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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Por

Thiago de Assis Passos

O ENIGMA DE KASPAR HAUSER


RESENHA DO FILME

Trabalho apresentado em cumprimento às


exigências da disciplina PGE III, ministrada pela
professora Ana Lúcia Novais Carvalho no curso
de graduação em Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro
Julho/2011
P
asseando pelas diversas páginas que se encontra facilmente na Internet hoje em dia,
me deparo com uma citação feita pelo filósofo empirista John Locke: “Sempre
considerei as acções dos homens como as melhores intérpretes dos seus
pensamentos." O filósofo, seguidor do Empirismo, que atribuía grande importância à percepção
humana na produção da sabedoria e portanto, considerava o sujeito uma tabula rasa, preenchida
conforme suas experiências singulares no mundo que o rodeia, é perfeito para começar este
trabalho.

O filme de Werner Herzog, “O Enigma de Kaspar Hauser”, filmado em 1974 se


basea numa história real passada na Alemanha do século XIX. Para o Empirismo, vale a
premissa de que nada seria a prática se não fosse a observação. Contudo um ser humano ainda
seria um ser humano sem contato com outro humano em sua vida?

Kaspar Hauser era um jovem de cerca de quinze anos quando foi encontrado em
1928 numa praça em Nuremberg portando apenas uma carta endereçada anonimamente ao
capitão da cidade explicando a sua história e alguns outros objetos que viriam a lhe caracterizar
como um membro da nobreza. O rapaz não sabia pronunciar qualquer palavra e muito mal
conseguia andar. Nessas condições, sem saber falar ou andar, é impossibilitado de articular
raciocínios, pois estes seriam produzidos através da linguagem, ainda que em pensamento.
Conseqüentemente, também estava sendo privado de interagir fisicamente com o novo ambiente.

Segundo a carta que estava em sua mão, o rapaz desde o nascimento foi mantido
numa espécie de cativeiro onde nunca teve contato com outro ser humano. Basicamente mantido
a pão e água que lhe eram deixados durante a noite, enquanto dormia, por um senhor. No filme,
seu pai.

Nesse momento o espanto de Kaspar com o mundo, que acabara de descobrir e


ignorava completamente, aparentemente era tão grande quanto o do mundo ao conhecer pessoa
singular como ele. Uma verdadeira tabula rasa, como diria Locke? De qualquer maneira, um ser
humano fisicamente formado que desconhecia o significado das coisas no mundo, inclusive de si
próprio chamou a atenção da sociedade do período.

O filme em si, traz uma reflexão sobre a influência da linguagem e do histórico


cultural na percepção da realidade. Isto é, as coisas que aprendemos (gramática, lógica
matemática, religião, conhecimentos históricos, comportamentos culturais e etc) afetam a nossa
capacidade de compreender os fenômenos que nos circundam, pois, ao associarmos uma idéia a
uma palavra ou a uma imagem, estamos limitando o significado da idéia em função de uma
definição restrita. As idéias passam a expressar só o que as palavras e imagens conseguem
expressar, e não sua abrangência original. Nesse filme podemos perceber a estreita relação entre
língua, pensamento, conhecimento e a própria construção social da realidade.

Kaspar não pôde participar dos acordos lingüísticos acerca do mundo e se nossa
capacidade de conhecer o mundo estaria ligada à nossa capacidade de interagir, Kaspar também
não pôde conhecer o mundo antes de ter acesso à linguagem. Ele só pode percorrer um caminho
inverso: a interação sempre precária depois do cativeiro o leva a um processo de conhecer
sempre turvo por se basear em fatos que não pôde experienciar apriori. Sem passar pela práxis,
Kaspar Hauser passa a conhecer o mundo através da linguagem, mas, mesmo assim, este mundo
lhe parecerá sempre estranho, sempre envolto em uma cortina e é assim inclusive que Herzog
inicia seu filme.

