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Sir Gawain e o Cavaleiro Verde: um Rito Iniciático de Cavalaria

Gilberto de Lascariz

Sir Gawain and Green Knight é um romance de verso aliterativo típico da Matéria
da Bretanha que apresenta um rico simbolismo folclórico e esotérico, pouco domesticado
semanticamente pelo Cristianismo. Este texto corresponde a uma época, os tardios anos do
século XIV, em que já se tinha esgotado o grande filão dos romances de Cavalaria
Arturiana. Após um interregno de vários decénios entre a La Queste del Saint Graal (1225)
versão cisterciense de redação erudita e pura propaganda cristã, e o colapso final de Morte
d’Arthur de Thomas Malory (1485). Nesse interregno de dois séculos e meio surgiram
várias irrupções menores de literatura revivalista como o Lanzeret, de Ulrich von
Zatzikhoven, o Diu Cröne, de Heinrich von dem Tulim, o Sir Perceval de Gales, de autoria
anónima, e Sir Gawain and the Green Knight, entre tantos outros.

Após Gawain ter sido condenado a um estatuto menor de cavaleiro cortês com
laivos de libertino namoradeiro e, por isso, condenado ao malogro na grande visão de
virtude cristã do Saint Graal, emergem outros romances, menos controlados pelas
1
confrarias monásticas beneditinas (Perlesvaus) e cistercienses (Lancelot-Graal). A
recuperação da honra de Gawain como Cavaleiro no Diu Cröne, por exemplo, procurou
restituir-lhe a respeitabilidade que as lendas irlandesas e galesas lhe atribuíam. O romance
aqui em análise é um desses exemplos. Contrariamente às figuras austeras de cavaleiros,
como Perceval em Chrétien de Troyes e de Parzival na prosa germânica de Wolfram von
Eschenbach, ou às figuras insípidas do tipo Galaad, da série Lancelote-Graal, este Gawain
apresenta uma perspectiva misteriosa e divertida, muito enraizada no húmus do
simbolismo tradicional, tanto folclórico como alquímico e iniciático.

Gawain esteve sempre presente nas histórias de Cavalaria Arturiana, não só como
sobrinho do Rei Artur e símbolo do perfeito Cavaleiro cortês, mas também como parte de
um dispositivo de narração por espelho, usado nas histórias do Graal de fundo mais pagão,
onde é apresentado como um duplo de Perceval ou Parzival. Os literatos, clérigos de corte
por profissão, optam por criar romances com narrativas baseadas num sistema de espelhos,
simetrias e duplas faces, tal como fará modernamente o escritor Lawrence Durrel no seu
Quarteto de Alexandria, contando duas histórias diferentes, mas semelhantes quanto ao
fim da Demanda, que se unem e bifurcam com encontros e desencontros dos seus heróis
duplicados. Neste texto Gawain caminha sozinho, sem duplo nem alter-ego
(Perceval/Parzival), sem o auxílio de um paliativo literário que o coloque como duplicado
menor do grande herói. Contudo, pode dizer-se que este confronto entre Gawain e Sir
Bertilak (Cavaleiro Verde) configura-se no modelo do Herói em confronto com a sua
própria Sombra.

Este romance é, pela sua beleza e simplicidade formal, entrançado com a delicadeza
de uma escrita sem grandes recursos estilísticos e ornamentais, seguindo uma tradição que
valoriza sob o ponto de vista formal uma narrativa limpa de acreções ornamentárias, como
é o caso das histórias de Chrétien de Troyes e Wolfram von Eschenbach. Manipulando
vários mitemas tradicionais do imaginário medieval, sobretudo a temática ‘’fairy’’
associada a Morgana e à ideia de uma Demanda de Cavalaria independente da do Graal, o
Poeta-Gawain usa uma tradição literária que já aparece exemplificada no Gawain das sagas
graálicas com a sua conquista do Castelo das Maravilhas, um mundo feérico apenas
dominado por mulheres. Não mulheres submissas, mas ousadas e voluntariosas como
Orgueluse e Morgana. Esta obra é à luz dos estudos literários sobre o simbólico medieval
um verdadeiro livro-tesouro, como fosse o pequeno e secreto livro da História do Santo
Graal (Estoire del Saint Graal - 1230/40)1, cheio de simbolismos arcaicos e tradições
folclóricas, das quais ainda hoje algumas delas sobrevivem nas mascaradas de Solstício de
Inverno em vários pontos da Europa de fundo céltico e germânico, nomeadamente o
nordeste de Portugal.

