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Escola Tomista – Apenas para uso dos alunos Página | 1

Escola Tomista
Professor Carlos Nougué
Aula 48
Bem-vindos à 48ª aula de nossa Escola Tomista. Estamos no Tratado dos
Transcendentais III. Três e último. Hoje terminam os transcendentais, se Deus
quiser, mas sobretudo não posso deixar de comemorar a gravação desta que
constitui a aula do primeiro aniversário, do primeiro ano da Escola Tomista. Não
posso deixar de comemorar e não posso deixar de agradecer a Deus. Por quê?
Porque, com efeito, Ele me permitiu, apesar dos percalços normais da vida, das
enfermidades, das tristezas, das atribulações, da falta de dinheiro, permitiu-me,
ajudou-me ele a até hoje nunca falhar em nenhuma das aulas. Sempre elas
estiveram na data, nas quintas-feiras, sempre foram lá em todas as quintas-feiras
e, mais que isso, nessas 48 aulas venho cumprindo estritamente, estritamente o
programa. Vocês hão de ver, hão de estar vendo, hão de vir vendo que não se
trata de um curso aleatório, não se trata de um curso caprichoso, não se trata de
um curso arbitrário, senão que é um curso com uma ordem estrita de ensino,
uma ordem estrita pedagógica fundada na ordem efetiva, na ordem de
sustentação das mesmas disciplinas segundo a circularidade que é requerida no
estudo da sabedoria pelas debilidades de nosso intelecto, pelas limitações de
nosso intelecto. Nosso intelecto força-nos a que, força-nos a que não
consigamos conhecer a realidade senão mediante uma circularidade
permanente entre as diversas disciplinas. Pois bem, agradeço a Deus, agradeço
a vocês por me terem acompanhado até esta aula e prossigamos, prossigamos
sempre, com a ajuda de Deus, sempre com a atenção que me prestam e sempre
esforçando-me para manter a coerência interna programática de nossa Escola
Tomista que, sei que alguns não gostam, mas pode dizer-se é, em certo sentido,
uma efetiva universidade, é uma efetiva universidade.

Pois bem, fiquei de recapitular hoje o transcendental uno e terminar, então,


o tratado dos, o breve Tratado dos Transcendentais.

Pois bem, repitamos o transcendental uno (com licença). Pois bem, em seu
sentido genérico, em seu sentido mais geral, uno quer dizer ente indiviso. Algo
uno, que tenha unidade, é um ente indiviso. E como se diz uno? De muitos
modos, de muitas maneiras. A primeira delas é o uno por continuidade. Com
efeito, como a unidade nos aparece de modo explícito com a quantidade, na
quantidade, aquilo que é mais notoriamente para nós uno é a unidade por
indivisão da quantidade contínua. É nesse sentido que dizemos que um maço
de trigo é uno ou que os membros do animal são unos.
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Pois bem, uma segunda maneira de dizer uno é segundo a espécie de


matéria. Algumas coisas, com efeito, podem ser unas por continuidade, mas com
partes diferentes segundo a espécie sensível. Pois bem, um cálice, pegue-se um
cálice, um cálice da missa. Ele é uno, o cálice é uno, mas com partes diferentes;
a taça, a taça, ela é, pode ser de ouro e o pé do cálice pode ser de prata. Assim
também o corpo do animal é uno, mas com partes distintas: cauda, patas, cabeça
são partes distintas, mas, nem por isso, fazem que o animal deixe de ser uno.
Mas é mais uno ainda aquilo cujas partes são homogêneas, ou seja, têm a
mesmíssima espécie. Por exemplo: o ar. Se tomamos uma quantidade de ar e a
dividimos em partes, cada parte de ar será tão ar quanto a outra parte de ar e o
mesmo se dá com o ouro, se cada parte do ouro é ouro igualmente a outra parte
de ouro; o mesmo com a água: cada parte de água é igualmente água que as
demais partes de água. Então, quantidades como esta, ou seja, como...
substâncias como esta como o são o ouro, o ar, a água, elas são mais unas
ainda que, por exemplo, o corpo de um animal que é composto de partes
diferentes. O homem, por exemplo, é composto de partes diferentes: braços,
pernas, tronco...

