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Revista Tempos e Espaços em Educação, UFS, v. 3, p. 9-22, jul./dez.

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Algumas considerações sobre educação em Jean-Paul Sartre

Walter Matias Lima

Resumo
O artigo pretende identificar a relevância do tema: educação e razão dialética, em algumas obras de Jean-
Paul Sartre. Essa abordagem será permeada pela problematização das noções de razão dialética, práxis e
antropologia, como as entende Sartre. Nossa intenção é mostrar a relação entre razão dialética e dialética da
práxis e o contributo dessa relação para a prática educativa, a partir da concepção sartriana de antropologia.
Partindo do aporte sartriano, compreendemos a educação como totalização que se traduz em projeto pedagógi-
co que visa educar para a liberdade pela liberdade, desde que esta seja uma finalidade que se realize nas
condições sócio-históricas e existenciais da práxis individual e coletiva. Assim sendo, a educação contém, como
tessitura, a revolta, isto é, o poder (através do educador, do educando e das instituições) de protagonizar, sem
quaisquer tipos de retraimentos e coerções, valores dos projetos pedagógicos e, entre estes, a efetivação da
liberdade.
Palavras-chave: Sartre; Práxis; Educação; Dialética.

Some commentaries on education in Jean-Paul Sartre

Abstract
The article aims to identify the relevance of the issue: education and dialectical reason, in some works of Jean-
Paul Sartre. This approach will be permeated by questioning the notion of dialectical reason, practice and
anthropology, as Sartre believes. Our intention is to show the relationship between dialectical reason and
dialectics of praxis and the contribution of this relationship to educational practice, from the design sartriana
of anthropology. On the intake sartriano we understand education as aggregation leading to pedagogical
project aimed at educating for freedom for freedom, since it is a purpose to carry out socio-historical conditions
and existential practice of individual and collective. Therefore, education contains as fabric, the revolt, that is,
the power (through the teacher, the student and institutions) to play without any kind of withdrawal and
constraints, values and educational projects, among these, the realization of freedom.
Keywords: Sartre; Praxis; Education; Dialectical.
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1. Por que a revolta? nas; e, tendo preservado o sentido latino de “retornar”


e “trocar”, implicam um desvio que será assimilado a
Quando nos interrogamos sobre a revolta no mun- uma rejeição da autoridade. Assim sendo, no fran-
do contemporâneo, na literatura e na filosofia con- cês do século XVI, “révolter” é puro italianismo e sig-
temporâneas, a experiência de Jean-Paul Sartre é nifica “virar”, “desvirar” (revoltar o rosto para o lado).
indispensável. Portanto, nosso intento é apresentar No século XVI, a palavra não comporta a noção de
algumas “linhas de fuga” do pensamento sartriano força, mas indica estritamente a oposição: no senti-
que, ao nosso ver, contribuem para pensar a relação do de abjurar, desviar-se. Contudo, o sentido históri-
entre educação, razão dialética e o tema capital da co e político da palavra se fixam no século XVII e no
obra sartriana: a liberdade. início do século XVIII: Voltaire, em O século de Luis
No nosso entender, a educação é a práxis que aju- XIV, emprega “revolte” como “guerra civil”, “pertur-
da os homens a sair de sua inércia – da inércia da bações” e “revolução”.
serialidade, levando os a totalizar eles próprios suas O verbo latim revolvere aponta sentidos intelec-
respectivas práxis em vez de sofrerem “a totalização tuais: “consultar” ou “reler”. “Révolution” passa em
reificada”, “alienada” do prático inerte. Assim, francês para o vocabulário científico, pois na Idade
desmistificar e reunir e não esquecer nossa presença Média, “révolution” imprime o final de um tempo
concreta, nossa experiência psíquica, nem o momen- “révolu” (passado).
to concreto da história em que nos encontramos, Portanto, a polivalência de sentidos, contidos no
mantendo um questionamento permanente, é o que transcurso da palavra “révolte”, mostra que o termo
põe uma atividade pedagógica como prática-revolta vai além do sentido político que tomou nos dias de
que se quer, também, desmistificadora e que se inse- hoje. A revolta, às vezes, desvia-se segundo a histó-
re numa prática política que se recusa como ria. Nós é que temos que realizá-la.
espetacularização da vida e da morte, ensejando um Partiremos do seguinte pressuposto: uma prática
processo dialético de superação das condições ideoló- educativa, que prime pela formação de uma práxis
gicas e alienantes em que se encontram os sujeitos individual autônoma e livre, só existe ao preço de uma
do processo educativo. revolta, por uma educação-revolta e por um indiví-
O lingüista Alain Ray, em seu livro Révolution, duo historicamente situado e, sendo assim, por uma
histoire d’un mot, traça o percurso etimológico e se- atividade educativa e pedagógica que busca a realiza-
mântico da palavra “revolte”: revolta 1. ção da liberdade como condição de humanização do
A primeira perspectiva está direcionada para a homem. Nenhum de nós se satisfaz sem enfrentar
questão do movimento. O verbo latim volvere, está um obstáculo, uma proibição, uma autoridade, uma
na origem de “revolte”, termo que, no início, não se lei que nos permita nos avaliar, autônomos e livres.
relaciona à política. Tendo as seguintes derivações: A revolta que se revela, acompanhando a experiência
“courbe” (curva), “entourage” (ambiente), “tour” (cir- íntima da aprendizagem é parte integrante do pro-
cuito), “retour” (retorno). cesso educativo. Precisamos de uma educação-revol-
No italiano, nos séculos XV e XVI, volutus, voluta ta numa sociedade em que se vive, desenvolve-se e
sugerem a idéia de um movimento circular e, por não estagna. Se essa cultura não existisse em nossa
extensão, de um retorno temporal. Ver, por exemplo, vida, seria o mesmo que deixar essa vida se transfor-
“retournement” (reviravolta). mar numa vida de morte, isto é, de violência física e
Na acepção moderna da palavra, aparece o seguin- simbólica, de barbárie. Há urgência em desenvolver
te: “révolter” e “révolte”, oriundas de palavras italia- essa perspectiva educativa a partir de nossa herança

1 Ver também o livro de Julia Kristeva: Sens et non-sens de la revolte. Paris: Arthéme Fayard, 1996, do qual tiramos as
principais indicações sobre o tema da revolta em Sartre.

