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Lucília Galha

MÃE, PORQUE NÃO


GOSTAS DE MIM?
HISTÓRIAS DE FILHOS QUE NUNCA
SE SENTIRAM AMADOS

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1 B. – 4 de Setembro de 1995 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

2 V. – 8 Dezembro de 1984 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

3 V. F. – 12 Outubro de 1961 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

4 F. – 5 de Abril de 1962 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

5 L. – 4 de Junho de 1979 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

6 M. – 31 de Agosto de 1984 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

7 T. – 2 de Abril de 1958 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

8 K. – 11 de Setembro de 1976 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

AGRADECIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159

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À minha mãe, que soube amar-me
À minha filha, que eu espero sempre saber amar

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«The parent of a child has the power not only to create
the world the child lives in, but the ability to dictate how
that world is to be interpreted.»
Deborah Tannen, You’re Wearing That?
Understanding Mothers and Daughters in Conversation (2006)

«There was a breakthrough moment when her therapist


said simply and plainly that she was an “abused” child.
She protested, pointing out that she had never been hit or
hurt, and her therapist explained that the kind of abuse
she experienced was actually harder to deal with because
there were no bruises as evidence.»
Peg Streep, Mean Mothers – Overcoming the Legacy
of Hurt (2009)

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INTRODUÇÃO

F oi no dia em que a minha filha, Eva, fez dez meses que o Francisco
Camacho me desafiou a escrever sobre este tema. Caiu-me ao
colo e, diria, assentou bem em mim. Talvez porque, ainda arreba-
tada pela aura da maternidade (o que não me passou, felizmente),
a ideia me tenha inquietado: «É possível uma mãe não amar o seu
filho?» «Mãe que é mãe não faz isto a um filho.»
À data parecia-me óbvio. Também eu partilhava a visão român-
tica que cola a mulher ao papel de mãe e que a retrata com um
instinto de protecção animalesco, esta ideia da mãe-leoa que vai até
ao fim do mundo pelos seus filhos. A minha própria experiência de
maternidade foi assim: apaixonei-me no exacto momento em que
apoiaram a minha filha no meu peito, ainda roxa, inchada e com a
ventosa colada à cabeça. Vi esse laço crescer e assoberbar-me, e
todos os dias sinto que é indiscutivelmente o papel mais importante
da minha vida.
Oito histórias e mais de 40 horas de entrevistas depois, a minha
perspectiva da maternidade não mudou, a ideia de base deste livro
continua a inquietar-me (como não?), mas a forma como interpreto
o alegado amor incondicional de mãe é agora diferente. Em primeiro
lugar, percebi que não basta ser mulher para ser mãe, a maternidade
é uma coisa que se vai construindo e aprendendo, e nem todas as
mulheres querem ser mães. Os últimos estudos indicam que, embora

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97% das mulheres que são mães se sintam satisfeitas nesse papel e
admitam que as vantagens superam os custos, há um grupo de 3%
que assumem não sentir prazer na maternidade, nem no que a expe-
riência acarreta.
Segundo: o amor de mãe pode não existir e isso tem a ver com
a vinculação. Afinal, aquele sentimento que parece instantâneo,
como uma fotografia, e esmagador, na melhor acepção da palavra,
não é inato. A vinculação é o laço primário que se estabelece entre
uma mãe e o seu bebé à nascença, e é um laço que precisa de ser
alimentado e que vive da relação próxima que se estabelece entre
os dois. Uma vinculação segura pressupõe que a mãe está presente
e disponível, e tem capacidade de atender às necessidades do bebé.
O tipo de relação que se estabelece nesse momento é determinante.
A psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva explica: «Uma mulher
que tem um filho não é, só por isso, uma mãe. Passa a ser mãe no
sentido biológico, mas sem a construção de vinculação com o bebé,
sem a criação de laços e de afecto, não se tornará numa mãe de
coração.» É isso que explica que uma barriga de aluguer não tenha
a condição de mãe, só por gerar um bebé, ou que um casal que
adopta uma criança constitua a sua verdadeira família, os seus pais
de coração.
A opressão, a violência e até a negligência das mães retratadas
neste livro têm, amiúde, uma explicação. Podem, numa primeira
leitura, até parecer «monstros», mas são sobretudo pessoas feridas,
sofridas, com falta de suporte, que estenderam o seu sofrimento a
estas crianças, os seus filhos. Algumas destas mães também tiveram
vidas muito complicadas e o padrão perpetua-se. E muitas vezes
perpetua-se de geração em geração, até já existir no presente (nos
filhos, os interlocutores destas histórias) através de relações conju-
gais com um(a) companheiro(a) que também maltrata de alguma
forma.
As consequências são inevitáveis: nós transformamo-nos naquilo
que somos pelo que vemos os outros fazerem e pela forma como