Pois bem, uma terceira maneira de dizer uno é segundo o gênero.

Relembre-se, esqueci de dizê-lo, que uno em latim e em outras línguas,


como o espanhol, uno é uno no nosso sentido – o que tem unidade – e a própria
unidade “um”, mas, filosoficamente, convém usar uno em ambos os sentidos. Eu
deparei com essa dificuldade ao traduzir o comentário de Santo Tomás à Física
de Aristóteles. Muitas vezes estava claro que nós usaríamos um em vez de uno
e, no entanto, se eu usasse um eu faria ruir toda a argumentação aristotélica.

Pois bem, digressão à parte, disse também, então, uno segundo o gênero
e disse isso quando consideramos mais a unidade da essência ou quididade do
que a unidade das partes materiais, como é o caso do corpo do animal. Segundo
isto podemos dizer que a árvore, o cisne, o homem, o elefante são algo uno, ou
seja, porque pertencem igualmente, univocamente ao mesmo gênero dos
viventes, mas mais uno que eles, neste sentido, são o cisne, o homem, o elefante
enquanto pertencem ao gênero animal que é o gênero próximo. Quanto mais
próximo o gênero, mais se diz, se dizem unos suas espécies quanto mais
próximo for o gênero; quanto mais distantes, menos unos serão essas espécies.

Mas disse uno também segundo a definição, mas que, no caso anterior,
unos são todos aqueles que têm a mesma quididade ou essência que é expressa
por quê? Pela nossa já conhecida definição e, se é assim, eles são indivíduos
dessa espécie, não se distinguirão por diferenças específicas ou essenciais. E,
assim, Pedro e Maria são algo uno enquanto são igualmente, univocamente
animal racional.

Algumas coisas, porém, são unas segundo a definição, mas não simpliciter,
não absolutamente, só secundum quid, ou seja, por certo aspecto como
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acontece de modo geral com os acidentes. Pode dizer-se que o branco desta
parede ou o branco da neve ou o branco do urso polar são “uno”; este branco é
uno, mas nesse sentido, ou seja, só segundo certo aspecto, secundum quid, não
simpliciter ou absolutamente como é todo o relativo aos acidentes.

Pois bem, ainda uma última maneira de dizer uno que é segundo a
simplicidade. O que seria maximamente e perfeitamente uno é aquilo que tivesse
quididade ou essência simples. A questão da simplicidade não é simples, é
complexa – isto é uma seta e entender-se-á muito melhor, começar-se-á a
entender bem na Metafísica e a coisa ainda melhorará quando atingirmos a
Teologia Sagrada.