Depois de certa passagem do tempo, Kaspar Hauser toma conhecimento da


linguagem e começa enfim, depois de uma atraso de cerca de 15 anos, a interagir com o mundo.
Como já dito, o mistério de sua origem atraiu a atenção dos outros, que o viam como uma
“aberração”. Isso leva Kaspar demonstrar sentir-se totalmente excluído, não reconhecido pelos
outros. Com o desenvolvimento da linguagem, Kaspar passa a perceber que o que interessava aos
demais eram os enigmas em torno de sua história pessoal e não sua pessoa e isso meio que lhe
serve de impulso para escrever suas memórias em uma busca, uma busca do conceito de
autocompreensão, conhecer a si mesmo.

Pouco tempo após sua chegada à Nuremberg, Kaspar sofre um primeiro atentado
que é precedido de outro, que culminaria em sua morte. No filme somos levados a acreditar que
seu próprio pai seria o autor de tais atentados devido à fama conquistada, sendo esta perigosa em
consideração da atenção que Kaspar trazia de todos para sua origem enigmática. Kaspar Hauser
foi assassinado com uma facada no peito e na realidade, o autor desta facada nunca fora
encontrado, se tornando o fato mais um dos vários mistérios que a vida deste personagem trazia.
Após sua morte, seu corpo se tornou objeto de estudo na busca de correlações entre seu
comportamento e sua biologia. Seu cerebelo foi identificado como parte mais desenvolvida de
seu cérebro assim como o hemisfério direito. Isso poderia nos esclarecer sua habilidade musical
desenvolvida, como mostrada no filme.

O filme relativiza a situação de Kaspar Hauser: estaria ele num déficit intelectual
para com a sociedade, já que não teve a oportunidade de aprender sobre o mundo e amadurecer
conceitos em sua mente? Ou teria ele uma percepção mais aguçada da realidade, pelo fato de não
ter limitado suas idéias a palavras e imagens que sacrificam o sentido dos conceitos? Ouviria ele
os "gritos amedrontadores" que nós não ouvimos, conforme Herzog coloca no início de seu
filme: "Vocês não conseguem ouvir esses gritos amedrontadores que habitualmente chamam de
silêncio?"

A história do filme de fato é bastante interessante, nos faz lembrar grandes


clássicos como “Mogli, o menino lobo” ou o Quasimodo de Vitor Hugo em seu “O Corcunda de
Notre Dame”. Contudo esses outros personagens tiveram contato com o mundo, ainda que sendo
apresentados ao mundo numa visão e perspectiva diferente da humana, no caso de Mogli ou
mesmo tendo o contato com o mundo e a sociedade filtrados como o corcunda Quasimodo.
Kaspar teoricamente não tinha contato algum com qualquer outro ser além das paredes de seu
cárcere. Sendo assim, como explicar o fato dele saber manusear tão bem objetos como copos e
pratos, o que indicaria um nível subjetivo de significação de tais objetos. Se Kaspar não sabia
nem mesmo se perceber como um indivíduo, não sabia o significado do pronome eu, ele no filme
é claramente, mesmo antes de se ver livre do cativeiro, retratado como conhecedor dos limites do
externo (o mundo conhecido, seu cativeiro assim como os objetos que lá se encontravam). Soa-
me estranho e mais surreal que Salvador Dali o fato de Kaspar Hauser manusear objetos tão bem
como qualquer um sem nem mesmo se identificar como sujeito.

O filme, na tentativa de tentar conter toda a discussão filosófica se torna lento e


maçante muitas vezes. Sim, o filme é da década de 70, mas não podemos esquecer que na sala do
cinema ao lado deviam estar Travolta e seus “Embalos de sábado a noite”. Portanto o fato de ser
antigo não se caracteriza como desculpa para não prender nossa atenção.

Ao todo, no filme, os mistérios de Kaspar Hauser e sua enigmática origem e fim


nos fazem parar, assistir e pensar. Pensar também a respeito de para quais ações deveria-mos
olhar e refletir a respeito dos pensamentos por detrás delas: as de Kaspar Hauser, um homem
incomum que descobriu tardiamente que em comparação com seu anterior enclausuramento nem
mesmo o céu poderia ser caracterizado como o limite; ou de seu suposto pai, que foi o primeiro a
lhe impor o diferente como única opção e a ignorância como sua prisão cativa?!

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