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Escola Tomista – Apenas para uso dos alunos Página | 1

Escola Tomista
Professor Carlos Nougué
Aula 40
Bem-vindos à 40ª aula de nossa Escola Tomista. Estamos no Tratado das
Categorias ou predicamentos VIII, VIII. Sim, aula 40, Predicamentos ou
Categorias VIII. Bem-vindos.

Pois bem, hoje vamos tratar a categoria ou predicamento, começar a tratar,


a categoria ou predicamento comumente chamada relação e que também se
pode chamar ad aliquid. Ad – a algo – ad aliquid – a algo.

Pois bem, antes de tudo diga-se que a relação, assim como a quantidade,
assim como a qualidade, assim como todos os predicamentos é algo no sujeito,
é algo na substância.

Pois bem, antes de prosseguir vejam aí o documento único da aula em que


reproduzo um trecho de meu livro Da arte do belo. É um quadro geral dos
acidentes, ou seja, dos modos de acidentalidade. É importante pô-lo aqui porque,
como veremos na aula seguinte, há quem negue a relação e isto que eu vou
dizer neste mesmo quadro. Então leiamos o quadro. Se vocês tiverem o
documento à mão melhor. São nove os modos de acidentalidade. Três – são
nove acidentes, não?, e a substância, com a substância dão as dez categorias.
Pois bem, são nove os modos de acidentalidade. Três são intrínsecos e seis
extrínsecos. Ou seja, três vêm ab intrinseco, ab intrinseco e seis ab extrinseco.
É exatamente como se diz sem o acento, porque em latim não tem acento. Ab
intrinseco e ab extrinseco.

Pois bem, quais são os três intrínsecos? A quantidade, que já estudamos,


a qualidade e a própria relação ou ad aliquid. Mas há uma diferença entre elas.
É que a quantidade e a qualidade são absolutamente intrínsecos, intrínsecas,
enquanto a relação ou ad aliquid é relativamente intrínseca. É o que veremos
nestas duas aulas sobre esta categoria.

As extrínsecas – que são seis – podem dar-se ou em razão da causa, ou


em razão da medida, ou em razão da natureza do homem. Se se trata de
acidentes, modos de acidentalidade em razão da causa, temos, pelo agente, a
ação (serrar), no paciente a paixão (ser serrado). Se é que se trata de modo
extrínseco de acidentalidade em razão da medida, tem-se, então, quanto ao
lugar – ubiquação, um exemplo: no gelo – quanto ao tempo – quando: agora, por
exemplo – se se trata, porém, de modo de acidentalidade extrínseco em razão
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da natureza do homem, temos então o acidente habitus, habitus – sem acento,


é latim – habitus ou posse – vai armado, por exemplo, está calçado, por exemplo.

Pois bem, como eu disse, houve quem duvidasse de que o acidente relação
fosse algo real e não mero ente de razão. Duvidaram. Aliás, ainda duvidam. Pois
bem, mas mais que isso, mais que isso se duvida até de que o acidente se
distinga realmente, os acidentes se distingam realmente da substância. Isto
sempre se duvidou e continua a duvidar-se contra a doutrina aristotélico-tomista
e de outros que a assumiram.

Pois bem, leem, também a modo introdutório, um trecho do Padre Calderón


em seu livro La naturaleza y sus causas, tomo I, página 186, que transcrevo em
meu Da arte do belo. Diz o Padre Calderón: “há, porém, muitas outras razões
para pensar ao contrário que os acidentes têm certa realidade distinta da
substância”. Vejam, já vimos que os acidentes não têm ser por si, eles se dão na
substância, eles só têm ser na substância. O que se pergunta aqui é se eles se
distinguem realmente da substância ou como somente como algo de razão,
como ente de razão. Pois bem, leiamos o que diz aí, está no documento também,
o que diz aí o nosso Padre Álvaro Calderón: “há, porém, muitas outras razões
para pensar, ao contrário, que os acidentes têm certa realidade própria distinta
da substância. Primeira razão: se ao cão lhe cortam a cauda, não deixa de ser o
mesmo cão, ainda que com menor quantidade”. Vejam, se tem maior ou menor
quantidade é porque a quantidade é algo que se distingue da substância, porque
a substância permanece a mesma, mas variou a quantidade com o cortar a
cauda do cão. “E se uma criança come uma maçã aumenta a sua própria
quantidade, aumentou o seu peso pela própria maçã, mas segue sendo em
substância a mesma criança”. Pois bem, “ao menos para as coisas viventes
parece claro que uma coisa é a substância, outra a quantidade. Se o mesmo
homem” – segunda, segunda razão – “se o mesmo, se o próprio homem pensa
quer e sente, sendo uma mesma a substância e diferentes as ações, tem de
haver no homem qualidades distintas que expliquem esta diversidade, as quais
se chamam potências”, potências. O que são as potências é o que estudaremos
adiante. Estudaremos isso na Biologia, estudaremos isso na Psicologia ao
tratarmos, por exemplo, as potências da alma, se as potências da alma se
distinguem realmente ou se são a mesma alma. Pois bem, terceira razão: “a
realidade das relações tem menor consistência – estamos agora na relação, no
ad aliquid –, mas algo significa à filiação que se perde quando se perdem os
pais”.

Muito bem, então voltemos ao nosso quadro aí no mesmo documento. A


relação, como explicarei mais detidamente na aula que vem, ela é um modo de
acidentalidade intrínseco, conquanto não seja um modo de acidentalidade
absolutamente intrínseco como é a quantidade e a qualidade, senão que é um
modo de acidentalidade intrínseco – ab intrinseco – mas apenas relativamente
intrínseco. Posto isto, que é uma seta para a próxima aula, vamos, como
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anunciei na anterior, vamos acompanhar o próprio Aristóteles, o texto do próprio


Aristóteles em seu livro acerca da ralação, em seu opúsculo magnífico As
Categorias.