Pois bem, seria perfeitamente, maximamente uno aquilo que tivesse


quididade ou essência simples de maneira que, ao ser inteligida, não
pudéssemos distinguir nesta essência nenhuma quididade genérica nem
nenhuma diferença específica, ou seja, não se trata, então, de animal racional.
Animal racional é uma quididade, animal é uma quididade genérica e racional é
uma quididade específica, uma diferença específica. Pois bem, entre as formas
simples incluem-se as formas, as formas em geral. Atenção que isto não se pode
entender totalmente agora, mas incluem-se também as almas em geral, mas
sobretudo a substância primeira – já nossa velha conhecida. O que é a
substância primeira? É aquele supósito singular subsistente, ao contrário dos
acidentes que só subsistem na substância primeira e seria una com essa
simplicidade na medida em que pudéssemos defini-la em sua própria
concretude, em sua mesma concreção. Por exemplo: Pedro; por exemplo: Maria,
Maria enquanto tal, ou seja, enquanto é aquilo mesmo que subsiste nestas
carnes e nestes ossos. Pois bem, se, porém, pudéssemos conhecer uma forma
simples que seja não só subsistente em si mesma, mas subsistente por si
mesma – como faremos na Metafísica e aprofundaremos na Teologia Sagrada
– tratar-se-ia do Uno por excelência (pode pôr este Uno com maiúscula), porque
este Uno, ou seja, aquilo que é maximamente simples e que subsiste não só em
si mesmo, mas por si mesmo é o que chamamos Deus, o Uno por excelência.
Platão tangenciou esta solução, mas não conseguiu. Platão era um grandíssimo
metafísico – cada vez mais, aliás, o admiro – mas efetivamente sua debilidade
residia na Lógica. Ele era um mau lógico, ele desprezava, de certo modo, a
Lógica o que fez com que toda a sua genialidade metafísica se perdesse muitas
vezes, mas era realmente de uma altitude impressionante! Pode dizer-se, com
efeito, que a história do pensamento humano gira em torno de Sócrates, Platão,
Aristóteles, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. São os grandes marcos
do pensamento humano. Claro, Santo Tomás acima de todos, mas Santo
Tomás, aliás, com uma síntese de todos. Mas sem dúvida Platão cada vez mais
me encanta. Vejam que – deixe-me dizer algo particular, próprio – antes de
conhecer Aristóteles, em minha atribulada vida cheia de vicissitudes estranhas,
eu conheci Platão, li-o todo, li todos os diálogos de Platão; eles me encantaram,
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mas com grande dificuldade eu mal iniciava nesta mesma via, neste mesmo
caminho que a Escola Tomista lhes abre e iniciava sozinho, sem mestre, perdido,
autodidata completo, perdido, então, conquanto me encantasse, não entendi
bem. Depois comecei a conhecer Aristóteles, Santo Tomás e ative demasiado
as debilidades de Platão. Ainda estava sem mestre, ainda era um autodidata,
ainda padecia os defeitos do autodidatismo. Depois conheci o mestre e este
mestre me ordenou a cabeça, ele fez comigo o que agora tento fazer com vocês.
Pois bem, é então que revalorizo e começo a compreender mais perfeitamente
a importância de Platão.

Pois bem, deixemos de digressões e diga-se que estes diversos modos ou


maneiras de dizer uno também são análogos, tanto com analogia de atribuição
como com analogia de proporcionalidade e podemos terminar esta parte do uno
de maneira concisa: tudo o que é ente enquanto é mais ente é mais uno e tudo
o que é uno enquanto é mais uno é mais ente. Logo Deus, que é sumamente
Uno, é também o sumamente ente e Ele que é o sumamente ente é também o
sumamente Uno e, na verdade, Ele será sumamente todos os transcendentais,
todos, incluindo o belo de que já falarei aqui.

Pois bem, vamos ao transcendental algo ou aliquid, aliquid. Se, portanto, já


concebemos a unidade interior do ente, ou seja, o seu caráter uno que acabamos
de ver, podemos, então, conhecer explicitamente sua relação de alteridade com
os demais entes unos. O ente é outro quê, o ente é outra coisa, o ente é outro
algo, o ente é aliquid, aliquid, ele é outro algo. Uno expressava sua unidade
interior, unidade imanente, a unidade própria do ente, ao passo que algo
expressa sua divisão com relação aos outros entes que também são unos.

Pois bem, a alteridade básica, alteridade fundamental dá-se entre as


substâncias primeiras, sempre elas em primeiro lugar. Mas, em segundo lugar,
dá-se nas substâncias segundas – nossas velhas conhecidas também – e, por
fim, nos acidentes. Por quê? Porque os acidentes são outro algo que a
substância, são algo outro que a substância, mas isso em um sentido menor, em
um sentido diferente. Não se pode dizer que são algo outro com a substância no
mesmo sentido em que uma substância primeira é algo outro que outra
substância primeira ou que uma substância segunda é algo outro que outra
substância segunda. Pois bem, se se dá essa atenuação, esse modo diferente
ou menor numa escala descendente da substância primeira, passando pela
substância segunda até chegar aos acidentes, é porque, então, a noção é,
igualmente, análoga. Tudo isso, incluído o caráter análogo, repita-se e repita-se,
voltar-se-á a ver na Metafísica com entendimento aí já cabal, cabal de tudo o
que ainda não se pode entender agora, nesta altura, cabalmente.