1 Lancelot-Grail: The Old French Arthurian Vulgate and Post-Vulgate in Translation. London: Ed. Norris J.

Lacy, 1993-6, I, 4. L’ Estoire del Saint Graal. Paris: Ed. Jean-Paul Ponceau, Classiques Français du Moyen Age,
1997, I, 4.

2
O BANQUETE SACRIFICIAL

A história começa com o grande banquete de Ano Novo em Camelote e a chegada


do Rei Artur. Mandava a tradição medieval que o suserano se rodeasse dos seus vassalos no
dia de Ano Novo e, pela solenidade e beleza desta ilustre Ágape, se fechasse e renovasse o
ciclo de alianças intersociais com dádivas mútuas, de um valor estimado em função do
tamanho e grandeza dessa união. Tal como nas histórias do Graal, o Banquete pertence à
tipologia dos banquetes de subversão. O Banquete, que tem como finalidade solenizar a
paz e o convívio por um rito de aliança entre homens e mulheres da nobreza de Logres, é
interrompido por um elemento de subversão: um cavaleiro mascarado que desafia a
coragem dos Cavaleiros da Távola Redonda. Nas histórias do Graal é conhecida a
intromissão do Cavaleiro Vermelho que transgride as normas de comportamento
cavalheiresco num banquete arturiano, roubando o cálice de ouro ao Rei Artur e
derramando involuntariamente o seu vinho precioso sobre o corpete da rainha, descortesia
sacrílega sob o ponto de vista da etiqueta medieval. Pierre Lavron apelidou este incidente
de “banquete conflitual”2. A lógica do banquete é interrompida por uma força exógena
com carácter de ruptura física e sobrenatural, de índole antagónica. Não deixa de ser
interessante realçar que este conto segue a ideia geral de um outro romance arturiano,
Jaufré, o único romance occitano sobrevivente (circa 1180 ou 1225), de um banquete
interrompido por um adversário e a sua criminosa provocação.

Por outro lado, o romance aqui em questão retoma o banquete de Isolda no


Tristão em Prosa, mas invertido. Em Tristão em Prosa, o agente de interrupção conflituosa
é Gawain com a sua insolência. Mas, ao contrário, no Sir Gawain and Green Knight, a
cordialidade festiva é interrompida pela arrogância conflituosa de um cavaleiro mascarado
de verde, introduzindo na solenidade agápica um elemento paródico que inverte a
natureza solene do mesmo. Aqui a posição de Gawain é invertida em relação ao Tristão
em Prosa: ele é a vítima. Esse elemento paródico não é apenas ritualístico, reminiscente
das festas rurais dos camponeses festejando um novo ciclo de fecundidade ctónica no Ano
Novo, com o seu ritual subversivo da máscara diabólica e paródica. Ele visa ridicularizar a
própria Cavalaria Arturiana. À presteza de Gawain, “o mais nobre Cavaleiro do mundo”,
que se presta a tomar o lugar do Rei, desafiado a degolar o mascarado verde, sucede a
perplexidade e o caricato diante de um Cavaleiro que, depois de degolado, recoloca a sua
cabeça entre os ombros e desafia com sarcasmo os convivas, como fosse a cabeça oracular
de Brân3. A gargalhada geral face a um episódio executado com prontidão guerreira mas

2 LAVRON, Pierre, ‘’Les Banquets Ambigus ou la Table Subvertie: Enquête dans les textes littéraires des Douzième et

Treizième Siècle’’, Le Banquet à Travers les Âges: De Pharaon à Marco Ferreri, Paris: L´Harmatan, 2011, p. 16-201.

3 Brân é uma divindade gigante do panteão celta que surge no Mabinogion, uma colectânea de textos galeses

medievais. Os celtas acreditavam que a cabeça humana era o local onde residia a alma e que tinha poderes
mágicos como os da fertilidade e da profecia, bem como a capacidade de se manter viva mesmo separada do
corpo. Acreditavam ainda que a cabeça que servia de entretenimento sapiencial no Submundo. Quando
atentamos no episódio do degolamento do Cavaleiro Verde, podemos entendê-lo à luz da tradição celta. O
Rei Artur havia pedido entretenimento antes da refeição e eis que surge o Cavaleiro Verde que os recorda

3
reduzido à impotência e banalidade, humilha obviamente Gawain. Este momento não se
refere, por isso, a uma representação de mascarada solsticial, como alguns autores
defendem, mas uma crítica ao pedantismo e arrogância da Cavalaria pela invasão do
cómico e do paródico. Trata-se, não tanto de uma reminiscência literária de um rito
camponês, mas o da sua conversão tipológica num Rito de Passagem iniciática de Cavalaria
através de um assassínio simbólico que, pela pedagogia do paródico, pretende tornar mais
humilde o Cavaleiro, em particular o pedante Gawain, a flor da Cavalaria Arturiana. O
belo e exímio cavaleiro Gawain é ridicularizado por um bonifrate verde disfarçado de
Cavaleiro.

