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17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA

16ª JORNADA APOIAR: ADOLESCÊNCIA E SOFRIMENTO EMOCIONAL NA ATUALIDADE

ISBN: 978-65-87596-26-6

APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE


ATENÇÃO E PESQUISA

LEILA SALOMÃO DE LA PLATA CURY TARDIVO


RILZA XAVIER MARIGLIANO
(Organizadoras)

INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CLÍNICA

LABORATÓRIO DE SAÚDE MENTAL E PSICOLOGIA CLÍNICA SOCIAL

VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA-


PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

São Paulo

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Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo e Rilza Marigliano (Organizadoras)
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA

Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Jornada Apoiar (17.: 2021: São Paulo, SP)


Anais da XVII Jornada APOIAR: violência social e autoinflingida
– propostas de atenção e pesquisa, realizada em 29 de novembro
de 2019 em São Paulo, SP / organizado por Leila Salomão de La
Plata Cury Tardivo e Rilza Xavier Marigliano. São Paulo : Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2021.
1153 p.
E-book.
ISBN: 978-65-87596-26-6
1. Psicologia clínica. 2. Psicologia social. 3. Violência
social. I. Título.
RC467

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Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo e Rilza Marigliano (Organizadoras)
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA

Violência Social e auto infligida: Propostas de


Atenção e Pesquisa

Esse livro em edição eletrônica é composto pelos trabalhos apresentados


na 17ª Jornada APOIAR que ocorreu no dia 29 de novembro de 2019, na
Universidade de São Paulo, na Cidade Universitária, São Paulo. Foi desenvolvida
pela equipe do LABORATÓRIO DE SAÚDE MENTAL E PSICOLOGIA CLÍNICA
SOCIAL (PSC DO IPUSP), realizada sem ônus aos participantes, tendo sempre um
número significativo de assistentes e pesquisadores, e desde o ano de 2008
transmitido ao vivo, on line, pelo sistema IPTV.
Para a 17ª Jornada como as dezesseis temáticas realizadas a cada ano,
foram convidados palestrantes de instituições, universidades e organizações, do
Brasil e de outros. Houve as contribuições orais dos professores da Universidade de
Sevilha (Espanha), trabalhos de parceiros de universidades brasileiras, da PUC de
Campinas e da Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Medicina da USP,
e da Secretaria da Justiça de São Paulo.
Esse ano foi dedicado a projetos coordenados pela Profa. Leila P Cury Tardivo
e a proposta aprovada pela Universidade de Sevilha e desenvolvida em São Paulo:
Treinamento de Profissionais em Técnicas Experienciais, Gráficas e Narrativas A
Intervenção junto a adolescentes submetidos à violência social e auto infligida –
aprovada também no Programa Aprender na Comunidade da Pró Reitoria de
Graduação da USP); Os resultados foram apresentados e será desenvolvida uma
publicação em português e espanhol com todos os dados. Neste e-book foram
apresentados os dados desenvolvidos por coordenadores da Universidade de
Sevilha, -o Prof Jesus Garcia Martinez, pela USP Profa. Leila Cury Tardivo e Helena
Rinaldi Rosa e pela Liga Solidária Marli de Oliveira e Rosalú Ferraz Fladt Queiroz
Também foram temas as propostas de atenção Psicológica realizadas no CIC
- Centro de Integração da Cidadania (CIC) de Taipas- , localizado na Zona Oeste da
cidade de São Paulo. Em abril de 2019, o Laboratório de Saúde Mental e Psicologia
Clínica Social, coordenado pela Profª Associada Dra. Leila Salomão La Plata Cury
Tardivo, firmou acordo de cooperação com o Centro de Integração da Cidadania
(CIC - Oeste), cujo objetivo se pauta na extensão do aprendizado acadêmico para
alunos da graduação e pós-graduação por meio de atividades (continuamente

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Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo e Rilza Marigliano (Organizadoras)
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA

supervisionadas) de atendimento psicológico à população local. Participaram


Ediaine de Oliveira e os estudantes do IPUSP.
Sobre o trabalho com adolescentes, professores da Universidade Federal
Fluminense (Antônio Augusto Pinto Junior e Claudia Henschel de Lima) abordaram
a autolesão. E Albertina Duarte Takiuti apresentou o Programa do Adolescente do
Estado de São Paulo.
Também foi abordada a violência de gênero, com as participações de Maria
Ivete Boulos do NAVI - da Faculdade de Medicina da USP e de Tânia Aiello-Vaisberg
da PUC de Campinas e IPUSP. As comunicações orais na integra comporão esse
e-book.
As Jornadas APOIAR também vem se constituindo e espaço para a divulgação
de trabalhos desenvolvidos por membros e estudantes, do LABORATÓRIO DE
SAÚDE MENTAL E PSICOLOGIA CLÍNICA SOCIAL – Projeto/Serviço APOIAR, da
Ser e Fazer (que mantem projetos no âmbito do mesmo Laboratório) . Vem sendo
procurado por outros Laboratórios e Programas do IPUSP e outras unidades da USP.
E ainda recebe trabalhos de outras universidades do Brasil. Muitos desses trabalhos
são derivados de Trabalhos de Conclusão de Curiós, de Projetos de Iniciação
Científica, e outros (tendo sempre na coautoria um professor doutor). Trata-se de
uma proposta de ser um espaço também de divulgação e ainda de aprendizado, uma
vez que os trabalhos todos são avaliados e reavaliados (quando necessário) por uma
comissão Cientifica composta por Professores Doutores da USP e outras
universidades. São expostos na sessão de pôsteres no evento e os trabalhos
aprovados compõem o presente e-book, com ISBN.

A 17ª Jornada APOIAR foi realizada pretendendo se constituir em espaço de


interlocução e intercâmbio, visando contribuir e estimular o desenvolvimento de
investigações, de prevenção e de intervenção no campo da Saúde Mental e da
Psicologia Clínica Social. O APOIAR se realiza seguindo o tripé que sustenta a
universidade pública: produção de conhecimento), à formação ,e prestação de
serviços à comunidade). Todas as jornadas, como a decima sétima, manifestam
esse tríplice vocação.

Profa. Associada Leila S P C Tardivo


Coordenadora do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social Presidente
da Comissão Científica da 17a JORNADA APOIAR

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Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo e Rilza Marigliano (Organizadoras)
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

OBJETIVOS DA 17ª JORNADA APOIAR

 Abrir um espaço de divulgação de propostas e trabalhos; desenvolvidas por


organizações dedicadas ao estudo e à atenção em Psicologia Clínica

 Propor um evento que se constitui em objeto de intercâmbio cientifico e


profissional com todos os presentes.

 Elaborar essa publicação, a partir de toda essa intensa atividade; a fim de


ampliar a divulgação dos temas abordados na 17ª Jornada.

 Desenvolver todas essas atividades, junto à comunidade USP, bem como


aos interessados de outras universidades e instituições, sem qualquer ônus
aos participantes.

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17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

Comissão Organizadora

Presidente: Leila S P C Tardivo


Membros

Aline Caroline Camilo


Claudia Aranha Gil
Claudia Rodrigues Sanchez
Daiane Fuga da Silva
Edna Pereira Torrecilha
Gislaine Chaves
Helena Rinaldi Rosa
Loraine Seixas Ferreira
Malka David Alhanat
Manoel Antonio dos Santos
Rilza Xavier Marigliano
Rita de Cassia de Souza Sá
Sueli dos Santos Vittorino
Tânia Mara Martinez da Silva

Membros da Comissão Cientifica

Adriana Inocenti Miasso (Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - USP)


Adriana Martins Saur (Centro Universitário Barão de Mauá - Ribeirão Preto-
SP e FFCL- Ribeirão Preto - USP)
Antonio Augusto Pinto Junior (UFF).
Carolina Leonidas (Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM)
Claudia Aranha Gil (USJT); Danuta Medeiros USJT).
Eduardo Name Risk (Centro Universitário Barão de Mauá - Ribeirão Preto-SP
e Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP)
Érika Arantes de Oliveira-Cardoso (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras

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17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

de Ribeirão Preto - USP)


Fabiana Follador e Ambrosio (IPUSP); Helena Rinaldi Rosa (IPUSP).
Hilda Rosa Capelão Avoglia (UMESP); Laura Carmilo Granado (IPUSP).
Manoel Antônio dos Santos (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto - USP)
Marlene Alves da Silva
Paula Miura (UFAL).
Renato Cury Tardivo (USJTT IPUSP); Rodrigo Sanches Peres (UFPR);
Tania Maria Jose Aiello Vaisberg IPUSP PUCC); Valeria Barbieri (FFCLRP USP)
Wanderlei Abadio de Oliveira (Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - USP

COMISSÃO DE AVALIADORES DOS PÔSTERES – PARA PREMIAÇÃO

Fizeram parte dessa Comissão na data da Jornada os seguintes Avaliadores:

Antonio Augusto Pinto Junior-Apoiar e Federal Fluminense

Breno Cesar de Almeida da Silva – Ribeirão

Carolina de Souza- USP Ribeirão Cecília Vilhena-Apoiar


Claudia Aranha Gil –Apoiar e USJT Claudia Borim da Silva-USJT
Cristiane Simões- Ser e fazer Danuta Medeiros-USJT
Erika Hokama USJT

Fabiana F. Ambrosio –Ser e Fazer Gleise Salles Arias- Apoiar e Metodista


Helena Rinaldi Rosa-Apoiar
Hilda C. Avoglia- Metodista Laura C. Granado-USJT

Lorraine Seixas USJT e Apoiar

Marilia Gabriela M. Mota- USP Ribeirão Marlene Alves da Silva-Apoiar


Miria Benincasa –Metodista

Rafael Aiello Fernandes -Ser e Fazer Roberta Manna-Ser e Fazer

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Renato Cury Tardivo (IPUSP)


Rilza Xavier Marigliano-Apoiar
Rodrigo Jorge Salles Apoiar e USJT Rosa Afonso
Sueli Belluzo -Ser e Fazer

Sueli Victorino dos Santos-Apoiar Tatiana Tostes-UNIFOR


Vinicius Alexandre –USP Ribeirão

Wanderlei Abadio de Oliveira- USP Ribeirão

Yurín Garcez de Souza Santos – USP Ribeirão

Seguiram os critérios:

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CRITÉRIOS AVALIADOS PELA COMISSÃO CIENTIFICA


Os trabalhos publicados nesse E-book e apresentados na forma de
pôsteres

Foram todos avaliados, segundo os itens abaixo inseridos. Muitos foram


reenviados, novamente avaliados e publicados após a aprovação, no
entanto alguns trabalhos não estão nessa publicação, uma vez que não
atingiram os criterios exigidos.

Foram avaliados os itens:

1- Apresentação
2- Redação

a) O título no máximo 12 palavras


b) O titulo resume o conteúdo do artigo
c) O resumo inclui objetivos, método, resultados e conclusões
d) Qualidade de redação do texto completo

2.1– Para pesquisas quantitativas ou qualitativas:

a) Introdução/Revisão da Literatura
b) Relevância do tema investigado
c) Referências usadas: relevância e são suficientes
d) Objetivos e justificativa :clareza
e) Normas: APA (estão seguidas corretamente)
f) Método: descrição correta: participantes, procedimentos e instrumentos
g) Menção adequada dos aspectos éticos envolvidos
h) Resultados: apresentação com clareza, relação com os objetivos e o
método (podem ser apresentação de estudos de caso)
i) Discussão/ conclusões: qualidade, síntese dos resultados e relação com
os dados da literature

2.2– Relatos de experiência

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(Itens: Tema -Introdução, objetivos, relato da experiência / discussão

2.3– Estudos teóricos – ou do estudo do estado da arte


Tema discutido, Introdução, fontes bibliográficas usadas, desenvolvimento
do tema, conclusão Os membros da Comissão Cientifica irão analisar os
trabalhos inscritos e a partir dos aspectos acima, deverão fazer pareceres
, enviando aos autores com as seguintes avaliações.

Conclusão da avaliação:
( ) Favorável- aceito sem modificações
( ) Favorável, com pequenas modificações
explicitadas no parecer
( ) Favorável, com grandes modificações explicitadas
no parecer –
( ) Desfavorável

Presidente da Comissão Cientifica Leila S P C Tardivo

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17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

E preencheram para cada pôster avaliado o seguinte formulário:


Número do Pôster:
Titulo do Pôster:
Autor(es):

Membro da Comissão Cientifica: avaliar os aspectos e atribuam


um conceito de 0 a 10
Foram avaliados os itens:

1- Apresentação e redação – NOTA


O título no máximo 12 palavras; O titulo resume o conteúdo do
artigo;O resumo inclui objetivos, método, resultados e conclusões;
Qualidade de redação do texto completo.

2.1 – Para pesquisas quantitativas ou qualitativas:


Introdução/Revisão da Literatura; Relevância do tema investigado;
Referências usadas: relevância e são suficientes; Objetivos e
justificativa :clareza ;)Método: descrição correta: participantes,
procedimentos e instrumentos; Menção adequada dos aspectos
éticos envolvidos; Resultados: apresentação com clareza, relação
com os objetivos e o método (podem ser apresentação de estudos
de caso) ;Discussão/ conclusões: qualidade, síntese dos resultados
e relação com os dados da literatura ou

2.2 – Relatos de experiência NOTA


Tema -Introdução, objetivos, relato da experiência / discussão ou

2.3 – Estudos teóricos – ou do estudo do estado da arte NOTA


Tema discutido, Introdução, fontes bibliográficas usadas,
desenvolvimento do tema, conclusão Os membros da Comissão
Cientifica irão analisar os trabalhos inscritos e a partir dos aspectos
acima, deverão fazer pareceres, enviando aos autores com as
seguintes avaliações.

MÉDIA FINAL

Membro da Comissão Cientifica:

Presidente da Comissão Cientifica- Leila S P C Tardivo.

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17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

PROGRAMA
VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA PROPOSTAS DE
ATENÇÃO E PESQUISAS
29 de novembro de 2019
Instituto de Psicologia da USP – Bloco G
8h00– Recepção / Distribuição de material
9h00 – Abertura- Diretora - Prof. Dr. Gustavo Massola

9h30-1ª Mesa- Propostas de atendimento psicológico no CIC Oeste – Centro de


Integração da Cidadania de Taipas
Edilaine Daniel Carvalho (Diretora Técnica do CIC Taipas) - A atuação da rede
Leila Cury Tardivo, Helena Rinaldi Rosa, alunos da Graduação e Pós-
graduação (IP-USP)- Relato da experiência : Projeto “Atenção Psicológica no
CIC – TAIPAS”
Coordenação: Claudia Aranha Gil
10h30 - 2ª Mesa - Violência e adolescência
Antonio Augusto Pinto Junior e Cláudia Henschel de Lima (UFF) –Autolesão
na adolescência: aspectos psicossociais
Albertina Duarte Takiuti – Coordenadora do Programa do Adolescente
Coordenação: Leila Cury Tardivo
11h30 - Breve apresentação e Lançamento do livro: Albertina Duarte, Leila
Tardivo e Rui Paixão (org)(2019)-Maternidade e Adolescência: Histórias de
adolescentes grávidas e mães de Brasil, Portugal e Guiné-Bissau, São Paulo:
Ed Gênio Criador.
12h00 - Sessão de pôsteres (vão livre do Bloco G – IPUSP)

13h15 - 14h30 – Intervalo para almoço

14h30 - 3ª Mesa- Violência de Gênero


Ivete Boulos (Núcleo de Assistência à Vítima de Abuso Sexual (NAVIS),
Hospital de Clínicas da FMUSP)
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg (IPUSP e PUCCAMP): Violência de Gênero,
Desumanização e Sofrimento Social
Coordenação: Helena Rinaldi Rosa
16h00 - 4ª Mesa- Treinamento de profissionais em técnicas experienciais,
gráficas e narrativas e intervenção com adolescentes submetidos à violência
em zonas desfavorecidas da cidade de São Paulo- Apresentação das propostas
e oficinas
Jesus Garcia Martinez (Universidade de Sevilha)
Marli de Oliveira, (Liga Solidaria)
Leila Cury Tardivo, Helena Rinaldi Rosa (APOIAR IPUSP)
Coordenação: Hilda Rosa Capelão Avoglia
17h30 - Premiação dos pôsteres e encerramento
Coordenação: Tânia Maria José Aiello-Vaisberg e Leila Cury Tardivo

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17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

SUMÁRIO
COMUNICAÇÕES
ORAIS 1ª Mesa- Propostas de atendimento psicológico no CIC Oeste –
p
Pag P
A Atuação Da rede no CIC - TAIPAS Edilaine Daniel Carvalho A
G
Relato da experiência: Projeto Leila Cury Tardivo, Helena Rinaldi a
“Atenção Psicológica no CIC – Rosa, alunos da Graduação e Pós- g
TAIPAS graduação
2ª Mesa - Violência e adolescência

Autolesão na adolescência: aspectos Antonio Augusto Pinto Junior e


psicossociais Cláudia Henschel de Lima (UFF)
O Programa do Adolescente do Estado de Albertina Duarte Takiuti
São Paulo

3ª Mesa- Violência de Gênero


Apresentação do Núcleo de Maria Ivete Boulos
Assistência à Vítima de Abuso Sexual
(NAVIS
Violência de Gênero, Desumanização e Tânia Maria José Aiello-Vaisberg
Sofrimento Social

4ª Mesa- Treinamento de profissionais em técnicas experienciais, gráficas e


narrativas e intervenção com adolescentes submetidos à violência em zonas
desfavorecidas da cidade de São Paulo- Apresentação das propostas e oficinas
Hablando con niños y adolescentes: técnicas de Jesús Garcia Martínez
entrevista constructivistas y narrativas para el trabajo
en situaciones de riesgo psicosocial. –
A Liga Solidária Marli de Oliveira, Rosalú Ferraz
Fladt Queiroz
Oficinas Psicológicas com Adolescentes e Leila Cury Tardivo, Helena Rinaldi Rosa
Pré- Adolescentes Equipe do APOIAR IPUSP

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TRABALHOS APRESENTADOS NA SESSÃO DE PÔSTER

LABORATÓRIO DE SAÚDE MENTAL E PSICOLOGIA Clínica


Social-APOIAR
No Título Do Pôster Autores Pag
1 INTERVENÇÃO GRUPAL EM PESSOAS COM Sueli dos Santos Vitorino;Leila Salomão de La
DOR CRÔNICA: PUBLICAÇÕES DA PSYCINFO Plata Cury Tardivo 24
EM 2018
2 O DESENHO DA FIGURA HUMANA NA Bruna Andrade Oliveira Brito;Leila
AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DE AGRESSORES Salomão de La Plata Cury Tardivo;Aicil
SEXUAIS PEDÓFILOS NO CONTEXTO Franco
35
PRISIONAL
3 A UTILIZAÇÃO DO QUESTIONÁRIO Bruna Andrade; Oliveira Brito; Aicil
DESIDERATIVO EM PACIENTES Franco; Rilza Marigliano;Leila Salomão de
ESQUIZOFRÊNICOS NUMA UNIDADE DE La Plata Cury Tardivo 47
INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA NO ESTADO DA
BAHIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
4 OS MEDOS DAS CRIANÇAS HOJE: Gislaine Chaves;Geovana Figueira
IDENTIFICAÇÃO E COMPREENSÃO POR Gomes;Edna Pereira Torrecilha; Helena
57
MEIO DO PROCEDIMENTO DE DESENHO- Rinaldi Rosa;Leila Salomão de La Plata
ESTÓRIA COM TEMA (DE-T). Cury Tardivo ;Valeria Barbieri
5 PSICANÁLISE E ORGANIZAÇÃO: AS Petterson Alves Berger;Leila Salomão de
RELAÇÕES DE TRANSFERÊNCIA La Plata Cury Tardivo
75
6 O DESAFIO EM DESENVOLVER E IMPLANTAR Daniela Fuchs;Leila Salomão de La Plata
UM GRUPO DE BRINCAR COM FAMILIAS DE Cury Tardivo 86
DEPENDENTES QUIMICOS
7 O DESENHO DA FIGURA HUMANA COM Rita de Cassia De Souza Sá
HISTÓRIA EM UM MENINO COM Helena Rinaldi Rosa
DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM: Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo 99
COMPREENSÃO DOS ASPECTOS
EMOCIONAIS
8 O COMPORTAMENTO AUTO LESIVO NA Gislaine Chaves;Loraine Seixas Ferreira
ADOLESCÊNCIA E O TESTE DE FÁBULAS Leila Salomão de La Plata Cury
DE DÜSS: PSICODIAGNÓSTICO Tardivo;Helena Rinaldi Rosa
111
COMPREENSIVO
9 IDOSOS COM DOR CRÔNICA: NÍVEL DE Rilza Xavier Marigliano;Leila Salomão de
DEPRESSÃO E PROPOSTA DE La Plata Cury Tardivo 126
INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA GRUPAL
10 A PERCEPÇÃO DA ADOLESCÊNCIA POR Loraine Seixas Ferreira; Gislaine Chaves
ADOLESCENTES QUE SE AUTOLESIONAM Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo 143
Helena Rinaldi Rosa
11 O TAT NA COMPREENSÃO DOS ASPECTOS Edna Pereira Torrecilha; Gislaine Chaves;
PSICOLÓGICOS DE UMA PRÉ Cláudia Rodrigues Sanchez; Leila
ADOLESCENTE VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL Salomão de La Plata Cury Tardivo;
155
INTRAFAMILIAR Helena Rinaldi Rosa
12 A VISÃO PSICANALÍTICA SOBRE POSSESSÃO Denise Blanche, Maria Hosana Andrade
DEMONÍACA dos Santos, Davi Rodrigues Silva & Leila 166
Salomão de La Plata Cury Tardivo
13 REFLEXÕES SOBRE VIOLÊNCIA E Bárbara Caroline Macedo; Júlia Pundeck
DESAMPARO NO FILME “CORINGA” Loureiro; Leila Salomão de La Plata Cury 176
Tardivo
14 O QUESTIONÁRIO DESIDERATIVO EM Marlene Alves da Silva;Leila Salomão
CRIANÇAS COM DIFICULDADES DE de La Plata Cury Tardivo
APRENDIZAGEM: ESTUDO SOBRE FORÇA
187
DO EGO

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15 DESENHO-ESTÓRIA COM TEMA (DE-T) NA Malka David Alhanat; Daniel


EXPRESSÃO E COMPREENSÃO DE Fernandes Cardoso;Tânia Mara
ANGÚSTIAS NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA Martinez da Silva;Helena Rinaldi 205
Rosa;Leila Salomão de La Plata Cury
Tardivo
16 O MEDO DA VIOLÊNCIA EM PRÉ Rita de Cassia De Souza Sá
ADOLESCENTES: COMPREENSÃO E Gislaine Chave; Edna Pereira
INTERVENÇÃO COM OFICINAS Torrecilha;Aline Caroline Camilo;Helena 216
PSICOLÓGICAS Rinaldi;Leila Salomão de La Plata Cury
Tardivo
17 QUAL AUTOAGRESSÃO? APROXIMAÇÕES DO Fabiana Haddad Kurbhi;Helena Rinaldi
TEMA “AUTO AGRESSIVIDADE EM Rosa 227
CRIANÇAS
18 Gustavo Oliveira do
O DESENHO DA FIGURA HUMANA COM Nascimento;Helena Rinaldi 238
HISTÓRIA: UM ESTUDO DE CASO Rosa;Walter José Martins Migliorini
19 Juliana Y.R.Toyoda e Natasaha T
SOBRE A FALTA E O MEDO: OS Hespanhol
IMPACTOS DA RELAÇÃO TERAPÊUTICA 246
NA VIDA DE DOIS IRMÃOS

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LABORATÓRIO DE SAÚDE MENTAL E PSICOLOGIA CLÍNICA SOCIAL-


SER E FAZER
N Título do pôster autores pág
O

20 Annie Rangel Kopanakis, Débora Ortolan


MUNDOS INVERTIDOS”: Fernandes de Oliveira,Amanda V.
IMAGINARIO COLETIVO SOBRE A Costa,Ana Julia Grecchi, Beatriz F.
RELACAO RELAÇAO Zago,Carolina V Marin, Maria Beatriz 258
HETEROSSEXUAL A. Guedes,Renata V. P. Macanhã,
Stephanie Gabriela A Mello,
Vitória G. S. Ramos, Tânia Aiello-Vaisberg
21 VADIA COMPETENTE: Bruna Risquioto Batoni,Marina Miranda
IMAGINARIO SOBRE A MULHER Fabris Zavaglia,Ingrid Pedrosa,
NO MERCADO EXECUTIVO Isabella El Dorr,Larissa Braga Mota,Leandro
Dias de Almeida,Rafaela Mafra 269
Souza,Taís da Silva Volet,Vinicius de
Almeida Tofolete, Tânia Aiello-
Vaisberg
22 COLLECTIVE IMAGINARY Carlos Del Negro Visintin
REGARDING IMPRISONED Guilherme Athayde Penteado Vilela 281
MOTHERS Tânia Maria José Aiello-Vaisberg
23 INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA E
DEPENDÊNCIA QUÍMICA NO Cristiane Helena Dias Simões
IMAGINÁRIO DE ESTUDANTES Débora Ortolan Fernandes de Oliveira 290
DE PSICOLOGIA Tania Maria José Aiello-Vaisberg

24 IMAGINARIO COLETIVO SOBRE Gustavo Renan de Almeida da Silva,Ana


TRANSGENERIDADE EM VIDEOS Letícia Rodrigues Nunes,Bruna B.
HUMORISTICOS Nascimento, Fernanda da Silva Moreira,
301
Júlia de Oliveira Leite,Letícia Stuchi,
Lucas Souza de Oliveira,Paula G. Vianna,
Priscila Z. Bueno,Tânia Aiello-Vaisberg
25 CUIDADO É COISA DE MULHER”: Gustavo Renan de Almeida da Silva
INVESTIGANDO IMAGINÁRIOS João Paulo Sampaio
SOBRE A MATERNIDADE EM Carlos Del Negro Visintin 308
POSTAGENS DO FACEBOOK Tânia Maria José Aiello-Vaisberg

26 “MINHA VIDA MUDOU PARA Gustavo Renan de Almeida da Silva


SEMPRE”: EXPERIÊNCIA VIVIDA Mayara de Souza Américo
DE PERDA POR SUICÍDIO Thaís Ribas
315
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg
27 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Rafael Aiello-Fernandes
SOBRE RACISMO E FORMAÇÃO Tania Aiello-Vaisberg 326
DE PSICÓLOGOS Leila Cury Tardivo
28 - SOFRIMENTO EMOCIONAL DE Sueli Regina Gallo-Belluzzo
POS-GRADUANDOS: ESTUDO Andreia Almeida Schulte
PSICANALITICO PRELIMINAR Carlos Del Negro Visintin 337
Gisele Meirelles Fonseca Inacarato
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg
29 IMAGINÁRIOS COLETIVOS DE Ana Letícia Rodrigues Nunes
JOVENS COM DOENÇA Tania Maria José Aiello-Vaisberg 348
FALCIFORME

16
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TRABALHOS DE OUTROS PROGRAMAS E UNIDADES DA


USP
No Título do poster autores
30. HISTÓRIAS DE ABANDONO: EFEITOS NA Stéphany Proença Lacerda da Silva
CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA Isabel Cristina Gomes
358
31. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO TRANSFÓBICA Vinicius Alexandre
COMO PRODUTO DA INSUBORDINAÇÃO À Manoel Antônio dos Santos 368
HETERONORMATIVIDADE
32. A VIOLÊNCIA SEXUAL E O ADOECIMENTO João Fábio Haddad Caramori
NEURÓTICO OBSESSIVO: UMA CRÔNICA Gilberto Safra 377
PSICANALÍTICA
33. ADOLESCENTE COM ANEMIA FALCIFORME Aline Guerrieri Accoroni
SUBMETIDA AO TRANSPLANTE DE CÉLULAS- Lucas dos Santos Lotério
TRONCO HEMATOPOÉTICAS Hellen Cristina Ramos Queirós 386
Manoel Antônio dos Santos
Érika Arantes de Oliveira Cardoso
34. PROCESSOS DE ADAPTAÇÃO Marina Noronha Ferraz de Arruda-Colli
TRANSCULTURAL DE INSTRUMENTOS DE Rafael Lima Dalle Mulle;Sonia Regina 397
AVALIAÇÃO EM CUIDADOS PALIATIVOS Pasian, Manoel Antônio dos Santos
35. VIVENCIANDO O CÂNCER DOS SEUS Breno César de Almeida da Silva;Érika
MARIDOS: RELATOS DAS ESPOSAS Arantes de Oliveira Cardoso;Manoel 407
Antônio dos Santos
36. MAL-ESTAR, VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO: Rinaldo Miorim
ALTERIDADE E MEDIAÇÃO NA RELAÇÃO 417
TERAPEUTA-PACIENTE
37. CONTEXTO E IMPLICAÇÕES DO Ma. Cláudia Yaísa Gonçalves da Silva
ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL EM (autor) 428
ADOLESCENTES Dra. Ivonise Fernandes da Motta
38. PSICOTERAPIA BREVE OPERACIONALIZADA Fernando Roberto de Lira
E TRANSTORNO DEPRESSIVO: RELATO DE Kayoco Yamamoto 438
CASO
39. INTERSETORIALIDADE: PSICODIAGNÓSTICO Mariana do Nascimento Arruda Fantini;
INTERVENTIVO CONSTRUÍDO JUNTO ÀS Reynaldo Thiago da Silva Rocha;
INSTITUIÇÕES DE SAÚDE E EDUCAÇÃO Alessandra Amado Lia Alves; Luisa
448
Figueiredo Passos; Luiz Henrique
Zani Tavares; Dr. Andrés Eduardo
Aguirre Antúnez
40. TRANSMISSÃO PSÍQUICA E PATOLOGIA: UMA Juliana Beatriz Ferreira de Souza
461
DISCUSSÃO PSICANALÍTICA DE THIS IS US. Isabel Cristina Gomes -
41. PSICODINÂMICA FAMILIAR E OBESIDADE EM Lilian Regiane de Souza Costa-Dalpino
UM CASO DE CONVERSÃO Valeria Barbieri
471
42. VIVENDO A TERMINALIDADE: EXPERIÊNCIA Marília Gabriela M. Mota:
DE PACIENTES COM CÂNCER DE CABEÇA E Érika Arantes de Oliveira-Cardoso 482
PESCOÇO.
43. SEXUALIDADE E RELACIONAMENTOS Victor de Barros Malerba
AFETIVOS NO AUTISMO Manoel Antônio dos Santos
492
44. O CORPO COMO UMA EXPRESSÃO DE SI: Laura Magalhães Terena
DESENVOLVIMENTO INFANTIL E DEMANDAS Geovana Gomes;Fernanda Kimie 501
CLÍNICAS CONTEMPORÂNEAS Tavares Mishima Gomes;Valéria Barbieri
45. ALOPECIA: O PRECONCEITO COMO Elaine Campos Guijarro Rodrigues
VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES COM Manoel Antônio dos Santos 508
CÂNCER DE MAMA
46. COMPREENSÃO DO MORRER POR Naomy;Lucas dos Santos Lotério
CRIANÇAS QUE CONVIVEM COM VIOLÊNCIA Manoel Antônio dos Santos 519
NO CONTEXTO AMBIENTAL Érika Arantes de Oliveira-Cardoso
47. A CONSTRUÇÃO DA MATERNAGEM EM UTI Mariana Rodrigues Festucci Grecco
NEONATAL A PARTIR DE DE UMA 530
INTERVENÇÃO PREVENTIVA

17
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

PSICANALITICAMENTE ORIENTADA:
INTERLOCUÇÕES COM PICHON RIVIERE
48. IDOSOS COM ALZHEIMER: IMPACTO NOS Rosângela Vidal de Negreiros; Cristiana
CUIDADORES Barbosa da Silva Gomes; Jogilmira
Macedo Silva Mendes; Emanuel Nildivan
542
Rodrigues da Fonseca; Gilberto Safra.
49. ADOÇÃO E FUNCIONAMENTO FALSO SELF: Isabela Ferreira Miranda; Renata Bellini
UM ESTUDO DE CASO Begosso; Geovana Figueira Gomes;
Fernanda Kimie Tavares Mishima- 553
Gomes, Valeria Barbieri.

50. OBSTÁCULOS NO DESENVOLVIMENTO Renata Bellini Begosso; Geovana Figueira


EMOCIONAL INFANTIL: RELATO DE UMA Gomes; Fernanda Kimie Tavares 562
ADOÇÃO TARDIA Mishima-Gomes; Valeria Barbieri
51. MASCULINIDADES: UM DIÁLOGO COM Lucas Mascarim da Silva
EPISTEMOLOGIAS CONTRA-HEGEMÔNICAS André Villela de Souza Lima Santos
Yurín Garcêz de Souza Santos 571
Breno César de Almeida da Silva
Manoel Antônio dos Santos
52. VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: AVALIAÇÃO DOS
Emanuel Nildivan Rodrigues da Fonseca;Gilberto
IMPACTOS FÍSICOS E EMOCIONAIS EM Safra;Jogilmira Macêdo Silva
GESTANTES ADOLESCENTES Mendes;Magaly Suênya de Almeida Pinto 584
Abrantes;Rosângela Vidal de Negreiros

53. EXPRESSÕES DO IMPACTO DO AUTISMO


DO FILHO MAIS VELHO SOBRE A
Milena Rogerio Lerner 591
RELAÇÃO ENTRE PAIS E CRIANÇAS MAIS
NOVAS: UM ESTUDO QUALITATIVO
54. “VOCÊ DEIXA DE SER UMA PESSOA COM Carolina de Souza
DIREITOS A PARTIR DO MOMENTO EM QUE Manoel Antônio dos Santos
FALA QUE É HOMOSSEXUAL”: VIOLÊNCIA 599
CONTRA MULHERES LÉSBICAS

55. VIOLÊNCIA DE GÊNERO TRANSFÓBICA


COMO RESPOSTA À INSUBORDINAÇÃO À Manoel Antônio dos Santos 610
HETERONORMATIVIDADE Vinicius Alexandre

18
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

TRABALHOS DE UNIVERSIDADES PARCEIRAS


o
N TITULO DO POSTER autores Pág.
56. A PERCEPÇÃO DE SUPORTE FAMILIAR Nathália Honorato Soares da Silva, Jessica
EM UNIVERSITÁRIOS LGBTQ+ (USJT) Paulino da Silva, Fernanda Camilo de Oliveira,
Tatiane Martins Felipe, Erika Hokama e
620
Agatha Nogueira Previdelli
57. ANÁLISE DE INDICADORES E Julia de Sousa Dias, Ketlin Mitsumi Asato,
PERCEPÇÃO DE ESTRESSE EM Lucas Dionisio Dorin, Thiago Bernardino da
ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS Silva
631

58. CASAIS INTER-RACIAIS HÉTERO E Felipe Carvalho Damacena


HOMOAFETIVOS: RACISMO CORDIAL E Thais Gonçalves Gomes 641
SUA NEGAÇÃO NA FAMÍLIA (USJT) Luís Antônio Gomes Lima
59. ESTILOS PARENTAIS E PROBLEMAS DE Mariana dos Santos Garcia de Carvalho
654
COMPORTAMENTO NA ADOLESCÊNCIA Márcia Regina Fumagalli Marteleto
60. MEDIAÇÃO ESCOLAR COM Ms Patricia Aparecida Nunes e Silva
INTERVENÇÃO EM GRUPO DE ALUNAS Dra Yone Xavier 665
QUE PRATICARAM AUTOMUTILAÇÃO
61. OS PERCURSOS DE UMA CRIANÇA Carolina Sarmanho e Maria Izabel Tafuri.
AUTISTA RUMO À SUBJETIVAÇÃO
676
62. AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA COMO Kaliana de Freitas Loureiro;Elenise Tenório de
INSTRUMENTO PARA IDENTIFICAR Medeiros Machado e Isabelle Cerqueira Sousa
DEPRESSÃO EM CRIANÇAS NO
687
AMBIENTE ESCOLAR
63. ASSEXUALIDADE(S): METASSÍNTESE Maria Laura Barros da Rocha, Alana Madeiro
DE TESES E DISSERTAÇÕES de Melo Barboza, Camila dos Anjos Falcão
697
BRASILEIRAS Camila do Nascimento Lins Buarque e Adélia
Augusta Souto de Oliveira
64. AVALIAÇÃO DO COMPORTAMENTO Anne Caroline da Silva Alves, Bianca Cristina
ALIMENTAR DE ESTUDANTES DE Yarmalavicius Pereira, Karine Didone Bonfim,
PSICOLOGIA DE UM CENTRO Nathália Abrantes Muniz de Freitas, Priscilla
UNIVERSITÁRIO Laureano de Sousa, Railander Lagass Pereira,
708
Vitória Rodrigues Bugalho e José Maria
Montiel
65. OTIMISMO E ANSIEDADE: UM ESTUDO Camila Santos Ferreira Cláudia Borim da Silva
COM JOVENS UNIVERSITÁRIOS
718
66. CONFIGURAÇÕES VÍNCULARES DE Mariana Lopes da Silva, Mayara Falcão
UMA CRIANÇA REFUGIADA SÍRIA: UM Lopes, Rosimeire Nogueira e Hilda Rosa 728
ESTUDO DE CASO CLÍNICO Capelão Avoglia
67. REPARAÇÃO MANÍACA E VERDADEIRA Jaqueline dos Santos Corrêa Claro
EM UMA CRIANÇA ACOLHIDA: UM Hilda Rosa Capelão 739
ESTUDO DE CASO CLÍNICO
68. DESATENTO, CANSADO, PSICÓTICO: Carolina de Fátima Tse e Hilda Rosa Capelão
UM CASO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA Avoglia
748
69. VIOLÊNCIA, TECNOLOGIA: MÁSCARAS Caio Felix de Araujo, Hilda Rosa Capelão
DE UM ANTAGONISMO NÃO EVIDENTE Avoglia E Plinio Thomaz Aquino Junior
761
70. REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS DA Eduardo Marchese Damini e Hilda Rosa
VIDA ADULTA DE UM ADOLESCENTE EM Capelão Avoglia 769
CONFLITO COM A LEI
71. A TRAMA QUE LIGA A SOLIDARIEDADE Marli de Oliveira, Sandra Grandesso e Vicente
– Nascimento Alves
FORTALECENDO ESPAÇOS DE
778
CONVIVÊNCIA - POLO DE CUIDADO.
72. AVALIAÇÃO DE RISCO DE SUICÍDIO: UM Isabella Amaral de Oliveira e Vilma Valéria
ESTUDO EM CONTEXTO DE PESQUISA Dias Couto 779
COM ADOLESCENTE
73. O “VAZIO” NO DESENHO LIVRE Rosa Maria Lopes Affonso, Rosa Inês
INFANTIL COMO INDICADOR DE Colombo e 787
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo

19
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

74. CULTURA E O BRINCAR NA Alana Madeiro de Melo Barboza e Paula


800
CONSTITUIÇÃO INFANTIL Orchiucci Miura
75. DESENVOLVIMENTO DE PENSAMENTO Gabriella de Oliveira Machado, Giovana
CRÍTICO COM ADOLESCENTES EM Hilberath Moreira, Thiago Bellei de Lima,
SEMILIBERDADE: DETERMINANTES DA Fernanda Bordignon Luiz e Maísa Pereira 810
EVASÃO ESCOLAR Panutti
UNIVERSIDADE POSITIVO
76. IMAGEM CORPORAL DE IDOSOS Bianca Rodrigues Cordeiro de Souza
LONGEVOS Eliane Florencio Gama 820

77. IMPLICAÇÕES DA ANÁLISE FUNCIONAL Dayane Beserra Santos;Igor Cezar Baptista de


EM PROBLEMAS DE COMPORTAMENTO Lima;Izabella Pontes dos Santos;Jennifer
DE INDIVÍDUOS COM TEA Domingues Cortijo;Marcela Pereira Magalhães
831
Vanessa Ludimila Santos de Souza
78. MARCAS NO CORPO: A DOR DE UMA
ADOLESCENTE VÍTIMA DE VIOLÊNCIA Amanda Ribeiro Alves Barbosa e
844
SEXUAL Hilda Rosa Capelão Avoglia

79. PERCEPÇÃO DA Fernanda Cristina Grilletti


INTERGERACIONALIDADE NO MERCADO Gabriela Matias Santos Da Slva;Giovanna
DE TRABALHO Broti Dente;Iago Sampaio Vieira Amancio
853
Isabela Silva Fernandes
80. PERFIL E QUEIXAS DO PACIENTE
ADOLESCENTE DE UM SERVIÇO DE Teresa Helena Schoen
PSICOLOGIA EM UM AMBULATÓRIO-
863
ESCOLA
81. PROJETO DE VIDA DE ADOLESCENTES
EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA Jhenifer de Souza Fortunato;Tairine Camila
SOCIOEDUCATIVA Fernandes;Ma. Sueli dos Santos Vitorino
873

82. A (IN)VISIBILIDADE SUBJETIVA QUE


ASSOMBRA OS ENCARCERADOS DO
HOSPITAL DE CUSTÓDIA E Flaviany Silva; Cláudia Vaz tORRES 881
TRATAMENTO DO ESTADO DA BAHIA:
PERCEPÇÕES DA PSICOLOGIA
83. QUEM SÃO AS VÍTIMAS SEGUNDO OS Thais Teixeira, Maria Carolina Rissoni Andery
RELATÓRIOS SOBRE VIOLÊNCIA e Maria Helena Pereira Franco 895

84. OFICINA PSICOSSOCIAL, Itallon Lourenço da Silva, Dolores Galindo e


MASCULINIDADES E SAÚDE MENTAL DE Vanessa Clemente Furtado 903
HOMENS: RELATO DE EXPERIÊNCIA
85. PESQUISANDO A ETIOLOGIA DO Cláudia Henschel de
SOFRIMENTO PSIQUICO PELA Lima;Rosângela Maria de Oliveira
ARTICULAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E Flora Elias Pereira;Nubia Ferreira Espinoza 910
PSICOPATOLOGIA Daniel Cavalcante Moreira.; Debora Assis
Thalles Sampaio
86. DESIGUALDADE DE GÊNERO
EXPRESSA NAS FALAS DAS MULHERES Roana de Jesus Braga e Mariele Rodrigues
PARTICIPANTES DE UM PROGRAMA DE Correa 923
UNIVERSIDADE ABERTA À TERCEIRA
IDADE
87. SUICÍDIO E IDEAÇÕES SUICIDAS NA Alana Madeiro de Melo Barboza, Laura Lima
INFÂNCIA: UMA REVISÃO DA Branco e 933
LITERATURA UFAL Heliane de Almeida Lins Leitão
88. BEM-ESTAR PSICOLÓGICO DA Aline Aguiar dos Santos Moraes, Beatriz
POPULAÇÃO LGBTQ+ Lopez Diaz Sensato, Elaine Aparecida
Meirelis, Eloize Bife Pereira 943
Elvis Feliciano. Juliana Portugal Pavanello,
Daiane Fuga da Silva e Cláudia Borim da Silva

20
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

89. TENTATIVA E IDEAÇÃO SUICIDA NA Mellina Harue Shima Jecks;Bruna de Lima


ADOLESCÊNCIA: UM ESTUDO DE CASO Coutinho;Loraine Seixas Ferreira 953
CLÍNICO
90. SOLIDÃO SOCIAL E EMOCIONAL EM Alyne Manfron Serpa
UNIVERSITÁRIOS: PERCEPÇÕES E Ana Beatriz D’Anunzio Foschini Guardia;André
INFLUÊNCIAS Lucas Viana de Araujo;Bruno Manzaro 964
Joyce Carneiro Bispo;Leticia Pinheiro Cadete
Daiane Fuga da Silva eCláudia Borim da Silva
91. ESPERANÇA DA POPULAÇÃO NEGRA Danielle Teixeira da Silva, Kézia Silva Castro
EM RELAÇÃO ÀS QUESTÕES ÉTNICO- Milena Matos Barbeiro, Suzana Magalhães
RACIAIS Fernandes Gomes, Talita de Campos Faria,
Daiane Fuga da Silva
975
Eliana Ribeiro da Silva e Cláudia Borim da
Silva
92. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A Mônica Cavalcanti Trindade, Bianca Arruda
CRIANÇA NA PERCEPÇÃO DE Manchester de Queiroga eLuciane Soares de
986
EDUCADORES Lima

93. IMPACTO DO BULLYING NA Ingrid Tavares Paiva,Luana Carramillo-Going,


AUTOESTIMA DA PESSOA CO-M 1002
FISSURA LABIAL E/OU PALATINA
94. A VISÃO PSICANALÍTICA SOBRE Davi Rodrigues Silva;Denise Blanche
POSSESSÃO DEMONÍACA Maria Hosana Andrade dos Santos 1013
Prof. Orientador Fabio Pinheiro
95. DEPENDÊNCIA MATERNA NA RELAÇÃO Anna Cecília Latanzio Rodrigues Silva
MÃE-BEBÊ: UM ESTUDO DE CASO Jorge Luís Ferreira Abrão 1023
SOBRE ADOÇÃO
96. VIDEOGAME E SUBJETIVIDADE: SEUS Pamella Sanchez Mello de Pinho e Thalita
SIGNIFICADOS NA ATUALIDADE Lacerda Nobre
1037
97. OS ASPECTOS PSICOLÓGICOS DE Camila Santos de Assis;Cinthia Lira Vieira
IDOSOS COM DOENÇA PULMONAR Claudia Aranha 1049
OBSTRUTIVA CRÔNICA (DPOC)
98. ANÁLISE PSICANALÍTICA DO DISCURSO Ingrid de Sousa Lima Silva; Thalita Lacerda
DE ÓDIO PRESENTE NAS REDES Nobre
SOCIAIS DIGITAIS
1060

99. RELAÇÃO ENTRE A VIOLÊNCIA SOCIAL


E PSICODINÂMICA NAS Sandra de Oliveira Soares Cardoso e Thalita
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS Lacerda Nobre 1069
PROFESSORES

100. O QUE (NÃO) ESCUTAMOS QUANDO Kauê da Costa Alves e Kelly Cristina Brandão
ESCUTAMOS OS PAIS da Silva 1079

101. DISCURSO DE ÓDIO NO FACEBOOK: Naomy Ester de Melo e Marques; Thalita


ANÁLISE DAS MANIFESTAÇÕES Lacerda Nobre 1088
PSÍQUICAS IMPLICADAS NESSA PRÁTICA
102. ÁLCOOL: PRAZER OU PROIBIÇÃO? UMA Larissa de Maria Simões Artiga;Karolline
ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES Neves Campos Silva e Danuta Medeiros 1098
SOCIAIS DE FUTUROS ENFERMEIROS
103. A PERCEPÇÃO DA IMAGEM CORPORAL Aline Cordeiro dos Santos;Karyne Santiago
EM PACIENTES PÓS BARIÁTRICOS Lima 1109
Danuta Medeiros
104. A VIOLÊNCIA DO CUIDADO EXCESSIVO Henrique Thiago de Melo Silva; Leliane Maria
Aparecida Gliosce Moreira;Leonardo Ferreira 1120
Galvão Tavares
105. FATORES MOTIVACIONAIS PARA O Leonardo Ferreira Galvão Tavares
AUMENTO DO CONSUMO DE ÁLCOOL Henrique Thiago de Melo Silva
POR MULHERES Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira
1127

21
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.

106. CONSULTAS TERAPÊUTICAS COM PAIS Leliane Maria Aparecida Gliosce


E FILHOS: A EXPERIÊNCIA Moreira;Henrique Thiago de Melo Silva
COMPARTILHADA Leonardo Ferreira Galvão Tavares
1134
DO BRINCAR
107. VIVÊNCIAS EMOCIONAIS DE Sibyli Friedrich Almeida Cunha, Thamara
CUIDADORES FORMAIS DE IDOSOS Teixeira de Castro, Valdiléa Rezende Souza e
PORTADORES DE DEMÊNCIA Luca e Cláudia Aranha Gil
1143

22
TRABALHOS APRESENTADOS NA SESSÃO
DE PÔSTERES

TRABALHOS DO LABORATÓRIO DE
SAÚDE MENTAL E PSICOLOGIA CLÍNICA
SOCIAL

APOIAR

23
1- INTERVENÇÃO GRUPAL EM PESSOAS COM DOR CRÔNICA: PUBLICAÇÕES
DA PSYCINFO EM 2018

Sueli dos Santos Vitorino1


Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo2

Resumo: A dor crônica, como doença, acomete um em cada cinco pessoas mundialmente,
aumenta com a idade, atinge mais mulheres, em trabalhos extenuantes ou naqueles com
menores níveis de escolaridade, portanto, população mais vulnerável. Há diversas formas
de intervenção psicológica que podem tornar o atendimento a essa demanda mais barato e
acessível. Neste estudo de revisão sistemática da literatura, objetivou-se buscar e analisar
as publicações sobre o tema ‘Intervenção psicológica grupal na dor crônica’ disponível on
line, na base de dados PsycINFO (APA). Os resultados da leitura e análise integral dos 29
artigos científicos, indicam que: (1) O Tipo de estudo majoritariamente de pesquisas de
campo (93%), com delineamento do tipo experimental (55%) e (2) os principais resultados
foram significativos (48%). Conclui-se que é necessário maior aprofundamento na análise,
pois fatores não abordados aqui (como o motivo de 52% das pesquisas serem não-
significativas) podem contribuir ainda mais para o refinamento das informações encontradas.

Palavras-chave: grupo terapia; dor recorrente; psicologia; psicossomática.

INTRODUÇÃO

Condições biopsicossociais como o aumento populacional e de expectativa de vida,


mudanças ambientais e de condições socioeconômicas e emocionais podem contribuir para
experiência de sentir dor. A dor é um alerta biológico benéfico (é o quinto sinal vital),
indicativa de urgência na procura por tratamento, portanto é curável, salvo exceções, como

1
Doutoranda em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo_ IPUSP. Professora, nível
graduação, na UMC e nível pós-graduação, nas Faculdades Educatie.

2
_Livre docente e Professora em nível graduação e pós-graduação no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo_ IPUSP

24
os casos em que se torna persistente, tornando-se inútil biologicamente e causando
impactos na vida das pessoas.
Muitos fatores podem contribuir para o estabelecimento dos quadros de dor, desde
baixa qualidade de vida até perdas financeiras e sociais que podem contribuir para
comorbidades como: imobilidade, desesperança, alterações do sono, problemas
nutricionais, dependência de medicamentos, de profissionais da saúde, de cuidadores e de
instituições, incapacidade para o trabalho, ansiedade, medo, amargura, frustração,
depressão até suicídio, são algumas das complicações que podem acompanhá-la (SBED,
s/d-2019).
No Brasil, a Sociedade Brasileira para Estudos da Dor (SBED), representante
da International Association for the Study of Pain (IASP), que é o maior expoente nos
estudos de dor (contribuindo inclusive com estudos da Organização Mundial de Saúde-
OMS) define dor como a “Experiência sensitiva e emocional desagradável associada ou
relacionada à lesão real ou potencial dos tecidos. Cada indivíduo aprende a utilizar esse
termo através das suas experiências anteriores” (SBED, s/d - 2019).
A dor pode ser aguda (alerta biológico), recorrente (período curto, mas frequente, como a
enxaqueca) ou crônica que é aquela dor em duração prolongada, que pode se estender de
vários meses a vários anos (persistente acima de três meses, embora não haja consenso)
e que está quase sempre [há exceções] associada a um processo de doença
crônica. Portanto, é uma manifestação biológica de intersecção subjetiva já que envolve
mecanismos físicos, psíquicos e culturais (SBED, s/d - 2019 e Volich, 2010).
A dor crônica, que se comporta como uma doença em si, acomete um e cada cinco
pessoas, aumenta com a idade, atinge mais mulheres, em trabalhos extenuantes ou
naqueles com menores níveis de escolaridade, é inútil como sinal biológico (SBED, s/d -
2019). Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2012) inexistem dados disponíveis no Brasil,
entretanto dados norte-americanos mostram que 31% da população norte-americana têm
dor crônica, acarretando incapacidade total ou parcial em 75% dos casos.

Esse conceito de dor crônica é abrangente e abarca o aspecto físico (real) e psíquico
(subjetivo), portanto considera a complexidade que envolve o adoecer de dor (doença em
si) mais do que apenas um sintoma (acessório) ligada a um quadro patológico. O conceito
de dor, atualmente compreende três componentes: o sensitivo-discriminativo (sensação
física), o afetivo-motivacional (emocional) e o congnitivo-avaliativo (pensamento) (Volich,

25
2010). Ressalta-se no presente estudo, o aspecto emocional e suas repercussões de
sofrimento para a pessoa que é diagnosticada com dor crônica.

Nesse sentido a teoria psicanalítica vem, desde seu início como ciência, tentando
ampliar a compreensão dos fenômenos psíquicos que não encontram explicação médica-
orgânica. Freud (1969/1996) ao estudar a histeria apontou caminhos para o entendimento
de como as dores da alma (psíquicas) poderiam ser expressas como sintomas físicos.

Melanie Klein (1957/1984) aprofundou os estudos observacionais e a teoria


apontando que, desde as relações iniciais mais arcaicas, ou seja, na mais tenra infância o
bebê pode vir a desenvolver um ego mais ou menos integrado. Essas condições colaborarão
para a saúde mental e vivência corporal com mais ou menos sofrimento psíquico (e formas
adequadas de expressão destas), uma vez que sua teoria das posições pressupõe uso de
mecanismos de defesa mais ou menos maduros a depender do percurso de
desenvolvimento emocional do bebê.

Ainda nessa direção, a psicanálise, permite compreender que todo adoecimento do


corpo comunica algum desequilíbrio entre a psique soma
(Freud, 1969/1996, Winnicott, 1971/1975, Laurentiis,2016). A Psicologia Psicossomática
oferece a possibilidade de compreender algumas relações do binômio mente-corpo, que
podem ajudar determinados pacientes a se recuperar das condições de sofrimento
(Bushnell, Ceko & Low, 2013). Assim, a doença psicossomática é vista, como um excesso
que não pode ser elaborado e que precisa ser descarregado no corpo (Marty 1993). Nesse
sentido freudiano em que o corpo pode ser via de expressão (adequada e inadequada) dos
afetos (Freud, 1969/1996), o corpo pode expressar os processos psíquicos da pessoa
portadora de dor crônica (Volich, 2010).

Intervenção Psicológica em grupo

A psicoterapia, incorporada ou não ao tratamento médico (ou às práticas integrativas),


pode ser feita de duas formas: individualmente ou em grupo. De acordo com as diversas
publicações estudadas por Cordioli e colaboradores. (2008), ambas as formas de
intervenção têm a mesma eficácia. O supracitado autor ressalta que o tratamento em grupo
poderá ser mais ou menos bem-sucedido dependendo da adesão dos pacientes, o que
costuma ser influenciado por dois fatores: diagnóstico clínico (com baixo fator preditivo para

26
sucesso no grupo) e as características individuais de cada participante, sendo a motivação
a principal delas.

As contraindicações para tratamento em grupo terapêutico na abordagem


psicodinâmica, (como será o do presente estudo), segundo Zimmerman (1997), incluem os
pacientes com as seguintes características: pouco motivados, muito deprimidos ou
paranóicos; com forte tendência a atos de natureza maligna (como exemplo os pacientes
psicopatas); que tenham riscos agudos, principalmente os de suicídio; que tenham déficit
intelectual ou elevada dificuldade de abstração; que estejam no auge de uma séria situação
crítica; que representem sérios riscos para uma eventual quebra do sigilo grupal e que
tenham um histórico de abandono de terapias anteriores (abandonadores compulsivos).
Cordioli e colaboradores (2008) acrescentam, ainda, os dependentes químicos em grau
severo, porém vale salientar que muitos dos pacientes citados acima podem participar de
grupos homogêneos (com mesma patologia ou situação de risco) e terem sucesso, ou
alguma melhora, com o tratamento terapêutico.

A importância dos trabalhos envolvendo grupos vem se destacando nas pesquisas


qualitativas, uma vez que o ser humano é um ser gregário e tende a ter uma facilidade maior
na resolução de problemas, quando está reunido em grupos (Souza, Crestani, Vieira,
Machado e Pereira, 2011).

OBJETIVO
Tendo isto posto, o presente artigo tem o objetivo geral de buscar e analisar as
publicações sobre o tema ‘Intervenção psicológica grupal na dor cônica’ disponível on line,
sendo estabelecido como objetivos específicos investigar as seguintes variáveis: (1) Tipo
de estudo e (2) Principais resultados.

MÉTODO

Esta pesquisa é uma revisão da literatura, do tipo: descritiva, de levantamento


(Volpato e colaboradores, 2013)
O estudo foi elaborado a partir da apreciação dos artigos científicos publicados em
periódicos indexados na base de dados PsycInfo (APA, 2019) que é um banco de dados
eletrônico da Associação Americana de Psicologia_APA, e que proporciona uma cobertura

27
sistemática da literatura psicológica, com produções a partir do ano 1800 até o presente,
disponibilizadas aos associados da APA ou àqueles que, por meio de parceria, possam
pagar por seus artigos. Essa base de dados foi escolhida por: (1) ser considerada uma fonte
de artigos científicos reconhecida pela comunidade científica internacional; (2) permitir uma
ampla pesquisa e busca de resumos de artigos, capítulos de livros, dissertações, teses, entre
outros; (3) abranger periódicos de área específica do conhecimento de psicologia.

Material
A amostra foi composta por 29 artigos publicados no ano de 2018 (de um n=61).
Foram utilizadas na busca bibliográfica as palavras-chave: Intervenção psicológica e dor
crônica (group intervention e chronic pain), em língua inglesa, sem determinar o tipo de
periódico em que foi publicado.
Os critérios de inclusão adotados foram: o texto citar ser pesquisa de intervenção e a
população estudada deveria ter dor crônica. Foram excluídos 32 artigos em que os
participantes sofriam de dor pós-cirúrgica, estudos sem intervenção, participantes de
programas que não mencionavam dor, entre outros.

Procedimento
Após a leitura dos 61 resumos, observou-se que 32 estavam fora dos critérios de
inclusão e foram descartados. Nos demais (n=29) foi feita a leitura integral do artigo,
resultando num fichamento (e tabelamento) individual dos trabalhos avaliados.
A análise e discussão se deram de forma Quantitativa, pois se usou prioritariamente
a estatística descritiva.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Estes resultados consideram todas as 29 publicações selecionadas para esta


pesquisa (100% artigos científicos), resultantes majoritariamente de pesquisas de campo
(93%), com delineamento do tipo experimental (55%), interventiva (86%), embora a maioria
não tenha citado o tipo de intervenção (38%), as mais frequentemente citadas foram em
grupo e individual (24% cada) com resultados significativos (48%) na maioria deles

28
(Tabela1). A seguir apresentam-se os resultados conforme destacados nos objetivos
específicos estabelecidos:

(1) Tipo de estudo

Os resultados apontam que houve mais pesquisas de campo (n=27), com


delineamento do tipo experimental (n=16 ou 55%), exemplar desse formato foi o estudo
piloto de laboratório conduzido por Powers; Madan; Hilbert; Reeves; George; Nash; &
Borckardt (2018) que visava investigar a combinação de uma breve intervenção de
reestruturação cognitiva e estimulação transcraniana por corrente contínua (ETCC) sobre o
córtex pré-frontal dorsolateral esquerdo, afetando a tolerância à dor. O Piloto de laboratório
randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, conduzido na Universidade de Medicina
da Carolina do Sul, com total de 79 voluntários adultos saudáveis. A metodologia utilizada
contemplou randomização em um dos seis grupos: 1) anódica (estimulação transcraniana
por corrente contínua) ETCC mais uma breve intervenção cognitiva (BCI); 2) ETCC anódica
mais educação sobre dor; 3) ETCC catódica mais BCI; 4) ETCC catódica mais educação
sobre dor; 5) sham ETCC mais BCI; e 6) sham ETCC, mais educação sobre dor. Os
participantes foram submetidos a testes de tolerância à dor térmica pré e pós-intervenção
usando o Método dos Limites cujos resultados indicaram: Um efeito significativo para o
tempo (pré-pós-intervenção), bem como para a tolerância à dor térmica basal (covariável)
no modelo. Um efeito significativo de interação grupo x tempo foi encontrado na tolerância à
dor térmica. Cada um dos cinco grupos que receberam pelo menos uma intervenção ativa
superou o grupo que recebeu apenas ETCC simulado e apenas a educação sobre dor (ou
seja, grupo controle), com exceção do grupo anódico de ETCC + somente educação. A
CDTc catódica combinada com a BCI produziu o maior efeito analgésico. O estudo concluiu:
A combinação de ETCC catódica com BCI produziu o maior efeito analgésico de todas as
condições testadas. O estudo é muito completo e sugere pesquisas futuras podem encontrar
efeitos interativos mais fortes da ETCC combinada e uma intervenção cognitiva com doses
maiores de cada intervenção. Como este piloto de laboratório controlado empregou um
análogo da dor aguda e a intervenção cognitiva não representou autenticamente a terapia
cognitivo-comportamental per se, as implicações dos achados sobre o manejo da dor crônica
permanecem obscuras.

29
T Tabela 01: Artigos publicados em 2018 (n=29), PsycINFO, SP, 2019
Artigo F %
Tipo de estudo
Pesquisa 27 93
Teórica 2 7
29 100
Delineamento
Experimental 16 55
Descritiva 11 38
Quase-experimental 2 7
29 100
Abordagem
Interventiva 25 86
Não interventiva 4 14
29 100
Intervenção
Intervenção sem citação de formato 11 38
Grupo 7 24
Individual 7 24
Sem Intervenção 4 14
29 100
Nível de invasão da intervenção
Não invasiva 12 48
Invasiva 7 28
Pouco invasiva 6 24
25 0
População
Sem Informação 18 62
Idoso 3 10
Mulher 3 10
Mista (Homem e Mulher) 2 7
Artigos teóricos 2 7
Adolescente 1 3
29 100
Tamanho das amostras
01-50 13 45
51-100 7 24
101-150 4 14
151-200 1 3
201-250 1 3
251+ 3 10
29 100
Resultados
Significativos 14 48
Não citado 6 21
Pouco significativos 5 17
Médio significativos 4 14
Total 29 100

(2) Principais resultados

30
Referindo-se aos principais resultados, as pesquisas apontam que em catorze (48%)
dos estudos os resultados foram significativos, ou seja, colaboraram para a melhora dos
estados de dor nos pacientes. Pode-se apreender esses resultados no estudo de Torres;
Pedersen; & Pérez-Fernández (2018) cujo objetivo foi examinar a eficácia preliminar de uma
intervenção Grupal Musical e Imagética (GrpMI), que incluiu relaxamento, música e imagens
espontâneas, para melhorar o bem-estar psicológico subjetivo, capacidade funcional e
saúde, percepção da dor, ansiedade e depressão em mulheres com fibromialgia (FM).
Concluíram, após análises intra-grupo, que os participantes GrpMI tiveram um aumento
significativo no bem-estar psicológico e diminuição significativa no impacto da FM na
capacidade funcional e saúde, percepção da dor, ansiedade e depressão pós-tratamento,
com benefício sustentado em três acompanhamento mensal para todas as variáveis, exceto
o bem-estar psicológico. Os participantes do grupo controle apresentaram diminuição na
ansiedade-traço e depressão no pós-tratamento, sem benefício significativo no seguimento
de três meses. Análises intergrupos mostraram que, em comparação com os participantes
do grupo controle, os participantes do GRpMI apresentaram escores significativamente mais
altos para o bem-estar psicológico e ansiedade pós-tratamento no estado inferior; no
entanto, não foram observadas diferenças entre os grupos no seguimento de três meses.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos objetivos estabelecidos buscou-se e analisou-se as publicações sobre o


tema ‘Intervenção psicológica grupal na dor cônica’ disponível on line, no PsycINFO.
Especificamente se investigou as seguintes variáveis:
No (1) Tipo de estudo, destacou-se a pesquisa de campo, do tipo experimental, com
abordagem interventiva.
Os (2) Principais resultados encontrados foram significativos positivamente.
Essa pesquisa tem limitações que dizem respeito, primeiro ao tamanho pequeno da
amostra estudada. Em segundo lugar, os resultados encontrados dizem respeito a
populações específicas, com contextos histórico-culturais muito distintos e há fatores não
abordados como: os motivos que podem ter colaborado para que 52% das pesquisas
tenham sido não-significativas para a população estudada,
Conclui-se que necessárias novas pesquisas que visem corroborar os dados
encontrados, especialmente, utilizando-se um maior espaço temporal e, também é

31
necessário um maior aprofundamento na análise a fim de contribuir ainda mais para o
refinamento das informações encontradas.

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34
2- O DESENHO DA FIGURA HUMANA NA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DE
AGRESSORES SEXUAIS PEDÓFILOS NO CONTEXTO PRISIONAL

Bruna Andrade Oliveira Brito


Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Aicil Franco

Resumo: O presente trabalho refere-se a uma pesquisa qualitativa de base exploratória


onde foi feita uma breve exposição teórica acerca de um dos instrumentos mais
tradicionais na Avaliação Psicológica: o Desenho da Figura Humana (DFH), aliado a uma
apresentação e discussão de artigos científicos sobre Avaliação Psicológica, agressão
sexual infantil e pedofilia. O DFH é uma das técnicas de avaliação mais conhecidas e
utilizadas no Brasil, podendo ser útil na informação de características da personalidade
de agressores sexuais pedófilos. Enfatizou-se o uso desse instrumento através do olhar
gráfico projetivo, apontando uma relevância deste na Avaliação Psicológica. Durante
todo processo avaliativo e prático de pesquisa feita no Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico do Estado da Bahia, detectou a necessidade de uma reflexão mais
aprofundada acerca do comportamento desses sujeitos. A partir dos estudos realizados,
destacou-se a importância da técnica projetiva gráfica para auxiliar na avaliação da
personalidade desses indivíduos. Trata-se de uma temática complexa, polêmica e
emergente no campo da saúde e das ciências sociais. Enquanto a maioria dos estudos
investiga as vítimas, os poucos estudos científicos sobre agressores se concentram
principalmente em dados demográficos. Esse trabalho tem como objetivo avaliar
características de personalidade de agressores sexuais pedófilos no contexto prisional
através do DFH.

Palavras-chave: Desenho da figura humana. Sistema prisional. Agressores sexuais.


Pedofilia. Avaliação psicológica.

Introdução

A violência contra a criança e adolescente é um problema universal que atinge


milhares de vítimas de forma silenciosa e dissimulada. Trata-se, deste modo, de uma
tribulação que acomete os dois sexos e não costuma obedecer a nenhuma regra como

35
nível social, econômico, religioso ou cultural (Balloni & Bisi, 2008 como citado em
Florentino, 2015). Já a violência sexual contra menores, é caracterizada por atos
praticados com finalidade sexual que, por serem lesivos ao corpo e a mente do sujeito
violado (crianças e adolescentes), desrespeitam os direitos e as garantias individuais
como liberdade, respeito e dignidade previstos na Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança
e do Adolescente (Brasil, 1990).

As agressões sexuais contra as crianças e adolescentes sempre existiram ao


longo da história da humanidade e constitui-se um fenômeno multifatorial, que atinge
todas as camadas socioeconômicas, idades infanto-juvenis e todos os gêneros (Carter-
Lourensz & Johnson-Powell, 1999 como citado em Aded, Dalcin, de Moraes &
Calvalcante 2006). A violência sexual contra crianças e adolescentes pré-púberes só foi
enquadrada como um crime pela legislação brasileira no final do século XX no ano de
1988 com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990).
Esse fenômeno só passou a ser objeto de estudos e pesquisas no início do século XXI
(Krugman & Leventhal 2005 como citado em Aded, Dalcin, de Moraes, & Calvalcante.,
2006).

As agressões sexuais contra menores muitas vezes são consumadas por sujeitos
que portam o transtorno parafílico denominado pedofilia. A pedofilia por sua vez, é
caracterizada pelo Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-
V) como uma parafilia. A pedofilia é definida como interesse sexual predominante ou
exclusivo por crianças pré-púberes (geralmente com 13 anos ou menos), demonstrado
por um indivíduo adulto, tratando-se a criança como seu meio preferido ou único de
excitação e obtenção de satisfação sexual (American Psychiatric Association [APA],
2013).

A violência sexual contra crianças e adolescentes muitas vezes são consumadas


por sujeitos que portam o transtorno parafílico denominado pedofilia. Entretanto,
inúmeras vezes os conceitos de abuso sexual de crianças e pedofilia são aplicados de
forma indiscriminada, prejudicando a compreensão do fenômeno, uma vez que estes
sujeitos possuem motivações variadas para o crime e características psicológicas
bastante distintas (Carlstedt, 2012; Oliveira, 2016).

36
A pedofilia se caracteriza pelo interesse sexual predominante ou exclusivo por
crianças pré-púberes (geralmente com 13 anos ou menos), consumado por um indivíduo
adulto, considerando a criança como seu meio preferido ou único de excitação e
obtenção de satisfação sexual. O DSM-V distingue a pedofilia do tipo exclusivo do não
exclusivo, a do tipo exclusivo são portados por sujeitos que se sentem atraídos
unicamente por crianças e a do tipo não exclusivo, se refere aos sujeitos que se sentem
atraídos por crianças e por adultos (APA, 2013).

Por outro lado, agressores sexuais infantis do tipo comum cometem o ato de
violência sexual, independentemente de qualquer transtorno sexual. Na maioria das
vezes o abusador se aproveita da relação com a família da vítima além de apresentar
motivações variadas para os seus crimes (Lanning KV, 2001 como citado em Serafim,
Saffi, Rigonatti, Casoy & de Barro, 2009).

A Avaliação Psicológica dos agressores sexuais se configura um desafio para os


profissionais, devido à complexidade do fenômeno, especialmente no cenário brasileiro.
Há diversos instrumentos que podem ser empregados na avaliação psicológica. Os
instrumentos baseados em questionários também podem ser difíceis de ser empregados,
pois são vulneráveis à eventual manipulação de respostas por parte do avaliando
(podendo comprometer os próprios achados), especialmente quando se trata de
condutas antissociais e de traços psicopáticos (Carvalho, Bartholomeu & Silva, 2010 e
Scortegagna & Amaral, 2013). Assim, o uso de técnicas gráficas projetivas pode ser útil
na descoberta do funcionamento psíquico destes indivíduos. Os testes gráficos
cognitivos mais conhecidos são o Desenho da Humana Figura - DFH (Wechsler, 2003;
Sisto, 2005, Borsa, 2010) e o Teste Gestáltico Viso-Motor de Bender (Sisto, Santos &
Noronha, 2004, e Borsa, 2010).

(Hammer, 1981, p. 63) aponta os pressupostos básicos que fundamentam a visão


projetiva da figura humana:
1 - Os desenhos da figura humana são determinados por fatores psicodinâmicos
nucleares.
2 - Essa nuclearidade surge como resultado do conceito de imagem corporal. De
acordo com esse conceito, cada um leva consigo, em seu aparelho psíquico, uma
imagem física em sua estrutura e em grande parte inconsciente, do tipo de pessoa que

37
3 - Embora o desenho de uma figura humana seja determinado por uma
combinação de fatores culturais, de treino pessoal, biomecânicos, transitórios e
caracterológicos, estes últimos podem ser isolados, identificados e quantificados. O
treinamento artístico não disfarça os aspectos caracterológicos, mas se combina com
eles.
4 - Existem operações intermediárias entre os detalhes de um desenho e as forças
que o determinaram; essas operações possuem uma gramática e uma sintaxe similares
às que governam os símbolos oníricos, as formações na fantasia e os deslocamentos
somáticos. O desenho da pessoa também possibilita o conhecimento de habilidades
sociais gerais e específicas do indivíduo, ou seja, as tendências e características
predominantes em sua personalidade que podem facilitar ou dificultar a interação social
e o estabelecimento de relacionamento com o outro.

O Desenho da Figura Humana (DFH) é uma técnica antiga e que vem sendo
utilizada na avaliação do desenvolvimento cognitivo, das características emocionais e
dos aspectos da personalidade dos indivíduos (Segabinazi & Bandeira, 2012 e Borsa &
Bauermann, 2013). Além disso, é uma técnica econômica, de fácil e rápida aplicação, o
DFH tem sido um dos instrumentos mais utilizados pelos psicólogos brasileiros sendo
empregado com sucesso na exploração de diversas características psicológicas 3
(Bandeira & Arteche, 2008 como citado em Borsa & Bauermann, 2013).

A técnica do Desenho da figura humana propõe a realização do desenho de uma


(Koppitz, 1966, 1984) ou duas figuras humanas (Machover, 1967 e Borsa & Bauermann,
2013) e, conforme os objetivos da avaliação, pode ser analisada a partir de três
perspectivas: cognitiva, projetiva e emocional. A perspectiva cognitiva entende o
desenho como uma medida de avaliação do desenvolvimento cognitivo, por meio da
pontuação da presença e qualidade de itens apresentados (Goodenough, 1974 e Borsa
& Bauermann, 2013). Já a avaliação projetiva propõe que o desenho seja uma forma de
manifestação dos aspectos inconscientes e expressivos da personalidade (Hammer,
1991, Machover, 1967 e Borsa & Bauermann, 2013)

3
Atualmente o DFH isoladamente para avaliação da personalidade não é aprovado para uso
profissional do psicólogo pelo SATEPSI (www.cfp.org.br) . O emprego em pesquisa é estimulado,.e
dentro da bateria do HTP se encontra favorável.

38
No contexto da avaliação psicológica clínica, o DFH vem se mostrando um
instrumento sensível para avaliar problemas emocionais (Arteche, 2006 como citado em
Borsa & Bauermann, 2013) e, neste sentido, seu uso parece adequado em processos de
triagem ou de avaliação inicial (Bandeira & Arteche, 2008 como citado em Borsa &
Bauermann, 2013).

A avaliação das técnicas gráficas, e entre essas o Desenho da Figura Humana podem
ser avaliados ainda considerando a forma com que o indivíduo responde à tarefa de
desenhar. Nesse sentido, tem-se os chamados aspectos adaptativos que se referem à
adequação do examinando à tarefa, considerando a qualidade da produção tanto em termos
formais de correspondência ao grupo etário e sociocultural ao qual o indivíduo pertence,
quanto à compatibilidade entre o que foi solicitado e o que foi produzido (Van Kolck, 1984).
Como aspectos formais se interpretam os aspectos os quais traduzem as atitudes básicas
do indivíduo em relação a si mesmo e ao ambiente, assim como a forma como ele lida com
seus impulsos (Hammer, 1991). O conteúdo do desenho, contemplado pelo estudo dos
aspectos projetivos os quais se concentram no modo como o tema é tratado e avalia a
atribuição de qualidades às situações e objetos representados, o que permite identificar
áreas de conflito mais significativas (Van Kolck, 1984).

É necessário compreender a estruturação psicológica daqueles que cometem a


agressão, procurando maneiras adequadas de ler seu funcionamento psíquico e
manifestações de sua subjetividade, que podem levar, nessa base, ao desenvolvimento
de projetos de intervenção e tratamento psicológico de delinquentes sexuais (Tardivo &
Pinto Junior, 2015).

No contexto penitenciário esta avaliação se faz extremamente necessária pois visa


aferir aspectos como o risco que o preso apresenta para a sociedade e para outros
presos. Além de inferir a possibilidade de reincidência criminal e levantar aspectos da
personalidade do indivíduo, avaliando o estado mental do preso e sua personalidade,
diagnosticando assim possíveis transtornos de personalidade (Ambiel, 2006). Trata-se
de uma temática complexa, polêmica e emergente no campo da saúde e das ciências
sociais. Enquanto a maioria dos estudos investiga as vítimas, os poucos estudos
científicos sobre agressores se concentram principalmente em dados demográficos
(Pádua Serafim, Saffi, Rigonatti, Casoy & Barros, 2009).

39
Objetivos e justificativa

O presente trabalho tem como objetivo avaliar características de personalidade de


agressores sexuais pedófilos adultos no contexto prisional por meio do Desenho da
Figura Humana (DFH).O desenvolvimento de pesquisas sobre tais métodos é importante
devido à elevada incidência de casos de agressões contra menores e às consequências
negativas para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e social das vítimas e dos sujeitos
agressores além de ser extremamente importante para a sociedade, como forma de
esclarecimento e proteção da mesma (Silva, Pinto & Milani, 2013).
Os dados são de grande relevância social, pois possibilitam nortear os
profissionais, principalmente os psicólogos, no planejamento e eficácia da avaliação,
bem como, no estabelecimento de estratégias de prevenção e intervenção.

Método

1 Procedimentos

Trata-se de um estudo de caráter exploratório com o emprego do método


qualitativo, baseado em estudos de caso. Esse trabalho faz parte da pesquisa
“Atualização do Teste do Desenho da Casa- Árvore-Pessoa (HTP) no Contexto
Brasileiro: Estudos de Fidedignidade e Validação”, desenvolvida pela Prof.ª Dr. ª Leila
Salomão de La Plata Cury Tardivo (Tardivo, 2016).

2 Participantes

Nesta pesquisa participaram 2 homens reclusos na Casa de CUSTÓdia por


estupro de vulnerável com duração da pena de 3 anos. Os casos foram selecionados por
conveniência, de forma não aleatória, a partir da análise dos processos disponibilizados
pela instituição penal onde os sujeitos estavam alocados. Os critérios de inclusão da
pesquisa foram destinados a homens agressores sexuais pedófilos reclusos em casa de
custódia que possuem a faixa etária entre 43 a 50 anos.

O primeiro participante (P1) possui o diagnóstico Psiquiátrico de Psicose não


especificada e pedofilia e o segundo participante (P2) possui o diagnóstico de Retardo
Mental e pedofilia. Em relação aos dados da agressão sexual perpetrada, P1 agrediu

40
sexualmente a sua filha de 11 anos de idade e P2 foi pego em flagrante agredindo
sexualmente sua vizinha, uma criança de 5 anos de idade.

A coleta de dados se deu no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do


Estado da Bahia, localizado na região periférica da cidade de Salvador. Destinada a
receber, sob regime de internação e por determinação judicial para perícia, custódia e
tratamento, indiciados, processados e sentenciados, suspeitos ou comprovadamente
portadores de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardo, em
regime fechado (Viana, 2012).

O projeto amplo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da


Universidade de São Paulo (CEPH-IPUSP), (CAAE: 60486016.7.0000.5561). Os
participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), de
acordo com os preceitos éticos.

3 Instrumentos

Foram utilizados os instrumentos: uma entrevista semiestruturada (elaborada pela


coordenadora do projeto), usada com o propósito de levantar informações
sociodemográficas, e outras características. Os Desenhos da Figura Humana. Para esse
estudo optou-se por empregar as duas figuras: de ambos os sexos, seguindo as
instruções de Machover e Van Kolck. Os desenhos da figura humana, anexados no final
do trabalho (anexos 1, 2, 3 e 4). No presente estudo, foram analisadas as seguintes
variáveis relativas ao desenho da figura humana: aspectos adaptativos, expressivos e
projetivos. Aspectos adaptativos: adaptação temática, convencional, original, fantasista
e bizarra; Adaptação gráfica: além do esperado, esperado, além do esperado.

Aspectos Expressivos: tamanho, localização, pressão, sombreado, traçado, linhas


7. Detalhes, organização, outras características da produção, simetria, inclinação, linha
do solo, movimento, transparência, tridimensionalidade e rasura.
Aspectos Projetivos: sequência, gênero, tipo de representação, perspectiva,
cabeça, cabelos, olhos, nariz, boca, tamanho, dentes, orelhas, pescoço, tronco, braços,
mãos, quadris, genitais, cintura, pernas, pés, calçado, roupas, acessórios e elementos
do ambiente.

41
Participante 1
ANEXO 1- Desenho da primeira pessoa do interno ANEXO 2- Desenho da segunda pessoa do interno
intitulado P1 intitulado P1

42
Participante 2

ANEXO 3- Desenho da primeira pessoa do interno intitulado P2 ANEXO 4- Desenho da segunda pessoa do interno intitulado P2

Resultados e discussão

Com respeito aos aspectos adaptativos observa-se que ambos os


participantes tendem a interpretar os dados do ambiente de modo discordante do
consenso, o que dificulta a adaptação ao mundo social, pois são todas as
produções bizarras (mais intensamente em P1). A produção se mostra pobre e
abaixo do esperado para o grupo etário são todos quem do esperado.

No que se refere aos aspectos expressivos, nota-se em P1 os desenhos no


3° quadrante o que indica conflitos, egoísmo, regressão a um estágio primitivo. (Van
Kolck, 1984) junto de sentimento de insegurança e inadequação (Buck, 2009).

43
O traçado predominante é trêmulo em ambos e interrompido traçados trêmulo
e interrompido se refere à forte identificação com o desenho da Pessoa, o que gera
maior ansiedade. Há evidências de falta de autonomia, falta de base e de segurança
pela ausência de linha de solo (Xandró, 2005).
Há fortes evidências de desorganização da personalidade de ambos: pois a
produção de ambos tem sinais de desorganização e muitos detalhes bizarros – mais
no P1, mas também no P2. Há indícios de transparência no P2, especialmente.
No P1 – os desenhos são incompletos e caindo – todos sinais de intensas
dificuldades e ausência de linha de solo em ambos.
Nos desenhos com relação aos aspectos projetivos predominam sentimentos
de inferioridade e inadequação, representação em palito no P1 indica evasão e com
detalhes bizarros.
Pode haver dissociação entre intenção e ação (Braços com falhas de
integração com o tronco) e desenvolvimento (no caso das pernas com falhas de
integração com o tronco) (Hammer, 1991). Há indícios de preocupação impulsos
sexuais: falta de corpo no P1 e transparência de seios no P2.
Chama atenção os indicativos de baixa capacidade de comunicação visual e
de pouca abertura para o contato com o mundo externo pelos olhos vazados (Van
Kolck, 1984).
Há indícios de dificuldades na área da sexualidade (frequência mais alta de
omissão e de representação infantil do nariz, e de revolta em relação à sociedade
(evidências da área sexual em P2). Há indícios de forte agressividade pelos dedos
como palitos, ausência de calçado em corpo nu (Van Kolck, 1984).
Há indícios de presença de necessidades orais e dependência ou
impossibilidade de comunicação ou ainda de gratificação oral (pela omissão da boca
ou aberta (Xandró, 2005).

Conclusão

Conclui-se que a produção de ambos e empobrecida e destoante do consenso.


Os sentimentos de inferioridade e inadequação são compensados por narcisismo. Há
evidências de impulsos intensos e escassamente controlados. As estratégias
defensivas são primitivas e há risco de desorganização em caso de falha dessas
estratégias. Há sinais de desorganização da personalidade, pela intensidade dos

44
desenhos bizarros. Há indícios de rejeição aos valores sociais convencionais e
expressão direta da agressividade.
A partir deste estudo, é importante destacar a relevância da aplicação do Desenho da
Figura Humana, tendo em vista sua praticidade e estudos que comprovam sua
capacidade em avaliar aspectos da da personalidade desses sujeitos. Tanto P1
quanto P2 apresentam aspectos de personalidade bastante regredidos, imaturos e
fixados em seus passados existenciais.

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46
3- A UTILIZAÇÃO DO QUESTIONÁRIO DESIDERATIVO EM PACIENTES
ESQUIZOFRÊNICOS NUMA UNIDADE DE INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA NO
ESTADO DA BAHIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

Bruna Andrade Oliveira Brito


Aicil Franco
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo

Resumo: O Questionário Desiderativo é um instrumento projetivo verbal de Avaliação


Psicológica, que avalia o grau de estruturação do ego, mecanismos de defesa e traços
de personalidade predominantes em cada sujeito. Esse trabalho derivou-se de
experiências vividas durante a aplicação deste questionário em pacientes
esquizofrênicos internados no hospital psiquiátrico Juliano Moreira na cidade de
Salvador no estado da Bahia. A avaliação destes pacientes se deu por meio da
aplicação do desiderativo juntamente com uma entrevista semiestruturada e análise
qualitativa da experiência vivenciada. Dessa forma, a aplicabilidade do questionário
possibilitou um resultado que não estagnasse no modelo hospitalocêntrico do cuidado
a saúde mental, uma vez que, compreende o paciente dentro de seus desejos. O
trabalho foi delineado a partir de um estudo exploratório do questionário, buscando
aproximar a teoria da prática profissional da Psicologia dentro deste contexto.
Permitindo, a partir da literatura e experiência vivida, uma possibilidade de
contextualização sobre a utilização do desiderativo nesse cenário. Este trabalho teve
como objetivo descrever as impressões relatadas por pacientes esquizofrênicos
durante a aplicação do questionário desiderativo no hospital psiquiátrico Juliano
Moreira.

Palavras-chave: Questionário desiderativo. Hospital psiquiátrico. Esquizofrenia.


Relato de experiência.

Introdução
O movimento da reforma psiquiátrica brasileira é entendido como um amplo
processo político-social de transformação e traz como uma de suas lutas, a superação

47
do modelo hospitalocêntrico, da dicotomia sujeito/doença e de exclusão social,
propondo um novo olhar para as pessoas com transtornos mentais (Amarante, 2003
como citado em Castan & Brentano, 2017).
Fazendo o levantamento histórico dos transtornos mentais compreendidos
ao longo de toda narrativa, depara-se com a menção de alguns sintomas, hoje
associados aos sintomas da esquizofrenia, em textos hindus e gregos, no período
antes de Cristo. Porém, foi a partir do século XIX que surgiram descrições mais
precisas que delinearam a esquizofrenia tal como é conhecida hoje (Louzã & Helio,
2007 como citado em Moll & Saeki, 2009).
A esquizofrenia por sua vez, é uma patologia séria e persistente que
ocasiona comportamentos psicóticos e diversas dificuldades ligadas aos
relacionamentos interpessoais, ao processamento de informações, à solução de
problemas, entre outras. De acordo com essa afirmativa, a esquizofrenia é um
transtorno psicótico, uma vez que a psicose é definida segundo a percepção da
realidade de um paciente e do comportamento advindo dessa percepção (GW & MT,
2001 como citado em Moll & Saeki, 2009).
Em função disso, é interessante abordar um dos aspectos mais importantes
dessa nova configuração do campo da saúde mental na contemporaneidade: os
modos de trabalho com a loucura e diferentes transtornos psiquiátricos. Os psicólogos
compõem uma categoria profissional historicamente vinculada ao campo da reforma
psiquiátrica. Eles têm sido convocados a atuar nesse processo de luta antimanicomial
como atores sociais com uma grande importância. Uma das áreas possíveis de
atuação é a Psicologia da saúde (Sales & Dimenstein, 2009).
A psicologia da saúde pode ser compreendida como um domínio da psicologia
que utiliza vários conhecimentos resultantes de estudos e de pesquisas psicológicas,
com o intuito de promover e proteger a saúde. Ela se constitui como uma das formas
de se compreender o adoecimento e as maneiras pelas quais o homem pode manter-
se saudável. Em um campo não uniforme de teorias e técnicas, cujas contribuições
são oriundas de diferentes áreas ou especialidades, a psicologia da saúde vem
ganhando espaço e importância em âmbitos multi e interdisciplinares para a
compreensão dos vários fenômenos relacionados à saúde e ao adoecimento, bem
como vem propondo intervenções para a melhoria e manutenção do bem-estar
humano (Matarazzo, 1982 como citado em Capitão, Scortegagna & Baptista, 2005).

48
Neste contexto, a importância da Avaliação Psicológica do paciente, em
contextos de saúde humana, torna-se fundamental. O processo de avaliação, além de
voltar-se para a natureza da solicitação e das condições do paciente deve adequar-se
às características do ambiente (ambulatórios, enfermarias) que nem sempre são muito
adequadas. A escolha de instrumentos, como, por exemplo, entrevistas, protocolos,
questionários, testes psicológicos psicométricos, projetivos e técnicas de observação,
deve ser adequada e bem planejada, sob o risco de prejudicar a avaliação. (Capitão,
Scortegagna & Baptista, 2005). Esta, é uma ferramenta exclusiva do psicólogo, na
qual pode-se utilizar instrumentos para auxiliar na formulação de hipóteses e
inferências confiáveis para o diagnóstico (Lopes & Amorim, 2004 como citado em
Castan & Bretano, 2017).
As condições ideais para o trabalho avaliativo estão na possibilidade de
sobrepor diversificadas informações oriundas de observação, análise das funções
mentais, entrevistas e dados da história do sujeito. Estas devem ser cruzadas com os
resultados dos testes, que, ao longo do processo, geram hipóteses que vão sendo
validadas ou refutadas, dando origem à novas configurações de hipóteses (Anastasi
& Urbina, 2000 como citado em Castan & Brentano, 2017).
A literatura aponta que os testes projetivos, por serem constituídos de
materiais ambíguos e pouco estruturados, em que o indivíduo está livre para
responder, facilitam a projeção de aspectos mais profundos da personalidade
(inconscientes). Assim, as instruções ou os estímulos destes instrumentos atuam
como mediadores das relações vinculares que mobilizam variados aspectos na vida
emocional. Desta forma, através da Avaliação Psicológica com uso de testes
projetivos é possível a compreensão do funcionamento psíquico do ser humano
(Augras, 1980; Grassano, 1996; Bunchaft & Vasconcellos, 2001 como citado em
Medeiros & Pinto Junior, 2006).
Dentro da diversidade de instrumentos projetivos na área de avaliação
psicológica, o Questionário Desiderativo tem se destacado, na prática clínica, como
importante técnica projetiva, favorecedora de relevantes informações sobre os
dinamismos da personalidade dos indivíduos (Brêga, Frazatto & Loureiro, 2001;
Ocampo, Arzeno & Piccolo, 1979/1985; Paulo, 2005 como citado em Guimarães &
Pasian, 2009). Este por sua vez é um instrumento de Avaliação Psicológica que estuda
o grau de estruturação do Ego por meio de expressão verbal, mobilizando ansiedades
e defesas. Informando sobre características de personalidade, como defesas, conflitos

49
básicos, força do ego, qualidade dos afetos, tipo de relações objetais, entre
outras. Esse questionário consiste basicamente na questão: "O que você gostaria de
ser se não fosse uma pessoa? Por quê?", solicitando três escolhas e três rejeições
com as respectivas explicações. A resposta escolhida corresponde ao símbolo
desiderativo e o porquê da resposta representa a expressão desiderativa (Medeiros &
Pinto Junior, 2006).
O Desiderativo fornece informações acerca do funcionamento
psicodinâmico, como características de personalidade, defesas, conflitos básicos,
força do ego, qualidade dos afetos, tipo de relações objetais, recursos defensivos,
força do ego, aspectos afetivos, entre outras informações importantes em avaliação
psicodiagnóstica de abordagem psicodinâmica (Nijamkin & Braude, 1996/2000 como
citado em Guimarães & Pasian, 2009). É um instrumento aplicável a uma grande
parcela da população, além de ter seu uso favorecido por economia de tempo e por
não exigir habilidades específicas para respondê-lo. Essas características destacam
a técnica projetiva como um instrumento bastante promissor para o campo da
avaliação psicológica (Guimarães & Pasian, 2009).
Tanto as escolhas, como as rejeições são enquadradas em três categorias:
animal, vegetal e reino inanimado (Bunchaft & Vasconcelos, 2001; Nijamkin & Braude,
2000). Desta forma, este teste proporciona ao sujeito que o experencie uma vivência
de aniquilação enquanto ser humano, pois precisa imaginar-se como figura não-
humana, portanto e implicitamente: morta (Medeiros & Pinto Junior, 2006).
A riqueza das informações fornecidas, aliada a fatores como economia de
tempo, possibilidade de aplicação a um amplo espectro da população e a não
requisição de habilidades específicas (motoras, sensoriais) para respondê-lo, tornam-
no um instrumento bastante valioso e promissor para o campo da avaliação
psicológica (Guimarães, Pasian & Barbieri, 2006).
Assim, a cada nova consigna o sujeito submete-se a novas perdas, ou seja,
mortes imaginárias. O Questionário Desiderativo coloca o sujeito frente à pulsão da
morte e a impossibilidade de ser, podendo ser observado por meio das respostas o
esforço defensivo do Ego para se recuperar e absorver o impacto sofrido, assim como
sua modalidade defensiva predominante (Nijamkin & Braude, 2000 como citado em
Medeiros & Pinto Junior, 2006). Trata-se de um instrumento indicado para explorar a
angústia, fantasias e defesas em torno da morte (Ocampo, 1981 como citado em
Medeiros e Pinto Junior, 2006).

50
Embora o Questionário Desiderativo ainda não tenha sido validado pelo
Conselho Federal de Psicologia no Brasil, encontra-se, na revisão bibliográfica,
inúmeras pesquisas relacionadas a esta técnica projetiva.
(Sneiderman, 2012 como citado em Pinto Junior & Tardivo, 2016) considera o
Questionário Desiderativo uma técnica simples em termos de administração, rápida,
econômica e, sobretudo, rica em seus alcances exploratórios, propiciando a
investigação e interpretação de certas características e traços de personalidade e de
caráter do sujeito.
Desta forma, esse instrumento pode ser considerado uma técnica bastante
eficaz para o estudo do funcionamento psicológico e estrutura do Ego destes
pacientes psiquiátricos, por meio da análise de seus mecanismos de defesa, fantasias
e angústias primárias.

2 Objetivo
Descrever as impressões relatadas por pacientes esquizofrênicos durante
a aplicação do Questionário Desiderativo no hospital psiquiátrico Juliano Moreira
Espera-se que a realização desse estudo possa trazer efetivas contribuições
na compreensão de aspectos relativos a este espaço e à saúde mental destes
pacientes. Além disso, espera-se ampliar a percepção e reconhecimento da utilização
do questionário desiderativo neste contexto.

3 Relato de Experiência
O período referente às vivências relatadas neste trabalho foi de março a julho
de 2017. O primeiro momento da vivência no hospital psiquiátrico compreendeu em
captação da realidade, estratégia metodológica de aproximação com a instituição e
seus funcionários, que possibilitou a examinadora o reconhecimento do cotidiano no
serviço, as dificuldades e desafios enfrentados, o perfil sociodemográfico dos usuários
e as necessidades prementes a serem trabalhadas na instituição, estas adaptadas e
revistas a cada visita.
Uma das atividades desenvolvidas pela discente nesta unidade de Internação
Psiquiátrica foi a aplicação do questionário desiderativo junto a uma entrevista
semiestruturada. Os pacientes também assinaram o TCLE (termo de consentimento
livre e esclarecido).

51
A escolha dos usuários se dava pelo meio do diagnóstico psiquiátrico e
disponibilidade de cada um. A coordenadoria do hospital emitia diariamente uma lista
com os pacientes marcados para o turno e seus respectivos diagnósticos médicos.
Foram escolhidos então, apenas os usuários que possuíam o F20 - Transtorno
esquizofrênico, segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde - CID 10.
O primeiro contato com os usuários se deu através de uma abordagem
verbal da examinadora, onde o convite para a participação ao usuário era feito, logo
após, o TCLE era apresentado juntamente com a entrevista semiestruturada e
consequentemente, o objetivo e a estruturação do processo avaliativo também eram
abordados durante a apresentação. Além do termo de consentimento e rapport,
iniciava-se a obtenção de dados específicos e subjetivos de sua história passada e
atual, estabelecendo assim, uma relação terapêutica entre os envolvidos.
Após assinarem o TCLE e responderem a entrevista semiestruturada, a
acadêmica iniciava a aplicação do questionário. A maioria dos pacientes submetidos
a esta avaliação, relatavam que se sentiam angustiados diante das perguntas do
questionário. Ao serem questionados sobre essas indagações, foi percebido uma
resistência diante das respostas, eles diziam que não queriam pensar sobre o assunto
mencionando na pergunta pois isso os incomodava e os deixavam ansiosos e
impacientes. Muitos dos avaliados, deixaram as demais perguntas sem resposta e
diziam que não conseguiriam pensar sobre a questão enunciada pois “não existe isso
de ser outra coisa além de ser humano.” Sic.
A acadêmica também se mantinha atenta às suas impressões, relação com
o público, profissionais da área e reações com relação aos pacientes, sendo esta
também, uma fonte de informações e conhecimento dos casos. A própria história do
hospital, por si, já ofertava um misto de sensações e percepções acera do processo
de saúde mental. Foram realizadas 9 visitas à unidade hospitalar, onde 20 pacientes
participaram das avaliações, estas por sua vez, foram realizadas numa sala que ficara
disponível para a coleta de dados.
Em cada dia de aplicação do questionário desiderativo, foram comentados
o seu significado e sua representação. A singularidade expressa nas respostas e na
fala dos usuários, configurou-se em um momento de compartilhamento de diferentes
e semelhantes experiências de vida marcados por algum tipo de violência social, que
através da socialização verbal, permitiu uma troca de saberes e práticas cotidianas de

52
sofrimento e superação, apontando uma admirável capacidade de mudança do
homem.
Nesse sentido, todo processo foi valorizado, desde o primeiro contato com
os pacientes na sala de espera e corredores do hospital, até as atividades
desenvolvidas durante a dinâmica de coleta de dados, que abordaram conteúdos
psíquicos e simbólicos.
A experiência obtida foi de grande valia durante o processo de atividades no
hospital psiquiátrico. Todas as histórias carregavam em si uma grande representação
de lutas individuais e sociais, regados por meios de expressão individual e coletiva
contendo um essencial valor social e material para nossa sociedade.
O ser humano que vive a doença mental revela suas percepções em
perspectivas diante do mundo vida. Esse é o vivido, enraizado pela experiência
humana num leque de significados singulares em que cada um percebe, em dado
momento circunstancial. A essência do sujeito permanece como figura de fundo nas
suas significações como vida, mas elas não são estáticas. Há o movimento da
consciência diante de si, do tempo de novas experiências e significações do vivido.
Quando o ser humano necessita iniciar o seu pensamento, precisa se movimentar
diante de si, mergulhar em seu corpo, que constitui o seu mundo, sem negá-lo diante
das incertezas do mundo sensível (Freitas, et al., 2013 como citado em Ely et al.,
2017).

4 Discussão
A partir deste breve percurso, foi possível tecer considerações relevantes para
a compreensão de alguns fenômenos surgidos em processos de avaliação psicológica
desses pacientes. A partir do exposto, pode-se pensar que a dificuldade e resistência
dos pacientes em responder as questões abordadas no questionário seja derivado do
seu quadro clínico uma vez que indivíduos esquizofrênicos possuem algumas
limitações, de modo geral, decorrem da deterioração de vários processos mentais,
fazendo com que o indivíduo apresente alguns sintomas característicos da
esquizofrenia (OMS, 2000 como citado em Oliveira, Facina e Júnior, 2012).
Os sintomas negativos da esquizofrenia são aqueles em que ocorre perda
da função, caracterizando-se por diminuição da atividade motora e psíquica, bem
como das manifestações emocionais, exemplificados como afeto plano e anedonia.

53
Esses sintomas podem ocorrer também devido a causas secundárias da
doença como privação ambiental, quadros depressivos, ansiedade, além dos efeitos
colaterais das drogas antipsicóticas (OMS, 2000 como citado em Oliveira, Facina e
Júnior, 2012).
No Questionário Desiderativo, a racionalização se evidencia quando o sujeito
justifica a razão de sua escolha e pode fazê-lo dentro da lógica formal. Desta forma,
uma grande parcela dos participantes desta pesquisa apresentou dificuldade para
referir os motivos de sua escolha, tal falha, para (Nijamkin & Braude, 2000 como citado
em Medeiros & Pinto Junior, 2016), pode representar uma dificuldade para distinguir
fantasia e realidade e a sensação que as perguntas são um ataque à sua integridade;
ou ego não diferenciado, não reconhecendo situações geradoras de ansiedade e não
sabendo que recursos utilizar em sua defesa. Durante a aplicação do questionário no
hospital psiquiátrico, a impressão obtida perpassou a possibilidade de existir uma
dificuldade por partes dos pacientes em nomear e entender este fenômeno
caracteristicamente humano, ou seja, a morte, que ameaça à integridade e o
sentimento de onipotência do sujeito.
(Kusnetzoff, 1982 como citado em Medeiros & Pinto Junior, 2016) afirma que
diante de estímulos que possam resultar num perigo ameaçador do equilíbrio do
aparelho psíquico, entram em funcionamento as diversas operações defensivas,
tendentes a reduzir a tensão. Ainda segundo o autor, a palavra defesa, exprime o
conjunto de operações efetuadas pelo ego perante os perigos que procedem do id, do
superego e do mundo exterior.
Neste sentido, os mecanismos de defesa podem ser considerados estratégias
utilizadas pelo Ego para lidar com os diferentes eventos ou perigos que podem gerar
angústia ou sofrimento.
No que se refere especificamente aos mecanismos de defesa utilizados pelo
profissional de saúde frente à vivência de dor e morte, (Pitta, 1999 como citado em
Medeiros & Pinto Junior, 2016) aponta alguns: sublimação, fragmentação da relação
técnico-paciente, despersonalização e negação da importância do indivíduo,
distanciamento e negação de sentimentos, tentativa de eliminar decisões pelo ritual
de desempenho das tarefas e redução do peso das responsabilidades.

54
5 Referências

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56
4- OS MEDOS DAS CRIANÇAS HOJE: IDENTIFICAÇÃO E COMPREENSÃO POR
MEIO DO PROCEDIMENTO DE DESENHO-ESTÓRIA COM TEMA
(DE-T)

Gislaine Chaves
Geovana Figueira Gomes
Edna Pereira Torrecilha
Helena Rinaldi Rosa
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Valeria Barbieri

Resumo: O medo comporta aspectos biológicos e fisiológicos, mas também sofre


grande influência do momento histórico e cultural em que se insere. É uma emoção
central para as experiências que definem o desenvolvimento emocional, junto com o
ambiente. Dessa forma, o objetivo do presente trabalho é realizar uma investigação
sobre a natureza dos principais medos que atingem crianças na sociedade brasileira.
Esse trabalho visou, assim, identificar e compreender os principais medos de crianças
do terceiro ano do ensino fundamental com o emprego do Procedimento de Desenho
Estória com Tema (DE-T). Foram analisadas 55 produções do DE-T, as quais deram
origem a cinco categorias temáticas: Personagens fictícios, Monstros não específicos,
Situações de Violência, Medos em geral e Outros. Os desenhos mostraram-se
sombreados e as narrativas associadas a dois eixos temáticos
Ameaça/Vulnerabilidade e Morte. De modo geral, as produções, com suas imagens
sombreadas e narrativas aterrorizantes, atuaram como representantes do mundo
interno das crianças investigadas, as quais puderam reconhecer os medos
internalizados.

Palavra-chave: Medo. Infância. Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema.

INTRODUÇÃO
O medo é uma emoção natural, e saudável, própria da condição humana
(Lemos & Mussoi, 2010). Constitui-se como importante sinal de alerta ante ao perigo,
ativando e potencializando o senso de sobrevivência humana, protegendo-nos do
caos.

57
O medo relaciona-se aos aspectos da realidade e do mundo imaginativo. As
pessoas, frequentemente, evitam situações que causam medo na vida real,
entretanto, o buscam na medida que acessam parques radicais, literatura, filmes e
programas de terror, entre outras situações da vida subjetiva, que possuem esse
objetivo (Lemos & Mussoi, 2010).
Santos (2003) afirma a importância da consideração do contexto histórico e
cultural na construção do medo. Assim, apesar de haver uma base fisiológica comum
imprescindível, o medo não é imutável e pode ser transformado de acordo com as
crenças pessoais que se formam no contexto do indivíduo e a sociedade
contemporânea, com suas particularidades, tem papel primordial para fundamentar
como serão experienciadas as emoções.
O estudo das etapas da infância aponta para medos comuns em diferentes
momentos do crescimento (Dumas, 2011), mas há também observações que
informam que a sua natureza se transforma conforme os avanços e as demandas da
sociedade (Bauman, 2008).
Freud (1909/2015) é um dos pioneiros no estudo do medo na abordagem
psicanalítica e analisou a fobia do pequeno Hans, de 5 anos, por meio dos relatos do
pai do menino, que também auxiliava no caso. Hans começou a apresentar um medo
intenso relacionado a cavalos, o que limitava a saída do menino de casa. Os conflitos
inconscientes que perturbavam o menino foram associados à ambivalência em
relação ao pai, que era uma pessoa admirada e amada, mas ao mesmo tempo gerava
ódio por ser uma figura de competição pelo amor da mãe. A criança, então, temia a
punição que poderia receber do pai caso realizasse suas fantasias amorosas. Assim,
a fobia apareceu como forma de proteção contra a angústia despertada por esses
conteúdos e desejos que não podiam ser realizados. Houve um deslocamento do
temor relacionado ao pai para a figura do cavalo, que nas fantasias do menino poderia
mordê-lo (castigá-lo). A escolha pelo cavalo como objeto de temor teve um significado
na vida de Hans, como a experiência anterior de uma ameaça em que o cavalo
morderia um amigo, junto com a admiração que a criança nutria por animais de grande
porte.
Winnicott (1994) também apresenta contribuições quanto à natureza das
angústias e dos medos para a abordagem psicanalítica. Com relação às angústias
vividas pelo bebê desde o início da vida, Winnicott (1963/1994) descreve, no estágio
de dependência absoluta, a presença das angústias impensáveis e o medo do

58
colapso. O colapso está relacionado com o fracasso na organização das defesas
contra as angústias impensáveis. Como ser dependente, o bebê não consegue se
defender das falhas que podem existir no ambiente, o que compromete o
desenvolvimento do seu sentido de ser; desse modo, ele apenas pode reagir e
desenvolver a ansiedade de aniquilamento. O ambiente, assim, precisa reduzir as
irritações ao redor do bebê, pois dessa forma, elas poderão ser absorvidas pela área
de onipotência dele.
Ao longo do desenvolvimento infantil, a criança pode apresentar alguns medos
que, a depender da circunstância, podem se tornar fobias, sendo que essa emoção
diz respeito ao desvelamento do desconhecido, do reconhecimento da realidade
interna e externa e de tomada de consciência sobre o mundo. Dessa forma, pode-se
dizer que o medo evolui conforme a idade. O recém-nascido vivencia a angústia de
separação da díade mãe/bebê, sendo esta considerada a angústia primeira, já que o
bebê é completamente dependente, no princípio da vida, de um outro que possa lhe
cuidar. Em torno dos seis e sete meses, o bebê se angustia diante daquilo que não
faz parte das referências que já possui, ficando incomodado com pessoas que não
reconhece. Por volta dos dois e três anos, a criança sofre com a ideia de que a figura
de referência, mãe ou outro significativo, pode sumir/desaparecer, pois ainda não
desenvolveu a noção de continuidade de objeto, ou dito de outra forma, de presença
e ausência (Anthony,2009).
O medo de ser abandonada ou ficar perdida ocorre por volta dos quatro e cinco
anos de idade, momento em que a criança alcança maior consciência de si e, por
conseguinte, do outro, fato que contribui para a presença de sentimento de culpa e
vergonha. Ainda de acordo Anthony (2009), a angústia de morte e de destruição, e a
compreensão do que isso significa, se fazem presentes por volta dos seis anos de
idade. O receio da morte da mãe, de se sentir dor e/ou se machucar, são exemplos
de tal angústia. Aos sente anos, a criança conquista a noção do Eu e, com isso, podem
surgir medos relacionados à rejeição alheia que farão, em maior ou menor
intensidade, parte da vida. Com a idade de oito anos, o medo da morte concreta, sua
e do outro, se efetiva. A criança reconhece, cognitivamente, o que representa a morte
e o ato de matar, compreensão que suscita a angústia de perda (Anthony, 2009),
De acordo com YI-FU (2005), ao longo do tempo, o medo tem sido tema de
muitos estudos. Entre estes, cabe citar o de Castilho (2000) que aponta que os medos
mais comuns na infância são de pequenos animais, aranhas, cobras, sapos, ratos,

59
injeções, escuridão, tempestade, bruxas, monstros, altura e ruídos intensos. Tais
achados são corroborados por Lemos e Mussoi (2010).
Muris, Merckelbach, Gadet e Moulaert (2000) descrevem, em pesquisa
realizada com crianças de idade de 4 a 12 anos, a presença comum de medos e
sonhos assustadores entre crianças de 4 a 6 anos, sendo estes ainda mais
proeminentes em crianças de 7 a 9 anos, havendo uma diminuição em frequência nas
crianças e pré-adolescentes com idade entre 10 e 12 anos. Os autores ainda
constataram que a prevalência de medos e sonhos assustadores relacionados à
criaturas imaginárias diminuiu com a idade, enquanto a preocupação com o
desempenho em provas e testes aumentou com o amadurecimento.
Adicionalmente, Vilhena, Bittencourt, Zamora, Novaes e Bonato (2011), em seu
estudo sobre o medo de crianças residentes no Rio de Janeiro, com idade de nove a
12 anos de idade, e as implicações da violência em suas produções, observaram que
tal variável oscilou de acordo com a classe social. Segundo as autoras, entre as
crianças de classe alta e média alta predominaram os medos de ladrão e sequestro,
sendo a favela um lugar de perigo. Já as crianças de classes populares, apontaram a
presença de medo de animais peçonhentos, de atropelamentos, do “caveirão” e de
balas perdidas, escancarando assim as representações sociais de cada população.
Ainda de acordo com os autores, como se trata de um afeto recriado ao longo
da vida do indivíduo, o papel do espaço físico ocupado por ele nessa construção é
fundamental. As diferenças encontradas entre as classes sociais reafirmam as
consequências da posição que o indivíduo ocupa no espaço, com os animais, sendo
motivo de perigo em comunidades mais carentes, com condições de moradias mais
precárias, enquanto as crianças de uma classe social mais alta entendem a favela
como objeto de temor. Os resultados encontrados refletem que medos reais estão
tomando o lugar de medos imaginários, dificultando que as crianças elaborem suas
ansiedades.
Numa visão mais recente, Nasi (2016), em sua dissertação de mestrado,
investigou o medo e sua evolução em crianças com idade entre seis e 11 anos por
meio do Desenho-Estória com Tema (DE-T) a partir dos aportes junguianos. Os
resultados encontrados apontaram para o desenvolvimento do medo de acordo com
o gênero, idade e ambiente social. Mais especificamente, a pesquisa observou a
preponderância de medos ligados à seres e situações concretas, seguido dos seres
fantásticos e sobrenaturais e, por último, ligado ao imaginário e projeções do futuro.

60
Assim, considerando a importância de se buscar entendimentos a respeito das
emoções das crianças, especialmente o medo, que é um sentimento que está
presente em todos os momentos da vida, mas que, a depender da intensidade, pode
comprometer o curso do desenvolvimento do indivíduo, entende-se a necessidade de
instrumentos que possam auxiliar no aprofundamento de tais concepções.
Nesse contexto, o DE-T (Aiello-Vaisberg, 1997) se apresenta como uma
alternativa para compreensão. O procedimento de Desenhos-Estórias com Tema foi
desenvolvido a partir da técnica de Desenhos-Estórias (D-E) de Walter Trinca (2013).
Trata-se de uma ampliação do Desenho-Estória proposto pelo mesmo autor, sendo
aplicado em diferentes estudos com temáticas previamente estabelecidas (Tardivo,
2013).
O procedimento pode ser aplicado de forma individual ou coletiva e consiste na
solicitação de um desenho a partir de determinado tema e, após a finalização deste,
pede-se também a elaboração de uma história sobre o mesmo. Dessa forma, a partir
de tal instrumento, objetivou-se compreender a experiência emocional de crianças do
terceiro ano de uma escola pública por meio do DE-T sobre “O medo de crianças em
São Paulo hoje".

MÉTODO
Esse estudo faz parte de um projeto maior, denominado “Os medos infantis na
contemporaneidade: relevância e repercussões interculturais: dados do Brasil,
França, Bélgica e Espanha”4 de autoria de Tardivo e Barbieri (2019) e teve como
intenção contribuir para o alcance de um de seus objetivos com vistas a identificar e
compreender os principais medos em crianças em idade escolar, a partir dos 8 anos
de idade, nos países já citados.
Para tanto, a fim de atingir os objetivos dessa pesquisa, foi adotada a proposta
de complementaridade referendada por Guimarães e Martins (2004). Tal
delineamento foi escolhido por abarcar o uso combinado de métodos qualitativos e
quantitativos, com vistas a obtenção de uma compreensão mais completa do
fenômeno em estudo.
Foram realizadas oficinas psicológicas em uma escola pública do estado de
São Paulo com alunos do terceiro até o nono ano do Ensino Fundamental entre os

E da pesquisa de Geovana Figueira Gomes para a Dissertação d Mestrado junto a FFCRP –


4

USP sob a orientação da Profa. Dra. Valeria Barbieri e co-orientação de Leila SPC Tardivo.

61
meses de março e abril de 2019. No contexto do presente estudo foi abordado o
trabalho desenvolvido com os alunos do terceiro ano e, no primeiro encontro realizado
com eles, o qual contemplou a realização do DE-T. As crianças foram apresentadas à
atividade pelas pesquisadoras e convidadas a participar. Assim, duas salas do terceiro
ano fizeram parte da pesquisa, totalizando 55 participantes.
O DE-T foi aplicado coletivamente, de acordo com as orientações e instruções
oferecidas por Aiello-Vaisberg (1997) e Tardivo (2013). Foram distribuídas folhas de
sulfite A4 na posição vertical e foi solicitado aos alunos que cada um desenhasse o
que quisesse, a partir do seguinte tema: “O medo de crianças em São Paulo hoje” e
na sequência escrevesse uma história sobre o desenho, no verso da folha. Também
foi solicitado que incluíssem no verso da folha dados relativos ao sexo e idade para
fins de levantamento de dados.
Nessa etapa, foram oferecidos lápis preto número 2 e borracha. Ao final, os
desenhos dos participantes foram coletados pelas pesquisadoras e expostos em lugar
comum, com o cuidado de preservar o anonimato dos participantes. Foi solicitado para
que em pequenos grupos observassem a produção coletiva. Na sequência, os
participantes comentaram sobre os desenhos com vistas a elencar os temas
emergentes.
Os dados alcançados fornecem informações sobre a maneira como os alunos
participantes da pesquisa concebem e representam o medo. Desta forma, os
resultados foram analisados em termos quantitativos e qualitativos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Análise quantitativa

Fizeram parte do estudo, 55 sujeitos. Destes, 29 (52,7%) eram meninos com


idade média de 7,8 anos e 26 (47,2%) meninas com idade média de 8 anos.
Foram avaliadas 55 produções do conjunto DE-T, as quais deram origem a
cinco categorias relativas à compreensão das crianças sobre a temática em estudo:
1) Personagens fictícios (Momo/ Slender Man/ It: A coisa/ Anabelle/ Jason); 2)
Monstros não específicos (Zumbis/ Fantasmas/ Monstros/ Caveira); 3) Situações de
violência (Assalto/ Bandido/ Assassino); 4) Medos em geral (De crescer/ do escuro/
de tudo/ de se perder ou ser esquecida) e 5) Outros (De animais/ insetos/ trânsito).

62
Cabe destacar que, embora fosse possível identificar mais de uma categoria nas
produções, deu-se preferência para a predominante no desenho (Tabela 1).

Tabela 1. Categorias temáticas, distribuídas por sexo, dos medos observados nos
desenhos.
Categorias N Meninas % N Meninos % N Total
Personagens fictícios (Boneca Momo/ Slender Man/ It: A coisa/ Anabelle/ Jason) 18 56,3 14 43,8 32
Monstros não específicos (Zumbis/ Fantasmas/ Monstros/ Caveira) 3 33,3 6 66,6 9
Situações de violência (Assalto/ Bandido/ Assassino) 2 25 6 75 8
Medos em geral (De crescer/ do escuro/ de tudo/ de se perder ou ser esquecida) 3 75 1 25 4
Outros (De animais / insetos/ do trânsito) 0 0 2 100 2

A fim de especificar as categorias temáticas mencionadas anteriormente em


relação às meninas e meninos descritas na Tabela 1, o Quadro 1 foi elaborado. No
que diz respeito à categoria 1. Personagens fictícios, a boneca Momo predominou
entre todas as meninas (17), com menor frequência entre os meninos (8). Na categoria
2. Monstros não específicos, nota-se que os meninos (5) citaram medo de monstros
em maior quantidade quando comparados com as meninas (2).
Na categoria 3. Situações de violência, observa-se que o medo de
assalto/roubo esteve presente em ambos os grupos, sendo os meninos mais
preocupados (4) com o assunto. Sobre a categoria 4. Medos em geral, as meninas (3)
demonstraram a predominância de medo de situações relacionadas ao esquecimento
de si, de tudo e do escuro. Por fim, a categoria 5. Outros apontou para a presença de
medos relativos ao trânsito e a animais e insetos não específicos (Quadro 1).

Quadro 1. Categorias temáticas detalhadas de acordo com o sexo e a frequência.

1. Pe rs onage ns fictícios 3. Situaçõe s de violê ncia


Momo Meninas 17 Assalto/Roubo 4
Meninos
Momo 8 Bandido/Assassino 2
Slender Man 3 Assalto/Roubo Meninas 2
Anabelle Meninos 2 4. Me dos e m ge ral
It: a coisa 1 Medo de crescer Meninos 1
Jason 1 Medo de tudo 1
2. Mons tros não e s pe cíficos Medo do escuro 1
Meninas
Se perder/ ser
Monstro Meninos 5 1
esquecida
Monstro 2 5. Outros
Meninas
Caveira 1 Trânsito 1
Meninos 63
Zumbis/Fantasma Meninos 1 Animais / insetos 1
Dentre os medos predominantes nas crianças investigadas, o medo suscitado
por personagens fictícios, comentados nas diferentes redes sociais, mídias ou
derivados de filmes e jogos eletrônicos, foram os mais citados. Tais personagens
possuem características humanas e cometem atos violentos que podem levar à morte.
O medo provocado por monstros não específicos foi o segundo mais citado
Bulhões (2010) corrobora tais achados, afirmando que faz parte do universo
infantil o medo relacionado a figuras fantásticas, como personagens de terror e
monstros. A autora também aponta a presença de medo nas crianças de tudo aquilo
que não podem controlar e que lhe é desconhecido, fato corroborado por Anthony
(2009).
Steibel et al. (2011), tendo em vista a perspectiva psicanalítica e seu estudo
sobre a latência na infância contemporânea, apontam que ao redor dos seis ou sete
anos, quando a criança passa a ser mais independente em relação aos seus pais, as
fantasias predominantes se referem a sentimentos de ser pequeno, vulnerável e
sozinho, sendo tal circunstância demonstrada, principalmente, através do medo de
monstros, dado presente nesse estudo. Freitas-Magalhães (2014) denomina tal medo
de cognitivo, pois diz respeito ao sentimento provocado pelo ato de pensar no objeto
assustador.
Adicionalmente, Loiola (2013) aponta que a grande maioria das crianças se
sentem atraídas pelas situações de medo provocadas por personagens fictícios.
Segundo o autor, o medo, nos moldes de um filme, tem início, meio e fim pré-
estabelecidos, fato que favorece a sensação de controle sobre tal emoção. Somado a
isso, Nasi (2016), aponta que assistir a um filme de terror “permite um treinamento de
como enfrentá-las (as cenas de medo) e uma elaboração por meio de imagens”
(p.164).
Nesse contexto, importa notar que a boneca Momo ocupou a maior parte das
produções. Tal dado revela sobre a relação das crianças com as redes sociais e a
repercussão do surgimento da boneca entre as famílias e sobre si mesmas. Ao se
observar os desenhos, pode-se verificar, de modo majoritário, a presença de traçado
forte e repassado, com muitos sombreamentos, dados que indicam a presença de
angústia, fato considerado esperado dada a carga afetiva provocada, sendo o medo
a expressão desse sentimento.
Infere-se que a intensidade de tal angústia se relaciona com o cenário em que
a boneca Momo se apresenta: ela invade vídeos infantis de determinada plataforma

64
da web e exige que as crianças realizem atitudes auto e heteroagressivas, as quais
podem levar à morte. Além disso, dada a união de referências humanas e animais,
sua imagem causa bastante estranhamento e os elementos que compõe sua
apresentação, uma roda giratória que visa “hipnotizar” o interlocutor, são aspectos
que, somados, contribuem para que o sujeito, na tentativa de compreender tal
situação, possa levar mais tempo para se distanciar de suas recomendações e,
conseguintemente, apresentar dificuldades para dissociar fantasia e realidade. De
acordo com Steibel et al. (2011), é natural que as crianças na faixa etária estudada
apresentem dificuldade de distinção entre o real e o imaginário, já que se encontram
em processo de estruturação egóica.
Outros medos, em menor intensidade, se fizeram presentes, como os
relacionados à questões da vida cotidiana, por exemplo, da violência provocada por
assaltos e roubos, obtiveram uma frequência baixa de citação. Freitas-Magalhães
(2014) denomina tal medo como reativo, já que diz respeito ao medo da vivência de
uma situação real.
Tal achado chama atenção. As crianças desse estudo são residentes em São
Paulo e estudantes de uma escola pública, com predomínio de classe popular,
estando sujeitos à violência real e a exposição virtual, divulgada pela mídia, a todo o
momento. Sobre isso, Vilhena, Bittencourt, Zamora, Novaes e Bonatto (2011) ao
investigarem o medo de crianças da cidade do Rio de Janeiro, com idade entre nove
e doze anos, por meio de desenhos, apontam que, entre as classes mais baixas,
predominaram os desenhos relativos a animais peçonhentos, atropelamentos e de
balas perdidas e “caveirão”, dados dissonantes daqueles encontrados nesse estudo.
Dessa forma, infere-se que o aparecimento da Momo na época da referida pesquisa
pode ter contribuído para que a incidência da violência urbana tenha sido menos
frequênte nos desenhos. Além disso, considera-se que as questões geográficas e a
faixa etária dos participantes do estudo também pode ter favorecido a menor
prevalência desse tema, já que seus pensamentos, conforme citado por Steibel et al.
(2011) e Bulhões (2010), estão mais ligados a aspectos da fantasia.
Para Zimmerman (2001), os medos têm conexão com estados de ansiedade
que são desencadeados por fatores internos e externos. Isto significa dizer que o
medo deve ser interpretado como tendo conexão com aspectos conscientes e
inconscientes do sujeito, cabendo, portanto, uma análise mais aprofundada sobre a
criança para compreender os motivos que a levam a essa angústia.

65
Fenichel (1981) fundamenta tal compreensão, acrescentando que os sintomas
fóbicos fazem parte do desenvolvimento infantil normal e que os impulsos e fantasias
da criança podem ser projetadas e representadas sob a forma de medo. Assim,
compreende-se que uma leitura atenta das histórias elaboradas pelas crianças para
os desenhos, se mostra como uma maneira de melhor compreensão sobre o que elas
temem.

Análise qualitativa
A partir da leitura de todas as histórias, aquelas com conteúdo semelhante
foram agrupadas e analisadas. Dessa forma, dois eixos temáticos condizentes com
as histórias das crianças desse estudo foram criados: 1) Ameaça / Vulnerabilidade e
2) Morte. A título de ilustração, são apresentados alguns desenhos e suas respectivas
narrativas, sendo os dados discutidos.
1) Ameaça / Vulnerabilidade
Fazem parte desse eixo temático os desenhos cujas histórias revelaram a
presença de medo associado com a ideia de Ameaça/ Vulnerabilidade. Como
abordado, nesse estudo, os desenhos cuja angústia se relacionava àquela suscitada
por personagens fictícios prevaleceram, de modo que nas histórias não foi diferente.
O DE-T se referiu exclusivamente a apresentação do objeto causador do medo.

Participante 1, 8 anos, masculino:

Título: A momo - “Era uma vez uma estátua do Japão chamada momo. Momo era uma
estátua normal, até um dia que ela criou um zap zap e começou a amaldiçoar e virar uma
lenda. Uns dias ela sumiu bastante, mas hoje ela voltou para uma vingança no Youtube. Eu
vi o vídeo da Momo aparecendo no Baby shark. Ela assusta crianças”.

66
Participante 2, 8 anos, masculino

Título: DHEIZON - “Eu tenho medo do Dheizon (Jason) porque ele usa uma serra elétrica”.

Participante 3, 8 anos, masculino.

Título: MOMO - “A momo é conhecida como matadora de criança no Youbtube, ela fica
mandando mensagem no Whatsap que vai matar as pessoas”.

Observa-se que os personagens fictícios desencadeiam medo e sensação de


vulnerabilidade nas crianças na medida que causam susto (Participante 1 e 3) e
ameaçam a sua integridade física, seja por meio de um material específico (serra
elétrica mencionada pelo Participante 2), ou por causa de sua fama assustadora
(Participante 3). Esses achados corroboram a compreensão de Anthony (2009), o qual
aponta que o sentimento de medo na infância refere-se intimamente às emoções que

67
dizem respeito à sensação de vulnerabilidade, geralmente, provocada por situações
de instabilidade, como o susto relatado pela Participante 1 desse estudo.
Ainda nessa perspectiva, embora em menor quantidade, houve narrativas com
desfechos e possíveis soluções para lidar com o conflito suscitado.
Participante 4, 8 nos, feminino.

Título: Momo, a criatura da internet - “A momo é uma criatura que olha fixo, ela não pisca e
aterroriza pessoas na internet, forçando elas a se matarem. Se você encontrar ela na internet,
não responda ela”.

Participante 5, 8 anos, feminino:

Sem título – Era uma vez três crianças numa pizzaria de Freddy. As crianças estavam no
palco e três animatronics assustadores, quando apareceu o purple guy um homem roxo e
assassino para mata-los, todas as crianças, os animatronics tentarão impedi-lo de fazer
aquilo”.

68
Participante 6, 8 anos, feminino.

Título: A menina que tinha medo de história de terror - “A criança com três anos tinha
medo de história de terror, a mãe disse para enfrentar o medo. Não teve mais medo de história
de terror”.

Observa-se nessas histórias que, ao se entrar em contato com o tema, algumas


crianças a fim de lidar com a angústia suscitada pelo medo, buscam alternativas para
minimizar a emoção, seja pela evitação da situação estressora (Participante 4), ou
pela convocação de outros personagens para auxiliar o herói da trama em perigo,
como personagens fictícios (Participante 5) ou a figura materna (Participante 6).
Outro ponto importante diz respeito ao estabelecimento de um vínculo forte com
um adulto capaz de proteger e transmitir confiança, como apontado pela Participante
6. Nota-se que, embora a saída encontrada, “enfrentar o medo” não esteja muito clara,
esta alternativa é organizadora na medida que não exclui a necessidade de tomada
de ação frente ao medo. Assim, as narrativas demonstram as saídas possíveis,
abarcando a passagem do papel da criança de agente passivo para ativo na resolução
de tal conflito.

2) Morte
As histórias que compõem esse eixo temático referem-se às narrativas cujo
desfecho foi a morte. A seguir apresenta-se alguns dos DE-T produzidos pela amostra
analisada.

69
Participante 7, 8 anos, feminino.

Título: Momo e a morte -“Era uma vez, um dia chuvoso. E a Momo viu um vulto passando e
esse vulto era preto e a momo chegou perto (...) e viu uma faca na mão de uma pessoa
comum, com a roupa preta e (ela) matou a momo. Fim”

Participante 8, 8 anos, masculino.

Título: O Assassinato - “Era uma noite escura, de tempestade e um menino estava dormindo
quando de repente um assassino apareceu e ele foi devagarinho para não acordar ele (o
menino) e matou-o”.

70
Participante 9, 8 anos, feminino.

Título: O domínio de Jeff The Killer – “Um dia sombrio e chuvoso um monstro chamado
Islander-Man matou a Momo e o Jeff The Killer ficou bravo e matou todo mundo da cidade e
o Islander-Man por último e o matou”.

Tais histórias mostram-se mais próximas da realidade, dado seu encerramento


com a morte. No entanto, cabe pontuar que a maior parte dos enredos em que elas
se localizam restringem-se aos personagens fantasiosos (Participantes 7 e 9), de
modo que somente o Participante 8 retrata uma situação de violência possível na vida
real.
Ao se pensar mais detidamente sobre o tema da morte presente nas histórias
dos Participantes 7 e 9, observa-se que esta não se apresenta como amedrontadora,
mas opera na qualidade de resolução do conflito, de suspensão da angústia
aterrorizante. Isto é, a temática da morte, o fim revelado por esse meio, pode ser
interpretado como um mecanismo de defesa colocado em marcha com a intenção de
separar e, portanto, de proteger o psiquismo incipiente de emoções angustiantes. Ao
mesmo tempo, aponta para a busca de controle da intensidade do medo. Retomando
as considerações de Anthony (2009), nota-se que as histórias elaboradas apontam
para a presença da compreensão da morte e, consequentemente, do ato de matar e
da angústia de perda.
A situação de violência descrita pelo Participante 8 revela o receio frente à
insegurança urbana da atualidade. Apesar da baixa frequência de DE-T’s relacionados
à violência de modo geral, nota-se que este inclui a noção de surpresa, vulnerabilidade
e morte como desfecho final da narrativa, escancarando, desse modo, a fragilidade
implícita à condição humana e à sociedade atual.

71
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nos DE-T’s, observa-se que os medos das crianças desse estudo
estão atrelados com o seu processo de amadurecimento. As fantasias estão de acordo
com o processo evolutivo para a média da idade, de temor da perda e noção da morte,
evidenciando maior aproximação da realidade, dos contextos sociais a que estão
submetidos. De modo geral, os medos representados pelas crianças nesse estudo,
mostraram a presença de componentes universais e adequados à idade da amostra
investigada.
As produções, com suas imagens sombreadas e narrativas aterrorizantes,
atuaram como representantes do mundo interno das crianças investigadas, as quais
puderam reconhecer os medos internalizados por meio da projeção nas imagens
elaboradas, em sua grande maioria, nos personagens fictícios. Houve muitas
produções em que o medo foi unicamente exposto, dado que reflete a passividade
ante a situações aterrorizantes. No entanto, embora em menor quantidade, houver
produções em que o medo pôde ser confrontado e formas de enfrentamento foram
apresentadas.
A emoção do medo em forma de ameaça ou vulnerabilidade, e de morte,
demonstraram o quanto a instabilidade ambiental produz e provoca medo, sendo a
morte, simbolizada nos desenhos elaborados pela amostra investigada, uma saída
que minimiza a angústia, colocando fim ao caos, mas, consequentemente,
escancarando, a fragilidade da condição humana.
Assim, observa-se que o medo, no estudo realizado, pôde ser representado por
meio dos DE-T’s. Os principais temores e inseguranças puderam ser expressos,
permitindo o reconhecimento dos “monstros” a que as crianças do estudo participante
temem, oportunizando, assim, a continuidade do seu desenvolvimento, já que
puderam conversar sobre eles ao longo da oficina.

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74
5- PSICANÁLISE E ORGANIZAÇÃO: AS RELAÇÕES DE TRANSFERÊNCIA¹

Petterson Alves Berger


Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo

Resumo: O objetivo desse artigo foi estudar as relações de transferência que ocorrem
na organização. Descreve o que é a relação de transferência, estudando as causas
das relações de transferência na organização e apontando os problemas que podem
interferir na relação homem-trabalho quando há relações transferenciais, de acordo
com o referencial psicanalítico foi verificado que existem três tipos de transferências:
persecutória, narcisista e idealizada. A partir do estudo teórico, se chega à conclusão
de que o líder e o liderado se aproveitam das relações na organização para
satisfazerem fracassos da infância, causando uma distorção dos papéis profissionais
exercidos por cada indivíduo envolvido, reforçando o aspecto emocional e dificultando
o sucesso dos processos organizacionais.

Palavras-chave: Transferência; Psicanálise; Organização; Líderes.

Tema: Esse estudo versa sobre as relações de transferência na Organização,


considerando o indivíudo em seu trabalho

____________________________
1
Esse artigo é parte do Trabalho de Conclusão de Curso Pós-Graduação em Psicologia Organizacional orientado
pela Professora Mestre Marcia de Fátima Polini, a quem expresso minha gratidão .

75
INTRODUÇÃO

A Psicologia do Trabalho, aliada à psicanálise, estruturou-se no decorrer da


história. As repercussões do sofrimento para a vida do trabalhador, dotado de
subjetividade e desejo e, como a organização do trabalho interfere na saúde física e,
principalmente, mental. A Psicanálise fornece informações sobre o trabalho e os
trabalhadores em geral, quando propõe um questionamento fundamental sobre qual
seria o lugar do desejo e do sujeito no trabalho. (Duarte, 2006)
Segundo Dejours (1987), o indivíduo não chega na empresa como uma
máquina nova a ser adequada à organização, mas como um ser humano, que possui
uma história pessoal de vida, desejos e subjetividades, até então quase invisíveis nas
organizações. Sendo assim, quando este indivíduo não se adapta à sua função,
poderá chegar ao adoecimento.
De início, torna-se importante destacar que no âmbito deste trabalho entendem-
se os indivíduos a partir da perspectiva freudiana que os enxerga como sujeitos de
desejo singulares e incompletos. A ética da psicanálise é a ética do desejo humano e
é por meio desta visão que se deve caminhar (Dor, 1991).
Freud (1920-1922/1976) afirma que o homem, em sua dimensão na sua
natureza singular, é fundamentalmente articulado com a dimensão social. Sua
articulação com o outro seja como modelo, um objeto, um oponente, não se baseia
apenas em psicologia individual por ser de certa forma, também, psicologia social.

A satisfação constitui a base para o desejo humano. É a partir das


primeiras experiências infantis que se formam as memórias para a
satisfação do desejo e que precisa de uma outra pessoa, como por
exemplo a mãe, que satisfaz o desejo da criança fornecendo-lhe o
alimento. A relação da satisfação do desejo com o trabalho é devido
ao deslocamento da libido. O aparelho mental possibilita uma
flexibilidade no que se refere à sublimação. Como por exemplo, um
artista ao criar e dar corpo às suas fantasias ou um cientista ao
solucionar problemas e/ou descobrir verdades. Essa é a
importância do trabalho na realização dos desejos, pois oferece um
lugar seguro para expor todas as pulsões do indivíduo. (Freud,
1920-1922/1976).

Chanlat (1994) mostra importantes informações sobre o indivíduo no trabalho,


como a comunicação entre as pessoas que é o primeiro passo dos relacionamentos
humanos, para que haja interação social. Ao trabalhador então, resta adequar-se à
esta cultura. O indivíduo se adapta à organização a fim de realizar seus próprios

76
objetivos sem perder a sua identidade. Em suas relações com as outras pessoas
tendem a projetar um estado afetivo individual sobre o outro, principalmente nos
relacionamentos entre líderes e liderados, sendo que as raízes desses sentimentos,
denominado de transferência, compõem a história individual.
Para Freud (1913-1914/1976), o criador da psicanálise, esta ciência era
inicialmente um método de pesquisa e tratamento das neuroses e com o tempo se
estendeu para vários outros campos. A sexualidade infantil não se limita ao ato sexual,
mas é toda atividade pulsional buscando uma satisfação e tomando rumo na vida
adulta.
A Psicanálise, aplicada à dinâmica organizacional, enfatiza os processos
intrapsíquicos e inconscientes como fundamentais nesta dinâmica que envolve as
relações simbólicas entre o indivíduo e a organização. Dejours (1987) afirma que
organização de trabalho entra em conflito com o funcionamento psíquico dos homens,
quando estão bloqueadas todas as possibilidades de adaptação entre a organização
do trabalho e o desejo do sujeito, então emerge o sofrimento patogênico.
Chanlat (1994) afirma que quando o indivíduo não se adapta às funções que
exerce, sua energia psíquica se acumula transformando-se em fonte de tensão e de
desprazer. A carga psíquica cresce até que aparece a fadiga e depois a astenia, e, na
sequência, a psicopatologia.
No que se refere à organização, Bleger (1988) define instituição como uma
relação que se prolonga durante anos, com a manutenção de um conjunto de normas
ou atitudes. O enquadramento é uma instituição que define regras dentro de
parâmetros específicos, que controlam os fenômenos comportamentais. O autor
considera tais comportamentos difíceis de abordar nas organizações devido a
compulsão a repetição, que se baseia na repetição dos acontecimentos da infância, é
nítido a identificação com os pais. A cultura organizacional tenta enquadrar o indivíduo
da mesma forma como a simbiose com a mãe, que tenta enquadrar o comportamento
da criança em si com regras definidas. O enquadramento tem esta mesma função na
organização, de enquadrar o comportamento do indivíduo à organização.
A subjetividade, um dos focos do estudo da psicanálise, esteve por muito tempo
invisível nas organizações. O trabalho e os afetos com ele relacionados eram
considerados como não relevantes, pois o que mais se privilegiava estava ligado à
capacidade de trabalhar do indivíduo apenas. Esta preocupação com a capacidade
de trabalhar, é o que foi proporcionado aos estudiosos sobre o indivíduo no trabalho,

77
para refletir sobre o que seria esse ser humano que contribui para a produção dos
bens necessários a civilização. Ele é visto apenas como uma máquina de trabalho e
não como um indivíduo dotado de desejo e subjetividade. (Dejours, 1999)

Desenvolvimento do tema: A relação entre líderes e liderados

Freud (1920-1922/1976) afirma que as necessidades de um grupo o conduzem


ao encontro de um líder. O grupo não tem vontade própria, portanto, para o líder ser
aceito, deve se ajustar as qualidades pessoais do grupo e ter uma intensa fé afim de
despertar a fé do grupo. Há um poder misterioso e inevitável nos líderes chamado de
prestígio.
Os laços emocionais constituem também o laço grupal. Existe algo nos seres
humanos que, quando se deparam e se dão conta de sinais da emoção de alguém,
tendem à cair na mesma emoção do passado e não se opõem com sucesso a isso.
Invariavelmente cedem a este contágio quando encontram um grupo. O que compele
a obedecerem a esta tendência é a imitação e o que induz a emoção neles é a
influência sugestiva do grupo. (Freud, 1920-1922/1976)
Freud (1920-1922/1976) afirma que é o amor do líder que permite o nascimento
do grupo. Um líder que ama a todos igualitariamente, permite que todos os membros
se amem mutuamente. Sendo assim, na organização, este amor igualitário, torna
possível o trabalho em conjunto, a sobrevivência do grupo, o bom relacionamento
interpessoal e a qualidade nos serviços prestados. Os liderados precisam considerar
o líder como modelo de referência para que não haja conflitos na relação entre eles e
entre os próprios liderados.
Bion (1961) específica três tipos de relações emocionais entre grupos e seus
líderes nomeado de suposições básicas. Sendo elas, a suposição básica de
dependência, luta-fuga e acasalamento. Ele definiu como grupo de trabalho os
indivíduos que superam essas relações emocionais para que haja cooperação
voluntária. Ele afirma:

A suposição básica de dependência é um grupo que se reúne a


fim de ser sustentado por um líder de quem depende para nutrição,
tanto material quanto espiritual e de proteção. O grupo, nesta situação,
deposita todas suas confissões e as dificuldades no líder, que é visto
como uma espécie de divindade. A suposição básica de luta-fuga se
associa a um grupo que se reúne para lutar por uma causa ou dela fugir

78
e, estão sempre preparados para assumirem qualquer uma que seja
dessas posições, indiferentemente. O líder desse grupo é visto como
uma oportunidade para fuga ou para a luta. Se fracassar, ou tomar outro
rumo, ele será ignorado. A suposição básica de acasalamento baseia-
se na ideia do grupo de apoiar dois membros que produzirão uma nova
figura de líder, que assumirá plena responsabilidade pela segurança do
grupo. Um desejo inconsciente como se esses dois membros fossem
produzir um Messias, um Salvador, na forma de pessoa ou numa ideia
que possam aderir. Na realidade, nenhum Messias será produzido por
esses dois membros, pois esse desejo é simplesmente uma esperança
do grupo de que alguém vai conseguir ajudá-los. O comportamento
desta suposição básica se inicia com pares que conversam assuntos
diversos, à parte, sem que o grupo se incomode, desviando-se do foco
pelo qual o grupo se reuniu (p.134)

Pode-se ainda dizer que existe em todo mundo um desejo de mandar, de ter
poder, de não ser contestado (como um pai que manda no filho) e que provoca uma
identificação com aquele que exerce esse papel. Da mesma forma, existe também em
todo ser humano, em maior ou menor grau, tendências masoquistas, medo da
liberdade e vontade de obedecer (se pondo na posição do filho que obedece ao pai).
(Freitas, 1997)
Freud (1911-1913/1976), explicando sobre a transferência, afirma que quando
a necessidade do indivíduo de amar alguém não é completamente satisfeita na
realidade como a vida é no presente, então, o indivíduo se aproximará de quem ele
conhecer, seja quem for, com sentimentos relacionado à infância. Ele diz que a
transferência é um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do
passado esquecido e mais especificamente a infância. Por exemplo, a pessoa não se
recorda que costumava ser crítico e desafiador em relação a autoridade dos pais e
simplesmente repete esta atitude para com o médico, ou o líder, o professor, se
submetendo então à compulsão a repetição que substitui o impulso de recordar.
A transferência faz emergir um fantasma inconsciente que deforma os
sentimentos e as reações de um indivíduo em seu relacionamento com o outro.
Os indivíduos são propensos a reproduzir no presente, as atitudes adotadas no
início de sua vida em família. Porém, a transferência não tem origem em fatos isolados
ocorridos na infância ou juventude, pois são produzidas através de configurações que
foram duradouras nas relações com outras pessoas, reforçando em seguida em todas
as relações posteriores. (Chanlat, 1994)
Passando a discorrer sobre o tema da presente reflexão , a relação de
transferência na organização, temos o que segue:

79
Kohut (1971) afirma que a liderança pode ativar ou reativar diversos
sentimentos do passado nos indivíduos e, também, fazer com que o indivíduo tente
durante toda a sua vida, reencontrar parte da experiência de perfeição e de bem-estar
total, como se fosse uma segunda chance de remediar suas carências da infância.
Este sentimento tanto acontece com o líder quanto com o liderado.
Lacan também descreve a transferência, expressando que a:

A transferência é um fenômeno essencial, ligado ao desejo,


como fenômeno nodal do ser humano. A relação de transferência
acontece em todos os laços sociais e, por isso, também acontecerá na
relação entre líderes e liderados. É a partir do mecanismo de
transferência que surge a demanda de ser amado, cuidado e amparado
pelo líder. A relação de transferência ocorre sempre que se supõe saber
a alguém. Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber, há
transferência. O liderado espera de seu líder respostas, soluções e
orientações constantes, sendo este comportamento uma demanda de
amor por causa da condição de desamparo. Logo, o sujeito suposto
saber é o sujeito do desejo. (Lacan, 1964, p. 219)

As organizações, mas não exclusivamente, exercem uma grande força sobre o


indivíduo sendo que as fontes de prazer e motivação podem ser desejos, fantasmas
e temores infantis reatualizados. São fantasias que ganham relevo e se inscrevem
num outro cenário, porém são invisíveis. É como se as organizações fossem uma
“caixa de ressonância de desejos” que é capaz de absorver e estimular processos de
transferência de afetos que antes ligavam o indivíduo ao pai e a mãe. Pode configurar
relações substitutas da atenção dos pais pelos líderes, pelos pares ou pela
organização enquanto um todo. Quanto mais as empresas se mostram como lugar de
dar sentido à vida, mais elas se tornam objetos dessas relações de transferência.
(Freitas, 1997)
Chanlat (1994), inclusive, em suas contribuições teóricas, conclui que há três
grandes categorias de transferências que são encontradas nas relações entre líderes
e liderados, sendo elas a transferência idealizada, a transferência narcisista e a
transferência persecutória. Essas são as que se sobrepõem parcialmente devido às
diferenças existentes na área psicanalítica. O indivíduo, permanece bloqueado sobre
uma única estrutura de transferência. Porém, a transferência também tem o poder de
se adaptar ou se modificar dependendo da situação ou do indivíduo. Suas raízes estão
nas dificuldades e fracassos na infância e influenciam nas condutas em situações de
processo decisório e de direção da empresa.

80
Na transferência idealizada vivencia-se emoções de uma fase precoce do
desenvolvimento psíquico nutrindo um sentimento de união com uma pessoa
idealizada. Esta pessoa “perfeita” é uma fonte inesgotável de satisfação que longe
dela cai num sentimento de vazio. Admira-se sua beleza, sua inteligência ou seu rigor
moral. Ignora-se ou minimiza-se as características más desta pessoa idealizada e
reforça-se suas qualidades. (Chanlat, 1994)
Em geral, os indivíduos que idealizam o líder, têm fé e confiança neste líder e
procuram sempre agradá-lo da melhor forma possível. Melhoram sua conduta e
buscam sempre melhorar os seus resultados também. Podem sugerirem rivalidades
entre os grupos para atrair a atenção deste líder para si próprio e, se mais indivíduos
o idealizarem, pode causar uma coesão no grupo. Palavras de elogio os colocam em
estado de exaltação. Passam a ser extremamente dependentes deste líder mantendo-
se sempre na posição de liderado e este líder pode controlá-los e manipulá-los. Seu
senso de julgamento fica distorcido e, superestimam a capacidade deste líder que são
essas apreciações irrealistas e frágeis. Se este líder cometer uma falha grave com
este liderado, esta imagem reverenciada pode se quebrar causando em seu admirador
uma amarga decepção, podendo se formar uma revolta e uma hostilidade aberta.
Pode acontecer que essas falhas sejam “desculpadas”, racionalizando assim a
situação por tão elevado ser este investimento da preservação da imagem deste líder.
Em todo caso, essa idealização restringe o desempenho da atuação profissional.
(Chanlat, 1994)
Sabe-se que a fonte de toda transferência está localizada nos relacionamentos
na infância. Chanlat (1994) dá um exemplo de um liderado que vinha de uma família
desunida sendo o pai um oficial da marinha mercante e que permanecia raramente
em casa. Como agravante, quando os pais se separaram as reuniões familiares
reduziram-se mais ainda. A criança, então, começou a procurar substitutos do pai,
inicialmente na escola, depois na universidade. Na fase adulta continuou nesta
procura nas suas relações com o líder na organização.

Na transferência narcisista, o indivíduo busca reencontrar uma


felicidade longínqua e se vê como um personagem perfeito que se
interessa muito pouco pelo que ocorre ao redor. Ele tem necessidade
dos outros, de encontrar neles seu próprio reflexo que nutri sua
presunção. Coloca em evidência toda sua sedução para captar a
atenção no outro, na verdade, como uma forma de anular uma negação
profunda de si mesmo e de combater o sentimento de mediocridade,

81
além de não serem capazes de demonstrar simpatia pelos outros e não
tem nenhuma preocupação com seus direitos. São pessoas que
precisam desesperadamente de elogios. Na infância, seus pais os
relegaram por não estarem presentes em eventos festivos, nem se
preocuparam com o que sentiam. Então, essas pessoas, na fase adulta,
estão sempre em busca febril e incessante por pais substitutos capazes
de propiciar atenção e admiração. (Chanlat, 1994 p.115)

Não há como entender a transferência na organização, sem analisar os líderes


e os liderados. No caso do líder, quando há uma relação de transferência narcisista,
eles são alvos fáceis de bajuladores e aduladores. Se tornarão alvo fácil de objeto de
transferência idealizada. Pois, o líder terá a necessidade de ser aplaudido e o liderado
terá a necessidade de aplaudir, de realizar este desejo. Porém, pode ocorrer também,
que esses líderes sejam alvos de oportunistas que se aproveitarão desta fraqueza
para adular intencionalmente para obter ganhos. (Chanlat, 1994)
Na maioria dos casos, a liderança por transferência narcisista, provoca
liderados que são apenas peças para o sucesso do líder. São pessoas que ficarão
expostas aos caprichos do humor do líder, pois quando ele for criticado, quando
negarem com o que ele fala e quando ele fracassar, será motivo para ele explodir por
terem que concordar e admirar ele o tempo inteiro. Por isso não aceita um liderado
que tenha uma personalidade narcisista, que possa tomar seu lugar de estrela ou que
esqueça de elogiá-lo quando ele estiver apresentando projetos. Esses liderados
correm o risco de serem eliminados pelo líder, ou seja, demitidos. (Chanlat, 1994)
O liderado narcisista, terá a necessidade de colocar-se acima de seus colegas
e procurará atrair a atenção e os aplausos do líder. Esses liderados exigem de seus
líderes muita atenção, cuidados personalizados e toda forma de prestígio, que servirá
de motivação para ter um bom desempenho. Seu apetite por obtenção de privilégios
pode atrair executivos narcisistas com ideias maquiavélicas se passando por
profissionais astuciosos. (Chanlat, 1994)
Por último, mas não menos importante, a transferência persecutória, é o modo
como o indivíduo utiliza seus mecanismos de defesas psíquicas para tentar resolver
conflitos. Sua principal característica é dividir o mundo em duas partes extremas,
sendo uma perfeita e a outra imperfeita, este processo é denominado de clivagem,
que neste caso é fonte do sentimento de perseguição. (Chanlat, 1994)
Este sentimento de perseguição é o que Chanlat (1994) identifica em um
exemplo de um dirigente de uma organização, cuja personalidade irritava os outros
colegas. Ele revisava e controlava exaustivamente todo trabalho dos colaboradores

82
devido a sua desconfiança extrema. Sempre suspeitava das pessoas e nunca deixava
sua sala sem passar a chave em tudo. Seus colaboradores se sentiam muito
constrangidos com essa atitude. Ele agia sempre na defensiva quando tratava algum
assunto com o Presidente.
Em sua história, este dirigente era o caçula de uma família numerosa de irmãos.
Os pais trabalhavam fora dedicando pouco tempo para os filhos fazendo com que
houvesse sempre uma disputa entre eles para ter mais atenção dos pais nos
momentos livres. Mas os pais davam mais atenção ao caçula, o bebê é claro, fato que
causava extremo ciúme nos irmãos que, então, sempre atacavam ele com
brincadeiras aterrorizantes, quebravam seus brinquedos, tomavam suas economias e
sempre o culpavam por travessias. Quando ele se queixava com os pais, os irmãos o
chamavam de mentiroso e pressionavam a mãe para denunciar para o pai para que
fosse punido. Por isso este dirigente aprendeu sempre a ficar na defensiva,
transferindo esses comportamentos nos relacionamentos na organização. (Chanlat,
1994)
A relação com os indivíduos, na transferência persecutória, pode ser de
hostilidade, masoquismo moral e/ou de inveja, por este tipo de transferência tender
mais para o lado de consequências negativas. Como toda transferência resulta na
reconstituição ou reativação de antigas emoções do passado, no caso da hostilidade,
o indivíduo quer causar danos ao outro e atacá-lo, enquanto defesa contra seu
sentimento de perseguição. (Chanlat, 1994)
A transferência persecutória por inveja é o desejo de tomar do outro o que ele
possui. A inveja tem sua matriz na relação edipiana que é onde o indivíduo, em sua
infância, teve sentimentos hostis para um dos pais tendo o outro como objeto de amor.
No caso do liderado invejoso, o líder monopoliza e controla todo o poder, todos os
recursos, todos os elogios como se fossem feitos por falsidade, como se a injustiça
sempre reinasse na organização e que as pessoas são sempre maltratadas. Quando
o líder sente inveja dos seus liderados, ele julga que suporta toda responsabilidade da
equipe, que ele faz o trabalho sofrido enquanto os liderados não fazem nenhum
esforço. Sente-se mal recompensado por seus esforços, desencorajando sua equipe
e inibindo gravemente suas motivações, preparando o fracasso de seus liderados.
(Chanlat, 1994)
Sendo assim, pode-se identificar na organização a presença, mais ou menos
clara, das estruturas da transferência em vários indivíduos. Estilos de direção, de

83
comportamentos e decisão parecem estar frequentemente marcados e ligados por
decisões psicológicas próprias. (Chanlat, 1994)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebeu-se, partir da leitura de autores clássicos na área, o quanto é


importante reconhecer que a vida na primeira infância influencia diretamente na vida
psíquica do adulto, levando-o a reviver e tentar recompor os fracassos da infância
perante seus pais, irmãos e pessoas importantes desta fase. O indivíduo, ao fazer
parte de uma organização, mas não apenas na organização, aproveita essa chance,
de relações com as pessoas, para transferir sentimentos e emoções vividos na
infância, reimprimindo nas pessoas, de uma forma subjetiva, suas relações com os
pais e irmãos como uma forma de satisfazer desejos reprimidos e fantasias.
Esta relação de transferência na organização atrapalha e distorce os papéis
profissionais dos indivíduos, fazendo-os confundir com o mesmo relacionamento que
tiveram com os pais, repetindo os mesmos comportamentos que tiveram com eles.
Retira-se a visão de líder e de liderados, para colocar a visão de pais e filhos, onde a
transferência é mais intensa.

REFERÊNCIAS

Bion, W. (1961/1975). Experiência com grupos. Rio de Janeiro: Imago.

Bleger, J. (1970). O grupo como instituição e o grupo nas instituições. São Paulo:
Martins Fontes.

Chanlat, J. F., Rondeau, A., Borzeix, A., Linhart, D., Kamdem, E., Gasparini, G., ... &
Vincent, S. (1996). O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. In O indivíduo
na organização: dimensões esquecidas.

Dejours, C. (1987). A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São


Paulo: Cortez.

Dejours, C. (1999). A banalização da injustiça social. FGV Editora.

Dor, J. (1991). O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

84
Duarte, D. A.; Castro, M. D.; Hashimoto, F. (2006). Psicologia do trabalho e
psicanálise: uma possibilidade de compreensão do sofrimento psíquico. In:
ENCONTRO DE PSICOLOGIA DE ASSIS, 19. 2006, Assis. Anais eletrônicos... Assis:
UNESP, 2006. Disponível
em:<http://www.assis.unesp.br/encontrosdepsicologia/ANAIS_DO_XIX_ENCONTRO
/112_DANIELE_ALMEIDA_DU ARTE.htm>. Acesso em: 21 dez. 2016.

Freitas, M. E. (1997). Cultura organizacional: sedução & carisma? São Paulo: 1997,
305p. Dissertação (Doutorado em Organizações, Recursos Humanos e Planejamento)
- Escola de Administração de Empresas de São Paulo, São Paulo.

Freud, S. (1969/1976) O caso de Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos


(1911-1913) v. XII. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1974/1976). Totem e tabu e outros trabalhos. Edição Standart Brasileira


das obras psicológicas completas. Vol. XIII (1913–1914) – Ed.

Freud, S. (1916/1976). Conferências introdutórias sobre Psicanálise, vol. XVI. Freud,


S. (1980). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
24.

Freud, S. (1920-1922/1976) Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros


trabalhos (1) v. XVIII. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1974/1976). O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização e outros


trabalhos: 1927-1931.

Kohut, H. (1971). Análise do Self. Rio de Janeiro: Imago.

Lacan (1985/1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

85
6- O DESAFIO EM DESENVOLVER E IMPLANTAR UM GRUPO DE BRINCAR
COM FAMILIAS DE DEPENDENTES QUIMICOS:
UMA EXPERIÊNCIA DE TRABALHO NO REINO UNIDO5

Daniela Fuchs6
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo7

Resumo: O presente trabalho visa mostrar os desafios e benefícios da implantação


de um grupo de brincar para pais e filhos de até 5 anos de idade, dentro de uma
instituição residencial para famílias de dependentes químicos. Para isto, será
apresentado o relato de uma experiência de trabalho numa instituição localizada no
Reino Unido. O objetivo é de mostrar como a psicanálise pode contribuir para
trabalhos grupais em instituições com populações de risco. Será descrito o processo
de formação e desenvolvimento do grupo, a partir de uma reflexão sobre a resistência
dos pais em colaborarem e participarem. A importância de se proporcionar um modelo
de continência e um ambiente seguro para se brincar, será pontuada como
significativo manejo terapêutico para o progresso do grupo. A teoria psicanalítica, com
base nas ideias de Klein, Bion, Winnicott, e outros autores, foi aplicada como eixo
condutor de todo trabalho realizado. A experiência se constituiu em única ocasião em
que os pais eram vistos como indivíduos e não como usuários de drogas. E ao mesmo
tempo se concluiu que os pais vivenciarem momentos prazerosos com seus filhos,
pode ser um aspecto positivo e importante de cura e tratamento
Palavras-chave: Grupo de brincar, continência, psicanálise, dependentes químicos.

5
Agradeço a Asha Phillips, professora do curso de mestrado em Primeira Infância e Saúde Mental Infantil pela
Tavistock Clinic and University of East London (Reino Unido), e supervisora do trabalho realizado. “Relato de
experiência supervisionado pela psicanalista e professora do Curso de mestrado em Primeira Infância e Saúde
Mental Infantil” pela Tavistock Clinic e University of East London
6 Psicóloga – Mestre em Primeira Infância e Saúde Mental Infantil pela Tavistock Clinic and University

of East London (Reino Unido), pós -graduada da formação em Psicanálise com Crianças pelo Instituto
Sedes Sapientiae
7 Professora Associada do Instituto de Psicologia da USP, coordenadora do Laboratório de saúde

Mental e Psicologia Clínica Social

86
Introdução

Edwards (1999) e Hopkins (2002) chamaram a atenção para a ideia de Freud


de que a saúde psíquica dos indivíduos está pautada na capacidade de amar e
trabalhar, elas ampliaram esse conceito com um terceiro elemento crucial para o bem
estar mental ‘a capacidade de brincar’. Baseada na visão de que brincar também é
sinônimo de saúde, o presente trabalho visa mostrar os desafios e benefícios da
implantação de um grupo de brincar dentro de uma instituição residencial para famílias
de dependentes químicos. Para isto, será apresentado o relato de uma experiência de
trabalho, numa instituição no Reino Unido.
Num primeiro momento será mostrado o processo de formação e
desenvolvimento do grupo de brincar. Em seguida, haverá uma reflexão sobre as
resistências em se participar do grupo, e o manejo conduzido pela facilitadora a fim
de promover o envolvimento das famílias participantes. Para isto, a teoria psicanalítica
com base nas ideias de Klein, Bion, Winnicott e outros autores contemporâneos será
aplicada como eixo condutor do trabalho realizado. Temas como a dependência
química, os mecanismos de defesa de projeção e introjeção (Klein), o conceito de
continência (Bion) e o papel terapêutico do brincar (Winnicott) serão delineados. O
objetivo é de mostrar como a psicanalise pode e tem muito a contribuir para trabalhos
em instituições com populações de risco.

Dependência química e parentalidade

Uma profunda característica de dependentes químicos é que eles sofreram


intensa privação e negligência. A falta de contenção que sofreram de seus pais é
refletida na incapacidade que eles possuem de desenvolver e internalizar um modelo
de funcionamento onde se é possível tolerar sofrimento psíquico. O uso de
substâncias químicas pode ser visto como uma tentativa de suportar a dor intensa de
experiências traumáticas na infância (Mosse & Lysaght, 2002).
A dependência química afeta a habilidade de se cuidar de uma criança de
diversas maneiras, devido a intoxicação e estilo de vida (Forrester, 2012). Emanuel
(1996) fala sobre o impacto desse tipo de indisponibilidade parental, que leva a uma
experiência aterrorizante por parte da criança. Ele diz,

87
“Bebês nascidos viciados em heroína são submetidos a traumáticas
experiências corporais intrusivas e intervenções médicas, mas o trauma
continua devido a indisponibilidade de uma figura de vinculo que possa
ajudar a criança a processar suas experiências emocionais da maneira
que uma mãe suficientemente boa faz com o seu bebê em circunstâncias
ordinárias” (p221) (tradução livre)

No entanto, estudos recentes demonstram que um ambiente acolhedor é


associado com um bom prognostico para crianças com pais usuários de drogas
(Forrester, 2012). Enquanto os genes provem informações para o desenvolvimento
cerebral, a qualidade das primeiras experiências ambientais dá formato para
específicos caminhos neuronais e guiam a expressão dos genes (Siegel, 1999).
Portanto a qualidade emocional do contato com seu cuidador, tem um papel
fundamental em formar a qualidade do desenvolvimento cerebral da criança. Além
disso, a possibilidade dos pais usuários vivenciarem momentos prazerosos com seus
filhos também pode ser um fator importante de tratamento e quebra de um ciclo
traumático. Conforme (Belt & Punamaki, 2007) pontuam,

“Experiências positivas e compensatórias com os filhos, podem


ajudar a quebrar o círculo vicioso de experiências infantis traumáticas
de violência, abuso e falta de esperança” (Belt & Punamaki, 2007,
p.206) (tradução livre).

