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Fichamento Sir Gawain na Obra de Joseph Campbell

CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus – Mitologia Criativa. São Paulo: Palas


Athena, 2010

“Cuchullin era o protótipo do cavaleiro da Távola Redonda, Sir Gawain. As lendas


pagãs a seu respeito foram registradas durante o período de civilização cristão
irlandesa, entre o século VI e o XI, quando a erudição grega e latina era cultivada
pelo clero irlandês como em nenhuma outra parte da Europa devastada. “ (p.103)

JENKINS, Elizabeth. Os Mistérios do Rei Artur. São Paulo: Companhia


Melhoramentos, 1994.

“Inesperada e aparentemente improvável, a difusão na Europa da história de Artur é


em geral aceita como um trabalho dos “contadores de história” bretões. Pelo
excessivo número de bretões que se refugiaram na Armórica após sucessivas
invasões, esta passou a se chamar Britânia ou pequena Bretanha. Em conato com
seus primos da Bretanha, a história e as lendas britânicas foram transmitidas sem
uma palavra escrita, como sementes de frutas e flores, trazidas por aves em seus
voos que frutificam em terras distantes.
A atividade dos “contadores de história” bretões é largamente conhecida até hoje.
Guilherme de Malmesbury fala “deste Artur, por que os bretões ainda hoje se
entusiasmam”. Citadas pelos romancistas franceses do século XII, a balada bretã
originara-se dessas primeiras histórias. Como o objetivo de entreter os chefes e
suas famílias, a profissão galesa dos bardos, cantadores ou recitadores de contos
heroicos, para ter sucesso teatral, dependiam, primeiramente, de uma boa fábula
para contar, depois precisava de memória, uma boa capacidade dramática para a
apresentação, além, é claro, da receptividade emocional dos ouvintes. Todas essas
qualidades eram extremamente perfeitas entre os celtas, e qualquer um que possa
lembrar de ter ouvido, quando criança, um bom contador de histórias entenderá o
extraordinário poder dessa forma de difusão oral, que espalhou a causa de Artur
pela França, Alemanha e Itália.
“Entretanto, nenhum destes contos, em verso, pode comparar-se em poder ao
poema Sir Gawaine and the Green Knight, demostração de inquietante poder
poético, obra puramente inglesa, sem qualquer influência estrangeira do ano de
1400, mais ou menos. A história é uma daquela em que o herói é ligado à corte de
Artur, mas suas aventuras vão longe dali.” (p.111)

LASCARIZ, Gilberto de. Sir Gawain e o Cavaleiro Verde: um Rito Iniciático de


Cavalaria. Portugal, 2016.

“Gawain esteve sempre presente nas histórias de Cavalaria Arturiana, não só como
sobrinho do Rei Artur e símbolo do perfeito Cavaleiro cortês, mas também como
parte de um dispositivo de narração por espelho, usado nas histórias do Graal de
fundo mais pagão, onde é apresentado como um duplo de Perceval ou Parzival. Os
literatos, clérigos de corte por profissão, optam por criar romances com narrativas
baseadas num sistema de espelhos, simetrias e duplas faces, tal como fará
modernamente o escritor Lawrence Durrel no seu Quarteto de Alexandria, contando
duas histórias diferentes, mas semelhantes quanto ao fim da Demanda, que se
unem e bifurcam com encontros e desencontros dos seus heróis duplicados. Neste
texto Gawain caminha sozinho, sem duplo nem alter-ego (Perceval/Parzival), sem o
auxílio de um paliativo literário que o coloque como duplicado menor do grande
herói. Contudo, pode dizer-se que este confronto entre Gawain e Sir Bertilak
(Cavaleiro Verde) configura-se no modelo do Herói em confronto com a sua própria
Sombra.” (p.02)