Se nos banquetes arturianos do Graal, descritos tanto por Robert Boron, Chrétien de
Troyes e pelos autores do Lancelote-Graal, o Pentecostes era o dia de eleição para a
irrupção do Sagrado através da epifania pública do Graal e o adoubement dos novos
Cavaleiros, fechando e abrindo novas alianças entre guerreiros, aqui a data é desviada para
as proximidades do Solstício de Inverno. Numa Inglaterra marcada pela presença nórdica,
agora há muito cristianizada, mas existindo ainda como uma força formadora do
imaginário medieval inglês, não estranha que seja uma festa solsticial de inverno
(Winterblót/Yuleblót4), um período cósmico muito importante de transição anual das
trevas para a luz, que seja aqui comemorado um Rito de Iniciação da Cavalaria. Este marco
é simbólico e diz respeito apenas a Gawain e, através dele, a toda a Cavalaria: ele tem de
passar de seu estatuto profano de guerreiro galante e superficial e elevar-se à Luz, a uma
maturidade de carácter mais espiritualizada, através de testes e ordálios que o esperam sob
os ardis tanto da própria Natureza, como de seus agentes epifânicos: Morgana e seus
títeres, a Senhora Bertilak e o Cavaleiro Verde. Esta história acarreta, então, um outro tom
e uma outra voz: a da natureza de transição cíclica do universo servir de apoio simbólico
não só aos processos de trabalho do campo (terceira função dumeziliana), mas também de
alavanca para processos de transformação da consciência entre Guerreiros e Cavaleiros
(segunda função dumeziliana), tal como os Mistérios de Mitra haviam celebrado5. É este
estado pristino da lenda, sem a sobreposição do verniz cristão, que atrai a sua leitura ainda
hoje. Apesar de publicada já tardiamente, nos fins do século XIV, ao irromper auroral do
Renascimento, esta história parece ter sido pouco sujeita ao processo de fracionamento e
dismorfose narrativa que, desde os Lais bretões, já estão cheios de interpolações e
substituições cristãs, numa tradição que vinha já das redações das hagiografias católicas,

não só da força fertilizante da natureza pela sua cor, mas também que os Cavaleiros da Távola Redonda já
estão condenados à morte, numa antevisão do que será a Terra Devastada pela Queda de Camelot e da
própria Cavalaria falida nas Cruzadas.
4 Blót – palavra que parece ter derivado de ‘’blood’’, nitidamente implícita no tema sacrificial do

Banquete.
5 Nos Mistérios de Mitra a primeira fase de Iniciação era simular o assassínio de um outro Iniciado, tal como

ainda hoje é feito no terceiro grau de Mestre da Maçonaria. Vê-se, assim, como um mesmo mitema iniciático
tanto serve de base, séculos depois, a um rito de iniciação de uma guilda de artesãos como no passado serviu,
entre os legionários romanos, a uma confraria de guerreiros, no quadro de um Mistério, neste caso o de
Mitra.

4
dos exempla, por absorção das lendas celto-germânicas e sua conversão em lendas e
narrativas sobrenaturais cristãs.