Pois bem, vou acompanhar o texto. Pois bem, dizem-se com respeito a
algo, com ralação a algo as coisas que aquilo que são exatamente elas mesmas,
diz-se que são de outras coisas ou com respeito, ou com relação a outras coisas.
Então repita-se a definição de Aristóteles: “dizes com relação a algo todas
aquelas coisas que aquilo que elas são elas mesmas diz-se que o são de outras
coisas, de outras coisas”. Vejam “de”, vejam essa preposição. “São de outras
coisas ou com respeito, ou com relação a outra coisa”.

Então vejam, segundo Aristóteles mesmo há dois modos de relação:


aquelas coisas que aquilo que elas mesmas são diz-se, porém, que o são de
outras coisas, de, ou com respeito a outra coisa. Exemplos clássicos do mesmo
Aristóteles: maior e dobro. Realmente só se pode ser maior algo que seja de
outro algo menor. É com respeito a algo, com relação a algo. Algo só se pode
dizer maior se for maior de outro algo menor. Da mesma forma dobro. Só pode
ser dobro aquilo que seja dobro da metade; se não for dobro da metade, não
será dobro. Então, isto que se diz dobro, aquilo que isto mesmo é se diz, porém,
com respeito a outro. Não se pode falar de dobro sem dizer respeito à metade,
assim como não se pode falar de maior se não se diz respeito a algo que seja
menor. Maior e menor, dobro e metade são relativos uns aos outros, como já se
verá, porque assim como não pode haver maior se não for com respeito, com
relação a algo menor, assim tampouco pode haver algo menor que não seja, que
não seja em relação ao maior. Da mesma forma, aquilo que se diz dobro não
pode ser dobro se não for dobro da metade e aquilo que se diz metade não se
pode dizer metade senão daquilo que se diz dobro. Aquilo que dobro e metade
são eles mesmos, diz-se que são com respeito a outras coisas ou de outras
coisas. A diferença entre com respeito a e de outra coisa é... já se entenderá
melhor.

Pois bem, continuemos com os exemplos. Tenhamos dois exemplos,


ponhamos três exemplos: disposição, sensação, conhecimento. Vejam, vejam
como conhecimento é relativo, é relativo a algo. Por quê? Ele se diz
conhecimento de algo. Se não fosse de algo que se conhece, o conhecimento
não se entenderia. Conhecimento sempre é de algo. Vejam que eu estou
seguindo estritamente Aristóteles, a exposição de Aristóteles. Da mesma forma
sensação de algo. Já disposição é disposição a algo, disposição para algo.
Então, conhecimento sempre será conhecimento de algo; sensação sempre será
sensação de algo; e disposição sempre será disposição a algo ou para algo.

Mas vejam, estes mesmos exemplos que põe Aristóteles apresentam um


problema que eu só colocarei: se maior só o é se o for de um menor, menor,
portanto, só o é se o for de um maior. Se o dobro o é com respeito à metade,
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metade só o é se for com respeito ao dobro. Mas isso eu não posso dizer do que
eu acabo de dizer: conhecimento de algo, o conhecimento tem de ser de algo,
mas algo não é de conhecimento, pode ser algo de qualquer coisa. Sensação de
algo: sensação se diz sempre de algo, mas algo não se diz sempre de sensação
de algo. Disposição para algo: da mesma forma. Este é um problema e vamos
pondo setas.

Um relativo que é claramente relativo é a semelhança. Se a semelhança é


semelhança a algo. A semelhança, o semelhante o é de um semelhante. E um
dessemelhante o é de um dessemelhante. Vejam que aqui há certa
reciprocidade. Mas se eu ponho semelhança a algo, já não há reciprocidade,
porque a algo não é, não está para semelhante assim como a metade está para
o dobro.

Pois bem, comecemos a ver segundo o mesmo Aristóteles – lembre-se que


eu estou sempre com Aristóteles aqui, o texto aqui que eu tenho na tradução ao
espanhol da Editora Gredos, Gredos. Deixe-me ver se está aparecendo. Da
Editora Gredos. Não é a tradução ideal, mas infelizmente não sei grego e
infelizmente a magnífica obra completa de Aristóteles coordenada em Portugal
por António Pedro Mesquita, parece que pararam pela crise econômica
portuguesa. Infelizmente não chegaram a publicar as Categorias de Aristóteles.
Realmente são traduções superiores às que já saíram, não sei se vocês veem
ali atrás, atrás do busto de Santo Tomás de Aquino estão os livros da edição de
António Pedro de Mesquita parciais das obras completas de Aristóteles. Pois
bem, então vejam o livro que eu uso é este da Gredos, da Gredos.

Pois bem, algumas propriedades da relação. Uma propriedade da relação


é a contrariedade, ou seja, o ter contrários. Com efeito, se o conhecimento é um
conhecimento sempre de algo, o que o põe como relativo, o conhecimento tem
um contrário: é a ignorância. Assim, ignorância também é um relativo, porque
não se pode ter ignorância senão de algo, de algo. E qual é o contrário de
ignorância? Conhecimento. Qual é o contrário de conhecimento? Ignorância.
Ambos são ad aliquid. Mas há que perguntar e o faz Aristóteles: há sempre
contrariedade entre os relativos? Não, não sempre. Com efeito, nada é contrário
do dobro, do triplo. O que seria o contrário do triplo? Contrário é branco e negro,
bom e mau, virtuoso e... virtude e vício, virtuoso e vicioso, conhecimento e
ignorância, conhecedor e ignorante. Esses são contrários. Mas o que seria o
contrário do quádruplo? Nada, não é possível. Então, conquanto seja uma
propriedade dela, não o é sempre, não o é sempre.