Klein (1936, 1946) descreveu dois mecanismos de defesa do ego contra


ansiedade. O primeiro é a projeção, o processo pelo qual a criança atribui todo seu
amor e ódio ao objeto externo. O segundo é a introjeção, onde a criança fantasia que
introjetou todas as percepções do mundo externo. Esses mecanismos são a fonte de
interação entre o ambiente externo e o mundo interno (psiquismo), e tomam lugar
durante o desenvolvimento do ego e de suas relações objetais (Klein, 1946). Além
disso, Klein elaborou o conceito de “projeção identificativa” como “o protótipo de uma
relação de objeto agressiva” (p27) onde as partes ruins do eu são projetadas na mãe,
que por sua vez é possuída por estas partes más e acredita que ela se tornou o eu
mau.
Bion expandiu as ideias de Klein sobre projeção identificativa e desenvolveu sua
teoria sobre o modelo de continência (Riesenberg-Malcolm, 2001). Ele pontuou que a

88
mãe recebe as projeções do bebê de uma maneira em que ela realmente vivencia os
seus sentimentos (projeção identificativa), e que é isso que possibilita que ela os
modifique para ele. Bion enfatiza que quando a mãe está aberta a digerir e tolerar
esses sentimentos incontroláveis que o bebê projeta nela, ela esta ajudando-o a
tolerar seu sofrimento psíquico, e ao mesmo tempo está o ensinando um modelo de
processamento de experiências emocionais.

Winnicott (1971) foi o primeiro psicanalista a focar no papel criativo do brincar


para o processo mental. Esse autor enfatizou que o brincar é universal, promove
crescimento, saúde e relacionamentos. Ele pontuou que o brincar ocupa um espaço
entre o mundo interno e externo da criança. Em outras palavras, o brincar acontece
no “espaço transicional” entre o bebê a e mãe. Winnicott também sugeriu que a terapia
acontece quando a criança e o terapeuta são capazes de brincar juntos, e ressaltou
que quando a criança se mostra incapaz de brincar o papel do terapeuta é o de
possibilitar que ela brinque. As ideias desse autor trouxeram mudanças para o
trabalho dos psicanalistas, que ao invés de apenas focarem na interpretação do
brincar, passaram a dar importância ao ato de brincar por si só como elemento
terapêutico (Alvarez & Phillips, 1998).

Relato de experiência

Contexto

O centro residencial de reabilitação para famílias afetadas pela dependência


química e uso de álcool, situado numa cidade do Reino Unido, consistia numa casa
com capacidade de abrigar até sete famílias, que moravam juntas e dividiam áreas
comuns como cozinha e sala. As famílias que moravam nessa casa chegavam por
ordem judicial, pois a maioria dos pais havia perdido a guarda dos seus filhos
temporariamente devido a negligência. Ao participarem do programa de reabilitação,
os pais iniciavam um tratamento para sua dependência, ao mesmo tempo em que
tinham a oportunidade de reaver a guarda de seus filhos. O objetivo do centro era de
manter as famílias unidas e de trabalhar o vínculo entre pais e filhos. O tratamento
tinha a durabilidade de seis meses, e assim que os pais chegavam eles não

89
necessariamente estavam isentos do uso de substâncias químicas, no entanto
começavam um processo de desintoxicação com o acompanhamento médico. Os pais
com filhos de até 11 anos podiam residir no centro, sendo que as crianças maiores de
5 anos frequentavam escolas locais, enquanto as crianças de 0 a 5 anos frequentavam
a creche do centro, que se situava nos fundos da casa.

Desenvolvimento de um grupo de brincar


Os profissionais que trabalhavam no centro observavam que nos finais de
semana, os pais que estavam em tratamento raramente faziam atividades lúdicas e
que priorizassem o interesse de seus filhos. Devido a isso, a instituição optou por
contratar uma profissional que fosse implantar e desenvolver um grupo de brincar com
as famílias residentes. O grupo aconteceria todos os Sábados, e seu objetivo era de
que as famílias tivessem um momento de qualidade e divertimento juntas, e que assim
pudessem perceber os benefícios que isto traria para o desenvolvimento da sua
relação e vínculo.
Num primeiro momento, a ideia do grupo era a de que os pais escolheriam uma
atividade para fazer com as crianças todos os Sábados e que a profissional contratada
fosse interagindo e intervindo com as famílias durante as atividades. Ela atuaria como
uma espécie de modelo no qual os pais se espelhariam. No entanto, este formato
trazia muitas reclamações e falta de interesse. Os pais nunca escolhiam atividades
para fazer e nem tinham vontade de participar. O relato abaixo ilustra essa situação:

“Era dia do grupo e os pais não haviam escolhido uma atividade, a facilitadora então
sugeriu que eles fossem ao parque...no parque, duas mães se sentaram no balanço
e ficaram conversando. Assim que a facilitadora se aproximou as mães começaram a
falar de forma agressiva, a culparam pela falta de motivação, e a acusaram de não
escolher atividades interessantes para fazerem com seus filhos.”

Percebendo que essa proposta não estava funcionando, a facilitadora decidiu


elaborar um novo formato, onde atividades de brincar estruturadas seriam
apresentadas. Além disso, decidiu-se que o grupo aconteceria no próprio centro, mais
especificamente na creche localizada nos fundos da casa. O propósito era o de
proporcionar um ambiente seguro e confortável para as famílias. O grupo teria a
duração de uma hora, e seria oferecido para os pais com filhos até 5 anos de idade.

90
Nesse novo formato, a rotina seria a mesma toda semana, uma vez que crianças
gostam e aprendem por repetição.
A primeira parte do grupo consistiria em um momento de roda, onde uma música
de boas-vindas seria cantada marcando a presença de cada família. Depois disto, uma
sacola com diferentes brinquedos e objetos seria apresentada pela facilitadora. Cada
criança seria chamada para escolher um dos objetos da sacola, e com a ajuda de seus
pais falar sobre o que escolheu. Em seguida, seria conduzida uma roda de música
que teria desde ritmos músicas infantis interativos e agitados até ritmos mais calmos
e lentos. A segunda parte do grupo seria caracterizada por atividades de artes tais
como tinta, argila, massinha e outros. Essas atividades variariam a cada semana, e
trariam a oportunidade de um brincar mais solto. Ao término das atividades do grupo,
todos voltariam a se reunir em uma roda para cantar uma música de despedida.
Com esta nova formatação tanto os pais quanto as crianças se beneficiaram. O
fato de o grupo ter uma estrutura contribuiu para que se sentissem mais confortáveis
em participar. No entanto, ainda havia bastante resistência e hostilidade de alguns dos
pais, aos quais tentavam boicotar o grupo e sua participação nele.

Aspectos de resistência ao grupo de brincar e discussão

Nesta nova rotina estruturada do grupo, observou-se uma menor resistência dos
pais durante os momentos de roda. As famílias pareciam se desfrutar e se beneficiar
de cantar e escutar músicas rítmicas infantis. Muitas vezes, após o término de uma
música, os pais pediam com entusiasmo para repetir e cantar novamente. Isto, poderia
ser atribuído ao fato deles apreciarem a melodia do canto, que parecia contê-los. O
canto tem uma sequência, ao contrário de atividades criativas onde a imaginação e a
liberdade predominam mais. Alvarez (1992) escreve,

“...crianças carentes tem uma grande dificuldade em usar sua imaginação


em tudo; algumas dificilmente são capazes de desenhar ou brincar e
muitas são incapazes de imaginar, mesmo na sua brincadeira, que a vida
poderia ser diferente ou que elas poderiam exercer algum controle sobre
seu destino” (p.164) (tradução livre)

Muitos dos pais usuários de substâncias químicas foram negligenciados eles


mesmo quando crianças, a maioria deles não havia tido seus próprios pais para

91
brincarem juntos. Assim sendo, a experiência de brincar com seus próprios filhos era
uma tarefa dolorosa e difícil. As rodas de música eram provavelmente mais fáceis
deles participarem por serem mais estruturadas, enquanto as atividades de brincar
mais livre como artes evocavam maior resistência. Alguns pais tinham dificuldades em
usar a imaginação, e em envolver seus filhos. Num primeiro momento eles se
colocavam numa posição autocentrada e mais infantilizada, explorando o brincar por
si próprios. A observação abaixo traz um exemplo disto,

“Veronica8 não sabe normalmente como envolver seu bebê Tom de nove meses
nas brincadeiras. Com ajuda ela está gradualmente explorando o brincar ela mesma,
e posteriormente envolvendo seu filho...Veronica posicionou o Tom em seu colo e
misturou o amido de milho com a água com suas mãos. A mãe estava impressionada
com a textura da mistura, e em como ela podia ser líquida e sólida ao mesmo tempo.
Quando a facilitadora sugeriu que ela colocasse a mão do Tom na mistura para ele
também sentir, Veronica pediu um tempo para que ela pudesse primeiramente
explorar sozinha...posteriormente ela colocou as mãos de seu filho na mistura para
que ele pudesse sentir a textura também.”

A oportunidade de explorar uma brincadeira mais livre e criativa permitiu com


que Veronica gradualmente incluísse seu filho também. Num primeiro momento ela
teve que revisitar aspectos infantis para conseguir se autorizar a brincar e explorar,
para que depois ela conseguisse contribuir para estimular o brincar e explorar do seu
filho.
A partir disto, a questão principal que surgiu e permeou constantemente o
trabalho foi: A necessidade de brincar é de quem? Neste contexto observou-se que
a possibilidade de os pais brincarem e serem infantis sem nenhum julgamento,
gradualmente permitiu que eles ficassem mais atentos aos aspectos emocionais de
seus filhos e conseguissem brincar junto com eles. Desta maneira, a sábia ideia
proposta por Winnicott (1971) de que o brincar por si só é terapêutico, colocou-se
como um dizer que permeou o grupo o tempo todo.
No entanto, a inclusão de um brincar mais solto continuou evocando muitas

8
Todos os nomes neste trabalho foram modificados a fim de preservar a identidade das
pessoas envolvidas.

92
objeções, uma vez que os pais não queriam se sujar ou que seus filhos se sujassem.
Essas reclamações podiam ser relacionadas com o fato de que eles mesmos tinham
uma história “desarrumada”, o que poderia ter contribuído para reduzir a tolerância
deles para mais bagunça. Pesquisas mostram que mulheres dependentes químicas
tiveram um passado de maus-tratos, abuso, negligência, assim como vieram de
famílias que também são dependentes químicas (Belt & Punamaki, 2007). Dentro
deste contexto, o papel da facilitadora era o de mostrar que não é prejudicial se sujar,
e encorajar os pais a participar, mostrando que a bagunça poderia ser limpa e
arrumada depois. A observação abaixo demonstra algumas das tentativas de
encorajar isto,

“Depois da atividade de pintura, a facilitadora ajudou a mãe Sonia a levar sua filha de
um ano e meio para lavar as mãos. Ao ajudar, a própria facilitadora acabou ficando
com tinta pelo corpo todo. A mãe olhou-a aterrorizada e comentou que ela estava toda
suja. A líder do grupo respondeu que não havia problema, e que poderia se lavar
depois.”

Contudo, todos os esforços pareciam não ter impacto, uma vez que os pais
continuavam reclamando e se esquivando das atividades. Parecia que a “sujeira”
interna, conectada com o uso de drogas, estava sendo projetada e deslocada como
uma preocupação com a bagunça no mundo externo, e de ficar fisicamente sujo.
Apesar disto, a facilitadora continuou incluindo este tipo de brincar mais solto,
acreditando que era benéfico para as crianças e que isto poderia ajudar os pais a lidar
com seus sentimentos mais caóticos.

O grupo como um modelo de continência

Conforme mencionado, muitos desses pais usuários haviam tido uma infância de
intensas experiências traumáticas, e com isto em mente poderia se pensar que a
negatividade deles não estava direcionada a pessoa da facilitadora, e sim ao que o grupo
de brincar poderia representar. Brincar com seus filhos não era algo simples, uma vez
que evocava experiências primitivas intensas de sofrimento. Como forma de defesa
destes sentimentos, alguns dos pais tinham uma atitude desdenhosa e se recusavam a
colaborar. A seguir uma ilustração de um ataque verbal de uma mãe ao grupo.

93
“A mãe estava com sua filha de quatro anos sentada no carpete e esperando pela vez
de elas brincarem com a argila...neste momento esta mãe sussurrou que ela odiava o
grupo e não sabia o que ela estava fazendo lá.”

As ideias de Klein sobre os mecanismos de defesa contra a ansiedade trouxeram


grandes contribuições para o entendimento da agressividade dos pais. Os mesmos
sentiam-se inadequados e projetavam sua hostilidade para a facilitadora que por sua
vez sentia que era ela quem era incapaz e vazia de recursos para oferecer (projeção
identificativa). No entanto a função da facilitadora era de tolerar essas projeções
hostis, sem retaliar ou deixar que essa agressividade a fizesse desistir. Ela precisaria
proporcionar o que Bion (1962) denomina de continência. Se a líder do grupo
conseguisse conter os sentimentos caóticos que os pais projetavam sobre ela, eles
poderiam então se tornar capazes de tolerar seus anseios e em retorno conter a seus
filhos também. Salzberg-Wittenberg (1970), especifica,

“A capacidade do terapeuta de suportar sofrimento emocional, vai habilitar o


paciente a incorporar e se identificar com ele, tornando-se mais tolerante de
si mesmo e dos outros” (p.10) (tradução livre)

Assim sendo, a regularidade do grupo, adicionada a continuidade da presença


da facilitadora poderiam ser o começo de uma representação de alguém que poderia
manter estes pais em mente, tolerar seus sentimentos hostis, e sobreviver aos seus
ataques. Todas as semanas a facilitadora chegava com antecedência para arrumar o
espaço do grupo de uma maneira confortável. Ela trazia atividades as quais havia
colocado bastante empenho, pensamento e planejamento. A maioria destes pais
nunca havia tido uma experiência de segurança ou de alguém que pensasse neles.
Higgins e Newrith (1999) apontam,

“Contenção do grupo não é apenas o produto do setting e da nossa


constância interna, mas também é um processo ativo que inclui um
planejamento cuidadoso da forma e estrutura da sessão” (p118)
(tradução livre)

Além disso, era proporcionado um espaço onde os pais podiam ser “crianças”
eles mesmos, e isto era visto como uma oportunidade de eles construírem aspectos

94
da infância das quais haviam sido privados. No entanto, para que isto acontecesse,
eles precisavam de um ambiente facilitador, como Alvarez e Phillips (1998), ressaltam,

“Para o fim de explorar e experimentar comportamentos e maneiras


diferentes de ser, uma pessoa precisa sentir-se segura e protegida...o
aspecto importante não é tanto o significado do brincar mas a capacidade
de conseguir brincar em algum momento” (p.102) (tradução livre)

A vinheta abaixo demonstra uma mãe aproveitando a oportunidade de ser mais


infantil e travessa num ambiente seguro, sem retaliação ou julgamento.

“A líder mostrou uma sacola laranja grande e pediu para os pais e crianças
adivinharem o que poderia estar lá dentro. Uma das mães estava sentada ao seu lado
e mexeu sua cabeça para olhar dentro da sacola. A facilitadora brincou com ela e
disse que roubar não fazia parte do jogo. A mãe riu alto com prazer e comentou que
havia brinquedos com formatos de quadrado dentro da sacola.”

Quando a facilitadora saiu de férias, ela avisou todas as famílias com


antecedência. Ela sabia que interrupções poderiam ser difíceis de serem toleradas e
aflorar sentimentos de perda e esquecimento. No seu retorno ela trouxe comidas
típicas do seu país de origem (Brasil), mas a maioria dos pais se recusou a
experimentá-las ou reclamou do seu gosto. Eles estavam recusando receber algo de
bom. Parecia muito difícil aceitar a ideia de que alguém pudesse lembrar deles,
mesmo quando estando muito longe.
No entanto, depois de alguns meses os pais pereceram conseguir manter o
grupo em suas mentes. Eles começaram a expressar curiosidade sobre qual seria a
atividade da próxima semana, e começaram a avisar com antecedência as suas faltas
no grupo. Eles também começaram a trazer suas próprias contribuições, como por
exemplo frutas para que se pudesse fazer salada de frutas todos juntos. Eles
tornaram-se capazes de receber experiências boas e gratificantes e em retorno
fornecer algo de volta. A mudança dos pais mostra o progresso mental da posição
esquizoparanóide para a posição depressiva (Klein, 1935). Klein ressalta que quando
o bebê entra na posição depressiva ele desenvolveu uma capacidade de preocupação
com o outro, um desejo de preservar o objeto bom e de reparar. O mesmo progresso
pode ser atribuído ao estado mental dos pais, que mudaram de uma posição hostil e

95
egoísta para uma preocupação para com o grupo e um desejo de fazer reparos pelos
seus ataques anteriores. Para Klein, a possibilidade de se viver a posição depressiva
é uma expressão de saúde.
De maneira geral o grupo continuou se desenvolvendo, e as famílias foram sendo
capazes de utilizá-lo com proveito e de forma positiva. A oportunidade de os pais
vivenciarem sua parentalidade sem serem julgados pelo seu vício, mostrou-se como
algo significativo. Belt & Punamaki (2007) ressaltam que “é importante que mães
usuárias sejam vistas como tendo potencial e capacidade de serem pais, e não apenas
como viciadas fadadas a recaídas” (p.206) (tradução livre)
Ocasionalmente alguns pais ainda demonstravam maiores dificuldades em
participar, sendo que isto era atribuído aos seus aspectos mais primitivos. Conforme
Youell (2008) ressalta “ensinar crianças ou adultos a brincar quando eles não tiveram
experiências satisfatórias nos seus primeiros anos não é uma tarefa fácil” (p128)
(tradução livre). Contudo, a sustentação do grupo como modelo de continência e do
brincar como sendo terapêutico, foram cruciais para que o trabalho continuasse
progredindo e sucedendo.

Conclusão

Este trabalho descreveu a difícil e intensa tarefa de se implantar e desenvolver


um grupo de brincar, numa instituição onde pais e filhos vivem situações de extrema
vulnerabilidade. A teoria psicanalítica, mais especificamente as contribuições de Klein,
Bion foram cruciais para o entendimento da importância em tolerar as projeções hostis
dos pais, da necessidade de se prover um grupo que fosse servir como modelo de
continência.
As dificuldades e resistências dos pais em brincarem com seus filhos, foram
relacionadas com suas próprias histórias traumáticas e de privações. A oportunidade
que os pais tiveram de aprender a brincar e de poder ser infantis eles mesmos, ajudou-
os a gradualmente entenderem as necessidades emocionais de seus filhos e de inclui-
los no brincar junto. Esta capacidade pode ser vista como um elemento importante de
progresso das famílias no grupo. O brincar foi considerado como um instrumento
terapêutico, uma vez que ajudou a dar sentido para experiências muito primitivas.
Dentro dessa instituição, esse foi o único grupo em que os filhos participavam
junto com seus pais, e em que a dependência química não era abordada. Assim

96
sendo, essa era uma ocasião em que os pais eram vistos como indivíduos e não como
usuários. Esse pode ser um aspecto crucial do seu processo de cura e tratamento.
Além disso, a possibilidade de os pais vivenciarem momentos prazerosos com seus
filhos, pode ser um aspecto positivo de vinculação e quebra de perpetuação de
experiências transgeracionais traumáticas.

Referências

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98
7- O DESENHO DA FIGURA HUMANA COM HISTÓRIA EM UM MENINO COM
DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM: COMPREENSÃO DOS ASPECTOS
EMOCIONAIS

Rita de Cassia De Souza Sá9

Helena Rinaldi Rosa10

Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo11

Resumo: Dificuldades de aprendizagem acometem grande parcela das crianças e


adolescentes em idade escolar, trazendo muito sofrimento a todos os envolvidos. São
queixas recorrentes nos atendimentos infanto-juvenis, sendo sua aquisição um
processo individual, que requer do aprendiz desenvolvimento da maturidade
emocional e social, necessárias ao processo. O presente trabalho teve como objetivo
compreender os aspectos emocionais e maturacionais na queixa de dificuldade de
aprendizagem de uma criança, por meio da aplicação do Desenho da Figura Humana
com História; e do Teste do Desempenho Escolar. Com base no método clínico, em
estudo de caso, foi realizada a análise dos instrumentos. No resultado foi possível
comprovar o baixo desempenho escolar da criança, por meio dos instrumentos
utilizados no estudo. Compreendeu-se que aspectos emocionais e da dinâmica
familiar contribuem para as dificuldades da criança, e que o instrumento Desenho da
Figura Humana com História, mostrou-se sensível para compreensão de dificuldades
de aprendizagem, reiterando resultados já encontrados em pesquisas anteriores sob
este mote.

Palavras-Chave: Aprendizagem. Dificuldade de Aprendizagem. Desenho da Figura


Humana com História. Desenvolvimento Emocional.

Introdução

9
Psicóloga. Especialista em Neuropsicologia. Pesquisadora do Apoiar
10
Professora Livre Docente do IPUSP, no Programa de Psicologia do Escolar e do Desenvolvimento Humano.
11
Professora Associada do Instituto de Psicologia da USP; Coordenadora do Laboratório de saúde Mental e
Psicologia Clínica Social.

99
Dificuldades de aprendizagem
O tema dificuldades de aprendizagem tem despertado e ganhado cada vez
mais espaço dentro das investigações psicológicas acerca do desenvolvimento do
indivíduo. São queixas frequentes na clínica infantil tendo em vista que na escola
reflete-se o que ainda não se manifestou ou ainda não foi percebido no seio familiar
(Rosa, 2018).
É a aprendizagem compreendida como um processo de autoconstrução
modificando o que foi anteriormente aprendido. Tal processo pode ser dirigido,
produzido prioritariamente pela escola ou família, ou produzir-se forma espontânea,
por decisão do próprio aprendiz (Díaz, 2011).

Desta maneira, considera-se a aprendizagem como um processo


mediante o qual o indivíduo adquire informações, conhecimentos,
habilidades, atitudes, valores, para construir de modo progressivo e
interminável suas representações do interno (o que pertence a ele) e do
externo (o que está “fora” dele) numa constante interrelação
biopsicossocial com seu meio e fundamentalmente na infância, através
da ajuda proporcionada pelos outros. Portanto, em todo aprendizado,
encontramos uma integração de dados oferecidos e dados construídos
pelo aprendiz. Esta apropriação também é conhecida por interiorização,
assimilação, transformação (Díaz, 2011, p. 83).

A aprendizagem é uma aquisição particular que se dá a partir do próprio ritmo


da criança por meio do seu modo de receber e aceitar os estímulos do ambiente
(Winnicott, 1982). A capacidade para se organizar psiquicamente e,
consequentemente, aprender, estaria ligada a relação emocional que a criança
tem/recebeu de sua mãe (Rosa, Monaci, Olivi, & Gandini, 1993).
A aquisição da leitura implica ainda no desenvolvimento da maturidade
emocional e social, quando a criança é capaz de permanecer longe da sua mãe sem
se angustiar, assim como, de estar em grupo entre pares e nesta relação desenvolver
habilidades de cooperar, competir e alternar (Rossetti-Ferreira, Amorim, & Oliveira,
2009; Condemarin, & Blomquist, 1986). Nesse sentido, a maturidade emocional
necessária para o processo de aprendizagem difere-se do conceito de quociente de
inteligência intelectual, sendo que, é possível ou não encontrar correlações entre
ambos os construtos. Maturidade para a aprendizagem “está relacionado com o
conceito de aptidão biológica, o qual constitui, principalmente, o reflexo de certos

100
padrões de integração entre o sistema nervoso central e o ambiente” (Condemarin, &
Blomquist, 1986, p. 17).
Sob o enfoque do desenvolvimento e avaliação da maturidade emocional e
cognitiva, o desenho vem sendo importante instrumento, sendo possível encontrar
paralelismos entre o desenvolvimento gráfico e o cognitivo (Rosa, Silva, Avoglia, &
Tardivo, 2018). A avaliação a partir da idade, investigando o que não seria comum
num desenho tanto do ponto de vista cognitivo ou emocional é parâmetro fundamental
que o profissional precisa lançar mão (Rosa, 2018).

Desenho da Figura Humana com Histórias: DFH-H

O teste do Desenho da Figura Humana (DFH) vem sendo foco de variadas


pesquisas, entre estas, as de Tardivo (2017), que descreve, como os clássicos da
área (Hammer, 1991; Van Kolck, 1984) que o desenho da figura humana representa
a própria pessoa e o papel, o ambiente. Assim, as sensações, percepções e motivação
localizam-se em certas partes do corpo e, em consequência, desenvolve-se a imagem
corporal.
Outro destaque são as pesquisas de Rosa (2006; 2008; 2014) a partir dos
indicadores maturacionais (IM) e os emocionais (IE) de Koppitz (1973) para o DFH e
o Teste de Goodenough-Harris (1963). A escala de Goodenough-Harris avalia a
‘maturidade conceitual’, ou seja, o conceito que a criança tem do corpo humano. Esse
conceito indica sua capacidade para formar outros conceitos, inclusive mais abstratos.
Koppitz avalia os Indicadores Maturacionais (IMs) do DFH para crianças de 5 a 12
anos por meio de uma escala de 30 itens (Rosa & Alves, 2014), cuja frequência
aumenta de acordo com a idade da criança, como também pelos indicadores de
problemas emocionais Indicadores Emocionais (IEs (Rosa, 2018). Para Koppitz
(1973), o DFH reflete as atitudes da criança consigo mesma e com as pessoas
significativas em sua vida, sendo, sensível ao nível evolutivo da criança e suas
relações e fornecendo um retrato do mundo interior infantil em um dado momento.
Koppitz (1973) considerou o DFH como teste de maturidade e também como teste
projetivo. Para a autora, o valor do DFH consiste na sua “sensibilidade para detectar
as mudanças na criança, que podem ser evolutivas e/ou emocionais” (p.18). Tardivo
(2017) em estudo que procurou compreender o DFH de vítimas de violência,
apresentou 30 categorias sensíveis à análise aos fatores psicodinâmicos do indivíduo.

101
Como uma variação das pesquisas do DFH, o Desenho da Figura Humana com
Histórias: DFH-H conta com a colaboração de Tardivo, Migliorini e Rosa (Migliorini &
Rosa, 2019; Tardivo, 2017). No DFH-, o desenho é um estímulo de apercepção
temática tendo como ponto de partida a universalidade da representação da figura
humana, a partir da qual o participantes elabora uma história. É um procedimento
simples e barato, de fácil aplicação, consistindo em pedir ao paciente ou participante
que desenhe uma pessoa, e a seguir, que escreva uma história seguida de um título
e inquérito (Migliorini &Rosa, 2019).

OBJETIVO

O objetivo foi compreender os aspectos emocionais de um menino que


apresenta dificuldades de aprendizagem, a partir do emprego de técnica projetiva
gráfica (DFH-H) e do Teste do Desempenho Escolar (TDE).

MÉTODO
O estudo foi realizado a partir do método clínico, com estudo de caso de um
menino, Pedro, de 12 anos, estudante do 7º. ano do Ensino Fundamental, com queixa
de dificuldade de aprendizagem, encaminhado e atendido no APOIAR.

Instrumentos e Procedimentos
Foram utilizados como instrumentos, entrevistas com a mãe (que assinou sua
concordância em utilização dos dados informados em pesquisa); com Pedro:

Desenho da Figura Humana com Histórias DFH H – descrito na Introdução;


Os dados do DFDH-H foram analisados qualitativamente, tendo como base os
estudos de Tardivo (2017) e Rosa (2018), para o Desenho da Figura Humana com
História,e indicadores maturacionais e emocionais propostos por Koppitz (1973) para
o DFH. Para o conjunto da produção foi empregado o método da livre inspeção do
material projetivo.

Teste do Desempenho Escolar – O TDE de Stein (2011) é um instrumento


psicométrico que visa oferecer de forma objetiva uma avaliação das capacidades

102
fundamentais para o desempenho escolar, mais especificamente da escrita, aritmética
e leitura.

APRESENTAÇÃO DO CASO12 - RESULTADOS

Entrevista com a mãe


Em primeiro contato com a genitora, Ana, queixou-se que Pedro não sabe ler
nem escrever, que a escola solicitou avaliação com psicólogo muitas vezes, e que
desta vez exigiu, sob ameaça de tomar outras providências para o atendimento se
realizasse. Ela conta que estava à procura do serviço gratuito por não ter condições
de arcar com os custos. Contou que o menino gosta muito dos esportes oferecidos na
escola, por isso, falta pouco, mas, quando se trata das lições de casa, é sempre um
sofrimento. Mencionou ainda que Pedro é gemelar e que a irmã é estudiosa e se
destaca na escola com notas altas. Pedro possui ainda outros seis irmãos que,
somados a ele e a irmã gêmea, compõem os oito filhos da família. A maioria dos filhos
ainda mora na mesma casa. Ana informou ser diarista e o pai, beneficiário (por meio
de programas de previdência social). Ela afirmou que a escola se queixa da distração
da criança que, quando chamado atenção por qualquer motivo, chora. Em casa,
também se apresenta distraído e “às vezes parece não estar lá, estava em outro
lugar”. A mãe disse que o pai briga com ele por causa disso, solicitando que preste
mais atenção. Na casa, além de Pedro, moram outros cinco irmãos e alguns
companheiros dos filhos. Ela disse que todos se dão bem, que os irmãos são
carinhosos uns com os outros, as crianças são felizes e que têm tarefas a cumprir: a
de Pedro é tirar o lixo e guardar os sapatos, a contragosto. Porém ao longo dos
atendimentos se mostrava muito estressada e preocupada com todos os conflitos e
problemas na família. Sobre o Histórico Familiar, Ana disse que na família do pai há
casos de pessoas que recebem atendimento psiquiátrico, mas diz não saber por quê.
Sobre a gestação, afirmou ter sido complicada dado o fato que eram gêmeos; que as
crianças nasceram pré-termo, com 8 meses.

12
Os nomes utilizados neste estudo foram substituídos por nomes fictícios.

103
Trechos do primeiro encontro com a criança
No primeiro encontro, Pedro demonstrou-se tímido, com voz extremamente
baixa, mas com um olhar doce e carinhoso. Foi levado à sala de atendimento, que
continha folhas, lápis, borracha, lápis de cor, alguns jogos de cartas, dominós de
palavras e números, a torre de Hanói, entre outros, todos dispostos sobre a mesa, ali,
desempenhando papel de mediadores do encontro. Iniciou-se a conversa
perguntando se ele sabia por que estava ali. Ele responde e sorri. Quando surgiu o
tema escolar, ele abaixa os olhos e uma lágrima escorre de seu rosto. (A psicóloga o
acolheu e tentou tranquilizá-lo).

Instrumentos usados com Pedro


Desenho da Figura Humana com História DFH-H
“O menino órfão

A história desse menino é que ele não tinha


pais. Um dia ele foi adotado. Foi para o
orfanato e chegou o dia dele ser adotado e ele
falou que queria que esse dia chegasse. E o dia
então ele foi adotado, e os pais que adotaram
ele é muito bravo, e um dia ele pensou voltar
para o orfanato e, ele fugiu de sua casa e foi
pra lá de novo. E ele falou que não ia ser
adotado e ele ficou feliz pra sempre com seus
amigos e suas amigas.”

*História escrita pela criança e transcrita sem os erros


ortográficos, mas com a concordância feita por ela.

De acordo com a tabela de características propostas por Tardivo (2017),


perceberam-se sete das 30 características: Cabeça normal; Presença de
sobrancelhas; Boca/Lábios; Presença de ombro; Presença de pés; Presença de
roupas, e, a FH incompleta, dada a falta de orelhas, cílios e mãos. O tamanho do
desenho chama a atenção, é pequeno, medinho 7 cm. O desenho encontra-se no lado
inferior da folha, no canto esquerdo, ocupando menos de ¼ do espaço disponível, isto
é, a folha. Sugere-se que aspectos da vida social e/ou familiar, inclusive escolar,
estejam fazendo com que Pedro esteja se sentindo “menor”, “diminuído”. A figura

104
humana incompleta, pela falta de orelhas, cílios e mãos, não é esperada na idade de
Pedro, o que pode indicar certa imaturidade emocional e cognitiva, tendo em vista o
paralelismo entre o desenvolvimento gráfico e cognitivo (Rosa, Silva, Avoglia, &
Tardivo, 2018).
Pedro apresentou três Indicadores Emocionais dos propostos por Koppitz
(1973): assimetria grosseira das extremidades, olhos estrábicos e braços compridos.
A autora constatou que, para diagnosticar a presença de problemas emocionais, era
suficiente um mínimo de dois indicadores. Rosa (2018) encontrou diferenças
significativas nos Indicadores Emocionais de crianças com e sem dificuldades de
aprendizagem, confirmando a constatação de Koppitz de dois indicadores para
sugestão de questões emocionais.
Nos Indicadores Maturacionais, Pedro apresentou presença de 16. Rosa (2018)
encontrou bom nível de sensibilidade dos Indicadores Maturacionais para discriminar
crianças com e sem queixas de aprendizagem, evidenciando que o as crianças sem
essa condição apresentaram desenhos mais elaborados e mais detalhados, e as que
tem mais dificuldades apresentaram desenhos mais empobrecidos. A média de pontos
Koppitz por idade e sexo foi de 18 entre os meninos na mesma faixa etária de Pedro,
enquanto ele atingiu 16. Em sua análise, Rosa (2006) dividiu ainda os indicadores em
itens esperados e itens excepcionais, a partir da amostra paulistana. Na faixa etária
de Pedro espera-se que desenhe: cabeça, olhos, boca, pernas, roupa, tronco, braços,
nariz, braço em 2 dimensões, pernas em 2 dimensões, pés, cabelo, pés
bidimensionais (Rosa, 2006). Os resultados obtidos por Pedro estão abaixo da média
em relação à amostra paulistana em sua faixa etária.
Rosa (2018) encontrou 17 Indicadores Maturacionais para crianças sem
dificuldade, na mesma faixa etária de Pedro; e 15 indicadores para as crianças com
dificuldades. Assim, os resultados de Pedro com 16 itens estão de acordo aos obtidos
por Rosa (2018); e com os dados da literatura que colocam que dificuldades
emocionais interferem no desempenho cognitivo (Rosa, Belizario, Alves, & Valente,
2019; Rosa, Silva, Avoglia & Tardivo, 2018).

História
Pedro conta a história de uma criança que não tinha pais e precisa ser
encaminhada a um orfanato. E na tentativa de ter uma segunda família, fica

105
novamente só, pois, os novos pais não oferecem condições afetivas de cuidar do
menino da história. E assim, esse menino foge, preferindo estar no orfanato
novamente, pois encontrou na companhia dos amigos um sentido mais aproximado
do que é ter família. Observa-se o não pertencimento da criança nessa família e pode-
se dizer, no mundo em que vive, inclusive o escolar. Sente-se não acolhido e não
compreendido por ela o que pode estar relacionado ao seu “desligamento”, sua
distração tanto na escola quanto em casa. E à necessidade de encontrar pessoas com
as quais possa se sentir mais feliz.

Resultado do Teste do Desempenho Escolar TDE

Resultados Escore Classificação Previsão de Escore Bruto (EB)


Bruto (EB) A partir da idade (12 anos)

Escrita 10_ _Inferior__ 29__________


Aritmética 11_ _Inferior__ 22__________
Leitura 54_ _Inferior__ 67__________
Total (EBT) 74_ _Inferior__ 118__________

Os resultados de Pedro no TDE evidenciam que seu desempenho escolar nas


áreas da Linguagem, da Escrita de palavras e no conhecimento de cálculos
aritméticos, denota desempenho inferior. Seu pior desempenho foi no subteste da
Escrita, isto é, há sinais de conhecimento insuficiente, necessário à escrita de
palavras.
Esses resultados do TDE indicam a necessidade de uma avaliação mais
específica para compreensão de seu baixo desempenho geral, principalmente no que
diz respeito à capacidade de decodificação fonológica, na conversão grafema fonema,

106
que requer capacidade e controle atencional com a mediação das funções executivas,
necessárias à habilidade de escrever.

DISCUSSÃO
O DFH mostrou imaturidade de desenvolvimento e presença de indicadores de
comprometimento emocional da criança. A respeito da omissão de mãos, Hernandez,
Rochefort, Trojan Neto, Sarmiento, Feijó & Curra (2000), a partir dos Indicadores
Emocionais de Koppitz, encontraram diferença estatística neste indicador, mostrando
que as crianças vitimizadas omitiram mais. Para Koppitz (1973) a omissão de mãos é
mais frequênte em crianças tímidas, indicando sentimentos de inadequação e/ou
culpa e insegurança, e este item aparece em crianças com distúrbios somáticos.
A história de Pedro também traz elementos emocionais importantes acerca do
seu desenvolvimento e de seu ambiente, sugerindo que ele pode ter a sensação
emocional de não ser cuidado, como se realmente faltasse a presença, ou o papel de
cuidadores das figuras materna e paterna. O papel da mãe, ou seja, da função
materna (que pode ser também o pai, ou aqueles que cuidam da criança) de oferecer
ambiente suficientemente bom, propício ao desenvolvimento saudável do indivíduo, é
reiteradamente tratado por Winnicott (1982; 1983). Quando fala do processo de
aquisição da inteligência, da aprendizagem e do desenvolvimento humano geral, o
autor entende que as necessidades para tal não são estáticas, estando sempre “num
estado de transformação qualitativa e quantitativa, em relação à idade da criança e às
necessidades em constante mutação” (Winnicott, 1982, p.203) sendo, o ambiente,
causador de grande impacto no humano. Complementa ainda que afirmando que a
aprendizagem é um modo de receber e aceitar os estímulos do ambiente; indo de
encontro às percepções de Rosa, Monaci, Olivi e Gandini (1993) quando entendem
que a capacidade de aprender a organizar-se psiquicamente estaria ligada à relação
emocional que a criança tem/recebeu de sua mãe.
Pedro procura em sua história busca figuras parentais, mas se sente não
atendido e compreendido, Pedro finalmente encontra em seus pares o espaço para
ficar bem afetivamente. Os resultados mostram que Pedro sente seu ambiente como
não tendo condições de atender às suas necessidades básicas. Tal sensação
encontra respaldo na realidade, já que a mãe fala do grande número de pessoas na

107
casa e todos os problemas emocionais relatados por ela ao longo das sessões, em
desabafo, antes ou após os encontros ou ainda por mensagens no celular.
A família só procurou ajuda psicológica porque foi exigido pela escola, após
outras tentativas anteriores de solicitação mais amigável; nunca tendo sido buscada a
ajuda, mesmo Pedro já denotando dificuldades escolares desde criança.
A mãe relata que a irmã gêmea é o “oposto” de Pedro, pois se desenvolveu e
ganhou destaque no desempenho escolar. Pedro então isola-se do restante da
família, vivendo “como se tivesse em outro lugar”. Pelo relato da história e pelos dados
da vida de Pedro, os amigos são a fonte de afeto e a ligação com o mundo exterior.
O TDE confirmou os dados obtidos no DFH: rendimento abaixo dos seus pares,
inferior se comparado a crianças na sua mesma faixa etária; sugerindo que Pedro
pode apresentar imaturidade para a aprendizagem, caminhando.
As dificuldades emocionais percebidas em Pedro, em sua relação com o
ambiente, somadas ao baixo desempenho escolar e dificuldades no seu
desenvolvimento maturacional, vão ao encontro dos dados da literatura, que aponta
que a maturidade para a aprendizagem está ligada à interação constante entre o
desenvolvimento da maturação biológica e o ambiente (Condemarim & Blomquist
(1986). Compreende-se que a maturidade para a aprendizagem como afirmam esses
autores definem: “o conceito de aptidão biológica, o qual constitui, principalmente, o
reflexo de certos padrões de integração entre o sistema nervoso central e o ambiente”
(p. 17).
Foram encontradas relações entre os resultados da análise do DFH-H e do
TDE, pois no DFH-H houve indícios das dificuldades emocionais e maturacionais da
criança, e na história, a sensação da falta de proteção e amparo. No TDE,
compreendeu-se de forma objetiva, as dificuldades da criança, fundamentais para o
desempenho escolar, mais especificamente da escrita, aritmética e leitura (Stein,
2011), com resultado inferior.

CONSIDERAÇOES FINAIS
No caso apresentado, o DFH-H revelou aspectos emocionais importantes, bem
como indicativos maturacionais que têm ligação com o desempenho cognitivo. Esses
dados são corroborados pela história associada, onde a criança se ressente da falta

108
de proteção, também obteve no TDE, um desempenho abaixo do esperado para sua
idade e e série escolar.
Os instrumentos empregados, junto das observações realizadas durante as
sessões com a mãe e Pedro, se mostraram sensíveis para confirmar as dificuldades
emocionais e maturacionais do menino. Também se confirma a relevância do
ambiente como fator fundamental para o desenvolvimento humano e para a aquisição
de habilidades para o processo de aprendizagem.
Conclui-se pela necessidade de se amparar crianças desde cedo quando
demonstram dificuldades em acompanhar o que se espera, no que se refere com
respeito às habilidades cognitivas. É fundamental prover também o cuidado à família
e à escola para que possam se constituir em ambiente que propicie o desenvolvimento
das crianças.

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109
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110
8- O COMPORTAMENTO AUTOLESIVO NA ADOLESCÊNCIA E O TESTE DE
FÁBULAS DE DÜSS: PSICODIAGNÓSTICO COMPREENSIVO
Gislaine Chaves
Loraine Seixas Ferreira
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Helena Rinaldi Rosa

Resumo: Cada vez mais têm se observado a ocorrência de adolescentes envolvidos


em vivências violentas, bem como em comportamentos de risco, como por exemplo,
os comportamentos auto lesivos. A presente proposta objetivou, por meio do
Psicodiagnóstico Compreensivo com o auxílio do Teste de Fábulas de Düss, investigar
aspectos da personalidade de três adolescentes que não possuíam transtorno
psiquiátrico diagnosticado e praticavam o comportamento auto lesivo. Para tanto, o
método Clínico-Qualitativo e o delineamento de Estudo de Casos Múltiplos foi
empregado, tendo em vista os aportes winnicottianos. O estudo foi realizado num
Centro de Integração Cidadania do estado de São Paulo. Em síntese, os resultados,
por meio das histórias elaboradas para o Teste Fábulas de Düss, apontaram para a
vivência do sentimento de desamparo como fator comum entre as participantes desse
estudo. Ademais, as participantes do estudo evidenciaram a presença de rupturas no
sentido continuidade da vida, lançando mão de defesas primitivas contra a repetição
da ansiedade impensável.

Palavras-chave: Adolescência; Comportamento autolesivo; Psicodiagnóstico


compreensivo e interventivo; Teste de Fábula de Düss.

INTRODUÇÃO

O ato de provocar lesões sobre si mesmo causa, por si só, estranhamento à


grande parte da população, pois, são contrários ao instinto mais primitivo dos animais:
o de vida. Ryan, Heath, Lane e Young (2008) não permitem esquecer que dentre
esses comportamentos existem aqueles socialmente aceitos em certas culturas como
os rituais de passagem da infância à vida adulta, e o uso adereços com finalidade
estética. Contudo, as fronteiras que podem sinalizar a presença de uma conduta
patológica nesse ínterim são muito tênues, de modo que em relação ao
comportamento auto lesivo, torna-se importante o aprofundamento de sua

111
compreensão, já que pode, especialmente, na adolescência, ser indicador de entraves
em seu desenvolvimento.
O comportamento auto lesivo é amplamente definido na literatura científica, de
forma que muitos termos são utilizados com a intenção de nomeá-lo. Assim, haja vista
a complexidade do fenômeno, a comunidade científica apresenta dificuldades de
definição conceitual a nível universal, sendo a intencionalidade ou não para a morte
fruto de intensos debates.
Guerreiro e Sampaio (2013) apontam que a comunidade anglo-saxônica
considera duas definições: a) Deliberate Self-Harm (DSH): A questão da
intencionalidade não é discutida, sendo, até mesmo, as sobre dosagens consideradas
condutas auto lesivas; e b) Non Suicidal Self-Injury (NSSI): Realizado sem intenção
de morte declarada, sendo incluídos apenas os comportamentos de lesão superficial
da pele e atitudes semelhantes como arranhões e queimaduras.
Assim, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta para o comportamento
autolesivo como um problema de saúde pública. Trata-se de ato realizado,
principalmente, por adolescentes e jovens adultos (Tardivo, Ferreira, Alhanat, Chaves,
Rinaldi, Pinto Junior & Belisário 2019; Stewart Esposito, Glenn, Gilman, Pridgen, Gold,
& Auerbach, 2017; Washburn, 2012; Nock, 2010).
Nesse contexto, a conduta autolesiva na adolescência tem sido amplamente
investigada na atualidade, sendo considerado um comportamento cujas razões são
multifatoriais (Chaves, 2018). Muitos são os estudos nacionais (Vilhena & Prado,
2015; Drieu, Proia-Lelouey & Zanello, 2011) e internacionais (Brow & Plener, 2017;
Brunner et al., 2014) que se debruçam a compreender dados quantitativos, como
prevalência e recorrência a longo prazo, bem como qualitativos, que visam desde
reconhecer os fatores de risco (Rasmussen, Hawton, Philpott-Morgan, O'Connor,
2016; Jorge, Queirós & Saraiva, 2015) até propor medidas interventivas Plener,
Allroggen, Kapusta, Brähler,Fegert, & Groschwitz., 2016).
Tendo em vista a necessidade de trabalhos que forneçam subsídios para a
prática psicológica, especialmente, para o processo psicodiagnóstico, cabe citar o
estudo recentemente publicado por Tardivo et al. (2019). Os autores investigaram a
relação entre aspectos da personalidade, comportamento autolesivo e depressão em
pré-adolescentes e adolescentes na faixa etária de 11 e 16 anos, com e sem
comportamento autolesivo, por meio de entrevistas, aplicação do Inventário de
Depressão Infantil (CDI) e o Desenho da Figura Humana (DFH). Os resultados

112
permitiram associar o comportamento autolesivo dos participantes a sintomas
depressivos, com predomínio de autoimagem negativa, sentimentos de culpa,
dificuldades em lidar com pensamentos que provocavam dor, preocupações sexuais,
problemas corporais e dificuldades em conectar controle e impulsos.
Ainda nessa vertente de estudos que realizam a interlocução desse fenômeno
com a atividade clínica embasada por instrumentos projetivos e objetivos, cabe
apontar o trabalho apresentado por Tardivo, Chaves, Ferreira, Banhos e Martinez no
X Congreso Internacional y XV Nacional de Psicología Clínica (2017), o qual
investigou a maneira como os adolescentes que se autolesionam constroem o seu
mundo vivencial. Quatro adolescentes entre 12 e 13 anos de idade fizeram parte da
pesquisa, a qual contemplou entrevistas e a aplicação do HTP, CDI e BAI. Os
resultados apontaram para a influência dos pares no início da conduta, havendo sinais
de conflitos intrafamiliares e, consequentemente, de muito sofrimento, traduzido em
altos scores de ansiedade e depressão. Assim, nota-se que a realização de avaliações
psicológicas com esse público se torna uma ferramenta possível para melhor
compreensão e atuação do psicólogo junto ao jovem que sofre. Nesse contexto, o
Psicodiagnóstico Compreensivo se mostra como alternativa.
O Psicodiagnóstico Compreensivo foi proposto por Trinca (1984). Tal processo
objetiva clarificar a compreensão da conduta humana tendo em vista o emprego de
uma atitude clínica que considere o sujeito globalmente. O Psicodiagnóstico
Compreensivo abarca referenciais de vários campos do saber, como o Behaviorismo,
da Fenomenologia-existencial, Gestalt, Psicologia do Desenvolvimento, assim como
do funcionamento e estruturação familiar. No entanto, suas principais bases se
fundamentam nos aportes psicanalíticos, uma vez que tal abordagem valoriza o
exercício do raciocínio clínico e a compreensão dos conteúdos latentes dos sintomas,
lançando luz sobre a importância dos sentidos e significados dos movimentos
inconscientes inerentes ao indivíduo (Trinca, 1984).
Observa-se, dessa forma que Trinca (1984) estima a integração dos vários
elementos que dizem respeito a caso em um todo coerente, isto é, que leve em
consideração o dinamismo psíquico, intrafamiliar, social e cultural. Nas palavras do
autor (1984, p. 32):

113
embora as teorias sejam fatores importantes no background do
profissional, é mister que sua atividade clínica seja empreendida com
o mínimo de interferência de suas teorias sobre sua capacidade de
observar e captar os fatos relevantes.

A modalidade compreensiva se organiza de acordo com as necessidades do


caso. A escolha ou não do uso de testes, procedimentos ou técnicas projetivas fica a
cargo do clínico (Trinca, 1984). Assim, considerando-se a importância da investigação
dos elementos intrapsíquicos que compõe a organização da personalidade dentro de
um processo psicodiagnóstico, especialmente, dos adolescentes que se
autolesionam, compreende-se que uma maneira possível para abarcar essa
dimensão, tão delicada para o jovem, seja por meio do uso de instrumentos projetivos
que auxiliem na localização do complexo ao qual o sujeito se encontra fixado, como é
o caso do Teste de Fábulas de Düss.
Tal teste oportuniza compreender aspectos do desenvolvimento socioafetivo e
psicodinâmico de crianças a partir de 03 anos (Tardivo, 1998). De acordo com a
autora, trata-se de técnica projetiva que favorece a constatação do complexo ou
conflito vivenciado pelo examinando, bem como lança luz aos aspectos intrafamiliares.
O Teste de Fábulas de Düss já se mostrou efetivo em outros cenários de pesquisa,
como o de crianças vitimizadas (Tardivo, Pinto Júnior & Santos, 2005).
Assim, Trinca (1984) valoriza o pensamento clínico em detrimento das teorias,
no entanto, não exclui e desconsidera o seu valor para a compreensão do caso em
análise. Dessa forma, nesse estudo, serão utilizados os aportes winnicottianos para
melhor compreensão dos achados desse estudo.
A teoria winnicottiana foi escolhida dado o posicionamento de seu expoente
ante à adolescência. Winnicott (1961/2005) inovou ao considerar que “os
adolescentes têm sim problemas com os instintos, no entanto, mais importante do que
isso é que eles querem ser alguém em algum lugar” (p. 123). Tal afirmação escancara
a necessidade de considerar o ambiente e suas influências.
No que diz respeito à adolescência, Winnicott (1961/2005) prevê que o sujeito
tem a chance de fortalecer as aquisições já obtidas, bem como de internalizar àquelas
que não foram possíveis de serem agregadas em fases anteriores do processo de
amadurecimento, situação que contribui explicitamente para a indispensabilidade do
suporte da família e da sociedade, justificando que nessa etapa da vida ocorre a

114
reedição das vivências de sucesso e fracasso experimentadas na primeira infância
com vistas à sua integração (1968/1975).
Recorrendo aos aportes do desenvolvimento emocional infantil, o autor
(1960/1983) pontua que a experiência do lactente com o ambiente assume crucial
importância, já que quando este último se mostra falho “interrompe a continuidade do
ser” e compromete a estrutura de ego, suscitando a “ameaça de aniquilamento” ou
“desintegração”, pois o bebê reage, provocando marcas em seu desenvolvimento.
Em 1955, no trabalho intitulado Raízes primitivas da agressividade, Winnicott
(1964/1982) menciona três maneiras do bebê experenciar o ambiente: a) Por meio da
motilidade, na saúde, o bebê descobre constantemente o ambiente e é por este
descoberto; b) Numa outra maneira, o bebê sente-se submetido às intrusões
ambientais e reage, buscando refúgio na quietude por meio do solapamento do gesto
espontâneo; e, c) as intrusões são sentidas como extremas de modo que ao bebê não
cabe alternativa a não ser o ocultamento do verdadeiro eu. Dessa forma, as
experiências que afetam o bebê são registradas a nível somático e psíquico
(Winnicott, 1990). Como consequência, o sujeito pode ter sérias dificuldades de
integração a nível parcial e total, com prejuízos na compreensão psicossomática e na
aquisição de confiança no mundo.
Assim, para Winnicott (idem), os processos psicopatológicos derivam dos
movimentos defensivos realizados pelo indivíduo, nos diferentes estágios de seu
desenvolvimento, ante às falhas ambientais. Entretanto, o autor também reconhece e
aqueles jovens que convivem em “ambiente suficientemente bom” podem apresentar
sofrimento devido às condições da realidade externa, as expectativas geradas e a
pressão sentida, não havendo garantias, uma vez que a unidade psicossomática não
é estanque, estando atrelada à relação com o ambiente e de perdas e ganhos
enquanto parte natural desse processo. Ademais, o adolescente se depara com um
corpo diferente, genitalizado, cuja potencialidade para a violência e para o sexo está
dada, passível para a concretização de fantasias e desejos íntimos e antigos.
Com base nessa compreensão, Winnicott (1961/2005) salienta o esforço
realizado pela estrutura egóica para lidar com as exigências decorrentes das
mudanças puberais e do aparecimento das fantasias destrutivas, libidinais e
agressivas, incrementadas pela possibilidade de sua execução, reconhecendo como
fase permeada por turbulências, intenso sentimento de culpa (dado o retorno da

115
questão edípica) e depressão, assim, impondo ao jovem à busca por alternativas de
enfrentamento à violência das transformações.
Assim, a vista de tais apontamento, esse estudo objetivou por meio do
Psicodiagnóstico Compreensivo com o auxílio do Teste de Fábulas de Düss, investigar
aspectos da personalidade de três adolescentes que não possuíam transtorno
psiquiátrico diagnosticado e praticavam o comportamento auto lesivo.

MÉTODO
Nessa pesquisa, foi adotado o método clínico-qualitativo. Tal técnica é
referenciada por Turato (2010, p. 96) como “... um conjunto de técnicas e
procedimentos adequados para descrever e compreender as relações de sentidos e
significados dos fenômenos humanos” que, fomentado pelos questionamentos do
pesquisador sobre a origem destes últimos, busca apreensão das acepções
existentes.
Enquanto estratégia metodológica, foi empregado o delineamento de Estudo
de Casos Múltiplos. De acordo com Yin (2001), este proporciona maior generalização
dos achados, permitindo a expansão ou criação de teoria a respeito da questão em
investigação.
A presente proposta faz parte de um projeto maior, denominado “O Teste de
Fábulas de Düss: Estudos de validade e precisão junto a crianças e pré-adolescentes
vitimizados, com dificuldades de aprendizagem e comportamento auto lesivo” de
autoria de Tardivo (2018) e tem como intenção contribuir para o alcance de um de
seus objetivos que visa apresentar estudos de fidedignidade e validade para o Teste
de Fábulas de Düss. Dessa forma, participou desse estudo um Centro de Integração
e Cidadania (CIC) - programa do Governo do estado de São Paulo que integra
diversos serviços - que concordou em participar da pesquisa. Algumas adolescentes
buscaram o CIC e foram atendidas por uma das autoras desse artigo que participa
como voluntária na instituição.
Assim, participaram da pesquisa três adolescentes. A fim de compor o
psicodiagnóstico compreensivo, foram realizadas entrevistas semidirigidas com a
jovem e o familiar e/ou responsável com o intuito de possibilitar espaço de exposição
e a possibilidade de a pesquisadora intervir quando julgasse necessário (Ocampo &
Arzeno, 2003).

116
Ainda foi empregado o Teste de Fábulas de Düss. O mesmo encontra-se
aprovado para a realização de pesquisas. Nesse estudo, foram analisadas as histórias
elaboradas para as fábulas 4, 5 e 10, tendo em vista as categorias especificadas por
Tardivo (1998 citado por Tardivo, Pinto Junior & Santos, 2005, p. 62):

Fábula 4 – Enterro
13. Relação com a figura paterna – desejos destrutivos. 14. Relação com
a figura materna – desejos destrutivos. 15. Respostas adequadas à
realidade. 16. Outros não significativos. 17. Autodestruição; 18 – Velhice;
19 – Doença: 19a) coração; 19b) outras; 20 - Provocada por outros; 21 –
Acidental.
Fábula 5 – Medo
22. Medo de Objetos Internos; 22 a) masculinos; 22 b) femininos; 22 c)
sem definição clara de sexo. 23. Medo de objetos externos reais. 24.
Medo de autodestruição.
Fábula 10 – Sonho mau
34. Relação com circunstância difícil. 35. Relação com figuras fantásticas.
36. Relação com pessoas reais. 37. Relação com autodestruição.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Breve descrição dos casos
1. Bruna: 12 anos de idade, feminino, nível socioeconômico baixo. Estudante de
escola pública, reside em Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e
Adolescentes (SAICA) com o irmão mais novo. Bruna foi retirada das ruas e não se
tem o paradeiro dos pais. As psicólogas da instituição buscam atendimento devido a
menina não falar sobre o seu passado e, recentemente, apresentar discurso que
remete à ideação suicida e descobrirem o comportamento autolesivo. Sobre o sentido
da conduta autolesiva, Bruna não consegue dizer sobre as motivações para o ato,
mas afirma sentir alívio quando se corta.

2. Carina: 13 anos de idade, nível socioeconômico baixo. Estudante de escola pública,


reside em Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICA)
com três irmãos mais novos (4, 6 e 12 anos). Carina entrou em contato com o
Conselho Tutelar para denunciar os maus tratos que ela e os irmãos sofriam por parte
do padrasto e a omissão de sua mãe. Também menciona que sua irmã mais nova foi
assediada pelo padrasto, fato que contribuiu para que ela decidisse solicitar ajuda. As
psicólogas da instituição buscam atendimento para Carina porque a mesma apresenta
crises de ansiedade, traduzidas em atos autolesivos. Carina também faz

117
acompanhamento psiquiátrico, no entanto se recusa a tomar as medicações. Quanto
ao sentido da conduta autolesiva, Carina não consegue explicitar o que leva à tal
comportamento, mas afirma sentir “esquecer um pouco dos problemas” (SIC).

3. Daniela: 14 anos de idade, nível socioeconômico baixo. Estudante de escola


pública, reside com a mãe, padrasto e irmão (16 e 12 anos). Teve pouco contato com
o pai desde a separação, que ocorreu quando ela era criança. Atualmente, não tem
mais nenhum contato com o pai. A mãe e o padrasto buscaram atendimento devido a
presença de ideações suicidas em seu discurso, menção sobre ouvir vozes que dizem
para que se comporte de forma auto e heteroagressiva e, em conjunto, o
comportamento auto lesivo

Apresentação dos dados do Teste de Fábulas de Düss:


A Tabela 1 sintetiza as respostas dadas pelas participantes ao Teste de Fábula
de Düss para as histórias 4, 5 e 10.

Tabela 1. Respostas às histórias 4, 5 e 10 do Teste de Fábulas de Düss.


Participantes
Instrumento
Bruna Carina Daniela
“O pai e mãe... porque se queimaram.
“Uma mulher que
4 Eles brigaram e jogaram fogo neles. “O irmão. (Por que?) Morreu de infarto. (Por que
estava muito
Enterro (Como assim?) Eles ficaram com raiva mais?) Mais nada”.
doente” .
e se mataram com fogo”.
“Pode ser do escuro, porque eu tenho. Eu
durmo no escuro, mas com a luz do banheiro
acessa. (Desde quando tem medo?) Não é
“De bicho, Lobisomen. (Por que?) Eles medo do escuro, mas o que pode ter no escuro.
“Do escuro. Ela
5 tem medo e começam a chorar, porque (Explique melhor) Medo de espíritos. Já vi
se sente
Fábulas Medo não sabem quem ou o que é. (Como muito. Vi uma entidade num centro de Umbanda
desprotegida” .
de Düss assim?). Fim” . com 12 anos” . A paciente então relata sobre a
sua crença religiosa e um episódio em que o pai
de santo diz que ele era o seu pai e que sua
mãe da Terra não a amava.
“Pesadelo. (Fale mais sobre isso) Não sei...
“Ela sonhou que
Sonhou com pesadelo, eu acho muito ruim.
10 “Sonhou que tinha alguém na frente todos que ela
Quando era menor, eu tinha pesadelo
Sonho dela. Assistiu filme de terror e teve amava tinham ido
recorrente, mas não tenho mais. Minha irmã tem
mau pesadelo. (Por que?) Porque sim” . embora e só tinha
pesadelo constante (E sobre a fábula, qual o
restado ela”.
tema do pesadelo?) Não sei.”

Como é possível observar, na Fábula 4, Enterro, Carina e Daniela atrelam à


morte do personagem a uma situação de adoecimento, isto é, algo que o acomete e
que não está sobre o seu controle, enquadrando-se na categoria 19. Doença, descrita

118
por Tardivo (1998 citado por Tardivo, Pinto Júnior & Santos, 2005). Já Bruna faz
menção à morte autoprovocada, ao suicídio, que se dá de forma bastante cruel e se
origina a partir da discussão que ocorre entre o casal, dado compatível com a
categoria 20. Provocada por outros, como apresentado por Tardivo (idem).
No que diz respeito aos personagens, observa-se que Bruna e Carina
mencionam sobre a morte de um familiar (pai e mãe, e irmão), dado que se enquadra
nas categorias 13. e 14. Relação com a figura paterna e materna – desejos destrutivos.
Já Daniela afirma sobre a morte de uma pessoa qualquer, dado que pode ser
compreendido como pertencente à categoria 16. Outros não significativos.
Nesse contexto, pode-se afirmar que Bruna e Carina apresentam sentimentos
hostis e destrutivos para com as figuras familiares. Quanto à Bruna, os aspectos
destrutivos direcionam-se ao casal parental e, à Carina, ao irmão. Tais dados sugerem
aproximações com a história de vida dessas participantes, que se mostra permeada
por situações de violência, física e psicológica, intrafamiliar. Carina, durante as
sessões do psicodiagnóstico, se mostrou bastante preocupada com seu irmão devido
a sua relação com o mundo do tráfico de drogas e com o fato do mesmo não poder
ter ido para o SAICA por estar foragido da polícia, sentindo-se culpada por tê-lo
“abandonado” (SIC). Bruna, em nenhuma das sessões relatou sobre seu pai ou mãe,
mas, em sua narrativa, nota-se a presença de conteúdo violento e impulsivo diante de
situações de conflito entre os familiares.
Já Daniela demonstra evitar o contato com a situação, distanciando-se
afetivamente do personagem morto. Por um lado, a paciente protege-se contra acesso
a conteúdo mais profundo sobre aquilo que a incomoda e causa dor, mas por outro,
revela a presença de algo incontrolável, a doença e sua alta intensidade, como um
fator que leva ao fim da vida. Esse tema no desenho de Daniela também se aproxima
de sua vivência, apontando para as vozes que ouve e o medo de enlouquecer. Assim,
em conjunto, o conteúdo latente de tais narrativas parece referir-se à ordem da
impotência, dado que, por um lado, demonstra que as participantes se aproximaram
do sentido da história, mas, por outro, sugere fantasias de fragilidade frente ao tema.
Na Fábula 5, Medo, Carina e Daniela referem sobre o medo do escuro. Carina,
ao falar de seu medo, revela uma situação de si, comentando sobre a religião e as
informações que obteve sobre sua vida por esse intermédio. Daniela relata sobre o
sentido de desproteção que o escuro reserva. Já Bruna descreve personagens
fantásticos, enfatizando o medo suscitado pelo desconhecido. Tardivo, Pinto Júnior e

119
Santos (2005) afirma ser comum a presença de histórias relacionadas a aspectos da
fantasia e da realidade.
Sobre os personagens, Bruna denota medo de objetos internalizados, ligados
ao campo da fantasia, de sexo não definido. Daniela associa o medo de pesadelo ao
de ser abandonada, trazendo tal angústia à baila. Carina, por sua vez, se recusa a
associar sobre o medo e entrar em contato com tal sentimento. Assim, apesar das
diferenças, é possível observar, em todas as narrativas, o medo provocado pelo
inesperado, suscitando a presença da sensação de vulnerabilidade.
Tendo em vista as colocações de Winnicott (1996/2005) sobre o medo e a sua
relação com a elaboração de conteúdos ansiógenos, pode-se conceber que as
narrativas expressam o receio do desamparo. Tais dados são compatíveis com o
descrito por Chaves (2018) que, a partir de um estudo de caso de uma adolescente
que se autolesionava, refere a interferência da noção de desamparo como fator
significativo para a adoção de uma postura autoagressiva, ou em termos
winnicottianos, antissocial. Tardivo et al. (2019) endossa afirmando que a dor dos
adolescentes que se autolesionam estão associadas também à experiência de viver
em uma sociedade com referências fragilizadas.
Ademais, nota-se que Bruna e Daniela apontam para a presença de medo
ligado à figura humana, o que sugere conflitos no contato com o outro, que pode
assustar, como descrito por Bruna, quanto abandonar, como apontado por Daniela.
Dessa forma, infere-se, a partir de tais dados, que as participantes também ressaltam
a dificuldade de confiar no outro.
Na Fábula 10, Sonho mau, observa-se que todas as participantes se referem
sobre a ideia de pesadelo. Bruna, aponta para um sonho com uma figura humana,
dando mais coerência à sua narrativa a partir da justificativa do filme de terror como
estopim para tal situação. Carina não se aprofunda na temática, afirmando somente a
presença de uma frequência significativa de pesadelos no passado, mas que agora é
sua irmã quem vivencia essa circunstância, e, Daniela apresenta maior teor emocional
em sua resposta, salientando a noção de desproteção e de estar a mercê de si
mesma, escancarando as rachaduras na experiência de alteridade. De acordo com
Tardivo, Pinto Júnior e Santos (2005) a variabilidade de respostas é comum nessa
fábula. Pode-se observar a presença de aspectos da fantasia, como o filme de terror
apontado por Bruna, e de autodestruição, relatado por Daniela.

120
Ao se analisar individualmente cada resposta, compreende-se que Bruna, a fim
de lidar com a ansiedade, lança mão de conteúdos da vida real, o pesadelo para
justificar a presença da mulher, sem prejuízo significativo na organização lógica da
narrativa. Daniela sinaliza o temor da autodestruição a partir do abandono do outro. A
paciente aponta para a solidão como meio de sofrimento, revelando a dependência
em relação ao outro.
Já Carina faz uso maciço de mecanismo de defesa, como a negação,
impedindo a possibilidade de exposição de suas conflitivas. Sugere-se que Carina
evite entrar em contato com a angústia a todo custo, como uma maneira de preservar
o seu psiquismo, sugerindo a existência circunstância por demais penosa para ser
tolerada, evitando, assim, a possibilidade de elaboração da problemática
perturbadora.
Em síntese, pode-se observar que Bruna, Carina e Daniela apresentam
conflitos ligados ao desamparo. Costa (2000), baseado na teoria winnicottiana, refere
que a sensação de desamparo se articula com a compreensão de desadaptação do
ambiente, e não com a incapacidade concreta do indivíduo em se bastar sozinho. Isto
significa dizer que, para o autor, são os déficits no ambiente, como as intrusões ou
falhas que impossibilitam que o indivíduo possa vir-a-ser, que contribuem para a
paralisação das faculdades criativas do self, interrompendo o fluxo do seu
desenvolvimento, podendo incorrer na (re)vivência da angústia impensável.
Ainda, Costa (2000) aponta que na adolescência tal paralisação propicia o
retorno da situação de desamparo. Winnicott (1961/2005) aponta que nessa etapa da
vida ocorre a reedição das vivências de sucesso e fracasso experimentadas na
primeira infância com vistas à sua integração (1968/1975), sendo, portanto,
imprescindível o suporte da família ou substituto, e da sociedade, para a retomada do
amadurecimento. No entanto, cabe pontuar que para Winnicott (citado por André,
2001) atrelado à angústia impensável está a noção de desamparo e também de “um
combate, de uma primeira resposta contraposta ao perigo” (p. 96).
Nesse sentido, pode-se conceber que as participantes desse estudo revelam,
por meio das histórias elaboradas para o Teste Fábulas de Düss, rupturas no sentido
continuidade da vida, lançando mão de defesas primitivas contra a repetição da
ansiedade impensável. De forma que, na ânsia de se sentirem reais, Bruna, Carina e
Daniela lançam mão, paradoxalmente, de condutas prejudiciais para si,

121
exemplificadas pelos comportamentos autolesivo, na tentativa de superar a dor do
desamparo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente proposta possibilitou observar que as adolescentes participantes do
estudo vivenciam situações de intenso sofrimento. Suas histórias de vida são
permeadas por vivências violentas, tanto a nível concreto quanto simbólico, e o Teste
de Fábulas de Düss favoreceu o acesso ao mais íntimo da expressão de suas
fantasias, emoções, desejos e pensamentos, desvelando como conflito inerente à
todas as participantes a noção de desamparo. Assim, a conduta realizada por elas
mostrou-se paradoxal: a autolesão opera como uma tentativa de superar a dor do
desamparo.

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respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1969f [1968])

125
9- IDOSOS COM DOR CRÔNICA: NÍVEL DE DEPRESSÃO E PROPOSTA DE
INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA GRUPAL

Rilza Xavier Marigliano


Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo

Resumo: O processo de envelhecimento consiste em uma fase do desenvolvimento


na qual ocorrem várias transformações biopsicossociais na vida do indivíduo. Devido
a estas mudanças, há um desgaste do organismo fazendo com que haja uma
incidência muito grande de idosos com dor crônica e que sejam apresentados
sintomas de depressão em algum grau. Diante da importância do tema, foi realizada
um atendimento psicológico em grupo com idosos com dor crônica, residentes na
periferia da cidade de São Paulo. Participaram 40 idosos com idades entre 60 e 80
anos que tinham diagnóstico de dor crônica. Foi lido e assinado o TCLE, aplicado o
questionário sociodemográfico e uma entrevista semiestruturada com cinco questões
para que fosse conhecido o histórico pessoal e de saúde de cada idoso. Foi aplicada
a Escala de Depressão Geriátrica GDS-15 para que fosse verificado se havia sintomas
de depressão associados aos diagnósticos de dor e após a intervenção em grupo foi
feita uma segunda aplicação, para que os resultados pudessem ser comparados e
verificar se houve alguma mudança após o atendimento. Os atendimentos
psicológicos foram realizados em 12 encontros e a intervenção foi feita com base na
teoria winnicottiana, oferecendo uma escuta cuidadosa, com foco na queixa dos
participantes, possibilitando, assim, que suas angústias fossem tratadas em um
setting diferenciado. Observou-se que os quadros de dor lombar, fibromialgia e artrite
tiveram grande incidência nos participantes. Na primeira aplicação da escala de
depressão GDS-15 a depressão moderada e a severa foram encontradas em maior
número de participantes. Na segunda aplicação da GDS-15, após as sessões de
atendimento psicológico, foi observada uma melhora dos sintomas, na qual três
participantes passaram da depressão severa para a moderada, cinco participantes
passaram da depressão moderada para a leve e seis participam que apresentaram
inicialmente depressão leve, passaram a apresentar um escore menor que 5, que
corresponde à classificação normal, ou seja, livre de sintomas de depressão. Com
isto, se pode concluir pela importância do atendimento grupal para a diminuição dos

126
sintomas depressivos destes idosos que sofriam com dores crônicas, colaborando
também para a melhora de sua qualidade de vida.

Palavras-Chave: Envelhecimento. Dor Crônica. Depressão. Atendimento Psicológico.


Atendimento em Grupo. Psicanálise Winnicottiana.

Introdução
O aumento da população idosa tem despertado o interesse de vários
segmentos da ciência e da sociedade no estudo deste fenômeno que ocorre
mundialmente. Nos países mais ricos, embora já haja uma infraestrutura preparada
para atender esta população, ainda não foi possível uma adaptação completa para
dar toda a assistência necessária ao idoso. Em contrapartida, nos países pobres e em
desenvolvimento não houve nenhum tipo de preparo para receber esta população.
Assim, a escassez de recursos é muito grande e se torna ainda mais difícil dar conta
das necessidades e demandas decorrentes do envelhecimento (Mafra, 2011).

Vários órgãos governamentais são criados para dar suporte à população idosa,
como os Núcleos de Convivência do Idoso (NCI) que tem seu atendimento direcionado
ao auxílio das demandas desta população. Alguns equipamentos que prestam
serviços à população de maneira geral, também oferecem serviços específicos aos
idosos, como os Centros de Integração da Cidadania (CIC), que em parceria com as
secretarias de justiça e de saúde, oferecem serviços em diversas áreas aos idosos,
tanto na preparação de documentação, suporte para que o idoso saiba como
reivindicar seus direitos junto a outros órgãos e serviços de reabilitação física.

Entre os vários serviços prestados por estas instituições há uma grande procura
por atendimento na área da fisioterapia, pois notadamente, o período do
envelhecimento vem demarcado pelo desgaste fisiológico e ósseo. Estes desgastes
provocam dores lombares diversas, como também, problemas nos joelhos e outras
articulações que resultam em sérios prejuízos à locomoção (Rodrigues, 2010).

Outro serviço que tem se mostrado muito eficiente dentro das demandas da
população idosa, é o atendimento psicológico, que tem obtido uma grande procura,
devido aos altos níveis de depressão que os idosos têm apresentado. Em muitas
instituições, alunos dos cursos de psicologia, em caráter de estágio, ou alunos da pós-

127
graduação, como parte de suas pesquisas, têm prestado atendimento psicológico aos
idosos que participam destes núcleos (Rodrigues, 2010).
O atendimento psicológico oferecido ao idoso que sofre com os sintomas da
depressão tem se tornado uma necessidade de saúde pública, pois devido a diversos
fatores da vida cotidiana e da história clínica de cada idoso, verifica-se que cada vez
mais esta população procura os serviços de saúde apresentando esta demanda. A
clareza no diagnóstico esclarecendo qual o nível de depressão é apresentado pelo
paciente, facilita na escolha do tratamento mais indicado para cada caso e garante um
prognóstico mais positivo (Gil & Tardivo, 2010).

Para Tardivo (2015) é primordial ao Psicólogo poder lidar com pacientes


no âmbito da saúde mental, usando de compreensão e buscando maneiras de
intervenção que visem diminuir o sofrimento humano. Esta proposta de atendimento,
quer seja individual ou em grupo, em um setting diferenciado visa o aperfeiçoamento
das técnicas utilizadas para que o paciente, e neste caso específico, o idoso, possa
desenvolver mecanismos e estratégias para obter uma boa saúde mental. Assim,
oferecer atendimento psicológico ao idoso que sofre de depressão, possibilita que ele
lide melhor com suas questões internas e encontre motivação para viver melhor.
Os transtornos depressivos podem se apresentar de maneira recorrente na vida
do indivíduo e têm características multifatoriais, desde aspectos da personalidade da
pessoa, como a vivência de situações estressantes e limítrofes, quanto uma
predisposição genética podem ser fatores gatilho para o surgimento da doença. Estas
características podem se agravar com o passar dos anos, fazendo com que a pessoa
venha apresentar os sintomas da depressão com maior intensidade e em um período
mais curto de tempo entre uma crise depressiva e outra (Gil, 2010).
Muitos fatores podem desencadear sintomas de depressão: se sentir
dependente da família, a perda de amigos e entes queridos mais próximos, o
surgimento de dores crônicas e a incapacidade de locomoção. Todos estes fatores
podem fazer com que este idoso entre em uma situação de isolamento. Com isto, fica
mais suscetível ao desenvolvimento de episódios depressivos, necessitando assim de
atendimento psicológico (Mafra, 2011).
Vários sintomas caracterizam a depressão, entre eles: a falta de motivação para
realizar atividades que antes pareciam prazerosas, sentimento de culpa, tristeza,
baixa autoestima, irritabilidade constante, falta de apetite. Dificuldade para dormir,

128
desesperança, dores pelo corpo, cansaço intenso mesmo sem que tenha realizado
alguma atividade e nas mulheres podem se agravar problemas no período menstrual.
Todos estes sintomas podem vir acompanhados de ideação suicida nos casos mais
severos da doença (Gil & Tardivo, 2010).

A ocorrência dos casos de depressão atinge em maior número as mulheres,


mas devido ao contexto de crise no qual o país está imerso, há um número crescente
de homens diagnosticados com depressão. Um fator que é ressaltado para este
aumento de diagnósticos de depressão nos homens de todas as faixas etárias, mas
principalmente nos idosos, se deve ao estereótipo de que homem tem que ser o
principal mantenedor da casa e da família. Com isto, os idosos que sofrem com dores
crônicas, tem aposentadorias que não suprem suas necessidades e não tem
condições físicas para continuar trabalhando, sentem-se impotentes vindo a
desenvolver os sintomas da depressão (Soares & Caponi, 2011).
Os tratamentos medicamentosos para depressão têm apresentado bons
resultados, contudo, quando são combinados com o atendimento psicológico tendem
e se intensificar e ter uma eficácia mais duradoura, uma vez que quem sofre com
depressão pode ter a ocorrência de novas crises no decorrer da vida. Muitas vezes
conseguir um tratamento individual torna-se muito caro e a rede pública de saúde não
dispõe de muitos psicólogos para atender a demanda da população. Por esta razão,
o atendimento psicológico em grupo tem sido uma boa solução para este problema
(Gil, Aiello-Vaisberg & Tardivo, 2009).
Gil e Tardivo (2010) realizaram um estudo no qual foi feito um atendimento
psicológico com um grupo de idosos que sofriam com depressão. Para aumentar a
adesão dos participantes ao processo terapêutico foram utilizados como objetos
mediadores fotografias e cartas que os participantes traziam nos encontros. Ao
término da terapia foi observado que havia uma diminuição nos sintomas depressivos
e a interação em grupo proporcionou uma melhora na qualidade de vida dos
participantes.
Devido a relevância deste tema, este estudo teve como objetivo verificar a
incidência de depressão em idosos com dor crônica e descrever a experiência de
atendimento psicológico a esses participantes, em instituições de São Paulo,
dedicadas à população em bairros de elevada vulnerabilidade social e econômica.

129
Método
Trata-se um estudo de exploratório em idosos, pois visa explorar um
problema, de modo a fornecer informações, no caso a presença de sintomas
depressivos nestes participantes, Foi realizada uma avaliação sobre aspectos
depressivos junto esses idosos, que sofrem com dor crônica, residentes em bairros
periféricos da cidade de São Paulo, os quais participavam das atividades oferecidas
em duas instituições: Núcleo de Convivência para Idosos (NCI), situada em um bairro
da zona leste e um Centro de Integração da Cidadania (CIC), situada na zona oeste.
Também se configura em estudo descritivo já que se propõe a descrever o
procedimento clínico empregado, como o atendimento breve em 12 sessões em
grupo, e os resultados obtidos no que se refere a presença e intensidade de sintomas
depressivos.

Participantes

Participaram idosos de ambos os gêneros, embora apenas 3 homens e 37


mulheres. Com idades entre 60 e 80 anos, a maioria entre 60 e 70 anos. Vale destacar
a maior presença de mulheres, com dor crônica, e na procura de atendimento
psicológico. (ver Tabela 2 adiante).

Instrumentos e Procedimentos

Entrevista inicial:

GDS: Escala Geriátrica de Depressão- GDS-15, para verificação de presença e


intensidade de sintomas depressivos nos participantes. Composta por 15 afirmações
sobre sintomas depressivos, com respostas sim ou não. Foi validada e adaptado no
Brasil por Almeida e Almeida (1999) sendo a nota de corte: 5/6

Procedimentos

Entrevista inicial. Semiestruturada os participantes em entrevista inicial assinaram o


Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), cinco questões para que fosse
conhecido o histórico pessoal e de saúde de cada participante e foi aplicada a Escala

130
Geriátrica de Depressão- GDS-15. Ainda nesse encontro foi proposto um atendimento
psicológico em grupo com a duração de 12 sessões com foco nas queixas dos
participantes. Foram formados dois grupos de atendimento

Foram realizados 12 encontros com duração de 90 minutos. Na primeira sessão


foram determinados os temas para cada encontro (a partir da demanda dos
participantes) e a partir do décimo encontro foi trabalhado o término dos encontros
em grupo. O atendimento psicológico foi conduzido no método de consultas
terapêuticas de Winnicott (1965/1994), no qual os temas trazidos para discussão são
focados nas questões de interesse do grupo, possibilitando assim, que suas
angústias fossem tratadas em um setting acolhedor e diferenciado.
Os temas obtidos nas entrevistas iniciais foram apresentados no primeiro
encontro, com o grupo, tendo sido aceitos por todos, conforme mostra a Tabela 1:

Tabela 1. Temas para discussão nas sessões do atendimento em Grupo


SESSÃO TEMA
SESSÃO 1 Primeiro encontro e apresentação dos temas para discussão em
grupo
SESSÃO 2 Tema 1: a dificuldade de viver com dor e desânimo para as tarefas
SESSÃO 3 Tema 2: a incompreensão dos familiares diante da dor
SESSÃO 4 Tema 3: o desejo de tomar menos medicamentos
SESSÃO 5 Tema 4: a incompreensão dos filhos diante da depressão
SESSÃO 6 Tema 5: o sofrimento diante da perda de autonomia e liderança
SESSÃO 7 Tema 6: a interferência dos filhos em suas decisões
SESSÃO 8 Tema 7: ser a principal renda para manutenção da casa
SESSÃO 9 Tema 8: a interferência dos filhos em sua vida afetiva
SESSÃO 10 Preparação para o término dos encontros em grupo
SESSÃO 11 Término dos encontros em grupo
SESSÃO 12 Devolutiva e reaplicação da escala GDS-15
*Para cada encontro foi utilizada uma mesma sequência: abertura, discussão, síntese da
discussão e fechamento.

Resultados e Discussão

131
Observa-se nos últimos anos que vários órgãos tem se disposto a prestar
atendimentos ao idoso em diversas áreas.
Para uma melhor compreensão da caracterização dos participantes os dados
são apresentados com as iniciais do nome, gênero, idade, estado civil, diagnóstico de
dor crônica e nível de depressão apresentado na escala GDS-15 antes da intervenção
grupal, segundo observado na Tabela 2:

Tabela 2. Caracterização Grupo de Idosos NCI/CIC antes da intervenção psicológica.


NOME GÊNERO IDADE ESTADO DIAGNÓSTICO DEPRESSÃO
CIVIL PELA GDS
P1 M.N.M. FEMININO 80 ANOS VIÚVA DOR LOMBAR MODERADA 9
S.
P2 E.M.S. FEMININO 73 ANOS DIVORCIADA DOR LOMBAR MODERADA 8
P3 A.D.C. FEMININO 70 ANOS CASADA FIBROMIALGIA MODERADA 9
P4 I.A. MASCULINO 69 ANOS CASADO HÉRNIA DISCO LEVE 7
P5 E.R.O. FEMININO 74 ANOS VIÚVA FIBROMIALGIA LEVE 7
P6 M.A.F. FEMININO 71 ANOS VIÚVA ARTRITE JOELHO LEVE 6
P7 M.S.C FEMININO 64 ANOS CASADA CEFALÉIA SEVERA 11
CRÔNICA
P8 G.J.O. MASCULINO 69 ANOS VIÚVO DOR LOMBAR SEVERA 10
P9 J.A.C. FEMININO 70 ANOS VIÚVA DOR LOMBAR MODERADA 8
P10 I.F.S. FEMININO 72 ANOS CASADA ARTRITE JOELHO MODERADA 9
P11 T.J.L. FEMININO 73 ANOS VIÚVA DOR LOMBAR MODERADA 9
P12 C.A.S. FEMININO 60 ANOS SOLTEIRA DOR LOMBAR SEVERA 10
P13 J.R.S. FEMININO 69 ANOS VIÚVA DOR LOMBAR SEVERA 13
P14 J.R.S.O. FEMININO 63 ANOS CASADA DOR LOMBAR MODERADA 8
P15 A.R.C.S. FEMININO 68 ANOS CASADA FIBROMIALGIA LEVE 6
P16 E.S.G. FEMININO 77 ANOS VIÚVA ARTRITE SEVERA 11
P17 N.L.A. FEMININO 71 ANOS VIÚVA ARTRITE JOELHO MODERADA 9
P18 M.N.S. FEMININO 65 ANOS CASADA DOR LOMBAR MODERADA 8
P19 G.S.N. FEMININO 74 ANOS VIÚVA ARTRITE JOELHO LEVE 7
P20 I.M.M. FEMININO 69 ANOS SOLTEIRA DOR LOMBAR SEVERA 10
P21 F.A.S. FEMININO 66 ANOS CASADA FIBROMIALGIA SEVERA 11
P22 A.J.S. FEMININO 65 ANOS CASADA DOR LOMBAR NORMAL 4
P23 L.M.C.C. FEMININO 60 ANOS SOLTEIRA DOR LOMBAR MODERADA 8
P24 R.C.M. FEMININO 60 ANOS SOLTEIRA FIBROMIALGIA NORMAL 4
P25 M.T.C.S. FEMININO 66 ANOS DIVORCIADA ARTRITE PÉS NORMAL 3
P26 G.L.S. FEMININO 60 ANOS CASADA DOR LOMNAR NORMAL 2
P27 O.P.S. FEMININO 70 ANOS VIÚVA ARTRITE JOELHO MODERADA 9
P28 M.N.L. FEMININO 70 ANOS CASADA DOR LOMBAR MODERADA 8
P29 L.S.N. FEMININO 69 ANOS SOLTEIRA DOR LOMBAR LEVE 7
P30 E.M.M. FEMININO 64 ANOS SOLTEIRA ARTRITE LEVE 6
P31 I.S.S. FEMININO 60 ANOS CASADA FIBROMIALGIA LEVE 7
P32 T.C.L. FEMININO 60 ANOS SOLTEIRA DOR LOMBAR SEVERA 10

132
P33 Z.L.S. FEMININO 64 ANOS CASADA ARTRITE SEVERA 11
P34 M.L.S. FEMININO 61 ANOS VIÚVA ARTRITE LEVE 6
P35 P.I.N. FEMININO 67 ANOS CASADA ARTRITE MODERADA 8
P36 R.S.F. FEMININO 71 ANOS VIÚVA DOR LOMBAR SEVERA 11
P37 M.M.C.L FEMININO 60 ANOS SOLTEIRA FIBROMIALGIA MODERADA 9
P38 S.F.E. MASCULINO 68 ANOS VIÚVO DOR LOMBAR MODERADA 8
P39 V.S.A. FEMININO 60 ANOS CASADA DOR LOMBAR SEVERA 15
P40 M.S.L. FEMININO 62 ANOS SOLTEIRA ARTRITE JOELHO SEVERA 13

No Grupo de pacientes com dor crônica, dos quarenta participantes, 19 tinham


diagnóstico de dor lombar, doze participantes com artrite, sete participantes sofrem
com fibromialgia, um idoso teve diagnostico de hérnia de disco e uma participante com
cefaleia crônica. Quanto aos resultados obtidos na Escala Geriátrica de Depressão
GDS-15, quinze participantes foram identificados com depressão moderada, doze
participantes com depressão severa e nove participantes com depressão leve e quatro
participantes tiveram um resultado no qual não se identificou sintomas de depressão,
segundo os dados encontrados por Almeida e Almeida (1999) para a população
brasileira
Esses autores (Almeida e Almeida ,1999) é fundamental que se reconheça os
sintomas de depressão na população idosa, devido aos altos índices de casos
encontrados e a gravidade dos desfechos desses quadros em idosos. Eles ressaltam
que quando o idoso sofre de episódios de dor ou sofrem com dores crônicas, a
incidência de casos de depressão se torna ainda mais frequente, portanto a
compreensão destes aspectos é de suma importância para que haja um tratamento
eficaz, garantindo maior qualidade de vida, a minimização dos sintomas e sua
completa cura.

Sessões de atendimento psicológico em grupo

A discussão nos encontros do grupo foi conduzida pelos temas que foram
selecionados no momento da triagem e apontados como fatores importantes a serem
discutidos, pois muitos dos participantes passavam por tais angústias e
questionamentos. Para cada encontro foi utilizada uma mesma sequência: abertura,
discussão, síntese da discussão e fechamento. Os participantes buscavam encontrar
estratégias para lidar com as dificuldades que envolviam seu relacionamento em

133
família causadas pela impotência que sentiam diante das dores e os sintomas de
depressão, em maior ou menor grau, que estavam vivenciando.
Na primeira sessão foi realizado o contrato das 12 sessões, houve a
apresentação de cada um dos participantes do grupo, com uma pequena narração
sobre quem eram e quais as suas expectativas para aqueles encontros. Nesta ocasião
foi apresentado pela pesquisadora quais os temas apontados na triagem tiveram
maior relevância e por esta razão seriam a base das discussões do grupo. Os temas
tiveram boa receptividade dos participantes que concordaram em abordá-los nos
encontros, uma vez que cada temática foi sugerida por eles mesmos.
Na segunda sessão foi discutido o tema: “a dificuldade de viver com dor e
desânimo para as tarefas”. Os participantes relataram que tinham muita dificuldade
em aceitar esta nova condição de limitação por conta da dor. Disseram que antes de
serem acometidos pelas dores e pela situação de desânimo que consideravam ser
uma “depressão” eram muito ativos. As idosas relataram que durante todo a sua vida
cuidavam de suas casas e seus filhos, além de trabalharem fora em empresas ou em
casas de família, e os idosos disseram que além de trabalhar como empegados a
semana inteira, quando chegava o final de semana e feriados, trabalhavam na
construção de suas casas, mas agora não conseguiam fazer nenhuma dessas
atividades.
Na terceira sessão o tema discutido foi: “a incompreensão dos familiares
diante da dor”. Neste encontro houve uma reclamação, principalmente por parte das
mulheres, que após terem envelhecido e estar sempre se queixando de dores,
passaram a ser incompreendidas por seus familiares. Disseram que tanto os filhos,
quanto seus companheiros (quando ainda os tinham morado na mesma casa)
cobravam que elas fizessem todas as tarefas da casa e quando elas reclamavam que
as dores as impediam de fazer as coisas, ouviam que era “frescura” (SIC) e não faziam
as tarefas porque não queriam.
O atendimento psicológico com foco na queixa dos participantes visou
proporcionar aos participantes um momento de escuta às suas angústias. A principal
queixa apresentada pelos idosos foi o relacionamento familiar, no qual relataram a
falta de diálogo e compreensão dos filhos e netos, quanto a esse momento de dores,
desmotivação para fazer suas atividades e a solidão que estão vivenciando nesta fase
da vida.

134
No estudo realizado por Mafra (2011) as relações familiares e os conflitos
existentes entre os membros mais jovens e os mais velhos de uma família podem se
dar devido à perda de autonomia do idoso. Neste contexto, há um desgaste e uma
sobrecarga para aqueles que ficam responsáveis pelo cuidado deste idoso, pois suas
limitações interferem em sua independência.
Na quarta sessão foi falado sobre: “o desejo de tomar menos
medicamentos”. Neste encontro os idosos manifestaram o descontentamento que
sentem em ter que tomar muitos medicamentos todos os dias. Grande parte deles
relatou tomar até seis tipos de remédios, , e ainda se queixaram das reações adversas
causadas por estes medicamentos e a necessidade de tomar medicamentos para o
estômago devido ao mal-estar que sentem.
Na quinta sessão foi discutido o tema: “a incompreensão dos filhos diante da
depressão”. Neste encontro foi relatado pelos participantes que sofrem com a reação
de seus filhos quando afirmam que não querem sair de casa ou não conseguem fazer
alguma atividade. Eles disseram que muitas vezes não sentem, se quer, o desejo de
se levantar da cama, pois sabem que ao dar início às suas atividades básicas de vida
diária (ABVD), as dores e a tristeza por viver desta maneira vão se intensificar. Os
filhos e familiares, segundo o relato dos idosos, não compreendem e cobram deles a
ajuda na realização de tarefas como: limpar a casa, lavar e passar as roupas da
família, preparar a comida e, no caso dos idosos, manutenção de coisas que possam
estar quebrados na casa.
No estudo de Rabelo e Neri (2014) ficou evidenciado que quando muitas
responsabilidades são atribuídas aos idosos, como os cuidados da casa, dos netos,
reponsabilidades financeiras, esses idosos ficam mais suscetíveis a quadros de
depressão. Mesmo com a evidência dos sintomas de depressão, muitas vezes os
filhos não percebem a gravidade da doença e continuam fazendo cobranças aos
idosos. Segundo as autoras, a sensação de perda da rede social de apoio e a falta de
suporte dos filhos faz com que os quadros de depressão diminuam ainda mais os
afetos positivos e potencialize ainda mais os afetos negativos. Desta maneira fica
ainda mais difícil que o idoso consiga sair dos quadros de depressão sem ajuda
médica, pois os distúrbios neuropáticos e as circunstâncias da vida podem agravar os
transtornos depressivos.
Na sexta sessão o tema trazido para discussão do grupo foi: “o sofrimento
diante da perda de autonomia e liderança”. A queixa dos idosos neste encontro foi

135
em relação a serem podados pelos filhos ou netos em suas decisões, tanto no que diz
respeito às questões financeiras, compra ou venda de algum bem, realização de
viagens ou algum outro tipo de procedimento médico. A grande reclamação dos idosos
é de se sentirem desrespeitados, pois alegam que sua opinião não é ouvida e que
seus filhos querem os obrigar a fazer as coisas segundo o ponto de vista deles.
No estudo realizado por Gaspar, Silva, Zepeda e Silva (2019) sobre a
autonomia do idoso, inclusive para tomar decisões que envolvam a finitude da vida e
que tratamentos paliativos esses idosos desejam ter. Para os atores a liderança do
idoso deve ser preservada, protegida e assegurada pelo Planejamento Social, pois o
idoso como cidadão de direitos deve ser ouvido e respeitado em suas decisões,
evitando assim que outros tomem as diretrizes de sua vida.
A sétima sessão teve como ponto de discussão o tema: “a falta de atenção
dos médicos quanto à sua dor”. Os idosos trouxeram em sua discussão a angústia
que sentem quando questionam aos médicos sobre o prognóstico de seu quadro de
saúde. Queixam-se da falta de respostas dos médicos sobre as medicações, e a
insistência desses profissionais interromperem a consulta. Ressentem-se do que eles
chamam falta de atenção
Para Silva et al. (2019) a sensação que os idosos têm da “falta de atenção dos
médicos” tem seu fundamento, pois a passividade que o idoso demonstra diante da
equipe médica é proveniente da representação social que se tem com relação a
medicina. Os autores ressaltam que é necessário muito cuidado com a comunicação
entre médico e paciente, pois devido a esse papel social do médico, muitas vezes as
informações não são claras e o paciente não consegue compreender o tratamento que
está realizando.
Na oitava sessão o tema discutido foi: “ser a principal renda para
manutenção da casa”. Devido ao padrão socioeconômico dos idosos atendidos, foi
observado que 90% deles residem na mesma casa que seus filhos e netos e, sendo
assim, participam na manutenção das despesas e pagamentos de contas da casa. A
queixa dos idosos consiste no fato de que tem que contribuir com todo o valor de suas
aposentadorias e pensões nas despesas da casa, e quando necessitam de dinheiro
para suprir algumas de suas necessidades, como comprar um remédio, por exemplo,
acabam por não o fazer, por já terem gastado todos os seus recursos.
Outro fator também relatado no discurso dos três participantes do gênero
masculino, foi a cobrança da família que consistia em exigir que esses idosos

136
continuassem a manter a casa financeiramente como na época em que trabalhavam.
Eles afirmam que por conta das dores que sentem não conseguem realizar trabalhos
extras que poderiam aumentar sua renda mensal, e o que recebem de aposentadoria
não supre as necessidades, isto aumenta sua sensação de impotência e tristeza
diante desta situação., como ressaltado por Soares & Caponi,( 2011).
Esta queixa dos idosos com relação as dificuldades no relacionamento familiar
envolvendo questões financeiras também foi observada no estudo de Rabelo e Neri
(2014), como um fator que prejudica as interações sociais e intergeracionais. Em seu
estudo foi verificado que os avós além de serem responsáveis em dar suporte
emocional à família, muitas vezes também arcam como as despesas, fazendo uso do
dinheiro da aposentadoria para o sustento da família
Esses dados corroboram a pesquisa de Tavares, Teixeira, Wajnman e Loreto
(2011), na qual também foi tratada a questão do idoso aposentado como mantenedor
de suas famílias. O estudo foi realizado com idosos aposentados de Viçosa-Minas
Gerias, os quais representavam a única renda com a qual a família poderia contar
para suprir todas as suas despesas. Os autores ressaltam que fatores como o
desemprego dos filhos, salários muito baixos, entre outros fatores, são os
responsáveis por ter na aposentadoria do idoso a principal fonte de renda da família,
assim como visto na pesquisa de Rabelo e Neri (2014
Na nona sessão o tema discutido foi: “a interferência dos filhos em sua vida
afetiva”. Dos 40 idosos que participaram da pesquisa, 13 idosos do NCI e 12, do CIC
de ambos os gêneros declararam ser viúvos, divorciados ou solteiros. Os idosos que
gostariam de reconstruir sua vida afetiva, sentem este direito desrespeitado, pois seus
filhos interferem nos relacionamentos, chegando a impedi-los de namorar. Os
participantes que relatam esta queixa dizem que um dos fatores que mais afeta os
filhos é a partilha dos bens que incluiria este novo membro. Por sua vez, os filhos
alegam não concordar com a nova união porque as prováveis companheiras ou
companheiros escolhidos por seus pais, têm metade de sua idade e estão com eles
apenas por interesse financeiro
Na décima sessão foram retomados os temas discutidos nas sessões
anteriores e foram ressaltados os pontos que provocam maior angústia nos
participantes. Neste momento também, deu-se início à preparação para término dos
encontros em grupo que aconteceria dali há duas semanas.

137
Na décima primeira sessão os idosos retomaram em seus relatos alguns
problemas que estavam vivenciando e, inclusive, já tinham sido tema das discussões
do grupo e foram convidados a realizar a reaplicação da escala de Depressão
Geriátrica GDS-15, visando investigar se houve alguma alteração nos resultados após
a intervenção.
Na decima segunda sessão foi realizada uma devolutiva aos participantes, na
qual foi falado de maneira geral sobre os resultados dos instrumentos. Foi dito que
houve diferença entre os resultados das escalas de depressão antes e depois da
intervenção, com resultados positivos no final das sessões, e por fim, neste encontro
foi realizado o encerramento dos atendimentos e agradecida a participação dos idosos
neste estudo.
Após analisada a segunda aplicação da escala de depressão geriátrica GDS-
15, foi possível confrontar os resultados antes e depois dos atendimentos psicológicos
e para maior compreensão destes resultados a Figura 3 apresenta os resultados da
primeira e da segunda aplicação:

Figura 3. Caracterização Grupo de idosos NCI/CIC antes e depois dos


atendimentos psicológicos.
NOME G I ESTADO DIAGNÓSTICO DEPRESSÃO DEPRESSÃO
Ê D CIVIL GDS-15 GDS-15
N A PRIMEIRA SEGUNDAA
E D APLICAÇÃO APLICAÇÃO
R E
O
P1 M.N.M. F 80 VIÚVA DOR LOMBAR MODERADA 9 MODERADA 8
S.
P2 E.M.S. F 73 DIVORCIADA DOR LOMBAR MODERADA 8 LEVE 7
P3 A.D.C. F 70 CASADA FIBROMIALGIA MODERADA 9 LEVE 7
P4 I.A. M 69 CASADO HÉRNIA DISCO LEVE 7 LEVE 6
P5 E.R.O. F 74 VIÚVA FIBROMIALGIA LEVE 7 LEVE 6
P6 M.A.F. F 71 VIÚVA ARTRITE JOELHO LEVE 6 NORMAL 4
P7 M.S.C F 64 CASADA CEFALÉIA SEVERA 11 SEVERA 10
CRÔNICA
P8 G.J.O. M 69 VIÚVO DOR LOMBAR SEVERA 10 MODERADA 8
P9 J.A.C. F 70 VIÚVA DOR LOMBAR MODERADA 8 MODERADA 8
P10 I.F.S. F 72 CASADA ARTRITE JOELHO MODERADA 9 LEVE 7
P11 T.J.L. F 73 VIÚVA DOR LOMBAR MODERADA 9 MODERADA 8
P12 C.A.S. F 60 SOLTEIRA DOR LOMBAR SEVERA 10 MODERADA 9
P13 J.R.S. F 69 VIÚVA DOR LOMBAR SEVERA 13 SEVERA 13
P14 J.R.S.O. F 63 CASADA DOR LOMBAR MODERADA 8 MODERADA 8
P15 A.R.C.S. F 68 CASADA FIBROMIALGIA LEVE 6 NORMAL 5
P16 E.S.G. F 77 VIÚVA ARTRITE SEVERA 11 SEVERA 11
P17 N.L.A. F 71 VIÚVA ARTRITE JOELHO MODERADA 9 MODERADA 8
P18 M.N.S. F 65 CASADA DOR LOMBAR MODERADA 8 MODERADA 8
P19 G.S.N. F 74 VIÚVA ARTRITE JOELHO LEVE 7 NORMAL 6
P20 I.M.M. F 69 SOLTEIRA DOR LOMBAR SEVERA 10 SEVERA 10
P21 F.A.S. F 66 CASADA FIBROMIALGIA SEVERA 11 SEVERA 10

138
P22 A.J.S. F 65 CASADA DOR LOMBAR NORMAL 4 NORMAL 3
P23 L.M.C.C. F 60 SOLTEIRA DOR LOMBAR MODERADA 8 MODERADA 8
P24 R.C.M. F 60 SOLTEIRA FIBROMIALGIA NORMAL 4 NORMAL 2
P25 M.T.C.S. F 66 DIVORCIADA ARTRITE PÉS NORMAL 3 NORMAL 3
P26 G.L.S. F 60 CASADA DOR LOMNAR NORMAL 2 NORMAL 2
P27 O.P.S. F 70 VIÚVA ARTRITE JOELHO MODERADA 9 MODERADA 8
P28 M.N.L. F 70 CASADA DOR LOMBAR MODERADA 8 LEVE 7
P29 L.S.N. F 69 SOLTEIRA DOR LOMBAR LEVE 7 NORMAL 5
P30 E.M.M. F 64 SOLTEIRA ARTRITE LEVE 6 LEVE 6
P31 I.S.S. F 60 CASADA FIBROMIALGIA LEVE 7 NORMAL 6
P32 T.C.L. F 60 SOLTEIRA DOR LOMBAR SEVERA 10 MODERADA 9
P33 Z.L.S. F 64 CASADA ARTRITE SEVERA 11 SEVERA 11
P34 M.L.S. F 61 VIÚVA ARTRITE LEVE 6 NORMAL 4
P35 P.I.N. F 67 CASADA ARTRITE MODERADA 8 MODERADA 8
P36 R.S.F. F 71 VIÚVA DOR LOMBAR SEVERA 11 SEVERA 11
P37 M.M.C.L F 60 SOLTEIRA FIBROMIALGIA MODERADA 9 MODERADA 9
P38 S.F.E. M 68 VIÚVO DOR LOMBAR MODERADA 8 LEVE 7
P39 V.S.A. F 60 CASADA DOR LOMBAR SEVERA 15 SEVERA 13
P40 M.S.L. F 62 SOLTEIRA ARTRITE JOELHO SEVERA 13 SEVERA 10

Ao analisar os resultados das duas aplicações da escala de depressão GDS-


15, pode-se observar que dos quarenta participantes, os quatro que apresentaram
resultado normal tiveram resultados ainda melhores, continuando sem diagnostico de
depressão. Verificou-se que onze participantes tiveram uma melhora no escore, mas
continuaram dentro da mesma classificação; e embora tenham continuado na mesma
classificação, pontuaram em questões diferentes, mostrando em suas respostas uma
visão mais positiva da vida em comparação à aplicação anterior.
Houve também uma melhora considerável no quadro de depressão de cinco
participantes que passaram da classificação Moderada para Leve, foram eles: P2, P3,
P10, P28 e P38. Dos quarenta participantes três tiveram uma melhora passando da
classificação Severa para Moderada: P8, P12 e P32. Seis participantes apresentaram
na primeira aplicação da escala escores compatíveis com depressão Leve e depois
tiveram escores compatíveis com o resultado Normal, ou seja, sem indicação de
sintomas de depressão.
Os idosos do presente estudo relataram o quanto foi importante para eles
participar de um grupo, pois estar com pessoas que entendem pelo que eles estão
passando faz com que não se sintam tão solitários. Este fator contribuiu para que eles
lidassem melhor com os sintomas da depressão, porém muitos idosos que
apresentavam o nível de depressão moderado e severo falaram da dificuldade de
estar presente nos encontros, pois mesmo medicados, não tinham ânimo para sair de
casa. Estes idosos vinham acompanhados de algum membro da família que sempre
dizia da dificuldade de levá-los para o atendimento, pois eles preferiam o isolamento,

139
dificultando assim, o tratamento desta doença. Para Vitorino, Paskulin e Vianna
(2013), o isolamento do idoso não ocorre apenas no convívio em família, muitos idosos
que se encontram internados em Instituições de Longa Permanência (ILPI) também
apresentam este tipo de comportamento.
Os autores ressaltam que estar vivendo em sociedade é um sinal claro de que
o indivíduo possui uma boa saúde mental, por isto é muito comum que estes idosos
que optam pelo isolamento social apresentem sintomas de depressão de forma mais
acentuada. É necessário que o idoso saiba que tem e pode contar com uma boa rede
social de apoio que deve ser composta por familiares, amigos e pessoas que tenham
interesses em comum, como acontece nos núcleos de convivência e outros lugares
nos quais se reúnem.
No término das sessões de atendimento psicológico, foi relatada pelos
participantes a importância de terem um momento de escuta de suas angústias e o
quanto foi importante poderem dividir suas experiências com os outros membros do
grupo e saber que mais pessoas passam por situações semelhantes as deles. Para
Cordioli (2008), um dos fatores primordiais para um bom resultado do atendimento
psicológico em grupo é a adesão de seus participantes e a motivação com a qual eles
se dispõem a trazer suas histórias, possibilitando a troca de vivências entre eles.

Considerações Finais
Instituições que prestam atendimento a idosos como o NCI e o CIC têm
prestado um serviço essencial à sociedade possibilitando que esta população tenha
um atendimento de qualidade na área da Psicologia. Esta oportunidade de trabalho
torna-se um campo valioso de atuação, pela diversidade dos diagnósticos
apresentados e a possibilidade da utilização de diferentes técnicas que podem ser
adotadas no setting analítico.
Foi observado que participar do grupo de atendimento trouxe à maioria dos
idosos uma boa melhora nos sintomas da depressão e com isso, puderam também
desenvolver estratégias mais eficazes para lidar com os quadros de dor crônica que
sentiam. Muitos idosos manifestaram o desejo de continuar participando de
atendimentos psicológicos em grupo e, havendo a possibilidade, atendimentos
individuais também, pois viram o quanto é importante poder falar de suas angústias
sabendo que um psicólogo estava ali para lhes dar suporte.

140
Pode-se concluir que o atendimento psicológico foi importante importância para
a melhora nos sintomas depressivos apresentados por estes idosos que sofriam com
dores crônicas, colaborando também para o aumento de sua qualidade de vida.
Diante disto, se evidencia a necessidade de um olhar especial às questões do
envelhecimento e que se ofereça um atendimento psicológico a esta população.
Sugere-se que sejam feitas outras pesquisas, como também, a comparação com
idosos atendidos em outras instituições e com outras demandas.

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142
10- A PERCEPÇÃO DA ADOLESCÊNCIA POR ADOLESCENTES QUE SE
AUTOLESIONAM13

Loraine Seixas Ferreira


Gislaine Chaves
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Helena Rinaldi Rosa

Resumo: A adolescência é uma fase em que há a elaboração de crises e conflitos,


visando estabelecer a identidade adulta. Essa etapa será mais satisfatória quando é
possível para o adolescente viver em um ambiente suficientemente bom. Nos casos
em que os conflitos da adolescência estão associados a vivência em um ambiente
com uma estrutura fragilizada, os comportamentos de risco são percebidos, tais como
os comportamentos autolesivo. Objetivo: compreender a percepção da adolescência
sob a perspectiva de adolescentes com comportamento autolesivo. Método: realizou-
se uma pesquisa Clínico-Qualitativa, de múltiplos casos, com três adolescentes, tendo
como instrumento o Desenho Temático. Resultados: todas as adolescentes
apresentam o adolescente vivendo em um ambiente (familiar, escolar e social) não
suficientemente bom, repleto de falhas e incompreensão.

Palavras-chave: Adolescência, Autolesão, Desenho Temático

INTRODUÇÃO
A identidade adulta vai se formando conforme o adolescente vai perdendo sua
condição de criança e, consequentemente, sua identidade infantil. Nesse processo,
as imagens parentais introjetadas, proporcionadas pelo mundo externo satisfatório,
ajudará o adolescente a elaborar as crises internas pelas quais passa e que
acontecem por ser essa uma etapa marcada por constantes desequilíbrios e
instabilidades (Winnicott, 1987/2002; Erikson, 1968/1976; Aberastury, 1983; Tardivo,
2007).
As crises vivenciadas pelos adolescentes nesse período apresentam
características específicas (por exemplo, indecisões, inquietações, entusiasmos

13
Trabalho realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

143
versus desânimos repentinos), as quais Knobel (Aberastury & Knobel, 1981;
Aberastury, 1983) denominou “síndrome normal da adolescência”, definida por
expressões de comportamentos comuns aos adolescentes, dentre eles, a tendência
grupal e a busca da identidade e de um si mesmo claramente definidos. Sobre a
tendência grupal, Dolto (1990) afirma que essa está presente em quase todos os
adolescentes e funciona como uma forma de complementaridade, assim como de
obter segurança, equilíbrio e neutralidade.
A tendência a grupal marca a separação entre o adolescente e os pais. No
entanto, o adolescente ainda precisa muito dos pais, justamente por ser um período
no qual o jovem é capaz de interessar-se por si mesmo e continuar existindo para si,
possibilitando-o a flutuação entre a independência rebelde e a dependência regressiva
(Winnicott, 1961/2011). Dessa forma, Aberastury (Aberastury & Knobel, 1981) escreve
que, quando não é possível ao adolescente o ambiente facilitador, este pode sentir-se
ameaçado. Tardivo (2007) acrescenta que o adolescente que experiência um
ambiente não suficientemente bom pode sentir-se vulnerável e os conflitos serão mais
intensos, estando mais suscetível a condutas hetero e autoagressivas, como a
drogadição e outros perigos.
Os conflitos da adolescência, associados a vivência em um ambiente (social e
familiar) com uma estrutura fragilizada permite observar adolescentes em
comportamentos de risco, tais como os comportamentos autolesivo (Nock, Joiner,
Gordon, Lloyd-Richardson e Prinstein, 2006), o qual é mais frequente no já no início
da adolescência (American Psychiatric Association, 2014; Giusti, 2013; Brown &
Plener, 2017). Estudos recentes comprovam que esse comportamento ocorre em
meio aos conflitos vivenciados pelos adolescentes, ligados à experiência de viver em
uma sociedade com estruturas enfraquecidas (Tardivo et al, 2019).
Dentro desse contexto, muitos autores buscam fatores que possam estar
relacionados ao comportamento. Entre os aspectos mais descritos, encontra-se os
eventos negativos ao longo da vida do sujeito e adversidades familiares;
características pessoais do adolescente; fatores psicológicos e psiquiátricos e fatores
sociais (bullying, mídia, internet, dificuldade de relacionamento e amigos com o
mesmo comportamento) (Yip, 2005; Giusti, 2003; Hawton, Saunders & O’Connor,
2012; Silvia & Botti, 2017; Fortes & Kother, 2017; Chaves, 2018; Bernal, 2019; Tardivo
et al, 2019).

144
Sendo assim, é importante pensar as lesões corporais intencionais como um
sinal da aflição que esses adolescentes vivem (Le Breton, 2010). Bernal (2019),
também apresenta o comportamento autolesivo como uma pista das aflições, um
pedido de ajuda. A autora escreve em seu trabalho sobre a ausência do Outro, a falta
de um espaço de ressonância no qual o adolescente possa ser compreendido, tendo
como consequência a impossibilidade de encontrar palavras para comunicar o
sofrimento, restando ao adolescente mostrar, ao invés de dizer, sendo os cortes um
apelo, uma comunicação primitiva.
A partir do exposto, compreende-se que a adolescência é uma etapa de grande
importância no desenvolvimento, além de ser um estágio de grandes conflitos
(Erikson, 1968/1976), que apresenta aspectos esperados do desenvolvimento do
adolescente (Winnicott, 1961/2011e 1968/ 2005; Erikson, 1968/1976; Aberastury,
1983; Dolto, 1990, Tadivo, 2007), por exemplo, a “síndrome normal da adolescência”
(Aberastury, Knobel, 1981 ), mas também comportamento que são preocupantes por
colocar a vida dos jovens em risco (Nock, Joiner, Gordon, Lloyd-Richardson e
Prinstein, 2006 ), dentre eles a autolesão, comportamento que vem aumentando no
Brasil e em todo o mundo (Brasil, 2013 e 2017; Giusti, 2013; American Psychiatric
Association, 2014 ).
Diante às questões que relacionam motivos e fatores de risco para
comportamentos prejudicais, dentre eles aspectos que dizem respeito ao próprio
indivíduo (insegurança, ansiedade, depressão, sentimento de culpa, dentre outros), a
falta de um ambiente suficientemente bom (tanto na esfera familiar quanto na social),
e que não possibilita a comunicação do sofrimento, é importante compreender como
os adolescentes, que utilizam da autolesão uma forma de expressar as angústias que
vivem, percebem a adolescência nos dias de hoje.

OBJETIVOS
Compreender a percepção da adolescência, atualmente, sob a perspectiva de
adolescentes que apresentam comportamento auto lesivo.

MÉTODO
Tipo de estudo
A pesquisa utilizou como fundamento a Metodologia da Pesquisa Clínico-
Qualitativa, definida por Turato (2000) como o estudo “de um conjunto de métodos

145
científicos, técnicas e procedimentos, adequados para descrever e interpretar os
sentidos e significados dados aos fenômenos e relacionados à vida do indivíduo”
(p.96). Por se tratar de um estudo com três participantes, utiliza também método de
pesquisa de múltiplos casos, o qual propicia o enriquecimento pelas diferentes
percepções e experiências dos indivíduos que estão no mesmo lugar e ao mesmo
tempo (Stake, 2011).

Participantes
O estudo contou com três adolescentes, duas com 14 anos e uma de 15 anos.
Todas as participantes iniciaram o atendimento psicoterapêutico devido ao
comportamento autolesivo.

Procedimentos e instrumentos
Todas as participantes desse estudo eram integrantes de um grupo de Oficinas
Psicoterapêuticas para adolescentes, realizados em um serviço de integração à
cidadania, mantido pelo Governo do Estado de São Paulo. Essas Oficinas são um
modo de atendimento clínico diferenciado, realizado em grupo, no qual o
psicoterapeuta busca, por meio da sustentação, acolhimento (holding) e dos
conteúdos que surgem no grupo, criar um ambiente suficientemente bom, que
favoreça a expressão do viver para a retomada do crescimento emocional dos sujeitos
em sofrimento (Tardivo, 2009).
Visando facilitar a expressão do viver e a comunicação emocional, as Oficinas
Psicoterapêuticas propõe o uso de materiais mediadores de diferentes naturezas
(materiais gráficos, fotos, entre outros), os quais funcionam como mediadores das
experiências emocionais que podem ser expressas criativamente, possibilitando ao
paciente sentir-se vivo, amadurecendo emocionalmente e, assim, reconhecer-se
como indivíduo (Tardivo & Bonfim 2007; Ambrósio, Aiello-Fernandes & Aiello-Vaisber,
2012).
No grupo trabalhado nesta pesquisa foi utilizado como mediadores materiais
gráficos. No primeiro encontro, foi solicitado um desenho diretivo, trabalhando-se com
a técnica do Desenho Temático, derivado do Procedimento de Desenhos-Estórias
(Trinca, 1997), o qual serviu de disparador para os encontros seguintes. Para esse
encontro foi solicitado que os adolescentes fizessem um desenho com o tema “Um
adolescente em São Paulo hoje”, ou seja, cada um deveria realizar um desenho do

146
tema e, em seguida, foi solicitado que o próprio participante escrevesse uma história
ou associação. Neste trabalho serão apresentados os Desenhos Temáticos
produzidos por três adolescentes com comportamento autolesivo que participaram
das Oficinas.

RESULTADO
Conhecendo as participantes14
 Jucélia, 15 anos
A mãe da adolescente buscou atendimento porque mesma estava muito mais
quieta do que de costume, sem interação com outras pessoas, ficava trancada no
quarto e havia se cortado “para aliviar a tristeza que estava sentindo por causa do pai”
(SIC). A adolescente mora com sua mãe, padrasto e irmãos. Os pais se separam
quando ela era pequena e com o decorrer dos anos, o pai foi se afastando até
perderem definitivamente o contato. A paciente relata ainda ouvir vozes e ver olhos
que a mandam “fazer coisas ruins” (SIC), com o colocar fogo na casa, se cortar e até
tirar a própria vida. Durante os primeiros contatos, Jucélia apresenta também as
dificuldades que enfrenta na família, pois a mãe não confia nela para deixá-la sozinha
em casa e Jucélia não gosta que a mãe conte sobre seus problemas para a família,
pois todos acreditam que o que ela sente, ouve e vê seja por “falta de Deus” (SIC).
Também relata sobre situações de bulliyng e rejeição por parte dos colegas da escola.

 Carmen, 14 anos
A mãe de Carmen procura atendimento por ter observado uma mudança no
comportamento da filha, que está mais calada, fechada no quarto, não compartilha
com o que está acontecendo, e há duas semanas esses comportamentos pioraram,
acrescidos de choro fácil e insônia. A paciente teve episódios de corte em momentos
que diz sentir algo que não sabe explicar, mas que sente muito raiva de tudo o que
aconteceu com ela (referindo-se ao pai) e que os cortes a faz sentir mais aliviada e a
dor da inflação é compreendida como um “dor boa” (SIC), pois ajuda a não entrar em
contato com o sofrimento. A adolescente mora com a mãe e o padrasto. Os pais se
separaram quando a adolescente tinha cerca oito anos e, segundo a mãe, o pai é
distante. Carmen e o pai não se falam há quatro meses, o que a faz sofrer, pois

14 Todos os nomes apresentados são nomes fictícios

147
gostaria que ele fosse mais presente e se preocupasse mais com ela. Quanto a vida
escolar, a adolescente diz que sofreu bullying na escola quando mais nova.

 Marina, 14 anos
A mãe relatou, em tom agressivo, que Marina está quieta e chorando com
facilidade, que só quer ficar no celular e não faz nada que a mãe manda com relação
aos serviços domésticos. Diz que sempre tem que ir buscar a filha na escola, porque
ela “passa mal” (SIC) (sintomas de ansiedade e comportamento autolesivo). Marina
passou a se cortar há um ano para aliviar algo que não sabe nomear. Quando a mãe
descobriu os cortes, brigou com a filha que passou a se cortar nas nádegas a fim de
esconder o ato da mãe. A adolescente mora com os pais e tem um irmão que não
mora mais com eles. Marina diz que com a mudança do irmão “sobrou tudo” (SIC)
para ela, referindo-se às brigas dos pais, pois o pai é alcoólatra e, quando bebe, briga
muito com a mãe e os filhos tentam protegê-la. Ambos brigam muito com os filhos e o
pai menospreza o sofrimento da filha, dizendo que é frescura, e a mãe corrobora,
falando que ela “tem que parar com isso” (SIC). Quanto à vida escolar, a adolescente
diz que conversa com todo mundo, mas que os colegas menosprezam as angústias
dela, dizendo que não aguentam mais o jeito dela: uma hora está “normal” (SIC) e na
outra, “mal” (SIC).

Produções do Desenho Temático


A sessão é iniciada com um rapport e, em seguida, a psicoterapeuta dá a
primeira instrução do procedimento de Desenho Temático, pedindo que cada
integrante do grupo faça um desenho com o tema “um adolescente em São Paulo
hoje”. Após 20 minutos, todos terminam os desenhos e é passada à segunda etapa
da técnica, solicitando que fizessem uma história ou associação sobre seus desenhos.
Carmen é quem inicia e diz que seu desenho representa o que os adolescentes
passam na escola e em casa, os “roles” (SIC), os deveres que têm, as brigas com a
família, os preconceitos que sofrem e explica que são situações que levam aos
problemas na adolescência. Marina também diz que seu desenho apresenta conflitos
que passa em casa, um “sorriso falso” (SIC), a falta de compreensão da família que
julga o adolescente, os amigos que se afastam e diz que é como estar em uma panela
de pressão que ela mesmo criou. Em seguida Jucélia fala de seu desenho,

148
apresentando uma moça que estava feliz, mas a sociedade a julgou tanto, que ela se
fechou.
Questionadas sobre qual título poderiam dar para suas produções, pensando
no desenho e na associação, Carmen, coloca como tema de seu desenho: “os
problemas pessoais, tanto os do próprio adolescente quanto o dos outros, mas que
interferem na vida do adolescente e as consequências que esses problemas
acarretam” (SIC). Marina diz que o tema do desenho dela é sobre conflitos familiares
e Jucélia não fala nada.

DISCUSSÃO
O primeiro encontro, utilizando como material o Desenho Temático, permitiu
uma compreensão global de como as integrantes do grupo compreendem a fase que
estão vivendo. Os desenhos, as associações que fizeram dos mesmo e os temas
conversados durante essa sessão apontam para uma questão importante para todos
eles: o mundo como um lugar não suficientemente bom. As produções apresentam

149
conflitos em todos os ambientes (casa, escola e sociedade) o que, segundo elas,
geram demasiados problemas para o adolescente.
O ambiente sentido como repleto de falhas é um dos fatores descrito pelos
autores para a compreensão da autolesão e que também foi apresentado na produção
do Desenho Temático das três adolescentes. Esse ambiente compreende desde os
conflitos familiares, como a ausência ou negligência de um dos pais (como apontam
Carmen e Jucélia, que se sentem abandonadas pelo pai) e graves problemas na
estrutura da família (como na de Marina, que o pai alcoólatra ocasiona conflitos
severos a todos os membros) (Yip, 2005, Hawton, Saunders & O’Connor, 2012, Giusti,
2003, Silvia; Botti, 2017 & Tardivo, et al, 2019). Quanto aos conflitos familiares, as
adolescentes ainda acrescentam a falta de atenção e/ ou incompreensão sentida dos
pais no que diz respeito às angústias das filhas.
Essa incompreensão também é identificada na relação com os colegas da
escola, por exemplo quando a Marina diz que os amigos não aguentam o jeito dela.
Além desse fator, no que diz respeito à escola, as três participantes relataram já ter
sofrido bullying em algum momento da vida escolar. Esse é um ponto importante, pois
os autores trabalhados na introdução apontam para a importância do grupo e pares
para o adolescente, por oferecer segurança, equilíbrio e neutralidade (Aberastury &
Knobel, 1981; Dolto, 1990). No entanto, o bullying impede que o adolescente possa
confiar nesse ambiente e, consequentemente, se afastam dos grupos, têm poucos
amigos, não tendo quem possa oferecer os benefícios descritos pelos autores,
sentindo-se sozinhos.
As participantes também demonstraram que, para elas, o adolescente hoje vive
em uma sociedade da qual não se pode confiar, que os julgam, cobram e os deixam
doentes. Retomando Tardivo (2007), o adolescente que experiência um ambiente não
suficientemente bom, como o apresentado pelos participantes, está mais propício a
drogadição e outros perigos, pois a falta de um ambiente facilitador pode levar o
adolescente a se sentir ameaçado, vulnerável e dificultar a tarefa da busca pela
identidade adulta (Aberastury; Knobel, 1981; Tardivo, 2007).
Outro dado apresentado pelas adolescentes é como o jovem enfrenta todos
esses conflitos e como se colocam diante do mundo: com o “sorriso falso”. O “sorriso
falso” apareceu na produção de Marina, quando ela expõe suas angústias (que não
podem ser manifestadas, ou que não são compreendias) e para que ninguém perceba

150
seu sofrimento, está sempre sorrindo. Carmen concordou com o termo usado por
Marina, dizendo que tem o mesmo comportamento.
Com essa informação, parece que as participantes estão querendo mostrar que
sentem que não é possível ao adolescente ter seu próprio movimento, ou o gesto
espontâneo, pois precisam sempre corresponder à necessidade do outro, enquanto
às suas não são atendidas. Winnicott (1964/1982) escreve que, na ausência de um
ambiente suficientemente bom (do qual as adolescentes apresentaram sentir falta) a
criança oculta seu Eu verdadeiro e cala seu gesto espontâneo, na tentativa de se
defender das falhas do ambiente, sendo esse o estágio inicial do Falso Self.
A falta de um espaço para ser compreendido e ter suas necessidades atendidas
é apresentada por Bernal (2019), ao escrever sobre a importância do Outro na relação
com o adolescente, por Chaves (2018) ao reconhecer a relevância do ambiente para
a restauração do sentimento de confiança e de esperança no caso de uma
adolescente que se autolesionava e por Bernardes (2015) que aponta para a
necessidade de visibilidade observada nos adolescentes que se cortam, sendo a
autolesão um meio de perda de contato com o ambiente considerado hostil e sem
possibilidade de diálogo. Assim, frente a impossibilidade de comunicar o sofrimento,
resta ao adolescente apenas mostrá-lo, como acontece na autolesão, sendo esse
comportamento um indicativo das angústias que sente (Le Breton, 2010; Tardivo et al,
2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi possível observar pela produção das três adolescentes participantes que,
para elas, o adolescente que vive em São Paulo nos dias atuais é um indivíduo
cercado de situações conflituosas com o ambiente, seja no âmbito familiar, escolar ou
social. No que diz respeito à autolesão, esse dado também foi encontrado nos
trabalhos científicos e teorias apresentadas na introdução, confirmando a percepção
das adolescentes sobre suas vivências.
Isto posto, é notório o quanto é importante também para o adolescente a
vivência em um ambiente suficientemente bom, conforme apontado por Winnicott, no
qual os vínculos afetivos favorecem a continuidade do desenvolvimento. Sendo assim,
a falta desse ambiente, como apresentada pelas adolescentes, têm levado a prejuízos
no desenvolvimento, como o envolvimento em comportamento de risco, tais como a
autolesão.

151
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154
11- O TAT NA COMPREENSÃO DOS ASPECTOS PSICOLÓGICOS DE UMA PRÉ
ADOLESCENTE VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR

Edna Pereira Torrecilha


Gislaine Chaves
Cláudia Rodrigues Sanchez
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Helena Rinaldi Rosa

Resumo: A literatura aponta que o abuso sexual infantil é como uma vivência que traz
graves consequências psíquicas para a vítima. Diversos sentimentos emergem dessa
experiência. Este artigo objetivou apresentar o uso do Teste de Apercepção Temática
(TAT) com vistas a analisar os aspectos psicológicos uma pré-adolescente que sofreu
violência sexual intrafamiliar, confirmando os dados apontados pela literatura sobre
vítimas de abuso intrafamiliar. O TAT revelou os sentimentos da menina de
isolamento, autodesvalorização, de ambivalência em relação a um ambiente hostil que
não a compreende, não a protege e nem acolhe. Denota sentimentos ambivalentes e
dificuldades no estabelecimento da identidade. O TAT mostrou-se sensível no caso
apresentado, revelando aspectos psicológicos cujos efeitos resultaram em quadro
depressivo com ideação suicida e conduta auto lesiva. Assim o caso demandou
atenção psicológica que foi oferecida à jovem e à sua mãe. Sugere-se que mais
estudos sejam feitos, de forma que se possa desenvolver intervenções que possam
minorar as consequências graves que o abuso sexual intrafamiliar acarreta para o
desenvolvimento e saúde mental das vítimas.

Palavras-chave: abuso sexual intrafamiliar; Teste de Apercepção Temática; pré-


adolescência, autolesão.

INTRODUÇÃO
De acordo com a OMS (1999), a violência sexual cometida contra crianças e
adolescentes é um problema de saúde pública, dada a sua alta frequência e as graves
sequelas, físicas e psíquicas, para a vítima e sua família. Caracteriza-se por
comportamentos realizados com fins sexuais, prejudiciais ao corpo e mente do sujeito
violentado, desprezando os direitos e garantias preconizadas pela Lei nº 8.069/90 –

155
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que visam a proteção e o cuidado à
criança e ao adolescente (BRASIL, 1990, Artigos 7º, 15, 16, 17 e 19).
Dados do Disque 100 apontam que, em 2018, foram registradas um total de
17.093 denúncias de violência sexual contra menores de idade. A maior parte, 70%,
refere-se a abuso sexual infantil intrafamiliar, isto é, aquele perpetrado por algum
conhecido da criança e/ou adolescente, caracterizando-se como incesto. Em geral, os
casos de abuso sexual ocorrem com maior frequência em meninas.
Florentino (2015) aponta que o incesto é uma das formas de violência sexual
infligida à criança e adolescente mais comumente praticada em nossa cultura, cuja
duração tende a ser longa e pode se dar com o conhecimento e/ou consentimento de
outras pessoas da família. Em sua revisão da literatura, o autor aponta as potenciais
implicações decorrentes de tal circunstância, desvelando as graves, extensas e
diversas sequelas nos sujeitos por ela vitimados, especialmente em nível psíquico.
Segundo Tardivo, Pinto Júnior e Santos (2005), as consequências do incesto
são devastadoras para a vítima, “a transgressão do incesto implica na perturbação da
noção de identidade e outros distúrbios de personalidade e de adaptação social” (p.
60). Pinto Júnior, Lopes, Pinheiro, Ortiz e Oliveira (2012) apontam, ainda, que a
violência sexual que ocorre dentro do contexto familiar apresenta determinantes
históricos, sociais e psicológicos específicos, exigindo, portanto, uma compreensão
profunda dessa dinâmica.
De acordo com Furniss (1993), o grau de severidade dos efeitos do abuso
sexual varia de acordo com a idade da criança no início do abuso sexual, duração do
abuso, o grau da violência, a diferença entre idade e o grau de parentesco entre a
pessoa que cometeu o abuso e a vítima, a ausência das figuras parentais protetoras
e de apoio social, o grau de segredo e ameaças. Outros fatores são acrescentados
comprometendo a saúde emocional, como os tipos de atividade sexual; dissolução da
família depois da revelação e negação do perpetrador de que o abuso aconteceu
(Amazarray e Koller, 1998).
No que tange ao contexto familiar, Habigzang, Ramos e Koller (2011),
ressaltam que a família tem sido repetidamente apontada como o lugar mais íntimo
de proteção para o ser humano, oferecendo relações constantes e estáveis de
reciprocidade. No entanto, nem sempre esta é a realidade. Alguns ambientes
domésticos têm sido palco de frequentes e severos sofrimentos e de exposição ao
risco. Além disso, esta atitude da família contribui para a crença da criança de que ela

156
é a responsável pela violência e não os agressores. Apesar de acreditar na revelação
da criança, muitas famílias não apresentam uma postura protetiva. Isto se deve a
diferentes situações: medo de outras formas de violência pelos agressores, falta de
conhecimento das leis de proteção à criança e banalização da violência, entre outras.
Ainda, de acordo com Tardivo, Pinto Júnior e Santos (2005) e Pinto Júnior et
al. (2012), muitas são as dificuldades enfrentadas quanto à identificação da violência
sexual intrafamiliar, uma vez que se trata do rompimento de um conluio de silêncio
entre a vítima, o agressor e a família. Dessa forma, pode-se reconhecer que a
violência sexual se apresenta como fator de risco para o desenvolvimento de crianças
e adolescentes, sendo imprescindíveis ações que viabilizem o atendimento,
reconhecimento e auxílio a essa demanda (Tardivo, Pinto Júnior e Santos, 2005;
Tardivo, Pinto Júnior & Vieira, 2012).
No que diz respeito à atuação do psicólogo, Tardivo (2005) defende que a este
cabe uma compreensão aprofundada da situação, levando em consideração a vítima
e sua família. Para tanto, destaca a validade do processo psicodiagnóstico nesse
contexto.
No tratamento do adolescente, Zavaschi, Telelbom, Gazal e Shansis (1991)
apontam que o terapeuta deve realizar a intervenção no sentido de reverter os
sentimentos de desamparo, isolamento e autoacusação que paralisam a vítima. Cabe
a esse profissional ficar atento ao grau de desamparo e desintegração do ego, deve
orientar aqueles que convivem com a criança a acolhê-la, pois a vítima precisa sentir
que outra pessoa cuida dela. É necessário criar um clima de segurança e aceitação a
fim de que a vítima, por meio de apoio emocional, possa resgatar a autoestima e a
esperança e comece a se comunicar. Ainda, de acordo com os autores, o abuso
distorce a visão que a criança tem do que a vida lhe pode oferecer.
Tardivo (2012) aponta para o uso de instrumentos projetivos nesse contexto,
uma vez que são capazes de abarcar os meandros mais sutis de tal vivência, no
entanto, de forma qualificada e acolhedora, em que a subjetividade do indivíduo em
análise seja reconhecida e protegida. Nesse sentido, o Teste de Apercepção Temática
– TAT (Murray, 2005) mostra-se apropriado por se tratar de um instrumento que busca
revelar a atitude e a estrutura do indivíduo frente a realidade experimentada,
baseando-se em suas experiências passadas e anseios presentes (Tardivo, 2017).
Murray (2005) partiu do pressuposto de que cada sujeito iria experimentar uma
mesma situação de maneira diferente, de acordo com sua perspectiva pessoal. Esta

157
maneira pessoal de elaborar uma experiência revelaria a atitude e a estrutura do
indivíduo frente à realidade, na qual ele poderia expressar sentimentos, lembranças,
ideias. Assim, o terapeuta teria acesso à personalidade subjacente deste indivíduo.
Para Murray, a personalidade é vista como um compromisso entre os impulsos e as
demandas do ambiente. O TAT envolve a apresentação de uma série de pranchas,
selecionadas pelo examinador ao sujeito que deverá, assim, contar uma história sobre
cada uma das pranchas (Murray, 2005). A análise dos dados seguiu a denominada
“livre inspeção do material (Tardivo, 2013) a partir das orientações teóricas propostas
por Murray (2005) e por Silva (1989).

OBJETIVO
O TAT foi utilizado com a finalidade de revelar aspectos psicológicos, em
especial, as relações afetivas com as figuras parentais internalizadas e sobre o
estabelecimento da identidade. Assim visou compreender como a adolescente se
coloca diante da realidade vivida e como ela se relaciona com as pessoas e o mundo.

MÉTODO
A investigação foi realizada a partir do método clínico-qualitativo, o qual se
caracteriza por se debruçar sobre a compreensão dos significados - conscientes e/ou
inconscientes - atribuídos às experiências (Turato, 2000), comum às pesquisas de
cunho qualitativo. Trata-se da apresentação de um caso de uma adolescente vítima
de abuso sexual intrafamiliar, atendida no Projeto APOIAR.
Utilizou-se como instrumento, neste trabalho, o TAT. São apresentados alguns
dos relatos feitos por uma adolescente vítima de abuso sexual: as pranchas 1, 2, 3,
7MF, analisadas segundo a proposta de Silva (1989) e Murray (2005). Esta escolha é
feita em função dos conteúdos temáticos evocados por essas pranchas.
Segundo Murray (2005), a prancha 1 é considerada como aquela a ser sempre
aplicada no início por não representar uma situação ameaçadora. A prancha procura
também entender como o sujeito se relaciona com questões de autoridade, bem como
com suas expectativas de futuro. Na prancha 2 há um triângulo explícito, assim,
espera-se respostas edípicas, mas algumas vezes as respostas são estereotipadas.
Na prancha 3 (usada a masculina, considerada mais adequada para ambos os sexos),
geralmente as pessoas tratam dos sentimentos de tristeza, abandono e depressão; a

158
arma é pouco percebida. A prancha 7 MF foi escolhida por evocar a relação com a
figura materna, que pode ser percebida/tomada como modelo pelas adolescentes.

RESULTADOS

O CASO
Maria15 buscou atendimento psicológico para a filha, Rosa, após esta escrever
uma carta mencionando sobre a violência sexual sofrida pelo padrasto, o qual
reconhecia como pai. Na carta, a menina relata os abusos ocorridos desde os seis
anos de idade. A busca pelo atendimento se dá a partir do momento que Rosa, a
paciente, passa a se auto lesionar e apresentar ideação suicida. A idade da menina,
na época do atendimento, era de 11 anos. São apresentadas a seguir as histórias que
ela contou e a análise de cada uma.

O T.A.T.

Prancha 1 – O menino e o violino


Tem uma criança vendo alguma coisa, tem um caderno, um tablet. Ela tenta
entender uma lição difícil, algo como ciências. Tenta entender alguma coisa que
aconteceu lá fora, têm muitas mortes, polícia atrás de ladrão e usuários de droga. Está
quebrando a cabeça, raciocinando para compreender o que está vendo. Sente-se
entediado, não quer fazer a lição, faz porque é obrigação, pensa que é difícil. No final,
consegue ver a matéria e irá tirar boa nota, ou não. Aqui pode ser um livro, ganhou ou
não boa nota.
Análise: apresenta dificuldades para entender o que acontece no mundo
externo, “quebra a cabeça”. Há muitas perdas, pessoas que tiraram algo dela e
também pessoas que estão em cumprimento com a lei, ora sentindo-se protegida, ora
não. Apresenta-se ambivalente, confusa e com dificuldade de compreender o que
ocorre no seu contexto. Embora se esforce, apresenta-se passiva mediante ao
ambiente familiar/ externo. Há uma pequena esperança de entender, mas, sente-se
confusa se vai conseguir lidar com a situação, evidenciando um ego fragilizado, sem
recursos para atingir os objetivos. Importante destacar que não identifica o violino, o
que mostra também dificuldades de percepção, em dados da realidade, o que pode
correr em crianças vítimas de violência, em especial do abuso sexual. Ela é que
escolhe o fim, e não consegue visualizar um final bom.

15 Todos os nomes utilizados nesse artigo são fictícios.

159
Prancha 2 – A estudante no campo
A moça espera uma perua escolar. Está é a mãe (se referindo à mulher grávida)
ao lado e um homem, ele pode ser o pai, um parente ou padrasto que está cuidando
de sua horta. Ela pensa que o ônibus vai demorar ou está com raiva das pessoas que
estão atrás, porque eles têm discutido ou ela fez algo que eles interpretaram mal.
Talvez tenham mandado ela (se referindo à jovem) fazer coisas da casa, como
arrumar algum móvel que a mãe falou e ela arrumou outro. A mãe descansa porque
andou no sol e o homem está usando um cavalo para fazer a horta. A mãe discutiu
com a filha e não quer falar com ela e nem tem coragem para olhar para a filha. A
moça está trabalhando, não sei se é a palavra certa, sabe, quando as pessoas se
casam, parece que eles estão plantando alguma coisa, como alface, tomate,
cebolinha. Não estão bem porque a filha e a moça estão sérias e o moço não sei se
está sério porque não dá para ver o rosto dele. No final a filha (se referindo à jovem)
volta para a casa e volta a falar com os pais, mas, ainda tem aquela tensão.
Análise: Há esperança de ir para algum lugar, mas não crê que tem recursos,
como na prancha anterior. Relata que houve brigas no ambiente familiar e apresenta
uma mãe que está em conflito com ela. Demonstra sentimentos de raiva pela falta de
compreensão e porque a interpretaram mal, sente-se excluída. Apresenta uma mãe
cansada, hostil, que não conversa e nem olha para a filha. No momento, seguinte, ela
se identifica como a jovem que está casada, há uma troca de papel com a mãe,
havendo na verdade, confusão na identidade e desconforto e uma disputa em ocupar
este lugar. Sente-se exposta e cobrada por obrigações impostas pelos pais. Demostra
passividade, obedecendo aos desejos deles. Apresenta-se submissa e passiva na
relação familiar, mesmo existindo a rivalidade e tensão no ambiente. Coloca-se em
diferentes papéis, tomando por sua vez o lugar da mãe, atuando como esposa do
padrasto.

Prancha 3 – Curvado sobre o divã


Uma moça que talvez esteja bêbada, caiu no chão porque o marido bateu,
talvez esteja chorando porque está com a cabeça baixa e está meio torta, tem uma
tesoura no chão que ela usou para cortar o cabelo porque estava com raiva e, também
pensou em cortar o pulso. Sente-se angustiada ou se estiver bêbada, sente-se triste.
Talvez, não seria uma boa ideia cortar o pulso. Não parece que cortou porque não tem

160
mancha de sangue no chão. Ela está deprimida por causa do marido, ela vai se
separar e viver a sua vida, sair e se cuidar. Vai pensar mais nela e não vai mais se
preocupar em fazer comida para o marido. Ele batia nela e, também a segurava forte
pelos braços, jogou ela no sofá. Nesse canto onde ela chora, tem uma faca ao lado
da tesoura, ela usava a faca para cortar para fazer comida, cortar cebola e quando o
marido bateu, ela caiu com a faca. A moça arrumou um trabalho, se separou e foi
morar com a mãe, um parente ou irmão. Separou-se e foi embora viver a vida dela.
Análise: A paciente identifica-se com a mulher fragilizada pelas agressões
físicas, sente-se desprezada jogada em um canto, humilhada, angustiada e triste.
Como forma de lidar com os sentimentos, corta o cabelo e apresenta ideação suicida.
No relato de que não tinha mancha de sangue no chão, ela pode ter cortado o pulso.
Sente-se desvalorizada e deprimida ao lidar com a separação do padrasto, como
também com a violência que sofreu. A paciente busca recursos externos, um trabalho,
mas é como se ela estivesse acoplada à vida da mãe quando retrata que se separou
e foi embora viver a vida dela.

Prancha 7 MF – Menina e boneca


É uma menina com uma boneca, atrás dela está a mãe lendo um livro. Ela quer
atenção da mãe, que não liga para ela. A menina fica com raiva. Tem uma mesa, a
mãe lê o livro e responde no papel, está procurando a resposta de algo que esteja
estudando ou tem alguma dúvida, acho que pode ser uma receita de comida ou está
lendo sobre o que ela duvidava. Algo que alguma coisa que a mãe viu e queria a
certeza da verdade, pode ter sido algo que passou no jornal ou estava escrito na
Bíblia. A dúvida pode ter a ver com família, ela está se perguntando o que fizeram
para ela, foi um conhecido que fez. Ou pode ser a moça que ensinava a bíblia, ela
pergunta se poderia se casar com qualquer homem que conhece. Achou a resposta
certa no livro, mas, cada um pode fazer as suas escolhas, tem o seu livre arbítrio. No
final ela fala para a pessoa que talvez ela não seja boa pessoa para ela ficar, termina
com o moço e dá atenção para a filha. Não sei se ela terminou ou parou de falar com
este moço. Sente-se bem e ao mesmo tempo triste (a menina) porque gostava do
moço, mas sabia que era o certo a fazer, ela sabia o que tinha que fazer. A menina
parece querer atenção da mãe e ela não dá porque tem muitas coisas para resolver,
como a separação deste homem. Sempre sem se decidir, não toma decisão, quer
agradar!?

161
Análise: A paciente tem necessidade de atenção materna, expressando
sentimentos de raiva e tristeza por não receber essa atenção. Procura uma explicação
de que a mãe talvez, tenha ido buscar meios para sanar dúvidas sobre o que o
padrasto fez no ambiente familiar como figura de marido e pai, em livros, jornal e bíblia.
Diante disso, percebe a mãe como uma figura de apoio, respaldada no ensinamento
religioso, mas, que também sempre tem outras prioridades. Traz dúvidas de como se
deu / dá o relacionamento da mãe com o padrasto. Há ambivalência nos sentimentos,
ora sente-se bem, ora triste, insegura a respeito de se o que ela fez foi certo ou errado.
Sente-se culpada pelo sentimento afetuoso que sentia pelo padrasto e como forma de
castigo não recebe a atenção que gostaria da mãe, que está sempre ocupada. Há
troca de lugar, identificando-se com a pessoa que está em dúvida diante de um
relacionamento com um homem.

DISCUSSÃO

Pelas histórias contadas diante das pranchas do TAT empregadas, a pré-


adolescente demonstrou apresentar os sentimentos referidos na literatura acerca do
abuso sexual intrafamiliar, tal como trazido por Florentino (2005) como consequências
desse tipo de abuso. Tardivo, Pinto Júnior e Santos (2005) também abordaram as
sequelas do incesto, como violentas e prejudiciais ao desenvolvimento da identidade.
A menina expressou ressentir-se da ausência de figuras parentais protetoras,
de apoio social, bem como da vivência de segredos e ameaças como mencionado por
Furniss, (1993). Observam-se no caso a dissolução da família depois da revelação
comprometendo a saúde emocional da criança, como trazido por Amazarray e Koller,
1998).
No TAT, ela se vê desprovida de qualquer afetividade, há necessidade de
cuidados básicos para o seu desenvolvimento. Não se sente compreendida e nem
amparada.
Outros traços também puderam ser percebidos, como a passividade mediante
ao ambiente familiar/ externo que é sentido como hostil (Tardivo, Pinto Júnior e
Santos, 2005; Tardivo, Pinto Júnior & Vieira, 2012). Há uma pequena esperança de
entender, mas a menina sente-se confusa se vai conseguir lidar com a situação, com
ego fragilizado, sem recursos para atingir os objetivos que possa almejar. Ela é quem
escolhe o fim, mas não consegue encontrar um final bom. Percebe-se dificuldades no

162
estabelecimento da identidade havendo confusão e trocas de papel) , e nas relações
(Tardivo & Pinto Junior, 2010).
Em relação ao que sente pelo abusador, foi possível constatar que os
sentimentos predominantes referidos são: amor, raiva, ódio, declarando que ele fez
coisas erradas e retratando imensa ambivalência, quando descreve que o pai traz
lembranças de coisas boas e ruins. Além da culpa quando relata, na descrição da
casa: está tudo arruinado e a culpa de tudo também é do meu pai. Foi possível
observar sentimentos de perdas e, ainda coação em ter que assumir subjetivamente
e objetivamente outros papéis na relação familiar, contribuindo para que ainda se
sentisse culpada pelas vivências sofridas. Tais sentimentos foram trazidos por Tardivo
et al. (2005; 2007; 2008) e por Pinto Junior et al. (2012).
A importância da proteção familiar foi apontada por Habigzang et al. (2011). A
vítima de abuso sexual precisa saber que não tem culpa, pois, nenhum
comportamento adolescente tem a ver com o abuso sofrido, seja ele de qualquer
natureza, intrafamiliar ou extrafamiliar. Independente do âmbito que ocorrer, essas
situações traumáticas produzem reações fisiológicas e emocionais na vítima que traz
referências a “sentirem-se abandonadas, sozinhas e sem esperança. O atendimento
deve ser no sentido já exposto por Zavaschi, et al. (2001), de modo a reverter tais
sentimentos e, por meio de apoio emocional, resgatar a autoestima e a esperança.

CONCLUSÃO
O presente estudo teve como objetivo principal apresentar o teste TAT e a
contribuição da sua análise para compreensão do adolescente vítima de abuso sexual,
o que foi atingido. O TAT revelou os sentimentos da menina de isolamento,
autodesvalorização, de ambivalência em relação a um ambiente hostil que não a
protege.
Entre adolescentes, é comum a presença de quadros depressivos, isolamento
e autodesvalorização. O atendimento dessas vítimas deve favorecer que o
adolescente se defronte com as fantasias, pensamentos e busque uma melhor
compreensão e apoio diminuir o impacto traumático, facilitando a verbalização dos
sentimentos e prevenindo comportamentos autodestrutivos como abuso de droga,
tentativas de suicídio, entre outros.
É de suma importância o desenvolvimento de estudos acerca dos aspectos
psicológicos decorrentes do abuse sexual a longo prazo para compreensão das

163
demais variáveis desse fenômeno e a possibilidade de superar os traumas por ele
causados. O TAT mostrou-se sensível para esse estudo no caso apresentado,
revelando aspectos psicológicos cujos efeitos resultaram em quadro depressivo com
ideação suicida e conduta auto lesiva. Assim o caso demandou atenção psicológica
que foi oferecida à jovem e à sua mãe.
Sugere-se que outras investigações sejam realizadas com um número maior
de casos, em diferentes ambientes, a fim de que, se conhecendo melhor o fenômeno,
seja possível intervir para minorar as consequências tão graves que o abuso sexual
intrafamiliar acarreta para o desenvolvimento e saúde mental das vítimas.

REFERÊNCIAS

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na infância: um desafio terapêutico. Revista de Psiquiatria/RS, 13(3), 136-145.

165
12- A VISÃO PSICANALÍTICA SOBRE POSSESSÃO DEMONÍACA

Denise Blanche,
Maria Hosana Andrade dos Santos,
Davi Rodrigues Silva
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo

Resumo: O artigo traz uma discussão sobre a visão com relação à possessão
demoníaca, em suas análises Sigmund Freud a denomina como neurose demoníaca,
em seu texto: Uma neurose demoníaca do século XVII. São apresentados conceitos
psicanalíticos com relação à estrutura psíquica e da personalidade para que
possamos entender de forma mais clara a interpretação de Freud com relação ao caso
de Christoph Haizmann, o pintor que após a morte de seu pai decide realizar um pacto
com o diabo com o intuito de ser libertado de um estado depressivo, o mesmo
acreditava que este pacto pudesse ser finalizado apenas com a ajuda dos padres na
capela de Mariazell, após finalizar o pacto dedicasse a servir aos monges pelo resto
da vida.

Palavras-chave: psicanálise, neurose, demoníaco, pai e pacto.

(Artigo apresentado para conclusão do curso de Psicologia da Universidade Brasil, sob orientação do
Professor Ms. Fábio Pinheiro Santos)

166
Introdução

O objetivo é apresentar os principais conceitos psicanalíticos acerca da


estruturação psíquica do sujeito (Id, Ego e Superego) e como estes se relacionam à
conclusão de neurose demoníaca.

Em um de seus livros Freud (1923) traz o tema: Uma neurose demoníaca do


século XVII, escrita originalmente em alemão Eine Teufelsneurose im Siebzehnten
Jahrundert, conta a História de Christoph Haizmann, o pintor que perdera a capacidade
de pintar após a morte de seu pai. Em agosto de 1677 o artista sofre convulsões e admite
ter feito um pacto com o demônio, se comprometeu por escrito, a entregar-se de corpo e
alma para Satanás após um prazo de nove anos, que expiraria em setembro de 1677,
em troca da capacidade de pintar. Na segunda parte do artigo, entende-se o motivo para
tal pacto com o demônio, segundo Freud foi uma tentativa de se libertar de um estado
depressivo, o pintor tem por desejo um pai substituto, o pacto o faria ter este pai,
protegendo-o pelo período de uma infância (Nove anos).

Na Idade Média, entendia-se por possessão demoníaca, como algo espiritual,


outros seres que tomavam o corpo do indivíduo, atribuindo estes aspectos a demônios,
segundo a psicanálise percebemos que tal possessão demoníaca está relacionada a
uma neurose.

1. Conceitos Psicanalíticos
A separação da estrutura psíquica foi entendida inicialmente como consciente,
pré-consciente e o inconsciente. Entre 1920 e 1923, Freud remodela a teoria do
aparelho psíquico e introduz os conceitos de id, ego e superego para descrever a
personalidade e compreender os processos patológicos da vida mental. O id constitui
o reservatório da energia psíquica, é onde se “localizam” as pulsões de vida e a de
morte, tem características inconscientes e é regido pelo instinto e princípio do prazer.
O ego possui as funções de memória, sentimento, percepção e pensamentos
estabelece o equilíbrio entre as exigências do id e as “ordens” do superego, ele é
orientado pelo princípio da realidade e juntamente com o princípio do prazer governam
o funcionamento psíquico.
Segundo Freud (1923-1925 p.49) “É fácil ver que o ego é aquela parte do id
que foi modificada pela influência direta do mundo externo, por intermédio do pcpt.-
Cs.; em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de superfície. Além disso, o

167
ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e
esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente no id, pelo
princípio de realidade. Para o ego, a percepção desempenha o papel que no id, cabe
ao instinto. O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em
contraste com o id, que contém as paixões”.
O superego origina-se com o complexo de Édipo, a partir da internalização das
proibições, dos limites e da autoridade. O superego refere-se a exigências sociais e
culturais.

Fases Do Desenvolvimento Psicossexual

A energia dos instintos sexuais é chamada por Freud (1905) de “libido”, ela existe
desde o princípio da vida após o nascimento. O desenvolvimento da sexualidade se
dá em um período complexo e longo, até chegar na vida adulta. As funções de
obtenção de prazer e reprodução do sexo podem estar associadas tanto no homem
quanto da mulher.

Freud (1905) também refere que a personalidade é desenvolvida através de


estágios de desenvolvimento na infância. Primeiro estágio é a fase oral, a zona de
erotização é a boca, ocorre do nascimento à idade de 1 ano, a interação da criança
com o mundo é através da boca e sua obtenção de prazer. Segundo estágio é a fase
anal, a zona de erotização é o ânus e a bexiga, ocorre na idade de 1 a 3 anos, onde
o foco principal da libido está no controle dos esfíncteres. Terceiro estágio é a fase
fálica a zona de erotização são os genitais e ocorre de 3 a 6 anos de idade. O quarto
estágio é o período de latência a zona erógena se localiza nos sentimentos sexuais
latentes ou inativos presentes no inconsciente, ocorre dos 6 anos à puberdade, a
criança se desenvolve em relacionamentos interpessoais. O quinto estágio é a fase
genital onde a zona de erotização está localizada nos interesses sexuais e ocorre da
puberdade ao fim da vida do indivíduo.

As experiências e situações ocorridas de caráter traumático na infância, traz


como consequência a origem dos sintomas atuais. A maioria dos pensamentos e
desejos reprimidos estão relacionados a conflitos de ordem sexual desenvolvendo o
funcionamento das neuroses.

168
Complexo De Édipo E Castração

O complexo de Édipo é uma fase de triangulação que caracteriza o centro do


conflito humano, é em torno deste que se estrutura a personalidade acontece entre os
3 a 6 anos, na fase fálica (onde a zona de erotização é o órgão sexual). O menino
desenvolve desejo pela mãe, originalmente relacionado ao seio materno, o menino se
identifica com o pai, durante um período, este relacionamento se desenvolve até que
os desejos sexuais do menino com relação à mãe se tornam mais intensos e o pai é
percebido como um obstáculo entre eles, originando o complexo de Édipo.
O amplo resultado geral da pose sexual dominada pelo complexo de Édipo
pode, portanto, ser tomada como sendo a formação de um precipitado no ego,
consistente dessas duas identificações unidas uma com a outra de alguma maneira.
Esta modificação do ego retém a sua posição especial; ela se confronta com os outros
conteúdos do ego como um ideal do ego ou superego. (Freud, 1923-1925, p.46)
Freud (1905) descreve a neurose como quadro que se origina por situações
externas da vida do sujeito, causadas por uma angústia, ansiedade, medo ou alguma
expectativa desagradável. Na neurose o sujeito apresenta sintomas variados, mas
sempre com uma postura de vida que proporciona mais infelicidade do que o
necessário. Um comportamento exagerado e isso acontece para preservar uma parte
saudável de si mesmo, sendo uma forma de defesa. Na neurose o sujeito preserva
muito bem a realidade externa da realidade interna, essa separação é totalmente
consciente para si e sua personalidade não altera por conta disso, embora aja uma
disfunção anormal para algumas situações, o que irá diferenciar a neurose da
normalidade é a intensidade do comportamento e a forma em resolver conflitos de
maneira satisfatória.

2. O Caso De Cristoph Haizmann, O Pintor

O caso de Chistoph foi descrito em um manuscrito, divide-se em duas seções


distintas, sendo uma delas um relatório escrito em latim tendo por autoria um escriba
ou compilador, contém, um prefácio e uma descrição da cura real e a outra um
fragmento do diário do paciente escrito em alemão, a qual serve grande parte para
confirmação de julgamento do caso.
Freud relata uma parte do conteúdo que extraiu do prefácio, que traz o título de
Trophaeum Mariano-Cellense, seria a narrativa de Leopoldus Braun, o padre da aldeia

169
de Pottenbrunn, datada de 1º de setembro de 1677:

Em 5 de setembro de 1677, o pintor Christoph Haizmann, bávaro, foi trazido a


Mariazell, com uma carta de apresentação do pároco da aldeia de Pottenbrunn
(na Áustria inferior), não muito longe dali. A carta declara que o homem estivera
morando em Pottenbrunn durante alguns meses, exercendo sua ocupação de
pintor. Em 29 de agosto, enquanto se encontrava na igreja da aldeia, fora
tomado por convulsões assustadoras. Como as convulsões tornaram a
apresentar-se durante os dias seguintes, fora examinado pelo Praefectus
Dominii Pottenbrunnensis, com vistas a descobrir o que o oprimia e se ele não
havia assumido intercâmbio ilícito com o Espírito Mau. A seguir, o homem havia
admitido que, nove anos antes, encontrando-se em estado de desalento quanto
à sua arte e duvidoso sobre a possibilidade de se sustentar, entregara-se ao
Demônio, que o havia tentado nove vezes, e dera-lhe seu compromisso por
escrito de pertencer-lhe em corpo e alma após um período de nove anos. Esse
período expiraria no 24º dia do mês corrente. A carta prosseguia dizendo que
o infeliz se havia arrependido e estava convencido de que só a graça da Mãe
de Deus em Mariazell poderia salvá-lo, obrigando o Maligno a liberá-lo do
compromisso, escrito com sangue. Por essa razão, o padre da aldeia
aventurara-se a recomendar miserum hunc hominem omni auxílio destitutum à
benevolência dos padres de Mariazell. (Freud, 1923 p. 90).

O manuscrito consiste em uma página de rosto colorida que representa a cena


da assinatura do pacto e a cena de redenção na capela de Mariazell, nas folhas
seguintes encontram-se oito quadros coloridos que representa as aparições do
demônio. Os quadros não são originais tratando-se de cópias fiéis das pinturas
originais de Cristoph.
Na descrição da cena de exorcismo, após ter passado um grande período de
penitência e oração em Mariazell, Christoph vê o demônio na sagrada capela em 08
de setembro a meia noite, (dia da natividade da virgem), sob a forma de um dragão o
qual lhe devolveu o compromisso que estava escrito em sangue. Entende-se que o
pacto fora feito em dois compromissos com o demônio, um em tinta preta e um
posterior redigido com sangue. Este seria o grande milagre, porém a cura não foi
duradoura, após um período o pintor deixou Mariazell melhor de saúde e foi para Viena
onde morou com uma irmã. Em 11 de outubro começam novas crises consistia em
visões e ausências nas quais via e experimentava todo tipo de coisas, em acesos
convulsivos acompanhados das sensações mais penosas, em certa situação com
paralisia das pernas. Neste momento não era o demônio que o atormentava, mas por
figuras sagradas, o Cristo e pela própria Santa Virgem, sofrera por ter ainda um
intercâmbio com o demônio.
Christoph retorna a Mariazell e conta aos padres a razão para qual retornou,

170
teria de solicitar ao demônio para devolver seu outro compromisso anterior que foi
escrito em tinta. Ele orou de novo e recebeu de volta o pacto, se sentiu inteiramente
livre e ingressou na ordem dos Irmãos Hospitalários.
No manuscrito o compilador não esconde a indagação que foi feita pelo superior
do Mosteiro dos Irmãos Hospitalários em 1714 (em Viena) com relação à história do
pintor, o reverendo Pater Provincialis comunicou que o irmão Crisóstomo havia sido
tentado novamente pelo espírito mau, embora isso só acontecia quando ele bebia
vinho em demasia.

[...] Mas, pela graça de Deus, sempre fora possível repelir essas tentativas. O Irmão
Crisóstomo morrera de febre héctica. ’pacificamente e bem confortado’ no ano de
1700, no Mosteiro da Ordem, em Neustatt sobre a Moldávia. (Freud, 1923-1925, p.94)

Análise De Uma Neurose Demoníaca


Freud (1923-1925) entende que se trata de fato de um caso clínico pelos sintomas
apresentados, Christoph ficou abatido, indisposto, era incapaz de trabalhar
adequadamente e estava preocupado em como ganhar a vida, podemos dizer que sofria
de depressão melancólica, o qual o próprio pintor na legenda de um dos retratos do diabo
o chama de melancolia “que eu procura-se diversão e banisse a melancolia”.

Nas aparições do demônio o mesmo oferece a Christoph artes magicas, dinheiro


e prazer, porém, o mesmo os rejeita, tornando difícil saber o que o pintor de fato queria
do diabo quando assinou o compromisso com ele. Nos compromissos não mencionam
nenhuma promessa feita pelo demônio, mas em troca da efetivação o pintor se
compromete a exigência efetuada pelo diabo, é ilógico que este homem deva entregar
sua alma, não por algo que deva conseguir do demônio, mas por algo que deva fazer
para este.

No primeiro compromisso escrito à tinta diz o seguinte: Eu, Christoph Haizmann


subscrevo-me a este Senhor como seu filho obrigado até o nono ano. Ano de 1669. O
segundo escrito com sangue diz: Christoph Haizmann. Assino um compromisso com este
satã, de ser seu filho obrigado e no nono ano pertencer-lhe de corpo e alma. (Freud,
1923-1925, p. 97)

Haizmann projeta no demônio os aspectos que sentia com relação ao seu pai.
Confirmado pela forma que o diabo se apresentou pela primeira vez como sendo um

171
cidadão honesto de idade avançada, barbas castanhas, vestido com uma capa vermelha,
apoiado com a mão direita em uma bengala e com um cão negro ao lado. Posteriormente
aparece com chifres, garras de águia e assas de morcego.