O que está explícito neste conto como elemento subversivo do banquete é um


sacrifício paródico. Neste caso, o sacrifício seria Gawain e a sua Sombra, o Cavaleiro
Verde. Na verdade, o Cavaleiro Verde seria para os rústicos medievais um fantoche com
folhas de uma árvore perene para realçar a perenidade da Vida e dos ciclos de fertilidade no
momento mais infértil do ano em que tudo parece cristalizar e morrer. É o Green Man
imortalizado nas iluminuras e esculturas medievais com o seu rosto folhado. Além disso,
contra todas as evidências, esta cabeça sacrificada escapa à morte, como que salientando
que, apesar da crise temporal de suspensão e morte do Tempo e da Vida, representada pelo
Ano Novo, a Vida escapa sempre à Morte e sua aniquilação. Contudo, há algo mais neste
episódio que merece ponderação. Ao transformar um acto sacrificial solene num feito
cómico que humilha publicamente Gawain com as risadas impiedosas dos convivas, tal
como nas lendas germânicas do Graal um outro títere, a mulher monstruosa Cundrie
humilha Parzival, acorda e desencadeia um ciclo novo na sua força vegetativa e psíquica
que lhe pode permitir vir a ser uma pessoa mais completa e unificada, terminado o ciclo
que agora se inicia. Neste sentido, poderia dizer-se que há uma ambiência de sacralidade,
resultante da natureza intemporal do momento de crise anual da Terra e do Cosmos,
associado ao mitema do Sacrifício, mas no quadro de um Banquete Ritual à volta deste
evento cósmico. Não será estranho que este Banquete Ritual repita ad inversus os topoi
sacros dos banquetes gregos descritos nas “Pastorais” de Longus6. Da mesma maneira que
o banquete sacro grego, thusia, acontece depois de um sacrifício, também este banquete
está suspenso, por respeito ao rei Artur, enquanto não surgir a Aventura que se vai
caracterizar pela imergência subversiva de um rito de sacrifício, evasivo e paródico, que
antecede o banquete. Gawain comporta-se, assim, como o Mageiros grego, isto é, como
aquele que faz o sacrifício no banquete sagrado aos Deuses. Na verdade, não há um evento
ritual na tradição helénica e germânica, isto é, indo-europeia, que não viva na ambivalência
simbólica de um sacrifício e banquete.

O Cavaleiro Verde apresenta-se no banquete como um trickster, tal como a figura


do Green Man. Por um passe de mágica, ele transforma o que iria ser um acontecimento
trágico e sangrento numa paródia, como um jongleur ou bobo de corte. Na realidade, o
Cavaleiro Verde é a figura do Louco que brinca com o estatuto de superioridade narcísica
de Gawain. Nas histórias arturianas e nas lendas irlandesas existem muitos outros
degolamentos como os de Cuchulainn, Carados, Lancelote, em que são confrontados com
um agente desafiador e sobrenatural de aspecto terrível. A história de degolamento mais
antiga é a Bricu´s Feast, em linguagem goidélica Middle Irish, um manuscrito datado de
1100, onde se descreve o degolamento de Cuchulainn. O primeiro Continuador da história
inacabada de Perceval, de Chrétien de Troyes, coloca Gawain como personagem principal

6 LEBDIRI, Davilla, ‘’Les Scènes de Banquet dans les Pastorales de Longus’’, Le Banquet à Travers les Âges:
De Pharaon à Marco Ferreri, Paris, L´Harmatan, 2011, p. 153-160.

5
e não um mero duplicado do herói perceválico, como será costume, apresentando Carados
a ser degolado. Segundo Ad Putter, o Poeta-Gawain copiou o motivo do Beheading Game
do romance arturiano francês, conhecido como a Primeira Continuação do Perceval de
Chrétien de Troyes.7 A cabeça degolada que aparece em Peredur, o texto menos
domesticado pelo Cristianismo do Ciclo do Graal, tem como Graal uma cabeça decepada e
a sangrar. No Mabinogion conta-se que a cabeça do Rei Brân foi degolada e colocada no
cimo de um poste de navio a cantar e a contar histórias aos marinheiros na viagem de
regresso a casa. Se a figura do Cavaleiro Verde é no plano do calendário da vida ritual
sazonal e cósmica a chegada de um elemento de esperança, no plano da Iniciação do
Cavaleiro ele é o Chamado da Morte e da Aventura. A cabeça decepada evoca sempre o
Mundo dos Mortos, dos guerreiros glorificados em batalha e da passagem entre os
mundos8.