Pois bem, o que é mais importante com respeito a algo é que, tal como o
transcendental res ou coisa, algo não pode dizer-se de Deus. Há, portanto, uma
restrição. Tanto o transcendental coisa como o transcendental algo são
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transcendentais com uma limitação, ou seja, excluído Deus. E por que não se
pode dizer que Deus é algo outro que outra coisa? Porque Deus é o único que
não tem limites em seu ser. Assim como – tudo isso se entenderá na Metafísica
cabalmente – assim como Deus não tem relação às criaturas, senão que as
criaturas é que têm relação de dependência no ser a Deus, assim também Deus
não é algo, porque, não tendo Deus limites em seu ser, ele não pode dividir-se
de outro algo. Isto é magnífico, mas reconheço que seu entendimento perfeito,
completo, cabal não pode dar-se senão na nossa tão ansiada, na nossa tão
sonhada Metafísica. Não sei se já disse aqui, mas com certeza escrevo-o no
meu livro Da Arte do Belo, se não fora as debilidades de nosso intelecto, nós não
deveríamos começar pela Gramática, da Gramática vai-se para a Lógica, da
Lógica se vai para as outras partes potenciais da Lógica, daí se vai à Física, da
Física se vai à ético-política, para, enfim, alcançar a Metafísica. Se não fosse
débil nosso intelecto, se não fossem as debilidades próprias de nosso intelecto,
deveríamos começar por cima, pela Metafísica que vai lançando luzes sobre
todas as ciências que lhe são subalternadas ou subordinadas e mais débeis que
ela, porque, como dito já, não sei se já disse no curso, provavelmente já, mas
digo no livro Da arte do belo, ciência em sentido estrito só há uma: é a Metafísica.
Todas as outras são ciências de maneira atenuada, o que, uma vez mais, não
se entenderá perfeitamente senão quando alcançarmos, ao final desta via em
que depois se dará o salto para a Teologia Sagrada, quando alcançarmos a
mesma rainha das ciências ou Metafísica.

Pois bem, podemos passar para o próximo transcendental: o verum, ou


seja, o verdadeiro. Pois bem, pode dizer-se verdade também. Bom, já vimos isso
ao tratar a segunda operação do intelecto: o juízo, composição ou divisão.

Verdadeiro, a verdade significa certa adequação entre o que se pensa e o


que se diz e o que as mesmas coisas são, o que as próprias coisas são. A
verdade é uma adequação entre a coisa e o intelecto. Pois bem, vamos
paulatinamente, pausadamente e comece-se por dizer que a verdade pode
dizer-se das coisas reais, reais – veja que já acabo de dizer que a verdade é
uma adequação entre a mente, entre o intelecto e a coisa, entre a coisa e o
intelecto – pois bem, então pode dizer-se das coisas reais o verdadeiro, ou seja,
o transcendental verdadeiro ou verdade de muitos modos.

Um primeiro modo de dizer-se que as coisas são verdadeiras é pela


adequação entre a essência destas coisas e sua aparência. Desse modo diz-se
ouro verdadeiro ao que parece ouro e de fato é ouro, enquanto se diz que o ouro
falso ou ouro, ou que o ouropel é ouro falso porque tem aparência de ouro, mas
não a essência ou quididade de ouro. Por isso é que se diz que o ouro verdadeiro
é aquele que tem essência e aparência de ouro, ao passo que se diz ouro falso
ou ouropel àquilo que tem aparência de ouro, brilha como ouro, mas não tem
essência ou quididade de ouro.
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Com respeito às coisas pode dizer-se ainda que a coisa é verdadeira


quando se dá adequação desta coisa com a arte de fazê-la, com a arte que o
fez. Pois bem, diz-se então que é verdadeira estátua aquela produzida, feita
segundo, de acordo com as regras da arte de produzir, de esculpir estátuas. É
uma verdadeira, um verdadeiro filme aquele que é dirigido segundo as regras,
conforme as regras de dirigir, de filmar um filme. Isto, então, quanto às coisas
mesmas, ou seja, as coisas extramentais.