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eles se relacionam entre si e connosco. Somos seres sociais e temos
uma estrutura no nosso cérebro, chamada neurónios-espelho, que
está na base da empatia. Este grupo de neurónios, que estão disper-
sos por várias áreas do cérebro, activam-se quando observamos os
outros, e acredita-se que sejam responsáveis pela nossa capacidade
de os percebermos e também pela aprendizagem de um conjunto
de acções. Também para assegurar a produção de serotonina
(a hormona responsável pelo humor e pelo bem-estar), de dopamina
(felicidade) e de oxitocina (amor), é preciso estar em relações segu-
ras e de qualidade.
Além disso, é sabido que um bebé tanto precisa de leite como de
colo, de afecto e proximidade física para se desenvolver de forma
plena. A primeira infância é uma etapa crucial para o desenvolvi-
mento do cérebro. Aos três anos, o cérebro de uma criança já atin-
giu quase 90% do seu tamanho na idade adulta. Estima-se que
durante este período se estabeleçam por segundo 700 a 1000 novas
conexões de neurónios no cérebro. A experiência do bebé com os
seus cuidadores é determinante para que estas conexões aconteçam.
A relação dos oito filhos – sete mulheres e um homem, com ida-
des compreendidas entre os 20 e os 60 anos – e que contam aqui
na primeira pessoa a sua história com as suas mães, trouxe-lhes
alguma fragilidade, insegurança, instabilidade e mágoa na idade
adulta. Sobretudo nos casos em que, à volta, não existiam outras
relações seguras. Apesar da mãe ou do pai, uma criança quando
nasce precisa de figuras de referência e de vinculação seguras.
Quando essa(s) figura(s) existe(m), seja uma ama, uma avó ou outra
pessoa qualquer que cuide, dê afecto e que atenda às necessidades,
há de certa forma uma supressão do impacto negativo de não exis-
tir a figura «mãe».
«[Estas oito pessoas] não tiveram a segurança, o afecto e a injec-
ção de auto-estima necessários na primeira e segunda infância, daí
que sejam pessoas com alguns traços de dependência. A carência
torna-as mais vulneráveis, por exemplo, a relações amorosas

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de abuso, ou a viverem em função dos outros, dos colegas, da socie-
dade, do que é certo e do que é suposto», avalia Filipa Jardim da
Silva. Têm por vezes problemas de ansiedade e de humor deprimido
(a primeira fase da depressão), crenças distorcidas acerca do seu
valor, que se reflectem na relação com os outros, e a perspectiva de
que, por não terem tido uma mãe carinhosa, presente e cuidadora,
podem gerir a mágoa, mas não têm forma de colmatar o vazio que
ficou. É um buraco sem fim.
No entanto, (boas notícias) é possível superar as consequências
deste património negativo. Implica apoio profissional e um processo
longo de trabalho, mas é possível. Esse trabalho passa, em primeiro
lugar, por a pessoa ser capaz de legitimar o que lhe aconteceu e o
que sentiu (o abandono pela figura materna), independentemente
do que é a norma social – o facto de o amor de mãe ser um conceito
sagrado culturalmente. «Posso guardar a minha história de vida
como uma âncora que me aprisiona, me limita e me faz repetir
padrões, ou posso guardar a minha história de vida como um motor
de mudança e de transformação», diz a psicóloga clínica.
Posto isto, o rótulo de «boas» ou de «más» mães parece não
fazer muito sentido. Talvez seja mais adequado olhar para estas
mães como pessoas que não souberam amar os filhos. Podem não
ter tido saúde psicológica para o fazer, ou suporte social ou até as
capacidades emocionais e cognitivas necessárias. Podem, apesar de
o não querer, da aparente intenção ou maldade, não terem sequer
sabido como o fazer.
Uma das sete mulheres que aqui dá o seu testemunho diz que
«é impossível sentirmos falta daquilo que não tivemos». Não ima-
gino quão difícil será aprender a ser mãe sem ter tido um modelo
de referência. Obrigada, mãe.