Pois bem, outra propriedade que têm os relativos é o ser, o serem capazes
de mais e menos. Que quero dizer? Algo é mais ou menos semelhante a outro
algo. Algo é mais ou menos dessemelhante ou desigual do desigual, de outro
algo. Semelhante, algo é mais ou menos semelhante a outro; o desigual é mais
ou menos desigual do desigual. O semelhante é mais ou menos semelhante do
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semelhante; o desigual ou dessemelhante é mais ou menos desigual do desigual


ou do dessemelhante. Mas nem sempre. Uma vez mais, vejam, o triplo, o
quádruplo não se podem dizer mais ou menos triplo ou mais ou menos
quádruplo.

Pois bem, então põe Aristóteles que todo ad aliquid se diz com relação ou
com respeito a um recíproco. Vejam, o escravo é um relativo; e qual é o seu
recíproco? O senhor, porque, com efeito, só se é senhor de um escravo e
escravo de um senhor. Sempre há um recíproco. Tio e sobrinho; pai e filho;
dobro-metade; menor-maior. Sempre há uma reciprocidade e esta parece ser
uma propriedade que se dá em todos os... em todos os, em todos os relativos. É
a reciprocidade: senhor-escravo, escravo-senhor; pai-filho, filho-pai; dobro-
metade, metade-dobro; menor-maior, maior-menor. E é aqui que se resolve,
pergunta-se então, havemos de perguntar: mas, ao contrário de ser capaz de
contrariedade, ou de ser capaz de mais e menos, os relativos têm sempre
mesmo, de fato como põe Aristóteles, um recíproco? Parece que sim. Lembrem-
se que, nesta aula, ainda estamos em parte no dialético, no tópico e estamos
tateando ainda com respeito a coisas relativas ao relativo ainda estamos no
terreno de buscar a opinião mais provável. Com isso vocês vão vendo que a
Tópica ou Dialética, assunto que faz parte de nosso programa, de nosso
currículo.

Pois bem, agora sim. Vimos acima que conhecimento é relativo. Por quê?
Todo conhecimento é de algo. Mas eu disse de algo; algo não pode ser recíproco
de conhecimento. Sim, sim! Pode haver, pode não, há reciprocidade para
conhecimento. E qual é seu recíproco? Cognoscível. O cognoscível, ou
conhecível só é cognoscível ou conhecível para o conhecimento, enquanto o
conhecimento não pode ser senão do conhecível. Então se se põe conhecimento
de algo e se substitui o de algo por cognoscível, ter-se-á reciprocidade. Do
mesmo modo sensação. Se eu digo sensação de algo, não há reciprocidade; vê-
se que há relação, porque sensação sempre será sensação de algo, mas não
haverá reciprocidade. Então, para que haja reciprocidade, é preciso substituir de
algo por sensível. A sensação é sempre de algo sensível e algo sensível é
sempre algo que se pode sentir, que se pode ter por sensação.

Mas isto já nos põe um problema a que voltaremos. O conhecimento é do


cognoscível, mas o homem conhece o cognoscível e o cognoscível é
cognoscível para o homem. Mas antes de que o homem pisasse a terra já havia
coisas cognoscíveis e, no entanto, não havia o conhecimento, não havia o
conhecedor. Não havia conhecimento porque o conhecedor ainda não estava
aqui e, no entanto, já havia coisas cognoscíveis. Da mesma forma, antes que os
animais e o homem mesmo pisassem esta terra, já havia coisas sensíveis, ou
seja, coisas capazes de ser conhecidas por sensação e, no entanto, não havia
aquele sensitivo capaz de sensação com respeito às coisas sensíveis. Mas há
reciprocidade: conhecimento tem por recíproco cognoscível e cognoscível tem
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por recíproco conhecimento. O sensível tem por recíproco a sensação e a


sensação tem por recíproco o sensível, conquanto já nos tenhamos deparado
com o problema. Mas se houve, se não houve conhecedores antes de
cognoscíveis, será verdade isso que se acaba de dizer? Como não houve
sensitivos antes dos sensíveis, os sensíveis, ao contrário, precederam os
sensitivos aqui nesta terra, então como pode ser que sensação e sensível sejam
recíprocos se eles podem existir não contemporaneamente, ao menos o
cognoscível e o sensível?

Pois bem, mas ainda estamos vendo a questão da reciprocidade. Vamos


aos complexos exemplos dados por Aristóteles. Às vezes não parece – vejam,
estamos ainda no terreno da disputa dialética – às vezes não parece que haja
tal reciprocidade. Assim a ave é sempre relativa a asas, mas nem sempre a asa,
a asa é relativa à ave. Repita-se: a asa, a ave, a ave, o animal, é sempre relativa
à, é relativo a asas, mas nem sempre a asa é o relativo de ave. Por quê? Porque
há asas de outras coisas! Então parece que não se dá a tal reciprocidade em
todos os casos de ad aliquid ou de relação. Mas responde o mesmo Aristóteles
a esta objeção: o problema é como se põe a coisa! Assim como não há
reciprocidade entre conhecimento de algo, mas sim há reciprocidade entre
conhecimento e cognoscível, assim como não há reciprocidade entre sensação
de algo, mas sim se se põe sensível, daí que haja reciprocidade entre sensação
e sensível, então resta saber se, no caso aqui da asa e da ave também é possível
pôr em termos corretos que mostre tal reciprocidade. Então asa é sempre
recíproco de alado – alado é o que tem asas – e alado é sempre recíproco de
asa. Vejam que agora pus corretamente: tirei ave e pus alado. Assim a asa é
relativa a alado e alado se dá ou é relativo em virtude da asa. Então vejam que
se trata de pôr o nome correto: alado em vez de asa.