Na realidade, ambas as partes de sua doença demoníaca tinham o


mesmo significado. Ele quisera, todo o tempo, simplesmente tornar
segura sua vida. Primeiro tentara consegui-lo com ajuda do
Demônio, ao custo de sua salvação, e quando isso fracassou e teve
de ser abandonado, tentara alcançá-lo com o auxílio do clero, ao
custo de sua liberdade e da maioria das possibilidades de prazer na
vida. Talvez ele próprio fosse apenas um pobre-diabo
simplesmente sem sorte; talvez fosse ineficiente ou pouco talentoso
demais para ganhar a vida, e um daqueles tipos de pessoas que
são conhecidas como ‘bebês eternos’ - incapazes de arrancar-se
do estado beatífico no seio da mãe e que, por toda a vida, persistem
na exigência de serem nutridos por alguém. Foi assim que, nessa
história de sua enfermidade, ele seguiu o caminho que levou de seu
pai, por intermédio do Demônio como substituto paterno, aos
piedosos padres da Igreja. (Freud, 1923).

O Demônio é então a projeção de impulsos que Haizmann não aceita em seu


pai, e aspectos reprimidos da sexualidade conforme analisados por Freud nas pinturas
de Haizmann. É possível que o pai fosse contra o seu desejo de se tornar pintor, se
de fato aconteceu sua incapacidade de exercer a profissão após a morte do pai pode
ser entendida como fenômeno de “obediência adiada” que seria remorso e uma
autopunição bem-sucedida, o que seria obrigado a aumentar o seu anseio pelo pai
como protetor contra os cuidados da vida.

As contradições da natureza original de Deus, contudo, constituem


um reflexo da ambivalência que governa a atitude do indivíduo com
seu pai pessoal. Se o Deus benevolente e justo é um substituto do
pai, não é de admirar que também sua atitude hostil para com o pai,
que é uma atitude de odiá-lo, temê-lo e fazer queixas contra ele,
ganhe expressão na criação de Satã. Assim, o pai, segundo parece,
é o protótipo individual tanto de Deus quanto do Demônio. Mas
deveríamos esperar que as religiões portassem marcas indeléveis
do fato de que o primitivo pai primevo era um ser de maldade
ilimitada - um ser mais semelhante ao Demônio do que a Deus.
(Freud, 1923, p.102).

Considera-se que o papel desempenhado pelo número nove o fato de que o


pacto com o maligno foi por nove anos, o pintor alega ter resistido às tentações do

172
maligno por nove vezes. Nas fantasias neuróticas o número nove e conhecido como
o número dos meses de gravidez o que pode ser significativo sob outros aspectos
também, a modificação está de acordo com as exigências da condensação e do
deslocamento.

Freud (1923-1925) afirma que a neurose demoníaca não se diferencia muito de


uma simples neurose que surge na infância, no complexo de Édipo e o trauma da
castração. Nas relações do pintor com o demônio possui uma reverência sexual, em
uma segunda ocasião o diabo estava nu e disforme, e tinha dois pares de seios
femininos sendo repetida nas aparições subsequentes quer como um par único ou
duplo, em um deles exibe um grande pênis terminando por uma serpente, não a
indicações dos órgãos genitais femininos, entende-se que o demônio tinha o
significado de um substituto paterno para o pintor. Este fato determina o lado negativo
da relação com o pai o qual revela a sua atitude feminina para com o pai que culmina
pela fantasia de dar-lhe um filho. Através do luto pelo pai perdido e a intensificação de
seu anseio por ele sucede uma reativação de sua fantasia de gravidez reprimida a
muito tempo, sendo obrigado a se defender com uma neurose e rebaixamento do pai
ao demônio.

Segundo Freud (1923), a atitude feminina de um menino para com o pai sofre
repressão, ele compreende que a rivalidade com uma mulher pelo amor do pai tem
como condição a perda de seus próprios órgãos genitais masculinos, ou seja, a
castração. O repudio da atitude feminina é resultado de uma revolta contra a
castração, encontra sua expressão mais forte na fantasia inversa de castrar o pai, de
transformá-lo em mulher. Sendo assim os seios do demônio corresponde a uma
projeção da própria feminilidade sobre o substituto paterno. Ou ainda pode ser
entendido como uma forma de indicação de que os sentimentos da criança pela mãe
foram deslocados para o pai sugerindo intensa fixação na mãe que é responsável por
parte da hostilidade da criança para com o pai. Seios grandes são as características
sexuais positivas da mãe, mesmo numa ocasião em que a característica negativa de
uma mulher seria a falta de um pênis, ainda é desconhecida da criança.

Se a relutância do pintor em aceitar a castração aumentou o anseio por seu pai,


é compreensível que tenha buscado auxílio e salvação na figura materna. Essa pode
ser a razão do pintor declarar que somente a Santa Mãe de deus de Mariazell poderia

173
salvá-lo do pacto com o demônio e de conseguir a libertação no dia da natividade da
Virgem (08 de setembro).

Discussão

Entende-se que o pai é representado tanto por Deus como pelo Demônio figura
está de projeção de impulsos não aceitos para com o pai como ódio e aspectos
reprimidos da sexualidade. Portanto nos deparamos com uma pessoa que assinou um
compromisso com o diabo, a fim de ser libertado de um estado de depressão.

Segundo Freud (1923-1925) o superego retém o caráter do pai, enquanto


quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir a
repressão, mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego,
sob forma de consciência ou talvez de um sentimento inconsciente de culpa. Na
medida em que o sujeito cresce, o papel do pai pode ser exercido por outras pessoas
que tenham sido colocadas ou consideradas como figura de autoridade, as regras e
proibições permanecem sendo de forte influência no ego e continuam
conscientemente a exercer o que Freud chama de censura moral.

[…] ao passo que as neuroses de nossos pouco psicológicos dias de


hoje assumem um aspecto hipocondríaco e aparecem disfarçadas
como enfermidades orgânicas, as neuroses daqueles tempos
surgem em trajes demoníacos e se tivesse concedido maior atenção
às histórias de tais casos na época não teriam sido difícil retratar
neles o tema geral de uma neurose. (Freud, 1923-1976b, p. 91).

Na Idade Média vários atos ou simplesmente desejos que hoje são corriqueiros,
eram considerados pecados, assim como na inquisição um simples resfriado, falar
com animais, autismo entre outros, eram sinais de bruxaria, as neuroses de daquela
época ganharam a representação demoníaca como única explicação aceitável.

Conclusão

Entende-se que o pintor “sofreu” o complexo de édipo na infância, o qual os


impulsos institucionais foram reprimidos, tendo surgido na vida interna do paciente, os
sentimentos com relação ao pai foram transferidos ao Diabo.

174
Haizmann assinou um compromisso com o objetivo de ser libertado de um
estado de depressão, onde depositou sua dor e a falta que sentia de seu pai,
acreditava que o pacto ajudaria a recuperar sua inspiração para pintar. Esse pacto foi
a tentativa de estar sobre o jugo de um pai protetor novamente, Haizmann podia então
voltar ao seu ofício de pintar, mas ao término dos nove anos perderia essa proteção.
Após tentar viver com sua irmã, Haizmann decide se voltar para a proteção de
Mariazell dedicando-se a seguir os monges pelo resto de sua vida. Dessa forma
concluímos que ele foi ligado ao pai por um amor intenso, uma melancolia grave que
surge como forma neurótica de luto. Trata-se de uma neurose demoníaca.

Referências

Freud, S. (2006). O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Ed. Imago, 19.

Freud, S. (2006). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Ed. Imago, 19.

https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/uma-breve-compreensao-sobre-o-
complexo-de-edipo. Acessado em 17/09/2017 às 22h14.

https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/ampliando-as-visoes-sobre-a-
formacao-da-neurose © Psicologado.com. Acessado em 09/10/2017 às 17h13.

175
13- REFLEXÕES SOBRE VIOLÊNCIA E DESAMPARO NO FILME “CORINGA” 16

Bárbara Caroline Macedo17


Júlia Pundeck Loureiro18
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo19

Resumo: O filme “Coringa” tem grandes contribuições para a análise do sujeito


contemporâneo e a sua relação com a violência e o desamparo. Arthur Fleck,
personagem principal, caracteriza esse sujeito que está às voltas com a instabilidade
das relações, empobrecimento das trocas simbólicas e precariedade dos laços
afetivos. Sem o reconhecimento do mal-estar, o qual é operado inicialmente pela mãe,
o sujeito permanece desamparado e impossibilitado de encontrar recursos simbólicos
para lidar com o excesso de energia que lhe acomete, podendo incorrer em atos
violentos na tentativa de afirmar sua singularidade. Quando a criança não se sente
segura em seu meio familiar, torna-se angustiada e, caso tenha esperança, como um
pedido de socorro, irá endereçar-se a contextos mais amplos a fim de resgatar a
estabilidade que necessita para seu crescimento emocional. O filme retrata os fatores
ligados às consequências da violência doméstica vivida pelo personagem, a falta de
apoio familiar e social e o contato intenso com a enfermidade da mãe. Todos esses
são fatores que favorecem o desenvolvimento do Transtorno Borderline da
Personalidade, em sua manifestação mais dramática e, diretamente, expressa-se em
condutas de intensa destrutividade com relação ao outro

Palavras-chave: Psicanálise. Violência. Desamparo. Contemporaneidade.

Introdução

16
Joker (no Brasil, Coringa) 2019,. Direção de Todd Phillips, Roteiro cde Todd Phillips e Scott Silver.
Baseado no personagem de mesmo nome da DC Comics, Joaquin Phoenix como o Coringa. Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Joker_(filme_de_2019
17
Psicóloga graduada pela UEM, especialista em Saúde da Criança e Adolescente pelo HC-UFPR
18
Psicóloga graduada pela UFPR
19
Professora associada do Instituto de Psicologia da USP, coordenadora do Laboratório de Saúde Mental e
Psicologia Clínica Social

176
Coringa é um dos filmes mais comentados dos últimos tempos e, segundo
Hughes(2019), escritor no site da revista Forbes, se tornará o primeiro filme para
maiores de idade no topo da marca de US$ 1 bilhão nas bilheterias mundiais. O longa-
metragem da DC Comics, dirigido por Todd Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix,
gerou polêmica e dividiu opiniões. Muitos o consideraram uma grande obra de arte
com potencial para levar o Oscar 2020 e outros o chamaram de perigoso, incitador de
violência e irresponsável. O filme retrata a origem de um dos vilões mais famosos das
histórias em quadrinhos e, ao contrário das produções cinematográficas anteriores, o
arqui-inimigo de Batman é o protagonista. Não incorre na tradicional oposição entre o
bem e o mal, o herói e o vilão ameaçador, mas privilegia contar a história de um ser
humano, no âmbito familiar e social.
O filme retrata a vida de Arthur Fleck, cidadão de aproximadamente trinta anos
que vive no subúrbio de Gotham City. Ele e sua mãe convivem no mesmo apartamento
e se esforçam para sobreviver em meio a falta de recursos psíquicos e sociais. Arthur
sofre de um distúrbio neurológico que o faz rir em momentos inapropriados, realiza
tratamento com psicofármacos e, rotineiramente, frequenta o serviço de assistência
social. Aspirante à comediante, Arthur alterna seus afazeres entre sua profissão como
palhaço e seu divertimento de assistir diariamente com a mãe um determinado
programa de comédia da TV. Já em uma das primeiras cenas do filme, quando é
atacado por um grupo de meninos e repreendido pelo chefe devido ao acontecimento,
é possível ver a agressividade e injustiça que acometem a vida de Arthur. Após ter
sofrido essa humilhação, um colega de trabalho lhe dá uma arma e lhe sugere utilizá-
la para proteção. Perde seu trabalho quando descobrem que ele portava a arma
enquanto trabalhava num hospital infantil. Após ser vítima de violência mais uma vez,
agora por executivos da empresa de Thomas Wayne, um homem poderoso da cidade,
Arthur reage e executa os três homens. Posteriormente, recebe a notícia de que o
programa de assistência social teve seu orçamento cortado e ficará sem o auxílio para
obter ser medicamentos.
As diversas situações retratadas no filme demonstram que o palhaço não era
escutado, acolhido em sua subjetividade nem tendo suas demandas reconhecidas e
levadas a sério. Após roubar o prontuário de sua mãe quando referente ao período
em que ela se tratou no Asilo Arkham, Arthur descobre fatos sobre sua história muito
dolorosos. Foi adotado e criado por Penny, cuja condição psíquica era bem
comprometida, além de ter sido vítima da violência do namorado de sua mãe. Esses

177
eventos desencadeiam uma mudança no posicionamento de Arhur: de um cidadão
sem recursos e invisível, ele se torna um homicida, aplaudido por ativistas e conhecido
como “Coringa”.

Discussão

O desenrolar da história de vida desse personagem tão complexo do ponto de


vista psicológico pode até permitir que o espectador sinta com ele as situações de
absoluto desamparo e precariedade dos laços sociais e fracasso em relação ao
exercício de papel de sujeito em seu contexto. Essa é a situação do homem
contemporâneo, repleta de competitividade e individualidade, como apontam alguns
autores, tais como Birman (2001), Bauman (1997) e Melman (1931). Estes abordam
acerca do fortalecimento da lógica da onipotência e a supressão do outro, instabilidade
das relações, empobrecimento das trocas simbólicas e precariedade dos laços
afetivos.
Ao passo que o filme produz empatia, também leva ao choque, uma vez que
ele não poupa ao apresentar a violência que acomete o ser humano desde seus
primórdios, em seus sucessivos desencontros e decepções, até encontrar um modo
de viver a partir do que lhe foi oferecido. Ao virar o Coringa, Arthur Fleck responde ao
desprezo, assujeitamento, vazio simbólico e ausência de um lugar na sociedade, e
cria à sua maneira um modo de poder existir.
A violência pode ser entendida como uma forma possível do sujeito lidar com a
situação de desamparo provocada pela abolição de toda possibilidade de
simbolização que, consequentemente, deixa o sujeito submetido a exigências
pulsionais crescentes. Considerando as características da sociedade contemporânea,
pode-se identificar suas contribuições para que as exigências a que são submetidos
os indivíduos sejam cada vez maiores. A partir da exposição a esse excesso de
excitação, o indivíduo é capaz de atos violentos destrutivos como uma forma de
afirmar sua singularidade (Marin, 1999).
As descobertas do sujeito em relação a si mesmo se dão por meio do outro: ao
receber as interpretações iniciais quando suas necessidades são nomeadas, ao ser
iludido e frustrado no desejo de se fusionar à mãe, ao aprender a lidar com seu ódio
ao pai e suprimir seu desejo de vingança. A mãe exerce o importante papel de lembrar
constantemente ao pequeno ser humano que ele possui carências, faltas e

178
incompletude. Essa interpretação inicial reconhece a fragilidade e o desamparo do
pequeno ser humano e, assim, concede a ele o que necessita, amparando-o em sua
ansiedade. Segundo Marin (1999), tal processo se torna prejudicado quando os pais
apresentam um ideal de felicidade, uma imagem ideal de bebê sem angústias, em que
é insuportável assumir o que é mau, feio e faltoso. Eles podem acabar se calando e
abandonar o bebê a seus próprios fantasmas. A excitação incontrolada de uma
criança pede uma intervenção que, se não for realizada pelos pais, acabará sendo
feito por órgãos sociais, como a polícia, por exemplo.
Quanto mais se deixa de reconhecer esse mal-estar intrínseco à vida humana,
mais os sujeitos ficam abandonados aos seus próprios impulsos, na ilusão de serem
onipotentes. Segundo Marin (1999), a ideia de se submeter ao outro se torna
insuportável, os laços são rompidos, a infelicidade é instaurada e a solidão se torna
um modelo ideal de maturidade. Isso contribui para a formação de práticas
aniquiladoras. Freud (1929/1996), em Mal-estar na Civilização, traz importantes
colocações sobre a vida do sujeito na cultura e a concepção de felicidade. Nesse texto,
o autor afirma que a felicidade, enquanto total satisfação pulsional é impossível.
Atender totalmente ao princípio do prazer é não reconhecer que há o princípio da
realidade, na qual sempre haverá o desprazer.
“Coringa” retrata a dificuldade de reconhecimento da violência, não a gerada
pelas grandes massas, mas as mais privadas e individualizadas que ocorrem
cotidianamente. Num contexto de constantes humilhações, injustiças, discursos
políticos completamente distantes da realidade social, piadas que expõem as dores e
as duras condições de minorias, silenciamento e rejeição, a Arthur Fleck, no
imaginário materno, fora dado o lugar daquele que faria os outros felizes.
Ao longo da trama, é possível perceber grandes contradições. Ainda criança,
algumas de suas necessidades vitais, como a de ser protegido, fora negligenciada. O
reconhecimento das angústias e a intervenção necessária para nomeá-las e aplacá-
las parecem ter falhado na relação entre mãe e filho. Fica evidente que a mãe, ao
nomeá-lo “Happy”, apresenta dificuldade em se deparar com o que falha, o que é
doloroso e que afeta o filho. Ela o cria a partir do ideal de felicidade. Curiosamente, o
distúrbio neurológico que o acomete o faz rir em situações embaraçosas e
desagradáveis, promovendo a repetição desse descompasso de suas vivências e
aquilo que é possível de ser reconhecido pelos outros.

179
Outra situação contrastante é a que aponta um serviço de assistência social
que não acompanha as demandas do sujeito para o qual, supostamente, é oferecido.
Arthur não se sente escutado, pois a profissional que o atende insiste na rigidez das
mesmas perguntas. A esse respeito, é possível pensar nas formas de tratamento
oferecidos que pouco permitem que o sujeito seja escutado, uma vez que estão mais
preocupadas em circunscrever os sintomas apresentados, levantando uma categoria
diagnóstica, a qual ditará um modelo de trabalho
Socialmente, Birman (2001) comenta que a subjetividade contemporânea está
permeada por fantasias de poder e onipotência. Consequentemente, a violência que
caracteriza o mal-estar na atualidade é compreendida na aniquilação do outro e na
utilização desse outro enquanto objeto de satisfação. Assim, o importante não é o
outro e nem as trocas com ele, a importância se dá ao poder do eu e como o outro,
em lugar de objeto, pode satisfazer o eu. Isso é mostrado no filme quando Arthur está
sentado em um dos bancos do metrô. Aparentemente, o vagão está vazio, há somente
uma mulher e um grupo de meninos fazendo piadas machistas para a passageira. Ela
parece um pouco intimidada, mas continua a leitura do seu livro, já os garotos riem e
perguntam insistentemente o telefone da moça. Nesse momento, Arthur, que estava
sentado há uma certa distância, começa a rir. Sua risada compulsiva chama a atenção
dos rapazes e da moça. Esta, contudo, permanece sentada, enquanto o grupo juvenil
se incomoda.
Pode-se dizer que o incômodo foi gerado pela sensação de onipotência perdida
daqueles jovens, principalmente a experimentada pelo que aparentemente era o líder
do grupo. Perdendo força, o jovem se irrita, caminha em direção a Arthur e começa a
socá-lo. Este tenta explicar acerca do distúrbio neurológico que o faz rir, mas o líder
dos meninos não dá espaço para escutá-lo e o objetifica. Arthur é anulado em sua
subjetividade e alteridade, acaba perdendo mais uma vez sua voz.
Winnicott (1986) afirma que amor e ódio são os principais elementos para a
construção das relações humanas, ambos envolvendo agressividade. Já no mundo
psíquico de um bebê existe tanto amor como ódio agindo em plena intensidade. Não
se cura a agressividade madura, uma vez que ela deve ser notada e consentida.
Quando a agressão não é negada, sendo aceita a responsabilidade pessoal, é
aproveitável para que um trabalho de reparação e restituição possa ocorrer. Para a
construção da personalidade, é importante que haja o reconhecimento da própria

180
crueldade e avidez, o que possibilitará que estas sejam dominadas e transformadas
em atividades sublimadas.
Há, portanto, um jogo de forças no interior da personalidade e, quando as forças
destrutivas buscam exercer o domínio, o indivíduo necessita fazer algo para se salvar.
Um dos caminhos é “pôr para fora o seu íntimo”, dramatizando exteriormente o que
se passa em seu mundo interior, representando por si mesmo o papel destrutivo e
provocando seu controle por alguma autoridade externa. O adulto tem por tarefa
impedir que a agressão da criança fuja ao controle, oferecendo uma autoridade
confiante. Quando existe esperança, quanto ao que se vive internamente, o indivíduo
pode usufruir do uso de impulsos instintivos, inclusive os agressivos, para converter o
que era dano na fantasia em bem na vida real. Mas, se a destruição for excessiva e
incontrolável, não resta espaço para o trabalho de reparação e o indivíduo só poderá
negar a propriedade de fantasias más ou dramatizá-las (Winnicott, 1986).
Nesse sentido, vale trazer as considerações de Clarkin, Yeomans e Kernberg
(2006) os quais também se referem à relevância do desenvolvimento infantil na
estruturação da personalidade. Relacionam a Teoria das Relações de Objeto com a
estrutura da personalidade, sugerindo que, no curso do desenvolvimento infantil,
várias duplas internas são criadas baseadas em experiências iniciais. Com respeito
às relações de objeto, as experiências satisfatórias da criança envolvem uma imagem
ideal de um outro carinhoso e perfeito e um self satisfeito, enquanto as experiências
frustrantes envolvem uma imagem totalmente negativa de uma privação ou mesmo
de um outro abusivo e de um self necessitado e desamparado.

Em crianças que evoluem na direção de transtorno de personalidade borderline,


o processo de integração não evolui e permanece uma mais permanente divisão entre
os setores idealizados e persecutórios de experiências com picos (elevada carga)
afetivos e permanecem como estrutura intrapsíquica patológica estável. Dessa forma,
Clarkin ,Yeomans e Kernberg (2006) chamam atenção para a importância dos
cuidados no relacionamento entre a criança e o cuidador no desenvolvimento da
personalidade, e a presença de um trauma tem um profundo efeito no
desenvolvimento da concepção de self e dos outros. Nesse aspecto, os autores
alertam para efeitos do abusos precoces na história de pacientes borderline, e
acrescentam que o cuidador negligente, indiferente, com falhas na empatia e violento
trazem profundos efeitos destrutivos no desenvolvimento (Cicchetti et al,1990)

181
(Clarkin,Yeomans e Kernberg, 2006; Tardivo e Pinto Junior, 2010; Manfre, Tardivo e
Pinto Junior, 2014).

Esta parte do desenvolvimento normal é interrompida pelo ambiente


caracterizado por negligência física e emocional e abuso físico ou sexual. Esse quadro
emergente se assemelha ao de adultos com Organizações de Personalidade
Borderline com difusão de identidade, com preponderância de afeto negativo, pobre
auto regulação do self e dificuldade nas relações de compromisso com os outros
(Tardivo, 2014; Pinto Junior, Tardivo e Althanat, 2016)
No caso de Arthur, esses efeitos no desenvolvimento infantil junto à forma como
o meio social intensifica e aprofunda essas experiências acabam por deixá-lo sem
saída ou alternativa
Retornando ao filme, há uma mudança radical no modo como Arthur irá lidar
com os abusos que lhe acometem. Se, num primeiro momento, ele aceitava
passivamente esse lugar objetificado, passará a se posicionar de forma a conquistar
o controle do que se apresenta. O palhaço retira a arma que ganhara de um colega e
atira em seu agressor, matando-o. Essa mudança que o personagem principal produz
remete ao texto de Freud, “Além do Princípio do Prazer “(1920/2006). Nesse texto,
Freud aborda a vontade de vingança que a criança tem em relação à mãe que o deixa
em casa para trabalhar. Inicialmente, a criança é alvo de uma posição passiva frente
a mãe, contudo, quando a mãe desaparece, a criança, pelas vias da pulsão de morte,
age de forma sádica, vingando-se, por meio da brincadeira, de ter sido deixado sem o
amor que a mãe lhe proporcionava.

Quando a criança passa da passividade da experiência para a


atividade do jogo transfere a experiência desagradável para um
de seus companheiros de brincadeira e dessa maneira, vinga-se
num substituto (Freud, p.12).

Nesse trecho, Freud comenta que há um substituto da mãe, na brincadeira,


para que a criança expresse sua agressividade frente a ausência materna. É nesse
momento que a criança começa a elaborar a perda do amor fusional da mãe,
desenvolvendo recursos simbólicos para tal e criando novas formas de prazer.
A partir da leitura do filme "Coringa" observa-se precariedade nessa
elaboração, uma vez que foi submetido a sucessivas experiências desprazerosas não

182
reconhecidas, fazendo com que a pulsão de morte e o sentimento de desamparo
surgissem de forma avassaladora. Desde cedo, convocado a fazer as pessoas felizes,
Arthur sofreu abusos constantes, sem que houvesse o olhar e a ação de alguém que
interpretasse suas angústias e que o reconhecesse em seu mal-estar. Dessa forma,
Arthur, cujo corpo franzino indicava grande fragilidade e vulnerabilidade frente aos
outros, de uma postura passiva, na qual não se considerava existindo, passa a uma
posição ativa que desencadeia em atos extremamente violentos.
De acordo com Winnicott (1986) é um árduo processo dominar ideias e
excitações agressivas e poder controlá-las sem perder a capacidade para ser
agressivo em momentos apropriados, seja amando ou odiando. A mãe exerce
importante função nos primeiros tempos do bebê para que este adquira formas de
reconhecer que o mundo está situado fora do seu controle mágico. Dessa forma, a
criança se torna capaz de odiar, agredir e gritar ao invés de aniquilar o mundo de
forma mágica.
Pode-se considerar que, por dificuldades no processo de nomeação de
angústias, integração de experiências ruins e boas, até mesmo a falha em ter acesso
à verdade de sua história, Arthur se desenvolveu a partir de precários recursos para
simbolizar suas experiências. Isso retoma o que Freud afirmou sobre a criança que
encontra um objeto substituto para se vingar da ausência da mãe. No caso de Arthur
o substituto não foi um brinquedo, mas uma pessoa real, e a vingança não foi uma
mera brincadeira, mas uma dramatização do seu caótico mundo interno na realidade,
gerando mortes reais. Arthur não tinha apenas um substituto da mãe para se vingar,
ele se vingou da própria mãe. Depois de descobrir as verdades que ela não lhe
contava, como o fato de ter sido adotado e de não ser filho de Thomas Wayne, há um
distanciamento desse laço amoroso com a mãe, uma quebra de confiança, o que
provoca uma sede de vingança e, consequentemente, a morte dela por sufocamento.
Winnicott (1986) afirma que a criança que não apresenta um quadro de
referência e se sente insegura em seu lar se torna angustiada. Se nela houver
esperança, procurará fora de casa a estabilidade que necessita para seu crescimento
emocional. Os comportamentos delinquentes indicam que alguma esperança
subsiste, pois apelam à uma autoridade que estabeleça limites ao excesso de
excitação vivido pelo indivíduo. A transgressão contra a sociedade é uma forma de
restabelecer o controle proveniente do exterior.

183
A menos que se veja em apuros, o delinquente só poderá tornar-
se cada vez mais inibido no amor e, por conseguinte, cada vez
mais deprimido e despersonalizado, tornando-se por fim
totalmente incapaz de sentir a realidade das coisas, exceto a
realidade da violência" (p. 131).

É esse apelo que Arthur, na sua transformação em Coringa, realiza ao social.


Somente com seus atos transgressivos e destrutivos sente que está começando a ser
notado. Arthur tenta exercer o domínio frente a um cenário repleto de incongruências
e hipocrisia e busca, utilizando os termos de Winnicott (1986), "aquele montante de
estabilidade ambiental que suporte a tensão resultante do comportamento impulsivo.
É a busca de um suprimento ambiental que se perdeu” (p.141). É quando ele vai ao
programa que sempre sonhou participar, não com a motivação de antes, mas vai para
se apresentar em sua nova identidade a fim de provocar uma reação naquele cenário
e de denunciar o fracasso dos ideais de respeito, amparo, ordem e segurança
prometidos.
Apenas a partir do reconhecimento de que a completa oposição entre heróis e
vilões é inexistente, uma vez que a vida comporta tanto o que é belo, como também a
condição de falta estrutural, é possível a abertura capaz de interpretar a necessidade
do outro, tomando-o em sua condição humana de desamparo e vulnerabilidade, e de
se relacionar com esse outro, suportando-o enquanto alteridade que possui desejos,
motivações próprias e agressividade. Quando não há essa possibilidade para a
aparição do sujeito, Marin (1999) considera que “se expõe o sujeito a um desamparo
insuportável e que aí só lhe resta na busca do alívio da tensão pulsional, destruir o
outro, aniquilá-lo – ser violento” (p. 85).

Considerações Finais

O filme “Coringa” traz reflexões importantes acerca da subjetividade


contemporânea e a relação com a violência e o desamparo. Através da análise
produzida por meio desse artigo, percebeu-se que a ausência do reconhecimento do
mal-estar atrelado à vida e à construção subjetiva contribui para os casos de violência
social. O “Coringa” denuncia as condutas violentas vivenciadas na sociedade, a qual
pouco questiona a respeito dos motivos e da história dos sujeitos que praticam tais

184
atos. Eles são apenas condenados como “problemas” sociais, sendo a solução
paradoxal proposta, muitas vezes, a de matá-los para acabar com a violência.
O filme se propõe a narrar as origens daquele que é considerado um dos
maiores vilões da história e nos mostrar quem é ele: Arthur Fleck, um palhaço que
sonha em ser comediante, mas que acaba assumindo uma postura violenta. Nessa
situação, livre de julgamentos morais, o diretor do filme valorizou a história de um
homem comum, permitindo que os espectadores pudessem considerar que o palhaço
matador não era só isso, mas que existia uma história por trás dos seus atos.

Referências

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Zahar.

Birman, J. (2001). Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de


subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Cicchetti, D. (1990). Perspectives on the interface between normal and atypical


development. Development and Psychopathology, 2(4), 329-333.

Clarkin J.F., Yeomans F.E., Kernberg O.F. (2006). Psychotherapy for Borderline
Personality. Focusing on Object Relations. Arlington: American Psychiatric Publishing

Freud, S. (2006). Além do Princípio do Prazer, Psicologia de Grupo e Outros Trabalhos


(1920-1922). Vol. XVIII. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização (1930 [1929]). Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud., 21.Rio de Janeiro: Imago.

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[Web Page]. Recuperado de https://forbes.com.br/negocios/2019/11/como-coringa-
chegou-a-us-1-bilhao-em-bilheteria/

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Intrafamily Child Abuse (PIICA) with Brazilian Victims of Sexual Abuse. Journal of
Child and Adolescent Trauma, v. 7, p. 107-110.

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Psicopatologia Fundamental, 2(3), 75-88.

Melman, C. (1931). O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud.

185
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Pinto Junior, A.A. ; Tardivo, L. S. L. P. C. ; Althanat, M. (2016). Children´s Exposure to


Domestic Violence Scale in Brazil (e-book). In: Michell Ortiz. (Org.). Domestic
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Tardivo, L. S. L. P. C. (2014). Volência Doméstica contra crianças e adolescentes no
contexto brasileiro - Discussão a partir de dados da literatura. BIS. Boletim do Instituto
de Saúde (Impresso), v. 15, p. 68-74.

Tardivo, L. S. L. P. C.; Pinto Junior, A.A (2010). . Inventário de frases no diagnóstico de


violência doméstica contra crianças e adolescentes. 1. ed. São Paulo: Vetor Editora
Psico-Pedagógica Ltda., 2010. v. 1
.
Winnicott, D.W. (1986). Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes.

186
14- O QUESTIONÁRIO DESIDERATIVO EM CRIANÇAS COM DIFICULDADES
DE APRENDIZAGEM: ESTUDO SOBRE FORÇA DO EGO20

Marlene Alves da Silva;


Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo

Resumo: As dificuldades de aprendizagem podem ser consideradas como


discrepância educacional significativa entre o potencial intelectual esperado e o nível
de realização das atividades. A avaliação de crianças que apresentam dificuldades
de aprendizagem pode ser realizada por diversos instrumentos psicológicos. Entre
eles, o Questionário Desiderativo (QD), que visa avaliar a força do ego, a qualidade
dos vínculos, com o que a pessoa se identifica e as defesas. Este trabalho teve por
objetivo comparar as respostas do Questionário Desiderativo – QD de crianças com
dificuldades de aprendizagem com os dados de crianças sem essas dificuldades. A
amostra de 60 crianças, sem rebaixamento intelectual, segundo o R-2, foi composta
por conveniência, com participantes entre 6 e 12 anos, de ambos os sexos, de
escolas públicas no interior da Bahia e de São Paulo, divididas em dois grupos,
clínico, composto por 30 crianças com dificuldades de aprendizagem, e 30 crianças
com desempenho escolar adequado, sem tais dificuldades e equiparados em sexo e
idade. Foram realizadas aplicações individuais dos instrumentos: QD e o R-2. Para a
avaliação foram criadas categorias de análise e proposto um índice quantitativo de
força de ego. Esses instrumentos foram usados para favorecer a compreensão dos
aspectos emocionais. Os resultados indicaram mais ansiedade pelos maiores tempos
de reação nas crianças com dificuldades de aprendizagem. Essas crianças obtiveram
menor índice de força do ego, o que confirma a presença de dificuldades emocionais
nesse grupo. Há, assim, evidências de validade concorrente nessa avaliação do
Questionário Desiderativo.

Palavras chaves: Psicodiagnóstico, Técnicas Projetivas, Questionário Desiderativo,


Validade, Dificuldades de aprendizagem.

20
Parte da pesquisa do Pós-doutorado de Marlene Alves da Silva no Departamento
de Psicologia Clínica do IPUSP sob a supervisão de Leila SPC Tardivo

187
1. Introdução
A Psicologia da Educação tem estudado o processo de construção da
aprendizagem em diferentes vertentes, no entanto, as dificuldades de aprendizagem
têm sido alvo do modelo clínico que se baseia na subjetividade e visa analisar as
aptidões e as características de personalidade. Sofre influência dos fatores biológicos,
psicológicos, sociais, pedagógicos e de repertório psicomotor, entre outros (DeLay,
Hanish, Martin, & Fabes, 2016; Mashburn, Justice, Downer, & Pianta, 2009; Moreira,
Fonseca & Diniz, 2000; Schunck, 2012).
A aprendizagem envolve adquirir e modificar conhecimentos, habilidades,
estratégias, atitudes e comportamentos. As pessoas aprendem habilidades cognitivas,
linguísticas, motoras e sociais, e estas ocorrem de muitas formas. Segundo Schunck
(2012), citado por Shuell (1986), não há consenso na definição de aprendizagem,
assim como sobre as causas, processos e consequências.
Nesse sentido, a aprendizagem pode ser definida como uma modificação do
comportamento do sujeito em função da experiência, e pela finalidade e exigências
determinadas pelo processo escolar. E pode ser caracterizada pelo estilo sistemático,
intencional e pela organização das atividades que a desencadeiam, atividades que se
implantam em um quadro de finalidades e exigências determinadas pela instituição
escolar.
Schunck (2012) aponta três critérios importantes para aprendizagem: aprender
envolve mudança, perdura ao longo do tempo e ocorre por meio da experiência.
Assim, a aprendizagem é um processo de constante mudança e de forma duradoura
no comportamento da pessoa, e essa mudança é o resultado de uma prática ou de
outras formas de experiência. Na visão do autor, a aprendizagem é o processo
contínuo de mudanças baseado nas experiências vividas. Sendo assim, as pessoas
aprendem quando se tornam capazes de fazer algo diferente, portanto, o processo de
aprendizagem é inferencial. Não se observa o aprendizado diretamente, mas sim seus
resultados que são avaliados com base no que as pessoas dizem, escrevem e fazem.
O segundo critério se refere à situação de a aprendizagem perdurar ao longo do
tempo, o que exclui mudanças comportamentais temporárias (Schunck, 2012).
O terceiro critério diz respeito à aprendizagem ocorrer por meio da experiência,
da prática ou da observação de outros. Esse critério exclui mudanças
comportamentais que são determinadas pela hereditariedade, alterações
maturacionais em crianças, transtornos neurológicos e/ou psiquiátricos. Vale ressaltar

188
que as pessoas podem ser geneticamente predispostas a agir de determinadas
maneiras, mas o desenvolvimento dos comportamentos depende do ambiente. A
linguagem infantil é fruto do ensino e das interações com os pais, professores e outras
crianças (DeLay, Hanish, Martin, & Fabes, 2016; Mashburn, Justice, Downer, & Pianta,
2009; Silva; Oliveira, & Ciasca, 2017; Schunck, 2012).
Pode-se considerar as dificuldades de aprendizagem como uma discrepância
educacional significativa entre o potencial intelectual esperado e o nível de realização
das atividades. A fase de desenvolvimento da criança dos seis aos onze anos tem
uma estreita relação entre produtividade escolar e adaptação afetivo-social e,
consequentemente, com repercussões em sua saúde mental.
Segundo Drowet (2001), dificuldades de aprendizagem são diferentes dos
distúrbios de aprendizagem, pois os distúrbios são problemas de ordem neurológica,
com perdas físicas, sensoriais, emocionais e intelectuais. Enquanto as dificuldades de
aprendizagem podem ocorrer em crianças que não apresentam nenhum destes
problemas citados, e sim algum atraso escolar, em alguma época da vida, ou questões
de outra ordem (emocional, social etc.).
Ainda, as dificuldades emocionais influenciam em problemas acadêmicos e
esses, por sua vez, afetam os sentimentos e os comportamentos, como afirmam
Roeser e Eccles (2000). Tais dificuldades podem ser expressas de forma internalizada
- baixa autoestima e autoeficácia - ou externalizada - déficit de habilidades sociais,
problemas de comportamento, comportamentos antissociais ou inadaptação social,
ausência do desenvolvimento de consciência fonológica, expectativas negativas dos
professores (Elias, 2003; Motta, 2003 e Bianchi, 2005) e, ainda, um ambiente familiar
repleto de adversidades (Ferreira & Marturano, 2002).
Estudos apontam que crianças que são tímidas ou que têm baixa atenção ou
controle inibitório têm maior probabilidade de manter relações dependentes com os
professores (Ewing & Taylor, 2009;), assim como, são mais propensas a ter resultados
acadêmicos mais pobres (Rudasill & Rimm- Kaufman, 2009; Rudasill, & Acar, 2019).
No entanto, as relações criança-professor podem ser favoráveis às crianças que
encontram o ambiente de aprendizagem formal, o escolar (Schmitt, Pentimonti, &
Justice, 2012).

189
O Questionário Desiderativo
O Questionário Desiderativo como técnica projetiva que avalia o grau de
estruturação do ego, com base no referencial psicodinâmico e constituído por
conjunto específico de questões a serem respondidas livremente pelo examinando,
avalia a preservação e a flexibilidade egóica, seus pilares de sustentação, defesas
psíquicas, aspectos afetivos e relações objetais (Nijamkim, & Braude, 2000). Foi
proposto inicialmente por dois psiquiatras espanhóis, Pigem e Córdoba, em 1946, e
teve modificações em sua forma de aplicação, na Argentina em 1956, realizadas pelo
professor Jaime Bernstein que fundamentou sua proposição numa concepção teórica
psicanalítica. Essa técnica é composta de seis perguntas, sendo três escolhas e três
rejeições que comtemplam diferentes níveis de preservação da vida, passando pelos
reinos animal, vegetal e inanimado (Nijamkim, & Braude, 2000).
Nas catexes positivas, o respondente utiliza mecanismos para se manter
integrado, sendo escolhidos elementos ligados ao que o ego deseja ser. As catexes
negativas se referem às repostas que revelam o que o avaliado teme acontecer caso
as defesas falhem, e os conteúdos que projetivamente ele se defende. A técnica
propõe que a pessoa fantasia não ser uma pessoa, o que se constitui em possibilidade
simbólica de morrer. (A pergunta básica feita: se você não pudesse ser uma pessoa,
o que mais gostaria de ser e por quê? e em seguida o que menos). Dessa forma,
destaca as forças defensivas e torna-se possível avaliar como o sujeito organiza sua
identidade – seus mecanismos de defesa- para manter sua estrutura.
A partir do enfoque psicanalítico e com as contribuições de Klein (1946/1963),
o QD visa obter informações a respeito de como são os objetos introjetados; ou seja,
os símbolos aceitos expressam as imagens benevolentes e benéficas associadas a
um bom objeto (protetor, doador, gratificante), e os símbolos rejeitados, as imagens
persecutórias associadas ao objeto mau (frustrador, cruel). Pode-se também verificar
como a pessoa utiliza as defesas, especialmente a dissociação. Por esse enfoque, o
conjunto de respostas pode ser considerado como uma amostra das fantasias
inconscientes e das relações de objeto do sujeito (Grassano, 1997).
Nijamkim e Braude (2000) pontuam que este teste se revela bastante sensível
para a avaliação das identificações e defesas predominantes em cada sujeito.
Palacios (2016) que utilizou o Questionário Desiderativo em um estudo de caso clínico
de um menino de 11 anos com dificuldades de aprendizagem. O teste projetivo foi
aplicado no processo psicodiagnóstico e posteriormente reaplicado no final do

190
processo terapêutico, que constou de 50 sessões. Os dados foram analisados por
meio do referencial psicanalítico freudiano/kleiniano e os resultados mostraram que o
teste foi eficaz para a exploração e análise das áreas do desenvolvimento do aparelho
psíquico infantil, colaborando, assim, para o delineamento das intervenções clínicas
necessárias durante o processo psicoterapêutico do paciente.

II JUSTIFICATIVA e OBJETIVO
Este estudo faz parte de um projeto mais amplo da supervisora responsável,
Leila Tardivo, aprovado pelo CNPq, para realização, a partir de março de 2018 com a
aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos do IPUSP. Trata-se
do projeto O QUESTIONÁRIO DESIDERATIVO NO BRASIL: FIDEDIGNIDADE,
VALIDAÇÃO E RESPOSTAS MAIS FREQUENTES Processo (CNPq): 309809/2017-
7.
O presente estudo tem como objetivo estudar as caraterísticas de personalidade,
em especial, a força de ego de crianças com dificuldades de aprendizagem. Ainda,
verificar as respostas mais frequentes para QD em crianças e adolescentes de 6 a 12
anos de idade com e sem dificuldade de aprendizagem (consideradas como grupo
controle).

III. MÉTODO
1 Caraterização da Amostra
Participaram desta pesquisa 60 crianças, ambos os sexos, com idade de 06 a 12
anos, estudantes de Escolas Públicas da Bahia e de São Paulo. Todos sem
rebaixamento intelectual segundo o R-2. A amostra foi dividida em dois grupos: G-1-
Grupo Clínico, 30 crianças com dificuldades de aprendizagem e G2- Grupo Controle:
30 crianças com desempenho compatível para sua idade e grau de escolaridade. A
amostra foi composta por conveniência. O critério de inclusão no G 1 e 2 foi por
indicação dos professores e da escola. Os grupos são semelhantes em idades e sexo.
A tabela 1 apresenta a distribuição da amostra.

191
Tabela 1 – Distribuição dos participantes quanto a Sexo, Idade e Escolaridade
Dificuldade de
Característica Grupo Controle P-value
aprendizagem
Idade 6 1 (3,3%) 1 (3,3%) 0,9866
7 6 (20,0%) 6 (20,0%)
8 7 (23,3%) 6 (20,0%)
9 4 (13,3%) 5 (16,7%)
10 3 (10,0%) 4 (13,3%)
11 4 (13,3%) 5 (16,7%)
12 5 (16,7%) 3 (10,0%)
Sexo Feminino 10 (33,3%) 11 (36,7%) 1,0000
Masculino 20 (66,7%) 19 (63,3%)
Escolaridade 1 1 (3,3%) 1 (3,3%) 0,5493
2 8 (26,7%) 8 (26,7%)
3 6 (20,0%) 8 (26,7%)
4 4 (13,3%) 4 (13,3%)
5 3 (10,0%) 6 (20,0%)
6 6 (20,0%) 1 (3,3%)
7 2 (6,7%) 2 (6,7%)
Total Geral 30 (100,0%) 30 (100,0%)

Observa-se que para todas as variáveis estudadas houve pouca diferença entre
os grupos e na variável Escolaridade, o grupo com Dificuldade de aprendizagem com
um percentual um pouco maior em 3º e em 5º anos do que o Controle, mas a diferença
observada não foi significante (p-value = 0.5493).

2. Instrumentos
- Questionário Desiderativo

- R-2: Teste Não Verbal de Inteligência para crianças (Rosa & Alves, 2018).

3. Procedimentos

Foi feito o contato com a instituição escolar; os TCLEs foram assinados pelos
pais e/ou responsáveis. As aplicações foram individuais.

AVALIAÇÃO

Para a análise foram criadas folhas de avaliação, onde os critérios de presença


(1) e ausência (0) são preenchidos em espaços para todas as categorias. Foram
avaliadas as respostas, com os valores correspondentes a cada tipo de resposta,
conforme são descritas a seguir as pontuações por categorias.

192
IV.RESULTADOS
Serão apresentadas as tabelas com todos os resultados e descritas as que
tiverem diferenças significantes (ou uma tendência nessa direção)

1. Aspectos Gerais Desiderativo

São avaliados os aspectos gerais do Desiderativo: Teste Completo,


Perseveração (resposta do mesmo reino) e Resposta Antropomórfica (semelhante a
humano). Apresentam-se na Tabela 2. as distribuições dos dois grupos, pelo Teste
Exato de Fisher:

Tabela 2.– Distribuição dos participantes quanto às respostas gerais do Desiderativo


Grupo
Dificuldade de
Característica Classe Controle p-value
aprendizagem
Teste Completo Não 2 (6,7%) 5 (16,7%) 0,4238
Sim 28 (93,3%) 25 (83,3%)
Perseveração Catexia Negativa 4 (13,3%) 1 (3,3%) 0,5621
Catexia Positiva 3 (10,0%) 5 (16,7%)
Catexia Positiva e Negativa 8 (26,7%) 7 (23,3%)
Nenhuma 15 (50,0%) 17 (56,7%)
Resposta Antropomórfica Catexia Negativa 0 (0,0%) 1 (3,3%) *0,0165
Catexia Positiva 0 (0,0%) 6 (20,0%)
Catexia Positiva e Negativa 1 (3,3%) 0 (0,0%)
Nenhuma 29 (96,7%) 23 (76,7%)

Teste Completo: nota-se nos dois grupos poucos casos de testes incompletos, com o
grupo controle um pouco superior, sem diferença significativa (p-value=0.4238)
Resposta Antropomórfica: nota-se o grupo Dificuldade com um percentual maior de
Catexia Positiva e menor de nenhuma, sendo os dois grupos significativamente
diferentes (p-value=0.0165).
Nota-se nesses aspectos inícios de maior dificuldade em atender ao esperado no teste
e, uma maior fraqueza de ego,

Foram avaliadas as escolhas dos reinos e a sequência destes em relação aos


grupos.Na

Tabela 3. apresenta-se a distribuição dos participantes quanto ao reino


escolhido e a sequência de escolha.

193
Tabela 3. – Distribuição dos participantes quanto às escolhas de reinos

Grupo
Dificuldade de
Característica Classe Controle p-value
aprendizagem
Reino 1+ Animal 29 (96,7%) 26 (92,9%) 0,6053
Inanimado 0 (0,0%) 0 (0,0%)
Vegetal 1 (3,3%) 2 (7,1%)
Reino 2+ Animal 1 (3,3%) 1 (3,3%) 0,2267
Inanimado 14 (46,7%) 8 (26,7%)
Vegetal 15 (50,0%) 21 (70,0%)
Reino 3+ Animal 0 (0,0%) 2 (6,7%) *0,0336
Inanimado 16 (53,3%) 22 (73,3%)
Vegetal 14 (46,7%) 6 (20,0%)
Reino 1- Animal 10 (33,3%) 17 (56,7%) *0,0007
Inanimado 16 (53,3%) 5 (16,7%)
Vegetal 4 (13,3%) 8 (26,7%)
Reino 2- Animal 11 (37,9%) 5 (17,2%) 0,0946
Inanimado 10 (34,5%) 8 (27,6%)
Vegetal 8 (27,6%) 16 (55,2%)
Reino 3- Animal 8 (28,6%) 8 (28,6%) *0,0002
Inanimado 4 (14,3%) 17 (60,7%)
Vegetal 16 (57,1%) 3 (10,7%)
Sequência Positiva Animal/Inanimado/Vegetal 14 (46,7%) 5 (17,9%) *0,0450
Animal/Vegetal/Inanimado 15 (50,0%) 21 (75,0%)
Vegetal/Animal/Inanimado 1 (3,3%) 1 (3,6%)
Vegetal/Inanimado/Animal 0 (0,0%) 1 (3,6%)
Sequência Negativa Animal/Inanimado/Vegetal 6 (21,4%) 3 (11,1%) *0,0003
Animal/Vegetal/Inanimado 4 (14,3%) 13 (48,1%)
Inanimado/Animal/Vegetal 10 (35,7%) 0 (0,0%)
Inanimado/Vegetal/Animal 4 (14,3%) 3 (11,1%)
Vegetal/Animal/Inanimado 0 (0,0%) 4 (14,8%)
Vegetal/Inanimado/Animal 4 (14,3%) 4 (14,8%)

 Em 2+ e 3+ observam-se algumas diferenças, com o grupo Dificuldade


com uma escolha em 2+ maior para Vegetal e em 3+ maior Animal,
para 3+ houve diferença significativa entre os grupos (p-value=0.0336).
 Nota-se nas respostas negativas uma maior diferença entre os grupos.
 Para a Sequência Positiva, observa-se a maior prevalência nas
Animal//Vegetal/Inanimado nos dois grupos, mas o com Dificuldades
com maior prevalência sendo que a diferença entre eles foi significativa
(p-value=0.0450).

194
 Para a Sequência Negativa, observa-se maior mescla das sequências
e houve para o Dificuldade o maior percentual na mesma escolha do
Positivas, que foi Animal/Vegetal/Inanimado, mas agora somente com
48.1%. Já para o Controle a mais frequente foi
Inanimado/Animal/Vegetal. A diferença entre eles foi significativa (p-
value=0.0003).

CATEGORIAS ESPECÍFICAS PARA AS RESPOSTAS:

Abaixo são descritos resultados às categorias quando as diferenças são


significativas.

3.Respostas por Reinos


Foram avaliados os aspectos: Adequação à consigna, Qualidade da resposta,
Dissociação, Identificação Projetiva, Racionalização, Perspectiva vincular da resposta
e Tempo de reação para cada reino.

Tabela 4. – Distribuição dos participantes quanto à Adequação à consigna


Grupo
Dificuldade de
Resposta Reino Nível Controle p-value
aprendizagem
Positiva Animal Adequada 30 (100,0%) 25 (86,2%) 0,0522
Inadequada 0 (0,0%) 0 (0,0%)
Por indução 0 (0,0%) 4 (13,8%)
Inanimado Adequada 23 (76,7%) 21 (70,0%) 0,7710
Inadequada 0 (0,0%) 0 (0,0%)
Por indução 7 (23,3%) 9 (30,0%)
Vegetal Adequada 20 (66,7%) 14 (48,3%) 0,1923
Inadequada 0 (0,0%) 0 (0,0%)
Por indução 10 (33,3%) 15 (51,7%)
Negativa Animal Adequada 21 (72,4%) 20 (66,7%) 0,7787
Inadequada 0 (0,0%) 0 (0,0%)
Por indução 8 (27,6%) 10 (33,3%)
Inanimado Adequada 28 (93,3%) 21 (70,0%) *0,0419
Inadequada 0 (0,0%) 1 (3,3%)
Por indução 2 (6,7%) 8 (26,7%)

 Positiva/Animal: a maioria foi adequada, e o Controle com maior

195
percentual. Não houve nenhuma resposta Inadequada. A diferença
entre os grupos não foi significativa, mas o resultado ficou muito
próximo da significância, indicando uma tendência (p-value=0.0522).
 Positiva/Inanimada: notam-se os grupos bem semelhantes com um
percentual maior de adequada e a diferença não sendo significativa (p-
value=0.7710).
 Positiva/Vegetal: nota-se o grupo Dificuldade com um percentual um
pouco maior de Por indução, mas a diferença entre os grupos não foi
significativa (p-value=0.1923).
 Negativa/Inanimada: nota-se o grupo Dificuldade com um percentual
um pouco maior de Por indução, sendo significativamente diferente (p-
value=0.0419).

4.Qualidade da resposta

Na Tabela apresenta-se a distribuição dos participantes quanto à qualidade


da resposta para cada reino. (pelo teste Exato de Fisher).

Tabela 5 – Distribuição dos participantes quanto à Qualidade da resposta


Grupo
Dificuldade de
Resposta Reino Nível Controle p-value
aprendizagem
Positiva Animal Bizarro 0 (0,0%) 0 (0,0%) *0,0303
Convencional 19 (63,3%) 26 (89,7%)
Original 11 (36,7%) 3 (10,3%)
Inanimado Bizarro 0 (0,0%) 0 (0,0%) *0,0082
Convencional 12 (40,0%) 23 (76,7%)
Original 18 (60,0%) 7 (23,3%)
Vegetal Bizarro 0 (0,0%) 0 (0,0%) 0,0575
Convencional 20 (66,7%) 26 (89,7%)
Original 10 (33,3%) 3 (10,3%)
Negativa Animal Bizarro 0 (0,0%) 0 (0,0%) 0,3334
Convencional 22 (75,9%) 26 (86,7%)
Original 7 (24,1%) 4 (13,3%)
Inanimado Bizarro 0 (0,0%) 4 (13,3%) *0,0334
Convencional 18 (60,0%) 21 (70,0%)
Original 12 (40,0%) 5 (16,7%)
Vegetal Bizarro 0 (0,0%) 0 (0,0%) 0,1379

196
Convencional 17 (60,7%) 22 (81,5%)
Original 11 (39,3%) 5 (18,5%)

 Negativa/Vegetal: nota-se o grupo Dificuldade com um percentual um


pouco maior de Convencional e menor de Original, mas a diferença
entre os grupos não foi significativa (p-value=0.1379).
 Positiva/Animal: nota-se que a maioria foi Convencional, mas o
Controle com um percentual maior de Original que o Dificuldade, sendo
diferença entre os grupos significativa, (p-value=0.0303).
 Positiva/Inanimada: nota-se o grupo Dificuldade com um percentual
menor de Original que o Controle sendo a diferença significativa (p-
value=0.0082).
 Positiva/Vegetal: nota-se o grupo Dificuldade com um percentual menor
de Original que o Controle sendo a diferença não significativa, mas
muito próximo do valor de significância indicando uma tendência (p-
value=0.0575).
 Negativa/Animal: nota-se os grupos semelhantes com maior percentual
em Convencional e a diferença entre eles não significativa (p-
value=0.3334).
 Negativa/Inanimada: nota-se o grupo Dificuldade com um percentual
menor de Original que o Controle e com algumas respostas Bizarro. A
diferença foi significativa (p-value=0.0334).

Nos itens identificação projetiva e racionalização e perspectiva vincular da resposta


não houve diferença significativa e em todos os reinos os três grupos foram bem
semelhantes

8.Tempo de reação

Tabela contém as médias e desvio padrão dos participantes quanto ao tempo


de reação, teste não-paramétrico de Wilcoxon.

197
Tabela 6– Médias e Desvios padrão para Tempo de reação
Grupo
Dificuldade de
Resposta Reino Controle p-value
aprendizagem
Positiva Animal 7,1±6,8 17,4±12,9 *<,0001
Inanimado 13,9±11,1 20,6±15,3 0,0533
Vegetal 10,1±11,1 20,0±9,5 *<,0001
Negativa Animal 11,9±12,3 15,9±12,9 *0,0354
Inanimado 12,3±13,9 19,5±11,7 *0,0041
Vegetal 12,9±14,9 20,2±16,4 *0,0163

Por eles nota-se que:


 Os tempos médios de reação do grupo Dificuldade foram em todos os casos maiores
que o do grupo Controle
 Em praticamente todos os casos houve diferença significativa (p-value<0,05) entre
os grupos. Somente para Positiva/Inanimado o p-value foi >0,05 (=0.0533), mas
próximo ao valor de significância, indicando tendência de diferença.

9. índice de Força de Ego


Foi criado um índice de força de ego, considerando-se a teoria que
fundamenta o instrumento. De forma que as categorias que denotam mais
desenvolvimento, ou seja, “melhor resposta” ganha mais pontuação, como se pode
ver na tabela a seguir.

Tabela 7. Valores de cada categoria (Aspectos gerais e Categorias Específicas) para o


cálculo de Força de Ego
Categoria Resposta pontuação
Teste completo Sim 1
não 0
ASPECTOS Perseveração Sim 0
GERAIS não 1
Resposta antropomórfica Sim 0
não 1
Adequação à consigna Adequada 2
Inadequada 1
Por indução 0
Qualidade da resposta Convencional 1
(símbolo e da Original 1,5
CATEGORIAS racionalização): Bizarra 0
ESPECÍFICAS

198
Dissociação Adequada 1
Inadequada 0
Identificação Projetiva: Símbolo estruturado 1
Símbolo não estruturado 0
Racionalização: Adequada 1
Inadequada 0
Perspectiva vincular da Narcísica 0
resposta: Inclui o outro 1

A partir das análises feitas e descritas anteriormente, foram feitos os cálculos e


apresentados: nos aspectos gerais do QD e nas categorias que são específicas para
cada escolha/ ou rejeição.

Tabela 8. Médias e Desvios padrão para Pontuações das categorias relativas aos
aspectos gerais e aos específicos
Grupo

Dificuldade de
Resposta Controle p-value
aprendizagem

Pontos 1+ 7,0±0,7 6,8±0,4 0,0077

Pontos 2+ 6,5±1,1 6,5±0,8 0,1705

Pontos 3+ 6,5±1,1 6,5±0,8 0,8245

Pontos 1- 6,8±0,8 6,7±0,7 0,1616

Pontos 2- 6,5±1,2 6,7±0,6 0,6788

Pontos 3- 6,5±1,0 5,8±1,6 0,0708

Soma Específicos 40,1±3,9 38,9±2,4 0,0056

Pontos Gerais 3,1±1,0 3,2±1,0 0,6311

Pontuação total 43,2±4,0 42,1±3,0 0,0500

o Para a Categoria 1+ houve diferença significativa entre os dois grupos (p-


value=0.0077) com o Dificuldade com um valor médio um mais baixo que o
Controle.
 Soma das Categorias Específicas: o grupo Dificuldade com um valor menor que o
Controle, com diferença significativa (p-value=0.0056).
 Pontuação total: o grupo com dificuldade com um valor menor que o Controle, com
diferença significativa, (p-value=0.0500).

199
V - DISCUSSÃO
Importante destacar que muitas comparações entre os dois grupos: de crianças
com dificuldades de aprendizagem e crianças sem essa condição na avaliação no QD
não foram significantes. Pode-se sugerir a necessidade de ampliação da amostra, pois
muitas categorias em crianças de 6 a 12 anos, sendo 30 em cada grupo pode não ter
sido um número suficiente para evidenciar os resultados de forma mais evidente. Até
porque houve casos em que se observa uma tendência.

Dessa forma, pode-se verificar que quando houve diferença ou tendência, essa
sempre indicou o grupo clínico maiores indícios de dificuldades no QD. Ou seja, é
possível observar que as dificuldades emocionais quando se evidenciaram foram mais
presentes entre as crianças com problemas de aprendizagem como apontaram
Roeser e Eccles (2000).

Assim se confirma que as crianças sem dificuldades de aprendizagem são mais


capazes de responder ao teste todo, ou seja, conseguem responder às positivas e
negativas, havendo mais testes completos, que evidenciam um melhor uso de
mecanismos de defesa e mais evoluídos. Aqui se encontra um dado semelhante ao
obtido por Palacios (2016).

Também evidenciando dificuldades de responder ao QD, com um número maior


de respostas antropomórficas, ouse já aquelas que são semelhantes ao humano,
refletindo mais dificuldade no emprego de defesas mais evoluídas, que devem ser
mobilizadas para que o participante seja capaz de dar respostas mais simbólicas e
não humanas atendendo à solicitação do QD.

Ainda revelando mais dificuldades de responder ao QD entre as crianças com


dificuldades de aprendizagem, se encontram mais respostas por indução, ou seja,
maior necessidade de apoio para dar conta da tarefa proposta pelo QD. De certa
forma, esses aspectos refletem a necessidade de essas crianças em terem na escola
e no professor apoio e um ambiente que lhes permita se desenvolver (Schmitt,
Pentimonti, & Justice, 2012).
Confirmando a maior maturidade e liberdade para responder, se refere à maior
presença de repostas originais entre as crianças do grupo controle. Por outro lado, as
crianças com dificuldades de aprendizagem apresentam menos testes completos,
necessitam de mais apoio (mais respostas por indução), quando conseguem

200
responder, o fazem dando respostas mais convencionais, o que reflete uma maior
rigidez que as crianças do grupo controle. Tais categorias respondem a uma maior
possibilidade de responder ao QD, de forma mais evoluída considerando Braude e
Nijamkim (2000), Grassano (1986); e Pinto, Rosa, Chave, & Tardivo (2018). Também
no estudo de Pinto Junior e Tardivo (2018), que encontraram sinais de mais
dificuldades em grupo de adolescentes infratores quando comparados ao grupo
controle (sem essa condição).
Outro dado importante nesta investigação que evidencia a maior dificuldade das
crianças com problemas de aprendizagem se refere ao tempo de reação – sempre
maior no grupo com dificuldades de aprendizagem. Dessa forma, essas crianças
necessitaram mais tempo para elaborar suas respostas, o que é indicativo da
presença mais intensa de ansiedade (Nijamkim, & Braude, 2000). Trata-se assim de
indício da presença de problemas emocionais nesse grupo o que interfere no
desenvolvimento das habilidades acadêmicas.
Finamente, o resultado mais relevante nessa investigação, que confirma a
maior dificuldade emocional das crianças com dificuldades de aprendizagem, se
podendo considerar, nesse grupo (onde o nível intelectual é compatível com a idade)
que se trata de sintoma de problemas emocionais – é o índice de força do ego. Foram
obtidos índices menores do índice de força de ego, proposto por Tardivo e Pinto Junior
(2018), tanto nas categorias específicas, como na soma total (sendo esse o mais
relevante.
Assim, o Questionário Desiderativo como técnica projetiva que avalia o grau
de estruturação do ego, com base no referencial psicodinâmico (Nijamkim, & Braude,
2000), evidenciou nesse estudo a maior fragilidade do ego das crianças com
dificuldades de aprendizagem. Trata-se também de evidência de validade concorrente
do QD com essa forma de avaliação, em especial para esse resultado, que se refere
à diferença entre os grupos com e sem dificuldades de aprendizagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foram alcançados os objetivos propostos para o estudo Vale mencionar que
em diversas categorias de análise não foram encontradas diferenças entre os dois
grupos. Importante ampliar a amostra já que em muitos casos foram notadas
tendências. Porém, quando houve diferenças, essas sempre indicaram mais
dificuldades no grupo clínico.

201
A presença de mais ansiedade pelo maior tempo de reação entre as crianças
com dificuldades de aprendizagem E principalmente, o índice de força de ego menor
no QD como um todo, nesse grupo confirma a presença de dificuldades emocionais
nas crianças que se ressentem de não conseguir aprender como os demais de sua
idade. Tem-se assim evidência de validade concorrente dessa forma de avaliação no
QD entre os grupos de crianças com e sem dificuldades de aprendizagem
Confirma-se, portanto, que dificuldades de aprendizagem em crianças sem
rebaixamento intelectual, podem ser manifestações de problemas emocionais, o que
requer da família e da escola cuidado e amparo para que essas crianças possam se
desenvolver com saúde e qualidade.

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204
15-DESENHO-ESTÓRIA COM TEMA (DE-T) NA EXPRESSÃO E COMPREENSÃO
DE ANGÚSTIAS NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

Malka David Alhanat1


Daniel Fernandes Cardoso2
Tânia Mara Martinez da Silva3
Helena Rinaldi Rosa4
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo5

Resumo: O Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema (DE-T) ou Desenhos


Temáticos é ferramenta projetiva valiosa que se insere como mediador de vivências,
que, de acordo com Tardivo (2007), favorece a comunicação da dor e do sofrimento
em contextos diversos. São descritos nesse trabalho duas versões temáticas de
aplicação, realizada em contexto escolar, em participantes de diferentes fases do
desenvolvimento. As temáticas propostas foram: o “Medo”, para o 3º ano (8 e 9 anos),
representando a infância; e o “Adolescente em São Paulo Hoje”, para o 7º ano (12 e
13 anos), representando a adolescência. Nos dois casos, os estudantes participaram
de oficinas psicológicas realizadas na escola, onde cada um dos temas foi proposto
com objetivo de mobilizar e melhor compreender angústias dessas fases. Os
instrumentos utilizados durante a oficina foram o DE-T e a confecção de cartazes com
intuito de suscitar recursos nos estudantes para lidarem com suas angústias. Foram
levantadas a principais temáticas para cada faixa etária. Os achados do estudo
revelaram que no 3º ano apareceram angústias mais relacionadas criaturas
fantasiosas, e no 7º ano, angústias mais relacionadas a temas urbanos. Conclui-se
que o DE-T foi útil para trazer tais temas para discussão, favorecendo participação
dos adolescentes nas oficinas psicológicas, mostrando-se importante para
conhecimento e compreensão da infância e adolescência, sendo seus achados de
importância para fomentar programas de prevenção em saúde mental adequadas às
diferentes fases de desenvolvimento.

Palavras-chave: Adolescência; Infância; Oficinas Psicológicas; Procedimento de


Desenhos-Estória com Tema.
1 Mestranda do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Saúde
Mental e Psicologia Clínica Social – APOIAR – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(IPUSP).

205
² Psicólogo.Membro do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Social – APOIAR – Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)
³Mestranda do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Saúde
Mental e Psicologia Clínica Social – APOIAR – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(IPUSP).
Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
Coordenadora do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social – APOIAR.
Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
Coordenadora do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social – APOIAR.

Tema / Introdução

O Procedimento Desenhos-Estórias (PD-E) (Trinca, 2013) é uma técnica de


investigação clínica, desenvolvido, no início da década de 70, por Walter Trinca
(1997), que tem por base os desenhos livres e o emprego do recurso de contar
estórias, com o objetivo de obter informações sobre a personalidade dos sujeitos em
aspectos que não são facilmente detectáveis pela entrevista psicológica. Constitui-se
na reunião de processos expressivos-motores (entre os quais se inclui o desenho livre)
e processos aperceptivos-dinâmicos (verbalizações temáticas). Inclui, ainda,
associações dirigidas do tipo "inquérito". Conforme Trinca (1976), solicita-se a
realização seguida de cinco desenhos livres, cada qual sendo estímulo para uma
estória, associada livremente logo após a realização de cada desenho. Tendo
concluído cada par desenho-estória, o examinando segue fornecendo
esclarecimentos e o título. Lápis grafite e de cor são espalhados aleatoriamente sobre
a mesa. O objetivo é conseguir 5 unidades (desenho + história + inquérito + título) em
até duas sessões.

O Procedimento de Desenhos-Estórias (PD-E) foi ampliado por Aiello-Vaisberg


(1997), que desenvolveu o Procedimento de Desenhos-Estórias com Temas, através
do qual se solicita um desenho sobre uma temática específica e, posteriormente, o
desenho é usado como estímulo para a produção de uma estória. O PD-E passou a
ser estratégia investigativa importante em pesquisas sobre imaginários coletivos, tanto
em entrevistas individuais como coletivas. Tendo por vocação configurar uma forma
especial de entrevista, em que um ambiente propício para abordagem de concepções
imaginativas fica facilitado, o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema serve

206
de inspirador para o uso de outros mediadores, bem como permite que diversas
temáticas possam ser estudadas.

Fundamentado teoricamente pela Psicanálise, pelas técnicas projetivas e pela


entrevista clínica, o Procedimento foi elaborado por Walter Trinca, em 1972,
objetivando a investigação clínica da personalidade. Rosa (2013) clarifica que este
instrumento não é um teste psicológico, mas sim um auxiliador no diagnóstico e
também possui uma função psicoterapêutica interventiva, que permite a elaboração
dos conflitos durante a elaboração dos desenhos-estórias, com um baixo custo e
aplicado em qualquer idade e população. O DE-T se constitui numa unidade gráfico
verbal, indissociada, formando um novo produto a partir do desenho e da sua
associação verbal (Tardivo, Alhanat, Leal & Takiuti, 2016). Estudos sobre oficinas e/ou
imaginários coletivos com DE-T (Bergel, 2004; Tardivo, 2007; Gallo-Beluzzo, Corbett
& Aiello-Vaisberg, 2010; Ambrosio, Fialho & AielloVaisberg, 2010; Barcelos, Cia &
Aiello-Vaisberg, 2011; Luz et al, 2011; Simões, Riemenschneider & Aiello-Vaisberg,
2012; Passarini, Colacique & Tardivo, 2012) reforçam a capacidade investigativa e
terapêutica delas.

Assim, o DE-T surge como ferramenta valiosa e prática para investigação e


compreensão de experiências emocionais de estudantes de diferentes faixas etárias
de uma escola pública do estado de São Paulo, podendo servir de norteador para
reflexão e discussão de temáticas importantes que assolam crianças e adolescentes
da rede pública.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera criança a


pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e
dezoito anos de idade, sendo referência, desde 1990, para criação de leis e programas
que asseguram os direitos desta população. Em vista dessa classificação, os
estudantes do 3º ano que participaram da oficina representam a infância, enquanto os
alunos do 7º ano, a adolescência.

Frente a isso, o contato com atividades expressivas, como aquelas propostas


por oficinas destinadas ao público infantil e adolescente, torna-se de fundamental
importância, já que se configura como meio para a partilha de questões, vivências e
questionamentos, com vistas à criação de um espaço de escuta e conversa entre
pares, servindo como ferramenta de auxílio para reflexão de suas identidades,

207
individuais e coletivas. Tal tipo de proposta possibilita ao jovem a observação do meio
em que se encontra inserido e de si mesmo, estimulando reflexões sobre as questões
iminentes em que estão sujeitos, permitindo um protagonismo acerca de seu contexto.

As oficinas podem adquirir diferentes configurações e adotar o uso de


instrumentos e materiais diversos. Para Trinca (1997), crianças e adolescentes
podem possuir recursos limitados para uma representação simbólica verbal, portanto,
o desenho surge como um importante aliado no trabalho com este público, permitindo
a obtenção de diversas informações sobre seus aspectos subjetivos. Dessa forma, a
oficina também pode assumir um caráter terapêutico, apresentando-se como um
dispositivo do fazer clínico. Sendo a psicoterapia, de acordo com a teoria
winnicottiana, uma forma especializada de brincar dotada de potencial mutativo, a
oficina terapêutica constitui-se a partir de um enquadre diferenciado, mediado por uma
materialidade, o brincar, como uma realidade e uma possibilidade de expressão
(Aiello-Vaisberg; Machado, 2003).

Objetivos

Apresentar o Procedimento DE-T como valiosa ferramenta projetiva para a


mobilização e compreensão das angústias nas diferentes fases de desenvolvimento,
infância e adolescência.

Relatos de Experiência

Foram realizadas oficinas psicológicas com adolescentes do ensino


fundamental do 3º e do 7º ano de uma escola pública da cidade de São Paulo. O 1º
encontro teve a duração de 1 hora. Os instrumentos utilizados foram o DE-T e a nos
demais 4 encontros cartazes e pinturas sobre os temas levantados no 1º encontro. O
DE-T foi aplicado coletivamente, de acordo com as orientações e instruções
oferecidas por Aiello-Vaisberg (1997) e Tardivo (2013).

No 3º ano, com as folhas de sulfite A4 na posição vertical, foi solicitado aos


estudantes que cada um desenhasse o que dá medo hoje em uma criança na cidade
de São Paulo. Quando as crianças acabaram, pediu-se para que escrevessem no
verso da folha um relato, uma história sobre o desenho feito. Pediu-se para que os
estudantes usassem apenas lápis preto para fazer o desenho e borracha. Os
desenhos foram coletados após os participantes acabarem as histórias no verso.

208
Em um outro momento foi dialogado com os estudantes as temáticas que
surgiram, percebendo que naturalmente as temáticas que mais compareceram nos
desenhos foram as que eles próprios deram mais ênfase neste momento. Os
psicólogos foram proporcionando algumas reflexões para estes sobre como são estes
medos, o que são, o que é possível fazer diante deles. Como pode-se ver abaixo,
“Momo” e assalto, a violência urbana, foram os tópicos que mais compareceram entre
as crianças.

Muito embora algumas criaturas de filmes de terror tenham comparecido,


empatando com o medo acerca da violência urbana, optou-se por representar a
violência junto da Momo, que por se tratar de uma “lenda urbana”, parece ter
similaridade com o medo do fantasioso, de uma sorte de monstro, criatura maligna
que oferta risco.

Por fim, pediu-se que estes fizessem cartazes propondo recursos, formas de
enfrentamento desses medos, soluções, formas de lidar com eles, onde estes
propuseram conversar com pessoas e pedir ajuda (pai, amigos, professores, psicólogo
compareceram como figuras de referência nesse sentido) e, no caso do assalto,
polícia e prisões.

No 7º ano, pediu-se que os alunos desenhassem um (a) adolescente, a partir


da seguinte instrução: “Desenhe um (a) adolescente em São Paulo hoje” e, depois,
escreva uma história sobre o desenho, no verso da folha”. São feitas as considerações
sobre a vida deles nas mais distintas situações, tendo como elemento principal as
concepções que os adolescentes têm de si.

209
Nessa etapa, foram utilizados lápis preto número 2 e borracha. Ao final, os
desenhos dos participantes foram coletados pelos estudantes e psicólogos e expostos
em lugar comum, com o cuidado de preservar o anonimato dos participantes, e
solicitado para que em pequenos grupos observassem a produção coletiva. Na
sequência, foi solicitado aos participantes que comentassem os desenhos com
objetivo de elencar os temas emergentes. Ao final, foi realizado um diálogo sobre o
que acharam da experiência e o que pensavam sobre os temas abordados nos
desenhos.

O enquadre, durante as oficinas, foi de caráter não interpretativo, ou seja, sem


intenção de interpretar o que pode ter ficado inconscientemente recalcado, focando-
se na experiência do encontro com o grupo e de cada integrante consigo mesmo,
acompanhando a articulação simbólica (Gil, 2010). À vista disso, para a elaboração
do presente estudo, as produções, DE-T e desenhos, foram analisadas
dinamicamente. Assim sendo, procedeu-se a uma leitura guiada pela atenção
flutuante do material coletado, de modo que os principais aspectos foram elencados e
discutidos para apresentação dos resultados.

Para fins de organização, atribuiu-se um tema para cada desenho e estória


observados.

210
Medo - 3o Ano (8-9 anos)
Sem Violência
Medo - 3o ano histórias Urbana
Tema Número de Desenhos 21% 18%

Violência Urbana 7
Filmes de Terror 7
Momo 8 Política
13% Momo
Política 5 20%
Animais Peçonhentos 4 Filmes de
Animais
Terror
Sem histórias 8 Peçonhent
18%
os
Total 31 10%

Adolescente em São Paulo Hoje - 7o ano


Tema Número de Desenhos
Música 1
Drogas e Morte 7
Mundo/Cidade 4
Conhecer Lugares 5
Atravessar Fases 1
Internet 3
Morte 1
Relações Sociais (Amizade/Namoro) 2
Trabalho 1
Sem histórias 0
Total 25

Adolescente em São Paulo Hoje - 7o Ano (12-13 anos)


Relações Sociais Trabalho Sem histórias Música
(Amizade/Namoro) 4% 0% 4%
8%
Morte
4%
Drogas e Morte
Internet
28%
12%

Atravessar Fases Conhecer Lugares Mundo/Cidade


4% 20% 16%

211
A análise geral das produções realizadas pelos participantes desse estudo
durante o procedimento de DE-T, demonstra que os desenhos elaborados foram
facilitadores da expressão de angústia e expectativa dos adolescentes quanto a vida
contemporânea. É relevante observar que no 7º ano, 32% dos alunos expressaram
suas aflições quanto a violência na cidade de São Paulo, por meio de desenhos e
estórias com conteúdo de morte e/ou drogas. Por outro lado, 12% manifestaram
inquietações quanto a vida conectada pela internet, enquanto 36% dos adolescentes
apreciam conhecer lugares, e obter prazer ao se aventurar na descoberta do
mundo/cidade.

Discussão

A discussão conjunta entre as produções individuais do DE-T para as 7ª e a 3ª


séries nos permitiu observar, que a técnica utilizada serviu como materialidade
mediadora, proporcionando a expressão de conteúdo internos dos participantes, uma
vez que estimulou áreas mais sensíveis desses jovens, revelando conflitos e
desconfortos emocionais que sentem frente a essa fase de grande importância para o
desenvolvimento. Dentre os temas abordados, tivemos: música, drogas, morte,
viagens, desenvolvimento e mundo/cidade.

Nesse contexto, cabe ressaltar o trabalho desenvolvido por Tardivo (2007) que,
bem lembrando Bleger (1975) durante a elaboração de sua livre docência, aponta que
toda conduta possui um sentido e que, portanto, faz-se necessária a compreensão
das possíveis motivações dessa escolha para esses jovens que por um lado, parece
estar relacionada à influência da tendência grupal, característica da adolescência, mas
por outro, revela a importância e o interesse do grupo em abordar o assunto
claramente explicitado por um de seus membros.

Nesse estudo, entre as considerações possíveis acerca do uso de drogas, o


tabaco e a automutilação, alguns estudos apontam correlação direta dessa conduta
com abuso de substâncias lícitas e ilícitas (Jorge et al., 2015; Nader & Morales, 2014).
Entretanto, sobre isso vale destacar a influência do aspecto social inerente a essa
ação, seja por estímulos internos ou externos, sendo a experimentação encarada
como um rito de iniciação da adolescência em que não consumir bebidas ou cigarro

212
significa infantilidade, estando o jovem suscetível aos mais variados tipos de
consequências, tal como exposto nas figuras 3 e 5 do 7º ano.

O uso dos desenhos, a elaboração do trabalho em grupo e a discussão que


tiveram enquanto produziam funcionaram como uma associação livre, porém
acompanhada de princípios organizadores, dando forma a um material pouco
estruturado, ou seja, ajudando dos adolescentes a organizarem sua (a)percepção
sobre a adolescência. As técnicas utilizadas serviram como uma materialidade
mediadora, proporcionando a expressão de conteúdos internos sobre a temática.
Dessa forma, levou a reflexão e proporcionou voz a esses adolescentes, permitindo
que desenvolvessem o potencial para questionar questões cotidianas da fase em que
vivem, trabalhando seu emocional, iniciando o estabelecimento de laços de cuidado
consigo (Mendonça, 2005).

Por outro lado, é importante notar a ausência de estórias nas produções.


Apesar da instrução “desenhe o adolescente em São Paulo hoje” e, depois, “escreva
uma história sobre isso” é notório que nenhum adolescente do estudo escreveu a
estória pedida. Os que escreveram algo foi apenas uma descrição do desenho, sendo
que um dos participantes escreveu a descrição do desenho, mas apagou em seguida.
Segundo Trinca (1997), crianças e adolescentes podem possuir recursos limitados
para uma representação simbólica verbal, ou seja, essa limitação pode ser um fator
que impediu os adolescentes de elaborarem a estória pedida.

Outra hipótese sobre a ausência de estórias, bem como de detalhes essenciais,


relaciona-se à necessidade de evitar contato com a angústia da concretude que a
escrita suscita, configurando-se num mecanismo de defesa. Considerando as
contribuições de Anzieu (1979), as técnicas projetivas deixam um vazio que deve ser
preenchido pelo sujeito e essa situação desencadeia angústia. Os usos de
mecanismos de defesa se manifestam contra essa angústia, de modo que ao escrever
a estória sobre o momento de vida em que está, o adolescente entraria em contato
com seus conflitos e desconfortos emocionais e entrar em contato de forma concreta
com essas questões, colocar no papel e ler sobre si, poderia trazer uma angústia muito
grande e, como defesa, o máximo que conseguiram foi descrever o que haviam
desenhado.

213
Outro ponto levantado sobre esse aspecto refere-se ao enquadre proposto pela
oficina, uma vez que foi realizada durante o expediente escolar. Dado o tempo
predeterminado para realizar as produções, esse fato pode ter interferido no processo
de latência e elaboração dos trabalhos como um todo, tanto na qualidade, como na
ausência de histórias, caracterizando uma limitação do estudo.

A análise do trabalho dos alunos participantes do estudo permitiu observar que


o Desenho com Tema (DE-T) foi um grande aliado para os adolescentes, permitindo
que conseguissem expressar parte de seu entendimento sobre a adolescência, suas
expectativas, medos e angústias frente a essa fase, tanto reproduzindo falas do senso
comum (o jovem que fica o tempo todo conectado, envolvidos com tecnologias), como
também conseguiram demonstrar aspectos mais subjetivos (por exemplo, as
influências das quais estão suscetíveis e a forma de lidar – ou de não saber lidar –
com os problemas). Ao abordarem temas como o isolamento, a necessidade de
interação social, mudanças e sofrimentos, os jovens participantes mostraram que o
espaço proporcionado pelas oficinas – de acolhimento e escuta livre de julgamentos
– possibilitou a comunicação de suas individualidades e, ao mesmo tempo, o
reconhecimento de tais experiências como próprias de seu grupo etário. Neste
trabalho desenvolvido nos deparamos com o adolescente contemporâneo. Que
segundo o que foi observado nas atividades elaboradas pelos participantes das
oficinas, e de acordo com o que já afirmava Nasio (1942), o jovem de nossa atualidade
é um ser agitado por suas inquietações, em um certo momento ele se encontra em
estado de alegria em relação à vida, e em outro instante está desolado, sem
esperança, mas que tomado pela urgência da ação, supera essa condição em que
está mais entristecido e volta a avançar. Esse jovem vive contradições e é permeado
por contrastes. Ele pode se mostrar de variadas formas, inquieto, ou como alguém
que não sente dor, invadido por uma euforia ou calado, que se revolta com as
situações ou se conforma, contestador e informado; em outro instante alguém
entusiasmado, mas que em uma mudança rápida pode se demonstrar indiferente,
triste e sem vontade de viver. O adolescente pode ainda escolher figuras que ele
coloca em um grau muito elevado de importância, que podem ser mais velhos, como
um integrante de uma banda musical, ou até mesmo uma figura fictícia de jogo de
videogame, desde que estes personagens demonstrem características que são
opostas aos que a família tem como valores. Os ideais que possuem são aqueles

214
compartilhados por seu grupo de colegas. Com relação aos pais, demonstram afetos
de ordem contrária. Ainda conforme demonstra esse mesmo autor, o adolescente
demonstra-se como um ser que padece, causando na família sensação por vezes de
incomodo e irritação, ao passo que se sentem também incomodado por ela, mas é
antes de tudo aquele que é o maior espectador do desabrochamento do próprio pensar
e ao surgimento de uma força nova; uma força presente e de importância tal que sem
ela realizações duradouras não se concretizariam na vida adulta.

Assim sendo, a vida adolescente é circundada por muitas mudanças,


aprendizados e influências, experimentações para aprender a lidar com todas estas
questões que tornam seu mundo contraditório, intenso, e exige adaptações. Portanto,
nessas oficinas terapêuticas foi possível evidenciar a necessidade de espaços de
escuta e acolhimento, de modo que os jovens possam expressar seu mundo interno
e construir-se na relação com o outro. Espaços estes que parecem não ser possíveis
pelo uso estrito das tecnologias, mas carecem do contato pessoal e afetivo.

Referências

Aiello-Vaisberg T.M.J. (1997). Investigação de Representações Sociais. In Trinca W.


(org.) Formas de Investigação Clínica em Psicologia. São Paulo; Vetor. p. 255-
288.

Aiello-Vaisberg, T. M. J. A., & Machado, M. C. L. (2003). Sofrimento humano e estudo


da eficácia terapêutica de enquadres clínicos diferenciados. In T. M. J. Aiello-
Vaisberg & F. F. Ambrosio (Orgs.), Cadernos ser e fazer: Apresentação e
materialidade (pp. 6-35). São Paulo: IPUSP.

Mendonça, T. C. P. (2005). As oficinas na saúde mental: relato de uma experiência na


internação. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 25, n. 4, p. 626- 635, 2005. Disponível
em. acessos em 10 out. 2017.

Tardivo, L. S. L. P. C.; Alhanat, M.; Ciampolini, L. & Takiuti, A. D. (2016). Procedimento


De Desenhos Temáticos em jovens no estudo das concepções sobre gravidez na
adolescência. VIII Congresso da Associação Brasileira de Rorschach e Métodos
Projetivos.

Tardivo, L. S. L. P. C. (2007). O adolescente e sofrimento emocional nos dias de hoje.


São Paulo: Vetor, 171p.

Trinca, W. (Org.). (1997). Formas de Investigação Clínica em Psicologia:


Procedimentos de desenhos-estórias e procedimentos de desenhos de família
com estórias. São Paulo: Vetor, 1ª edição. Trinca, W. (Org.). (2013). Procedimento
de Desenhos-Estórias: Formas derivadas, desenvolvimentos e expansões. São
Paulo: Vetor, 363

215
16-O MEDO DA VIOLÊNCIA EM PRÉ-ADOLESCENTES: COMPREENSÃO E
INTERVENÇÃO EM OFICINAS PSICOLÓGICAS

Rita de Cassia De Souza Sá1


Gislaine ChaveS
Edna1 Pereira Torrecilha1
Aline Caroline Camilo21
Helena Rinaldi22
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo23

Resumo: De acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), a pré-


adolescência contempla o período mais indicado para o desenvolvimento de ações de
prevenção e promoção de saúde, já que as dificuldades ocorridas neste período
podem se configurar como um impasse evolutivo para as próximas etapas. Objetivo:
avaliar os efeitos de oficinas psicológicas com escolares para compreender a
experiência emocional dos participantes a partir do tema “o medo de pré-adolescentes
na cidade de São Paulo hoje”. Método: estudo qualitativo realizado com um grupo de
31 pré-adolescentes do quinto ano numa escola pública na cidade de São Paulo. A
oficina contemplou a realização do Procedimento de Desenho-Estória com Tema, e
confecção de cartazes elaborados pelos pré-adolescentes, quando se analisou mais
especificamente, os dados de 7 participantes, 5 meninos e 2 meninas, que se
configurou no medo predominante da amostra. Resultados: Na sala investigada o
medo da violência predominou. Assaltos, armas e ataques foram representados nos
desenhos e nas histórias elaboradas. Notou-se que os sujeitos identificaram a figura
do adulto como professores e profissionais, como psicólogo ou policial, e os pais
enquanto representantes potenciais de resolução, segurança e confiança.
Conclusão: as oficinas psicológicas revelaram-se como fonte de estímulo,
proporcionando espaço seguro para expressão de conteúdos internos, especialmente
de desconforto emocionais suscitados perante a temática do medo. Também

21
Psicólogas. Pesquisadoras do Apoiar
22
Professora Livre Docente do IPUSP, no Programa de Psicologia do Escolar e do Desenvolvimento Humano.
23
Professora Associada do Instituto de Psicologia da USP; Coordenadora do Laboratório de saúde Mental e
Psicologia Clínica Social.

216
permitiram a possibilidade de elaboração de tais conflitos e de reconhecimento das
alternativas adaptadas ao contexto. Por fim, os resultados demonstraram a
importância da experiência de cuidado ao jovem e ao pré-adolescente para além da
clínica tradicional individualizada, valorizando a relação entre informação, cognição e
afeto, provenientes das Oficinas Psicológicas.

Palavras-Chave: Violência, Pré-Adolescência; Medo; Oficinas Psicológicas.

INTRODUÇÃO

Pré-Adolescência e Adolescência
A adolescência trata-se de etapa do desenvolvimento fortemente marcada
pelas alterações biopsicossociais. O indivíduo atravessa uma série de modificações a
nível físico, com as alterações puberais, assim como a nível psíquico e social, com a
saída da infância para a adolescência, e exercício de novos papéis (Tardivo, 2007).
De acordo com Bloss (1998), a adolescência pode ser pensada em etapas,
sendo a primeira delas, a pré-adolescência. Nesta etapa, evidenciam-se as alterações
fisiológicas e, dá-se início ao afrouxamento dos laços familiares, com o consequente
maior interesse no grupo. No entanto, segundo o autor, a oscilação com a infância
ocorre com mais frequência do que na adolescência propriamente dita, sendo comuns
condutas ora infantis, e ora mais próximas do mundo adulto. Nesse sentido, observa-
se que a intensidade de tais transformações pode contribuir para que o pré-
adolescente sinta mais presentemente uma emoção: o medo.

Considerações sobre Violência e Medo


A violência contra a criança e o adolescente, seja ela física, sexual ou
psicológica representa um verdadeiro fator de risco ao processo de desenvolvimento
(Tardivo, Pinto Júnior & Santos, 2005). A violência é alvo de preocupação de toda a
sociedade em decorrência do clima de insegurança causado em todas as esferas
sociais, e caracteriza-se por um fenômeno multicausal. Traduz-se em atitudes que
intencionam prejudicar, subtrair, subestimar, subjugar, envolvendo sempre um
conteúdo de poder, quer seja, intelectual, físico, econômico, político ou social. É um
fenômeno complexo e atinge todas as pessoas e as afeta emocionalmente (Ministério

217
dos Direitos Humanos, 2018), no entanto, atinge de forma mais hostil os seres mais
indefesos da sociedade como mulheres, crianças e adolescentes, sem, contudo,
poupar os demais (Santana & Camargo, 2005). Há um custo humano de dor e
sofrimento invisível, que não pode ser calculado, mas que se percebe o grande
impacto mundialmente verificado (Dahlberg & Krug, 2006).
Realidade principalmente dos grandes centros urbanos, a violência é um dos
fatores que põem em risco a saúde física e psicológica dos jovens. Apontamentos da
Organização Pan Americana de Saúde-OPAS (2019) demonstram que os homicídios,
mortes no trânsito e suicídios correspondem a metade de todas as mortes entre jovens
de 10 e 24 anos nas Américas. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública-
SSP (2018) somente na cidade de São Paulo em 2018, 749 pessoas sofreram
tentativa de homicídio, 28.548 sofreram lesão corporal, 132.219 pessoas foram
roubadas, 749 perderam a vida em latrocínios, e assim segue a lamentável lista. De
acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA (2019), nos últimos dez
anos “a taxa de homicídios cresceu de 30 para 41 mil homicídios por 100 mil
habitantes” (p.8)
Broide & Broide (2016) em trabalho com jovens expostos a violências variadas
em periferias, apontam que estes vivem em alerta máximo, e as relações são pautadas
pelo medo, sendo “a vida uma corrida de obstáculos” (p.72). Acrescentam ainda que
tais obstáculos levam a situações-limite, onde acontecimentos destrutivos podem
acontecer a qualquer momento. Mediante a experiência vivida ou, simplesmente, o
medo da violência pode gerar danos similares à saúde, principalmente no pré-
adolescente, dada a sua condição de vulnerabilidade emocional. “Sempre se pagará,
sério preço orgânico e psíquico, por se viver o medo. O medo faz definhar” (Morais,
1985, p.14/15).
Tardivo (2019) define o medo como uma emoção caracterizada como uma
resposta iminente a ameaça real ou percebida. Complementa que, aspectos culturais
são relevantes na construção e configuração do medo. Para a autora ainda, a
sociedade contemporânea e as inúmeras situações de violência a que se expõem as
pessoas, geram uma sensação de vulnerabilidade.
Tendo em vista tal consideração e, somando-se a isso, a recomendação da
Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), sobre a importância dessa etapa do
desenvolvimento para a realização, e efetividade, de ações de prevenção e promoção
de saúde, compreende-se que um estudo que envolva a investigação do medo dos

218
pré-adolescentes pode ser interessante na medida que permite conhecê-los mais
profundamente para, se necessário propor, medidas interventivas. Isto é, de cuidado.

OBJETIVO

Compreender a experiência emocional de escolares do quinto ano do ensino


fundamental a partir do tema: “O medo do pré-adolescente na cidade de São Paulo
hoje”; e compreender o medo predominante da amostra, emergido
por meio de Oficinas Psicológicas.

MÉTODO
Estudo qualitativo realizado em dois encontros, denominados Oficinas
Psicológicas. Para este estudo, apresentou-se o material produzido por um grupo de
7 participantes, 5 meninos e 2 meninas, entre 10 e 11 anos, de uma classe do quinto
ano do Ensino Fundamental composta por 31 alunos, de escola pública na cidade de
São Paulo.
Como procedimento, aplicou-se no primeiro encontro do estudo, o
Procedimento de Desenho-Estória com Tema (DE-T) “Desenhe o medo de pré-
adolescentes na cidade de São Paulo hoje e escreva uma história no verso da folha”.
No segundo encontro, foi solicitado aos mesmos jovens que se reunissem em grupo
e confeccionassem cartazes a partir da orientação: “Como lidar com os medos”.
O estudo faz parte do Projeto de Pesquisa intitulado “Os medos infantis na
contemporaneidade: relevância e repercussões interculturais a partir de dados do
Brasil, França, Bélgica e Espanha” coordenado no Brasil pela professora livre docente
Leila S.L.P.C. Tardivo, e que visa investigar, identificar e compreender os principais
medos de escolares até 12 anos, em diferentes países: Brasil, Bélgica, Espanha e
França a fim de pensar em ações interventivas e preventivas.

RESULTADOS – APRESENTAÇÃO DO MATERIAL

Trata-se de um estudo qualitativo, que objetivou observar e compreender a


experiência emocional dos pré-adolescentes a partir da Instrução que os fez expressar
seus medos. Para tanto, o meio de acesso aos pré-adolescentes foram Oficinas
Psicológicas que consistiram na primeira etapa, a realização do Procedimento de

219
Desenho-Estória com Tema que visa investigação de imaginários coletivos, proposto
por Aiello-Vaisberg (2004), originado da criação de Trinca (1987). O Procedimento
vem sendo empregado por Tardivo (2007) e equipe, que propõe que se alie ao estudo,
a possibilidade de intervenção, a partir de como o indivíduo representa uma situação
ou condição.
Na sala onde se desenvolveu o estudo o medo da violência predominou.
Assaltos, armas e ataques foram representados nos desenhos e nas histórias
elaboradas. Foram utilizados no presente estudo, as produções de 7 pré-
adolescentes, 5 meninos e 2 meninas, sendo os desenhos exibidos nas Figuras 1 a
7, que ilustram o medo predominante da sala composta por 31 alunos.

Figura 1: História A Figura 2: História B

“Eu estava no ônibus com minha mãe e as “Tenho medo dessas coisas porque
amigas e as filhas delas, até que chegou
acontece muito” *
um homem. Eu e as meninas estávamos no
fundo, quando ele perguntou se a gente
menina, 11 anos
estava sozinha, mas não. A polícia passou
na frente do ônibus e ele se escondeu. Eu e
as filhas das amigas começamos a chorar,
e ele desceu do ônibus” *
menina, 10 anos

220
Figura 3: História C Figura 4: História D

“Eu tenho medo de ladrão porque um


“Porque ele rouba as pessoas e
dia o ladrão entrou na minha casa” *
muitas vezes se dá mal” *
menino, 10 anos
menino, 10 anos

Figura 5: História E Figura 6: História F

Figura 7: História G

“Eu desenhei um tiroteio entre um ladrão e um


policial no EUA Estados Unidos, país da América do
Norte” *

menino, 10 anos

*Transcrição das histórias com pequenas correções, apenas ortográficas

221
A segunda parte das Oficinas Psicológicas seguiu com a proposta de que os
participantes criassem cartazes oferecendo, por meio lúdico, soluções para lidarem
com seus medos. Foi dada a eles a orientação “confeccione cartazes respondendo à
questão: o que fazer para encontrar meios e saídas para lidar com os medos?”
Na sala investigada, os escolares (nem todos estavam presentes nesse dia-
havia 27 alunos) foram divididos em 5 grupos com uma média de 6 pré-adolescentes
em cada um. Assim, propuseram as soluções por eles imaginadas.

Tabela 1: Soluções propostas pelos pré-adolescentes


Grupos Num de Propostas Divisão/Cor Forma de Apresentação
participantes do Grupo
Oficinas

Grupo 1 6 Falar com os Cartaz Fizeram uma cena teatral de


pais
branco 1 uma família indo ao psicólogo
Procurar ajuda
(psicólogo) pedir ajuda
Falar com os
outros

Grupo 2 6 Divertir-se (jogar Cartaz Enquanto uns apresentavam,


futebol, jogar
verde outros encenavam estarem
videogame, ver
filmes) jogando e se divertindo
Comer um bolo
Ter amor

Grupo 3 6 Beber água Cartaz rosa Apresentaram cada um falando


Tomar sorvete
um pouco
Falar com a mãe
Respirar
Falar com
psicólogo

Grupo 4 4 Procurar ajuda Cartaz Apresentaram cada um falando


psicológica
branco 2 um pouco
Não usar drogas
Ter amor

Grupo 5 5 Conversar com Cartaz Apresentaram cada um falando


alguém, o pai ou
amarelo um pouco
o psicólogo
Procurar a
polícia

222
Na sala investigada, percebeu-se a ideia de falar com os adultos, pais,
psicólogo e polícia apareceu em 4 dos 5 grupos, ou seja, sujeitos identificaram a figura
do adulto enquanto representantes potenciais de resolução, segurança e confiança.

DISCUSSÃO

A partir dos resultados obtidos por meio da temática do medo com o auxílio do
DE-T observou-se que o medo da violência urbana se apresenta como a principal
preocupação dos pré-adolescentes da amostra investigada. ), a violência é alvo de
preocupação por parte de toda a sociedade de modo que os adolescentes estão tão
envolvidos quanto os demais.( Santana e Camargo 2005)
Dentre as particularidades e complexidade do medo da violência descrito pelos
participantes, encontra-se o medo de assaltos, que aparece com predominância nas
histórias (A, B, C, D, F e G), levando mais vez ao encontro com o cotidiano,
coadunando com os dados de altos índices deste tipo de violência, fornecidos pela
SSP (2018), na cidade de São Paulo. Na história G, parece que o saber da violência,
mesmo em outro país, gera similar sensação de medo. Nas construções elaboradas
pelos pré-adolescentes apareceu para além da temática do próprio medo de sofrer
com a violência, o imaginário dos participantes à respeito das causas da violência,
como na história F, onde o escolar sugere que a causa de alguém se tornar um ladrão
origina-se da privação e dificuldades, o que, segundo sua perspectiva, seriam causas
que levariam à violência/marginalidade.
Estas percepções dos pré-adolescentes, configuram-se como indício do impacto
da violência na esfera do desenvolvimento coletivo e individual. Tardivo, Pinto Júnior

223
e Santos (2005) alertam para o fator de risco de prejuízos no desenvolvimento quando
exposição à violência física ou psicológica. Outras consequências originadas da
exposição à violência, ou medo dela, aparecem ainda nas histórias A e E. Na primeira,
consequências imediatas como tristeza e choro ficam evidentes diante da exposição
e experiência de um episódio de violência, uma tentativa de assalto; e na outra criação,
uma história fictícia de alguém que se vingaria de um ato de violência extremo de
roubo e homicídio; sugerindo mais uma vez as consequências no desenvolvimento
dos pré-adolescentes descrito por Tardivo, Pinto Júnior e Santos (2005).
Ainda sobre as possíveis consequências sugeridas nas histórias elaboradas,
foi possível perceber que, das sete criações, três pré-adolescentes insinuaram terem
sido eles mesmos vítimas de assaltos (A,D e G) e indicaram o medo que sentem a
partir da experiência vivida; os outros quatro não deram indícios de serem sujeitos das
histórias, mas o medo pareceu como similar em todas as sete construções de
desenhos e histórias por eles criados. Os danos causados pela exposição ou medo
da violência parecem cobrar peço similar, recorrendo a Morais (1985) afirmando o
autor haver um sério preço orgânico e psíquico, por se viver o medo, em suas
palavras, o medo faria definhar. Tal perspectiva vai de encontro as colocações de
Tardivo (2019), quando, se pode pensar na emoção do medo como uma resposta
iminente a ameaça real ou percebida.
Quando se trata dos conteúdos que contemplam a violência, pode-se perceber
os componentes da cultura. No presente caso, os dados preocupantes fornecidos
pelas instituições de referência mundiais e nacionais que se debruçam em fornecer
informações a respeito do impacto da violência urbana, corroborando com a sensação
de vulnerabilidade descrita pelos pré-adolescentes (OMS, 2018; OPAS, 2019; SSP,
2019; IPEA, 2019).
Na segunda parte das Oficinas Psicológicas onde se trabalhou a elaboração dos
conteúdos temidos pelos participantes, percebeu-se que estes sentem a necessidade
de encontrar apoio e segurança. De modo que, apesar do medo ainda presente,
demonstraram sentimento de esperança. A figura do adulto foi considerada como uma
possibilidade de sentirem menos afetados pelo medo da violência. Winnicott (1982)
aponta que quando uma criança não se sente segura, mas ainda tem esperança,
procura uma estrutura no ambiente que possa lhe tirar parte de sua angústia, e “esta
segurança pode vir de adultos como avós, tios, professores, amigos” (p.257).
Coaduna-se com o que as crianças da amostra demonstraram, ou seja, esperança de

224
sair do labirinto do seu medo, um medo tão real como é a violência em que a sociedade
em geral está inserida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As Oficinas Psicológicas revelaram-se como fonte de estímulo para os


adolescentes proporcionando espaço seguro para expressão de conteúdos internos,
especialmente de desconforto emocionais suscitados perante a temática do medo.
Também permitiram a possibilidade de elaboração de tais conflitos e de
reconhecimento das alternativas adaptadas ao contexto. Por fim, os resultados
demonstraram a importância da experiência de cuidado ao jovem e ao pré-
adolescente para além da clínica tradicional individualizada, valorizando a relação
entre informação, cognição e afeto, provenientes das Oficinas Psicológicas.

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226
17- QUAL AUTOAGRESSÃO? APROXIMAÇÕES DO TEMA
“AUTOAGRESSIVIDADE” EM CRIANÇAS

Fabiana Haddad Kurbhi


Helena Rinaldi Rosa

Resumo: Justificativa: As pesquisadoras perceberam uma comoção entre pais,


escolas e profissionais da saúde diante da possibilidade de crianças iniciarem a
prática de autoagressão no contato com vídeos, jogos ou aplicativos como Baleia Azul,
SimSimi e Momo. Objetivo: Fazer uma revisão narrativa de literatura numa
aproximação do tema autoagressividade e verificar se existem estudos que possam
justificar a preocupação parental sobre a motivação infantil para a autoagressão.
Conclusão: A autoagressividade é um comportamento crescente entre crianças e
adolescentes. Os pesquisadores parecem não conseguir mensurar este fenômeno ou
levantar dados de forma objetiva e confiável pela heterogeneidade com que a
autoagressão se manifesta, pela dificuldade de acesso ao fenômeno, pela
multiplicidade e pela imprecisão das definições e de terminologias a ela relacionadas.
Não foram encontradas pesquisas sobre crianças com idade inferior a 12 anos de
idade praticantes de autoagressão.

Palavras-chave: Autoagressividade. Autoagressão. Heterogeneidade.

1. Introdução
O interesse por estudar este tema surgiu a partir da prática clínica das
pesquisadoras que perceberam uma comoção entre pais, escolas e profissionais da
saúde diante da possibilidade de crianças iniciarem a prática de autoagressão no
contato com vídeos, jogos ou aplicativos como Baleia Azul (em 2017), SimSimi (em
2018) e Momo (em 2018/2019). Estes conteúdos foram veiculados nas mídias digitais
comumente acessadas pelo público infanto-juvenil nos últimos três anos, e
incentivavam a prática autoagressiva e o suicídio de crianças valendo-se de ameaças
às suas famílias.
O objetivo deste trabalho é fazer uma revisão narrativa de literatura numa
aproximação do tema autoagressividade infantil. Além disso pretende-se verificar se

227
existem estudos que possam justificar a preocupação parental sobre a motivação
infantil para a autoagressão.
Desde 2009, o SINAN (Sistema de Notificação de Agravos de Notificação),
recurso de Vigilância Epidemiológica do SUS (Sistema Único de Saúde), recomenda o
preenchimento da Ficha de Notificação de Investigação de Violência Interpessoal ou
Autoprovocada, parte do Sistema VIVA (Sistema de Vigilância de Violências e
Acidentes), cujo preenchimento tornou-se compulsório por meio da Portaria GM/MS
nº 2.472 de 31 de agosto de 2010. Estes dados estão disponíveis no site do DATASUS
(2019), banco de dados do Ministério da Saúde. O Gráfico 1 mostra o número total de
notificações de violência autoprovocada (por força corporal, objeto contundente,
objeto perfurocortante, objeto ou substância quente, envenenamento e enforcamento)
em crianças entre 5 e 14 anos de idade, na cidade de São Paulo de 2013 a 2017, ou
seja, dos cinco últimos anos publicados no site até o momento:

Gráfico 1 – Violência autoprovocada em crianças de 5 a 14 anos

VIOLÊN CIA AUTOPROVOCADA


10 a 14 anos 5 a 9 anos

2017 387
58
2016 173
25
2015 89
8
2014 0
0
2013 0
0

0 50 100 150 200 250 300 350 400 450

Fonte dos dados: DATASUS, 2019.

Estes dados precisam ser avaliados com cautela, já que a experiência das
pesquisadoras no campo da saúde pública constatou a subnotificação de dados de
violência por vários motivos: falta de informação dos profissionais sobre os objetivos
da coleta destes dados, medo de represália das famílias dos pacientes ou dos
agressores, falta de tempo ou de interesse para os devidos registros e até mesmo
desconhecimento da Portaria. Isso pode explicar o fato de nenhuma notificação de
autoagressão ter sido feita nos anos de 2013 e 2014 e o seu sucessivo crescimento.
Além disso, estas notificações podem ser feitas pelo profissional de saúde na
suspeita de violência ou agressão, prescindindo de investigação, o que já compromete

228
a confiabilidade e objetividade dos dados registrados. É possível que os dados sejam
referentes aqueles eventos que chegam aos serviços de saúde de urgência e
emergência em caráter acidental, e não por ocorrerem com maior frequência ou de
forma deliberada entre as crianças e adolescentes. Vale lembrar que nos serviços
particulares de saúde as notificações de violência ainda são um tabu, muitas vezes
não constando das estatísticas do Ministério da Saúde.
Segundo o site da Prefeitura do Município de São Paulo (2019), dados do IBGE,
com base no censo de 2010, estimam uma população geral de 11.253.503 habitantes
na cidade, sendo 758.279 crianças de 5 a 9 anos e 867.430 crianças de 10 a 14 anos.
Sendo assim, o número de notificações registadas no DATASUS não chegaria a 1%
da população geral.
Em abril de 2019, o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos
sancionou a Lei nº 13.819/2019, que institui a Política Nacional de Prevenção da
Automutilação e do Suicídio. Esta lei também prevê a notificação compulsória e
sigilosa em casos de tentativas de suicídio e práticas de automutilação de crianças,
adolescentes e jovens por estabelecimentos de saúde, segurança, escolas e
Conselhos Tutelares. Este ministério estima que 20% de jovens (14 milhões de
pessoas) no Brasil, se automutilam. No site não há estatísticas disponíveis sobre o
tema e nem menção quanto às formas com que as notificações deverão ser feitas, há
apenas a notícia sobre a capacitação de profissionais para atendimento telefônico de
possíveis casos.
Segundo o DSM 5 (2014), Plener e Fegert (2012), Zetterqvist (2015), Rodríguez
(2017) e Santos e Faro (2018), o fenômeno da autoagressividade vem crescendo nos
últimos anos, principalmente entre adolescentes entre 12 e 15 anos de idade, na sua
maioria entre o sexo feminino (com a proporção entre o sexo feminino e masculino de
3:1 ou 4:1). Os autores mencionam ainda que a autoagressividade pode acometer
crianças de ambos os sexos a partir dos 8 ou 9 anos de idade. A duração média desta
prática é de 3,5 anos, não estando necessariamente ligada ao suicídio. Selby et al.
(2013) entendem que a prática autoagressiva pode levar, em última instância, ao
comportamento suicida.

2. Desenvolvimento

De acordo com Santos e Faro (2018) a conduta autoagressiva pode ocorrer em


qualquer fase da vida e, em crianças, geralmente é entendida como um sintoma de

229
alguma psicopatologia. O DSM 5 (2014) menciona que a prática da autolesão não
suicida pode ser adotada por crianças pequenas no sentido de experimentação, que
descontinuam a prática por causar muita dor, sem a função de trazer algum tipo de
alívio emocional. Ainda de acordo com o DSM 5 (2014), faltam informações acerca do
que pode incentivar ou inibir o surgimento e o desenvolvimento desta prática, mas
observa-se que, quando uma pessoa que pratica autolesão não suicida é internada,
outras pessoas tendem a iniciar a prática.
Plener e Fegert (2012) verificaram que, desde os anos 60, há registros de
práticas autoagressivas, embora o primeiro estudo epidemiológico tenha ocorrido
somente em 2002. Santos e Faro (2018) ressaltam que durante muito tempo este
comportamento foi entendido como relacionado ao suicídio e ao Transtorno de
Personalidade Borderline, o que tem se mostrado pouco preciso.
Os achados das pesquisas mais recentes, segundo Plener e Fegert (2012),
permitiram a revisão de critérios do DSM IV, que entendia que a prática autolesiva não
suicida configurava um dos sintomas do Transtorno de Personalidade Borderline.
Na busca de uma definição do fenômeno da autoagressividade na infância foi
consultado o site da International Society for the Study of Self-Injury, www.itriples.org,
que reúne diversos materiais sobre autoagressão, entre eles, algumas escalas. Estas
escalas supõem que haja uma deliberação auto danosa na prática da autoagressão
não suicida, incluindo nesta definição um grande espectro de comportamentos a partir
de diferentes pressupostos.
A Escala de Avaliação de Condutas de Automutilação (SHI) de Sansone,
Sansone e Wiederman (1998) refere: o abuso de álcool, dirigir irresponsavelmente,
esquecer de tomar medicamentos, envolvimento em relacionamentos promíscuos,
envolvimento em relacionamentos para ser rejeitado, envolver-se em relacionamentos
abusivos, torturar-se com pensamentos autodestrutivos, passar fome para punir-se,
uso abusivo de medicamentos (incluindo laxantes), faltar ao trabalho sem motivo e
comportamentos que significam punição por ter se distanciado de Deus. No
Questionário de Auto Injúria (SIQ) de Alexander (1999) os comportamentos
autoagressivos seriam: cirurgias estéticas sem necessidade ou em excesso, fazer
tatuagens, ‘body piercing’ ou furar orelhas excessivamente, ingerir álcool até vomitar
ou passar mal, usar drogas ilegais, abusar de medicamentos prescritos, vomitar após
ingerir uma grande quantidade de alimentos, comer excessivamente, não alimentar-
se de propósito (exceto por motivos religiosos), uso de laxantes ou diuréticos sem

230
necessidade, praticar atividade física quando doente, fumar, dirigir de forma arriscada,
evitar consultas médicas mesmo quando doente, relacionar-se com pessoas
perigosas, envolver-se em brigas, fazer sexo desprotegido, machucar cutículas ou
unhas de forma proposital.
Já a escala Alexian Brothers Assessment of Self-Injury, de Washburn et al.
(2015) inclui outros comportamentos como: inserir coisas sob a pele, sufocar-se
intencionalmente, lançar-se de escadas, não seguir orientações médicas e exercitar-
se excessivamente para causar dor. A Escala de Avaliação Sobre Autoinjúria (ISAS),
de Klonsky e Olino (2008) aparece com bastante frequência nas pesquisas mais
recentes. Nela, a autoagressividade é avaliada pelos comportamentos de: cortar-se,
morder-se, queimar-se, gravar símbolos sobre a pele, beliscar-se, puxar ou arrancar
os cabelos, coçar-se ou arrancar a pele até ferir, bater no próprio corpo, esfregar a
pele em superfícies ásperas, perfurar o corpo e ingerir substâncias perigosas.
Santos e Faro (2018) e Completo (2014) ressaltam a heterogeneidade da
terminologia relacionada às condutas autoagressivas na literatura científica. Os
autores identificam termos que, na literatura, já foram entendidos como sinônimos, a
saber: automutilação, autodano, autoinjúria, ‘caving’, ‘cutting’, autolesão,
parassuicídio, comportamento suicidário, autoabuso, violência autoinfligida.
Guerreiro e Sampaio (2013) perceberam que, na literatura de língua inglesa, há
divergências na denominação de condutas autoagressivas. A automutilação
deliberada (deliberate self harm) inclui todos os tipos de autolesão sem se
preocuparem com a sua intencionalidade e reconhecendo a dificuldade de
mensuração do fenômeno. A autolesão não suicida (non suicidal self injury) envolve a
intensão de lesionar a pele de diferentes formas, mas sem a intenção suicida.
Segundo os autores, as diferenças sobre as nomenclaturas atribuídas ao fenômeno
de autolesão e as diferentes compreensões acerca da intencionalidade (suicida ou
não suicida) geram imprecisões no levantamento de dados epidemiológicos e
impedem os avanços das pesquisas relacionadas ao tema.
Existem outros vieses no levantamento de dados, aventados por Guerreiro e
Sampaio (2013) e pelo DSM 5 (2014). Eles estariam relacionados à confiabilidade dos
dados (por serem autorreferidos), à avaliação da intencionalidade da pessoa ao
autolesionar-se (muitas vezes a pessoa não tem consciência do que a leva a este
comportamento), às motivações do início desta prática (geralmente não mencionada)
e à constatação de que geralmente as pessoas que se autolesionam não buscam

231
nenhum tipo de serviço de saúde. O DSM 5 (2014) questiona se as pessoas não
buscam os serviços de saúde porque estas práticas são entendidas como
estigmatizantes ou porque são comportamentos percebidos como positivos pelo
praticante.
Zetterqvist (2015) identificou diferenças de intenção, métodos, letalidade,
frequência e funções das práticas autolesivas. A conclusão da autora é a necessidade
de mais estudos sobre o tema para a sua caracterização como doença, para a
identificação dos riscos, prevalência e prevenção.
Rodríguez (2017) questiona se este fenômeno da autolesão não suicida deve
ser compreendido como um sintoma de outros transtornos ou como um transtorno por
si só. O autor encontrou esta prática geralmente associada a doenças como:
hipomania, transtorno opositivo desafiador, transtorno obsessivo compulsivo,
diferentes formas de angústia, déficit de atenção com hiperatividade, ansiedade
generalizada, distimia, fobia social, transtornos de conduta, dependência de álcool,
bulimia e drogadição.
Na atual literatura científica Santos e Faro (2018), Zetterqvist (2015), Completo
(2014), Guerreiro e Sampaio (2013), Klonsky (2007) apontam a tendência em definir
a autolesão não suicida como o ato deliberado de machucar diferentes partes do corpo
sem intenção suicida. Santos e Faro (2018), e Completo (2014) entendem que dentro
das condutas autolesivas existe uma classe de comportamentos denominados
comportamentos indiretamente autolesivos, que se caracterizam por serem
involuntários, prazerosos, divertidos e não acarretarem prejuízos imediatos ao
praticante, mas que podem ser nocivos a longo prazo.
Bohne e Wilhelm (2005) estudaram comportamentos como roer unhas, puxar
cabelos e machucar a pele como patologias sub-reconhecidas com início na infância.
Embora estes comportamentos tenham a capacidade de, isoladamente e a longo
prazo, acarretarem infecções, cicatrizes, ausência de pelos e deformações da pele,
das unhas e até mesmo deformações posturais, eles não têm um estatuto reconhecido
de doença, constando na literatura como sintomas relacionados a patologias do
controle dos impulsos ou caracterizando a escoriação neurótica (ou skin-picking). Os
autores enfatizam que, muitas vezes, estes comportamentos não são diferenciados
em graus de gravidade e são acompanhados de justificativas estéticas aceitáveis
socialmente, como espremer espinhas e cravos, remover os cabelos grisalhos ou mais
crespos, ou aparar as unhas.

232
Diferente do que foi exposto até o momento, Bohne e Wilhelm (2005)
mencionam que os fatores desencadeantes do comportamento autoagressivo seriam,
além de sentimentos negativos, a percepção tátil ou visual de irregularidades na pele
ou unhas, a proximidade entre mão e rosto, ocorrendo até mesmo na ausência de
pensamentos com mãos ociosas. Outro dado relevante é que o comportamento de
roer unhas ocorre na sua grande maioria entre os homens. As consequências deste
tipo de autoagressão seriam a vergonha e retraimento social.
No DSM 5 (2014) o termo ‘autoagressão’ aparece oito vezes, o termo
‘autolesão’ aparece setenta e três vezes e o termo ‘automutilação’ aparece dezoito
vezes. Enquanto sintoma, a autoagressão está presente nos quadros de transtornos
do neurodesenvolvimento (deficiências mentais e autismo por exemplo) como
decorrentes de condutas motoras repetitivas ou de estereotipias motoras. Sintomas
autoagressivos aparecem ainda em quadros catatônicos como consequência de
atividades motoras excessivas. Nos transtornos de pica, que levam à ingestão de
substâncias não nutritivas, a autoagressão pode se caracterizar pela ingestão de
coisas potencialmente nocivas ao organismo. Enquanto parte dos sintomas dos
transtornos de impulso, as autoagressões resultam de transtornos de comportamentos
repetitivos recorrentes e focados no corpo. A autoagressão aparece também nos
transtornos dissociativos, de identidade ou de personalidade, geralmente associada a
perturbações da consciência, como ocorre nos estados hipnóticos, estados de
despersonalização e personalidade borderline.
A autoagressão ganha um estatuto nosológico no DSM 5 (2014) quando se fala
em tricotilomania, skin-picking e autolesão não suicida. Neste manual a tricotilomania
é caracterizada como:
A. Arrancar o próprio cabelo de forma recorrente, resultando
em perda de cabelo.
B. Tentativas repetidas de reduzir ou parar o comportamento
de arrancar o cabelo.
C. O ato de arrancar cabelo causa sofrimento clinicamente
significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional
ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
D. O ato de arrancar cabelo ou a perda de cabelo não se deve
a outra condição médica (p. ex., uma condição
dermatológica).
E. O ato de arrancar cabelo não é mais bem explicado pelos
sintomas de outro transtorno mental (p. ex., tentativas de
F. melhorar um defeito ou falha percebidos na aparência, no
transtorno dismórfico corporal). (DSM 5, 2014, p.251)

233
Já nos transtornos de escoriação, ou skin-picking, a autolesão obedece aos
seguintes critérios diagnósticos do DSM 5 (2014):

A. Beliscar a pele de forma recorrente, resultando em lesões.


B. Tentativas repetidas de reduzir ou parar o comportamento de
beliscar a pele.
C. O ato de beliscar a pele causa sofrimento clinicamente
significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional
ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
D. O ato de beliscar a pele não se deve aos efeitos fisiológicos
de uma substância (p. ex., cocaína) ou a outra condição
médica (p. ex., escabiose).
E. O ato de beliscar a pele não é mais bem explicado pelos
sintomas de outro transtorno mental (p. ex., delírios ou
alucinações táteis em um transtorno psicótico, tentativas de
melhorar um defeito ou falha percebida na aparência no
transtorno dismórfico corporal, estereotipias no transtorno de
movimento estereotipado ou intenção de causar danos a si
mesmo na autolesão não suicida). (DSM 5, 2014, p.254)

Nas últimas páginas do DSM 5 (2018) na sessão ‘Condição Para Estudos


Posteriores’ a autolesão não suicida aparece como uma possibilidade diagnóstica que
carece de investigação cujos critérios sugeridos são:

A. No último ano, o indivíduo se engajou, em cinco ou mais dias,


em dano intencional autoinfligido à superfície do seu corpo
provavelmente induzindo sangramento, contusão ou dor (p. ex.,
cortar, queimar, fincar, bater, esfregar excessivamente), com a
expectativa de que a lesão levará somente a um dano físico
menor ou moderado (i.e., não há intenção suicida).
Nota: A ausência de intenção suicida foi declarada pelo indivíduo
ou pode ser inferida por seu engajamento repetido em um
comportamento que ele sabe, ou aprendeu, que provavelmente
não resultará em morte.
B. O indivíduo se engaja em comportamento de autolesão com uma
ou mais das seguintes expectativas:
1. Obter alívio de um estado de sentimento ou de cognição
negativos.
2. Resolver uma dificuldade interpessoal.
3. Induzir um estado de sentimento positivo.
Nota: O alívio ou resposta desejada é experimentado durante ou
logo após a autolesão, e o indivíduo pode exibir padrões de
comportamento que sugerem uma dependência em
repetidamente se envolver neles.
C. A autolesão intencional está associada a pelo menos um dos
seguintes:
1. Dificuldades interpessoais ou sentimentos ou pensamentos
negativos, tais como depressão, ansiedade, tensão, raiva,

234
angústia generalizada ou autocrítica, ocorrendo no período
imediatamente anterior ao ato de autolesão.
2. Antes do engajamento no ato, um período de preocupação
com o comportamento pretendido que é difícil de controlar.
3. Pensar na autolesão que ocorre frequentemente, mesmo
quando não é praticada.
D. O comportamento não é socialmente aprovado (p. ex., piercing
corporal, tatuagem, parte de um ritual religioso ou cultural) e não
está restrito a arrancar casca de feridas ou roer as unhas.
E. O comportamento ou suas consequências causam sofrimento
clinicamente significativo ou interferência no funcionamento
interpessoal, acadêmico ou em outras áreas importantes do
funcionamento.
F. O comportamento não ocorre exclusivamente durante episódios
psicóticos, delirium, intoxicação por substâncias ou abstinência
de substâncias. Em indivíduos com um transtorno do
neurodesenvolvimento, o comportamento não faz parte de um
padrão de estereotipias repetitivas.
O comportamento não é mais bem explicado por outro transtorno
mental ou condição médica (p. ex., transtorno psicótico,
transtorno do espectro autista, deficiência intelectual, síndrome
de Lesch-Nyhan, transtorno do movimento estereotipado com
autolesão, tricotilomania [transtorno de arrancar o cabelo],
transtorno de escoriação [skin-picking]). (DSM 5, 2014, p.803 e
804)

Segundo Lewis e Plener (2015), os estudos apresentados na 10ª Conferência


Anual da International Society for the Study of Self-Injury, ocorrida em 2015, na qual
foram apresentados estudos que não corroboram os critérios sugeridos pelo DSM 5
(2014), pois verificou-se que “a taxa de endosso para os critérios diagnósticos do DSM
5 parecem variar entre os estudos”. (Lewis & Plener, p. 2, 2015). Os autores mostram
haver evidências científicas de que os critérios propostos pelo DSM 5 (2014) não
conseguem abarcar todos os praticantes de lesões não suicidas, somente as pessoas
mais severamente afetadas, além do que as razões intrapessoais parecem ser mais
relevantes que as interpessoais em pessoas que praticaram autolesões não suicidas
(diferente do que propõe o critério B do DSM).

3. Conclusão
A autoagressividade é um comportamento crescente entre crianças e
adolescentes. Ainda assim, os pesquisadores parecem não conseguir mensurar este
fenômeno ou levantar dados de forma objetiva e confiável pela heterogeneidade com
que a autoagressão se manifesta, a dificuldade de acesso ao fenômeno, a
multiplicidade e imprecisão das definições e de terminologias a ela relacionadas. As
definições existentes abarcam somente os casos mais graves de autoagressão,

235
podendo haver aqueles que passam despercebidos ou que são desconsiderados
enquanto formas de sofrimento mental apontando para uma insuficiência destas
definições.
As escalas internacionais têm adultos como público-alvo e abarcam um grande
número de comportamentos autodanosos, o que dificulta a coleta e a comparação dos
dados. Parece não haver pesquisas sobre crianças abaixo dos 12 anos de idade
praticantes de autoagressão embora se saiba que elas existem.

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237
18-O DESENHO DA FIGURA HUMANA COM HISTÓRIA: UM ESTUDO DE
CASO

Gustavo Oliveira do Nascimento


Helena Rinaldi Rosa
Walter José Martins Migliorini

Resumo: Objetivo: Como parte constituinte do projeto de estudos de atualização


do desenho da figura humana (DFH) realizado pelo Laboratório Interdepartamental
de Técnicas de Exame Psicológico (LITEP-USP), do Instituto de Psicologia da USP,
esta pesquisa buscou avaliar os aspectos emocionais de um adolescente de 14 anos
com dificuldades sociais, com queixas de sudorese e introversão, por meio da
aplicação do teste do desenho da figura humana, com história (DFH-H) em contexto
clínico. Por conseguinte, buscou-se, por meio desta aplicação, contribuir para a
verificação da validade deste novo instrumento em tal âmbito. Método: A análise foi
qualitativa, calcada na técnica de livre inspeção do material e nos Indicadores
Emocionais propostos por Koppitz, para as análises narrativa e gráfica,
respectivamente, e os dados foram coletados por meio da aplicação do DFH-H em
ambulatório, conforme as instruções de aplicação do instrumento. Resultado:
Concluiu-se que o DFH-H foi sensível para captar sentimentos de insegurança,
timidez, desamparo e angústia, fatores emocionais muito provavelmente associados
à queixa inicial do paciente, e que seu uso como instrumento de triagem ou de
avaliação inicial pode ser de grande valia para a compreensão de um quadro clínico.

Palavras-chave: Exame Psicológico. Desenho Figura Humana. Técnica.

Introdução

Seguindo a tradição psicológica de compreender o desenho da figura humana


como uma técnica capaz de revelar aspectos projetivo-emocionais e de interação
do sujeito com o ambiente, o desenho da figura humana, com história (DFH-H) é um
instrumento que tem por finalidade avaliar os aspectos cognitivos, projetivos e
emocionais do examinando, conforme o interesse do aplicador, partindo de uma

238
vertente psicanalítica e dos achados de Koppitz (1973) e Trinca (1997) sobre a
validade das técnicas projetivas envolvendo a produção de uma figura humana em
contexto clínico e de triagem. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho foi realizar a
aplicação do DFH-H em um adolescente com queixas de sudorese e introversão a
fim de investigar os seus aspectos emocionais.

Método - Instrumento

O desenho da figura humana, com história (DFH-H) é um instrumento


simples, barato e de fácil aplicação que vem sendo utilizado na avaliação do
desenvolvimento cognitivo e dos aspectos emocionais em contexto clínico e escolar.
Inspirado nos estudos de Koppitz sobre o Desenho da figura humana e no
procedimento de Desenhos-Estória de Trinca, o DFH-H consiste em solicitar um
único desenho de uma pessoa, seguido de uma história sobre o desenho, inquérito
e um título. O material a ser utilizado é (1) uma folha sulfite; (2) lápis preto n°2
apontado e (3) borracha.

Procedimento

As seguintes instruções são lidas para a criança: Nesta folha eu quero que
você faça o desenho de uma pessoa. Faça o mais bonito que você puder. Leve o
tempo que quiser e trabalhe com muito cuidado. Se a criança fizer um desenho do
tipo esquemático, como palitos, aceitar o desenho e pedir um outro que seja mais
completo e que não seja de palitos; (2) se a criança pedir sugestões ou tiver dúvidas
sobre como fazer alguma parte do desenho, deve-se dizer: Faça da maneira como
você achar melhor, sem fornecer instruções específicas. Terminado o desenho e
sem retirar a folha da frente da criança, o entrevistador solicitará a ela que conte
uma história associada ao desenho: Você, agora, olhando o desenho, pode inventar
uma história, dizendo o que acontece. Lembrando que a história deve ser registrada
por escrito, durante a entrevista, seja pela criança ou pelo entrevistador.

Em seguida, o entrevistador pode fazer algumas perguntas informais para


esclarecer alguns aspectos ambíguos dos desenhos, dizendo (Rosa, 2018): Fale
alguma coisa sobre o seu desenho. Se a criança não identificar espontaneamente

239
uma parte ambígua do desenho, o examinador pode perguntar (apontando): “O que
é isto?” As respostas das crianças devem ser anotadas (em outra folha) e a
identificação das partes deve ser feita diretamente nos desenhos. Não é necessário
fazer perguntas sobre aspectos claros do desenho. Para finalizar, solicita-se que dê
um título para a história.

Participante

L é um garoto de 14 anos, estudante do primeiro ano do ensino médio, com


queixas de sudorese e introversão, atendido em ambulatório no ano de 2018. Com
poucos amigos e grande facilidade nas atividades escolares, sobretudo as que
exigem bom raciocínio lógico, sua área de interesse, participou de campeonatos de
Xadrez e Matemática, sendo finalista nesta segunda modalidade no ano de 2018.

Possui um irmão mais novo, de 11 anos (à época do atendimento), e seus


pais são separados. L vive com sua mãe, o irmão e o padrasto. Sua relação com ele
é boa, e L o acha uma pessoa divertida. Já sobre a sua mãe, diz que ela conversa
pouco e que é muito exigente. Durante as férias, passa boa parte do tempo jogando
video-game, fato que, no entanto, não é motivo de preocupação para os pais.

A sudorese se evidencia nos momentos em que L precisa realizar seminários


ou apresentar algo diante da classe, devido ao seu nervosismo para falar em
público. O suor lhe causa vergonha porque escorre pelas mãos e era um indício de
sua ansiedade, inclusive durante os seminários. Com o decorrer da terapia, seus
sintomas remitiram e ele foi capaz de realizar apresentações em público, ainda que
as lendo.

Resultados e discussão

O DFH-H foi aplicado em L, atendido em ambulatório. Observou-se que ele


apresentou tempo de latência de 14 segundos e tempo de execução de 4 minutos e
55 segundos.

O desenho do paciente não foi avaliado maturacionalmente devido à

240
ausência de normas para a sua faixa etária (14 anos) e à falta de boa parte dos
indicadores maturacionais, já que a figura foi representada somente até o tronco.
Sua produção apresentou os seguintes Indicadores Emocionais: (8) figura grande,
(15) braços colados ao corpo, (17) mãos cortadas, (28) omissão das pernas e (29)
omissão dos pés. Segundo Koppitz (1973 apud Rosa, 2018), a presença de dois
Indicadores Emocionais já indicaria possíveis dificuldades emocionais e a
necessidade de encaminhamento da criança para avaliação psicológica.

A análise projetiva da estória foi feita por meio da técnica de organização de


grupos de traços proposta por Trinca (1997), com fundamentação psicanalítica; as
categorias de análise são subdivididos em 7 unidades: 1) atitudes básicas, 2) figuras
significativas, 3) sentimentos expressos, 4) tendências e desejos, 5) impulsos, 6)
ansiedades e 7) mecanismos de defesa. Já a análise gráfica foi realizada com base
nos estudos de Koppitz (1973) sobre os indicadores emocionais no desenho da
figura humana e a sua validade clínica.

Com relação à estória, percebe-se que L apresenta as atitude básicas de


oposição (violência e relutância em iniciar a estória) e insegurança. Duas figuras
adultas (os possíveis cuidadores) estão presentes na estória de maneira passiva
diante de um acontecimento hostil, carregado de pulsões destrutivas derivadas do
instinto de morte. Há uma ansiedade predominantemente persecutória (muitos
observam o acidente e outros o ignoram) e o impulso prevalente é o destrutivo. L
não apresenta defesas claras em sua estória: aparentemente, todas as figuras
observam um conflito passivamente, sem resolvê-lo, embora haja uma solução vaga
para a manutenção do problema, ainda que esta (o resgate) não tenha chegado.
Pode-se conjecturar que L possui dificuldades para enfrentar certos conflitos e que,
diante deles, vê-se desamparado e sem apoio de figuras significativas, as quais
surgem de maneira vaga em sua produção.

Já com relação aos indicadores emocionais presentes no desenho, pode-se


dizer que estes estão em consonância com a queixa inicial do paciente. Os braços
colados ao corpo (18) indicam baixa conexão interpessoal e dificuldade de
relacionamento, além de um alto controle interno. A ausência de mãos é comumente
associada à timidez, mas também à inadequação, sentimentos de culpa e

241
ansiedade, resultados confluentes com os encontrados em sua história. Do mesmo
modo, a ausência das pernas (28) e dos pés (29) também indica insegurança e
angústia, uma certa ausência de apoio emocional no qual se firmar, bem como
presença de grande timidez. Além disso, a não representação da parte inferior do
corpo pode indicar dificuldades no enfrentamento de questões sexuais, fato, no
entanto, esperado para um jovem de 14 anos em período puberal.

242
Figura 1 - DFH-H de um menino de 14 anos de idade.

História:
L: “Ele está olhando para o lado, para a esquerda ou
para a direita? esquerda, eu acho. Olhando com uma
cara de estranhamento, eu acho.
Inquérito:
[...] Aplicador: Onde ele está?

243
L: Na rua. (Cobre a cara com o capuz e o rosto fica escondido dentro
do capuz até o fim do procedimento)
Aplicador: Será que tem algo escondido?
L: (Silêncio durante 01’05”). Um acidente de carro. [...] O carro estava
em uma rua reta e bateu em uma placa [...] de limite de velocidade.
[...] Aplicador: Alguém se
feriu? L: Não.
Aplicador: Teve socorro?
L: Não.
Aplicador: E as pessoas?
L: Dois adultos. Estão desesperados com o
carro. [...] Aplicador: O que você vê?
L: Várias pessoas olhando e outras
ignorando. [...] Aplicador: Dá para consertar
o carro?
L: Deve dar. [...] Precisa de capô novo, para-choque novo, remoldar a
frente do carro, trocar os pneus, trocar o acelerômetro, alguns fios.
faróis. Acho que só!
Título: O acidente

Os dois aspectos, gráficos e narrativos, convergem em diversos pontos. De


maneira geral, L demonstra grande hesitação e insegurança diante de um mundo
que apresenta a ele questões com as quais ele não é capaz de lidar sozinho. Seu
retraimento e sudorese, apesar das insuficientes informações sobre o caso, podem
ser tanto um forma de defesa contra esses conflitos como um sintoma de sua
incapacidade de resolvê-los sem o apoio necessário, demonstrado pela ausência
de figuras significativas em sua produção.

Conclusões

O caso apresentado demonstra a sensibilidade do DFH-H para captar


aspectos emocionais de um adolescente em idade escolar, com questões tanto
interpessoais, ligadas à angústia proveniente da timidez e do retraimento, como
também àquelas ligadas ao desenvolvimento orgânico, como a possível dificuldade
sexual demonstrada por L em sua produção, própria de adolescentes em estágio

244
puberal. Nesse sentido, a utilização do DFH-H como instrumento de triagem ou de
avaliação inicial pode ser de grande valia para a construção de um quadro clínico
do paciente, sobretudo no que concerne aos aspectos projetivos e emocionais,
âmbito de análise deste estudo. Desse modo, fazem-se necessárias mais
pesquisas, com amostras mais amplas bem como estudos clínicos, para confirmar
o emprego desse procedimento e sua validade.

Referências

Koppitz, W. L. (1973). El dibujo de la figura humana en los niños. Buenos Aires:


Editorial Guadalupe.

Migliorini, W. J. M., & Rosa, H. R. (2018). Desenho da Figura Humana com Estória:
um procedimento para entrevista inicial com crianças e adolescentes.
Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras,
Assis, Brasil/Universidade de São Paulo (USP), Instituto de Psicologia, São
Paulo, Brasil. Assis.

Migliorini, W. J. M., & Rosa, H. R. (2019). O desenho da figura humana, com


história (DFH-H): procedimento e interpretação. Universidade Estadual
Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, Brasil/Universidade
de São Paulo (USP), Instituto de Psicologia, São Paulo, Brasil. Assis.

Rosa, H. R. (2018). Desenho da figura humana em crianças: indicadores


emocionais, evidências de validade e precisão. (tese Livre Docência). Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo.

Tardivo, L.S.P.C. Leila (1997). Análise e interpretação. In: Walter Trinca (org.).
Formas de investigação clínica em psicologia: Procedimento de desenhos-
estórias: Procedimento de desenhos de família com estórias. Vetor.

245
19-SOBRE A FALTA E O MEDO: O IMPACTO DA RELAÇÃO TERAPÊUTICA NA
VIDA DE DOIS IRMÃOS

Juliana Yu Ribeiro Toyoda


Natasha Takuno Hespanhol
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar a experiência das autoras nos


atendimentos de duas crianças pertencentes à mesma família, enquanto estagiárias
de psicologia em um serviço público de atendimento psicoterapêutico. Que
proporcionaram oportunidades de aprofundamento da discussão acerca da
importância da função da maternagem no desenvolvimento infantil, a problemática da
negligência e o papel da relação terapêutica na psicoterapia infantil. A partir do
cuidado e da relação de confiança vivenciadas no setting analítico, foi possível uma
experiência entre terapeutas-pacientes análoga a relação mãe-bebê, em que foi
provida a sustentação e a contenção originalmente esperadas do papel materno
suficientemente bom. Como resultado observou-se melhoras nas questões
comportamentais e de aprendizagem de Bruno e no mutismo seletivo de Luís.

Palavras-chave: Psicanálise, psicoterapia infantil, negligência parental, relação


terapêutica

INTRODUÇÃO

Na psicanálise, se reconhece a importância do ambiente e das relações para o


sujeito. O cuidado parental, desde o início da vida, é fundamental não apenas para o
desenvolvimento físico da criança, mas também para sua constituição psíquica.
Havendo, principalmente na infância, grande relevância da presença afetiva de um
outro implicado, para que haja um ambiente que potencialize o desenvolvimento de
diversos aspectos individuais necessários à vida humana (França & Rocha, 2015).
Em casos que há falta de implicação parental no cuidado com os filhos, o
ambiente não se mostra suficientemente bom e nota-se importantes impactos na
adaptação psíquica dessas crianças. Situações extremas de tal insuficiência
configuram negligência parental.

246
Dentre as formas de violência contra crianças e adolescentes, os maus-tratos
figuram como uma das mais danosas, principalmente devido a sua prevalência e aos
impactos que causam no desenvolvimento dos jovens afetados. Nesse cenário, a
negligência é a modalidade de maus-tratos mais frequente em diversos países,
incluindo o Brasil (Pasian et al., 2013). Fonseca e Ferreira (2019), propõe uma
definição de negligência que compreende

Omissão isolada ou como padrão de comportamento dos pais ou responsáveis


por uma criança ou adolescente que, mesmo dispondo de recursos mínimos,
não investem o cuidado necessário, causando prejuízo em uma ou mais área
do desenvolvimento (Fonseca & Ferreira, 2019, p. 237).

Já Reppold e colaboradores (2002, citado por Pasian et al., 2013) enfocam os


aspectos emocionais e sociais da negligência, definindo-a como indisponibilidade dos
pais ou responsáveis quanto a controlar o comportamento dos filhos, atender às suas
necessidades e demonstrar afeto. Pais ou responsáveis negligentes são pouco
implicados na criação dos filhos, concentrando-se em seus próprios interesses e
"tornando-se indisponíveis enquanto agentes socializadores" para a criança ou
adolescente (Reppold et al., 2002, citado por Pasian et al., 2013).
Felizmente, parte das crianças e adolescentes que sofrem/sofreram de
negligência obtém apoio psicológico. Na psicoterapia infantil, tem-se como objetivo
auxiliar a criança a expressar seus sentimentos, angústias e problemáticas, de
maneira que ela possa desenvolver recursos para lidar tanto com o seu mundo interno,
quanto com o que ocorre em seu mundo externo (Silva et al., 2017). Tendo em vista
que a forma de expressão própria da criança é o brincar, é necessário utilizar-se de
atividades lúdicas para possibilitar tal comunicação (Efron et al., 2011). Ainda assim,
como na psicoterapia de orientação psicanalítica para adultos, na psicoterapia infantil
um dos enfoques principais recai sobre a relação entre o psicoterapeuta e seu
paciente (Zavaschi et al., 2008, citado por Silva et al., 2017). Dessa forma, é crucial
que o terapeuta não apenas obtenha a formação teórica adequada para compreender
o desenvolvimento psicossexual infantil, mas também apresente disposição para
participar de fato das brincadeiras e entrar na fantasia e no mundo interno da criança,
mantendo um olhar mais profundo para além da brincadeira, e se abrindo a formas de
linguagem que extrapolam o verbal (Meira, 2009, citado por Silva et al., 2017).

247
Conforme já apontava Winnicott (1975, citado por Campos & Arruda, 2014), o brincar
é por si mesmo terapêutico, podendo prescindir de interpretação verbal, sendo papel
do terapeuta sustentar este brincar do paciente.

OBJETIVOS

Este artigo tem como objetivo apresentar e discutir os relatos de experiência


trazidos pelas duas primeiras autoras, à época estagiárias de psicologia em um
serviço público de atendimento psicoterapêutico. Tais relatos têm como base os
atendimentos realizados com duas crianças pertencentes à mesma família, a partir
dos quais algumas temáticas importantes surgiram, a saber: a importância da função
da maternagem no desenvolvimento infantil, a problemática da negligência e o papel
da relação terapêutica na psicoterapia infantil.

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Bruno
Bruno, foi atendido pela primeira autora deste relato durante dois anos, dos
seus 9 aos 11 anos. As queixas iniciais indicavam que era um menino agitado e com
dificuldades de concentrar-se. A escola havia recomendado a busca por atendimento,
já que o menino não aprendia a ler ou escrever e, seu comportamento causava
prejuízo na relação com as outras crianças.
Foram realizadas entrevistas com os principais cuidadores do menino, em que
foi possível delinear sua história. Esta mostrou-se marcada por constante
instabilidade, característica do modo como sua mãe, Anita, foi construindo as relações
importantes da vida dos dois.
Bruno não conheceu o pai biológico, mas no seu primeiro ano de vida, o
companheiro de sua mãe, Richard, tornou-se pai de consideração do menino. Neste
casamento foi concebido um segundo filho, Luís, que, desde o início da vida, mora
com a família de Richard, tendo um contato pobre com os pais e o irmão. Após o
primeiro ano de atendimento de Bruno, o irmão mais novo passou a ser atendido pela
segunda autora deste relato.
Um acontecimento relevante na história de Bruno, que aponta sinais de
negligência, foi um acidente doméstico grave que ocorreu quando era muito pequeno,

248
colocando-o em uma situação de risco de vida, mas do qual se recuperou sem
sequelas importantes.
Pouco após o nascimento do segundo filho, Anita separou-se de Richard e este
passou a ter um contato quase inexistente com Bruno. Desde as entrevistas, Anita
mostrou-se uma mulher muito prática, assertiva e tempestuosa, com dificuldades
importantes de investir no vínculo com os filhos. Se ausentando de sua casa, durante
a maior parte do dia e negligenciando aspectos importantes do cuidado com Bruno,
como a necessidade de a criança ficar acompanhada de um adulto durante o período
que fica em casa, ou de haver uma organização de sua rotina. Além disso, mostra
dificuldades de interessar-se pelo universo infantil habitado pelo filho e de acessar um
aspecto mais afetivo do cuidado com a criança.
Há alguns anos, Anita iniciou outro relacionamento, com Adriana, que mora
com ela e Bruno. Ela é retratada como uma cuidadora mais disponível, descrevendo
sua relação com o menino de forma muito afetiva, com histórias bastante ricas em
detalhes de como ela se dedica a essa maternidade, afirmando tê-lo assumido como
filho. Porém, esses relatos contrastam com as outras observações da família, o que
parece indicar que o cuidado vai se dando de forma balizada pelas vontades de Anita.
Bruno, por sua vez, se mostra como uma criança com dificuldades de lidar com
seus impulsos, sendo muito agitado e desconcentrado. Mas que consegue se engajar
bem no contato com a terapeuta, durante as brincadeiras e conversas.
Diante de tudo isso, a primeira estratégia pensada para os atendimentos foi
que o espaço das sessões fosse sendo utilizado para pensar, em conjunto com os
cuidadores, as questões relacionadas às formas de cuidado presentes e possíveis
naquelas relações. E para proporcionar oportunidades de realizarem atividades em
conjunto. Porém, como as expectativas da família para o tratamento da criança,
pareciam passar por um lugar de terceirização do cuidado com o filho, foi sendo um
desafio procurar maneiras de implicá-los no processo.
Ao longo do primeiro ano de atendimento, aconteceu um processo constante
de negociação sobre quem acompanharia o menino. Quando comparecia às sessões,
Anita mantinha uma postura defensiva, oferecendo respostas curtas e mostrando-se
preocupada em se afirmar como uma boa mãe. Fazia um movimento de cancelar as
consultas seguintes, quando havia momentos na sessão em que ela podia examinar
mais profundamente sua relação com o filho, ou em que ela podia se aproximar dele
por meio de brincadeiras propostas.

249
Durante o segundo semestre de atendimento, Bruno foi acompanhado por
Richard algumas vezes. Este se mostrava contrafeito em precisar participar, além de
ficar evidente que não tinha nenhuma intimidade com a vida do filho. Após um
desentendimento com Anita, antes do fim do semestre, parou de levar o menino.
Apesar do não envolvimento dos cuidadores, ao longo do primeiro ano, Bruno vai
apresentando melhora no comportamento e nas dificuldades de aprendizagem.
No ano seguinte, com o início do atendimento do Luís, Bruno passou a ser
levado à psicoterapia, pela família paterna, com quem tinha pouca relação. Com isso,
houve a necessidade de uma mudança de estratégia terapêutica. E o tempo particular
com Bruno foi aproveitado, de maneira geral, com jogos e brincadeiras escolhidos por
ele. Ele apresentou um comportamento bastante competitivo, animado e engajado
nestas atividades. Mostrando predileção por atividades mais estruturadas durante
quase todo o período em que foi atendido.
No último semestre, ocorreu uma mudança e os interesses do menino se
voltaram para recursos criativos, como pintura e massinha de modelar. Além disso, foi
surgindo uma fala espontânea e o menino foi usando o espaço para contar
acontecimentos de sua vida.
Essas mudanças pareceram indicar um fortalecimento do vínculo terapêutico.
Nas primeiras interações com massinha, Bruno se dedicava mais a uma brincadeira
independente, que não incluía a terapeuta. Houve uma ocasião que construiu uma
muralha e colocou uma representação sua dentro, dizendo que morava lá sozinho.
Após algumas sessões, a brincadeira mudou, havendo a construção conjunta de
personagens de massinha, seguida da representação delas realizando atividades,
como jogar videogame e futebol.
Observando o conteúdo das brincadeiras, foi marcante o uso do espaço para
expressar algo de seu sofrimento. Por exemplo, as pessoas que ele criava com a
massinha eram sempre muito finas e, portanto, não se mantinham inteiras,
constantemente perdiam pedaços, o que o leva a concentrar sua atenção quase total,
em tentar reconstruí-las.
Houve, por fim, duas cenas importantes no final do segundo ano de
atendimento. Em uma, Anita relata ter lido mensagens que Bruno trocou com colegas,
em que conta ter sido abandonado por Richard, afirmando que isso o deixaria triste.
Após o ocorrido, Bruno passa a apagar as mensagens de seu celular. Na segunda

250
cena, uma semana após a primeira, Bruno confronta a terapeuta, acerca das
confidencialidades entre ela e sua mãe.
Fica então evidente, que as dificuldades de Anita, determinam ainda, diversas
impossibilidades para exercer uma maternagem suficientemente boa. Há na história
dela marcas profundas, que acabaram por constituir dificuldades importantes de
vinculação. Em comparação, o comportamento de Bruno nos atendimentos e as duas
cenas relatadas, parecem apontar que o menino tem mostrado, cada vez mais,
condições de encontrar possibilidades de cuidado e saúde por si mesmo. E um
possível caminho de terapia futuro seja o fortalecimento da saúde emocional de
Bruno, para lidar e sobreviver às dificuldades de afeto e vinculação que os cuidadores
apresentam. Enquanto proporcione meios de Anita cuidar mais ativamente de suas
questões.

Luís
O primeiro contato da segunda autora deste relato de experiência com a
história de Luís, sete anos, meio-irmão de Bruno, se dá através dos diferentes núcleos
familiares que circundam o menino: seu pai (Richard); sua tia e seu avô paternos
(Verônica e Eduardo); e sua mãe (Anita). Através dos relatos (por vezes consoantes,
por vezes complementares, por vezes contraditórios) de todos os atores desse drama
familiar, a história desse jovem protagonista é delineada.
A gestação de Luís é descrita como tranquila por parte de Anita. Durante as
primeiras semanas de vida, Luís mora com os pais e o irmão mais velho. É a partir de
um acidente de Anita que Luís vai para os cuidados dos pais e irmã caçula de Richard.
Um arranjo que deveria ser temporário vai se estendendo no decorrer de meses, até
que o menino é informalmente adotado pelos familiares do pai. Com a separação de
Anita e Richard, o contato do menino com os pais, principalmente com a mãe, se torna
cada vez mais raro. Na primeira infância de Luís, portanto, seus avós e sua tia figuram
como principais cuidadores, e o desenvolvimento do menino é por eles é descrito
como típico. É apenas quando o menino já está mais velho, a partir dos quatro anos,
que Anita passa a buscá-lo nos fins de semana. Em relação ao pai, ele só o vê
esporadicamente, na ocasião de algum programa diferente.
Quando Luís estava com cinco anos, ocorre um episódio que é descrito
unanimemente como significativo. É época de férias escolares, e Anita leva Luís em
uma viagem. Inicialmente, o período combinado para o passeio é de apenas alguns

251
dias, no entanto, Anita acaba estendendo a viagem para algumas semanas,
contrariando as vontades de Verônica e de Eduardo. Ocorrem trocas tensas entre as
duas famílias, com ameaças (por ambas as partes) de se entrar na justiça pela guarda
do menino.
Após esse episódio e a volta de Luís para a casa do avô e da tia, a relação
entre as famílias se apazigua. Apesar da resolução "pacífica" para o conflito familiar,
seus efeitos no desenvolvimento de Luís não passam despercebidos. Por um lado,
Verônica e Eduardo contam que, após esse incidente, Luís voltou para casa muito
irritado, bravo, "explodindo" com facilidade, e mais desobediente do que era antes.
Por outro, Anita relata que, após a viagem, Luís começou a agir de maneira mais
tímida com ela, se recusando a sorrir, a conversar e a olhar nos olhos. Richard conta
que Luís não responde verbalmente a suas perguntas, sendo necessário que ele o
"obrigue" a falar. Todos os entrevistados afirmam que em situações sociais, tanto com
outras crianças, mas principalmente com adultos (que não sejam Verônica ou
Eduardo), Luís se porta de maneira extremamente retraída, apresentando
impossibilidade de falar e interagir, diferentemente de como se comportava
anteriormente.
Assim, Anita chega ao serviço de psicologia com a hipótese de que seu filho
pode apresentar algum transtorno. Enquanto Verônica e Eduardo defendem que com
eles “o Luís é um menino normal”, apontando que seus problemas comportamentais
e dificuldades interpessoais começaram após a criança passar a ter um contato mais
regular com a mãe. É neste panorama que Luís começa a ser atendido.
Inicialmente, Luís se mostra retraído e fechado. Só entra na sala de
atendimento acompanhado. Não olha na direção da terapeuta, se recusando a
interagir. Durante as brincadeiras, Luís mantém uma expressão neutra/séria no rosto
em todos os momentos.
Após as primeiras sessões, Luís passa a aceitar entrar sozinho com a
terapeuta. A princípio, como o menino brinca de maneira ensimesmada, não sendo
receptivo à participação mais ativa da terapeuta, ela se envolve nas brincadeiras
realizando a narração das ações dos personagens. A partir de tal narração, Luís
começa a reagir de maneira mais explícita, por vezes sorrindo diante de algum
elemento da estória construída conjuntamente. Com o tempo, o menino permite que
a terapeuta participe ativamente de tais brincadeiras, controlando o movimento de

252
certos personagens. Além disso, Luís passa adotar jogos com bola, engajando
ativamente a terapeuta nas partidas.
O momento de virada nos atendimentos ocorre pouco depois das primeiras
brincadeiras com a bola. Ao explorar a caixa lúdica, Luís se depara com dois telefones
de brinquedo e começa a brincar com eles. A terapeuta pergunta se ela pode pegar
um dos telefones emprestado para fazer uma ligação, e Luís coloca um dos telefones
na mesa, mais próximo dela, e depois se afasta, levando o outro consigo. Através
dessa linha telefônica imaginária, a terapeuta manifesta seu desejo por contatar Luís,
mas aceita quando ele se mostra impossibilitado de responder verbalmente. Ela então
"deixa um recado" a ser repassado a Luís, na forma de um elogio fervoroso a suas
habilidades no futebol, seguido de um desafio a uma partida, que ele prontamente
aceita.
Depois dessa troca inicial, torna-se habitual que Luís pegue o telefone e
entregue o outro a terapeuta quando quer lhe dizer algo. A princípio, ele fala de
maneira muito enrolada e murmurada, de forma que é impossível compreender o que
diz. Ainda assim, a terapeuta incentiva tais falas, que vão se tornando mais claras com
o passar do tempo.
Após cinco meses de atendimento, Luís passa a revirar/bagunçar mais a caixa
lúdica e a própria sala de atendimento, demonstrando um comportamento mais
travesso. O menino passa a demonstrar maior agressividade nas brincadeiras. Além
disso, percebe-se que, na própria sala de espera, Luís se porta de forma mais
extrovertida e menos retraída.
Após cerca de seis meses de atendimento, Luís começa a preferir brincadeiras
de faz de conta, nas quais o enfoque está nas ações e trocas estabelecidas entre ele
e a terapeuta, mediadas pelo espaço físico da sala de atendimento. É justamente a
partir de tais brincadeiras que Luís passa a prescindir do uso dos telefones para se
comunicar verbalmente com a terapeuta, e passa a fazê-lo de maneira mais
espontânea, menos tensa e com menores tempos de latência em suas respostas.
Conforme a terapia progride, torna-se comum que, entre uma brincadeira e
outra, Luís suba em cima da poltrona para olhar para fora da janela, e comece um
diálogo qualquer com a terapeuta, diante do qual ela faz perguntas disparadoras e
reage a suas colocações. Ele ainda se mostra reticente em relação a fazer contato
visual com a terapeuta, porém sua postura é menos cabisbaixa e ele é capaz de olhar
da direção do rosto da terapeuta durante as brincadeiras.

253
Por meio de entrevistas com os responsáveis, sabe-se que Luís passou a
interagir com mais facilidade com os colegas na escola, e tem se mostrado mais à
vontade para se comunicar com sua professora. Na casa da mãe, Luís age com mais
segurança e menos timidez, apesar de manifestar dificuldades na interação com Anita.
Com o pai, a relação permanece ambígua, com Luís manifestando vontade de fazer
atividades com Richard, ao mesmo tempo em que apresenta comportamento ansioso
em tais interações.

DISCUSSÃO

Tendo em vista que, com base nos princípios winnicottianos, podemos


considerar a vivência da dupla terapeuta-paciente no setting analítico como análoga
à experiência da mãe-bebê, é possível afirmar que, nessas condições, uma das
principais funções do terapeuta é propiciar um ambiente de tranquilidade e segurança
para que o paciente possa contribuir com um gesto criativo (Costa et al., 2013). Isso
se manifesta no cuidado em relação ao paciente, e permite o estabelecimento de uma
relação de confiança e intimidade, de forma que a criança pode buscar sua integração
no ambiente terapêutico (Costa et al., 2013). Em ambos os processos terapêuticos
acima relatados, almejou-se criar e manter tal ambiente, favorecendo a livre
expressão dos pacientes, e o desenvolvimento de uma relação de confiança para com
as terapeutas.
Winnicott (1963/1983d, citado por Costa et al., 2013) denomina de
comunicação silenciosa aquela que ocorre por meio da mutualidade existente na
relação mãe-bebê, na qual a mãe oferece segurança para que o bebê possa ter
confiança no mundo, e gradativamente fazer a passagem da dependência absoluta à
dependência relativa, percorrendo o caminho até a independência (que jamais chega
a ser alcançada). Uma das falhas de comunicação identificadas por Winnicott é a não
comunicação reativa/ativa, que pode ser patológica ou não, sendo que a patológica
está relacionada a uma tentativa do bebê se defender de um ambiente que se
demonstrou incapaz de atender a suas necessidades maturacionais (Costa et al.,
2013). Essa não comunicação, entretanto, pode ser considerada adaptativa, uma vez
que pode significar uma comunicação "silenciosa ou secreta com objetos subjetivos,
a fim de que se tenha a sensação de ser real, diferentemente da sensação de
irrealidade que a comunicação falso-self representa" (Costa et al., 2013, p. 56). Tendo

254
em vista tais conceitos, é possível realizar uma comparação com o desenvolvimento
manifestado por Luís em seu processo psicoterapêutico, no qual, a princípio, ele
apresentou uma não comunicação reativa (idêntica à que apresenta em outros
contextos cotidianos), sendo depois possível a comunicação silenciosa, o que permitiu
que ele desenvolvesse confiança naquele "mundo" da psicoterapia e passasse a
explorar outras formas de comunicação, inclusive a verbal. Nesse contexto, foi crucial
que a terapeuta pudesse acompanhar o silêncio do paciente, compreendendo tal
silêncio como manifestação de um nível regredido no qual Luís se refugiava e do qual
apenas poderia sair por si só.
Com base nos relatos de experiência, é possível inferir que as terapeutas foram
capazes de manejar o setting de maneira a favorecer a existência do espaço
transicional para as crianças atendidas, ou seja, uma área intermediária entre
realidade subjetiva e realidade compartilhada (Ribeiro, 2007, citado por Costa et al.,
2013), que propicia expressão e amadurecimento emocionais. É nesse espaço que a
criança pode descobrir a si e aos outros/mundo, através da facilitação do terapeuta,
que realiza a apresentação de objetos, bem como oferece holding e handling
(originalmente imcumbências da mãe do bebê), não se ausentando abruptamente –
ou seja, basicamente, atuando como uma mãe suficientemente boa (Costa et al.,
2013). Percebe-se como tal cuidado foi crucial para a melhora das crianças atendidas,
em particular de Bruno, que manifestou o desenvolvimento de habilidades sociais e
de vinculação cada vez mais complexas, investindo em relações inclusive para além
do espaço de terapia. Além disso, mostrou maior domínio e contenção de seu próprio
comportamento, que facilitaram o enfrentamento de suas questões de aprendizagem.

REFERÊNCIAS

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psicoterapia de crianças com mutismo seletivo. Estudos Interdisciplinares em
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http://www.revistafarol.com.br/index.php/farol/article/view/50/80

256
TRABALHOS DO LABORATÓRIO DE SAÚDE
MENTAL E PSICOLOGIA CLÍNICA SOCIAL

SER E FAZER

257
20- “MUNDOS INVERTIDOS”: IMAGINÁRIO COLETIVO SOBRE A RELAÇÃO
HETEROSSEXUAL

Annie Rangel Kopanakis*


Débora Ortolan Fernandes de Oliveira**
Amanda V. Costa
Ana Julia Grecchi, Beatriz F. Zago***
Carolina V. Marin,
Maria Beatriz A. Guedes***
Renata V. P. Macanhã***
Stephanie Gabriela A. Mello,
Vitória G. S. Ramos***
Tânia Aiello-Vaisberg****i

Resumo: Este estudo objetiva investigar psicanaliticamente imaginários coletivos


sobre a relação heterossexual na perspectiva da psicologia psicanalítica concreta.
Justifica-se a partir da consideração de que a sociedade em que vivemos se organiza
de modo sexista, gerando sofrimentos emocionais socialmente determinados.
Organiza-se ao redor do método psicanalítico, utilizando, como material de pesquisa,
vídeos de humor encontrados no canal Porta dos Fundos, de livre acesso no YouTube,
que tematizam manifestamente a questão em estudo. A consideração psicanalítica do
material permitiu a produção interpretativa de um campo de sentido afetivo-emocional,
nomeado como “Mundos Invertidos”, que se organiza ao redor da crença de que
homens e mulheres são seres imaturos, diferentes e estranhos entre si. O quadro
geral sugere que o material estudado aponta para dificuldades relacionais
importantes, derivadas de duas formas complementares de imaturidade que se
plasmam em campo que, invocando diferenças aparentemente insuperáveis, revelam
como o sexismo pode gerar efeitos prejudiciais.

Palavras-chave: Imaginário coletivo, Relação heterossexual, Sexismo, Pesquisa


psicanalítica.