Mas pode dizer-se verdadeiro também com respeito ao intelecto. Pois bem,
diz-se que o intelecto é verdadeiro, que um conceito, que um conceito é
verdadeiro quando se adequa às coisas. É por isso que se diz que o intelecto é
verdadeiro, o intelecto é verdadeiro quando, por exemplo, concebe animal
racional, quando concebe que é um animal racional àquilo que os sentidos nos
mostram dos homens. Os sentidos nos mostram os homens e nos mostram
coisas dos homens, e então concebemos verdadeiramente animal racional como
a essência (desculpem-me) como a essência disto que nos dão os sentidos.

Mas também pode dizer-se verdadeiro como a adequação das palavras


com respeito às coisas. De fato não é suficiente que as palavras correspondam
ao que se pensa para que se dê o verdadeiro. Elas devem corresponder ao que
as coisas mesmas são. Isto que acabo de dizer é de alta complexidade. Gasto,
salvo engano, umas 30, 20 páginas de meu livro Da arte do belo para explicá-lo.
Quem, aliás, nos ensina mais perfeitamente isto é ninguém menos – não é
Aristóteles – é ninguém menos que Platão e sua personagem Sócrates no
diálogo Crátilo, o diálogo do Crátilo. Tento esmiuçá-lo, tento detalhá-lo, tento
explicá-lo ao longo de muitas páginas de meu livro Da arte do belo. Desculpem-
me a referência constante a este livro, não é por nenhuma vaidade ou nada
parecido, nem por vontade de vendê-lo. É porque estou em plena revisão final
do livro, o que me faz estar impregnado dele mesmo. Pois bem, paro de falar
dele.

Pois bem, dentre estes diversos modos de dizer verdadeiro, há também,


também há analogia, tanto de proporcionalidade, mas, mais propriamente ainda,
de atribuição. De que modo? Nesta atribuição o primeiro analogado, o analogado
principal é a própria verdade conhecida que se dá no intelecto em sua segunda
operação: o juízo – já o vimos.

Recapitulemos algo do que já vimos mais para o início do nosso curso: o


intelecto, na primeira operação, na sua primeira operação, ou seja, a operação
de simples apreensão ou inteligência dos incomplexos pode dizer-se verdadeiro
enquanto pode julgar-se tal no juízo. Lembrem-se que só na segunda operação
é que entram o verdadeiro e o falso.

A proposição oral, estas que estou dando aqui, ou escritas como as que
ponho em meu livro são verdadeiras na medida em que signifiquem uma
proposição mental que seja verdadeira.
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Pois bem, se é tudo isto que acabo de dizer, verdadeiro como


transcendental não faz senão acrescentar à noção de ente o poder ser conhecido
como adequado pelo intelecto.

Pois bem, mas ainda não terminamos com o transcendental verdadeiro ou


verdade. Por quê? Porque as coisas podem comparar-se ao intelecto de duplo
modo, de duas maneiras: como a medida com respeito ao medido. Assim se
comparam as coisas da natureza, as coisas naturais ao intelecto especulativo
humano – já disse aqui em alguma altura que nosso intelecto tem dupla face: o
intelecto especulativo e o intelecto prático. Pois bem, então repita-se o que se
acaba de dizer: as coisas podem, as coisas naturais podem comparar-se ao
intelecto nosso de dupla maneira, ao intelecto de dupla maneira, as coisas
naturais podem comparar-se ao intelecto de duas maneiras: como a medida ao
medido. Assim se comparam as coisas naturais ao intelecto especulativo
humano. Não é isso? As coisas naturais são a medida do intelecto especulativo
humano que tem de adequar-se a elas. Mas agora, como medido, se compara à
medida. Assim, as coisas artificiais, as feitas pela nossa arte são medidas pelo
intelecto – agora já não especulativo – pelo intelecto prático humano.