Pois bem, então muitas vezes não se tem um nome como alado. É o que
diz Aristóteles. Muitas vezes não há um nome como alado. Então teríamos que
fazer que coisa para mostrar tal reciprocidade? Inventar nomes. É o que põe
Aristóteles em suas Categorias. Inventar nomes.

O timão – o leme do navio, né? – o timão do navio não se pode dizer relativo
a navio, nem o navio relativo a timão. Por quê? Porque há navios sem timão. Se
há navios sem timão, então não pode haver reciprocidade entre navio e timão e
entre timão e navio, mas talvez sim se inventarmos o nome. Assim, o timão é
relativo do timoneado – isso é um neologismo, ou era, talvez haja já em
português na época, deixe-me ver se há, não sei, eu estou sem meu dicionário
aqui, acho que há timoneado em português, não tenho certeza, podem procurar,
mas, para Aristóteles, em seu grego, no grego de sua época, não havia a palavra
timoneado. Então ele inventa a palavra timoneado e põe-na como recíproca,
relativa, recíproco de timão, porque o timão está para o timoneado, assim como
o timoneado está para o timão, ou seja, como relativos recíprocos. Tanto o timão
é relativo recíproco de timoneado, como timoneado é relativo recíproco de timão.
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Do mesmo modo pense-se em cabeça e animal. A cabeça é relativo de


animal, mas animal e cabeça são recíprocos? Não, não o são pelo simples e
puro fato de que há animais sem cabeça. Logo animal não pode ser recíproco
de cabeça. Cabeça o pode ser de animal – relativo – mas animal não pode ser
recíproco de cabeça. Então inventa outra palavra o nosso Aristóteles:
acabeçado. Assim, cabeça é relativo de acabeçado e acabeçado é relativo de
cabeça com reciprocidade, porque, com efeito, cabeça é recíproco, é relativo-
recíproco de acabeçado e acabeçado é relativo-recíproco de cabeça.

Pois bem, mas, para fazer tudo isto, para encontrar a reciprocidade que
parece se dá em todos os relativos, temos de fazer a reciprocidade com toda a
propriedade, ou seja, não podemos fazê-la equivocadamente, erradamente. Por
exemplo: conquanto digamos que alguém é escravo de um homem, não se trata
de reciprocidade. Claro, escravo é sempre escravo de alguém, de um homem,
mas não há reciprocidade. Então é preciso substituir homem por senhor. O
escravo é sempre escravo de um senhor e o senhor é sempre senhor de um
escravo. Não pode ser de um homem porque, se um escravo é sempre escravo
de um homem, um homem nem sempre é um homem de um escravo, ou melhor,
nunca o é. Então, a reciprocidade se encontra se se usam os termos
apropriados, se se faz a coisa com toda a propriedade. Por isso, ainda
mantendo-nos neste exemplo do escravo, retire-se de senhor ou de escravo todo
o acidental, tudo o que lhe é acidental quanto ao caso. Por exemplo, retire-se
tanto de senhor como acrescento eu como de escravo, por exemplo, que sejam
homens, que sejam bípedes – tenham dois pés – que sejam capazes de
conhecer – tanto o escravo quanto o senhor são homens, são bípedes, são
implumes e são capazes de conhecer, mas há que retirar para mostrar a
reciprocidade todo o acidental disto e ficar com o essencial quanto a esta
categoria ou modo de acidentalidade que é o ad aliquid. Ponha-se, então,
escravo do senhor, senhor do escravo.

Pois bem, diz Aristóteles com toda a sabedoria: se há nome disponível para
mostrar a reciprocidade, muito bem! Se não o há, há que inventá-lo. Então põe
Aristóteles que o ad aliquid se dá sempre com respeito a um equívoco, a um
recíproco, o ad aliquid sempre se dá com respeito a um recíproco e o recíproco
sempre se dá com respeito ao ad aliquid. Ou seja, recíproco de recíproco. Ele
mesmo, o próprio recíproco é uma relação, é... assim como o semelhante o é de
um semelhante, assim também o reciproco o é de um recíproco; assim como o
dessemelhante ou desigual o é de um dessemelhante, assim, ou um desigual o
é de um desigual, assim também, repita-se, o recíproco o é – não pode deixar
de ser – senão de um recíproco.

Muito bem, elimine-se um, elimina-se o outro. Parece, então, que de fato
sempre o ad aliquid, todo e qualquer ad aliquid se dá com relação, com respeito
a um recíproco. Mas agora voltamos a um problema anunciado antes: parece
que, além de recíprocos, os dois relativos recíprocos se dão sempre
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simultaneamente. O dobro há de ser simultâneo da metade; o escravo há de ser


simultâneo do senhor. Elimine-se um, elimina-se o outro. Repita-se: parece que
são simultâneos, porque, com efeito, se se elimina a metade, eliminou-se o
dobro; se se elimina o dobro, eliminou-se a metade; se se elimina o senhor,
eliminou-se o escravo; se se elimina o escravo, eliminou-se o senhor. Parece,
porém, que não sempre. É o caso do cognoscível e do conhecimento, do
sensível e da sensação. Houve sensíveis antes de que houvesse na face da terra
animais capazes de sensação para senti-los. Houve coisas cognoscíveis,
conhecíveis antes de que o homem pisasse na terra, que é o único capaz de
conhecimento em sentido mais estrito.