Gawain é chamado a trilhar o Mundo dos Mortos, esse além imaginal descrito nas lendas
arturianas, estando habitualmente localizado na floresta selvagem. Não deixa de ser
curioso que é a partir do velho solstício de Yule, equivalente no calendário juliano ao nosso
dia de natal, em 25 de Dezembro, que se inicia os eventos visionários de matiz funerário
das Cavalgadas Selvagens. Mas, neste texto tradicional é a Floresta como teatro de visões,
tal como nas versões textuais graálicas, que assume contornos particularmente punitivos e
desafiadores para o herói, e de onde emergem os arquétipos iniciáticos. Os elementos
confrontam o herói na sua condição mais humana, despido dos ardis civilizacionais da
corte e do código comportamental cortês. Talvez por isso o Pentagrama assuma uma
relevância ainda superior no seu escudo, uma vez que o mesmo representa os quatro
elementos com um quinto: o Espírito. Esse Espírito pode eventualmente estar
representado pela imagem interior do escudo, na qual estão representadas a figura da
Virgem e do Menino, assumidos neste contexto como sendo a Virgem Maria e Jesus. Mas,
que por outro lado, podem simbolizar o encontro da Mãe com o Filho, uma vez que John
Matthews defende que Morgause (Moragan), versão tardia de Morcades, seria a mãe de
Gawain, resultante de sua união incestuosa com Artur.9 A sua coragem e sangue-frio não
são somente adestrados para o combate, mas também para se confrontar com as visões da
sua vida eremítica como cavaleiro errante na Demanda. Da mesma forma que os
Cavaleiros Arturianos procuram o Graal entrando na floresta, o espaço sempre verde da
natureza, Gawain tem de procurar a Capela Verde, isto é, um lugar de santidade na
natureza. Não é por acaso que o Cavaleiro Verde é comparado na narrativa a um Fairy,
habitualmente associado às almas dos mortos glorificados e aos Antepassados. Não é um
acaso, por isso, que Morgana esteja sempre associada a um mundo edénico além mundo
onde vivem os mortos beatificados em Fay ou Faerie, ao Sidhe ou Elphame. Relembremos
que, quando o Cavaleiro Verde entra no hall, os convivas indagam-se logo se o mesmo não

7 PUTTER, Ad, An Introduction to the Gawain-Poet, New York, Taylor & Francis, 1996, pp. 12-33.
8 O teste do Beheading Game continuou no poema medieval inglês The Carl of Carlisle e The Turk

and Gawain, assim como nos textos franceses, no Perlesvaus e no Ciclo do Lancelote-Graal.
9 MATHEWS, John, Gawain: Knight of Goddess, London, Aquarian Press, 1990, 43-44.

6
será um ‘’fantasm’’ ou um ‘’faërie’’10, o que reforça a distinção entre o morto comum e o
morto glorificado, o verdadeiro Fairy. É através do degolamento teatralizado que Gawain
é convidado a ser ele também degolado. Numa perspectiva simbólica, significaria que era
convidado a degolar o seu próprio ego, por demais enfatuado, como é relatado nos textos
medievais, e o seu modo padronizado de existência que representa a vida trivial da corte
onde vive. Para nós pessoas modernas a Corte é o equivalente da chamada Sociedade do
Espectáculo, como a cunhou Guy Dabord (1931/1994), em que hoje vivemos alucinados e
alienados numa felicidade vegetativa e acéfala. Gawain e nós todos somos convidados pelo
ardil do processo de imersão teatral e o seu efeito dissolutivo, típico do paródico e do
sobrenatural medieval, onde a contingência das normas do mundo civilizado são
suspensas, para dar mais sentido à nossa Vida. Só se pode dar sentido à vida começando a
sentir verdadeiramente e isso é que é a essência da Adventure, isto é, daquilo que se
tornará o Advento e que, séculos mais tarde, voltará a inspirar os escritores Românticos.

A DEMANDA E O PENTAGRAMA

A Demanda da Capela Verde e do Cavaleiro Verde tem como objectivo o sacrifício


voluntário de Gawain. Todo o sacrifício conduz à morte e, por isso, ele inicia-se durante a
fase mais escura do ano na qual o poder do Sol decaiu no ponto extremo e se inicia, então,
a comunhão com o Reino dos Mortos. Compreende-se, então, que a Demanda se inicie
depois de 1 de Novembro, a data tradicional do festival celta de Samhuinn, e que ele se
prepare com um escudo que traz sobre a face um pentagrama, o selo que nos grimórios
medievais era usado por Salomão para controlar os demónios, isto é, as forças da inércia e
entropia espiritual. Na realidade, a preparação com um escudo armado de um pentagrama
e a imagem da “Queen of Heaven” lembra muito a maneira como os evocadores professos
dos círculos mágicos colocam sobre o peito um pentagrama de protecção. Gawain parece
preparar-se menos para uma batalha e mais para uma espécie de aventura necromântica de
contacto com o Mundo dos Espíritos. É compreensível que assim seja, pois o seu oponente
apresenta-se como uma figura digna do Outro Mundo, munida do ramo apotropaico de
azevinho, uma planta perene (evergreen) como encontramos na representação do Holly
King, figura que, segundo Robert Graves e James Frazer, representaria a tutela da Terra
durante o período que ia desde o Solstício de Verão até ao Solstício de Inverno, período
particularmente importante no enredo deste poema em particular.
Nesta simples expressão ‘’Queen of Heaven’’ e na referência ao seu Santo Filho
construiu-se, mais pela piedade cristã de fundo monástico do que pelo bom senso histórico,
uma imagem de Gawain como o Cavaleiro de Maria. Em todas as histórias, ele é o
Cavaleiro da Dama, sobretudo da Dama Fairy. Isso combina bem com o fundo de
maravilhoso da sua Viagem no seio da floresta em busca da Capela Verde: entrar no
mundo faery que está sob a regência de Morgana. A referência cristã aparece no texto

10 WESTSON, Jessie, Sir Gawain and the Green Knight, Oxford, Oxford University Press, 2008, Parte I,

Estrofe XI, v. 9.