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B.
4 DE SETEMBRO DE 1995

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D esde muito cedo que tenho infecções urinárias sucessivas.
Houve uma vez, entre os 14 e os 15 anos, que fiz uma pielo-
nefrite (a forma mais grave de infecção urinária em que pelo menos
um dos rins é afectado). Mas, até chegar ao hospital, andei uma
semana a queixar-me à minha mãe – de tal forma que já urinava
sangue. Ela achou que era preguiça. Na verdade, eu era pequenina,
era normal que tivesse preguiça, que quisesse brincar. Não tinha
uma vida dita «normal». Mas nem sequer era esse o caso. Tive de
ser eu a chamar a ambulância. Quando cheguei ao hospital, o
médico disse-me que a infecção estava de tal forma avançada que
corria o risco de ter uma septicemia. Tive de ser internada e de ficar
15 dias a receber medicação.
No início da gravidez (é mãe de um rapaz que nasceu em
Novembro de 2016), tive um descolamento de sete milímetros e
recomendaram-me repouso. Mesmo assim, a minha mãe entendia
que, além das tarefas habituais e de cuidar dos meus tios, também
tinha de lavar a roupa e de passar a ferro todos os dias. Nem quando
lhe disse que me sentia cansada, ela facilitou: «Ou passas tudo de
uma vez no fim-de-semana, ou passas todos os dias.» Somos seis em
casa e havia montes de roupa, quase da altura de um móvel de sala.
A minha mãe sempre foi muito difícil de perceber. Sei que ela
gosta muito de mim, mas tem uma maneira estranha de gostar.

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Durante muito tempo, achei que era impossível que ela me amasse.
Cheguei a dizer-lho algumas vezes: nenhuma mãe proíbe os filhos
de brincar, de sair, de viver. Ela ficava enfurecida, ralhava comigo,
gritava e às vezes dizia: «Não, não gosto nada de ti.» E depois, ia
chorar para o quarto. Eu ficava ainda mais confusa. Sentia que ela
punha os meus tios em primeiro lugar, quando no fundo eu, que
era a sua filha, também não estava bem. Depois destas conversas,
havia sempre um mimo. Lembro-me de uma vez estar tão magoada
com ela que lhe disse que a odiava. Eu disse isto à minha mãe. Ela
chorou, fechou-se no quarto o dia inteiro e, à noite, foi comprar-me
um fato de treino que eu andava a namorar há algum tempo. Entre-
gou-mo, ainda a chorar, e disse-me: «É para continuares a dizer que
me odeias.» Esta vai ficar-me para o resto da vida.

A «chalada» da família que vira Gata Borralheira

Lá em casa, somos sete: eu e o meu filho, a minha mãe, o meu


pai, dois tios – irmãos da minha mãe – e o meu irmão. A minha
irmã já não vive connosco. É uma casa grande. Começou por ser
um T0, mas a minha mãe conseguiu juntar algum dinheiro e fize-
ram-se obras. Neste momento, temos cinco quartos e um sótão.
Eu sempre fui a mais diferente da família. Nasci extrovertida, com
veia de artista, a minha mãe diz que eu sou «chalada». Desde
pequena que adoro desenhar. É engraçado que, quando mostrava
os desenhos à minha mãe, ela não acreditava que era eu que os
fazia, dizia que passava por cima dos cadernos. Aos dez anos, pedi-
-lhe para ir para a dança e pratiquei três modalidades: salão, jazz
moderno e dança oriental. Quando tinha espectáculos, vivia aquilo
tão intensamente que regressava a casa de transportes públicos
com os fatos ainda vestidos.
Fiquei pelo 11.º ano, do curso de Artes Visuais, mas imaginava-
-me como designer de interiores. A casa está decorada a meu gosto,