Pois bem, se se... vejam, se se suprime o dobro, elimina-se a metade; se


se suprime a metade, elimina-se o dobro; se se suprime o escravo, elimina-se o
senhor; se se elimina o senhor, suprime-se o escravo. Mas agora não. Pode
eliminar-se a sensação sem eliminar-se o sensível. Pode eliminar-se o
conhecimento sem eliminar-se o conhecível, o cognoscível. Então, se se suprime
o cognoscível, suprime-se o conhecimento, mas se se suprime o conhecimento,
não se suprime necessariamente o cognoscível. Se se suprime o sensível,
suprime-se a sensação, mas não necessariamente se se suprime a sensação se
suprime o sensível. Isso vale também, o sensível que experimenta o quente, o
doce, o amargo... tá certo?

Pois bem, a água, o fogo, a terra, antes que houvesse o animal e, pois, a
sensação, já estavam aí, a água, o fogo, o ar, e eles eram sensíveis antes
mesmo de que houvesse o animal que fosse capaz de sensação. Portanto,
elimine-se, suprima-se o sensível, suprimir-se-á a sensação, mas se se suprime
a sensação não necessariamente se suprime o sensível. Da mesma forma,
suprima-se o cognoscível, suprimir-se-á o conhecimento, mas se se suprime o
conhecimento não necessariamente se suprime o cognoscível ou conhecível.

Pois bem, chegamos à última parte – deixa-me ver a quantas horas


estamos de aula – chegamos à última parte, mais difícil, das categorias de
Aristóteles. Vou permitir-me ler e fazer comentários à medida que o leia.

Agora eis a dificuldade. Já sabemos o que é a substância, substância


primeira e substância segunda que aqui o tradutor da Gredos traduz por entidade
primária e entidade secundária. Acho terrível essa tradução, mas dá para
entender aqui. Pois bem, então se trata agora de saber se a substância pode ela
mesma – substância primeira ou substância segunda – podem elas mesmas ser
ad aliquid. E eis a grande dificuldade. Vamos ler com Aristóteles.

“Oferece dificuldade saber se alguma substância se encontra entre aquilo


que é com relação a algo – Ad aliquid – como parece” – e parece – “ou se esta
possibilidade só se dá em algumas das substâncias segundas, pois, quanto às
substâncias primeiras, sim, é verdade”.
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Releiamos este preâmbulo da dificuldade. “Oferece dificuldade saber se


alguma substância se encontra entre aquilo que é ad aliquid. Como parece ou
se cabe esta possibilidade em algumas das substâncias segundas, pois, no
tocante às substâncias primeiras, sim, é verdade”.

Vejam, estou lendo Aristóteles. “Com efeito, nem os todos, nem as partes
se dizem com respeito a algo, pois o homem individual não se chama homem
individual de algo, nem o boi individual boi individual de algo. Da mesma maneira
também as partes, pois a mão individual não se chama mão individual de algo,
mas mão de alguém, e a cabeça individual não se chama cabeça individual de
alguém, mas cabeça de alguém”.

Então as substâncias primeiras são relativas, seriam relativas a alguém.


Pois bem, “do mesmo modo, também no tocante às substâncias segundas, ao
menos a maioria delas. O homem não se chama homem de alguém, nem o boi,
boi de alguém, nem o lenho – a madeira – madeira de alguém, mas propriedade
de alguém”.

Isto aqui tem um problema de língua, porque nós dizemos perfeitamente o


boi de alguém. Este boi é de alguém, este cão é de alguém – está com a coleira
–, mas o que ele está chamando atenção é que não pode o boi... tem que ser
relativo a alguém enquanto é propriedade sua. Veja, estamos no campo do
dialético.

“Assim, pois, no tocante às coisas desse tipo” – ou seja, as substâncias –


“é manifesto que não são do ad aliquid, mas, no caso de algumas substâncias
segundas, há discussão. Por exemplo: a cabeça se chama cabeça de alguém e
a mão, mão de alguém e também cada uma das coisas deste tipo de modo que
essas, ao que parece, são com respeito a algo”.

Vejam que o texto de Aristóteles é contraditório. Ele começa dizendo que


há possibilidade de que haja que as substâncias sejam sempre com respeito,
sejam com respeito a algo, e acaba por negá-lo no fim deste parágrafo. Bom,
além de que estamos no campo do dialético, do tópico, há uma dificuldade
mesma, de fato, real no texto de Aristóteles. Voltaremos a vê-las, as dificuldades,
para que vocês vejam também o gênio de Santo Tomás. Santo Tomás encarou
algumas das obras de Aristóteles e as comentou e todas elas são repletas de
obscuridades. Assim que terminarmos as categorias passaremos ao Peri
Hermeneias ou Sobre a Interpretação e este, em particular, é de uma... é lacunar
ao extremo, é elíptico. Só o... e o próprio São Tomás diz que o texto de
Aristóteles é obscuríssimo e, no entanto, seu gênio lhe permitiu extrair o sentido
da obra até a parte em que comentou, como veremos. O restante foi comentado
pelo cardeal Caetano.