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cultural, ética e estética e encontrar para ela novas viveu em sua experiência a intersubjetividade e o
variações. Hoje, uma experiência da revolta, como projeto fundamental que a define; auto-afirmação
instância educativa, pode nos livrar da robotização frente ao ser acabado, vontade de chegar a ser; com-
da humanidade que nos ameaça. promisso com os empreendimentos concretos em
Nosso mundo moderno atingiu um ponto de seu nome do absoluto do projeto fundamental de deter-
desenvolvimento, em que certo tipo de educação, de minar a existência a partir do futuro, em função de
cultura e de arte, se não toda a educação e toda a uma comum exigência de sentido e de considerar o
cultura, está ameaçada; muitas vezes, impossibilita- passado apenas como o conjunto de condições sobre
da. Certamente, não a cultura-show, nem o que está as quais devemos tomar apoio para intentar-nos a
se configurando nos moldes neoliberais como educa- nós mesmos.
ção-show, ou a educação-informação consensuais Em Sartre, esta referência ao absoluto de nosso
favorecidas pelas mídias, mas justamente a educa- projeto fundamental se resume como a aposta de
ção-revolta ou a cultura-revolta. E quando essas se Pascal: existe ou não Deus? Pascal apostou em sua
produzem, acontece que mostram formas tão insóli- existência, pois, no caso de existir, ganhava tudo e,
tas e brutais que seu sentido parece perdido para aque- no caso de não existir, nada perderia. Sartre, por sua
les que estão inseridos no processo educativo. Com vez, investiu a favor de seu absoluto, do absoluto do
isto, cabe a nós sermos os doadores de sentido, os homem, à possibilidade da autodeterminação, a par-
intérpretes. Assim sendo, compreendemos a revolta tir do futuro: ou a vida não é nada ou é tudo! Assim,
como transgressão da proibição, como repetição, segundo Sartre, consiste concretamente em decidir-
perlaboração e elaboração da experiência educativa e mos perder a vida antes de submetê-la ao absurdo.
como deslocamento, combinações e jogos dos diversos Esta aposta, contudo, apenas pode justificar-se medi-
sentidos que construímos através da atividade ante uma referência absoluta como ponto de apoio
educativa e pedagógica. para ensejar-lhe sentido em cada uma das situações
Em relação a Jean-Paul Sartre, uma das marcas cotidianas. O incondicionamento de nossas tomadas
do tema da revolta está na sua constante perspectiva de posição radica, segundo Sartre, em nos experimen-
interpretadora, e entendemos a interpretação como tarmos responsáveis por nossa superação em função
um ato de revolta, de reconstruir significativamente de um futuro homem que devemos inventar: o que
uma experiência. Assim, podemos dizer que uma das importa é a libertação do homem e, em função dessa
características da revolta, para Sartre, é revelar a libertação, sempre haverá algo que fazer.
singularidade da experiência através da interpreta- O pensamento sartriano põe em jogo, desta ma-
ção filosófica e literária, mostrando que a liberdade neira, uma dialética entre o otimismo da liberdade e
só existe ao preço de uma revolta. Que a práxis indi- o pessimismo de nossa contingência, entre a humil-
vidual (na nossa perspectiva, quando atravessada pela dade que deve acompanhar o reconhecimento de nos-
atividade educativa) enseja a dinâmica da so ser situado e o orgulho de nos reconhecermos agen-
inteligibilidade da história, assim como a busca da tes da história, entre a desesperança, à qual nos con-
liberdade. vida nossa situação, e a esperança que brota da situ-
Cremos que uma maneira de compreender o tema ação, entre o impossível de nossas vãs ilusões e o pos-
da revolta, em Sartre, é através de sua noção de li- sível de nossas pequenas ações. Dessa maneira, seu
berdade situada, o que passamos a mostrar a seguir, pensamento se revela como uma ética da práxis his-
apresentando uma perspectiva do transcurso dessa tórica que em seu dinamismo se orienta, não a um
temática na obra do filósofo. Certamente, a experiên- inerte universal já realizado, senão à universaliza-
cia pessoal de Sartre se revela como uma situação, ção do ser humano situado.
como uma luta por situar se dentro da situação com A intencionalidade ética de Sartre se comprova no
o fim de superá la. Esta experiência, contudo, não é fato de que a primeira obra que ele anunciou, inicial-
tão pessoal, tão alheia ao comum dos mortais. Sartre mente, mas que nunca publicou, foi um tratado de

