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Os grandes temas da Idade


Média (III): A razão
Postado por David

A “deusa razão”, representada por uma


prostituta, sendo carregada pelas ruas de
Paris
“Se Deus é logos, segundo São João, e o homem
também vem definido pelo logos, há adequação
entre ambos e é possível um conhecimento da
essência divina; pode haver uma teologia
racional, embora fundada sobre os dados da
revelação.”

“No momento em que o nominalismo de Ockham


reduziu a razão a uma coisa de foro íntimo do
homem, uma determinação sua puramente
humana, e não essência da Divindade, neste
momento o espírito humano também fica
segregado desta. Portanto, sozinho, sem mundo
e sem Deus, o espírito humano começa a se
sentir inseguro no universo” (Zubiri: Hegel y El
problema metafísico).

O logos aparece como um motivo cristão


essencial desde os primeiros momentos. O
começo do Evangelho de São João diz
taxativamente que no princípio era o verbo, o
logos, e que Deus era o logos. Isso quer dizer
que Deus é, em primeiro lugar, palavra, e,
ademais, razão. Isso coloca vários problemas
particularmente importantes, sobretudo a
posição do homem.

Que é o homem? É um ente finito, uma criatura,


um ens creatum, uma coisa entre as demais; é,
como o mundo, algo finito e contingente. Mas, ao
mesmo tempo, o homem é logos: segundo toda a
tradição helênica, o homem é um animal que tem
logos. Por um lado, portanto, é uma coisa a mais
no mundo; mas, por outro lado, sabe o mundo
todo, como Deus, e tem logos, como ele. Qual a
relação com Deus e com o mundo? É uma
relação essencialmente equívoca; já que por um
lado é um ente que participa do ser no sentido
das criaturas, e por outro, é um espírito capaz de
saber o que é o mundo, um ente que é logos. A
Idade Média vai dizer que o homem é um certo
intermediário entre o nada e Deus: medium quid
inter nihilum et Deum. Além disso, essa peculiar
situação do homem já está indicada desde o
Gênesis: Faciamus hominem ad imaginem et
similitudinem nostram. O homem está feito à
imagem e semelhança de Deus. Ou seja, a idéia
do homem, o modelo exemplar segundo o qual
está criado, é Deus ele mesmo. Por isso mestre
Eckhart dizia que no homem há algo, uma
centelha – scintilla, Funken – que é incriada e
incriável. Essa afirmação foi interpretada como
uma exclusão do ser criado no homem, portanto
como panteísmo, e foi condenada; mas seu
sentido correto, como Zubiri demonstrou
claramente, é o de que o homem tem uma
scintilla incriada e incriável, ou seja, sua própria
idéia; e isso é completamente ortodoxo.

Que conseqüências terá para a filosofia esse


horizonte em que se move o cristianismo? Para
conhecer a verdade é preciso entrar em si
mesmo, é preciso se interiorizar, como já vimos
em Santo Agostinho. Intra in cubiculum mentis
tuae, dirá também Santo Anselmo. De acordo
com isso, o pior que o homem pode fazer para
conhecer é olhar as coisas do mundo, porque a
verdade não está nas coisas, mas em Deus, e
Deus, o homem encontra em si mesmo. E como a
verdade é Deus, a via para chegar a ela é a
caritas: só pelo amor chegamos a Deus, e só
Deus é a verdade, não é outro o sentido do fides
quaerens intellectum de Santo Anselmo; São
Boaventura vai chamar a filosofia de caminho da
mente para Deus (Itinerarium mentis in Deum), e
se parte da fé. Assim fica especificada a situação
da filosofia medieval em seus primeiros séculos.