Pois bem, “assim, pois – continua Aristóteles – se a definição do ad aliquid


está adequadamente dada, é uma das coisas mais difíceis ou impossível
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resolver se alguma substância se conta entre os ad aliquid, o ad aliquid”. Repita-


se. Depois da confusão do parágrafo anterior, prossegue Aristóteles: “assim,
pois se a definição do ad aliquid está adequadamente dada, é uma das coisas
mais difíceis ou impossível resolver se alguma substância se conta entre o ad
aliquid. No entanto – vejam – se a definição não está adequadamente dada” –
agora ele põe em dúvida a própria definição que ele mesmo deu, por isso eu
digo que estamos no terreno do dialético – então “em contrapartida, se a
definição não está adequadamente dada, se não que estas coisas” – ou seja,
acho que são ad aliquid – “são com respeito a algo aquelas coisas cujo ser é
idêntico a estar de algum modo em relação com algo” – repita-se a nova e
provisória definição – “são com respeito a algo aquelas coisas cujo ser é idêntico
a estar de algum modo em relação com algo”. Talvez se pudesse dizer algo a
respeito de si, as substâncias são ou não, podem ser ou não podem ser com
respeito, com relação a algo – ad aliquid.

Bom, prossegue Aristóteles: “a primeira definição – aquela que demos no


início da aula – convém a todas as coisas que são com respeito a algo, mas que
aquilo que elas são exatamente se diga em relação a outras coisas, não equivale
a que sua existência seja com respeito a algo”. Vejam, vejam a complicação. “A
primeira definição convém a todas as coisas que são com respeito a algo, mas
que aquilo que elas são exatamente se diga em relação a outras coisas, não
equivale a que sua existência seja com respeito a algo”.

Parece que aqui ele anuncia a distinção entre relativo segundo o dizer e
relativo segundo o ser.

Pois bem, “a partir daqui é evidente que, se alguém conhece com precisão
algumas das coisas que são com relação a algo, também conhecerá com
precisão aquilo com respeito ao qual se diz. Assim, pois, é também manifesto
por si mesmo se alguém sabe que um ‘isto’ que é com respeito a algo e o ser do
ad aliquid é idêntico a estar de algum modo em relação com algo, também sabe
aquilo com que isto está de algum modo em relação, pois, se não soubesse
absolutamente aquilo com que isto se relaciona de algum modo, também não
saberia se está de algum modo em relação com algo” – que é óbvio. “Isto
também é evidente nos casos singulares. Por exemplo: se alguém sabe com
precisão de um ‘isto’ que ele é o dobro, também sabe imediatamente, com
precisão, de que coisa é o dobro. Com efeito, se não soubesse se é dobro de
nenhuma das coisas definidas, tampouco saberia se é nem sequer dobro. Do
mesmo modo também, se soubesse de um ‘isto’ – deve ser em grego tóden – se
soubesse de um ‘isto’ que é mais belo, também saberia necessariamente com
precisão, através disto, com respeito a quê, com relação a quê é mais belo” –
porque só pode ser mais belo de algo menos belo, que algo menos belo. “Em
contrapartida, de maneira indefinida não saberá se isto é mais belo que aquilo
que o é menos. Com efeito, isto se converte em uma suposição, não em
conhecimento, pois não se saberá com exatidão se isto é mais belo e aquilo
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menos dado que não poderia dar-se o caso que não houvesse nada menos belo
que isto”.

Complicado, não? Vejam a obscuridade do texto de Aristóteles. Repita-se:


“Em contrapartida, de maneira indefinida não saberá se isto é mais belo que
aquilo que é menos belo. Com efeito, isto se converte em uma suposição, não
em um conhecimento” (é uma suposição que, se algo é mais belo, é mais belo
que algo menos belo), “pois não se saberá com exatidão se isto é mais belo e
aquilo menos dado que poderia dar-se no caso de que não houvesse nada
menos belo que isto. Ainda aqui, evidentemente, é necessário que, do ad aliquid
que alguém sabe com precisão, saiba também com precisão aquilo com respeito
ao qual se diz. Em contrapartida” – vejam a complicação do texto aristotélico. É
bom que vocês saibam, me acompanhem porque alguns alunos me perguntam:
mas, professor, já não posso ler as Categorias? Vejam a dificuldade! A
dificuldade não é pequena!

Pois bem, continuemos com o nosso Aristóteles. “Em contrapartida, da


cabeça, da mão e de cada uma das coisas deste estilo, ou seja, das partes, que
são substâncias” – vejam, a mão, vejam que assunto complexo: a mão, a
cabeça, as partes do animal são substâncias. Em que sentido? Porque têm
acidentes. Já vimos que substância é suporte de acidentes. Então o nariz pode
ser aquilino, a mão pode ser grande ou pequena, e isto é ter acidentes, razão
porque se diz que o nariz, a mão, a cabeça são substâncias. No entanto, são
substâncias não em sentido pleno. Por quê? Porque, se são suportes de
acidentes, não podem existir por si. A parte não existe sem o todo. Ora, o próprio
da substância é subsistir por si. Então, aqui, quando Aristóteles refere que a mão,
a cabeça, o nariz são substâncias diz, o diz no sentido de que são suportes de
acidentes, não de que possam subsistir por si, porque como o mesmo Aristóteles
põe em várias outras partes de sua obra, uma mão cortada do corpo só
impropriamente pode dizer-se mão. A mão, ela é parte de uma substância que é
o corpo. Se se corta do corpo, esta parte deixa de ser propriamente mão.

Pois bem, voltemos ao nosso texto. “Em contrapartida a cabeça, a mão e


cada uma das coisas do gênero que são substâncias é possível saber com
precisão aquilo que elas são, sem que seja necessário saber aquilo com respeito
ao qual se dizem, pois não é necessário saber com precisão de quem é esta
cabeça ou de quem é esta mão. Assim, estas coisas não seriam com relação a
algo – ad aliquid – e, se não são ad aliquid – com respeito a algo – seria verdade
dizer que nenhuma substância é com respeito a algo”.

Veja que ele está dando voltas e voltas dialeticamente em torno da questão
de se a substância pode ser com respeito a algo, pode ser ad aliquid.