Pois bem, o intelecto se diz verdadeiro enquanto se conforma, se adequa


à coisa que é sua medida extramental, de fora da alma, e falso quando não
concorda com ela. No entanto, a obra do artista ou artífice diz-se verdadeira ou
falsa enquanto se adequa ao intelecto prático. Agora é o inverso! Ou seja,
enquanto se conforma às regras da arte e falsa a coisa produzida se se afasta
das regras e da razão de arte.

Pois bem, mas tudo o que é natural, todas as coisas naturais se comparam
ao intelecto divino – vejam, agora estamos lá no intelecto divino – assim como
as coisas artificiais se comparam ao intelecto prático humano, porque, com
efeito, todas as coisas que são naturais e às quais nosso intelecto especulativo
tem de adequar-se ou conformar-se, estão para o intelecto de Deus que é
especulativo e prático ao mesmo tempo, assim como as obras de nossa arte
estão para o nosso intelecto prático. Pois bem, com respeito a Deus, então, uma
coisa se diz verdadeira enquanto tem sua forma própria, sua forma substancial
própria. E por quê? Porque, enquanto tem esta forma, enquanto tem sua forma
substancial própria que as coisas naturais imitam a arte divina, conformam-se à
arte divina, adequam-se à arte divina. E isto é assim até com o ouropel. Vejam,
o ouro falso é verdadeiramente o ouropel, ou seja, ele tem a forma de ouropel e,
portanto, é verdadeiro porque se adequa à arte com que Deus o fez ouropel e
não ouro. Vejam que beleza de diferença, vejam que grande excursão ou
incursão na Metafísica já fazemos aqui na altura da nossa Lógica.

Pois bem, como tudo o que é ou existe na natureza é capaz de imitar a arte
divina segundo sua forma natural, sua forma substancial, e é por esta mesma
razão, como veremos mais adiante, que Aristóteles chama a forma substancial
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das coisas como algo divino, chama-as algo divino, lembra exatamente que ente
e verdadeiro se convertem entre si. A mútua conversão entre ente e verdadeiro
se dá perfeitamente na medida em que as coisas, segundo sua forma substancial
ou natural se adequam, se conformam à arte divina, a arte do artista sumo que
é Deus mesmo.

Podemos agora, portanto, passar ao penúltimo ponto desta nossa aula.


Para Santo Tomás seria o último – já o veremos por quê, já o veremos por quê.
É o bom, o bonum ou o bem ou bondade. O abstrato de bom é ou bem ou
bondade, tanto faz. Pode dizer-se as três coisas, podem dizer-se as três coisas.
É preferível mais das vezes usar bom. Nem sempre é possível. Vejam –
desculpem-me referir outra vez ao livro, mas um livro tão grande, tão longo como
é o Da arte do belo várias vezes eu digo bom, bondade, bem, verdadeiro,
verdade... Nenhum problema maior.

Bom, a noção de bom tem em seu significado mais comum dois aspectos
e estes dois aspectos são, até certo ponto, conflitivos entre si. Por quê? Porque,
por um lado, o bom significa, ou bondade, ou bem, significa certa perfeição que
a coisa boa tem em si. Com efeito, é bom o que é perfeito, o que está acabado
segundo sua natureza e segundo sua essência. É bom aquilo que é completo e
íntegro. Mas, por outro lado, bom significa algo relativo ao nosso apetite. O bom,
o bem é amável; o bom, o bem é apetecível. Estes dois aspectos se encontram
na descrição ou definição clássica de bem ou do bom. Bom é aquilo que todas
as coisas apetecem, que todas as coisas desejam. No verbo “apetece”
naturalmente está referência ao apetite, ao desejo, enquanto em todas as coisas
está a ideia – todas – do absoluto que o bem encerra. Todas as coisas apetecem.

Pois bem, o bom, o bem é objeto do apetite de maneira análoga a como o


verdadeiro é o objeto do intelecto. O verdadeiro é objeto do intelecto, ao passo
que o bom é objeto do apetite. Pois bem, mas há uma diferença: a analogia
sempre implica semelhança e dessemelhança. Pois bem, qual é a
dessemelhança? Qual é a diferença? O verdadeiro encontra-se primeiramente
no intelecto – já o vimos, acabamos de ver – que é onde se dá propriamente e
formalmente a adequação à coisa. O bom, porém, dá-se primeiramente na
própria coisa, que é onde propriamente, formalmente se dá a perfeição que move
o apetite a apetecê-lo, a desejar. É por isso que bom se diz antes da coisa que
do apetite e isso é de três modos principais. Se diz antes da coisa que do apetite.