Em Santo Tomás, a teoria é um saber


especulativo, racional. A teologia é de fé na
medida em que é construída sobre dados
sobrenaturais, revelados; mas o homem trabalha
com eles com sua razão, para interpretá-los e
alcançar um saber teológico. Supõe-se,
portanto, que há uma adequação perfeita entre o
que Deus é e a razão humana. Se Deus é logos,
segundo São João, e o homem também vem
definido pelo logos, há adequação entre ambos e
é possível um conhecimento da essência divina;
pode haver uma teologia racional, embora
fundada sobre os dados da revelação. Pois bem,
se a teologia e a filosofia tratam de Deus, em que
se diferenciam? Santo Tomás diz que o objeto
material da teologia e da filosofia pode ser o
mesmo quando falam de Deus; mas o objeto
formal é distinto. A teologia tem acesso ao ente
divino por outros caminhos que a filosofia, e
portanto, embora esse ente seja numericamente
o mesmo, trata-se de dois objetos formais
distintos.

Dessa situação de equilíbrio em Santo Tomás


passa-se para uma muito diferente em Duns
Escoto e em Ockham. Em Duns Escoto, a
teologia não é mais ciência especulativa, mas
prática e moralizadora. O homem, que é razão,
fará uma filosofia racional, porque aqui se trata
de um logos. Em contraposição, a teologia é
sobrenatural; a razão pouco tem a fazer nela; é,
antes de tudo, práxis.

Em Ockham se acentuam estas tendências


escotistas. Para Ockham, a razão será um
assunto exclusivamente humano. A razão é, sim,
própria do homem, mas não de Deus; este é
onipotente e não pode estar submetido a
nenhuma lei, nem sequer à da razão. Isso lhe
parece uma limitação inadmissível do arbítrio
divino. As coisas são como são, até mesmo
verdadeiras ou boas, porque Deus quer; se Deus
quisesse que matar fosse bom, ou que 2 mais 2
fossem 19, seriam – chegarão a dizer os
continuadores do ockhamismo. Ockham é
voluntarista e não admite nada acima da vontade
divina, nem mesmo a razão. “A partir desse
momento, a especulação metafísica se lança, por
assim dizer, numa vertiginosa carreira, na qual o
logos, que começou sendo essência de Deus, vai
terminar sendo simplesmente essência do
homem. É o momento, no século XIV, em que
Ockham vai afirmar, de maneira textual e
taxativa, que a essência da Divindade é
arbitrariedade, livre-arbítrio, onipotência, e que,
portanto, a necessidade racional é uma
propriedade exclusiva dos conceitos humanos.”
“No momento em que o nominalismo de Ockham
reduziu a razão a uma coisa de foro íntimo do
homem, uma determinação sua puramente
humana, e não essência da Divindade, neste
momento o espírito humano também fica
segregado desta. Portanto, sozinho, sem mundo
e sem Deus, o espírito humano começa a se
sentir inseguro no universo” (Zubiri: Hegel y El
problema metafísico).

Se Deus não é razão, a razão humana não pode


se ocupar dele. A Divindade deixa de ser o
grande tema teórico do homem no final da Idade
Média, e isso o separa de Deus. A razão volta-se
para os objetos aos quais é adequada, aqueles
que pode alcançar. Quais são eles? Antes de
tudo, o próprio homem; em segundo lugar, o
mundo, cuja maravilhosa estrutura começa a ser
descoberta então: estrutura não só racional, mas
matemática. O conhecimento simbólico a que o
nominalismo nos levou se adapta à índole
matemática da natureza. E esse mundo
independente de Deus – de quem recebeu seu
impulso criador, mas que não tem de conservá-lo
– transforma-se no outro grande objeto para o
qual se volta a razão humana, ao se tornar
inacessível à Divindade. O homem e o mundo são
os dois grandes temas: por isso o humanismo e a
ciência da natureza, a física moderna, serão as
duas ocupações magnas do homem
renascentista, que se encontra afastado de
Deus.

Vemos, pois, como toda a história da filosofia


medieval, tomada em suas três questões mais
profundas, a da criação, a dos universais e a da
razão, conduz unitariamente para essa nova
situação com que se encontra a metafísica
moderna.

Fonte: Julián Marías, História da Filosofia,


Martins Fontes, 1ª edição, págs 147-150.

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