atual em contato com o ensino oral dos
discípulos dos apóstolos. Além disso, trata-se da primeira obra de
exegese do Novo Testamento. Papias foi o primeiro a aplicar a pa-
lavra clássica “exegese”, que já há muito tempo significava inter-
pretação ou comentário. Em seus escritos o conceito de milênio
aparece muito forte.
5. O Pastor, de Hermas (c. 150)
Esta obra foi escrita em meados do segundo século e apesar de
receber o título de “pastor”, Hermas foi escrito por um profeta
da igreja em Roma com esse nome. O tema dessa obra (que é a
maior de todas) é o arrependimento de cristãos já batizados, ou
seja, cristãos que pecam. É uma obra com teor legalista, visto que
o autor aborda o cristianismo apenas como um conjunto de regras
a ser seguido. Mas, apesar disso, foi um dos escritos mais conside
rados da antiguidade cristã. Trata-se de uma obra longa, com 114
capítulos dispostos em 3 partes: 5 visões, 12 mandamentos e 10
parábolas. A preocupação central de Hermas não era doutrinária
nem dogmática, mas moral. Seu escrito era baseado no Apocalipse
e tinha como objetivo uma moralidade prática, dando ênfase
ao arrependimento e a uma vida de santidade. Seu argumen-
to principal é a necessidade de penitência indo ao encontro da
misericórdia divina. O leitor notará que o conceito de penitência,
isto é, meios de santificação do homem, corresponde aos sacra-
mentos da igreja. Sendo assim, a eclesiologia em Hermas, domina a
ideia de que a Igreja é uma instituição necessária para a salvação.

95
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

6. Didaquê (O Ensino dos Doze Apóstolos) (60-90 d.C)


A Didaqué, também chamada de “doutrina dos doze apóstolos", é
um catecismo cristão escrito entre 60 e 90 d.C., provavelmente na
Palestina ou na Síria. Trata-se, talvez, do documento mais importante
da era pós-apostólica, visto ser a mais antiga fonte de legislação
eclesiástica que possuímos. Ele é um manual de instrução para a igre
ja, abordando ensinos éticos, normas litúrgicas, os oficiais da igreja
e questões disciplinares. Ao que parece, é fruto da reunião de di-
versas fontes orais e escritas e que bem retratam a tradição das pri-
meiras comunidades cristãs. Os dezesseis capítulos dividem-se em
três partes. A primeira parte contém ensinamentos sobre os “dois
caminhos”, um caminho conduz à vida e o outro à morte. Resume
a vida cristã e ao que parece, destinava-se aos catecúmenos, isto
é, pessoas que se preparavam para o batismo. A segunda parte (6-
14) é um manual de instruções sobre a ordem e a prática da igreja.
Contém advertências sobre falsos mestres e instruções acerca do
batismo, do jejum, das orações para as refeições comunitárias. A
terceira parte (15-16) é um manual de instruções sobre ofícios e
posições dos líderes da igreja. Termina com um apelo à vigilância
e à preparação para o retorno do Senhor. De forma mais pratica,
entre os assuntos tratados, podemos destacar: a repetição das pa-
lavras de Mt 5,26, que contribuíram para a definição da doutrina
sobre o Purgatório; a proibição do aborto e do esoterismo e as-
trologia; a exortação pela unidade dos cristãos; os sacramentos do
batismo, confissão dos pecados e eucaristia; o batismo ministrado
por imersão ou infusão e na forma trinitária; a eucaristia vista como
alimento espiritual para o cristão e talvez como sacrifício; os cuida-
dos a serem tomados contra os falsos profetas e mestres; a cele-
bração eucarística realizada aos domingos; e a existência de bispos
e diáconos substituindo ou com a mesma dignidade dos profetas e
mestres.
7. Epístola de Barnabé
Não se sabe ao certo quem é o autor dessa epístola. Alguns
atribuem a Barnabé, que é mencionado nos Atos dos Apóstolos,
embora alguns autores a atribuem a outro Pai Apostólico de mesmo
nome, "Barnabé de Alexandria", ou mesmo a um professor cristão
anônimo. Apesar do nome, a epístola não deve ser confundida com
o “Evangelho de Barnabé”, um livro pseudográfico que apresenta
uma falsificação islâmica do evangelho. Embora a obra não seja
gnóstica no sentido teológico, o autor, que se considera um pro-
fessor de audiência não identificada, para a qual ele escreve, tem