Então, em primeiro lugar está o bem honesto. O que é o bem honesto?


Não é só moral. O que é o bem honesto? Diz-se que é um bem honesto o que é
perfeito em si mesmo e, portanto, por isso mesmo, objeto do apetite em si
mesmo. Aquilo que é bom por si mesmo e em si mesmo é objeto do apetite em
si mesmo e por si mesmo.
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Mas há um segundo bem que é o bem deleitável ou agradável, como


queiram, ou prazeroso. Diz-se que é um bem deleitável aquele que dá prazer ou
deleite.

E há, por fim, o bem útil. O bem útil é aquele que nos permite alcançar o
bem honesto ou o bem deleitável. É antes um meio, um instrumento.

Pois bem, nisto tudo há dupla analogia, tanto de proporcionalidade quanto


de atribuição, sendo o bem honesto o primeiro e principal analogado.
Obviamente o bem honesto é aquele que é bom em si e por si, é o principal
analogado da analogia de atribuição.

Pois bem, diferentemente, porém (este é o ponto mais importante na


verdade), diferentemente dos demais transcendentais e excluído o fato de que
Deus mesmo não pode dizer-se coisa nem algo, mas diferentemente dos demais
transcendentais, não podemos dizer que tudo o que é, tudo o que existe é bom
pura e simplesmente, porque algo que existe pode ser imperfeito e, se ele é
imperfeito, ele não tem razão de bondade, mas podemos dizer que, conquanto
ele não seja bom por imperfeito, ele é bom enquanto existe, enquanto é. O
próprio fato de ser lhe dá bondade, ainda que de modo atenuado.

Pois bem, se se leva em consideração que o ente enquanto é tem algo de


perfeição pelo próprio fato de ser, pelo próprio fato de existir, podemos, então,
dizer todo ente, enquanto ente, ou seja, enquanto tem certa perfeição que é o
ser, é bom, e todo bem ou todo bom enquanto bom é ente. Por quê? Porque não
há nada que possa considerar-se perfeição que não seja algo e tenha certa
bondade, ou seja, o próprio fato de ser dá a transcedentalidade a todas as
coisas, porque todas as coisas são e, como o próprio ser é uma perfeição, então
todas as coisas podem dizer-se boas, mas com a precisa e seguinte restrição:
elas não são boas, porém, enquanto são imperfeitas, enquanto as coisas são
imperfeitas.

Pois bem, é algo análogo, é por algo análogo que se pode resolver a
questão do belo ou beleza. Já, desde há muito tempo, os tomistas se digladiam
entre si em torno da questão de se o belo é ou não é um transcendental. Santo
Tomás nunca o pôs em nenhuma relação de transcendentais, nem no De
veritate, nas questões disputadas De veritate, como há vimos na primeira aula
deste nosso Tratado dos Transcendentais, nem em nenhuma outra parte incluiu
ela nessa relação e, no entanto, em várias partes de sua vastíssima obra parece
dar a entender que sim, o belo é um transcendental, sobretudo quando trata da
beleza divina e sua irradiação para as coisas. Pois bem, não quero cansá-los
com questões altamente complexas em torno do belo. Desculpem-me e
desculpem-me ainda a autorreferência, ainda a referência ao meu livro Da arte
do belo em cujo penúltimo capítulo trato extensamente esta coisa. Pois bem,
assim como no livro vou considerar-me aqui, com respeito ao belo, no campo do
dialético. Que quero dizer? Lembrem-se que a dialética é a arte de fazer alcançar
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a opinião mais provável, ao passo que a Lógica é a arte que permite alcançar a
ciência. Pois bem, vou manter-me aqui, como no livro, no âmbito do dialético, do
tópico, da dialética, da opinião mais provável.