258
O Problema de Pesquisa

Apesar de heterogênea, complexa e multifacetada, a sociedade


contemporânea tende, em muitos de seus espaços, a organizar-se de modo sexista.
Sendo assim, entendemos que estudos, como o presente, que visam produzir
conhecimento que contribua para a abordagem de sofrimentos sociais, vinculadas a
questões de gênero, apresentam grande relevância.
Temos nos deparado, em diferentes trabalhos, realizados em nosso grupo de
pesquisa, com sofrimentos sociais ligados aos relacionamentos amorosos entre
homens e mulheres. Uma delas, realizada por Corbett, Ambrosio, Gallo-Belluzo e
Aiello-Vaisberg (2014) constatou, por meio da investigação do imaginário coletivo de
estudantes de psicologia sobre dificuldades sexuais, a vigência de um imaginário
caracterizado pela definição rígida dos papéis de gênero. Assim, o material indicou
que a sexualidade dos homens é imaginada de modo atrelado a demonstrações de
capacidades viris, enquanto a feminina estaria relacionada a envolvimentos de ordem
emocional, que se manteriam bem contidos nos limites dos papéis de mãe e esposa.
Em linhas convergentes, quanto à compreensão dos papéis de gênero, nos
relacionamentos, Schulte, Gallo-Beluzzo e Aiello-Vaisberg (2019), ao realizarem uma
pesquisa psicanalítica sobre a experiência emocional de mulheres que vivenciam a
maternidade, chegaram a resultados interpretativos de acordo com os quais essa
experiência estaria atravessada por sofrimentos emocionais vinculados a condutas
sexistas. Nesse contexto, a maternidade seria uma obrigação da mulher que se ligaria
à sua condição biológica natural. De forma análoga, Visintin e Aiello-Vaisberg (2017)
corroboram com a compreensão de que o sofrimento materno está ligado a pesadas
exigências sociais que povoam imaginários relativos às obrigações das mulheres.
Nesse cenário de estudos psicanalíticos sobre questões vinculadas a gênero e
sexismo, vale a pena lembrar também da pesquisa de Assis (2019) que, em harmonia
com os estudos anteriormente citados, constata a vigência de imaginários
conservadores sobre a figura da menina adolescente. Winkler (2019) discutiu a
transição da mulher para a vida adulta, demonstrando uma visão bastante
conservadora sobre a figura feminina que adentra o mundo adulto. Por fim, trazemos
a pesquisa de Inacarato et al. (2019), que abordando expectativas amorosas

259
heterossexuais frente aos relacionamentos, constatam imaginários conforme os quais
homens e mulheres vivenciam necessidades conjugais diferentes perante o
relacionamento e, ainda assim, para atingirem a felicidade, precisam casar, trazendo
à tona o mito do amor romântico.
Deparamo-nos com uma sociedade que lida com estigmas relacionados a
construção de uma família nuclear, composta por pais e filhos. O fato de as relações
amorosas heterossexuais causarem sofrimentos sociais é, em si mesmo, bastante
importante do ponto de vista psicológico, mesmo quando só consideramos o homem
e a mulher. Contudo quando lembramos que a sociedade, em que vivemos, considera
a família nuclear, constituída a partir do estabelecimento de laços afetivo-sexuais,
como o melhor ambiente para a proteção e preparação das novas gerações,
percebemos que o tema das relações heterossexuais apresenta alta relevância.
Sabemos que mudanças significativas têm permitido a constelação de novas
configurações familiares, mas tal fato não atinge uma abrangência suficiente para já
enfraquecer imaginários conservadores que idealizam a criação de filhos como
derivada de uma suposta necessidade feminina, biologicamente fundada, de se tornar
mãe e da necessidade masculina de se comportar de modo viril (Zanello, 2018). Tal
idealização, em torno de famílias nucleares tradicionais como ambientes necessários
para a criação de filhos, demonstra a importância da produção de conhecimentos
científicos sobre imaginários relativos às relações heterossexuais.

Estratégias Metodológicas

Visando a produção de conhecimento sobre imaginários coletivos acerca de


relações heterossexuais, esta pesquisa apresenta-se como estudo qualitativo com
uso do método psicanalítico. Insere-se num conjunto maior de investigações por meio
das quais buscamos produzir conhecimentos compreensivos sobre fenômenos
humanos, incluindo aspectos que podem ser inconscientes.
Delimitamos nossa perspectiva teórica como baseada nas contribuições de
Politzer (1928/2004), posteriormente retomadas e desenvolvidas por Bleger
(1963/2007), a partir das quais elaboramos pesquisas qualitativas com método
psicanalítico. A psicologia psicanalítica concreta corresponde a uma das vertentes que
se incluem sob o paradigma relacional (Greenberg & Mitchel, 1994), que é aquele que

260
recusa teorizações metapsicológicas, que são o cerne da metapsicologia, afirmando
a primazia do mundo intersubjetivo e relacional na constituição do viver humano.
Para produzir conhecimento compreensivo, a pesquisa qualitativa psicanalítica
que desenvolvemos se articula por meio de uma postura compreensiva perante a
dramática da vida humana. Desse modo, consideramos que os fenômenos
psicológicos ocorrem inevitavelmente em campos intersubjetivos que, por seu turno,
inserem-se em contextos macrossociais econômicos, históricos, geopolíticos e
culturais.
Partindo da psicologia psicanalítica concreta, entendemos como tarefa
necessária definir conceitos de caráter metodológico, com intuito de esclarecer a
proposta de nosso estudo. Utilizamos como diretrizes fundamentais os conceitos de
conduta, campos de sentido afetivo-emocional e imaginário.
O conceito de conduta corresponde a todos os atos e manifestações humanas,
que tomamos como inerentemente carregados de sentidos. As condutas emergem de
campos inter-relacionais, não correspondendo a mero efeito do psiquismo individual,
concebido como isolado do acontecer intersubjetivo.
O campo de sentido afetivo-emocional corresponde à compreensão psicológica
de que todas as manifestações humanas emergem a partir de um fundo
constitutivamente vincular, denominado campo, por meio do qual se constelam
sentidos afetivo-emocionais (Bleger, 1963/2007). Tais campos psicológicos não
conscientes são concebidos, na perspectiva da psicologia psicanalítica concreta,
como inconscientes intersubjetivos, habitados por pessoalidades individuais e
coletivas, segundo os quais se organizam imaginários coletivos.
Assim, tanto a conduta como o campo de sentido afetivo-emocional são
produzidos por atos humanos, na medida em que assumimos metodologicamente,
como psicólogos/psicanalistas, que não invocaremos entidades sobre-humanas nem
infra-humanas como determinantes.
Na medida em que não invocamos entidades sobre-humanas nem infra-
humanas nas determinações dos atos humanos, estamos assumindo que os atos
emergem a partir de campos intersubjetivos que, por seu turno, são criados pelas
próprias condutas. Sendo assim, não existem diferenças ontológicas entre condutas
e campos de sentido afetivo-emocional, de modo que a noção de imaginário serve
para referir tanto atos imaginativos quanto campos imaginários como formas de
atualização da capacidade humana de imaginar, no sentido de criar realidades.

261
Estudar imaginários coletivos a partir de condutas humanas permite chegar
interpretativamente a seus determinantes afetivo-emocionais não conscientes. Na
medida em que os atos humanos podem ser individuais ou coletivos, são várias as
condutas que se prestam a ser tomadas como material de pesquisa de imaginários
coletivos, desde entrevistas, individuais ou coletivas, até manifestações disponíveis
na web e produções culturais, como peças literárias, filmes e canções, entre outros
(Aiello-Vaisberg & Machado, 2008).
Diante do objetivo de produzir conhecimento compreensivo acerca de
imaginários coletivos sobre relações heterossexuais, operacionalizamos o método
psicanalítico a partir de três procedimentos investigativos: produção, registro e
interpretação do material de pesquisa.
O procedimento investigativo de produção do material de pesquisa se cumpriu
a partir da decisão de trabalhar com vídeos do canal “Porta dos Fundos”, disponíveis
na plataforma virtual do YouTube. Tal escolha justifica-se pelo amplo e significativo
acesso ao conteúdo humorístico produzido neste canal. Interessadas em estudar a
temática dos relacionamentos afetivos, inserimos no campo de busca, do canal “Porta
dos Fundos”, as palavras: relacionamento e casamento, o que nos levou ao contato
com diversos vídeos, dentre os quais selecionamos três produções por tematizarem
manifestamente essa temática, considerando, ainda, os impactos
contratransferenciais que geraram sobre as pesquisadoras, que os vivenciaram como
especialmente expressivos. Os vídeos estão denominados no canal do YouTube da
seguinte forma: “Precipício”, “Histérica” e “Bromance”.
Em relação ao procedimento investigativo de registro do material de pesquisa,
salvamos os próprios vídeos, de modo a ficarmos independentes da possibilidade de
se tornarem indisponíveis na web.
Finalmente, no que tange o procedimento investigativo de interpretação do
material de pesquisa, entramos em contato com os três vídeos repetidas vezes,
mantendo-nos em estado de atenção flutuante, para que pudessem surgir as
associações livres. Inicialmente, lançamos mão de um recurso facilitador da adoção
da atitude fenomenológica, exigida pelo método psicanalítico, optando por
confeccionar desenhos livres que retratassem o impacto transferencial de cada vídeo
assistido pelo grupo. Em seguida, procedemos a várias conversas livres sobre as
impressões causadas pelos vídeos. Por essa via, que se fez à luz das palavras de
ordem de Herrmann (1979), “deixar que surja”, “tomar em consideração” e “completar

262
a configuração de sentidos emergentes”, buscamos criar/encontrar substratos
emocionais inconscientes, ou seja, os campos de sentido afetivo-emocional, que
correspondem ao inconsciente intersubjetivo com o qual trabalha a psicologia
psicanalítica concreta (Bleger, 1963/2007).
Por fim, após a suspensão do uso do método psicanalítico, dedicamo-nos as
interlocuções reflexivas. Nesse momento realizamos um trabalho reflexivo e de
teorização, em que os resultados interpretativos, apresentados como campos, são
compreendidos de forma aprofundada, com auxílio de literatura psicanalítica e de
outras áreas que venham a contribuir com as reflexões.

Interpretações: Campo de sentido afetivo-emocional

A consideração psicanalítica do material permitiu que


criássemos/encontrássemos um campo de sentido afetivo-emocional que
denominamos: “Mundos Invertidos”, que se organiza ao redor da crença de que
homens e mulheres são seres imaturos, diferentes e estranhos entre si. Esse campo
permitiu a compreensão de que os sexos feminino e masculino são caracterizados e
compreendidos de maneira distintas no imaginário coletivo aqui estudado.
A seguir apresentamos as composições coletivas, realizadas pelas
pesquisadoras durante o procedimento investigativo de interpretação do material. Tais
composições foram realizadas à luz do método psicanalítico, através da livre
expressão das pesquisadoras e retrata fenômenos observados no material de
pesquisa, bem como impactos contratransferenciais vivenciados.

Figura 1 “Precipício”

263
No vídeo “Precipício” as diferenças entre homens e mulheres são
demonstradas através de necessidades distintas, sendo que a figura feminina aparece
como carente de afeto e segurança e a masculina como desprovida de sensibilidade
afetiva.

Figura 2 “Histérica”

264
A produção humorística “Histérica” demonstra uma figura masculina
estereotipada em padrões de condutas que tradicionalmente são consideradas
femininas, como o descontrole, a imaturidade afetiva, a necessidade de atenção e
dependência emocional, ao mesmo tempo em que a mulher se apresenta de modo
sereno, calmo, pragmático e racional, vale dizer, segundo padrões habitualmente
atribuídos aos homens. De modo inteligente e refinado, o vídeo opera uma disjunção
entre o padrão e a condição de gênero.
Figura 3 “Bromance”

“Bromance”, o terceiro vídeo estudado, demonstra a figura feminina como


chata, desinteressante, exigente, emocionalmente carente e pouco capaz de entrar
em contato empático com o companheiro que tampouco se mostra sensível às
necessidades da mulher. Paralelamente, a figura masculina, na forma de um amigo,
demonstra-se como divertida, compreensiva, disponível e emocionalmente
sintonizada. O vídeo tece, portanto, uma crítica fina sobre a incapacidade de abertura
para a alteridade.

Interlocuções Reflexivas

A compreensão de que homens e mulheres são seres muito diferentes entre si,
a ponto de não terem muitas afinidades, pode ser relacionada a sofrimentos sociais
na medida em que as características de gênero são socialmente produzidas. Padrões
265
e estereótipos substituem a realidade de que a fisiologia genital não determina traços
psicológicos.
Em trechos do nosso material de pesquisa, a personagem feminina figura como
louca, irritante, necessitada de um relacionamento estável, insegura e dependente. Já
a figura masculina é denotada como imatura, não emotiva e autossuficiente. Este
achado converge com o que costumamos encontrar em nossa experiência clínica,
bem como com padrões sociais segundo os quais os homens não devem expor seus
sentimentos, pois podem ser considerados frágeis e afeminados, enquanto às
mulheres tais exigências não seriam feitas, em função de suas deficiências
intrínsecas.
Vários aspectos, presentes no material aqui estudado, parecem
compreensíveis à luz dos diferentes modos pelos quais o casamento pode ser visto
por homens e mulheres, segundo diferentes expectativas. De acordo com Zanello
(2018), podemos constatar que filmes e outros meios tecnológicos demonstram que o
ideal da mulher, mas não do homem, seria casar e deste modo obter um companheiro.
Nessa linha, o casamento é visto como solução de uma necessidade feminina, mas
não masculina, de modo que ao casar o homem faria uma concessão. Provavelmente
a questão da maternidade, não tematizada nesses três vídeos, seja algo de suma
importância nesse contexto, na medida em que a realização feminina parece ser a
maternidade (Visintin & Aiello-Vaisberg, 2017; Schulte, Gallo-Belluzzo & Aiello-
Vaisberg, 2019), da qual o casamento seria requisito prévio nas condições de
normalidade.
O homem aparece, em “Bromance”, por exemplo, um tanto perplexo pelo fato
da mulher não se colocar na posição de quem deve aceitar e acolher as escolhas do
companheiro. Entendemos que tal expectativa se funde exatamente na fantasia de
concessão, que faz sentido num contexto segundo o qual o casamento seria antes de
mais nada uma realização para a mulher. Por outro lado, a mulher parece almejar do
namorado/companheiro condutas carinhosas e protetoras, que provavelmente
tornariam visível sua própria importância na vida do homem com quem ela se
relaciona. Tal necessidade figura como característica natural da mulher e não como
fruto de processos de socialização vigentes na sociedade em que vivemos.
Winkler (2019), em seu estudo sobre imaginários coletivos de mulheres jovens
sobre o tornar-se adulta, encontrou um campo denominado “Manual para ser mulher”,
que se organiza ao redor da fantasia de que é preciso seguir certas normas de gênero

266
para ser mulher adulta. Assim, revela que a mulher para ser aceita precisa
corresponder a certos padrões pré-estabelecidos, para assim obter uma aprovação.
Nessa linha, o casamento simbolizaria um importante sinal de obtenção de aprovação,
a mulher figurando como alguém de valor porque um homem quis se casar com ela.
Esse campo também demonstra uma importante crítica a respeito da submissão
feminina, imposta socialmente, que precisa agradar aos demais para ser aceita.
Quando se trata da relação amorosa heterossexual, os materiais permitiram a
percepção de diferenças complementares nos relacionamentos, configurados, na
maioria das vezes, através da concepção do homem como ser capaz, forte, seguro,
provedor e da mulher como física e emocionalmente frágil, incapaz e carente.
Os achados deste estudo convergem com o pensamento de que o sexismo
gera sofrimentos emocionais socialmente determinados e importantes de serem
reconhecidos, não apenas para as mulheres, mas também para os homens. Desse
modo, converge com visões, como a de bell hooks (2017), autora que insiste na ideia
de que as transformações da sociedade defendidas pelas feministas mais lúcidas
política e eticamente, visam mudar a vida e beneficiar mulheres e homens.

Referências

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Zanello, V. (2018) Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de


subjetivação. Appris: Curitiba.

* 1 Mestre em Ciências Sociais pela UNESP., Doutoranda em Psicologia pela PUC-Campinas, bolsista da
CAPES.
**Mestre em Psicologia pela PUC-Campinas, Doutoranda em Psicologia pela PUC-Campinas, bolsista da
CAPES.
*** Graduandas em Psicologia pela PUC-Campinas
*** Professora Livre Docente pelo Instituto de Psicologia pela Universidade de São Paulo. Orientadora dos
Programas de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica De Campinas e do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Coordenadora da “Ser E Fazer”: Oficinas
Psicoterapêuticas de Criação do IPUSP e do NEW- Núcleo De Estudos Winnicottianos De São Paulo.

268
21 – “A VADIA COMPETENTE”: IMAGINARIO SOBRE A MULHER NO MERCADO
EXECUTIVO

Bruna Risquioto Batoni,

Marina Miranda Fabris Zavaglia,

Ingrid Pedrosa,

Isabella El Dorr

Larissa Braga Mota,

Leandro Dias de Almeida,

Rafaela Mafra Souza

Taís da Silva Volet

Vinicius de Almeida Tofolete

Tânia Aiello-Vaisberg

Resumo: o presente trabalho apresenta o imaginário coletivo de parcela da sociedade


brasileira a respeito de um sofrimento social da população feminina inserida no mercado de
trabalho executivo. Justifica-se na medida em que é crescente o número de trabalhadoras
com formação de nível superior de estudos, as quais, todavia, continuam enfrentando
dificuldades sociais. A metodologia embasa-se na psicologia psicanalítica concreta e consiste
na análise da produção “Emprego” presente no Youtube, dirigida por humoristas de um grupo
chamado Porta dos Fundos. A escolha do material deu-se por tematizar humoristicamente
situações que mulheres, que buscam emprego ou que trabalham profissionalmente,
enfrentam e que podem acarretar sofrimentos socialmente determinados. A partir da
exposição repetida à produção humorística, em estado de atenção flutuante e associação livre
de ideias, foi produzida uma narrativa transferencial, que favoreceu o encontro/criação dos
campos de sentido afetivo-emocional: “Guia Básico para ser Vadia competente”, “Direitos
Humanos ou Direitos para os Homens? A mulher é humana?”. O quadro geral revela um
imaginário em que a mulher é vista como objeto sexual perante a figura masculina e tem suas
competências profissionais diminuídas.

Palavras-chave: Imaginário coletivo, mulheres, mercado de trabalho, método psicanalítico.

269
O PROBLEMA DE PESQUISA

Desde seus primórdios, a psicanálise apresentou-se atrelada ao universo do humor,


pois se ocupou de entender os chistes, além de tentar desvendar o que torna uma piada risível
e o que é o riso para a economia psíquica. O próprio pai da psicanálise era adepto a ter falas
temperadas de tiradas humorísticas (Coelho & Figueiredo, 2018; Morais, 2008). Na obra “Os
chistes e sua relação com o inconsciente” Freud (1905/1991) analisa o evento humorístico
por meio do saber, análise, síntese e teoria, ressaltando a relação entre os processos de
formação dos chistes e dos sonhos e singularizando as piadas de modo a descrevê-las como
inocentes, que provocam sorrisos e como as tendenciosas, que revelam fontes de prazer que
podemos dividir em quatro tipos: obscenas, com intenção sexual; hostis, com intenção
agressiva; cínicas, com intenção de blasfêmia; e as céticas, com intenção de atacar a
capacidade de razão. Segundo Freud (1905/1991) por meio da brincadeira pode ser dito de
tudo, até a verdade.

Coelho e Figueiredo (2018) observam que as piadas, na época do período nazista na


Alemanha, tornaram-se um tipo de arma política, consolidando-se com essa finalidade, entre
outros motivos, por sua popularidade em todas as camadas sociais. Assim, podemos
considerar que uma característica importante da piada e do humor é que, ambos permitem a
construção de diferentes modos de lidar com a realidade, representam também vias de luta e
de enfrentamento em um determinado contexto social. Encontra-se através delas, uma forma
indireta de se expressar frente às restrições sociais; a piada diz o que não pode ser dito. O
humor e o riso são, portanto, formas de lidar com o mal-estar, como por exemplo, a dor e o
sofrimento (Morais, 2008).

Elegemos conversar no presente estudo sobre as mulheres, que sofrem


constantemente com expectativas exigidas socialmente. Sendo assim, o objetivo deste
trabalho consiste em investigar o imaginário coletivo de parcela da sociedade brasileira sobre
sofrimento sociais de populações alvo de preconceito, no caso a mulher com grau superior de
instrução, que adentra no mercado de trabalho executivo. Justificamos nossa iniciativa
inserindo-a no conjunto de investigações que visam produzir conhecimento útil na solução de
problemas tais como o das desigualdades econômicas e de gênero, que acontecem em nosso
país. Apesar da mulher buscar maior qualificação profissional, como bem revela sua busca
por formação superior, atualmente superior à dos homens, (Garcia, & Viecili 2018), esta ainda
sofre discriminações no contexto laboral (Proni & Proni, 2018; Santos & Oliveira, 2017), no
qual vigoram desigualdade salarial (Santos & Oliveira, 2017), segregação ocupacional

270
(Aquino, Menezes, & Marinho, 1995) e objetificação do corpo feminino (Grisci, Deus, Rech,
Rodrigues & Gois, 2015).

Alguns indícios demonstram um sistema de representações simbólicas que geram


exploração e dominação das mulheres, que atualmente assumem funções profissionais, sem
deixar de se responsabilizar como mantenedora do lar, mulher e mãe (Drumont, 1980; Zanello,
2018). A verdade é que a entrada no mercado de trabalho não parece ter modificado o mundo
doméstico, que segue como sede do trabalho reprodutivo assumido invariavelmente por
mulheres (Lopes, Dellazzana-Zanon, Boecke, 2014; Schulte, Gallo-Belluzzo, & Aiello-
Vaisberg, 2016, 2017, 2019; Zanello, 2018). Essa situação configura uma sobrecarga inegável
que, de nossa parte, incluímos como sofrimento social (Renault, 2010).

Metodologia

Optamos por uma pesquisa qualitativa empírica organizada em três etapas definidas
por Aiello-Fernandes, Ambrosio & Aiello-Vaisberg (2012), por meio das quais
operacionalizamos o uso do método psicanalítico na presente produção de conhecimento
científico: procedimento investigativo de produção do material de pesquisa, procedimentos
investigativos de registro do material de pesquisa e procedimento investigativo de
interpretação do material da pesquisa. Finalizamos o trabalho com uma última seção,
denominada interlocuções reflexivas, que corresponde ao que é habitualmente denominado
discussão de resultados. Nesse momento, suspendemos o uso do método psicanalítico para
empreender um trabalho de cunho reflexivo em diálogo com autores que possam nos ajudar
a iluminar questões levantadas pelos campos de sentido afetivo-emocional
criados/encontrados.

O procedimento investigativo de produção do material configurou-se por meio do


encontro de vídeos de conteúdo humorístico que tivessem como temática a mulher e o
trabalho na página do Porta dos Fundos no Youtube. A seleção do material foi realizada a
partir das palavras-chaves mulher e trabalho executivo. Devido ao grande número de
produções, optamos por selecionar uma, que contempla satisfatoriamente o interesse de
estudo do grupo de pesquisadores, a partir de suas ressonâncias afetivo-emocionais. A
produção escolhida intitula-se “Emprego” e aborda uma entrevista de seleção para o cargo de
diretora de uma empresa, em que são exploradas situações discriminatórias e
constrangedoras, em boa parte das vezes, de cunho sexual, às quais, não raro, as mulheres
são submetidas ao tentarem ingressar no mercado de trabalho.

271
De fato, as produções do Porta dos Fundos, apresentam na maioria das vezes
questões atuais a partir de um jornalismo caricato, as quais através do humor fazem o público
refletir a respeito de uma crítica. Podemos considerar que assistir uma produção do grupo
exige conhecimento e percepção do contexto social e histórico do mundo para entender a
piada. Os vídeos são carregados de ironia e sarcasmo para transparecer preconceitos e
hábitos humanos. As produções do Porta dos Fundos devem ser consideradas como
pertencentes ao gênero infoentretenimento, que se define a partir da dualidade: transmitir uma
informação atual, de forma não passiva, mas crítica, e entreter o telespectador. Ao
observamos as publicações encontramos temáticas e críticas sociais, debates sobre
fanatismo religioso, machismo, homofobia, racismo, entre outros comportamentos em
sociedade comuns (Morelli, 2017).

No procedimento investigativo de registro das comunicações, após assistir várias


vezes o vídeo, elaboramos uma narrativa transferencial sobre o impacto emocional
contratransferencial acerca do vídeo. Destacamos que as narrativas transferenciais não são
apenas um registro do material, pois revelam-se igualmente úteis para o início do
procedimento investigativo de interpretação, já que são elaboradas sob o cultivo de atenção
flutuante e livre associação de ideias (Aiello-Vaisberg & Machado, 2005).

O procedimento investigativo de interpretação do material concretizou-se por meio


da análise da narrativa transferencial, a partir das “palavras de ordem” de Herrmann
(1979/1991): “deixar que surja”, “tomar em consideração” e “completar a configuração de
sentido”. Desta maneira, foi possível chegar à produção de interpretações compreensivas,
através das quais identificamos campos de sentido afetivo-emocional (Ambrosio, & Aiello-
Vaisberg, 2014), implícitos nas produções humorísticas. Para tanto, contamos com a
participação de todos os autores da presente pesquisa e de psicólogos versados no uso do
método psicanalítico na pesquisa empírica.

Registrando Comunicações: Narrativa Transferencial

Ao terminarmos de revisitar o vídeo, demo-nos conta de que a mulher do vídeo


“Emprego” é loira, magra, branca e tem um bom currículo. O fato de ter um bom currículo,
entretanto, fica em segundo plano, sobressaindo aos olhos do entrevistador, as características
físicas da moça. Aqui, os meninos trouxeram um debate. A personagem sabe e aceita tais
questões no vídeo e chega a perguntar se o decote estava bom, o que nos suscitou uma
discussão: o uso do corpo como forma de manipulação para conseguir ser empregada e uma

272
promoção, não reforçaria exatamente a fala machista de que a mulher assediada teria culpa
de ser assediada?

Não chegamos a uma conclusão fechada, mas pensamos o quanto a mulher e nós
mulheres do grupo, muitas vezes acordamos mais cedo como ela para passar maquiagem e
não entendemos que essa “manipulação para ser bonita ou vista” faz parte de um sistema
machista que impõe sobre essa ação de se fazer isso por ser mulher. Pensamos o quanto
valorizamos o que os outros acham bonito, o quanto criticamos nossas imperfeições e o
quanto estamos sendo objetos sexuais dos homens em nossas imagens do dia-a-dia. Claro,
que também conversamos como o cuidado conosco é algo bom, o quanto os homens
deveriam se cuidar, ao recordarmos da cena em que a atriz do vídeo diz que alguns homens
da empresa sequer tomavam banho.

Estas e outras questões, como a mulher receber 30% a menos que os homens da
empresa, não poder engravidar estando trabalhando, que foram trazidas neste vídeo
demonstram que existe uma grande presença do machismo nas empresas. Ao conversarmos
sobre nossas experiências, pensamos como as mulheres tem receio em engordar e não saber
como se vestir para ir a uma entrevista de emprego. Além disso, lembramos que os meninos
sofrem mais pressão para entrar numa faculdade e conversamos sobre cursos de graduação
diretamente ligados ao cuidado com outras pessoas, como o de psicologia por exemplo,
majoritariamente escolhido por mulheres e, àqueles voltados à área de exatas ocupados, em
sua maioria, por homens.

Identificamos que o vídeo também aborda a questão da maternidade, como um


acontecer incompatível com o mundo laboral e mais que isso, indesejável pelos
empregadores. Retomamos a ideia de que a mulher ainda é vista como a melhor cuidadora
dos filhos e do lar. Um dos integrantes do grupo associou essa ideia a um episódio do seriado
Friends em que um babá se apresenta para os pais de uma criança em busca de emprego e,
causa choque e desconforto para o casal, que não o aceitou, pois buscavam uma mulher.
Fechamos a discussão pensando que de humor em humor os vídeos revelaram grandes
verdades, acerca da inserção da mulher no mercado de trabalho e de aspectos da realidade
brasileira e sociedade ocidental.

273
Campos de Sentido Afetivo-Emocional

A exploração do material de pesquisa em estado de atenção flutuante e associação


livre de ideias permitiu-nos a criação e o encontro de dois campos de sentido afetivo-
emocionais: “Guia Básico para Ser Vadia Competente” e “Direitos Humanos ou Direitos para
os Homens? A Mulher é Humana?”

O primeiro campo de sentido afetivo-emocional criado e encontrado denominado “Guia


Básico para Ser Vadia Competente” organiza-se em torno da crença de que para assumir um
cargo de diretoria em empresa, a mulher deve ter um currículo profissional qualificado e ser
competente em sedução e submissão aos homens da empresa.

Esse campo de sentido afetivo-emocional abarca a dimensão sexual da questão, na


medida em que, apesar da qualificação profissional, a mulher deve se submeter ao homem e
aceitar ser tratada como um objeto, tendo a sua subjetividade desconsiderada. Seguem
algumas frases do vídeo:

“Não pode embarangar, engordar evita.”

“Eu tenho experiência em ser mulher da empresa, eu acordo todo dia uma hora antes
de qualquer homem para passar rímel...”

“Fazendo aquele papel clássico mesmo, aquele que vira piadinha, vira troféuzinho.
Enfim, aquela que todo mundo quer comer...”

O segundo campo de sentido afetivo-emocional intitulado “Direitos Humanos ou


Direitos para os Homens? A Mulher é Humana?” articula-se ao redor da crença de que os
direitos humanos, embora preconizados na Constituição, não são universais. Na realidade, a
parcela masculina heterossexual branca têm mais facilidade em ser assegurado de seus
direitos em relação a qualquer outra parcela. No caso estudado temos a mulher heterossexual
branca sendo vítima de preconceito, simplesmente pelo fato de ser do sexo feminino.

“Qual a sua pretensão salarial?”. “Trinta por cento a menos que qualquer homem no
meu cargo.”.

“Você não vai poder ser promovida, você sabe, né?!” “Não, eu estou contando em ficar
estagnada, mesmo enquanto os homens da empresa sobem, mesmo os incompetentes.”

“Eu aviso também meu ginecologista para não engravidar esse ano e não atrapalhar
sua empresa.”

274
Interlocuções Reflexivas

Observamos que no primeiro campo de sentido afetivo-emocional, “Guia Básico para


Ser Vadia Competente”, o assunto central versa sobre a crença de que seria necessária uma
estratégia sexual para a colocação profissional da mulher em um ambiente empresarial, uma
vez que não seria reconhecida exclusivamente por méritos profissionais e curriculares, mas
sim, como objeto sexual. Fica assim sugerido que a ascensão da executiva na empresa
dependeria da erotização de seus atos, do assumir sua posição como objeto do desejo
masculino. Essa ideia é tão comum, a ponto de fazer figurar, em muitas produções
cinematográficas, nacionais e internacionais, a imagem de que a mulher manipularia
situações, na empresa, por meio da própria sexualidade, para conseguir vantagens (Betiol &
Tonelli, 1991; Grisci, et al, 2015).

O vídeo apresentado traz a entrevistada assumindo o papel de sedutora, de "vadia


competente ", provavelmente como forma de se defender num mercado de trabalho injusto e
desigual. Nesse contexto, a mulher pode apresentar seu corpo e seu poder de sedução para
competir com seus concorrentes por uma vaga de emprego (Betiol & Tonelli, 1991, Grisci, et
al, 2015). Deste modo, podemos considerar que neste cenário do mercado de trabalho,
sabendo que seus corpos são coisificados e viram objetos centrais de desejo masculinos, as
mulheres acabam usando-os para tirar vantagem (Figueiredo, Nascimento, & Rodrigues,
2017). Segundo o estudo de Grisci, et al (2015) a mulher sofre psicologicamente, por ter suas
competências profissionais atreladas à sua aparência estética, circulando a crença de que
beleza e inteligência não caminham juntas e que as promoções de mulheres ocorrem em troca
de favores sexuais. Nota-se aí como a beleza feminina gera reações ambíguas, atraindo
sexualmente, mas também provocando agressividade na medida em que a mulher bonita é
vista como inerentemente incompetente.

Já o campo “Direitos Humanos ou Direitos para os Homens? A Mulher é Humana?”


retrata as implicações acerca de como se dão as relações de trabalho, gênero, equidade, e
de como os direitos e papéis laborais são distribuídos. A diferença salarial e a dificuldade de
ascensão entre gêneros exibem aqui uma presença bastante significativa. Os modelos
econômicos competitivos explicam a desigualdade salarial a partir do fato das preferências
individuais e os objetivos familiares dos homens e das mulheres, além da circunstância da
mulher se expor à dupla jornada (Haussmann & Golgher, 2016; Madalozzo & Blofield; 2017;
Madazzolo, Martins, & Shiratori, 2010; Ribeiro & Machado, 2018; Vieira & Amaral, 2013).
Assim percebe-se que devido aos diversos papéis exercidos em sociedade pelas mulheres, a

275
participação mundo laboral se torna mais difícil e mais complexa, pois os obstáculos são
vários (Batista & Cacciamali, 2009; Bertolin, 2017).

O campo também demanda que abordemos a crença de que as mulheres apresentam


medo de se tornarem mães pelo fato de que tal circunstância gera empecilhos em seu
emprego, como por exemplo a sua ascensão no mercado de trabalho. Desse modo, as
mulheres acabam optando por não ter filhos. Contudo, tal possibilidade de escolha é muito
recente, sendo importante considerar que os avanços da urbanização e industrialização
possibilitou às mulheres à escolha de terem ou não teremos filhos, bem como de escolher o
número de filhos. Ressaltamos que os métodos contraceptivos ajudaram a desprender o
desejo de ter filhos da função reprodutiva biológica e que esse fato está estreitamente ligado
à possibilidade de participação no mercado de trabalho (Zulato Barbosa & Rocha-Coutinho,
2012; Bertolin, 2017; Leite, 2017).

Apreciações Finais

A consideração psicanalítica do vídeo “Emprego”, do canal do Youtube “Porta dos


Fundos”, permitiu a produção interpretativa de campos de sentido afetivo-emocional, ou
inconscientes intersubjetivos, que revelam crenças de que a mulher deve ser submissa ao
homem no ambiente de trabalho corporativo, segundo condutas prevalentes numa sociedade
machista.

O imaginário coletivo aponta que para obter um cargo alto empresarial, a mulher deve
lançar mão de atributos eróticos, pois apresentar-se profissionalmente competente não lhe
garantirá uma colocação. O humor, no vídeo, provém do fato da mulher intencionalmente
assumir sua sexualidade como forma de obter vantagens sobre seus concorrentes. Tal
vantagem é relacionada a estar disponível de forma a ser um objeto para o homem, ser
submissa à questão de desigualdade salarial e ter menos oportunidades de crescimento
dentro da empresa. Assim, caricaturando a situação, a produção humorística conspira contra
a negação de um acontecer que deveria ser superado em nome do ideal ética da equidade
de gênero.

276
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280
22- COLLECTIVE IMAGINARY REGARDING IMPRISONED MOTHERS

Carlos Del Negro Visintin


Guilherme Athayde Penteado Vilela
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg

Abstract
This study is part of a larger set of studies addressing maternal suffering and its
objective is to investigate the collective imaginary concerning imprisoned mothers from
a concrete psychoanalytical perspective. This qualitative study uses the
psychoanalytical method to analyze online newspaper news that specifically
addressed motherhood in prison. The psychoanalytical investigation of 49 news stories
resulted in the interpretative production of three affective-emotional fields: “The O.R.
is yours”; “Do you think you’re a mother?”; and “Redeeming motherhood”. The results
in general suggest that the idealization of mothers persists even in adverse contexts,
such as that of a penitentiary setting, while at the same time mothers are censured for
having had a child. This situation aggravates the suffering of these women and
impedes recognition of the humanity of these women-mothers.

Key-words: Motherhood, prison, psychoanalytic method.

Introduction
This study’s objective was to psychoanalytically investigate the collective
imaginary concerning mothers serving a court-imposed sentence of prison detention.
The justification for conducting this study is that it can support interventions and
preventive measures concerning the care provided to mothers and their children in a
prison setting. It is common in our society for women-mothers to suffer because of
socially imposed demands. Suffering, however, may take different forms if women also
face unfavorable conditions, such as detention.
According to Moura and Araújo (2004), who performed a bibliographic review of
the history of maternity in Europe and Brazil, they verified how recent the conception
of maternal exclusivism is in Western society. Only in the 18 th century, through
philosophical, medical and political discourse, did a supposed maternal instinct come
to be viewed as inherent to the feminine nature.

281
This social organization of motherhood seems to remain in force in Brazil, as
Visintin and Aiello-Vaisberg (2017) empirically verified. In a study addressing the
collective imaginary of motherhood in Brazilian blogs authored by mothers, the authors
found an idea/fantasy, according to which motherhood should be seen and
experienced as the destiny of a woman. Thus, it becomes clear that mothers bear
heavy cultural demands and a possible consequence is compromising other forms of
personal fulfillment.
If, on the one hand, as researchers, we depart from a theoretical framework that
values life’s concrete conditions in order to produce knowledge of the affective and
emotional dimensions of human actions (Politzer, 1928; Bleger, 1963/2007), we are
also aware that Brazilian society, which experiences the phenomenon we are now
addressing, is deeply marked by social inequality (Morgan, 2017), machismo (Silva,
2018), and racism (Fernandes, 2018). INFOPEN (Brazilian Prison Information Survey)
supports this assertion (Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2016). According
to this report, 62% of the female prison population is Afro-descendent; 50% is aged
between 18 and 29 years of age; 45% did not complete primary school; and 74% of
these women has at least one child. Thus, we need to give critical consideration to
such a context in which motherhood is experienced, in order to produce psychological
knowledge.
Many recent studies, even though based on different theoretical frameworks,
seem to agree that the prison system continues to contribute to the suffering of
mothers. Diuna, Corrêa and Ventura (2017) worked with focal groups and warn that
the discipline that is expected in a prison setting to control mothers who care for their
children seems to significantly aggravate maternal suffering, as that kind of discipline
restricts the care provided to children, in addition to threatening mothers with the
possibility of being separated from their children. Chinalia (2017) investigated the
collective imaginary toward women arrested for petty theft and verified that their
existential drama may be strongly marked by the fact they are mothers. Martins (2016),
on the other hand, conducted a psychoanalytical study, interviewing some imprisoned
mothers, and found that the participants suffered due to forced separation from their
children. These women seem to be socially abandoned, concluding that penitentiary
facilities are not prepared to deal with motherhood. For this reason, Mariano and Silva
(2018), in a qualitative study based on symbolic interactionism, argue that

282
breastfeeding seemed to be a maternal experience that made mothers feel
encouraged due to being able to take care of their children.
Starting with an approach known as concrete psychoanalytical psychology
(Bleger, 1963/2007), we sought to investigate the collective imaginary concerning
imprisoned mothers, keeping in mind that this population’s suffering is often
disregarded by society. For that, we used online newspaper news, given its wide
circulation in modern Brazilian society (Ferreira-Teixeira & Aiello-Vaisberg, 2017).

Method
The psychoanalytical method was adopted in this qualitative study. In
agreement with Herrmann (1979/1991), considering the invariance of the
psychoanalytical method, it logically precedes the establishment of theories and
clinical procedures. Thus, we adopted this method to understand human actions and
their meanings, even if the individuals themselves do not acknowledge such meanings.
Therefore, in order to achieve this study’s objective, the psychoanalytical method
followed three investigative steps, namely:

1. Selecting material
2. Recording material
3. Interpreting material

To comply with the first item, Google News was accessed every day from
September 25th to December 31st 2018 and the term “imprisoned mothers” was
searched, while all news items directly available from the site were retrieved. All news
identified was read and those that clearly addressed motherhood in prison were
selected, 53 news items, in total. Four appeared more than once and were considered
only once, so that a corpus of 49 news items was selected.
In regard to the second item, to prevent the loss of data, all news items were
retrieved and stored in a specific file. This file also facilitated reading on the part of the
research group.
The third procedure concerned the reading of news in light of the
psychoanalytical method, that is, floating reading and the free association of ideas.
This procedure is intended to interpret affective-emotional determinants of those
communications; that is, fields of affective-emotional meaning, are understood here as

283
unconscious emotional subtract, which ground the collective imaginary concerning
imprisoned mothers.
To finalize this empirical study, we discussed the results concerning empirical
interpretations based on authors who favor deeper understanding of data. This point
of the process is called reflective interlocutions, which coincides with what is usually
called discussion, in empirical studies.

Interpretations as results and Reflective interlocutions as discussion


Considering the data from a psychoanalytical perspective allowed three fields
of affective-emotional meaning to be interpreted, denoted “The OR is yours”; “Do you
think you’re a mother?; and “Redeeming motherhood”.
The field “the O.R1. is yours” is organized around a fantasy that an imprisoned
mother should be the only one responsible for the care of her baby.
The field “Do you think you’re a mother?” is organized around the fantasy that
motherhood would be incompatible with being imprisoned.
While the field “redeeming motherhood” is organized around the idea that
motherhood would redeem an imprisoned woman.
In the following, we present excerpts that convey each one of the affective-
emotional meanings.
In regard to the first field, “the O.R. is yours” is a vignette understood as a
manifestation of conduct. In the case of the following excerpt, the imprisoned mother
is unhappy that she is not allowed to take care of her children, arguing she would be
more qualified for the task because she was the biological mother.

“Having children in a place like this is very difficult; it is not everyday that you can see
and care for your children. No matter how well my children are doing, a mother always
takes better care than others”
Another excerpt exemplifies the second field, “Do you think you’re a mother?”
In this case, the news listed cases in which judges denied mothers the right for home
imprisonment or confinement. His justification is that those mothers would not be fit to
exercise motherhood.

1
T.N.: “O.R.” is an abbreviation of “police occurrence report”, and in Brazil it is used as slang, meaning
anything that is a problem or trouble.

284
Another [judge], whose name is not mentioned, denied habeas corpus to an inmate,
arguing prostitution and her need to receive governmental financial aid: “People stated
that the accused does not work and uses the money provided by governmental
financial aid to support herself”. Later, he contradicts himself, stating she “made sex
programs and stored drugs”. He concludes saying that "under the poor care provided
by the mother, [the child] would be exposed to harm inherent to close contact with
criminality; thus I consider the mother figure dispensable for the child’s wellbeing.”

Excerpts that concern the third field “Redeeming motherhood” are also
presented. This part of the news conveys the idea that there is hope as a consequence
of the arrival of a baby, that a child would not only be a “promise of life”, but motherhood
would be “promise of a new life”:

What changes in their lives in a detention facility with the arrival of a baby? The painful
separation from their children. Promise of change of life. Emotional fragility. The hope
a child will bring to the history of inmates.

The excerpt below portrays a mother who says that the experience of prison was strong
enough to prevent her from doing anything that would jeopardize her freedom and the
birth of her daughter reinforced this conviction.
The birth of the girl, according to her, reinforced her desire to choose the other side of
life, often the most difficult one. “It is the first and last time, and now I don’t want it
anymore. I have to pay what I owe. First time was a blow and it is more than enough
for me not to want this path anymore,” she says.
The first field of “the O.R. is yours” conveys an idea that persists, despite the
difficulties of the current Brazilian prison system (Tavares & Menandro, 2004),
especially female prisons (Pimentel, 2016), that mothers should continue to be almost
fully responsible for their children. The field “the O.R. is yours” seems to agree with the
results of other studies addressing motherhood and motherhood in prison (Ferreira-
Teixeira & Aiello-Vaisberg, 2017; Halasi, 2018; Schulte, Gallo-Belluzzo & Aiello-
Vaisberg, 2019; Visintin & Aiello-Vaisberg, 2017).
This field seems to indicate the naturalization of motherhood to the extent in
which not only is the concrete context of life of these mothers disregarded, but they
are also required to be fully responsible for providing care to their babies as if they

285
were the most fit for the task (Moura & Araújo, 2004), as the following excerpt shows:
“If I knew I was pregnant, I would not have gone to the drug dealer. It is scary realizing
that you are going to have a child in prison.” Data indicate that an imprisoned mother
feels hopeless and experiences feelings of guilt (Ambrosio; Aiello-Fernandes & Aiello-
Vaisberg, 2013; Aiello-Vaisberg 2017).
Even though mothers are considered the ones to be responsible for their babies,
there is also another field of affective-emotional meaning indicating that an imprisoned
mother would be incompatible with motherhood. Thus, the field “Do you think you’re a
mother?”, which also provides a foundation for the collective imaginary towards the
imprisoned mother, portrays a situation that may even aggravate their suffering.
In certain situations, when affection is established between a mother and baby
and there is a legal right to home confinement, babies are forcibly separated from their
mothers (Gomes, Souzas, Oliveira, Santos & Esteves, 2018). That is, considering a
model of motherhood idealized some centuries ago (Halasi, 2018), this separation is
considered a violence. The history of Bruna is a moving example: “At the moment you
do something wrong, you know you’ll come here to pay. But, how do they [the children]
deal with it emotionally? At school, their mother is not going to the parent-teacher
conferences. Their friends will visit and ask for their mothers. It messes with them.”
The collective imaginary of imprisoned mothers, as portrayed in the news, is
clearly contradictory. On the one hand, mothers are supposed to take care of their
children, but at the same time, they experience recriminations for being momentarily
in detention. On the other hand, motherhood is seen as a possibility to salve these
women, indicating that motherhood is still greatly valued by society. The field
“Redeeming motherhood” would be a response to the first two fields. From an
unconscious point of view, becoming a mother would be a realization for women, so
that an imprisoned mother could redeem herself from her problems by having a child.
Such an idea, which disregards these women’s concrete life conditions, denies the
various dimensions of human life, putting women in a perverse situation in which
inmates would sometimes be considered fully responsible for their children while
experiencing recriminations for having become mothers.
Therefore, imprisoned mothers constantly face two opposing ideals of
motherhood. A potential consequence of this would be guilt, something quite common
in the experience of modern motherhood. Recent studies corroborate this idea, as
reported by Halasi (2018). “I changed my life and it seems that everything becomes

286
more difficult. In the middle of last year, I got arrested and I was pregnant. I thought
that God was working for me to change my ways. God is ridding me of something out
there. To change my mind.”
Considering not only the limitations of the source of the data, but also the scope
that is inherent to a scientific initiation project, this study sheds light on the importance
of concrete conditions amidst which human relationships take place. Because of social,
economic, institutional, legal and historical-cultural determinants, imprisoned mothers
are faced with a situation that needs to be changed, considering a fundamental respect
for humankind. Caring for a baby under sufficiently good living conditions (Winnicott,
1960/2018) necessarily requires to give strong consideration to caregivers who
assume parental tasks, father and mother roles, through cultivating a sufficiently good
social environment in which respect, solidarity and equalitarian values prevail, while at
the same time social distress with the potential to cause helplessness, humiliation,
injustice and guilt are minimized.

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Winnicott, D. W. (2018) The Maturational Processes and the Facilitating Environment.


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289
23- INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA E DEPENDÊNCIA QUÍMICA NO IMAGINÁRIO
DE ESTUDANTES DE PSICOLOGIA

Cristiane Helena Dias Simões2


Débora Ortolan Fernandes de Oliveira 3
Tania Maria José Aiello-Vaisberg4

RESUMO: O processo da reforma psiquiátrica brasileira vem sendo marcado pela


busca de consolidação de políticas públicas que retiram o hospital psiquiátrico de sua
posição de centralidade, para substitui-lo por uma rede de cuidados sobretudo
ambulatoriais, evitando a exclusão asilar dos usuários. Entretanto, podem ser
observados indícios de que a ideia de internação parece se manter viva nos
imaginários coletivos, principalmente quando se trata da dependência química. Cabe,
portanto, realizar pesquisa com o objetivo de investigar psicanaliticamente o
imaginário coletivo de alunos de psicologia sobre o dependente químico, a partir da
perspectiva da psicologia psicanalítica concreta. O trabalho foi metodologicamente
organizado a partir da realização de uma entrevista psicológica coletiva, durante a
qual foi usado o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema. A compreensão
psicanalítica do material permitiu a criação/encontro de um campo de sentido afetivo-
emocional, “Internação como solução”, que se organiza ao redor da crença de que a
internação do usuário de drogas seria o caminho para a solução do problema, na
medida em que garantiria o afastamento das drogas e do convívio social. O quadro
geral sugere que a pessoalidade coletiva abordada apresenta uma concepção
imaginativa de caráter reducionista sobre o usuário, negando a importância da
experiência vivida, na apresentação dessa problemática.

Palavras-chave: dependente químico, imaginário coletivo, drogas, estudantes de


psicologia, método psicanalítico.

2
Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Mestre pela Faculdade de
Ciências Médicas da Unicamp.
3
Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Bolsista CNPq de
Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
4
Professora Livre Docente em Psicopatologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, Orientadora de Mestrados e Doutorados no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
e na Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

290
O PROBLEMA DE PESQUISA

A Reforma Psiquiátrica Brasileira consiste em longo e complexo processo de


reorientação do modelo assistencial em saúde mental, que envolve um amplo
questionamento sobre formas de assistência e cuidado à população acometida por
sofrimentos psíquicos. No que se refere especificamente ao campo do tratamento,
esse processo caracterizou-se pela desativação de grande parte dos hospitais
psiquiátricos, com o objetivo de substituí-los por redes alternativas de atendimento em
saúde mental (Brasil, 2004; Venturini, 1998).

Quando mencionamos a Reforma Psiquiátrica, é rápida a associação com


doentes mentais graves, especialmente psicóticos. Contudo, é bastante importante
destacar que uma expressiva parcela de usuários do sistema público de saúde mental
é composta por dependentes químicos. Anteriormente recolhidos em hospitais
psiquiátricos, tais pacientes passaram a receber tratamento ambulatorial a partir da
implantação desse processo. O uso abusivo de substâncias constituiu-se como um
fenômeno multideterminado, que deve ser pensado a partir do contexto em que está
inserido, uma vez que se configura como problemática que se impõe no cenário social
exigindo a definição de políticas de saúde pública. Configura-se, de fato, desde a
segunda metade do século XX, como um dos mais importantes problemas de saúde
pública no Brasil, trazendo prejuízos aos próprios usuários, seus familiares e a
comunidade em geral (Bisch et al., 2019; Cunha et al., 2015; Maciel et al., 2018; Melo
& Maciel, 2016; Novaes, 2014; Silva, Maftum & Mazza, 2014).

Neste campo de atuação, ainda são muitos os profissionais que acreditam que
a melhor forma de assistência ao dependente dar-se-ia por meio da internação
fechada de longa permanência. Tal posicionamento causa estranheza, uma vez que
se encontra cada vez mais firmada, cientificamente falando, a percepção de que a
dependência química ultrapassa causalidades orgânicas, envolvendo determinações
sociais, políticas, econômicas, legais e culturais. Sendo assim, somos levados a
concluir que os avanços na produção de conhecimento não evitam a persistência de
visões estereotipadas quando se trata deste tema (Assis, Barreiros & Conceição,
2013).

Na busca por compreensão acerca fenômenos de opressão, discriminação e


exclusão social, no âmbito do nosso grupo de pesquisa PUC-Campinas/CNPq
291
“Atenção Psicológica em Instituições: Prevenção e Intervenção”, temos realizado
diversos estudos que se pautam pelo uso do método psicanalítico e pela adoção da
psicologia psicanalítica concreta como referencial (Bleger, 1963/2007)5. Por essa via,
temos identificado várias condições que podem ser compreendidas como sofrimentos
sociais (Aiello-Vaisberg, 2017; Ambrosio, Aiello-Fernandes & Aiello-Vaisberg, 2013).

Em estudo com trabalhadores de saúde mental sobre o dependente químico,


constatamos que tais profissionais consideram que o paciente dependente seria um
falso doente e não apresentaria melhoras, além de ser associado com mentiras,
manipulações e transgressão às normas sociais, tais como roubo e tráfico (Simões,
2012; Simões e Aiello-Vaisberg, 2010). Em investigação sobre imaginário do
dependente químico expresso pela mídia brasileira (Simões, Ferreira-Teixeira &
Aiello-Vaisberg, 2015) constatamos semelhanças com os estudos anteriores sobre o
preconceito e estigma social, no qual associam essas pessoas com a delinquência,
seguindo uma lógica reducionista e abstrata da dependência de drogas aos problemas
de caráter.

. Concordamos com autores, tais como Lopes, Lemos, Lima, Cordeiro e Lima
(2009) e Vargas, Bittencourt, Rocha e Oliveira (2013) que, tendo constatado pouco
conhecimento teórico sobre a dependência química, apontam para a necessidade da
maior inclusão dessa problemática nos cursos de graduação da área da saúde, para
que seja possível chegar a uma capacitação profissional adequada. Entretanto,
compreendemos, a partir do referencial que adotamos, que no trato de várias questões
humanas não bastam conhecimentos teóricos, tornando-se necessário o que
poderíamos denominar, inspirando-nos em textos winnicottianos, desenvolvimento de
capacidade afetivo-emocional6, algo que não se conquista de uma vez por todas, mas
que demanda ser continuadamente elaborado, ao longo da formação e do exercício
profissional.

A partir de preocupação tanto com a formação de futuros psicólogos como


também com os preconceitos que, partindo de vários grupos sociais, envolvem o
usuário de drogas, objetivamos no presente trabalho estudar o imaginário de

5
O leitor interessado pode obter uma visão geral acerca da produção grupal no lattes da terceira autora.
6
Lembramos aqui que a visão winnicottiana sobre o processo de amadurecimento emocional pode ser
descrita como desenvolvimento de capacidades – de ficar só, de se preocupar, de acreditar, de brincar –
que dependem do encontro entre o potencial herdado com um ambiente humano suficientemente bom
(Winnicott, 1945, 1962, 1975).

292
estudantes de psicologia sobre o dependente químico, a partir da psicologia
psicanalítica.

ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS

Usamos, na presente investigação, um enquadre diferenciado de pesquisa


denominado de entrevista grupal para abordagem da pessoalidade coletiva (Ávila,
Tachibana & Aiello- Vaisberg, 2008). Trata-se de uma entrevista psicológica (Bleger,
1979), realizada em enquadre coletivo, que se articula ao redor do uso de um recurso
dialógico que favorece um encontro inter-humano durante o qual comunicações
emocionais podem ser feitas.

Optamos por usar, como mediador, o Procedimento Desenho-Estórias com


Tema, um dos recursos mais utilizados no nosso grupo de pesquisa em virtude de seu
potencial heurístico, já que tem o dom de provocar as pessoas, que acabam, de modo
bastante instigante, por se expressar de forma imaginativamente simbólica sobre os
temas que lhes são propostos. Tal procedimento consiste na demanda do desenho de
uma figura ligada a um tema escolhido previamente pelo pesquisador e da posterior
solicitação de escrita de uma história sobre a figura desenhada (Aiello-Vaisberg,
1999).

No contexto pedagógico de uma disciplina obrigatória, do currículo da


graduação em psicologia, de uma faculdade particular do estado de São Paulo,
solicitamos, na disciplina psicopatologia, que os trinta e dois alunos fizessem duplas
e desenhassem em uma folha sulfite uma pessoa com dependência química e no
verso da folha escrevessem uma história sobre ela. Não havendo recusas em
participar, obtivemos dezesseis produções que foram analisadas segundo
norteadores derivados do modo como o método psicanalítico é operado em pesquisas
qualitativas e da psicologia psicanalítica concreta.

A partir da leitura e releitura das produções gráficas tanto dos alunos


participantes como da pesquisadora, realizadas em estado de cultivo da atenção
flutuante e da associação livre de ideias, partirmos para o trabalho interpretativo de
criar e encontrar campos de sentido afetivo-emocional.

293
Herrmann (2001) apresenta importante contribuição para a interpretação do
material ao postular palavras de ordem, as quais seguimos, visando auxiliar
psicanalistas na apropriação do material clínico: “deixar que surja”, “tomar em
consideração” e “completar a configuração de sentido”. A primeira palavra se cumpre
quando o analista/pesquisador aguarda o surgimento de algo, no material, que capture
sua atenção. A segunda palavra refere à manutenção de uma abertura por meio da
qual impactos afetivo-emocionais, relativos ao que se destacou, possam ocorrer. A
terceira palavra corresponde ao fruto, inevitavelmente hipotético, do encontro de duas
subjetividades, a do pesquisador e a da pessoalidade, individual ou coletiva, autora
da comunicação emocional. Desse modo, o método é colocado em marcha, tendo em
vista não apenas comprovar hipóteses previamente enunciadas, mas, sobretudo,
exercer sua função heurística.

INTERPRETAÇÃO

A consideração psicanalítica do material permitiu a produção interpretativa de


um campo de sentido afetivo-emocional que denominamos como “Internação como
solução” que é regido pela crença de que o afastamento das drogas e do convívio
social seria o meio para a recuperação do dependente químico. A seguir
apresentamos três produções que emergem a partir de tal ideia sobre o tratamento.
No primeiro desenho, aparece o nome “Clínica Existir” e na história é explicado
claramente que é uma internação e que seria o último cigarro da vida, o que evidencia
o tratamento enquanto total afastamento da droga.

294
Este é um jovem com 26 anos, solteiro, mora com a mãe e os irmãos. É
dependente químico desde sua adolescência, passou a usar drogas depois do
falecimento de seu pai, isso faz 11 anos.
Agora com uma idade de decisões, pois se ele continuar nesta vida vai virar
um “Zé ninguém”, por conta disso resolveu que precisa de ajuda, depois de ver sua
família sofrendo muito, resolveu se internar, esse cigarro de maconha que ele está
fumando é o último de sua vida, ele assegura que ao passar o portão da clínica
(placa escrito existir) ele vai lutar para ser uma pessoa melhor.

Já no segundo desenho-estória selecionado, o nome “Reabilitação” surge,


como uma placa, numa casa cujas portas apresentam trincos bem marcados, que
associamos à possibilidade de estarem trancadas, o que interpretamos como
referência à internação. Assim, pensamos que o desenho e a história aludem, em
conjunto, à ideia de que a internação, que impede a livre circulação pelo espaço social,
dificulta o acesso à droga, o que, por si só, garantiria o abandono do uso abusivo.

295
É o exemplo de alguém que se perde e o sorriso ao encontrar novamente o
caminho, o sol volta a brilhar é como encontrar uma luz no escuro.

No terceiro desenho – estória também aparece o tema do tratamento. Ainda


que a clínica especializada, aqui referida, não especifique explicitamente se esta
clínica corresponde a um serviço ambulatorial ou a um centro de internação, podemos
entender que o uso de expressões como fuga, libertação e escravidão, bem como o
desenho de correntes e cadeados possam referir-se, simultânea e paradoxalmente,
tanto à droga, que escraviza, como à clínica, na qual o usuário ficaria trancado.

296
João começou a usar drogas com quinze anos na tentativa de fugir de seus conflitos
e assim continuou até os vinte e cinco, quando resolveu buscar ajuda em uma
clínica especializada e iniciar um processo de libertação das drogas pois para ele
esses dez anos de adicção foram como um tempo de escravidão.

INTERLOCUÇÕES REFLEXIVAS

O campo de sentido afetivo-emocional criado/encontrado “Internação como


solução” demonstra que os estudantes de psicologia imaginam que a forma adequada
de cuidar de uma pessoa com dependência química dar-se-ia por meio da internação,
aqui entendida como forma de cerceamento da liberdade pessoal para que o usuário
não tenha acesso à droga. Vemo-nos assim diante de um raciocínio aparentemente
ingênuo pois se funda evidentemente na suposição de que a frustração diminuiria o
impulso – e não o oposto. Trata-se de uma ideia um tanto mágica, porque não se sabe
bem por quais vias o afastamento da droga ajudaria a pessoa a se desacostumar –
ao invés de aumentar a sua necessidade. Contudo, é importante salientar que se trata
de uma visão que se encontra francamente contrária à diretriz da reabilitação
psicossocial, quando zela para manter o convívio e os laços sociais.
Surpreende constatar a persistência de um imaginário de crença na internação
entre estudantes de psicologia, uma vez que a luta antimanicomial brasileira existe há
cerca de duas décadas, tendo chegado a gerar uma lei específica, proposta pelo

297
deputado Paulo Delgado, nos anos 80 e aprovada 12 anos depois, em 6 de Abril de
2001 (Brasil, 2001). Se além disso considerarmos os modos pelos quais se organizam
hoje, os serviços de saúde mental pública – lembrar da rede, do Centro de Atenção
Psicossocial, do projeto terapêutico singular, o espanto fica ainda maior. Estamos,
portanto, diante da necessidade de reconhecer que o modelo asilar segue vigente em
termos do imaginário dessa pessoalidade coletiva, que é o estudante de psicologia,
de quem compreensivelmente poderia se esperar maior sintonia com a própria
reforma brasileira.
Vale ainda ressaltar que a persistência desse modelo significa, também, que
os estudantes não tem uma clara noção sobre a problemática da dependência, na
medida em que a encaram de acordo com os mitos do ser humano natural, abstrato e
dissociado das condições concretas de sua aparição na cena social (Bleger,
1963/2007). Assim, concluímos que o imaginário aqui criado/encontrado tem caráter
claramente empobrecido e reducionista.
Essa pesquisa não produziu resultados que nos permitam verificar o quanto
esse imaginário se deve a condições prévias à entrada na faculdade, de tipo social,
econômico, cultural ou político-ideológico, mas podemos afirmar que, pelo menos até
o inicio da disciplina, na qual se deu a realização da pesquisa, o curso e o próprio
ambiente académico, num sentido amplo, não teriam favorecido uma aprendizagem
satisfatória com relação ao uso abusivo de drogas.
Finalizando, destacamos a necessidade de que na formação dos profissionais
de saúde seja incluído, além dos conceitos formais dos transtornos mentais, um
espaço para as discussões sobre imaginários coletivos e teorias prévias sobre cada
diagnóstico a fim de que preconceitos e estigmas possam ser trabalhados.
Acreditamos que um ensino eticamente comprometido com necessidades da
população brasileira demanda uma formação que possa preparar a (o) futura (o)
psicóloga (o) para atuar profissionalmente de modo mais inclusivo.

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de psicopatologia. Tese de livre-docência. Instituto de Psicologia, Universidade
de São Paulo. São Paulo, SP.

298
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300
24- IMAGINÁRIOS COLETIVOS DE JOVENS COM ANEMIA FALCIFORME

Ana Letícia Rodrigues Nunes


Tania Maria José Aiello-Vaisberg
Universidade de São Paulo

Resumo: Este trabalho se propõe investigar psicanaliticamente impactos afetivo-


emocionais da anemia falciforme na vida de jovens que convivem com essa condição.
Justifica-se como produção de conhecimento que pode colaborar com o
aprimoramento das teorias e práticas de cuidado psicológico a pessoas com anemia
falciforme. Esta patologia tende a causar danos severos e progressivos ao
funcionamento global dos indivíduos, aumentando a vulnerabilidade a
comprometimentos psicológicos. Organiza-se, metodologicamente, por meio da
abordagem psicanalítica dos depoimentos de três pessoas com anemia falciforme,
disponíveis sob a forma de vídeos na plataforma Youtube. Estes foram assistidos
várias vezes em estado de atenção flutuante e livre associação de ideias e tiveram
seus áudios transcritos. A consideração psicanalítica dos depoimentos permitiu a
produção interpretativa de dois campos de sentido afetivo-emocional de caráter
intersubjetivo: “Compartilhando a dor” e “Revelação perigosa”. O primeiro organiza-se
ao redor da crença de que o compartilhamento da experiência de viver com doença
fortalece a pessoa. O segundo campo organiza-se em torno da crença de que a a
revelação da condição de ser um indivíduo com doença falciforme prejudica a pessoa,
que pode se tornar alvo de preconceito. O quadro geral indica que, para além das
dores e desconfortos próprios da patologia, prevalece no imaginário de pessoas com
doença falciforme, uma dúvida entre revelar ou ocultar sua condição. Podemos,
portanto, afirmar que os modos pelos quais o ambiente social lida com tais situações
exerce influência significativa na vida de quem apresenta essa doença.

Palavras-chave: anemia falciforme; imaginários coletivos; pesquisa com método


psicanalítico; psicologia concreta.

301
Introdução

Este trabalho propõe-se a investigar psicanaliticamente impactos afetivo-


emocionais da anemia falciforme na vida cotidiana de jovens que, concomitantemente
aos desafios próprios desta fase do desenvolvimento, convivem com a doença
crônica. Nesse sentido, parte do conceito de imaginário coletivo, desenvolvido por
Aiello-Vaisberg e Machado (2008), à busca de substratos afetivo-emocionais que
possam estar envolvendo a dramática de vida dos afetados por essa condição.
Justifica-se como produção de conhecimento com potencial de colaborar com
o aprimoramento das teorias e práticas de cuidado psicológico que tem como alvo a
população que convive com essa patologia crônica. Reforça nossa escolha pelo tema
deste estudo o fato de se tratar de uma doença hereditária de alta prevalência no
Brasil e no mundo, sendo capaz de causar danos severos e progressivos ao
funcionamento geral dos indivíduos, aumentando a vulnerabilidade a
comprometimentos psicológicos na população atingida. (Anvisa, 2002)
Possivelmente originária da África, a patologia chegou ao Brasil através dos
imigrantes escravizados, sendo predominante na população com antepassados
negros. Segundo o Ministério da Saúde (2015), 2% a 3% da população brasileira é
afetada pela patologia sendo que, entre pessoas negras e pardas, esta frequência
sobe para 6% a 10% (Brasil, 2015). Estes dados conduzem-nos também à existência
de uma questão de classe, já que resquícios de escravidão ainda mantém essa
população em condições sociais mais precárias e, portanto, com menos acesso a
cuidados gerais de saúde e mais susceptível a complicações específicas da anemia
falciforme.
A doença, decorrente de uma alteração no formato das hemácias, caracteriza-
se por manifestações de anemia crônica, episódios de dores osteoarticulares e
abdominais, infecções e enfartes pulmonares, retardo do crescimento e da maturação
sexual, acidentes vasculares cerebrais e comprometimentos crônicos de múltiplos
órgãos, sistemas ou aparelhos. Alguns acometidos têm quadros mais graves,
acompanhados de várias complicações e frequentes hospitalizações, enquanto outros
seguem uma evolução mais benigna. Entretanto, evidenciam-se impactos de ordem
emocional e social, que comprometem a qualidade de vida desse grupo. (Santos et
al, 2014)

302
A abordagem adequada desses pacientes visa tanto tratar os prejuízos já
instalados como prevenir as complicações que possam vir a ser causadas pela
doença. Assim, os cuidados gerais voltam-se ao acompanhamento de lesões
orgânicas, do desenvolvimento somático e psicológico e de comorbidades específicas
(MORAES et al, 2017). Segundo Zago (2001), a severidade e letalidade do quadro
diminui sensivelmente quando se realiza diagnóstico precoce e tratamento que, de
acordo com o que preconiza a ANVISA (2002), depende de colaboração
multiprofissional.
Diante do exposto, consideramos justificada realização de investigação sobre
os imaginários de indivíduos com anemia falciforme sobre sua condição.

Método

Teoricamente orientados pela psicologia psicanalítica concreta, consideramos


que todas as interações interpessoais ocorrem em contextos macrossociais e
emergem de campos de sentido afetivo-emocional, que correspondem a uma
perspectiva intersubjetiva de inconsciente.
Nosso trabalho configura-se, metodologicamente, como pesquisa qualitativa e
empírica, com o uso do método psicanalítico, conforme proposto por Ambrósio et al
(2012). Aqui o método foi operacionalizado em termos dos seguintes procedimentos
investigativos: procedimento de produção do material de pesquisa, procedimento de
registro do material de pesquisa e procedimento de interpretação do material de
pesquisa.
O procedimento investigativo de produção de material de pesquisa deu-se a
partir da busca de vídeos disponíveis na internet, através da plataforma Youtube,
usando como descritor o termo doença falciforme. Então, selecionamos três vídeos
com depoimentos de jovens com doença falciforme, acerca de sua condição.
O procedimento investigativo de registro do material de pesquisa se fez sob
forma de transcrição dos áudios. O material encontrava-se disponível em inglês e foi
traduzido por nós.
De modo a cumprir o procedimento investigativo de interpretação do material
de pesquisa, expusemo-nos repetidas vezes ao conteúdo em questão, sob estado de
atenção flutuante e associação de ideias. Na sequência, consideramos
psicanaliticamente as transcrições dos depoimentos, permitindo-nos a produção

303
interpretativa de dois campos sentido afetivo-emocional de caráter intersubjetivo.
Aqui, usamos o conceito de campos de Bleger (1963/2007), e de Hermann (2001),
como conjuntos das regras lógico-emocionais, que sustentam condutas em geral,
entre as quais destacamos o imaginário coletivo (AIELLO-VAISBERG; MACHADO,
2008).
O primeiro campo, que chamamos de “Compartilhando a dor”, organiza-se ao
redor da crença de que o compartilhamento da experiência de viver com doença
falciforme fortalece a pessoa.
Destacamos, a seguir, trechos dos depoimentos que exemplificam o campo
citado.
I. Devemos compartilhar mecanismos de enfrentamento e conversar sobre
como nos sentimos durante esses períodos difíceis (sintomáticos), porque dessa
maneira poderemos trazer esperança e conforto a outras pessoas em momentos de
necessidade.
II. Falar livremente sobre a doença me ajudou a criar um sistema de apoio
confiável e compassivo. Quando eu estava na escola, minha avó informava que eu
sofria de doença falciforme e o que isto significava. Isso tornou mais fácil para as
pessoas entenderem o que eu estava passando, para que elas pudessem me apoiar
quando eu tivesse uma crise de dor. Sempre que estava no hospital, meus amigos
levavam minha lição de casa e os livros para que eu pudesse estudar da minha cama.
Eu trabalhei muito para acompanhar meus estudos, para não perder muito e manter-
me atualizado com o resto da turma.
III. Não conheço mais ninguém que sofra de doença falciforme além de meu
irmão. Fico feliz por ter alguém, que também tem anemia falciforme para conversar
quando estou sofrendo com a dor da doença. Isso nos aproxima mais. Quando estou
com dor, posso falar sobre isso e ele sabe do que estou falando.
IV. Eu sei que existem muitas pessoas com doença falciforme por aí, mas
muitas delas provavelmente têm vergonha ou estão escondendo isso, o que está
errado. Tentamos ser honestos e abertos porque queremos que os outros tentem
entender melhor a doença.
V. Eu realmente acredito que as pessoas devem aprender sobre a doença
falciforme e as pessoas devem falar sobre isso. Acredito que isso mudará a maneira
como a doença é vivenciada por quem a tem e a maneira como essas pessoas são
tratadas.

304
VI. Quanto mais falamos sobre doença falciforme e compartilhamos nossas
histórias, mais seremos ouvidos e compreendidos.

O segundo campo, que denominamos “Revelação perigosa”, organiza-se em


torno da crença de que a revelação da condição de ser um indivíduo com doença
falciforme prejudica a pessoa, que pode se tornar alvo de preconceito.

VII. Eu não acho tão importante que as pessoas saibam! Não acho que devo
mantê-la (a doença) escondida para sempre... Tudo bem que as pessoas saibam, mas
a questão é: como reagem, o que vão pensar e o que vão dizer...
VIII. Muitas pessoas ocultam seu diagnóstico e vivem com medo de serem
tratadas de maneira diferente ou nunca conseguirem trabalho. Sinto que as pessoas
com doença falciforme precisam começar a falar sobre isso livremente e sem
preconceitos, em vez de escondê-lo. As pessoas agem como se fosse vergonhoso ter
a doença... somos considerados um peso. Esconder a doença só piora o estigma que
a cerca. Se as pessoas fossem corajosas o suficiente para se levantar e falar sobre
seu sofrimento, talvez a doença fosse mais compreendida e talvez os empregadores
percebessem que nem todo paciente com anemia falciforme sofre da mesma maneira
e que a doença pode não necessariamente impedi-los de fazer seu trabalho com
sucesso.
IX. O emprego tem sido um desafio, porque me sinto desaprovada pelas
pessoas. Quando preciso faltar no trabalho, sempre sinto algum tipo de desaprovação.
É uma espécie de discriminação velada.
X. O estigma associado à doença falciforme foi a razão pela qual perdi meu
emprego ... Um dia, fiquei doente e, quando voltei ao trabalho, havia perdido o
emprego. Meus chefes não queriam arriscar ter alguém que passaria muito tempo fora
do trabalho durante uma crise de dor. Sem esse trabalho, estou lutando para
sobreviver.

Conclusão

O quadro geral indica que, para além dos desconfortos, dores e riscos próprios
da patologia, a pessoa com anemia falciforme enfrenta preocupações relativas aos
modos como as demais reagem à sua condição, esperando atitudes solidárias e

305
afetuosas, mas também temendo tornar-se vítima de incompreensões, preconceitos
e discriminações. Portanto, o imaginário com o qual nos defrontamos, no presente
estudo, focaliza uma questão básica: devemos ou não devemos revelar nossos
problemas?
A relevância do compartilhamento do drama vivido fica especialmente evidente
quando algo, como a doença de um familiar, em geral, motivo de tristeza, passa a ser
experimentado com felicidade à medida que abre espaço para um encontro inter-
humano.
Notamos que mesmo sendo, mundialmente, uma doença de alta prevalência,
as pessoas que se encontram nesta condição parecem ter a ideia de que têm uma
doença estranha, o que parece apontar para a existência da ocultação da patologia,
possivelmente em virtude do temor do preconceito e da discriminação.
Podemos, portanto, afirmar que os modos pelos quais o ambiente social lida
com tais situações exerce influência significativa na vida de quem apresenta essa
doença. Aqui cabe lembrar que o contexto capitalista neoliberal, fortemente
competitivo, certamente não favorece a constituição de campos vinculares éticos e
solidários, para fortalecer campos nos quais as pessoas são vistas como superiores
ou inferiores, sendo esses últimos discriminados e desprezados.
Finalizamos lembrando que, na medida em que as dores e os desconfortos da
patologia orgânica se fazem acompanhar de sofrimento emocional socialmente
determinado, fica clara a importância de cuidados psicológicos. Por outro lado, esses
não dispensam a busca de transformações éticas por meio do trânsito de campos
competitivos para campos solidários, o que, está fortemente associado aos modo
como a sociedade se estrutura política e economicamente.

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Saúde.

307
25- “CUIDADO É COISA DE MULHER”: IMAGINÁRIOS SOBRE MATERNIDADE
EM POSTAGENS DO FACEBOOK

Gustavo Renan de Almeida da Silva


João Paulo Sampaio
Carlos Del Negro Visintin
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg

Resumo: Este trabalho tem como objetivo investigar imaginários coletivos sobre
maternidade, a partir da perspectiva da psicologia psicanalítica concreta. Organiza-se
como uma pesquisa qualitativa e empírica, com o uso do método psicanalítico, que
utilizou, como material, todas as 317 publicações postadas no ano de 2016 na página
“Depressão pós-parto e maternidade”, da plataforma Facebook, por entender a
depressão pós-parto como artificio metodológico privilegiado na busca de
conhecimento compreensivo que subsidie a clínica psicológica da maternidade, da
família e do cuidado. A consideração psicanalítica do material, em estado de cultivo
de atenção flutuante e de associação livre de ideias, permitiu a produção interpretativa
de um campo de sentido afetivo-emocional, o qual intitulamos de “Cuidado é coisa de
mulher”. Tal campo organiza-se ao redor da crença de que as atividades de cuidado,
aí incluída a maternidade, são melhor realizadas quando assumidas por mulheres.
Esse campo maior contém dois subcampos: “Nasci para cuidar” e “Cuidando sou feliz”.
O quadro geral indica que o cuidado não é visto como esforço e trabalho, o que permite
que seja invisibilizado e desvalorizado, tornando-se, desse modo, causa de
sofrimentos sociais, que atingem as mulheres, e de empobrecimento da vida afetivo-
emocional dos homens, na medida em que seguem afastados de importantes esferas
da condição humana.

Palavras-chave: Gênero, Cuidado, Depressão pós-parto, Imaginário coletivo, Método


Psicanalítico.

308
O problema de pesquisa

Quando focalizamos a questão do cuidado, de modo geral, âmbito do viver em


que se insere a maternidade, percebemos que esse parece estar, na
contemporaneidade, imaginado como responsabilidade exclusiva de mulheres e mães
(Visintin & Aiello-Vaisberg, 2017; Schulte, Gallo-Belluzzo & Aiello-Vaisberg, 2019).
Contudo, interessantes contribuições antropológicas, como as de Gottlieb (2012),
Gottlieb e DeLoache (2016), Rogoff (2003) e Badinter (2012), tem indicado, de modo
rigoroso, que o arranjo predominante, em termos de divisão de trabalho entre os
gêneros, corresponde a uma produção social. Nessa linha, Scavone (2001) lembra
que a maternidade, em sociedades androcêntricas, como a nossa, configura-se como
um importante organizador social, o que explica que continue sendo compreendida
como obrigação biologicamente fundada das mulheres.
Não obstante, como bem demonstrado por Gottlieb (2012), a antropologia da
maternidade revela que as experiências de cuidado com crianças podem ser diversas.
Como fenômeno social, essa está engendrada a fatores como etnia, classe social e
idade, o que compõe experiências sempre singulares (Mattar & Diniz, 2012). Assim,
para longe de postulações acerca de uma natureza feminina, aproximamo-nos, com
Politzer (1928/2004) e Bleger (1963/2007), de compreensões acerca da vida humana
como biografia. Dessa forma, não seria forçosa a consideração de que, embora a
experiência da maternidade possa trazer o desenvolvimento de potencialidades, essa
também pode ser causa de sofrimentos clinicamente significativos, como bem
indicado em Aching e Granato (2016).
Além disso, a divisão de trabalho entre homens e mulheres (Federici, 2019)
encontra-se na base de sofrimentos sociais que não raro são reduzidos a conflitos
conjugais e familiares. Sofrem não apenas as mulheres, muitas vezes
sobrecarregadas e não reconhecidas, como quem convive com as mesmas, por essas
estarem irritadas e/ou deprimidas em função do panorama descrito. Sofrem também
os homens, em virtude de se manterem afastados das atividades de cuidado
propriamente ditas, que são parte integral do modo humano de ser.
Entretanto, vale lembrar que vivemos um período de mudanças culturais
importantes, no contexto do qual surgem novas configurações familiares e propostas,
oriundas do pensamento feminista, que visam outras formas de relacionamento entre
todas as pessoas (hooks, 2000/2017). Desse modo, parece-nos absolutamente

309
oportuno o desenvolvimento de estudos sobre a maternidade que é, provavelmente,
a matriz a partir da qual se pensam as práticas de cuidado em geral.
Sendo assim, tencionamos, com esta pesquisa, investigar imaginários coletivos
sobre maternidade, entendendo-os como ambientes dramáticos pelos quais
indivíduos e coletivos transitam. Para isso, nos valeremos da psicologia psicanalítica
concreta, isto é, da consideração do drama humano como um fenômeno concreto,
inserido em seus contextos macrossociais.

Considerações metodológicas

Este trabalho configura-se como uma pesquisa qualitativa e empírica, com o


uso do método psicanalítico. Visando atender as demandas epistêmico-metodológicas
de Politzer (1928/2004) e de Bleger (1963/2007), organizamos o método psicanalítico
em procedimentos investigativos, sendo esses de seleção, registro e interpretação do
material de pesquisa.
Visando atender ao procedimento investigativo de seleção do material,
buscamos, no Facebook, o termo “depressão pós-parto”, sem o uso de aspas. Devido
à baixa periodicidade e número de publicações da primeira página resultante dessa
busca, optamos pelo segundo resultado, isto é, a página “depressão pós-parto e
maternidade”, cujas publicações do ano de 2016, num total de 317, constituem o
material desta pesquisa.
Aqui cabe, mesmo que rapidamente, uma pequena explicação sobre o uso do
termo “depressão pós-parto”. Valemos deste como um artificio metodológico, a fim de
chegarmos a um material no qual se evidenciava o sofrimento emocional de mães,
considerando devidamente temores, medos e ansiedades relativos a este quadro
psicopatológico na nossa sociedade. Deste modo, inspirados no trabalho de Visintin
e Aiello-Vaisberg (2017), não tomamos a depressão pós-parto nem como objeto de
estudo, tampouco como problema de pesquisa. Tomamo-la, na verdade, como meio.
Uma vez que conteúdos virtuais podem ser deletados sem aviso prévio,
transcrevemos todas as publicações em um documento a parte, tal como surgiram.
Com isso, cumprimos o procedimento investigativo de registro do material.
Em seguida, entramos em contato com essas publicações, em estado de
atenção flutuante e associação livre de ideias, registrando os impactos em nós

310
suscitados por esse encontro. Tomando as palavras de Herrmann (1979/1991) como
guias da interpretação psicanalítica, ou seja, “deixar que surja”, “tomar em
consideração” e “completar a configuração do sentido emergente”, tal material foi
considerado em âmbito do grupo de pesquisa, a fim de cumprir o procedimento
investigativo de interpretação do material, isto é, a criação/encontro dos campos de
sentido afetivo-emocional, resultados da nossa pesquisa.
Por fim, cessamos o uso do método psicanalítico e realizamos um trabalho
dialógico-reflexivo dos campos criados/encontrados, ou seja, tecemos interlocuções
reflexivas desses resultados com a teoria de outros autores, buscado produzir
conhecimento compreensível sobre o tema estudado.

Interpretação e interlocuções

A consideração psicanalítica do material permitiu a produção interpretativa de


um campo de sentido afetivo-emocional, o qual intitulamos de “Cuidado é coisa de
mulher”. Tal campo organiza-se ao redor da crença de que as atividades de cuidado,
aí incluída a maternidade, são melhor realizadas quando assumidas por mulheres.
Esse campo contém dois subcampos. São estes: “Nasci para cuidar” e
“Cuidando sou feliz”.
O primeiro subcampo, “Nasci para cuidar”, é aquele que se organiza ao redor
da crença de que a capacidade de cuidar da mulher é determinada natural e
biologicamente. Como se vê, trata-se de imaginário que paga pesado tributo ao mito
do ser humano natural, abstrato e isolado das condições concretas da vida social que,
de acordo com Bleger (1963/2007), conspiram contra a percepção de que a
maternidade é uma produção cultural, que o cuidado das novas gerações pode ser
organizado de múltiplas maneiras e que, por consequência, pode ser melhorado no
sentido de se tornar cada vez mais coerente na busca de formas mais éticas,
solidárias e respeitosas de exercê-lo.
O segundo subcampo, “Cuidando sou feliz”, é aquele que se organiza ao redor
da crença de que a mulher alcança plena realização de seu destino biológico quando
exerce diretamente atividades de cuidado. Trata-se de crença que deriva diretamente
da primeira, mas que como que a ornamenta, na medida em que enfatiza ganhos do
cuidador. Cumpre, por outro lado, a função de desobrigar os próximos de gestos de

311
reconhecimento e gratidão, na medida em que a mulher estaria obtendo vantagens
ao cuidar do filho.
O campo de sentido afetivo-emocional aqui criado/encontrado, bem como os
subcampos, indicam, a nosso ver, que podemos observar, na sociedade brasileira,
uma organização binária e sexista dos cuidados, embora reconheçamos que tenham
ocorrido avanços com o advento dos movimentos feministas (Maux & Dutra, 2009;
Vásquez, 2014). Em outras palavras, encontramos, no material, que a mulher continua
sendo concebida e cobrada pelo cuidado do bebê, de outrem e do lar, ao passo que
aos homens é delegado o espaço de provedor, ausente e distante dos assuntos que
tangem ao mundo privado.
Esse imaginário acaba por impactar não apenas mulheres, mas a população
de modo geral, visto que não concebe o cuidado enquanto uma capacidade humana,
recorrendo a abstrações que o naturalizam como feminino, contribuindo para
mascarar as condições concretas de vida e perpetuar relações de desigualdade e
opressão (Aiello-Vaisberg, 2017).
Assim, à luz de autoras como Butler (2003), podemos pensar que gênero seria
a repetição de atos performativos, cujo modelo não existe um original. Em outras
palavras, ao reproduzirmos cotidianamente que mulheres são sexualmente
comedidas, dóceis, belas e naturalmente preparadas e desejantes de serem mães,
enquanto homens são reduzidos a meros provedores e parceiros sexuais (Zanello,
2018), damos aparente estabilidade ao o que corresponderia a cada gênero.
Contudo, submeter-se às referidas normas impactaria diretamente a
criatividade e espontaneidade das pessoas, ou seja, o que entenderíamos, com base
no pensamento de Winnicott (1971/1975, 1956/1978, 1963/1983), como sua própria
saúde mental. Com isso, gostaríamos de salientar que a submissão às normas de
gênero acaba por afetar a sociedade de modo geral, não apenas mulheres e mães,
mas também filhos, homens, pessoas transgênero e todos os demais.
Enfim, podemos pensar que o cenário supracitado afeta não apenas a
organização social e as relações familiares e interpessoais (Borsa & Nunes, 2011),
mas a própria saúde mental das pessoas. Portanto, esperamos, com esse trabalho,
fornecer conhecimento compreensivo sobre o tema, visando contribuir com subsídios
para intervenções psicoterapêuticas e psicoprofiláticas, assim como para debates
sociais, em prol de uma sociedade equitativa em relação as condições de gênero, que
não onere as mulheres com as responsabilidades do cuidado.

312
Referências

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314
26 - “MINHA VIDA MUDOU PARA SEMPRE”: EXPERIÊNCIA VIVIDA
DE PERDA POR SUICÍDIO

Gustavo Renan de Almeida da Silva


Mayara de Souza Américo
Thaís Ribas
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg

Resumo: Este trabalho tem como objetivo investigar a experiência emocional de


perda de pessoa próxima por suicídio, uma vez que esse tipo de ocorrência pode ser
fonte de intenso sofrimento. Organiza-se como um estudo qualitativo e empírico com
o uso do método psicanalítico, que utilizou, como material, um vídeo do YouTube, no
qual indivíduos que sofreram perda de pessoa próxima por suicídio expressam-se
sobre essa experiência. A interpretação psicanalítica do material permitiu que
propuséssemos dois campos de sentido afetivo-emocional. O primeiro, intitulado
“Minha vida mudou para sempre”, organiza-se ao redor da crença de que o ato suicida
mudaria de forma radical e permanente a vida de amigos e familiares. O segundo,
intitulado “Quem vai mal?”, organiza-se ao redor da crença de que haveria algo
internamente errado com a pessoa que cometeu suicídio. O quadro geral aponta que
a ocorrência de suicídio se associa a uma interessante configuração, em função da
qual o suicida é reconhecido como internamente problemático/louco, enquanto o
enlutado se percebe como dramaticamente atingido pelo ato alheio, mas sem
demanda de atenção psicológica.

Palavras-chave: posvenção, suicídio, método psicanalítico.

315
Introdução

É importante reconhecer que o suicídio pode ser considerado, atualmente, um


problema de saúde pública, já que dados do Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos (Brasil, 2019) apontam que nosso país ocupa o oitavo lugar no
ranking de classificação de países latino-americanos em termos do número de
suicídios praticados. Também são disponíveis informações segundo as quais ocorre
um suicídio a cada 45 minutos no Brasil e a cada 40 segundos no mundo
(Universidade Federal de Minas Gerais, 2019), sendo essa a segunda principal causa
de morte entre jovens de 15 a 29 anos (World Health Organization, 2019).
Visto que vivemos inseridos em verdadeiras redes relacionais, cabe admitir que
cada morte por suicídio atinge diversas pessoas, o que torna o luto um importante
aspecto dessa problemática. Sabemos que as experiências de luto são dolorosas e
provocam sentimentos de angústia, depressão e impotência. Entretanto, a maioria das
pessoas tendem a voltar depois de algum tempo para suas atividades cotidianas
normais (Worden, 2013; Cavalcanti, Samczuk & Bonfim, 2013). Contudo, essa nem
sempre é uma realidade, pois alguns processos de luto podem se revestir de certa
severidade, demandando atenção psicológica e psiquiátrica, sobretudo quando
fragilidades emocionais do enlutado combinam-se com determinadas circunstâncias
da morte, entre as quais se inclui o suicídio, o assassinato, desastres de todo o tipo,
dentre outros.
Devemos considerar ainda que, embora a taxa global de suicídio tenha
diminuído nos últimos anos, o mesmo não ocorre nos países americanos, como o
Brasil (World Health Organization, 2019; Brasil, 2019). Por conseguinte, podemos
pensar que a taxa de enlutados em nosso país também tem aumentado. Ainda assim,
muito se fala em prevenção ao suicídio, mas pouco se investe em posvenção, vale
dizer, aos cuidados daqueles que perderam pessoa próxima por suicídio (Fukumitsu
& Kovács, 2016). De acordo com o Ministério da Saúde (2017), foram destinados, em
2017, dois milhões de reais para programas de prevenção ao suicídio, ao passo que
não foram encontrados dados de investimentos em programas de posvenção dentro
da saúde pública brasileira.
Desse modo, considerando o impacto emocional significativo que a perda por
suicídio pode gerar, como também a pouca visibilidade do tema da posvenção no
cenário nacional, o presente trabalho tem como objetivo investigar a experiência

316
emocional de pessoas que perderam alguém próximo por suicídio. Justifica-se como
busca de conhecimento compreensivo sobre o tema, que pode ser útil na clínica
psicológica, em vertentes psicoterapêuticas e psicoprofiláticas, bem como contribuir
com futuros projetos na área de políticas públicas em posvenção ao suicídio e fornecer
subsídios para debates no âmbito de movimentos sociais e da sociedade civil como
um todo.

Método

O presente trabalho organiza-se como um estudo qualitativo e empírico, com o


uso do método psicanalítico. Buscando atender às considerações de Ambrósio, Aiello-
Fernandes e Aiello-Vaisberg (2013), delineamos um desenho de pesquisa que se
fundamentou nas formulações metodológicas de Bleger (1963/1984) e em algumas
contribuições de Herrmann (1979/1991) relativas à primazia que o método
psicanalítico guarda em relação às teorias e procedimentos clínicos que dele derivam,
bem como as suas recomendações relativas à produção de interpretações
psicanalíticas a partir de material que pode não ter sido obtido no transcurso de
sessões.
A partir da leitura de Politzer (1928/2004), Bleger (1963/1984) veio a
desenvolver uma perspectiva teórica que denominamos psicologia psicanalítica
concreta, que se inscreve sob o paradigma relacional (Greenberg & Mitchell, 1983) e
se distingue de outras por enfatizar que os vínculos e as interações interpessoais se
dão em contextos macrossociais. Nesse referencial, parte-se do estudo de condutas
manifestas que são compreendidas como fenômenos que emergem de campos de
sentido afetivo-emocional, de natureza intersubjetiva. Tais campos correspondem ao
inconsciente, não mais concebido como fenômeno intrapsíquico individual, mas como
dimensão que perpassa todas as relações entre indivíduos e grupos. Assim, os
conceitos fundamentais, quando se pesquisa usando a psicologia psicanalítica
concreta, são os seguintes: conduta, campo de sentido afetivo-emocional e
imaginários coletivos como conduta e campo.
Conduta, para Bleger (1963/1984), seria toda e qualquer manifestação
humana, que pode se expressar em três áreas interatuantes, a saber: mente, corpo e
mundo externo. As condutas sempre estão carregadas de sentidos e emergem

317
necessariamente de campos de sentido afetivo-emocional, de caráter relacional.
Sendo assim, estudar imaginários coletivos a partir de produções humanas, como
vídeos do YouTube, permite-nos produzir interpretações de seus determinantes
afetivo-emocionais inconscientes (Aiello-Vaisberg & Machado, 2008). A bem da
clareza, vale dizer que, nessa perspectiva, os conceitos apresentados não são
ontologicamente diferenciados, pois campos e imaginários são produzidos a partir de
atos humanos, tornando-se substrato de outros atos humanos, em um movimento
dialético e contínuo, que pode seguir caminhos de reprodução ou superação do que
se apresenta em dado momento.
A seguir, trazemos esclarecimentos necessários quanto ao trajeto
metodológico adotado, no âmbito do qual distinguimos uma forma de
operacionalização do método psicanalítico que abrange procedimentos investigativos
de seleção, registro e interpretação do material de pesquisa. Deste modo, cuidamos
de nossa comunicação com pesquisadores qualitativos que usam outros referenciais
ou que utilizam a psicanálise não como método, mas como corpo teórico.
Visando atender o procedimento investigativo de seleção do material,
escolhemos, por acessibilidade ou conveniência (Marotti et al., 2008), um vídeo da
plataforma YouTube, intitulado “Como é perder alguém por suicídio”, do canal Math
Horácio Traduz (2017). Nesse, pessoas que perderam alguém por suicídio
expressavam livremente as suas experiências.
Em seguida, fizemos o download do referido vídeo e transcrevemos as falas
daqueles que participaram da filmagem, cumprindo o procedimento investigativo de
registro do material. Tal etapa se fez necessária, uma vez que materiais online podem
ficar indisponíveis, sem qualquer aviso prévio.
Juntamente com o grupo de pesquisa, procedemos à interpretação
psicanalítica do material. Neste momento, cultivando um estado de atenção flutuante
e associação livre de ideias (Aiello-Vaisberg & Machado, 2005), buscamos
criar/encontrar os campos de sentido afetivo-emocional, que correspondem aos
resultados nesse tipo de pesquisa. Para isso, seguimos as palavras de ordem de
Herrmann (1979/1991), isto é: “deixar que surja”, “tomar em consideração” e
“completar a configuração do sentido emergente”.
Por fim, cessamos o uso do método psicanalítico para realizarmos as
interlocuções reflexivas. Essa etapa, que corresponde ao que é usualmente
designado como discussão dos resultados, consiste em um trabalho dialógico-

318
reflexivo com outras/os autoras/es, psicanalistas ou não, a fim de produzir
conhecimento compreensivo sobre o tema estudado.

Interpretações e interlocuções reflexivas

A interpretação psicanalítica do material permitiu que propuséssemos dois


campos de sentido afetivo-emocional. O primeiro campo, intitulado “Minha vida mudou
para sempre”, organiza-se ao redor da crença de que a experiência do suicídio
mudaria de forma radical e permanente a vida de amigos e familiares. Esse campo
ilustra-se, no material, em falas dos participantes que descrevem a experiência de
perder alguém por suicídio como algo com impactos duradouros em suas rotinas,
saúde mental, emoções e comportamentos. Podemos citar as seguintes falas: “Se
você puder imaginar uma noite onde você ficou chorando, ou chorando sozinho até
dormir porque alguém quebrou seu coração, cada santa vez que isso aconteceu, tudo
em uma única vez e o sentimento realmente nunca foi embora”, “Minha base inteira
de quem eu sou mudou”, “Eu sinto como se não fosse a mesma pessoa que eu era e
eu acho que um monte de gente espera que você tipo volte a ser a mesma pessoa,
mas eu nunca vou ser aquele homem de novo. Toda minha experiência de vida
mudou” e “Eu desenvolvi agorafobia, eu desenvolvi ansiedade severa, e transtorno de
ansiedade generalizada, eu desenvolvi depressão pior que já tenho em minha vida
inteira”.
Por sua vez, o segundo campo, intitulado “Quem vai mal?”, organiza-se ao
redor da crença de que haveria algo internamente errado com a pessoa que cometeu
suicídio. À leitura dos depoimentos dos enlutados surge a sensação que aquele que
se suicidou deveria ter recebido algum cuidado, pois algo realmente problemático
estaria acontecendo com essa pessoa. Esse outro, que foi como que “perdido para o
suicídio”, figura como ser problemático/louco, enquanto aquele que vive o luto se
apresenta como profundamente atingido, mas não necessitando de ajuda psicológica.
Exemplos de condutas que emergem a partir desse campo são as seguintes
declarações: “Cuidem de vocês mesmos, cuidem uns dos outros”, “As pessoas hoje
em dia ainda estão varrendo isso para debaixo do tapete. As pessoas ainda não estão
conversando sobre isso, as pessoas ainda estão fingindo que nada está acontecendo”
e “Eu acho que isso jamais vai ser normal para mim”.

319
Como corroborado por autores como Fukumitsu e Kovács (2016) e Dutra et al.
(2018), o suicídio de um ente querido pode desencadear sofrimento emocional que se
expressa sob forma de sentimentos variados e em diferentes intensidades, como, por
exemplo, desamparo, dúvidas, solidão, saudades, necessidades de explicações e
sensação de anestesia.
De acordo com Worden (2013), o luto causado por um suicídio gera
divergências entre teóricos, com alguns apontando maior dificuldade para esse ser
superado e outros não o diferindo dos demais lutos. Tomando como base o estudo de
Dutra et al. (2018), tal diferença se justificaria, pois pessoas que perderam alguém por
suicídio, para além da dor do luto, enfrentariam também julgamentos, preconceitos e
críticas sociais. A seu ver, a culpa também ocuparia um bom espaço, pois essas
pessoas tenderiam tanto a se responsabilizarem pela atitude de quem se suicidou
como a reprovarem a si mesmas por não terem sido capazes de evitar o acontecido.
De fato, o material aqui pesquisado permite compreender que a experiência de
suicídio se faz acompanhar por sofrimentos significativos das pessoas próximas,
podendo agravar dificuldades anteriores no lidar com adversidades e frustrações, o
que pode favorecer o adoecimento emocional. Entretanto, embora as pessoas que
perderam alguém por suicídio reconheçam, no material, a vivência desses impactos,
elas não percebem a si mesmas como quem precisaria de cuidado, pois justamente
contrapõem, talvez defensivamente, dois tipos de pessoas: aquelas que têm
problemas internos e se suicidam e aquelas outras que se encontram atingidas pelo
ato alheio de suicídio. As primeiras deveriam ter tido seus problemas internos tratados,
enquanto as segundas não necessitariam de tratamento, apesar de sofrerem.
Recordamos aqui um importante tema winnicottiano, vale dizer, a questão do
medo da loucura. Para esse autor, quando a pessoa teme o próprio caos interno, bem
como a perda de contato consigo mesmo, pode atribuir a loucura ao outro enquanto
se mantém submissa à realidade externa (Winnicott, 1971/1975), aferrando-se
defensivamente ao que julga concreto e estável para controlar as próprias fantasias.
Esse fato afetaria a capacidade criativa, levando à estagnação e ao estabelecimento
de relações rígidas com a realidade, o que conduz a uma vida impessoal (Pires, 2010).
Vale lembrar que, na teoria de Winnicott (1971/1975, 1956/1978, 1963/1983),
criatividade e autenticidade seriam pilares centrais para a saúde do indivíduo, sendo
que sua ausência provocaria sofrimentos radicais.

320
Assim, a posvenção nos parece de grande relevância, na medida em que visa
auxiliar aqueles que, por terem perdido pessoa próxima por suicídio, enfrentam
traumas, estresse, sofrimentos e adoecimento (Dutra et al., 2018). Contudo, devemos
chamar atenção para a possibilidade desses enlutados apresentarem grandes
resistências que, por medo e angustia, podem evitar a formulação de uma demanda
e ajuda psicológica. Desse modo, fica recomendada a atenção para uma clínica
baseada em enquadres diferenciados, que possa lidar com a situação emocional dos
enlutados sem fazer exigências que ultrapassem suas capacidades de momento.

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322
Anexo – Transcrição do material de pesquisa

O vídeo intitulado "Como é perder alguém para o suicídio", do canal Math Horácio
Traduz (2017), começa mostrando a frase "Este vídeo contém conversas sobre
depressão e tentativas de suicídio”. Posteriormente, é mostrado uma senhora (Sujeito
1) falando "Eu não entendo o porquê das pessoas não falarem sobre isso, eu não
estou envergonhada que minha filha escolheu este caminho para não estar aqui. Eu
estou muito triste pelo fato dela não estar comigo."
A seguir, aparece uma legenda na tela escrita: "Como é perder alguém para o
suicídio". Inicia-se, então, a apresentação dos participantes do vídeo. A primeira é
Marcela7 (Sujeito 2), que perdeu sua irmã de 19 anos para o suicídio. Logo após,
mostra-se Tereza (Sujeito 3), que perdeu seu pai e avô por suicídio quando ela era
criança. O vídeo segue mostrando Júlia (Sujeito 4), que perdeu sua melhor amiga de
29 anos para o suicídio. Depois, mostra-se Marcelo (Sujeito 5), que perdeu seu irmão
mais novo por suicídio, quando o mesmo tinha 22 anos. Novamente, vemos Paula
(Sujeito 1), a senhora do começo do vídeo, e consta que ela perdeu a filha para o
suicídio. Antônia (Sujeito 6) perdeu seu pai quando ela tinha 21 anos. Por fim, Marcos
(Sujeito 7), estando escrito que o mesmo perdeu seu melhor amigo para o suicídio.
O fundo preto volta à tela e surge a frase: "Como foi quando você descobriu?". Em
seguida, vemos as respostas de cada integrante do vídeo:
Sujeito 5: Eu tinha deixado meu celular no quarto e tinha 45 chamadas perdidas e eu
me senti sem força.
Sujeito 6: Foi tão chocante e tão inacreditável, mas também antes de eu sequer
atender a chamada, a luz do meu celular acendeu e eu sabia sobre o que era a ligação.
Sujeito 2: Eu acordei na manhã seguinte às duas, com dois policiais batendo na janela
do meu quarto, então eu os deixei entrar e eles pediram para eu sentar e disseram
que minha irmã foi encontrada.
Sujeito 7: Eu queria checar tudo duas vezes para que o nome certo aparecesse.
Sujeito 1: O sargento da polícia começou a conversar comigo, e assim que ele
começou a conversar comigo, foi como se meu coração tivesse sido rasgado em dois.
A próxima pergunta que aparece na tela é: "Como você se sentiu?". Seguem as
respostas:

7
Todos os nomes aqui utilizados são fictícios.

323
Sujeito 6: Não senti até um pouco de tempo depois que a poeira começou a se
acalmar, você tipo que percebe o que aconteceu.
Sujeito 1: Sensação física de ir, "não, não, é a minha filha. Minha filha se foi".
Sujeito 5: Eu cheguei em um ponto no aniversário do Otávio, onde eu fiquei
preocupado comigo mesmo.
Sujeito 1: Eu senti como se fosse me encontrar com ela.
Sujeito 5: Todos os primeiro, o primeiro aniversário, o primeiro ano novo, o primeiro
natal. Tudo isso te golpeia quando você menos espera.
Sujeito 1: Meu coração nunca mais foi o mesmo. E aí uma sensação física, de ter uma
parte minha levada embora.
Sujeito 2: Eu desenvolvi agorafobia, eu desenvolvi ansiedade severa e transtorno de
ansiedade generalizada, eu desenvolvi depressão pior que já tenho em minha vida
inteira.
Sujeito 4: Um vem e vai em ondas de sentimento de tristeza para, sim, claro, saudades
dela.
Sujeito 2: Se você puder imaginar uma noite onde você ficou chorando, ou chorando
sozinho, até dormir, porque alguém quebrou seu coração, cada santa vez que isso
aconteceu, tudo em uma única vez e o sentimento realmente nunca foi embora.
Sujeito 1: Isso quebrou meu coração.
A próxima questão foi "O que você levou desta experiência?". As respostas dos
participantes foram:
Sujeito 3: Eu acho que a maior coisa que eu levei através desta experiência é esta
espécie de fragilidade da vida, particularmente quando isso vem da saúde mental e
não tendo serviços ao seu redor.
Sujeito 7: Que saúde mental não é uma fraqueza.
Sujeito 3: As pessoas hoje em dia ainda estão varrendo isso para debaixo do tapete.
As pessoas ainda não estão conversando sobre isso, as pessoas ainda estão fingindo
que nada está acontecendo.
Sujeito 7: Não há nada de errado quanto a falar sobre isso, não há nada de errado
quanto a ter um momento de choro, não há nada de errado quanto dar ou receber um
abraço, e isso não é esperar para falar.
Sujeito 1: Então, eu acho que o diálogo é a chave, eu acho que a conversa é a chave,
eu acho que perguntar aos seus amigos se eles estão bem e assim os ouvir é a chave.

324
Sujeito 4: Isso realmente me faz notar o quão importante é se aproximar de qualquer
pessoa amada, para conversar mais sobre as coisas, expressar sentimentos e apenas
estar lá um para o outro.
Sujeito 2: Minha base inteira de quem eu sou mudou. Ela era minha única irmã, assim
foi minha melhor amiga por mais ou menos vinte anos.
Sujeito 5: Eu sinto como se não fosse a mesma pessoa que eu era e eu acho que um
monte de gente espera que você tipo volte a ser a mesma pessoa, mas eu nunca vou
ser aquele homem de novo. Toda minha experiência de vida mudou.
Sujeito 1: Eu acho que isso jamais vai ser normal para mim.
Sujeito 3: E se isto alcançar apenas uma pessoa que foi simplesmente como eu,
apenas quero que eles saibam que não estão sozinhos.
Sujeito 1: Você não está pensando sobre o que deixa para trás, mas a consequência
simplesmente dura para sempre. Cuidem de vocês mesmos, cuidem uns dos outros.
A vida é muito curta. Apenas curta ela.
O vídeo finaliza com um fundo preto.

325
27- CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE RACISMO E FORMAÇÃO DE
PSICÓLOGOS

Rafael Aiello-Fernandes
Tania Aiello-Vaisberg
Leila Cury Tardivo

O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre a necessidade de inclusão


da questão do racismo brasileiro na formação do psicólogo. Organiza-se em três
partes. Na primeira traz uma breve explicação acerca de como o mito da democracia
racial retardou a percepção do fenômeno, que deixou de ser claramente reconhecido
até tempos recentes, apesar dos empenhos do movimento negro e das ciências
sociais brasileiras. Na segunda parte, traça brevemente considerações sobre
sofrimentos sociais despersonalizantes/desumanizantes gerados pelo racismo à luz
das contribuições de Fanon sobre a experiência de ser negro e do pensamento
blegeriano de recusa aos mitos do ser humano natural, abstrato e dissociado das
condições concretas da vida social. Na terceira parte discorre sobre a potencialidade
mutativa dos enquadres diferenciados Ser e Fazer por meio do holding que favorece
a superação das dissociações e a (re)conquista de gestos espontâneos de
transformação de si e do mundo em que vivemos. Nas considerações finais, retoma a
questão da formação do psicólogo, propondo que são duas as principais tarefas a
serem cumpridas neste momento: 1) sensibilizar o aluno em relação ao racismo como
potente causa de sofrimentos emocionais em nosso país e 2) proporcionar
conhecimentos teórico-clínicos que permitam a proposição de uma clínica social
ampliada.

Palavras chave: racismo, formação de psicólogos, clínica social

326
Introdução

No presente texto desejamos focalizar a questão da formação de psicólogos


para o trabalho com os sofrimentos sociais gerados pelo racismo. Somamo-nos assim
a recentes esforços de pensar, desde diferentes enfoques epistemológicos, uma
educação que leve em conta a questão das relações raciais e a necessidade de um
horizonte epistemológico descolonizador na psicologia, tais como Castelar e Santos
(2012), Santos e Schucmann (2015), Santos (2019) e Menezes, Lins e Sampaio
(2019). No nosso caso, salientamos a importância de uma abordagem que foque não
apenas aspectos cognitivos e racionais do problema, mas vise estudar a dimensão
inconsciente das experiências vividas, imaginários coletivos, modalidades de
conscientização e pressupostos éticos necessários para o trabalho com efeitos
subjetivos geradores de sofrimentos sociais ligados ao racismo. Baseando-nos nos
pressupostos da psicologia psicanalítica concreta (Bleger,1963/2007) e no paradigma
relacional em psicanálise (Greenberg e Mitchel, 1983), entendemos que os campos
inconscientes se constelam intersubjetivamente em contextos macropolíticos,
comunitários, institucionais e grupais específicos. São, assim, sempre social e
historicamente condicionados, não correspondendo, portanto, a fenômeno
meramente intrapsíquico e individualizado. Tal compreensão nos permite afirmar a
singularidade do ponto que queremos destacar aqui: uma formação profissional
voltada para uma clínica social (Tardivo, 2017) que permita pensarmos formas de
teorização, prevenção e intervenção mais consonantes com as condições sociais,
econômicas e culturais da realidade racializada brasileira.

Quanto à concepção de raça, partimos aqui da compreensão desta como


construção social e histórica ligada a estruturas de poder, e não como realidade
biológica. O racismo, assim, é um sistema de dominação e opressão que se sustenta
em uma produção de marcas sociais a partir de diferenças físicas reais ou imaginárias
– cor de pele, formato do nariz e cabelo, por exemplo. Estas servem como critério para
um modo de classificar, em termos de superioridade e inferioridade, diferentes grupos
ou populações, imputando essências morais e intelectuais à determinada aparência
para, por esta via, produzir e sustentar práticas de preconceito e discriminação, a nível
social, institucional e interpessoal. O marcador raça, além disso, se conjuga
interssecionalmente com outros marcadores sociais, como de classe, gênero e
327
orientação sexual. Essa complexa estrutura de poder é causadora, ademais, de
importantes formas de sofrimento social, já estudas pela psicanálise em nosso país
desde autoras como Bicudo (1945), passando por Souza (1983) e mais recentemente
Nogueira (1998), Guimarães (2001), Reis Filho (2005) e Mussatti-Braga (2015). Enfim,
é importante salientar que o racismo se singulariza em seus traços e modos de
atuação em contextos diferentes, variando no tempo e espaço. Cabe portanto,
delinearmos algumas considerações sobre como o fenômeno se deu em nosso país.

1. A democracia racial e o reconhecimento do racismo no Brasil

Durante grande parte do século XX, foi hegemônica no Brasil a concepção de


que seríamos uma nação singular, onde o racismo não existiria. Como se sabe, após
um período de vigência das teorias biologizantes do racismo científico e da tentativa
de embranquecimento da nação, emergiu, na década de 1930, o ideário de país sem
conflitos raciais como representação oficial de brasilidade. Importante para tanto foi a
obra de Gilberto Freyre (2006), mas o contexto político da época também foi essencial
para a difusão de tal imagem, o que perdurou tanto durante o período democrático,
após o fim da ditadura do Estado Novo, como e especialmente durante a vigência da
ditadura militar iniciada em 1964. No processo de redemocratização, no entanto, com
o empenho do movimento negro e das ciências sociais brasileiras, que desde a
década de 1940 e 1950 questionavam a ausência de preconceito no país - por
exemplo, desde Bicudo (1945), passando por diversos trabalhos do projeto Unesco –
houve um crescente reconhecimento do racismo como fenômeno estruturante da
modernização brasileira, que se articularia com os mecanismos de reprodução das
classes sociais, um dos principais elementos produtores e mantenedores da
desigualdade em nosso país (Barreto, 2008; Hasenbalg 1979).

O racismo brasileiro vem sendo cada vez mais conceitualmente especificado


em sua singularidade, que inclui os traços do ideal do branqueamento, o chamado
preconceito de cor e o mito ou ideologia da democracia racial. O processo de
branqueamento segue linhas que se pautam na noção de miscigenação hierárquica
que mantém a branquitude como critério ideal e normativo de humanidade, de modo
que as outras populações são julgadas de acordo com o grau de aproximação ou

328
afastamento em relação a essa norma. O preconceito de cor consiste numa forma de
discriminação que se concretiza, na realidade cotidiana, a partir da classificação do
indivíduo em uma cromatologia hierárquica, segundo a pigmentação da pele, e na
produção de outras marcas como formato de nariz e cabelo. O ideal do
branqueamento e o preconceito de cor conformam um racismo assimilacionista,
universalista e heterófobo em relação ao negro, que se sustenta em uma mistura de
processos de inclusão e exclusão, configurando, concretamente, o que podemos
chamar de pseudo-inclusão ou inclusão subordinada. De fato, observamos que a
inclusão se deu historicamente, de forma meramente retórica, no âmbito cultural, na
medida em que alguns elementos de matriz africana foram simbolicamente clareados
e incorporados discursivamente à identidade brasileira. Por outro lado, constatamos
que a exclusão ocorre notadamente no campo social, político e econômico,
expressando-se sob forma de acesso diferencial a direitos básicos de cidadania e
participação na construção do comum. Isso tem consequências concretas na
produção de sofrimentos sociais e nas políticas de vida e morte da colonialidade, pois
garante estruturalmente oportunidades para um grupo, caracterizado por sua plena
humanidade, o branco, enquanto busca instituir morte, anomia, desagregação social
e despersonalização psicológica em outro, não visto como plenamente humanizado –
o que tem sua expressão máxima no alarmante índice de homicídios que acomete a
população negra em nosso país. No entanto, essa realidade foi e é mascarada pelo
que ficou conhecido como democracia racial – a concepção de que não sofreríamos
com o racismo e que as oportunidades eram e são iguais para todos independente de
cor, sendo que qualquer forma de preconceito se daria exclusivamente pelo fator
classe social. Temos assim, um racismo estrutural que se efetua na prática, em termos
sociais, institucionais e interpessoais, ao mesmo tempo que se nega discursivamente
(Aiello-Fernandes, 2018; D’Adeski, 2001; Guimarães,1999, 2012; Schwarcz,1993,
2012; Souza, 1983).

2. Racismo e sofrimento social

Consideramos essencial, para a tematização do racismo como sofrimento


social, o pensamento do psiquiatra martinicano Frantz Fanon (1952), que chama
atenção para a necessidade de se realizar um sociodiagnóstico do problema do

329
racismo, argumentando que esse não pode ser entendido fora de suas conexões com
as realidades econômicas e políticas e de sua relação com a temporalidade. Partindo
da psicanálise, afirma que a originalidade freudiana em relação ao saber de seu
tempo, relativa a levar em consideração a dimensão ontogenética na explicação das
psicopatologias, deveria ser complementada, no que diz respeito ao racismo, por uma
valorização da sociogênese. Com isso, Fanon (1952) abre a possibilidade de se
estudar os impactos existenciais da colonialidade na experiência vivida, articulando-
as com a realidade social (Maldonado-Torres, 2007). A partir disso, analisa diversos
aspectos da experiência emocional em um contexto no qual o racismo anti-negro gera
efeitos devastadores de despersonalização, subalternização e invisibilização do corpo
e da subjetividade negras, causando um complexo de inferioridade ligado ao lugar em
que o negro foi colocado na modernidade pela violência do escravismo, da expansão
imperial das nações colonizadoras e das ideologias justificadoras da dominação dos
povos considerados como “de cor”.

Tal compreensão permite a Fanon (1952), que foca mais especificamente a


condição do negro no mundo moderno, analisar como as relações de poder se
expressam nas dimensões mais sutis e pessoais da existência daquele que é alvo de
racismo, desde a linguagem e as relações amorosas até os sonhos e a relação com
os outros. Assim, analisando desde obras literárias até casos clínicos, fazendo
incursões pela poesia da negritude e aplicando procedimentos psicológicos,
construindo, enfim, um discurso descolonizador em que mantém diálogo crítico com o
saber de seu tempo, busca desvendar a situação existencial do negro em uma
sociedade racista.

No capítulo A Experiência Vivida do Negro, fazendo um itinerário a partir de sua


própria experiência pessoal, o autor mostra como a experiência vivida do racismo
ataca o negro em sua própria estrutura ontológica, perturbando sua relação com o
próprio corpo e com a própria racionalidade. Fica explícito, aí, como os sofrimentos
sociais e o processo de psicopatologização, que afeta aquele que é sujeitado ao
racismo, liga-se a um contexto amplo, pois o autor mostra como as “lendas, histórias,
a história e, sobretudo a historicidade”, bem como estereótipos e mitos imputados
como essência do povo negro pelos discursos coloniais – no contexto em que escreve,
a antropofagia, o atraso mental, o fetichismo, as taras raciais, a mentalidade primitiva,
etc. – atacam-lhe as estruturas mais íntimas do existir. Há, assim, uma compreensão

330
da interdependência entre o macrossocial, o econômico, o cultural e a vida emocional
em sua obra que, segundo nossa concepção, pode ser criativamente articulada com
as considerações blegerianas de crítica aos mitos do ser humano natural, isolado e
abstraído de suas ligações com o mundo concreto.

Consideramos, assim, fecundo articular a proposição do sociodiagnóstico de


Fanon (1952) com o referencial da psicanálise concreta, inspirada na obra de Bleger
(1958; 1963). Acreditamos que este último, a partir de sua leitura de Georges Politzer
(1928), faz justiça à necessidade de retorno à concretude da experiência na
psicanálise, compreendendo toda manifestação humana como conduta, ou seja, em
sua totalidade significativa, que tem sempre um caráter vincular e emerge de
contextos políticos, econômicos e sociais concretos. A crítica de Politzer (1928) aos
fundamentos da psicanálise, retomada por Bleger (1958; 1963/2007), centrou-se
justamente em denunciar os procedimentos intelectuais – realismo, abstracionismo,
formalismo – que transformam os acontecimentos dramáticos da vida dos sujeitos em
coisas, em processos despersonalizados, convertidos em entidades metafísicas e
objetificadas na forma de um aparelho psíquico concebido em termos energéticos e
pulsionais. Contra tal concepção, Politzer (1928/2001) preconizou um retorno ao
concreto das descobertas freudianas, chamando a atenção para a importância de se
estudar o “fato psicológico em primeira pessoa”, ou seja, o drama.

Ao retomar essas considerações e compreender as manifestações humanas


como condutas dramáticas concretas, consideramos que Bleger (1958; 1963/2007),
ao ser articulado ao conceito de sociodiagnóstico em Fanon (1952), proporciona um
modo de estudar a experiência vivida do racismo em um registro que faz justiça à sua
materialidade e à vinculação com condições sociopolíticas. De acordo com Bleger
(1963/2007), a conduta corresponde a manifestações humanas que se expressam,
sempre e simultaneamente, em três áreas: mental, corporal e de atuação no mundo
externo. A qualificação de uma conduta como pertencente a alguma destas três áreas
é dada, então, pela predominância de alguma delas em dado momento. No que se
refere à amplitude do fenômeno a ser estudado, a conduta pode ser compreendida
em três âmbitos: do indivíduo, do grupo e de instituições, como práticas ou normas.
Finalmente, a conduta humana deve ser considerada como emergente de campos
constelados intersubjetivamente e não mera exteriorização da interioridade psíquica
individual. Segundo a ótica blegeriana, cabe distinguir três subestruturas nos campos

331
da conduta: o ambiente ou subcampo geográfico, que corresponde, praticamente, ao
que pode ser percebido por um observador relativamente externo ao acontecer em
pauta; o subcampo psicológico, que abrange as experiências vividas; e, finalmente, o
campo da consciência, que consiste nas experiências conscientemente percebidas
num certo momento. Além disso, a conduta deve ser sempre vista como vinculada a
macrocontextos econômicos mais amplos.

3. Racismo e Clínica Social

Partindo das considerações teóricas acima sobre as obras de Fanon e Bleger,


iremos agora abordar a potencialidade mutativa dos enquadres diferenciados Ser e
Fazer por meio do holding que favorece a superação das dissociações e a
(re)conquista de gestos espontâneos de transformação de si e do mundo em que
vivemos. Visamos assim pensar uma clínica social que trabalhe a questão das
relações raciais a partir da constituição de ambientes concretos que propiciem a
maximização de processos de invenção, criatividade e autonomia.

Os enquadres diferenciados Ser e Fazer partem do pressuposto de que o


estabelecimento de um bom vínculo com o conhecimento psicanalítico demanda uma
correta compreensão de seu método. Esse método apresenta caráter eminentemente
interpretativo – o que não deve ser confundido com procedimentos clínicos
interpretativos – uma vez que indica a compreensão de que toda e qualquer conduta
humana tem sentido a ser criado/encontrado. Esta seria a base, antes ética e
posteriormente epistemológica, da prática psicanalítica.

Ora, como indicamos acima, entendemos que os campos inconscientes se


constelam intersubjetivamente sempre em contextos concretos, não emanando de
bases puramente biológicas ou de interioridades solipsistas. Assim, o acesso à
criação/encontro dos sentidos inconscientes das condutas só pode ser apreendido
quando contextualizado histórica, social e culturalmente, tanto do ponto de vista
individual – ontogênese – quanto coletivo – sociogênese. Assim, compreendemos que
as experiências vividas sempre se dão sobre as bases dos imaginários coletivos que

332
atravessam o campo social, podendo ser mantenedoras e reprodutoras destes ou
indicar posturas existências que clamem por mudanças.

Os enquadres diferenciados Ser e Fazer são definidos pelo fato de adotar o


holding como intervenção fundamental, de fazer uso de materialidades mediadoras e
de acontecer preferencialmente de modo grupal (Aiello-Vaisberg, 2003).

A opção pelo holding substitui a enunciação de sentenças interpretativas, mas


não significa descuido com relação à busca de compreensão afetivo-emocional. Na
verdade, entendemos ser impossível sustentar sem compreender, mas também
consideramos que a tradução do compreendido sob forma de verbalização é
insuficiente quando se visa favorecer uma experiência mutativa de superação de
dissociações. Na verdade, o holding faz sentido quando não pensamos o paciente
como alguém que pode “aprender sobre si mesmo”, o que favoreceria o falso self, mas
sim quando visamos ajuda-lo a se sentir mais vivo, real e capaz de gestualidade
espontânea e transformadora de si e do mundo (Aiello-Vaisberg, 2003).

Quando pensamos nos sofrimentos gerados pelo racismo, adentramos num


território em que, a exemplo do que ocorre sempre que indivíduos e grupos são
oprimidos e discriminados, prosperam e prosperaram ataques que visaram
despersonalizar/desumanizar o negro. Favorecendo a recuperação de capacidade de
gestualidade espontânea, que se faz pelo reconhecimento da presença humana do
paciente, a despersonalização/ desumanização pode ser combatida no aqui e agora
do encontro inter-humano, que não é reedição do passado mas momento inaugural
de reconhecimento.

Considerações finais

Como se vê, os enquadres diferenciados Ser e Fazer não demandam uma


preparação propriamente técnica e sim a conjugação de conhecimentos relativos à
teoria do amadurecimento emocional e uma formação ética no sentido profundo do
termo. O amadurecimento emocional é concebido winnicottianamente como conquista
do desenvolvimento de capacidades próprias do humano, que resultam do encontro

333
entre o potencial herdado e o ambiente que, por meio dos grupos primários, aporta a
herança cultural (Plastino, 2012).

Assim, cabe considerar que um processo de capacitação de estudantes como


psicólogos capazes de atuar numa clínica voltada ao sofrimento social do racismo,
requer o cumprimento de duas tarefas: 1) transmissão de conhecimentos teórico-
clínicos que permitam a proposição e a sustentação de uma clínica social e 2)
sensibilização ética do aluno em relação ao racismo como potente causa de
sofrimentos emocionais socialmente determinados em nosso país.

Falamos em capacitação, pensando esse termo segundo uma perspectiva


winnicottiana, diferenciando desenvolvimento de capacidades e treinamento de
competências (Botelho-Borges & Aiello-Vaisberg, 2011). O desenvolvimento de
capacidades envolve necessariamente a gestualidade espontânea – sem a qual o
holding jamais se realiza. O treinamento de competências é aquilo que ocorre quando
o falso self se torna perito em submeter-se a qualquer forma de bem fazer que lhe
seja imposta.

Estamos, portanto, diante de uma processo de formação que não é


tecnicamente sofisticado, mas que é bastante exigente, não no sentido de que o
psicólogo se torne uma pessoa emocionalmente resolvida, não vulnerável ao
sofrimento emocional, mas sim uma pessoa que possa se manter sensível e lúcida e
que, mantendo a capacidade de sofrer, possa também exercer o oficio de cuidar.

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336
28- SOFRIMENTO EMOCIONAL DE PÓS-GRADUANDOS: UM ESTUDO
PSICANALÍTICOPRELIMINAR

Sueli Regina Gallo-Belluzzo


Andreia Almeida Schulte
Carlos Del Negro Visintin
Gisele Meirelles Fonseca Inacarato
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg

Resumo: A presente pesquisa objetiva investigar o sofrimento emocional de


estudantes de pós-graduação na perspectiva da psicologia psicanalítica concreta.
Justifica-se na medida em que se tem tornado frequentes, na clínica psicológica,
demandas de jovens adultos motivadas por dificuldades e sofrimentos ligados à vida
acadêmica. Organiza-se como uma pesquisa qualitativa com uso do método
psicanalítico. Aborda, como material, dois depoimentos em vídeos de Youtube de
alunos de pós-graduação. Exposições ao material, em estado de atenção flutuante e
associação livre de ideias, permitiram a interpretação de três campos de sentido
afetivo-emocional: “Exigidos infelizes”, “Exigentes insensíveis” e “Sistema cruel”. O
primeiro campo organiza-se ao redor da fantasia de que os estudantes de pós-
graduação sofrempor receberem demandas desmedidas de dedicação ao trabalho
acadêmico. O segundo campo organiza-se ao redor da fantasia de que os
sofrimentos provocados pelas demandas desmedidas não encontram acolhimento
por partedos professores. O terceiro campo, organiza-se ao redor da fantasia de que
o modo como se organiza o sistema de pós-graduação contribui diretamente para o
sofrimento emocional de todas as pessoas nele envolvidas. O quadro geral revela
que os estudantes vivenciam um descompasso entre o que considerariam razoável,
em termos de dedicação ao trabalho acadêmico, e aquilo que lhes é efetivamente
demandado, em função do que vivenciam como sofrimento emocional. O ambiente
acadêmico não é visto como suficientemente sustentadorpelo estudante em processo
de formação como pesquisador, chamando à atenção o fato de os professores
figurarem como pessoas pouco compreensivase pouco sensíveis. Por outro lado,
destacam-se as considerações relativas ao

337
sistema educacional, ao modo como está organizada a pós-graduação brasileira e
como os sofrimentos de pós-graduandos e docentes são efeitos das políticas
neoliberais vigentes no país.

Palavras-chave: estudantes universitários, sofrimento social, método psicanalítico,


pesquisa qualitativa

A presente pesquisa fundamenta-se no fato de que temos nos deparado, na clínica


psicológica contemporânea, com jovens adultos que apresentam manifestações de
sofrimento emocional, a seu ver, diretamente vinculadas às demandas da vida
universitária (Winkler, 2019). Tal sofrimento pode se concretizar sob forma de mal-
estar emocional relativamente moderado, mas também como quadro psicopatológico
preocupante, podendo incluir depressão e ideação suicida.
Vários pesquisadores têm se dedicado a investigar condições de vida dessa
população, que geram sofrimento psíquico, tais como Costa et al. (2014), Silva,
Cerqueira e Lima (2014), Silva e Cavalcante-Neto (2014), Graner eCerqueira (2019),
que identificaram algum transtorno mental, como estados mistos de depressão e
ansiedade, com presença de sintomas como insônia, fadiga, irritabilidade,
esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas entre 18,5% a
44,9% dessa população. Outros trabalhos, como o de Vizzotto, Jesus e Martins
(2017) e Vasconcelos-Raposo, Soares, Silva, Fernandes e Teixeira (2016),
apresentam resultados convergentes que apontamtambém uma predisposição dos
estudantes a sintomas de ansiedade, estresse e depressão.
Acreditamos que a clara vinculação, que os próprios estudantes estabelecem, entre
seu sofrimento e as condições da vida acadêmica mostra-sesuficiente para nos alertar
sobre o fato de nos encontrarmos diante de uma forma particular de sofrimento
emocional socialmente determinado. O conceito de sofrimento social, descrito
inicialmente por Dejours (1980), focalizava especificamente sofrimentos associados
ao contexto do trabalho, mas foi posteriormente ampliado, abrangendo situações
que afetam grupos que vivem

338
em condições adversas, como pobreza, tortura, violência contra a mulher,racismo,
entre outras (Kleinman, Das & Lock, 1997).
Cabe considerar que o conceito de sofrimento social corresponde a uma noção
central na psicologia psicanalítica concreta (Bleger, 1963/2007), na medida em que
essa perspectiva teórica parte de uma antropologia segundo a qual os seres
humanos são fundamentalmente sociais (Bleger, 1963/2007). Desta forma, quando
adotamos esse referencial, podemos afirmar que, em sentido amplo, todo sofrimento
é social, quer atinja pessoalidades individuais, quer coletivas. Contudo, concordar
com essa afirmação não nos impede de admitir que possa valer a pena reservar a
expressão sofrimento social – social suffering – para referir aos padecimentos muito
diretamente vinculados a contextos sociais.
De acordo com nossa experiência clínica, as condições de estudantes noinício e no
final do curso de graduação podem variar profundamente, em funçãodas questões
de vida que são colocadas nesses diferentes momentos. Por outro lado, temos
constatado, em nossa prática, que as questões enfrentadas na graduação e na pós-
graduação podem diferir bastante entre si. A nosso ver, fica, assim, justificada a
proposição de pesquisa que possa focalizar cada um desses períodos
separadamente.
A partir dessas considerações, estabelecemos o objetivo de investigar sofrimento
emocional de estudantes de pós-graduação, desde a perspectiva da psicologia
psicanalítica concreta. Assim fazendo, visamos produzir conhecimento que possa
ser útil na clínica dos sofrimentos sociais de jovens adultos, em vertentes preventivas
e interventivas.

Fundamentos e Procedimentos Metodológicos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa com o método psicanalítico. Conforme aponta


Herrmann (1979), enquanto existe um único método psicanalítico, são múltiplas as
teorias e tratamentos psicanaliticamenteorientados. Isso ocorre porque o método tem
primazia com relação a teorias e procedimentos clínicos dele derivados. Neste
sentido, cumpre esclarecermos que, entre as várias perspectivas teórico-
metodológicas psicanalíticas, adotamos a psicologia psicanalítica concreta (Bleger,
1963/2007), que se insere no paradigma relacional (Greenberg & Mitchell, 1983).
Politzer (1928/1998) apontou, pioneiramente, a duplicidade discursiva no interior do

339
texto freudiano, a saber, as perspectivas metapsicológica e clinico-dramática.
Concordando comPolitzer (1928/1998), Bleger (1963/2007) entendeu que a primeira
perspectiva deveria ser abandonada, na medida em que estaria vinculada a uma
forma positivista e fisicalista de pensar a ciência. A segunda, harmonizar-se-ia com
visões filosóficas segundo as quais as ciências humanas apresentamespecificidades
que devem ser levadas em conta.
Sob a égide da perspectiva clínico-dramática, fundamentamo-nos na psicologia
psicanalítica concreta (Bleger, 1963/2007). Deste modo, valemo-nos de três
principais conceitos por meio dos quais se teoriza o material. O primeiro deles é a
conduta, noção por meio da qual se abarcam todos os atos humanos,
independentemente de se expressarem simbolicamente, corporalmente, por meio de
ações no mundo externo ou por meio de produtos derivados dessas ações. O
conceito de conduta aplica-se tanto a atos individuais como a atos de pessoalidades
coletivas, de caráter transindividual. O segundo conceito metodológico, aqui
utilizado, é o de campo de sentido afetivo-emocional, que corresponde ao substrato
afetivo-emocional a partir do qual emergem os diferentes atos, já que esse referencial
teórico critica a ideia de que esses derivam simplesmente do que se passa no
psiquismo individual. Podemos afirmar que os campos equivalem a um inconsciente
intersubjetivo habitado porindivíduos e grupos. O terceiro deles, vale dizer, o conceito
de imaginário comoconduta e como campo corresponde a uma noção descritiva que
se tem provado útil na comunicação entre pesquisadores. Vale a pena chamar a
atenção para o fato do imaginário poder ser estudado não só como conduta, mas
também comocampo e acaba deixando claro que não existem diferenças ontológicas
entre atos e campos, uma vez que, como produções humanas, nas quais não
intervêm poderes sobrenaturais nem elementos infra-humanos, atos criam campos
e campos são substratos a partir dos quais emergem atos.
A fim de realizarmos o presente estudo, operacionalizamos o método psicanalítico a
partir de três procedimentos investigativos:
1. Procedimento investigativo de levantamento e seleção de postagens
2. Procedimento investigativo de registro do material
3. Procedimento investigativo de interpretação do material

340
O procedimento de levantamento e seleção de postagens se deu como busca de
vídeos do YouTube, por meio da utilização dos descritores “depressãouniversitário”.
A escolha desse material se deu em função da mídia denominadaYouTube ser um
importante canal de comunicação de experiências entre os jovens, entre outros tipos
de conteúdo (Salmons, 2015). Para seleção do material utilizamos os seguintes
critérios: a) que fossem depoimentos de pessoas que seidentificassem como pós-
graduandos e b) que abordasse manifestamente a questão do sofrimento emocional
de pós-graduandos. Foram selecionados para este trabalho preliminar os dois
primeiros vídeos que atendessem a esses critérios.
O procedimento de registro do material ocorreu por meio da transcrição das falas
veiculadas pelos vídeos. Assim, tanto os vídeos puderam ser revistos como os
registros escritos puderam ser relidos repetidas vezes. Cabe ainda destacar que as
transcrições representam um cuidado necessário uma vez que muitos materiais
podem deixar de estar disponíveis na web sem aviso prévio.
O procedimento investigativo de interpretação do material foi cumprido revisitando
os vídeos e suas respectivas transcrições, numa atitude de aberturaàs ressonâncias
e impactos emocionais que o encontro com as manifestações dos youtubers geram.
Utilizamos as premissas psicanalíticas, atenção flutuantee associação livre de ideias,
seguindo as recomendações metodológicas de Herrmann (1979), tomadas como
guias para a interpretação psicanalítica: “deixarque surja”, “tomar em consideração”
e “completar a configuração do sentido afetivo-emocional emergente”. Por esta via
chegamos à enunciação dos camposde sentido afetivo-emocional.
Finalizamos apresentando uma forma de discussão, que denominamos interlocuções
reflexivas, que se caracteriza pela suspensão do uso do método, abandonando a
atenção flutuante e a associação livre de ideias. Nesse momento, damos início a um
trabalho reflexivo, abordando as principais questões que surgiram nos campos de
sentido afetivo-emocional.

Interpretação e Interlocuções Reflexivas Preliminares

A consideração psicanalítica do material permitiu a produção interpretativa de três


campos de sentido afetivo-emocional “Exigidos infelizes”,

341
“Exigentes insensíveis” e “Sistema cruel”. Apresentamos, a seguir, cada um dos
campos.
O primeiro campo, “Exigidos infelizes”, organiza-se ao redor da fantasia de que os
estudantes de pós-graduação sofrem por receberem demandas desmedidas de
dedicação ao trabalho acadêmico.
O segundo campo, “Exigentes insensíveis”, organiza-se ao redor dafantasia de que
os sofrimentos provocados pelas demandas desmedidas não encontram
acolhimento por parte dos professores.
O terceiro campo, “Sistema cruel”, organiza-se ao redor da fantasia de que o modo
como se organiza o sistema de pós-graduação contribui diretamentepara o sofrimento
emocional de todas as pessoas nele envolvidas
Transcrevemos, a seguir, três trechos dos depoimentos estudados, cada um
emergente de um campo.
No primeiro trecho, emergente do campo “Exigidos infelizes”, a questão do
despreparo e da ansiedade parecem dominar a cena. A aluna se sente sem
condições de dar conta dos compromissos assumidos, mas encontra, no
atendimento psicológico, uma ajuda que se revelou decisiva.

Eu não tava dando conta de conciliar a dissertação e o canal, e era daí que vinha a
minha fonte de renda, e eu não conseguia mais ter um momento delazer, eu não
conseguia mais sentir prazer nas coisas. Quando eu estava fazendo algo da minha
vida que não era dissertação, eu pensava que eu precisava estar escrevendo a minha
dissertação. É sério. É horrível, mas é sério. E isso gera ansiedade, porque você
nunca está vivendo aquele momento, você nunca está vivendo o presente. Você está
sempre pensando no futuro, em algo que você deveria fazer. E aí sua cabeça frita, e
se você fica ansiosa, você não consegue produzir, sua tendência é procrastinar. E
se você não produz, você fica mais ansiosa, e esse é um ciclo que nunca acaba.
Porque você fica pensando no prazo que você tem que, no meu caso eu não
consegui cumprir, eisso me deixou ainda mais ansiosa. Porque eu pensei: eu não
vou terminar issonunca! Foi quando eu comecei a fazer terapia, já falei sobre isso
num vídeo, e fiquei quatro meses longe do canal. Se não fosse isso, eu acho que
não teria terminado minha dissertação. Sinceramente, eu não sei como eu estaria
hoje.

342
Notamos, no caso deste trecho emergente do primeiro campo, que a estudante sofre
por se sentir aquém do requerido, que fica dividida entre dedicar-se integralmente à
tarefa de escrita da dissertação ou permitir-se cuidar de seu sustento e usufruir de
algum lazer. A sensação de pressão é intensa, mas se mantém como autoexigência
e como reconhecimento de normas externas, que impõem prazos. Não aparece, por
outro lado, nenhuma crítica por ter que tirar seu sustento de outra fonte enquanto se
dedica à pós-graduação.

No que se refere ao segundo campo, “Exigentes insensíveis”, notamos que, no trecho


a seguir, fica evidente que o aluno também se sente pressionadoa apresentar uma
boa produtividade acadêmica e infeliz por constatar, por si só, que não estava
cumprindo os prazos estipulados pelas normas. Contudo, estas parecem se
personificar na figura da orientadora que aterroriza, revelando, pelo menos em certa
medida, que o estudante vivencia a situação como se a orientadora tivesse mais
autoridade do que tem, já que parece não se dar conta de que ela também está
submetida a prazos como ele. De fato, tanto orientandocomo orientadora trabalham
sob um sistema que se tem tornado cada vez maisexigente, em termos de metas de
produtividade, configurando-se sempre de modo ameaçador e conforme estruturas
paranoides de conduta. A orientadora aterrorizadora provavelmente é também a
orientadora aterrorizada... Aqui, por excesso de zelo, cumpre lembrar que mesmo
que o narrado se refira a uma orientadora pessoalmente descontrolada ou imatura,
a adoção do “terror” como conduta se faz imensamente facilitada num ambiente
organizado segundo um produtivismo neoliberal, que se nutre a partir de um
equacionamento paranoide que divide bons e maus, superiores e inferiores,
produtivos e improdutivos, e etc..

Na fase final da escrita da minha dissertação, já nas vésperas da defesa, eu emagreci


quilos, e eu não dormia, eu não comia direito. E eu lembro que eu saía das reuniões
de orientação chorando porque eu estava com o texto atrasado e a minha orientadora
achava que um bom jeito de me incentivar era fazer terror psicológico comigo,
dizendo que meu texto estava ruim e meameaçando de não conseguir defender em
tempo. Não parou por aí! No começodo meu doutorado, além de todas as exigências
com trabalhos e tudo mais, eu tive problemas sérios com a minha família. E por conta
disso, eu quase desenvolvi depressão e a minha produtividade caiu completamente.

343
E eu não conseguia falar sobre isso no meu programa de pós-graduação. Até havia
uma sensibilidade em relação a algumas coisas, eu entreguei trabalhos depois do
prazo, e não tive problema com isso. Mas as coisas que me diziam em relação a isso
era quase um apagamento em relação ao meu emocional. Um dia, um professor veio
me perguntar o que estava acontecendo, e quando eu falei que tava tendo problemas
com a família, principalmente por conta da minha sexualidade e por conta da minha
militância, o professor respondeu que se eu não me expusesse tanto nas redes
sociais, talvez este problema não tivesse acontecendo. Quer dizer, basicamente, ele
pôs a culpa em mim, me sugeriu sutilmente voltar para o armário e me disse que eu
tinha que me concentrar no que era mais importante que, no caso, não era minha
saúde mental nem a relação com a minha família, era entregar os trabalhos no prazo.
Em uma outra situação, uma outra pessoa me disse que sofrer era uma escolha
minha e que eu podia me concentrar nos meus problemas ou me concentrar em fazer
um bomdoutorado, que era o que ia me trazer benefícios verdadeiros na vida.

A segunda parte do depoimento traz uma outra questão, ligada à vida sexual do
jovem, que se encontra visivelmente empenhado em assumir um posicionamento
sentido como mais autêntico, mesmo que desaprovado socialmente. Aqui ocorre
mais um encontro infeliz com um professor pouco sensível, que recomenda a adoção
de uma conduta baseada em análise fria dos próprios interesses e repressão de
sentimentos, segundo uma visão imatura da pessoa humana como ser racional capaz
de governar afetos e de escolher entresofrer e não sofrer.
Em relação ao terceiro campo, “Sistema cruel”, notamos, no próximo trecho, uma
mudança interessante de posicionamento imaginativo e clinicamente significativo. No
caso, o estudante não considera o sofrimento comodecorrente de conflitos internos
ou de um orientador “mau”, mas, sim, como um resultado que se dá em condições
concretas que afetam alunos e professores do sistema da pós-graduação.

Nesse caso, a primeira coisa que a gente precisa discutir é como a própriacultura da
universidade, a própria cultura da academia contribue diretamente para o sofrimento
emocional e psíquico das pessoas que estão envolvidas com ela. O que a gente
precisa questionar é a lógica que está na CAPES, no CNPq, nas reitorias, nas pró-
reitorias, é a lógica que está na base dos critérios de avaliação, nos prazos, da
exigência enorme por produtividade, é disso que a gente precisa falar, dando foco

344
em todo prejuízo excessivo que isso causa. O debate que a gente precisa levantar é
o debate que a gente tem plenascondições de produzir conhecimento de qualidade,
que a gente tem condição de produzir conhecimento de excelência sem precisar
acabar com a saúde mental das pessoas que estão na universidade brasileira.

Vemos, assim, que no primeiro trecho, aqui apresentado, a aluna se exige, não se
queixa de orientadores e professores, não critica as normas do sistema de pós-
graduação e consegue se resolver buscando ajuda psicológica. Ou seja,concebe-se
como pessoa que está enfrentando dificuldades e admite a possibilidade de obter
ajuda de outra pessoa, mas parece pairar ingenuamente no contexto institucional,
sem abordar crítica e lucidamente a dimensão institucional do sistema de pós-
graduação que, como sabemos, define-se a nívelministerial em nosso país
No segundo trecho, o estudante sente-se aquém do demandado, faz auto-exigências,
queixa-se e busca culpados aos quais atribui, de certo modo,responsabilidade pelo
seu sofrimento. Por outro lado, também não trata da dimensão institucional e das
políticas que norteiam aquilo que, no cotidiano, expressa-se como exigências ao
orientador e ao orientando.
Por sua vez, no terceiro trecho, fica nítido um posicionamento mais crítico que, ao
considerar a dimensão afetiva-emocional dos atos humanos, não o faz a partir de
compreensões internalistas, mas, sim, vinculares, levando devidamente em conta as
situações nas quais as pessoas trabalham. O sofrimento vivido é vinculado ao modo
como se organiza o sistema de pós- graduação, além do que se passa “entre” o aluno
e professores ou colegas, incluindo a dimensão macrossocial, vale dizer, o modo
como as políticas educacionais desconsideram as pessoas envolvidas.

Finalizamos lembrando que diante de sofrimentos sociais, como aqueles que


focalizamos aqui, o atendimento psicológico, principalmente quando centrado no
holding, pode revelar-se extremamente benéfico, na medida em quepode contribuir
para o fortalecimento da gestualidade espontânea a partir da qual podemos
transformar a nós mesmos e ao mundo em que vivemos (Medeiros e Aiello-Vaisberg,
2014). Entretanto, o sofrimento social também demanda, por si mesmo, a
consideração de que o subjetivo, o pessoal, também é político, abrindocaminho para
comunicações que favoreçam reflexões críticas sobre a vida sociale política e que
incentivem movimentos sociais.

345
Referências

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publicado em 1963).

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Campinas, Campinas, SP.

347
29- IMAGINÁRIO COLETIVO SOBRE TRANSGENERIDADE EM VÍDEOS DO
PORTA DOS FUNDOS

Gustavo Renan de Almeida da Silva


Ana Letícia Rodrigues Nunes
Bruna Barros Nascimento
Fernanda da Silva Moreira
Júlia de Oliveira Leite
Letícia Stuchi
Lucas Souza de Oliveira
Paula de Godoi Vianna
Priscila Zurlo Bueno
Tânia Maria José Aiello-Vaisberg

Resumo: Este trabalho tem como objetivo investigar imaginários coletivos sobre
transgeneridade. Justifica-se na medida em que tais imaginários podem revelar como
estão organizadas as normas de gênero na sociedade contemporânea ocidental,
indicando suas repercussões sobre as subjetividades. Configura-se como um estudo
qualitativo e empírico, com o uso do método psicanalítico, que utilizou, como material,
vídeos humorísticos, correlacionados com a palavra-chave transgeneridade,
disponibilizados no YouTube pelo canal Porta dos Fundos, que consta com elevado
número de acessos e inscritos na referida plataforma. A análise do material permitiu
a produção interpretativa de três campos de sentido afetivo-emocional: “A ditadura do
gênero”, “Posso ser quem eu me sinto” e “Ao seu dispor”. O quadro geral aponta que,
sociedades que impõem uma organização binária e sexista, acabam por suscitar
sofrimento socialmente determinado, atingindo a todos, com destaque para aquele
vivenciado pelas pessoas transgênero. Podemos pensar, à luz da teoria do
amadurecimento emocional de D.W. Winnicott, que a submissão às normas de
gênero, assim como a violência sofrida pela população transgênero, limitam tanto o
potencial criativo como a espontaneidade pessoal, que são pilares fundamentais na
concepção de saúde mental desse autor.

348
Palavras-chave: Transgeneridade, Gênero, Humor, Imaginários coletivos, Método
psicanalítico.

Problema de pesquisa

Desde a enunciação do sexo/gênero8 ao nascimento, é cobrado que a pessoa


humana venha a assumir um lugar inequívoco no binômio homem-mulher/masculino-
feminino, a partir do qual deveria orientar também seu desejo, o que corresponderia à
cisheteronormatividade. Decorre daí, Arán e Peixoto Júnior (2007, p.134)
mencionarem que “o ato de nomear é, ao mesmo tempo, a repetição de uma norma e
o estabelecimento de uma fronteira”. No entanto, existem pessoas que subvertem a
linearidade entre corpo e gênero, sendo essas entendidas como pessoas transgênero.
Ao fazerem isso, são capturadas pelas malhas do poder regulatório, as quais
comumente imprimem em suas histórias violências, estigmas e sofrimentos (Bento,
2008/2017; Butler, 2003), fazendo desses sujeitos típicos (Frederico, 1979) para o
estudo de tais normativas sociais.
Pesquisas recentes com imaginários coletivos parecem indicar a articulação
das condições de gênero com sofrimentos sociais (Corbett, Ambrosio, Gallo-Belluzo
& Aiello-Vaisberg, 2014; Schulte, 2016; Visintin & Aiello-Vaisberg, 2017; Assis, 2019;
Winkler, 2019). Poderíamos pensar, assim, que sociedades que se organizam de
modo binário e sexista, tal como a nossa, impõem modelos que, diversas vezes,
imprimem sofrimento significativo na vida de todos, por exemplo, na de pessoas
transgênero, foco desta pesquisa.
Portanto, temos como objetivo, neste trabalho, investigar o imaginário coletivo
sobre transgeneridade, em vídeos do YouTube, especificamente no canal de humor
audiovisual Porta dos Fundos, que vem ganhando visibilidade tanto na referida
plataforma, como no meio acadêmico, conforme é possível verificar em Hoff (2018).

8
Para Butler (2003), sexo e gênero não se diferenciam ontologicamente. Tal posicionamento demarca
que sexo não corresponde a um substrato “natural”, a partir do qual se construiria o gênero, de caráter
social, conforme encontramos em Beauvoir (1949/1986). Segundo Butler (2003), ambos os conceitos
se equivaleriam e seriam, então, ficções reguladoras criadas mediante a contínua repetição de atos
performativos, circunscritos em um tempo e espaço. Por esse motivo, utilizaremos, doravante, neste
texto, o termo “gênero”.

349
Visto compreendermos que nenhuma conduta está desvinculada do acontecer
humano em sua totalidade, isto é, de contextos sociais, econômicos, políticos,
culturais, históricos etc., entendemos que, em sentido amplo, todo sofrimento
emocional é também um sofrimento social (Bleger, 1963/2007). Assim, a Psicologia
teria muito a contribuir, no sentido de promover ações psicoprofiláticas e
psicoterapêuticas acerca das normas de gênero, uma vez que essas podem ser causa
de intenso sofrimento e adoecimento das pessoas.

Método

O presente trabalho fará uso do conceito de imaginário coletivo (Aiello-


Vaisberg, 2017), que corresponde ao conjunto de condutas humanas sobre
determinado tema, sendo intersubjetivamente produzidos e reproduzidos. Deste
modo, procuramos referenciais teóricos-metodológicos próximos ao drama vivido
(Politzer, 1928/2004), focalizando a dimensão afetivo-emocional dos fenômenos
humanos e os contextos macrossociais nos quais se inserem. Vale lembrar que tal
posicionamento encontra-se em consonância com a psicologia concreta (Bleger,
1963/2007) por nós adotada. Ainda, nessa perspectiva, compreendemos que o
inconsciente se desdobra nos vínculos humanos, ao invés de entendê-lo como
instância intrapsíquica ou segunda mente.
Este trabalho configura-se metodologicamente como pesquisa qualitativa e
empírica, com o uso do método psicanalítico. Visando cumprir os procedimentos de
pesquisa, alinhados com a proposta de Ambrosio, Aiello-Fernandes e Aiello-Vaisberg
(2013), as indicações metodológicas de Bleger (1963/2007) e as contribuições de
Herrmann (1979/1991), operacionalizamos o método psicanalítico em termos de
procedimentos investigativos de escolha, encontro e interpretação do material,
seguidos por interlocuções reflexivas com outros autores acerca dos resultados
criados/encontrados, denominados por nós como campos de sentido afetivo-
emocional.
Visando cumprir o procedimento investigativo de seleção do material,
buscamos vídeos humorísticos, correlacionados com a palavra-chave
transgeneridade, disponibilizados no YouTube pelo canal Porta dos Fundos, os quais
retratavam explicitamente a temática estudada.

350
Para atender o procedimento investigativo de encontro com o material,
assistimos aos vídeos selecionados repetidas vezes, em estado de atenção flutuante
e associação de ideias, atentando-nos aos impactos que esses suscitavam em nós,
os quais foram registrados em uma narrativa (Anexo A) e um texto de impacto
contratransferencial (Anexo B). Esses, conjuntamente aos vídeos, constituem o nosso
material de pesquisa.
Por conseguinte, realizamos a interpretação do material, em busca da
criação/encontro dos resultados, isto é, dos campos de sentido afetivo-emocional.
Procuramos, para atender esse fim, seguir as recomendações de Herrmann
(1979/1991), o qual recomenda “deixar que surja”, “tomar em consideração” e
“completar a configuração de sentido”.
Por fim, cessamos o uso da atenção flutuante e da associação livre de ideias
para realizarmos um diálogo dos resultados com outros autores, psicanalistas ou não,
objetivando a construção de conhecimento compreensivo sobre a temática estudada.

Campos de sentido afetivo-emocional

Por meio do procedimento investigativo de seleção do material, elegemos três


vídeos do canal Porta dos Fundos, disponibilizados na plataforma YouTube, os quais
retratavam explicitamente a temática da transgeneridade. O título dos vídeos
selecionados foram “Casal Normal”, “Travesti” e “Adão”.
O uso do método psicanalítico no material permitiu que propuséssemos três
campos de sentido afetivo-emocional. São estes: “A ditadura do gênero”, “Posso ser
quem eu me sinto” e “Ao seu dispor”.
O campo “A ditadura do gênero” organiza-se ao redor da crença de que o
gênero designado ao nascimento determina regras a serem seguidas socialmente.
Esse campo é ilustrado no material, por exemplo, nos estereótipos de homem e
mulher que permeiam os diferentes vídeos.
O campo “Posso ser quem eu me sinto” organiza-se ao redor da crença da
possibilidade de viver de modo autêntico, segundo seu próprio sentir. Tal campo é
ilustrado, no material, na maneira como os personagens se apresentam e questionam
a imposição de um modo de ser.

351
Por fim, o campo “Ao seu dispor” organiza-se ao redor da crença de que
pessoas transgênero podem ser usadas como instrumento de satisfação sexual de
outrem. Tal imaginário deriva, a nosso ver, do fato de sofrerem ataques
despersonalizantes/ desumanizadores (Aiello-Vaisberg, 2017), que visam torna-las
objetos e invisibiliza-las. Surge como ilustração desse campo, no material, a pessoa
transgênero retratada ora como objeto de prazer, ora sob esforços para ocultá-la do
olhar social.

Interlocuções reflexivas e considerações finais

O campo de sentido-afetivo emocional “A ditatura gênero” parece-nos indicar a


existência de expectativas sociais conforme o gênero designado ao nascimento. Em
outras palavras, as pessoas devem, segundo o seu corpo, constituir-se de acordo com
a cisheteronormatividade em um dos dois binômios tidos socialmente como inteligíveis
e possíveis (Bento, 2008/2017; Butler, 2003). No entanto, tal injunção se traduz, em
termos vivenciais, como submissão às normas sociais, em detrimento de como a
pessoa se sente verdadeiramente, o que pode ser fonte de intenso sofrimento e
adoecimento para o indivíduo.
Surge, como resposta a esse primeiro campo, a possibilidade de um self
autêntico e criativo, fonte de saúde mental na teoria winnicottiana (Winnicott,
1971/1975, 1956/1978, 1963/1983), o qual fica circunscrito no campo “Posso ser
quem eu me sinto”. Nesse caso, as pessoas escapariam de uma vivência de
inautenticidade, provocada pela submissão à cisheteronormatividade, para
reivindicarem um eu que transbordaria tais normas sociais.
Não obstante, o campo “Ao seu dispor” reflete as dificuldades enfrentadas por
aqueles que implodem a cisheteronormatividade. Segundo esse, tem-se a crença de
que essas pessoas ocupariam um lugar de degenerescência, sendo, portanto, objetos
para a satisfação do desejo de outrem ou, quando não, vítimas de invisibilização,
exclusão e patologização.
Sendo assim, o quadro geral aponta que sociedades que impõem uma
organização binária e sexista acabariam por suscitar sofrimento socialmente
determinado, destacando aquele vivenciado pelas pessoas transgênero. Tendo em
vista a teoria do amadurecimento emocional de D.W. Winnicott (1971/1975,

352
1956/1978, 1963/1983), podemos pensar a submissão às normas de gênero, assim
como a violência sofrida pela população transgênero, como algo limitador do potencial
criativo e da espontaneidade dessas pessoas, sendo esses pilares fundamentais na
concepção de saúde/doença do referido autor.
Enfim, podemos questionar também o próprio papel do humor, o qual pode
operar, de modo mais ou menos velado, para a legitimação e manutenção de
estruturas sociais desiguais e hierárquicas, ou servir como meio de problematização,
reflexão e transformação das condições sociais (Hoff, 2018; Moreira, 2018).

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teoria do desenvolvimento emocional. (I.C.S. Ortiz, Trad.). Porto Alegre:
Artmed. (Original publicado em 1963).

Anexo A – Narrativa
Após assistirmos aos três vídeos selecionados do canal “Porta dos Fundos”,
cujo tema era a transgeneridade, propusemo-nos a realizar discussões em grupo com
o intuito de debater os impactos suscitados em cada um de nós no encontro com o
material. Estávamos emocionalmente abalados, perplexos, incomodados e

354
indignados ao término dos vídeos. Esses sentimentos foram despertados após
observarmos que o assunto estava sendo retratado ora com menosprezo, ora de
forma sagaz e às vezes de modo ambivalente. Todos concordaram que tal tema é
muito importante e muito sério, e que deveria ser apresentado sem corroborar com a
manutenção das violências que acometem essa população. Ao decorrer das
discussões surgiram muitos comentários sobre os vídeos e como eles retratavam as
pessoas transgênero de modo jocoso e bizarro. Apontamos os vídeos como
negativos, ruins e confusos, despertando em nós sentimentos de angústia.

Anexo B - Texto de impacto contratransferêncial

Café com leite


Vida, um jogo no qual há apenas uma rota e, ao satisfazer todas as regras,
atinge-se o objetivo: a felicidade. Esse jogo não pode ter fim, para isso uma das regras
é que os jogadores tenham filhos, isto é, novos pinos. Estes aparecem em duas cores,
azul e rosa, e antes mesmo do jogador nascer é escolhido o que lhe representa,
devendo o seu comportamento ser orientado a partir dele.
Ao abrir o jogo, deparamo-nos com os pinos que nos foram dados. Para mim,
foi tudo muito complicado. As peças do tabuleiro não eram as mesmas que estava
esperando. Senti-me um tanto decepcionado, confuso, sem qualquer identificação
com o mesmo.
Embora insatisfeito, comecei a jogar como me foi proposto. Vi meu dado dando
o número seis e eu avançando as casas. Tive a sensação que os jogadores à minha
volta se agradavam com o meu desempenho, porém, para mim, o mesmo pouco me
importava, uma vez que não me identificava com o pino.
Perguntando para as outras pessoas se poderiam trocar a peça, elas riram de
mim de maneira sarcástica e, por um momento, não me senti compartilhando
daquelas regras. Questionei-me sobre o porquê da proibição dessa mudança. Como
continuar a jogar se, com este pino, sinto que jamais alcançarei o objetivo do jogo?
Seria errado, então, querer ser quem eu sou? Fazer escolhas segundo o que me
representa?
Os questionamentos e angústias eram tão fortes em minha mente que já não
sabia se fazia sentido seguir o jogo. O sofrimento foi tomando conta de mim, pensei

355
em desistir por várias vezes e, após questionar as regras sobre a existência de apenas
dois pinos, me deram um terceiro, que chamaram de “outros”. Mesmo com esse
terceiro pino, o sentimento de não-pertencimento ainda me assombrava. Soava-me
impessoal a caracterização de “outros”. Seria um pino “faz de conta”, até mesmo, “café
com leite”? Poderia construir o meu próprio pino?

356
TRABALHOS DE OUTROS

PROGRAMAS E UNIDADES DA

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

357
30- HISTÓRIAS DE ABANDONO: EFEITOS NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

Stéphany Proença Lacerda da Silva¹


Isabel Cristina Gomes²

Resumo: Esse trabalho tem como objetivo explicitar as funções da família para a
constituição subjetiva, por seu contraponto, através de um estudo de caso. Ou seja,
M., 12 anos, uma pré-adolescente com um histórico de sucessivos abandonos vividos
na condição de trauma, o que gera nela sintomas que são frequentemente entendidos
como delinquenciais, como desrespeito às regras simples em jogos e brincadeiras,
agressividade verbal e física, além de um comportamento de fuga bastante intenso. É
no contexto terapêutico que ela pode vivenciar a segurança e a constância de um
vínculo para poder entrar em contato e elaborar o significado dos traumas vivenciados
associados aos sintomas desenvolvidos. M. carregava uma narrativa de abandono,
relativa a várias repetições, o que implicava na impossibilidade dela se vincular à nova
família, sendo insustentável a filiação e a parentalidade, algo que contribuía para uma
visão estigmatizante envolvendo as adoções tardias. Vemos que M., ao ter um espaço
de escuta sólido, que resiste aos sucessivos “testes” e agressões, tem uma abertura
para que se estabeleçam vínculos duradouros. Entretanto, para que tal postura seja
sustentada, foi preciso colocar em perspectiva toda a sua história pregressa, pondo
em evidência para ela que algumas atitudes suas tinham um significado latente que
iam além de uma reação manifesta, e que cumpriam a função defensiva de não se
vincular.

Palavras-chave: psicanálise, parentalidade, abandono, filialidade, família, adoção,


psicanálise vincular, adoção tardia, filiação.