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moral. Apenas em 1975, deram-se a conhecer alguns xismo dogmático”, que tem absorvido o homem na
fragmentos desta obra. É possível que sua não publi- idéia, Sartre pensa em um “marxismo existencialista”
cação se deva à necessidade que tinha Sartre de es- que busca o homem onde quer que se encontre, em
clarecer previamente a correlação liberdade-situação seu trabalho, em sua casa, na rua. Isto lhe permite
implicada em sua visão do homem. O problema da entregar-se a uma análise das condições reais de todo
práxis só podia ser enfrentado depois desse esclareci- empreendimento humano, em termo de uma ética da
mento. história, para oferecer ao homem concreto, como agen-
Liberdade, situação e práxis constituem, de acor- te da história, elementos para controlar a práxis em
do com o que foi dito antes, as categorias que expres- função de uma superação afetiva da contingência
sam o problema sartriano. Elas estão em todas as humana revelada em sua ontologia.
suas obras, mesmo que não seja com o mesmo peso. Como abordar o homem como liberdade situada?
Assim, até L’Être et le Néant (1943) o interesse de Sartre encontra elementos em Husserl e em
Sartre recai principalmente sobre o tema do homem Heidegger.
como liberdade. A partir de então, até a Critique de O que Sartre busca na fenomenologia? Sartre se
la raison dialectique (1960), seu interesse se orienta refere a duas contribuições com relação direta com o
até o tema da situação. Nos últimos anos, como sín- sentido último de seu pensamento. Por uma parte, a
tese de sua trajetória, o tema da práxis ocupa o pri- intencionalidade, graças a qual lhe foi dado esvaziar
meiro lugar. a consciência de suas escorias, de seus estados, de
A reflexão sobre o homem como liberdade se de- descobrir o nada (a consciência) acossado incessante-
senvolve em dois momentos. O primeiro é de ordem mente pelo ser, escapando sempre. Por outra parte, a
psicológica e esteve orientado a libertar o homem de ferramenta indispensável: descobrimos que nos en-
todo EU (entendendo este como unidade indivisível) e contramos situados.
de toda subjetividade entendida como sujeito Sartre reconhece sua dívida frente a Husserl das
transcendental: a partir de uma análise da consciên- Idéias com sua ontologia da consciência pura; e para
cia, Sartre radicaliza sua concepção de ser. O tema Heidegger, de Ser e Tempo, com sua analítica exis-
da situação está presente nestes primeiros momen- tencial da realidade humana. Em Esboço de uma
tos, mas em termos abstratos, a saber, como estru- teoria das emoções, nosso filósofo já havia escrito:
tura de todo homem enquanto homem. O ser-corpo, o
ser-para-outro, o espaço e o tempo, entre outros, como Existir para a realidade humana é, segun-
características de toda liberdade em situação, são do Heidegger, eleger seu próprio ser em
aspectos do ser do homem que Sartre não descuida. um modo existencial de compreensão:
O tema central, contudo, é a liberdade como essência existir para a consciência é, segundo
do homem: este não é o que é; é o que não é. Husserl, aparecer-se. Porque mostrar-se
A reflexão direta sobre a situação permite a Sartre aqui é absoluto, mostrar-se que é necessá-
realizar análises concretas do homem enquanto com- rio descobrir e interrogar. Desde este ponto
prometido dentro de uma determinada situação. O de vista, em cada atitude humana – por
mundo aparece como suporte da liberdade, não o exemplo, na emoção, já que é nosso tema -
mundo como soma de coisas, mas o mundo como con- , Heidegger pensa que encontramos o todo
fluência de “situações concretas”, isto é, o mundo da realidade humana, posto que a emo-
transformado historicamente. ção é a realidade humana que elege e se
Finalmente, a práxis é abordada, desde uma crí- dirige emocionada até o mundo.
tica da razão dialética, crítica elaborada a partir de Husserl por seu lado pensa que uma des-
uma determinada concepção do marxismo que pre- crição fenomenológica da emoção trará a
tende recuperar a práxis individual como o ponto de luz às estruturas essenciais da consciên-
partida real do pensamento de Marx. Contra o “mar- cia, posto que uma emoção é uma consci-

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ência. E, reciprocamente, um problema se cogito, privando assim, a realidade humana de sua


coloca, problema que o psicólogo não pode dimensão de consciência ou concedendo-lhe uma sim-
suspeitar: cabe conceber-se uma consciên- ples “compreensão”.
cia que não restrinja a emoção entre suas Fazendo dessa forma, Heidegger formula uma
possibilidades, ou melhor, pode nela ver- ontologia naturalista da existência pré-reflexiva. De
se uma estrutura indispensável da cons- acordo com esta crítica, Sartre assume de Husserl o
ciência? Assim o fenomenólogo interro- método para descobrir a realidade humana enquan-
gará sobre a consciência e sobre o homem to consciência, centro de intenções e poder de inicia-
e perguntará não apenas o que este seja tiva, contudo na medida em que o é dentro de sua
senão se pode apreender um ser entre cujos mesma situação, pois do contrário, se alcançaria uma
caracteres haja um que seja precisamente consciência que, ao apreender-se a si mesma em
a capacidade de emocionar-se. E, inversa- oposição ao mundo, seria o que não é (coisa). De
mente, interrogará a consciência, a reali- Heidegger, nosso filósofo assume a visão da realida-
dade humana, com respeito a emoção: de humana situada no mundo, mas não como cons-
como deve ser a consciência para que a ciência que se quer apreender no mundo por fora de
emoção seja possível e inclusive para que toda reflexão; ao contrário, à consciência só seria
seja necessária? (SARTRE, 1995, p. 77-78). dado descobrir a impossibilidade de ser o que ela é
(consciência).
Este texto sintetiza o que Sartre considerou de Sendo assim, Sartre se esforçou por realizar uma
essencial em um e outro filósofo e a diferença entre os complementação na oposição entre Husserl e
dois. Seu pensamento já tinha se formado definitiva- Heidegger; uma ontologia que pensará a presença da
mente como para receber a influência posterior de consciência a si mesma como inseparável de uma
Husserl do mundo da vida ou do Heidegger de autêntica presença do mundo; uma ontologia respei-
Holzwege (caminho do bosque). tará a correlação da consciência e da existência, da
Interessado em uma ontologia da consciência em intencionalidade e de suas motivações, da liberdade
situação, Sartre radicalizou as oposições entre Husserl que se afirma, quando a intencionalidade lhe confere
e Heidegger com o propósito de alcançar uma com- sentido às motivações, mas que se nega quando as
plementação na oposição. Desde este ponto de vista, motivações se convertem em simples causas da
também seguiu um caminho diferente ao de Merleau- intencionalidade.
Ponty. Este se interessou a harmonizar os dois filóso- Resumindo, o método sartriano para a análise do
fos em prol de uma síntese. Poder-se-ia dizer que homem em situação pretende ser um método
Sartre toma de Husserl o método de investigação; e fenomenológico que, simultaneamente, permite opor,
de Heidegger, a realidade humana como objeto desta à tendência husserliana, a consideração da existên-
investigação. Mas o faz de forma crítica. cia das essências, e à tendência heideggeriana, a con-
Assim, Sartre considera que Husserl se limitou a sideração da essência da existência.
descobrir o cogito em seu aspecto funcional, descar- A aplicação desse método conduzirá Sartre a uma
tando o problema existencial para não cair no erro ambígua dualidade das essências: o ser em si da cons-
substancialista de Descartes. Ao não transcender a ciência e o ser em si das coisas, dualidade de termos
pura descrição da aparência enquanto tal, ficou pre- que simultaneamente deixam em descoberto sua in-
so ao cogito. Portanto, nas Idéias só podemos encon- suficiência: o “ser em si” em sua contingência se é
trar uma ontologia artificial da consciência pura des- suficiente a si mesmo, mas não pode justificar sua
ligada do mundo; por conseguinte, de uma consciên- presença, sua possibilidade de “aparecer a” a consci-
cia que não existe. Heidegger, por sua vez, ao querer ência; o “ser para si”, por sua vez, se é suficiente
evitar o fenomenalismo de Husserl, realizou, de for- enquanto consciência para si teórica, mas não pode
ma direta, a análise da existência sem passar pelo justificar sua própria existência.