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e até a pintura das paredes sou eu que a faço. Uma das paredes do
quarto do meu irmão tem pintado o emblema do Sporting, porque
ele é um «lagarto» ferrenho.
O meu irmão é um doce de menino, é trabalhador e ajuda muito
a minha mãe. Em casa, eles são os únicos que trabalham. Temos
uma relação especial porque somos parecidos. A minha irmã, a mais
velha dos três (tem mais dez anos do que eu, e o meu irmão, mais
oito), é a quem peço uma opinião mais madura quando estou com
algum problema. Mas, as conversas que as meninas normalmente
têm com a mãe, ou com as amigas, eu tenho-as com o meu irmão.
Os meus tios sofrem ambos de esquizofrenia, mas são o oposto
um do outro: um não fala nada, o outro fala de mais; um não ajuda
em nada, ao outro tenho de dizer-lhe para parar. O tio P. esteve
preso quando eu tinha 14 ou 15 anos. Tive de faltar algumas vezes
à escola para ir visitá-lo. A minha mãe trabalhava, o meu irmão
trabalhava à noite e descansava durante o dia, e tinha de ser eu a
dar apoio ao meu tio. Foi difícil de gerir porque eu também não
estava bem – se eu não tivesse tido de tomar conta deste meu tio,
talvez tivesse recuperado mais depressa e até retomado a escola.
Sinto que a minha mãe não me protegeu para que eu pudesse evo-
luir. O tio P. vive connosco desde 2013 e passámos por uma fase
difícil em que ele deprimiu e tentou matar-se duas vezes no sótão
da casa. O tio J. só está connosco desde 2015. Foi diagnosticado
mais cedo e esteve internado doze anos numa instituição da Santa
Casa da Misericórdia. A certa altura começou a ser vítima de maus-
-tratos e a minha mãe trouxe-o para casa e pôs um processo contra
a instituição. Mais uma adaptação difícil, as paranóias, as mil e
uma repetições. O tio J. é o mais cansativo.
Não tenho muitas memórias de criança. A minha mãe não esteve
muito presente na minha infância. Sempre foi muito trabalhadora
e houve uma altura em que acumulou três empregos. Às vezes, os
filhos precisam de mais atenção e os pais têm de parar para perce-
ber isso, não é? Todos os anos, no Natal, havia um espectáculo

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no colégio e eu estava sempre a olhar para a primeira fila a ver se
a minha mãe lá estava, mas nunca a via. Não consigo lembrar-me
disto sem me virem as lágrimas aos olhos. Era triste, eu ficava
triste… As dificuldades na altura eram muitas, os meus irmãos
viviam com a minha avó, só eu é que estava com a mãe. Aquela
casa, a primeira onde vivemos, até tinha baratas, mas era o melhor
que se conseguia arranjar.
Comecei muito cedo a tomar banho sozinha, sempre fui muito
espevitada, mas a minha mãe gostava de escolher-me a roupa. Não
via bem, ainda não tinha sido operada aos olhos e usava aqueles
óculos estilo garrafão. Às vezes, mandava-nos para a escola de
pijama, porque o confundia com um fato de treino.
A mãe dizia que eu chorava por tudo e por nada. No fundo, acho
que era uma criança carente, quer de mãe, quer de pai. O meu pai
saía de casa muitas vezes porque traía a minha mãe e ela punha-o
na rua. Mas deixava sempre que ele voltasse. Até hoje. Sempre tive
uma ligação forte com a minha mãe, embora ela nunca demons-
trasse o carinho de que precisei tantas vezes – de que ainda preciso.
Não sabe dar mais, mas fez o que pôde. A minha avó nunca deixou
faltar nada aos meus irmãos. Deixava-os ir para a rua brincarem
com os amigos. Eu não tinha a minha mãe, não tinha o meu pai,
nem saía. Estava fechada em casa. Mas, quando quis um computa-
dor, ela deu-mo. E fez por mim outra coisa, que descobri mais tarde:
quando o meu pai saía de casa, a minha mãe justificava que ele ia
trabalhar temporariamente para fora. Todas as semanas me com-
prava um peluche, como se tivesse sido ele a fazê-lo. Eu tinha no
meu quarto uma colecção de mais de cem, que a minha mãe com-
prava de cada vez que ele se ia embora. No fundo, ela teve o seu
jeito de cuidar de mim – fui a única que, bem ou mal, sempre tive
a minha mãe.
Houve coisas que tive de aprender muito cedo. Nunca mexi no
fogão antes dos dez ou onze anos, mas aos seis aprendi logo as
coisas básicas: pôr e levantar a mesa, varrer o chão e limpar o pó.