7
como um ligeiro apontamento sem interesse, a não ser para o leitor piedoso, ligando as
cinco chagas de Cristo às virtudes cavaleirescas, quando o que interessa é a tradição
folclórica e erudita sobre o pentagrama dourado avermelhado. Num escudo, o vermelho
dourado é o símbolo do sangue espiritualizado da linhagem de Gawain. Ele traz a
influência do Céu e da Terra, da Luz e do Fogo. Em algumas tradições, Gawain é
considerado o filho do Rei Lot, mas neste texto ele é simultaneamente colocado sob a
influência de Cristo e da Dama. A Dama que por detrás do escudo o protege sob a forma
da Virgem Maria e o Menino é uma técnica de substituição narrativa de carácter cristão,
típico de uma cedência aos contextos religiosos da época em que foi escrito. Desta forma
procura-se domesticar a imagem da Dama que protegia Perceval, nas lendas e narrativas do
Graal, sublimando-a na figura da Virgem Maria. Segundo os textos graálicos era comum
que o Cavaleiro, num momento de extremo perigo e na eminência da sua morte, invocasse
o Amor da Dama como sua proteção, como fizera Parzival diante de Feirefiz na lenda
germânica do Graal escrita por Wolfram von Eschenbach .

A DAMA
A viagem à Capela Verde é manipulada pela astúcia da feiticeira Morgana, aqui na sua
faceta tradicional de velha e bruxa. Na sua aparente ausência, ela age como uma Deusa do
Destino, como um actor oculto articulando as marionetes de um teatro de fantoches.
Poder-se-ia dizer que Gawain vai fazer um regresso edipiano à sua mãe, pois em algumas
histórias arturianas suspeita-se, com compreensão, que Morgana seria a mãe do próprio
Gawain através de seu meio irmão Artur, o Rei dos Bretões. Isso explica a preferência e
protecionismo de Gawain pelo Rei Artur, que o senta sempre ao lado de Guinevere, sua
esposa, como fosse seu filho. Embora a causa de toda esta louca demanda se explique
superficialmente como um teste de coragem e uma questão de honra, a história revela
também a importância da fidelidade à Dama, através da pessoa da Lady Bertilak. Contudo,
é através da influência de Morgana que o teste de fidelidade à Dama se confronta com o
teste de lealdade à Cavalaria na pessoa de Sir Bertilak. São dois valores já em oposição no
século XIV e que Gawain tenta conciliar e fazer valer, assim, a sua fidelidade a ambos.
Morgana, a artífice invisível da trama desde o início da narrativa, significa ‘’Grande
Rainha’’. Ela é o oposto polar da Rainha Guinevere, como ilustram muitos relatos
tradicionais arturianos onde ambas se confrontam. Esse conflito é enunciado em Sir
Gawain and Green Knight quando se refere que Morgana enviou Sir Bertilak disfarçado de
homem verde para assustar Guinevere. Mas assustar porquê? A única explicação é que está
aqui presente implicitamente a velha ideia de que Gawain era amante de Guinevere nas
versões mais antigas, antes de aparecer a figura de Lancelote. A sua evidência está não só
descrita na arquivolta de Modena, a Porta della Pescheria, tal como no De Ortu Waluuanii
(séc. XII/XIII). Lembremos que Morgana é uma representação da Grande Mãe vivendo
num reino que é o da natureza selvática da floresta, o mundo da vida sempre verde e a sua
lei é a fidelidade ao Amor. Para isso construiu uma capela num vale verdejante para atrair
aqueles que não são verdadeiros no Amor e infiéis às suas Damas (in Livre Dartus, c. XIII).
Ao verde feérico opõe-se, por complementaridade, a humanidade sanguínea de Gawain,