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2. Consciência e liberdade A consciência unifica a si mesma e, concretamente,


por um jogo de intencionalidades “transversais” que
A reflexão de Sartre sobre o homem como liberda- são retenções concretas e reais de consciências pas-
de se desenvolve em dois registros, como já vimos: o sadas. Em outros termos, é a consciência que é prin-
primeiro, registro psicológico, orientado a libertar o cípio de unidade para si, operando-se essa unificação
homem de todo “eu” e de toda subjetividade de ten- no objetivo que a define, isto é, a intencionalidade
dência substancialista. O segundo registro, ontológico, aplicada a um objeto transcendente ou a uma vivência
orientado a esclarecer o sentido do ser, tanto do ser passada que por natureza a consciência capta como
da consciência como do ser do mundo e a esclarecer a própria.
relação entre um e outro: “a primeira tarefa de uma Na consciência, não se encontra, por conseguinte,
filosofia deve ser... expulsar as coisas da consciência nenhum sujeito: nem o psicológico que, de acordo com
e restabelecer a verdadeira relação desta com o mun- a redução, é um objeto transcendente para a consci-
do, a saber, a de que a consciência é consciência ência; nem o transcendental, que apenas é uma fic-
posicional do mundo” (SARTRE, 1957, p. 18). ção operada a partir do sujeito psíquico. A consciên-
Os escritos sartrianos anteriores a L’Être et le cia se define a partir de si mesma e não a partir de
Néant são dedicados à tarefa de expulsar todos os uma realidade ou uma substância: ela é existência
objetos da consciência e afirmar a falta de uma pura; em si mesma, não é nada. Daí que ela não ofe-
interioridade no homem: não haveremos de nos des- reça um âmbito interior que possa ser circunscrito
cobrir em algum retiro, senão no caminho, na cida- mediante a inspeção e que dê lugar a algo que a defi-
de, em meio da multidão, entre as coisas, entre os na como uma realidade distinta do mundo. A causa
homens. Desta época, interessam-nos as seguintes disso: o conhecimento não pode ser concebido como
obras: La Transcendance de l’ego: esquisse d’une um processo de assimilação da exterioridade por uma
description phénoménologique (1936), Esquisse d’une interioridade: o mundo não entra na consciência. Pelo
théorie des émotions (1939) e L’Imaginaire (1940). contrário, a consciência se define por sua presença ao
Sartre parte da idéia husserliana da mundo e por sua fuga de uma falsa interioridade co-
intencionalidade: a consciência é, sempre, consciên- migo mesma: a consciência não tem um “dentro”,
cia de algo, ou seja, ela não existe mais que no mun- não é senão o fora de si mesma, e essa fuga absoluta,
do. Se isto é assim, é possível chegar à essência do essa negativa a ser substância, é o que lhe constitui
homem a partir da análise fenomenológica de consci- como consciência.
ências ou condutas concretas. Toda conduta humana Que significa, então, existir para uma consciên-
é conduta do homem no mundo. Por conseguinte, ela cia que em si mesma é nada? “Existir” para a cons-
pode entregar, por sua vez, o homem, ao mundo e à ciência não tem o sentido corrente do termo, ou seja,
relação que os une, à condição de que consideremos pertencer à ordem da realidade em oposição à ordem
estas condutas como realidades objetivamente das possibilidades puras. A consciência não é uma
apreensíveis e não como afetações subjetivas que se parte do mundo, é intenção até o mundo. O “existir”
descobririam apenas ante o olhar da reflexão. Sartre aponta aqui à espontaneidade, a partir da qual se
escolhe inicialmente duas condutas – emoção e imagi- constitui o mundo como objeto de todas as intenções e
nação – para esclarecer esta característica humana. significações.
Nas Idéias, Husserl tinha ido mais além do sujei- Enquanto espontaneidade, a consciência “determi-
to empírico até um sujeito transcendental, com o fim na a existência a cada instante, sem que possa conce-
de explicar a unificação e a individuação da consciên- ber-se nada previamente a ela. Assim cada instante
cia. Sartre, em La Transcendance de l’ego, sustenta de nossa vida consciente nos revela uma criação ex
a inutilidade deste recurso, pois, para ele, a unidade nihilo. Não um ordenamento novo, mas uma exis-
da consciência, mediante a qual se capta um objeto, tência nova” (SARTRE, 1978a, p. 74). Esta esponta-
pode ser explicada a partir da mesma intencionalidade. neidade equivale à liberdade pura, isto é, poder de