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Depois, já lavava roupa e, mais tarde, comecei a passar a ferro e a
limpar o fogão. Não me chateia, acho que se tornou um hábito.
Mas quando era mais miúda, fazia diferença, porque queria sair
com os meus amigos, brincar, experimentar coisas novas. Lembro-
-me de que ao fim-de-semana era impensável fazer trabalhos da
escola, porque tinha a casa para limpar. Também nunca conseguia
fazer trabalhos de grupo, a não ser nos intervalos da escola. Sábado
era dia da limpeza grande: tirar tudo dos móveis, limpar o pó, var-
rer e lavar o chão. De duas em duas semanas, era preciso desmon-
tar o fogão e o exaustor, para limpar a gordura. Aos onze anos,
fazia tudo sozinha enquanto a minha mãe estava a trabalhar – a
minha irmã já tinha saído de casa e a minha mãe acredita no argu-
mento machista de que a mulher é que tem de trabalhar. Ao domingo,
não tinha paciência para fazer nada, nem sequer para estudar. Que-
ria era estar sossegada. Não tinha sorte, com a minha mãe em casa
ninguém pára. Ela arranjava sempre alguma coisa para se fazer, ou
estender roupa ou fazer as camas de lavado.

Dos 60 aos 103 kg. Salva por um programa de televisão

Tive momentos de normalidade, sobretudo com os meus irmãos.


Não tínhamos muitos brinquedos, mas improvisávamos com o que
havia à mão. Jogávamos ao berlinde, que o meu irmão chamava
«belas», e fazíamos pistas com as molas da roupa porque não tínha-
mos muitos carrinhos senão um ou outro a cair de maduro. Um
dos nossos melhores brinquedos foi uma Nintendo – a pessoa para
quem a minha mãe trabalhava ia deitá-la fora e substituí-la por
uma consola melhor. Adorávamos jogar o Super Mário. Não largá-
vamos aquilo.
Eu era boa aluna, daquelas que tinha capacidade para reter a
informação durante as aulas e que não precisava de estudar muito
em casa para tirar boas notas. Mas, a partir do 7.º ano, as coisas

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mudaram. Entraram novos alunos na escola que começaram a arran-
jar conflitos. Infelizmente, fui uma das vítimas escolhidas. Agredi-
ram-me, insultaram-me, rodearam-me e apertaram-me o pescoço
com o fecho de um casaco que eu usava. Os episódios tornaram-se
consecutivos e, à medida que o tempo avançava, as coisas pioravam.
A certa altura começaram a ameaçar a minha família e, por medo,
eu nunca disse nada. Ninguém sabia, nem dois dos meus amigos
que vim a descobrir mais tarde terem sofrido o mesmo que eu.
No 8.º ano, as notas começaram a baixar, mas aguentei. Tive
uma fase em que provocava o vómito, porque era a única forma
que tinha de aliviar o sofrimento.
Só no 9.º ano é que este tormento acabaria. Houve um dia em
que me apercebi de que queriam agredir-me com uma navalha
depois das aulas. Não aguentei, fechei-me na casa de banho e,
desesperada, liguei à minha mãe. Não sei o que teria acontecido
se os meus pais não tivessem ido buscar-me. Nesse dia, foram os
vizinhos que chamaram a Polícia, porque até os contínuos da
escola tiveram medo. Era um grupo grande e armado com nava-
lhas. O episódio chegou a julgamento, porque os miúdos assalta-
ram a papelaria ao lado da escola e agrediram duas pessoas na
paragem de autocarro.
Faltava um mês para terminar o segundo período quando fui
transferida para outra escola, pois recusei-me a voltar para aquele
sítio. Consegui passar o ano, mas já não estava bem. Tinha insónias
e andava sempre ansiosa. Respirava fundo, fundo, muito fundo.
Andava sempre assustada e, apesar de ter sido bem recebida, fugia,
isolava-me e não queria fazer amigos. Foi nesta fase que comecei a
sofrer os efeitos do bullying de que tinha sido vítima.
Na mesma altura, o meu tio P. foi preso e comecei a ir visitá-lo
à prisão. Faltar à escola naquele momento até era um alívio, porque
me afastava do ambiente que me intimidava. Houve um dia em que
me senti mal, nem consegui entrar na prisão. Tive um ataque de
pânico em que não conseguia mexer-me. Chamaram uma