Introdução
O presente caso foi encaminhado à Clínica Escola do Instituto de Psicologia da
USP pelo Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Osasco
em outubro d
e 2018. Por meio de uma narrativa de sucessivos abandonos podemos reafirmar, pelo
seu contraponto, o papel central da estrutura familiar na constituição subjetiva; bem
358
como apontar a importância do espaço terapêutico como propiciador do
estabelecimento de novos vínculos.
Entende-se que este trabalho possa investigar, através da Psicanálise Vincular
e da Psicanálise de Casal e Família, os pontos desta narrativa que contribuem para a
dificuldade da adoção de adolescentes e crianças mais velhas com um histórico de
sucessivos abandonos. Gomes e Levy (2016), apontam a Psicanálise Vincular como
aquela que enfatiza uma concepção de sujeito na qual ele se constitui no espaço da
intersubjetividade, ou seja, o indivíduo é determinado pelas dimensões social, cultural,
familiar e geracional.
A temática faz-se urgente embora a interface entre Psicanálise e Justiça esteja
cada vez mais se concretizando em estudos e pesquisas interdisciplinares. Entretanto,
quando constatamos um cenário social no qual temos, segundo o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), cerca de 5 mil crianças disponíveis para adoção, enquanto somam-
se 42 mil pretendentes habilitados disponíveis, observamos um descompasso
alarmante no qual mais de 85% destes somente aceitam adotar crianças até 7 anos
de idade, sendo que estas somam menos de 10% das crianças disponíveis hoje³ no
Cadastro Nacional de Adoção (CNA).
O primeiro contato, com a Psicóloga e a Assistente social da Vara, teve o
objetivo de descrever detalhadamente o percurso de M. em instituições de
acolhimento e adoções, e, adicionalmente a isso, houve mais uma reunião com a
psicóloga do acolhimento aonde M. se encontrava residente. Nos dois momentos, os
relatos apresentados sobre a pré-adolescente foram bastante parecidos: uma
facilidade para criar vínculos, inteligência e astúcia bastante proeminentes, porém,
podemos notar a dificuldade de M. em manter seus vínculos, e, junto disso, entramos
em contato com relatos transmitidos por M. à escola sobre abusos físicos, psíquicos
e emocionais por parte da família adotiva e outros personagens de sua história.
Salientam-se as dificuldades especiais na configuração de relações que
propiciem o surgimento de parentalidade e filialidade, termos descritos por Benghozi
(2010) como sendo as capacidades de sentir-se pai/mãe de alguém, assim como este
sujeito se dá a ser filho(a) destes. Tais dificuldades que se dão principalmente por
conta das idealizações dos pretendentes à adoção e à não correspondência da
criança a esse ideal, como descrito por Carvalho, Gomes, Pizzitola, Santos & Ishara
(2017), afinal, “a inexistência do vínculo biológico e de uma herança genética acabam

359
trazendo para a adoção muitas fantasias e preconceitos. A criança adotiva é marcada
por algo que vem de outro que na maioria dos casos é um desconhecido.”

Objetivo
O artigo tem por objetivo iniciar um trabalho de reflexão e investigação acerca
da importância da família na constituição subjetiva, abordando o avesso de um
processo ideal de filiação, que acaba por perpetuar abandonos, gerando
consequências importantes para novas tentativas de adoção. Salienta-se a incidência
de comportamentos agressivos que acabam por reeditar a cena do abandono, uma
vez que as famílias pretendentes à adoção se veem impelidas a interromper um
processo de adoção, tendo tomado o comportamento de M. como delinquencial, e não
um efeito de suas relações interpessoais até então, algo posto em evidência no
vínculo entre M. e a terapeuta-autora.

Relato
As funcionárias da Vara descrevem o caso como “complicado” e “bastante
difícil” para a criança: filha de mãe “hippie”, com problemas de drogadição, fora
deixada a uma cuidadora informal, que ficava integralmente com M. em troca de
pequena remuneração. Em determinado momento, no qual M. tem 3 anos de idade,
essa renda deixa de ser oferecida, e a cuidadora vai à justiça buscando regularizar a
situação por meio da adoção. No entanto, mediante avaliações do vínculo
estabelecido, é decidido o encaminhamento de M. a acolhimento, uma vez que a
“responsável”, ilegal naquele momento, se apresentava impaciente e agressiva com
a criança em diversas situações. Assim, M. é levada para o acolhimento em agosto
de 2009, e inicia-se o processo de busca por sua mãe biológica.
Em 2010, M. é trocada de instituição, e, na impossibilidade de localização de
quaisquer membros familiares, em 2011 dá-se início à destituição, em 2013 é
definitivamente destituída da família biológica. Aos 7 anos, tem-se, pela narrativa da
assistente social que acompanha o caso desde então, que M. se apresenta como uma
criança de fácil contato, bastante recursos afetivos e nenhuma dificuldade em suas
diversas relações, além de um ótimo desempenho escolar.
Em setembro de 2013, um casal pretendente a adoção faz aproximações à M.,
o homem é um ex-policial ferido em campo, deixado tetraplégico após os conflitos; a
mulher, então, sustenta a posição de cuidar do marido, e ambos apresentam o desejo
360
de serem pais, no entanto, com a aproximação, tem-se que a dinâmica do casal não
permite um terceiro a ser cuidado pela pretendente mãe, e ocorre a desistência do
processo em março de 2014. M. passa mal, tem reações físicas intensas, como
vômitos e febre. Em seguida, outra mulher tenta efetivar a adoção, mãe solteira de
uma menina de 12 anos, desiste do processo também no período de aproximação.
Fazemos aqui a primeira pontuação sobre o que parece ser um fator dificultador
nos encontros subsequentes de M. com novos grupos familiares. Carvalho (2017),
aponta que o processo de filiação e parentalidade, ou seja, considerar uma
criança/adolescente como filho e este considerar os pretendentes como pais, têm três
dimensões: biológica, psíquica e jurídica. De imediato, M. não se inclui em uma
linhagem biológica com os pretendentes, e judicialmente não se concretizam os
processos aos quais ela é exposta, no entanto, no âmbito psíquico aparece uma
narrativa de grande investimento dela nos vínculos propostos, e de grande sofrimento
na interrupção de um processo que legalmente não configura abandono, mas que
parece ter sido vivido como tal.
Finalmente, em novembro de 2014, M. é adotada por A. e E., casal que na
época da habilitação como pretendentes a adoção se acreditava infértil, mas que
durante esse processo passa por uma gestação, sem que o filho biológico os faça
desistir do processo. Em 2014 têm um filho de dois anos, mas seguem, após o período
de convivência, com a adoção. Parte do desejo de adotar vem do fato de que A., o
pai, fora adotado, e, mediante um sentimento de profunda gratidão, diz querer oferecer
as mesmas possibilidades a uma criança em acolhimento. Mendes (2007) traz
importantes reflexões sobre os pretendentes tardios “altruístas”, que acabam por não
permitir expressões de agressividade, rivalidade e competição, intrínsecos a relações
familiares, e o seguimento desta tentativa de adoção vem na direção desta
observação.
Após a adoção, a convivência familiar fica cada vez mais conturbada com M.
narrando situações de maus tratos e abuso, tanto na família adotiva quanto no período
que ficou em acolhimento. M. apresenta comportamentos sexualizados na escola, e a
mãe, é chamada diversas vezes e orientada a procurar psicoterapia à filha diante do
entendimento de que as narrativas advinham de fantasias. Em 2016 M. foge diversas
vezes de casa, mantendo este comportamento de fuga como sintoma importante até
hoje. Também neste momento, tem um movimento de questionar suas origens e
procura saber da família biológica. Neste ponto, mãe e filha já começam a se
361
distanciar, enquanto o pai já não fala mais com M. desde que ela insiste em fazer
sucessivas denúncias de agressões na escola, algo que o casal sustenta como sendo
mentira. E então o casal vem a ter mais um filho biológico, o que torna os vínculos
entre M. e os pais completamente insustentável.
Procuram novamente a Vara da Infância e pedem ajuda para lidar com tantos
conflitos, pensam em “devolver” a filha, e então são encaminhados para o serviço de
atendimento psicológico do IP-USP/ Laboratório de Casal e Família, coordenado pela
2ª autora. Em 2018, no entanto, entende-se, mediante terapia de casal, que não há
espaço para investir na parentalidade. Em maio de 2018 M. foge definitivamente,
chega a ser acolhida em São Paulo, fornece endereço e nome falso, mas “se entrega”
ao dizer o nome verdadeiro da escola, assim, é localizada. No entanto, não volta ao
convívio familiar, é encaminhada para um abrigo no bairro em que morava, no qual
fica por três meses até ser acolhida pela instituição que fez contato com o Instituto de
Psicologia. Lá, evidencia-se o sentimento de abandono da menina, assim como seus
movimentos de atuação e defesa. Por decisão judicial, a guarda permanece com o
casal adotivo, mas M. entra no cadastro para adoção internacional.
É neste ínterim que começo os atendimentos com M., e encontro, nas primeiras
sessões, uma garota bastante disposta ao vínculo, solícita nos jogos e nas propostas
de atividades e na comunicação. No entanto, quando começamos a nos aproximar,
por volta da quarta sessão, M. deixa de se dirigir a mim e inicia um movimento de
recusa aos nossos encontros permanecendo com a cabeça baixa na mesa, dizendo
que quer dormir pois está com sono ou que está irritada. Discutindo estratégias em
supervisão, mudamos o horário da sessão para que ela tivesse mais tempo de sono,
mas este movimento persiste, enquanto outras reclamações dela sobre o acolhimento
surgem, aparentemente sem correspondência com a realidade, como o não
oferecimento de refeições.
Vou sustentando as narrativas de M. e sua insistência em não se direcionar a
mim, e depois de algumas sessões nessa dinâmica, ela volta a se relacionar de forma
mais estável. Conseguimos conversar sobre seu cotidiano, enquanto pouco a pouco
vou interpretando algumas das narrativas dela, conectando-as ao seu passado
recente, mas M. se mantém completamente avessa a abordar diretamente o passado
e as situações de abandono.
Então, em 2019 vem da Itália um casal de pretendentes, para pai, E. e M. como
mãe, notícia que foi recebida por ela com bastante entusiasmo e disposição para
362
aprender uma nova língua e conhecer um novo país. O investimento de M. é grande,
sendo que nossas sessões passam a ter a Itália como tema pertinente, vemos mapas,
escrevemos cartas em italiano com a ajuda do Google Tradutor e ela aprende algumas
palavras. Os pretendentes italianos fizeram alguns poucos contatos com ela via Skype
e se engajaram no processo de adoção. O passo seguinte, com início em março de
2019, foi o período de convivência: ao desembarcar no Brasil, o casal esteve com o
juiz para receber a guarda provisória da criança. Desse modo, ela se instalara junto
de ambos em São Paulo, desfazendo seus vínculos na escola e na instituição aonde
morava. Dentro de 30 dias esse período se encerraria, e, não havendo grandes
complicações ou desistência, a adoção seria finalizada e a nova família seguiria para
a Itália.
Diante da situação jurídica peculiar de M., de abandono na família adotiva, há
o entendimento de que esse processo deveria ser executado de forma rápida, no
entanto, apresentei, na ocasião, alguns de meus anseios e me dispus a trabalhar junto
da equipe da Vara a fim de auxiliarmos M. nesse processo de transição para não
configurar nova situação de abandono. Uma das preocupações mais imediatas
tratava-se da grande quantidade de vínculos que M. perderia em um curtíssimo
espaço de tempo; para lidar com tal situação, acenei a necessidade de ela continuar
em atendimento psicológico na Clínica Durval Marcondes enquanto no período de
convivência. Manifestei também a necessidade do casal pretendente em comparecer
à Clínica para alguns encontros, além de ter deixado a possibilidade de um
atendimento familiar caso houvesse demanda.
Todas as propostas foram no sentido de auxiliar os sujeitos envolvidos a terem
um espaço para comunicarem suas angústias e trabalharem o que fosse possível
ainda no período de convivência no Brasil, mesmo sendo um processo no qual temos
pouca ou nenhuma interferência quanto à efetivação da adoção. Neste contexto, o
casal chega a comparecer ao Instituto de Psicologia com uma tradutora, também
advogada, responsável pela formalização do processo. Ela mantém a posição de se
efetuar o processo com rapidez e corte de diversos vínculos, mesmo depois de
conversarmos muito a respeito da especificidade do caso de M., já marcado por cortes
bruscos de vínculos. O resultado da repetição destas cenas é devastador. M. em
determinado momento retoma o comportamento de fuga, intensificado pela
impossibilidade de verbalizar suas angústias diretamente aos adultos responsáveis

363
por ela, dado o obstáculo do idioma, uma vez que o casal não falava português e ela
não tivera tempo de aprender vasto vocabulário em italiano.
Os pedidos de M. em revisitar o abrigo eram negados, sendo que o único
vínculo que permaneceu neste meio tempo era com a psicoterapeuta. As sessões
ficaram mais carregadas de afetividade, com M. sendo bastante carinhosa ao mesmo
tempo que reclamava muito do casal, principalmente do futuro pai, dizendo da pressão
que sentia para ser rapidamente incluída em uma família da qual não se sentia
participante. E então se configuraram as situações de fuga e sérias discussões entre
os três, sem que houvesse alguma possibilidade de significação e entendimento por
conta da diferença de línguas. Depois de três semanas de convívio, o vínculo se torna
insustentável, o casal retorna para a Itália e M. para o acolhimento.
Com este novo abandono em sua história, M. passa a procurar meios de
confirmar que não é capaz de manter vínculos e no espaço psicoterapêutico passa a
atuar, dizendo não se interessar mais pela terapia e se recusando a entrar em sessão.
No entanto, com uma proposta de sustentar a presença e a disponibilidade para
escutá-la, com o apoio constante da psicóloga da instituição de acolhimento, para
reforçar a terapia como lugar seguro e necessário, com o tempo as atuações se
tornam menos intensas e M. volta para as sessões, mesmo ainda sem querer falar
sobre suas últimas experiências e o significado destas.

Discussão
Frente a um caso bastante mobilizador e difícil, no qual a decisão judicial por
acelerar os processos burocráticos por um lado é compreensível, por outro, dentro da
perspectiva de construção de uma fialidade psíquica e afetiva (Carvalho, 2017),
entendemos que a pressa em efetivar a adoção internacional mobiliza ainda mais M.
no sentido de recusar essa mesma filiação, por defesa. Salienta-se a necessidade e
importância da preparação dos casais pretendentes, principalmente em se tratando
da adoção internacional. Além de serem indispensáveis cuidados na aproximação, e
atenção a aspectos como: dimensões da imigração, diferenças linguísticas,
dificuldades ou possibilidades de comunicação e compartilhamentos de afetos, perdas
e construções de vínculos.
Se a parentalidade passa pelo desejo de ter um filho/a (Carvalho., Gomes,
Pizzitola, Santos, & Ishara, 2017, p.50), temos também que pensar nas cadeias de
desejos, expectativas e fantasias que se articulam a esse desejo inicial. No caso de
364
uma adoção de crianças mais velhas e adolescentes (maioria no nosso sistema de
institucionalização, segundo estatísticas do Conselho Nacional de Justiça), algumas
das expectativas já são frustradas de imediato, tendo em vista uma subjetividade já
permeada por diversas influências antes da chegada dos pretendentes. Este tende a
ser um aspecto determinante quando na situação de aproximação da
criança/adolescente, não por acaso existe a preferência à adoção de bebês e crianças
menores de 3 anos.
Mendes (2017) afirma que as aproximações devem acontecer em um âmbito
tal em que a criança/adolescente não se veja invadido em excesso pelas expectativas
e projeções dos pais, sem, no entanto, configurar situação de pouco investimento por
parte deles. De fato, se dar a conhecer e parentalizar crianças mais velhas e
adolescentes pressupõe uma disposição e investimento psíquico e de tempo maiores,
aspectos para os quais nem sempre estamos preparados ou bem orientados, o que
causa atritos, conflitos e frustrações ao passo em que se depara com algo diferente
daquele “filho desejado”. O encontro com a alteridade caracteriza sempre o novo,
sejam em relações familiares ou quais outras que estabelecemos durante a vida, e,
mesmo com filhos biológicos, dar-se conta de que há ali uma pessoa que não é um
espelho ou projeção de si e das expectativas pré-estabelecidas, é fator de várias
dificuldades vinculares e frustrações na construção parental e de filialidade.
Frente ao exposto por Winnicott (1953), acerca das incertezas e fragilidades
dos vínculos em situações de adoção, nas quais as frustrações de vínculos
malsucedidos anteriormente estão em destaque, é grande a aflição do psicoterapeuta
que acompanha as preparações, seja dos pretendentes, seja das
crianças/adolescentes, frente a um tempo cronológico burocrático do sistema
judiciário que enquadra o processo de filiação em algo mensurável em dias e meses.
Mais ainda com a adoção internacional nos moldes atuais, quando se tem apenas
quatro semanas para a aproximação desses sujeitos, aproximação esta que está
atravessada por dificuldades diversas como diferenças sociais, culturais e de língua,
para além das angústias nos novos vínculos e nas perdas, rupturas e expectativas
que acompanham um processo de imigração.
M. tem especial dificuldade em acessar seu passado a fim de ressignificar as
narrativas de abandono. Neste caso em específico, as suas defesas contra um novo
abandono se dão na constituição de uma situação infértil para o estabelecimento de
vínculos duradouros, confirmando o status dela de “garota de abrigo”, conferindo a ela
365
um lugar de exclusão a priori. Assim, sem nova vinculação, seria impossível se dar
novo abandono, mas cria-se um paradoxo ansiógeno e angustiante: sua condição de
abandonada seria definitiva. Articular com esta posição para modificá-la implicaria na
aposta de que a manifestação da impossibilidade de um vínculo não é verdadeira para
a adolescente, mas sim uma posição defensiva específica para lidar com o medo da
possível rejeição. Só com a compreensão dessa dinâmica interna de M. seria possível
encontrar pretendentes que se mantenham disponíveis para as aproximações e
afastamentos de M. ao longo do tempo, constituindo desta maneira terreno sólido para
a relação. As expressões das dificuldades de M. foram tomadas invariavelmente por
rejeição, aprisionando-a nesse lugar conhecido da institucionalização, onde as
relações familiares não são parte constitutiva de sua subjetividade, reforçando uma
atitude defensiva no sentido da reação a quaisquer tentativas de aproximação.

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367
31- A VIOLÊNCIA DE GÊNERO TRANSFÓBICA COMO PRODUTO DA
INSUBORDINAÇÃO À HETERONORMATIVIDADE

Vinicius Alexandre
Manoel Antônio dos Santos
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP
Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero - VIDEVERSO

Resumo: Existe uma flagrante tentativa de contenção e eliminação das pessoas trans
pelo meio cada vez mais hostil à expressão das diferenças. A cultura heterossexual,
ao normatizar as expressões de gênero por meio da Heteronormatividade, produz
identidades consideradas abjetas, ou identidades insubordinadas. A insubordinação
produz violência contra estas identidades, incluindo as identidades trans. A violência,
entre outras razões, atua como um mecanismo para garantir a manutenção das
identidades heteronormativas, as quais são sustentadas por um contexto institucional
conservador e preconceituoso.

Palavras-chave: transexualidade, Heteronormatividade, abjeção.

1. TEMA

A violência de gênero praticada contra pessoas trans pode ser interpretada como
um produto da insubordinação de identidades heteronormativas à cultura
heterossexual e à Heteronormatividade.

2. INTRODUÇÃO

Em se tratando da população trans, ou seja, de indivíduos cuja identidade de


gênero é compreendida por eles mesmos como sendo diferente daquela que lhes foi
atribuída socialmente (sendo esta em conformidade com o sexo biológico), não é
estranho constatar que existe uma flagrante tentativa de contenção e eliminação das
pessoas trans pelo meio cada vez mais hostil à expressão das diferenças. A existência

368
trans é vista como uma ameaça a partir do momento que o indivíduo emerge como
prova viva de que o gênero não é limitado ao binarismo supostamente natural que é
disseminado pela cultura heterossexual. A naturalização deste binarismo torna o
conceito de gênero algo banal e irrefletido pelas massas.
Como já foi amplamente demonstrado ao longo da história, a irreflexão revela-
se como um potencial perigo para grande parte das vidas humanas, uma vez que os
atos irrefletidos e não pensados podem resultar em um conjunto de práticas violentas
contra elas, seja essa violência de natureza material, corporal ou simbólica1. Mas essa
forma de “não pensar” não seria possível se não houvesse um contexto institucional
que a alicerçasse e a validasse. Tão pouco é possível desconsiderar que este contexto
é mediado por mecanismos de poder que estabelecem um padrão aceitável de ser,
agir e existir, alienando as massas neste processo para que este padrão seja
entendido como natural de modo a garantir sua manutenção. Não cabe aqui
pensarmos todos os mecanismos que operam na sociedade, porém, para
compreender a violência perpetrada contra a população trans, precisamos
circunscrever um mecanismo em particular: a heteronormatividade.

3. DESENVOLVIMENTO DO TEMA

A heteronormatividade, termo criado por Michael Warner (1991), é descrita pelo


autor como um fenômeno que surge a partir do privilégio desfrutado pela cultura
heterossexual em interpretar a si própria como exemplar na sociedade. Essa cultura
pensa a si mesma como uma forma elementar nas relações humanas e entre os

1
“A noção de coerção, ou de força, supõe um dano que se produz em outro indivíduo ou grupo
social, seja pertencente a uma classe ou categoria social, a um gênero ou a uma etnia. Envolve uma
polivalente gama de dimensões, materiais, corporais e simbólicas, agindo de modo específico na
coerção com dano que se efetiva [...] A afirmação de um dano supõe o reconhecimento das normas
sociais vigentes, pertinentes a cada sociedade, em um período histórico determinado, normas que
balizarão os padrões de legitimidade: a violência define-se então como um fenômeno cultural e
histórico. Revela-se como um procedimento de caráter racional, o qual envolve, em sua própria
racionalidade, o arbítrio, na medida em que o desencadear da violência produz efeitos incontroláveis
e imprevisíveis” (Santos, 2002, p.23).

369
gêneros, como uma base inquebrantável da sociedade e como aquela que porta os
mecanismos de reprodução sem os quais não haveria continuidade da vida.
Wittig (1992) observa que a pretensão excludente dessa cultura é
historicamente observada em Aristóteles, no momento em que ele define que a
Política está atrelada a união entre um homem e uma mulher, conquanto é possível
observar que, no mundo ocidental, o casal passou a representar o princípio da própria
união social. Dessa maneira, quaisquer formas de união e de relacionamentos que
escapem da lógica estabelecida pelas relações heterossexuais são imediatamente
rechaçadas, reprimidas e proscritas.
A Heteronormatividade é dotada de ousadia: ela intenta normatizar a maneira
como os desejos corporais e as sexualidades são vivenciados pelos indivíduos,
apregoando a máxima de que o desejo pelo sexo oposto é única realidade possível e
pensável (Petry & Meyer, 2011). Falamos aqui de um tipo de poder invisível e que
aglutina não só as experiências humanas que envolvem o desejo sexual, mas também
as identidades de gênero e suas expressões.
O sujeito heteronormativo não é apenas heterossexual, mas ele também está
sustentado no binarismo de gênero, binarismo este que estabelece, por uma relação
de oposição, que apenas as categorias “homem” e “mulher” são praticáveis (Butler,
2015). Um tipo de homem e mulher representados por todos os estereótipos sociais
pensáveis: um homem viril, esportista, agressivo e racional e uma mulher frágil,
emotiva, delicada e recatada, por exemplo. A estereotipia atua na construção de
identidades e corpos chamados cisgêneros (indivíduos cuja identidade de gênero
corresponde ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento).
A cisgeneridade atende à necessidade da Heteronormatividade em construir a
ilusão de uma “coerência” mimética entre o sexo, o gênero e a sexualidade. O objetivo
final é que os indivíduos acreditem que seus corpos biológicos ditam seus gêneros e
seus desejos sexuais. A compulsoriedade que instaura essa ilusão nas relações
interpessoais e na maneira como os indivíduos fundam suas identidades é a atitude
violenta que dará base a violência direcionada contra as identidades que escapam da
norma heteronormativa que sustenta a cultura heterossexual.
A cultura heterossexual, constituída aqui como sendo o baluarte geral ao qual
o juízo individual é subsumido, pretende se apresentar como originária e basal dentro
da história da humanidade. Esse mecanismo, no qual a noção de historicidade é
perdida ou sistematicamente elidida, tem por finalidade naturalizar a norma
370
heteronormativa no interior da sociedade. E ela o faz de maneira sorrateira, uma vez
que o pensamento heteronormativo raramente é caricatural; ao invés disso, ele se
veste de boa vontade e inteligência (Warner, 1991). Essa naturalização oferece um
conjunto de ideias, comportamentos e hábitos cristalizados dentro de uma pretensa
“ordem social” (Kristeva, 1982), na qual os indivíduos podem encontrar um repertório
“seguro” para “não pensar” sobre questões que emergem no plano individual. É um
caminho livre de problemas, no qual o se adequar-se é uma estratégia vista como
parte do plano natural do desenvolvimento humano e, de maneira não percebida
devido à ausência de reflexão, uma estratégia de sobrevivência ao meio.
Sobreviver ao meio, naturalmente, não envolve apenas adequar-se, mas
também atacar possíveis ameaças. E o que ameaça o sujeito cisgênero –
heterossexual? Precisamente todas as identidades e expressões incontidas pela
Heteronormatividade, ou então, as identidades insubordinadas a ela. Invariavelmente,
a ilusão de uma identidade heteronormativa fracassa diante das demandas da
realidade, de forma que inúmeras identidades vão escapar e se contrapor ao poder
da cultura heterossexual. Diante do fracasso iminente, as identidades pretensamente
heteronormativas atacam as identidades insubordinadas, também lidas como
identidades abjetas2, no intento de eliminá-las. A eliminação é tida como uma forma
de resguardar a própria existência da identidade heteronormativa: na presença do
diferente e do estranho, a identidade heteronormativa naturalizada é questionada em
sua própria integridade. O questionamento levanta dúvidas sobre a identidade e incita
um movimento onde o sujeito é obrigado a repensar as certezas sobre si mesmo, um
processo doloroso e que gera medo. O medo por sua vez gera a violência: é preciso
destruir as identidades que geram as incertezas sobre si mesmo, a fim de impedir que
estas “contaminem” a identidade “pura” e alinhada com a cultura e a normalidade.
Se é o medo que alimenta a violência contra o abjeto, podemos extrapolar que
o medo é a peça central contra as identidades trans. Esse medo, não por acaso, é

2
Por identidades abjetas, compreende-se aquelas identidades portadas por indivíduos que sofrem do
processo de abjeção, sendo que a abjeção “[...] relaciona-se a todos os tipos de corpos cujas vidas
não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante” (Butler, 2015, p.
32).

371
parte semântica da palavra “Transfobia”3, onde “fobia” (Fobia, 2018) significa
exatamente “medo”, de forma que o prefixo “trans” (Trans, 2018) se refere às
identidades que subvertem toda a base da cultura heteronormativa
A violência contra pessoas trans que emerge do medo do abjeto é antes de
mais nada, uma violência de gênero. Embora este termo geralmente seja usado para
caracterizar a violência perpetrada por homens cisgênero contra mulheres cisgênero,
a violência de gênero descreve qualquer tipo de violência enraizada em desigualdades
de poder baseadas em gênero e discriminação com premissa no gênero (2008). O
indivíduo trans ocupa um espaço desprivilegiado notável na cultura: se,
historicamente, as mulheres cisgênero tem ocupado lugares de pouco prestígio em
detrimento da soberania do homem cisgênero, a população trans não tem ocupado
lugar algum: não há espaço para um gênero que subverte a lógica sexo-gênero. Não
há qualquer proteção solidária de outras identidades oprimidas, uma vez que elas
ainda podem contar com algum tipo de “proteção” da cultura heterossexual por se
distanciarem menos da mesma. As identidades trans, por outro lado, são
diametralmente opostas a identidade heteronormativa, uma vez que elas “violam” a
base da norma: o corpo.
De fato, o discurso discriminatório não atinge apenas a construção subjetiva da
identidade de sujeitos abjetos, mas também seus corpos. Afinal de contas, o corpo é
um portador de discursos (Butler,1999). Quando alguém fala, se move, gesticula, se
comporta, pensa, se apresenta, entre outros atos comuns aos seres humanos, este
alguém não o faz a esmo: ele na verdade está materializando os discursos
incorporados por ele por meio do corpo. Desta forma, se o discurso promove abjeção,
logo os corpos tornam-se abjetos por extensão. E ser abjeto é sinônimo de ser
descartável.

3
“Transfobia” se refere a inúmeras circunstâncias que materializam a discriminação contra a população trans.
No que se refere ao seu cotidiano, as pessoas transgênero são alvos de preconceito, desatendimento de direitos
fundamentais (diferentes organizações não lhes permitem utilizar seus nomes sociais e elas não conseguem
adequar seus registros civis na Justiça), exclusão estrutural (acesso dificultado ou impedido à educação, ao
mercado de trabalho qualificado e até mesmo ao uso de banheiros) e de violências variadas, de ameaças a
agressões e homicídios, o que configura a extensa série de percepções estereotipadas negativas e de atos
discriminatórios (Jesus, 2014).

372
Como corpos podem ser descartados se dentro deles existe vida? Descartá-los
não seria então um genocídio? E se é o meio que reproduz a abjeção e, por
consequência, esse descarte, então os indivíduos não deveriam se sentir cúmplices
desse crime? Não se o crime não é sentido como crime. Não se o que é crime é
vendido pelo meio como uma necessária “manutenção da ordem”. Descarta-se os
corpos sem que o descarte fique aparente, havendo formas de fazê-lo, não só no nível
físico (assassinato) mas também no simbólico, através de uma série de condutas do
Estado que os fazem sentir como não pertencentes ao meio, destituindo-lhes o direito
de ser chamados de “cidadãos”.
Para exemplificar o que é dito, Jesus (2014) argumenta que existe uma
escassez alarmante de dados globais captados por órgãos governamentais oficiais
acerca da violência sofrida pela população trans. Na verdade, a coleta de dados sobre
violências contra pessoas trans mais apurada que existe no mundo é da TransGender
Europe (TGEU), uma organização não governamental. No Brasil a situação se repete,
sendo que aqui inexiste um sistema de informações oficial que contabilize as mortes
de pessoas trans, uma falta que tenta ser suprida por iniciativas isoladas de ONGs
como o Grupo Gay da Bahia (GGB). O que se estima, porém, é que o Brasil foi
responsável, isoladamente, por 39,8% dos assassinatos de pessoas trans registrados
no mundo entre 2008 e 2011, sendo o país que mais mata essa população (TGEU,
2012).
Segundo a mesma TGEU (2012), a maior parte dos crimes praticados contra
mulheres e homens trans e travestis (16,42%), ocorrem no espaço público das ruas,
sendo que grande parte destas vítimas atuava como profissionais do sexo (27,82%).
Os dados ainda revelam que a maior parte desses crimes foram planejados, uma vez
que 39,99 % das travestis foram assassinadas a tiros. E como se isso não bastasse
para demonstrar o plano do Estado em punir e eliminar identidades abjetas, somos
obrigados a nos deparar com o número de 5,15 % de pessoas trans e travestis
assassinadas pelo método arcaico do apedrejamento.
Para além do descarte físico, o contexto institucional encarrega-se de descartar
os corpos abjetos ao limitar e controlar seus fluxos e os espaços que eles ocupam, o
que é visível de inúmeras formas, sendo algumas delas: abusos policiais cometidos
contra pessoas trans e travestis que atuam como profissionais do sexo;
constrangimento sistemático na proibição de acesso a locais públicos como
restaurantes, banheiros e praças; insuficiência de leis que garantam os direitos civis
373
da população LGBT; exclusão do sistema de ensino por meio da evasão ocasionada
pelo bullying; exclusão do mercado de trabalho, entre outras.
A partir do momento em que somos submetidos reiteradamente a um discurso
ostensivamente misógino, homofóbico e transfóbico, reproduzindo e brandindo
preconceitos de todo tipo em uma espécie de desagravo à “deturpação” dos valores
tradicionais, é possível constatarmos o compromisso das instâncias de poder em
garantir a abjeção das identidades insubordinadas em função das identidades
normatizadas pela cultura heterossexual. A exaltação de uma suposta “família
tradicional” é utilizada como valor e álibi para justificar a reinstalação do reino da
barbárie. A partir do momento em que o atual presidente da república se mostra
complacente com atos de violência física e psicológica contra indivíduos que ele julga
“pervertidos” ou “baderneiros”, nosso espaço institucional torna-se fértil para propagar
tais atos sob o argumento de que estes são justos para manter a pretensa “ordem
social” livre da influência de identidades que contaminem o “cidadão de bem”. Este
último, por sua vez, sente-se livre para defender-se e empregar a violência como
mecanismo para garantir a manutenção de sua identidade heteronormativa.
Também é notório que o atual governo investe em uma agenda que garante a
gestão da banalidade da violência de gênero ao se posicionar conta o estudo de
gênero e sexualidade nas escolas públicas, sob o argumento de que esses
estabelecimentos devem se limitar a ensinar conteúdos didáticos estanques e de que
o método de ensino deve se pautar na memorização de tais conteúdos. Dessa
maneira, o espaço para o pensamento e para a reflexão crítica é tolhido para que a
“ordem” não seja questionada. Com isso, espera-se a criação de uma geração de
indivíduos que se limitem a julgar de irrefletida aquilo que lhes é fornecido pela cultura,
docilizando seus corpos e limitando suas experiências identitárias de gênero.

4. CONCLUSÃO

Em meio ao horizonte de devastação ética a que temos sido submetidos


cotidianamente, insiste e resiste a esperança. Devemos usar de todos os recursos
possíveis para assegurar a liberdade do pensar do indivíduo. Como, em se tratando
de um macrocosmo dominado por um Estado essa tarefa é muito complicada, dentro
de pequenos microcosmos essa situação é mais administrável. Por parte dos
educadores, é possível desenvolver, por meio de iniciativas individuais, espaços de
374
crítica e reflexão para que seus alunos possam exercer com liberdade o seu pensar e
com isso, permitir que esses disseminem essa forma de entender e refletir sobre o
meio para quaisquer lugares que eles se espalhem.
Da parte do psicólogo, independentemente do contexto em que profissional
atue, servir de instrumento para que o cliente/paciente possa vir a alcançar autonomia
sobre sua vida e reflexão sobre seus pensamentos e sentimentos nos parece um
caminho que pode contribuir para a diminuição dos clichês associados as ideias de
gênero e sexualidade. E no que tange ao preconceito, de uma maneira geral, é
possível que ele contribua para revisar significações que o indivíduo constrói ou por
experiências de vida anteriores ou pela coesão do contexto social em que vive.

5. REFERÊNCIAS

Butler, J. (2015). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (R.


Aguiar, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.

Fobia. Dicionário online Priberam, 25 julho. 2019. Disponível em:


<https://dicionario.priberam.org/prefixos> Acesso em 25 outubro de 2019.

Gender Secretariat, Department for Democracy and Social Development, Sida. (2008).
Action Plan for Sida’s Work Against Gender-Based Violence 2008–2010
Disponível em <http://webapps01.un.org/vawdatabase/uploads/Sweden%20-
%20Attachment%205%20Action%20Plan%20for%20Sidas%20Work%20Against%20
Gender-based%20violence.pdf > Acesso em 25 outubro de 2019.

JESUS, J. G. Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero


como genocídio. História Agora, v. 16, p. 101-123, 2014.

Kristeva, J. (1982). Powers of horror: an essay on abjection. New York: Columbia


University Press.

Petry, A. R. & Meyer, D. E. E. (2011). Transexualidade e heteronormatividade:


algumas questões para a pesquisa. Textos & Contextos, 10(1), 193-198.

Santos, J.V.T. (2002). Microfísica da violência: uma questão social mundial. Ciência e
Cultura, 54(1), 22-24.

Transgender Europe´s trans murder monitoring. Reported deaths of 816murdered


trans persons from january 2008 until december 2011 [Online, 2012a]. Disponível em
<http://www.transrespect transphobia.org/uploads/downloads/TMM/TvT-TMM-
Tables2008-2011-en.pdf. > Acesso em 25 outubro de 2019.

375
Trans. Dicionário online Priberam, 25 julho. 2019. Disponível em:
<https://dicionario.priberam.org/prefixos> Acesso em 25 outubro de 2019.

Warner, M. (1991). Fear of a queer planet. Durham: Duke University Press.

Wittig, M. (1992). The straight mind. Boston: Beacon Press.

Apoio: CAPES (processo número 134357/2018-3)

Dados resumidos dos autores

Vinicius Alexandre. Psicólogo. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). Membro do
Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq).
Psicólogo voluntário do Ambulatório de Estudos da Sexualidade Humana (AESH) da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP). Bolsista de Mestrado da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES (processo número
134357/2018-3) (E-mail: valexandre83@gmail.com).

Manoel Antônio dos Santos. Psicólogo. Livre-docente em Psicoterapia Psicanalítica.


Professor Titular da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da FFCLRP-USP. Coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em
Psicologia da Saúde (LEPPS-FFCLRP-USP/CNPq) e do Grupo de Ação e Pesquisa em
Diversidade Sexual e de Gênero (VIDEVERSO-FFCLRP-USP). Bolsista de Produtividade em
Pesquisa do CNPq, nível 1B (E-mail: masantos@ffclrp.usp.br).

376
32- A violência sexual e o adoecimento neurótico obsessivo: Uma crônica
psicanalítica

João Fábio Haddad Caramori


Gilberto Safra

Resumo: O presente trabalho teve como objetivo o desvelar do adoecimento


emocional atrelado a infausta vivência da violência sexual durante o delicado período
da infância. Este trabalho utiliza a Perspectiva Inversa como método investigativo
teórico-clínico, abordagem que se baseia nas contribuições de Florensky (2012), com
a finalidade de resgatar a pessoalidade frente ao excesso de teorização, o surgimento
da singularidade e polifonia dos registros que envolvem-se no processo de
subjetivação humana (Safra, 2014). Assim, utiliza-se de uma crônica psicanalítica,
uma narrativa que eclode dentro do encontro do universo interno do terapeuta-
pesquisador em comunhão com o paciente (Granato, 2004). Quíron 4 fora maculado
por um evento que lhe atravessou o espírito, acarretando uma condição patológica de
natureza neurótico-obsessiva. Do ponto de vista psicanalítico, uma criança que passa
por uma situação de violência sexual será invadida pelo ego de seu agressor, uma
confusão do campo do amor e o desenvolvimento do ego (Firenze, 1992). Segundo
Safra (2009), é fundamental à criança que sofreu uma experiência dessa natureza que
consiga subjugar o incompreensível sob o domínio da imaginação.

Palavras-chave: Violência Sexual, Perspectiva Inversa, Crônicas Psicanalíticas,


Neurose Obsessiva, Psicanálise.

Introdução

Esse trabalho é fruto do projeto de mestrado “O uso de rituais na situação


clínica” que acompanhou 5 casos de pacientes neuróticos obsessivos e através da
imersão em suas singularidades através de crônicas psicanalíticas. Esta pesquisa
utilizou-se da perspectiva inversa dentro da situação clínica, um método que busca o

4
Nome fictício baseado no conto mitológico do centauro Quíron, um ser que carregava consigo uma ferida que
jamais cicatrizava e iniciou uma busca pelo mundo pela cura de sua mácula (Commelin, 1957).

377
resgate da pessoalidade e toda sua polifonia em prol ao excesso de teorização (Safra,
2009).
Entre as crônicas que se desvelaram frente a fusão do universo interno do
pesquisador e a riqueza da experiência clínica um dos casos do adoecimento
neurótico obsessivo estava atrelado a terrível vivência da violência sexual durante o
delicado período da infância.
Segundo o Ipea (2014) crianças e adolescentes são vítimas de 70 % dos casos
de violência sexual no Brasil. Mais de 500 mil pessoas por ano passam por tal situação
no Brasil, porém, somente 10% dos casos chegam as autoridades, e metade das
ocorrências feitas, a crise na realidade é algo já recorrente à vítima (Cerqueira &
Coelho, 2014).
As consequências para as vítimas que se tem registro normalmente são “[...]
estresse pós-traumático (23,3%), transtorno de comportamento (11,4%) e gravidez
(7,1%)” (IPEA, 2014, p.14). Dentro do campo psicanalítico as consequências de tal
experiências podem ser catastróficas para o desenvolvimento emocional, acarretando
condições de adoecimento dentro do campo das neuroses (Firenze, 1992).
Utilizo-me da terminologia violência sexual em prol de abuso sexual, pois
segundo o dicionário de língua portuguesa Aurélio (2008), o termo abuso remete a um
objeto que fora excessivamente utilizado. Uma criança ou adolescente jamais deveria
ser descrito mediante a tal termo, pois um ser não deve ser de maneira alguma usado,
sendo mais adequado nesta pesquisa a utilização do termo violência sexual.

Objetivo

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma crônica psicanalítica que
desvela as consequências do adoecimento emocional devido a experiência traumática
da violência sexual dentro da tenra infância.

Justificativa

Esta apresentação se justifica-se devido à necessidade de reflexão sobre o


tema da violência sexual devido à gravidade e a ocorrência dentro do território
brasileiro. Além disso, a perspectiva inversa possibilita o desvelar, dentro do campo

378
da singularidade, da relação do adoecimento emocional devido a essa natureza
traumática.

Método

Este trabalho utiliza a Perspectiva Inversa como método investigativo teórico-


clínico. Esta abordagem baseia-se nas contribuições de Pavél Florensky (2012) a
situação clínica e enfatiza o resgate da pessoalidade frente ao excesso de teorização,
possibilitando o surgimento da singularidade do ser em uma polifonia dos registros
que se envolvem com o processo de subjetivação que nem sempre uma perspectiva
linear contempla (Safra, 2009).
Para tal, utiliza-se de uma crônica psicanalítica, uma narrativa que eclode
dentro do encontro do universo interno do terapeuta-pesquisador junto ao paciente.
Aquele que conta uma narrativa tece sua história a partir de suas próprias vivências,
a de sua ancestralidade em direção aquele que se observa, trata-se de um fenômeno
do registro da comunhão, da fusão, dando então a origem de um novo mundo que se
desvela frente a esse encontro (Granato, 2004).

A crônica psicanalítica – Quíron e a ferida que nunca cicatrizava

Quíron apresentava rituais desde os seus quinze anos de idade e para si, era
como viver o inferno na terra. De uma família muito religiosa sentia que precisava
fazer o sinal da cruz em os batentes de porta e entrar nos lugares com o pé direito,
assim, não importa onde estivesse, estaria abençoado com uma benção de Deus. Era
bastante vergonhoso suas investidas sociais, precisava discretamente realizar seu
gesto de forma que não fosse notado, isso acontecia com muito mais intensidade
quando ia para sua escola.
Tinha também outros rituais. Gastava cerca de 10 litros de álcool por dia
lavando suas mãos até enrugarem. O medo de pegar alguma infecção por bactérias
ou fungos era intenso. Limpava e desinfetava todos os talheres, pratos, o chão, o
banheiro, sem a menor possibilidade de encontrar paz no que fazia. Em diversos
momentos de sua vida chegou até a pensar “eu venderia minha alma ao diabo para
que isso passasse”. No fim das contas já se sentia no inferno. Sua existência nesse
mundo parecia ser um misto de tormento e fragilidade.
379
Pensava em si como um dente-de-leão frente a ventania, mediante a qualquer
possibilidade de entrave desfragmentava-se no vento. Porém, ainda sim, havia um
sopro de vida em si, como no nome da própria flor, havia um pouco de leão nessa
pessoa.
Quíron sempre fora inimigo de seus pensamentos, constantemente profanas
imagens perpassavam sua mente, pensamentos como a imagem de Jesus Cristo e
Nossa Senhora tendo relações sexuais, o demônio junto com Jesus Cristo, etc. Não
conseguia entrar em uma igreja sem que imaginasse os santos e anjos relacionando-
se sexualmente. Seus pensamentos encaminhavam-lhe para aquilo que era de mais
proibido. A fusão entre o sagrado e o profano, entre a sexualidade e a violência. Os
pensamentos o deprimiam aos poucos, era extremante exaustivo lidar com eles. Seu
ritual de proteção buscava possibilidade de habitar o mundo de maneira segura,
habitar um espaço que não fosse sofrer das violências na vida.
Sempre fora uma pessoa introspectiva, odiava se expor socialmente. Em sua
adolescência detestava que o tocassem fisicamente e quando isso acontecia
instabilizava-se instantaneamente. Talvez por ser uma pessoa excessivamente
sensível passou por um longo período de bullying em sua escola, sendo detectado
pelos seus colegas como um alvo fácil para piadas não conseguia defender-se.
Lembrava-se que a diretora de sua escola esperou que saísse da sala de aula para
dar um recado para o restante de sua turma de classe. “Não mexam com ele porque
ele é frágil”, tal recado foi motivo de maior exposição para ele. Os colegas de
sala o chamavam de gay, doente e louco. Seus agressores como filhos de professores
da escola ficavam impunes a tudo. Quíron se uma pessoa cheia de segredos, pecados
e destinado a solidão. Essencialmente a solidão que vivenciava fazia-o sentir-se feio
e inseguro. Os afeto predominantes de suas relações sociais era o medo. Não
conseguia confiar plenamente nas pessoas.
Durante toda sua vida deixou de lado suas vontades para ceder a dinâmica
familiar. Era extremamente atendo a qualquer demanda dos membros familiares,
sacrificando seus desejos e seu tempo em prol a gestão familiar. Seu pai era bastante
imaturo, sonhador e egoísta, sempre fazia negócios que levavam a família à falência
e também tinha grande dificuldade de manter-se fiel a esposa.
Quíron guardava enorme rancor de seu pai. Essa dinâmica familiar era incapaz
de conter suas angústias, sua família incapaz de acolher seu sofrimento, um olhar de
acolhimento seria um bálsamo para suas feridas. Assim, bastante atendo aos
380
sofrimentos emocionais que o cercava, sentia que deveria sacrificar-se para auxiliar
na gestão de sua família.
O maior sacrifício que Quíron fez foi de sua própria sexualidade, sempre se
apaixonava por colegas de sua turma, porém, mantinha-se em silêncio. Jamais
conseguiu permitir-se relacionar, pois em seu íntimo todas as relações do campo
homoafetivo eram sinônimas de violência e exposição.
O sacrifício era parte de seu idioma pessoal, matava-se diariamente em prol a
harmonia do lar, assim como para expurgar seus conflitos internos. Dificilmente
angariava algo para si. Acreditava que a doação desmedida era um caminho para sua
salvação. Espelhava-se no exemplo do Cristo que fora crucificado para expurgar os
pecados do mundo, Quíron precisava sacrificar-se para expurgar seu passado de
violência de si, assim como sua verdadeira essencial, sua homossexualidade.

Discussão e conclusão - A violência sexual e o adoecimento neurótico

Dentro das contribuições da perspectiva inversa como um campo polifônico do


desvelamento do evento humano (Safra, 2014) o primeiro ponto que se destaca é o
da experiência de violência que Quíron sofreu em sua infância. Essa agressão marcou
profundamente seu espírito e toda sua jornada na vida. Na dimensão
contratransferencial era evidente um pedido de socorro que se emanava.
Os pensamentos invasores que retratavam a imagem do Cristo se relacionando
sexualmente com o Diabo apontava a confusão que vivenciava dentro do campo da
sexualidade. Para si, ser homossexual era um pecado e condenação, analogia criada
através da experiência da violência sexual que sofreu em sua infancia.
Firenze (1992) descreve que uma criança que passa por uma situação de
trágica violência, como a experiência da violência sexual, devido a fase do
desenvolvimento que se encontra, não conseguirá ter defesas para enfrentar tal
experiência, e devido a isso, adentra dentro do domínio do extremo horror, assim irá
perder a consciência de si mesma e logo, se identificar com o próprio agressor.
O termo identificação remete a um processo bastante paradoxal, pois ao
mesmo tempo que pois nega a realidade do agressor, dentro da dimensão concreta
do mundo, o envia ao seu próprio reino subjetivo. É uma tentativa de repreensão da
experiência traumática, semelhante a um estado de transe oriundo de um trauma. A
criança violentada conseguirá manter-se dentro da dimensão da ternura, porém,
381
devido aos processos identificatórios, assimilará para si também a culpa do seu
próprio agressor (Firenze, 1992).
Dentro dos processos de introjeção é correto compreender que o sujeito
transfere do mundo concreto características relacionadas aos objetos externos para
dentro de seu plano psíquico. Segundo as contribuições de Firenze à psicanálise, o
psicótico irá expulsar de seu ego as características insuportáveis para si enquanto o
neurótico irá introjetá-las dentro de seu mundo interno para soluciona-las (Laplanche;
Pontalis, 2001).
Uma criança em situação de vulnerabilidade saberá instintivamente que algo
terrível aconteceu a si, ela como ser da lucidez não precisa que alguém a explique
que algo infausto ocorreu, sentirá instintivamente (Safra, 2009).
A criança que fora vítima de uma violência como a de natureza sexual passará
por um processo de confusão e conflito de seus conteúdos internos pertinentes contra
a experiência de amor. A criança, que originalmente é terna, sentirá culpada devido a
uma confusão instaurada. Ela não confiará no seu próprio testemunho, atrelado ao
comportamento destrutivo de seu abusador, a criança irá sucumbir a um sentimento
vexatório (Firenze, 1992).
A provisão do ambiente humano é fundamental neste momento para a criança
traumatizada, porém, nem sempre a criança terá a credibilidade frente aos adultos
para encontrar no testemunho do outro alicerce para tal experiência. A criança que
passa por tal situação não se revolta com agressividade ou ódio, mas sim, obedece
ao abusador. Parte do núcleo do self cindido encontra-se atrelado no momento do
trauma do abuso. Devido a isso há a formação de um núcleo unicamente formado das
pulsões inconsciente e das forças repreensoras do superego (Firenze, 1992).

“[...] Onde há um alto grau de splitting entre o self verdadeiro e


o falso self que oculta o self verdadeiro verifica-se pouca
capacidade para o uso de símbolos, e uma pobreza de vida
cultural. Ao invés de objetivos culturais, observam-se em tais
pessoas extrema inquietação, uma incapacidade de se
concentrar e uma necessidade de colecionar ilusões da
realidade externa, de modo que a vida toda do indivíduo pode
ficar cheia de reações a essas ilusões” (Winnicott, 1979, p.
137)
382
Quíron jamais conseguiu compreender durante sua infância e adolescência
aquilo que lhe ocorrera. Não encontrou em seu berço familiar um olhar de
reconhecimento que amparasse e lhe desse sustentação adequada para retomar ao
caminho do amadurecimento emocional. Entregou-se a vida religiosa e nas
necessidades de sua família, aos poucos fora abandonando os cuidados de si e
vivendo mecanicamente as demandas do outro, pois, olhar para si era uma tarefa
impossível.
O amor terno é uma herança da identificação objetal com a figura materna que
precede o cenário edípico, quando inserida outras formas de amor, distintos das
formas de amores familiares dentro do registro da infância o efeito será catastrófico.
Essas experiências irão acarretar a criança em graves cenários de neurose e
sentimentos gritantes de culpa (Firenze, 1992).
Em sua vida adulta Quíron teve enormes dificuldades de aceitar sua própria
sexualidade. Tinha consciência desde muito cedo da sua própria sexualidade, porém
a vivenciava como um sonho distante. Durante sua vida apaixonou-se em silêncio por
diversos de seus amigos, porém, depois de um período, esquecia-se completamente
do caso e continuava a vivenciar sua vida, distante daquilo que realmente almejava.
Segundo Winnicott no trabalho “Fragments of Concerning Varieties of Clinical
Confusion” (1956) o ponto central de um tratamento neurótico está na eclosão de um
núcleo cindido. Na realidade, a estrutura obsessiva encobre como uma máscara a
trama psicótica. Quando essa parte cindida da personalidade retorna, uma maior crise
irá ocorrer ao paciente. Cabe ao terapeuta o acolhimento adequado quando esse
derradeiro e fundamental momento chegar.
Enquanto adulto, Quíron teve uma vivência trágica, se viu obrigado a líder com
aquilo que habitava seu peito durante anos. Apaixonou-se pelos seus amigos mais
próximos e sentiu-se completamente culpado pelo ocorrido. Durante um período de
um ano tentou cometer suicídio por 5 vezes, muitas vezes sendo contido graças a
intuição de sua mãe ao esconder objetos cortantes e medicamentos de dentro de sua
casa. Com a eclosão de seus sentimentos eróticos-afetivos veio juntamente uma
torrente infinita de culpa.
Dentro das contribuições de Firenze (1992) é possível alegar que fora
justamente este o ponto do adoecimento de Quíron. A identificação com os seus
próprios agressores era componente presente e esquecido dentro do campo da sua
383
personalidade. A grande barreira que lhe fez ter dificuldades de se relacionar com
qualquer pessoa do mesmo sexo e que considerava a homossexualidade ação
semelhante a experiência de abuso. Ser homossexual para si não era uma condição
de amor, mas uma condição de violência e sujeira. A sexualidade por si própria tinha
esse aspecto de algo nojento e grotesco para si.
O horror tomou conta de si, durante meses sentiu em sua pele a visitação ao
inferno, tornou-se paranoico, não dormia nem se alimentava, estava estarrecido com
os conteúdos que se revelaram frente a si. Sentia-se exatamente como os agressores
de seu passado, devido a isso, tentou o suicídio. Ao mesmo tempo que se considera
impuro também desejava com toda sua alma a morte dos seus agressores.
Segundo Safra (2009), em diálogo com o vértice psicanalítico de Winnicott, é
fundamental a criança que sofreu de uma experiência dessa natureza que consiga
subjugar o incompreensível, o inominável, dentro do domínio da imaginação. Essa é
a função do terapeuta dentro do manejo clínico em casos como esse.
Quíron encontrava-se perdido, em uma constante sensação do não viver,
mergulhado em uma sensação do irreal. Dentro das contribuições de Firenze (1992)
ego encontrava-se infestado mediante a complexidade dos atravessamentos pelas
vicissitudes do terror de sua infância, o jovem sofredor adquiria alívio quando os olhos
que observava pinçavam aspectos do seu verdadeiro self.
Enfim, quando uma criança surgiu dentro do cenário clínico, pedia por
compreensão e possibilidade de se desenlaçar dos emaranhados identificatórios do
qual vivia, através do acolhimento, do ponto de vista de Winnicott (1956), a
possibilidade regressiva. Tornou-se um infante entregue ao outro-ambiente, esse
momento fora essencial para resgatar o ser e reposicioná-lo dentro do devir,
possibilitando-o um renascimento dentro de sua própria singularidade, confiante em
sua real identidade e consciente de sua própria capacidade de amar.

Referências
.
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Duração 1 h e 43 min.

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In Anais. São Paulo, SP: IPUSP - Instituto de Psicologia da Universidade de
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psi.org.br/eventos/anais_I_cong_intern_pessoa_comunidade_2014.pdf >
Acessado em 20 de outubro de 2019.

385
33- ADOLESCENTE COM ANEMIA FALCIFORME SUBMETIDA AO
TRANSPLANTE DE CÉLULAS-TRONCO HEMATOPOÉTICAS
Aline Guerrieri Accoroni
Lucas dos Santos Lotério
Hellen Cristina Ramos Queirós
Manoel Antônio dos Santos
Érika Arantes de Oliveira Cardoso
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – FFCLRP
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto – SP
Apoio: PIBIC - CNPQ

Resumo: As vivências de um grave adoecimento e de um tratamento complexo, como


o Transplante de Células Tronco Hematopoiéticas (TCTH), podem potencializar o
impacto das mudanças da adolescência e trazer desdobramentos no processo de
desenvolvimento. Nesse contexto, o objetivo geral do trabalho foi compreender a
vivência do TCTH por uma adolescente. Trata-se de uma investigação descritiva e
exploratória que utiliza o estudo de caso como estratégia metodológica de pesquisa
qualitativa. A participante foi uma paciente de 16 anos. O instrumento foi uma
entrevista semiestruturada, que foi audiogravada e transcrita. Os dados foram
submetidos à análise temática do tipo indutiva. Os resultados foram organizados nas
seguintes categorias temáticas: Convivendo com a doença: impacto do diagnóstico,
restrições do adoecimento, vivências de tratamentos; sobrevivendo ao transplante:
decisão pelo procedimento, vivência da enfermaria, fatores que dificultaram e os que
facilitaram; Sobrevida que segue: vivendo no pós-TCTH: retomada da vida
restrições, mudanças, atividades atuais e planos futuros. As maiores dificuldades
enfrentadas se relacionam à necessidade de internação, com consequente isolamento
social e interrupções da vida escolar e de atividades prazerosas. Após o TCTH, a
participante conseguiu retomar atividades interrompidas e apresentam planos para o
futuro, sendo o tratamento tido como uma experiência positiva, apesar das
dificuldades e sofrimentos envolvidos.
Palavras-chave: Adolescência, Transplante de Células-tronco Hematopoéticas

386
Introdução
O Transplante de Células-Tronco Hematopoéticas (TCTH) vem se constituindo,
ao longo dos anos, como uma alternativa terapêutica eficaz para diversos tipos de
doenças quando os tratamentos convencionais não oferecem prognóstico positivo
(Guimarães, Santos, & Oliveira-Cardoso, 2008; Oliveira-Cardoso & Santos, 2000;
Torrano-Masetti, Voltarelli, & Stracieri, 2000). Nesse tipo de tratamento, as células da
medula óssea doente do receptor são substituídas por células de uma medula sadia,
com o objetivo de reconstituição da hematopoese (Associação Brasileira de
Transplante de Órgãos - Manual de informações ao paciente de TMO, 1999).
As dificuldades relacionadas ao TCTH aparecem, inicialmente, no momento da
tomada de decisão entre fazer ou não o transplante. Submeter-se ao TCTH implica
expor o paciente a um considerável – embora controlado – risco de morte, em razão
das altas doses de quimioterapia e grave estado de imunossupressão. Em
contrapartida, não fazer o TCTH implica perder a única chance de cura que ele tem.
O paciente encontra-se perante uma decisão paradoxal, já que o procedimento pode
ser visto tanto como uma ameaça, em decorrência do risco de perda da sua
integridade física e até mesmo da própria vida, quanto como uma promessa de
resgate da saúde (Mastropietro, Oliveira-Cardoso, Santos, & Voltarelli, 2009).
Além disso, após a tomada de decisão, pode-se observar um aumento natural
no nível de estresse, decorrente da luta pela identificação de um doador compatível e
a reorganização psicossocial da família que busca os cuidados em relação à
preparação para o transplante. Nessa etapa, o processo de condicionamento e
isolamento pode fazer com que o paciente perca o controle e o cuidado pessoal em
decorrência da perda de privacidade, mudanças na alimentação e de consequências
da quimioterapia. Ademais, a espera pela pega da medula também se torna um fator
impulsionador de medo e insegurança tanto para a família quanto para o paciente
(Barrera, Boyd-Pringle, Sumbler, & Saunders, 2000; Campos & Gioia-Martins, 2011).
Por fim, no estágio pós-TCTH, o paciente vivencia uma série de recomendações e
restrições, como alimentar-se exclusivamente de alimentos cozidos, ingerir no mínimo
três litros de água por dia, ingerir grande quantidade de comprimidos, utilizar uma
máscara hospitalar para circular em locais fora de sua casa, bem como ao receber
visitas, entre outras limitações (Voltarelli & Stracieri, 2000).
Cabe considerar que cada indivíduo vivenciará essa etapa de maneira
diferente, de acordo com suas experiências prévias, o apoio a que tem acesso durante
387
todo o processo e no que diz respeito ao seu momento de vida. No que concerne a
esse último aspecto, sabe-se que a adolescência é uma etapa do desenvolvimento
humano caracterizada por uma série de transformações biológicas, psicológicas e
sociais, podendo ser definida como a transição da infância para a idade adulta.
Segundo Erikson (1976), só com a adolescência o indivíduo desenvolve os requisitos
preliminares de crescimento fisiológico, amadurecimento mental e responsabilidade
social para experimentar e atravessar a crise de identidade. Pode-se dizer que esse
período de crise de identidade ocorre devido à reestruturação da personalidade de um
modo geral. Há a culminação do processo de separação / individuação e substituição
do vínculo de dependência simbiótica com os pais da infância por relações objetais
de autonomia plena. Assim, essa “troca de papéis” gera um momento de reflexão e
uma consequente crise de identidade.
Durante as etapas do TCTH, o afastamento do adolescente de seu ambiente
social, do círculo de amigos e a ruptura de seu modo de viver anterior à manifestação
da doença podem desencadear ansiedade, tristeza, desânimo e frustração,
prejudicando o desenvolvimento saudável da autoconfiança e autonomia, processos
psicológicos de extrema importância nessa etapa da vida (Anders & Lima, 2004).
Assim, as transformações físicas e emocionais, em combinação com a independência
e autonomia adquiridas, presentes geralmente na adolescência, fazem parte do
processo de desenvolvimento da identidade pessoal, isto é, do processo de se
compreender como um indivíduo dotado de uma existência singular.
Em vista disso, pelas consequências já referidas, a presença de uma doença
crônica e seu tratamento podem influenciar esse processo (Perrin & Gerrity, 1984;
Zanoni, Dóro, Zanis, & Bonfim, 2010). Os efeitos adversos posteriores à realização do
TCTH na infância têm sido relativamente inexplorados, a despeito desses pacientes
enfrentarem situações extremamente estressoras, com marcado risco de morte,
isolamento da família e amigos, frequência irregular ao colégio, ruptura de sua rotina
e distanciamento forçado de sua vida normal (Nespoli et al., 1995).
Nesse cenário, este estudo teve por objetivo conhecer a percepção de
adolescentes transplantados em relação aos aspectos envolvidos no adoecimento,
tratamentos e momento pós-TCTH. Mais especificamente: compreender como o
adoecimento e o tratamento impactaram nas relações com a família e amigos,
estudos, atividades de lazer e hobbies e na percepção sobre a própria saúde.

388
Método
Delineamento da pesquisa
Trata-se de uma investigação descritiva, exploratória e qualitativa. O enfoque
qualitativo foi escolhido uma vez que se pretende investigar em profundidade o
fenômeno, na perspectiva de quem a vivência, buscando compreender ações dos
indivíduos, bem como os processos pelos quais os significados são elaborados e
descritos (Flick, 2009). Além disso, adotou-se, como estratégia metodológica, a
realização de um estudo de caso. Como descrito por Alves-Mazzotti (2006), o estudo
de caso deve ser crítico, extremo, único, ou, então, revelador, sendo que, em
quaisquer dessas situações, deve-se manter o foco nos fenômenos sociais que são
complexos e multifacetados.

Participante
Participou do presente estudo uma adolescente de 16 anos, denominada aqui
de Ana, tendo realizado o transplante há seis anos, e que foi diagnosticada com
Anemia Falciforme no exame do pezinho após dias de seu nascimento. Na época da
entrevista frequentava os serviços de saúde para acompanhamento pós-TMO,
comparecendo às consultas a cada um ano. Ana cursava o 1º ano do Ensino Médio,
tendo parado por dois anos para a realização do TCTH.

Instrumentos
Para a coleta de dados utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturado,
desenvolvido para este estudo, complementado pela experiência dos pesquisadores
e pelas necessidades da pesquisa. Assim, foram exploradas questões referentes à
vida pré-adoecimento, impacto do diagnóstico, perdas vivenciadas, fontes de apoio
social, a subjetivação da experiência do transplante e planos futuros.

Coleta de dados
A abordagem da participante ocorreu durante o retorno desta no Ambulatório
de TMO. A obtenção dos dados aconteceu em um encontro único em uma situação
face a face, sendo a entrevista audiogravada mediante consentimento do responsável
e da participante. Além disso, foi apresentado aos responsáveis o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, que continha as informações necessárias acerca
da pesquisa realizada.
389
Análise dos dados
Os dados foram submetidos à análise temática do tipo indutiva, segundo
recomendações técnicas de Braun e Clarke (2006). Para essas autoras a análise
temática é bastante útil e flexível para a pesquisa qualitativa em psicologia. Trata-se
de um método que identifica, analisa e relata padrões (temas) nos dados obtidos,
minimamente organizado e descreve o conjunto de dados em detalhes.
Os resultados foram organizados nas seguintes categorias temáticas:
a) Convivendo com a doença: impacto do diagnóstico, restrições do
adoecimento, vivências de tratamentos;
b) Sobrevivendo ao transplante: decisão pelo procedimento, vivência da
enfermaria, fatores que dificultaram e os que facilitaram;
c) Sobrevida que segue: vivendo no pós-TCTH: retomada da vida após o
procedimento, restrições, mudanças positivas e negativas, atividades atuais e
planos futuros.

Resultados e Discussão
Convivendo com a doença
A paciente relatou que seus pais nunca tinham ouvido falar sobre a doença e
que ficaram assustados no início do diagnóstico, buscando informações com
profissionais da cidade em que moravam. Além disso, sua mãe lhe contou que
acreditava que havia cometido algum erro para que a filha nascesse dessa forma. Não
ficou claro a que tipo de erro a mãe da paciente estava se referindo, porém Rodrigues,
Araújo e Melo (2010) apontam que no momento do diagnóstico de uma doença
genética, é comum a família buscar possíveis causas para o problema, bem como sua
nomeação. Assim, no momento da orientação genética, um forte sentimento de culpa
se instala no casal ao se deparar com o fato de que o filho saudável não existe mais
(Rodrigues, Araújo, & Melo, 2010). Ana é o único caso de Anemia Falciforme na
família, o que pode ter contribuído para a falta de conhecimento e informação de seus
pais sobre a doença.

Então, foi assim. eles nunca tinham ouvido falar, então eu fui o primeiro caso na minha
família sabe? Eles ficaram bem assim curiosos e tudo mais, até que teve um médico da
minha cidade que eu não lembro o nome, mas que ajudaram bastante eles sabe?
Explicaram tudo, conversaram, minha mãe conta que ela ficou muito mal, ela ficou
achando que o erro era dela, ficou naquela... meu pai também assustou bastante, só
que aí depois eles conversando [...]

390
Com relação ao conhecimento da doença pela paciente, o fato de Ana ter
crescido e convivido com a doença possibilitou que não existisse um momento de
“diagnóstico” propriamente dito em sua vida. A adolescente afirma que aprendeu a
conviver com a AF desde sempre e que foi uma adolescente muito curiosa, chegando
a procurar assuntos relacionados à sua doença nos mecanismos de busca online
como forma de se manter atualizada e entender os procedimentos pelos quais
passava.

É que tipo assim, conforme minha rotina de ter que tomar medicamento e vir no
hemocentro, tomar sangue e tudo mais, acho que eu já fui meio que natural sabe? [...]
É, e eu acho que quando tinha alguma coisa eu mesma ia atrás saber? Eu sempre fui
muito fuçada, eu ia na internet e eu procurava tudo sobre AF sabe?

No que se refere ao relacionamento com os pais, Ana afirmou que este sempre
foi positivo. De acordo com a adolescente, a relação com sua mãe é muito aberta e
afirmou se sentir confortável para conversar sobre diversos assuntos. Em vista disso,
pode-se supor que o relacionamento com a mãe tenha sido fonte de apoio para Ana
no enfrentamento da doença, decisão pelo transplante e enfrentamento do
procedimento. Dessa forma, é notável a importância do suporte social e emocional
inserido no contexto hospitalar, pois o enfermo terá uma série de desafios e
dificuldades a serem enfrentadas na busca pelo resgate de sua saúde (Rocha et al.,
2016).

Sempre foi bom, acho que eu sou mais próxima assim de conversar com a minha mãe,
porque ela sempre me criou assim “além de sua mãe eu sou sua melhor amiga” aí ela
falava “o que você contar para suas amigas você conta para mim” então eu tenho mais
isso com a minha mãe e com o meu pai eu já não tenho tanto essa liberdade, a gente
conversa e tudo...

Quando questionada sobre as mudanças ocorridas no relacionamento com os


pais após o transplante, Ana acredita que houve mudanças, pois se afastou um pouco
da mãe por ter um quadro depressivo após o procedimento. Entretanto, apesar desse
momento de afastamento ter existido durante o diagnóstico da comorbidade, a
paciente afirma que percebeu melhoras significativas no relacionamento com sua mãe
e irmã após iniciar o uso de antidepressivos. Atualmente a paciente afirma que se
sente muito próxima de sua mãe e irmã e que a relação com ambas está muito melhor
se comparada ao período anterior à realização do TCTH.

391
Mudou, porque depois do transplante eu acabei ficando um pouco mal e eu acabei
entrando em depressão então eu acabei me afastando muito da minha mãe, mas agora
eu comecei a fazer tratamento e tudo mais então eu acho que tá até melhor com a minha
mãe e a minha irmã também.

Já no que se refere ao relacionamento de Ana e sua irmã, estas sempre foram


muito próximas, parecendo ser uma relação saudável e afetuosa. Quando pequenas,
Ana contou que ela e sua irmã costumavam brincar juntas, pois a família era muito
pequena e não tinham muitos primos. Apesar de andar muito “grudada” à irmã, a
paciente contou que brincava sozinha algumas vezes, pois eram quatro anos de
diferença entre suas idades e as brincadeiras nem sempre eram as mesmas. Com a
realização do TCTH, Ana conta que sentiu uma mudança positiva em sua relação com
a irmã, pois além de doadora ela foi uma amiga e sempre esteve ao seu lado.

Olha, a gente é quatro anos de diferença então a gente brigava mas era aquela briga
boba de criança mesmo. Como sempre era eu e ela, minha família é muito pequena
então não tinha muita criança para brincar então a gente sempre foi muito grudada.
Brigava mas não se desgrudava. [...] Ah eu não sei, eu meio que me senti grata por ter
ela comigo e por saber que ela ia arriscar a vida dela para salvar a minha sabe? Eu
fiquei grata.

Sobrevivendo ao transplante
Com relação ao conhecimento sobre o TCTH, Ana afirma que ela e seus pais
não tinham consciência da existência do procedimento até o momento em que o
médico apresentou esta possibilidade. Como sempre estava presente nas consultas
e participava ativamente das decisões acerca de seu tratamento, Ana contou que a
equipe médica explicou o que iria acontecer com seu corpo durante o transplante,
afirmando que sempre se sentiu confortável para tirar quaisquer dúvidas. Em um
estudo realizado por Oliveira-Cardoso e Santos (2013), a possibilidade de contar com
uma equipe empática, que mostra segurança e está sempre disposta a sanar
quaisquer dúvidas sobre o transplante pode se tornar um facilitador para o
enfrentamento das dificuldades encontradas nessa etapa, sendo fundamental para
um processo de decisão compartilhada entre o paciente, sua família e a equipe.

Eles (médicos) sempre foram bem atenciosos, sempre perguntando para mim se eu
tinha alguma dúvida e tudo mais.

Quando o transplante foi apresentado como forma de tratamento para Ana, esta

392
experimentou sentimentos de medo e susto. A paciente também relatou forte
preocupação não só consigo, mas também com seus pais, que já estavam fragilizados
por anos de tratamentos dolorosos e invasivos com sua filha. Frente a esse medo e
preocupação, Ana e seus pais optaram pela realização do transplante na esperança
de obter a cura e/ou aumentar sua expectativa de vida. Estudos realizados por Platt
et al. (1994) mostram que a expectativa de vida para indivíduos falcêmicos (em
homozigose) com crises frequentes variam entre 42 e 53 anos para homens e 48 e 58
anos para mulheres.

Tive medo, de verdade eu tive medo, tanto comigo quanto com meus pais. Eu não sabia
o que estava por vir, mas eu pensei “Ah, vamos arriscar”. E os médicos tinham falado
que para AF a expectativa de vida é até os 40 e tudo mais, e eu estava tendo reação
recebendo o sangue então meio que não tinha outra saída.

Quando questionada sobre a maior dificuldade que enfrentou ao longo do


transplante, Ana afirma que foi o tratamento quimioterápico, pois as sessões a
deixavam muito cansada e debilitada. Além disso, uma consequência da
quimioterapia que também a incomodava era o mal-estar ao se alimentar, visto que
qualquer alimento que tentava ingerir acabava passando mal. A quimioterapia, por se
tratar de uma forma de tratamento sistêmico, atinge todas as células do corpo,
produzindo diversos efeitos adversos (Soares, Burille, Antonacci, Santana, &
Schwartz, 2009) como náuseas e vômito, causando mal-estar e levando a uma
dificuldade em se alimentar (Silva, 2001).

A gente fica muito debilitada sabe? Aí tudo que eu comia eu passava mal e teve aquela
coisa de dar muita feridinha na boca e perde o cabelo também, eu fiquei naquela sabe?
E os remédios, eram muitos remédios também e tinham uns que eram muito ruins.

Após dois anos sem estudar em razão da realização do TCTH, a paciente


também caracterizou o retorno à escola como um grande desafio. Ana contou que
quando retornou às aulas fazia uso da máscara, por conta da quimioterapia, e seus
amigos estava estudando em outras escolas, tendo que fazer amizade e se enturmar
com pessoas diferentes. Em vista disso, a paciente relatou que se sentia muito
preocupada, não querendo voltar a estudar. Todavia, a paciente foi se adaptando
novamente:

[...] Voltar? Foi muito complicado, porque no começo a gente fica assim “dois anos sem
estudar” e depois vai voltando tudo aos poucos. Eu voltei com a máscara, né, que usa

393
por conta da quimioterapia e meus amigos já estavam em outras escolas (...)no começo
eu não queria ir, por conta da máscara e de não conhecer ninguém... Mas depois eu fui
me adaptando.

Sobrevida que segue: vivendo no pós-TCTH


No que se refere às mudanças percebidas no pós-TCTH, a paciente afirma que
sua saúde melhorou de forma significativa em razão da interrupção do tratamento da
anemia falciforme que envolvia diversos procedimentos dolorosos como transfusão
sanguínea e sangria. Além disso, Ana também percebeu certa mudança positiva na
qualidade de suas relações familiares, pois passou a valorizar mais sua vida e as
pessoas que estão nela.
Me sinto muito bem. Mudou muito e foi para melhor. [...] A minha saúde né, porque
primeiro eu fazia a transfusão e fazia sangria e tudo mais, e isso acabou. Convivência
com meus pais e minha família e eu acho que eu aprendi a valorizar mais a vida sabe?
Porque eu não tinha esse pensamento de viver intensamente e ser mais sensata e tudo
mais, eu acho que isso mudou também.

Com relação aos planos futuros, a paciente contou que quer ter uma profissão
e cursar uma faculdade, mas que ainda não sabe as áreas que gosta. Por fim, Ana
diz que o importante é “fazer algo que gosta” além de expor seu desejo de constituir
uma família.

Eu quero fazer alguma coisa sabe? Mas eu ainda não sei o que, eu quero me formar
sim e ter uma profissão sim. Mas eu to naquela de querer fazer alguma coisa que eu
goste sabe? Eu quero fazer por amor sabe? Por querer fazer mesmo, mas eu ainda não
achei, mas eu penso sabe, quero muito viajar sabe? Por que eu adoro viajar, então
queria conhecer muitos lugares, me formar, ser independente e todas essas coisas
assim.

Considerações Finais
Os resultados indicam que a escolha pelo Transplante foi pautada na
expectativa de benefícios, seja a esperança de cura e/ou de interrupção dos
tratamentos convencionais. As maiores dificuldades enfrentadas se relacionam à
necessidade de isolamento na enfermaria, com consequente isolamento social e
interrupções da vida escolar e de atividades prazerosas. Após o TCTH, a participante
conseguiu retomar atividades interrompidas e apresentam planos para o futuro, sendo
o tratamento tido como uma experiência positiva, apesar das dificuldades e
sofrimentos envolvidos. Além disso, após a realização do transplante, a participante
relatou mudança na qualidade de suas relações interpessoais, evidenciando maior

394
proximidade com seus pais e maior valorização da vida, em razão da alta
complexidade e risco elevado de morte envolvido no procedimento.

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396
34- PROCESSOS DE ADAPTAÇÃO TRANSCULTURAL DE INSTRUMENTOS DE
AVALIAÇÃO EM CUIDADOS PALIATIVOS

Marina Noronha Ferraz de Arruda-Colli1


Rafael Lima Dalle Mulle1
Sonia Regina Pasian1
Manoel Antônio dos Santos1
1Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

Resumo: Diante da necessidade de exame e reflexão sobre processos de adaptação


transcultural de instrumentos avaliativos utilizados no contexto de Cuidados Paliativos,
este estudo teve por objetivo analisar estratégias metodológicas e cuidados técnicos
para sua implementação à luz das diretrizes propostas pela International Test
Commission (ITC). Foi realizada revisão integrativa da literatura científica por meio da
busca eletrônica de publicações nas bases indexadoras PubMed, BVS e SciELO,
cruzando-se palavras-chave/descritores: cross-cultural adaptation, translation,
validation, palliative care, end-of-life. Foram definidos como critérios de inclusão: (1)
publicação em periódicos indexados nas bases selecionadas; (2) em idioma
português, espanhol ou inglês; (3) publicados entre 2006 e 2016; (4) estudos sobre
adaptação para a cultura brasileira de instrumentos avaliativos para uso no contexto
de Cuidados Paliativos. Sete artigos foram selecionados para a análise na íntegra. Foi
possível verificar como foram operacionalizadas as etapas de adaptação de
instrumentos de avaliação, evidenciando diversos recursos técnicos e metodológicos,
com seus alcances e limitações. Uma das restrições encontradas nas publicações
revisadas foi a reduzida utilização do guia de referência internacional ITC.
Palavras-chave: Avaliação Psicológica; Cuidados Paliativos; International Test
Commission; Adaptação.

Introdução
Com o aumento da necessidade de disponibilizar instrumentos de avaliação
psicológica em diferentes idiomas, nota-se um movimento de intensificação dos
esforços de padronização dos procedimentos metodológicos a serem utilizados na
adaptação transcultural, de modo a garantir sua equivalência em diferentes contextos

397
e populações (Hambleton et al., 2005). De forma sintética, o processo de adaptação
inclui: (1) análise em relação à capacidade de um instrumento mensurar determinado
construto em outra língua e cultura; (2) etapas de tradução; (3) checagem de
equivalência da versão adaptada. O processo de adaptação de instrumentos
avaliativos deve considerar a relevância dos conceitos e domínios originalmente
examinados, além da adequação de cada item em termos da capacidade de
representar esses aspectos na população-alvo dentro da nova cultura (Borsa et al.,
2012). Deve considerar ainda aspectos como a equivalência semântica, linguística e
contextual entre itens originais e traduzidos e incluir análise das propriedades
psicométricas do instrumento (ITC, 2010). Borsa et al. (2012) chamam a atenção,
ainda, para a importância da avaliação conceitual de itens pela população-alvo e uma
discussão com o autor do instrumento original sobre as alterações propostas na nova
versão do instrumento.
Com a preocupação de orientar o processo de adaptação transcultural de
instrumentos psicológicos, a International Test Commission – ITC (2010) propôs 22
diretrizes práticas para o processo de adaptação transcultural, apresentadas em
quatro categorias: (1) Contexto, (2) Desenvolvimento do Teste e Adaptação, (3)
Administração e (4) Documentação/Interpretações de Escore. Essas categorias foram
posteriormente discutidas, com foco nas orientações práticas para a implementação
das diretrizes e prevenção de erros mais comuns em adaptações de instrumentos
utilizados no cenário da educação e da avaliação psicológica (Hambleton et al., 2005).
A adaptação transcultural de instrumentos é prática frequente na área da saúde
(Beaton et al., 2000). No âmbito dos Cuidados Paliativos, tem crescido o interesse em
adaptar instrumentos que auxiliem na identificação de sintomas e desconfortos físico,
psicossocial e existencial experimentados pelos pacientes. A Organização Mundial de
Saúde define Cuidados Paliativos como “uma abordagem que promove a qualidade
de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a
continuidade da vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, mediante a
identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e de outros problemas de
natureza física, psicossocial e espiritual” (WHO, 2012). Dispor de instrumentos
disponíveis e culturalmente adequados para a avaliação dos pacientes em Cuidados
Paliativos favorece a oferta de cuidado oportuno, com vistas à obtenção de ganhos
na qualidade de vida do paciente. Nesse contexto, instrumentos destinados à
avaliação de sintomas, de performance e de qualidade de vida tem sido foco de
398
diferentes estudos, com vistas ao potencial para direcionar o cuidado do paciente,
suporte à família, assim como as políticas públicas em saúde (Freire, Costa, Lima &
Sawada, 2018).

Objetivos
Diante da necessidade de exame e reflexão sobre processos de adaptação
transcultural de instrumentos avaliativos utilizados no contexto de Cuidados Paliativos,
este estudo teve por objetivo analisar estratégias metodológicas e cuidados técnicos
para sua implementação à luz das diretrizes propostas pela International Test
Commission (ITC).

Método
A fim de explorar a temática na literatura científica recente em Cuidados
Paliativos, foi realizada uma revisão de artigos publicados nesse campo, de forma a
possibilitar a análise crítica quanto aos caminhos metodológicos escolhidos para o
processo de adaptação transcultural dos instrumentos. A partir da referida questão
norteadora, foi realizada a busca eletrônica de publicações nas bases indexadoras
PubMed, BVS e SciELO, por meio do cruzamento das palavras-chave/descritores:
cross-cultural adaptation, translation, validation, palliative care, end-of-life, sem limitar
os índices ou campos de busca.
Foram definidos como critérios de inclusão: (1) publicação em periódicos
indexados nas bases selecionadas; (2) artigos redigidos em português, espanhol ou
inglês; (3) publicados entre 2006 e 2016; (4) estudos sobre a adaptação de
instrumentos avaliativos para a cultura brasileira no campo de Cuidados Paliativos.
Foram definidos como critérios de exclusão: (1) estudos de adaptação de
instrumentos para outras culturas; (2) artigos sobre o processo de validação ou
normatização de instrumentos, que não incluíssem as etapas iniciais da adaptação
transcultural. Os artigos repetidos em mais de uma base foram computados uma única
vez. Em seguida, foi realizada a leitura dos resumos por dois avaliadores
independentes, atenta aos critérios de inclusão e exclusão, a fim de selecionar os
artigos para exame na íntegra, segundo diretrizes PRISMA. A partir da leitura integral
dos textos, foi definida a amostra apresentada nesta análise crítica.

399
Resultados e Discussão
A revisão da literatura científica possibilitou o acesso a 906 artigos na base
PubMed, 343 estudos na BVS e 12 estudos na SciELO. A partir da leitura atenta dos
resumos e artigos recuperados na íntegra, foram aplicados os critérios de inclusão e
exclusão. A seleção final foi composta por sete publicações (Figura 1).

PubMed BVS SciELO

(n = 906) (n = 343) (n = 12)

Artigos encontrados, excluindo duplicados


Exclusões: trabalhos
(n = 893) publicados antes de 2006,
realizados em outras culturas;
fora do contexto de cuidados
Resumos analisados paliativos; fora do contexto de
adaptação transcultural de
(n = 25)
instrumentos.

Artigos acessados na íntegra


Exclusão: estudo de validação
(n = 8) de instrumentos

Artigos incluídos na síntese qualitativa

(n = 7)

Figura 1: Fluxograma de revisão de literatura e seleção dos artigos localizados,


segundo as diretrizes PRISMA.

Os estudos selecionados foram publicados a partir de 2012. Esse dado sugere


recente crescimento no interesse pela adaptação de instrumentos no contexto dos
Cuidados Paliativos (Tabela 1).
Olivas, Silva e Santos (2012) realizaram a adaptação transcultural do Inventário
de Orientação Multidimensional em Relação ao Morrer e à Morte (IMMOR) para a
realidade brasileira. Utilizaram como base para o processo de adaptação transcultural
as diretrizes de Guillemin et al. (1995) e Gutierrez et al. (2000), incluindo a tradução
do instrumento de sua língua original para a língua portuguesa, a avaliação das
400
equivalências semântica e idiomática entre a versão original e a versão traduzida, a
avaliação das equivalências conceitual e cultural da segunda versão originada das
equivalências semântica e idiomática, seguidas da realização do grupo focal com
pacientes e da back-translation para discussão com o autor do instrumento e definição
da versão final. O artigo não incluiu informações relativas às características
psicométricas da versão final do instrumento, importante requisito para sua validação
ao contexto brasileiro.
Trotte, Lima, Pena, Ferreira e Caldas (2014) validaram a escala End of life
Comfort Questionnaire-Patient para o português do Brasil. Utilizaram a abordagem
universalista de Herdman et al. (1998) para guiar o processo de adaptação
transcultural, incluindo: tradução, síntese, retrotradução, revisão por comitê de
especialistas, pré-teste e verificação das propriedades psicométricas. A avaliação da
confiabilidade foi realizada por meio de teste-reteste e concordância entre aplicadores.
Os pesquisadores propuseram a redução da escala Likert de seis para cinco pontos,
de modo a favorecer a compreensão dos itens pela nova população. Além disso,
apesar de se caracterizar como instrumento autoaplicável, os autores optaram por
auxiliar os respondentes no registro das respostas aos itens, considerando as
características da população-alvo. Tais escolhas metodológicas devem ser avaliadas
com cautela (Cassepp-Borges, Balbinotti, & Teodoro, 2010) e sinalizadas nas
instruções para aplicação, considerando o impacto da redução do número de pontos
da escala e do auxílio do pesquisador nas respostas dos participantes aos itens
(aplicação assistida).
Paiva, Carvalho, Kolcaba e Paiva (2015) se interessaram em estudar a questão
do conforto dos cuidadores de pacientes oncológicos em Cuidados Paliativos.
Realizaram a adaptação transcultural do questionário Holistic Comfort Questionnaire-
Caregiver previamente traduzido para o português. Apesar de descreverem as etapas
que foram rigorosamente seguidas, não consta a diretriz técnica utilizada. O estudo
também avaliou propriedades psicométricas do instrumento, destacando como
limitação a inexistência de outros instrumentos avaliativos desse mesmo construto.
Os autores optaram por realizar a comparação com instrumento de medida de
qualidade de vida, refletindo sobre similaridades e diferenças entre essas dimensões
conceituais.
A avaliação de qualidade de vida de pacientes em Cuidados Paliativos foi o
foco da investigação realizada por Nunes (2014), que adaptou o instrumento
401
European Organization for Research and Treatment of Cancer Quality of Life
Questionnaire Core 15 PAL (EORTC QLQ-C15-PAL) para o contexto brasileiro. As
etapas de testagem da validade e do processo de adaptação transcultural do
instrumento foram descritas de forma cuidadosa, porém sem explicitar a referência
utilizada para nortear o percurso metodológico.
Diante da importância de avaliar sintomas para adequado controle em
Cuidados Paliativos, três estudos estudaram essa temática. Monteiro, Almeida e
Kruse (2013) realizaram a tradução e adaptação cultural do instrumento Edmonton
Symptom Assessment System para a realidade do Brasil. Os autores seguiram as
orientações de Beaton et al. (2000) para a realização da adaptação transcultural. O
instrumento foi aplicado em uma amostra de pacientes, com avaliação da validade
convergente, fidedignidade e consistência interna, sendo destacada a necessidade de
um estudo mais aprofundado das propriedades psicométricas do instrumento.
Spexoto, Serrano, Halliday, Maroco e Campos (2016) realizaram a adaptação
transcultural do instrumento Cancer Appetite and Symptom Questionnaire para o
idioma português e avaliaram suas propriedades psicométricas em uma amostra de
pacientes brasileiros com câncer. Utilizaram as diretrizes técnicas propostas por
Guillemin et al. (1993) e Beaton et al. (2000) para guiar a adaptação transcultural,
somados às orientações de Lawshe (1975) para a validação de conteúdo. A escala
avaliativa de dor foi modificada para seis pontos para resposta, de modo a identificar
pacientes sem dor, sem alteração semelhante na escala original. Seria importante o
estudo aprofundado das modificações sugeridas, de modo a examinar o impacto do
número de pontos da escala nas respostas dos participantes a fim de permitir
comparações transculturais dos achados. O estudo foi dividido em três etapas: Fase
1 (Adaptação Transcultural), Fase 2 (Validade de Conteúdo) e Fase 3 (Avaliação das
Características Psicométricas). Os resultados foram detalhados, bem como alguns
aspectos relacionados à sensibilidade psicométrica do instrumento, além de discorrer
sobre diferentes evidências de validade examinadas (fatorial, de estrutura interna e
convergente).
Por fim, tem-se a adaptação da escala Pain Quality Assessment Scale (PQAS)
para o contexto do Brasil, o que foi objetivo de Carvalho, Garcia, Silva e Ribeiro (2016).
Utilizaram como referência para a realização da adaptação transcultural os estudos
de Beaton et al. (2000) e Fumimoto et al. (2001), em consonância com as
recomendações do grupo responsável pelo instrumento (MAPI Research).

402
Pelo conjunto de achados, nota-se que a maioria dos estudos se baseou em
referências técnicas que oferecem uma leitura do processo de adaptação de
instrumentos avaliativos aplicada aos contextos de saúde (Beaton et al., 2000;
Guillemin et al., 1993), sem mencionar diretamente as diretrizes do ITC. No que se
refere a essas referências técnico-científicas internacionalmente elaboradas, poucos
estudos explicitaram preocupação inicial com a categoria “Contexto” e a equivalência
de construto a ser avaliado entre as culturas de origem e de interesse, caracterizando
superficialmente o contexto cultural. Já quanto à categoria “Desenvolvimento do
Instrumento e Adaptação”, os estudos analisados mostraram preocupação com a
descrição das etapas técnicas seguidas, atentos à adequação linguística e cultural
necessária no processo de adaptação. As características psicométricas dos
instrumentos também foram foco de atenção da maioria dos artigos. Quando não
apresentadas, foi frequente a indicação da necessidade de serem investigadas em
estudos futuros. Quanto à “Administração” do instrumento, os artigos descreveram o
procedimento realizado, destacando em alguns casos o treinamento realizado e as
modificações utilizadas na aplicação da versão original, com vistas à adequação para
a realidade da cultura de interesse. Cabe ressaltar a orientação da ITC sobre a
importância de minimizar alterações na administração e fornecer minuciosa descrição
das instruções de aplicação dos instrumentos, com vistas à preservação da sua
qualidade informativa.
Os artigos analisados demonstraram cuidado na apresentação das alterações
realizadas para a adaptação dos instrumentos e, em sua maioria, buscaram
evidências de validade e fidedignidade. Apesar de não ser o objetivo das pesquisas
selecionadas, considera-se que seria importante oferecer mais informações sobre o
emprego dos instrumentos avaliativos em estudos transculturais e o cuidado com o
manejo de questões não-equivalentes ou modificadas entre as versões.

Conclusões
Com o intuito de conhecer as estratégias metodológicas utilizadas para
adaptação de instrumentos avaliativos utilizados no contexto de Cuidados Paliativos,
este estudo sintetizou o conhecimento produzido nos últimos anos a partir de uma
revisão da literatura científica do campo. Os artigos selecionados para a análise
oferecem reflexões sobre aspectos importantes a serem observados para o cuidado

403
em Cuidados Paliativos, incluindo diferentes instrumentos e ações que visam à
preservação da qualidade de vida e cuidado emocional do paciente e sua família.
Como contribuições para a área de estudo, esta revisão permitiu explorar como
os pesquisadores da área estão direcionando seus esforços para assegurar que
sejam visibilizadas as etapas metodológicas em observância às diretrizes
internacionais preconizadas para processos de elaboração e adaptação transcultural
de instrumentos de avaliação psicológica, evidenciando as diversas possibilidades
metodológicas, com seus alcances e limitações. A partir dos estudos analisados,
concluiu-se que há baixa utilização do guia de referência internacional na área (ITC),
o que sugere a necessidade de maior sistematização metodológica e incremento dos
cuidados na apresentação dos resultados das pesquisas realizadas.

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406
35- VIVENCIANDO O CÂNCER DOS SEUS MARIDOS: RELATOS DAS ESPOSAS

Breno César de Almeida da Silva


Érika Arantes de Oliveira Cardoso
Manoel Antônio dos Santos
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – FFCLRP
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto – SP
Apoio: CAPES (processo número 1810434)

Resumo: A doença oncológica afeta toda a família, em especial ao membro cuidador,


na maioria das vezes a mulher. O objetivo desse estudo foi compreender as vivências
de esposas cujos maridos estão em tratamento de um câncer hematológico. Foi
realizado um estudo qualitativo, transversal, com seis esposas, com idade entre 25 e
57 anos. Utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada e um formulário
sociodemográfico. Constatou-se que o diagnóstico de provocou inúmeros lutos
sentimentos ambivalentes, e necessidade de rearranjos familiares. A fé foi a fonte
principal de apoio no enfrentamento e na aceitação da doença. Conclui-se que o
adoecimento do marido desencadeou a necessidade de aprender novas habilidades,
e que apesar do sofrimento foi oportunidade de ressignificação da vida.

Palavras-chave: Câncer, família, cônjuges, luto

Introdução

Ao receber o diagnóstico de uma doença de prognóstico tão restrito como o


câncer, tanto o indivíduo como a sua família vivencia uma sensação de “sentença de
morte” que interrompe a linha de continuidade da saúde, podendo provocar sofrimento
psíquico. Esse sofrimento está relacionado a perdas de sonhos e planos para o futuro
e à quebra do pensamento de que doenças fatais só ocorrem com os outros (Cardoso
& Santos, 2013).

Ao receberem o diagnóstico, os familiares precisam superar pelo menos parte


das emoções negativas que surgem e reunir forças para reorganizar seu cotidiano e
estabelecer novos caminhos para conduzir suas vidas dali por diante, o que exige

407
aprender novas habilidades, assimilar conhecimentos médicos e aprender a conviver
com as limitações impostas pela doença no ente querido (Cardoso, Santos,
Mastropietro, & Voltarelli, 2010).

Segundo Fonseca (2014), numa família em que um de seus integrantes recebe


o diagnóstico de uma doença crônica ou terminal, há diversas vivências de processos
de lutos: o luto pessoal de cada indivíduo, o luto pela mudança da dinâmica familiar,
o luto social, o luto religioso, e por último o luto pela futura morte concreta. Porém,
levando-se em conta que é um processo que ocorre enquanto a pessoa está viva,
passa-se a ser denominado de luto antecipatório.

Encontra-se na literatura que os cônjuges sofrem mais do que os outros


familiares por sentirem-se mais próximos do doente (Johasson, Sundh, Wijk, &
Grimby, 2012), além de apresentarem maiores chances de desenvolver respostas ao
luto antecipatório devido à maior consciência da morte, aos níveis de sofrimento do
parceiro(a) e às múltiplas perdas relacionadas às tarefas de cuidador, como a
liberdade, a relação com o parceiro(a), papéis e envolvimento sociais, projetos
pessoais e ambições (Areia, Fonseca, Major, & Relvas, 2018).

Posto que a prática de cuidar surge no âmbito domiciliário, no qual a família é


reconhecida como fonte de cuidado para os membros dependentes, a figura feminina
é eleita para esse cuidado devido a parâmetros culturais enraizados, que definem o
cuidar como uma tarefa feminina natural. Desse modo, tomar conta, tratar para
garantir ou compensar as funções vitais de vida e morte, a mulher cuidadora enfrenta
dificuldades financeiras, exclusão social, isolamento afetivo e depressão (Sanchez,
Ferreira, Dupas, & Costa, 2010).

Justificativa

Uma vez em que a prática clínica comprova o impacto emocional do


adoecimento do parceiro e as mudanças decorrentes em diversas esferas da vida no
círculo familiar, muitas vezes com sobrecarga de funções para a mulher, torna-se
necessário conhecer de forma mais profunda essa realidade e, assim, possibilitar
pensar em estratégias efetivas de intervenções da equipe multidisciplinar.

408
Objetivo

Esse estudo teve por objetivo compreender as vivências de esposas cujos


maridos estão em tratamento de um câncer hematológico.

Método

Trata-se de um estudo qualitativo, transversal, descritivo-exploratório. Como


referencial metodológico foi utilizado o método clínico-qualitativo. A amostra de
conveniência foi composta por seis esposas, com idade e 25 e 57 anos, cujos maridos
fossem pacientes internados na Enfermaria de Hematologia de um hospital
universitário do interior de São Paulo. Foram incluídas na amostra esposas maiores
de 18 anos, que o marido tivesse o diagnóstico de uma doença potencialmente fatal,
e que fossem acompanhantes durante o período de internação.

Para a coleta de dados foi utilizado de um questionário sóciodemográfico e um


roteiro de entrevista semiestruturado, pautado em um roteiro temático e alicerçado
nas narrativas acerca do processo de investigação (pré-diagnóstico) e descoberta da
doença do marido, nas mudanças ocorridas na vida após o diagnóstico e durante o
tratamento oncológico, nos rearranjos familiares que foram necessários, vivência do
luto antecipatório, desejos e planos futuros.

Posteriormente, os dados foram submetidos à análise de conteúdo temática,


segundo Braun e Clarke (2006). Por meio desse procedimento foram destacados os
conteúdos relacionados à vivência do câncer nos maridos das participantes.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FFCLRP-USP, e


tomou-se o cuidado de esclarecer antecipadamente os objetivos do trabalho e as
condições de sigilo profissional para cada participante, sendo que a pesquisa só foi
realizada com aquelas que concordaram abertamente com o trabalho e assinaram o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a sua realização.

409
Resultados e Discussão

A partir do corpus de análise foram elencadas três categorias: 1) Impacto do


diagnóstico e mudanças da rotina, 2) Fé: principal fonte de apoio, e 3) Perspectivas e
aprendizados com o adoecimento.

1) Impacto do diagnóstico e mudanças da rotina

Para as participantes, receber o diagnóstico de seus maridos trouxe


sentimentos de tristeza e questionamentos. A presença de choro foi unânime para
todas elas, e o receio de como seria suas vidas caso o cônjuge não sobrevivesse à
doença/tratamento. Tanto para familiares e pacientes, receber o diagnóstico de um
câncer gera um susto, passando por diversos estágios que envolvem o momento
inicial de choque e negação, a raiva, ressentimento, culpa e depressão (Blanc,
Silveira, & Pinto, 2016). A depressão neste momento pode se diferenciar em uma
primeira fase, que faz referência à perda passada (principalmente da saúde, e do
papel social), e a segunda fase, que remete às perdas futuras. Nesse momento que
há os sentimentos de tristeza, pesar e solidão (Kübler-Ross, 2000).

As famílias se deparam com estigmas e mitos da doença que permeiam o


imaginário social, dificultando a aceitação do câncer (Blanc et al., 2016). A existência
de uma relação saudável entre profissionais de saúde, usuários e famílias pode ser
benéfica no enfretamento da doença e de suas consequências, de modo a minimizar
os anseios e medos que, inevitavelmente, permeiam esse contexto. É necessário
profissionais de saúde capacitados e aptos a identificar as reais necessidades dos
usuários, e que entendam o ambiente familiar como parte do cuidado (Rodrigues,
Sobrinho, Toledo, Zerbetto, & Ferreira, 2013). No entanto, nos relatos as participantes
enfatizaram esse momento de extrema delicadeza e sofrimento que elas passaram
ao receber o diagnóstico, e em alguns casos essa informação não foi passada da
melhor forma possível. Ao mesmo tempo, para algumas participantes que tinham
atuação no campo da saúde, estar acompanhadas de seus maridos tornava a vivência
ainda mais agravante.

Percebeu-se nas falas das participantes a presença do receio de perder seus


maridos, e de como poderia ser suas vidas caso a morte concreta ocorresse. Como

410
encontrado na literatura, a antecipação da perda é essencial para que os familiares
se preparem para a morte do seu ente querido, facilitando a adaptação à morte
quando esta efetivamente ocorrer (Castro, 2016). Todas as participantes vivenciavam
um luto antecipatório, pois conviviam com a doença de seus maridos, e tinham que
dar conta da esperança da melhora deles, bem como da possibilidade de morte.
Nesse cenário, diversas mudanças são necessárias de modo à família adaptar-se à
nova realidade, sendo que antigos papeis e funções devem ser rearranjados. As
alterações na dinâmica familiar iniciam-se na fase pré-diagnóstica, quando há o início
dos sintomas, perpassando por todo o adoecimento e podem continuar após a morte
ou cura da pessoa doente (Melo et al. 2012).

Esposas de pacientes com câncer enfrentam diversas demandas, sejam


físicas, sociais e emocionais, sendo que as primeiras podem ir de aumento da fadiga
à exaustão (Sanchez et al., 2010). Para algumas participantes do estudo, o cansaço
físico foi predominante, posto que elas tinham que administrar os cuidados não só da
casa, trabalho (quando possuíam), filhos, e também agora do marido. Entretanto, nem
todas as participantes relataram sentir cansaço com sua nova rotina, diferente do que
se encontra na literatura. Para algumas, essa nova tarefa era vista como prazerosa,
mesmo que tivesse o cansaço associado.

Dentro das inúmeras tarefas que possuíam, as participantes alegaram que


tinham um papel importante em sua família, e que necessitavam manter-se forte
perante o adoecimento. Como encontrado na literatura, o movimento dos cônjuges de
reter seus sentimentos e necessidades, a fim de postergar o sofrimento
emocional/físico e manter-se forte frente ao parceiro(a) para lidar com o papel de
cuidador, atribuindo prioridade às necessidades do marido/esposa (Sutherland, 2009).

Algumas participantes relataram que essa vivência trouxe maior proximidade e


intimidade para o casal, o que pode ser relacionado a passarem mais tempo junto de
seus maridos. Todas alegaram que tinham uma boa relação antes do adoecimento. A
qualidade da relação conjugal estabelecida previamente à doença influencia na
manutenção ou não pós o acometimento da mesma (Picheti, Castro, & Falcke, 2014).
Deste modo, é possível questionar se havia realmente uma relação satisfatória antes
da doença, ou se isso veio à tona como uma maneira de protegerem a si e os
cônjuges, posto a necessidade de se unir para enfrentar a doença.

411
2) Fé: principal fonte de apoio

Em praticamente todas as participantes do estudo a fé, mais especificamente


a espiritualidade, foi colocada como a principal fonte de apoio para que elas
conseguissem enfrentar o adoecimento do marido e sentir conforto. A submissão a
Deus sugere que este possui um domínio na vida das pessoas, e desse modo o acaso
é explicado, e situações imprevisíveis, como a doença, tornam-se previstos e a
segurança transmitida pelo divino ocupa o lugar da fatalidade (Reis, Faria, & Quintana,
2017).

Ao mesmo tempo em que a fé se apresenta como um suporte para as


participantes, ela também trouxe contradições. Como visto na literatura, mesmo
devotos a Deus, os indivíduos acabam confrontando medos e ansiedades que nem
sua fé pode proteger, o que torna Deus insuficiente para salvá-los da dor e da morte,
uma vez que evidencia a relevância e avanço da medicina (Reis et al., 2017). Pode-
se deduzir, nesse caso, que há um discurso de negação que é sustentado pela fé,
necessário para o momento, mas que não é constante, abrindo espaço para conversar
sobre a realidade do estado do marido e, ao mesmo tempo, demonstrar a
incapacidade de lidar realisticamente com o assunto.

Todas as participantes alegaram possuir uma religião, porém esteve presente


em alguns relatos a distinção entre espiritualidade e religiosidade. Como dito na
literatura, a religião/religiosidade envolve um conjunto de crenças, linguagem e
práticas institucionalizadas que constituem em uma tradição acumulada, com
símbolos, rituais, cerimônias e explicações próprias acerca da vida e da morte. Por
outro lado, a espiritualidade é universal, não se restringindo a uma religião
propriamente dita, cultura ou determinado grupo de pessoas, e envolve valores
pessoais e íntimos, fundamentando-se naquilo que dá sentido à vida e proporciona
crescimento pessoal e a reflexão acerca das experiências vividas (Benites, Nemes, &
Santos, 2017).

Mesmo com as contradições presentes nos discursos, para as participantes a


fé em Deus trazia um sentimento de gratidão frente ao adoecimento de seus maridos,
e interpretavam a situação como uma oportunidade de crescimento. Como encontrado
na literatura, a doença abre uma fissura no universo simbólico, e clama por
ressignificação, de modo que o sagrado aparece como um recurso que fornece a

412
possibilidade de simbolizar e integrar vivências, para que assim o indivíduo transforme
algo perigoso e ameaçador em algo palpável, que se pode recorrer, e assim passível
de modificação e elaboração (Reis et al., 2017).

3) Perspectivas e aprendizados com o adoecimento

Nos discursos de praticamente todas as participantes esteve presente o relato


de aprendizados referentes à situação de acompanhantes/adoecimento de seus
maridos, aprendizados esses voltados, em geral, para a melhora do modo de pensar
e agir. No que concerne as perspectivas para o futuro, para algumas participantes
consistiu em retomar à vida que tinham antes do adoecimento de seus maridos, como
também o desejo de realizar alguns sonhos pessoais, como uma graduação, ou mudar
de emprego.

Os desejos e planos para o futuro que as participantes relataram corroboram


com os estudos que os colocam como um indício de qualidade de sobrevivência, já
que essas mulheres puderam sair de uma condição estagnada e ir além do presente
opressivo, e projetando, elaborando e reelaboram seus futuros e projetos de vida
(Cardoso & Santos, 2013). O desconhecido relacionado à perspectiva de futuro nesse
cenário pode trazer angústia ao cuidador, posto que perde a função que o identificava
no mundo. Deste modo, este sujeito inicia uma busca por novos sentidos para sua
existência, de modo a descobrir novas potencialidades e possibilidades (Lima &
Machado, 2018). Os aprendizados que as esposas relataram adquirir dessa
experiência de conviver com um câncer hematológico em seus maridos retrataram o
constante movimento que suas vidas tomaram, bem como suas prioridades e
conceitos foram modificados.

Considerações Finais

Com o presente estudo, é possível fazer uma reflexão acerca das vivências e
modificações que o diagnóstico de uma doença potencialmente fatal como o câncer
provocou na vida das participantes. Receber essa notícia evocou inúmeros lutos,
sentimentos ambivalentes, alterações na dinâmica familiar, e a necessidade de
aprender novas habilidades e assumir novos papeis sociais. A necessidade de se

413
manterem fortes perante seus maridos foi um movimento de conseguir auxiliá-los
também a enfrentar a doença.

A fé foi a principal fonte de apoio elegida pelas participantes, a qual elas se


apegavam de modo a dar sentido para o adoecimento de seus maridos, e assim
buscar conforto e ressignificar essa vivência. Entretanto, a fé não foi totalmente útil
para apaziguar todo o sofrimento que estava presente. O desejo de retomar à vida
antes do adoecimento e planos para o futuro foram estímulos para conseguir enfrentar
a situação, e aprendizados foram possíveis, de modo a buscarem uma evolução
enquanto indivíduos. Ao final, concluiu-se que o adoecimento do marido desencadeou
a necessidade de aprender novas habilidades, e que apesar do sofrimento foi uma
oportunidade de ressignificação da vida.

Outros estudos são necessários para compreender mais profundamente a


vivência de esposas que estejam convivendo com um câncer em seus maridos em
diferentes contextos. O estudo também contribui para que as equipes
multiprofissionais possam ter um olhar empático para essas mulheres, dando atenção
e apoio às suas necessidades emocionais, trazendo esperança, dentro do possível, e
consciência quanto ao prognóstico, de modo claro e objetivo, condizente com a
capacidade cognitiva e emocional que possuem.

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416
36- MAL-ESTAR, VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO: ALTERIDADE E
MEDIAÇÃO NA RELAÇÃO TERAPEUTA-PACIENTE

Rinaldo Miorim5

Resumo: Este trabalho traz uma reflexão sobre a violência social e a crueldade como
elementos das linhas de força dos sofrimentos presentes no mal-estar
contemporâneo. Teve como ponto de partida as percepções do autor em seu trabalho
no campo da saúde mental na atenção primária em saúde, tendo como hipótese que
o contato com os traumas dos pacientes estabelece um deslocamento, que como
experiência de alteridade, aponta para necessidade de se encarar os aspectos
destrutivos dos comportamentos humanos em sua escala social. Segue o texto, a
partir do referencial da psicanálise, através de um percurso onde são feitas
considerações sobre o sujeito da modernidade avançada e da importância das
mediações simbólicas e da alteridade como resgate de uma ética que sirva de
resposta aos atuais modos de lidar com o desamparo, em contraposição a escalada
da violência, destruição e crueldade.

Palavras-Chave: violência, sofrimento, subjetividade, psicoterapia.

INTRODUÇÃO E OBJETIVO

Neste breve ensaio é proposta uma reflexão sobre meu ofício em saúde mental
e um olhar sobre a subjetividade contemporânea, especificamente focando a violência
e a agressividade como ações que se destacam nos sofrimentos presentes no mal-
estar da atualidade. Abordar tais questões envolve uma perspectiva sobre o
adensamento das condições psíquicas e os atravessamentos da clínica com o
universo psicossocial. Com relação as atuais formas de sofrimento psíquico, existe
um entrelaçamento de aspectos, que incluem os psicopatológicos e o campo
intersubjetivo, as circunstâncias que envolvem o estresse psicossocial, os problemas

5
Doutor em Psicologia Social e Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo
IPUSP, possui Especialização em Saúde Coletiva pela FMUSP. Psicólogo com atuação em Saúde
Mental e pesquisador ligado ao Grupo de Pesquisa em Mitopoética da Cidade do Laboratório de
Psicologia Social e Intervenção do Departamento de Psicologia Social do IPUSP.

417
socioeconômicos, a crise habitacional, o desemprego e as difíceis estratégias de
sobrevivência num mundo em que o mercado exige uma tal flexibilidade pessoal
capaz de minar qualquer forma de caráter. Mas pensemos também no complexo
circuito resultante da violência urbana, dos modos agressivos de se relacionar, como
os mal tratos, o abandono, a desconsideração pelo outro e os abusos que denunciam
a obscuridade e desumanidade de nosso contexto, inclusive quanto aos impulsos
destrutivos e cruéis que circulam em um campo social e intersubjetivo mais amplo
calcado em nossa verticalidade intrapsíquica.

Meu relato tem como ponto de referência a atuação em saúde pública nas
Unidades Básicas de Saúde da periferia da Grande São Paulo. Como psicólogo que
trabalha no campo da saúde mental e da saúde coletiva, acabei sendo sensibilizado
pelas vicissitudes do sofrimento psíquico através de um contato do tipo linha de frente,
de alguém que percorre as trincheiras dos desassossegos, das dores e sofrimentos
que envolvem os processos de saúde-doença como testemunha próxima dos
desconfortos e agonias vividas em nosso meio urbano periférico. Dentro de uma
perspectiva sobre as condições presentes na atualidade do mal-estar que envolvem
nossa cultura e civilização fui tendo a experiência de contato com os pacientes, em
suas formas de enfrentamento e de regulação psíquica, seja em processos de
avaliação ou de psicoterapia, individual ou em grupo, dentro de uma prática que
permitiu um encontro com as diversas condições enfrentadas pelo sujeito
contemporâneo, habitante principalmente das regiões suburbanas.

O objetivo desta apresentação é argumentar sobre a possibilidade do processo


relacional e de alteridade que envolve a mediação entre terapeuta e paciente, dentro
do campo das práticas dos equipamentos de saúde mental em atenção básica, servir
de abertura para pensar criticamente sobre a violência social como um aspecto amplo
do mal-estar da atualidade. Parto da hipótese que a transformação oferecida pela
escuta terapêutica da dor e do trauma do paciente em sofrimento verbalizável, implica
no encontro de alteridade onde o terapeuta se deixa traumatizar, no sentido de um
desalojamento, permitindo-se interpelar à crueldade do ato agressivo e seus aspectos
destrutivos numa escala coletiva. Não obstante, esse desalojamento ofertado pelo
outro, também conduz a um ponto de inflexão para pensar alternativas quanto ao
estado de barbárie civilizatória presente em nossa cultura. Assim, será desenvolvida
uma breve discussão teórica sobre o entrelaçamento do comportamento violento com

418
o mal-estar contemporâneo, mas também os modos de esperançar uma revitalização
do desejo como forma de afirmação vida, com seus fatos e fados, pois se a
desumanização opera no sentido de uma redução do desejo ao trauma, o encontro
terapêutico ao permitir a transformação da dor em sofrimento, operaria no campo da
alteridade e da possibilidade do resgate de uma ética de respeito à vida.

RELATO DA EXPERIÊNCIA

Em meu trabalho dentro da atenção primária em saúde se destacou a prática


do cuidado em saúde mental, como escuta ativa e especializada de porta de entrada,
que envolve receber a demanda, cujas queixas, manifestas ou latentes de sofrimento
psíquico, são atravessadas por outros problemas de saúde, ou mesmo, com muita
frequência inclusive, permeadas por dificuldades do ponto de vista social, da perda de
referenciais de apoio e de formas de desenraizamento. Fazendo o acompanhamento
terapêutico, por vezes no atendimento individual, porém com mais frequência em
intervenções grupais, fui ultrapassando as queixas das depressões, das
somatizações, dos transtornos de ansiedade e de pânico, da insônia, da dependência
química, da desorganização psicótica e tendo cuidado para com os relatos da
violência e da agressão que chegam ao espaço de escuta. Violência urbana,
agressões familiares, situações de abuso sexual, queixas de assédio moral também
fazem parte do composto que envolve o complexo mosaico da dos sofrimentos da
vida cotidiana. Os relatos podem trazer situações de agressão recentes ou o que é
mais comum, ela por vezes surge no meio de uma história, como uma reminiscência
no passado, podendo até ter ocorrido em local distante, porém ainda resiste e subsiste
como trauma ou como uma lacuna persistente em meio aos conflitos e dores de uma
subjetividade que demanda por assistência e que, com muita frequência, já vem ao
primeiro atendimento fazendo uso de psicofármacos na busca de um alívio dos
sintomas. Remédios que não apagam as lembranças do pesadelo e nem cicatrizam
as fundas feridas, somente tamponam a dor, que ainda pulsa e insiste retornar com
suas vozes e com imagens deslocadas na forma dos sintomas psíquicos ou no seu
deslocamento para sintomas do corpo.

Como interessado nas formas e nas transformações do mal-estar


contemporâneo, eu prefiro olhar para toda a sua complexidade sem simplificar as suas

419
manifestações, investigando, tentando habitar seus aspectos e interstícios. Sobre a
violência, me chama a atenção principalmente o sofrimento e o ajuste psíquico, as
adaptações presentes na vida subjetiva e de seus modos de enfrentamento, mas
também, ao cuidar das suas dores, das ansiedades e de outros aspectos da sua
expressão sintomática, também experimento e observo o impacto das mesmas sobre
os profissionais da assistência. Lidar com a psicopatologia é difícil, escutar a dor
resultante da violência pode ser mais impactante. Mas por quê? Talvez pelo nosso
sentimento de revolta e indignação. Mas também ainda creio que fazer a escuta da
violência, seja a infantil, a que acomete as mulheres, das vítimas das variadas formas
de preconceito, da resultante da crescente criminalidade presente no meio urbano,
envolve termos que lidar com a ambivalência entre o civilizado e o bárbaro, com a
crueldade e destrutividade, que inclusive nos habita, que, por mais que tentemos nos
defender ou exorcizar se faz cada vez mais presente em nosso cotidiano, marcado
por relações de abuso, dominação e intolerância ao outro e ao diferente. É quando
parece entrarmos em contato com aqueles aspectos inumanos que nos excedem e
atormentam de forma extrema e paroxística, aspectos que extrapolam a clínica
individual e se espraiam pela esfera do coletivo e do psicossocial.

Penso que as amostras de crueldade expressas nas marcas das cicatrizes dos
agredidos que nos procuram na clínica ultrapassam o individual e trazem à superfície
os vapores perversos que nutrem toxicamente nossas relações coletivas. Mas a aura
de crueldade, do sadismo presente nos atos violentos e que deixa marcas profundas
em suas vítimas, acaba como que permeando o campo intersubjetivo, podendo ser
sentido empaticamente, percebido e vivenciado pelos técnicos em saúde que se
inclinam a cuidar do sofrimento alheio. Seria muito difícil, eu imagino, para aquele que
faz uma escuta qualificada destas vivências não se deixar afetar ou traumatizar pela
alteridade do encontro, vendo através da transmutação da dor (enclausurada no corpo
e em si mesmo) em sofrimento (compartilhada com o outro e articulada pela
linguagem), uma imagem de fundo que apresenta a crueldade que viraliza em nossos
grandes aglomerados humanos, como em nossas metrópoles aceleradas e
indiferentes. Uma vez que, o contato com as vítimas, prosseguindo para além das
queixas, dos sintomas e da angústia do paciente, acaba por abrir uma ponte para
enxergarmos a face cruel ou mesmo perversa daquele que, fazendo do gozo uma

420
forma descarga para suas excitações e impulsos destrutivos, feriu, agrediu ou
assassinou.

Isso tudo levantaria questões a respeito do psiquismo do cuidador, daquele que


oferece continência, da situação de alteridade configurada como um campo
intersubjetivo ao permitir ao sujeito ferido um espaço potencial de cura ou
transformação, um ambiente de ajuda e suporte. E o cuidador ao sofrer junto, ao se
deixar desalojar, abre uma janela que se descortina para uma sociedade desigual e
desumana, uma cultura enferma e carente de formas mais amplas de cuidado, cujas
estratégias de promoção e de prevenção em saúde por vezes ainda são insuficientes
diante de um ethos fragilizado, da homogeneização coletiva e no ataque ao outro.

Por um lado, a crueldade e a violência, a atuação desumana e o desrespeito,


a aversão às mediações e a alteridade, a paranoia, a anulação do outro como um
mecanismo de alívio patológico das angústias, por outro lado uma reação que surge
naquele que foi vítima, que além de um grito de socorro expresso nas variedades de
sintomas psíquicos e somáticos, tem no seu gesto e naquele que o acolhe a busca de
um espaço sereno, de cuidado e recuperação, transformando suas feridas em olhos
que denunciam a necessidade de uma mudança no campo dos valores, para o retorno
à condição humana e sensível, da necessidade de compreender que a relação
violenta entre as pessoas não é distante das relações destrutivas com o nosso mundo.
Atacar o outro não está distante de destruir nossas paisagens e nossos ambientes de
convívio, nosso ethos. De onde poderá nascer uma lição, do imperativo de se retomar
uma relação amorosa com a vida e com o mundo, Quando urge a necessidade de
uma experiência, não diria que sagrada, talvez fosse melhor dizer poética, criativa,
mas que inclui a recuperação de um sentimento de encontro frente as diversas formas
de vida, indo além da espécie humana e incluindo um cuidado com o nosso meio
ambiente, o respeito aos ecossistemas, uma atenção maior para com nossas cidades
e nossas paisagens, o convívio e o respeito a diversidade natural, cultural e subjetiva.
Diante das dificuldades e confusões éticas e morais presentes no relativismo de
valores das mentes contemporâneas, creio que o balizador fundamental para
tentarmos lidar com o bem e com o mal, só poderia ser o valor da vida e o resgate da
alteridade como fundamento da ética. Pois a crueldade e as condutas perversas,
fetichistas e de consumismo predatório, de dominação e ataque, de romper a relação
com a vida e com o mundo, da perda dos sentidos e significados, se fundamentam

421
numa negação da potência de vida. Nesse sentido reflito sobre como os
comportamentos violentos, de dominação e de abuso, que ao se difundirem pelo
microcosmo das relações interpessoais, gerando uma atmosfera tóxica e epidêmica,
trazem à tona questões do macrocosmo social e que só intensificam o sentimento de
desamparo e o atual desalento frente aos rumos incertos de nossa cultura e
civilização.

DISCUSSÃO

Como estariam a violência, a agressividade e a destrutividade atuando de


sobremaneira na experiência psíquica e social hodiernas? Recentemente, o filme
argentino Relatos Selvagens, dirigido por Damián Szifron (2014) teve grande
repercussão de público. Seguindo para além da inteligência do enredo ou do
brilhantismo de seu elenco, de qualquer forma, pode-se ter como hipótese, partindo
da concepção do papel das narrativas artísticas como tradutoras das preocupações e
dos vetores da sociedade e entendendo o cinema como uma importante
representação ficcional da realidade, que o filme traduz de forma bastante eloquente
a fragilidade das bordas entre o civilizado e o bárbaro. Não se tratando somente de
uma intolerância crescente à frustração e nem de estudos de caso de pessoas em
estado limite, porém mais do que isso, a narrativa parece tratar da incapacidade atual
de se conseguir pensar nossos conflitos, o que impede qualquer solução pacífica para
as querelas que fazem parte de nosso cotidiano nos lançando para o foco das
tendências comportamentais de uma cultura que, ao escolher o utilitarismo, o
pensamento instrumental e a negação das nossa angústias, aliada ao imperativo de
uma felicidade midiática e performática nutrida por aditivos químicos, acaba tendo
como solução para as ansiedades o alívio patológico resultante da descarga
agressiva e da ação motora. Sintomas marcados pelo excesso, reforçados através da
desconsideração pelo outro e fundados na precariedade atual das mediações
simbólicas. Apostaria que a narrativa do filme tem como eixo a disparidade entre a
motivação e a violência desencadeada, que anuncia o fim da negociação e da
argumentação como mediação das diferenças entre o eu e o outro.

Freud já tinha lançado a sua ideia de que a felicidade não parecer fazer parte
do projeto civilizatório. Como explicado em Birman (2003), articulação em torno da

422
oposição entre as exigências pulsionais e suas expectativas de satisfação, mediadas
por sua regulação simbólica, caracterizam uma assimetria e descontinuidade cujo
mal-estar coletivo é sua mais perfeita expressão. Entretanto, com relação a pulsão de
morte, Freud transmitiu sua preocupação frente à pujança das formas agressivas e
violentas atreladas ao projeto da sociedade moderna e que, na época da escritura do
Mal-estar da civilização, período entre as duas grandes guerras, já demonstrava uma
atmosfera bastante reservada frente aos progressos técnico-científicos e civilizatórios
resultantes do projeto modernizador. E assim termina seu Mal-estar da civilização com
uma questão que ficou em aberto:

A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que
ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação da vida
comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez,
precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os
homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que com sua ajuda,
não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem.
Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua
infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois
“Poderes Celestes”, o eterno Eros, desdobre suas forças para afirmar-se na luta com
seu não menos mortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com
que resultado? (Freud, 1997, pp. 111-112)

Além das grandes forças de destruição que ameaçam a vida, da pulsão


destrutiva e autodestrutiva de retorno ao inorgânico, as ameaças do dia a dia também
colocam em pauta a luta entre os poderes da destruição e da criação. Creio que,
talvez, uma afirmação do eterno Eros possa significar a recuperação de sentimentos
como o do perdão e da gratidão, do fortalecimento dos laços pela compaixão e
solidariedade, transcendendo o imediatismo e promovendo recursos que possibilitem
um autoconhecimento de si a partir das trocas intersubjetivas com o outro – do resgate
de uma atitude mais amorosa de relação para com nosso mundo.

Mas a erotização pulsional não se aparta da realidade das forças destrutivas,


exemplo claro, é o da perversão. A cultura mercadológica pós-moderna, apesar de
seu apelo as liberdades do consumo, é partidária das formas de poder e controle que
quase sempre trazem no seu bojo uma qualidade perversa. Dominação e submissão,
a massificação, a destituição do desejo, da simbolização e do pensamento, que

423
funcionariam como controle social também foram abordadas por Freud (1996). Tendo
a perversão suas dimensões sublime e abjeta imbricadas, sua aparente liberdade
pode transparecer justamente por encarnar a encruzilhada entre o bárbaro e o
civilizado, mas também corresponde ao negativo da liberdade, como observado por
Roudinesco (2008), uma vez que a perversão, como um sinônimo de perversidade,
tem nas formas de aniquilamento, na desumanização, nas expressões de ódio,
destruição, dominação e gozo, suas metamorfoses que se prolongam ao longo da
história humana. Se por um lado a perversidade humana parte do deleite do mal e da
destruição de si e do outro, também não é menos verdade o nebuloso limite entre as
partes obscuras de nosso psiquismo e suas possibilidades de sublimação, o que torna
nossa relação com a violência e a crueldade ainda mais complexa.

Segundo Birman (2014), as psicopatologias presentes nas formações


subjetivas da contemporaneidade podem ser bem entendidas através dos sintomas
depressivos e de vazio subjetivo, nas patologias psicossomáticas, nas toxicomanias
e nas patologias da ação, que incluem as atuações compulsivas e violentas. Para o
estudioso, o mal-estar da atualidade possui visibilidade nos registros do corpo, da
ação e das intensidades, como patologias do excesso e levando em conta que na
modernidade avançada as subjetividades se revestem de falhas na elaboração
simbólica, como observado nas insuficiências do pensamento e da linguagem,
desdobrando-se numa forte tendência dos sofrimentos, ao perderem sua articulação
narrativa, se reduzirem ao corpo e a ação, ocorrendo assim um deslocamento do
desejo e da temporalidade subjetiva, como ocorria nas subjetividades modernas, para
um retorno ao trauma, em sua espacialidade abissal, como um organizador do sujeito
na atualidade. Nesse sentido, as condutas hiperativas, a violência e a criminalidade,
enquanto problemas sociais, que por sinal demandam uma denúncia constante de
suas origens nas desigualdades sociais cada vez maiores, também exigem um exame
frente a sua economia psíquica. A aceleração da sociedade globalizada, marcada pela
massificação e pela desastrosa cultura do narcisismo, como já anunciada por Lasch
(1983), apresenta um terreno com poucos nutrientes para a formação de indivíduos
maduros e sadios no que diz respeito a capacidade de lidar com as angústias
frustrações. O fetiche do mercado com suas promessas de satisfação imediata, aliado
ao espetáculo midiático, só conseguem produzir subjetividades fragilizadas que na
ação encontram seu meio patológico de se livrar das angústias. Assim, o estilo de ser

424
do sujeito contemporâneo é marcado pelos traços da hiperatividade, da compulsão e
do consumismo, mas que, paradoxalmente, encontra-se quase sempre aliado a um
vazio de si, como nos quadros depressivos. Subjetividades marcadas pelo excesso e
pelo ímpeto pela ação, todavia que se afundam numa instabilidade de afetos. Desta
forma a pobreza subjetiva passa a ser traduzida pela explosividade emocional, pela
irritabilidade do humor e pela ação violenta, de autoagressão, das patologias
corporais, ou da agressão exteriorizada. Corolário da fragilidade de mediação
simbólica, da anemia do repertório semântico, ou falta de articulação entre o eu e o
outro que no seu limite resultam nas tentativas de anulação do diferente. Ações
violentas que têm cada vez mais como ingrediente a presença da crueldade, como a
própria marca agressiva da cultura do excesso, quando a disseminação dos atos
violentos ganha cada vez mais contornos de um gozo fatídico e anti-humano, atos
contrários a própria vida em seu sentido mais amplo.

Em meio à política do pão e circo, temperada pelas aparências de sucesso e


da felicidade estampadas nos sorrisos em selfies nas redes sociais, vamos acabando
por nos acostumar com a dor e a brutalidade nossa de cada dia. Mas nossas reações
afetivas involuntárias não mentem e a sensação de mal-estar se intensifica, quando a
expressão barbárie civilizatória bem que poderia expressar o paradoxo de nossa
civilização. Conforme apontou Damergian (2012), se por um lado desenvolvemos um
pensamento científico e tecnológico, por outro vivemos uma verdadeira crise do
pensamento, uma verdadeira barbárie da reflexão, com atrasos no campo da ética,
uma regressão assustadora nas relações humanas, imaturidade afetiva e um
esquecimento das possibilidades de um desenvolvimento espiritual saudável. Todo
esse esvaziamento da subjetividade, de uma anemia do simbólico, só poderia
conduzir a uma impossibilidade reflexiva e de autoconhecimento, ingredientes para a
ascensão do bárbaro que existe dentro de cada um. Da irreflexão à ação violenta
existe um curto espaço. Na sua intolerância a frustração, o indivíduo narcísico perdido
em suas fantasias grandiosas, atormentado pelo medo e pela paranoia, tem no ódio
e na violência seu motor para o ataque ao diferente, contra as demais formas de vida
e inclusive na destruição do meio ambiente. Será possível o enfrentamento dessas
condições? Como lidar com o potencial destrutivo oriundo das cavernas da ignorância
em que afundamos? Ainda segundo Damergian (2012), “o mal é uma consequência
do afastamento do amor e ele deve ser combatido e interditado através dos limites

425
que a justiça, obra do amor, deve exercer” (p. 123). Pois além do mal, da pulsão de
morte, também existe a pulsão de vida, o amor e uma justiça, os limites éticos
fundados junto ao amor, tendo como critério de avaliação moral a própria vida e o
respeito ao outro fundamentados a abertura diante da alteridade. Da recuperação dos
valores humanísticos e espirituais, da necessidade de modelos saudáveis de
identificação afetiva e moral, viriam as virtudes da solidariedade e a compaixão.

Considerações finais

Os atos violentos e a crueldade expõem um ódio persistente em nossas


sociedades contemporâneas. Suas vítimas são porta vozes de uma atuação
disseminada que traz o lastro da fragilidade simbólica e de pensamento, da falência
da capacidade de mediação. A escuta terapêutica pode resistir como uma instância
mediadora, que transforma a dor em sofrimento, mas também estabelece uma visão
ampliada, se deixando deslocar para a abertura à uma perspectiva sobre as atuais
transformações do mal-estar, questionando criticamente as atitudes destrutivas da
vida cotidiana. A narrativa do paciente agredido expressa mais do que a sua dor, mas
apresenta em sua sombra o reflexo da desumanidade e da atmosfera de desencanto
que cerca nossas cidades e obscurece nossas paisagens.

Nossa civilização, ao optar por um caminho diferente de uma análise crítica da


cultura, fez da escolha utilitarista e da negação das angústias, aliada as tentativas
nocivas de tamponar o desamparo, uma abertura de terreno ao que é monstruoso e
desumano. Poderá ser a resistência e o impulso de vida daqueles que sofreram
ataques em suas mentes, sentimentos ou corpos, um gesto diante da tendência à
regressão e à ascensão da irracionalidade presente no momento contemporâneo?
Investir no autoconhecimento, no cultivo de sentimentos como o amor, possibilitaria
lidar melhor com nosso desamparo a partir de atitudes solidárias, necessárias para
evitar um caminho que poderá levar ao ocaso da humanidade e de nosso habitat. O
gesto terapêutico como abertura para a alteridade é resistência, como o espaço aberto
de uma clareira em potencial. De modo que se Eros é a força de ligação, é travessia
do mesmo em direção ao outro, passagem do idêntico para o diferente, se deixando
desalojar pela alteridade e para a experiência de abertura ao infinito.

426
REFERÊNCIAS

Birman, J. (2003). Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de


subjetivação (4a ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Birman, J. (2014). O sujeito na contemporaneidade: espaço, dor e desalento na


atualidade (2a ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Damergian, S. (2012). Do imaginário ao real, da fantasia à realidade: um convite a


transcendência. Em S. M. Vichietti, Psicologia social e imaginário: leituras
introdutórias (pp. 117-124). São Paulo: Zagodoni.

Freud, S. (1996). Psicologia de grupo e a análise do ego. Edição Standard Brasileira


das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. VIII). Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1997). O mal estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago.

Lasch, C. (1983). Cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago.

Roudinesco, E. (2008). A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos.
Rio de Janeiro: Zahar.

Szifron, D. (Diretor). (2014). Relatos Selvagens [Filme Cinematográfico]. Argentina /


Espanha.

427
37- CONTEXTO E IMPLICAÇÕES DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL EM
ADOLESCENTES6

Ma. Cláudia Yaísa Gonçalves da Silva (autor)7


Dra. Ivonise Fernandes da Motta (coautor)8

Resumo: O acolhimento institucional é uma medida protetiva provisória voltada para


crianças e adolescentes que se encontram em risco em seus ambientes familiares de
origem. Ainda que tenha um caráter protetivo, o acolhimento institucional possui
especificidades que tendem a repercutir na percepção dos indivíduos frente ao
acolhimento. A partir de uma revisão bibliográfica, este trabalho objetiva oferecer um
panorama da estruturação do acolhimento institucional no Brasil, circunscrevendo a
realidade dos adolescentes que se encontram neste contexto. Verificou-se a
recorrência de percepções negativas relacionadas a desinteresse, despreparo,
indiferença, apontando para possível desesperança. Porém, ainda que existam
questões a serem aperfeiçoadas na execução da medida, as unidades de acolhimento
detêm um importante papel de oferecimento de segurança, estabilidade e manutenção
de vínculos afetivos positivos. A literatura da área destaca a necessidade de
preparação dos adolescentes para a transição para a vida após a instituição,
potencializando intervenções que favoreçam a autonomia e habilidades para a vida
social.

Palavras-chave: Adolescência; Acolhimento Institucional; ECA; Psicanálise.

Introdução
A partir de uma revisão bibliográfica, este trabalho busca oferecer um
panorama da organização da medida protetiva de acolhimento institucional no Brasil,
dando enfoque para a implicação desta medida ao público adolescente, destacando
particularidades envolvidas nesta realidade. No Brasil, a Lei n. 8.069, de 13 de julho
de 1990, dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), compreendido

6
Este trabalho é parte da pesquisa de Doutorado em curso no Programa de Psicologia Clínica do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
7
Doutoranda pelo Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP.
8
Professora Livre Docente, Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP.

428
como um expressivo marco que instituiu a promoção integral da criança e do
adolescente. O ECA define adolescente toda pessoa entre 12 e 18 anos de idade e,
em casos excepcionais, abrange também entre 18 e 21 anos. Está estabelecido que
a educação e criação da criança e do adolescente sejam prioritariamente realizadas
no âmbito familiar e, em situações particulares, em família substituta. A colocação em
família substituta pode ser mediante guarda, tutela ou adoção (ECA, Art. 19 e 28).
Seja na família natural ou família substituta, a convivência familiar e comunitária deve
ser assegurada em um ambiente que ofereça o desenvolvimento integral do indivíduo.
Quando a criança/adolescente se encontra em situação de risco em sua
integridade, a autoridade judiciária competente poderá determinar a aplicação de
medida protetiva. Tem-se duas modalidades principais de programas: o Acolhimento
Familiar e o Acolhimento Institucional. São medidas provisórias e excepcionais
aplicadas no período de transição para a reintegração familiar (ECA, Art. 101, IX, §
1o). É tido como prioritário a inserção da criança/adolescente em acolhimento familiar,
do que no acolhimento institucional (ECA, Art. 34, § 1o).
O Programa de Acolhimento Institucional é um acolhimento provisório para
crianças e adolescentes sob medida de proteção e em situação de risco pessoal e
social. O acolhimento é operacionalizado quando as famílias ou responsáveis,
ocasionalmente não podem oferecer a função de proteção e cuidado. As entidades de
acolhida devem oferecer atendimento em pequenas unidades e grupos, além de
conter registro no Conselho Municipal de Assistência Social e da Criança e
Adolescente (TJSP - Tribunal de Justiça de São Paulo).
O cenário das instituições de acolhimento no Brasil evidencia que, ainda que
os esforços sejam direcionados para a reintegração familiar ou inserção em família
substituta, nota-se que em alguns casos tais possibilidades não acontecem ou
demoram a se concretizar. A consequência é que uma parcela dos indivíduos cresce
nas unidades de acolhimento e desses, uma parte permanece no local até completar
a maioridade. Nesta direção, circunscrevendo os adolescentes em acolhimento
institucional, refletiu-se sobre a importância dos vínculos afetivos e da construção de
uma rede de apoio que favoreça a preparação para a vida pós instituição. Levantou-
se a questão de como a perspectiva de futuro tem sido pensada e discutida junto a
esses adolescentes.
Nota-se que muitas investigações científicas têm como público-alvo a infância,
bem como os efeitos e aspectos da institucionalização no desenvolvimento da criança,
429
sendo de extrema relevância conduzir certa visibilidade também para os jovens
acolhidos, a fim de legitimá-los como sujeitos em desenvolvimento e plenos de direitos
(Wendt, Dullius & Dell’Aglio, 2017).
Ainda são necessárias pesquisas que pensem a transição para a vida adulta,
trabalhando tópicos que versem sobre possibilidades de autonomia, entendendo este
conceito para além do alcance da maioridade; “há a necessidade da construção de
uma práxis que entenda as políticas públicas pelo olhar da criança e que garantam a
sua autonomia e o apoio necessário para a sua transição para a maioridade e saída
da instituição” (Poker, 2017, p.8).

Fontes Bibliográficas
Artigos científicos recentes que discutem a temática do acolhimento institucional e da
realidade dos adolescentes acolhidos; livros do psicanalista D. W. Winnicott.

Desenvolvimento
Os motivos que conduzem crianças e adolescentes ao acolhimento institucional
evidenciam certa multifatoriedade. Dentre os principais motivos que justificam a
medida protetiva se pode citar: uso de álcool e/ou outras drogas pelos responsáveis,
negligência da função parental (implicação na educação dos filhos) e dos cuidados
básicos (higiene e alimentação), condições inadequadas de moradia e genitores em
cumprimento de pena restritiva de liberdade. A negligência parental foi identificava
como um fator recorrente e em sua maioria se trata de pessoas em condição de
vulnerabilidade social. Ademais, a suspeita de violência física, sexual e psicológica é
um aspecto relevante que apareceu nos dados processuais (Mastroianni, Sturion,
Batista, Amaro, & Ruim, 2018).
Observa-se que uma expressiva parcela de crianças e adolescentes acolhidos
provêm das esferas sociais mais baixas. Sobre isso, Crestani e Rocha (2018) atribuem
alguns fatores, como a individualização de problemas sociais. Destina-se às famílias
pobres a culpabilização e a criminalização pela condição social que se encontram,
pois historicamente são reconhecidas como incapazes de gerir o cuidado e a
educação dos filhos. As autoras sugerem que mesmo que a legislação não permita
que as condições socioeconômicas sejam motivo para perda ou suspensão do poder
familiar; o acolhimento institucional continua sendo motivado, em muitos casos, pelas

430
condições de pobreza, de carência de recursos materiais, porém mascarado pelo
discurso da vulnerabilidade.
Na realidade brasileira os adolescentes tendem a estar entre a população com
menores chances de inserção em família substituta, quando comparados aos
acolhidos de menor idade. Dentre os acolhidos, a maioria possui menos de 12 anos e
está em situação jurídica provisória, com tentativa de reintegração familiar. Já para os
indivíduos em situação jurídica definida (destituição do poder familiar), a opção seria
a adoção. Entretanto, os dados indicam que a adoção nem sempre se efetivará, pois
a quantidade de candidatos habilitados no Cadastro Nacional de Adoção é menor
conforme a idade do indivíduo em acolhimento aumenta, isso porque a maioria dos
candidatos preferem adotar crianças de até 4 anos (Mastroianni, Sturion, Batista,
Amaro, & Ruim, 2018).
Uma pesquisa identificou que dos 87 adolescentes residentes em 11 unidades
de acolhimento na baixada santista, a maioria era do sexo masculino na faixa etária
de 15 a 17 anos. Além disso, 31% dos adolescentes da amostra (12 a 17 anos) se
encontravam acolhidos a mais de 2 anos, o que contraria as especificações do ECA
para o período máximo esperado em acolhimento institucional (Brito, Schoen,
Marteleto, & Oliveira-Monteiro, 2017).
O acolhimento institucional abrange particularidades, das quais algumas
tendem a repercutir na forma como o indivíduo se reconhecerá frente ao outro. Os
estigmas que incidem sob os adolescentes acolhidos podem ser notados em alguns
estudos. Ao ser investigado o imaginário social sobre as características de jovens
típicos brasileiros e jovens de instituições de acolhimento, uma pesquisa constatou
que os jovens típicos tiveram média mais alta de palavras positivas associadas:
trabalhador, sociável, saudável, apresentável, amado. Já os jovens em acolhimento
institucional apresentaram médias altas de atributos negativos: vulnerável, carente,
agressivo, baixa autoestima, traumatizado. Embora os participantes tenham
demonstrado representações negativas ao jovem de forma mais ampla (típicos e
acolhidos), houve maior incidência de reprodução de rótulos sociais pejorativos aos
jovens em acolhimento institucional. “A imagem que se tem de um jovem
institucionalizado, quando compartilhada socialmente, interfere diretamente na forma
como o jovem se percebe e como os grupos sociais o recebem, integrando-o ou não
naquele contexto” (Wendt, Dullius, & Dell’Aglio, 2017, p.537).

431
Essa questão nos direciona a pensar na necessidade de enfrentamento em
relação aos estigmas voltados à essa população nos diversos âmbitos da sociedade,
a fim de desmitificar situações, promover esclarecimentos e reflexões que
paulatinamente levem a mudanças culturais em termos do imaginário social.
Ao se refletir sobre a função exercida por uma unidade de acolhimento, deve-
se considerar que para tal medida houve em algum grau a violação de direitos,
exigindo-se o afastamento provisório do contexto familiar. A instituição de acolhimento
surge como um ambiente substitutivo que proverá recursos materiais e apoio afetivo
às crianças e adolescentes, enquanto aguardam decisão judicial de retorno à família
de origem ou encaminhamento à família substituta. A função dos cuidadores e a
qualidade do vínculo com os acolhidos é essencial para o oferecimento de suporte e
segurança em um meio favorável ao desenvolvimento saudável (Lemos, Gechele, &
Andrade, 2017).
O acolhimento institucional para muitos adolescentes é a chance de se
experimentar vivências afetivas positivas, diferentes das anteriores, em certos casos
marcadas pela incerteza e inconstância. Isso porque o acolhimento tem como função
oferecer condições que facilitem a estabilidade e a segurança das relações.
Proporcionar um espaço acolhedor e de confiança pode ser um desafio perante o
aspecto provisório do acolhimento. Porém, a provisoriedade não deve ser motivo para
a falta de implicação dos profissionais técnicos no cuidado e na garantia de direitos
protetivos (Wendt, Dullius, & Dell’Aglio, 2017). Fernandes e Oliveira-Monteiro (2016)
ao entrevistarem adolescentes acolhidos perceberam que diante da instabilidade dos
vínculos anteriores, a percepção do acolhimento pode ser boa. Os participantes
afirmaram receberem cuidados e ajuda dentro do serviço, principalmente da equipe
técnica, o que reforça a importância do estabelecimento de vínculos positivos de
referência nas unidades.
Contudo, nem sempre os profissionais que atuam nas unidades de acolhimento
conseguem se dedicar à qualidade do envolvimento afetivo com os acolhidos. Em
algumas realidades das casas lares, o cuidado das mães sociais se mantém
circunscrito às atividades de higiene pessoal, limpeza, alimentação e cumprimento de
horários na rotina, de forma que os cuidados afetivos acabam relegados a um segundo
plano. Ou seja, a manutenção das condições físicas de organização e funcionamento
da casa e da rotina dos acolhidos contribui para que pouco consigam se implicar em
experiências de contato, interação e fortalecimento de vínculos, possíveis de serem
432
experimentados nas situações de diversão, entretenimento e brincadeira (Lemos,
Gechele, & Andrade, 2017).
Nesta direção, o relato de uma pós-abrigada moradora em uma instituição de
acolhimento dos 10 aos 17 anos, reafirma a lógica do caráter de institucionalização,
frequente em alguns serviços. Nessa lógica, a garantia de direitos esbarra na
caridade, assujeitando o indivíduo a rotinas padronizadas e a uma quase invisibilidade
das suas particularidades. Tudo isso sustentado pelo entendimento de que, para uma
pessoa em situação de risco ou vulnerabilidade, a satisfação de recursos materiais
básicos é o suficiente (Poker, 2017). Acredita-se que esforços devem ser feitos na
superação dos problemas que frequentemente existem na aplicação da medida
protetiva de acolhimento institucional. O olhar do adulto, ao invés de desapropriar o
sujeito da sua experiência, deve potencializar o resgate e a afirmação da sua
identidade, possibilitando que a criança ou o adolescente possam falar do lugar que
ocupam.
O estado de identidade de adolescentes em situação de acolhimento
institucional foi tema de um estudo que verificou que os adolescentes mais velhos se
encontravam em estados imaturos de identidade, oferecendo indícios de maiores
prejuízos como: despreparo, desinteresse, dificuldade em exercer papeis sociais e
quanto aos próprios sentimentos. Outro agravante assinalado diz respeito ao fato de
que vários participantes tinham previsão de desligamento do acolhimento devido ao
alcance da maioridade; tais jovens apontaram certo despreparo e pouca qualificação
para inserção no mercado de trabalho (Brito, Schoen, Marteleto, & Oliveira-Monteiro,
2017). Tais questões reafirmam nossa preocupação em relação à forma como os
adolescentes estão sendo preparados a elaborar o desligamento institucional e pensar
sobre seus futuros.
Fernandes e Oliveira-Monteiro (2016) constataram a ocorrência de problemas
de ordem interna (emoções e aspectos psicológicos) e externa (comportamentos
negativos e agressivos) em adolescentes de serviços de acolhimento institucional. A
percepção pessoal frente ao contexto da instituição foi predominantemente de
indiferença nos meninos e de negatividade nas meninas. Os adolescentes de 11 a 14
anos tiveram percepção institucional mais negativa do que os mais velhos, de 15 a 18
anos, os quais revelaram maior indiferença. Aqueles com tempo de acolhimento até 2
anos apresentaram maior percepção negativa em relação ao serviço, do que os
institucionalizados há mais tempo. A indiferença apontada pelos mais velhos e há
433
mais tempo em situação de acolhimento é um dado relevante sobre os aspectos
psicológicos e emocionais desses jovens. “Essa indiferença pode ser um importante
sinal dos problemas emocionais desses adolescentes, como possível indicador de
desesperança ou descontinuidade do uso de recursos psíquicos para enfrentar a
situação e ter esperança de vida” (Fernandes & Oliveira-Monteiro, 2016, p. 87).
Tem-se observado estudos que tratam da transição para a vida adulta de
adolescentes em acolhimento institucional ou familiar, levantando a importância de
uma efetiva preparação para a vida pós acolhimento. “Ao se acercarem da
maioridade, os adolescentes que vivem nessas instituições enfrentam a necessidade
de se responsabilizarem pelas próprias vidas, estando ou não preparados para essa
transição” (Cassarino-Perez, Córdova, Montserrat, & Sarriera, 2018, p.1667). Apesar
de essa população ser exposta a experiências negativas que conduziram ao
acolhimento, tem-se apostado no fortalecimento de aspectos de superação e
resiliência. Os programas internacionais que têm se dedicado a facilitar a
emancipação dos jovens, têm como similaridade a intensificação do apoio frente à
moradia, relacionamentos interpessoais, trabalho, estudo e habilidades para a vida
cotidiana, ressaltando a relevância do apoio financeiro, emocional e social. Esses
foram considerados fatores essenciais para o favorecimento da transição para a vida
após a instituição.
Além disso, destaca-se o quanto “as condutas pró-sociais são importantes
recursos para o enfrentamento das adversidades [...], em especial, a partir da saída
desses adolescentes das instituições de acolhimento, o que se faz, obrigatoriamente,
ao completarem 18 anos de idade” (Fernandes & Monteiro, 2017, p.5). Ao se delinear
indicadores de comportamentos pró-sociais de partilha, ajuda, cuidado e empatia em
61 adolescentes em acolhimento institucional, um estudo notou que quanto a variável
tempo de institucionalização, os adolescentes com menor tempo mostraram mais pró-
sociabilidade do que os demais. Além disso, os resultados gerais apontaram
comportamentos positivos no público estudado, com relevância para os aspectos de
ajuda (tentar ajudar as pessoas), cuidado (dedicar tempo aos amigos solitários) e
empatia (colocar-se no lugar dos necessitados), o que confirma demais estudos que
apontam que a vivência institucional pode aproximar os sujeitos acolhidos,
contribuindo para comportamentos de afeto e ajuda entre os pares, pessoas
conhecidas ou com características semelhantes.

434
Para Winnicott (1965b/1982) a socialização é uma importante conquista em
termos de amadurecimento pessoal. Na adolescência, observa-se uma gradativa
inserção do indivíduo em grupos sociais que favorecem o percurso à uma maior
autonomia e independência das figuras da infância. Também demais pessoas passam
a fazer parte do mundo e das relações do indivíduo, para além das figuras parentais,
como os pares e novos modelos de referência.
Nota-se que o adolescente tende a se inserir em grupos cujos integrantes
possuem aspectos compartilhados e interesses em comum. Pode acontecer que um
integrante se destaque e ocupe o lugar de líder, atuando pelos demais, legitimando e
colocando em movimento a luta e motivações individuais (Winnicott, 1984a/2002a). O
indivíduo que alcança maior autonomia e desenvolve aspectos de socialização,
relaciona-se pouco a pouco com as atividades culturais, adentrando na experiência
cultural, a qual evidencia o lugar da realidade compartilhada, do espaço entre o mundo
subjetivo e a realidade objetiva, onde se aloca a possibilidade da criatividade do viver
humano (Winnicott, 1971a/1975). Compreende-se a importância para o adolescente
do fortalecimento do sentimento de pertencimento a um lugar, a um grupo que
compartilha as mesmas inquietações, experiências e expectativas. Por isso, os pares
tendem a ser uma rede de apoio fundamental para o adolescente em acolhimento
institucional, a fim de balizar os efeitos negativos do afastamento do convívio familiar
e potencializar os aspectos criativos e de socialização.

Conclusão
Verificou-se que a medida protetiva de acolhimento institucional é um recurso
acionado quando a criança e o adolescente estão em risco em seus meios familiares.
Há casos nos quais o acolhimento pode repercutir negativamente na autopercepção
dos adolescentes, sendo esta reforçada pelo estigma presente no imaginário social.
Porém, ainda que existam aspectos que exijam melhores adequações a fim de
minimizar os efeitos negativos do afastamento familiar, compreende-se que as
unidades de acolhimento, pela função que ocupam, possuem grande potência para
oferecer uma experiência positiva. Um fator a ser destacado é a identificação entre os
pares que tende a reforçar um ambiente no qual o adolescente se sinta parte e
compreendido pelos demais. Além disso, ressalta-se a necessidade de investimento
em ações que proporcionem a preparação para a vida após a saída da instituição,
reforçando a reflexão dos adolescentes sobre as perspectivas de futuro. Por fim, na
435
direção de Fernandes e Oliveira-Monteiro (2016), apresenta-se a necessidade de
mais pesquisas que explorem a experiência do acolhimento institucional para as
crianças e adolescentes e estudos que deem voz para que os próprios indivíduos
apresentem suas visões, no intuito de delinear subsídios para o aperfeiçoamento dos
serviços de acolhimento e das intervenções destinadas a essa população.

Referências

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Cassarino-Perez, L., Córdova, V. E., Montserrat, C, & Sarriera, J. C. (2018).


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436
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437
38- PSICOTERAPIA BREVE OPERACIONALIZADA E TRANSTORNO
DEPRESSIVO: RELATO DE CASO

Fernando Roberto de Lira


Kayoco Yamamoto

Resumo:
INTRODUÇÃO
A Psicoterapia Breve Operacionalizada (PBO) tem bases na teoria psicanalítica e
a teoria da adaptação. Por meio de interpretações teorizadas e conjecturas
adaptativas o paciente vai lançando luz sobre as motivações inconscientes e suas
repercussões na origem das situações-problema (SIMON & YAMAMOTO, 2009).

OBJETIVOS
Este trabalho tem como objetivo elucidar a eficácia terapêutica da Psicoterapia
Breve Operacionalizada em um quadro depressivo grave.

DESCRIÇÃO DO CASO
Paciente depressiva, 40 anos, casada. Afastada pelo
Dados e Contextos
INSS.
Nº de sessões 12

Situação-problema Incapacidade de enfrentar situações desafiadoras.


Diagnóstico
04 – Adaptação Ineficaz Severa.
Inicial (EDAO)
1. Identificada com a patroa que traía o marido, o que lhe impedia o
Principais enfrentamento;
Interpretações 2. Fantasia onipotente de responsabilidade pela homossexualidade do
Teorizadas filho;
3. Adotara inconscientemente o marido como filho mais velho.
Resolveu retornar ao trabalho, conversar com a patroa, o
Soluções
marido e o filho.

MATRIZ GRÁFICA

438
CONCLUSÃO
O estudo confirmou a Psicoterapia Breve Operacionalizada como um método
eficiente já que a paciente avançou para o Grupo 03 (Adaptação Ineficaz
Moderada). Logo, a PBO tem aplicabilidade para casos graves.

PALAVRAS-CHAVE: Psicoterapia breve. Adaptação. Enfrentamento.

INTRODUÇÃO
O termo "Psicoterapia Breve" nasceu em 1924 quando dois discípulos de S.
Freud, S. Ferenczi e O. Rank, tentaram minimizar a duração dos tratamentos
psicanalíticos. Ferenczi, considerado por alguns como o Pai da Psicoterapia Breve
criticou a tradicional passividade do terapeuta propondo uma posição mais ativa
(KATHUNI, 1996). Mais adiante outros psicanalistas deram seguimento fazendo
outras transgressões ao modelo psicanalítico tradicional, aperfeiçoando a técnica até
culminar na Psicoterapia Breve que temos hoje.
A Psicoterapia Breve Operacionalizada proposta por Ryad Simon é um modelo
de psicoterapia elaborado a partir de sua atuação no campo de saúde mental (SIMON,
2005). Este modelo de psicoterapia está embasado na Teoria da Adaptação
(repertório de respostas apresentadas pelo sujeito visando uma organização frente a
situações que o modificam) (SIMON, 1989) somada à teoria psicanalítica.
A EDAO (Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada) é uma escala que
foi desenvolvida para classificar o indivíduo segundo sua adaptação (SIMON, 1989).
Foi criada como método de avaliação psicológica para diagnóstico, prognóstico e
encaminhamento. São quatro os setores adaptativos. O Afetivo-Relacional (A-R) diz
respeito aos sentimentos, atitudes e ações referentes a si e ao outro. A Produtividade
(Pr) está ligada ao trabalho, estudo ou qualquer atividade produtiva. Já o Setor Sócio-
Cultural (S-C) compreende sentimentos, atitudes e ações com relação à organização
social, valores, costumes culturais, e pressões sociais. E o Setor Orgânico (Or)
engloba o estado do organismo, sentimentos e ações relacionados ao físico, inclusive

439
a sexualidade. O Setor Afetivo-Relacional é o que exerce maior influência sobre a
totalidade adaptativa (SIMON, 1989).
O diagnóstico adaptativo se desdobra em cinco grupos de adaptação: G1
(Eficaz), G2 (Ineficaz Leve), G3 (Ineficaz Moderada), G4 (Ineficaz Severa) e G5
(Ineficaz Grave), além das situações de crise por perda ou aquisição.
Através da EDAO se consegue a delimitação do que o autor intitulou de
situação-problema, ou seja, variáveis que interagem entre si forçando o sujeito a
encontrar uma solução que se adiada pode originar uma crise adaptativa. (SIMON,
2005, p. 29). O autor também elaborou três grupos de soluções de adequação diante
de situações-problema: “adequadas”, se solucionam com satisfação e sem produzir
conflitos intra e/ou extra-psíquicos; “pouco adequadas”, quando solucionam
propiciando satisfação, mas geram conflitos intra e/ou extra-psíquicos, ou, solucionam
insatisfatoriamente embora sem conflito algum; e, “pouquíssimo adequadas”, quando
solucionam de forma insatisfatória e provocam conflitos intra e/ou extra-psíquicos.
Através do conjunto das soluções - “adequadas”, “pouco adequadas” ou “pouquíssimo
adequadas” -, ou pelo predomínio de uma delas, cada setor adaptativo é avaliado
como estando adequado, pouco ou pouquíssimo adequado (SIMON & YAMAMOTO,
2008).
O processo terapêutico transcorre face a face. A data do término é delimitada
e o número de sessões varia de uma a doze no máximo. O tempo sugerido para cada
sessão é de sessenta minutos. O tempo indicado de tolerância para o silêncio é de 5
minutos. O objetivo é a superação de soluções inadequadas para as situações-
problema compreendendo os dinamismos que a sustentam.
As entrevistas são bastante detalhadas, buscando informações sobre a história
de vida pregressa. Variam em número conforme a necessidade de maneira a
proporcionar um planejamento terapêutico eficiente, com a delimitação de situações-
problema. As entrevistas também podem revelar uma situação-problema que sustenta
as demais chamada de situação-problema nuclear.
A postura do psicoterapeuta é diretiva, buscando uma interação acerca dos
setores adaptativos e evitando associações livres prolongadas. São feitas
interpretações teorizadas onde a reconstrução da história do paciente será baseada
nas primeiras entrevistas, e não no material das sessões conforme propõe o modelo
psicanalítico (GEBARA, 2003, p.45). Por meio de interpretações teorizadas e
conjecturas adaptativas o paciente vai tendo clareza dos meandros de seu mundo
440
subjetivo e suas repercussões no mundo externo, lançando luz sobre as motivações
inconscientes e suas repercussões na origem das situações-problema (SIMON &
YAMAMOTO, 2009).
Visando não comprometer a relação terapêutica se interpreta somente a
transferência negativa (faltas e atrasos injustificados, silêncios prolongados, pedido
de redução do número de sessões, verbalizações superficiais, esquecimento do
pagamento, entre outros) (FREUD, 1912). São evitadas interpretações em níveis mais
profundos bem como a estimulação à neurose de transferência. Conforme a
necessidade, intervenções suportivas como o reasseguramento, a orientação e a
sugestão são utilizadas, estimulando a transferência positiva.
Freud defendia que a transferência poderia acontecer também fora da relação
analítica. (FREUD, 1912 apud SIMON, 2005). Em sua experiência, SIMON (2005)
percebeu que algo das transferências vividas fora da relação terapêutica (com a
família, parentes, amigos, entre outros) tinha a ver com a transferência vivenciada
com o terapeuta. A tais relações transferenciais externas denominou cotransferência.
A interpretação contransferencial é utilizada e indicada para a PBO porque impede
uma regressão indesejável e o estímulo à neurose de transferência (SIMON, 2005, p.
18).
A Psicoterapia Breve Operacionalizada não oferece restrições e pode ser
aplicada a qualquer sujeito, exceto àqueles que buscam aprofundamento no
autoconhecimento em níveis mais profundos do inconsciente. Àqueles que buscam
uma reestruturação da personalidade é indicada a psicoterapia psicanalítica ou a
psicanálise (SIMON, 2005).

OBJETIVOS
Este trabalho tem como objetivo elucidar a eficácia terapêutica da Psicoterapia
Breve Operacionalizada em um quadro depressivo grave.

MÉTODO
O método empregado nesse trabalho é clínico embasado em estudo de caso.
As reflexões nele explicitadas são oriundas de atendimentos realizados segundo os
pressupostos da Psicoterapia Breve Operacionalizada. É um estudo qualitativo que
visou comprovar a aplicabilidade terapêutica desse modelo psicoterápico em um caso
grave de depressão.
441
O processo terapêutico transcorre face a face, o número de sessões é de no
máximo doze e o tempo sugerido é de sessenta minutos. As entrevistas são bastante
detalhadas, buscando informações sobre a história de vida pregressa. A postura do
psicoterapeuta é diretiva, visando interação acerca dos setores adaptativos e evitando
associações livres prolongadas. A reconstrução da história do paciente é baseada nas
primeiras entrevistas e não no material das sessões conforme propõe o modelo
psicanalítico (GEBARA, 2003, p.45). Conforme a necessidade, intervenções
suportivas como o reasseguramento, orientação e sugestão são utilizadas,
estimulando a transferência positiva.

DADOS DA PACIENTE E CONTEXTOS

Paciente com 40 anos, evangélica. Casada há 24 anos, concluiu o Ensino


Médio depois de casada. Empregada doméstica afastada das atividades há um mês.
Eram em 12 irmãos. Um morreu no parto e outro há 5 anos porque bebia muito.
Ficaram 5 irmãos e 4 irmãs todos casados e morando em lugares afastados. O contato
com os irmãos é distante. Pais falecidos. Na infância sofreu repetidas tentativas de
abuso por parte de dois tios, quando os pais eram vivos e separados. Começou a
trabalhar cedo abraçando responsabilidades precocemente. Na infância morou com a
tia após o falecimento da mãe, e na adolescência morou com a pai que era rígido e
agressivo. Engravidou e se casou para se livrar do pai. Tem poucas lembranças sobre
a mãe que morreu aos 41 anos quando ela tinha 6 anos. O pai era funcionário público
e morreu aos 72 anos ao amputar a perna por conta da diabetes.
É mãe de quatro filhos. Não sentiu satisfação em nenhuma gravidez. O primeiro
de 23 anos se recuperou do álcool e das drogas, se casou, tem uma bebê e trabalha
como taxista. O outro filho solteiro filho tem 20 anos. O de 16 anos só estuda, assim
como o caçula de 13 anos. Todos têm maior afinidade com ela e pouca aproximação
com o pai. O marido trabalha como jardineiro, tem 48 anos e não concluiu o Ensino
Fundamental. Muda constantemente de emprego e confere à esposa o papel de
autoridade da casa. Não conheceu os pais e foi criado por parentes. Fala e interage
pouco. Encontra-se impotente sexualmente. É dependente afetivo e frágil. Ela
encontra-se insatisfeita no casamento. A vida sexual é uma obrigação; sente nojo.
A paciente procurou terapia motivada pela depressão. Tinha receita de seis
remédios diferentes. Deixara de tomar a maioria porque lhe causavam indisposição

442
intensa e sono. Chegou bastante chorosa e desacreditada da vida. Deixara de
trabalhar porque tinha muito medo de enfrentar a situação envolvendo os patrões
naquele momento. Registrada há dois anos como empregada doméstica, começara a
perceber indícios de traição por parte da patroa. Julgava que o patrão não merecia
isso, sendo crente e trabalhador. Embora soubesse das traições da patroa sempre
agiu com descrição. Aquela, por sua vez, sentindo-se ameaçada repetidamente
buscava meios para prejudicá-la e demiti-la, o que a fazia sentir-se mal, culminando
no afastamento das atividades. Hoje quando pensa em trabalhar se sente mal e não
quer ver a patroa de forma nenhuma. Há crescente sentimento de desânimo e redução
da auto-estima. Não tem estímulo para se arrumar e toma banho só para não cheirar
mal. Está com 109 quilos, sente vergonha da sair na rua e não consegue levar a
O filho de 16 anos vinha demonstrando tendências homossexuais. Já há algum
tempo vinha abordando a mãe dizendo que precisava lhe contar algo, mas desistia
pela própria falta de coragem e falta de insistência por parte dela. Ela sofria porque a
falta de diálogo ocasionava distanciamento do filho. Afirma que não tinha preconceito
contra homossexuais, mas nunca imaginara que seu filho pudesse o ser. Não tem
plena certeza de que o filho é homossexual, porque em outra circunstância este
demonstrara interesse por uma colega de classe. Associa a tendência homossexual
do filho com a superproteção que demonstrou quando ele era bebê.