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auto determinação. A liberdade, por conseguinte, não primeiro lugar, o mundo real, ainda que possua uma
é uma qualidade da consciência senão que é a exis- consistência, pode ser negado: a consciência pode as-
tência anterior a toda determinação. sumir frente a ele uma distância que lhe permite
Esta liberdade, contudo, não se exerce fora do viver no mundo elegido por ela mesma; mundo fictí-
mundo, posto que o mundo é aquilo com respeito ao cio, sem dúvida, mas que revela como a consciência é
qual a consciência é criada. Sem ele não haveria cons- poder de negação do real. Em segundo lugar, as con-
ciência. A liberdade é, portanto, uma liberdade es- dutas da consciência são conscientes ainda que se-
sencialmente situada. Mas por sua liberdade, a cons- jam reflexivas.
ciência foca, no mundo, possibilidades e sentidos que A análise da imaginação confirma esta liberdade
este não possui por si mesmo: a escolha livre da cons- que define a consciência: a imaginação é a consciên-
ciência sobre si mesma é, ao mesmo tempo, uma es- cia toda inteira enquanto que ela realiza sua liberda-
colha sobre o mundo: “o possível, portanto, não pode de. Os objetos imaginados nunca têm a consistência
vir ao mundo senão por um ser que é sua própria dos objetos reais. A consciência da cadeira em ima-
possibilidade” (SARTRE, 1957, p. 144). gem me ensina que a consciência não é uma
Para explicar essa consciência livre, livre ante toda interioridade, onde se guardam, como simulacros, as
subjetividade e interioridade, Sartre descreve imagens das coisas. Ela é um modo de ser da mesma
fenomenologicamente a emoção e o imaginar, trans- cadeira que se dá na minha percepção. Se a consciên-
cendendo-os como simples fatos psíquicos, para que cia é intencional, imaginar não é possuir na consci-
se manifestem como duas maneiras de existir, isto é, ência algumas imagens, mas uma maneira de es-
como duas possibilidades de eleger-se e compreender preitar o objeto, ou seja, sob a modalidade da ausên-
a consciência e, portanto, como duas formas de ele- cia, modo, essencialmente, diferente ao da percepção
ger e compreender o mundo. para a qual o objeto se dá, segundo a modalidade da
A emoção, por exemplo, não é um acidente; e sim, presença. Imaginar Pedro em Campinas, não é for-
um modo de existência da consciência, uma de suas jar uma realidade fantástica que substitua a presen-
maneiras de compreender seu ser no mundo. Apenas ça de Pedro, mas ter consciência da ausência de
quando se estabelece esta significação, haverá lugar Pedro: enquanto me aparece em imagem, este Pedro
para as análises empíricas do psicólogo. Mediante a presente em Campinas me aparece como ausente.
emoção, a consciência transforma irreflexivelmente O ato de imaginar revela que a consciência é ao
um objeto ao não poder adaptar-se a ele: o mundo mesmo tempo poder negador do mundo e consciência
real é substituído por um mundo fictício, mágico, no do mundo. Ela pode conceber outro mundo que é a
qual desaparecem essas dificuldades. Desta manei- negação do mundo real. Ao fazê-lo, põe de manifesto
ra, a emoção é um jogo, mas um jogo no qual nós seu caráter livre: para que uma consciência possa
criamos. O desvanecimento, por exemplo, que um imaginar, é necessário que ela escape do mundo por
homem sofre ante um animal feroz é um “refúgio”, sua mesma natureza, é importante que ela possa to-
uma evasão ante uma situação real, evasão que não mar distância em relação com mundo. Em uma pa-
consiste simplesmente em uma desordem fisiológica, lavra, é essencial que ela seja livre. No entanto,
mas em uma conduta que tem toda sua significação encontramo-nos ante uma liberdade situada: eu só
em uma intenção “negadora” da consciência: ante a posso imaginar a partir da motivação concreta e pre-
impossibilidade de evitar o perigo pelas vias normais cisa de uma situação que exclui o objeto mencionado
e os encadeamentos deterministas, nego esse perigo. de tudo que realmente me é acessível: porque Pedro
Quero aniquilá-lo. não pode estar atualmente presente, eu o posso dar
A urgência do perigo tem servido de motivo para como ausente.
uma intenção aniquiladora determinante de uma con- Uma imagem, dirá Sartre, não é o mundo-nega-
duta mágica. Duas são as conclusões fundamentais do, pura e simplesmente, ela sempre é o mundo ne-
às quais chega Sartre em sua análise da emoção. Em gado desde um determinado ponto de vista.

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Ao término das análises de sua psicologia a partir da consciência. Ela será a ontologia de uma
fenomenológica, Sartre crê haver expulsado da cons- consciência que, ao querer-se apreender como oposta
ciência todo eu, toda interioridade, todo objeto. A cons- ao mundo, deve fazer-se o que ela não é e que, na
ciência livre não é nada e, como nada, é liberdade. medida que se apreende sobre o mundo, mais além
Desde um ponto de vista negativo, o poder da consci- de toda reflexão, descobre a impossibilidade de ser o
ência livre se manifesta como poder de negação do que ela é.
mundo, da situação real dentro da qual se encontra o A necessidade desta ontologia se impõe, caso te-
homem. Desde um ponto de vista positivo, a consci- nhamos em conta que o mundo, como correlato da
ência pode regressar livre e criadoramente ao mun- consciência, o é de tal forma, que a consciência facil-
do, à situação para valorizá-la e dar-lhe sentido. Todo mente se esquece de si mesma em benefício de um
o anterior significa que ser livre, e ser em situação mundo objetivado e converte suas valorizações em
são a mesma coisa: a situação de um ser é sua exis- simples constatações e sua presença, em um simples
tência superada e feita significante por sua liberda- olhar os objetos como determinados em si mesmos e
de; correlativamente, a liberdade de um não pode, possuidores por si mesmos de um sentido que só lhes
por conseguinte, consistir em escapar a toda situa- pode ser outorgado pela consciência.
ção, senão na superação de sua existência bruta até O ser em si. A consciência é consciência de algo
uma situação. que lhe é transcendente. Por conseguinte, não tem
Em L’Être et le Néant, Sartre sistematiza e escla- sentido a pergunta sobre como o ser do objeto se dis-
rece os temas alcançados através da psicologia tingue do ser da consciência: “ser consciência de algo
fenomenológica. A psicologia de tradição clássica quis é estar ante uma presença concreta e plena que não é
explicar a realidade humana como uma coleção de a consciência” (SARTRE, 1957, p. 27).
dados observados, como um conjunto de qualidades Contudo, o ser não se entrega inteiramente em
hereditárias ou como uma substância sujeito de aci- cada uma de suas manifestações: ele se anuncia no
dentes chamados fatos psíquicos. Sartre, com sua psi- fenômeno em forma transfenomenal como um mais
cologia fenomenológica, buscou uma compreensão além do fenômeno. Daí que todo fenômeno, que por
eidética da realidade humana, a partir da análise de definição é um “ser para a consciência”, seja ao mes-
condutas particulares enquanto fenômenos mo tempo um “ser em si”. Ele é para a consciência só
significantes da realidade humana em sua totalidade. enquanto não é consciência, enquanto é aquilo que a
O aporte fundamental de L’Être et le Néant foi pôr consciência não é. Por conseguinte, quando se fala do
de manifesto o ser da consciência, que a este ser “ser em si”, se quer afirmar que o ser que se dá à
corresponde um “dever ser”: a consciência como exis- consciência como fenômeno, se dá como possuindo em
tência livre corresponde a formulação de um projeto si mesmo seu sentido de ser e seu fundamento. O ser
que lhe permite transcender o real, sem “aliená-lo, até se cria então a si mesmo? Não podemos afirmar, pois
um sentido e transcender o ato puro de negação, que a isto implicaria a utilização de categorias que só se
caracteriza, até o valor e a consistência deste ato”. aplicam ao homem, isto é, as categorias de atividade e
Toda consciência é consciência de algo: “isto sig- passividade. Do ser só se pode dizer que “é em si”, ou
nifica que a transcendência é estrutura constitutiva seja, que é idêntico a si mesmo e pleno de si como o ser
da consciência” (SARTRE, 1957, p. 28). Portanto, se de Parmênides: ele é simplesmente, sem necessidade
quisermos descobrir a estrutura da consciência, te- de nenhuma razão: “Isto é o que a consciência expres-
mos que fazer referência às atitudes fundamentais sará – em termos antropológicos – dizendo que o ser
do sujeito motivadas pelo mundo. está de mais, ou seja, que ela não pode de modo algum
De acordo com isto, uma ontologia fenomenológica derivá-lo de nada nem de outro ser, nem de um possí-
teria como objetivo esclarecer a ambigüidade do ser: vel, nem de uma lei necessária. Não criado, sem razão
do é de uma presença (a consciência) que não é um de ser, sem relação alguma com outro ser, o “em si”
“em si” e do é de um “em si” (mundo) que só é definível está eternamente de mais” (SARTRE, 1957, p. 34).