Nós temos aqui um dilema, duas possibilidades: ou o belo não é um


transcendental, ou o belo é um transcendental. Pela dialética podemos agarrar-
nos firmemente a um dos chifres deste dilema, mas com certo receio de que o
outro é que esteja correto, ainda não é a certeza científica, mas prefiro, por
prudência, manter neste terreno.

Pois bem, parece que o belo pode dizer-se transcendental, mas


obviamente, há coisas que não são belo.

O que é o belo? O belo é tudo aquilo que tem integridade, consonância ou


harmonia entre suas partes e luminosidade, claridade, ou seja, para simplificar o
assunto, é belo aquilo que tem a perfeição, ou seja, a bondade. Por isso é que,
em várias partes, Santo Tomás diz que o belo é a outra face do bem, mas é a
outra face do bem, uma se converte com o outro assim como os transcendentais
se convertem entre si: tudo o que é ente é algo, tudo o que é algo é ente, etc. e
tal. Pois bem, menos Deus que não é algo, mas e pode dizer-se que é um
transcendental com uma limitação análoga à limitação dada ao bom. Que quero
dizer? Acabo de dizer que todo ente é bom enquanto ente, enquanto é ente,
enquanto é, enquanto existe e que o próprio fato de existir é bom em si. Mas, se
o belo é a outra face do bem, então tudo quanto existe, tudo quanto é, enquanto
é também é belo, ainda que, assim como aquilo que é imperfeito não pode dizer-
se bom, tampouco pode dizer-se belo aquilo que é imperfeito, desproporcional
ou carente de integridade.

Esta solução eu já havia antecipado em minha tradução do Compêndio de


Teologia de Santo Tomás de Aquino, mas fico, agarro-me a ela firmemente com
o receio, no entanto, de que esteja errado. Não quero, no entanto, ultrapassar o
umbral da dialética para tentar adentrar uma certeza, porque, se Santo Tomás,
em toda a sua vasta obra – eis o meu receio – em toda a sua vasta obra ele
mesmo não se sentiu inclinado, não se sentiu seguro para incluir em suas
relações de transcendentais o belo, quem sou eu para fazê-lo? É preciso certa
cautela, mas parece que pode resolver-se esta questão – parece – sempre que
se usa no âmbito da ciência parece, talvez, quem sabe, provavelmente, está-se
no campo da dialética, dentro, no interior da ciência. Esta aula que eu dei hoje
aqui foi uma aula científica e, no âmbito dela, eu recorro, eu me cinjo à dialética.
Então repita-se, espero ser claro quanto a esta analogia: enquanto todo ente é
bom enquanto é, enquanto é ente, enquanto existe, enquanto é e como o belo é
a outra face do bom, do bem, então tudo quanto é não pode deixar de ser belo
enquanto é ente, enquanto é, enquanto existe, conquanto não seja belo aquilo
que não tenha perfeição, pela mesma razão por que o imperfeito não pode dizer-
se bom. São limitações análogas, são parelhas pela própria contiguidade entre
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a noção transcendental de bom e a noção transcendental de bela. Tudo isto,


talvez quando alcancemos aqui a Metafísica, talvez eu ouse dar o salto do
provável para o apodíctico, para o certo, dar o salto do dialético ou tópico para o
da ciência, para o da demonstração. Mas não tenho pressa, não tenho pressa.
Cada um de nós faz sua parte.

Creio que, com esta minha incursão no dialético quanto ao belo, resolve,
pelo menos para mim, por ora, tudo de quanto necessito com respeito ao belo e
sobretudo vi-me diante desta necessidade, pude escrever o livro Da arte do belo.

Pois bem, esta foi uma aula menor. Espero que lhes tenha sido, lhes seja
de grande utilidade, mas com ela, e comemorando nosso primeiro ano de Escola
Tomista, encerro o tratado tão belo dos transcendentais.

Muito obrigado pela atenção e até a nossa 49ª aula, ou seja, a primeira aula
do segundo ano de nossa Escola Tomista. Muito obrigado uma vez mais pela
atenção.

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