DISCUSSÃO

Chegou bastante chorosa e deprimida. Sentiu-se segura e compreendida.


Discorreu de logo no primeiro encontro sobre as várias tentativas de abuso sofridas
na infância, fatos que nunca expusera durante toda a vida. Quando a patroa ligava
para conversarem sobre seu retorno não atendia ao telefone, deixava tocar ou pedia
a um dos filhos que atendesse. Afirmava que a traição por parte desta a incomodava
muito, por considerar o patrão um homem justo e trabalhador. Através da
interpretação teorizada foi pontuado que talvez se visse na patroa, estando
identificada com ela, pois também traíra seu marido e considerava que ele não
merecia. Na verdade, fugia do trabalho para não olhar para si mesma. Afirmou que
fazia sentido. No decorrer das sessões passou a cogitar a possibilidade de atender às
ligações, e assim o fez, percebendo paulatinamente que enfrentar era importante,
aliviava o sofrimento e conferia autonomia.

443
Trouxe numa das sessões que um dos filhos dizia repetidamente que precisava
lhe contar algo. Perguntou o que poderia levar uma mãe a colocar o filho para fora de
casa, e ela respondeu que quando havia amor não existiam motivos para tomar esta
atitude. Ele passava a noite fora sem avisar. Ela ficava bastante nervosa, perdia noites
de sono, imaginava tragédias de todo o tipo, mas não tinha coragem de se aproximar.
Imaginava que ele assumiria a homossexualidade mudando as roupas, o
comportamento social, trocando os amigos e fazendo escândalos, dando o que falar.
Também temia julgamento das pessoas da igreja. No processo terapêutico foi
trabalhada a culpa onipotente da paciente, que se sentia como a principal
colaboradora para a homossexualidade do filho. Sentia-se culpada porque o rejeitara
muito na gravidez. Quando nasceu teve compaixão e quis aplacar o incômodo da
culpa dispensando mimos e cuidados, o que o haveria tornado afeminado, diferente
dos outros filhos. Foi-lhe mostrado quanto sofrimento a culpa lhe trazia. Após duas
sessões dialogou com o filho, abandonou as fantasias angustiantes e entrou em
contato com sua culpa onipotente, sentindo alívio. A atitude de enfrentamento
propiciou aproximação, lhe conferindo maior autonomia para permitir ou proibir
passeios, saber mais sobre as amizades e locais frequentados. Diálogos posteriores
evidenciaram que a homossexualidade era uma hipótese apenas, considerando que
concomitantemente, seu filho passava por um momento de instabilidade próprio da
adolescência, e havia demonstrado interesse por uma menina da sala.
Abordou novamente a questão dos abusos trazida na fase das entrevistas.
Relata que tinha um corpo atraente. Sentia que as pessoas a queriam próxima não
por amor, mas por interesse sobre seu corpo e afazeres domésticos que executava.
Relatou que sentia muita vergonha e culpa de contar, mas se sentia bem na medida
em que o fazia. O terapeuta pôde ser internalizado como um objeto bom, atenuador
de seu superego rígido e acusador. A confiança e vínculo foram se fortalecendo e
proporcionando a transferência positiva em forma de gratidão.
Desde as primeiras sessões expressara sua insatisfação no relacionamento. A
vida sexual não lhe agradava. Tinha relação somente para fazer seu papel de esposa
e sentia que não o amava mais. Não sentia que o marido a auxiliava na educação dos
filhos e nem se posicionava como pai, pois quando era convidado a se impor como tal
dizia que os filhos eram dela. Ele disse numa ocasião que a via como uma mãe, o
que a comoveu. Neste momento, ficou claro que todos na casa eram filhos, inclusive
o marido. Isto lhe foi apontado também com a interpretação teorizada. Pôde perceber
444
que o marido não era refém da vida, e chamá-lo para as responsabilidades de um
adulto não era uma maldade. Compreendeu como a vida se tornara pesada porque
assumia vários papéis, trazendo sobrecarga. Dispôs-se a dividir mais as
responsabilidades com seu cônjuge e tratá-lo como adulto. Lembrou que desde a
infância já auxiliava no cuidado dos irmãos e afazeres domésticos. Começou a
trabalhar cedo e adquiriu responsabilidades muito rapidamente. Tal associação fez
com que se visse melhor nas situações cotidianas, além de perceber que colaborava
na sustentação delas, repetindo aquela postura de mãe cuidadora. Passou a pensar
mais em si e buscar maior autonomia. No processo terapêutico, embora com certa
dificuldade, tentou por várias vezes abordar a questão do casamento com o marido,
mas não houve aprofundamento no assunto por resistência dele. Gradativamente ia
ganhando força para encarar as adversidades.
Numa sessão subsequente relatou uma situação em que a nora passara mal
vindo a desmaiar. Em seguida um dos filhos teve crise de asma por ver a cunhada
desacordada e quase desmaiou também. A paciente disse que o primeiro pensamento
foi sair correndo desesperada. Mas respirou, acudiu o filho e levou a nora no hospital.
Reconheceu isto como grande progresso. Também trouxe um fato onde sua amiga
lhe procurou para saldar uma dívida. Havia fugido por várias vezes anteriormente.
Desta vez convidou a amiga para entrar e dialogaram sobre a dívida. Disse que foi
muito tranquilo porque fora compreendida após se explicar.
Nas últimas sessões demonstrou preocupação quanto ao fim do processo
psicoterápico. Manifestou o desejo de prosseguir com a terapia para compreender
melhor sua tendência à esquiva e resolver definitivamente a questão do seu
casamento, assunto que considerava mais complexo porque envolvia os filhos. Não
faltou e justificou a única vez que chegou atrasada. Na última sessão disse que se
sentia muito melhor. Começava a resgatar sua auto-estima e desejo de viver. Decidiu
retornar ao trabalho e estava ansiosa para tal. Conversara com a patroa chegando a
lhe fazer uma visita, porque já sentia saudades do trabalho, patrões e respectivos
filhos. Estava esperando vencerem os dias do INSS para retomar.

10. CONCLUSÃO

A adaptação inicial da paciente se enquadrava nos quadros graves. Estes


indivíduos têm forte propensão a escolher soluções inadequadas para as situações-

445
problema apresentadas pela vida. Ao longo do primeiro ano de vida estes sujeitos
apresentam extensas fixações nas posições esquizo-paranóide e depressiva (SIMON,
2005, p. 64). Embora apresentem melhores prognósticos os pacientes inclusos nos
quadros medianos, onde as forças de vida prevalecem no fator constitucional (SIMON,
2005, p. 128), a paciente conseguiu importante avanço, demonstrando que os casos
considerados graves também usufruem da PBO.
O estudo confirmou a Psicoterapia Breve Operacionalizada como um método
eficiente, já que aperfeiçoou a adaptação da paciente, possibilitando melhoras em
vários aspectos. No setor Afetivo-Relacional (A-R) ela adquiriu nova postura de
enfrentamento diante das dificuldades familiares, profissionais e sociais. A
passividade perdia a força diante cada atitude que tomava. Ia se aliviando
paulatinamente na medida em que resolvia os conflitos ao invés de ignorá-los. Passou
de “pouquíssimo adequada”, onde há excessivo predomínio das pulsões de morte,
para “pouco adequada”, em que há instabilidade e alternação das pulsões (SIMON,
2005, p. 37). No Setor da Produtividade progrediu igualmente. Com uma adaptação
mais eficiente no Setor Afetivo-Relacional resolveu o impasse quanto ao retorno às
atividades. Decidiu retornar ao emprego superando o receio de conversar com a
patroa, passando para “adequada”. Tendo em vista este panorama, avançou do Grupo
04 (Adaptação Ineficaz Severa) para o Grupo 03 (Adaptação Ineficaz Moderada)
(SIMON, 2005).
Em se tratando dos fatores internos (constitucionais) e externos (ambientais),
a nova força egóica adquirida possibilitou que lidasse melhor com circunstâncias
ambientais hostis, garantindo soluções mais maduras e menos angustiantes. Os
efeitos positivos da PBO geraram o desejo de prosseguir com a terapia no consultório
particular do terapeuta. Fora motivada pelas mudanças importantes que constatou:
sentir-se fortalecida significava maior realização e resgate de autonomia.

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Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II. Tradução e direção de
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 12 p.149-163 (Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud).

446
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Paulo: Vetor Editora, 2003.

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alma Humana. São Paulo: Escuta, 1996.

SIMON, R. Psicologia clínica preventiva. São Paulo: EPU, 1989. Reeditado em

2008 pela mesma EPU, incorporando a proposta de retificação da EDAO.

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Psicólogo 1ª edição. São Paulo: 2005.

SIMON, R. & YAMAMOTO, K. Psicoterapia Breve Operacionalizada em Situação


de Crise Adaptativa. Mudanças – Psicologia da Saúde, 144-151p. Copyright 2008
pelo Instituto Metodista de Ensino Superior.

SIMON, R. & YAMAMOTO, K. Psicoterapia Breve Operacionalizada na clínica


privada. Mudanças – Aletheia 30, p. 172-182. Copyright 2009. Disponível em
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/aletheia/n30/n30a14.pdf. Acessado em 25/10/2019.

447
39- INTERSETORIALIDADE: PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO
CONSTRUÍDO JUNTO ÀS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE E EDUCAÇÃO

Mariana do Nascimento Arruda Fantini


Reynaldo Thiago da Silva Rocha
Alessandra Amado Lia Alves
Luisa Figueiredo Passos
Luiz Henrique Zani Tavares
Dr. Andrés Eduardo Aguirre Antúnez

Resumo: O trabalho apresenta o desenvolvimento do processo de psicodiagnóstico


interventivo de uma criança pré-diagnosticada com transtorno opositor desafiante.
Descreve-se a construção do processo, em busca de uma compreensão diagnóstica
que ofereça uma visão totalizadora, focalizando, para tanto, a integração dos espaços
de vida da criança. Discutem-se as questões intrapsíquicas, intrafamiliares e
socioculturais implicadas no quadro apresentado e as decorrentes dificuldades de
inclusão escolar. Ademais, demonstra-se como a compreensão diagnóstica foi
elaborada em um campo intersetorial; na integração das vivências e história do
paciente nas instituições e serviços que frequenta: CAPS IJ, escola da rede pública e
NAPPA. Pretende-se ampliar as discussões sobre a intersetorialidade no
desenvolvimento de reflexões e condutas clínicas, aspecto fundamental no
fortalecimento da rede de cuidados e, consequentemente, estratégia que favorece
acolher o sofrimento que emerge de maneira processual na vida dos pacientes que
procuram o serviço. Compreender que são diversos os espaços de circulação e que
cada um pode contribuir com sua especificidade traz força para o cuidado ofertado.
No caso apresentado, evidencia-se que a importância está em desenvolver um olhar
para o sofrimento e, mesmo as maneiras mais aniquiladoras de demonstrá-lo, contêm
em si o caminho para sua elaboração.

Palavras-chave: psicodiagnóstico interventivo, intersetorialidade, transtorno opositor


desafiante, inclusão.

448
Introdução

O psicodiagnóstico interventivo de embasamento psicanalítico nasce do


processo diagnóstico de tipo compreensivo proposto por Trinca (1984) que se define
por buscar uma visão do indivíduo como um todo, através da busca por “referenciais
múltiplos, a fim de evitar a unilateralidade que se encontra nos demais processos; e é
um ponto de confluência de uma visão totalizadora do indivíduo humano” (p. 15).
Como enfatiza o autor, a atitude compreensiva implica em “abraçar, tomar e apreender
o conjunto” (p.15), conduta que pressupõe assumir que o sofrimento psicológico, ou
algum desajuste, resulta da contextura entre dinâmicas intrapsíquicas, intrafamiliares
e socioculturais.
No mesmos termos, Barbieri (2010) esclarece que o modelo interventivo
também se sustenta na busca de uma compreensão globalizada do paciente, na
subordinação do processo diagnóstico ao pensamento clínico, mas se amplia ao
realizar “devolutivas que não tem apenas o intuito de informar o paciente... mas de
oferecer a ele uma experiência transformadora por meio do vínculo com o psicólogo,
que coloque em marcha os seus processos de desenvolvimento” (n.p).
Desenvolvido nas clínicas-escola do curso de Psicologia da Universidade
Paulista9 e adotado como modelo de atendimento e de formação dos alunos-
estagiários, o psicodiagnóstico interventivo também se apoia na compreensão de que
“Conhecer alguém implica, entre outras coisas, conhecer a rede de relações da qual
essa pessoa faz parte” (Ancona-Lopez, 1995, p. 27) quer dizer, no desenvolvimento
desta proposta de avaliação psicológica, busca-se entender a criança em seu contexto
de vida, para tanto as visitas são procedimentos bastante valorizados. Agrega-se,
portanto, ao conjunto de práticas, a realização da visita domiciliar, escolar e a outros
espaços e instituições frequentados pela criança. Frente à proposta de uma avaliação
psicológica que não se restrinja a compreensão diagnóstica, o caráter de intervenção
também se fará presente, ou se estenderá a esses contextos e, portanto, às outras
relações significativas da vida da criança. Podemos considerar, dessa forma, que as
devolutivas se estendem para além da clínica psicológica. Como sintetizado por

9Especificamente na Unip, o psicodiagnóstico interventivo estruturou-se como proposta de atendimento a partir


da fenomenologia e, de forma condensada, pode-se encontrar a história do desenvolvimento dessa prática
clínica nos livros: Macedo, R.M. (org) (1986). Psicologia e Instituição: novas formas de atendimento. São Paulo:
Cortez. Ancona-Lopez, M. (org) (1995). Psicodiagnóstico: processo de intervenção. São Paulo: Cortez Editora.
Ancona-Lopez, M. (Org)(2013). Psicodiagnóstico Interventivo: evolução de uma prática. São Paulo: Cortez
Editora.

449
Ghringhello e Borges (2013), incluem-se esses contextos “não só como parte do
processo de avaliação, mas também como objeto de nossa intervenção, através de
devolutivas e orientações em relação à queixa apresentada” (p.127).
Conhecer a escola10 e as relações estabelecidas pela criança com as pessoas
que convivem com ela neste ambiente será fundamental em situações nas quais as
dificuldades, apresentadas como queixa, estão diretamente relacionadas, ou se
manifestam especialmente neste espaço. Assim, em muitos desses casos, lidar-se-á
com crianças que apresentam necessidades de inclusão. Neste ponto, especial
atenção deve ser dada a histórica presença “da ideologia do esforço pessoal,
responsabilizando o aluno pelo seu fracasso escolar, ou seja, ele é culpado pela sua
deficiência e dificuldade no processo de inclusão escolar” (Barros, Silva, & Costa,
2015, p. 150).

Aprofundando esta problemática, por vezes, recebe-se para atendimento


crianças com transtornos psiquiátricos e, por correspondência, lida-se com o conjunto
de problemas enfrentado pela criança e pela escola para uma inclusão favorável, tanto
para a criança quanto para todos os outros integrantes do universo escolar. Desafio
grande uma vez que, como mostram Sanches e Oliveira (2011), “a viabilidade das
proposições da Educação Inclusiva só dará certo se ocorrer quebra de paradigma em
torno do doente mental” (p. 417).

Portanto, a leitura diagnóstica, a partir do modelo interventivo, dialoga e se


adapta à estratégia da intersetorialidade que:

“deriva da junção da expressão/prefixo inter agregada a um conjunto


de setores que, ao se aproximarem e interagirem entre si, podem
produzir ações e saberes mais integrais e totalizantes. O prefixo inter é
oriundo do latim inter que significa "no interior de dois"; "entre"; "no
espaço de"; "posição intermediária", assim a palavra intersetorialidade
desvela: 1) Relações entre dois ou mais setores; 2) Que é comum a
dois ou mais setores” (Cavalcanti, Carvalho, Miranda, Medeiros,
Dantas, 2013, p. 193).

10 Considera-se “escola uma instituição cujas funções são o ensino e a formação dos alunos, sendo ao mesmo tempo um
espaço físico e um campo relacional que envolve professores, alunos, funcionários e direção” (Ghringhello, & Borges, 2013,
p. 128).

450
Objetivos

Este trabalho busca mostrar o percurso avaliativo e, ao mesmo tempo


interventivo do psicodiagnóstico realizado, na clínica-escola de uma Universidade
particular, de uma criança com pré-diagnóstico de TOD -Transtorno Opositor
Desafiador11. Mais do que isso, pretende-se demonstrar como a compreensão
diagnóstica foi construída em um campo intersetorial; na integração das vivências e
história do paciente nas instituições e serviços que frequenta: CAPS IJ, escola da rede
pública e NAPPA12. Pretende-se oferecer uma discussão que contribua para a
reflexão sobre as práticas clínicas intersetoriais e, especificamente, nas situações de
sofrimento psiquiátrico, iluminar os impasses vividos pela escola, criança e família no
caminho da inclusão.

Relato de experiência: o pequeno Incrível Hulk

Rafael13 tem sete anos, e sua mãe Larissa chegou à clínica-escola da UNIP
com um discurso choroso e angustiado sobre o comportamento agressivo de seu filho.
Sempre que era contrariado por figuras de autoridade, Rafael ficava nervoso e
agressivo, jogava coisas e se descontrolava, reações que a mãe nomeava como
“crises”. Desde que o filho tinha três anos esses comportamentos se evidenciaram: já
na creche ele agredia e passava saliva no rosto dos colegas. Atitudes que foram
piorando ao longo dos anos até que, nos dias atuais, o menino vive uma complexa
situação escolar: tem dificuldades de cumprir regras e combinados durante as aulas,
sente-se frustrado quando as situações saem de seu controle e fica com muita raiva,
agredindo seus colegas e professores a ponto das crianças se sentirem ameaçadas
e fugirem quando ele se aproxima.
Na entrevista inicial e de anamnese, Larissa contou que Rafael teve um
problema no nascimento. O parto foi de fórceps e como consequência, a criança teve
seu crânio “afundado” na região do lobo frontal e seu braço deslocado. No entanto,
alguma gravidade estava presente porque Rafael frequentou por cinco anos a

11
F91.3 (CID 10).
12
O NAAPA é um órgão da Prefeitura de São Paulo que visa prestar assistência e apoio aos estudantes com
desafios sociais, emocionais ou culturais para a garantia do direito à escolarização.
13 Todos os nomes mencionados são fictícios, foram alterados para preservar a identidade dos pacientes. Ao

iniciar o atendimento no Centro de Psicologia Aplicada, os pacientes assinam um TCLE autorizando a utilização
de dados para estudo, pesquisa e publicações, tendo em vista o caráter formativo da instituição clínica-escola.

451
instituição Lucy Montoro14, sendo acompanhado por fisioterapeutas e fisiatras, ou
seja, iniciando a vida com uma perda de funcionalidade.
Com relação à história de vida e ao contexto familiar um dado importante está
no fato do pai de Rafael ser dependente de álcool. Segundo a mãe, o marido não
chega a ser agressivo, porém chega em casa todos os dias alcolizado e vai dormir.
Larissa chegou a contar que Rafael se preocupa muito, quando o pai chega e vai
tomar banho alcoolizado, Rafael o segue porque tem medo dele escorregar no box e
se machucar. Os avós, tanto maternos como paternos, também são alcoolistas.
Referindo-se à um longo percurso de busca por tratamentos e ajuda
especializada, Larissa apresenta o diagnóstico de TOD oferecido por um psiquiatra,
em uma das tantas passagens do menino pela UBS e pelo CAPS IJ. No entanto,
apesar de já ter frequentado tantas instituições de saúde pública e, mesmo com este
diagnóstico, existia uma descontinuidade nos tratamentos e, ao procurar pelo serviço
da clínica-escola, a mãe procurava a confirmação para o possível diagnóstico de TOD,
além de pedir por orientação para lidar com o filho em relação a todos os problemas
que o garoto tem apresentado, principalmente da escola.
Ao longo das sessões do psicodiagnóstico interventivo, entre conversas com a
mãe e com a criança, o problema de desadaptação e de episódios de fúria, pareciam
ser mais recorrentes na escola do que em casa. Ocorriam em situações específicas,
com os professores especialistas que, de acordo com o discurso de Larissa, não
tinham o preparo adequado para lidar com Rafael. A mãe revelava a expectativa de
que as pessoas que conviviam com Rafael, soubessem como se dirigir a ele de uma
forma que ele não tivesse uma reação muito forte, não ficasse contrariado ao ponto
de explodir. Talvez, a manutenção de um modelo construído durante todos os anos
de tratamento no Lucy Montoro e que se alicerçava na ideia de que o menino
precisava de cuidados especiais.
No início da avaliação psicológica, o convívio na escola estava insustentável
tanto para a criança quanto para a mãe que já não conseguia mais ter contato direto
com a coordenadora e com a diretora da escola. Na visão de Larissa, as dirigentes se
recusavam a recebê-la quando ela tentava conversar. Nas aulas específicas como
inglês, artes, tecnologia e educação física, Rafael apresentava de forma mais

14 Os centros Lucy Montoro são uma rede de reabilitação do governo do Estado de São Paulo, referenciada
internacionalmente, sendo muito concorrido pelos pacientes, os processos de triagem e admissão rigorosos (só
atendem casos de pacientes com limitação às atividades básicas diárias).

452
recorrente os comportamentos agressivos que, de acordo com a mãe, surgiam
quando os professores não conseguiam explicar direito o que precisava ser executado
pela criança e, não entendendo a proposta, o menino partia para a agressão. Frente
a este contexto, os professores acabavam deixando Rafael fazer o que queria,
evitando lidar com essa situação de agressividade. Apenas o professor generalista,
responsável pela turma, João, sabia lidar com Rafael. Nas palavras de Larissa, “este
professor senta com Rafael para explicar direito as tarefas, e não permite que ele fique
excluído para resolver a situação” (sic).
Assim, a problemática de Rafel começou a se tornar um problema de inclusão
pois, a não adaptação do garoto ao ambiente escolar era nítida e, mesmo que os
responsáveis dentro da escola quisessem ajudar, não pareciam ter recursos
estruturais, pedagógicos, de pessoal enfim, de políticas públicas para uma inclusão
eficiente. Uma fala da mãe que traduz esse contexto, ocorreu em um dos
atendimentos quando contou, com a voz embargada, que a diretora e a coordenadora
sempre falam para ela que seu filho “surta", termo que a deixa muito magoada pois,
na sua percepção, "quem surta é louco, e meu filho não é louco” (sic).
Nas entrevistas iniciais, Larissa dizia que a escola estava cobrando o
diagnóstico do menino, pois outras crianças já haviam apresentado problemas de
comportamento que foram resolvidos. Por não compreenderem a dificuldade para a
obtenção de um diagnóstico mais definido e para o desenvolvimento de um
tratamento, no entendimento de Larissa, a escola a acusou de negligente,
denunciando-a ao Conselho Tutelar. Ao relatar esse fato, Larissa chorava muito,
demonstrando muita mágoa e uma grande angústia por temer perder a guarda do
filho. Durante as entrevistas devolutivas, como equipe terapêutica (supervisor de
estágio e estagiários) foram oferecidas várias orientações no sentido de mobilizar
Larissa a buscar soluções mais assertivas, que pudessem resolver a situação
conflitiva que havia se estabelecido na relação com a escola.
No desenrolar do processo de psicodiagnóstico, os problemas com a escola
pareciam aumentar de forma exponencial. Larissa buscou apoio, nas sessões de
devolutiva parcial, para contar que Rafael teve novas crises na escola e que a
instituição de ensino chamou o Samu para contê-lo, sem avisá-la. Surgia novamente
a fantasia de que poderia, por responsabilidade da escola, perder o filho. Assim, uma
guerra acaba sendo declarada; Larissa decide denunciar a escola para a Delegacia
de Ensino.
453
Paralelamente, logo após a entrevista inicial, Rafael foi encaminhado para o
CAPS IJ sendo solicitada uma avaliação multidisciplinar e, se necessário, posterior
acompanhamento. A vaga foi concedida e o menino passou a frequentar as atividades
do CAPS IJ e raramente falta. Foi feita uma visita para construir uma parceria com o
trabalho que vinha sendo desenvolvido pelos profissionais do CAPS IJ e para articular
um diagnóstico que integrasse os múltiplos aspectos da vida de Rafael, seguindo os
pressupostos do psicodiagnóstico interventivo. Outra finalidade era observar a forma
de estar do menino no CAPS IJ.
Durante a visita, percebeu-se que Rafael estava extremamente concentrado na
atividade que foi proposta, fazia tudo caprichosamente e esperava, pacientemente,
quando pedia algo a um dos profissionais. Após a observação do grupo, a equipe se
reuniu com os profissionais do CAPS IJ, que informaram que nada do que era relatado
na escola acontecia neste espaço, o que reforçava a ideia de que algo poderia estar
acontecendo, fundamentalmente, na escola. A terapeuta ocupacional já tinha tido
alguns encontros com a orientadora da escola e a sua sensação era de que existia
por parte do ambiente escolar um discurso um pouco agressivo e estigmatizado sobre
o menino.
No CAPS IJ Rafael teve apenas um momento mais delicado, chegou para o
grupo proposto em seu projeto terapêutico singular, grupo que tem uma proposta
direcionada, e pediu para brincar com os intrumentos musicais dispostos no espaço,
atividade que estava fora do previsto. Foi orientado que seria importante aguardar o
fim do grupo para poder brincar com os instrumentos. Rafael deixou clara sua
insatisfação, ainda assim conseguiu sentar-se à mesa com a mãe e produzir um
trabalho gráfico sobre o Setembro Amarelo, tema de abordagem delicada e que tende
a mobilizar os envolvidos na discussão.
Uma das etapas da atividade era colar sua produção em uma folha de papael
craft junto aos demais e deixar exposto dentro do CAPS IJ, nesse momento Rafael,
ainda incomodado, colou seu trabalho e pediu novamente para brincar com os
instrumentos, a orientação foi retomada e enfatizou-se que ele iria brincar, mas que
precisaria esperar o final do grupo, junto aos demais, para assim ter seu pedido
atendido.
Rafael acresce no incômodo e passa a se colocar de maneira indisponível,
senta no chão e repete diversas vezes que gostaria de brincar com os instrumentos
musicais, dinâmica que é recorrente em sua vida, principalmente na escola, e tende a
454
ser o início de uma desorganização importante que culmina em comportamentos
agressivos. A abordagem nessa situação foi acolher o incômodo do garoto, e construir
que ele tinha condições de aguardar o momento oportuno para brincar, ainda que
precisasse se irritar e expressar sua irritação daquela maneira, tudo ficaria bem, e que
a equipe estava ali para apoiá-lo.
Rafael se mateve sentado no chão e em silêncio até o final do grupo, sempre
com um terapeuta próximo e sua mãe alternando entre a atividade do grupo e os
cuidados do filho. Esse episódio se mostrou importante para secompreender o
caminho que a angústia de Rafael faz, que ele realmente sofre quando toma contato
com uma impossibilidade, e quando é validado nessa angústia suas possibilidades de
se apropriar da experiência e extrair dela uma outra maneira de vivê-la são
significativas.
Realizou-se a visita à escola e a equipe foi recepcionada pela coordenadora e
outros colaboradores administrativos. Para a reunião foram chamados todos os
professores que tinham contato com o menino para que contassem um pouco sobre
o que ocorria com Rafael. Estavam, também, presentes duas consultoras do NAAPA
(Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem), que integram os
acompanhamentos oferecidos a Rafael. No total, haviam 30 professores aguardando.
Cada um relatou uma passagem difícil e desafiante que se deu com o garoto. Todos
os professores pareceram bem preocupados e engajados na busca por uma solução.
Nas crises, Rafael parece perder totalmente o controle, arremessa objetos e parte
para dar socos e “voadoras” nos colegas e professores. Recentemente jogou uma
mesa escada abaixo e machucou uma professora. Houve outros relatos graves como
uma menina que foi transferida de escola também por causa de Rafael. Muitas
crianças são machucadas pelo menino e as mães dessas crianças estão começando
a ficar muito incomodadas, inclusive, começaram a se unir para fazer um abaixo-
assinado para o garoto ser expluso da escola. Quando Rafael tem crises, as crianças
ficam apavoradas, professores fecham as portas das salas de aula com a intenção de
proteger seu grupo de alunos.
Percebeu-se, por parte dos profissionais da escola, em conjunto com a equipe
multidisciplinar que acompanha o menino, uma grande preocupação e disponibilidade.
A coordenadora contou que já tentaram de tudo o que foi solicitado pelo CAPS IJ e
pelo NAAPA, como fazer acordos antes dos eventos acontecerem, dar a ele a
responsabilidade de ser auxiliar dos professores, conversar com ele, explicar, criar
455
laços, e outras tentativas, mas Rafael não responde bem e as crises de ira e de
descontrole continuam.

Discussão
Na conclusão do psicodiagnóstico compreendeu-se que Rafael lida o tempo
todo com uma fantasia de fracasso, de incompetência provinda, possivelmente, da
situação inicial de vida, desde uma espécie de “excepcionalidade”. Do ponto de vista
cognitivo, a criança apresenta recursos preservados, ou seja, o esmagamento
craniano, no momento do nascimento, não trouxe sequelas físicas. Mesmo assim,
toda vez o menino vê sua competência colocada em questão, algo que ocorre
principalmente no contexto escolar, é lançado em uma angústia – sofrimento,
colocando-se novamente na condição de não funcionalidade. Ao longo do processo,
percebe-se que a agressividade e a violência se colocam como a forma de Rafael
fazer uma afirmação de si, ou seja, de estabelecer-se como pessoa.
Junto a essa situação, encontra-se um contexto transgeracional, marcado pela
dependência do álcool que revela uma situação de fraturas do ethos, por um mundo
contemporâneo que impede, muitas vezes, o estabelecimento do ser (Safra, 2004).
Assim, se poderia dizer que “a droga seria um meio de suturar falhas no ethos
humano, ali onde não há presença do Outro há um objeto químico em um lugar
simbólico” (Fantini, 2006, p.25). Frente a este contexto, no qual o álcool e / ou as
drogas fazem parte da vida familiar, Fantini (2006) pôde compreender que: “a
agressividade ou até a violência, podem se desenvolver a partir de um anseio por
destruir tudo que pareça hipócrita no campo social, sendo essa a única possibilidade
de existência” (p. 177).
Da mesma forma, esse sofrimento, sem lugar de acolhimento no campo social,
sem entorno, procura ser resolvido ou melhor, destinado pela mãe por meio de uma
longa peregrinação pelas instituições públicas de saúde e de educação. De certa
forma, ela também faz uma afirmação de si pelas denúncias e processos que vai
movendo. Uma conduta que não oferece uma ajuda efetiva para Rafael, mas parece,
também, ser a forma encontrada por Larissa para ter alguma potência, alguma
competência. Une-se a esse quadro, o fato de que:

“o adoecimento de um membro da família representa, em geral, um


forte abalo... Muitos familiares não estão preparados para enfrentar os

456
problemas, não sabem como agir. Encarando as dificuldades,
tentando explicar o aparecimento da doença, essas pessoas
mergulham na turbulência de suas dúvidas e conflitos” (Melman, 2001,
p. 19-20).

Paralelamente, vê-se o desamparo das instituições. Por mais que possam fazer
algo, inclusive, no âmbito escolar, acoplando recursos como a equipe do NAPPA, não
conseguem levar a cabo um tratamento e um acompanhamento em função da
segmentação do SUS e da educação pública, e das limitadas condições de trabalho
nas quais os profissionais também estão inseridos. Conjuntura que acaba retornando
como um revide sobre a família, uma vez que decorre uma angústia ao não se
encontrar um efetivo atendimento para Rafael. De maneira conclusiva, percebe-se a
dificuldade das escolas da rede estadual de São Paulo, em colocar em prática as
metodologias que agreguem o desenvolvimento educacional de seus alunos frente às
situações de adoecimento mental. Pois carecem de recursos preparatórios, para
implementar medidas profiláticas e preventivas, deixando-os com as mãos atadas às
situações problemáticas.
Vemos o papel da clínica-escola e fundamentalmente uma concepção
metodológica de psicodiagnóstico, ao buscar essas múltiplas visões, para compor
uma leitura sobre o que acontece com a criança, integrando o campo intrapsíquico,
intersubjetivo, transgeracional e social. Colocando-se também como um polo de
integração e de possibilidade de articulação desses vários atores.

Assim, ampliar as discussões sobre intersetorialidade no desenvolvimento de


reflexões e condutas clínicas é fundamental para fortalecer a rede de cuidados e,
consequentemente, conseguir acolher o sofrimento que emerge de maneira
processual dá na vida dos pacientes que nos procuram. Como sustentam Sanches e
Oliveira (2011) é fundamental que ocorram:

“discussões intersetoriais entre profissionais da escola e da saúde,


para assim, garantir que... lhes seja facultado o direito de que suas
existências-sofrimento sejam minimizadas, assim como ampliar,
aprimorar e melhorar os vínculos com essas famílias” (p.417).

457
Enfim, compreender que são diversos os espaços de circulação e que cada um
pode contribuir com sua especificidade traz força para o cuidado ofertado. No caso de
Rafael a importância está em desenvolver um olhar para o sofrimento, e que mesmo
as maneiras mais aniquiladoras de o demonstrar, contêm em si o caminho para sua
elaboração, nesse sentido:

“Ao acompanhar o paciente em seus percursos e vivências de


situações difíceis de suportar o terapeuta pode, com o paciente, rasgar
o véu hipnótico das situações e condições históricas do viver, para
delas deixar emergir um universo de virtualidades que são outras
tantas possibilidades de vivenciar a mesma situação [...]” (Martins,
2017, p. 119).

Cabe também uma reflexão sobre as especificidades dos dispositivos


envolvidos. É fato que a inclinação para a saúde está presente na Clínica-Escola, no
CAPS IJ e no NAAPA, e que a Escola não está familiarizada com o discurso. Nesse
sentido é fundamental apoiá-los no processo, tendo em vista que acolher
comportamentos agressivos dentro do ambiente escolar é significativamente delicado,
mas se propõe ser possível e necessário.

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460
40- TRANSMISSÃO PSÍQUICA E PATOLOGIA: UMA DISCUSSÃO
PSICANALÍTICA DE THIS IS US.

Juliana Beatriz Ferreira de Souza


mestranda em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia – IP/USP
Isabel Cristina Gomes –
Professora Titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia –
IP/USP

Tema

Pretende-se com este estudo teórico refletir acerca de como a transmissão


psíquica implica na formação de sintomas da terceira geração de uma família. Para
isso, focaremos no alcoolismo, presente nas três gerações da família fictícia do
seriado televisivo This is Us, buscando discutir esses aspectos por meio da
Psicanálise de casal e família, mais especificamente sobre o processo de transmissão
psíquica.

Introdução

Na contemporaneidade, podemos perceber como alguns sintomas tem se


evidenciado em alguns sujeitos e em alguns contextos familiares. Depressão,
ansiedade, síndrome do pânico, além das compulsões por mercadorias, alimentos e
bebidas são exemplos desses sintomas e nos fazem pensar no que está por trás
deles, se dizem de algum conteúdo psíquico que ainda não foi elaborado e está se
evidenciando por meio de mal-estares na geração atual. Autores como Birman (2007),
Kaës (2014), Bauman (2001), Cypel (2016) tem apontado esse mal-estar, percebendo
um sujeito que diante do cenário atual, em que as referências do passado têm sido
deixadas de lado em prol de outras que ainda não se estabeleceram totalmente, pode
apresentar sintomas, se sentir inseguro frente ao que seguir, e ver no consumo uma
forma de lidar com o mundo que o rodeia. Mas, para além desses fatores, pensando-
os pela ótica da Psicanálise de Casal e Família, podemos depreender que esses
sintomas podem dizer não apenas do sujeito, mas similarmente do grupo familiar do
qual faz parte, o que nos auxiliaria na compreensão da sua patologia. Assim, o

461
presente trabalho buscará discutir como a transmissão psíquica, isto é, aquilo que o
grupo familiar irá transmitir para o sujeito, pode influenciar em seus sintomas.
Cabe ressaltar que o presente trabalho é um recorte de um projeto de mestrado
que busca analisar como a transmissão psíquica têm influência em como os sujeitos
da terceira geração de uma família irão construir sua conjugalidade. Para isso, iremos
tomar como estudo de caso o seriado televisivo This is Us (Fogelman, 2016), lançado
em 2016, que acompanha a vida da família Pearson ao longo dos anos. Durante o
contato com o material ficcional escolhido para análise os sintomas dos sujeitos se
evidenciaram e apareceram em suas relações atuais. Daí consideramos importante
refletir sobre os mesmos, uma vez que esses sintomas se repetem ao longo das
gerações.
Para tanto, iremos retomar alguns apontamentos da Psicanálise de Casal e
Família sobre como ocorre a transmissão psíquica para, em seguida, passarmos à
discussão desses aspectos por meio do material ficcional escolhido.

Transmissão psíquica e constituição do sujeito: apontamentos da


Psicanálise de Casal e Família
O sujeito, ao nascer, é inserido em um grupo familiar, com uma história que o
antecede e da qual ele passa a fazer parte. De acordo com Granjon (2000), não é
possível para uma geração viver sem ser precedida por uma geração anterior e sem
se perpetuar para que uma próxima geração possa existir, uma vez que “há, antes de
tudo, a vida a ser transmitida” (p. 25). Essa transmissão diz respeito à ideia de
progresso, aos mitos que fundam a sociedade e lhe dão seguimento e aos indivíduos
que dela vem a fazer parte (Granjon, 2000).
Mas, para que isso aconteça e o sujeito se torne parte desse grupo, Freud
(1914/1996) aponta que é imprescindível que ao nascer, os pais invistam na criança
para que seu ego se desenvolva, pois mesmo o auto-erotismo estando presente
desde o primeiro momento, é imprescindível a interferência de algo que incite o
narcisismo ali.
Conforme Kaës (2014), esse processo de transmissão no grupo familiar ocorre
por meio dos espaços psíquicos constituídos nas relações entre os sujeitos, estando
as alianças inconscientes na base desse processo. Contudo, essas alianças são
anteriores ao sujeito, uma vez que, quando este nasce, é inscrito nas alianças já
estabelecidas pelas gerações que o antecedem (Kaës, 2014).
462
Para o autor, as modalidades de alianças inconscientes são estabelecidas em
conjunto entre os sujeitos e os outros que dela fazem parte, e mesmo quando é
suscitada por um, há o acordo de um outro, de maneira que cada parte ou todas se
beneficiem, o que vale para as relações familiares, de casal, de grupos e das
instituições. Para isso, operações como a negação, o recalque ou a foraclusão são
um requisito para cada um que compõe essa aliança, garantindo algo de interesse do
indivíduo, mas também de interesse em comum dos membros que a estabelecem
(Kaës, 2014). Contudo, esses interesses por trás daquilo que foi acordado
permanecem inconscientes para os sujeitos, de modo a preservá-los, assim como a
aliança e o objeto de interesse mútuo (Kaës, 2014).
O autor menciona a noção de intersubjetividade, presente nesse processo,
compreendendo a mesma enquanto o lugar particular da realidade psíquica em que
os indivíduos se relacionam na qualidade de sujeitos do inconsciente, a
intersubjetividade consistindo naquilo que esses sujeitos relacionados uns com os
outros compartilham de mecanismos inconscientes em comum, como as negações,
recalques, desejos inconscientes, fantasias, interdições que os compõem (Kaës,
2001, 2011, 2014).
Por outro lado, esse conceito não se refere apenas aquela parte que compõe o
sujeito a partir da individualidade de um ou mais sujeitos, mas aquilo que se dá em
um lugar psíquico específico de determinada configuração vincular Essa
compreensão da intersubjetividade, na opinião de Käes (2011), colabora com o
entendimento de psicopatologias da atualidade e de sofrimentos psíquicos que
somente são passíveis de reflexão e de serem trabalhados se relacionados com as
posições e importância que estas tiveram ou ainda tem para os outros sujeitos e para
o grupo em que o sujeito se constituiu e está inserido.
Tal apontamento do autor se aproxima do que Berenstein (2011) percebe ao
tratar do vínculo. Isto é, como o vínculo constrói um inconsciente em comum, que
pode desmoronar, é plausível que os eus empreguem afirmações para conseguirem
sustentar a ligação e encobrir essa possibilidade de decaimento, que também acaba
por gerar certas formas de sofrimento que só podem ser entendidos nesse contexto.
Isso, pois, cada casal e cada família tem a sua própria construção vincular, que não
necessariamente é igual à de outros, o que denota a complexidade inerente ao vínculo
(Berenstein, 2011).

463
Desta forma, tomar o sujeito a partir dos vínculos que construiu e do grupo
familiar no qual está inserido possibilita que se compreenda sua história familiar, o
legado que recebeu, o que pode vir a contribuir para o entendimento de seus sintomas
e se eles estão presentes nas gerações anteriores. Mas, de qual modo esse legado é
passado de geração para geração? Segundo Kaës (2014), há modalidades de
transmissão que vão influenciar em como esses conteúdos serão recebidos pelos
sujeitos: se pela ordem da apropriação, de um conteúdo que pode ser apropriado, ou
se pela ordem de não ditos, de um atravessamento.
Assim, a transmissão intergeracional é aquela que ocorre entre as gerações e
refere-se aos mitos familiares, às tradições, tendo conteúdos passíveis de serem
trazidos à consciência. Por conseguinte, já diz de um processo de metabolização, em
que o sujeito se apropria e dá significado para o que lhe foi transmitido via direta (Kaës,
2014). A transmissão transgeracional, por sua vez, alude a conteúdos não elaborados,
como alguma perda, segredo, trauma, podendo pular alguma geração, não
necessariamente estando presente em todas. É algo que atravessa o sujeito e tem
influência em sua vida, desembocando conteúdos que, por não serem da ordem de
expressão, aparecem em forma de sintoma, de não ditos, sendo de difícil acesso
(Kaës, 2014).
Em vista desses conteúdos que são transmitidos e que podem se referir a
elementos não elaborados pelas gerações anteriores, Correa (2003) assinala a
relevância do sujeito tomar conhecimento desse material, podendo elaborá-lo e
transformá-lo, uma vez que a transmissão psíquica é um processo que empreende a
todo momento um trabalho de elaboração e de modificação. É que o sujeito, embora
receba esses conteúdos, não é passivo nesse processo, conforme Kaës (2001) e
Granjon (2000), já que é herdeiro desses conteúdos, tendo a possibilidade de, como
Correa (2003) menciona, se apropriar do que recebeu, elaborá-lo e dar outro
significado para eles.
Isso posto, e levando em consideração as elucidações dos autores
mencionados acima, depreendemos que ao nascer, o sujeito vem a ocupar um lugar
previamente designado a ele e a participar de alianças inconscientes anteriormente
estabelecidas pelo seu grupo familiar, recebendo conteúdo ou sendo atravessado por
eles quando não puderam ser elaborados e transformados pelas gerações anteriores.
A herança psíquica funcionaria, assim, enquanto um lugar que o sujeito é chamado a
ocupar dentro do cenário familiar no qual está inserido, podendo ou não elaborar esse
464
lugar, transformá-lo e lhe dar um novo sentido, como mostra Kaës (2001). Porém,
quando não há essa possibilidade, o sujeito se torna parte de uma trama inconsciente
perpassada por não ditos, pactuando alianças inconscientes que o ajude, assim como
os outros sujeitos que dela fazem parte, a usufruírem de alguma defesa para tamponar
esse algo que não pode vir à tona (Kaës, 2014).
Nesses casos, a aliança inconsciente estabelecida no grupo familiar pode
configurar uma aliança defensiva, como elucida Kaës (2014), funcionando como um
pacto denegativo, o qual é instituído para assegurar as defesas que os indivíduos
necessitam quando iniciam, configuram ou almejam sustentar algum relacionamento
(Kaës, 2014). Desta forma, Kaës (2014) conclui que este pacto opera um papel
metadefensivo para aqueles que fazem parte dele, sendo acordado enquanto uma
maneira de solucionar alguns conflitos psíquicos e que permeiam os aspectos da
relação empreendida pelos sujeitos que nela estão.
Para que haja um comprometimento nesse acordo e se empreenda um trabalho
contínuo no mesmo, cada sujeito deve executar de maneira assimétrica ou simétrica
algum mecanismo de negação, repressão, desaprovação, entre outros, na relação e
em cada um dos membros que a compõe (Kaës, 2014). Para tanto, Kaës (2014)
compreende que é imprescindível que haja a participação de um outro ou outros, pois
não se realiza aliança sozinho, uma vez que é preciso que um outro acredite junto
com o sujeito ou que pelo menos finja acreditar para que ambos se beneficiem de
alguma forma. Esse acreditar em conjunto resguarda os sujeitos de se decepcionarem
e da perda daquilo que elegeram como objeto para acreditar fielmente (Kaës, 2014).
Contudo, quando do risco dessa crença decair ou da hostilidade que o sujeito
pode sentir caso empreenda outra forma de ver a realidade, a angústia toma conta
(Kaës, 2014). É que o pacto denegativo, justamente por funcionar enquanto um
acordo daquilo que não se quer saber, se há chances de se saber, os envolvidos se
sentiriam ameaçados, se empenhando para continuar a recobrir aquilo com o que não
querem ter contato.
Assim sendo, esses pactos estabelecidos inconscientemente entre os
membros do grupo familiar funcionam como uma forma desse grupo lidar com algum
conteúdo, e quando do risco desses pactos decaírem diante de alguma situação,
podem se evidenciar, por exemplo, por meio de sintomas, que embora venham a
aparecer em um sujeito, podem dizer de toda a dinâmica daquele grupo familiar e do
lugar que esse sujeito foi chamado a ocupar no grupo. Assim, os sintomas de algum
465
membro da família podem ser uma explicitação de alguns impasses e repetições que
compõem o grupo familiar no qual se subjetivou. Nesses casos, é como se esse
sujeito, em dado momento de sua vida, percebesse que está fazendo algo que o
remete àquilo que seus pais, avôs também fizeram durante suas vidas ou que
desejaram fazer, inclusive, tendo sintomas similares. Por conseguinte, se pensarmos
no sujeito enquanto constituído em um grupo e que se subjetiva nele por meio do
vínculo com os outros membros que dele fazem parte, podemos entender algumas de
suas patologias.
Tais aspectos podem ser observados na família Pearson, em que os sujeitos
da geração atual têm cada qual seu sintomas, os quais, se observados por essa ótica,
se referem não apenas à eles, mas a todo o grupo familiar e aos pactos que foram
estabelecidos entre eles inconscientemente. Desta forma, escolhemos um desses
sintomas, mais especificamente o alcoolismo, apresentado por um desses sujeitos,
em busca de olhar para além do sujeito que o apresenta.

This is Us - A família Pearson e o alcoolismo ao longo das gerações

Kevin Pearson, já adulto, com 38 anos, têm dificuldade em sua carreira de ator
ao se questionar se é bom o bastante para cada novo papel que se propõe interpretar,
o que o leva a duvidar de si mesmo e trocar várias vezes de produções, passando
pela TV, pelo teatro e pelo cinema. Quando se aproxima de atingir o auge nessas
produções, é como se desse um jeito de “estragar tudo” por não saber lidar com a
situação e não se sentir bom o bastante.
Esse sentimento de não ser bom o suficiente para algo o acompanha desde a
infância, quando tinha que dividir as atenções de seus pais com seus outros dois
irmãos: Kate, sua irmã gêmea, e Randall, seu irmão por adoção. Como Kate tinha
problemas com peso e seu pai, Jack, tentava confortá-la e compensar seu excesso
de peso, enquanto Rebecca voltava suas atenções para Randall para que ele não se
sentisse excluído por ser negro e adotado. Deste modo, Kevin cresceu tentando
chamar a atenção dos pais, sentindo que suas coisas pareciam menos importantes
para eles, duvidando de si mesmo em tudo o que fazia.
Vale ressaltar que tanto Kevin, como os irmãos configuram o “The big three”
pelos pais, tendo, assim, sido colocados em lugares: Kevin foi colocado como número
1, por ter sido o primeiro a nascer, o primeiro a andar e considerado como aquele que

466
conseguiria o que quisesse e que estaria encaminhado na vida, enquanto Kate foi
colocada como número 2 e Randall como número 3.
No presente, nesses momentos em que duvida de si mesmo ou que alguma
situação o remete a essas questões à algum acontecimento do passado, como a
morte de seu pai quando tinha 16 anos ou de quando perdeu a chance de conseguir
uma bolsa de atleta na Universidade por ter se acidentado durante um jogo de
futebol, Kevin recorre à bebida como uma válvula de escape, cedendo ao vício de
maneira a estragar novos papéis e relações. Kevin também bebe quando precisa lidar
com alguma questão e não há ninguém para auxiliá-lo, como por exemplo, quando
teve que decidir se deveria continuar em um seriado de televisão ou se mudar para
outra cidade e se arriscar em uma peça de teatro.
Kevin apresenta as questões que autores como Bauman (2001), Birman (2007)
e Cypel (2016) tem observado nos sujeitos contemporâneos acerca de uma ausência
de referência e insegurança frente ao que seguir, e do consumo e uso de alguma
substância para lidar com isso e tamponar algum tipo de falta.
Entretanto, se nos atentarmos à história da família Pearson, percebe-se que o
uso do álcool é recorrente na família e que atravessa as gerações. Tanto o avô paterno
de Kevin, como seu Tio Nick e seu próprio pai, Jack, recorreram à bebida em algum
momento de suas vidas. O pai de Jack bebia a ponto de ser abusivo com sua esposa
e com os filhos, comportamento este que Jack tentava contornar, ajudando a mãe e
ao irmão. Contudo, o próprio Jack começou a beber para lidar com o que aconteceu
em seu passado durante a Guerra, o que se tornou posteriormente um vício que quase
acabou com seu casamento em duas ocasiões. Seu tio Nick, ao ter se isolado depois
da Guerra do Vietnã em que ele e Jack participaram, também usa a bebida como um
refúgio para lidar com o que aconteceu durante esse período.
Tanto Nick como Jack demonstram recorrerem à bebida para lidarem com
aquilo que não conseguem falar, como se não tivessem com quem dividir o que
vivenciaram durante a Guerra. É como se beber fosse uma tentativa de procurar um
amparo para lidarem com suas angústias.
Como mencionado acima, Kevin também recorre ao álcool quando não sabe
lidar com as várias situações de sua vida e com o luto pela morte de seu pai. Kevin
passa a sensação de ter uma vida vazia, apesar de ser um artista, com dinheiro, fama
e várias mulheres interessadas nele. Mas é como se algo faltasse, algo que ele parece
buscar desde criança, mas que ainda não conseguiu encontrar. Podemos perceber
467
essa tentativa quando ele tenta retomar o relacionamento com sua ex-esposa ou se
aproximar de seu irmão adotado ou quando tenta morar com a mãe e o padrasto.
Levando em conta os apontamentos de Kaës (2001, 2011, 2014) sobre os
lugares que o indivíduo é chamado a ocupar dentro do grupo familiar, pode-se pensar
sobre o significado de ocupar o lugar de número 1, daquele que seria o sucesso da
família para Kevin. Ocupar o lugar de número 1 pareceu significar para seus pais que
Kevin poderia estar por conta própria enquanto eles estavam voltados para os
problemas dos outros dois filhos. Em algumas cenas, como quando ele e a ex-esposa
terminam outra vez, ela fica surpresa ao perceber que ele está sofrendo, dizendo que
sempre pensou que ele estivesse bem, o que também foi dito por seus pais em
algumas cenas.
Depreende-se que esse lugar demandou que Kevin sempre parecesse bem,
que realizasse seus desejos, que fosse um filho sem problemas para não ser mais
uma preocupação em meio às demandas dos outros dois filhos para Rebecca e Jack.
Pode-se notar, então, a dificuldade de Kevin em se abrir, de se mostrar
vulnerável ao outro, de compartilhar seu sofrimento nesse entorno familiar e em suas
demais relações. Porém, essa dificuldade em se abrir também acontecia com seu pai,
uma vez que ele jamais contou para Rebecca e para os filhos tudo o que aconteceu
com ele durante seu período no Vietnã. Assim sendo, depreende-se que a família de
Kevin é permeada pelo não compartilhamento de conteúdos individuais, pelo menos
não pela ordem da fala, o que nos remete aos pactos defensivos mencionados por
Kaës (2014) em que alguns conteúdos não podem vir à tona e em que os sujeitos
tentam obter uma defesa para lidar com esses conteúdos.
Isso também pode ser visto nos demais membros da família, como sua mãe e
seus irmãos, uma vez que eles também têm dificuldade para falar sobre a morte de
Jack, de compartilharem entre si o sofrimento que esse acontecimento causou para
cada um, Jack tendo sido colocado como aquele a ser lembrado como um bom
homem, um bom pai. Esse não compartilhamento das questões individuais e
familiares se apresenta similarmente nas relações estabelecidas por esses sujeitos,
como se os parceiros escolhidos tivessem dificuldade de entrarem nessas questões,
de fazerem parte desse grupo familiar.

468
Conclusões

Dentro do recorte escolhido, enfatiza-se que o uso de álcool, pelos vários


homens da família Pearson, estava relacionado a conteúdos não ditos e angústias
recalcadas que não podiam vir à tona para serem expressados, compartilhados e
elaborados. Portanto, da ordem de uma repetição que atravessou três gerações (avô,
pai e filho).

Referências

Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Berenstein, I. (2011). Do ser ao fazer: curso sobre vincularidade. São Paulo: Via
Lehera.

Birman, J. (2007). Laços e desenlaces na contemporaneidade. Jornal de Psicanálise,


40(72), 47-62. Recuperado em 28 de outubro de 2019, de
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01035835200700010
0004&lng=pt&tlng=pt.

Correa, O. B. R. (2003). Transmissão psíquica entre as gerações. São Paulo:


Psicologia USP, 14(3), 35-45.

Cypel, L. R. C. (2016). Psicanálise dos vínculos de família e casal e a subjetivação do


indivíduo nos tempos atuais. In: I. C. Gomes, M. I. A.; Fernandes, & R. B. Levisky
(Orgs.), Diálogos psicanalíticos sobre família e casal. (2a ed., pp. 65-76). São
Paulo: Escuta.

Freud, S. (1914/1996). Uma Introdução ao narcisismo. (Obras Completas ESB, Vol.


14). Rio de Janeiro: Imago.

Fogelman, D. (Criador), & Fogelman, D, Rosenthal, J., Todd, D., Olin, K., Gogolak, C.,
Requa, J., Ficarra, G., Aptaker, I., & Berger, E. (Produtores). (2016). This is Us
[DVD]. Estados Unidos: NBC.

Granjon, E. (2000). A elaboração do tempo genealógico no espaço do tratamento da


terapia familiar psicanalítica. In: O. B. R. Correa (Org.), Os avatares da transmissão
psíquica geracional (pp. 17-43). São Paulo: Escuta.

Kaës, R. (2001). Introdução ao conceito de transmissão psíquica no pensamento de


Freud. In: R Kaës, H. Faimberg, M. Enriquez, & J. J. Baranes, Transmissão da vida
psíquica entre gerações (C. Berliner, Trad., pp. 27-69). São Paulo: Casa do
Psicólogo.

469
Kaës, R. (2011). Um singular plural: a psicanálise à prova do grupo (L. P. Roaunet,
Trad.). São Paulo: Loyola.

Kaës, R. (2014). As alianças inconscientes (J. L. Cazarotto, Trad.). São Paulo: Ideias
& Letras.

470
41- PSICODINÂMICA FAMILIAR E OBESIDADE EM UM CASO DE CONVERSÃO

Lilian Regiane de Souza Costa-Dalpino


Profª Drª Valeria Barbieri

Resumo: As relações familiares são apontadas como fatores envolvidos na etiologia


da Obesidade. Entretanto, raramente os estudos abordam os psicodinamismos das
famílias, o foco das pesquisas são os fatores biológicos e os hábitos alimentares. Esse
estudo objetivou investigar os psicodinamismos familiares na obesidade, por meio de
um estudo de caso. Participaram três membros da família Araújo: Abgail (mãe, 49
anos); Altamir (pai, 60 anos) e Ana (filha, 25 anos) (nomes fictícios). A filha havia
recebido o diagnóstico de Obesidade grau II. Os instrumentos utilizados foram:
Entrevista Semiestruturada; Questionnaire for Eating Disorder Diagnosis; Método de
Rorschach e Procedimento de Desenhos de Família com Estórias. Os dados foram
analisados com base nas diretrizes dos instrumentos e no referencial psicanalítico. Os
dados encontrados evidenciaram pais com dificuldades de oferecer holding para que
a filha invista fora do ambiente familiar. Insatisfeita, ela demonstrou momentos de
impulsividade, muitas vezes deslocada para oralidade. Os sintomas conversivos
desenvolvidos pela filha são utilizados para mascarar os reais conflitos vivenciados.
Da mesma forma, a obesidade também parece assumir a função de dificultar a
concretização do que é reprimido. Os resultados apontam que a avaliação da família
pode colaborar com a sua melhor inclusão no tratamento da Obesidade.

Palavras-chave: Obesidade; Relações familiares; Avaliação psicológica.

1 INTRODUÇÃO

Durante séculos, a Obesidade foi vista como indicador de riqueza, beleza e


saúde. Em contrapartida, atualmente é considerada uma doença crônica,
caracterizada pelo excesso de tecido adiposo devido à ingestão de calorias superior
ao gasto energético do organismo (Rocha & Costa, 2012). Os altos índices de pessoas
que apresentam excesso de peso são alarmantes, a ponto de hoje a Obesidade ser

471
vista como uma epidemia e um dos maiores problemas de saúde pública (Kalra et al,
2012).
O tema é alvo de preocupação entre os profissionais da saúde, principalmente
pelas comorbidades que lhe são associadas (Pulgarón, 2013). No que se refere à
saúde mental, embora o excesso de peso não implique necessariamente na vivência
de conflitos psicológicos, o que justifica não ser considerada uma psicopatologia como
os Transtornos Alimentares, existem relatos na literatura de que a Obesidade se
encontra tanto na origem de sofrimentos psicológicos, quanto de que são estes
últimos que colaboram com o surgimento da Obesidade (Kalra et al., 2012).
O sofrimento psicológico desencadeado pela Obesidade não pode ser
considerado apenas como consequência da patologia por si só, mas também pelas
representações sociais atribuídas à Obesidade. Na sociedade ocidental, por exemplo,
observa-se que o aumento da preocupação com a aparência, juntamente com a
valorização do corpo magro, traz como consequência o preconceito e a discriminação
contra pessoas obesas (Sousa, 2008).
Os estudos científicos sobre a Obesidade têm se concentrado principalmente
nos fatores biológicos e socioculturais promotores e mantenedores desse quadro em
detrimento dos aspectos psicológicos. Dessa forma, as propostas de tratamento
centram-se em estratégias que visam mudanças comportamentais (Mishima &
Barbieri, 2009).
Dentre as dificuldades enfrentadas nas famílias de indivíduos obesos, segundo
Latzer e Stein (2013), está a pouca percepção dos pais quanto ao excesso de peso
do filho. Os pais tendem a se preocupar mais com o baixo peso do que com o
sobrepeso.
Golan, Weizman, Apter e Fainaru (1998) verificaram que pais e mães obesos
são mais rígidos quanto aos hábitos alimentares e críticos diante do ganho de peso
do filho. Além disso, tendem a subestimar as dificuldades enfrentadas pelos filhos na
tentativa de mudarem hábitos alimentares inadequados.
Hughes, O’Connor e Power (2008) verificaram que tanto a rigidez e o
autoritarismo dos pais, como o excesso de permissividade aumentam as chances de
o filho apresentar sobrepeso e Obesidade. Latzer e Stein (2013) acrescentam que a
despreocupação, bem como a preocupação exagerada também pode favorecer o alto
IMC da criança. Agras e Mascola (2005) relatam que a presença de mães
superprotetoras e de pais distantes afetivamente é um padrão familiar observado com
472
frequência nos lares de crianças obesas. A superproteção pode despertar na criança
ansiedade de separação dos pais sempre que uma situação de stress se apresenta.
Nesses momentos, essas mães culminam na utilização da comida como um
apaziguador.
Henriques et al. (2015), a partir de entrevistas com mães de crianças obesas,
apontaram para as dificuldades de separação dessas mães em relação aos seus
filhos, bem como as dificuldades dos pais de se colocarem como figuras de interdição.
As autoras consideraram que quando a mãe deposita suas próprias expectativas no
filho, com prejuízos no reconhecimento das individualidades dele, em resposta, o
comer compulsivo pode surgir como uma tentativa do filho em atender às expectativas
maternas, como se tivesse se apropriando daquele alimento, mas sem perceber sua
real necessidade.
Mishima e Barbieri (2009) destacam que, caso o ambiente não se mostre
suficientemente bom, o brincar infantil, ao invés de trazer uma sensação prazerosa,
pode ser uma alternativa de controle das angústias. A brincadeira, da mesma forma
que a alimentação, pode se tornar compulsiva, repetitiva ou visar o prazer exagerado.

2 OBJETIVO E JUSTIFICATIVA
A melhor compreensão das famílias de indivíduos obesos é fundamental para
que elas sejam adequadamente inseridas no tratamento da Obesidade, bem como
para que seja oferecida uma maior atenção ao sofrimento psicológico de todos os
envolvidos. Apesar do aumento da preocupação científica com a investigação das
relações entre família e obesidade, a maioria dos estudos existentes continua focando
na compreensão de aspectos biológicos e hábitos alimentares dessas famílias. Dessa
forma, são escassos os estudos que investigam o funcionamento psicodinâmico
familiar e o quanto ele influencia no desenvolvimento e manutenção da obesidade.
A partir dessas considerações, o presente estudo objetiva investigar o
funcionamento psicodinâmico e características de personalidade do pai, mãe e filha
que apresenta Obesidade grau II. Trata-se de um estudo de caso, inserido dentro de
uma pesquisa maior, que visa avaliar famílias de mulheres com Obesidade, famílias
de mulheres com Transtornos Alimentares e de mulheres que não tenham nenhum
desses diagnósticos.

473
2 MÉTODO

O estudo foi desenvolvido a partir do enfoque de pesquisa clínico-qualitativo,


fundamentado no referencial teórico psicanalítico. Participaram do estudo membros
da família Araújo (nomes fictícios): Altarmir (pai, 60 anos); Abgail (mãe, 49 anos) e
Ana (filha, 25 anos). Ana foi diagnosticada com Obesidade grau II e fazia tratamento
em um serviço especializado.
Foi realizada uma avaliação projetiva com os pais e a filha em questão, com a
utilização dos seguintes instrumentos: Roteiro de Entrevista Semiestruturada;
Questionnaire for Eating Disorder Diagnosis (Q-EDD); Método de Rorschach e
Procedimento de Desenhos de Família com Estórias (DF-E). As sessões foram
conduzidas separadamente com os participantes. A partir da anuência deles, foram
audiogravadas e transcritas na íntegra.
Os dados obtidos foram analisados com base nas diretrizes de cada um dos
instrumentos e no referencial teórico. Foi realizada uma avaliação cruzada integrando
os resultados de pai, mãe e filha.

4 RESULTADOS
A família Araújo era composta pelo pai, mãe e três filhos. A filha participante do
presente estudo era a filha mais velha do casal, Ana (25 anos). Havia recebido
diagnóstico de Obesidade grau II e estava iniciando tratamento para a Obesidade.
Disse que sempre sofreu com excesso de peso, todavia, os problemas se
intensificaram logo no início da adolescência, quando começou a sofrer com dores no
joelho. Os três participantes associaram o ganho de peso da filha às dificuldades
ortopédicas.
Ana já havia realizado duas cirurgias por conta de suas dores, bem como se
submetido a diferentes tratamentos medicamentosos. Na ocasião da coleta,
especialistas haviam descartado qualquer patologia ortopédica e diagnosticaram
Transtorno de Sintomas Somáticos, além de encaminharem para o tratamento da
Obesidade, acreditando que a perda de peso poderia colaborar com o alívio da dor.
Ana estava afastada do trabalho, permanecia a maior parte do tempo no
ambiente doméstico e consultório médicos, nunca havia tido relacionamentos
amorosos. Além das dores no joelho, queixava-se também de alergias de variados

474
alimentos e produtos, mas nunca havia investigado suas causas. Sua mãe a
acompanhava na maioria das consultas e seu pai auxiliava no transporte.
No que se refere à organização do pensamento, os participantes da família
Araújo apresentaram bom potencial criativo, porém demonstraram parcial
aproveitamento dos seus recursos. Eles demonstraram buscar um intenso controle
racional sobre os afetos, com a mãe obtendo maior sucesso. Pai e filha expressaram
melhor seus pensamentos individuais e criativos, porém evidenciaram maior
afastamento do pensamento coletivo. Apesar das tentativas de racionalização, os três
evidenciaram prejuízos no controle lógico em momentos de maior mobilização afetiva.
No que se refere aos relacionamentos, foi possível perceber uma família
marcada pelo distanciamento afetivo, embora os três tenham frisado a existência de
uma aparente “união” familiar e de um “bom” relacionamento entre os membros. O
sentimento de insatisfação em relação ao suprimento das necessidades afetivas
permeou a produção do pai, da mãe e da filha. Os desejos pulsionais, com frequência,
são percebidos como ameaças ao self, o que faz surgir a necessidade do controle
excessivo. A natureza desses desejos, sentidos como ameaçadores, varia entre os
participantes.
Mãe e filha evidenciaram intensa repressão dos seus desejos de natureza
sexual, o que sugere dificuldades na elaboração dos conflitos edípicos. Por sua vez,
o pai evidenciou sentimento de desamparo e busca de proteção, o que revela falta de
suporte para o alcance das vivências edípicas. Mãe e filha sinalizaram medo de
castração, enquanto o pai expressou o temor de rejeição e abandono.
No caso da filha, os afestos sofrem o destino da conversão, por meio da dor
que a impede de alcançar a autonomia da vida adulta. Sintomas conversivos (dor e
alergia) lhe ocasionam o ganho secundário de permanecer na infância e numa posição
de dependência da mãe. Ocorre, nesse contexto, a regressão da libido genital para a
oral, com os prazeres do contato com a mãe concentrando-se nessa última esfera, o
que pode responder pelo sintoma da Obesidade. O insucesso do controle racional
sobre os afetos é passível de conduzir a episódios de comer compulsivo.
Já Altamir evidenciou oscilar entre idealizações e a percepção da sua
fragilidade. Ele busca evitar mostrar ao outro (e a si mesmo) que dele necessita, sob
a capa de uma autossuficiência marcante. Por conta disso mostra-se rígido e exigente
com os demais, mas sobretudo consigo mesmo. Quando não consegue atingir suas
metas rigorosas, percebe-se uma intensa autodepreciação, e, consequentemente,
475
temor de que a exposição de si causaria rejeição e desprezo. Assim, para se proteger
das angústias suscitadas pelo próprio desamparo, recorre à defesa do falso self e
estabelece esse tipo de funcionamento.
No discurso de Abigail, o exercício da maternidade aparece como principal
justificativa para o afastamento em relação às suas próprias necessidades. A
insatisfação com o seu relacionamento conjugal se mostra latente, mas ela não
consegue expressá-la diretamente; somente aborda os seus sentimentos por
intermédio dos filhos. A partir desse funcionamento, a mãe estabelece uma relação
de dupla dependência com os filhos, principalmente com Ana. Dessa maneira, não
consegue se mostrar como um modelo de referência para que a filha desenvolva sua
identidade feminina e integre os desejos sexuais em sua personalidade.
O pai, por outro lado, demonstrou desejar a maior autonomia dos filhos, porém,
não consegue reconhecer a necessidade de bases anteriores de dependência para
que ela se torne possível. Esse funcionamento falso self exige-lhe um dispêndio
gigantesco de energia, dissimulado no rigor e rigidez para consigo e com os filhos.
Sente que faz todos os esforços que pode para oferecer aos filhos a presença parental
e os recursos materiais que ele próprio não teve, como uma via, inclusive, de superar
sua própria carência.
Ana, desde os 12 anos de idade, encontrou na sua suposta doença ortopédica
a justificativa para uma vida social e amorosa restrita, como um escudo para se
proteger do acesso aos conflitos emergidos com o surgimento da adolescência. Além
da mãe não ter conseguido se mostrar como figura de referência para que a filha
tivesse melhores condições de elaboração da inveja e do ciúme edipianos, o pai, rígido
e autoritário, parece ter dificultado a expressão dos desejos amorosos da filha em
direção a ele, e facilitado a percepção deles como algo proibido, incrementando,
assim, a angústia de castração da menina e a que reforça a necessidade da repressão
e deslocamento dos afetos até, finalmente, a descarga deles no corpo.
Destaca-se que, mesmo depois de várias conversas com os médicos sobre a
não existência de uma real patologia física em Ana, o suposto adoecimento (físico)
dela é reconhecido pelos três como a principal dificuldade da família. Os três
participantes, diante das tentativas de se afastarem das suas reais necessidades,
também se afastam dos descontentamentos relacionados ao próprio corpo. Os pais
evidenciaram boa compreensão sobre suas dimensões corporais, mas não se
aprofundaram no relato das possíveis satisfações e insatisfações relacionadas ao
476
corpo, do mesmo modo que não se aprofundaram na compreensão e no auxílio ao
modo como a filha lida e investe no seu corpo, limitando-se ao cuidado do joelho.
A filha demonstrou percepção do excesso de peso, porém tentou se apresentar
como despreocupada em relação a isso. Da mesma forma que os pais, considerou
como seu único problema as dores no joelho, mesmo tendo sido informada que elas
poderiam melhorar com o emagrecimento. O excesso de peso, assim como sua
suposta doença ortopédica, parece favorecer o afastamento das experiências afetivas
e da sua apropriação em relação ao seu corpo, como se tudo fosse acontecer quando
suas dores melhorassem.

5 DISCUSSÃO
No que se refere ao modo como os participantes percebem as funções paterna
e materna, os dados concordam com representações sociais ainda existentes na
atualidade sobre a necessidade de devoção materna e a maior aproximação da mãe
em relação aos filhos. Em contrapartida, o pai seria mais distante, reconhecido como
figura de autoridade e responsável pelo provimento financeiro da família (Perucchi &
Beirão, 2007).
Foram observados momentos nos quais a família escapa desse modelo, por
exemplo, quando falam que o pai auxilia nos afazares domésticos ou quando abordam
que ele auxilia no transporte dos filhos. Entretanto, parece que Altamir tem
dificuldades em se encontrar nesses papeis. Percebe-se seu desequilíbrio quando
sua função de provedor financeiro é prejudicada com a aposentadoria e com a sua
renda reduzida, bem como suas dificuldades em se aprofundar no cuidado dos filhos,
principalmente em participar do tratamento deles, sendo apenas o motorista.
A mãe, por sua vez, demonstrou se esquivar das próprias necessidades em
prol do cuidado dos filhos, com dificuldades, inclusive, de citar seus projetos
individuais. Da mesma forma que observou Leonidas (2016) em mães de pacientes
com transtornos alimentares, tem-se a apresentação de uma mãe que reduz a sua
feminilidade ao exercício da maternidade, com isso se esquiva da própria sexualidade
e outros aspectos da sua existência, a partir da suposta necessidade de atenção
integral aos filhos.
Por trás da busca pelo exercício de papéis construídos socialmente sobre
maternidade e paternidade, os dados revelam uma família com intensas dificuldades
em expressar e elaborar seus conteúdos afetivos. Os dados reiteram achados da
477
literatura sobre as dificuldades de acesso aos conteúdos afetivos nas famílias de
pessoas obesas, que levam os filhos a enfrentarem prejuízos na vivência da
transicionalidade e, consequentemente, no desenvolvimento da sua criatividade
(Mishima & Barbieri, 2009). Nesse sentido, pode-se inferir que a busca por modelos
estereotipados de paternidade e maternidade tornou-se como uma das estratégias de
marcarar a angústia suscitada pela insatisfação das suas necessidades afetivas.
Para Winnicott (1949/2000), o pai tem papel de relevância no processo de
amadurecimento, assumindo a função de primeiro modelo de integração, bem como
oferecendo suporte para o enfrentamento dos seus impulsos agressivos. Entretanto,
Altamir demonstrou dificuldades importantes no processo de integração dos seus
próprios conteúdos afetivos, de forma que ele também evidenciou buscar por
modelos. A perda real dos seus pais, assim como suas dificuldades de acesso a eles
quando ainda eram vivos, parecem justificar o sentimento de desamparo sentido por
Altamir.
Enquanto o pai tem na distância sua principal estratégia de busca por equilíbrio,
a mãe, por outro lado, demonstrou dificuldades em se separar dos filhos. Como dito
anteriormente, suas necessidades são confundidas com as deles. Os dados lembram
os achados de Henriques (2015) sobre as mães de pessoas obesas que, diante das
falhas na separação, depositam nos filhos suas próprias expectativas. Eles, em
resposta, comem exageradamente o alimento proveniente da mãe como tentativa de
atender às necessidades dela e, do mesmo modo, não conseguem acessar o que
realmente necessitam. Dessa forma, observou-se uma mãe com prejuízos em permitir
que os filhos caminhem rumo à indepência, como se ainda desejasse se manter no
estado de preoupação materna primária.
Nesse cenário, o pai, que se afasta, apesar do autoritarismo, apresenta
intensas dificuldades em se mostra como interditor e colaborar para que a mãe supere
esse momento de intensa dedicação aos filhos. Ela pede que ele a auxilie, mas tanto
ela não consegue dizer claramente, como ele não consegue entender. Destaca-se,
portanto, que apesar da aparente proximidade, assim como o pai, a mãe também não
consegue oferecer holding necessário para que filha busque estratégias criativas, e
não sintomáticas, para satisfazer suas necessidades.
No que se refere à obesidade, os dados apontam que as dificuldades de acesso
aos conteúdos afetivos levam os pais também a demonstrem pouco conhecimento
sobre os conflitos afetivos relacionados ao ganho de peso da filha. Apesar deles
478
também não serem obesos, como a literatura aponta sobre muitos pais de obesos, os
dados reiteram achados que revelam as dificudades dos pais em perceber o excesso
de peso dos filhos e quais atitudes estariam levando a isso (Latzer & Stein, 2013).
Na perspectiva winnicottiana, a alimentação reflete o modo como o indivíduo
busca a satisfação das suas necessidades. O fato de a família abordar a compra do
alimento como algo penoso, que traz à tona a percepção de que não podem ter o que
desejam, bem como a falta de percepção da alimentação como um momento de trocas
afetivas, revela as dificuldades deles em buscarem satisfação, o que, conforme aponta
Winnicott (1956/2000), pode colaborar com o surgimento de patologias associadas à
alimentação, como é o caso da filha, ou até mesmo com outros conflitos
experienciados pela família com o irmão mais novo.

6 CONCLUSÕES
Os participantes avaliados, e mais ainda seus familiares, evidenciaram a
vivência de intenso sofrimento emocional que parece estar contribuindo com o ganho
de peso. Nesse sentido, percebe-se que fugir da atenção às necessidades emocionais
desses pacientes pode resolver apenas parcialmente o problema, ou nem isso, já que
muitos não conseguem se quer perder peso ou aderir ao tratamento. Essas
informações apontam para a necessidade de reflexão acerca do modo como pessoas
obesas vêm sendo cuidadas pela sociedade.
As dificuldades de acesso às participantes de 18 a 25 anos faz pensar que a
família, apesar de também estar em sofrimento e colaborar com o desenvolvimento
dos sintomas, pode ser essencial para que os filhos busquem e se mantenham em
tratamento, pois quando ainda são menores e os pais são responsáveis por levá-los
foi observada uma maior procura (como acontece com as vacinas, por exemplo).
Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de valorização e incorporação da
participação desses familiares, mesmo em pacientes mais velhos.

REFERÊNCIAS

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agents of change in the treatment of childhood obesity. The American Journal
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480
Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In: D. W. Winnicott, Textos
selecionados: Da pediatria à psicanálise. (D. Bogomoletz, trad., pp. 399-405) (2ª
ed.). Rio Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1956).

481
42- VIVENDO A TERMINALIDADE: EXPERIÊNCIA DE PACIENTES COM
CÂNCER DE CABEÇA E PESCOÇO

Marília Gabriela M. Mota


Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil.
E-mail: gabi.psico@usp.br
Érika Arantes de Oliveira-Cardoso
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil.
E-mail: erikaao@ffclrp.usp.br

Resumo: No caso de diagnósticos avançados do câncer de cabeça e pescoço (CCP),


é pungente a experiência da possibilidade da morte, tornando importante o
reconhecimento da existência de limites do ponto de vista da cura, uma vez em que
se trata de pacientes com baixa ou nenhuma possibilidade curativa. Este estudo teve
por objetivo compreender a vivência da terminalidade em pacientes com câncer de
cabeça e pescoço avançado inseridos em tratamento antineoplásico ou em cuidados
paliativos exclusivos. Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo de caráter
exploratório, desenvolvido a partir do referencial fenomenológico. Foram
entrevistados cinco pacientes com diagnóstico de CCP a partir dos seguintes
instrumentos: formulário de dados sociodemográficos e entrevista fenomenológica. As
entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra. Os dados foram
submetidos à análise fenomenológica. A análise do material evidencia o estigma de
vivenciar a finitude e os traumas provocados pelo CCP. Em especial o sofrimento em
relação à autoimagem e identidade estendido aos familiares e amigos. Em termos de
aplicação dos resultados desta pesquisa, recomenda-se que os pacientes com CCP
recebam medidas de suporte psicológico a partir da escuta ativa.

Palavras-chave: terminalidade, finitude, cuidados paliativos, câncer de cabeça e


pescoço.

482
Introdução
Câncer é o nome dado a um conjunto de mais de 100 doenças que tem comum
o crescimento desordenado, ou seja, maligno, de células que invadem os tecidos e
órgãos, podendo espalhar-se para outras regiões do corpo, originando metástases.
Por sua vez, os cânceres de cabeça e pescoço (CCP) afetam as seguintes regiões
anatômicas: lábio, cavidade bucal, orofaringe, parede posterior, parede superior
(inferior do palato mole e úvula); nasofaringe (parede póstero-superior, desde o nível
da junção do palato duro com o palato mole até a base do crânio); parede lateral;
parede inferior do seio piriforme, parede posterior da faringe (superglote, epiglote,
supra-hióidea, preda ariepiglótica, face laríngea, aritecnóide, epiglote infra-hióidea,
bandas ventriculares); glote (cordas vocais, comissura anterior, comissura posterior);
subglote, seios maxilares, cavidade nasal e seios etmoidais, glândulas salivares e
glândula tireóide (Inca, 2018).
Kowalski (2014) afirma que cerca de 70% dos casos de CCP são
diagnosticados em estadio avançado, sendo estes referentes ao estadio III e IV,
comprometendo as chances de cura e causando alto impacto na vida dos pacientes,
sendo que pacientes em estadio III e IV receberão terapêuticas de tratamento, não
necessariamente curativas.
No caso de diagnósticos avançados em estadio III e IV de CCP, a experiência
da possibilidade da morte muitas vezes é iminente, sendo importante reconhecer que
há limites do ponto de vista da cura, uma vez que se trata de pacientes com baixas
ou nenhuma possibilidade curativa. Além do processo de finitude do corpo material,
faz-se importante as considerações psicossociais sobre a deformidade facial
ocasionada pelo CCP, que aqui serão compreendidas como mortes simbólicas. O
grande desafio para equipe de saúde é tornar este processo não somente uma
questão científica e sim existencial, uma experiência pessoal, para o paciente e seus
familiares.
As contribuições de Heidegger (1995) são importantes para compreensão do
processo de adoecimento e da experiência de finitude, visto que essa funda o sujeito,
em outras palavras, o homem é desde sempre finito. O homem existe finitamente, ele
não é anterior à finitude e tampouco existe possibilidade de esta não incidir sobre ele.
Sua morte é certa e, ao mesmo tempo, indeterminada quanto à quando acontecerá
(Leite, 2011).

483
Imagina-se que morrer é uma tarefa muito difícil, no entanto esta passagem
muitas vezes não é o tempo todo recôndita ou desconhecida. O próprio paciente
costuma paulatinamente aceitar seu sofrimento e seu adoecimento, o que possibilita
a criação de novas possibilidades e recursos para enfrentá-lo. Despedir é conceder o
presente de admitir e de viver o que a vida nessa etapa impõe ao sujeito: a sua morte
(Jaramillo, 2006).
Com base no exposto, este estudo teve por objetivo compreender a vivência
da terminalidade em pacientes com câncer de cabeça e pescoço avançado inseridos
em tratamento de controle e/ou em cuidados paliativos exclusivos.
Método
Trata-se de estudo qualitativo, descritivo de caráter exploratório, desenvolvido
a partir do referencial fenomenológico. O enfoque qualitativo foi escolhido uma vez
que se pretende investigar a experiência na totalidade, compreendendo os
significados e a essência dela.
A amostra da pesquisa foi composta por cinco pacientes vinculados ao hospital
de diagnóstico e prevenção do câncer, localizado em uma cidade do interior de São
Paulo. Seguiu-se os critérios de elegibilidade para participação na pesquisa: (a)
homens ou mulheres com mais de 18 anos, diagnosticados com câncer de cabeça e
pescoço avançado, isto é, com metástase a distância ou recorrência irressecável, sem
condições de cura; (b) estar em tratamento de controle e/ou em Cuidados Paliativos
exclusivos e encontrar-se em regime ambulatorial.
A coleta de dados foi realizada individualmente, em situação face a face, em
uma sala de atendimento psicológico do ambulatório, resguardando-se os princípios
de conforto e privacidade. Para análise dos dados as entrevistas foram transcritas na
íntegra respeitando-se a sequência e a forma como foram apresentadas as falas. Em
seguida os dados foram submetidos à análise fenomenológica em categorias
temáticas. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FFCLRP-USP
(CAAE – 97989718.8.0000.5407). Coube à pesquisadora o cuidado de esclarecer
antecipadamente o objetivo do estudo e as condições de sigilo quanto à identidade de
cada participante mediante aceite e assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido para a sua realização.

484
Resultados
A amostra foi composta por cinco participantes, todos com diagnóstico de câncer de
cabeça e pescoço avançado e em Cuidados Paliativos (Tabela 1):

Tabela 1: Caracterização dos participantes (n=5)

Estado Local de Tempo de


Nomes* Idade Filhos Religião Profissão
Civil acometimento diagnóstico

Face laríngea Evangélica


Beatriz 32 Solteira Quatro Um ano Autônoma
com metástase / Espírita

Cavidade nasal
Ângela 48 Casada Dois Sete meses Católica Autônoma
infiltrativo na
retina ocular

Linfonodos Católico / Metalúrgico


Léo 50 Casado Dois Sete anos
cervicais Espírita / Pintor

Cavidade oral
(língua,
Bebeto 52 Casado - 11 meses - Autônomo
assoalho da
boca e palato)

Língua e
João 60 Casado Dois Um ano Evangélico Vendedor
assoalho bucal

*Os nomes de todos os participantes são fictícios.

Discussão
Os conteúdos dos discursos dos pacientes foram organizados em quatro
categorias:

1) A morte no espelho e no olhar do outro


Segundo Alves (2016), o rosto humano se destaca no conjunto harmonioso do
corpo e sendo parte de influência e interferência direta nos relacionamentos
interpessoais. Nele é possível perceber todas as emoções (riso, pranto, admiração,
estranhamento, preocupação, dor, paz, alegria, tristeza), dispensando palavras. Olhar
para o espelho obriga a pessoa encarar sua imagem e enfrentar a realidade, as perdas
diárias (Alves, 2016). Subjetivamente parece importante pensar no significado desse
485
rosto cujo próprio dono não é capaz de reconhecer sem ajuda de um espelho, do
reflexo. O espelho é o grande inimigo, reflete a imagem da realidade.
“Eu queria que a cirurgia viesse como uma possibilidade de continuar viva, mas
eu não sei o que é pior: morrer ou viver sem saber quem eu sou. Tento imaginar
como seria um rosto sem um pedaço, sem um olho [...]. Pra quê passar por
tudo isso? (Ângela)”.
Pelas contribuições de Morris (1967), o rosto é visto pelo olhar do outro e sua
reação. O rosto não é para a própria pessoa, mas sim para o outro, para ser olhado.
O rosto nos presenteia, nos faz presente, presenteia o outro e nos presenteia com o
olhar do outro. O movimento de olhar o outro não é simples, bem como se pode
observar tal reação no fato de as pessoas rapidamente afastarem os olhares quando
estes se cruzam. O contato visual tornou-se significativo como recurso humano de
sinalização.
“Eu perdi a vontade de sair de casa, mas por outro lado, parece que estou
aproveitando mais a minha família, antes eu não tinha esse convívio. Tem um
apoio (Bebeto).”
A experiência do adoecimento na região de cabeça e pescoço concerne os
pacientes ao peso do simbolismo da face em uma sociedade que consolida suas
relações predominantemente pela via imagética. Nesses pacientes a doença
manifesta-se literalmente de forma escancarada, sendo algo que não se pode
esconder da observação e julgamento alheios (Leitão, Duarte, & Bettega, 2013).
“Quando eu preciso ir pra algum lugar [...] eu tento me esconder, mesmo que
seja atrás dos óculos de sol. (Ângela).”
Nesse cenário o paciente é obrigado a entrar em contato com a morte seja
através do susto do seu olhar ou da percepção do assombro no olhar do outro. Esse
contato direto com a possibilidade de terminalidade pode se configurar como
oportunidade para repensar a própria existência, entendendo que o morrer é uma
possibilidade iminente do existir. Vida e morte são inseparavelmente unidas, não há
viver terrestre sem morrer, e não poderia haver um morrer sem um viver precedente.
Quem quiser compreender algo da vida dos homens deverá também pensar em seu
ser-mortal, e quem quiser compreender a morte também será obrigado a se informar
sobre a condição da vida humana. A contingência do viver não pode ser esquecida
(Boss, 1981).

486
2) A experiência da dor
Uma constante no discurso dos pacientes é a vivência intensa de dores.
Segundo a International Association of the Study of Pain, a dor é experienciada como
uma realidade subjetiva sendo esta sensorial e emocional, ainda assim relacionada
com as experiências vividas pelo indivíduo e sua compreensão do sofrimento.
“A dor é o que me limita, para tudo. A morfina de quatro em quatro horas, me
deixa drogado, se eu encostar em qualquer canto eu babo e durmo, e a dor
continua [...], não desejo pra ninguém e não sei por que tenho que passar por
isso, e há tantos anos (Léo)”.
Kovács (1997) afirma que a dor não é apenas a sensação dolorosa e não está
relacionada ao tamanho da lesão ou ao dano. A dor é a única manifestação que não
tem medida direta e deve ser medicada a partir da percepção do paciente. Somando-
se as perdas físicas, sociais, psíquicas, financeiras, profissionais e sonhos, a
experiência do espectro da dor poderá levar a pessoa à sensação do não-viver. E
esse não-viver pode ser equivalente ao morrer (Kovács, 1992, p.3). A consciência
autêntica da morte é caracterizada pela “espera”, que é a antecipação de sua
possibilidade. Na morte, nada se realiza, e é por isso que se espera. Sendo uma
possibilidade inelutável e sem apelo, tornar-se livre diante dela é sentir o nada de todo
o ser.
A experiência da dor, como processo de angústia tal qual apresentado por
Heidegger, fundamenta-se no desespero com a morte e este por sua vez aparece
apenas quando se percebe que não há mais tempo para tentar outra vida. É como se
sentisse que nada se fez e que agora já não há mais tempo para realizações
(Heidegger, 1955). Tal visão do limite irrevogável faz o homem perceber a
necessidade de fazer algo. Na experiência da dor nasce a angústia da morte.

3) As perdas e a morte simbólica


Alves (2016) descreve o processo de perda como uma passagem de deixar de
ter e não saber onde está. No contexto das perdas, todos têm histórias que se
entrecruzam. Essas pessoas deixaram-de-ser-saudáveis e passaram a ser-doentes,
deixaram-de-ser-comuns e passaram a ser-diferentes, neste processo é preciso
reorganizar o próprio processo do vivido para assumir a nova identidade.
“Quando recebi o primeiro diagnóstico, achei que teria um fim, mas não este
fim. O fim do tratamento [...], nunca pensei que o fim seria o da vida. (Bebeto).”
487
Frankl (2003) fala da angústia provocada pela incerteza, que ele chama de
existência provisória sem prazo, que é exatamente o que esses pacientes vivenciam,
pois acreditaram que seu estado geral de saúde seria provisório e algum dia estariam
bem e receberiam alta. Ainda segundo Frankl, não saber quando receberá alta
provoca uma existência sem futuro e a falta de futuro obriga olhar a vida sob a
perspectiva do passado e essa forma de olhar configura o morto.
Diante da experiência vivenciada por pacientes com câncer de cabeça e
pescoço, podemos compreender as perdas relacionadas a partir das contribuições de
Kovács (1997):

a) Mudança corporal: a alteração na imagem corporal somada à experiência de


mutilação, exigem reorganização do esquema corporal. A perda pode modificar
a identidade física e psíquica;
b) Hospitalização: implica em interrupção das atividades cotidianas, no
afastamento da família e amigos, além disso a rotina de procedimento e
exames, violam a intimidade e privacidade da pessoa;
c) Imobilidade: Pacientes submetidos a tratamentos de câncer de cabeça e
pescoço de uma hora para outra ficam impossibilitados em algum nível de falar
e de comer, podendo levar a experiência de impotência e impedimento de
realizar atividades importantes da vida;
d) Dependência: A perda da independência pela dificuldade de comunicação,
higiene e alimentação poderá ser sentida como um processo degradante.
A que a percepção do ser humano vai ao encontro dos objetos e das coisas do
mundo e nesse movimento de relação-encontro constrói-se uma rede de significados
e sentidos. A maneira de ser-estar no mundo poderá ser compreendida como
subjetividade.
“Eu tive medo de voltar pra casa quando recebi alta naquele dia. Acho que o
medo era encontrar as minhas netas e não ser reconhecido [...]. Que bom que
não precisei passar por isso (João).”
Em Rogers (1987), o ser humano subjetivo tem uma importância, um valor
fundamental, qualquer que seja o nome ou valor que lhe atribuam, é antes de tudo e
mais profundamente uma pessoa.

488
4) O sagrado no processo de adoecer
A forma de enfrentamento, da doença e da morte, mais utilizada pelos
participantes do estudo está diretamente relacionada à força da fé e a crença religiosa,
em essência, nas formas de expressar a espiritualidade (Tretini, Valle &
Hammerschmidt, 2004).
“Quando eu olho para todos os outros dias, sinto Deus me ajudando o tempo
todo. Não seria possível sem ele (João).”
De acordo com Kubler-Ross (2000) nos primeiros estágios o paciente não
consegue enfrentar os fatos e existe a possibilidade de revolta contra Deus. Depois
de passado esse momento de raiva é comum a tentativa de algum tipo de acordo, ou
barganha, que mude ou adie o desfecho
“Eu converso com Deus o tempo todo. Tem horas que eu peço pra ele me levar
e que seja rápido, mas às vezes eu me confundo e queria ouvir que fui curado
(Léo).”
A espiritualidade constitui expressão da identidade e do propósito da vida.
Refere-se a toda vivência capaz de produzir mudança profunda no interior do ser
humano e que o conduz a um sentimento de maior harmonia consigo mesmo,
favorecendo a integração pessoal e com outras pessoas (Giovanetti, 2005). O alívio
do sofrimento ocorre na medida em que a fé religiosa permite transformações na
perspectiva pela qual o paciente percebe a doença (Aquino, 2007).

Considerações finais
O rosto, enquanto representação da identidade e narrativa da personalidade,
quando desfigurado viceja a impressão de uma personalidade também desfigurada.
O convívio social, dos participantes é atravessado pela vergonha, o que leva à
reclusão e ao sofrimento por ela ocasionado. Nota-se, portanto, o início das perdas,
as mortes simbólicas.
Tal compreensão sugere a necessidade de falar sobre a identidade perdida ao
longo do processo, ainda assim, possibilitar não só a fala, mas o espaço para a
expressão dos sentimentos como caminho possível para a elaboração das perdas.
As narrativas da experiência do vivido trazem nas entrelinhas as perdas do
status quo e de si mesmo, que conforme Áries (1977), a pessoa percebe as perdas
que teve com a sua própria morte – em vida – e teme a morte. O corpo – ou parte dele
– se torna insuportável aos olhos e precisa ser escondido. A fala cede lugar a outras
489
formas de expressão, como falar com a mão na boca, o uso constante de óculos de
sol, não sair de casa.
Ao refletir sobre as contribuições esperadas por este estudo entende-se que
para a elaboração da finitude e as perdas no processo vivencial, neste caso com
pacientes com câncer de cabeça e pescoço, faz-se necessário profissionais que
estejam familiarizados com o tema. Perde-se o “rosto”, a aparência, a sensualidade,
a força, a sensibilidade, o convívio e ganha-se sem escolha, a dor total crônica. Pelo
viés do sofrimento foi possível observar a importância das pequenas coisas do dia a
dia, os pacientes ao longo da travessia se reconhecem como outro ser-aí-no-mundo,
percebendo ganhos e perdas.
Diante das experiências de terminalidade apresentada pelo presente estudo, é
preciso oferecer aos pacientes, familiares e equipe, um espaço de escuta ativa e
cuidado genuíno dos aspectos psíquicos constituintes dessa experiência de adoecer
e do ser-em-finitude.
É válido acrescentar que se torna imprescindível a compreensão das perdas e
mudanças relacionadas do câncer de cabeça e pescoço que norteiam ações e
pensamentos para além do adoecimento, fomentando a preservação e o respeito a
sua autonomia. Considera-se aqui que não se pode generalizar e esperar que todas
as pessoas que passem por experiências semelhante compartilhem da mesma
compreensão.

Referências

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Rogers, C. (1987). Um jeito de ser (X. X. Sobrenome final, Trad.). São Paulo: EPU.

491
43- SEXUALIDADE E RELACIONAMENTOS AFETIVOS NO AUTISMO

Victor de Barros Malerba


Manoel Antônio dos Santos
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – FFCLRP
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP

Resumo: O presente estudo teórico tem por objetivo discutir aspectos da sexualidade
no Transtorno do Espectro Autista (TEA). Para tanto, inicialmente será proposta uma
definição a respeito do que se entende por TEA e na sequência discutir-se-á
manifestações de sua sexualidade. A visão preconceituosa de que as pessoas com
autismo seriam assexuadas gradualmente tem dado lugar à percepção de que a maior
parte delas tem interesse por relacionamentos amorosos e relações sexuais com
pares, sendo comum a experiência com tais relações nessa população. A discussão
da sexualidade no TEA se faz necessária pois permite desmistificar visões
preconceituosas e normatizadoras presentes entre os discursos socialmente
produzidos acerca desse tema.

Palavras-chave: Sexualidade, Autismo, TEA.

Tema

No campo dos discursos socialmente produzidos acerca do TEA, nota-se uma


predominância da descrição do autismo por meio do olhar voltado excessivamente
para os déficits (Menezes & Amorim, 2015). Apesar da relevância desse olhar,
sobretudo ao se considerar sua contribuição para o diagnóstico precoce, abrindo
caminho para a possibilidade de intervenções mais efetivas, alguns autores alertam
para a necessidade de desconstruir o retrato caricaturado dos indivíduos com autismo
como não-interativos (Bosa, 2002). Basta lembrar que, até recentemente, adultos com
autismo eram vistos como assexuados ou, então, que a sexualidade seria um assunto
problemático para esses indivíduos (Dewinter et al., 2017), o que não tem se

492
confirmado em pesquisas recentes, cujos achados têm apontado para o fato de que
grande parte dos indivíduos com autismo tem experiências com relacionamentos
românticos e/ou desejo de estar engajado em uma relação íntima (Dewinter et al.,
2016; Strunz et al., 2017).
Tendo em vista que ainda é incipiente a produção de conhecimento sobre como
se dão, de fato, os relacionamentos afetivos e a sexualidade das pessoas com autismo
(Dewinter et al., 2016; Strunz et al., 2017) e que até hoje perdura uma visão de que
pessoas com TEA seriam seres assexuados ou que a sexualidade seria um assunto
problemático para esses indivíduos, pelos déficits severos de comunicação e empatia
que apresentam (Dewinter et al., 2017), faz-se necessário discutir a sexualidade no
TEA, de modo a ampliar o campo de sentidos produzidos a respeito desse tema,
evitando assim um olhar que se restrinja ao discurso sobre os déficits e a uma visão
preconceituosa sobre a sexualidade de tal população.

Introdução

Historicamente, é atribuída a Bleuler, psiquiatra suíço, a primeira utilização do


termo autismo, em 1911, com a finalidade de descrever um sintoma da esquizofrenia,
referente ao isolamento em relação à realidade externa. A palavra autos, em grego,
significa “si mesmo”, enquanto o sufixo ismo é utilizado para se referir a um estado do
indivíduo. Assim, do ponto de vista etimológico, autismo significa estar fechado em si
mesmo (Untoiglich, 2013)
Em 1940, com Leo Kanner, o termo autismo deixou de ser apenas um sintoma do
quadro clínico mais geral da esquizofrenia que o autor empregou para se referir a uma
síndrome independente: Autismo Infantil Precoce (Brasil, 2013; Januário & Tafuri,
2009; Untoiglich, 2013). Nascido no antigo Império Austro-Húngaro e tendo emigrado
para os Estados Unidos, onde se tornaria chefe da psiquiatria infantil do Hospital
Johns Hopkins, Kanner descreveu 11 crianças nas quais identificou uma incapacidade
para se relacionar de forma normal com pessoas e situações desde o início de suas
vidas. Em tal quadro de isolamento radical, apresentavam recusa ao contato com o
ambiente. Além disso, essas crianças, quando inseridas em um grupo de idade
próxima, não participavam das brincadeiras (Brasil, 2013).
Kanner observou, ainda, que mesmo as crianças que haviam adquirido a fala
utilizavam as palavras sem fins de comunicação, apenas repetindo-as de forma
493
desordenada e aparentemente sem sentido. Por exemplo, eram frequentes as
repetições estereotipadas de listas de nomes de presidentes, de animais ou de
trechos de poemas. Desse modo, o autor notou que havia uma distorção na função
da linguagem, da qual era feito um uso sem valor conversacional, de forma auto-
suficiente (Brasil, 2013; Untoiglich, 2013).
Outro comportamento observado por Kanner diz respeito à atitude de se dirigir
a partes dos corpos de outras pessoas como se estes fossem objetos, retirando-os do
caminho, sem estabelecer contato ocular, parecendo não distinguir seres humanos
dos móveis do ambiente. Além disso, relatou a preferência de tais crianças por tudo
que era rotineiro, repetitivo e esquemático, o que o levou a concluir que elas tinham
um desejo obsessivo pela manutenção da uniformidade Brasil, 2013; Untoiglich,
2013).
Ainda na década de 1940 foi atingido um novo marco no desenvolvimento da
noção de autismo, dentro do contexto da psiquiatria, com as contribuições do médico
Hans Asperger. Asperger descreveu quatro crianças que apresentavam um grave
transtorno do relacionamento com o ambiente ao seu redor, que era compensado, por
vezes, por um alto nível de originalidade do pensamento e das atitudes (Brasil, 2013).
Segundo Untoiglich (2013), o médico destacou, nessas crianças, a marcada falta de
empatia, a ausência de habilidade para fazer amigos, a linguagem pedante ou
repetitiva, a comunicação verbal empobrecida e um interesse desmedido por alguns
temas específicos, além de má coordenação motora.
Porém, apenas na década de 1980, com a tradução do artigo de Asperger para
o inglês, disponibilizada pela psiquiatra Lorna Wing, as contribuições do médico suíço
passaram a ser conhecidas (Untoiglich, 2013). A autora, que participou da
organização da National Autistic Society, na Inglaterra, defendeu que a síndrome de
Asperger compartilhava com o autismo uma mesma tríade sintomática, que
compreende as seguintes características: limitações na interação social recíproca;
limitações no uso da linguagem verbal e/ou não-verbal; e atividades estereotipadas e
repetitivas (Brasil, 2013). As contribuições de Wing favoreceram o fortalecimento da
noção de continuum ou espectro do autismo, bem como a inclusão da síndrome de
Asperger entre as classificações diagnósticas a partir dos anos 1990.
O Autismo Infantil, termo já desatualizado e que já caiu em desuso, só foi
incluído como uma entidade clínica distinta no manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais (DSM) em sua terceira versão, de 1980. Anteriormente, as

494
crianças com tais características eram diagnosticadas como tendo um tipo de
esquizofrenia infantil. Desde sua inclusão no DSM, tal diagnóstico já foi nomeado
como Transtorno Autista, pelo DSM III, Transtorno Invasivo do Desenvolvimento
(TGD), pelo DSM IV e, finalmente, Transtorno do Espectro Autista (TEA) em sua
versão mais recente, o DSM 5 (Kaplan, 1997; Untoiglich, 2013).
Em sua última versão, foram excluídas as diversas categorias que
compreendiam os Transtornos Globais do Desenvolvimento, presentes no DSM IV,
propondo-se um quadro mais amplo designado como Transtorno do Espectro Autista
no DSM 5. O risco de tal alargamento dos critérios diagnósticos é o de haver uma
patologização de aspectos típicos do desenvolvimento infantil, associando-os ao
quadro de autismo, o que poderia contribuir com o fenomêno, mencionado
anteriormente, de uma “epidemia” de autismo.
O DSM 5 atualmente caracteriza o TEA como um prejuízo persistente na
comunicação social recíproca e na interação social, bem como por padrões restritivos
e repetitivos de comportamento e interesses. Tais características devem estar
presentes, de acordo com os critérios, desde o início da infância, causando prejuízo
para o funcionamento diário (American Psychiatric Association, 2014). Esse manual
traz como nova proposição o uso do termo espectro para designar a diversidade e
heterogeneidade de manifestações do autismo, que variam de acordo com a
gravidade da condição autista, o nível de desenvolvimento e a idade cronológica. A
fim de descrever a sintomatologia atual de cada paciente, o novo manual traz os
especificadores de gravidade, em que cada caso pode ser classificado nas categorias
Exigindo apoio (nível 1); Exigindo apoio substancial (nível 2); e Exigindo apoio muito
substancial (nível 3). Para cada um desses níveis, há um descrição específica em
termos das dificuldades de comunicação social, por um lado, e dos comportamentos
restritivos e repetitivos, por outro, sendo que o nível de gravidade deve ser avaliado
em separado para cada um desses critérios (American Psychiatric Association, 2014).
Assim, os prejuízos na comunicação e na interação social podem variar desde
um atraso na linguagem, com redução da compreensão da fala, até a ausência total
de fala, sendo que, mesmo quando há habilidades liguísticas formais preservadas (por
exemplo, gramática e sintaxe), deve existir prejuízo no uso da fala para comunicação
social. Já os déficits na comunicação não verbal se manifestam por meio do uso
reduzido ou ausente de contato visual, gestos, expressões faciais e entonação da fala.
Também caracterizam o autismo os padrões restritivos e repetitivos de
495
comportamento, que incluem o abanar de mãos, o uso repetitivo de objetos (como
enfileirar moedas), ecolalias e adesão a rotinas rígidas, com notável resistência às
mudanças (American Psychiatric Association, 2014).
Ressalta-se que o novo termo espectro autista engloba os transtornos que
anteriormente eram denominados de autismo infantil precoce, autismo infantil,
autismo de Kanner, autismo de alto funcionamento, autismo atípico, transtorno global
do desenvolvimento sem outra especificação, transtorno desintegrativo da infância e
transtorno de Asperger (American Psychiatric Association, 2014).
Quanto ao desenvolvimento e curso do transtorno, o DSM 5 (American
Psychiatric Association, 2014) aponta que os sintomas do TEA costumam ser
reconhecidos no segundo ano de vida. Nesse período, os pais podem relatar perda
ou atraso no desenvolvimento de habilidades linguísticas ou dos comportamentos
sociais. Somente uma minoria dos indivíduos diagnosticados consegue viver e
trabalhar de forma independente na fase adulta, sendo essa minoria composta por
aqueles que possuem habilidades de linguagem e capacidades intelectuais
superiores. Muitos indivíduos, tendo dificuldades em dar conta de demandas sociais
e se organizarem quanto a questões práticas, podem desenvolver ansiedade e
depressão. Alguns adultos, mesmo conseguindo suprimir certos sintomas em público,
sofrem intimamente com os esforços que executam para manterem uma fachada
socialmente aceitável (American Psychiatric Association, 2014).

Desenvolvimento do tema

A afirmação de que “sexo não é para a maioria das pessoas autistas” (Torisky
& Torisky, 1985, p. 216, trad. nossa) é contrariada por estudos mais recentes, que
mostram grandes semelhanças entre pessoas com autismo e a população geral, no
que se refere à experiência sexual (Dewinter et al., 2015, 2016, Kellaher, 2015). Tanto
os adolescentes com T.E.A. quanto seus pares na população geral demonstraram
atitudes positivas e permissivas em relação à sexualidade. Na verdade, encontrou-se
que garotos diagnosticados com T.E.A. são até mais tolerantes em relação à
homossexualidade (Dewinter, 2015; Kellaher, 2015).
Assim, a visão preconceituosa de que as pessoas com autismo seriam
assexuadas gradualmente tem dado lugar à percepção de que a maior parte delas
496
tem interesse por relacionamentos amorosos e relações sexuais com pares, sendo
comum a experiência com tais relações nessa população (Dewinter et al., 2017;
Kellaher, 2015; Strunz et al., 2017).
Apesar disso, a sexualidade desses indivíduos ainda é um tabu entre seus
familiares, que apresentam a expectativa de que eles sejam assexuados, ou que seus
impulsos sexuais sejam controlados e domesticados, tratando-os de forma
infantilizada e percebendo-os como dependentes (Tilio, 2017).
O início das pesquisas sobre sexualidade em indivíduos com autismo data de
uma década após a inclusão do diagnóstico de autismo infantil no DSM-III, em 1980.
À época, tais publicações involucravam a noção de que indivíduos com autismo eram
inaptos, não interessados e não apropriados para receber educação sexual e
manterem relacionamentos românticos. Poucas publicações abordavam histórias de
sucesso no âmbito da sexualidade e dos relacionamentos, havendo maior ênfase aos
comportamentos sexuais inapropriados. Essas publicações iniciais, contudo, se
baseavam principalmente em relatos de pais e cuidadores, ao invés de relatos diretos
de indivíduos com TEA (Kellaher, 2015).
Nos últimos anos, finalmente foi dada voz às pessoas com autismo para
revelarem suas experiências com a sexualidade. Estudos recentes, utilizando relatos
obtidos diretamente com indivíduos com TEA, foram publicados sobre o tema,
revelando que, ao menos no que se refere às pessoas com autismo de alto
funcionamento, elas têm tanta capacidade para assumirem o comportamento sexual
quanto os denominados “neurotípicos” (indivíduos sem diagnóstico de TEA). A
utilização de relatos diretos de indivíduos com TEA nas pesquisas recentes, ao invés
dos relatos de pais e cuidadores, é em si inovadora e permitiu verificar que as
experiências de pessoas com autismo com masturbação, pornografia e relações
sexuais com parceiros, ao contrário do que se pensava anteriormente, não diferem
significativamente da população geral. Além disso, adultos com autismo não são
menos interessados em sexo do que os demais, tendo níveis semelhantes de
conhecimento da linguagem sexual e de profundidade de experiência sexual
(Kellaher, 2015).
Por outro lado, outros estudos recentes sugerem que há diferenças entre
indivíduos com TEA e neurotípicos, apontando para um conhecimento
significativamente menor, nos primeiros, sobre doenças sexualmente transmissíveis,
contracepção e reprodução. Ainda, tais estudos mostraram que indivíduos com TEA
497
obtêm tais conhecimentos mais frequentemente por meio da televisão e da internet
do que por meio de conversas com pais, professores e pares (Kellaher, 2015). Outros
estudos apontam para uma tendência entre indivíduos com TEA de apresentarem
comportamentos sexuais inapropriados (Peixoto et al., 2017).
No que se refere à forma como os pais e familiares lidam com a sexualidade
dos indivíduos com TEA, a literatura da área mostra que esse tema é tabu para as
famílias. Os pais frequentemente descrevem essa fase como sendo muito dificil e
temem que, devido à falta de habilidades sociais, seus filhos se tornem vítimas ou
autores de abusos sexuais (Peixoto et al., 2017). Os familiares frequentemente
esperam que o indíviduo com TEA seja dessexualizado ou que sua sexualidade seja
domesticada, o que acaba acentuando as dificuldades em lidar com o assunto (Tilio,
2017). Em seu estudo de caso que envolveu um familiar cuidador de um indivíduo
com TEA, Tilio (2017) verificou que a família o significava como uma eterna criança
ou dependente. O autor considera que existe uma dificuldade, nas famílias dos
acometidos por TEA, de perceber que tais indivíduos se desenvolvem biológica e
sexualmente de maneira específica, havendo resistência em aceitar que se tratam de
indivíduos com direitos, desejos e manifestações sexuais, o que é congruente com as
restrições de admitir sua plena autonomia.

Conclusão

A discussão da sexualidade no TEA permite desmistificar visões


preconceituosas e normatizadoras presentes entre os discursos socialmente
produzidos acerca desse tema. A necessidade de se estudar a sexualidade e
afetividade em pessoas com TEA vai além de um interesse clínico ou de uma busca
por maior conhecimento científico, ou mesmo de um maior embasamento para
intervenções de profissionais da saúde e da educação. Trata-se, de fato, de poder
olhar para o que essas pessoas têm de mais humano. Frente às inquietações da
atualidade, em que se difunde a ideia de estamos sendo desafiados por uma epidemia
de autismo, em que se corre o risco de transformar a imagem das pessoas com
autismo em caricaturas do autismo, como se o TEA fosse uma entidade nosológica
objetiva alheia às singularidades de cada indivíduo, tal olhar se faz especialmente
necessário (Bosa, 2002; Rios et al., 2014). Trata-se de lançar luz sobre os
498
sentimentos, desejos, fantasias, projetos, sonhos, conflitos, emoções, sexualidade,
enfim, sobre aquilo que faz com que pessoas, com autismo ou não, sejam pessoas.
Sem tal perspectiva, fica-se à mercê de discursos normativos, que operam sob
uma lógica de condomínios, em que se alocam os “iguais” dentro de um mesmo
condomínio, excluindo-se os “diferentes”, tendo como critério uma imagem de
normalidade socialmente construída. Tal lógica condominial, segundo a noção
cunhada por Dunker (2015), mostra-se inevitavelmente excludente, na medida em que
a segregação nasce do fracasso em articular a diferença, reduzindo o “diferente” a
uma categoria, destituindo-o assim de sua humanidade e retirando dele o que ele tem
de semelhante com os “iguais”. É uma operação excludente, pois reduz a capacidade
de empatia e produz o isolamento do “diferente”, obstaculizando sua inclusão e
reintegração social.
Trata-se, por fim, de buscar contribuir para a possibilidade de lançar um olhar
mais humano e inclusivo para as pessoas com autismo, permitindo que se possa
perceber seus aspectos mais humanos, e que elas não são, afinal, tão diferentes
quanto faz parecer a imagem socialmente partilhada sobre essas pessoas, sem
contudo negar as diferenças e particularidades que possam se presentificar.

Referências

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transtornos mentais: DSM-5 (M. I. C. Nascimento, Trad.) (5th ed.). Porto Alegre, RS:
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500
44- O CORPO COMO EXPRESSÃO: DESENVOLVIMENTO INFANTIL E
DEMANDAS CLÍNICAS CONTEMPORÂNEAS

Laura Magalhães Terena


Geovana Figueira Gomes
Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes
Valeria Barbieri

Resumo: O relato de experiência selecionado propõe uma reflexão acerca de


problemáticas bastante atuais concernentes ao desenvolvimento infantil e
corporalidade, norteado, principalmente, pela abordagem psicanalítica winnicottiana.
O caso clínico discutido refere-se a um atendimento realizado no Serviço de Triagem
e Atendimento Infantil e Familiar (STAIF) do serviço escola de uma universidade
pública, que aborda aspectos da infância, familiares e sociais, baseado
essencialmente no mesmo psicanalista.

Palavras chave: infância, Self, psiquessoma, psicanálise

INTRODUÇÃO
O trabalho visa discutir problemáticas relativas ao desenvolvimento
emocional infantil, embasado nos conceitos de verdadeiro e falso Self de Winnicott
(1964/2011), considerando a corporalidade em um tempo em que há forte destaque
para esta questão na cena social. A teoria winnicottiana contribui para a formação de
um olhar profissional que se compromete em reduzir a lacuna entre mente e corpo,
ao indicar possibilidades de articulação entre mente e psiquessoma, corpo e
inconsciente (Winnicott, 1949/2000).
A proposição dos conceitos de verdadeiro e falso Self sustenta a perspectiva
de que o sujeito dispõe de recursos para se adaptar às exigências ambientais,
enquanto consegue manter a própria existência e unicidade. Das inevitáveis falhas de
um “ambiente perfeito”, que garante o continuar a ser da criança, seguem-se reações
às intrusões que contribuem para a formação de um Self adaptado e socializado e
outro privado. A compreensão do bebê, e posteriormente da criança que sobrevive às

501
imperfeições e intrusões, permite que a existência prossiga, na medida em que os
ambientes que a recebem se ampliam (Winnicott, 1964/2011).
A atividade mental, proveniente da flexibilidade funcional do psiquessoma,
prepara gradualmente o indivíduo a cuidar de si próprio. Quando, porém, esse
funcionamento é intenso a um nível que passa a existir por si mesmo, a psique é
“atraída” a transformar-se puramente em mente, ocorrendo um rompimento entre esta
e o soma, que provoca dissociações na criança. Tal fenômeno afeta momentos
posteriores do desenvolvimento, como nos âmbitos da expressão da criatividade, agir
espontâneo e sentir-se verdadeiro (Silva, Lima & Barbosa, 2014; Winnicott,
1949/2000).

OBJETIVO
O estudo apresenta um relato de experiência que almeja analisar, por meio de
um caso clínico atendido no Serviço de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar
(STAIF), aspectos do desenvolvimento infantil orientado pela abordagem psicanalítica
winnicottiana.

RELATO DA EXPERIÊNCIA E DISCUSSÃO

O STAIF é a porta de entrada da clínica escola da Faculdade de Filosofia,


Ciências e Letras de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Ele
atende crianças de até 12 anos, que buscam atendimento psicológico, recebendo a
demanda por meio de um processo de triagem interventiva.
Esse processo é operacionalizado por meio de entrevista de anamnese com
pais ou cuidadores, sessão lúdica com a criança, sessão familiar e sessões
devolutivas com os cuidadores e criança individualmente. A entrevista devolutiva
infantil é realizada através de uma história contendo o conflito principal em articulação
com os próprios recursos que a criança dispõe para elaborá-lo. Quando observada a
necessidade de uma melhor compreensão do caso, é proposta alguma atividade
complementar, como a aplicação de instrumentos projetivos. No presente caso foi
utilizado o Teste do Desenho da Casa-Árvore-Pessoa (House-Tree-Person - HTP),
desenvolvido por Buck (2003).

502
A paciente Lívia15, sete anos, foi inscrita no serviço pela mãe, Silvia, que trouxe
como queixa principal obesidade infantil e ansiedade elevada. A criança vive com ela,
padrasto e irmã de cinco anos. O pai biológico mora em outra cidade, para onde a
filha viaja a cada quinze dias aos finais de semana. Silvia enfatiza que esta experiência
de viver alternadamente em dois ambientes pode ser prejudicial à criança, já que
considera as visões e práticas educacionais dos diferentes ambientes conflitantes, e
se mostra convencida que este é o principal conflito que a filha vive.
A mãe manifesta insegurança quanto ao cuidado com a saúde mental e física
de Lívia, que envolve as exigências com o próprio corpo. Há, assim, preocupações
sobre bullying na escola, reeducação alimentar e saúde física em geral, pelo fato de
ela ter engordado muito nos últimos tempos.
É notável ainda um intenso sentimento de culpa de Silvia em relação aos
cuidados e exigências com a filha, que envolvem seu papel na maternagem,
separação do pai biológico, e ambiente social escolar. Os pais se separaram quando
Lívia tinha quinze dias de vida, e o padrasto entrou na vida dela um ano depois. A
mãe afirma que seu sonho era engravidar e ter uma família.
Ela também diz que Lívia é uma criança que se adapta bem às mudanças
desde quando era bebê, por ter vivido intempéries junto com ela, como a separação
do pai biológico, mudança de cidade e, mais recentemente, duas transferências de
escola. Atualmente as duas filhas estudam no mesmo colégio, onde possuem bolsa
parcial e convivem com crianças de padrão socioeconômico bastante acima do deles,
o que é relatado pela mãe como uma preocupação.
Há reconhecimento sobre os abalos emocionais decorrentes da história de vida
da menina, mas que parecem compensados por habilidades que ela desenvolveu,
como a inteligência e força, na perspectiva da mãe. No momento em que a família
busca atendimento para ela, é perceptível o movimento materno de adaptar-se às
necessidades da filha, mas há foco exacerbado na queixa da obesidade e
comportamento da criança, e pouca atenção às necessidades emocionais. Ao relatar
as dificuldades da filha, a mãe refere-se frequentemente a si própria, demonstrando
um certo nível de indiferenciação entre ela e a filha.
Ao mesmo tempo, ela exige da filha controle e adequação aos padrões que
julga importantes. Silvia diz que a menina é linda e meiga, mas desleixada. Ao sentar

15
Todos os nomes utilizados são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes.

503
para fazer as refeições, “se alimenta como a Fiona”, personagem de desenho infantil
que é uma princesa ogra. Na percepção da mãe, ela pode estar “descontando suas
frustrações” na comida, e não sabe mais o que fazer, já pensou até se haveria uma
escola de “bons modos” para ajudá-la com tais questões. É principalmente no
comportamento alimentar que Silvia manifesta estar “perdendo o controle” sobre a
educação da filha, que ela mesma caracteriza como rigorosa.
Quando conheço Lívia pela primeira vez na sessão lúdica, confirmam-se
algumas características pontuadas pela mãe anteriormente, como a inteligência e
capacidade lúdica da criança. Com relação aos conteúdos da sessão, desenrolaram-
se brincadeiras que indicavam questionamentos sobre sua origem, um interesse
grande em ciências, especialmente sobre como os animais nascem. Ao se referir ao
pai, Lívia diz o nome do padrasto e, em seguida, conta sobre um evento vivido junto
à família do pai biológico sem mencioná-lo diretamente, algo que poderia remeter à
divisão entre suas famílias, como contado pela mãe.
Lívia é bastante dedicada à escola e gosta de falar sobre seus conhecimentos.
É relevante pontuar a observação da manifestação de um falso Self que agrada
principalmente os adultos, já que ela exibe aspectos intelectuais, de fato, adultizados.
O desenvolvimento exacerbado da mente prejudica, assim, a continuidade do ser
verdadeiro, visto que a criança defende-se do mundo através do funcionamento
mental proeminente para se proteger das falhas ambientais, ainda que tal função
esteja constantemente ameaçada de colapso.
Em outro momento, durante a sessão familiar, foi possível associar elementos
anteriormente trazidos por Silvia, na entrevista, e Lívia, na sessão lúdica, com a
dinâmica da família. Estiveram presentes as duas, padrasto e irmã mais nova, filha do
atual casal. Notou-se um ambiente familiar pouco compreensivo, ainda que afetuoso.
Ambos os pais desempenharam uma postura bastante onipotente com as filhas, ao
mesmo tempo em que se esforçaram para exibir à terapeuta a capacidade de cumprir
suas funções com excelência.
Como conceituado por Winnicott (1964/2011), o contexto familiar é um
elemento essencial para o desenvolvimento saudável da criança. Notou-se, durante a
sessão familiar e decorrer do caso, uma intensa ambivalência no cuidado com a saúde
mental e física de Lívia, e uma não aceitação da personalidade e corpo da menina
(Winnicott, 1949/2000).

504
A experiência corporal é um aspecto existencial extremamente complexo nos
planos individual e social. Para a criança em desenvolvimento, ainda, deve-se
acrescentar angústias mais primitivas de fragmentação e diferenciação eu-não-eu;
que fazem da imagem e vivência corporal um reflexo de inúmeras experiências
orgânicas e psíquicas.
A hiperadaptabilidade de Lívia parece ter sua origem em um processo de
consolidação de um funcionamento falso Self. Silvia racionaliza sua postura rígida e
controladora com as filhas, além da punição física. Diz ter muito medo do
desprendimento emocional das meninas durante a adolescência e, por isso, prefere
manter, em sua visão, a infalibilidade de suas práticas educacionais maternas.
As exigências da mãe relativas ao corpo da menina refletem valores estéticos
sociais. Nesse âmbito, ainda que os padrões de beleza estejam em constante
modificação e, nos tempos atuais, em certa ampliação, as imagens conservam o
superinvestimento em um ideal de perfeição que constitui fonte de sofrimento, conflito
e dor (Fernandes, 2003).
Por ocasião da aplicação do HTP, Lívia, ao saber da natureza da atividade que
precisaria realizar, mostrou-se impaciente e resistente. Tal situação pode ter
acontecido devido a esta técnica tocar diretamente a questão da imagem corporal,
que é um ponto de conflito importante entre a criança e a mãe. Por isso, neste
momento, a relação transferencial foi caracterizada pelo desafio por parte da menina.
Ela não se opôs claramente à tarefa, mas sua produção foi empobrecida.
Ao desenhar a casa, Lívia divide a folha em três partes, explicando que faria a
parte externa na primeira, e o interior do local nas outras duas. Ela acaba por usar
apenas a primeira parte, não finaliza a ideia inicial verbalizada. A produção é pobre
de detalhes, e reflete apenas a imagem que é transmitida ao mundo, sem oferecer
espaço para um contato mais criativo e profundo com o outro.
Ao desenhar a árvore, Lívia a faz com pressa e pouco cuidado. Observa-se
pouca afetividade, que pode ter relação com repressões que ela sofre, e vivência
emocional predominantemente amparada em um falso Self. O tronco tem uma fissura
destacada, explicado por ela como uma tentativa do lenhador de cortar a árvore, mas
que não aconteceu, pois a força da natureza não permitiu e o lenhador perdeu seu
machado. Assim, a produção mostra que, a despeito das invasões sofridas, houve a
possibilidade de preservar o seu desenvolvimento, mesmo que a espontaneidade e a
criatividade precisem ser mantidas dissimuladas por uma casca protetora adaptativa.
505
No desenho da pessoa há elementos que sugerem falhas no contato com a
realidade e, novamente, dificuldades emocionais. Nos pés, a menina se apoia sobre
saltos altos, o que remete a uma sustentação frágil e vulnerável. Mais uma vez é
notável o destaque para aspectos de intelectualização, dado que a cabeça desenhada
é grande comparada ao tronco, e bastante desproporcional ao resto do desenho.
Diante dos elementos proporcionados pela avaliação realizada, pondera-se
que Lívia tem espaço na família, mas este é reduzido. Seu papel e lugar como filha
está bem estabelecido, mas talvez não possa transitar entre outras formas de ser e
sentir, elementos que novamente revelam o funcionamento falso Self predominante.
Seu Self tem insuficiente possibilidade de manifestação, o que é corroborado pela
escassa espontaneidade e criatividade.
Embora Lívia tenha força para se opor e contestar o que lhe é imposto, surgem
dificuldades de integração decorrentes de uma mente super desenvolvida e
adultizada. Ao mesmo tempo em que há tentativa de unir a “princesa”, idealizada pela
mãe, e a menina “opositora”, o ambiente não parece fornecer espaço para essas duas
existências, elementos que conduzem a prejuízos para integração psicossomática da
criança.
Lívia, durante a sessão devolutiva, conta uma história sobre um colega de
classe que perdeu a mãe, e sugere querer conversar e ajudá-lo de alguma forma, mas
não sabe exatamente como abordá-lo. Nesse sentido, Winnicott (1949/2000) observa
que o indivíduo que tem um histórico de desenvolvimento no qual a função mental é
desvinculada do soma, em geral, é extremamente eficiente em cuidar do outro, e
capaz inclusive de ser um apoio excepcional devido a seus “poderes curativos”. Ainda,
a facilidade em se identificar com aspectos ambientais pode gerar dificuldades em
entrar em contato consigo mesmo, acreditando no seu potencial criativo e singular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reflexão acerca do relato de experiência apresentado intencionou articular
particularidades do caso com elementos do contexto social, sobretudo pelo fato das
exigências sociais relativas a um corpo ideal percorrer também o mundo infantil. A
criança em desenvolvimento está criando recursos para sobreviver no mundo como
ela de fato é, na direção do desenvolvimento de um verdadeiro Self. Demandas e
exigências sociais e familiares idealizadas são fonte de sofrimento e mal estar para

506
aquele ainda em posição de vulnerabilidade e dependência, qualidades inerentes à
infância, principalmente quando o indivíduo é pouco fortalecido emocionalmente.
Apesar da relevância adaptativa do funcionamento de um falso Self, movimento
defensivo que capacita a criança a viver e sobreviver socialmente nos ambientes
como o escolar e familiar, a capacidade criativa é prejudicada. Neste caso clínico
discutido aqui, há elementos que evidenciam que as defesas da criança têm tais
características, além de notar-se a manifestação de intenso sofrimento emocional
decorrente de sua condição.
A qualidade empobrecida do agir espontâneo e criatividade, decorrentes do
pouco espaço disponível na vida da menina para tal, guardam grande potencial de
desenvolvimento. O espaço terapêutico visa proporcionar, assim, um ambiente capaz
de acolher e potencializar as possibilidades de emergência do verdadeiro Self, em
direção ao bem estar emocional.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Vetor.

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ed.). São Paulo: Martins Fontes, 53-58.

507
45- ALOPECIA: O PRECONCEITO COMO VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES
COM CÂNCER DE MAMA

Elaine Campos Guijarro Rodrigues


Manoel Antônio dos Santos
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP

Resumo: O câncer de mama é o tipo de tumor que acomete mulheres com maior
prevalência após o câncer de pele não melanoma. Tipicamente, o tratamento envolve
a quimioterapia, tratamento cujos efeitos colaterais provocam alterações físicas,
dentre as quais a queda dos cabelos pode ser entendida como uma das mais
frequentes e ameaçadoras à constituição da imagem corporal feminina. Numa
sociedade onde existe um padrão de corpo imposto por uma cultura capitalista, a
perda dos cabelos como efeito colateral da quimioterapia acarreta não somente o
drama individual, como também a vivência do preconceito, uma forma de violência
social. Este apresenta um recorte de uma pesquisa qualitativa mais ampla sobre
imaginário coletivo e imagem corporal de mulheres com câncer de mama em
tratamento quimioterápico. Especificamente sobre a vivência do preconceito, os
resultados apontam no sentido de que a alopecia induzida por medicamentos, como
um efeito colateral da quimioterapia, atua como inibidor da livre expressão corporal no
mundo. Espera-se que o conhecimento produzido possa contribuir para o
planejamento de estratégias de promoção e prevenção de saúde junto aos serviços
de reabilitação psicossocial voltados à mulher com câncer de mama, possibilitando o
desenvolvimento de políticas sociais e públicas implementadas pelo Estado que sejam
sensíveis às necessidades de cuidado psicológico.

Palavras-chave: imagem corporal, preconceito, câncer de mama, alopecia.

Introdução
O câncer de mama é o tipo de tumor maligno que acomete mulheres com maior
prevalência após o câncer de pele não melanoma. Estatísticas do Instituto Nacional
do Câncer apontam que, para o ano de 2019, são estimados cerca de 59.700 novos

508
casos no Brasil (Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva [INCA],
2019).
Tipicamente, o plano terapêutico envolve procedimentos tais como a cirurgia
(radical ou conservadora) da mama acometida, quimioterapia, radioterapia e
hormonioterapia, que podem ser combinados ou não, de acordo com a indicação e
especificidades de cada caso (Peçanha, 2008; Spina, 2000). As mulheres que
enfrentam a doença, em sua maioria, têm de se submeter à quimioterapia
antineoplásica, tratamento que consiste na administração de altas doses de grupos
farmacológicos em curtos períodos (também denominados ciclos), que objetivam
destruir as células cancerígenas para evitar o desenvolvimento do tumor e sua
disseminação para o restante do organismo (Lacerda, 2001). O tratamento
quimioterápico para o câncer de mama acarreta efeitos adversos que provocam
alterações no corpo e no estado psicológico da mulher e, entre as mudanças mais
frequentes, encontra-se a alopecia ou queda dos cabelos (Vidotti, 2017; Soares,
Burille, Antonacci, Santana, & Schwartz, 2009). Os temores relacionados às
consequências dos efeitos colaterais para o câncer de mama tornam-se importantes
de serem estudados, pois constituem, inclusive um fator impeditivo para a busca de
identificação precoce do câncer e da busca precoce de tratamento (Arán, Zahar,
Delgado, Souza, Cabral, & Viegas, 1996).
A partir de uma visão blegeriana de ser humano, que compreende o homem
como um ser inseparável do seu meio social, com uma condição natural de ser
concreto e histórico, adota-se a premissa de que existência é permeada por uma
cultura não aleatória e, consequentemente, o corpo feminino, compreendido como
uma conduta humana, existe num contexto que significa e dita o padrão do que seria
o corpo ideal para cada época (José Bleger, 1963/1989).
A literatura aponta a construção do corpo feminino como uma invenção humana
influenciada pelo modo de produção capitalista, pela mídia, pela indústria da moda e
da pornografia, o que termina por impor um padrão de corpo objetificado e explorado
no mercado do consumo (Strey, 2004; Del Priore, 2004). Os cabelos femininos estão
incluídos nesse contexto e comportam uma infinidade de produtos e técnicas que os
modele (Cruz, 2015), nesse sentido, torna-se importante abordar os significados
construídos a partir do contexto histórico e social aos cabelos.
Os cabelos femininos possuem um significado socialmente construído
entrelaçado com a feminilidade, sensualidade e com a própria identidade feminina. Os
509
cabelos vistosos, remetem ao significado simbólico de erotismo, juventude, vitalidade
e sensualidade, capaz de despertar atração. Em caso contrário, os cabelos
embranquecidos remetem ao envelhecimento, à finitude e à castração (Oliveira,
2007). E todos esses significados são ameaçados diante da possibilidade da perda
dos cabelos ocasionada pela quimioterapia, o que pode ser vista como uma ameaça
à própria imagem corporal (Power & Condon, 2008).
Sobre as estratégias de enfrentamento para a queda dos cabelos, a literatura
aponta casos em que houve a preparação para a queda do cabelo antes mesmo que
ela ocorresse, com destaque para o estudo de Frith, Harcout e Fussell (2007), que
identificou essa preparação fez com que a mulher se sentisse um pouco mais no
controle da vivência do efeito colateral da quimioterapia. Ainda sobre estratégias de
enfrentamento para a alopecia, a literatura (Reis & Gradim, 2018) aponta que o
desenvolvimento de novos hábitos, tais como o uso de adornos (lenços, perucas e
chapéus) minimizam o impacto na aparência. As referidas autoras descreveram ainda,
o desenvolvimento de novas crenças, por exemplo a crença de que é um momento
transitório e crença de que é um tratamento que pode livrá-las do câncer.
O preconceito pode ser vivenciado por meio de atitudes sutis, como olhares de
curiosidade, como demonstração de atenção indesejada ou por atitudes mais
explícitas, como comentários (Silva & Silva, 2019).
O preconceito pode ser entendido como uma expressão de violência social
(Bandeira & Batista, 2002), relacionada com a discriminação e com a exclusão social,
gerando situações que se manifestam em termos de humilhação, desqualificação,
intimidação e exclusão das relações. O preconceito, segundo essa perspectiva,
contém em si um padrão normatizado do que seria o outro (moral, estético, corporal,
entre outras expressões) e pode implicar em exclusão do que não se identifica com
esse outro idealizado dominante. As referidas autoras exemplificam (p. 132) como o
preconceito nega a alteridade: “ser mulher implica se identificar com todas as
mulheres. Mas, mesmo entre as mulheres, há· heterogeneidades. (...) Cada vez mais
a diferença acaba sendo sinônimo de marginalidade, e o outro, a alteridade, torna-se
estrangeiro dentro de seu próprio meio e passa a constituir-se em uma ameaça”.
A literatura contempla estudos de abordagem quantitativa sobre imagem
corporal e câncer de mama (Connor et al., 2016; Rush et al., 2015; Lee et al., 2017).
Os estudos qualitativos existentes sobre imagem corporal relacionada ao câncer de
mama são, majoritariamente, transversais (Lago, Andrade, Nery, & Avelino, 2015;
510
Machado, Soares, & Oliveira, 2015), sendo escassos os estudos longitudinais
qualitativos. Realizou-se um estudo maior, empírico, qualitativo e longitudinal em
Psicologia, segundo uma abordagem psicanalítica winnicottiana para compreender o
imaginário coletivo de mulheres com câncer de mama em tratamento quimioterápico.
No presente artigo, de modo específico, buscamos compreender a vivência subjetiva
do preconceito relacionado à perda dos cabelos, compreendido como expressão
social de uma violência velada direcionada às mulheres que sofreram alopecia
induzida pela quimioterapia.

Objetivo
Este estudo tem por objetivo compreender a vivência subjetiva do preconceito
relacionado à perda dos cabelos, compreendido como expressão social de uma
violência velada direcionada às mulheres que sofreram alopecia induzida pela
quimioterapia.

Método
Constituiu o corpus do presente estudo, as produções de três participantes,
mulheres com idades entre 53 e 60 anos, com câncer de mama e com prescrição de
tratamento quimioterápico. Os encontros foram realizados num instituto especializado
em oncologia numa cidade do interior de São Paulo. Foram realizados três encontros
individuais, com cada participante, sendo o primeiro antes do início do tratamento
quimioterápico, o segundo aproximadamente na metade do tratamento
quimioterápico, e o terceiro, ao final do tratamento quimioterápico. Em todos os
encontros foram utilizados os instrumentos: Diário de campo, Entrevista aberta com
questão disparadora: Conte-me: como você tem vivenciado seu corpo atualmente? e
o Procedimento do Desenho-Estória com Tema - PDET (Aiello,1991). O estudo seguiu
as orientações éticas vigentes, o projeto obteve aprovação pelo Comité de Ética em
Pesquisa, as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
o diretor da instituição firmou o Termo de Aceitação da Pesquisa, os encontros foram
realizados em uma sala privativa, e os nomes fictícios foram escolhidos livremente
pelas participantes. Os encontros foram audiogravados e transcritos na íntegra. A
análise dos dados ocorreu segundo as diretrizes de Fábio Herrmann. Para captar os
campos de sentido, Herrmann recomendou a realização de três etapas: A) deixar que
surja: ir ao encontro do material com o mínimo possível de pré-concepções para poder
511
deixar-se tomar e impregnar pelo material; B) tomar em consideração; levar em conta
o que se destaca em termos de pensamentos e sentimentos e C) completar o sentido:
captar as regras inconscientes dos campos de sentido (Herrmann, 2001).

Resultados

Os resultados e a análise referem-se aos três encontros realizados com três


participantes: Maria, Ma e Helena.

Caracterização das participantes:

São atendidas pelo convênio do SUS e residem na cidade em que fazem o


tratamento. Todas têm um companheiro/marido do sexo masculino. Todos os
companheiros trabalham. Elas todas tiveram filhos. Maria e Helena residem apenas
com os maridos e Ma reside com duas pessoas: sua filha e seu companheiro. Elas
chegavam para realizar o tratamento acompanhadas pelos companheiros, por
familiares ou amigas (de infância) e possuem renda familiar acima de um salário
mínimo por pessoa. Apenas Maria relatou histórico familiar da presença de câncer e
de câncer de mama. Para Ma e para Helena este foi o primeiro contato próximo com
o câncer e com o tratamento quimioterápico. Quanto ao plano terapêutico, por conduta
médica, Maria realizou os primeiros oito ciclos de quimioterapia (quimioterapia
neoadjuvante), para redução do tumor e, posteriormente ser avaliada a possibilidade
de cirurgia mais conservadora. Ma realizou primeiro a setorectomia bilateral (retirada
de microcalcificações em ambos os seios) para depois realizar 6 ciclos de
quimioterapia (quimioterapia adjuvante). Helena realizou primeiro a quadrantectomia
(cirurgia mais conservadora para retirada de um quadrante) em uma das mamas para
depois realizar 8 ciclos de quimioterapia (quimioterapia adjuvante). Quando os
encontros foram realizados, Ma e Helena já haviam passado por um primeiro
procedimento cirúrgico e Maria precisaria primeiro passar pelo procedimento
quimioterápico para, depois, talvez realizar a cirurgia.

512
Antes do início Durante a quimioterapia Ao final

Grande
importância.
Alopecia ainda é um
Significado de Grande sofrimento
grande sofrimento e
cabelo Idealizado, emocional diante da
limita o contato
É possível vinculado ao ser queda dos cabelos e da
social.
ser quem mulher e à beleza. decisão de cortar os
Mas admitem outras
sou sem Cabelo é parte do cabelos. Começam a
possibilidades do
os cabelos seu ser. Dúvidas e utilizar novos adereços:
lenços, perucas, toucas. uso do cabelo, com
medos
outro corte, outro
relacionados à
formato, outra cor.
possível queda e à
exposição social.

Discussão

A análise permitiu criar-encontrar o campo de sentido intitulado É possível ser


quem sou sem os cabelos. Esse campo de sentido retrata a dramaticidade das
angústias referentes aos questionamentos iniciais sobre a possibilidade de queda dos
cabelos antes da quimioterapia, a queda dos cabelos e a vivência concreta da
exposição social e da limitação do contato social durante o tratamento e o
estabelecimento de uma nova relação com os cabelos ao longo e ao final da
quimioterapia.

Numa sociedade onde existe um padrão de corpo imposto por uma cultura
capitalista, a perda dos cabelos como efeito colateral da quimioterapia acarreta não
somente o drama individual, como também a vivência do preconceito, uma forma de
violência social.

Antes do início da quimioterapia, as participantes habitam um sistema de


crenças que se relaciona com as dúvidas quanto ao efeito colateral da quimioterapia
que faz com que o cabelo caia. Notamos que antes de realizar a quimioterapia, um
dos grandes medos é a queda dos cabelos. As mulheres apresentam o medo da

513
queda do cabelo, inclusive como um impeditivo de desempenho do contato social,
elas se perguntam como vão sair de suas casas sem o cabelo. Elas manifestam a
crença de que o cabelo seria tudo para uma mulher. Isso porque antes do tratamento,
as crenças sobre o cabelo também estão vinculadas à beleza feminina idealizada e
com a idealização do que seria o ser mulher, especialmente se retomarmos os
padrões de beleza atuais, os quais envolvem um cabelo farto e vistoso. Antes do
tratamento, no imaginário das mulheres entrevistadas, o efeito da alopecia induzida
pela quimioterapia aparece aos olhos delas e de terceiros, enquanto o câncer, como
o seio, ficaria escondido. Antes da quimioterapia existe a crença de que é um
tratamento que torna a doença visível aos olhos dos outros. Até a cirurgia para a
retirada do seio pode ser vista como menos prejudicial que a quimioterapia, pois o
seio ficaria escondido, na opinião das participantes.

Durante o tratamento, a crença sobre uma beleza vinculada ao cabelo é mantida


e é manifestado grande sofrimento diante da queda do cabelo. Durante o tratamento
quimioterápico, as participantes manifestam uma conduta de raspar e cortar os
cabelos todos de uma só vez, logo que começaram a cair. Essa manifestação
contempla um sentido: as dúvidas iniciais sobre a queda ou não dos cabelos e sobre
como a alopecia as impactará começam a ser materializadas pela vivência concreta
da queda dos cabelos e do sofrimento que isso causa. As participantes, antes do
tratamento tinham dúvidas, mas no decorrer do tratamento os medos vão se tornando
mais específicos, o medo de cair o cabelo passa a ser o medo do meu cabelo cair,
levando-as à conduta de optar por raspar e cortar os cabelos todos de uma vez. As
participantes habitam um mundo onde a percepção da queda gradual dos cabelos
implica em grande sofrimento. Durante a quimioterapia, é mais nítida a crença de que
quem realiza a quimioterapia necessariamente perde os cabelos, a ponto de que a
presença ou ausência dos cabelos podem significar presença ou ausência do próprio
câncer ou do próprio tratamento. Por exemplo, Ma, que não perdeu os cabelos, habita
o mundo de sentidos segundo o qual, como não perdeu os cabelos, não aparenta ser
uma pessoa com câncer em tratamento quimioterápico, apresentando a crença de
que quem tem câncer ou quem faz quimioterapia, necessariamente perde os cabelos.

Como o cabelo de Ma não caiu, ela não se sente exposta aos olhares de
terceiros, ela não sente que os outros a percebem como uma mulher com câncer de

514
mama. Ela não se sente ameaçada em sua vida pelo olhar de terceiro, nem pelo seu
próprio olhar refletido no espelho.

Isso não ocorreu com Maria e nem com Helena, que sofreram a alopecia como
efeito colateral da quimioterapia. E, durante o tratamento e ao final, expressaram a
diminuição do contato social em decorrência da quimioterapia, bem como dificuldades
de sair de casa, mesmo ao final do tratamento. Ao longo da quimioterapia, as
participantes efetivamente se sentiram expostas em decorrência da alopecia e
passaram a utilizar adereços para minorar os efeitos colaterais da quimioterapia. Os
contatos sociais ficaram circunscritos ao ambiente doméstico também em decorrência
da exposição social.

Ao final do tratamento quimioterápico, foi possível perceber que as participantes


vivenciaram uma nova possibilidade de significado para os cabelos, passando a
considerar como possibilidade viável, o uso variado dos cabelos, curtos ou compridos,
com perucas, ou sem perucas. Esse tópico também reflete o medo de um novo
adoecimento e do impacto emocional que seria ocasionado por uma nova perda de
cabelos. Houve, portanto, uma alteração do sentido do cabelo, após a vivência da
alopecia induzida pela quimioterapia.

Conclusões

As participantes relataram grande sofrimento emocional relacionado à queda dos


cabelos e grande receio de se sentirem expostas sem os cabelos. Ao longo da
quimioterapia, as participantes efetivamente se sentiram expostas em sua intimidade
e passaram a utilizar adereços para minorar os efeitos colaterais da quimioterapia. Os
contatos sociais ficaram circunscritos ao ambiente doméstico também em decorrência
da exposição social e do medo dos olhares das pessoas.
A vivência do medo preconceito social devido à alopecia pôde ser percebida
diante da limitação do contato social e dos medos relativos à exposição social do
câncer em razão do efeito colateral da quimioterapia.
Os resultados apontam no sentido de que os efeitos da quimioterapia atuam
como inibidores da livre expressão corporal no mundo. Espera-se que o conhecimento
produzido possa contribuir para o planejamento de estratégias de promoção e
prevenção de saúde junto aos serviços de reabilitação psicossocial voltados à mulher
com câncer de mama, possibilitando o desenvolvimento de políticas sociais e públicas

515
implementadas pelo Estado que sejam sensíveis às necessidades de cuidado
psicológico.

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fenomenológica das vivências do processo de comunicação diagnóstica
(Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil).

Dados resumidos dos autores

Elaine Campos Guijarro Rodrigues. Psicóloga. Mestranda do Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto (FFCLRP-USP). Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia
da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq). (E-mail: elainerodrigues@usp.br).

Manoel Antônio dos Santos. Psicólogo. Livre-docente em Psicoterapia Psicanalítica


pela FFCLRP-USP. Professor Titular do Departamento de Psicologia da Faculdade
517
de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
(FFCLRP-USP) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (FFCLRP-USP).
Psicólogo, Mestre e Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Especialista em
Psicologia Clínica e Psicologia Hospitalar pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Especialista em Psicoterapia de Casal e Família pelo Instituto FAMILAE, Ribeirão
Preto. Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (FFCLRP-
USP-CNPq) e do Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero –
VIDEVERSO (FFCLRP-USP). Coordenador da equipe de Psicologia do Núcleo de
Ensino, Pesquisa e Assistência na Reabilitação de Mastectomizadas - REMA da
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP). Bolsista de Produtividade em
Pesquisa do CNPq nível 1B. (E-mail: masantos@ffclrp.usp.br).

518
46- COMPREENSÃO DO MORRER POR CRIANÇAS QUE CONVIVEM COM
VIOLÊNCIA NO CONTEXTO AMBIENTAL

Hellen Cristina Ramos Queirós


Lucas dos Santos Lotério
Manoel Antônio dos Santos
Érika Arantes de Oliveira-Cardoso
Apoio: PUB-USP

Resumo: A literatura mostra que algumas das distorções a respeito do morrer feitas
pelas crianças são decorrentes da ausência de clareza a respeito do tema e podem
acarretar uma maior dificuldade nos processos de elaboração de perdas,
principalmente quando as crianças estão submetidas a um cotidiano marcado pela
violência. Este estudo qualitativo, descritivo-exploratório tem a finalidade de abordar
essas concepções de morte para crianças considerando a dimensão psicológica e o
contexto socioexperiencial das participantes. Foram entrevistadas seis crianças do
sexo feminino, com média de idade de 7,5 anos. Foi utilizado um livro infantil autoral
elaborado para esta pesquisa. A coleta dos dados foi realizada individualmente e as
verbalizações das crianças foram transcritas literalmente e submetidas à análise
temática. Os dados foram agrupados em cinco categorias: a) noção de finitude da
vida; b) temporalidade do morrer; c) finalidade do morrer; d) irreversibilidade da
morte; e) continuidade da vida. Um dado inusitado, e que pode estar relacionado
com a variável de contexto ambiental violento, foi a concepção da possibilidade de a
morte ocorrer em idades mais precoces, como na adolescência. A compreensão da
importância da memória e da preservação do morto como objeto de afeto daqueles
que permanecem vivos também são resultados inesperados.

Palavras-chave: Morte. Criança. Violência. Terminalidade.

Introdução
O desenvolvimento do conceito de morte pode fomentar diversas
interpretações que variam conforme a cultura, fase da vida e o contexto no qual o
indivíduo está inserido. Enquanto para a perspectiva cultural e religiosa a morte é
519
compreendida como um processo de transição no qual a vida transcende aos meros
processos biológicos, para a biologia a morte é conceituada como o cessar da
máquina corporal humana fazendo com que a vida seja interrompida de maneira
definitiva (Roazzi, Dias & Roazzi, 2010).
Para Torres (1978) essa perspectiva biológica abrange aspectos implícitos a
respeito das dimensões do conceito de morte e eles podem ser definidos de acordo
com a sua extensão, que compreende o grau de compreensão do indivíduo sobre os
seres que morrem; seu significado, que busca entender a compreensão do indivíduo
sobre o que é a morte; e duração, que visa entender a compreensão do indivíduo
acerca do tempo de permanência da morte.
Em estudo feito por Nagy (1948), a autora buscou compreender o que é a morte
para a criança na faixa etária de três a 10 anos e quais as teorias que ela constrói a
respeito da natureza da morte. No estudo, a autora encontrou diferentes tipos de
concepções que se relacionavam diretamente à idade da criança, desse modo, ela
concluiu que havia três estágios de desenvolvimento. No primeiro estágio, que
compreende a faixa etária entre três e cinco anos, a criança atribui vida e consciência
para os mortos; no segundo estágio, compreendido entre a faixa etária de cinco a
nove anos, a criança personifica a morte e, no terceiro estágio, compreendido pela
faixa etária de nove a 10 anos, a criança compreende o conceito biológico de que a
morte é o cessar da vida corporal.
No que tange ao estabelecimento de estágios de desenvolvimento, Piaget
observa que, ao nascer, o ser humano possui recursos apriorísticos que lhe propicia
realizar suas primeiras atividades que serão aperfeiçoadas conforme ele interage com
o meio em que vive. Esse aperfeiçoamento só é possível devido à existência de
estruturas cognitivas distintas as quais o autor chamará de estágios ou operações.
Essas estruturas irão diferir qualitativamente entre si, de modo que uma estrutura
inferior será a base para uma estrutura superior de maneira progressiva,
apresentando melhorias qualitativas conforme sua evolução (Rizzi & Costa, 2008).
Entretanto, essa teoria considera somente o desenvolvimento cognitivo da
criança em um contexto independente, não leva em conta sua experiência com a
morte, seja em seu contexto social ou em um contexto em que a própria criança é
impactada com uma doença terminal. Essas variáveis são fatores importantes que
podem afetar as cognições infantis a respeito da morte e, consequentemente, afetam

520
a compreensão da morte pela criança antes das idades sugeridas pelo seu
desenvolvimento (Torres, 1996).
Para que se tenha uma maior clareza a respeito do desenvolvimento do
conceito de morte, Torres (1996) fez uma revisão de literatura e definiu uma
abordagem multidimensional do conceito de morte separando-os em dimensões de
irreversibilidade, que é o reconhecimento de que, uma vez morto, o corpo físico não
pode retornar à vida; de não funcionalidade, que implica na compreensão de que as
funções corporais que definem a vida são interrompidas com a morte; e de
universalidade, que abrange a compreensão de que a morte se estende para todos
os seres vivos em algum momento de sua história.
Algumas ferramentas podem ser utilizadas como facilitadoras dessa
compreensão da morte. Para Kovács (2016), a ludoterapia – psicoterapia para
crianças – utiliza-se de recursos como desenhos e atividades lúdicas, uma vez que a
expressão de sentimentos por intermédio da fala ainda é custosa. Com uma função
ordenadora, a literatura também pode auxiliar na organização das experiências
existenciais da criança permitindo que ela desenvolva capacidades que possibilitem a
formação do senso crítico. Para isso, a biblioterapia – que é a utilização de qualquer
tipo de leitura por um adulto treinado visando à amenização do sofrimento psicológico
de uma criança -, possui papel fundamental para a construção de habilidades de
enfrentamento, uma vez que a criança pode distanciar-se de sua dor e expressar seus
sentimentos a partir de semelhanças e diferenças percebidas em relação aos
personagens da história (Paiva, 2011).
As concepções de morte e terminalidade, que se distinguem conforme as fases
de desenvolvimento piagetianas e pelo contexto individual no qual a criança está
inserida, são pouco explorados pela sociedade. No entanto, as distorções, feitas pelas
crianças, a respeito da terminalidade, dificultam os processos de elaboração de
perdas, principalmente para crianças submetidas a um meio cuja violência é mais
acentuada. Esse indivíduo, em um estágio operacional, embora possua a
aprendizagem útil necessária para lidar com as demandas de um conflito real que
impõe perdas, não necessariamente possui a capacidade de abstração necessária
para conseguir representar e melhor elaborar essas experiências de finitude da vida.
Levando em consideração esse panorama exposto, este projeto visa
compreender as concepções de terminalidade para crianças de 6 a 9 anos submetidas
a condições socioeconômicas vulneráveis e residentes no bairro de Heliopólis em São
521
Paulo. Haja vista a desigualdade social presente em nosso país, que é geradora de
violência (Silva & Aquino, 2004), é necessário que se lance um olhar mais atencioso
para a questão de como as crianças, que crescem nesse meio, conceituam a morte.
Desse modo, é possível adquirir arcabouço teórico para projetos de intervenção que
visem a minimização dos possíveis processos traumáticos da criança, que deverá
ocorrer por intermédio da preparação dos adultos responsáveis sobre como falar da
morte com crianças.
Este estudo, portanto, tem a finalidade de abordar essas concepções de morte
e terminalidade para crianças, por intermédio de uma abordagem multidimensional do
conceito de morte, que engloba os componentes de universalidade, não
funcionalidade e irreversibilidade.

Cuidados éticos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FFCLRP-USP
seguindo-se os procedimentos éticos de respeito aos voluntários e à instituição, de
acordo com a Resolução nº 466/12 sobre pesquisa envolvendo seres humanos (Brasil:
Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde, 2012) e do Conselho Federal de
Psicologia (nº 016/2000, de 20/12/2000).

Método
Tipo de estudo
Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo-exploratório, de corte transversal.
O enfoque qualitativo foi escolhido uma vez que se pretende investigar em
profundidade o fenômeno, na perspectiva de quem a vivência, buscando compreender
ações dos indivíduos, bem como os processos pelos quais os significados são
elaborados e descritos, considerando a dimensão psicológica e o contexto
sociohistórico dos participantes (Flick, 2009).

Participantes
Os participantes da pesquisa foram seis crianças do sexo feminino, com média
de idade de 7,5 anos, sendo três meninas de oito anos, duas de seis anos e uma de
nove anos, moradoras do bairro de Heliópolis em São Paulo. Foram considerados
critérios de inclusão: Ter idade entre seis e nove anos, ser residente da comunidade,
e pais aceitarem a participação na pesquisa. Foram excluídos participantes que
522
apresentassem dificuldades acentuadas de compreensão e comunicação, que
inviabilizariam o engajamento na tarefa e crianças que sofreram recentemente (menos
de um ano) alguma perda significativa. Esse último item foi verificado antes da
realização da pesquisa, no momento da proposta, visando não mobilizar
excessivamente crianças que estivessem, eventualmente, passando pelo processo
de enlutamento.

Cenário do estudo
Heliópolis localiza-se geograficamente na região sudeste de São Paulo e,
atualmente, é considerada uma das maiores favelas do Brasil devido a sua alta
densidade demográfica. Ao final da década de 90, Heliópolis era considerada uma
das comunidades mais violentas do estado de São Paulo e padecia com as ações do
crime organizado e as altas taxas de criminalidade e violência. O medo presente na
comunidade teve seu ponto alto com o assassinato de Leonarda, adolescente
executada a tiros a poucos metros da escola em que estudava. Essa tragédia deu
origem à Caminhada pela Paz, iniciativa do diretor do colégio em união com
professores e lideranças comunitárias que visava desnaturalizar a violência na
comunidade. Atualmente a Caminhada conta com a participação de milhares de
pessoas e é organizada pelo Movimento Sol da Paz, coletivo que foi originado a partir
do evento e, desde então, busca alinhar as demandas comunitárias, fortalecer as
escolas da região e levar aos moradores de Heliópolis a percepção de que a
superação do medo pode ser atingida por intermédio da educação e da união dos
membros da comunidade (Santis, 2014).

Instrumento
Conto da abelhinha Poli
Para intermediar a conversação foi utilizado um conto de autoria das
pesquisadoras, que possibilitou explorar, de forma lúdica, os conceitos relacionados
às dimensões de universalidade, funcionalidade e irreversibilidade da morte. Foi
elaborado um roteiro de perguntas que foi utilizado no decorrer da contação da
história, nos momentos em que os conceitos supracitados eram ilustrados.
Os materiais utilizados foram um celular Motorola Geração 5 para gravar a
entrevista e o conto.

523
Procedimento de coleta de dados
Os participantes foram convidados a participar por intermédio da técnica
snowball de amostragem não-probabilística. Nessa técnica os participantes iniciais do
estudo indicam novos participantes que por sua vez indicam novos participantes e
assim sucessivamente, até que se tenha alcançado o número proposto para a
pesquisa.
A duração total da contação de história foi em média 15 minutos.

Análise de dados
As respostas das crianças foram transcritas na íntegra e literalmente,
respeitando a sequência e a forma como foram apresentadas as falas.
Posteriormente, os dados foram submetidos à análise de conteúdo temática, segundo
Braun e Clarke (2006). Para esses autores, a análise temática é bastante útil e flexível
para a pesquisa qualitativa em psicologia. Ela é um método que identifica, analisa e
relata padrões (temas) nos dados obtidos. É minimamente organizada e descreve o
conjunto de dados em detalhes. O processo de análise temática é dividido em seis
etapas:
a) Familiarizar-se com os dados: Transcrever, ler e reler os dados e anotar as
ideias iniciais (busca de significados e padrões).
b) Gerar códigos iniciais: Coleta e codificação das características relevantes
dos dados de forma sistemática em todo o conjunto de dados. Organizar os dados em
grupos significativos. Os dados codificados diferem das unidades de análise (os
temas) que são mais amplas. Os temas serão desenvolvidos na próxima fase.
c) Buscar temas: Início da análise interpretativa dos códigos. Os códigos
diferentes podem se combinar para formar um tema abrangente. Pode ser útil nesta
fase usar representações visuais que ajudam a classificar os diferentes códigos em
temas, como tabelas, mapas temáticos, entre outros.
d) Rever os temas: Refere-se à revisão e ao refinamento dos códigos extraídos
para cada tema, ou seja, verificar se eles se referem a um padrão coerente e se
apresentam validade dos temas individuais em relação a todo o conjunto de dados.
Os dados que compõe os temas devem ser coerentes, e os temas diferentes devem
apresentar distinções claras e identificáveis. No final desta fase, é necessário saber

524
quais são os diferentes temas e como eles se articulam em relação a todo conjunto
de dados.
e) Definir e nomear temas: Definir e aperfeiçoar os temas apresentados.
Analisar os dados, identificar a “essência” e a especificidade de cada tema e gerar
definições claras e nomes para cada um deles. É importante não obter um tema muito
amplo, diverso e complexo.
f) Produzir o relatório: Análise final dos temas levantados. Selecionar exemplos
atrativos e pertinentes para exemplificar cada tema. Relacionar a análise com a
questão norteadora da pesquisa e com a literatura, visando articular o objetivo do
estudo e os achados empíricos.