96
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

como objetivo transmitir aos seus leitores uma gnosis perfeita (um
conhecimento especial), de modo que eles percebam que os cris-
tãos são os únicos herdeiros da verdadeira aliança, e que os judeus
nunca teriam tido uma aliança verdadeira com Deus. Sua polêmi-
ca é, acima de tudo, dirigida contra os cristãos judaizantes. Ele é
um oponente minucioso do legalismo judaico, embora não che
gue a ser um antinomista. A epístola tem 21 capítulos e está divi
dida em 2 partes: A primeira parte tem um caráter mais doutrinário,
apresentando uma interpretação do Antigo Testamento de forma
alegórica, usando vários textos para referir-se a figuras de Jesus. A
segunda parte é mais prática, apresentando uma espécie de com-
pilação da didaquê. Em questões doutrinárias, Barnabé parece
bem ortodoxo quando, por exemplo, fala do conceito cristão de
expiação, da eternidade e da encarnação de Jesus. Algo interes-
sante é que ele cria que Jesus irá voltar quando o mundo fizer seis
mil anos, fazendo uma ligação da segunda vinda com os dias da
criação.
8. Epístola a Diogneto (c. 130 d.C)
Essa epístola foi escrita por um cristão anônimo que atribui a si mes-
mo o nome de Mathetes (discípulo). Diferentemente dos outros
pais apostólicos que endereçavam seus escritos a outros cristãos,
a epístola a Diogneto foi endereçada a um erudito pagão. Ela é
uma exortação escrita por volta do ano 130 d.C., respondendo à in
dagação de um pagão que buscava conhecer melhor a nova reli
gião chamada “cristianismo”, que revolucionava os valores da época
e se espalhava com muita rapidez pelo Império Romano. O que
chamou a atenção de tal erudito foi a coragem com que os cristãos
enfrentavam os suplícios de uma vida de perseguições e o amor
intenso com que amavam a Deus e uns aos outros. Na carta o autor
descreve quem eram e como viviam os cristãos dos primeiros sécu-
los. É considerada a "joia mais preciosa da literatura cristã primitiva",
visto ser o exemplo mais antigo de apologética cristã. Por ter um
caráter apologético (defesa racional do cristianismo) ela é incluída
por alguns teólogos entre os pais apologistas. A Epístola a Diogneto
contém doze capítulos e aborda acerca da vaidade dos ídolos; a
superstição e rituais observados pelos judeus; os modos de vida dos
cristãos e a relação deles com o mundo; a manifestação de Cristo;
o estado miserável da humanidade antes da vinda de Cristo e por
que ele foi enviado tão tarde; as bênçãos que fluem da fé; o que é
válido ser conhecido e acreditado e a importância do Conhecimen-
to para a verdadeira vida espiritual.

97
HISTÓRIA DA IGREJA - I
A Igreja Apostólica e o Início do Cristianismo

9. A Vida da Igreja no início do quarto século


O culto cristão estava mais formalizado e dotado de uma liturgia
elaborada, principalmente no que concerne à celebração dos sa
cramentos. O batismo era precedido de uma longa preparação, o
catecumenato, e geralmente ocorria na Páscoa ou no Pentecostes.
Podia ser ministrado por imersão ou por efusão. Já havia se difun-
dido a convicção de que esse rito literalmente purificava os peca-
dos da pessoa batizada. A santa ceia ou eucaristia havia se tornado
a principal celebração cristã, sendo entendida como um sacrifício.
Portanto, os seus oficiantes eram vistos como sacerdotes distintos
dos demais cristãos, os leigos. A organização da igreja havia se tor-
nado fortemente hierárquica, sob a firme liderança dos bispos. No
final desse período, os cristãos também começaram a construir os
seus primeiros templos. Em Roma, os cristãos reuniam-se nas ca
tacumbas, locais onde também sepultavam os seus mortos. No
início do quarto século o cristianismo já estava firmemente im-
plantado em várias regiões do norte da África, bem como na Síria,
Armênia, Mesopotâmia, toda a Ásia Menor, a península grega, Itália,
sul da Gália e sul da Espanha. A fé cristã já havia alcançado quase
todas as regiões do vasto Império Romano e no oriente ultrapassava
as suas fronteiras. Não houve missionários famosos nesse período: a
fé era difundida pelos cristãos comuns em seus contatos com outras
pessoas e povos. A igreja era composta de indivíduos de todas as
classes sociais, desde escravos até nobres.
Em seu estudo panorâmico da história da Igreja, Alderi fala que esse
foi um período heroico da igreja antiga, em que os cristãos procura-
vam viver a vida cristã e testemunhar acerca da sua fé em meio a
circunstâncias frequentemente adversas. Sua coragem e coerência
no meio das perseguições e perplexidades do seu tempo nos in-
spiram e motivam a “viver de modo digno do evangelho” e a “lutar
juntos pela fé evangélica” (Filipenses 1.27) nos dias atuais. O esforço
tanto dos grandes intelectuais cristãos quanto dos crentes comuns
dos primeiros séculos, no sentido de comunicar as suas convicções
aos seus contemporâneos e dar uma contribuição construtiva à sua
sociedade, nos desperta para as grandes oportunidades e respon
sabilidades que temos em nossa geração.

98

Você também pode gostar