8
com o seu escudo com um pentagrama vermelho e dourado, símbolo do sangue quente e
carismático, isto é, do sangue de Cristo e das suas cinco chagas.
Ao chegar ao Castelo de Hautdesert, Sir Bertilak atende o pedido de hospitalidade de
Gawain, recebendo-o com um faustoso jantar e agasalhando-o do frio da noite com
roupagens nobres e de gosto sofisticado, tal como é relatado na história de Perceval, de
Chrétien de Troyes. Trata-se de uma descrição dos usos da cortesia cavaleiresca do mundo
medieval. A descrição da ceia é exactamente igual à descrita na recepção de Perceval no
Castelo do Graal e de Parzival em Munsalväsche, revelando a influência subliminal que a
tradição novelesca do Graal tem sobre este romance. De certa maneira coloca este
acontecimento numa situação paralela ao do Mistério que virá a ser representado nos
textos graálicos. Ambos visam fazer sair a personagem da letargia e tomar uma acção
adequada sob o ponto de vista iniciático. O teste é delegado para a manhã seguinte,
quando Lady Bertilak irrompe no quarto onde está a dormir Gawain e o tenta seduzir. A
sua inesperada resistência, directamente proporcional à sua fama de sedutor, frusta o
objectivo da sedutora que, ainda assim, lhe dá um beijo. Quando chega, Sir Bertilak testa
Gawain propondo dar-lhe os espólios da caça em troca dos seus espólios do dia. Em troca
do beijo recebido que lhe devolve, Gawain recebe um veado. Lembremos o simbolismo do
veado que, desde o século XI, é o animal reservado à caça real, à volta do qual se
desenvolve toda uma etiqueta de corte palaciana de fundo sacro e que realça o papel do
veado como zoofania do deus celta da caça Cernunos e símbolo heráldico de Cristo. No
segundo dia, diante do mesmo teste, Gawain oferece-lhe os dois beijos que havia recebido
em troca de um javali, símbolo da classe guerreira entre os povos celtas e germânicos, mas
depreciado pelas acusações dos clérigos desde o século X como uma venalidade selvagem e
sangrenta imprópria de um bom cristão, símbolo da valentia e temeridade.
No terceiro encontro matinal, Lady Bertilak oferece-lhe não só três beijos, mas também
um cinto de seda verde, para protecção contra a morte. Não deixa de ser curioso que os
Cavaleiros Templários tenham sido acusados de heresia por usar à cinta, por debaixo de
sua túnica, um cinto que lhes apertava a cintura e que havia sido consagrado sobre a
cabeça do Baphomet, descrito como um crânio de mulher. A dádiva de um cinto enquadra-
se no conjunto dos objectos apotropaicos dados por uma Dama a guerreiros, como prova
de Amor. Exemplo claro é o da Meide Lant em Diu Cröne que lhe dá um cálice de ouro
que lhe garante a eternidade, bem como o da Pucelle aux Blanches Mains no Fair
Unknown e o da Lady of the Bridle, obras nas quais a Dama lhe dá um cinto. Os presentes
de mulheres, muitas vezes descritas com perfis sobrenaturais e tipicamente Fairies, a
Gawain, é um tema constante nas suas aventuras. Como na aventura mesopotâmica de
Gilgamesh, Gawain busca a Imortalidade, ainda que de forma inconsciente. Não deixa de
ser irónico, portanto, que Sir Bertilak receba devolvidos os três beijos, mas lhe seja omitida
a cinta, presente demasiado precioso e talismã de protecção contra a morte certa por
degolamento. Em troca recebe uma raposa, símbolo da astúcia e do ardil no qual acabou
por cair. Ao negar o encontro com o seu próprio destino, Gawain condena o seu próprio
processo iniciático e é por esse motivo que, no final do romance, regressa a Camelot uma
pessoa marcada pela experiência do confronto com a finitude da sua própria existência e

9
pela contingência da sua humanidade mas sem ter sido capaz de a transcender como um
Iluminado.