Resultados e Discussão
Os dados foram agrupados em cinco categorias:

Tabela 1. Categorias temáticas da contação da história

Categoria Resultado

Noção de finitude da vida Discursos ambivalentes, ora admitindo a


universalidade da morte, ora a negando

Temporalidade do morrer Morte foi restrita às etapas de


desenvolvimento correspondentes à
velhice e adolescência

Finalidade do morrer Os sentidos de cunho religioso ou


relacionado à necessidade de espaço no
mundo para que outros possam nascer

Irreversibilidade da morte Boa compreensão da impossibilidade de


retorno à vida após a morte

Continuidade da vida Acreditavam em formas de permanecer


existindo apesar da morte, seja por
intermédio dos filhos ou permanência na
memória de entes queridos

525
Os dados obtidos corroboram a literatura, denotando que há compreensão da
irreversibilidade da morte nessa faixa etária, que se refere a noção de que depois da
morte o corpo físico não mais retomará a vida, mas que ainda não se alcançou a
concepção de sua universalidade, que é a compreensão de que todos os seres vivos
morrerão em algum momento (Torres, 1996).
Três resultados merecem destaque: a) a religiosidade presente no discurso; b)
a concepção da morte em uma etapa mais precoce do desenvolvimento; e c) a
possibilidade de continuação da vida pela preservação da memória do morto.
Tanto a religiosidade, quanto a possibilidade de se manter vivo quem morreu,
pela memória, podem estar relacionadas, de alguma forma, à negação da
terminalidade, em especial na crença de uma vida após a morte, na qual o morto
continua com características funcionais. Podemos notar essas relações na resposta
de Carol, seis anos, que, ao ser indagada sobre “se ela achava o morrer muito
estranho, assim como a abelha Poli”, respondeu: “Não, porque Deus cuida de nós”.
Essa fala demonstra a concepção de que a morte, apesar de cessar a vida do
indivíduo em um plano terreno, não impede a continuação de uma vida funcional em
um plano espiritual, uma vez que ele necessita de cuidados, essa afirmação pode nos
sugerir que esse indivíduo ainda possui necessidades tal qual o corpo vivo.
Essa concepção da morte como sendo um produto de um processo defensivo
é dado de outros estudos que consideram o meio sociocultural da criança (Orbach,
Gross, Glaubman & Berman, 1985). Segundo esses autores, para algumas crianças
a distorção encontrada na noção do conceito de morte é reflexo de um processo de
defesa ou uma falta de conhecimento. Logo, a compreensão da morte pela criança se
inicia com as experiências relacionadas a essa temática, que é por ela vivenciada, e
que, posteriormente, será expandida e aplicada aos demais objetos que possuem
vida. Corroborando para com a concepção de que os esquemas de desenvolvimento,
envolvidos na aquisição do conceito de morte, possuem um caráter dinâmico,
portanto, não linear ou acumulativo.
A compreensão precoce de que a morte não é privilégio da velhice, pode ser
também um dado do contexto social dessas crianças. Como podemos notar na fala
de Leticia, oito anos, que, ao ser indagada se todos morreriam um dia, respondeu
“Quando eles ficarem adolescentes, eles morrem” ou então, quando foi indagada a
respeito do “para que servia esse morrer”, respondeu “Porque quando a pessoa ficar

526
adolescente aí ela tem que morrer”. O relacionar da morte à adolescência, pode estar
associado ao caráter de uma comunidade marcada por um histórico combate à
violência que ainda vítima muitos de seus jovens. É importante ressaltar que a
Caminhada pela Paz, evento que ocorre há 21 anos nas ruas da comunidade, iniciou-
se devido ao assassinato de uma adolescente. Além disso, há as práticas infracionais
que muitas vezes culminam no assasinato de adolescentes, logo, há na cultura de
Heliópolis a demanda pelo desenvolvimento de fatores protetivos e preventivos
relacionados ao jovem (Pereira, 2017). Essas práticas, provavelmente, submetem
essas crianças a vivência de uma realidade não compartilhada por aquelas que vivem
em bairros de alto poder aquisitivo, por exemplo.
Para Tallmer, Formanek & Tallmer (1974) as experiências contribuem para com
as conceituações. Em estudo feito pelos autores com crianças de status
socioeconômico baixo e médio concluiu-se que crianças de classe baixa possuíam
mais facilidade em aprender conceitos funcionalmente úteis quando comparadas às
crianças de classe média. Essa conclusão os fez especular que tal agilidade de
aprendizagem se deve à exposição à violência real fazendo com que elas dispendam
sua inteligência para a aprendizagem daquilo que é útil. Todavia, essa noção mais
pertinente a respeito da morte, por esse grupo, não se relaciona com a noção de uma
violência que culmina na morte, mas sim com um modo mais realista e sensato de
lidar com o ambiente em que ela está inserida.
De um modo geral, obteve-se uma aprendizagem precoce e útil da
conceituação da morte nessas crianças, que pode ter sido imposta pelo meio social.
Apesar disso, Montoya (1983) pontua que apesar da criança de status
socioeconômico baixo saber lidar com essa exigência imediata do meio físico, ela não
possui a compreensão necessária a respeito de sua prática. Para ele, nas realizações
das crianças o real está bem construído, mas a organização da realidade em termos
representativos ainda é deficitária (Torres, 1996). Esse resultado é importante no
sentido de se conhecer a realidade dessas crianças e se pensar em estratégias de
ajuda condizente com suas necessidades.
Um limite do estudo é ter sido feito com crianças somente do sexo feminino e
restrito a uma comunidade específica. Sugere-se novas investigações, com ambos os
sexos e investigando outros contextos sociais.

527
Referências

Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative
Research in Psychology, 3(2), 77-101.

Dongo Montoya, A. O. (1983). De que modo o meio social influi no desenvolvimento


cognitivo da criança marginalizada? Busca de uma explicação através da
concepção epistemológica de Jean Piaget. (Dissertação de mestrado)

Flick, U. (2009). Introdução à Pesquisa Qualitativa. Porto Alegre, RS: Artmed Editora.

Kovács, M. J. (2016). Falando de morte com crianças. Psicologia Usp, 2(3), 170-
173.

Nagy, M. (1948). The child's theories concerning death. The Pedagogical Seminary
and Journal of Genetic Psychology, 73(1), 3-27.

Rizzi, C. B., & da Rocha Costa, A. C. (2008). O período de desenvolvimento das


operações formais na perspectiva piagetiana: aspectos mentais, sociais e
estrutura. Educere-Revista da Educação da UNIPAR, 4(1), 29-42.

Roazzi, M. M., Graça Bompastor Borges Dias, M. D., & Roazzi, A. (2010). Mais ou
menos morto: Explorações sobre a formação do conceito de morte em
crianças. Psicologia: Reflexão e Crítica, 23(3), 485-495.

Santis, M. D. (2014). De favela a bairro educador: protagonismo comunitário em


Heliópolis. (Dissertação de Mestrado)

Silva, E. R. A. D., & Aquino, L. M. C. D. (2004). Desigualdade social, violência e


jovens no Brasil. Brasília: Andi.

Tallmer, M., Formanek, R., & Tallmer, J. (1974). Factors influencing children's
concepts of death. Journal of Clinical Child Psychology, 3(2), 17-19.

Torres, V. D. C. (1978). O conceito de morte em diferentes níveis de desenvolvimento


cognitivo: uma abordagem preliminar. (Tese de doutorado).

528
Torres, W. D. C. (1996). O desenvolvimento cognitivo e a aquisição do conceito de
morte em crianças de diferentes condições sócio-experienciais. (Tese de
doutorado).

Orbach, I., Gross, Y., Glaubman, H., & Berman, D. (1985). Children's perception of
death in humans and animals as a function of age, anxiety and cognitive
ability. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 26(3), 453-463.

Paiva, Lucélia Elizabeth. (2011). A arte de falar da morte para crianças: A literatura
infantil como recurso para abordar a morte com crianças e educadores. Aparecida,
SP: Ideias & Letras.

Pereira, R. R. R. (2017). Os meninos de Heliópolis e Região: O ser e fazer de


adolescentes em conflito com a lei e a sintomática criminal. (Tese de doutorado).

529
47- A CONSTRUÇÃO DA MATERNAGEM EM UTI NEONATAL A PARTIR DE
UMA INTERVENÇÃO PREVENTIVA PSICANALITICAMENTE ORIENTADA

Mariana Festucci Grecco16


Dr. Ivan Ramos Estevão17 .

Resumo: Este trabalho tratará sobre o processo de construção da maternagem de


uma puérpera em relação a seu neonato com fenda labiopalatina completa que esteve
internado em UTI neonatal a partir de uma intervenção preventiva psicanaliticamente
orientada. Ocorre que era fundamental ao neonato, pelas especificidades de sua
condição de saúde, ter uma nutrição adequada – para a qual o leite materno se
caracterizava enquanto melhor fonte. A puérpera, em contrapartida, não apresentava
a produção de leite, e verificou-se que esta última não estava associada
exclusivamente a fatores fisiológicos, mas a tensões na construção da maternagem
que estavam atravessadas não somente fatores psíquicos, mas também
institucionais. O acolhimento provido a esta puérpera por meio da associação entre
escuta individual psicanaliticamente orientada, terapia de grupo e atendimento
humanizado pela equipe hospitalar pode auxiliá-la a vincular-se ao neonato fazendo
dele filho para além do nível legal – enquanto realidade psíquica.

Palavras-chave: Maternagem, UTI neonatal, vínculo, Pichon-Rivière, intervenção


precoce.

Introdução

Pichon-Rivière (1965/2005a) assevera que mesmo quando se trata da


dimensão inconsciente do sujeito é preciso levar em conta que os “objetos internos
(grupo interno), [estão] em permanente interrelação dialética com os objetos do
mundo exterior” (p.46). E indica que, apesar de Freud ter demonstrado uma percepção

16
Psicanalista. Doutoranda em Psicologia clínica pelo IP-USP (bolsista CNPQ). Mestre em Psicologia social e especialista em
Psicanálise e linguagem pela PUC-SP. Professora da pós-graduação em Psicanálise do Centro Universitário Anhanguera de
Santo André.
17 Psicanalista. Professor no IP-USP e EACH-USP. Doutor e mestre em Psicologia clínica pela USP.

530
das interações do indivíduo com o seu meio sociocultural, ele não enfatizou a natureza
dialética dessas interações, por não ter se desprendido inteiramente de sua visão
antropocentrista do homem e de sua metapsicologia psicanalítica. Pichon-Rivière
(1965/2005a) acredita que isso impediu que Freud (1921/2011), apesar de ter
vislumbrado “que toda psicologia, num sentido estrito, é social” (p.47) formalizasse tal
indicação.

Pichon-Rivière (2000) concebe as interações dialéticas entre o indivíduo e seu


meio não em termos de influências hierárquicas, mas antes como co-criação, relações
de mutualidade, em uma percepção menos antropocêntrica e mais holística do
homem; muda então a ênfase na vida psíquica conferida pela Psicanálise de até então
para as relações intersubjetivas, e para fazer jus a tal passa a usar o termo vínculo
em vez de relação de objeto. Ele delimita como grupo interno o cenário forjado pelas
relações primordiais da pessoa e sua representação interna. O grupo interno estará
em constante conexão com o mundo externo, e o que conferirá liga a esta conexão
será o vínculo. Este último diz respeito a um emaranhado que inclui o que usualmente
conhecemos como sujeito e objeto em uma interrelação mútua de comunicação e
aprendizagem, e que pode se dar de maneira normal quando há uma adequada
diferenciação entre ambos (nem pouca nem total), viabilizando a livre escolha de
objeto pelo sujeito, ou pode se dar de forma patológica quando não permite a livre
escolha, assumindo características específicas conforme o comportamento do sujeito,
podendo ser hipocondríaco, paranoico, histérico, dentre outros.

Partindo destas considerações Pichon-Riviere (1965/2005b) define grupo


operativo enquanto um conjunto de pessoas congregadas por um espaço e tempo
comuns e que, “articuladas por uma mútua representação interna, que se propõe,
implícita ou explicitamente, uma tarefa que constitui sua finalidade”, para atuar na
redução de medos e atuar na facilitação da ruptura de estereótipos limitadores da
existência que atuam como bloqueadores de mudanças.

Objetivo

Discutir o processo de construção da maternagem a partir de uma escuta


psicanaliticamente orientada pelo aporte teórico de Pichon- Riviere.

531
Relato de experiência

Este caso ocorreu à época em que eu atuava como consultora em


amamentação em um Banco de Leite de uma maternidade localizada no ABC
Paulista, no ano de 2011.

Fui chamada para atender Bete por conta do seguinte quadro: a puérpera havia
dado à luz há cinco dias e não apresentava sinais de produção de leite. O neonato,
nascido na 34ª semana de gestação, estava internado em UTI neonatal para
amadurecer o sistema pulmonar e ganhar peso.

Na ocasião o neonato não podia ser retirado da incubadora para sugar o peito
de Bete, e estava fazendo uso de sonda nasogástrica devido ao grande risco de
aspiração por conta de apresentar o quadro de fenda labiopalatina completa. A sucção
do mamilo pelo bebê que atua enquanto estimuladora na secreção da ocitocina pela
hipófise anterior, hormônio responsável pela “descida” e ejeção do leite materno
(Carvalho e Tamez, 2002), estava fora de questão. Se de um lado, a sucção, que
estimula a produção de leite materno estava impossibilitada, de outro o neonato,
Nando, havia apresentado intolerância às fórmulas de leite artificial testadas. A saúde
deste estava em risco por não ter recebido ainda o colostro (primeiro leite produzido
pela nutriz no pós parto, de consistência espessa e cor diferenciada, que reúne grande
quantidade de proteínas, leucócitos, lactoferrina, entre outros, sendo considerado a
primeira “vacina” que o bebê recebe por estimular o seus sistema imunológico
(Carvalho e Tamez, 2002)), pelo peso abaixo do esperado para a sua fase do
desenvolvimento, e pela impossibilidade da alimentação artificial (neste momento o
Banco de Leite atuava somente colhendo e armazenando leite da própria mãe para o
filho, não realizando pasteurização de leite humano que permitiria ao neonato receber
leite de outra nutriz), segundo o que afirmara a equipe médica que o avaliara.

Bete foi encaminhada para o Banco de Leite Humano para realizar a


estimulação da produção de leite através de bomba extratora mecânica; se o leite
fosse expelido seria administrado a Nando via sonda. Vale esclarecer ainda que, por
conta de apresentar pré-eclâmpsia (hipertensão arterial) na 24ª semana de gestação,
532
com crises recorrentes posteriormente, o ginecologista determinou que Bete
realizasse o parto cesárea agendado, ou seja, Bete não sofreu as contrações de útero
pré-parto, que são produzidas pela ocitocina, fazendo com que, nestas circunstâncias,
a mulher frequentemente comece a produzir leite antes mesmo de colocar o bebê no
peito para sugar.

Bete foi submetida à estimulação mecânica sem sucesso. Foi neste momento
que eu tive o primeiro contato com ela. Quando Bete começou a relatar a história da
sua gestação e as tensões vividas nos momentos que se sucederam ao parto (quando
confrontou a imagem do seu bebê imaginado com o bebê real), notei que ela
apresentava um sofrimento psíquico que constituía um entrave na construção de sua
maternagem.

Bete contava com 47 anos. Não notou que estava grávida de pronto, pois a sua
mesntruação ficara irregular devido ao que o ginecologista considerou o início da
menopausa. Dentro de poucas semanas ela começaria a reposição hormonal, e foi
por ocasião de exames ginecológicos anuais de rotina que se descobriu grávida de
três meses.

Ao contar sobre a gravidez para o marido, companheiro com quem vivia há 25


anos, foi acolhida com carinho e se sentiu feliz. Ocorre que Bete nasceu e foi criada
dentro de uma comunidade evangélica, onde inclusive conheceu o marido, e a qual
nunca deixará de pertencer. Nesta comunidade, quando ela noticiou sobre a gravidez
foi discriminada, uma vez que o fato sugerira que ela praticara “sexo sem fins
reprodutivos” com o marido, sendo desobediente aos “propósitos de Deus”; o casal
não foi expulso da comunidade, entretanto ficou em uma situação tensa: poderia
frequentar o culto religioso semanal, mas deveriam entrar e sair do templo em silêncio,
sem dirigir a palavra à ninguém, e não participariam das atividades comunitárias.

Tal situação trouxe muita tristeza à Bete e ao marido e só mudou quando, já no


sétimo mês de gestação, o líder religioso da comunidade teve um sonho no qual lhe
foi “revelado” que Bete daria à luz a um “novo Messias”. Desde então, Bete foi
reintegrada à comunidade religiosa com seu marido, ganhando inclusive privilégios,
tais como: lugar privilegiado durante os cultos, e visita das “irmãs” que vinham auxiliá-
la diariamente nas tarefas domésticas. Na data marcada para o nascimento de Nando

533
a maternidade ficou lotada com os familiares de Bete e membros da comunidade
religiosa que esperavam pela “chegada do Messias”.

Durante o parto descobriu-se que Nando apresentava fenda labiopalatina


completa. Trata-se de uma alteração congênita onde não ocorreu o fechamento do
lábio e do palato do bebê ainda durante a gestação. Tal alteração logo poderia ser
corrigida através de intervenções cirúrgicas, e Bete necessitava aprender técnicas
especiais para alimentar Nando enquanto isso não ocorresse. Ocorre que a fenda, por
ser visível, impressionou a todos que foram visitar Nando pelo vidro da UTI neonatal,
inclusive a Bete. A “aparência” de Nando não foi considerada compatível com a de um
“Messias”, e os membros da comunidade passaram a considerar que Nando era a
representação de uma maldição que se abatera sobre o casal que resolvera ter
relações sexuais “por prazer” desobedecendo aos “propósitos divinos”. Bete e o
marido foram expulsos da comunidade religiosa pelo pastor, recebendo a notícia da
excomunhão quando ela ainda se encontrava na sala de pós-parto. Ela mesma, ao
observar o filho pela incubadora, estranhava a aparência dele e passou a acreditar
que sofrera uma espécie de “punição divina”; a partir de então Bete passou a
manifestar comportamentos depressivos, tais como referir-se a si mesma com
palavras pejorativas, não se alimentar adequadamente, protelar a higiene pessoal, e
diminuir sensivelmente o contato social, restringido a conversa com os outros a troca
de vocábulos essenciais e sem realizar contato visual. Paralelamente a tal situação,
Bete relata que se sentia discriminada pela equipe hospitalar que a tratava ora com
indiferença, ora com rispidez.

No espaço criado pela escuta psicanaliticamente orientada foi possível a Bete


questionar a postura dos membros da sua comunidade religiosa e o seu lugar nesta
comunidade sem que isso representasse uma negação da sua religiosidade (a
impressão de que negava a existência do divino ou o profanava soava aos ouvidos de
Bete enquanto ameaçadora e desagregadora – ela entrava em ecolalia sempre que
isso se apresentava), além de permitir que ela pudesse esvaziar um pouco das suas
referências autodepreciativas. Bete decidiu que procuraria uma nova comunidade
religiosa onde pudesse congregar, além de expressar intensa solidão e o desejo de
poder conhecer outras pessoas que tivessem experiências de dificuldades no
estabelecimento de vínculo com o próprio filho.

534
Em reunião multidisciplinar semanal, onde participavam representantes de
equipe médica, de enfermagem, administrativa, psicológica e de assistência social,
perguntei que impressões os funcionários tinham de Bete, e alguns proferiram
palavras condenatórias pela puérpera ter ficado grávida em idade “tão avançada”.
“Não poderia dar certo” ou “O que ela esperava?” foram algumas das frases emitidas.
Profissionais da equipe de enfermagem confessaram que tratavam Bete com rispidez,
não fornecendo informações detalhadas sobre o estado de saúde de Nando nem
sobre os procedimentos que Bete precisava aprender para os cuidados com o bebê.

Propus a realização de um grupo operativo composto pelos membros da equipe


da maternidade para trabalharmos as percepções sobre Bete e avançarmos na
qualidade do tratamento oferecido às puérperas. Após duas sessões de 50 minutos
com os profissionais já pudemos articular um tratamento mais humanizado e acolher
Bete e Nando em suas especificidades. Um dos resultados da realização destas
sessões de grupo operativo da equipe de saúde foi à ideia de reunir em grupo
terapêutico todas as mães de bebês internados na UTI neonatal para compartilhar
experiências, uma vez ao dia, com a duração de 1 hora. Este grupo seria coordenado
por psicóloga e teria como observadora a assistente social.

As sessões de grupo com as mães foram iniciadas e diversos temas surgiram,


dentre eles o trabalho de luto pelo bebê imaginado (a partir do contato com o bebê
real) e a naturalização da maternidade (a atribuição pela cultura Ocidental da
maternidade enquanto atributo instintual da mulher). Verificou-se o estabelecimento
de vínculo afetivo entre as integrantes, o que representou melhora na qualidade de
vida de todas as mulheres participantes, mas não me deterei na história de cada
integrante para não tornar este relato extenso, e apresentarei em seguida o impacto
que da frequência ao grupo de mulheres para Bete.

Discussão

De acordo com Bernardino e Mariotto (2012) é essencial se pensar em um


modelo de trabalho preventivo de acolhimento das intercorrências que possam se dar
entre as mães e os bebês o mais precocemente possível, dado que:

535
Considerando que as bases da saúde mental se estabelecem
nos primeiros anos de vida e que estão intimamente
relacionadas com os laços afetivo, simbólico e corporal
estabelecidos no par mãe e bebê, entende-se que falhas nesse
processo de subjetivação permitem o surgimento de transtornos
psíquicos que podem interferir não só na inserção desse ser na
cultura como na montagem de sua realidade psíquica (p.19).

Quando se fala prevenção no âmbito psicanalítico ela está para além do que
possa soar a partir do discurso técnico-científico – pautado por sua vez por um ideal
de normatividade que não dá margem para o imprevisível e o singular. A dimensão da
prevenção em Psicanálise é pautada pela ética do desejo e pela viabilização de um
espaço onde o sujeito possa advir independentemente de suas características
biológicas, sociais ou familiares. Assim, uma escuta preventiva psicanaliticamente
orientada pode identificar fatores de risco para a assunção do sujeito do desejo,
fatores de sofrimento psíquico, e muito embora a dimensão dos acontecimentos
vividos possa ser construída no só-depois, ela poderá propiciar acolhimento e a
possibilidade da construção de uma significância para a experiência vivida (Crespin,
2004).

No caso relatado observa-se que Bete tinha um vínculo de características


depressivas com Nando, uma vez que tal relação estava marcada pelo sofrimento e
culpa de ter tido relações sexuais em momento mais maduro da vida, o que, segundo
a sua crença religiosa e da comunidade onde vivia naquele momento era algo
inapropriado uma vez que o sexo tido como um meio exclusivo de reprodução, não de
prazer. A culpa pela “transgressão” associada ao não acolhimento de sua condição
tanto pela comunidade onde vivia como pelos profissionais de saúde que a atenderam
não atuaram como facilitadores de uma aproximação entre mãe e filho.

Para Pichon-Rivière (2000) o modo como às relações interpessoais se


estabelece e se mantém constituem a chave para as doenças mentais. observar no
caso de Bete que o seu estado depressivo estava relacionado tanto aos entraves no
estabelecimento do vínculo com o filho Nando quanto às tensões que vivia com os
membros da família, da comunidade religiosa e mesmo da equipe da maternidade; a

536
tensão oriunda destes últimos interferia diretamente no estabelecimento da relação
com Nando; na medida em que se pôde analisar o momento de interrupção do
equilíbrio familiar, bem como as motivações de tal ruptura, tal como propõe Pichon-
Rivière (2000) tanto através da escuta individual como no grupo terapêutico, Bete
pode se re-situar na própria história, rompendo com o estereótipo familiar, alterando
seus mecanismos de defesa e estabelecendo novas modalidades vinculares.

Conforme adverte Winnicott (1951/1975), (1994), (1956/2000) a construção da


maternagem (aqui tratada como a capacidade que a genitora ou quem lhe faz as vezes
desenvolve de cuidar e acalentar o bebê com suficiência – sem falta ou excesso) está
diretamente relacionada as vivências anteriores da mulher com a própria mãe e
referências de mulheres que exercem a função materna que ela teve ao longo da vida,
além de como a sua vivência na posição feminina é legitimada no seio familiar e social.
A teoria winnicotiana, embora com as próprias nuances, dialoga com os
desenvolvimentos pichonianos. Bete não tinha com a própria mãe um vínculo de boa
qualidade, ela não possuía outras referências de mãe além disso, foi deslegitimada
enquanto mãe pela comunidade onde vivia. Na medida em que pode compartilhar as
próprias experiências no grupo terapêutico das mães de bebês internados na UTI
neonatal, passando a tomar contato com outros referentes culturais e afetivos, mas
essencialmente, estabelecendo com tais mulheres uma aliança em torno dos desafios
inerentes a transcendência da condição de mulher à mãe, Bete pode sair de sua
posição depressiva, estabelecendo um vínculo de qualidade com o filho Nando. Cabe
destacar também que o vínculo não se estabelece somente individualmente, mas
grupalmente também, assim podemos entender que o vínculo grupal (entre mães)
tenha atuado como facilitador do vínculo materno (com Nando).

O caso de Bete foi discutido em reunião multidisciplinar, e tendo sido admitido


por parte de membros da equipe rispidez no trato com ela, além de julgamento moral,
foi proposta a realização de grupo com a tarefa de discutir essas questões.
Consideramos este um grupo operativo institucional. A realização de tal grupo com a
equipe permitiu que seus membros pudessem explorar as próprias fantasias e criar
condições de romper com o julgamento preconceituoso que nutriam.

Quanto ao grupo proposto às mães de bebês internados na UTI neonatal,


consideramos que tenha sido um grupo operativo terapêutico, pois de acordo com

537
Zimmerman e Osório (1997) esta denominação inclui pessoas que compartilham uma
mesma categoria diagnóstica e necessidades, experiências afetivas e/ou dificuldades
advindas destas. A tarefa colocada a estas mães foi a de discutir em conjunto as
percepções que cada uma tinha da experiência de dar à luz a um bebê que
necessitavam de cuidados de saúde específicos e por isso estavam internados. Uma
fala comum a todas as integrantes do grupo em diferentes momentos foi a
oportunidade de poder dar vazão aos arrependimentos por ter engravidado e as
lamentações por ter mudado drasticamente de vida após o parto (tendo em vista que
os compromissos de uma mãe de bebê internado em UTI, ao contrário do que possa
se crer no senso comum, são inúmeras, pois elas precisam passar o dia na
maternidade por conta de colher leite ou amamentar, realizar posição canguru,
participar das reuniões médicas que ocorrem em momentos aleatórios do dia, etc.);
em quaisquer outros meios as mulheres não podiam admitir tais conteúdos posto que
eles contrastavam com a visão naturalizada maternidade como capacidade inerente
a toda mulher, e não enquanto processo. Ao fazerem uma simples menção a tais
conteúdos as mulheres eram duramente criticadas e/ou deslegitimadas socialmente,
portanto conviviam com sentimentos e pensamentos que não podiam compartilhar e
que as faziam se sentir como que “morando com um estranho dentro de si” ou
“impostoras”, conforme manifestaram em grupo. Compartilhar afetos e pensamentos,
além do desafio de construir, cada uma a seu modo, o modo de ser mãe (maternar),
foi decisivo para sair de uma posição depressiva e aprimorar a qualidade do vínculo
com os filhos.

Também conforme salienta Winnicott (1967/1975) as fantasias maternas e o


modo como se vincula ao bebê faz diferença tanto na constituição de seu psiquismo
quanto da saúde; assim é que pudemos observar que a melhora do estado psíquico
das mães contribuiu para a melhora da saúde dos bebês internados. Mesmo quando
uma experiência trágica (a morte de um dos bebês) se deu com uma das integrantes
do grupo, a mãe em questão foi acolhida e expressou que teria sido ainda mais
doloroso enfrentar a experiência sozinha, e as demais mães, impactadas com a
notícia, compartilharam em uníssono que teria sido ainda mais impactante se tivessem
tido conhecimento do fato individualmente. Quanto a este grupo desenvolvido com as
mães acreditamos serem relevantes as considerações de Pichon-Rivière
(1965/2005b):

538
Os aspectos através dos quais serão abordados tanto o
processo do adoecer como a terapia podem ser enunciados em
quatro direções: 1) da aprendizagem social (leitura da realidade);
2) da comunicação; 3) de um ponto central do desenvolvimento
e da cura; (...) 4) da avaliação, que utilizamos não só para medir
as mudanças nos dois aspectos do processo (o adoecer e o
curar-se), mas também por proporcionar material para a
construção da interpretação, na medida em que o processo
reativa os dois medos básicos (medo da perda e medo do
ataque, que são coexistentes e cooperantes, e alternadamente
manifestos e latentes) (p.143).

Pichon-Rivière (1965/2005b) adverte ainda o quanto o grupo operativo é


adequado para abordar o processo de adoecimento, pois nele “coincidem o
esclarecimento, a comunicação, a aprendizagem e a resolução da tarefa porque na
operação da tarefa é possível resolver situações de ansiedade” (p.143). Pode-se
verificar a validade de tal advertência tanto em relação ao grupo de mães quanto ao
grupo formado pela equipe de profissionais, pois em ambos houve diminuição de
ansiedade advinda da ruptura de estereótipos arraigados.

A realização de ambos os grupos teve influência decisiva no caso específico


de Bete, que lhes serviu de disparador, ao destituir atravessamentos negativos que
impediam o desenvolvimento de sua maternagem, que passou pela superação da
dificuldade de produção do leite materno até o contato mais estreito com bebê tão
logo pode ser retirado da incubadora. Bete verbalizou que, embora a terapia individual
tenha sido de acentuada importância, a convivência em grupo foi determinante no
questionamento dos estereótipos pelos quais respondia e que a faziam sofrer, algo
que ela até poderia alcançar no decorrer do tempo com a terapia individual, mas que
ela acredita que o grupo atuou enquanto catalisador.

Considerações finais

O estabelecimento da escuta psicanaliticamente orientada, para além do que


me fora inicialmente solicitado enquanto profissional de aconselhamento em
amamentação (uma intervenção técnica para viabilizar a produção de leite) permitiu
identificar em tempo o sofrimento psíquico de Bete que a estava impedindo de
viabilizar sua maternagem a Nando.

539
Encontrando solidariedade entre as mães de outros bebês internados na UTI
neonatal, Bete pode se posicionar quanto a Nando, se aproximando dele
gradativamente, o que foi facilitado pela equipe de saúde já sensibilizada pela
situação. A convivência com outras mulheres de diferentes culturas e concepções
religiosas fez Bete reavaliar a própria concepção de religião, desconstruindo de vez a
possibilidade de que ela havia sido atingida por uma “maldição”. Com a conversa e
acolhimento de outras mulheres Bete pode se reposicionar no laço social, sendo que
seus comportamentos depressivos foram desaparecendo gradativamente. Após cerca
de quinze dias em que prosseguiram as sessões individuais de escuta
psicanaliticamente orientada e participação grupal, Bete apresentou sinais de
produção de leite, e a nutrição de Nando, que já apresentava sintomas de anemia e
estava sendo nutrido via enteral com fórmula artificial, passou a ser realizada com leite
materno. Cerca de um mês e meio após o nascimento Nando teve ganho de peso
suficiente para que a sonda nasogástrica fosse retirada e a amamentação no peito foi
estabelecida com sucesso.

Referências

CARVALHO, M. R; TAMEZ, R. (2002). Amamentação: bases científicas para a prática


profissional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

CRESPIN, E. (2004). A clínica precoce: o nascimento do humano. São Paulo: Casa


do Psicólogo.

FREUD, S. (1921/2011). Psicologia das massas e análise do eu. In. Obras completas,
v. XV. São Paulo: Companhia das Letras, p. 13-113.

KUPFER, M.C; BERNARDINO, L.M.F; MARIOTTO, R. M. (2012). Psicanálise e ações


de prevenção na primeira infância. São Paulo: Escuta.

PICHON-RIVIÈRE, E. (2000). Teoria do vínculo. São Paulo: Martins Fontes.

_________________. (1965/2005a). Freud: um ponto de partida da psicologia social.


In. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, p.45-48.

_________________. (1965/2005b). Grupos operativos e doença única. In. O


processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, p.139-160.

ZIMERMAN, D. E; OSÓRIO, L.C. (1997). Como trabalhamos com grupos. Porto


Alegre: Artes Médicas.

540
WINNICOTT, D. W. (1967/1975). O papel de espelho da mãe e da família no
desenvolvimento infantil. In. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, p. 153-
162.

________________. (1994). Notas sobre o relacionamento mãe-feto. In. Explorações


psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, p.127-128.

________________. (1956/2000). Preocupação materna primária. In. Textos


selecionados: da pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p. 491-498.

________________. (1951/1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In.


In. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, p. 13-58.

541
48- IDOSOS COM ALZHEIMER: IMPACTO NOS CUIDADORES

Rosângela Vidal de Negreiros


Cristiana Barbosa da Silva Gomes
Jogilmira Macedo Silva Mendes
Emanuel Nildivan Rodrigues da Fonseca
Magaly Suênya de Almeida Pinto Abrante
Gilberto Safra.

Resumo: O objetivo é descrever as características sociodemográficas e condições de


saúde das pessoas idosas cadastradas no projeto de extensão; bem como, o estado
de saúde dos cuidadores. Trata-se de um estudo descritivo, exploratório, quantitativo,
realizado entre agosto de 2017 e julho de 2017. A população constituída pelos idosos
cadastrados no projeto de extensão. Com amostra composta de 42 pessoas, sendo
20 idosos e 22 cuidadores principais. Para coleta de dados utilizou-se questionários
com perguntas objetivas e a Escala de Zarit. Destaca-se a prevalência de pessoas
idosas do sexo feminino, com idade entre 70 e 81 anos ou mais, casadas, de 1 a 4
anos de estudo, com até 5 anos de diagnóstico, apresentando perda progressiva da
memória e dependentes parcialmente de cuidados. Quanto aos cuidadores a maioria
são do sexo feminino, com idade entre 31 e 59 anos, até 5 anos como cuidador, com
12 anos ou mais de escolaridade, filhos ou filhas das pessoas idosas cuidadas,
apresentando sobrecarga moderada e não referem comorbidades. Contudo, é através
da divulgação dessas informações, possibilitar a busca por estratégias através da
interprofissionalidade e do acionamento das políticas públicas, para que seja possível
traçar metas que priorize essa condição de saúde e traga apoio e qualidade de vida
às pessoas idosas com DA e seus cuidadores.

Palavras-chave: Doença de Alzheimer. Pessoas idosas. Cuidadores.

INTRODUÇÃO
Idoso pode ser definido como o indivíduo que apresenta 60 anos ou mais, e
nessa fase apresenta mudanças que constituirão e influenciarão o envelhecimento,
onde serão observadas notáveis mudanças nos níveis biológico, fisiológico e
542
psicossocial. No âmbito biológico e fisiológico destaca-se como mais suscetível a
presença de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), grupo de doenças
multifatoriais que se desenvolvem no decorrer da vida e são de longa duração. (Brasil,
2018).
É importante destacar o momento da transição demográfica constatada pelo
aumento significativo de idosos que vem apresentando mudanças no perfil das
doenças infectocontagiosas para as DCNT, merecendo as demências posição de
destaque.
O Alzheimer consiste em uma doença neurodegenerativa progressiva, de
etiologia desconhecida, de início insidioso, com componentes neuropatológicos e
neuroquímicos distintos, que vão além da biologia do envelhecimento e se desdobram
em mudanças sociais culturalmente estabelecidos, o que interfere diretamente na vida
familiar, seu diagnóstico ocorre através de critérios clínicos diferenciais (Marins,
Hansel, & Silva, 2016) e é responsável por 50-70% de todas as demências. (Talmelli,
Vale, Gratao, Kusumota, & Rodrigues, 2013).
Conviver com pessoas idosas que apresentam sinais característicos de
alzheimer significa uma mudança na estrutura e dinâmica familiar, devido
principalmente às novas necessidades do idoso, que precisam ser incluídas no
cotidiano de todos os envolvidos nesse processo. Geralmente, uma pessoa ocupa o
papel de cuidador, seja por instinto, vontade, disponibilidade ou capacidade, tornando-
se o cuidador principal assume tarefas assistenciais e responsabiliza-se pelas
necessidades da pessoa. (Montezuma, Freitas, & Monteiro, 2008).
O cuidador é aquele responsável pela pessoa doente ou dependente, de forma
que facilite as atividades diárias direcionadas a alimentação, higiene pessoal, além de
oferecer medicamentos de rotina e acompanhá-la junto aos serviços de saúde, ou
outras situações no seu cotidiano, não excluindo papéis de outros profissionais
legalmente estabelecidos (Gratão, Vendrúscolo, Talmelli, Figueiredo, Santos, &
Rodrigues, 2012).
Quando o cuidador se dedica integralmente ao idoso doente existe uma grande
probabilidade de ocorrer esgotamento físico e psíquico devido ao trabalho repetitivo e
contínuo, podendo afetar diretamente a qualidade de vida, nessas circunstâncias o
fator estressante não é um evento isolado, e sim as múltiplas demandas que resultam
da deterioração e da dependência, as quais levam o cuidador a uma sobrecarga física
e emocional. (Mooney, 2010).
543
Destacando assim, a relevância do estudo devido à alta incidência da Doença
de Alzheimer (DA) em nosso meio, além da valorização do cuidador como principal
aliado na manutenção da saúde da pessoa idosa e as mudanças severas na vida do
cuidador.
Destarte, pretende-se conhecer as características sociodemográficas de idosos
com DA e seus cuidadores, no que concerne aos impactos na saúde bem como à
sobrecarga, destacando como um ponto importante para discutir estratégias que
promovam o suporte ao binômio cuidador-pessoa idosa. Logo, surge como
questionamentos: Quais as características psicodemográficas das pessoas idosas
com DA e como os cuidadores são impactados em relação à sobrecarga?
O interesse em desenvolver essa pesquisa partiu da inquietação em avaliar a
saúde das pessoas idosas com DA e seus cuidadores quanto as Atividades de Vida
Diária (AVD), baseado nesse contexto faz-se importante refletir acerca das
necessidades de acompanhamento multiprofissional de quem cuida e dessa forma
possibilitar melhoria na qualidade de vida do cuidador.
Sabendo que a DA se distribui de forma heterogênea, a dificuldade do cuidar
nas fases da doença expressa um amplo desafio. Assim, pressupõe a necessidade
de conhecer o perfil dos cuidadores considerando as características
sociodemográficas e seu estado de saúde, bem como a saúde das pessoas idosas.

METODOLOGIA
Trata-se de um estudo descritivo, exploratório, quantitativo, realizado na Clínica
escola de uma Universidade pública da Paraíba, desenvolvido no laboratório de
neuro-modulação sensório-motora e cognitiva, promovendo atividades com pessoas
idosas com DA. A equipe é composta por neurologista, fisioterapeuta, alunos de
fisioterapia, de enfermagem e psicologia. A coleta de dados ocorreu entre agosto de
2017 a julho de 2018.
A população constituída pelos idosos cadastrados no projeto de extensão. Com
amostra composta de 42 pessoas, sendo 20 idosos e 22 cuidadores principais. Tendo
como critério de inclusão os idosos residirem no município, com diagnóstico de DA e
seus cuidadores. Foram excluídos os que não atenderam aos critérios de inclusão.
Para a coleta de dados foram utilizados roteiros semiestruturados de entrevista,
contendo questões objetivas para o cuidador, foi utilizado também o Índex de Katz
que segundo Brasil (2007), tem por objetivo avaliar o idoso na execução das
544
Atividades da Vida Diária determinando assim, a independência funcional do idoso
cuidado.
Foi usada a Escala de Sobrecarga do Cuidador de Zarit, que tem como objetivo
avaliar o bem-estar psicológico e socioeconômico do cuidador principal e a relação do
binômio cuidador e pessoa cuidada; a escala avalia o impacto percebido do cuidar
sobre a saúde física e emocional. Constituída por 22 perguntas, para cada pergunta
existe 5 escores, que pontuam descrevendo como cada afirmação afeta a pessoa; a
frequência com que ocorre a resposta: 0 (nunca), 1 (raramente), 2 (algumas vezes), 3
(frequentemente) e 4 (sempre) referem-se às possibilidades de resposta (Luzardo,
2006).
A coleta de dados ocorreu durante o atendimento da pessoa idosa com DA no
projeto de extensão, logo após as atividades desenvolvidas pelos alunos, nesta
ocasião os cuidadores ficavam numa sala de capacitação com os alunos de
enfermagem e psicologia, onde eram orientados quanto aos cuidados a serem
prestados aos idosos, de acordo com a fase da DA, nesta ocasião foram agendadas
as entrevistas nas suas residências.
O estudo foi submetido ao Comitê de Ética do Hospital Universitário Alcides
Carneiro da Universidade Federal de Campina Grande, sendo aprovado sob nº CAAE:
56457316.3.0000.5182.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em se tratando da caracterização da amostra, é possível observar a
prevalência de idosos do sexo feminino (60%), semelhante ao estudo de Soares,
Pereira, Figueiredo, Silva, & Portela (2015) que referiu uma maioria de 69,6%
mulheres portadoras de Alzheimer. Esse fato pode estar associado as mulheres
viverem mais e ficarem viúvas mais cedo.
Ao analisar a idade, observou-se um predomínio de pessoas maior/igual a 71
anos, representando 70% da amostra, nesse contexto, estudo realizado por Converso
e Latelli (2007) ressaltam que 10 a 15% de idosos apresentam esse tipo de demência
acima dos 65 anos. Partindo de um contexto geral, quanto mais idoso, mais limitados
nos tornamos a desenvolver atividades da vida diária, esses dados comprovam que a
perda de um funcionamento adaptativo e o declínio nas habilidades da pessoa
desempenhar tarefas do cotidiano podem ser fatores determinantes no surgimento da
DA.
545
Quanto ao estado civil, 35% dos idosos com DA são viúvos e 50% casados,
divergindo do estudo de Costa (2016) onde 55,6% dos idosos com eram viúvos e
33,3% casados.
É possível observar que, do total da amostra de idosos com DA, 55% têm até
4 anos de estudo, enquanto apenas 10% estudaram entre 9 e 12 anos. Uma maneira
de retardar o processo da doença é a estimulação cognitiva constante e diversificada
ao longo da vida; fato esse reforçado por Brasil (2018) onde refere quanto maior o
estímulo cerebral maior as conexões nervosas e ocorrendo a ampliação das
possibilidades de contornar as lesões cerebrais, sendo necessária uma maior perda
de neurônios para que os sintomas da doença comecem a aparecer.
Quanto ao tempo de diagnóstico 85% da amostra teve seu diagnóstico no
máximo há 5 anos, tornam-se mais susceptíveis as dúvidas dos cuidadores em
relação a DA e, mais angustiados em relação aos seus papéis sociais pela mudança
da rotina e adequação ao convívio em cada fases da DA.
Esses cuidadores têm papel fundamental a desempenhar, uma vez que
assumem a responsabilidade do cuidado contínuo e de crescente dependência,
initerruptamente. Nesse sentido, eles vivenciam um processo longo, que traz às suas
vidas grande desgaste físico e emocional.
Em relação aos cuidadores, o estudo revela que a maioria é do gênero feminino
77,27%, prevalecendo a idade de 31 a 59 anos. Esses dados assemelham-se ao
estudo de Ramos e Menezes (2012) que revelam o gênero feminino 95%; com média
de idade de 53,3 e sendo as filhas perfazendo 55%.
Quanto ao nível de escolaridade evidencia que a maioria 27,27% estudou mais
de 12 anos, fato que difere do estudo de Ramos e Meneses (2012), o qual revela que
50% dos cuidadores têm ensino médio completo. No tocante ao número de anos
dedicados ao cuidado, a maioria dos cuidadores revela cuidar dos idosos há no
máximo 5 anos, totalizando 81,81% da amostra, que coincide com o estudo de Ramos
e Meneses (2012), quanto ao tempo de diagnóstico dos idosos cuidados.
É notório que além de DA os idosos apresentam outras comorbidades, ligadas
ao processo demencial ou não, que revela um estado de saúde ainda mais
preocupante. No que se refere aos problemas de saúde que envolve os sintomas da
DA, a maioria, perfazendo total de 90% refere perda progressiva da memória, fato que
corrobora com o estudo de Alves, Silva, Medeiros, Assis, & Belchior (2014) o qual
546
enfatizam que 100% da amostra apresentou perda da memória recente; enquanto
apenas 10% relatam distúrbios do sono.
Em se tratando de doenças não relacionadas diretamente às demências, a
Hipertensão e Diabetes ganham destaque somando juntas 45%, no entanto alguns
idosos apresentaram mais de uma doença, sendo possível observar que 30% da
amostra é hipertensa e 15% diabética, esse fato enfatiza que as DCNT ainda é
bastante prevalente entre a população idosa (Santos, Pavarini, 2010).

Tabela 1 - Condições de saúde dos idosos com doença de Alzheimer, cadastrados no


projeto de extensão. Paraíba, 2018.
VARIÁVEIS n %
Sintomas da DA
Perda progressiva da memória 18 90
Dificuldade nas atividades diárias 11 55
Desorientação 8 40
Confusão 9 45
Distúrbio do sono 1 10
Comorbidades
Não referem 8 40
Doença de Parkinson 5 25
Hipertensão 6 30
Diabetes 3 15
Outros 3 15
Fonte: Dados da pesquisa, 2018.

A Tabela 2 apresenta a relação ao grau de dependência nas atividades básicas


da vida diária dos idosos com DA, necessitando de cuidados de forma intensiva dos
seus cuidadores.
Nesse sentido, Brasil (2007) refere que essa avaliação deve ser feita através
do Index de independência nas atividades de vida diária de Katz, tendo o objetivo de
classificar a pessoa idosa em independente funcional no desempenho dessas
atividades e classificar de acordo com o desempenho de seis funções, a partir de um
questionário padrão que envolve (banho, vestir, banheiro, transferência, continência e
alimentação).
Com isso, os idosos do estudo na sua maioria, têm grau de dependência parcial
totalizando 59,09% da amostra, enquanto 31,81% foram classificados como
dependência importante. Chama atenção o fato de apenas 4,54% ter sido classificado
como independente fato que demostra claramente que os cuidadores são necessários

547
no cuidado desses idosos em relação à realização das atividades básicas da vida
diária de forma autônoma.

Tabela 2 – Grau de dependência para as atividades básica da vida diária dos idosos com
doença de Alzheimer de acordo com o Índex de Katz, cadastrados no projeto de extensão.
Paraíba, 2018.
Atividades básicas da vida n %
diária
Independência 1 4,54
Dependência parcial 13 59,09
Dependência importante 7 31,81
Não informado 1 4,54

TOTAL 22 100
Fonte: Dados da pesquisa, 2018.

As condições de saúde evidenciada pelos cuidadores representam as


realidades do cotidiano, que muitas vezes não priorizam sua própria saúde em
detrimento da falta de tempo e sobrecarga diária, diante de sua condição de cuidador.
É possível observar que, fatores como o grau de dependência da pessoa idosa,
o tempo que o cuidador dedica diariamente ao cuidado, o fato dele residir com o idoso
e assumir integralmente o cuidado, além de outras tarefas diárias e o grau de
sobrecarga do cuidador; demonstra maior possibilidade de atingir a saúde do cuidador
de forma física e/ou mental, acarretando problemas de saúde. Esse fato também é
relatado no estudo de Uesugui, Fagundes e Pinho (2011) referem que quanto maior a
sobrecarga pior a condição de saúde apresentada por esse cuidador.
A tabela 3 apresenta os agravos que afetam a saúde dos cuidadores
participantes do estudo. Ganha destaque os cuidadores que referem não ter problema
algum de saúde, ocupando 40,90% da amostra o que corrobora com Uesugui et al.
(2011) o qual relatam em seu estudo que 63,3% dos cuidadores com percepção do
seu estado de saúde como sendo “satisfatório”.
Pode-se então, destacar gastrite e problemas de coluna, ambas representadas
por 27%. Esse estudo se assemelha com Santos, Xavier, Silva, Carvalho e Barbosa
(2016) onde referem que é mais comum cuidadores apresentarem hipertensão,
desordens digestivas, doenças respiratórias e propensão à infecção. Vale destacar
que alguns cuidadores apresentaram mais de um problema de saúde.

548
Tabela 3 - Condições de saúde dos cuidadores dos idosos com doença de Alzheimer,
cadastrados no projeto de extensão. Campina Grande - PB, 2018.
VARIÁVEIS n %
Problemas de Saúde
Não referem 9 40,90
Gastrite 6 27,27
Problema de coluna 6 27,27
Labirintite 1 4,54
Fonte: Dados da pesquisa do PIVIC, 2018.

Em relação à Escala de Sobrecarga do Cuidador de Zarit, a soma da pontuação


obtida em cada pergunta é avaliada e pode variar de 0 a 88, que significa que quanto
maior o valor da soma, maior a sobrecarga percebida pelo cuidador. Em associação
a essa pontuação foi utilizado pontos de corte (Escore próprio da escala), para
diagnóstico de sobrecarga, como: sobrecarga severa, escores entre 61 e 88;
sobrecarga moderado a severa, escores entre 41 e 60; moderado, entre 21 e 40;
sobrecarga pequena, de 0 a 20, o que se pode considerar também como ausência de
sobrecarga.
Com relação ao nível de sobrecarga vivenciado por cuidadores de idosos com
DA, pode-se observar que 40,90% da amostra apresentou Sobrecarga pequena.
Gratao et al. (2012), referem que esse fato está relacionado ao cuidador secundário
permanecer por curto período e, por consequência, não se sente sobrecarregado. Por
outro lado, o cuidador principal, apesar de maior dedicação, refere pouco incômodo,
o que pode estar relacionado a uma dupla sensação, ao mesmo tempo em que o
cuidador tem sentimentos de raiva pela teimosia da pessoa cuidada, também sente
pena por ver seu familiar acometido por uma doença tão comprometedora e ainda,
pode estar ligado ao sentimento de gratidão e necessidade de demostrar amor ao seu
familiar.
Destaca-se então, 45,45% da amostra foi classificada com Sobrecarga
moderada; relacionando ao grau de dependência da pessoa idosa; ou mesmo o tempo
ao qual o cuidador dedica-se no cuidado diário. Também pode estar associado à idade
do cuidador, quanto mais velho, mais susceptível à sobrecarga; porém, os cuidadores
mais jovens também podem sofrer mais com o isolamento e restrições sociais.
Associado ao fato de mulheres representarem a maior parte dos cuidadores, as torna
mais sobrecarregadas pelos múltiplos papéis assumidos diante da sociedade atual.
No caso dos cuidadores cônjuges, que assumem os cuidados sozinhos no domicílio,
549
e ainda convivem diariamente com a pessoa cuidada, frequentemente apresentando
desconforto e sentimento de solidão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebeu-se que, a maioria dos idosos são mulheres, baixa escolaridade e
perda progressiva da memória, metade da amostra apresentou hipertensão e/ou
diabetes, que necessitava de seus cuidadores parcialmente para realização de suas
atividades diariamente.
A pesquisa apresentou relevância ao abordar o conhecimento sobre as
características sociodemográficas e de saúde das pessoas idosas e seus cuidadores
enfatizando seu estado de saúde e sobrecarga; tornando possível a análise da
situação, visando contribuir com a melhoria da qualidade vida.
É importante ressaltar que os cuidados de forma humanizada, integral além do
apoio multiprofissional são as principais intervenções necessárias, uma vez que a DA
ainda é pouco conhecida e cada indivíduo acometido tem sua individualidade. Para
tanto, faz-se necessária à assistência e o cuidado dos cuidadores, sejam parentes ou
não. As condições de saúde dos cuidadores interferem fortemente no enfrentamento
da DA, uma vez que ele é o único elo entre a pessoa idosa e os serviços de saúde.

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552
49- ADOÇÃO E FUNCIONAMENTO FALSO SELF: UM ESTUDO DE CASO

Isabela Ferreira Miranda


Renata Bellini Begosso
Geovana Figueira Gomes
Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes
Valeria Barbieri.

Resumo: No início da vida da criança o ambiente familiar possui um papel


fundamental, pois é responsável por fornecer segurança e proteção para que ela
possa se desenvolver emocionalmente de forma harmônica. Quando há rupturas
nesse ambiente ou a criança sofre negligências e abusos em uma época que o Self
ainda não está totalmente integrado, podem surgir estados psicóticos como resposta
a um sofrimento mental acima do que o ego é capaz de tolerar. O objetivo do presente
trabalho é apresentar um relato de experiência de um caso atendido em um serviço
escola de uma universidade pública, de um menino de 8 anos, adotado aos 5 anos,
com queixas de encoprese, roubos e dificuldade de adaptação à nova família. A
criança foi vítima de violência e negligência junto à família consanguínea, que
conduziram à dissociação importante da personalidade, culminando em um
funcionamento falso Self, com o Self verdadeiro sobrevivendo de forma escondida e
dissimulada. Os resultados revelaram a tentativa intensa do garoto para adaptar-se
aos valores dos pais adotivos, sendo que os sintomas consistiam em expressões não
socializadas do verdadeiro Self, como maneiras de escapar ao sufocamento pelo falso
Self. O encaminhamento do caso incluiu não apenas a psicoterapia do garoto, mas
também dos pais, em razão da dificuldade deles para acolher o gesto espontâneo do
menino, o que criava um hiato entre eles e o filho e sustentava as dificuldades
apresentadas pela criança.

Palavras-chave: desenvolvimento infantil; dissociação; falso Self; adoção.

Introdução
O processo de adoção é complexo e envolve vários aspectos do indivíduo, bem
como da família que vai recebê-lo. Para compreender o sucesso desse percurso, é
importante analisar não apenas o momento da adoção, mas o histórico anterior a esse
553
acontecimento. Dessa forma, a recepção e o acolhimento por parte dos pais em
relação à criança devem ultrapassar os cuidados comuns, pois leva em consideração
o caminho da criança até chegar na nova família. Os pais adotivos têm que tolerar as
consequências das falhas ambientais que ocorreram antes da chegada da criança
(Gomes, 2006).
Para Maggi (2009), é necessário o acolhimento materno do bebê desde seu
nascimento, com a finalidade de proporcionar um amadurecimento físico e emocional
saudáveis. No caso de uma adoção, particularmente, é necessário compreender como
ocorreram essas primeiras relações e os possíveis obstáculos que o indivíduo
enfrentou no primeiro ambiente.
Os estudos psicanalíticos realizados por Winnicott (1945/2000a) foram
revolucionários ao propor novas bases para a compreensão do desenvolvimento
emocional humano, especialmente ao apontar para a importância do ambiente no
amadurecimento infantil.
Para este autor (Winnicott, 1956/2000b) o bebê nasce com uma tendência inata
ao amadurecimento do Self potencial, que necessita de um ambiente com condições
favoráveis para que isso ocorra, com três estágios que marcam esses processos:
dependência absoluta, dependência relativa e rumo à independência. Este ambiente
é representado no início pela mãe devotada comum, ou de algum adulto que esteja
genuinamente empenhado durante o início da vida do bebê em atender as
necessidades apresentadas por ele em um tempo e ritmos próprios da dupla.
Nesse processo de amadurecimento, o bebê é capaz de estabelecer uma
noção do “vir a ser”, favorecida quando a criança recebe o suporte emocional e os
cuidados físicos adequados (holding e handling). Dessa forma, permite-se que o bebê
tenha sucesso nas tarefas desenvolvimentais de integração, personalização e
realização (Winnicott, 1960/1983). Em conjunto com a mãe suficientemente boa e um
ambiente acolhedor, o bebê será capaz de desenvolver uma noção de soma e psique,
das suas necessidades próprias e de que há um mundo externo, diferente dele.
Winnicott (1945/2000a) afirma que para compreender o papel do
amadurecimento do bebê é essencial entender o papel do sentimento de onipotência.
Nesse primórdio, é tarefa da mãe garantir que aquilo que seu filho deseja seja
encontrado no ambiente; a esse encontro Winnicott denominou processo de ilusão.
Esse processo, inicialmente, ocorre quase como mágico, em que a mãe é capaz de
oferecer o que o bebê necessita no momento adequado, de forma que ele acredita
554
que foi o criador daquele objeto de satisfação (dependência absoluta). Com o decorrer
do desenvolvimento, o bebê passa por situações de desilusão, nas quais a adaptação
da mãe às suas necessidades vai diminuindo e ele deixa de ser imediatamente
atendido, passando a ter que lidar com a falha materna por meio de novos recursos,
e aprendendo que, apesar da demora, poderá ser satisfeito (dependência relativa).
Tais situações auxiliam o desenvolvimento da tolerância à frustração e fortalecem o
ego.
Para Winnicott (1960/1983), quando existem falhas significativas no ambiente,
o bebê pode recorrer a mecanismos de defesa para proteger seu verdadeiro Self.
Dentre estes mecanismos tem-se o funcionamento falso Self. Nesse contexto, a mãe
não cumpre a sua função de maneira suficientemente boa, atuando em alguns
momentos de forma invasiva ou de forma negligente. Essa defesa é uma maneira de
submeter-se às expectativas e exigências do mundo externo, funcionando como uma
forma de adaptação, que pode ser considerada dissociativa em indivíduos com alto
grau de intelecto. Ou seja, o indivíduo consegue ter um bom desempenho em tarefas
acadêmicas, mas não se reconhece nesse sucesso. Assim, a atividade intelectual e a
existência psicossomática são vividas separadamente.
Esse funcionamento é fruto de um mecanismo de defesa chamado dissociação.
Ela deriva-se de uma integração parcial do indivíduo como consequência da falta de
uma mãe suficientemente boa no início da maturação do ego (Winnicott, 1945/2000a),
que favorece o desenvolvimento afetivo.
Este tipo de fenômeno tem uma conotação defensiva para o Self, pois, assim,
ele não tem de entrar em contato com a realidade desorganizadora que não atende
às suas necessidades. Por outro lado, este ambiente também lhe causa uma
ansiedade esmagadora e um medo de aniquilação de sua breve existência, com o
qual é incapaz de lidar, precisando recorrer a defesas mais poderosas, mas que lhe
impedem de crescer emocionalmente e caminhar em direção à maturidade (Winnicott,
1945/2000b; Santos, 1999).
É possível pensar acerca do falso Self defensivo quando se conhece as
particularidades iniciais vividas, o quanto o indivíduo recebeu do ambiente e foi capaz
de seguir seu curso de desenvolvimento. Ou seja, Winnicott (1945/2000a) destaca
que o vir a ser permite que o indivíduo sinta que tem um lugar e corpo próprios, com
estilo de ser e capacidade criativa, adaptado ao ambiente e também seguro para
manifestar seus desejos (rumo à independência).
555
De posse de tais considerações, pretende-se pensar sobre o funcionamento
psíquico de uma criança no contexto da adoção, destacando que este é um processo
mais amplo e que deve levar em consideração a história de vida da criança antes e
depois da inserção em uma nova família.

Objetivo
O objetivo do presente trabalho é apresentar um estudo de caso referente à
triagem de um menino de 8 anos de idade, adotado há 4 anos por um casal,
juntamente com sua irmã, de 10 anos. O atendimento foi realizado pelo Serviço de
Triagem e Atendimento Infantil e Familiar do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de
São Paulo (STAIF-FFCLRP-USP).

Relato de Experiência e Discussão


Lucas18, um menino de oito anos de idade, foi encaminhado para o STAIF com
a queixa de que não possuía controle do esfíncter anal e, por vezes, defecava na
roupa e escondia suas fezes em alguns lugares da casa, deixando o ambiente fétido.
Ana, sua mãe, revelou que o comportamento persistia apesar das tentativas de
modificá-lo, que incluíam mesmo a punição física do garoto por parte do pai.
A mãe relatou ainda, durante a entrevista de anamnese, que o menino foi
adotado pelo casal aos 4 anos de idade, juntamente com sua irmã, Clara, que na
época tinha 7 anos. Nesta época as crianças estavam institucionalizadas há
aproximadamente 3 anos e, de acordo com a assistente social, elas foram retiradas
da família consanguínea (pai e irmãos já adultos) pelo Conselho Tutelar, devido a
queixas de maus tratos. Entretanto, durante o período em que ficaram
institucionalizadas, aconteceram diversas tentativas de reintegrá-las à família
consanguínea, sem sucesso. Além disso, a mãe relata que Clara contou que as
crianças eram vítimas de abuso sexual e negligência, e, nesta época, estavam sob
tutela do pai, um homem de idade bastante avançada. De acordo com Ana há,
atualmente, um processo de suposto abuso sexual instaurado contra os irmãos mais
velhos que conviviam com as crianças dentro da mesma casa.

18
Todos os nomes são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes

556
Fica evidente na entrevista o quanto Lucas ainda não se sente acolhido em sua
nova família, ele e a irmã passam muito tempo juntos, pouco interagem com os pais
e nada contam do que acontece na escola, como se houvesse muitos segredos entre
os dois. Sua dificuldade em defecar e usar o banheiro causa grande transtorno na
casa, fazendo com que Ana passe muito tempo limpando tudo.
Na sessão lúdica, Lucas escolheu brincar com a massinha de modelar. Após
utilizar toda massinha disponível, ele tirou da caixa variados brinquedos, como
soldadinhos e carrinhos e, quando foi questionado sobre a brincadeira, disse que não
estava fazendo nada. Por fim, pediu para que a terapeuta jogasse Uno com ele e,
durante a partida, Lucas se mostrou bastante animado, engajado no jogo. Após a
primeira rodada em que a terapeuta venceu, pediu para jogar mais uma. Ao ganhar a
segunda partida, ele disse: “Empatou, você ganhou uma e eu ganhei outra” e seguiu
satisfeito para o próximo jogo.
Ao explorar a caixa novamente, Lucas encontrou uma fazendinha com vários
animais de plástico e os organizou na mesa. Em seguida, ele pegou a vaca de
brinquedo, disse que ela era a professora e posicionou todos os animais menores em
volta dela. Então, começou a interpretar a professora: “Olá, alunos! Hoje vou contar
para vocês uma história de um rinoceronte muito malcriado. Ele andava pela rua e
dava chifradas em todo mundo que ele encontrava. Que malcriado que era esse
rinoceronte, a mãe dele não deu educação para ele!”. Enquanto contava a história,
ele manuseava um rinoceronte de brinquedo dando “chifradas” nos outros animais.
Então, a professora continuou: “Até que um dia esse rinoceronte encontrou um cavalo
e deu uma chifrada nele. Mas o cavalo era grande e não deixou barato, deu um coice
no rinoceronte pra ele aprender”.
No início desta sessão Lucas mostrou-se bastante alheio e desatento ao
ambiente. Isso se alterou um pouco durante a brincadeira com o jogo Uno, que é mais
estruturada e com regras, e estas o auxiliaram a obter parâmetros para organizar-se.
O conflito expresso na última brincadeira pareceu refletir uma angústia intensa
relacionada ao controle pulsional, em que os aspectos agressivos não podiam ser
integrados ao Self. A etiologia de tal aspecto foi claramente referida pelo menino como
sustentada na dificuldade de oferta de holding e handling por parte do ambiente (o
aluno animal não recebeu educação do lar). Com isso, as pulsões se expressam de
forma descontrolada no meio (chifradas do rinoceronte), comprometendo a sua
adaptação, mas com a esperança de que um substituto parental pudesse oferecer a
557
experiência de continência que o garotinho não pode usufruir na família
consanguínea. O ambiente (cavalo), por mais que seja brusco (coice) oferece uma
barreira a este controle pulsional desenfreado (chifrada).
Na sessão seguinte foi realizada a aplicação do Procedimento de Desenhos-
Estórias. O primeiro desenho produzido era uma cena natalina, com vários objetos
desenhados e coloridos, mas separados por uma linha horizontal que cortava o
desenho, estando na parte de cima figuras fantasiosas (como um Papai Noel voando
no trenó e carregando presentes) e na parte de baixo representações quase literais
(como uma árvore de Natal conectada ao poste de luz, que permite que as luzes
estejam acesas). Tal cena pode ser interpretada como expressão de uma dissociação
da personalidade do menino, havendo de um lado o apego à fantasia, com
possibilidade de expressão criativa, e, de outro, uma adesão à realidade.
Os seguintes desenhos foram feitos com alguma dificuldade pelo menino, o
qual se queixou da atividade e apresentou comportamentos do tipo escrever o título
do desenho antes de fazê-lo e deixar de pintá-los, mesmo tendo lápis coloridos à
disposição. Essas unidades de produção (UP) foram menos criativas que a anterior,
por exemplo, a cópia de um personagem de desenho animado, na terceira UP, ou a
representação parcial de cenas, como na quarta UP, que era a imagem de um pedaço
de pé chutando uma bola, acompanhado de uma onomatopéia para representar o
som. A sequência destas UPs revela que, após uma representação parcial das
fantasias (na primeira UP), o garoto a abandona em prol de um apego mais adesivo à
realidade. Nesse sentido, não parece existir uma articulação harmônica entre mundo
interno e externo, sugerindo prejuízos na capacidade para usufruir dos objetos e
fenômenos transicionais. Desse modo, fica consolidado um funcionamento falso Self,
em detrimento da expressão do Self verdadeiro, mesmo que a função do primeiro seja
preservar o segundo.
Ao fim do quinto desenho, a criança foi avisada que a atividade havia
terminado; entretanto, Lucas protestou e afirmou desejar produzir mais um desenho.
Antes de um desejo de se expressar, esse comportamento pareceu ligar-se mais a
uma atitude desafiadora do garoto, relativa à imposição de um ritmo pessoal à
atividade. Assim, era ele quem definia quando e como o procedimento ia ser
finalizado. Neste último desenho ele representou três lápis, dois deles desenhados
grudados e outro, de tamanho maior, separado e com cor mais forte. Também havia
um apontador com uma lasca de lápis e uma borracha. Em termos simbólicos, os dois
558
lápis juntos pareciam representar ele e a irmã, com quem mantém uma relação
simbiótica19. Este vínculo parece ser resultante de uma tentativa de proteção mútua
entre os irmãos, uma vez que passaram juntos por diversas situações de abuso e
negligência, em que só podiam contar um com o outro. O outro lápis pode ser
interpretado como uma combinação do casal parental, unido para afinarem as
crianças. Contudo, as razões desse “aperfeiçoamento” não parecem ser
compreendidas pela criança como um cuidado íntimo, próximo e carinhoso, mas sim
como invasivo e castrador.
Diante dessas considerações, Lucas parece estar vivendo uma situação em
que, após ter vivido em um ambiente extremamente negligente e abusivo, e que não
lhe oferecia qualquer tipo de continência, foi transplantado para outro, extremamente
rigoroso em termos de imposição de normas e regras. Não parece ter havido
possiblidade de realizar uma transição fluida entre um meio e outro, mas sim uma
alocação brusca que desconsiderou a história e o ritmo do menino. Assim, essa
dificuldade de transição entre um ambiente e outro reflete, do ponto de vista interno,
os prejuízos em vivenciar as experiências transicionais do garoto em uma relação de
retroalimentação. Na tentativa de agradar os pais, Lucas busca adequar-se às
exigências deles, mas isso significa uma negação da própria história e de um sentido
de ser que vinha sendo construído por ele. Amar os pais adotivos significaria, portanto,
negar a si mesmo, o que somente é possível por meio de um funcionamento falso
Self. Assim, ele constrói dois setores em sua personalidade, e o verdadeiro Self,
representado pelas fezes produzidas, necessita ficar longe do alcance da percepção
dos pais.

Considerações finais
O caso analisado revela a complexidade do tema da adoção e a necessidade
de que a intervenção seja dirigida tanto à criança quanto aos pais adotivos. Na história
de Lucas a experiência vivida antes da adoção, junto à família consanguínea e a
instituição, embora dolorosa, não pode ser excluída do seu desenvolvimento
emocional. Embora seja desejo de muitos pais adotivos suprimir a história anterior do
filho, seja por amor ou por outras razões, a eliminação ou negação desse período de
vida pode provocar danos importantes ao amadurecimento do Self da criança. O

19
O caráter desta relação entre os dois irmãos foi expresso pela mãe na entrevista de anamnese.

559
menino em questão mostrou claramente que a sua inserção na família adotiva
dependia, para ele, em uma negação do verdadeiro Self, dadas as dificuldades dos
pais em acolher aquilo que ele já havia desenvolvido e, com doçura e paciência,
oferecerem os limites e contornos facilitadores de seu desenvolvimento. Em face
dessa situação, nada mais restava ao menino que construir uma vida falsa em
aparência, enquanto o espaço para a expressão do Self verdadeiro (mesmo que ainda
não socializado) ficava restrito a uma área escondida do mundo real. Nesse contexto,
a atitude dos pais e da criança diante da experiência da adoção é passível de provocar
não apenas o desagaste por parte dos pais, mas uma dissociação importante na
personalidade da criança.
Em situações como essa o trabalho psicoterapêutico necessita ser realizado
tanto com a criança quanto com os pais, a fim de desenvolver um relacionamento
entre ambos, a área da ilusão, de modo que a inserção da criança na nova família não
seja sentida por ela como uma invasão.
O trabalho de triagem interventiva realizado com a criança, por incluir a família,
permitiu a compreensão de sua situação de um ponto de vista global e, assim, o
encaminhamento do caso mais compatível com as necessidades da criança e da
família. Uma triagem realizada simplesmente com base em uma entrevista de
anamnese apenas poderia fornecer uma compreensão muito parcial e superficial do
caso, podendo redundar em um seguimento equivocado da criança.

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561
50- OBSTÁCULOS NO DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL INFANTIL: RELATO
DE UMA ADOÇÃO TARDIA

Renata Bellini Begosso


Geovana Figueira Gomes
Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes
Valeria Barbieri

Resumo: O ambiente possui um papel importante nos primeiros anos de vida de uma
criança no que diz respeito ao seu amadurecimento emocional. O processo de
adoção, nesse sentido, merece atenção especial, pois envolve o tempo das vivências
iniciais com a mãe consanguínea, a separação entre ambas, e, eventualmente, a
institucionalização da criança, sua inserção em uma nova família e como essa a
recebe. Algumas rupturas em meio a este processo podem ter uma relação com a
tendência antissocial. O objetivo do presente trabalho é apresentar um relato de
experiência de um caso atendido em um serviço escola de uma universidade pública,
referente a uma menina de 11 anos, que foi adotada há 4 anos, com queixas de
comportamento desafiador e hipersexualizado. O processo de avaliação psicológica
realizado revelou que a menina, além de ter passado por diversos impasses ao longo
de sua vida, ainda enfrenta alguns obstáculos, como adaptação à nova família e
dificuldade no estabelecimento de vínculos. Sua desconfiança em relação ao
ambiente é notável, bem como a busca por encontrar suporte afetivo e segurança.
Algumas manifestações da criança sugerem esperança de retomada do seu
amadurecimento emocional e de reencontro com seu viver criativo.

Palavras-chave: desenvolvimento infantil; adoção; tendência antissocial.

Introdução

A constituição de famílias não-consanguíneas é, ainda hoje, envolta em muitos


preconceitos e discriminações. O senso comum atribui que crianças adotadas terão
mais dificuldades em seu desenvolvimento; no entanto não é possível atribuir os
562
dilemas, impasses e adversidades da vida de uma criança unicamente à adoção. As
condições em que ela ocorreu, os recursos internos dos pais e da criança são
importantes para analisar as particularidades de cada situação. Sabe-se que os
primeiros vínculos da criança são essenciais e vão, de certa forma, ecoar ao longo de
suas vidas (Briani, 2008).
Winnicott (1963/1983) postula que o amadurecimento emocional infantil se
desenrola em três estágios: dependência absoluta, dependência relativa e rumo à
independência. No primeiro, mãe e bebê configuram uma só unidade. Quando a mãe
se adapta de maneira quase infalível às necessidades do bebê a fim de satisfazê-las,
ele experiencia uma sensação de onipotência. No segundo estágio, a mãe
suficientemente boa vai cometendo pequenas falhas, que podem ser toleradas pelo
bebê. Esse conseguiria lidar com pequenas frustrações, interiorizando a presença e a
ausência da mãe, inclusive podendo fazer uso de objetos transicionais para lidar com
essa falta. No terceiro estágio, a criança já introjetou os cuidados maternos e se torna
capaz de confiar no ambiente e em si mesma, desenvolvendo uma psique que habita
um corpo. Assim, é capaz de sentir empatia e preocupação para com os objetos
(concernimento), conseguindo se diferenciar dos outros e se responsabilizar pelos
próprios atos (Winnicott, 1951/2000b; 1963/1983).
Considerando a importância dos momentos iniciais e estabelecimento dos
vínculos, os processos de adoção são particularmente delicados. A criança
abandonada sente a dor da indignação ao tentar compreender por que aquilo
aconteceu com ela. Nesse sentido, o processo terapêutico é importante para que se
tenha a oportunidade de falar sobre o que, muitas vezes, não é dito dentro da nova
família, onde são utilizados, muitas vezes, mecanismos de defesa como a repressão,
deslocamento e negação dos afetos. Estes são empregados como forma de evitar a
angústia de separação, seja no núcleo familiar ou em outros contextos (Briani, 2008).
Como as primeiras vivências de uma criança são consideradas decisivas na
constituição do psiquismo e uma quebra precoce dos vínculos pode causar danos
para o sujeito, o processo de adoção deve levar em conta a história anterior da criança
e constituir um espaço de reparação dos danos por ela sofridos. Surge, nesse
contexto, uma preocupação quanto ao tempo entre a separação com a mãe
consanguínea, a institucionalização e a inserção da criança em uma nova família
(Briani, 2008).

563
No que concerne ao papel dos pais, Vidigal e Tafuri (2010) postulam que a
parentalidade envolve processos mentais conscientes e inconscientes. Para Lemos e
Neves (2019), a constituição da parentalidade passa, dentro de uma perspectiva
psicanalítica, por dimensões intersubjetivas, vinculares e transgeracionais, o que torna
esse momento complexo tanto para os pais biológicos que acompanham o processo
de gestação, quanto para aqueles que adotam uma criança.
O impacto que as rupturas exercem na vida da criança pode ser decisivo em
seu amadurecimento (Winnicott, 1956/2000a). O bebê que no início de sua vida possui
um bom vínculo com a mãe e o perde, pode sofrer uma deprivação. Quando a criança
já possui idade suficiente para entender que a perda foi ocasionada por um fator
externo, ela passa a buscar que o ambiente repare a falta e devolva aquilo que lhe foi
retirado. Nessa busca ela pode testar continuamente o ambiente em uma conduta que
Winnicott chamou de “amolação”, que é passível de avizinhar-se, mais ou menos, com
o comportamento antissocial. É nesse momento que a tendência antissocial surge
como uma característica clínica (Winnicott, 1967).
Essa tendência antissocial aparece de duas formas: na primeira, a criança está
procurando algo que já teve e não encontra, então ela vai em busca de outro objeto
em outro lugar, o que muitas vezes se manifesta na forma do roubo. Na segunda, a
criança busca uma estabilidade ambiental que suporte seu comportamento impulsivo,
então essa busca pode se manifestar em conduta destrutiva (Winnicott,1956/2000a).
No caso de uma criança adotiva que passou por tal período de privação, é
possível que essas buscas e os comportamentos que a manifestam surjam no
contexto do novo lar. Nesse sentido, o desafio para os pais é tolerar a conduta da
criança, uma vez que eles podem tornar-se alvos de raiva e ódio sentidos pelo filho
(Gomes, 2006). Segundo Winnicott “[...] quando a história inicial não foi
suficientemente boa em relação à estabilidade ambiental, a mãe adotiva não está
adotando uma criança, mas um caso, e, ao se tornar mãe, ela passa a ser a terapeuta
de uma criança carente” (Winnicott, 1954/1997, p. 117).
Portanto, o processo de adoção envolve tanto aspectos individuais da criança
quanto da maneira como a nova família compreenderá as necessidades dela. O modo
como transcorre essa relação é essencial para o amadurecimento emocional infantil.
Por esse motivo, é um processo que exige cuidado e atenção, com estudos que
identifiquem os principais obstáculos a fim de auxiliar os envolvidos nesse processo.

564
Objetivos

O objetivo do presente trabalho é apresentar o relato de experiência de um


processo de triagem interventiva realizado na Clínica-Escola de uma universidade
pública. O caso retrata uma menina de 11 anos de idade com um histórico de
comportamento desafiador e opositivo, além de sexualidade exacerbada. A análise do
caso será realizada empregando a teoria winnicottiana como background.

Relato da experiência e Discussão

O caso relatado a seguir corresponde ao processo de triagem infantil


interventiva de Cecília20, atendida no Serviço de Triagem e Atendimento Infantil e
Familiar (STAIF) do Centro de Psicologia Aplicada da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. As etapas desse processo
consistiram em entrevista de anamnese com a responsável pela criança, sessão
lúdica, sessão familiar e entrevista devolutiva, tanto com os cuidadores quanto com a
criança. Especificamente, para melhor compreensão desse caso, foi realizada
também a aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias. Esse instrumento é um
mediador de comunicação que possibilita o contato com conteúdos psíquicos
relevantes, com foco em material significativo e abrangência de aplicação em
diferentes contextos sociais e idades (Trinca, 2013).
Cecília é uma menina negra de 11 anos, filha não-consanguínea de Marta (38),
caucasiana, e Luiz (63), negro, e irmã de Leonardo (8). Ela foi adotada com 7 anos
pela família e, antes disso, vivia em uma instituição de acolhimento com seu irmão.
As informações sobre a história de vida das crianças antes de serem
institucionalizadas vêm dos relatos da menina pois, na época em que chegaram à
instituição, seu irmão possuía dificuldades para falar e se expressar.
Os pais consanguíneos eram usuários de álcool e drogas ilícitas, sendo que a
mãe conviveu apenas com Cecília e, quando Leonardo nasceu, ela foi embora e
ambos ficaram sob os cuidados do pai. De acordo com Marta, os cuidados das
crianças foram mais difíceis, pois o pai consanguíneo já era idoso (aproximadamente

20
Todos os nomes utilizados são fictícios para fins de preservação da identidade dos participantes.

565
80 anos). Além disso, ele tinha filhos adultos que frequentavam a casa e ajudavam
com as crianças em seus primeiros anos de vida. No entanto, segundo relato de
Cecília, ela era mandada para a escola, pois os adultos queriam livrar-se dela para
passar tempo apenas com Leonardo, que supostamente sofria abuso físico e/ou
sexual.
Quando a menina tinha em torno de três anos, ela e o irmão foram retirados da
família consanguínea devido à situação de vulnerabilidade a que estavam expostos e
foram levados para uma instituição onde viveram por quatro anos. Nesse período,
houve tentativas de reintegrar as crianças à família consanguínea, sem sucesso e, de
acordo com Cecília, com outros episódios de violência. Quando a família
consanguínea perdeu definitivamente a guarda, uma família tentou adotá-los, mas
eles foram devolvidos à instituição em menos de uma semana.
Marta e Luiz decidiram adotar as duas crianças, pois já haviam tentado
engravidar e não obtiveram resultado positivo. Após algumas tentativas de
inseminação artificial, desistiram de ter filhos, mas Luiz sabia que Marta queria ser
mãe e a convenceu a realizar a adoção. Assim, eles se inscreveram no sistema de
adoção nacional como casal disposto a receber uma criança de no máximo cinco
anos. Foi dessa forma que entraram em contato com Leonardo, ainda com quatro
anos. Como ele tinha uma irmã biológica, eles decidiram adotá-la também. As
crianças vivem com essa nova família há quatro anos.
Em entrevista de anamnese com Marta, foram levantadas algumas queixas.
Primeiramente, ela referiu as mentiras da menina, mas também contou que a filha tem
uma atitude hipersexualizada e, por isso proíbe-a de usar roupa curta. No entanto,
algumas vezes, a mãe já percebeu que a menina vai até a escola com a roupa que
ela aprova e, chegando lá, a troca para uma roupa mais curta. Quando a mãe a
confronta sobre o assunto, ela nega e diz que a troca de roupa dentro da mochila não
é dela. Há que se ressaltar que Marta é branca e que apresenta em seu discurso uma
evidente questão racial de sexualização da mulher negra quando se refere à filha.
Além disso, Marta também conta que as duas crianças pegam dinheiro da carteira dos
pais sem permissão e usam-no para comprar comidas e brinquedos.
Diante disso, o caso em consideração remete à experiência de deprivação,
conforme descrita por Winnicott (1956/2000a). Cecília viveu sob os cuidados de sua
mãe consanguínea por dois anos, até que ela foi embora e a criança a perdeu. Essa
modificação ambiental, independente da sua qualidade, alterou a vida da criança, que
566
passou a viver apenas com o pai e os irmãos, até chegar na instituição. O espaço de
tempo existente entre o abandono da mãe, a passagem para uma instituição e depois
para a nova família foi de sete anos. De acordo com Briani (2008), efeitos que
mudanças dessa natureza podem causar no psiquismo e na formação da identidade
de uma criança são significativos.
No contexto da família adotiva, os pais têm muita dificuldade para tolerar e
suportar os ataques vindos da filha, o que acontece, na verdade, é uma reação moral
por parte deles. Eles pedem ajuda ao padre da comunidade e matriculam Cecília na
catequese da igreja católica. Além disso, houve outras reações morais de punição,
por exemplo, quando Cecília fez aniversário e os pais não realizaram nenhuma
comemoração. Isso acontece porque, segundo os pais, a menina não merece estes
cuidados devido ao seu comportamento.
No encontro com Cecília, ela disse gostar muito de sua mãe, mas sente que
esta não dá a ela toda a atenção que gostaria de receber. Conta de alguns momentos
em que elas passaram juntas, como fazendo bolos e outras comidas. No entanto,
durante a entrevista de anamnese, Marta deixou claro que essas ocasiões
compartilhadas com sua filha na cozinha haviam sido estressantes. Ainda, a criança
disse que gostaria de passar mais tempo com a mãe conversando e fazendo
atividades só as duas. Por sua vez, Marta disse que gostaria de sentir amor por sua
filha, mas não se sente à vontade para o contato próximo, nem para abraçá-la e nem
para segurar sua mão.
Outra queixa relatada pela mãe envolve situações em que a filha a contraria.
Por exemplo, Marta pede que Cecília tome banho todos os dias, que realize os
cuidados necessários em seu período menstrual e que cuide das unhas e de seu
cabelo. No entanto, a menina não segue essas orientações, o que sugere ser esta
uma forma de expressão do seu ódio pela mãe (Gomes, 2006), por exigir esses
comportamentos de uma forma que não contempla afeto ou carinho.
Isso fica mais claro na sessão lúdica quando Cecília deu atenção especial aos
cabelos das bonecas com as quais brincou. Esse fato chama atenção por seu cabelo
ser extremamente curto e ela relatar que estava deste tamanho pois sua mãe o havia
raspado há pouco tempo. A dificuldade de Marta para aceitar o fato de não haver
semelhança física entre ela e a filha, remete à observação de Levinzon (2010) de que
muitos pais adotivos querem parecer-se com seus filhos para que não sintam a
distância biológica entre eles. Além disso, o gesto de impaciência da mãe com a falta
567
de cuidados da menina com o próprio cabelo, pode ser visto como um sinal de
violência e punição tanto pela distância biológica quanto afetiva entre as duas.
Esse mesmo tema apareceu no Procedimento de Desenhos-Estórias quando,
em seu primeiro desenho, a menina fez a família muito colorida com flores, árvores,
pássaros, uma borboleta e uma abelha. Sua história foi sobre um dia em que aquela
família havia ido ao zoológico e visto diversos animais. Os que ela mais gostou foram
o tigre e o leão, principalmente este último, devido a sua juba.
Cecília parece identificar-se com o leão, pois ela é uma menina forte, cheia de
vida e com recursos, no entanto, estes não foram valorizados pela sua mãe, revelando
a dificuldade desta última em aceitar os atrativos femininos da filha. Enquanto falava
do leão, Cecília desenhou também uma abelha, destacando o ferrão, e uma borboleta
colorida e feliz, revelando a coexistência de seus afetos amorosos e agressivos.
Na segunda unidade de produção, Cecília fez flores coloridas, árvores,
pássaros, uma borboleta e uma abelha. Sua história foi apenas a descrição do
desenho, acrescentando que aquela era uma natureza feliz. Esse desenho foi
parecido com o anterior, no entanto, não houve a presença de nenhuma figura
humana. Apareceram, dessa vez, nas árvores, alguns frutos que podem ser a
representação de sua feminilidade.
No terceiro e último desenho, a menina fez um coração flechado e triste e, ao
lado, um coração rindo que seria aquele que deu a flechada. Esse segundo coração
possui em seu desenho um traço perverso de estar rindo enquanto faz mal para o
outro. Nessa representação, a menina revela as dores e os abusos que sofreu ao
longo da vida por parte daqueles que amou e confiou, o que pode ter contribuído para
uma confusão entre amor e ódio. Desse modo, o comportamento agressivo pode ser
expressão do amor e vice-versa. É interessante ressaltar que, nos dois primeiros
desenhos, ela desenhou a linha do solo enquanto, no último, produziu balões em uma
representação de volatilidade e evasão da realidade.
Em suma, a história de vida de Cecília é permeada por diversos desafios. O
período inicial de vida foi conturbado, vivendo o abandono de sua mãe consanguínea
e sendo deixada em um ambiente tóxico. Esse período de sua vida junto com a
passagem para a instituição de acolhimento constituiu estressores importantes em
seu desenvolvimento emocional. Essa situação foi agravada pela conduta de sua
família atual, que não a aceita como é, o que a leva a sentir-se como uma intrusa que

568
foi acolhida na família apenas para acompanhar o irmão, o filho verdadeiramente
desejado.
Mesmo neste ambiente desfavorável, as manifestações clínicas da tendência
antissocial, vistas na menina, são consideradas um sinal de esperança, uma forma
em que ela manifesta inconscientemente um pedido para que o ambiente cuide dela
(Winnicott, 1956/2000a).

Considerações finais

O conjunto dessa análise permite desconstruir colocações pré-estabelecidas


pelo senso comum sobre a adoção, no qual se acredita que o processo de adoção em
si seja o causador de prejuízos ao desenvolvimento emocional da criança. Esse
processo é de tamanha complexidade que não envolve apenas o momento em que a
adoção ocorre, mas também o histórico de vida da criança, a recepção dos pais e a
forma como os vínculos vão se estabelecer nessa nova dinâmica familiar.
O caso de Cecília é ilustrativo de dificuldades existentes em um processo de
adoção e, ainda, nessa situação particular, potencializado pelo papel de um ambiente
desfavorável nos primeiros anos de vida da menina. Sua história, marcada pela
deprivação, sinaliza esperança. Contudo, o ambiente em que ela vive atualmente
parece não oferecer um espaço para seu ritmo próprio, ofertando segurança para que
prossiga seu desenvolvimento emocional.
Apesar dos aspectos negativos envolvidos neste processo, é possível
identificar movimentos de esperança tanto da criança quanto de sua mãe ao buscar
um serviço de atendimento psicológico. Durante a triagem infantil, observou-se que a
menina possui recursos que podem ser utilizados para uma tentativa de retomada de
um desenvolvimento saudável. Cecília poderia, pois, beneficiar-se de um processo
terapêutico que a auxiliaria a testar o ambiente e senti-lo seguro, acolhedor de suas
necessidades reais, com suporte afetivo suficiente para expressão do gesto
espontâneo e estilo de ser pessoal.

569
Referências

Briani, A. C. T. (2008). A subjetividade na adoção: um pequeno ensaio.


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original publicado em 1951).

570
51- MASCULINIDADES: UM DIÁLOGO COM EPISTEMOLOGIAS CONTRA-
HEGEMÔNICAS

Lucas Mascarim da Silva


André Villela de Souza Lima Santos
Yurín Garcêz de Souza Santos
Breno César de Almeida da Silva
Manoel Antônio dos Santos
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto - SP

Resumo: Este estudo teve por objetivo apresentar o Grupo de Estudos e Pesquisas
em Masculinidades, vinculado ao Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia
da Saúde (LEPPS-FFCLRP-USP), traçando sua trajetória de formação, objetivos e
modos de circulação dos saberes entre seus membros. A construção deste relato
de experiência se articula em torno de marcos teóricos e de pensadores que têm
guiado o pensamento e as leituras do grupo, que é constituído e gerido por
profissionais, pós-graduandos(as) e estudantes de Psicologia. Com esse propósito
delineiam-se cronologicamente as teorias e pensadores que têm guiado as leituras
e constituído o corpus de análise do tema das masculinidades, com foco nos
processos de socialização do conhecimento. Ao se apropriar criticamente desse
arcabouço teórico-conceitual, o Grupo pretende contribuir para qualificar o debate
científico no âmbito da Psicologia e da formação acadêmica, por meio do estudo
crítico de questões candentes da contemporaneidade, sob a perspectiva das
masculinidades.

Palavras-chave: masculinidades; estudos de gênero; homofobia; Psicologia.

Introdução

Este estudo é fruto da primeira produção coletiva do Grupo de Estudos e


Pesquisas em Masculinidades, vinculado ao Laboratório de Ensino e Pesquisa em
Psicologia da Saúde, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
571
Universidade de São Paulo, cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (LEPPS-FFCLRP-
USP/CNPq). O Grupo Masculinidades foi constituído em 2019, a partir da iniciativa de
alguns integrantes do LEPPS interessados em aprofundar seus conhecimentos no
campo da produção teórica dos estudos de gênero e, especificamente, debruçar-se
nas questões relativas às masculinidades, a partir do olhar da Psicologia. Nesse
sentido, o Grupo tem envidado esforços no que concerne ao estudo sistemático das
produções que configuram os campos supracitados. Este estudo busca delinear as
principais concepções e elaborações teórico-conceituais que têm mobilizado as
discussões e diálogos semanais entre os membros do Grupo.
Os integrantes do Grupo são profissionais, pós-graduandos(as) e estudantes
de Psicologia. Coordenado pelo acadêmico Lucas Mascarim e pelo psicólogo André
Vilella, o Grupo Masculinidades tem por propósito qualificar o debate contemporâneo
por meio do estudo crítico de questões candentes na perspectiva das masculinidades.
Os integrantes do Grupo entendem que há necessidade de sistematizar e organizar a
miríade de conhecimentos produzidos nas últimas décadas no campo dos estudos de
gênero com foco na perspectiva das masculinidades. O balizamento teórico é um
refinamento necessário para melhor estabelecer os marcos conceituais que
sustentam as pesquisas que buscam entender a questão do masculino na cultura
ocidental-cristã. Entende-se que é desejável construir pontes que permitam o acesso
das psicólogas e psicólogos a esse campo de investigação interdisciplinar, de modo
que aqueles que desejam enveredar por esse caminho possam adentrar o campo
sentindo-se preparados para entrar em contato com o arcabouço conceitual que
sustenta a produção teórica e as possíveis ações e intervenções dela decorrentes.

Tudo aquilo que nos mobiliza e nos trouxe até aqui

Ao se estudar as questões do homem e das masculinidades, é necessário que


seja dada atenção a como foi possível, do ponto de vista histórico, chegar a tal
discussão. Como se constituiu esse percurso epistemológico que resultou no que tem
sido denominado de masculinidades e como se configuram seus limites e suas
possibilidades. Isso implica desde entender como surge a separação e/ou articulação
entre sexo e gênero, até como foi que se começou a conceber o homem enquanto
sujeito generificado. Para tanto, é imprescindível que se compreenda a trajetória do
572
feminismo e como as teóricas feministas lutaram para que as discussões sobre gênero
pudessem ser pensáveis, constituindo pautas fundamentais da luta pela igualdade de
direitos. Nesse sentido, nos apropriaremos das produções pioneiras da historiadora
Joan W. Scott, uma das autoras que desbravaram esse campo. Com seu artigo
seminal “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”, a autora formulou a
concepção, embebida nas teorias pós-estruturalistas, de que “o gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder” (Scott, 1986, p. 21).
Nesse sentido, quando pensamos nas origens históricas do feminismo, pode-
se afirmar que, conforme se nota na tradição acadêmica ocidental, o movimento
feminista surge no contexto da onda das democracias liberais ocidentais, quando se
iniciam as discussões sobre direitos, igualdade jurídica e universalidade de direitos
(Scott, 1986). Porém, há que se considerar que esses postulados tão decantados de
igualdade e universalidade tinham o “Homem” como objeto. Ao se trazer o sujeito
universal – homem – e dotá-lo de marcadores sociais como cor/raça, orientação
sexual, gênero – branco, hétero, cisgênero – deixa-se para trás todos os sujeitos que
não se enquadram nessa categoria. Naquela época, as mulheres não tinham direito
ao voto, à participação política e ao acesso à educação igualitária. As mulheres,
especialmente de classes médias e alta, alavancaram as reivindicações pelos direitos
femininos na figura emblemática das sufragistas (Matos, 2010).
É nesse quadro histórico que se inserem as feministas, no que ficou conhecido
como a primeira onda do feminismo, tendo como primeiras representantes Mary
Wollstonecraft (1759-1796), escritora inglesa considerada uma das primeiras
feministas da história (Hasan, 2018; Williams, 2019). No Brasil, essa onda foi
capitaneada pela educadora e escritora Nísia Floresta (1810-1885), que mostrava
estar muito à frente de seu tempo e que mostrou sensibilidade visionária ao captar as
inquietações que sacudiam os países industrializados (Lima Duarte, 2005). Essas
autoras pioneiras enfatizaram, em suas obras gestadas na guinada da Revolução
Francesa, as primeiras discussões em torno da mulher enquanto sujeito de direitos,
reivindicando, nessa época, principalmente a igualdade de oportunidades
educacionais.
Se é verdade que, na primeira onda feminista as discussões que se
preocupavam com a separabilidade de sexo e gênero ainda eram incipientes ou
inexistentes, é na segunda onda feminista que o tema seria trazido à tona. A segunda
onda do feminismo costuma ser situada entre os anos 1960 e 1990, portanto, no
573
período pós-guerra mundial, na transição da guerra fria, passando pela grande
efervescência dos costumes e valores morais que sacudiram a década de 1960 (Giffin,
2005; Matos, 2010; Scott, 1986). É nesse período que se intensificam os
questionamentos do que significa ser mulher e quais são as suas implicações sociais,
resultando na discussão e consolidação de conceitos-chave, como o de patriarcado,
cultura feminina e gênero. Isso significava denunciar também as implicações da
desigualdade persistente entre homens e mulheres na esfera privada – liberação
sexual, contracepção, papéis de gênero, dupla jornada de trabalho, educação de
filhos. É nessa época que começa a se colocar o sujeito universal em questão – aquele
até então tido como neutro, objetivo, universalizante, evidenciando o modo como esse
suposto sujeito universal tinha um lugar muito bem definido: homem, hétero, branco
(Scott, 1986), de camada social superior e cisgênero.
As discussões sobre o sujeito universal também atravessam o próprio
feminismo, que, historicamente, deu mais voz e palco para as mulheres brancas,
heterossexuais, cisgêneras e de classes médias e altas. O olhar da
interseccionalidade se amplifica nesse momento histórico do feminismo, mobilizando
desde questões de raça (Angela Davis, com Mulheres, raça e classe, em 1981) até
discussões sobre sexualidades e lesbianidades (Adrienne Rich com Compulsory
heterosexuality and lesbian existence, publicado em 1980). Rich foi uma das mais
influentes feministas estadunidenses de sua geração, e é considerada também uma
das poetisas mais importantes e premiadas da segunda metade do século XX. É
nesse momento histórico que começa a se construir a derrubada do axioma de que
todas as mulheres experienciam o “ser mulher” da mesma maneira. A partir de então,
a “mulher” não pode mais ser pensada como uma categoria única e bidimensional.
Durante o referido período histórico ocorre também a absorção das
ideias pós-estruturalistas por uma parte significativa das teóricas feministas, o que
gera intenso combate ao binarismo, com ênfase no caráter dialético da relação entre
as normas sociais, as instituições e os indivíduos. O gênero é considerado uma
construção social/cultural, retomando o argumento de Simone de Beauvoir e seus
escritos no clássico O segundo sexo, publicado em 1949. Começa-se a se repensar
a constituição dos sujeitos, tendo como base o exame crítico de premissas
supostamente constitutivas do processo de subjetivação. O gênero enquanto
essência, de suposta matriz biológica (na figura do “sexo”), passa a ser questionado
com veemência, o que sem dúvida representa um enorme avanço conquistado pelo
574
feminismo (Scott, 1986, 2004).
É nessa toada que surgem os primeiros estudos que se propõem a deslocar o
foco de análise para o homem enquanto sujeito generificado, utilizando dos
questionamentos conceitualmente elaborados até então pelas feministas. Em um
primeiro momento, essa visada é protagonizada pelos temas que, na época,
pautavam o movimento gay, que recém-emergia elegendo questões relacionadas à
discriminação e homofobia. Posteriormente, essa preocupação foi amplifiada para
questões como os papéis de gênero do homem, socialização masculina, subjetivação
masculina e opressão feminina exercida pelos homens por meio do patriarcado (Giffin,
2005).
Um argumento-chave que alimenta essas inquietações pode ser assim
sumarizado: se ser mulher é uma construção social, em igual medida ser homem
também o é. Nesse sentido, há uma ampliação ainda maior dos estudos feministas,
que se move em direção aos estudos de gênero, nos quais a categoria de análise
“mulher” soma-se à categoria de análise “gênero”. Assim, o empreendimento político,
histórico, acadêmico e epistemológico dos estudos de mulheres desemboca nos
chamados estudos de gênero e começa a lançar luz, cada vez mais, para questões
estruturais da sociedade. Ao fazer isso, coloca-se em questão o homem e o masculino
(Scott, 1986).

Refazendo os passos das(os) teóricas(os) que desbravaram o território

Além das pensadoras que iriam alcançar o status de incontornáveis nos


estudos de gênero, como Beauvoir e Scott, outras(os) ampliaram o escopo e
alargaram as fronteiras da área, além de terem escrutinado as masculinidades. Entre
essas(es) pensadoras(es) figuram o sociólogo francês Daniel Welzer-Lang e a
cientista social australiana Raewyn Connell. Welzer-Lang contribuiu para ampliar o
campo a partir do questionamento acerca da construção social da identidade
masculina e da questão da dominação exercida pelo gênero masculino, sustentando-
se no ideal de virilidade, machismo e heterossexualidade. Raewyn Connell inovou o
campo ao propor seu conceito de masculinidade hegemônica.
Conhecida internacionalmente por sua extensa produção no campo dos
estudos das masculinidades, que se interconectam aos estudos de gênero, as ideias
de Connell repercutiram em vários campos, como ciências sociais, educação,
575
psicologia, medicina e economia. Os escritos da autora buscam compreender as
relações entre diversas formas de masculinidade e iluminar de que forma, a depender
do contexto histórico-social, algumas dessas formas específicas operam de forma
hegemônica sobre outras.
Welzer-Lang (2001), a partir de uma visão anti-naturalista e não essencialista,
afirma que as relações entre homens/homens e homens/mulheres geralmente são
interpretadas pela via de dois paradigmas: o primeiro diz respeito a uma suposta
superioridade natural do homem, instaurando uma lacuna intransponível entre
homens e mulheres. Já o segundo paradigma se refere à visão heterossexuada de
mundo, que institui a heterossexualidade como norma e as outras diversas
configurações possíveis da(s) sexualidade(s) como, no máximo, “diferentes” ou
dissidentes. Para o autor, há um consenso em torno da noção de que a dominação
masculina surge e se perpetua quando ocorre a divisão entre dois grupos (ou classes)
de sexo em gêneros, ou seja, o binarismo sexo/gênero.
Welzer-Lang postula o conceito de “casa dos homens” para ilustrar as formas
de iniciação dos homens jovens no mundo adulto, mediante a perpetuação de uma
homossociabilidade que difere de acordo com a etapa da vida dos sujeitos. O autor
alerta que é no início desse processo que os jovens estão mais propensos a sofrerem
abusos sexuais de homens mais velhos e, no futuro, perpetrarem esses abusos com
as gerações mais novas, graças ao mecanismo de identificação ao agressor. Assim,
esses homens, ao alcançarem a maturidade, passam eles próprios a serem autores
de violência contra a geração mais nova, perpetuando o ciclo intergeracional de
violência.
As relações sociais baseadas no sexo, segundo Welzer-Lang (2001), operam
transversalmente no conjunto social e, portanto, atravessam homens e mulheres:

É então nessa perspectiva que eu propus que se definisse a homofobia como a


discriminação contra as pessoas que mostram, ou a quem se atribui, algumas
qualidades (ou defeitos) atribuídos ao outro gênero. A homofobia engessa as fronteiras
do gênero (Welzer-Lang, 2001, p. 465).

As contribuições teóricas de Raewyn Connell ganharam notoriedade


principalmente pelo construto da masculinidade hegemônica, desenvolvido a partir de
estudos empíricos realizados em escolas australianas, que demonstraram a
existência de hierarquias de masculinidade naquele meio. Essa hierarquia entrelaça

576
as questões relacionadas ao gênero com as de classe social (Connell &
Messerschmidt, 2005, 2013).
A conceitualização proposta por Connell fornece um arcabouço teórico potente
para a análise do tema, com especial interesse às questões globais da atualidade,
como o caráter multidimensional das relações e as pontes que articulam aspectos da
vida pessoal às estruturas organizacionais e macrossociais. É preciso, contudo,
retomar o significado de hegemonia em seu uso gramsciano, de matriz marxista, tal
como foi utilizado originalmente pela autora (Connell, 2005).

A noção de hegemonia propõe uma nova relação entre estrutura e superestrutura e


tenta se distanciar da determinação da primeira sobre a segunda. . . . Nesse contexto,
a sociedade civil adquire um papel central, bem como a ideologia, que aparece como
constitutiva das relações sociais (Alves, 2010, p. 71).

É no sentido ideológico, portanto, que a masculinidade hegemônica ampara a


ideia de superioridade masculina em contraponto à submissão feminina. Nesse ponto
é fundamental lembrar que, como mencionado anteriormente, a masculinidade que se
coloca como hegemônica varia de acordo com o contexto social na qual os indivíduos
estão situados. Portanto, podemos identificar masculinidades negras, brancas,
proletárias, de classe média, entre tantas outras que compõem o leque da diversidade
em diferentes épocas e períodos históricos.
A hegemonia, por sua vez, só se sustenta se houver uma correspondência
estrutural entre ideal cultural e o poder institucional, como é evidente, por exemplo,
nos cargos mais elevados das empresas privadas e no topo da hierarquia militar.
Estas, aponta Connell (2005), fornecem um ideal de masculinidade que clama uma
postura de autoridade, e não necessariamente de violência, embora esta esteja
frequentemente relacionada e materialize-se no horizonte de possibilidades como
solução possível para lidar com as tensões decorrentes das contradições geradas.
As concepções teóricas de Connell permitem compreender como as políticas
de gênero podem se transformar, se bem aproveitadas, em situações propiciadoras
de mudança. Nesse vértice do pensamento, gênero é uma produção acadêmica
engajada que se move da experiência pessoal em direção a problemas globais,
oferecendo uma perspectiva ao mesmo tempo crítica, solidária e profícua para as
questões contemporâneas que permeiam os tempos sombrios no qual vivemos.

577
Como podemos compreender o gênero no mundo contemporâneo?

Avançando na linha do tempo sobre as discussões acerca das masculinidades,


chega-se a um posicionamento denominado pós-estruturalista, consistente com o
movimento do pensamento ocidental que inspirou essas teorizações. De acordo com
a visão de mundo compartilhada, oriunda da percepção de que, ainda que sejam
socialmente notórios os privilégios e vantagens concedidos aos homens em
contraposição às restrições e sanções impostas às mulheres, a suposta
universalidade da supremacia masculina é colocada em questão quando se analisam
de perto as inúmeras contradições observadas nas vivências individuais de cada
sujeito masculino. Nesse sentido, e apoiado sobretudo na arqueologia foucaultiana
sobre saber/poder, sexualidades e, em última instância, subjetividades, o que uma
mirada pós-estruturalista propõe é uma revolução na forma pela qual a linguagem é
entendida.
Se, anteriormente, a linguagem era concebida como instrumento de nomeação
da realidade, a partir da guinada epistemológica proposta pelo chamado pós-
estruturalismo a linguagem passa a ser vista como mecanismo de produção da
realidade, não sendo, portanto, isenta das relações de poder atreladas a todo e
qualquer saber/dizer. Ou seja, em se tratando da temática das masculinidades, ainda
que existam regras sociais que ditam o que é ser homem ou mulher em cada cultura
– e, portanto, o que é próprio do masculino e do feminino – vislumbra-se, na nova
proposta de entendimento a respeito da função da linguagem sobre a realidade, a
possibilidade de reinterpretação dessas normas, o que permite distanciar os sujeitos
dos modelos tidos como naturais. Desse modo, é possível desconstruir e reconstruir
continuamente os entendimentos e consensos que se tem sobre si e sobre as
categorias de gênero e sexualidade, que são social e hegemonicamente impostas.
Assim, materializando a noção de que, conforme evidenciado por Foucault
(1999), o poder – perpetuado por meio da reiteração das normas heterocentradas –
não atua apenas a partir de uma perspectiva negativa que nega ou limita ações, o que
uma visão pós-estruturalista propõe é observar o caráter produtivo das relações
sociais, na medida em que incitam a ação a partir da resistência. Nesse sentido, as
desigualdades socialmente observadas entre homens e mulheres deixam de ser
compreendidas a partir de uma perspectiva puramente biológica e passam a ser vistas
à luz de uma construção ideológica que coloca as mulheres – e tudo o que é
578
considerado como da ordem do feminino – em posição subalterna aos homens e a
tudo o que é interpretado como masculino. Sendo assim, a ordem do feminino passa
a ter inteligibilidade na medida em que é entendida como fruto da escolha intencional
de hierarquização dos corpos e, por que não dizer, das subjetividades (Loyola, 1999).
A partir dessa transformação paradigmática proposta pelo pós-estruturalismo,
é possível entender o gênero e, consequentemente, os conceitos a ele relacionados
– como o de masculinidades – como “uma forma primária de dar significado às
relações de poder” (Scott, 1995, p. 86). É importante salientar que, com essa
transformação na forma de entendimento sobre o que é o gênero, não se pretendem
anular as diferenças biológicas observadas entre os corpos, mas sim explicitar as
construções que se fizeram historicamente sobre essas diferenças.
Assim, em uma revisão do posicionamento original de Connell, para Connell e
Messerschmidt (2013) o gênero não pode ser entendido como fixo em uma interação
social, mas sim construído nas interações socialmente estabelecidas. Isso significa
dizer que o gênero – e, por extensão, as masculinidades – também pode ser entendido
como uma ação, um processo que não tem uma origem claramente definida, nem se
apresenta enquanto um fim em si mesmo. As masculinidades, então, são “não
naturais”, não havendo relação necessária entre a anatomia, o gênero com o qual o
sujeito vai se identificar e muito menos com a forma com a qual ele vai se expressar
concretamente no mundo (Butler, 2003).
Nesse sentido, o gênero não é uma construção coerente e consistente, mas
algo que é continuamente interpretado e reformulado a partir de contextos históricos,
raciais, étnicos, sexuais, regionais e de classe. Sendo um aspecto discursivamente
construído – entendendo discurso não apenas como palavra, mas como ação no
mundo – é impossível dissociar os gêneros e as masculinidades dos aspectos
políticos e culturais nos quais eles são construídos (Butler, 1999).

Como as masculinidades e feminilidades são produzidas?


Considerando o exposto, as masculinidades passam a ser entendidas como
(re)interpretações e reconstruções constantes, em um longo percurso que diz respeito
a aspectos políticos e sociais da vida de um sujeito (Ceccarelli, 1997). E, ainda que
exista notoriamente uma dominação masculina (Welzer-Lang, 2001), é equivocada a
assertiva de que a masculinidade se define apenas pelas diferenças entre os homens
enquanto bloco e entre as mulheres enquanto bloco (Connell, 2005). Ou seja, por mais
579
que seja evidente e clara a noção de que homens desfrutam de amplos privilégios
sociais, sendo a sociedade estruturada por e para homens brancos, heterossexuais,
cisgêneros e economicamente favorecidos, para se trabalhar com o conceito de
masculinidade é imprescindível ter em mente as diferenças existentes entre os
próprios homens e as condições sociais nas quais essas diferenças são engendradas
e perpetuadas.
Como afirmado por Beiras e Cantera (2012), é esperado que homens
manifestem determinados comportamentos e demonstrem força, virilidade, valentia e
outros atributos que, ao contrário do que se pode imaginar, não são necessariamente
fixos, e sim reiterados e atualizados cotidianamente, tanto por homens quanto por
mulheres ao se performarem. A partir de uma mirada pós-estruturalista, trabalhar com
as masculinidades equivale a trabalhar com práticas que são (re)construídas,
(re)veladas e transformadas ao longo do tempo, e que estão em permanente diálogo
com o que é ser, isto é, com a constituição e o desenvolvimento do próprio sujeito. Se
é possível definir brevemente o conceito, as masculinidades são lugares em que os
homens se posicionam nas relações de gênero, ou seja, as práticas por meio das
quais homens, sejam eles cisgêneros ou transgêneros, hétero, homo ou bissexuais,
se posicionam nessas relações de gênero e, ao mesmo tempo, os efeitos que essas
práticas têm na sua experiência em nível corporal, cultural e na personalidade
(Connell, 2005).
O presente estudo tem o propósito de servir apenas como uma introdução ao
tema, reconhecendo-se a impossibilidade de oferecer uma resposta singular a uma
temática tão complexa e polissêmica como são as masculinidades (Pimentel, 2011).
Há necessidade de considerar as diferentes concepções epistemológicas, uma vez
que destacar apenas uma delas não parece ser a única via possível para definir e
compreender o que é ser homem ou ser mulher, considerando o caráter relacional do
gênero. Posto isso, outros estudos irão considerar a influência de outras concepções,
tais como a segunda onda do feminismo, que rompeu com um ideal hegemônico de
mulher. Portanto, é preciso compreender outras epistemologias, que incluem distintas
categorias de análise, como raça, classe, gênero, entre outros marcadores sociais da
diferença, que visam a romper com uma compreensão de modelo hegemônico de
masculinidades.
Pressupondo-se que as masculinidades são social e culturalmente construídas,
e não estão ancoradas na biologia nem partem de um atributo inato ao indivíduo,
580
tampouco de uma ordem mítica e biológica, Kimmel (1998, p. 3) afirma que
masculinidades

(1) variam de cultura para cultura, (2) variam em qualquer cultura no transcorrer de um
certo período de tempo, (3) variam em qualquer cultura por meio de um conjunto de
outras variáveis, outros lugares potenciais de identidade e (4) variam no decorrer da
vida de qualquer homem individua.

Dessa maneira, não é possível falar de masculinidade como uma essência


constante e universal, mas como composta por diversas camadas de significados e
comportamentos fluídos, que se encontram em constante mudança (Kimmel, 1998).

Neste sentido, devemos falar de masculinidades reconhecendo as diferentes


definições de hombridade que construímos. Ao usar o termo no plural, nós
reconhecemos que masculinidade significa diferentes coisas para diferentes grupos
de homens em diferentes momentos (Kimmel, 1998, p. 4).

Nessa compreensão esboçada por Kimmel (1998), as masculinidades são


constituídas de forma simultânea em dois campos inter-relacionados de poder, a
saber: as relações entre homens e mulheres (desigualdade de gênero) e as relações
dos homens com outros homens (desigualdades fundamentadas na raça, etnicidade,
sexualidade, idade, entre outros marcadores).
Nesse sentido, os diversos desarranjos existentes entre as diferentes
masculinidades devem ser levados em conta, uma vez que, segundo Kimmel (1998), a
principal maneira pela qual os homens procuram exercer sua masculinidade é por meio
da desvalorização de outras formas de masculinidade. Assim, não é possível considerar
uma forma homogênea de masculinidades, tampouco considerar pacífica as formas
pelas quais elas se relacionam e coexistem. Logo, e não menos relevante, a influência
dos movimentos sociais contemporâneos nas discussões acadêmicas recentes deve
ser levada em consideração, uma vez que é preciso iluminar e elucidar as diferentes
masculinidades existentes em nossa sociedade, como as masculinidades trans, negras,
homossexuais, indígenas, dos homens com deficiência física, sensorial ou intelectual,
com diagnósticos de transtornos mentais ou de doenças crônico-degenerativas, entre
outras configurações subordinadas ou dissidentes.

581
Referências

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583
52- VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS FÍSICOS E
EMOCIONAIS EM GESTANTES ADOLESCENTES1

Emanuel Nildivan Rodrigues da Fonseca1


Gilberto Safra2
Jogilmira Macêdo Silva Mendes1
Magaly Suênya de Almeida Pinto Abrantes1
Rosângela Vidal de Negreiros1

Resumo: O presente trabalho analisa os impactos da violência obstétrica em


gestantes adolescentes sob os aspectos físicos e emocionais. Fazendo uma relação
do modelo obstétrico brasileiro, construído sobre a óptica do modelo biomédico e seus
efeitos deletérios referente a saúde física e mental de mulheres gestantes
adolescentes, usuárias dos serviços de saúde e vítimas de violência obstétrica. O
tema ainda gera divergências entre profissionais de saúde, porém sua existência é
reconhecida e combatida pela OMS/OPAS e muitas outras entidades de pesquisa.

Palavras-chave: Violência obstétrica. Gestação. Adolescência.

INTRODUÇÃO

Analisar os impactos da violência obstétrica em gestantes adolescentes,


permite também evidenciar a relação do modelo obstétrico brasileiro e seus efeitos
deletérios à saúde física e mental de muitas mulheres vítimas desse sistema.
Sobretudo, em adolescentes, um corpo em desenvolvimento, nesse momento sobre
efeitos das mudanças hormonais promovidas pela gravidez.
A adaptação do corpo às mudanças promovidas pela gestação, podem levar à
alterações que não apenas compreendem as físicas, mas também as sociais,
econômicas e emocionais. Muitas adolescentes não encontram o apoio do parceiro,
acentuando-se os conflitos e a desestruturação familiar.
O maior índice de gravidez na adolescência acontece nas classes sociais
populares evidenciando que os arranjos familiares são construídos em função de
circunstâncias econômicas, sociais, culturais, históricas e de acordo com as diferentes
classes sociais.
584
As adolescentes grávidas, além dos inúmeros riscos sociais que elas estão
susceptíveis, é importante destacar o risco à “violência obstétrica”. Este termo é
entendido como qualquer violência que ocorra durante a gravidez, parto e pós-parto,
e que possa trazer dano físico, emocional ou psíquico para essa mulher/adolescente.
Na prática, ela acontece desde o aceso negado ao pré-natal, as dificuldades na
realização de exames durante esse período ou até mesmo quando o acompanhante
de livre escolha, lei 11.108/05, é negado. Sem contar o uso de expressões grotescas
proferidas por profissionais, gerando dor e adoecimento mental.
Do ponto de vista físico, a violência obstétrica é empregada com o uso
indiscriminado de ocitocina sintética para acelerar o parto, já na fase inicial do trabalho
de parto. Aumentando os riscos de complicações para a mãe e para o recém-nascido.
A violência impacta diretamente com o aumento da incidência de morte materna no
Brasil, podendo ser considerada o ápice da violência obstétrica. Apesar disso,
recentemente o ministério da saúde editou portaria abolindo o termo “violência
obstétrica” e negando sua existência e suas graves consequências para a saúde das
mulheres, porém, devido aos apelos populares e entidades recuaram dessa decisão
no mínimo retrógrada.

MODELO OBSTÉTRICO BRASILEIRO: potencializações para violência obstétrica e


seus impactos em gestantes adolescentes

A aproximação com a temática da gravidez na adolescência, sobretudo da


violência obstétrica, vem desde à formação. Durante a especialização em
enfermagem obstétrica, questionava-me sobre muitos procedimentos realizados de
forma compulsória às parturientes, e que não eram justificados por evidências
científicas fortes, mas sim por conjunturas construídas tradicionalmente, reforçadas
pela ideia do domínio do corpo da mulher, fortemente observadas nas questões
sociais e de gênero. Não podemos negar que a violência obstétrica existe, e que ela
transcende além das questões de gênero, perpassando as sociais e étnicas. Esse é
a modelo obstétrico brasileiro vigente, centrado no profissional e não na mulher e em
seu filho. Negando muitas vezes as evidências científicas, apoiando-se em práticas
que desrespeitam as escolhas conscientes de nossas parturientes.
Entretanto, essas características no modelo assistencial não é uma
prerrogativa brasileira apenas:
585
[...] um crescente volume de pesquisas sobre as experiências das mulheres durantes
a gravidez, e em particular no parto, descreve um quadro perturbador. No mundo
inteiro, muitas mulheres experimentam abusos, desrespeito, maus-tratos e
negligências durante a assistência ao parto nas instituições de saúde. Isso representa
uma violação da confiança entre as mulheres e suas equipes de saúde, e pode ser
também um poderoso desestímulo para as mulheres procurarem e usarem os serviços
de assistência obstétrica (OMS, 2014, p.1).

Logo, o termo violência obstétrica no Brasil começou a ser debatido no início


da década de 2000, com forte influência em experiências ocorridas em outros países
da América do Sul, como Venezuela e Argentina. Além de apresentarem
características no ciberativismo, encabeçado por mulheres, em sua maioria brancas
e de classe média-alta, que começaram a denunciar práticas abusivas durante seus
partos e o desrespeito dos serviços de saúde (Assis, 2018).
No entanto, mulheres pobres, negras e pardas são submetidas as maiores
práticas violentas, pela fragilidade e marginalização social as quais estão inseridas, e
não encontram no sistema de saúde o efetivo apoio e estrutura que as permitam
denunciar ou escolher melhores condições de assistência prestada.
Segundo a pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2010), uma em cada quatro
mulheres já sofreu violência obstétrica no Brasil. A cada 100 mil internações de
mulheres pretas para o parto, 22 morrem, esse número cai para a metade quando a
paciente é branca. A morte materna causa comoção, mas não mobiliza ações de
impacto a sua redução, embora os transtornos enormes causados para o filho órfão,
quanto para a família que vai recebê-lo. Frequentemente as mulheres negras tem o
direito ao acompanhante negado com maior frequência, bem como o acesso à
analgesia de parto e outros métodos não farmacológicos para alivio da dor.
Contudo, muitas mulheres e famílias, na prática, não percebem a violência das
quais foram ou são submetidas. O que reflete diretamente no papel do pré-natal como
importante estratégia de esclarecimento dos diretos das mulheres e na preparação
para o parto, sobretudo respeitoso.
Assim, um importante estudo realizado por Aguiar e D’Oliveira (2011) refere
que as práticas violentas que permeiam a assistência ao parto e nascimento
permanecem imperceptíveis à maioria das gestantes, profissionais de saúde e
gestores.

586
Portanto, a pesquisa Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, entrevistou
23.894 mulheres atendidas em maternidades públicas, privadas e mistas,
contemplando capitais e cidades do interior do Brasil, entre os anos de 2011 e 2012.
Onde revelou altos índices de intervenções como o uso de ocitocina, amniotomia,
litotomia, manobra de Kristeler e episiotomia. Em relação à satisfação, constatou-se
iniquidade na assistência recebida. Mulheres pretas e pardas, de baixo poder
aquisitivo e baixa escolaridade, residentes nas regiões norte e nordeste, referem
menor satisfação com a assistência recebida. Quanto a saúde mental dessas
mulheres, a pesquisa aponta a depressão materna detectada em 26% das mães entre
6 a 18 meses após o parto, sendo mais presente em mulheres de baixo poder
econômico e social, o que revela que a satisfação com o atendimento influenciou o
adoecimento (Leal e Gama, 2014).
Ainda segundo a pesquisa realizada por Leal e Gama (2014), 52% das
mulheres tiveram seus filhos por cesariana, em se tratando especificamente de
serviços privados chegamos aos alarmantes 88%. Não havendo indicações clínicas e
obstétricas para esse número tão elevado de cirurgias, elevando com ele a exposição
aumentada dos riscos de morbidade e mortalidade, bem como suas repercussões
para os recém-nascidos, incluindo aumento da obesidade, diabetes, asma, alergias e
outras doenças não-transmissíveis. Se levarmos em consideração as adolescentes, a
cesariana foi empregado em 42% dos casos. A pesquisa destaca que em relação as
mulheres adolescentes estão submetidas a maiores riscos, por iniciarem
precocemente a vida reprodutiva. Além de destacar o perfil bastante desfavorável das
gestantes adolescentes entrevistadas, onde destaca, sobretudo o baixo poder
econômico, baixo nível de escolaridade e baixo acesso aos pré-natal.
No entanto, associações de classe, organizações sociais e instituições de
ensino, tem em sua grande parte, acatado as exigências dos movimentos de
mulheres, e promovidos atualizações e encontros baseados nas melhores evidencias
científicas. O que tem gerado produções como: a diretriz para a assistência ao parto
e nascimento no Brasil (2018) do MS. Recentemente, realizamos junto ao Conselho
Regional de Enfermagem da Paraíba, importante encontro sobre assistência de
enfermagem obstétrica e neonatal, fomentando as discussões para as boas práticas
e redução da violência obstétrica e morte materna. O evento ocorreu na cidade de
Campina Grande-PB, no início de outubro de 2019, atraindo mais de 500 profissionais
de enfermagem.
587
Eventos como esses, buscam fomentar a mudança do modelo obstétrico
brasileiro, centrado sobretudo na mulher, e baseado em evidências fortes, já
implementados em muitos países desenvolvidos, onde os índices de morte materna e
violência obstétrica são baixíssimos.
No que concerne aos impactos da gravidez em adolescentes, nessa fase da
vida pode acarretar um risco maior de baixo peso ao nascer (BPN) e a prematuridade,
que são apontados como principais responsáveis pelas maiores taxas de morbidade
e mortalidade no primeiro ano de vida do recém-nascido. Apontam como
consequência a gestação precoce a exposição a abortos, distúrbios de ordem afetiva,
tanto em relação à mulher quanto ao recém-nascido, propensão à baixa autoestima e
à depressão, consequências emocionais advindas de relações conjugais instáveis
(Gama, Szwarcwald, Leal, & Theme Filha, 2001).
Logo, os efeitos deletérios da violência obstétrica em mulheres adolescentes
podem ser maiores, sobretudo em seus aspectos emocionais e físicos, necessitando
um olhar diferenciado por parte das políticas públicas, visando redução de danos
psíquicos.
Não é recente essa preocupação com as gestantes adolescentes. Quando
consultamos a literatura, a gravidez na adolescência tem sido apontada como uma
condição de risco, quer seja para a mãe adolescente ou para seu filho, tendo-se
tornado uma preocupação por parte de investigadores e organizações internacionais
como a World Health Organization (WHO, 1986).
No aspecto relacionado a feminilidade e maternidade, de acordo com a teoria
psicanalítica, sob a perspectiva de Freud, o caminho que leva à feminilidade se dá por
meio da maternidade. O que caracteriza a maternidade como atributo feminino,
tornando a mulher plena. Nessa perspectiva reforçar a importância social da mulher
na sociedade nos ajuda a compreender o papel feminino, papel esse que é transferido
para a adolescente, influenciando suas escolhas e projeto de vida. Os eventos
transcorridos durante esse processo de crescimento, podem causar efeitos maléficos
na vida dessas mulheres.
Assim, Winnicott buscava chamar a atenção dos psicanalistas para a
importância e os efeitos do ambiente nos estágios precoces do desenvolvimento,
observando cuidadosamente a relação mãe-bebê, identificando nela semelhanças
que a caracterizavam ao setting freudiano em seus elementos de confiabilidade e
estabilidade (Granato & Aiello-Vaisberg, 2009).
588
Portanto, trabalhar com mulheres grávidas adolescentes, requer um preparo
maior e melhor do que efetivamente são implementados nas políticas de saúde do
Brasil, sobretudo nos lugares mais distantes dos grandes centros, onde as
atualizações não chegam de forma efetiva aos profissionais de saúde.

CONCLUSÃO
As análises aqui apresentadas mostram que no Brasil ainda impera o modelo
hegemônico do cuidado, centrado no modelo biomédico, e que as construções e
implementação das políticas públicas ainda tem pouca participação popular.
No entanto, não podemos negar que houve avanço nas discussões de temas
como, a violência obstétrica. Isso tem fomentado a busca pela mudança do modelo
obstétrico brasileiro, sendo esse centrado na mulher e justificados nas melhores
evidências científicas. Leis e proposituras abordando o tema da violência obstétrica
seguem sendo aprovadas em várias cidades e estados brasileiros, muitas entidades
de classe e movimentos sociais de mulheres já apoiam e exigem mudanças urgentes.
Os efeitos danosos da violência obstétrica, ainda geram divergências entre os
profissionais de saúde, algumas entidades médicas negam veementemente sua
existência, e não aceitam o emprego do termo. Negar sua existência, é negar a
presença dos efeitos danosos causados às mulheres, sejam eles de ordem física ou
emocional. Desse modo é preciso avançar na ruptura definitiva desse modelo de
assistência, e empregarmos o respeito as escolhas conscientes e orientadas das
mulheres.

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Fundação Perseu Abramo, SESC (2010). Mulheres Brasileiras e Gênero nos espaços
Público e Privado: pesquisa de opinião pública. Disponível em:
<https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-
Content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra-o.pdf >. Acesso em: 09. mai. 2019.

Granato, T. M. M., Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2009). Maternidade e colapso: consultas


terapêuticas na gestação e pós-parto.Paidéia. Ribeirão Preto, (44) 19 p.395-401.
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
863X2009000300014&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 01. out. 2019.

590
53- EXPRESSÕES DO IMPACTO DO AUTISMO DO FILHO MAIS VELHO SOBRE
A RELAÇÃO ENTRE PAIS E CRIANÇAS MAIS NOVAS: UM ESTUDO
QUALITATIVO

Rogério Lerner

Milena Degasperi.

Anna Victória Mekhitarian.

Resumo: Em estudo quantitativo de segmento, bebês com alto risco para problemas
de desenvolvimento tem sido avaliados em relação a autismo, problemas de
comportamento e de interação sócio emocional, atrasos na cognição e na linguagem.
Mães destes bebês estão sendo avaliadas em relação à função reflexiva, assim como
depressão, estresse e ansiedade. A experiência de campo tem, no entanto, mostrado
que há também outra dimensão que compõe o contexto de onde são extraídas as
perguntas disparadoras do estudo. Neste texto, alguns questionamentos têm sido
analisados e refletidos também a partir de uma dimensão qualitativa.

Palavras-chave: desenvolvimento, autismo, avaliação, função reflexiva.

Introdução

Em pesquisa recente (DURAND et al., 2019), 144 díades compostas por mães
e bebês (de 0 a 2 anos) foram divididas em dois grupos: bebês com alto risco para
problemas de desenvolvimento (por terem um irmão mais velho com Transtorno do
Espectro do Autismo - TEA) e bebês com baixo risco (irmão mais velho sem
Transtorno do Espectro do Autismo). Alguns resultados observados:

1. Até 01 ano, crianças do grupo de alto risco para problemas de


desenvolvimento apresentaram taxas mais altas de retraimento e de
sinais iniciais de problemas de desenvolvimento; suas mães pontuaram
negativamente em relação a humor depressivo se comparadas ao grupo

591
de baixo risco para problemas de desenvolvimento;
2. Entre 01 e 02 anos, as mães dos bebês do grupo de alto risco para
problemas de desenvolvimento expressaram maior intrusividade e seus
bebês tendiam a ser menos cooperativos.

Em estudo de seguimento, estão sendo feitas as seguintes avaliações entre os


4 e 6 anos de vida das crianças acima mencionadas: autismo, problemas de
comportamento e de interação socioemocional, atrasos na cognição e na linguagem.
Mães estão sendo avaliadas em relação à função reflexiva, assim como
depressividade, estresse, ansiedade. Objetiva-se estabelecer associações entre as
avaliações anteriores e as agora propostas.

Estudos (FONAGY, 2000) têm constatado que quanto maior a capacidade


reflexiva dos pais, maior a probabilidade de promoverem apego seguro a suas
crianças. Ao compreender os estados mentais da criança e nomear suas experiências
afetivas, os pais proporcionam ao filho a aquisição desta mesma capacidade. Pais
aptos à função reflexiva são capazes de distinguir seus estados emocionais e
pensamentos dos de seus filhos, evitando o uso de mecanismos de defesa, como
formações reativas e projeções massivas. O estabelecimento sólido da função
reflexiva tem um efeito protetor, enquanto, ao contrário, seu status relativamente frágil
implica numa vulnerabilidade para traumas posteriores.

Há muitos desafios em se trabalhar com familiares de pessoas com autismo,


dado que seu prognóstico pode ser bastante desfavorável, já que frequentemente o
transtorno vem associado a algum grau de retardo mental. Em média, 65% dessas
crianças permanecem em estado de dependência ao longo de suas vidas; apenas
35% podem atingir algum grau de autonomia pessoal quando adultos. Neste sentido,
os cuidadores encontram-se em permanente estado de preocupação (KLIN, 2006).

Segundo Lampreia (2007), alguns estudos têm se dedicado à avaliação


psicológica da criança com transtorno do desenvolvimento (como autismo) e sua
família. A necessidade de se alterar horários e rotinas, disponibilizar tempo para a
identificação de serviços terapêuticos e arcar com os custos financeiros do transporte
da criança para esses serviços demanda bastante da família, especialmente das de
baixa renda. Esses fatores podem afetar a forma como os pais se relacionam com a

592
criança com autismo e com seus outros filhos, muitas vezes gerando efeitos adversos
entre os membros da família.

O estudo em tela, coordenado pelo professor Dr. Rogerio Lerner, tem


metodologia quantitativa, importando para o seu desenvolvimento a associação entre
variáveis, coleta de dados de grupos de sujeitos, resultados de avaliação estatística,
pontos de corte em testes e questionários. A experiência de campo tem, no entanto,
mostrado que há também outra dimensão que compõe o contexto de onde são
extraídas as perguntas disparadoras do estudo. De quais maneiras singulares para
cada família ter um filho mais velho com autismo impacta o lugar da criança mais nova
e a qualidade dos vínculos que se estabelecem? Em que medida o autismo de uma
das crianças afeta cada família? Qual é a especificidade do sofrimento presente
nessas famílias e irmãos? Há potencialidades em meio a esse sofrimento? Esses,
dentre outros questionamentos, têm sido analisados e refletidos também a partir de
uma dimensão qualitativa.

A própria experiência de campo tem favorecido uma elaboração qualitativa das


indagações acima mencionadas. A maioria das famílias reside em bairros distantes
da cidade de São Paulo (tomando como referencial as residências das pesquisadoras)
e, algumas vezes, em outras cidades, como Guarulhos e São Carlos, de forma que
estes longos deslocamentos têm sido oportunidades fecundas para a elaboração de
suas experiências e impressões. No presente relato serão expostas e discutidas
algumas dessas reflexões a partir de ilustrações advindas da própria experiência de
campo com as mães e irmãos mais novos de crianças com autismo.

Uma situação bastante comum tem sido a presença, dentre os irmãos mais
novos, de características do autismo que, no entanto, não permitem que se feche
diagnóstico para tal condição. Uma menina de 5 anos, por exemplo, embora
claramente tivesse desenvolvimento típico, permaneceu ao longo de grande parte da
avaliação produzindo sons peculiares e um tanto descontextualizados. Ao final das
avaliações, pediu para se sentar no colo de uma das pesquisadoras e ficou apalpando
seu corpo sem nada dizer, muito embora soubesse falar bem. Outra participante do
estudo demonstrou aparente hipersensibilidade a estímulos auditivos, comum
característica das crianças com autismo. Repetidas vezes, durante as avaliações,
demonstrou muito incômodo ao ouvir sons muito distantes ou baixos, da TV e de seu
celular de brinquedo.

593
Ainda nessa linha da presença de sinais e sintomas de autismo dentre os
irmãos mais novos que, no entanto, não fecham diagnóstico para essa condição, há
o exemplo de um menino que muitas vezes durante a avaliação interrompeu a mãe
para direcionar a ela múltiplas solicitações, como doces que queria comer. Diante da
recusa da mãe, ele batia o pé e resmungava. A mãe disse que esse comportamento
do filho é frequente, e completou: “Ele faz isso para imitar o irmão mais velho”.

Essas ilustrações, em conjunto, permitem-nos refletir sobre uma espécie de


“imitação” voluntária ou não dos irmãos mais velhos (com autismo) pelos irmãos mais
novos. Talvez, para uma criança que já nasceu na companhia de outra com autismo,
com uma forma peculiar e muitas vezes descontextualizada de estar no mundo, essa
seja a forma natural de ser. Talvez, ainda, a perspicácia das crianças não deixa passar
o tanto de atenção que seus irmãos mais velhos - ao resmungarem ou baterem o pé,
por exemplo - recebem dos pais. Por que não fazer o mesmo para obter atenção?
Ainda, aquilo que não foi suficientemente elaborado ou compreendido pelas crianças
(comportamentos descontextualizados e disruptivos presentes no autismo) pode ser
repetido na procura por algum sentido.

É interessante notar que essa imitação ou semelhança com o irmão mais velho
não é onipresente. Às vezes o que ocorre é justamente o contrário. Se por um lado
em muitas famílias as pesquisadoras estiveram às voltas com crianças que acabavam
repetindo modos de ser dos irmãos mais velhos, por outro também foi encontrado o
contrário. Uma garotinha de apenas 5 anos, muito sensível, parecia perceber muito
bem as expressões e manifestações comportamentais do irmão mais velho. Ela
parecia ter excelente função reflexiva e capacidade de mentalização e, diante das
crises do irmão mais velho, ela tentava atribuir significados e pensar sobre o que
poderia estar por trás daqueles comportamentos. Ela dizia: “Ele quer atenção” ou “Ele
também queria desenhar”.

Ao dar voz para aquilo que o irmão mais velho não conseguia nomear, essa
garotinha contribuía para o seu desenvolvimento e, diferentemente de outras crianças
da amostra, não repetia os comportamentos disruptivos do irmão. É interessante notar
que a mãe dessa menina observou: “O desenvolvimento do meu filho com autismo
aconteceu somente depois que a minha filha mais nova nasceu, ela contribuiu muito
para o desenvolvimento dele”. Vemos, a partir dessa ilustração, o quanto a reflexão e
verbalização sobre os comportamentos descontextualizados envolvidos no autismo

594
pode vir a influenciar as crianças mais novas para prevenir uma repetição desses
comportamentos e, ainda, contribuir para o desenvolvimento da criança mais velha.

Algo muito importante que tem sido observado, e tem chamado a atenção das
pesquisadoras devido à frequência, é o aspecto funcional das brincadeiras entre as
mães e seus filhos. Insistentemente, muitas mães do grupo dos irmãos com alto risco
para problemas de desenvolvimento pedem para que as crianças nomeiem os
brinquedos ou traduzam seus nomes para o inglês. Nota-se grande preocupação com
o desenvolvimento cognitivo ou de que o filho “saiba” determinadas coisas, em
detrimento de um jogo de faz de conta mais prazeroso que poderia se desenrolar na
díade se não houvesse tais preocupações. Uma das mães relatou, inclusive, grande
alívio ao saber o desenvolvimento do filho mais novo estava indo bem, de acordo com
as avaliações que foram feitas. Ela agradeceu e completou: “quando o filho mais velho
tem autismo, o medo em relação ao desenvolvimento do mais novo fica muito maior”.
Esta mãe descreveu alguns comportamentos do filho mais novo que ela considerava
semelhantes ao do filho com autismo e novamente buscou certificar-se de que tudo
corria bem.
Uma mãe relatou que, desde que o filho mais novo nasceu, tem investido muito
tempo e atenção nos aspectos diversos do desenvolvimento dele, passando uma
impressão para as pesquisadoras de que a mesma busca “compensar” o que não foi
possível de ser feito com o filho mais velho, autista. Ao receber o feedback das
pesquisadoras de que tudo estava bem, disse, bastante enfática: “Eu tive sorte com o
meu filho mais novo. Eu sei que quando a gente tem um filho autista a chance do outro
ser autista também é maior, mas ainda bem que meu filho está ótimo!”. Outra mãe
falou explicitamente sobre essa “compensação”, com o filho mais novo, do que não
pôde viver com o filho mais velho. Contou às pesquisadoras que planejou muito ter
um segundo filho e, quando engravidou e descobriu que era um menino, muitas
pessoas chegaram até a defender que ela não deveria ter a criança (pelo risco do
autismo). Muito convicta e desejosa de ter o bebê, todavia, a mãe sustentou a gravidez
até o final e relatou, na ocasião das avaliações, que desde que o mais novo nasceu
ela tem investido muito no desenvolvimento dele. Completou, dizendo que na escola
as professoras dizem que o menino está “acima da média”.
Essas ilustrações evidenciam o impacto do autismo do filho mais velho sobre a
relação que se estabelece com a criança mais nova e o quanto a experiência com a

595
criança mais velha muitas vezes é determinante da forma de se conceber um
referencial para o desenvolvimento infantil. Embora na experiência das pesquisadoras
esse impacto seja quase onipresente, ele não se apresentou da mesma forma em
todas as díades avaliadas.
Se, por um lado, é muito comum que as mães direcionem à criança mais nova
expectativas subestimadas sobre o desenvolvimento, já que muitos atrasos estão
presentes nas condições de Transtorno do Espectro do Autismo e é esse o referencial
que os pais conhecem, por outros algumas vezes ocorre justamente o contrário. Em
uma das famílias avaliadas, por exemplo, os pais relataram achar que a filha mais
nova estava atrasada, em muitos aspectos, em comparação ao filho mais velho com
autismo. Preocupada, a mãe disse às pesquisadoras: “Ele (filho mais velho com
autismo) aprendeu os números muito mais cedo do que ela, sentimos que ela está
atrasada”. A avaliação foi oportunidade para esclarecer, junto à mãe, de que a menina
na verdade não estava atrasada, e que a facilidade com que o menino mais velho
fazia uso dos números desde muito cedo, muitas vezes de forma descontextualizada
e repetitiva, na verdade fazia parte do quadro de Transtorno do Espectro do Autismo.
Ainda, vale notar que a experiência de campo tem evidenciado aquilo que na
literatura é descrito como o ciúme que as crianças mais novas muitas vezes têm do
irmão com autismo, ou do menor envolvimento parental com a criança mais nova
nessas famílias (ARAÚJO, SOUZA-SILVA & D’ANTINO, 2012). Um garotinho de 6
anos, durante a aplicação de um teste de capacidade cognitiva, de repente
interrompeu a pesquisadora para dizer: “Estou gostando muito!! Esse vai ser o meu
tratamento a partir de agora?”. O desejo de que aquele fosse o seu tratamento e de
que ele pudesse voltar a encontrar as pesquisadoras reapareceu ao longo das
avaliações. A mãe disse para as pesquisadoras que o menino é muito desejoso de
“ter um tratamento”, já que desde sempre acompanha o irmão mais velho nas diversas
clínicas, consultórios e dispositivos voltados ao seu cuidado.
Estas impressões qualitativas têm sido de grande auxílio para que seja possível
uma discussão mais aprofundada de alguns resultados quantitativos provenientes dos
participantes do grupo de alto risco para problemas de desenvolvimento, como, por
exemplo, na avaliação das brincadeiras entre as díades e, também, nas avaliações
de indicadores de função reflexiva.
A elaboração estatística dos dados, embora nos aponte um caminho, não
esgotam todas as possibilidades de compreensão do fenômeno. Por mais que o
596
resultado de um questionário de avaliação de sofrimento mental, como o SRQ (Self
Reporting Questionnaire - MARI & WILLIAMS, 1986), possa nos trazer fortes indícios
de que uma pessoa está em sofrimento, ainda assim, para uma análise mais
aprofundada, é necessário considerar os desafios, medos e dificuldades no dia a dia
que estão atrelados às condições particulares que o autismo suscita. Os dados
advindos das avaliações feitas de forma quantitativa são essenciais, principalmente
quando um dos objetivos de um trabalho é complementar ou modificar as políticas
públicas vigentes. No entanto, quando escutamos a demanda vinda dessas famílias,
seja dos pais ou mesmo das próprias crianças, tal qual o menino de 6 anos, ávido por
um “tratamento”, tão espontânea e explicitamente colocou, a necessidade de que
essas famílias sejam recebidas de forma mais completa nos serviços de atenção à
saúde se torna ainda mais urgente.

Referências

ARAÚJO, R. R., SOUZA-SILVA, J. R. & D’ANTINO, M. E. F. Breve discussão sobre o


impacto de se ter um irmão com Transtorno do Espectro do Autismo. Universidade
Presbiteriana Mackenzie CCBS – Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do
Desenvolvimento. Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento,
São Paulo, v.12, n.1, p. 9-15, 2012.

DURAND, J. et al. Case-contrast study about parent-infant interaction in a Brazilian


sample of siblings of children with autism spectrum disorders. Infant Mental Health
Journal, New Jersey, John Wiley & Sons, v. 40, n. 2, p. 289–301, 2019. Disponível em:
< https://doi.org/10.1002/imhj.21772 > DOI: 10.1002/imhj.21772

FONAGY, P. Apegos patológicos y acción terapéutica. Revista de Psicoanalisis.


Aperturas Psicoanalíticas. 2000. Acessado em 29/10/2019. Disponível em
http://www.aperturas.org/4fonagy.html

KLIN, A. Autismo e síndrome de Asperger: uma visão geral. Revista Brasileira de


Psiquiatria. Maio de 2006.

LAMPREIA, C. A perspectiva desenvolvimentista para a intervenção precoce no


autismo. Estudos de Psicologia. Campinas: janeiro de 2007.

597
MARI, JJ & WILLIAMS, P. (1986). A validity study of a psychiatric screening
questionnaire (SRQ-20) in primary care in the city of São Paulo. Br J Psychiatry 1986;
148:23-6.

Agradecimento:

"agradecemos ao apoio financeiro recebido para a execução dessa pesquisa


no convênio CAPES/FAPESP (processo n° 2018/03306-7, Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo)".

Sobre os autores:

Rogério Lerner

Psicólogo. Livre Docente em Psicologia. Professor Associado do Instituto de


Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Coordena grupos de pesquisa
do CNPq intitulados "Transtornos do espectro de autismo: detecção de sinais iniciais
e intervenção" e "Formação de Profissionais para atuação Inter setorial na promoção
do desenvolvimento infantil, detecção de sinais iniciais de problemas e intervenção
oportuna". Bolsista Produtividade CNPq nível 2. (E-mail: rogerlerner@usp.br).

Milena Degasperi.

Psicóloga. Doutoranda de Pós-Graduação do Departamento de Psicologia do


Desenvolvimento e da Aprendizagem do Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo (IP-USP). (E-mail: milenadegasperi@gmail.com).

Anna Victória Mekhitarian.

Psicóloga. Doutoranda de Pós-Graduação do Departamento de Psicologia do


Desenvolvimento e da Aprendizagem do Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo (IP-USP). (E-mail: annamekhi@gmail.com).

598
54- “VOCÊ DEIXA DE SER UMA PESSOA COM DIREITOS A PARTIR DO
MOMENTO EM QUE FALA QUE É HOMOSSEXUAL”: VIOLÊNCIA CONTRA
MULHERES LÉSBICAS

Carolina de Souza21
Manoel Antônio dos Santos22
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – FFCLRP-USP
Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS – FFCLRP-USP)

1. Introdução
Há evidências de que profundas disparidades de saúde ocorrem entre indivíduos
homossexuais quando comparados aos heterossexuais. Os estudos mostraram que
o assédio e a discriminação baseada na orientação sexual estão associados a maior
vulnerabilidade aos distúrbios psicológicos (Gregory Herek, Joseph Gillis, Jeanine
Cogan, & Eric Glunt, 1997; Ilan Meyer, 1995; Robin Lewis et al., 2015). Estudo
realizado na Austrália, observou que mulheres lésbicas e bissexuais eram
significativamente mais propensas a usar os serviços de saúde do que as
heterossexuais, porém, a satisfação das primeiras com esses serviços e a
continuidade dos cuidados eram significativamente menores (Tonda Hughes, Laura
Szalacha, & Ruth McNair, 2010).
As Unidades de Saúde da Família são vistas como um lugar “de mulheres” e
“para mulheres”, que é o maior público recebido ali. Geralmente, as ações do serviço
estão relacionadas com os aspectos reprodutivos e a porta de entrada é por conta da
maternidade. É comum que a mulher chegue ao serviço pelo fato de algum dos
agentes de saúde ter identificado a gravidez dela em uma de suas visitas e a partir

21
Psicóloga. Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Bolsista de Mestrado da FAPESP, processo número
2016/26212-2. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq) e do Grupo de Ação e
Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero - VIDEVERSO (FFCLRP-USP). Psicóloga voluntária do REMA - EERP-USP. E-mail:
carol.souza_@hotmail.com

22
Professor Titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Psicólogo, Mestre e
Doutor pelo IP-USP. Livre-docente pela FFCLRP-USP. Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (FFCLRP-USP-CNPq)
e do Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero – VIDEVERSO (FFCLRP-USP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq nível 1B. Coordenador da equipe de Psicologia do REMA - EERP-USP. Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP. E-mail:
manoelmasantos@gmail.com

599
daí essa mulher é captada para as outras ações. Percebe-se que o modelo de mulher
esperada nas Unidades de Saúde da Família é o seguinte: adulta, mãe e
heterossexual. Qualquer mulher que fuja desse padrão é invisibilizada ou passa por
serviços que não são adequados para suas demandas particulares (Ana Mello, 2014;
Kátia Souto, 2008).
Na maioria das vezes, as mulheres lésbicas passam despercebidas nos
serviços de saúde e a identificação de sua orientação sexual não ocorre de forma
direta, nas consultas com as mulheres, e sim pela identificação dos outros de
características tidas como do gênero masculino, como, “cabelo curto, jeito masculino
de andar, tipo de roupa” (p. 21). As mulheres que nem passam por essa identificação
estereotipada não são percebidas como lésbicas, ficando ainda mais invisibilizadas e
tendo suas demandas particulares não atendidas. Isso valida ideias de que mulheres
homossexuais não correm riscos de transmitir DST/AIDS e, por isso, não é necessário
realizar orientações específicas sobre prevenção (Ana Mello, 2014; Grayce
Albuquerque, Cíntia Garcia, Maria Alves, Cicera Queiroz, & Fernando Adami, 2013;
Michelle Cardoso & Luís Ferro, 2012; Regina Barbosa & Regina Facchini, 2009)23.
Os profissionais não sabem que abordagem utilizar quando identificam uma
mulher homo ou bissexual e acabam seguindo o protocolo de atendimento feito para
mulheres heterossexuais. Eles não sabem o que fazer, pois não tiveram em sua
formação a oportunidade de discutir sobre homossexualidade e sua interface com a
saúde. Assim, a produção de materiais informativos e de formação para os
profissionais de saúde precisa considerar a diversidade dos discursos. A abordagem
utilizada com um profissional que possui atitude de aceitação provavelmente terá que

23 Neste trabalho, ao formatar as referências, optei por incluir todos os prenomes ao lado dos respectivos

sobrenomes das(os) autoras(es), em vez de limitar-me à tradicional nomeação apenas dos sobrenomes. Essa
opção se justifica. O motivo para adotá-la é manter um estilo de redação científica consistente com o referencial
teórico que sustenta esta pesquisa, que se apoia nos estudos feministas. Uma das reivindicações das teóricas
feministas e do movimento feminista como um todo diz respeito à necessidade de dar ampla visibilidade à produção
intelectual e científica feita por mulheres. Desse modo, é recomendado explicitamente que se ofereça os primeiros
nomes de autoras e autores dos estudos referenciados, o que garante a imediata visibilidade das mulheres, que
de outro modo ficariam “invisíveis” quando as publicações aparecem referidas apenas pelos sobrenomes. Ao
adotar essa recomendação no processo de formalização e escrita deste projeto, estou consciente de que isso
implica transgredir uma das normas do estilo de redação científica definido pela American Psychological
Association - APA 7th edition. Acredito, contudo, que a relação custo-benefício pende favoravelmente com a
decisão que tomei após muita reflexão, tendo em vista o ganho substancial que isso traz em termos de coerência
não apenas com o referencial teórico, mas também com o tema investigado, lembrando que uma das metas desta
pesquisa é dar visibilidade às mulheres lésbicas no campo da saúde, considerando que são minorias nos serviços,
nos quais passam despercebidas como usuárias sexuadas e generificadas, assim como são minoritárias na
população geral.

600
ser diferente daquela utilizada com um profissional que possui um discurso de rejeição
ou um discurso mais rígido sobre a questão da homossexualidade. Além disso, os
profissionais também precisam ser cuidadosos ao lidar com as categorias de
classificação presentes nas mulheres de minorias sexuais, já que o significado das
palavras lésbica ou bissexual, por exemplo, pode não ser o mesmo para a dupla que
está na consulta (Ana Mello, 2014; Grayce Albuquerque et al., 2013; Michelle Cardoso
& Luís Ferro, 2012; Regina Barbosa & Regina Facchini, 2009).
Mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais que participaram de uma pesquisa
sobre as experiências de acesso aos serviços de assistência em HIV-aids
descreveram múltiplas barreiras ao cuidado e apoio em HIV, incluindo o estigma
generalizado, os pressupostos heteronormativos presentes nos serviços de mulheres
HIV-positivas e o tratamento discriminatório e desqualificado por parte dos
profissionais de saúde. Intervenções que abordem as formas de marginalização que
se intercruzam (estigma sexual, homo/transfobia e estigmas relacionados ao HIV) em
normas comunitárias e sociais e na programação e pesquisa em HIV-aids são
necessárias para promover a equidade em saúde entre mulheres LGBTI (Carmen
Logie, Lana James, Wangari Tharao, & Mona Loutfy, 2012).
Observa-se a urgência em refletir sobre a organização dos serviços de saúde
e sobre a formação dos profissionais a fim de se garantir uma escuta qualificada, um
respeito maior e um acolhimento adequado a todas as usuárias do sistema público de
saúde, de forma que a universalidade do acesso e a integralidade do atendimento
também sejam possíveis. É importante que haja um ambiente de apoio e acolhimento
em que estas mulheres se sintam seguras o suficiente para revelarem, caso queiram,
sua orientação sexual. Os clínicos que são capazes de fornecer tal ambiente podem
auxiliar lésbicas e bissexuais a desenvolverem suas habilidades de enfrentamento
(Ana Mello, 2014; Deborah Aaron & Tonda Hughes, 2007; Grayce Albuquerque et al.,
2016; Tonda Hughes, Timothy Johnson, Sharon Wilsnack, & Laura Szalacha, 2007).
Por outro lado, percebem-se também avanços em programas e políticas
públicas para atender as populações marginalizadas, como o programa Brasil sem
Homofobia, a Carta de Direitos dos Usuários da Saúde, a Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Mulher e a Política Nacional de Saúde Integral de LGBTI. O
obstáculo é que a efetivação destas políticas ainda é vista como algo desafiador. O
Estado, portanto, deve garantir o acesso aos direitos à liberdade de expressão, de
associação e de reunião pacífica a todos os cidadãos, independentemente do sexo,
601
orientação sexual ou identidade de gênero, e deve assegurar que quaisquer restrições
a esses direitos não sejam motivadas por discriminação. A fim de proteger o exercício
desses direitos, deve-se prevenir ou efetivamente investigar e punir os atos de
violência e intimidação. Ainda, o direito de acesso a instalações, bens e serviços de
saúde de maneira não discriminatória, especialmente para populações vulneráveis ou
marginalizadas é uma obrigação imediata e deve ser garantido pelos governos
(Grayce Albuquerque et al., 2013; 2016; United Nations Human Rights, 2012).

2. Justificativa e Objetivo
Ruth McNair e Rachel Bush (2016) pontuam, em particular, que os serviços de
saúde precisam ser sensíveis à população LGBTI. Em primeiro lugar, apenas algumas
participantes relataram ter recorrido a serviços específicos LGBTI, buscando, ao invés
disso, os serviços tradicionais; em segundo lugar, elas identificaram a necessidade de
os serviços convencionais serem mais LGBTI inclusivos. E, finalmente, mais de 2/3
das participantes identificaram a possibilidade de acesso a tais serviços como um fator
facilitador da procura por ajuda. No entanto, há evidências de que poucos serviços de
saúde realmente oferecem espaços orientados por tais cuidados. Além disso, para
que a ajuda profissional seja efetiva, ainda falta a necessária compreensão
abrangente da sexualidade e dos efeitos deletérios da discriminação baseada no
gênero e/ou na orientação sexual. Além disso, o apoio social pode deixar de abarcar
a amplitude inerente à diversidade das mulheres homossexuais que precisam de
ajuda, considerando que pode haver também certa heterogeneidade em meio à
aparente homogeneidade desse grupo. Por outro lado, considerando que as
experiências de receber suporte social afetam amplamente suas vidas, contribuindo
para suprir suas necessidades de saúde mental, disponibilizar cuidados sensíveis à
população LGBTI torna-se uma necessidade crítica na atual agenda de saúde (Ruth
McNair & Rachel Bush, 2016). Considerando o exposto, este trabalho tem por objetivo
compreender os sentidos atribuídos por um casal de mulheres lésbicas à
discriminação sofrida em serviços de saúde.

3. Método
 Tipo de estudo: qualitativo, descritivo-exploratório e transversal.
 Participantes: Uma mulher com câncer de mama (Débora) e sua parceira
(Helena), ambas maiores de 18 anos;
602
 Procedimentos:
o Investigação: formulário de dados sociodemográficos; Critério de
Classificação Econômica – Critério Brasil (CCEB) (ABEP, 2016); roteiro
de entrevista semiestruturado;
o Constituição do corpus de pesquisa: entrevistas realizadas no local de
preferência das participantes; face-a-face, audiogravadas e transcritas.
o Procedimentos utilizados para análise do corpus: análise de conteúdo
temática indutiva (Virginia Braun & Victoria Clark, 2006) e análise de
gênero, aplicada ao cenário da saúde e do adoecer por câncer (Antonia
Xavier, Márcia Ataide, Francisco Pereira, & Velma Nascimento, 2010;
Mara Lago & Rita Muller, 2010).
 Considerações éticas: projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
FFCLRP-USP (CAAE nº 65391517.4.0000.5407) e participação voluntária e
formalizada pela assinatura do TCLE.

4. Resultados e Discussão
Débora disse que teve mais de uma experiência de discriminação com os
médicos que encontrou ao longo do tratamento do câncer:

Por exemplo, de um profissional que, ao invés de falar, “olha, Débora, você


está com uma pneumonia, vou te receitar um antibiótico” - seria a medida que
ele tem que tomar. Não: ao invés disso, ele ficou falando, comentando, “nossa,
mas você é uma mulher bonita”, que não sei o que- sendo que a minha esposa
estava do meu lado. Então… foi muito constrangedor, foi horrível, uma situação
terrível também. [...] Meio que me assustou totalmente, porque ele queria me
internar; eu falei, “que que esse médico é capaz de fazer me internando?”,
sabe? Eu só conseguia pensar que tipo de medicação ele vai me administrar,
que que ele vai fazer; então eu fiquei- nossa, tentei fugir ao máximo [...]. Se eu
estivesse sozinha, não sei; talvez eu teria passado por um outro tipo de
constrangimento, mas se eu estivesse com meu marido ele não o faria. Isso eu
tenho certeza, porque… eu já fui em lugares com meu irmão, por exemplo, e
já fui respeitada, entendeu? Como se achasse que ele fosse, sei lá, um
namorado, alguma coisa. E aí ela, no momento, ele não respeitou de forma
alguma, né. Então acredito que se fosse um marido meu, eu teria tido outro
tratamento, com certeza. Isso eu não tenho dúvida. Então- (Débora, 37 anos,
namorada da Helena).

De você poder falar abertamente, de- que nem eu falei, tinha um profissional
que, quando ele perguntou sobre relação sexual, falei que tinha uma parceira,
ele riu e falou, “eu não consigo entender isso”. Só que eu acho que isso não
cabe ao profissional. Ele querer entender ou não. Cabe a mim, né, e eu só
quero que ele me escute, né, e que ele- se ele não for pra falar nada que vá

603
me agregar, que ele não fale nada, simplesmente me examine, faça o que tem
que ser feito, nada além, né (Débora, 37 anos, namorada da Helena).

É visto que as representações de gênero nos serviços de saúde e a orientação


sexual das usuárias possuem implicações para a rotina e para a organização destes
serviços, incluindo a invisibilização que as mulheres homossexuais sofrem nesse
campo, além de efeitos nas relações entre profissionais, que influenciados por
modelos culturais podem excluir aquilo que é diferente pela sua não-consideração, e
usuárias no contexto da assistência. Estes profissionais são vistos como uma barreira
no acesso aos serviços de saúde (Breno Ferreira, José Pedrosa, & Elaine
Nascimento, 2018; Maria Heilborn, 1997; Rita Valadão & Romeu Gomes, 2011;
Rosana Machin et al., 2011). Percebe-se que a postura do primeiro médico que
Débora mencionou (falar sobre a aparência dela ao invés do tratamento) foi algo que
a assustou, possivelmente prejudicando seu tratamento e a continuidade dele caso
ela precisasse ser internada ou acompanhada por este médico durante algum tempo.
Além disso, pode-se observar no primeiro trecho como a distribuição do poder
é diferente entre homens e mulheres, pois as relações sociais de sexo são marcadas
pela dominação masculina. O médico homem, com seus privilégios associados à
dominação e à suposta hierarquia, dirigiu uma fala ofensiva para sua paciente mulher
sem considerar o efeito prejudicial que isso poderia ter nela. Observa-se a
heterossexualidade como forma de opressão, pois a paciente ficou com medo de
seguir o tratamento com este profissional. Débora também relatou que se ela
estivesse acompanhada por um homem, seja ele irmão, namorado ou marido, ao
invés de sua namorada, ela teria sido respeitada, pois a heterossexualidade, tida
como o padrão, seria mantida (Joan Scott, 1989; Linda Nicholson, 2000; Pascale
Molinier & Daniel Welzer-Lang, 2009).
No segundo trecho, a participante falou de um profissional que disse que não
conseguia entender o fato de Débora ter uma parceira, frase que mostra a
impossibilidade de certas pessoas em entederem que uma mulher pode satisfazer a
outra, pois na sociedade a visão predominante é a de que a mulher é o objeto que vai
satisfazer o homem ou o homem é o sujeito capaz de satisfazer a mulher. Qualquer
pensamento diferente não parece legítimo (Lívia Toledo, 2008).
Helena também sentiu que ela e Débora não são tratadas como casal durante
as consultas médicas, algo que pode se configurar como uma discriminação também:

604
É como se não existisse casal [durante as consultas]. É... tanto que assim ela
[médica] mal me cumprimenta quando eu entro na sala. Ela fala só com a
Débora, se direciona só com ela. Se eu falo alguma coisa, ela olha meio com
olho assim e se volta para a Débora, como se ela estivesse sozinha ali. [...] Eu
sou cara de pau. Então, o que eu tenho que falar, eu falo mesmo e não tô nem
aí. Mas às vezes dá vontade de falar “minha filha, eu tô aqui, você tem que
falar comigo também, porque eu quero saber o que tá acontecendo” (Helena,
22 anos, namorada de Débora).

O cuidado à saúde das mulheres ainda permanece focado na lógica biologicista


(centrada na reprodução e não no prazer) e, com isso, questões sobre à orientação
sexual não têm sido incorporadas na rotina das consultas ginecológicas. É
considerado vergonhoso, sujo, proibido que a sexualidade feminina “reduza-se” à
genitalidade. Pode-se dizer que as mulheres são ensinadas, desse que nascem, a
serem mães, a cuidar dos demais, a “dar prazer ao outro”. Assim, a sexualidade das
mulheres é negada, reprimida e temida. Essas lacunas invisibilizam as lesbianidades
e suas práticas sexuais (Breno Ferreira et al., 2018; Francisco Cabral & Margarita
Diaz, 1999). Ainda, para escutar as mulheres lésbicas, os profissionais de saúde
precisam “sair do armário”, sair de sua zona de conforto. É importante que os médicos
e as médicas tenham coragem de ouvir o que as mulheres lésbicas e bissexuais têm
para dizer, compreendendo que dificuldades sempre existirão, pois existem certas
questões que não possuem resposta e não são fáceis de entender (Gilberta Soares,
2014). De fato, pelas falas de Helena, parece que a profissional nega que as duas
mulheres que estão em seu consultório possam ter uma sexualidade própria, com foco
em seu próprio prazer e não no dos outros, e não pensando em reprodução.

5. Conclusões
Os achados deste estudo também permitem olhar em direção às questões de
saúde das mulheres lésbicas, que são em parte compartilhadas pelos demais
segmentos LGBTI, que têm suas vulnerabilidades ampliadas pela necessidade de
defenderem suas identidades e sexualidades dissidentes quando estão em contato
com os serviços de saúde. Combater as inequidades vivenciadas pelas mulheres
lésbicas no setor saúde consiste em um desafio para a efetiva implementação dos
direitos à saúde, com respeito à cidadania e à dignidade.

605
6. Referências

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609
55- A VIOLÊNCIA DE GÊNERO TRANSFÓBICA COMO PRODUTO DA
INSUBORDINAÇÃO À HETERONORMATIVIDADE

Vinicius Alexandre
Manoel Antônio dos Santos
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP
Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero - VIDEVERSO
Apoio: CAPES (processo número 134357/2018-3)

Resumo: Existe uma flagrante tentativa de contenção e eliminação das pessoas trans
pelo meio cada vez mais hostil à expressão das diferenças. A cultura heterossexual,
ao normatizar as expressões de gênero por meio da Heteronormatividade, produz
identidades consideradas abjetas, ou identidades insubordinadas. A insubordinação
produz violência contra estas identidades, incluindo as identidades trans. A violência,
entre outras razões, atua como um mecanismo para garantir a manutenção das
identidades heteronormativas, as quais são sustentadas por um contexto institucional
conservador e preconceituoso.

Palavras-chave: transexualidade, Heteronormatividade, abjeção.

1. TEMA

A violência de gênero praticada contra pessoas trans pode ser interpretada como
um produto da insubordinação de identidades heteronormativas à cultura
heterossexual e à Heteronormatividade.

2. INTRODUÇÃO

Em se tratando da população trans, ou seja, de indivíduos cuja identidade de


gênero é compreendida por eles mesmos como sendo diferente daquela que lhes foi
atribuída socialmente (sendo esta em conformidade com o sexo biológico), não é

610
estranho constatar que existe uma flagrante tentativa de contenção e eliminação das
pessoas trans pelo meio cada vez mais hostil à expressão das diferenças. A existência
trans é vista como uma ameaça a partir do momento que o indivíduo emerge como
prova viva de que o gênero não é limitado ao binarismo supostamente natural que é
disseminado pela cultura heterossexual. A naturalização deste binarismo torna o
conceito de gênero algo banal e irrefletido pelas massas.
Como já foi amplamente demonstrado ao longo da história, a irreflexão revela-
se como um potencial perigo para grande parte das vidas humanas, uma vez que os
atos irrefletidos e não pensados podem resultar em um conjunto de práticas violentas
contra elas, seja essa violência de natureza material, corporal ou simbólica 24. Mas
essa forma de “não pensar” não seria possível se não houvesse um contexto
institucional que a alicerçasse e a validasse. Tão pouco é possível desconsiderar que
este contexto é mediado por mecanismos de poder que estabelecem um padrão
aceitável de ser, agir e existir, alienando as massas neste processo para que este
padrão seja entendido como natural de modo a garantir sua manutenção. Não cabe
aqui pensarmos todos os mecanismos que operam na sociedade, porém, para
compreender a violência perpetrada contra a população trans, precisamos
circunscrever um mecanismo em particular: a heteronormatividade.