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ambulância para me assistir e, já no hospital, fui encaminhada para
a Psiquiatria. Estava no início de uma depressão.
Inicialmente, fui seguida por um psicólogo e as coisas até estavam
a correr bem, mas o ambiente em casa não facilitava e comecei a
cortar-me com uma Gillette. Precisava de aliviar a dor que sentia
interiormente, porque acabava sempre por sofrer calada. Usava
camisolas de manga comprida e pulseiras para disfarçar os cortes
e durante algum tempo ninguém se apercebeu. Mas houve um dia
em que a minha mãe reparou nos meus pulsos e ficou zangada.
Agarrou em mim e levou-me novamente ao hospital.
Isto aconteceu a meio do 11.º ano e foi quando me afastei de vez
dos estudos. Fiquei internada uma semana no hospital até estabili-
zar e mandaram-me para casa sob vigilância. Passei a ser seguida
no Hospital de Dia. Todos os dias tinha actividades, almoçava, fazia
mais actividades e regressava a casa. Fazia a chamada terapia ocu-
pacional. Durante quatro anos, não senti melhoras nenhumas. Pre-
cisava de falar, não de andar a pintar caixas. A dada altura
tornou-se numa tortura.
A depressão agravou-se, passou a esgotamento. Cheguei a tomar
nove comprimidos diários, a maioria para conseguir dormir. Ia a
um psicólogo que mais parecia um padre. Sentia-me a falar sozinha
e comecei a faltar às consultas. Também tinha consultas de Psiquia-
tria, mas só de seis em seis meses. Não era um acompanhamento
contínuo, que era o que me fazia falta. Com a medicação, cheguei
aos 103 quilos; para quem pesava 60, pode dizer-se que me afundei.
Curiosamente, consegui dar a volta através de um programa
de televisão, daqueles da tarde. Pensei: «Vou enviar um e-mail. Se
ajudam tanta gente, talvez possam ajudar-me também.» Escrevi e,
ao fim de um mês, contactaram-me. Esse mês foi uma eternidade,
achei que já não iriam ligar. Resguardei-me quando fui à televisão
contar a minha história, não disse tudo. Tive a sorte de me ofere-
cerem uma solução: comecei a ser seguida por uma psicóloga com-
petente, nada a ver com experiências anteriores, e também fiz sessões

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de acupunctura. Todas as sextas-feiras: uma hora de consulta e uma
hora de agulhas. Só iniciei o programa de emagrecimento dois meses
depois de conseguirem estabilizar-me emocionalmente.
Dos 103 passei para os 65. Ao fim de seis meses, já tinha perdido
mais de 20 quilos. Voltei ao programa para mostrar a diferença.
Ainda pensei (gostava) em voltar a estudar, mas não foi possível
retomar a escolaridade normal. Já tinha feito os 18 anos. Então,
preparei o meu currículo para procurar emprego e ainda fiz um
trabalho de promoção numa cadeia de grande distribuição. Depois,
engravidei e, logo no início, tive um descolamento de sete milíme-
tros e foi preciso ficar em repouso. Desde o início que houve per-
calços. Este bebé sempre foi traquina.

Será que a minha mãe é assim por causa do que lhe aconteceu?

A minha mãe tem dias em que precisa de desabafar. Os dias em


que está mais frágil, ou nostálgica, e os dias festivos, puxam sempre
a infância dela. Vê-se o sofrimento quando ela conta a sua história.
Chora sempre. A primeira vez que ela ma contou, eu teria uns oito
ou nove anos. Não sei como dizê-lo sem chocar: ela foi criada num
corredor com os irmãos, fechados à chave e às escuras. Faziam ali
as necessidades e as fezes deles eram usadas para brincar e desenhar
nas paredes. Não tinham mais nada.
O meu avô terá vindo traumatizado do Ultramar, mas não podia
ser só isso. Ele mandava os filhos despirem-se para lhes bater com
uma espécie de chicote. Não matava as moscas com um pano, dis-
parava tiros em casa. Dava sopa azeda e cascas de queijo a comer
aos filhos e a minha avó, às escondidas, levava-lhes as migas das
galinhas, que eram melhores do que a comida deles. Punha os filhos
a dormir numa esponja no chão, ao pé dos ratos. A minha mãe hoje
nem pode sequer ver hamsters – trazem-lhe à memória os roedores
que passavam por cima deles durante a noite. A minha avó era

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