“Sem dúvida, é difícil fazer asseverações, afirmações firmes acerca de tais


questões sem tê-las examinado muitas vezes. No entanto, não é inútil o ter
penetrado esta dificuldade de cada uma delas”. Termina dialeticamente,
Escola Tomista – Apenas para uso dos alunos Página | 12

topicamente e não apodicticamente, não como conclusão de uma demonstração


científica.

Vejam, se, com efeito, em si mesmo, aparentemente a categoria ou


predicamento da relação ou do ad aliquid é mais simples que o da qualidade –
vocês viram a complexidade da categoria qualidade – ele não deixa de ter sua
complexidade, particularmente quanto a isto último a que se refere Aristóteles e
em torno do qual ele gira, gira até dialeticamente, teoricamente, não como um
tonto, ele gira, gira até concluir não apodicticamente.

Então recapitulemos o dito por Aristóteles nesta parte do seu magnífico


opúsculo.

Pois bem, primeira definição que ele dá: dizem-se com respeito a algo,
dizem-se ad aliquid, todas as coisas que aquilo que elas mesmas são se diz que
são de outras coisas, ou com respeito a outra coisa. Os exemplos clássicos são
o maior e o dobro, porque só se é maior se se é maior de algo, que algo, e só se
é o dobro se se é o dobro de algo.

Outros exemplos dados por Aristóteles são a disposição, a sensação e o


conhecimento. Com efeito o conhecimento não é conhecimento se não é
conhecimento de algo e a sensação não é sensação se não for sensação de
algo, assim como a disposição não é disposição se não for disposição a algo,
para algo.

Outro exemplo é a semelhança. A semelhança só se pode dizer de algo


semelhante, assim como dessemelhante só se pode dizer de algo
dessemelhante. A semelhança é de alguma semelhança; a dessemelhança ou
desigualdade o é de alguma dessemelhança ou de alguma desigualdade.

Pois bem, se se trata agora das propriedades da categoria relação, tem-se


como primeira delas a contrariedade. Com efeito, o relativo conhecimento admite
seu contrário: a ignorância. Conhecimento é relativo porque é sempre
conhecimento de algo e ignorância é relativa porque é sempre ignorância de algo
e, no entanto, conhecimento e ignorância são contrários, assim como o branco
é contrário do negro ou o bom é contrário do mau. Mas nem sempre, nem todos
os relativos admitem contrariedade. Nada é contrário ao triplo ou ao quádruplo.
É impossível! Qual é o contrário de quádruplo? É impossível, não existe.

Outra das propriedades do ad aliquid é que admite mais e menos. Com


efeito, algo é semelhante ao semelhante mais ou menos. Algo é mais ou menos
semelhante a algo. Algo é mais ou menos dessemelhante a algo. Algo é mais ou
menos desigual a algo. Algo é mais ou menos parecido a algo. Mas nem sempre.
Nada pode ser mais ou menos dobro de nada; nada pode ser mais ou menos
triplo de coisa alguma.
Escola Tomista – Apenas para uso dos alunos Página | 13

Mas parece que há uma propriedade do ad aliquid que diz respeito a todos,
que é sempre presente em todos os que são com respeito a algo, todos os que
são ad aliquid. É a reciprocidade. Com efeito, o escravo não pode ser senão
escravo do senhor, e o senhor não pode senão ser senhor de um escravo. O
filho não pode ser filho senão do pai; o pai não pode ser pai senão do filho; o
dobro não pode ser dobro senão da metade; a metade não pode ser metade
senão do dobro; o menor não pode ser menor senão de um maior; e o maior não
pode ser maior senão de um menor. Vejam a reciprocidade: escravo-senhor,
senhor-escravo; tio-sobrinho, sobrinho-tio; dobro-metade, metade-dobro; maior-
menor, menor-maior.

Mas atenção: acima parecia que conhecimento de algo não, em


conhecimento de algo não se dá reciprocidade, porque se o conhecimento é
sempre de algo, algo não é sempre do conhecimento. Pois bem, então trata-se
de pôr o termo preciso. O conhecimento tem por recíproco o cognoscível
enquanto o cognoscível tem por recíproco o conhecimento; a sensação tem por
recíproco o sensível, enquanto o sensível tem por recíproco a sensação.

Às vezes – é fato – não parece. Com efeito, ave parece ser recíproco de
asas, mas asa não parece ser recíproco de ave, porque, com efeito, há asa de
outras coisas. Nem tudo o que é asa é asa de ave. Mas se se substitui ave por
alado, trata-se ainda de encontrar o termo preciso, se se substitui ave por alado
agora sim teremos reciprocidade. A asa tem por recíproco alado e alado tem por
recíproco a asa. Asa como asas do alado e alado em virtude da asa, porque se
não é alado se não se tem asa. Ala – em português é que se diz asa – até hoje
em espanhol é ala, daí alado; isso vem do latim.

Pois bem, há casos mais complexos porque são os casos em que não se
tem nome para patentear a reciprocidade. Então, pelo menos no grego de
Aristóteles não havia uma palavra como timonear. Pois bem, não há
reciprocidade entre timão e navio propriamente dita, porque há navios sem
timão. O timão sempre será de um navio, mas há navios sem timão, então não
há reciprocidade. Assim como a ave tem sempre asa, mas nem toda asa é da
ave. Pois bem, mas se se substitui um navio por timoneado, então se tem a
reciprocidade. O timão é recíproco de timoneado e o timoneado é recíproco de
timão. O timão o é do timoneado e o timoneado é timoneado graças ao timão.