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Para Sartre, a consciência não pode explicar este Sartre a denomina “o ser para si”, porque é livre e,
ser “em si”. Na esteira heideggeriana, considera que por conseguinte, porque propõe “a ser”, ela não ape-
a consciência compreende de forma imediata sua si- nas “e o que não é” com respeito ao “ser em si”, como
tuação sem necessidade de uma explicação: o fenô- também com respeito a si mesma.
meno de ser, como todo fenômeno primeiro, se desve- A unidade do em si e do para si. Como poderíamos
la imediatamente à consciência, através de meios “de pensar unilateralmente estas duas regiões do ser?
acesso imediato (como) o tédio, a náusea, etc.” “Se o “em si” e o “para si” são modalidades do ser, não
(SARTRE, 1957, p. 14). Recordemos Roquetin em La haveria um hiato no senso mesmo da idéia do ser, e
Nausée, quando descobre o sentido concreto da pala- não estaria cindida sua compreensão em duas partes
vra “existência”: “de um só golpe a existência se faz incomunicáveis” (SARTRE, 1957, p. 715). A possibi-
presente a ele, não a existência de um determinado lidade de um pensar unitário apenas se pode dar, desde
objeto que eu posso nomear, utilizar ou definir, mas um ponto de vista do “para si”, posto que, como foi
a existência de algo absoluto, a contingência [...] Exis- dito, o “em si” não é suscetível de nenhum ponto de
tir é está aí simplesmente; os existentes aparecem, vista.
se deixam encontrar, mas nunca é possível deduzi- No olhar do fenomenólogo, o “em si” e o “para si”
los. Tudo o que existe nasce sem razão, se prolonga aparecem, de fato, como correlativos: não temos in-
por debilidade e morre por causalidade”. tuição de um “para si” separado e que por isso mesmo
O ser para si. O “ser em si”, de acordo com o que seja um puro nada, nem de um “ser em si” puro.
foi posto até o momento, não dá margem a nenhuma Quem se expresse nesses termos, estará se expres-
pergunta. Se alguma pergunta tem surgido, é por- sando em termos abstratos.
que uma alteridade, que é um não ser, introduz-se no Quando a consciência estabelece “o em si”, o faz
coração do ser. Trata-se da consciência. Se a consci- como anterior ao “para si” e anterior às perguntas
ência é algo distinto do objeto do que ela é consciên- que ela possa colocar-se, perguntas que, por certo,
cia, ela não é nada mais que consciência desse objeto, não a afetam no “em si”, não dão margem à busca de
até o ponto de que a existência do objeto significaria a uma origem do ser: “o ser é sem razão, sem causa,
não existência da consciência. Algo mais: se a consci- sem necessidade” e “todos os ‘por quês’... são posteri-
ência é consciência de algo – deste monitor, por exem- ores ao ser e os supõe” (SARTRE, 1957, p. 713).
plo – este algo é arrancado da massa de ser e consti- A consciência pode, contudo, interrogar-se sobre a
tuído como não sendo nada mais do que o que é. origem de seu próprio ser: “o ser pelo qual o porquê
Assim sendo, se segue que esse algo é um ser com chega ao ser tem o direito de colocar seu próprio por-
respeito a esse algo. Dessa maneira, a consciência é quê, posto que ele próprio é uma interrogação, um por-
triplamente fonte de não ser: com respeito a si mes- quê. A esta questão a ontologia não poderia responder,
ma, enquanto ela não é nada do objeto e enquanto ela pois se trata aqui de explicar um acontecimento e não
não é nada sem ele; com respeito ao objeto, enquanto de descrever as estruturas de um ser” (SARTRE, 1957,
a causa dela, este não é nada mais que o que é, tal p. 714). Deve-se alertar, contudo, que a resposta dada
como o expressamos nos juízos de negação; e, com constitui uma hipótese metafísica que afirma a apari-
respeito ao mundo enquanto este, como totalidade ção acidental, absurda contingente da consciência como
estruturalmente diferenciada, só se dá pelo nada. um nada que só através de suas escolhas conquista
Se quisermos saber como o ser pode estar afetado uma essência, essência que surge dessas escolhas li-
pelo nada, teremos que buscar uma explicação pelo vres enquanto ultrapassadas pela consciência: a es-
lado de uma dimensão do ser que seja portadora de sência da consciência é sua existência petrificada. Deve-
sua própria negação, já que o “ser em si” não dá lu- se sublinhar, portanto, que a consciência, ao não obe-
gar a nenhuma diferenciação ao ser idêntico a si decer a nenhum condicionamento externo, pode refa-
mesmo. Este ser, que só é graças a “ser o que não é”, zer continuamente sua essência. Neste sentido, a exis-
é a consciência livre e espontânea. Enquanto tal, tência precede a essência.