“Manipulando vários mitemas tradicionais do imaginário medieval, sobretudo a


temática ‘’fairy’’ associada a Morgana e à ideia de uma Demanda de Cavalaria
independente da do Graal, o Poeta-Gawain usa uma tradição literária que já aparece
exemplificada no Gawain das sagas graálicas com a sua conquista do Castelo das
Maravilhas, um mundo feérico apenas dominado por mulheres. Não mulheres
submissas, mas ousadas e voluntariosas como Orgueluse e Morgana. Esta obra é à
luz dos estudos literários sobre o simbólico medieval um verdadeiro livro-tesouro,
como fosse o pequeno e secreto livro da História do Santo Graal (Estoire del Saint
Graal - 1230/40)1, cheio de simbolismos arcaicos e tradições folclóricas, das quais
ainda hoje algumas delas sobrevivem nas mascaradas de Solstício de Inverno em
vários pontos da Europa de fundo céltico e germânico, nomeadamente o nordeste
de Portugal.” (p.02)

“Tal como nas histórias do Graal, o Banquete pertence à tipologia dos banquetes de
subversão. O Banquete, que tem como finalidade solenizar a paz e o convívio por
um rito de aliança entre homens e mulheres da nobreza de Logres, é interrompido
por um elemento de subversão: um cavaleiro mascarado que desafia a coragem dos
Cavaleiros da Távola Redonda. […] Pierre Lavron apelidou este incidente de

“banquete conflitual”2. A lógica do banquete é interrompida por uma força exógena


com carácter de ruptura física e sobrenatural, de índole antagónica.” (p.03)

“À presteza de Gawain, “o mais nobre Cavaleiro do mundo”, que se presta a tomar o


lugar do Rei, desafiado a degolar o mascarado verde, sucede a perplexidade e o
caricato diante de um Cavaleiro que, depois de degolado, recoloca a sua cabeça
entre os ombros e desafia com sarcasmo os convivas, como fosse a cabeça oracular

de Brân. ( Brân é uma divindade gigante do panteão celta que surge no Mabinogion,
uma colectânea de textos galeses medievais. Os celtas acreditavam que a cabeça
humana era o local onde residia a alma e que tinha poderes mágicos como os da
fertilidade e da profecia, bem como a capacidade de se manter viva mesmo
separada do corpo. Acreditavam ainda que a cabeça que servia de entretenimento
sapiencial no Submundo. Quando atentamos no episódio do degolamento do
Cavaleiro Verde, podemos entendê-lo à luz da tradição celta. O Rei Artur havia
pedido entretenimento antes da refeição e eis que surge o Cavaleiro Verde que os
recorda não só da força fertilizante da natureza pela sua cor, mas também que os
Cavaleiros da Távola Redonda já estão condenados à morte, numa antevisão do
que será a Terra Devastada pela Queda de Camelot e da própria Cavalaria falida
nas Cruzadas.). (p.03)
“Numa Inglaterra marcada pela presença nórdica, agora há muito cristianizada, mas
existindo ainda como uma força formadora do imaginário medieval inglês, não

estranha que seja uma festa solsticial de inverno (Winterblót/Yuleblót 4), um período
cósmico muito importante de transição anual das trevas para a luz, que seja aqui
comemorado um Rito de Iniciação da Cavalaria. Este marco é simbólico e diz
respeito apenas a Gawain e, através dele, a toda a Cavalaria: ele tem de passar de
seu estatuto profano de guerreiro galante e superficial e elevar-se à Luz, a uma
maturidade de carácter mais espiritualizada, através de testes e ordálios que o
esperam sob os ardis tanto da própria Natureza, como de seus agentes epifânicos:
Morgana e seus títeres, a Senhora Bertilak e o Cavaleiro Verde.” (p.04)

“Na verdade, não há um evento ritual na tradição helénica e germânica, isto é, indo-
europeia, que não viva na ambivalência simbólica de um sacrifício e banquete.”
(p.05)

O Cavaleiro Verde apresenta-se no banquete como um trickster, tal como a figura do


Green Man. Por um passe de mágica, ele transforma o que iria ser um
acontecimento trágico e sangrento numa paródia, como um jongleur ou bobo de
corte. Na realidade, o Cavaleiro Verde é a figura do Louco que brinca com o estatuto
de superioridade narcísica de Gawain. Nas histórias arturianas e nas lendas
irlandesas existem muitos outros degolamentos como os de Cuchulainn, Carados,
Lancelote, em que são confrontados com um agente desafiador e sobrenatural de
aspecto terrível. […] Se a figura do Cavaleiro Verde é no plano do calendário da vida
ritual sazonal e cósmica a chegada de um elemento de esperança, no plano da
Iniciação do Cavaleiro ele é o Chamado da Morte e da Aventura. A cabeça
decepada evoca sempre o Mundo dos Mortos, dos guerreiros glorificados em

batalha e da passagem entre os mundos8. (p.05-06)