CAPELA VERDE
A chegada de Gawain à Capela Verde é um dos momentos mais fascinantes da história. A
capela reduz-se a uma caverna coberta de heras e musgo, símbolo da presença todo-
poderosa e divina da Natureza. Ao longo deste ensaio foi proposto que Gawain é atraído
pela sua própria mãe e é aqui que ela se revela na sua plenitude e onipresença hierofânica
como caverna, símbolo genital da fertilidade e do viridatis, o poder sempre verdejante da
Grande Deusa, o poder viridandum da Gnose. A sua reacção de repugnância diante de uma
caverna, onde qualquer elemento racional e civilizado estão ausentes, é o exemplo da
dificuldade que a época já sente em reconhecer o seu enquadramento místico no Mundo
da Natureza. A formação da Cavalaria é arrancar a relação implícita entre consciência e
natureza, e seu sucedâneo o corpo, agora transfigurada na armadura artificial do guerreiro,
através de uma sublimação ascética e racional num quadro de virtudes cristãs. A sua
armadura de ferro é o exemplo de uma recusa do corpo instintivo, da sua mineralização
metálica, do seu endurecimento e cristalização no mundo mineral, livre das paixões.
Embora todo o texto revolva à volta de um degolamento sacrificial, isto é, da excisão
daquilo que no corpo controla e racionaliza a dimensão natural do homem, Gawain ao
escapar e rejeitar o degolamento tornou-se um Iniciado falhado. Passar pela morte é passar
pela extinção do ego, pela decapitação simbólica da cabeça. Ele foi incapaz de reconhecer a
dimensão matricial do universo, a sua Mãe, que implica abrir-se a um conhecimento
simultaneamente sensível e inteligível que irrompe não do pensar mas do sentir e viver.
Comparada com a versão germânica do Graal, em Parzival, de Wolfram von Eschembach,
podemos ver que a vitória do herói está em reconhecer a ineficiência das virtudes
cavaleirescas que o impedem de colocar questões, de questionar, e que fazem deste
Gawain um exemplo de Cavaleiro falhado. Para chegar ao Castelo do Graal, equivalente
alegórico da Capela Verde, Parzival aceitar confiar no Cavalo, o único que o consegue
guiar até à Portadora do Graal, a Grande Dama, aqui representada sob a imagem de
Morgana. O questionar do Cavaleiro, do Iniciado, não nasce de uma razão inquieta que
procura respostas racionais para o universo sem sentido que o rodeia. Ele nasce do sentir. É
o equivalente do Nous Poietikus expresso por Aristóteles no seu De Anima em que o
verdadeiro Conhecimento é aquele que irrompe de uma união conjuntiva do sujeito e do
objecto, da experiência extática do sentir unitivo do sujeito e objecto. Gawain é, por isso,
um Iniciado falhado, que está ainda prisioneiro da sua educação cavaleiresca cheia de
virtudes que são produto da mera cortesia social. A recusa da Capela Verde por Gawain é a
recusa da Mãe e, em primeira instância, de Morgana. É também uma aventura falhada para
a sua própria Mãe. Gawain continuará eternamente órfão porque nele persiste o
cepticismo da recusa racional da dimensão sobrenatural e epifânica da Natureza resultante
de sua socialização cultural e religiosa. É a incapacidade para reconhecer a Natureza, o
Corpo e o Amor, como partes intrínsecas e inalienáveis do existir humano e da sua
perfeição sapiencial. De nada serve, então, o escape ao degolamento. A sua astúcia em

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conservar o cinto que o protegia da morte resultou. Ele escapou ao sacrifício do seu ego
narcísico de melhor “Cavaleiro do Mundo” e dilecto do Rei Artur. As felicitações da Corte
Arturiana à sua chegada são as felicitações de todos os Cavaleiros falhados. Por
cumplicidade com Gawain todos passam a usar a cinta ao ombro, como memória dos
ordálios enfrentados por Gawain, sem saberem que é apenas o espelho das suas próprias
fraquezas e contingências. Como símbolo desse falhanço Gawain trará a marca de sua
ferida no pescoço, como uma marca de Caim falhado que nunca chegou a revoltar-se
contra Deus e a ordem racional do mundo civilizado.

I - Bibliografia Ativa
WESTSON, Jessie, Sir Gawain and the Green Knight, Oxford, Oxford University Press,
2008.

II - Bibliografia Passiva

BERNARD, J. L. and BERNARD, M. L., “The Abusive Male Seeking Treatment: Jekyll and
Hyde”, in Family Relations, Vol. 33, No. 4 (Oct., 1984), pp. 543-547.
(http://www.jstor.org/stable/583833)
LAVRON, Pierre, ‘’Les Banquets Ambigus ou la Table Subvertie: Enquête dans les textes
littéraires des Douzième et Treizième Siècle’’, Le Banquet à Travers les Âges: De Pharaon
à Marco Ferreri, Paris: L´Harmatan, 2011, p. 16-201.
LEBDIRI, Davilla, ‘’Les Scènes de Banquet dans les Pastorales de Longus’’, Le Banquet à
Travers les Âges: De Pharaon à Marco Ferreri, Paris, L´Harmatan, 2011, p. 153-160.
PUTTER, Ad, An Introduction to the Gawain-Poet, New York, Taylor & Francis, 1996. pp.
12-33.

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