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A consciência, enquanto pergunta, é levada a in- projeto. A única lei que lhe orienta é sua liberdade:
quietar-se sobre a possibilidade de um “ser total”, isto “estou condenado a ser livre. Isto significa que não se
é, de uma síntese unitária do “em si” e do “para si”. É pode encontrar mais limites para minha liberdade que
possível esta síntese? Não, posto que se trata de ter- esta mesma, ou, se preferirmos, que não somos livres
mos que se excluem: o “ser em si” não pode conver- para deixar de ser livres” (SARTRE, 1957, p. 515).
ter-se em consciência nem a consciência em um “ser A angústia se revela, assim, como a apreensão do
em si”, pois deixariam de ser o que são. À medida que caráter inelutável da liberdade que deve decidir por
o homem aceite este projeto impossível, ele é uma si mesma o dever ser do homem:
“paixão inútil”, um esforço falido de antemão.
A liberdade. “Que deve ser o homem em seu ser Estou emergindo sozinho, e, na angústia
para que, através dele, o nada chegue a ser?” frente ao projeto único e inicial que cons-
(SARTRE, 1957, p. 60). A interrogação sobre uma titui meu ser, todas as barreiras, todos os
essência do homem parece contradizer a afirmação parapeitos desabam, nadificados pela cons-
de que a consciência é apenas existência. A contradi- ciência de minha liberdade: não tenho
ção é aparente se tivermos em conta o que se deve nem posso ter qualquer valor a recorrer
entender por essência. contra o fato de que sou eu quem mantém
A liberdade não é uma propriedade qualquer de os valores no ser; nada pode me proteger
meu ser: ela é “a textura de meu ser” (SARTRE, 1957, de mim mesmo; separado do mundo e de
p. 514). “O que chamamos liberdade não... se distin- minha essência por esse nada que sou, te-
gue do ser da ‘realidade humana’. O homem não é nho de realizar o sentido do mundo e de
primeiro, para ser livre depois, não há diferença en- minha essência: eu decido, sozinho,
tre o ser do homem e seu ‘ser livre’” (SARTRE, 1957, injustificável e sem desculpas” (SARTRE,
p. 61). A liberdade é o poder da consciência de negar o 1957, p. 77).
ser e negar-se a si mesma e, ao fazê-lo, afirma-se a si
mesma, de determinar-se, de eleger-se, de criar-se Assim sendo, Sartre vai insistir no caráter práti-
perpetuamente. Do homem livre, só se pode captar o co da filosofia: “Toda filosofia é prática, inclusive aque-
que tem sido, não o que é e o que será: “a liberdade é la que à primeira vista parece ser a mais
o ser humano colocando seu passado fora de jogo e contemplativa” (SARTRE, 1960, p. 16). O reconheci-
segregando seu próprio nada” (SARTRE, 1957, p. 65). mento deste caráter prático da filosofia aproxima
Este “por fora de jogo” meu passado, radica a possibi- Sartre ao pensamento de Marx.
lidade de contemplar meu ser passado como se já não Conceber a consciência como um elemento da na-
fosse meu ser e, portanto, a possibilidade de introdu- tureza, ou tomar literalmente que “o ser determina a
zir a descontinuidade. consciência”, é não apenas negar a liberdade da cons-
Dessa forma, o homem não é pura existência, o ciência, como também cair no idealismo que se quer
que significaria ser um existente imaterial. Ele é uma rechaçar, pois é apontar à natureza uma teleologia:
essência problemática, porque está sempre por fazer- “é certo que o ser determina a consciência, mas se
se a partir de sua liberdade: “a liberdade humana pre- tinha, em certa maneira, ‘o projeto’ de determiná-la,
cede a essência do homem e a torna possível; a essên- então voltaríamos à idéia hegeliana”. O que faz do
cia do ser humano se faz em suspenso em sua liberda- pensamento de Marx “a filosofia de nosso tempo” não
de” (SARTRE, 1957, p. 61). Aparece, precisamente, a é esse parco materialismo, mas o “ser a tentativa
angústia, esse sentido que acompanha o homem atu- mais radical de esclarecimento do processo histórico
ando sobre a situação, escolhendo-se e escolhendo li- na sua totalidade” (SARTRE, 1960, p. 29) respeitan-
vremente seu mundo, sem leis nem critérios absolu- do, simultaneamente, a especificidade da existência
tos que possa constrangê-lo em um sentido ou em ou- humana e o caráter concreto do homem em sua rea-
tro e que, por outra parte, lhe assegura o êxito de seu lidade objetiva.