Pois bem, assim também como se dá entre cabeça e animal. Não pode
haver reciprocidade entre cabeça e animal porque há animais sem cabeça. Mas
se se substitui animal por acabeçado, então sim, tem-se a reciprocidade: a
cabeça o é do acabeçado e o acabeçado o é graças à cabeça.

Insiste Aristóteles na propriedade com que se usam os termos. O escravo


não tem por recíproco um homem, porque nem todo homem tem por recíproco
um escravo. O escravo é sempre escravo de um homem, mas o homem não tem
por recíproco o escravo.
Escola Tomista – Apenas para uso dos alunos Página | 14

Pois bem, para tudo isso há que eliminar todo o acidental com respeito aos
termos de que se trata. Tanto quanto a escravo quanto como a senhor há que
eliminar que eles sejam bípedes, implumes, homens, capazes de conhecer. É
escravo do senhor e o senhor do escravo. Não escravo do homem, não o
escravo do bípede, não o escravo do implume, não o escravo do capaz de
sabedoria e vice-versa.

Pois bem, como diz Aristóteles, se há um nome disponível, use-se; se não


há, talvez seja bom inventá-lo.

Pois bem, mas se há sempre reciprocidade entre dois relativos, parece que
também eles dois, os dois relativos, se dão simultaneamente ao mesmo tempo.
Com efeito, hão de dar-se ao mesmo tempo o dobro e a metade, a metade e o
dobro, o escravo e o senhor, o senhor e o escravo, porque se se elimina o dobro,
se elimina a metade, se se elimina a metade, se suprime o dobro, se se elimina
o senhor, elimina-se o escravo, e se se suprime o escravo, elimina-se o senhor.
Mas parece que não sempre. Com efeito, cognoscível é não necessariamente é
contemporâneo ou simultâneo de conhecimento, assim como sensível não
necessariamente é contemporâneo ou simultâneo da sensação. Se se suprime
o cognoscível, suprimir-se-á o conhecimento; se se suprime o sensível, suprimir-
se-á a sensação, mas não o inverso: se se suprime o sensível não
necessariamente se suprime o sensível, se suprime a sensação não
necessariamente se suprime o sensível; se se suprime o conhecimento não
necessariamente se suprime o cognoscível. E assim é porque nesta terra, antes
de nesta terra pôr o pé o animal, já havia sensíveis, coisas capazes de ser
conhecidas pela sensação, e antes de haver homem na terra já havia coisas
cognoscíveis, ou seja, coisas que seriam capazes de ser conhecidas pelo
conhecimento do homem. Então a simultaneidade parece que não é necessária
para que se dê a reciprocidade.

Pois bem, vamos, então, ao final, à grande dificuldade. Vou pô-la, vou pô-
la mais sumariamente. Homem individual ou substância primeira não se diz de
algo; o boi tampouco se diz de algo. Tampouco as partes individuais. A mão
individual não é de alguém, mas sim se diz a mão de alguém; a cabeça individual
não se diz cabeça individual de alguém, mas sim se diz cabeça de alguém. Veja
que não há reciprocidade. Igualmente isso se dá com as substâncias segundas.
Não se diz homem de alguém, mas propriedade de alguém – é o caso do
escravo. Não se diz, pelo menos por Aristóteles, boi de alguém, mas propriedade
de alguém. É complexa essa passagem. Confesso-lhes que não sei dizer se
poderia dizer em grego “boi de alguém”. Creio que sim, mas... Bom, mas mão de
alguém sim, parece que isso é ad aliquid. Aqui lembrem-se que, sempre que
digamos “parece”, “talvez”, “provavelmente”, “quem sabe” estamos no campo do
dialético, ainda procurando a opinião mais provável.
Escola Tomista – Apenas para uso dos alunos Página | 15

Pois bem, voltemos à questão da definição do ad aliquid. Parece que


aquela definição não cabe com relação à mão e cabeça de alguém. Aquela
primeira definição convém a todas as coisas que são com respeito a algo, mas
que aquilo que elas são elas mesmas se diga com respeito a outra coisa, não
equivale a dizer que sua existência ou ser seja com respeito a algo, ou seja, elas
se dizem de outras coisas, aquilo mesmo que elas são se diz de outra coisa, mas
isso não quer dizer que sua existência depende de que seja com respeito a algo.

Volta a repetir Aristóteles que se se sabe que isto é com respeito a algo,
sabe-se também o que é este algo com respeito àquilo que se diz. Dobro daquilo
de que é dobro; mais belo com respeito a isso que é menos belo. Só se sabe se
for assim. Mas a cabeça, a mão, essas partes que são substâncias no sentido
de ser suportes de acidentes, conquanto não de subsistirem por si, é possível
saber o que são sem que seja necessário saber aquilo com respeito ao qual são.
Será que é isto mesmo? Vejam que o mesmo Aristóteles já falou de cabeça e
acabeçado. Tenhamos isso em mente. Então parece que nenhuma substância
é com respeito a algo.

Vejam, terminou-se complexamente isto. Espero ter-lhes dado um quadro


razoável do estado da questão tal como a deixou Aristóteles em suas Categorias.
Na próxima aula voltaremos a isso e veremos se seremos capazes, se serei
capaz de resolver todos esses problemas. Diga-se, porém, que não é um
assunto simples, conquanto como um todo a categoria ad aliquid ou relação seja
mais simples que a categoria qualidade, ela termina nesta complicação. Até aqui
ia bem, quando chegou aqui deparamos com algo que parece intransponível ou
insolucionável. É o que veremos se o é ou se não o é ou, ao menos, se o sou
capaz, ou se não sou capaz de resolvê-la.

Muito obrigado. Até nossa próxima aula.

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