Da mesma forma que os Cavaleiros Arturianos procuram o Graal


entrando na floresta, o espaço sempre verde da natureza, Gawain tem
de procurar a Capela Verde, isto é, um lugar de santidade na natureza.
Não é por acaso que o Cavaleiro Verde é comparado na narrativa a um
Fairy, habitualmente associado às almas dos mortos glorificados e aos
Antepassados. (p.06)

A Demanda da Capela Verde e do Cavaleiro Verde tem como


objectivo o sacrifício voluntário de Gawain. Todo o sacrifício conduz
à morte e, por isso, ele inicia-se durante a fase mais escura do ano na
qual o poder do Sol decaiu no ponto extremo e se inicia, então, a
comunhão com o Reino dos Mortos. Compreende-se, então, que a
Demanda se inicie depois de 1 de Novembro, a data tradicional do
festival celta de Samhuinn, e que ele se prepare com um escudo que
traz sobre a face um pentagrama, o selo que nos grimórios medievais
era usado por Salomão para controlar os demónios, isto é, as forças da
inércia e entropia spiritual. (p.07)

Lembremos que Morgana é uma representação da Grande Mãe


vivendo num reino que é o da natureza selvática da floresta, o mundo
da vida sempre verde e a sua lei é a fidelidade ao Amor. Para isso
construiu uma capela num vale verdejante para atrair aqueles que não
são verdadeiros no Amor e infiéis às suas Damas (in Livre Dartus, c.
XIII). (p.08)

Lembremos o simbolismo do veado que, desde o século XI, é o animal


reservado à caça real, à volta do qual se desenvolve toda uma etiqueta
de corte palaciana de fundo sacro e que realça o papel do veado como
zoofania do deus celta da caça Cernunos e símbolo heráldico de
Cristo. No segundo dia, diante do mesmo teste, Gawain oferece-lhe os
dois beijos que havia recebido em troca de um javali, símbolo da
classe guerreira entre os povos celtas e germânicos, mas depreciado
pelas acusações dos clérigos desde o século X como uma venalidade
selvagem e sangrenta imprópria de um bom cristão, símbolo da
valentia e temeridade. […]Não deixa de ser irónico, portanto, que Sir
Bertilak receba devolvidos os três beijos, mas lhe seja omitida a cinta,
presente demasiado precioso e talismã de protecção contra a morte
certa por degolamento. Em troca recebe uma raposa, símbolo da
astúcia e do ardil no qual acabou por cair. (p.09)

Ao negar o encontro com o seu próprio destino, Gawain condena o


seu próprio processo iniciático e é por esse motivo que, no final do
romance, regressa a Camelot uma pessoa marcada pela experiência do
confronto com a finitude da sua própria existência e pela contingência
da sua humanidade mas sem ter sido capaz de a transcender como um
Iluminado. (p.09-10)

A chegada de Gawain à Capela Verde é um dos momentos mais


fascinantes da história. A capela reduz-se a uma caverna coberta de
heras e musgo, símbolo da presença todo- poderosa e divina da
Natureza. Ao longo deste ensaio foi proposto que Gawain é atraído
pela sua própria mãe e é aqui que ela se revela na sua plenitude e
onipresença hierofânica como caverna, símbolo genital da fertilidade e
do viridatis, o poder sempre verdejante da Grande Deusa, o poder
viridandum da Gnose. (p.10)

Embora todo o texto revolva à volta de um degolamento sacrificial,


isto é, da excisão daquilo que no corpo controla e racionaliza a
dimensão natural do homem, Gawain ao escapar e rejeitar o
degolamento tornou-se um Iniciado falhado. Passar pela morte é
passar pela extinção do ego, pela decapitação simbólica da cabeça. Ele
foi incapaz de reconhecer a dimensão matricial do universo, a sua
Mãe, que implica abrir-se a um conhecimento simultaneamente
sensível e inteligível que irrompe não do pensar mas do sentir e viver.
(p.10)

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