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Podendo, por tudo isso, em que o existencialismo A razão dialética pode encontrar “a partir das es-
poderia influir no marxismo? Para Sartre, o marxis- truturas sincrônicas e de suas contradições, a
mo se tem detido ao fazer de seus princípios dogmas, inteligibilidade dinâmica das transformações históri-
convertendo-se em um idealismo voluntarista. O cas, a ordem de seus condicionamentos. A razão inteli-
existencialismo pode acrescentar ao marxismo uma gível da irreversibilidade da história, isto é, sua orien-
base para pô-lo em marcha, a saber, sua concepção tação” (SARTRE, 1960, p. 156). As mudanças históri-
de práxis individual, graças à qual a vida não é um cas, enquanto provenientes de uma consciência livre,
fenômeno estático, mas dinâmico. são imprevisíveis. Se elas são compreensíveis, o são
Para compreender o homem, nós temos que situá- porque são intencionais e porque podem ser integra-
lo, prontamente, no seio da totalidade, mas também das no fenômeno humano em seu conjunto: a práxis
temos que pô-lo em relação com o devir concreto: “para humana remete à totalidade da humanidade.
mim, escreve Sartre, a verdade devem, é e será no Nesse sentido, Sartre não desenvolve o método
devir. É uma totalidade que se totaliza sem cessar; dialético. Sua dialética é mais uma teoria do conheci-
os fatos particulares não são nem verdadeiros nem mento, uma lógica que pretende explicar de maneira
falsos, embora não são relacionados pela mediação não contraditória os momentos da totalização, lógica
das diferentes totalidades parciais com a totalização da ação criadora, lógica da liberdade. Para Sartre, o
em curso” (SARTRE, 1960, p. 30). homem, mediante a práxis, deve satisfazer suas ne-
Para abordar a história, como verdade que está cessidades num mundo de “escassez”. Daí que esta
em devir, temos que utilizar a razão dialética. Utili- implica privar o outro necessariamente de algo, ori-
zar a razão analítica – válida no conhecimento do ginando assim um antagonismo violento. Apesar dis-
mundo natural – seria aceitar de antemão um to, o homem pode interiorizar as situações e
determinismo que anularia a consciência como pro- reexteriorizá-las através de uma práxis orientada ao
jeto e liberdade. reconhecimento e à libertação do Outro. É este cará-
Sartre se opõe, contudo, à interpretação da dialética ter teleológico da práxis o que, finalmente, distingue
por parte do marxismo francês e soviético porque, pre- o homem do animal, tornando o homem histórico e
cisamente, esta interpretação assume que o devir his- ético.
tórico e o devir do universo poderia ser explicado a A Crítica da Razão Dialética também se coloca
partir de leis universais, expressões de uma dialética como problema estabelecer ou “deduzir” as condições
existente na natureza. Para Sartre, não é a natureza de possibilidade da história. Sartre diz que a reali-
a que procede dialeticamente como negação, negação dade da história, em sua generalidade, já está asse-
da negação e subsunção desta numa negação mais rica. gurada pelo próprio estatuto da práxis, a qual, desde
Apenas a consciência pode introduzir, através da práxis a emergência orgânica, constitui-se como capacidade
intencional, a negação no universo do ser-em-si. de superação e de totalização. Portanto, o que deve
Quais são os limites da razão analítica? A formu- ser fundado é nossa história, caracterizada pela ex-
lação das leis de tudo o é e chega a ser no mundo ploração e pela violência. O materialismo sartriano é
natural, mediante a observação, a experimentação, a rigoroso: é preciso que a possibilidade do devir dra-
redução do complexo a seus elementos simples, à de- mático da humanidade se instaure na relação práti-
dução e à síntese. Este conhecimento permite ao pes- ca primordial. Portanto, ele admite como um dado o
quisador esclarecer os fatos novos, reduzindo-os ao fato da escassez. Fornecendo previamente um con-
passado. O pesquisador pode, por conseguinte, sen- teúdo “econômico” à “guerra de todos contra todos”,
tir-se orgulhoso de sua capacidade de predição. Mas a designada por Hobbes como estado natural, Sartre
razão analítica nada pode dizer-nos acerca dos fenô- irá compreender doravante toda história como algo
menos sociais que são produtos de uma práxis que, a que se explica sobre o pano de fundo dessa carência
cada instante, cria o novo que rechaça toda instaura- radical. É nesse sentido que é interpretada a fórmula
ção de cadeias causais para sua explicação. marxista, segundo a qual os homens viveram até aqui

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sua pré-história, pois a história só terá início quando e a querer acelerar a sua ocorrência pela representa-
eles tiverem vencido a adversidade natural. ção que dele pode fazer por antecipação. A educação
É a partir da perspectiva abordada acima, que tem, dessa maneira, por significação e por tarefa,
entendemos a práxis educativa como a realização de participar na realização dos fins da história e abrir a
uma educação-revolta e efetivação de uma aborda- via às mudanças que devem necessariamente inter-
gem antropológica que põe em evidência a busca da vir na compreensão dos homens, de maneira a fazê-
liberdade e a constituição da inteligibilidade da his- las realizar.
tória. Portanto, a educação detém um papel decisivo no
Assim, insistir em uma abordagem que enfatize a desenvolvimento conjunto da civilização e da existên-
dimensão antropológica da atividade educativa possi- cia humana; enquanto o projeto social de ambas ul-
bilita descobrir que a práxis individual, no seu esfor- trapassa necessária e concorrentemente o presente,
ço incessante para se objetivar, para cumprir o proje- desafiando-o, ou seja, inculcando nele a sua presença
to de ser, apreende-se como inteligível e histórica em superadora. Tal presença será tanto mais ativa quan-
si mesma. Subjacente a esta práxis individual de ser, to mais consciente, isto é, quanto mais despertos –
há sempre uma escolha que a define precisamente pela práxis educativa – estiverem os indivíduos para
pelo seu fim, sem prejuízo de assumir um passado essa realidade evolutiva que, de uma só vez, os ultra-
que traça a situação que a envolve e a constrange no passa, os atinge e os solicita, apelando à sua partici-
limiar da historicidade, uma vez que o sujeito desco- pação num projeto que, sendo coletivo (muito embora
bre que não está sozinho. O projeto2 e a decisão que o possa ser concentrado no sujeito singular), implica a
sustém identificam a liberdade do homem enquanto adesão pessoal. Favorece ao mesmo tempo e, dessa
exprimem a sua atitude (revolta), a sua perspectiva, forma, a realização histórica das sociedades e de cada
diante de uma situação que, inevitavelmente, o ul- homem tomado como um indivíduo nelas integrado.
trapassa. E é dessa maneira que entendemos a noção de
Como podemos depreender, aparece aqui a proble- educação-revolta: uma prática educativa e pedagógi-
mática da liberdade humana na sua dimensão subje- ca que leva o indivíduo a ultrapassar, negar ou modi-
tiva e na sua relação com a necessidade objetiva das ficar os limites da sua própria condição, a saber: a
determinações históricas. Eis que ambas as situa- necessidade de estar no mundo, de aí estar com os
ções se resolvem não tanto pela imposição de um ou outros e de ser mortal. Estes limites, se são objetivos,
outro dos pólos da questão em jogo, mas precisamen- porque condicionam todos os indivíduos; são igualmente
te pela afirmação da atividade educativa do homem, subjetivos, porque são vividos por cada um e nada são
a ser exercida na prática, mas sempre assente no se o homem os não viver. Nessas circunstâncias, todo
conhecimento da verdade em toda a sua objetividade. o projeto existencial e educacional, sem prejuízo de ser
É, aliás, assim que o homem é levado a olhar o futuro individual, desfruta de um valor universal.

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Projeto entendido também como atividade educativa e pedagógica e, portanto, como projeto antropológico.

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Sobre o autor:
Walter Matias Lima é Doutor em Educação pela UNICAMP, professor do Centro de Ciências Humanas,
Comunicações e Artes da Universidade Federal de Alagoas. Professor Adjunto do Curso de Licenciatura em
Filosofia e dos Mestrados de Sociologia e de Nutrição, da mesma universidade. Coordena o Núcleo de Estudos
e Pesquisa em Ética e Ensino de Filosofia.

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