3. DESENVOLVIMENTO DO TEMA

A heteronormatividade, termo criado por Michael Warner (1991), é descrita pelo


autor como um fenômeno que surge a partir do privilégio desfrutado pela cultura

24
“A noção de coerção, ou de força, supõe um dano que se produz em outro indivíduo ou grupo
social, seja pertencente a uma classe ou categoria social, a um gênero ou a uma etnia. Envolve uma
polivalente gama de dimensões, materiais, corporais e simbólicas, agindo de modo específico na
coerção com dano que se efetiva [...] A afirmação de um dano supõe o reconhecimento das normas
sociais vigentes, pertinentes a cada sociedade, em um período histórico determinado, normas que
balizarão os padrões de legitimidade: a violência define-se então como um fenômeno cultural e
histórico. Revela-se como um procedimento de caráter racional, o qual envolve, em sua própria
racionalidade, o arbítrio, na medida em que o desencadear da violência produz efeitos incontroláveis
e imprevisíveis” (Santos, 2002, p.23).

611
heterossexual em interpretar a si própria como exemplar na sociedade. Essa cultura
pensa a si mesma como uma forma elementar nas relações humanas e entre os
gêneros, como uma base inquebrantável da sociedade e como aquela que porta os
mecanismos de reprodução sem os quais não haveria continuidade da vida.
Wittig (1992) observa que a pretensão excludente dessa cultura é
historicamente observada em Aristóteles, no momento em que ele define que a
Política está atrelada a união entre um homem e uma mulher, conquanto é possível
observar que, no mundo ocidental, o casal passou a representar o princípio da própria
união social. Dessa maneira, quaisquer formas de união e de relacionamentos que
escapem da lógica estabelecida pelas relações heterossexuais são imediatamente
rechaçadas, reprimidas e proscritas.
A Heteronormatividade é dotada de ousadia: ela intenta normatizar a maneira
como os desejos corporais e as sexualidades são vivenciados pelos indivíduos,
apregoando a máxima de que o desejo pelo sexo oposto é única realidade possível e
pensável (Petry & Meyer, 2011). Falamos aqui de um tipo de poder invisível e que
aglutina não só as experiências humanas que envolvem o desejo sexual, mas também
as identidades de gênero e suas expressões.
O sujeito heteronormativo não é apenas heterossexual, mas ele também está
sustentado no binarismo de gênero, binarismo este que estabelece, por uma relação
de oposição, que apenas as categorias “homem” e “mulher” são praticáveis (Butler,
2015). Um tipo de homem e mulher representados por todos os estereótipos sociais
pensáveis: um homem viril, esportista, agressivo e racional e uma mulher frágil,
emotiva, delicada e recatada, por exemplo. A estereotipia atua na construção de
identidades e corpos chamados cisgêneros (indivíduos cuja identidade de gênero
corresponde ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento).
A cisgeneridade atende à necessidade da Heteronormatividade em construir a
ilusão de uma “coerência” mimética entre o sexo, o gênero e a sexualidade. O objetivo
final é que os indivíduos acreditem que seus corpos biológicos ditam seus gêneros e
seus desejos sexuais. A compulsoriedade que instaura essa ilusão nas relações
interpessoais e na maneira como os indivíduos fundam suas identidades é a atitude
violenta que dará base a violência direcionada contra as identidades que escapam da
norma heteronormativa que sustenta a cultura heterossexual.
A cultura heterossexual, constituída aqui como sendo o baluarte geral ao qual
o juízo individual é subsumido, pretende se apresentar como originária e basal dentro
612
da história da humanidade. Esse mecanismo, no qual a noção de historicidade é
perdida ou sistematicamente elidida, tem por finalidade naturalizar a norma
heteronormativa no interior da sociedade. E ela o faz de maneira sorrateira, uma vez
que o pensamento heteronormativo raramente é caricatural; ao invés disso, ele se
veste de boa vontade e inteligência (Warner, 1991). Essa naturalização oferece um
conjunto de ideias, comportamentos e hábitos cristalizados dentro de uma pretensa
“ordem social” (Kristeva, 1982), na qual os indivíduos podem encontrar um repertório
“seguro” para “não pensar” sobre questões que emergem no plano individual. É um
caminho livre de problemas, no qual o se adequar-se é uma estratégia vista como
parte do plano natural do desenvolvimento humano e, de maneira não percebida
devido à ausência de reflexão, uma estratégia de sobrevivência ao meio.
Sobreviver ao meio, naturalmente, não envolve apenas adequar-se, mas
também atacar possíveis ameaças. E o que ameaça o sujeito cisgênero –
heterossexual? Precisamente todas as identidades e expressões incontidas pela
Heteronormatividade, ou então, as identidades insubordinadas a ela. Invariavelmente,
a ilusão de uma identidade heteronormativa fracassa diante das demandas da
realidade, de forma que inúmeras identidades vão escapar e se contrapor ao poder
da cultura heterossexual. Diante do fracasso iminente, as identidades pretensamente
heteronormativas atacam as identidades insubordinadas, também lidas como
identidades abjetas25, no intento de eliminá-las. A eliminação é tida como uma forma
de resguardar a própria existência da identidade heteronormativa: na presença do
diferente e do estranho, a identidade heteronormativa naturalizada é questionada em
sua própria integridade. O questionamento levanta dúvidas sobre a identidade e incita
um movimento onde o sujeito é obrigado a repensar as certezas sobre si mesmo, um
processo doloroso e que gera medo. O medo por sua vez gera a violência: é preciso
destruir as identidades que geram as incertezas sobre si mesmo, a fim de impedir que
estas “contaminem” a identidade “pura” e alinhada com a cultura e a normalidade.
Se é o medo que alimenta a violência contra o abjeto, podemos extrapolar que
o medo é a peça central contra as identidades trans. Esse medo, não por acaso, é

25
Por identidades abjetas, compreende-se aquelas identidades portadas por indivíduos que sofrem
do processo de abjeção, sendo que a abjeção “[...] relaciona-se a todos os tipos de corpos cujas
vidas não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante” (Butler,
2015, p. 32).

613
parte semântica da palavra “Transfobia”26, onde “fobia” (Fobia, 2018) significa
exatamente “medo”, de forma que o prefixo “trans” (Trans, 2018) se refere às
identidades que subvertem toda a base da cultura heteronormativa
A violência contra pessoas trans que emerge do medo do abjeto é antes de
mais nada, uma violência de gênero. Embora este termo geralmente seja usado para
caracterizar a violência perpetrada por homens cisgênero contra mulheres cisgênero,
a violência de gênero descreve qualquer tipo de violência enraizada em desigualdades
de poder baseadas em gênero e discriminação com premissa no gênero (2008). O
indivíduo trans ocupa um espaço desprivilegiado notável na cultura: se,
historicamente, as mulheres cisgênero tem ocupado lugares de pouco prestígio em
detrimento da soberania do homem cisgênero, a população trans não tem ocupado
lugar algum: não há espaço para um gênero que subverte a lógica sexo-gênero. Não
há qualquer proteção solidária de outras identidades oprimidas, uma vez que elas
ainda podem contar com algum tipo de “proteção” da cultura heterossexual por se
distanciarem menos da mesma. As identidades trans, por outro lado, são
diametralmente opostas a identidade heteronormativa, uma vez que elas “violam” a
base da norma: o corpo.
De fato, o discurso discriminatório não atinge apenas a construção subjetiva da
identidade de sujeitos abjetos, mas também seus corpos. Afinal de contas, o corpo é
um portador de discursos (Butler,1999). Quando alguém fala, se move, gesticula, se
comporta, pensa, se apresenta, entre outros atos comuns aos seres humanos, este
alguém não o faz a esmo: ele na verdade está materializando os discursos
incorporados por ele por meio do corpo. Desta forma, se o discurso promove abjeção,
logo os corpos tornam-se abjetos por extensão. E ser abjeto é sinônimo de ser
descartável.

26
“Transfobia” se refere a inúmeras circunstâncias que materializam a discriminação contra a população trans.
No que se refere ao seu cotidiano, as pessoas transgênero são alvos de preconceito, desatendimento de direitos
fundamentais (diferentes organizações não lhes permitem utilizar seus nomes sociais e elas não conseguem
adequar seus registros civis na Justiça), exclusão estrutural (acesso dificultado ou impedido à educação, ao
mercado de trabalho qualificado e até mesmo ao uso de banheiros) e de violências variadas, de ameaças a
agressões e homicídios, o que configura a extensa série de percepções estereotipadas negativas e de atos
discriminatórios (Jesus, 2014).

614
Como corpos podem ser descartados se dentro deles existe vida? Descartá-los
não seria então um genocídio? E se é o meio que reproduz a abjeção e, por
consequência, esse descarte, então os indivíduos não deveriam se sentir cúmplices
desse crime? Não se o crime não é sentido como crime. Não se o que é crime é
vendido pelo meio como uma necessária “manutenção da ordem”. Descarta-se os
corpos sem que o descarte fique aparente, havendo formas de fazê-lo, não só no nível
físico (assassinato) mas também no simbólico, através de uma série de condutas do
Estado que os fazem sentir como não pertencentes ao meio, destituindo-lhes o direito
de ser chamados de “cidadãos”.
Para exemplificar o que é dito, Jesus (2014) argumenta que existe uma
escassez alarmante de dados globais captados por órgãos governamentais oficiais
acerca da violência sofrida pela população trans. Na verdade, a coleta de dados sobre
violências contra pessoas trans mais apurada que existe no mundo é da TransGender
Europe (TGEU), uma organização não governamental. No Brasil a situação se repete,
sendo que aqui inexiste um sistema de informações oficial que contabilize as mortes
de pessoas trans, uma falta que tenta ser suprida por iniciativas isoladas de ONGs
como o Grupo Gay da Bahia (GGB). O que se estima, porém, é que o Brasil foi
responsável, isoladamente, por 39,8% dos assassinatos de pessoas trans registrados
no mundo entre 2008 e 2011, sendo o país que mais mata essa população (TGEU,
2012).
Segundo a mesma TGEU (2012), a maior parte dos crimes praticados contra
mulheres e homens trans e travestis (16,42%), ocorrem no espaço público das ruas,
sendo que grande parte destas vítimas atuava como profissionais do sexo (27,82%).
Os dados ainda revelam que a maior parte desses crimes foram planejados, uma vez
que 39,99 % das travestis foram assassinadas a tiros. E como se isso não bastasse
para demonstrar o plano do Estado em punir e eliminar identidades abjetas, somos
obrigados a nos deparar com o número de 5,15 % de pessoas trans e travestis
assassinadas pelo método arcaico do apedrejamento.
Para além do descarte físico, o contexto institucional encarrega-se de descartar
os corpos abjetos ao limitar e controlar seus fluxos e os espaços que eles ocupam, o
que é visível de inúmeras formas, sendo algumas delas: abusos policiais cometidos
contra pessoas trans e travestis que atuam como profissionais do sexo;
constrangimento sistemático na proibição de acesso a locais públicos como
restaurantes, banheiros e praças; insuficiência de leis que garantam os direitos civis
615
da população LGBT; exclusão do sistema de ensino por meio da evasão ocasionada
pelo bullying; exclusão do mercado de trabalho, entre outras.
A partir do momento em que somos submetidos reiteradamente a um discurso
ostensivamente misógino, homofóbico e transfóbico, reproduzindo e brandindo
preconceitos de todo tipo em uma espécie de desagravo à “deturpação” dos valores
tradicionais, é possível constatarmos o compromisso das instâncias de poder em
garantir a abjeção das identidades insubordinadas em função das identidades
normatizadas pela cultura heterossexual. A exaltação de uma suposta “família
tradicional” é utilizada como valor e álibi para justificar a reinstalação do reino da
barbárie. A partir do momento em que o atual presidente da república se mostra
complacente com atos de violência física e psicológica contra indivíduos que ele julga
“pervertidos” ou “baderneiros”, nosso espaço institucional torna-se fértil para propagar
tais atos sob o argumento de que estes são justos para manter a pretensa “ordem
social” livre da influência de identidades que contaminem o “cidadão de bem”. Este
último, por sua vez, sente-se livre para defender-se e empregar a violência como
mecanismo para garantir a manutenção de sua identidade heteronormativa.
Também é notório que o atual governo investe em uma agenda que garante a
gestão da banalidade da violência de gênero ao se posicionar conta o estudo de
gênero e sexualidade nas escolas públicas, sob o argumento de que esses
estabelecimentos devem se limitar a ensinar conteúdos didáticos estanques e de que
o método de ensino deve se pautar na memorização de tais conteúdos. Dessa
maneira, o espaço para o pensamento e para a reflexão crítica é tolhido para que a
“ordem” não seja questionada. Com isso, espera-se a criação de uma geração de
indivíduos que se limitem a julgar de irrefletida aquilo que lhes é fornecido pela cultura,
docilizando seus corpos e limitando suas experiências identitárias de gênero.

4. CONCLUSÃO

Em meio ao horizonte de devastação ética a que temos sido submetidos


cotidianamente, insiste e resiste a esperança. Devemos usar de todos os recursos
possíveis para assegurar a liberdade do pensar do indivíduo. Como, em se tratando
de um macrocosmo dominado por um Estado essa tarefa é muito complicada, dentro
de pequenos microcosmos essa situação é mais administrável. Por parte dos
educadores, é possível desenvolver, por meio de iniciativas individuais, espaços de
616
crítica e reflexão para que seus alunos possam exercer com liberdade o seu pensar e
com isso, permitir que esses disseminem essa forma de entender e refletir sobre o
meio para quaisquer lugares que eles se espalhem.
Da parte do psicólogo, independentemente do contexto em que profissional
atue, servir de instrumento para que o cliente/paciente possa vir a alcançar autonomia
sobre sua vida e reflexão sobre seus pensamentos e sentimentos nos parece um
caminho que pode contribuir para a diminuição dos clichês associados as ideias de
gênero e sexualidade. E no que tange ao preconceito, de uma maneira geral, é
possível que ele contribua para revisar significações que o indivíduo constrói ou por
experiências de vida anteriores ou pela coesão do contexto social em que vive.

5. REFERÊNCIAS

Butler, J. (2015). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (R.


Aguiar, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.

Fobia. Dicionário online Priberam, 25 julho. 2019. Disponível em:


<https://dicionario.priberam.org/prefixos> Acesso em 25 outubro de 2019.

Gender Secretariat, Department for Democracy and Social Development, Sida. (2008).
Action Plan for Sida’s Work Against Gender-Based Violence 2008–2010
Disponível em <http://webapps01.un.org/vawdatabase/uploads/Sweden%20-
%20Attachment%205%20Action%20Plan%20for%20Sidas%20Work%20Against%20
Gender-based%20violence.pdf > Acesso em 25 outubro de 2019.

JESUS, J. G. Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero


como genocídio. História Agora, v. 16, p. 101-123, 2014.

Kristeva, J. (1982). Powers of horror: an essay on abjection. New York: Columbia


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Petry, A. R. & Meyer, D. E. E. (2011). Transexualidade e heteronormatividade:


algumas questões para a pesquisa. Textos & Contextos, 10(1), 193-198.

Santos, J.V.T. (2002). Microfísica da violência: uma questão social mundial. Ciência e
Cultura, 54(1), 22-24.

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trans persons from january 2008 until december 2011 [Online, 2012a]. Disponível em

617
<http://www.transrespect transphobia.org/uploads/downloads/TMM/TvT-TMM-
Tables2008-2011-en.pdf. > Acesso em 25 outubro de 2019.

Trans. Dicionário online Priberam, 25 julho. 2019. Disponível em:


<https://dicionario.priberam.org/prefixos> Acesso em 25 outubro de 2019.

Warner, M. (1991). Fear of a queer planet. Durham: Duke University Press.

Wittig, M. (1992). The straight mind. Boston: Beacon Press.

Dados resumidos dos autores

Vinicius Alexandre. Psicólogo. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). Membro do
Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq).
Psicólogo voluntário do Ambulatório de Estudos da Sexualidade Humana (AESH) da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP). Bolsista de Mestrado da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES (processo número
134357/2018-3) (E-mail: valexandre83@gmail.com).

Manoel Antônio dos Santos. Psicólogo. Livre-docente em Psicoterapia Psicanalítica.


Professor Titular da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da FFCLRP-USP. Coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em
Psicologia da Saúde (LEPPS-FFCLRP-USP/CNPq) e do Grupo de Ação e Pesquisa em
Diversidade Sexual e de Gênero (VIDEVERSO-FFCLRP-USP). Bolsista de Produtividade em
Pesquisa do CNPq, nível 1B (E-mail: masantos@ffclrp.usp.br).

618
TRABALHOS DE
UNIVERSIDADES
PARCEIRAS

619
56- A PERCEPÇÃO DE SUPORTE FAMILIAR EM UNIVERSITÁRIOS LGBTQ+

Nathália Honorato Soares da Silva¹


Jessica Paulino da Silva¹
Fernanda Camilo de Oliveira¹
Tatiane Martins Felipe¹
Erika Hokama²
Agatha Nogueira Previdelli³

Resumo: A família é o primeiro contato social, sendo por meio da percepção e


qualidade deste suporte que serão adquiridos valores, independência,
amadurecimento psíquico, afeto e confiança. Porém, nem todos os fatores das
famílias são funcionais, ainda mais quando se trata de pessoas que fazem parte do
grupo LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e queer), visto que, ainda
hoje, a sociedade trata questões de identidade de gênero e orientação sexual com um
olhar negativo. Diante disso, o objetivo deste estudo foi analisar a percepção de
suporte familiar em universitários heterossexuais e LGBTQ+, verificando as relações
entre as dimensões de suporte familiar (afetividade, autonomia e adaptação entre os
membros familiares) por meio do Inventário de Percepção do Suporte Familiar (IPSF).
Participaram da pesquisa 82 estudantes de uma universidade particular na capital de
São Paulo, que responderam ao questionário sociodemográfico e ao IPSF. Os
resultados indicaram que homens heterossexuais apresentaram maior mediana no
Fator 1 de afetividade, enquanto o grupo LGBTQ+ tem a percepção de um pior suporte
familiar em relação ao Fator 2 de adaptação, no entanto ambos os grupos
apresentaram pontuações semelhantes no Fator 3 de autonomia. A orientação sexual
não foi um fator determinante para a apresentação do fenômeno, mas sofre influências
de pressões, padrões sociais, culturais e religiosos.

Palavras-chave: suporte familiar, IPSF, LGBTQ+, família, heteronormatividade.

INTRODUÇÃO
Pesquisar sobre a família caracteriza-se como importante objeto de estudo. É
cada vez mais necessário investigar a função do grupo familiar no desenvolvimento
de jovens, visto que a transformação ocorre a todo o momento, levando a novos

620
questionamentos e mudanças que trazem para o sujeito e a família uma experiência
vivida muitas vezes sem ser percebida (Passos, 2005).
É por meio das relações e convívio familiar que se favorece a aquisição de
valores, habilidades, amadurecimento psíquico, afeto e confiança entre os membros
da família (Oliveira, Siqueira, Dell’Aglio, & Lopes, 2008). A instituição familiar deve ser
alvo de ação das políticas públicas que buscam a defesa dos direitos humanos civis
e a luta contra todo e qualquer tipo de violência e discriminação (Toledo, & Filho,
2013).
A relação qualitativa entre os componentes familiares pode ser entendida como
suporte familiar para eles, quando há demonstrações de atenção, carinho, diálogo,
liberdade, proximidade afetiva, autonomia e independência. O resultado de um
suporte familiar adequado é a sensação de pertencimento, cuidado, estima e efeitos
emocionais positivos (Williams, & Aiello, 2004).
Os vínculos parentescos já não se restringem a laços sanguíneos, mas também
de afeto. Cada pessoa tem e terá, ao longo de sua existência, várias famílias (a de
seus ancestrais, da sua infância, adolescência, de sua vida adulta e de sua velhice),
assumindo em cada fase características peculiares, mas mantendo a função de
preservar a integridade física e emocional (Montezuma, Freitas, & Monteiro, 2008).
Com isso, sendo a percepção consciência de algo exterior que vem de fora
(Dalgalarrondo, 2008), é imprescindível entender a qualidade e como se dá o
estabelecimento dessas relações, como é experimentada e vivenciada
especificamente pelo grupo LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e
queer), que está inserido em uma rede de convívio de um sistema familiar vulnerável
e constitui uma população de risco, pois está mais suscetível à exclusão social e
violência. No que concerne à diversidade sexual e de gênero a população LGBTQ+ é
de extrema importância. Este grupo representa um movimento social que é referência
para se pensar em temas como diferença, desigualdade, diversidade e identidade na
atualidade (Facchini, 2011). As três primeiras letras da sigla (LGB) se referem à
categoria de orientação sexual, a quarta, letra (T) é referente à identidade de gênero
e a letra (Q) sobre a teoria queer (Reymond, 2018).
Faz-se necessário diferenciar os conceitos “orientação sexual” e “identidade de
gênero”, pois o segundo termo diz respeito à maneira como a pessoa se reconhece
dentro dos padrões de gênero, já a orientação sexual se refere a quais sexos a pessoa

621
se sente atraída, podendo se encaixar em heterossexual, homossexual, bissexual e
assexual (Reis, 2018).
Estes padrões, instituídos culturalmente, incluem feminino e masculino,
existindo assim uma pluralidade de identidades de gênero. Dentre tantas
terminologias encontra-se o termo cisgênero, caracterizado como o “indivíduo que se
identifica, em todos os aspectos, com o gênero atribuído ao nascer” (Reis, 2011), além
de transgêneros, cuja identidade de gênero não se alinha de modo contínuo ao sexo
que foi designado no nascimento (Facchini, 2011).
Tendo em vista que na sociedade atual existe uma inquietação em torno de
práticas sexuais que não correspondem àquelas estabelecidas sócios-culturalmente,
o Conselho Federal de Psicologia estabelece que a Psicologia pode e deve contribuir
com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade,
permitindo a superação de preconceitos e discriminações (Resolução CFP N° 001/99,
1999, 22 de março). A dignidade e o respeito devem ser experimentados por todas as
pessoas, rompendo os preconceitos para que de fato a sociedade atue contra a
violência de gênero (Estachesk, 2016).
Historicamente tudo o que foge da heteronormatividade é visto como algo ruim
e negativo, por aspectos sociais e culturais. Com essas influências e mudanças nas
dinâmicas familiares, este estudo permitirá entender como se estabelecem as
percepções do suporte familiar.

OBJETIVO
O presente estudo busca investigar e analisar a percepção de jovens
universitários LGBTQ+ referente ao suporte familiar recebido, além de compreender
os fatores que influenciam nessas relações.

MÉTODO
Os objetivos serão investigados avaliando as diferenças nas pontuações dos
três fatores do Inventário de Percepção do Suporte Familiar (IPSF) em relação à
orientação sexual (LGBTQ+ versus heterossexuais). Trata-se de uma pesquisa
transversal. Com um recorte temporal do objetivo de estudo, em um curto período
(Fontelles, Simões, Faria, & Fontelles, 2009). Este estudo é classificado como
levantamento, com o objetivo de obter dados significativos da população amostral com

622
o intuito de ter uma resposta objetiva e rápida dentro do tempo de pesquisa
(Mascarenhas, 2012).
A amostra final é composta por 82 estudantes, maiores de 18 anos,
matriculados em qualquer curso de graduação de uma universidade privada na capital
de São Paulo. Após firmarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
responderam a dois instrumentos.
O questionário sociodemográfico desenvolvido pelos autores deste estudo é
composto por 11 itens e tem como finalidade coletar informações sobre o sexo
biológico, orientação sexual, idade, estudo (semestre), trabalho e com quem reside.
O Inventário de Percepção de Suporte Familiar (IPSF), foi elaborado e validado
por Makilim Nunes Baptista (Baptista, Teodoro, Cunha, Santana, & Carneiro, 2009).
Ele mede a percepção do participante em termos de afetividade, autonomia e
adaptação entre os membros familiares em 42 itens, distribuídos nos três fatores:
Afetivo-Consistente, Adaptação Familiar e Autonomia, com pontuação de 0 a 2
(Baptista et. al., 2009). São domínios que têm o objetivo de identificar a expressão de
afetividade, comportamentos familiares, emoções, entre outros. Para obtenção de um
melhor resultado, o domínio de Adaptação Familiar tem pontuação inversa, logo,
quanto maior a pontuação, maior o apoio familiar (Baptista et. al., 2009).
O projeto foi aprovado pelo comitê de ética da universidade (C.A.A.E. número
14883419.3.0000.0089) os participantes foram abordados em um ambiente de livre
circulação em um dos campus da instituição, posteriormente foram direcionados a
uma sala para aplicação dos instrumentos, pois ele é de uso restrito do psicólogo,
comercializado pela Vetor Editora e foi fornecido gratuitamente para execução dessa
pesquisa. A coleta de dados ocorreu entre Agosto e Setembro de 2019.
As respostas foram analisadas seguindo as orientações do manual do
Inventário de Percepção de Suporte Familiar (IPSF). O teste de Skewness-Kurtosis
foi utilizado para verificar a distribuição da pontuação final do IPSF. Devido à
distribuição não ser paramétrica foi utilizado o teste de Kruskal-Walls para se verificar
as diferenças entre o IPSF e seus fatores de acordo com as co-variáveis do estudo.
A análise estatística foi feita no IBM-SPSS (Statistical Package for the Social
Sciences), versão 22.0, sendo considerado um nível de significância de 5%.

623
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Participaram da amostra 82 indivíduos, sendo metade heterossexual e metade
LGBTQ+. Dentro desta amostra apenas 81 pessoas responderam sobre o gênero,
sendo assim 32,10% (n=26) dos participantes eram do gênero feminino e pertenciam
ao grupo LGBTQ+, 35,80% (n=29) eram heterossexuais do gênero feminino e 17,28%
(n=14) eram LGBTQ+ do gênero masculino e apenas 14,81% (n=12) eram
heterossexuais do gênero masculino.
A média de idade dos participantes foi de 21,98 anos (desvio padrão de 4,81
anos), sendo que o participante mais novo tinha 18 anos e o mais velho 49 anos de
idade. Por fim, 100% dos participantes (n=82) estavam cursando a graduação.

Tabela 1
Distribuição da pontuação do IPSF de acordo com a orientação sexual.

IPSF e seus fatores Total Hétero LGBTQ+


p*
n(%) n(%) n(%)
Afetivo-Consciente
Baixo (0-21 pontos) 36(43,9%) 13(36,1%) 23(63,9%) 0,149
Médio-baixo (22-28 pontos) 18(22,9%) 10(55,6%) 8(44,4%)
Médio-alto (29-33 pontos) 16(19,5%) 10(62,5%) 6(37,5%)
Alto (34-42 pontos) 12(14,6%) 8(66,7%) 4(33,3%)
Adaptação Familiar
Baixo (0-18 pontos) 35(42,7%) 11(31,4%) 24(68,6%) 0,026
Médio-baixo (19-21 pontos) 10(12,2%) 6(60%) 4(40%)
Médio-alto (22-23 pontos) 22(26,8%) 13(59,1%) 9(40,9%)
Alto (24-26 pontos) 15(18,3%) 11(73,3%) 4(26,7%)
Autonomia
Baixo (0-9 pontos) 28(34,1%) 11(39,3%) 17(60,7%) 0,406
Médio-baixo (10-12 pontos) 19(23,2%) 9(47,4%) 10(52,6%)
Médio-alto (13-14 pontos) 14(17,1%) 9(64,3%) 5(35,7%)
Alto (15-16 pontos) 21(25,6%) 12(57,1%) 9(42,9%)
IPSF total
Baixo (0-9 pontos) 36 (43,9%) 12 (29,2%) 24(58,5%) 0,028
Médio-baixo (10-12 pontos) 19 (23,2%) 11 (26,8%) 8 (19,5%)
Médio-alto (13-14 pontos) 13 (15,8%) 7 (17,2%) 6 (14,6%)
Alto (15-16 pontos) 14 (17,1%) 11 (26,8%) 3 (7,4%)
*Teste do Qui-Quadrado de Pearson

A avaliação da pontuação do suporte familiar no IPSF e de seus fatores


categorizados de acordo com a tabela 1 mostra que não há associação entre
orientação sexual e como as pontuações dos fatores afetivo-consciente e autonomia

624
são distribuídas. No fator de adaptação familiar e no IPSF total, houve associação
entre a orientação sexual e a pontuação de maior ou menor suporte familiar. Ambos
os domínios têm o objetivo de identificar relações de confiança, liberdade e
privacidade entre os membros da família (Baptista et al., 2009), sendo a pontuação
total do inventário o conjunto de todos os fatores.

Tabela 2
Distribuição da pontuação final do IPSF e de seus fatores de acordo com a orientação
sexual e gênero.
IPSF total e
Grupo Gênero n(%) Mediana Mínimo Máximo p
seus fatores
Feminino 29(35,80%) 24,0 5,0 41,0
Hétero
F1 - Afetivo Masculino 12(14,81%) 30,5 16,0 37,0
0,024
Consciente Feminino 26 (32,10%) 21,0 8,0 38,0
LGBTQ+
Masculino 14 (17,28%) 20,0 7,0 33,0
Feminino 29(35,80%) 22,0 2,0 26,0
F2- Hétero
Masculino 12(14,81%) 23,5 15,0 26,0
Adaptação 0,04
Familiar Feminino 26 (32,10%) 18,0 6,0 26,0
LGBTQ+
Masculino 14 (17,28%) 20,0 14,0 25,0
Feminino 29(35,80%) 12,0 0,0 16,0
Hétero
F3- Masculino 12(14,81%) 14,0 8,0 16,0
0,112
Autonomia Feminino 26 (32,10%) 10,0 4,0 16,0
LGBTQ+
Masculino 14 (17,28%) 9,0 5,0 16,0
Feminino 29(35,80%) 56,0 10,0 83,0
Hétero
Masculino 12(14,81%) 70,0 44,0 78,0
IPSF total 0,009
Feminino 26 (32,10%) 47,5 24,0 77,0
LGBTQ+
Masculino 14 (17,28%) 51,0 27,0 72,0
*Teste H de Kruskal-Wallis

Em relação à distribuição do IPSF total e de seus fatores de acordo com a


orientação sexual e gênero (tabela 2), observou-se que no fator afetivo-consciente
houve uma diferença estatística em relação ao gênero masculino em ambos os
grupos, mas os universitários heterossexuais do gênero masculino têm uma mediana
maior e também obtiveram a pontuação maior no fator em questão, logo a
expressividade afetiva na família dos mesmos é menor, o item se refere ao interesse
pelo outro e expressão não verbal de carinho.

625
Os dados podem ser analisados com o viés da construção social que é pautada
às questões de feminilidade e masculinidade, sendo essa construção aceitável
socialmente para cada gênero e orientação sexual. A masculinidade entra na questão
de que o homem não deve expressar suas emoções e sentimentos, sendo uma de
suas dificuldades (Sousa Lima, 2007), confirmando o resultado.
No fator 2, de adaptação familiar, houve uma diferença significativa entre
heterossexuais masculino e LGBTQ+ feminino. A maior pontuação foi do grupo
heterossexual do gênero masculino com a mediana de 23,5 enquanto o grupo
LGBTQ+ feminino obteve a mediana de 18,0, ou seja, como este fator tem a
pontuação invertida, quanto maior a pontuação, melhor o suporte familiar. Logo,
apesar de haver uma grande diferença em relação ao tamanho dos grupos amostrais,
a categoria LGBTQ+ feminina teve a menor pontuação corroborando uma menor
percepção de suporte familiar neste fator e na pontuação total do inventário.

Tabela 3
Distribuição da pontuação final do IPSF e de seus fatores de acordo com o grupo e se
reside com a família.
IPSF e seus Reside com a
Grupo n(%) Mediana Mínimo Máximo p
fatores família
Sim 31(37,8%) 25,0 5,0 40,0
Hétero
F1 - Afetivo Não 10(12,2%) 33,0 10,0 41,0
0,085
Consciente Sim 35(42,7%) 20,0 7,0 38,0
LGBTQ+
Não 6(7,3%) 20,5 15,0 26,0
Sim 31(37,8%) 22,0 2,0 26,0
F2- Hétero
Não 10(12,2%) 22,5 10,0 26,0
Adaptação 0,024
Familiar Sim 35(42,7%) 18,0 6,0 26,0
LGBTQ+
Não 6(7,3%) 16,5 14,0 18,0
Sim 31(37,8%) 11,0 0,0 16,0
Hétero
F3- Não 10(12,2%) 15,0 9,0 16,0
0,071
Autonomia Sim 35(42,7%) 10,0 4,0 16,0
LGBTQ+
Não 6(7,3%) 10,5 5,0 15,0
Sim 31(37,8%) 57,0 10,0 74,0
Hétero
Não 10(12,2%) 70,5 30,0 83,0
IPSF total 0,037
Sim 35(42,7%) 50,0 24,0 79,0
LGBTQ+
Não 6(7,3%) 46,0 41,0 59,0
*Teste H de Kruskal-Wallis

626
Na tabela acima nota-se que apenas o fator 2 e a pontuação total do inventário
tiveram diferença entre orientação sexual e residir/morar com a família (p<0,05). O
grupo LGBTQ+ obteve menor pontuação, logo, uma menor adaptação ao ambiente
familiar comparado aos héteros, essa diferença entre a pontuação se mostra na
mediana dos grupos.
Na literatura, são encontrados dados que reforçam a pontuação da categoria
LGBTQ+ no índice adaptação familiar. Esse grupo vê a família como de extrema
importância, no entanto, a família faz parte de uma sociedade com valores sexistas,
racistas, feminicidas e que ainda repassam ideais heterocentrados, o que causa um
grande medo dos ataques homofóbicos frequentes dentro de casa (Giongo, 2018).
Apenas no fator 3 de autonomia não houve diferenças significativas entre os
grupos em nenhuma das análises. Podemos sugerir que o fato da amostra estar
cursando o ensino superior e ter acesso à educação faz com que os mesmos se
posicionem e sejam autores de si e de suas decisões, tornando-se independentes
neste processo formação, tendo autonomia independente da configuração familiar.
Afinal, o sucesso acadêmico não está associado somente ao desenvolvimento de
habilidades acadêmicas, mas também com competências cognitivas e sociais como o
desenvolvimento da autonomia (Ferreira, Almeida, & Soares, 2001).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo buscou diferenciar a percepção do suporte familiar entre
heterossexuais e o grupo LGBTQ+. Constatou-se que os homens heterossexuais, na
questão da afetividade e expressão dos sentimentos em relação à família, têm uma
pior percepção do suporte familiar, até mesmo por uma questão cultural da não
expressão de sentimentos por parte do gênero masculino, sendo um tabu que precisa
ser rompido. Descobriu-se que o grupo LGBTQ+ sofre em relação à adaptação
familiar, ou seja, são pessoas que estão em uma família com comportamentos
agressivos de brigas, gritos, irritações, incompreensão, isolamento e raiva em relação
aos membros.
Compreende-se que tais públicos tenham configurações familiares diversas, a
diversidade nesses grupos foi defrontada por uma pequena variação nos resultados,
o que indica que a orientação sexual não foi um fator direto na apresentação do
fenômeno, mas que o mesmo sofre influências, pressões e padrões sociais, culturais
e religiosos. Dessa forma, os resultados do presente estudo reforçam a necessidade

627
de produções científicas acerca do tema, principalmente no que se refere à população
LGBTQ+ e a especificidade como o suporte familiar é recebido por ela.

REFERÊNCIAS

Baptista, M. N. (2007). Inventário de Percepção de Suporte Familiar (IPSF): Estudo


Componencial em duas Configurações. Psicologia: Ciência e Profissão, 27(3),
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Carlos, 197-202.

NOTA DE AGRADECIMENTO
Agradecemos a Vetor Editora pelo apoio, suporte e disponibilização do
instrumento IPSF – Inventário de Percepção de Suporte Familiar para a realização
desse estudo, sem o qual não seria possível a execução da pesquisa.

630
57- ANÁLISE DE INDICADORES E PERCEPÇÃO DE ESTRESSE EM
ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS

Julia de Sousa Dias


Ketlin Mitsumi Asato
Lucas Dionisio Dorin
Thiago Bernardino da Silva.

Resumo: O presente estudo é um levantamento de dados por meio de um


questionário de rastreio. O objetivo foi avaliar a percepção de estresse, em estudantes
universitários de uma instituição particular de Ensino Superior. Procurou-se observar
o nível de estresse no momento da aplicação, o nível associado à vida acadêmica e
a sintomatologia vivenciada pelos participantes em diferentes períodos. Verificou-se
um fenômeno de percepção de sintomas, de natureza progressivamente mais
cognitiva, quanto maior o intervalo de tempo observado.

Palavras-chave: Estresse. Estudantes Universitários. Cognição.

Introdução

Por mais sejam atribuídos ao estresse aspectos negativos, alguns estudos


observados na literatura como o de Oliveira, et.al (2015) têm apresentado que o
estresse é o principal fator a ser analisado para a promoção da qualidade de vida em
nossa sociedade, sendo importante encontrar indicadores sobre como este aspecto a
influência em diferentes populações.
Monteiro et al., (2007) afirmam que diante de uma situação de estresse o ser
humano pode escolher se adaptar de forma positiva (enfrentamento) ou negativa
(adoecimento). O estresse tem sido apontado como um dos fatores influentes em
diversos aspectos da vida, desde os processos mais básicos até os mais complexos,
como na aprendizagem e no consequente sucesso académico (Luz et al., 2009).
Loureiro, McIntyre, Mota-Cardoso & Ferreira (2009) escrevem que é
fundamental uma avaliação precisa dos estressores e principais dificuldades dos

631
estudantes para que se possa desenvolver programas de intervenção e prevenção
apropriados, além de se implementar um currículo mais ajustado.
Todavia, é oportuno explicar que o estresse não é uma doença em si, mas sim
uma reação biológica do organismo que, mantida durante um período de tempo muito
prolongado, pode vir a gerar doenças, afirmam Matumoto et al., (2007).
O ambiente acadêmico é um grande fator estressor, pois nele o estudante está
na posição de indivíduo possuidor do “não saber”, devendo fazer um esforço para sair
desta condição além de enfrentar dificuldades, tais como a falta de tempo e
engajamento com outras atividades paralelas. A dinâmica e estrutura da universidade
diferem das instituições de ensino primário e médio, sendo uma transição com
necessidade de adaptação ao novo, podendo gerar estresse para Matumoto et al.,
(2007).
Como descrito por Monteiro et al, (2007), o estresse vivenciado por estudantes
pode afetar de forma negativa o desenvolvimento acadêmico e sua prática diária,
acarretando a problemas de motivação e possível rendimento acadêmico baixo.

Método

Tipo de Estudo e objetivo

Tratou-se de um estudo de levantamento de dados através de um questionário


de rastreio. O objetivo era avaliar a percepção de estresse em estudantes
universitários.

Participantes

Para o estudo, os participantes foram universitários de uma universidade de


São Paulo na faixa etária acima de 18 anos, de ambos os gêneros e qualquer curso
de graduação.

Instrumento

Seguindo os objetivos deste estudo, foi utilizado o questionário


sociodemográfico contendo questões sobre gênero, estado civil, filhos, se o

632
participante em questão realiza atividades de lazer, entre outras. Um questionário de
rastreio também foi aplicado contendo perguntas que envolvem manifestações
atreladas ao estresse segundo os manuais CID-10 Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde [OMS] (1993) e
DSM-5 Associação Americana de Psiquiatria [APA] (2014), como por exemplo, “Como
você percebe seu nível de estresse?”, bem como questões relacionadas à
universidade, fatores que possam ser estressores neste ambiente, sintomatologia
percebida em intervalos de tempo (últimas vinte e quatro horas, últimas duas semanas
e últimos dois meses).

Resultados e Discussões

Retomando o objetivo deste estudo, que foi o de rastrear as percepções de


estresse em universitários de uma instituição privada de Ensino Superior (utilizando
para isto, o questionário de rastreio formulado), sinaliza-se que o estresse não é uma
doença em si, e deve-se reiterar que os dados levantados neste estudo não visam a
elaboração de nenhum tipo de diagnóstico, e sim o mapeamento de percepções e
sintomas que podem ou não estar relacionadas ao fenômeno do estresse e suas
correlações com a vida acadêmica. Baseados nesses dados pode-se construir
hipóteses e buscar correlações entre os dados, valendo ressaltar o objetivo do rastreio
dessas variáveis observadas.
A amostra foi constituída por 50 estudantes universitários de uma instituição
privada de Ensino Superior, todos matriculados em cursos regulares de formação
superior. Dos 50 universitários avaliados, 30% foram do sexo masculino (n=15) e 70%
do sexo feminino (n=35). Quanto ao curso (ver Tabela 1), a maior prevalência foi de
alunos do curso de Psicologia, sendo 36% da amostra total (n=18). O segundo curso
com o maior número de alunos na amostra foi o de Arquitetura, representando 18%
da amostra (n=9). O semestre atual cursado mais frequente foi o 8° (representando
36% da amostra), o qual corresponde ao final do quarto ano de curso, podendo este
ser o ano de conclusão do curso para muitos alunos.

633
Tabela 1
Número de participantes por curso

Curso Número de Participantes


_____________________ _____________________
Psicologia 18
Arquitetura 9
Enfermagem 4
Engenharia de Produção 4
Relações Públicas 3
Design 2
Veterinária 2
Economia 1
Engenharia Química 1
Fisioterapia 1
Engenharia da Computação 1
Engenharia 1
Direito 1
Biologia 1
Odontologia 1

Em relação à verificação dos sintomas de estresse atuais baseada no


questionário utilizado, os participantes de forma geral registraram uma média de 3.
Para tal valor foi atribuído o nível de estresse “moderado” (reiterando que 1 foi
atribuído para estresse “ausente”, 2 foi para “pouco”, 3 para “moderado”, 4 para
“muito” e 5 para “excessivo”). A distribuição de respostas quanto ao sexo deu-se
segundo a Tabela 2.

634
Tabela 2
Distribuição de respostas sobre o estresse percebido no momento por sexo e
médias
_______________________________________________________________
Ausente Pouco Moderado Muito Excessivo
_______________________________________________________________

Homens 1 8 2 2 2
(n=15)
Mulheres 1 12 13 6 3
(n=35)
_______________________________________________________________
Média das notas de estresse atribuídas
_______________________________
Homens 2,7
Mulheres 2,9

Quanto ao valor atribuído ao estresse no momento da pesquisa, os homens e


mulheres registraram média 3 associada à percepção de estresse moderado, sem
diferença estatisticamente significativa. Em itens específicos relacionados
propriamente à vida acadêmica, o maior nível de estresse foi o atribuído ao subitem
“Trabalhos em Grupo”, onde a média geral da amostra foi de 4, tal valor é associado
à percepção de “muito estresse”.
O conceito de estresse utilizado foi o de um processo com etapas, sendo
possível se ter um estresse temporário, de baixa ou grande intensidade (Lameu,
Salazar e Souza, 2016). Assim, levantou-se a hipótese de reações de estresse
temporárias. Quanto à sintomatologia associada ao estresse e verificada pelos
próprios participantes nas últimas vinte e quatro horas, 64% apresentaram menos da
metade dos sintomas. A distribuição por sexo encontra-se abaixo mencionada na
Tabela 3:

635
Tabela 3
Distribuição do sexo dos participantes e presença de sintomatologia nas
últimas 24h

Mulheres Homens
___________ ___________
Menos da metade dos 24 12
sintomas apresentados

Metade ou mais dos 11 3


sintomas apresentados

Sobre a sintomatologia associada ao estresse verificada nas últimas duas


semanas, 30% dos participantes relataram a presença de pelo menos metade ou mais
dos sintomas apresentados, e 68% dos entrevistados relataram menos da metade dos
sintomas associados ao estresse nas duas últimas semanas. Quanto à sintomatologia
associada ao estresse verificada nos últimos dois meses, 82% relataram ter
apresentado menos da metade dos sintomas.
O sintoma com maior incidência relatado referente às últimas vinte e quatro
horas foi “boca seca” (n=29), seguido por “mudança de apetite” (n=28) e “problemas
para dormir” (n=25). Já nas últimas duas semanas os sintomas mais relatados foram
“sensação de desgaste físico constante” (n=30), “pensar constantemente em um só
assunto” (n=30) e “mudança de apetite” (n=28), e nos últimos dois meses, os mais
relatados foram “ocorrência de angústia/ansiedade diária” (n=30), “vontade de fugir de
tudo” (n=29) e “sensação de cansaço excessivo” (n=29).
Uma das queixas mais frequentes foi, a de sobrecarga de trabalho, a qual os
participantes de forma praticamente unânime informaram como principal forma de
estresse no trabalho. Portanto, quando se há excesso de atividades, elas atuam de
forma negativa na vida pessoal dos sujeitos, afirmam Dalagasperina e Monteiro
(2017).
Nas últimas vinte e quatro horas em relação à aplicação do questionário, os
três sintomas mais relatados são exclusivamente de natureza física/fisiológica, porém
quanto aos três sintomas predominantes nas duas últimas semanas, há a presença
de um sintoma cognitivo/psicológico (pensar constantemente em um só assunto), e
quanto aos três sintomas mais verificados nos últimos dois meses há a presença de

636
dois de natureza cognitivo/psicológica (vontade de fugir de tudo, ocorrência de
angústia/ansiedade diária). Verificou-se um fenômeno de percepção de sintomas de
natureza progressivamente mais cognitiva quanto maior o intervalo de tempo,
conforme representado pela Tabela 4:

Tabela 4
Natureza dos três sintomas mais citados em relação à suas características

Sintomas cognitivos Sintomas Físicos


_________________ ________________
Últimas vinte e 0 3
quatro horas

Últimas duas 1 2
semanas

Últimos dois 2 1
meses

Segundo Conceição, Bellinati, & Agostinetto (2019), diversas infecções,


alterações em ciclos biológicos, infartos angina e úlceras, entre outros sintomas
presentes na fase de exaustão do estresse, foram percebidos pelos docentes com
baixo nível de estresse. Isto indica certas evidências da manifestação orgânica de
estresse nos docentes.

Considerações finais

Com o objetivo de avaliar a percepção de estresse em estudantes universitários


foi possível identificar um fenômeno de percepção de sintomas de natureza
progressivamente mais cognitiva (mental, percebida pelo indivíduo) em detrimento da
predominância dos sintomas negativos, quanto maior o intervalo de tempo. Tal
fenômeno não havia sido hipostenizado no decorrer da pesquisa.

637
Levando-se em conta a definição de que o estresse é um processo com etapas,
é possível se ter um estresse temporário (Lameu, Salazar e Souza, 2016). Observou-
se que nas últimas vinte e quatro horas que antecederam a aplicação do questionário,
64% dos participantes apresentaram menos da metade dos sintomas. Nas últimas
duas semanas, 30% relataram a presença de pelo menos metade ou mais dos
sintomas apresentados (e 68% dos entrevistados relataram menos da metade dos
sintomas). Já nos últimos dois meses, 82% dos participantes relataram ter
apresentado menos da metade dos sintomas. Na amostra, então, predominou o
estresse temporário.
É possível notar a evolução dos sintomas, de forma progressiva, seguindo em
direção a uma subjetivação do estresse registrado em torno das ideias de “estresse
vivido” e “estresse percebido”, (Guiho-Bailly 2002, p.184).
O estresse, quando em sua forma de agente e exposto ao sujeito é capaz de,
desencadear, mesmo nos que apresentam baixo nível de estresses, sérios problemas
de saúde nos docentes afirma Conceição, Bellinati, & Agostinetto (2019).
Para Loureiro et al. (2009) é fundamental uma avaliação aprofundada dos
possíveis estressores para que se possa desenvolver programas de intervenção e
prevenção apropriados. Um enfoque nos sintomas prevalecentes após dois meses
(sendo os sintomas “vontade de fugir de tudo” e “ocorrência de angústia/ansiedade
diária”) e em sua remissão poderiam auxiliar na promoção da qualidade de vida, sendo
importante encontrar indicadores sobre como este aspecto a influência em diferentes
populações.
Estudos futuros poderão investigar de forma mais precisa a relação entre
sintomas de ordem mais física e de ordem mais cognitiva associados ao estresse e
suas prevalências em populações com o passar do tempo, podendo haver
contribuições significativas em campos da saúde e articulações multidisciplinares,
uma vez que sintomas associados ao estresse muitas vezes progridem para quadros
de saúde mais complexos.

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transtornos mentais: DSM-5. 5.ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

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Oliveira, H. F. R., Risso, H. R. F., Vieira, F. S. F., Leal, K. A. S., Novelli, C., Noda, D.
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640
58- CASAIS INTER-RACIAIS HÉTERO E HOMOAFETIVOS: RACISMO CORDIAL
E SUA NEGAÇÃO NA FAMÍLIA

Felipe Carvalho Damacena


Thais Gonçalves Gomes
Luís Antônio Gomes Lima
Universidade São Judas Tadeu, SP

Resumo: casais inter-raciais são aqueles cuja relação é composta por pessoas de
raças distintas. Este estudo de campo qualitativo investigou as percepções de 4 casais
inter-raciais adultos (2 homoafetivos e 2 heteroafetivos, formados por uma pessoa
negra e uma branca, paulistanos, adultos e em uma relação monogâmica) sobre a
raça. Examinou-se suas compreensões sobre: as identidades raciais negra e branca,
a inter-racialidade em outras configurações de relação e a relação das famílias com a
raça. Foram feitas, gravadas em áudio e parcialmente transcritas as entrevistas
semidirigidas (2 com cada casal e uma individual), que passaram por análise de
conteúdo e início de análise de discurso - interpretadas sob uma perspectiva
psicanalítica e de materialismo histórico. Apresenta-se resenhas das entrevistas
realizadas, cuja análise resultou em três categorias temáticas: a pessoa branca sem
branquitude e a negritude definida pelo racismo; raça como problema da pessoa negra
e dos outros casais inter-raciais; e a negação da raça e do racismo na família. Houve
racismo cordial e uso de projeção e negação como resistência ao tema tabu.
Palavras-chave: racismo; relações étnico-raciais, famílias inter-raciais; psicologia
social.

1 Introdução e Revisão de literatura


Casal inter-racial - heterocrômico ou racialmente heterogêneo - é aquele cujo
relacionamento é composto por indivíduos de raças distintas. Tais relações foram alvo
de diversos estudos (Barros, 2003; Moreira & Sobrinho, 1994; Moutinho, 2004;
Petrucceli, 2001; Santos, 2018; Scalon, 1992; Silva, 1991; 1987).
A raça é aqui entendida em seu sentido social (Guimarães, 1999), visto que ela
não existe no sentido biológico; a partir do século XX, com a difusão das ideias pós-
darwinianas, compreendeu-se a unicidade da espécie humana (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística [IBGE], 2013). Schwarcz (2001), por sua vez, entende a raça

641
como sendo “um objeto de conhecimento, cujo significado estará sendo
constantemente renegociado e experimentado” (p.17). Nesse estudo optou-se pelo
uso do termo “raça”, pois ele abarca dois elementos – o genótipo, que remete à origem
genética e cultural, e o fenótipo, que compete às características físicas e observáveis
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2013) – enquanto “etnia” se
refere a um “grupo social cuja identidade se define pela comunidade de língua, cultura,
tradições, monumentos históricos e territórios” (Instituto AMMA Psique e Negritude,
2008, p.77), e “cor” está mais ligada à dimensão fenotípica (IBGE, 2013).
Por sua vez, o racismo diz respeito à discriminação e desigualdade concretas
e simbólicas (Guimarães, 1999) que garantem privilégios às pessoas brancas (Sovik,
2009). Assim, Nogueira (1985) explana que no Brasil prevalece o preconceito racial
de marca (fenotípico) em vez do de origem (genotípico). Há também o racismo cordial
(Turra & Ventura, 1995): uma forma de discriminação de aparência afável e bem-
educada que busca esconder seu cunho racista.
Enquanto matriz racial, afetiva e social dos sujeitos, a família perpassa o estudo
sobre casais e raça. Cada grupo familiar tem sua dinâmica, necessidades, modos de
comunicação, segredos, ruídos, afetos contraditórios e mecanismos de defesa
(Zimerman, 1999). Nessa linha, Schucman (2018), verifica, ao investigar a inter-
racialidade nas relações familiares, um apanhado de negações, identificações,
empatia e relações de poder.

2 Objetivos e Justificativa
O tema do evento, "Violência social e autoinflingida - propostas de atenção e
pesquisas", se relaciona ao trabalho pela atenção à interface social das
(inter)subjetividades. Há estudos sobre a intersecção entre a psique e a raça, que por
vezes tem elementos de violência e de sofrimento (Benedito, 2018; Bento, 2002;
Fanon, 1952/2008; Fernandes, 2018; Instituto AMMA Psique e Negritude, 2008;
Schucman, 2014; 2018). Assim, entende-se a 17ª Jornada Apoiar como um espaço
frutífero às discussões desta pesquisa.
Tendo em vista que "o preconceito racial humilha e a humilhação social faz
sofrer", o Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabelece normas para atuações e
conhecimentos antirracistas (Resolução CFP N.° 018/2002, 2002, 19 de dezembro).
Já o Código de Ética Profissional da(o) Psicóloga(o) (CFP, 2005) prevê que toda(o)
profissional “baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da

642
dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que
embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos” (p.7) e “atuará com
responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política,
econômica, social e cultural” (p.7).
Dada a escassez de estudos sobre o tema que englobem casais homoafetivos
e que, conforme Schucman (2018), o façam à luz da psicanálise; o artigo, recorte
parcial de um estudo mais amplo realizado em graduação (Trabalho de Conclusão de
Curso), investigou as percepções de casais inter-raciais hétero e homoafetivos sobre
raça: na identidade negra e branca coletiva e individual, em outros tipos de casais
inter-raciais e na família.

3 Método
O estudo de campo descritivo e qualitativo, cujo projeto foi aprovado no
respectivo comitê de ética, utilizou entrevistas semi-estruturadas com 8 adultos
cisgêneros nascidos e residentes na cidade de São Paulo que integravam 4 casais
monogâmicos formados por uma pessoa negra e uma branca, obtidos via amostra por
conveniência e apresentados abaixo, com nomes fictícios:
Casal 1. Negra e branco: 3 anos de namoro e 2 anos de casados. Karol (22,
negra, hétero, auxiliar adm., cristã e Ens. Médio completo) e Tiago (28, branco, hétero,
diretor financeiro, cristão e Ens. Sup. completo); Casal 2. Negra e branca: 5 anos de
namoro. Elen (24, negra, lésbica, assistente de RH, sem religião e cursava Ens. Sup.)
e Ana (24, branca, lésbica, auxiliar adm., sem religião e cursava o Ens. Sup.); Casal
3. Negro e branca: 5 anos de namoro. Caio (21, negro, hétero, desempregado,
umbandista e Ens. Técnico completo) e Júlia (20, branca, hétero, promotora de
eventos, católica e Ens. Técnico completo); e Casal 4. Negro e branco: 1 ano e 6
meses namoro. Michael (22, negro, gay, publicitário, espírita e Ens. Sup. completo) e
Jonas (24, branco, gay, vendedor, sem religião e Ens. Sup. incompleto).
Após contatos iniciais, os casais que atenderam aos critérios de inclusão foram
convidados a participar da pesquisa. Foram realizadas de 3 a 4 entrevistas por casal,
gravadas em áudio e parcialmente transcritas, de cerca de 1h cada, em ambientes
tranquilos da escolha dos participantes. Das entrevistas realizadas com cada par, 2
delas se deram com a presença de ambos os membros, e posteriormente cada pessoa
foi entrevistada individualmente. A 1ª entrevista abordou aspectos:
sociodemográficos, do casal e de raça; cada encontro teve início com a abordagem

643
de questões gerais do casal antes de ser inserido o tema da raça. Após cada
entrevista feita e parcialmente transcrita, elaborou-se roteiros para as entrevistas
seguintes.
O manejo, a categorização e o estudo dos dados se deram por análise de
conteúdo em Minayo (2012) – que baseia a construção de categorias temáticas de
análise que enfatizam os achados do estudo – e um início de análise de discurso em
Orlandi (2012) – que interpreta a forma como o discurso foi expresso e significado por
cada pessoa – e em Pêcheux (1997) – que articula a psicanálise (escuta e análise
diferenciada que interpreta a dimensão inconsciente) ao materialismo histórico (no
qual a palavra é entendida nas contradições em que se coloca, contextualizadas
dialética e historicamente na realidade social em movimento).

4 Resultados e discussão
Esta seção foi dividida em duas partes: uma apresenta as resenhas das
entrevistas feitas e a outra explana as categorias analíticas encontradas.

4.1 Resenhas das entrevistas

Apresentam-se breves resenhas das entrevistas feitas com os casais.


Casal 1: demonstraram pressa para terminar as entrevistas (que foram as mais
curtas) e maior reserva ao abordar a raça - usando termos como “normal” e “natural”.
Discutiu-se as raças de cada um e das famílias, a adoção do filho, brincadeiras e
apelidos ligados à raça que faziam, o namoro e o casamento. Tiago fez várias piadas
e Karol mostrou-se mais contida. De modo individual, referiram conflitos da
convivência doméstica, familiar e profissional, projetos futuros, inseguranças de Karol
em relação à família de Tiago e a distância do casal do tema racial e do ativismo
negro. Karol falou do processo de aceitação racial, enquanto Tiago respondeu de
modo sucinto às questões.
Casal 2: mostraram-se distantes do tema e incertas da contribuição que
trariam, dado o tom de pele mais claro de Elen. Referiram dúvidas da pertença racial,
e que ao contrário da raça, a lesbofobia e o machismo afetavam a relação; a amizade
escolar antecedente ao namoro, a “saída do armário”, a relação com as famílias e os
planos futuros. Individualmente, abordou-se a raça e o racismo na família e a própria
raça e a da namorada. Elen fez relatos emotivos sobre o racismo vivido por terceiros

644
e do assédio sofrido pelo casal, mas manteve dificuldade de identificar a raça em sua
história pessoal. Ana mostrou-se mais tímida e ansiosa, sobretudo frente à raça; deu
respostas mais curtas e relatou, genericamente, o incômodo com o racismo sofrido
por outrem.
Casal 3: mostraram maior reserva frente à raça. Caio mostrou-se tímido, falou
pouco e deu breves complementos às falas mais detalhadas de Júlia. Abordou-se a
raça de cada um, sua diferença religiosa, inseguranças ligadas à raça e o contraste
entre cada um e suas famílias. Referiram conflitos familiares, críticas externas à
relação inter-racial e ciúme e falta de diálogo no namoro. Após as entrevistas
conjuntas, Júlia nos informou que deram “um tempo” da relação. Ainda assim, foram
convidados a uma escuta individual; Caio desistiu de participar e não respondeu as
tentativas de contato realizadas pelos pesquisadores, mas Júlia aceitou falar sobre
incômodos na relação, o silêncio de Caio sobre as emoções, o término, as famílias,
negritude, branquitude e a participação na pesquisa.
Casal 4: tiveram as entrevistas mais longas e aprofundadas e foram os mais
implicados nas questões raciais. Relataram episódios de racismo sofridos por Michael,
os privilégios da branquitude e a discriminação à população negra. Jonas se mostrou
mais cauteloso e Michael mais expressivo. Relataram conflitos familiares, episódios
de homofobia, incômodos frente à raça na relação, a importância da
representatividade e ambientes em que o casal se sente mais acolhido ou hostilizado
devido a raça e homoafetividade. Michael trouxe uma ambivalência frente ao orgulho
negro e aos incômodos na relação inter-racial, enquanto Jonas, ainda com dificuldade
de falar sobre raça e branquitude, relatou o cuidado e acolhimento com os conflitos
do namorado.

4.2 Categorias temáticas de análise


As categorias encontradas foram: a pessoa branca sem branquitude e a
negritude definida pelo racismo; raça como problema da pessoa negra e dos outros
casais inter-raciais; e a negação da raça e do racismo na família.

A pessoa branca sem branquitude e a negritude definida pelo racismo:


foram levantadas as compreensões em relação à própria identidade racial, à
coletividade racial a qual pertencem, e acerca da outra raça.

645
Sobre a própria negritude, a transição capilar teve um papel fundamental a
cada entrevistada(o) negra(o); a maioria negra relatou também que a vivência do
racismo teve papel importante no processo conceituado como “racialização” (Miles,
1989; 1996). As mulheres negras referiram dúvidas em relação à sua raça; ambas
afirmaram tê-la checado em seus registros de nascimento que, assim como terceiros,
as classificavam como pardas. Tais incertezas indicam o pardo ou mestiço brasileiro
enquanto:
‘um e outro’, ‘o mesmo e o diferente’, ‘nem um nem outro’, ‘ser e não ser’, ‘pertencer e
não pertencer’. Essa indefinição social ... conjugada com o ideário do branqueamento,
dificulta tanto a sua identidade como mestiço, quanto a sua opção de identidade negra
(Munanga, 2006, p.140).

A maioria da amostra associou o povo negro à experiência de racismo e


desigualdade – foi descrito como “uma população muito sofrida, sabe? É tanto
preconceito, é tanta coisa errada, a gente vê tanto caso de menino que é morto pela
cor da pele” (Elen). Apenas uma minoria dos participantes (Michael e o casal 3) trouxe
o aspecto da beleza negra “que acho extraordinária, hoje eu acho uma beleza
maravilhosa” (Michael). Todavia, identificou-se certo racismo cordial nos “elogios” de
Júlia, que atribuiu maior força física ao corpo negro.
Já em relação à própria branquitude, as(os) entrevistadas(os) tomaram o
fenótipo em si mesmo: um dado concreto e pouco ou nada simbólico. Toda a amostra
branca associou a raça à cor da pele, mas a maioria a tratou como um aspecto
meramente físico: Tiago brincou lamentar a cor da pele, pois fica facilmente queimada
ao ser exposta ao sol, e Ana citou o registro de nascimento e a inscrição no vestibular,
com um afastamento do tema. Apenas Jonas se descreveu como privilegiado,
percepção vinda do contato com a dor de quem sofre racismo, e referiu a autocrítica
de se ver potencialmente racista.
Acerca da coletividade branca, a maior parte da amostra referiu essa terceira
pessoa como preconceituosa. O casal 4 e Elen descreveram as pessoas brancas
como privilegiadas em nossa sociedade, Tiago não atribuiu significado além de
“normal” e Michael e o casal 3 ressaltaram sua beleza.
Assim, o racismo e os privilégios da branquitude foram reconhecidos na
coletividade, mas na vivência individual e amorosa ele dificilmente foi admitido.
Retoma-se o conceito de negação proposto por Freud (1925/2011), no qual o

646
indivíduo, pelo uso da linguagem, evidencia o conteúdo recalcado na tentativa de se
opor a um conflito, o que permite interpretar o que se tentou negar. Desse modo, é
como se a maioria da amostra branca dissesse "reconheço que as(os) brancas(os) no
Brasil têm privilégios e tendência ao racismo, mas seria demasiado incômodo
reconhecê-los em mim enquanto branco" - como se a relação ou o sujeito pudessem
descolar-se da realidade social.
Embora a relação inter-racial não tenha sido, por si só, catalizadora para uma
consciência antirracista, ela parece tê-lo sido no casal 4 - onde havia um diálogo
minimamente aberto sobre a raça, um reconhecimento das implicações sociais no
âmbito privado, e um esforço do branco em racializar-se (Miles, 1989; 1996) e
“desaprender” o racismo (Miranda & Passos, 2011).

Raça como problema da pessoa negra e dos outros casais inter-raciais: a


amostra indicou certa distância do debate sobre casais inter-raciais, escassos ou
ausentes de seu meio social, e o racismo foi projetado nos outros pares. Assim,
investigou-se a inter-racialidade nas diversas configurações.
Sobre o par “negra e branco”, Elen citou “essa pauta de ‘a solidão da mulher
negra’ ... muitos homens negros preferem namorar mulheres brancas”. Ela e Michael
citaram o preterimento e a hipersexualização da mulher negra; cuja família, segundo
o casal 3, se oporia à relação. O casal 1, composto por uma mulher negra e um homem
branco, foi o mais difícil de ser encontrado para compor a amostra – resultado
enfatizado por Moreira e Sobrinho (1994) e corroborado por diversos estudos
(Azevedo, 1955/1996; Berquó, 1987; Moutinho, 2004; Schucman, 2018) – e apesar
de não referir oposição familiar à relação, foi o que mais indicou racismo cordial e
desigualdade de classe.
Sobre o par “negro e branca”, Michael e Elen cogitaram que receberia a crítica
de “palmitagem” - neologismo que se opõe ao preterimento de mulheres negras
(Ribeiro, 2016). Apesar de Caio já ter escutado essa provocação, disse discordar dela,
pois considera que a relação inter-racial é uma atitude contra o racismo. Júlia referiu
ainda a possibilidade de a mulher branca se relacionar com o negro “por interesse”, o
que levanta as questões de hipersexualização frente ao negro e o quesito econômico.
Por sua vez, Caio disse se cobrar para oferecer bens materiais à namorada – o que
remete ao ideal de homem provedor na sociedade patriarcal, e a uma possível

647
“compensação” da negritude (Barros, 2003). O negro pode sentir tal cobrança mesmo
quando a branca, como Júlia, tem melhor condição financeira (Moutinho, 2004).
Enquanto os casais homoafetivos previam machismo e racismo nos casais
hétero, estes conjecturavam que os homoafetivos sofressem um duplo preconceito:
pela inter-racialidade e pela homo/lesbofobia. Todavia, o casal 2 disse não se
perceber alvo de nenhum preconceito racial. Embora tenham dito que a heterocromia
possivelmente seria alvo de hostilidade em locais voltados à valorização da cultura
negra, Michael e Jonas também não viam tal limitação como forma de preconceito,
mas um modo de respeito ao “quilombo urbano” e “espaço seguro para pessoas
negras”. Assim, o gay e a lésbica negros trouxeram, respectivamente, relatos pessoais
de racismo explícito e implícito, e de homo/lesbofobia ao casal, mas não de
discriminação racial à relação. Logo, na relação inter-racial homoafetiva, a raça foi
apresentada como um problema do negro; para Bento (2002), porém, o racismo é um
problema de ambos.

A negação da raça e do racismo na família: enquanto Barros (2003) traz


relatos de oposição familiar à inter-racialidade; a amostra do presente estudo referiu-
se ilesa. O racismo foi notado mais facilmente em âmbitos públicos como em Moutinho
(2004): “acusar parentes próximos e muitas vezes queridos de serem ou mesmo terem
atitudes ‘racistas’ não é fácil” (p.287).
Para alguns casais, a existência de heterocromia na família indicava a
inexistência de racismo neste âmbito, conforme visto em Moutinho (2004). O único
relato de oposição familiar a um casal inter-racial foi sobre o avô de Ana, que jogou
excrementos no marido negro da filha branca - e quando o avô adoeceu, esse
integrante negro foi quem cuidou dele. Retoma-se o estudo de Barros (2003), no qual
a oposição à inserção de pessoas negras na família tende a se atenuar quando tais
pessoas passam a ser percebidas como “úteis”.
Enquanto o casal 2 disse que não deseja ter filhos, o casal 4 trouxe indecisão
a respeito e o 3 ponderou sobre esse plano. O casal 1 tem um filho adotivo, sua raça
não foi citada e a questão racial não foi considerada fator relevante na criação dele,
mas que “talvez casais mais militantes se preocupem mais com isso” (Tiago). Sobre
as características físicas de um possível filho biológico, Karol disse desejar que fosse
negro, já Tiago e o casal 3 disseram não ter preferências, pois “o importante é vir com

648
saúde”. Barros (2003) verificou opiniões contrastantes sobre a importância da raça na
educação dos filhos; seu estudo e o de Schucman (2018) mencionam os conflitos de
famílias inter-raciais sobre a consciência racial passada (ou não) dos pais aos filhos.
Michael contou da irmã mais velha, negra de pele mais clara que a dos outros
familiares, que só é sua irmã biológica por parte de mãe; ele referiu um silêncio na
família sobre o fato, que só soube há poucos anos. Caio contou não conhecer o pai
nem saber sua raça, e jamais falou sobre ele com a mãe. Karol disse não lembrar a
cor do pai, descrito como negro por Tiago e morto na infância dela. As falas reticentes
dos sujeitos negros indicam que o eixo raça-paternidade “por parte das famílias é uma
das zonas de ‘sombra e silêncio’ nas quais as falas dos entrevistados podem
submergir” (Moutinho, 2004, p.283).
Um conflito identificado no casal 1 refere-se à necessidade de Karol visitar a
mãe todo final de semana, o que Tiago se opunha, por terem a própria casa e família.
A dificuldade de se separar da família da mãe pode estar ligada a inseguranças em
relação à aceitação na familia de Tiago (maioria branca, maior nível econômico e
acadêmico) e a uma sensação de não pertencimento.
O casal 2 percebeu apenas a lesbofobia, e não a raça, como conflito também
na família. Elen referiu seu sofrimento por ter escondido o namoro dos parentes por
mais de 4 anos, por já ter visto casos de lesbofobia nesse âmbito; ela revelou a relação
aos familiares poucos meses antes das entrevistas, e estava ambivalente por não
mais omitir a relação, mas ter de lidar com a desaprovação da mãe. Ana, por sua vez,
relatou total apoio da família ao casal.
Apesar de não notarem racismo dirigido ao casal lésbico, elas relataram
episódios dele na família. Elen contou de sua avó que, mesmo sendo negra, tinha
falas racistas e, segundo a entrevistada, não aceitava a própria raça. Da mesma
forma, Ana referiu: “tem meu vô que é negro, fala que antigamente ele era branco, e
que depois do sarampo ele ficou negro do cabelo crespo. Tirando isso, não tem
diferença nenhuma”. Ana contou ainda que, segundo o avô, ela “era bem escurinha”
quando nasceu, e por isso foi apelidada como “nêga”, o que a namorada estranhou:
“aí ela [Elen] falou ‘você não é negra, você é branca’: tava me questionando, mas é o
apelido que eles me chamam”.

649
Elen diz “claro que a gente sabe que o preconceito tá aí, mas na nossa família
nunca teve isso ... A gente nunca sentiu nada na pele, nem a nossa família sentiu
nada na pele”, mas admite a oposição familiar à transição capilar:

eu achava meu cabelo feio, daí começar a alisar. Até minha mãe mesmo falou “vamos
alisar esse cabelo!?”; até na minha família, quando comecei [a transição capilar] …
meu pai mesmo, outro dia fiz escova no cabelo, e meu pai falou assim ‘eu prefiro você
de cabelo liso!’.

Assim, relatos sutis ou explícitos de racismo na família de pessoas negras


indicam que, apesar de ela manter-se “como lócus ideal da afetividade, isso não a
exclui … das tensões raciais” (Pereira & Rodrigues, 2010, p.175).
Por fim, entende-se os relatos acima como esforços de negar e distorcer a
influência da raça na família. Para Mandelbaum, que apresenta o livro de Schucman
(2018), tal negação é “defesa psíquica para evitar o contato com a dor e o sofrimento
produzidos pelo racismo em relação a si próprio ou a um familiar querido, mas que na
verdade o perpetua, ao deixá-lo intocado” (p.18).

5 Conclusão
Na coletividade, a negritude foi ligada à vivência de discriminação, e a
branquitude à posse de preconceitos e privilégios, mas no âmbito individual a maioria
da amostra branca tomou a cor da pele como um dado meramente concreto, enquanto
a negritude pessoal foi marcada por elementos do racismo – que apareceu como
problema da(o) negra(o), negado na relação e projetado em outros casais inter-raciais.
A família, lócus de intersecção entre a origem racial e afetiva do casal, foi âmbito
sensível frente à raça, um tema tabu – marcadamente negado. Assim, a negação do
racismo na sociedade, perpetrada pelo mito da democracia racial (Hasenbalg, 1996)
é expressa nos grupos familiares – num “jogo de silêncio e não ditos” (Schucman,
2018, p.29).

650
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653
59- ESTILOS PARENTAIS E PROBLEMAS DE COMPORTAMENTO NA
ADOLESCÊNCIA

Mariana dos Santos Garcia de Carvalho


Márcia Regina Fumagalli Marteleto

Resumo: Introdução: O ambiente familiar possui um papel fundamental no


desenvolvimento social, pessoal e cognitivo do indivíduo e, por vezes, acaba
influenciando significativamente na manifestação de problemas de comportamento
por meio de medidas e ações educativas utilizadas neste contexto. Objetivo: o
objetivo deste estudo foi identificar os estilos parentais e correlacioná-los com
problemas de comportamento em adolescentes inseridos em escola de ensino
regular. Método: Participaram 10 mães de adolescentes dos 11 aos 14 anos,
utilizando-se o Inventário de Estilos Parentais (IEP) para avaliar a maneira utilizada
pelos pais na educação de seus filhos e o Child Behavior Checklist (CBCL) para
identificar problemas de comportamento nos adolescentes estudados. As mães foram
entrevistadas individualmente para responder os dois questionários. Foram
elaboradas medidas descritivas para representar as informações. Para verificar a
correlação entre as variáveis foi utilizada a Correlação de Sperman e para validar as
correlações usou-se o Teste de Correlação. Resultado: Não houve correlação entre
estilos parentais e problemas de comportamento. Algumas monitorias negativas ou
positivas identificadas pelo IEP possuem relação ao detalhamento de sintomas
identificados pelo CBCL. Conclusão: Nesta amostra, a maneira como as famílias
educam e criam seus filhos, não acarretou, de maneira significativa, problema de
comportamento nas crianças.

Palavras-chave: Estilos Parentais,Problemas de Comportamento, Adolescência

INTRODUÇÃO

A família é caracterizada como o primeiro ambiente do qual o indivíduo participa


ativamente, interagindo e aprendendo comportamentos sociais nas suas interações
familiares que irão proporcionar um acesso favorável aos diferentes contextos sociais

654
e inter-relacionais. Inicialmente, estas interações ocorrem pela relação da mãe com a
criança, aos poucos, as relações vão se expandindo dentro do grupo familiar, como a
relação pai-criança e a relação entre irmãos para estenderem-se para o mundo
externo à família.
A aprendizagem destes comportamentos sociais é influenciada pelas práticas
educativas parentais (Pacheco, Teixeira & Gomes,1999) caracterizadas como
estratégias usadas pelos pais para desenvolverem independência, disciplina,
autonomia, além de modelar os comportamentos, considerados por eles, adequados
aos seus filhos (Gomide, 2001).
O interesse pelo impacto das práticas parentais nos comportamentos dos filhos
é crescente (Bolsoni-Silva, Loureiro & Marturano, 2016), pois as interações familiares
vêm sofrendo mudanças nas últimas décadas; comportamentos até então
compreendidos como culturalmente aceitáveis e esperados, como a utilização de
força física na educação das crianças por parte dos pais ou cuidadores, atualmente
são criticados e coibidos pelos direitos constitucionais em função dos problemas e
prejuízos sociais associados que envolvem o indivíduo, a família e a comunidade.
Estas práticas educativas consideradas negativas para o desenvolvimento da criança
ainda persistem no contexto familiar, gerando problemas de comportamento que
ameaçam as inter-relações pessoais e as relações do indivíduo com o seu meio (Del
Prette & Del Prette, 2008).
Este trabalho tem por objetivo identificar os estilos parentais e correlacioná-los
com problemas de comportamento em adolescentes inseridos em escola de ensino
regular.

Método
Participantes: Foram convidadas para participar da pesquisa 50 mães de
crianças que apresentam problemas de comportamento detectados por uma escala
de triagem sobre problemas de comportamento, mas somente 10 aceitaram participar
do estudo. As participantes tinham idades variando de 29 a 43 anos e baixa
escolaridade (1º Grau). As crianças estavam cursando 6 o e 7oano do ensino
fundamental em uma escola localizada na cidade de Osasco – SP e suas idades
variavam de 11 a 14 sendo 5 do sexo masculino.

655
Instrumentos: Os instrumentos utilizados foram o Inventário de Estilos
Parentais (IEP) que tem como objetivo estudar a maneira utilizada pelos pais na
educação de seus filhos e o Child Behavior Checklist (CBCL).
1.O Inventário de Estilos Parentais (Gomide,2006) é composto por 42
questões que correspondem às setes variáveis de práticas educativas, cinco delas
vinculadas ao desenvolvimento do comportamento antissocial como negligência,
abuso físico, disciplina relaxada, punição inconsistente e monitoria negativa, e duas
que promovem comportamentos pró – sociais como monitoramento positivo e
comportamento moral. Cada questão é composta de uma frase à qual o respondente
deve indicar a frequência com que a figura materna/paterna age. Para cada prática
educativa foram elaboradas seis questões distribuídas espaçadamente ao longo do
inventário.
As chamadas práticas educativas positivas são a monitoria positiva, que
envolve o uso adequado da atenção e a distribuição de privilégios, o adequado
estabelecimento de regras, a distribuição continua e segura de afeto, o
acompanhamento e a supervisão de atividades escolares e de lazer, e o
comportamento moral que implica promover condições favoráveis ao
desenvolvimento das virtudes, tais como, empatia, senso de justiça, responsabilidade,
trabalho, generosidade e do conhecimento do certo e do errado quanto a uso de
drogas e álcool e sexo seguro sempre seguido de exemplo dos pais.
Já as práticas educativas negativas envolvem negligência, ausência de
atenção e de afeto; o abuso físico e psicológico, caracterizado pela disciplina através
de práticas corporais negativas, ameaça ou chantagem de abandono e de humilhação
do filho; a disciplina relaxada, que compreende o relaxamento das regras
estabelecidas; a punição inconsistente, em que os pais se orientam por seu humor na
hora de punir ou reforçar e não pelo ato praticado; e a monitoria negativa,
caracterizada pelo excesso de instruções independentes de seu cumprimento e,
consequentemente, pela geração de um ambiente de convivência hostil.
A escala possibilita respostas: Nunca, Às Vezes e Sempre. Ela é dividida em
quatro categorias: Estilo Parental de risco, Estilo Parental Regular abaixo da média,
Estilo Parental Regular acima da média, Estilos Parentais Ótimos.

2. Inventário de Comportamentos da Infância e Adolescência CBCL


(Achenbach, 2001): Esse instrumento é um questionário que avalia a competência

656
social e os problemas de comportamento em crianças e adolescentes de 4 a 18 anos,
a partir de informações fornecidas pelos pais. Para este estudo foi utilizada a segunda
parte do CBCL, pois identifica os problemas de comportamento em crianças e
adolescentes. Esta seção do CBCL é composta por 112 itens referentes a problemas
de comportamentos que a mãe deve avaliar dando um valor numérico de 0, se o
comportamento é ausente; 1, se o comportamento é às vezes presente; ou 2, se o
comportamento é frequentemente presente. O somatório dos escores obtidos permite
ao avaliador traçar um perfil comportamental da criança ou adolescente. Esta lista de
afirmações foi agrupadas através de análise fatorial, a partir das respostas fornecidas
pelos pais para comportamento problemático e constituem oito síndromes: 1.
(Isolamento social, constituído por afirmações como: prefere ficar sozinho, não fala e
tímido); 2. Queixas somáticas (como, por exemplo, tontura, cansaço, dores de
cabeça); 3. Ansiedade/Depressão (solidão, sente-se nervoso, sente-se culpado); 4.
Problemas sociais (muito dependente, prefere crianças mais jovens); 5. Problemas de
pensamento (ouve vozes, comportamentos estranhos, ideias estranhas); 6.
Problemas de atenção (não consegue se concentrar, impulsivo); 7. Comportamento
delinquencial (não sente culpa, mente, faz uso de álcool ou drogas); 8.
Comportamento agressivo (é desobediente na escola, ataca as pessoas). As três
primeiras síndromes receberam uma análise fatorial que resultou no agrupamento que
recebeu a designação de problemas internalizantes e refere-se a um conjunto de
comportamentos considerados problemáticos mas que não se exercem diretamente
sobre o ambiente, restringindo-se ao âmbito privado da criança. As síndromes 7 e 8
receberam o mesmo tratamento e resultou no agrupamento que recebeu a designação
de problemas externalizantes, e refere-se a um conjunto de comportamentos
considerados problemáticos que se exercem diretamente sobre o ambiente.

Procedimento:
Com autorização da escola, em reunião de pais e mestres, os pesquisadores
explicaram o objetivo deste estudo e os instrumentos que seriam preenchidos. Dez
mães aceitaram participar e foram entrevistadas individualmente, após assinarem o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Análise Estatística: Foram elaboradas medidas descritivas e confeccionados
gráficos. Para verificar a correlação entre as variáveis foi utilizada a Correlação de
Sperman e para validar as correlações usou-se o Teste de Correlação.

657
Resultados
A Tabela 1 apresenta a média descritiva do teste CBCL por oito síndromes,
média total de problemas internalizantes e externalizantes e total.

Tabela 1: Médias Descritivas do T Escore obtida nas escalas e subescalas do CBCL


Escalas Média

Total de Problemas 63,0*


Escala Internalizante 68,4*
Escala Externalizante 60,8
Ansiedade/Depressão 61,0
Retraimento/Depressão 67,4*
Queixas Somáticas 67,0*
Problemas de Sociabilidade 61,3
Problemas com o Pensamento 55,7
Problemas de Atenção 63,7
Violação de Regras 59,2
Comportamento Agressivo 61,1
*Totais clínicos

Observamos que o Total de Problemas e Problemas Internalizantes


apresentam escores considerados clínicos. As Escalas Retraimento/Depressão,
Queixas Somáticas também apresentam escores considerados clínicos.
A Tabela 2 apresenta os valores de média descritiva obtidos na análise de cada
prática parental do IEP.

Tabela 2: Média Descritiva de Práticas Educativas (IEP)


Inventário Parentais Média
Total Bruto -3,6
Total Percentil 29,0
Monitoria Positiva 39,0
Comportamento Moral 59,3*
Punição Inconsistente 53,5*
Negligência 14,5
Disciplina Relaxada 25,5*
Monitoria Negativa 28,0*
Abuso Físico 47,5

658
Observamos que, em média, o comportamento Moral e a punição Inconsistente
apresentaram escores mais altos, seguidos da Disciplina Relaxada e Monitoria
Negativa.
A Tabela 3 apresenta a correlação entre estilos parentais, medido pelo IEP, e
problemas de comportamento medidos pelo CBCL.

Tabela 3: Correlação entre Estilos Parentais e CBCL


IEP Total Total Monit. Cpto Punição Negli- Discipl. Monit. Abuso
CBCL Bruto Percentil Positiva Moral Incons. gência Relaxada Negativa Físico
- -
Total de Problemas Corr 8,50% -0,60% 0,60% 11,00% -15,30% 32,10% 6,50% -57,30% 36,10%
p-valor 0,815 0,987 0,986 0,761 0,674 0,365 0,859 0,083 0,306
Corr 31,00% 23,50% 17,90% 37,00% -7,00% 15,20% 35,20% -47,30% 4,60%
Escala Internali
p-valor 0,384 0,513 0,621 0,292 0,847 0,676 0,318 0,167 0,899
Corr 20,70% 12,90% -1,20% 34,40% -21,60% 16,40% 15,60% -61,10% -4,60%
Escala Externali
p-valor 0,565 0,722 0,973 0,331 0,549 0,651 0,668 0,061 0,9
Corr 21,40% 14,70% 5,70% 67,30% -15,80% 24,60% 39,50% -58,50% -2,00%
Ansiedade Depressão
p-valor 0,553 0,686 0,876 0,033 0,663 0,493 0,258 0,075 0,956
- - -
Retraimento/Depressão Corr 10,40% -14,90% -10,90% 26,00% -41,30% 38,60% 26,40% -2,60% 33,10%
p-valor 0,775 0,681 0,764 0,469 0,235 0,271 0,46 0,944 0,349
Corr 27,60% 22,00% 16,90% 14,50% -2,90% 4,00% 28,40% -19,40% 19,80%
Queixa Somática
p-valor 0,44 0,542 0,64 0,689 0,937 0,914 0,427 0,59 0,584
Corr 63,40% 57,20% 48,60% 42,30% 20,30% 59,70% 31,10% -53,60% 28,20%
Probl Sociabilidade
p-valor 0,049 0,084 0,154 0,223 0,573 0,069 0,381 0,11 0,43
-
Probl Pensamento Corr 12,30% 10,50% 2,30% 19,00% 0,30% 28,40% 30,80% -6,10% 33,80%
p-valor 0,736 0,773 0,951 0,599 0,993 0,426 0,387 0,867 0,339
Corr 39,10% 32,90% 29,60% 31,60% 14,10% -4,00% 44,50% -54,40% 14,60%
Probl Atenção
p-valor 0,264 0,353 0,407 0,374 0,697 0,913 0,197 0,104 0,688
- - -
Corr 39,00% -48,60% -53,90% 8,60% -70,70% 12,50% -4,90% -39,20% 60,00%
Violação de Regras p-valor 0,266 0,154 0,108 0,812 0,022 0,73 0,893 0,263 0,067
-
Cpto Agressivo Corr 2,40% -4,30% -19,40% 21,80% -32,20% 13,80% 7,80% -45,30% -5,90%
p-valor 0,947 0,906 0,592 0,544 0,364 0,704 0,83 0,188 0,871

Foi possível observar que Estilos Parentais de risco têm correlação positiva
com Problemas sociais. Problemas Externalizantes apresentam correlação negativa

659
com Monitoria Negativa. A punição inconsistente apresenta correlação negativa com
Violação de Regras. O comportamento moral apresenta correlação positiva com
ansiedade depressão.

Discussão
O presente estudo não apresentou correlação de problemas de comportamento
com estilos parentais. Somente algumas práticas educativas foram associadas ao
detalhamento de sintomas com problema comportamental. Problemas de
comportamento externalizantes caracterizados pela agressividade física e/ou verbal,
baixa autoestima, rebeldia, crueldade e delinquência estão relacionados a monitorias
negativas, que também podem ser denominadas de supervisão estressante que se
caracteriza por fiscalização e ordens excessivas dadas aos filhos, que em sua grande
maioria não são obedecidas e geram uma relação pais-filhos baseada em hostilidade,
insegurança e dissimulação. O controle parental e disciplina severa são os fatores
mais preponderantes para o surgimento de problemas de comportamento
externalizantes. Os nossos resultados apontaram uma correlação negativa no item
punição inconsistente e violação de regras, ou seja, quanto maior a punição menos
os adolescentes vão desobedecer às regras. Neste estudo, no início da adolescência,
o controle parental exerceu um controle sobre a agressividade e rebeldia dos filhos.
Podemos pensar que nestes itens os pais estão atentos à regra e seu próprio estado
de humor. Para apoiar e conduzir seus filhos na assunção de melhores
comportamentos é necessária uma consistência das regras e espaço para o diálogo.
Essa observação também é possível fazer no item de comportamento moral, pois
quanto maior o comportamento moral, maior será a ansiedade e depressão.
Abuso físico é caracterizado como maus-tratos infantis. Inclui abuso físico,
psicológico, sexual e negligência. Para Gomide (2011), práticas parentais violentas
têm sido consideradas como fatores etiológicos de problemas sociais e psicológicos,
como comportamento criminoso e distúrbio psiquiátrico. Além de que espancamentos,
atitudes autoritárias, disciplina severa, rejeição, falta de supervisão, separação,
divórcio, instabilidade familiar, conflitos conjugais e características desviantes
(criminalidade e abuso de substâncias psicoativas) podem ser fatores determinantes
para o surgimento de problemas de comportamento, seja ele externalizante ou
internalizante.

660
As mães que participaram deste estudo parecem, que ao administrarem
punição física, não associam também a punição verbal, por meio de insultos,
xingamentos e ameaças, diferente do encontrado por Rinhel-Silva, Constantino e
Rondini (2012).
A combinação de abuso físico e abuso psicológico pode acarretar o
desenvolvimento da agressão, delinquência, e do comportamento antissocial nas
crianças. Para Salvo, Silvares e Toni (2005) mãe com baixo nível de afeto positivo
usam mais frequentemente punição física que geram, com maior frequência,
problemas de comportamento.
Gomide (2003) diz que há uma grande importância na qualidade das relações
entre pais e filhos, pois é por meio de um relacionamento parental saudável que a
criança se desenvolve socialmente e com mais facilidade. Sendo assim a criança
necessita de um ambiente acolhedor e familiar com o intuito de protegê-la de eventos
que possam vir a ser ameaçadores.
Práticas educativas de disciplina relaxada é caracterizada pelo não
cumprimento de regras estabelecidas. Os pais estabelecem regras, ameaçam e
quando se confrontam com comportamentos agressivos dos filhos, renunciam a sua
responsabilidade educadora, retirando o que foi dito anteriormente. Esse tipo de
comportamento dos pais pode acarretar uma falha do desenvolvimento social,
podendo então a criança se tornar um adolescente delinquente e agressivo.
Pesquisas recentes indicam que a interação pais-criança é um processo
recíproco. Não apenas a ineficiência parental aumenta a probabilidade de a criança
vir a ter problemas de comportamento, mas o comportamento de hostilidade na
criança para com os pais é frequentemente seguido muitas vezes por uma visível
redução de esforços parentais em monitorar e disciplinar seus filhos. O nosso estudo
também mostrou que as famílias apresentam estilos parentais em risco para os filhos.
Observou-se uma tendência para manifestação de problemas sociais
relacionados a estilo parental negligente. Se esse estilo parental se apresentar ativo
no relacionamento pais-filho, a criança pode desencadear sentimento de insegurança,
vulnerabilidade, eventual hostilidade e agressão em relacionamentos sociais.
Punição inconsistente é outra monitoria negativa encontrada em nossos
resultados correlacionada ao comportamento de violar as regras. O determinante da
punição inconsistente é o estado emocional dos pais e não a conduta da criança, ou
seja, se em algumas situações a mãe/pai pune a criança em outro momento quando

661
tiver que punir novamente pelo mesmo comportamento isso não ocorre. Neste caso
há uma interiorização de valores morais, ou seja, a criança não aprende o que é certo
ou errado, porém ela aprende a discriminar quando o pai ou a mãe estão nervosos.
O comportamento moral é conceituado como dilemas humanos que envolvem
honestidade, generosidade, justiça, compaixão, entre outros, presentes em todos os
tempos, culturas e que são fundamentais para nossa convivência humana. Hughes e
Dunn (2000) focalizam a questão da moral nas relações entre estilos parentais e
comportamento sociomoral, argumentando que a delinquência na idade adulta pode
estar relacionada à criança não vivenciar e presenciar modelos morais nas atitudes
dos membros de sua própria família.
Os pais deveriam criar um conjunto de regras para os seus filhos sobre
segurança (onde devem ir, com quem podem associar-se, horário de estar em casa)
e autonomia (tomarem boas decisões em relação ao presente e futuro, a si e aos
outros) e, ainda, garantir o cumprimento dessas regras; além disso, ter ação disciplinar
que resolva quando as regras são violadas.
A monitoria positiva também envolve diálogo e respeito, além do suporte por
parte dos pais para com as crianças nos momentos de necessidade. Algumas
pesquisas relacionadas à comunicação indicam que a delinquência está associada a
comunicação pobre entre pais-filhos e que esses pais se preocupam menos e não
passam confiança para seus filhos, além de apresentarem baixo suporte de identidade
e possui déficit em planejamentos futuros.

Conclusão
Ainda que este estudo tenha sido conduzido com uma amostra restrita de
mães, nossos resultados não mostraram correlações de estilos parentais com
problemas de comportamento. No entanto, quando analisamos de forma detalhada os
itens das escalas verificamos correlações positivas para comportamento moral e
ansiedade e depressão; e para estilos parentais de risco e problemas sociais. Já os
problemas externalizantes apresentam correlação negativa com monitoria negativa e
a punição inconsistente apresenta correlação negativa com violação de regras.
Podemos concluir que o ambiente familiar desempenha um papel de mediador
entre o adolescente e a sociedade, e que dependendo da forma como se monitora o
adolescente ocorre a manifestação ou não de problemas de comportamento. A família

662
é um fator de proteção para que o adolescente tenha um desenvolvimento saudável
nos seus aspectos cognitivos, afetivos e sociais.

Referências

Achenbach, T. M.(2001). Manual for the Child Behavior Checklist/4-18 and 1991
profile. Burlington, VT: University of Vermont.

Bolsoni-Silva, A. T., Loureiro, S.R., & Marturano, E.M.(2016). Comportamentos


internalizantes: associações com habilidades sociais, práticas educativas, recursos
do ambiente familiar e depressão materna. Psico, 47 (2),111-120.

Del Prette, A; Del Prette, Z.A.P.(2008). Pais e professores contribuindo para o


processo de inclusão: Que habilidades sociais educativas devem apresentar? In:
Mendes, E.G.; Almeida, M.A.; HayashiA, M.C.P.I. Temas em Educação Especial:
Tendências e perspectivas. Araraquara, SP: Junqueira & Marin. p. 239-254.

Gomide, P.I.C. (2001). Efeitos das práticas educativas no desenvolvimento do


comportamento anti-social. In: Marinho, M.L.; Caballo, V.E. Psicologia clínica e da
saúde. Londrina, PR: Editora da Universidade Estadual de Londrina. p.33-53.

Gomide, P.I.C.(2003). Estilos parentais e comportamento anti-social. In: Del Prette, A;


Del Prette, Z.A.P. (Orgs). Habilidades sociais, desenvolvimento e aprendizagem.
Campinas: Alinea. p 21-60.

Gomide, P.I.C.(2006).Inventário de Estilos Parentais. Modelo teórico: manual de


aplicação, apuração e interpretação. Petrópolis: Vozes.

Gomide, P.I.C.(2011). Pais presentes pais ausentes: regras e limites. Rio de Janeiro:
Vozes

Hughes, C.; Dunn, J.(2000). Hedonism or empathy? Hard-to-manage children’s moral


awareness and links with cognitive and maternal caracteristics. British Journal of
Developmental Psychology, 18(1), 26-28.

663
Pacheco, J.T.B.; Teixeira, M.A.P.; Gomes, W.B.(1999). Estilos parentais e
desenvolvimento de habilidades sociais na adolescência. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, 15(2),117-126.

Rinhel-Silva, C.M.; Comstantino, E.P.; Rondini, C.A.(2012). Família, adolescência e


estilos parentais. Estudos de Psicologia, 29 (2), 221-230.

Salvo, C.G.; Silvares, E.F.M.; Toni, P.M.(2005) Práticas educativas como forma de
predição de problemas de comportamento e competência social. Estudos de
Psicologia, 22 (2), 187-195.

664
60- MEDIAÇÃO ESCOLAR COM INTERVENÇÃO EM GRUPO DE ALUNAS QUE
PRATICARAM AUTOMUTILAÇÃO: RELATO DE EXPERIÊNCIA

Ms Patricia Aparecida Nunes e Silva1 1


Dra Yone Fonseca2 2

Resumo: A mediação parte do princípio de que todo e qualquer conflito pode ser
mediado desde que o mediador tenha condições de fazê-lo. A mediação escolar
busca, através do diálogo, a resolução dos conflitos. A escola tem sido palco para
expressão de vários tipos de violência. Nos últimos anos, a frequência de
adolescentes que têm praticado a automutilação como forma de lidar com a tristeza e
a solidão tem aumentado, sendo a escola o local onde esta prática e suas
consequências são observadas. A professora mediadora escolar e comunitária
desenvolveu um trabalho com alunos do Ensino Fundamental II que infligiram auto
violência. Apresentar esta experiência de mediação/intervenção e suas
consequências é o objetivo deste relato. Verificou-se que a automutilação foi praticada
dentro e fora do ambiente escolar, principalmente por meninas, como “uma forma de
amenizar a própria dor”. A intervenção denominada Projeto Roda de Conversa foi
conduzida com os alunos que praticavam automutilação. O trabalho da professora
mediadora teve êxito, porém, é fundamental a participação dos pais e da rede de apoio
para auxiliar os alunos e demais profissionais que trabalham na escola, de maneira a
lidar com a automutilação e com outras formas de violência que ocorrem neste
ambiente.

Palavras-chave: mediação escolar, adolescentes, automutilação, escuta ativa,


intervenção psicossocial.

1 – Psicóloga Escolar, Professora Mediadora Escolar e Comunitária na EE Parque Anhanguera


– DE Norte; Psicóloga na Secretaria de Saúde de Carapicuíba/SP
2
Psicóloga Clínica, Professora Universitária de Cursos de Pós-graduação em Terapia Cognitiva (Unisal /
Cognitiva Scientia)

665
Introdução

A atuação do professor mediador escolar e comunitário vai além da ação para


resolução dos conflitos escolares que, em sua maioria, ocorrem entre os alunos e/ou
entre alunos e professores. Inclui desenvolver atividades que auxiliem os educandos
em sua formação integral, incluindo seu bem-estar físico-emocional-social.
Neste sentido, escutar e auxiliar os alunos que praticaram autoagressão é uma
das ações deste profissional, alocado em algumas escolas da rede estadual de ensino
do Estado de São Paulo.
A Resolução SE nº 19, de 12/02/2010, institui o Sistema de Proteção Escolar
na rede estadual de ensino de São Paulo. Dentre os objetivos constantes no artigo 1º,
está “proteger a integridade física e patrimonial de alunos, funcionários e servidores”.
No artigo 7º da mesma resolução, o docente da rede pode exercer o papel de
Professor Mediador Escolar e Comunitário, com as seguintes atribuições:
I - Adotar práticas de mediação de conflitos no ambiente escolar e apoiar o
desenvolvimento de ações e programas de Justiça Restaurativa;
II - Orientar os pais ou responsáveis dos alunos sobre o papel da família no
processo educativo;
III - analisar os fatores de vulnerabilidade e de risco a que possa estar exposto
o aluno;
IV - Orientar a família ou os responsáveis quanto à procura de serviços de
proteção social;
V - Identificar e sugerir atividades pedagógicas complementares, a serem
realizadas pelos alunos fora do período letivo;
VI - Orientar e apoiar os alunos na prática de seus estudos.

A mediação é um processo voluntário em que as partes aceitam que um terceiro


(mediador) as auxilie a encontrar uma solução que atenda seus interesses por meio
do diálogo construtivo. (Cunha & Monteiro, 2016; Vasconcelos, 2008).
Para Costa (2012) a mediação de conflitos é uma ferramenta pedagógica para
ensinar a lidar com o conflito, para adotar estratégias positivas, criativas e de
colaboração na gestão da convivência, contribuindo assim para que a escola cumpra

666
suas funções de educação e de socialização. O envolvimento dos próprios alunos
como mediadores de conflito no espaço escolar favorece o protagonismo juvenil.
No Estado de São Paulo, com a figura do professor mediador escolar e
comunitário, coube a este profissional a mediação dos conflitos escolares e apoiador
dos alunos nesta prática, bem como um facilitador na diminuição da violência nas
escolas, em suas diversas manifestações: entre alunos, alunos para com professor,
aluno para com o patrimônio público, comunidade para com a escola, entre outras.
Para aprofundar a compreensão da prática do professor mediador na rede de
ensino estadual, o trabalho de Gomes & Martins (2016) apresenta uma análise do
Sistema de Proteção Escolar (SPEC) enquanto política pública, e do Professor
Mediador Escolar e Comunitário, na mediação da violência e indisciplina escolar.
A mediação escolar e as formas de lidar com os diversos tipos de violência
estão em constante avaliação pela Secretaria de Estado de Educação de São Paulo.
Desde 01/10/19 está em vigor a Resolução 48 que – Institui o CONVIVA SP –
Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar no âmbito da rede estadual
de educação, o qual terá sua efetiva implementação a partir de 2020, após a pesquisa
de clima organizacional que está sendo realizada nas escolas.
Geralmente, violência é definida como uso intencional da força física ou do
poder, de maneira direta ou em forma de ameaça. A violência pode ser auto infligida,
interpessoal ou coletiva, que resulte ou tenha alta probabilidade de resultar lesão,
óbito, dano psicológico. De certa forma, a violência ocorre em contextos de
desigualdade e se relaciona pela característica do poder sobre o outro (Silva, Silva,
Passos, Soares, Menezes, Colares, & Santos, 2018). Para o objeto deste relato, a
violência que nos referimos é a violência contra si mesmo, especificamente, a
automutilação.
A automutilação tem crescido, principalmente, entre mulheres adolescentes. O
aumento crescente desta violência tem motivado a busca pela compreensão das
possíveis causas que levam a esta estratégia.
Silva et al (2018) realizaram uma pesquisa sobre a autopercepção negativa em
saúde em adolescentes, e encontraram que em relação ao sexo, a percepção
negativa foi maior para o feminino quando comparado ao masculino. Os autores
justificaram esse resultado afirmando que as moças apresentam maior sensibilidade
para detectar alterações fisiológicas e considerar hábitos inadequados à saúde, pelo
fato de serem mais atenciosas quanto aos cuidados de saúde.

667
Para este relato, compreenderemos automutilação como ato de machucar o
próprio corpo de formas diversas, por meio de cortes, queimaduras, auto
espancamento, entre outras, conforme proposto por Araújo, Chatelar, Carvalho, &
Viana (2016). Para Martinez (2018) a automutilação só pode ser entendida em
relações entrelaçadas entre o familiar, pessoal e social e constitui um fator de risco
para a saúde devido às suas relações com o suicídio.
Nesse relato de experiência será apresentado um recorte do trabalho
desenvolvido por uma professora mediadora escolar e comunitária (psicóloga escolar)
junto a alunos do 6º ao 8º ano do Ensino Fundamental II que se automutilaram.

Metodologia do processo de mediação, procedimentos realizados

A inserção da profissional de mediação de conflitos escolares ocorreu nesta


escola pública estadual pertencente à Diretoria de Ensino Norte 1, localizada na região
noroeste de São Paulo, no ano de 2018.
Esta profissional tem a carga horária de 19 horas-aula semanais, nos períodos
vespertino e noturno. Inclui, além das atividades no ambiente escolar, duas reuniões
externas mensais, sendo uma Orientação Técnica com os todos os professores
mediadores e vice-diretores da Diretoria de Ensino e uma reunião por região de
atuação. Esta escola está localizada no chamado Polo Anhanguera-Perus-Pirituba e,
na reunião, participam os professores mediadores e vice-diretores das escolas que
compõem a região. O objetivo de ambas as atividades externas é capacitar os
profissionais quanto à mediação e discutir os conflitos e formas de lidar com eles.
Situações como brigas entre alunos, conflitos verbais envolvendo ou não
agressões físicas, desentendimento aluno-professor, orientação a pais, orientação
aos alunos, escuta das queixas dos alunos, pais e professores fazem parte do escopo
de atuação do professor mediador escolar e comunitário. Não há uma rotina
sistemática de encaminhamento à professora mediadora, professores ou outros
profissionais podem encaminhar os alunos ou através da procura espontânea por
eles.
Durante o processo de caracterização da escola, incluindo suas
vulnerabilidades e necessidades, a professora mediadora identificou que, vários
alunos do 6º ao 8º ano do Ensino Fundamental II, período vespertino, ainda no
primeiro bimestre (fevereiro ao início de abril) estavam recorrendo à automutilação

668
(cortes com estilete ou lâmina do apontador, nos braços, pernas e barriga) para “aliviar
sua dor” (SIC).
Dos 466 alunos que cursaram o Ensino Fundamental II (manhã e tarde), com
idades entre 11 e 16 anos, a prática da automutilação, dentro e fora do ambiente
escolar, principalmente, por meninas do período vespertino, chamou a atenção no
ambiente escolar.
Em relação às mutilações, a professora mediadora era informada, pelos
próprios colegas dos alunos que se machucavam, professores ou outros profissionais
da instituição. Do total de alunos do Ensino Fundamental, onze foram atendidos com
esta demanda. Vale dizer que houve outros casos, os quais não foram acompanhados
pela mediação.
Dos onze alunos, apenas um era do sexo masculino. Ele foi o último que a
mediadora teve conhecimento que se cortava. Uma aluna, que participava da roda de
conversa, o trouxe para um encontro, ele gostou da dinâmica e permaneceu até o fim
do ano no projeto. O que levou este garoto a recorrer a esta prática, foi o término do
namoro.
As alunas referem solidão, luto, separação dos pais como desencadeadores da
autoagressão.
Antes do início do projeto, a mediadora praticava a escuta ativa das alunas que
se feriam a fim de compreender o que estava acontecendo. A escuta ativa é um dos
princípios da mediação, que consiste em escutar atentamente o interlocutor, não só
com os ouvidos, mas com todos os sentidos em alerta (Silva, 2002).
Como a escuta era frequente, ao menos, duas vezes por semana, a professora
mediadora foi motivada – pelos próprios alunos ouvidos – a desenvolver a intervenção
denominada Projeto Roda de Conversa, a fim de complementar o trabalho realizado,
individualmente, junto aos alunos.
Esta intervenção teve sua origem pelas características da demanda e obteve
total aceite por parte das alunas, bem como da direção escolar. As próprias alunas
sugeriram quem deveria participar da roda e se prontificaram a convidar os colegas.
A Roda de conversa se caracteriza como uma metodologia participativa. De
acordo com Silva (2002) corresponde ao emprego de métodos e técnicas que
possibilitem ao grupo vivenciar sentimentos, ressignificar conhecimentos e valores e
perceber as possibilidades de mudança. A Roda de Conversa teve como objetivo
elevar a autoestima dos alunos e discutir temas próprios da adolescência, sugeridos

669
por eles, tais como: sexualidade, orientação sexual, família, luto, solidão,
automutilação, entre outros.
Os encontros foram semanais com duração de 1h10 minutos, após o término
das aulas do período vespertino. Para participar das rodas de conversas havia
autorização dos pais dos alunos, uma vez que o encontro não era no horário de aula.
No primeiro semestre foram convidados aproximadamente 30 alunos, dos
quais, apenas oito frequentaram a roda de conversa e, destes, três que praticavam a
automutilação. Foram realizados cinco encontros no período de maio a junho/18.
Ainda por interesse e sugestão dos alunos, a roda de conversa teve
continuidade no 2º semestre. Novos alunos foram convidados a participar. Entretanto,
a média que aderiu foi, menor, seis alunos, sendo cinco que haviam praticado a
automutilação. Ocorreram onze encontros no período de agosto a novembro/18 dos
14 previstos. Dos participantes do projeto: duas mudaram de escola; todos os pais
ficaram cientes e foram orientados a procurar ajuda profissional (psicólogo e/ou
psiquiatra), com o encaminhamento escolar, mas nem todos o fizeram. Dois casos
não foram de automutilação e sim, tentativa de suicídio, estes foram acompanhados
pelo CAPSij (Centro de Apoio Psicossocial Infanto-Juvenil). Uma não mais se
machucou e a outra continua em acompanhamento neste serviço. Os demais, não
mais se feriram.

Discussão

Durante o ano de 2018, o Projeto Mediação Escolar e Comunitária foi regido


pela Resolução SE 8, de 31-1-2018. Em seu Artigo 1º, é destacada a finalidade de
quem exerce esta função, a saber “implementar a cultura de paz no interior da unidade
escolar, mediante ações que estimulem, incentivem e promovam a melhoria da
qualidade do processo de ensino-aprendizagem na educação básica paulista”.
Para exercer esta função, o professor deve fazer parte do quadro do magistério
da Secretaria de Educação, não pode ter cargo efetivo e deve passar por uma seleção
a qual envolve análise do currículo profissional e pontuação na rede. As
características e habilidades analisadas incluem as citadas no Artigo 3º da mesma
Resolução, entre elas:

670
“colocar-se no lugar do outro, sabendo ouvir e observar as perspectivas, os
valores, as formas de pensar e agir.” (item II). Este é o princípio da empatia,
citado em Cunha & Monteiro (2016).

Dentre as responsabilidades do professor mediador, apresentadas no Artigo 4º,


item I “atuar de forma proativa, preventiva e mediadora, desenvolvendo, diante de
conflitos no cotidiano escolar, práticas colaborativas e restaurativas de cultura de paz”,
trabalho este que foi realizado com a técnica da escuta ativa e promoção da roda de
conversa.
A experiência da Roda de Conversa demonstra que o trabalho do professor
mediador pode contribuir para a manutenção da saúde mental do aluno, ao criar
espaços de escuta para esse conflito interno, tornando possível direcionar o aluno à
busca de ajuda profissional, proporcionando e transformando a escola em um espaço
de acolhimento para o sofrimento emocional.
Esse tipo de intervenção poderia ser comparada as práticas de abordagens
psicossociais que se pautam na produção de práticas de atenção, prevenção e
educação, assim como no planejamento e na gestão em saúde (Paiva, 2013). O
trabalho desenvolvido pela autora no campo da vulnerabilidade e direitos humanos.
Propõe que a pessoa seja vista como sujeito de direitos, como sujeito em relação,
dessa forma a pessoa pode vivenciar um processo de adoecimento e pode buscar
recursos para se proteger dele. Estas jovens, que buscaram ajuda inspiraram e
organizaram um processo de transformação.
Para a autora a vulnerabilidade ao adoecimento será sempre de uma pessoa,
em uma determinada situação social vivenciada como cenas dinâmicas, onde seus
direitos estarão garantidos ou violados. O processo de mediação funcionou como um
programa de apoio a estas jovens.
Conquistar a confiança do aluno é uma construção constante. Por vezes, ele
recusa falar sobre seus sentimentos, conflitos e emoções, por medo de que os pais
sejam comunicados ou que os professores ou colegas saibam. O professor mediador,
através da escuta ativa, após várias conversas, consegue alcançar este objetivo.
Cinquenta por cento dos alunos assistidos na escola relatam que um dos
motivos que levou à autoagressão seria o sentimento de abandono pelos pais, o
mesmo dado obtido por Cedaro & Nascimento (2013), em sua pesquisa com mulheres
jovens atendidas em um CAPS. Outros autores como Magalhães, Gomes, Mota,

671
Campos, Camargo, & Andrade (2017) relatam situações em que os jovens sofrem,
além do abandono, violência intrafamiliar, vivências de agressões físicas, negligência
e observam ainda a violência conjugal entre os pais.
A automutilação, não necessariamente, tem uma intenção suicida, mas é um
sinal de alerta, como indicaram Maurente, Garcia, Garcia, Grunbaum & Pérez (2018).
É preciso diferenciá-la de outras situações de maior gravidade, como a tentativa de
suicídio. Dentre elas estão o nível de letalidade, o grau de repetição e as
características direta e indireta do ato (Pattinson & Kahan, 1983, apud Maurente,
Garcia, Garcia, Grunbon & Pérez, 2018).
A automutilação é algo crescente e preocupante, o que levou a promulgação,
pelo Governo Federal, da Lei 13819 de 26 de abril de 2019 que Institui a Política
Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela
União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Por ser uma prática que repercute na escola, cabe a toda comunidade escolar
buscar meios para compreender e auxiliar os alunos a lidarem com suas dificuldades.
Neste sentido, a roda de conversa é uma prática que favorece os alunos a
falarem das situações que podem desencadear a automutilação, tais como, “traumas
familiares, como a separação dos pais, angústia, tristeza, alegria, insônia, ansiedade,
medo, frustração, sensação de culpa, entre outros” (Vieira, Pires & Pires, 2016, p.
258), questões que foram trazidas pelos alunos nas rodas realizadas.
Os mesmos autores destacam que quanto mais precoce e adequada a
abordagem sobre o comportamento automutilador, mais eficaz será seu prognóstico.
Possato, Rodríguez-Hidalgo, Ortega-Ruiz, & Zan (2016) destacam que
programas de formação para profissionais da educação sobre conflitos e outras
causas que repercutem negativamente na convivência escolar, assim como sobre as
estratégias mais apropriadas para sua prevenção e tratamento deveriam ser
desenvolvidos. Salientamos aqui, especificamente, a necessidade de abordar
temáticas relacionadas ao campo da saúde mental.
Conclui-se que o trabalho da professora mediadora teve êxito. Consideramos
que o fato da professora ser psicóloga, também foi uma variável que favoreceu o
processo. Contudo é fundamental a participação dos pais e da rede de apoio para
auxiliar os alunos e demais profissionais que trabalham na escola a lidar com a
automutilação e outras formas de violência que ocorrem neste ambiente.

672
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675
61- OS PERCURSOS DE UMA CRIANÇA AUTISTA RUMO À SUBJETIVAÇÃO 3

Carolina Sarmanho*
Maria Izabel Tafuri**

Resumo: Pensar sobre autismo remete à querela que marca a contemporaneidade.


Tal conceito carrega controvérsias que se fundamentam na inquietação causada pela
teoria da sexualidade infantil, de Freud. Quando Leo Kanner se utiliza desse termo,
em 1943, para caracterizar um grupo de crianças com sérias dificuldades relacionais,
vê-se o começo de um novo capítulo na psiquiatria e na psicanálise. Este trabalho se
dispõe a pensar psicanaliticamente o autismo, lembrando que o sujeito se edifica sob
a cultura internalizada em cada indivíduo, e que as formas de subjetivação se moldam
às formas da cultura vigente. Analisam-se as consequências do discurso
contemporâneo que ostenta manuais psiquiátricos rigorosamente científicos, para,
assim, fazer um apelo à escuta do sujeito. A pesquisa, que é de viés psicanalítico,
analisa o tratamento psicanalítico de um menino de sete anos que, diagnosticado com
Síndrome de Asperger, inicia um acompanhamento pelo grupo de estágio da
professora Maria Izabel Tafuri, no Caep-UnB, mantendo-se em análise no consultório
particular da pesquisadora. Conclui-se que a clínica psicanalítica é um rico campo de
possibilidades para o sujeito que ainda virá a ser naquela criança.

Palavras-chave: Constituição do sujeito. Contemporaneidade. Autismo. Sofrimento


psíquico grave. Clínica psicanalítica. Psicanálise de crianças autistas.

INTRODUÇÃO

Contando com pouco mais de um século de Psicanálise, forjada clinicamente


para e com adultos neuróticos, majoritariamente, o trabalho psicanalítico com crianças
vem sendo desenvolvido há algumas décadas; trata-se de constante atualização da
técnica para sustentar o complexo, e por vezes delicado, processo de estruturação

3
Monografia de especialização em Teoria Psicanalítica realizada no UniCeub, em Brasília
*Psicóloga clínica
**Dra. em Psicologia Clínica, professora aposentada da Universidade de Brasília

676
subjetiva. Cada analista com sua peculiaridade contribui para as formas de elaborar a
técnica ao trabalhar no cerne da constituição - Winnicott, Melaine Klein, Frances
Tustin, Margareth Mahler, Françoise Dolto, são alguns nomes que se destacam na
clínica psicanalítica com crianças (Tafuri, 2000).
O trabalho psicanalítico com crianças propõe constantes desafios. Por estar em
desenvolvimento, a criança não domina a linguagem, tal qual um adulto, prestando-
se de outras vias para manifestar seus processos internos, como a brincadeira,
desenhos, sonhos. Porém, não são as crianças que (normalmente) procuram
tratamento, mas os pais. Escutar os pais permite ao psicanalista saber qual posição a
criança assume no discurso familiar, como essa criança é dita e antecipada ao mundo
(Oliveira, 1996).
No que concerne aos casos de crianças autistas, o trabalho clínico dos
psicanalistas depara-se com um quadro complexo que mais diz do mal-estar
contemporâneo que da subjetividade da criança em questão. O termo autismo em
1911 surgira para nomear uma peculiaridade de retraimento subjetivo devido a
psicopatologia. Em 1943 passa a caracterizar um quadro psicopatológico infantil,
tendo grande repercussão a partir das pesquisas realizadas na área psiquiatria infantil
por Leo Kanner, pesquisador alemão erradicado nos EUA, de grande influência na
psiquiatria. Kanner observava crianças que compartilhavam entre si um quadro cuja
principal característica era a dificuldade extrema de se relacionar socialmente e
linguisticamente com os outros, baseando-se numa origem psicogênica e no
organicismo do funcionamento desse quadro. Dessa forma, a propagação da
descrição dessa doença psicopatológica rara, que afeta crianças desde o início da
vida, pode ser compreendida como um marco no estudo das psicopatologias (Tafuri,
2003).
Desde a década de 1940, então, pode-se considerar que essas duas
perspectivas coexistem acerca do quadro aqui estudado: por um lado observa-se o
autismo como signo de uma deficiência cerebral, uma condição inata e biologicamente
determinada, que desde o nascimento impossibilita o indivíduo de estabelecer
relações saudáveis com o meio. E por outro lado, o autismo passou a ser estudado
pelo viés psicanalítico a partir da perspectiva da constituição do sujeito, onde se
estabeleceu a existência de um paradigma teórico, clínico e técnico (Tafuri, 2003).
A criança autista exerce um fascínio sobre quem se presta a entendê-la, um
fascínio que reside no caráter enigmático do seu isolamento frente a tudo que vem

677
exterior. A prática clínica com essas crianças exigiu reposicionamentos da técnica
psicanalítica clássica, que além de considerar as diversas hipóteses e critérios
diagnósticos, acolhe a função ética de discutir como os aumentos diagnósticos se
entrelaçam às relações simbólico-culturais que hoje estruturam as novas famílias e
seus bebês. Tal tarefa implica refletir quais são os novos modos de subjetivação frente
ao discurso contemporâneo (Bernardino, 2016).
Na contemporaneidade, o autismo tornou-se um tema relevante principalmente
quando relacionado ao campo da educação. Há uma hiperprodução de diagnósticos
dessa síndrome, a princípio rara, respondendo a uma certa demanda social, o que
pode evidenciar a que as transformações de instituições como “família” e “escola” não
mais correspondem às implicações de inserir uma criança no mundo.
A psicanálise, por oferecer uma teoria e uma clínica que compreende o
processo de formação do ser humano, diferente do ser biológico, mas como um ser
social e cultural, possibilita entender o lugar do autismo dentro da sociedade. Acolher
a psicopatologia da criança leva a toda uma condução diferenciada de tratamento do
autismo, considerando-se que ali há, acima de tudo, uma criança.

OBJETIVOS E MÉTODO

Esse trabalho teve como objetivos gerais (i) organizar um saber sobre o
autismo no campo psicanalítico e (ii) exemplificar possibilidades de tratamento clínico
para crianças autistas que permitam a essas um desenvolvimento saudável. Como
objetivo específico, exemplificar, a partir da análise de vinhetas clínicas, as
possibilidades e a eficácia do tratamento psicanalítico de crianças autistas.
Como recursos metodológicos, utilizou-se revisão bibliográfica de textos
acadêmicos que articulam psicanálise e autismo, e também análise de caso clínico
que ilustra a fundamentação teórica construída. Considera-se o método psicanalítico
como norteador para o direcionamento e finalidade da pesquisa, que é de cunho
qualitativo descritivo. Considera-se aqui a ideia de “psicanálise aplicada”, uma vez que
os fenômenos a serem estudados compreendem o enredamento do sujeito nos
fenômenos sociais e culturais (Rosa, 2012).
A pesquisa qualitativa se desenvolve pela perspectiva de que há uma relação
dinâmica entre o mundo objetivo e a subjetividade dos indivíduos. Assim, busca-se

678
interpretar os fenômenos para lhes atribuir significado, tendo na figura do pesquisador
o instrumento-chave (Silva, Menezes, 2005).

JUSTIFICATIVA

Pensar psicanaliticamente o autismo significa traçar um caminho enlaçado com


a psiquiatria técnico científica na busca de brechas em que possam emergir um sujeito
que não seja determinado por um termo e fadado a um destino irreversível. A criança
que recebe o diagnóstico de autismo não deixará de responder aos efeitos do lugar
moderno em que é situada, leva consigo as marcas da exclusão da linguagem e da
circulação social, mantido numa posição “na borda”. Na simbologia patológica do
autismo há um significante ‘autismo’, cunhado pelo social, que recai sobre a criança,
determinando como é representada por seus pais e sobre o modo como ela é tratada
pelo mundo (Kupfer, 1999).
A vida contemporânea se escança entre o desaparecimento da sociedade
patriarcal e os pilares ainda em construção da sociedade pós-moderna, que apresenta
como maior sintoma o discurso tecnocientífico. O papel da autoridade, agora
assumida pelo “cientificismo”, modifica as relações familiares. A cena familiar não é
mais um espaço fomentador de elaborações psíquicas do sujeito nas construções
simbólicas de um lugar no mundo, retirando do sujeito sua responsabilidade subjetiva
que o falar implica. A contemporaneidade, assim, é um dos grandes desafios às
famílias: a supremacia técnica recai também sobre as funções parentais, todavia, o
discurso tecnocientífico é absolutamente precário quanto às questões da
subjetividade. Ou seja, as condições simbólico-culturais da sociedade hipermoderna
favorecem a instauração de sintomas próprios ao quadro autístico por meio da
foraclusão do Outro e da fragilidade do exercício da maternidade e da paternidade
(Bernardino, 2016).
A função primordial do analista que trata um autista é pensar nos modos de
subjetivação frente às atualizações socioculturais, o que leva ao “mais além do
autismo”. Muitas patologias infantis que eram tratadas por suas próprias
denominações clínicas passaram a ser rudemente englobadas como parte do
espectro autista pelos manuais diagnósticos psiquiátricos.
É incontestável a valorização das classificações psiquiátricas, provenientes dos
manuais, como CID-10 (Classificação Internacional de Doenças) e DSM-IV (Manual

679
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), que não têm o intuito de
compreender os quadros que descrevem, mas sim de classificar quanto aos sintomas
e distúrbios de forma categórica. Por um lado, por eles há a possibilidade de
comunicação entre diversos profissionais graças à uniformização dos termos. Por
outro lado, há graves desvantagens, concentrando-se no que as crianças têm em
comum e não nas peculiaridades que as distinguem como sujeitos únicos, sem levar
em consideração as sutilezas que o trabalho clínico evidencia. Um outro problema
reside na dificuldade dos pais em lidar com o diagnóstico recebido, desprovidos de
recursos para significá-lo (Januário, 2012).
A prática clínica deva resgatar o encontro necessário entre o fenômeno e a
linguagem que a noção diagnóstica ofusca. Por isso a proposta adotada nesse
trabalho, defendida por Januário (2009), é que o analista deva se colocar diante de
uma criança diagnosticada autista considerando a essa uma criança em sofrimento
psíquico grave. Tal escolha implica considerar que o diagnóstico está falando de uma
querela do sujeito contemporâneo, complexo e enigmático, à espera de uma aposta
que se faça valer.
Diante das considerações expostas, no referencial psicanalítico, o ato
diagnóstico de crianças, bem como o de adultos, deve ser necessariamente posto em
suspenso e confirmado à posteriori, no decorrer do processo analítico (Oliveira, 1996).
A psicanalista Leda Bernardino (2010), defende que a posição psicanalítica deveria
marcar um contraponto à generalização psiquiátrica, criando um espaço de aposta na
subjetividade. Acolher a psicopatologia infantil na clínica psicanalítica quer dizer
reconhecer uma instância de defesa, que protege um mínimo de existência simbólica
possível diante do sofrimento desmedido em não ter acesso ao sentido, ficando preso
na totalidade onipotente do Outro.
Maria Cristina Kupfer (1999) propõe então que um trabalho possível com
crianças com falhas no processo de constituição psíquica é a de manutenção de um
esquema corporal apesar da degradação do esquema pulsional que não se enlaçou
ao significante. Enfim, considera-se que são crianças que crescem, se desenvolvem,
se tornam profissionais qualificados, porém, terão como “definitivo” a dificuldade de
se relacionar.
Leda Bernardino (2004) complementa a ideia do tratamento psicanalítico de
crianças que tropeçam no caminho de ser infans ao estatuto do sujeito desejante.
Para a autora, não se deve pensar num diagnóstico definitivo para a criança

680
“tropeçante”, deve-se, na verdade, haver implicação do analista em se colocar no
lugar em que a criança precisa que ele esteja, o de supor ali um sujeito e
principalmente, fazendo apostas, aposta que tem sim, tem alguém ali, um sujeito que
habita aquele corpo.

Relato de Experiência

No trabalho psicanalítico em consultório particular, recebendo várias demandas


de famílias trazendo crianças autistas, percebe-se a dimensão do discurso
contemporâneo na filigrana das relações cotidianas. Nos encontros individuais com a
criança autista, aposta-se na criança, sendo que o lance é no escuro. Nos encontros
com a família da criança, que tem na condição do filho seu próprio sintoma, mas que
sofrem com isso, é necessário construir uma aliança, proveitosa para o tratamento,
mas que também possibilite um giro discursivo dessa família. Tarefa árdua e bela.
Para ilustrar a discussão levantada, traz-se o relato da evolução clínica de um
menino de sete anos diagnosticado com síndrome de Asperger que, por meio do
trabalho psicanalítico, desenvolvido entre acompanhamento terapêutico na casa da
criança e tratamento psicanalítico no consultório dessa autora, apresentou melhoras
significativas no que diz respeito da sua relação com o Outro, nas suas relações
afetivas, e nos entendimentos de mundo e de si.
Comecei a acompanhar o menino quando este tinha seis anos de idade. Estava
terminando a graduação de Psicologia na Universidade de Brasília e estagiava na
clínica com a professora Maria Izabel Tafuri, cujo projeto com crianças envolvia um
trabalho que se iniciava com acompanhamento terapêutico, e depois passava para
sessões individuais na clínica. A criança, que havia sido diagnosticada como Asperger
aos três anos de idade e fazia tratamento com Risperidona, foi encaminhada para o
grupo da professora Tafuri por um neurologista do Hospital Universitário de Brasília
em 2016, ano que iniciei o trabalho com ela.
O trabalho como acompanhante terapêutica durou seis meses. Ia uma vez por
semana à casa da criança para brincar, quase sempre na presença da mãe, que se
ocupava das tarefas domésticas, observando os encontros de longe e me procurava
ao final dos encontros, para fazer perguntas ou “desabafos”. As maiores questões da
criança estavam em suas relações empobrecidas com o outro, na fala pouco
articulada e na dificuldade de elaborar um mundo fantasístico. Não sabia se localizar

681
no tempo, se desorganizava diante de mudanças na rotina, apresentava dificuldades
para fazer tarefas escolares e de se manter em sala de aula. Suas brincadeiras eram
extremamente concretas e as fantasias referiam-se somente a objetos irreais, não
pertencentes ao cotidiano, evidenciando uma precariedade imaginária - era difícil
manter brincadeiras compartilhadas.
Quando não era entendido ou quando não conseguia entender algo,
apresentava um ensimesmamento impenetrável, se apagando quando era
convocado, e na sua estereotipia, corria de um lado para o outro emitindo sons sem
sentido. Quando conseguia falar de si, dizia que queria ficar sozinho e ir para um
deserto.
Essas dificuldades apresentadas pela criança eram indecifráveis para a família,
composta pelo casal parental do menino e sua irmã mais velha, já adulta, filha do
primeiro casamento da mãe. Depois do diagnóstico psiquiátrico, a mãe desse menino
passou a frequentar palestras sobre autismo e se empenhou para entender sobre
essa condição. Na busca de recursos para lidar com filho, acabou se submetendo a
um saber científico, apresentava um discurso técnico sobre o autismo, mas pouco
sabia dizer sobre a criança que era seu filho. Contudo, ao observar os encontros do
acompanhamento terapêutico, começa a perceber as possibilidades de se relacionar
e brincar com ele. O acompanhamento terapêutico proporcionou um vínculo com a
criança e uma aliança com a família.
A presença da mãe durante os encontros com a A-T foi imprescindível para a
evolução do menino. Presenciar e participar das mediações não só a auxiliaram na
elaboração de seu lugar como mãe como transformou a relação da família com o
menino. Na medida em que a mulher foi se percebendo mãe, abria-se o caminho
necessário para que emergisse ‘uma criança’ no lugar do que antes era ‘um autista’.
Carregando um saber sobre seu filho, a mãe, em função materna, passa a lhe oferecer
um lugar no mundo e na sociedade.
A passagem para o consultório contou com uma evolução no tratamento que
sustentou que o menino construísse recursos internos que dessem conta de elaborar
um mundo tão violento. Considerando que houve um fracasso na função primordial
de reconhecimento, a criança vivia ameaçada por uma realidade da qual ele não sabia
fazer parte. Contando com o tratamento psicanalítico, contudo, encontrou um
mediador que articulasse suas fantasias internas com o mundo externo. As sessões

682
terapêuticas eram um lugar seguro em que a criança podia se mostrar vulnerável, fora
de sua armadura impenetrável, onde poderia construir sua subjetividade.
Nas sessões escolhia desenhar, tendo um caderno só dele, comprado pela
analista, e que ficava guardado no consultório. Representando imagens dos
aterrorizantes jogos computador que gostava, geralmente jogos violentos de robôs,
mostrava algo da elaboração de seus conflitos internos, uma realidade cindida entre
o mundo humano e o mundo mecânico. Tratando desse enredo, tinha a chance de
organizar sua própria história de vida. Por meio dos desenhos e da elaboração de
seus sentimentos, a criança foi “se mostrando” cada vez mais. Apareceram as marcas
da subjetividade, ele passou a se autodenominar um “menino grande”, escolhia suas
roupas e mostrava sinais nítidos de independência. Mais bem articulado no mundo da
linguagem, era capaz de nomear seus sentimentos e de fazer acordos.
Desenvolvia-se a largos passos, mostrando cada vez mais que se organizava
internamente, inclusive tendo o tratamento por Risperidona suspenso, sem quaisquer
complicações. Após o advento da criança, que anteriormente era vista por si como um
robô e como um autista pelos pais, era frequente os questionamentos do menino sobre
seu corpo. Colocava-se de frente ao espelho e se analisava, perguntava sobre seus
cabelos, dentes, olhos, identificando-se humano.
No meio do ano de 2018, Lucas foi encaminhado para outra analista, após essa
terapeuta mudar de cidade. Como encerramento do primeiro trabalho de análise, o
menino desejou que fosse realizada uma “venda de garagem”, uma festa com
exposição e venda dos desenhos feitos por ele. A criança convidou amigos e
familiares para o evento, estipulou o valor de cada obra, e autografava as imagens
compradas. Esse vernissage representou não apenas a organização subjetiva, mas
também que ele ocupava um lugar social e que sua produção pessoal tinha valor. Um
movimento de construção de identidade própria e de circulação social.

CONCLUSÃO

O contexto social da atualidade, de acordo com o anteriormente analisado,


apresenta uma epidemia diagnóstica de um quadro psicopatológico infantil que
deveria ser raro, o Autismo Infantil. Pela ótica psicanalítica, essa situação alarmante
pode ser compreendida como um sintoma social, consequência das transformações
sociais marcadas pelo neocapitalismo. Diante do conflito da perda de referências

683
simbólicas que outrora regularam as relações, o sujeito contemporâneo se vê perdido
no mar de possibilidades. O sujeito contemporâneo, incapaz de dizer de sua
identidade diante de todas as possibilidades padece num não-lugar.
Os pais, incapazes de saber de si, não conseguem dizer de seus filhos, com
consequências alarmantes. Nesse quadro, o manual de psiquiatria que propõe uma
classificação diagnóstica generalizável acaba recebendo status de referência
globalizada por dizer alguma coisa “sabível” sobre os sujeitos. Acontece que, no que
diz respeito ao campo da subjetividade, daquilo que constitui a individualidade de cada
um, os termos científicos diagnósticos têm pouco a dizer.
Munidos dessa compreensão teórica do momento cultural e histórico, os
analistas de criança têm como se colocar transferencialmente para a criança e para a
família de forma a acolher o mal-estar contemporâneo que ronda as clínicas infantis
da atualidade. Logo, o analista que recebe em seu consultório uma criança autista,
deverá atentar-se não só para as complexas peculiaridades desse quadro, como
também para as mais divergentes teorias que se formam ao redor desse estigma, que
desde sua criação é sinônimo de contradições.
Dessa forma, segue-se a recomendação de suspender o ato diagnóstico no
tratamento psicanalítico, para valorizar a construção de um espaço em que se possa
apostar na edificação subjetiva das crianças que chegam em sofrimento psíquico
grave. O trabalho com a família também é necessário, no caminho de instaurar uma
interrogação onde antes havia a certeza no que se refere à interpretação dos sintomas
do filho.
O caso da criança apresentado no artigo ilustra a complexidade de se trabalhar
com o estigma do autismo, além de demonstrar que há possibilidade para o sujeito
que carrega um diagnóstico determinante, por que na verdade, não é.
Os atendimentos evoluíram de acompanhamento terapêuticos na casa da
criança para atendimento individual, atravessado pela instituição universidade, e
atendimento individual em consultório particular. Nesse processo, é possível perceber
que o lugar que o menino ocupava no discurso familiar muda radicalmente, passando
de “ele é autista”, justificativa utilizada pela mãe para quaisquer comportamentos “fora
da normalidade” do menino, para “você é um menino grande”, argumento dirigido à
criança para lhe propor acordos e combinados dentro das possibilidades dele.
A mãe, quando anunciava que seu filho tinha Síndrome de Asperger, justificava
que “a habilidade dele era o desenho”. Por um certo tempo, a principal marca de uma

684
subjetividade que era dita do menino para ele, era que se tratava de um exímio
desenhista. Não obstante, essa criança, que pode criar por meio do tratamento
psicanalítico novas vias para retomar sua constituição subjetiva, assumiu um lugar
social próprio, o de artista, cuja produção tem valor simbólico e lugar para circulação
social, que ficou claro na realização da Vernissage na casa da família.
Supõe-se a essa criança que se desenvolve a olhos vistos um futuro. Sabe-se
que ele continuará a assumir sua subjetividade, organizando-se, como pode, na
cultura e nas relações, mesmo que, vez por outra, tenha uma escorregada ali ou aqui,
vagando como qualquer sujeito. Assim, a análise do caso ilustra a técnica clínica e
ratifica a ideia de que o acompanhamento psicanalítico de crianças com falhas no
desenvolvimento global possibilita a organização necessária para suportar e
aproveitar a vida.

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686
62- AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA E A DEPRESSÃO
EM CRIANÇAS NO AMBIENTE ESCOLAR

Kaliana de Freitas Loureiro4


Elenise Tenório de Medeiros Machado5
Isabelle Cerqueira Sousa6

Resumo: A depressão é uma doença crônica e hereditária que atinge adultos e


crianças de todas as idades. O objetivo do estudo foi refletir sobre à avaliação
psicológica como procedimento fundamental para identificar depressão em crianças
no ambiente escolar e analisar a importância do psicodiagnóstico precoce, como
ferramenta para o processo de intervenção psicológica que levem em consideração a
criança em sua totalidade. Trata-se de um estudo de revisão de literatura. Realizou-
se uma busca eletrônica nos meses de julho a setembro de 2018, a seleção da
amostra resultou em 8 livros, 19 artigos e 1 Dissertação de mestrado. Todos
discriminados ao longo do texto e inseridos nas referências. Dentro do artigo é
abordado a conceituação de avaliação psicológica, a depressão no contexto escolar
e os testes como instrumentos psicológicos utilizados para a avaliação e identificação
da problemática na aprendizagem escolar. Concluiu-se que a depressão na infância
está associada a questões psíquicas, físicas e cognitivas que podem interferir
significativamente nas relações familiares, sociais e escolares da criança, sendo de
extrema importância que seu diagnóstico seja realizado precocemente, através da
avaliação psicológica.

Palavras-chave: Avaliação Psicológica; depressão infantil; escola; testes.

Introdução

Diversos estudos na área da saúde mental vêm apontando um aumento na


prevalência dos transtornos psiquiátricos na infância. Dentre estes transtornos
encontra-se a depressão infantil que vem ganhando campo nos últimos anos em
função do avanço dos diagnósticos e dos potenciais implicações danosas que ela gera
no desenvolvimento da criança.

4 Psicóloga (UNIFOR), Pós-graduada em Neuropsicodiagnóstico (UNICHRISTUS).


5 Psicóloga e Pedagoga (UNIFOR), Mestre em Inovação Pedagógica – Educação (UMa), Orientadora
(UNICHRISTUS).
6 Terapeuta Ocupacional (UNIFOR), Mestre em Educação Especial (UECE), Doutoranda em Saúde
Coletiva (UNIFOR) e Orientadora(UNICHRISTUS).

687
A avaliação psicológica tem papel central nesse cenário, pois, como destaca
Simões (1999), os instrumentos psicológicos podem ter um impacto na prática clínica
e no contexto da pesquisa científica, sendo que auxiliam no rastreamento,
identificando os problemas psicológicos, definindo objetivo terapêutico, fatores de
risco e possibilitando o planejamento de intervenções e tratamentos.
A acurácia diagnóstica de inventários, escalas e entrevistas, bem como os
estudos de evidências de validade e confiabilidade são características psicométricas
fundamentais aos instrumentos psicológicos. Harrington (1993), Reynolds, Johnston,
(1994), Simões (1999). Entende-se dessa forma que a existência e o estudo das
propriedades psicométricas dos instrumentos utilizados na avaliação da depressão é
de grande importância, mesmo porque, menos da metade dos indivíduos que
possuem depressão são identificados pelo sistema de saúde, demonstrando assim a
importância em se ter, por exemplo, escalas capazes de rastrear possíveis casos
elevando a possibilidade de encaminhamentos para avaliações mais pormenorizadas
e tratamento especializado por profissionais de saúde.
Diante desse contexto, o presente estudo teve como objetivo analisar a
produção científica nacional em relação à avaliação psicológica como instrumento
para identificar depressão em crianças no ambiente escolar. Para, além disso,
relacionar quais as avaliações seriam mais indicadas nessas situações, associados
ao estudo da depressão, nome da revista em que os estudos foram publicados e os
anos de publicação.

Desenvolvimento

Segundo Cunha (2007), avaliação psicológica é uma etapa de um processo


que visa o levantamento de hipóteses por meio de aplicação de testes e técnicas
psicológicas para se chegar a uma compreensão de determinado caso. Cunha (2007)
esclarece que existem recentes avanços no campo do psicodiagnóstico, a maioria dos
psicólogos reconheceram que, em casos específicos, a avaliação psicológica pode ter
levado a classificações errôneas ou discriminatórias. O psicodiagnóstico é uma tarefa
do psicólogo clínico e a única que lhe é privativa. É de extrema importância que
consiga exercê-la.
De acordo com a Classificação Internacional das Doenças – CID -10 (1993) no
capítulo de Transtornos Mentais e de Comportamento, a depressão está classificada

688
entre os Transtornos de Humor, onde o indivíduo acometido de tal patologia apresenta
os seguintes sintomas: redução do humor; redução da energia e diminuição da
atividade; alteração da capacidade de experimentar o prazer; perda de interesse;
diminuição da capacidade de concentração associadas em geral à fadiga importante,
mesmo após um esforço mínimo.
Observam-se em geral problemas do sono e diminuição do apetite. Existe
quase sempre uma diminuição da autoestima e da autoconfiança e frequentemente
ideias de culpabilidade e ou de indignidade, mesmo nas formas leves. Já o Manual
Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais DSM -V (1995) faz ressalvas no que
se refere às crianças e adolescentes indicando que pessoas nesta faixa etária,
acometidas pela depressão, podem desenvolver “um humor irritável ou rabugento, ao
invés de um humor triste ou abatido. Esta apresentação deve ser diferenciada de um
padrão de "criança mimada", que se irrita quando é frustrada.
Segundo Schwan & Ramires (2011), alguns estudos apontam a depressão na
infância como um problema crescente. A queda do rendimento escolar é um dos
primeiros indicadores de depressão em crianças, além do desenvolvimento do quadro
de disforia, isolamento e tristeza.
Segundo Barbosa & Lucena (1995), a escola é um local bastante favorável à
realização de estudos epidemiológicos em crianças. É provável que o comportamento
depressivo na infância ocorra no contexto educacional, sendo o baixo rendimento
escolar um dos primeiros sinais do surgimento de um possível quadro depressivo. É
de extrema importância o diagnóstico para a família da criança, visto que a depressão
pode acarretar problemas no seu repertório comportamental, variando desde extrema
irritabilidade à obediência excessiva, podendo ainda ocorrer uma instabilidade
significativa com relação a esses comportamentos.
Investigações para elucidar a origem e o curso de desenvolvimento dos
problemas têm convergido para uma concepção multifatorial e transacional, em que
as manifestações externalizantes refletem processos de trocas contínuas entre
características da criança nas interações sociais e características dos cuidadores e
seu contexto social/ecológico (Olson, Bates, Sandy, & Lanthier,. 2000).
Comportamentos externalizantes com componentes antissociais
frequentemente se desenvolvem em contextos de adversidade ambiental (Olson et
al.2000). Nessas trocas, o ambiente familiar apresenta práticas de socialização
violentas, exposição a modelos adultos agressivos, falta de afeto materno e conflitos

689
entre os pais (Blanz, Schmidt, & Günther, 1991; Dodge, Pettit & Bates, 1994; Ramsey,
Shinn, Walker & O’Neill, 1989; Shawe Emery, 1988; Vuchinich, Bank & Patterson,
1992). Tais práticas, por sua vez, estão frequentemente associadas a um contexto
social adverso, marcado por dificuldade econômica e estressores psicossociais
incidindo sobre a família (Mc Loyd, 1998).
Souza, Soldatelli & Lopes (1997), investigando o psicodinamismo familiar de
crianças agressivas, comprovaram os efeitos da privação emocional em meninos com
queixa de agressividade no ambiente escolar. As pesquisadoras demonstram que
estas crianças se apresentam de forma agressiva na escola com o fim de vivenciar
aquilo que seus lares não puderam oferecer: a possibilidade de uma expressão afetiva
mais espontânea e o estabelecimento de limites.
Kupfer (1998) analisa aspectos da cultura para afirmar que o professor
brasileiro não encontra mais uma rede de sustentação simbólica que lhe assegure o
suporte da autoridade no exercício da profissão. Sugere, assim, que a agressividade
na escola seja uma reação à falta de limites simbólicos essenciais para o aprendizado
e crescimento humano.
Para Souza e Castro (2008) a escola tem papel importante, na identificação
dos sintomas depressivos e na orientação inicial da família, para que possam buscar
um tratamento adequado para a criança e para minimizar, da melhor forma os fatores
do ambiente escolar.
O autor Simões (1999) considera que pelas características da manifestação da
depressão, seu principal impacto ocorre na própria criança e não nas pessoas que
convivem com ela, o que, por sua vez, dificulta o seu reconhecimento e o tratamento
da problemática. Com isso, verifica-se a tendência de se ter a criança como um
importante informante de seus sentimentos e os inventários e escalas de auto-
avaliação são vistos como instrumentos essenciais na avaliação de problemas
internalizantes.

Instrumentos e procedimentos

A entrevista é o procedimento de avaliação mais utilizado pela ótima relação


custo-benefício na identificação de problemas emocionais e comportamentais. Além
disso, a entrevista com o informante permite a exploração do contexto em diferentes
períodos do desenvolvimento da criança e das diferentes manifestações do

690
comportamento-problema (Perry, 1990; Sarwer & Sayers, 1998). Entrevistas podem
ser não estruturadas, semiestruturadas e estruturadas.
A entrevista não estruturada permite o surgimento gradual do problema-queixa,
e requer habilidade especial e treinamento do entrevistador para fazer perguntas a
partir de inferências sobre o material apresentado pelo informante (Sarwer & Sayers,
1998; Silverman & Serafini, 1998). As entrevistas semiestruturadas e estruturadas
investigam variáveis específicas de forma pontual. No formato semiestruturado, a
entrevista segue um roteiro de perguntas ou afirmações a serem respondidas pelo
informante de modo mais direcionado e controlado do que nas entrevistas não
estruturadas. No formato estruturado, o roteiro de perguntas tem formato e sequência
pré-estabelecidos, que exigem repostas de escolha forçada do tipo “verdadeiro” ou
“falso”; ou de “pouco frequente” a “muito frequente”.
De acordo com Gouveia, Barbosa, Almeida & Andrade Gaião. (1995) as
avaliações objetivas, como questionários, escalas de autoavaliação e inventários, são
instrumentos mais aplicados e são preferidos em relação às entrevistas clínicas. São
métodos que apresentam algumas vantagens, como a redução da subjetividade, a
diminuição da inferência e o efeito da opinião pessoal do pesquisador ou clínico. No
entanto, é importante lembrar que os inventários não substituem as entrevistas como
método de diagnóstico da depressão, sendo, na maioria das vezes, empregados como
medida de rastreamento de sintomas depressivos.
Dentre os inventários de autoavaliação relatados na literatura, o Children’s
Depression Inventory (CDI) ou Inventário de Depressão Infantil tem sido o instrumento
mais aplicado na identificação de sintomas depressivos. CDI foi o primeiro instrumento
elaborado para estudar os sintomas de depressão na infância. Foi proposto em 1983
por Kovacs (Kovacs, 1992), e surgiu de uma adaptação do BDI – Beck Depression
Inventory. Trata-se de uma escala de autoavaliação de 27 itens, destinada a identificar
os sintomas de depressão em pessoas de 7 a 17 anos e tem sido largamente utilizada
em estudos epidemiológicos internacionais e brasileiros.
De acordo com Lipp & Lucarelli (2005) a Escala de Stress Infantil (ESI):
Instrumento brasileiro e validado para a população infantil. Tem como objetivo avaliar
os sintomas de estresse em crianças de 6 a 14 anos de idade. Sendo composto por
35 itens com respostas em escala likert (0 a 5 pontos), abordando os fatores de
reações físicas (RF), psicológicas (RP), psicológicas com componente depressivo
(RPD) e psicofisiológicas (RPF) do estresse. Essa ferramenta permite classificar o

691
estresse em quatro fases: alerta ou alarme, defesa ou resistência, quase-exaustão e
exaustão.
A Escala Multidimensional de Ansiedade para Crianças (MASC) (March.
Parker, Sullivan, Stallings, Conners, 1997). Traduzida, adaptada e validada para a
população brasileira por Nunes (2004). Esse instrumento possui 39 itens que tem por
objetivo avaliar os sintomas ansiosos da criança em diferentes dimensões como:
sintomas físicos, de ansiedade social, do comportamento de evitar o dano e de
separação/pânico. Conta com opções de resposta do tipo likert de 4 pontos.
Com um outro embasamento teórico. estão os testes projetivos, instrumentos
que contribuem para a identificação e compreensão da patologia depressiva estão
que mobilizam conteúdos inconscientes. Quanto menores forem os recursos do ego
para lidar com esta situação, maior será o grau de distorção aperceptiva do estímulo,
no teste de apercepção temática (TAT) como no teste de apercepção temática para
crianças (CAT- A), teste de apercepção infantil (CAT-H) e scholastic aptitude test
(SAT).
O CAT (Children’s Apperception Test) de Leopold & Sorel Bellak foi publicado
em 1949 (Bellak, 1966); validado no Brasil por Miguel, Tardivo, Silva & Tosi (2010).
Destina-se a crianças de 3 a 10 anos, para quem as pranchas do TAT são pouco
mobilizantes, e em seu lugar são apresentadas cenas de animais, com as quais as
crianças se identificam facilmente (TARDIVO, 1998).
Tardivo & Moraes (2016) escrevem que evidências indicaram que algumas
crianças respondiam melhor a figuras de animais e outras a figuras humanas. Tanto
para as investigações com os manuais do CAT-A (um livro de instrução) como com o
CAT-H (10 cartões de aplicação) foi proposto um esquema de análise baseado no
original de Bellak, com contribuições de Tardivo (1998); composto pelos itens:
Autoimagem - características do herói; Relações objetais; Concepção do ambiente;
Necessidades e conflitos; Ansiedades; Defesas; Superego; Integração do ego. Foram
atribuídos pontos de acordo com a qualidade dos itens, para poder ser feito o estudo
estatístico da análise de conteúdo; em distintos estudos.
Um dos procedimentos que pode ser utilizado para a coleta de dados é
Desenho-Estória com Tema (D-E/T) que consiste em uma técnica de investigação da
personalidade que utiliza basicamente o desenho livre associado a histórias com uma
temática específica (Trinca & Tardivo, 2003). Esta técnica pode ser usada de várias
formas, como um desenho livre em que o indivíduo conta uma história sobre o que ele

692
desenhou, como desenho de família com estória e desenho-estória com tema. O D-E
consiste em uma técnica pautada nos desenhos livres que são técnicas gráficas que
facilitam a comunicação principalmente com crianças e adolescentes que não possui
facilidade em verbalizar seus conteúdos.
Este procedimento foi proposto em 1972 por Walter Trinca, caracterizado como
estratégia projetiva que fornece informações sobre a representação simbólica,
inteligência, psicomotricidade, vida afetiva, entre outras, é uma excelente técnica para
se trabalhar tanto com crianças quanto adolescentes, pois pelo desenho tendem a
expressar de forma inconsciente, uma visão de si mesmos tal como gostariam de ser
(Trapé Trinca, 2013; Trinca, 2013).
Foram acima, apresentados instrumentos de relevância para a avaliação
psicológica, porém é importante salientar que estes não substituem o olhar mais
amplo do sujeito como a avaliação clínica e outras técnicas utilizadas que visam
ampliar a visão do profissional em relação às intervenções e tratamentos adequados
para a criança no ambiente escolar.
Com base nos resultados da pesquisa, observa-se que a depressão na infância
está associada a questões psíquicas, físicas e cognitivas e podem interferir de
maneira significativa na vida da criança, prejudicando suas relações familiares, sociais
e escolares.

Conclusão

Diante do exposto neste trabalho, percebe-se, assim, a necessidade de que


haja novos estudos específicos sobre a natureza da timidez e suas implicações, como
possíveis variáveis de estudo que aqui não foram contempladas. Existe uma relação
entre habilidades sociais e timidez, onde, a timidez só chama a atenção de pais e
professores quando o comportamento se torna exagerado, pois as crianças tímidas
não lhes trazem dificuldades na interação.
Fica nítida a importância que os instrumentos de avaliação da depressão
infantil podem exercer para a realização de um diagnóstico preciso dos sintomas
depressivos na criança. Assim, o estudo abre novas perspectivas para pesquisas
futuras que auxiliem no aprimoramento do programa de promoção de saúde mental
em crianças.

693
Desta forma, espera-se ter colaborado para a tal área, mais especificamente
em relação às habilidades sociais e para a vida e auxiliando, a partir de um olhar crítico
a entender as demandas enfrentadas pelas crianças. Assim, percebe-se a
necessidade do psicólogo buscar novas possibilidades diante dos muitos desafios
apresentados na avaliação psicológica, este profissional deve sair da zona de conforto
e buscar alternativas para ampliar o seu atendimento dentre estas se encontram as
escutas clínicas, técnicas e a capacidade de acolher e ser sensível.

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63- ASSEXUALIDADE(S): METASSÍNTESE DE TESES E DISSERTAÇÕES
BRASILEIRAS

Maria Laura Barros da Rocha7


Alana Madeiro de Melo Barboza8
Camila dos Anjos Falcão2

Camila do Nascimento Lins Buarque2


Adélia Augusta Souto de Oliveira9

Resumo: A discussão sobre assexualidade ainda ocupa um lugar periférico na


comunidade acadêmica e na sociedade brasileira. Tendo em vista a larga
desinformação acerca da temática, objetiva-se apresentar a investigação do conceito
de assexualidade e de seu histórico, bem como o exame do que vem sendo produzido
sobre o tema na Pós-Graduação brasileira. Para isso, utiliza-se a metassíntese, um
tipo de revisão sistemática de literatura a partir das etapas: exploração, refinamento,
cruzamento, descrição e interpretação. A consulta inicial indicou 164 produções, que
após refinamento e cruzamento, resultaram em cinco produções, em consonância
com os objetivos do estudo. Percebeu-se relativo consenso entre os
pesquisadores(as) quanto ao conceito de assexualidade como falta de atração ou
desejo sexual. Entretanto, reduzi-la à ausência de atração sexual não condiz com a
diversidade de experiências dos sujeitos que se consideram assexuais. As produções
permitem a discussão do conceito, que ainda é alvo de divergências, mais do que
caminhar para uma consolidação de aspectos da sua nomenclatura e significado. Por
fim, diante do exposto pelos pesquisadores(as) acerca das limitações do conceito,
sugere-se a nomenclatura no plural – assexualidades – pela capacidade de
contemplar as diversidades da comunidade assexual sem que se perca sua força de
coesão.

Palavras-chave: Assexualidade. Sexualidade. Metassíntese.

7
Bolsista CAPES. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFAL. E-mail:
laurabarrosrocha@gmail.com
8
Mestrandas do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail:
madeiro.alana@gmail.com; camila.danjos@gmail.com e camila.buarq@gmail.com
9
Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Professora Associada
da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: adeliasouto@ip.ufal.br

697
INTRODUÇÃO

A discussão acerca da assexualidade ainda ocupa um lugar periférico dentro


da comunidade e na sociedade brasileira, perpetuando-se nesse território. Os
mecanismos da invisibilidade e patologização dessas pessoas na sociedade serão
explorados e questionados neste estudo. Para tanto, tendo em vista a larga
desinformação acerca da temática, utiliza-se como caminho necessário a exploração
do conceito de assexualidade e de seu histórico, bem como o exame daquilo que vem
sendo produzido sobre o tema na Pós-graduação brasileira.
Em estudo anterior no Google Acadêmico (Barboza, Rocha, Falcão & Oliveira,
no prelo), verificou-se que a assexualidade é citada em produções acadêmicas
majoritariamente em explicações sobre os significados de cada letra da sigla
LGBTQIA+, seguida ou não do conceito de assexualidade para os autores e autoras.
Além disso, por se tratar de textos de comunicação breve (artigos, resumos e
trabalhos completos em anais de congresso), mesmo àquelas produções estudadas
cujo foco da discussão era a assexualidade, possuíam limitações quanto à
profundidade de sua discussão teórica. Nesse sentido, recorre-se ao estudo das
produções da Pós-graduação, em âmbito nacional, pois, pressupõe-se que, por ser
resultado de pesquisa com caráter mais minucioso sobre a temática, elas tratem do
conceito de forma mais aprofundada, de modo a auxiliar as investigações sobre a
assexualidade.
Para Neiva (2019, p. 77), a baixa produção sobre a temática se refere ao “fato
de que há uma suposição social que é amplamente difundida nas sociedades
ocidentais: a de que todos os seres humanos possuem desejo sexual e praticam
sexo”. Nessa perspectiva, em uma sociedade na qual os meios de comunicação são
hipersexualizados, há uma faceta implícita de opressão que perpassa a invisibilização
e patologização dos sujeitos. Pode decorrer de que, ao partir-se pressuposto da
sexualidade compulsória, aqueles(as) que não sentem atração sexual são colocados
no lugar de “outro”, “anormal” ou por vezes tem a sua própria existência renegada.
Para tanto, compreende-se que a violência social com os/as assexuais se apresenta
por meio da retirada de seu direito de existir em sociedade sem que esta tente
enquadrá-los(as) a um padrão heteronormativo e de atração sexual compulsória.
Desse modo, é importante considerar a diferenciação entre o celibato e a
assexualidade, por vezes confundida no imaginário popular. No celibato o indivíduo

698
pode sentir atração sexual, mas deve evitar ter relações sexuais por motivos de
crenças religiosas ou afins. Já assexualidade seria o “não interesse em praticar
relações sexuais com outrem devido à ausência de atração sexual” (Neiva, 2019, p.
44).
A terminologia “assexuado” foi erroneamente utilizada, por muito tempo, para
definir as pessoas que não tinham atração sexual por outrem. No entanto, esse termo
é originário da biologia para classificar um tipo de reprodução. Apenas após os anos
2000 que o termo “assexuais” passou a ser usado, e a definir uma orientação sexual
(Bezerra, 2015; Neiva, 2019).
Com essas considerações, investigou-se a produção acadêmica acerca da
assexualidade em teses e dissertações brasileiras. Identificaram-se os avanços nas
formas de conceituação, bem como se adotou um posicionamento político da
necessária discussão de formas não heteronormativas que são consideradas
marginais pela sociedade, para que a comunidade acadêmica possa contribuir para a
visibilidade da temática na sociedade e a despatologização da assexualidade.

MÉTODO

A metassíntese é um tipo de revisão sistemática de literatura que busca


transpor a síntese de resultados encontrados em pesquisas já realizadas e “propor
um novo conhecimento que se apresente no cruzamento das informações, no
confronto e nas relações estabelecidas entre as informações” (Oliveira, Trancoso,
Bastos & Canuto, 2015, p. 148). Seu alcance também é ampliado por ser uma
estratégia multidisciplinar que não se restringir a referenciais teóricos e metodológicos
específicos em sua análise (Oliveira, Bastos, Canuto, Santos Júnior, Bueno & Rocha,
2017).
Os procedimentos metodológicos da metassíntese são conduzidos a partir das
etapas de exploração, refinamento, cruzamento, descrição e interpretação. Na etapa
de exploração são identificados os recursos presentes nas bases de dados e busca
exploratória com diferentes descritores e filtros de pesquisa em busca do alinhamento
do material com os objetivos de pesquisa (Oliveira, Sarmento, Rocha & Bueno, 2019).
Elegeram-se dois bancos de dados de referência na pesquisa de teses e dissertações:
Catálogo de Teses & Dissertações - CAPES e Banco de Teses e Dissertações
(BDTD). Essa escolha se deu em razão da “relevância (..) no contexto da pós-

699
graduação no Brasil, em especial no que se refere à promoção e divulgação da
produção científica nas mais diversas áreas do conhecimento” (Bastos, 2014, p. 24).
Além de serem bancos de teses e dissertações de pesquisa gratuita e com adesão de
toda a pós-graduação brasileira.
A consulta aos bancos foi realizada através da inserção individual dos
descritores assexual e assexualidade nas bases de dados, sem delimitação temporal.
Em seguida, durante a fase de refinamento buscou-se, através da leitura flutuante dos
resumos das produções, determinar quais se referiam à assexualidade humana. Esse
processo de refinamento é um movimento de qualificação da amostra onde se verifica
a condição dos documentos guardarem “de fato relação com o objetivo que se propõe
investigar” (Oliveira et al., 2017, p.78).
Por sua vez, o cruzamento é responsável por eliminar as duplicidades de
material através da exclusão de produções repetidas no corpus. O armazenamento
do material realizou-se por meio do serviço de armazenamento e sincronização de
arquivos Google Drive.
A etapa da descrição diz respeito ao movimento de se conhecer e discutir os
aspectos importantes das produções acadêmicas, de forma a abarcar a quantificação
e a descrição histórica, geográfica e institucional das produções. Por último, a etapa
de interpretação das informações propriamente ditas, através de leitura aprofundada
que gerem sínteses temáticas, teóricas e metodológicas presentes nas produções. A
proposta se volta para pontuar os avanços e limitações na discussão do conteúdo dos
documentos (Oliveira et al., 2017).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Inicialmente, a consulta às bases indicou um quantitativo total de 164


produções (89 dissertações e 75 teses), divididas entre o Catálogo de Teses e
Dissertações (76) e o Banco de Teses e Dissertações (88), como pode ser observado
a seguir, na Tabela 1.

700
Tabela 1
Consulta aos bancos de dados (etapa de exploração)
Catálogo de Teses & Dissertações Banco de Teses e Dissertações (Bdtd)

Descritores Total Dissertações Teses Total Dissertações Teses

Assexual 61 38 23 44 21 23

Assexualidade 15 09 06 44 21 23

TOTAL 76 47 29 88 42 46

Durante o refinamento, foram excluídos os trabalhos em que o termo


assexual(idade) aparecia em referência à reprodução assexual de fungos, plantas,
bactérias, entre outros. Esses 128 trabalhos eram de áreas das Ciências Biológicas e
Agrárias, e representaram uma queda drástica do quantitativo no corpus, que revela
as áreas com maior vinculação ao termo.
Dentre as 36 produções das Ciências Humanas, 21 foram eliminadas porque,
apesar de referir-se à sexualidade humana, não utilizam o termo relacionado à
orientação sexual. Estes trabalhos discorrem sobre a desconstrução do mito da
assexualidade relacionado à pessoas deficientes, idosos/as e a atribuição de
assexualidade à figura de professores(as). Além disso, o trabalho de Gomes (2014)
indicado pela plataforma tem acesso restrito, o que inviabiliza ser acessado na íntegra
e, consequentemente, também foi excluído. Essa etapa, de refinamento está
detalhada na Tabela 2.

Tabela 2
Etapa de refinamento
Catálogo de Teses & Dissertações Banco de Teses e Dissertações (Bdtd)

Descritores Indicados Excluídos Total Indicados Excluídos Total

Assexual 61 58 3 44 40 4

Assexualidade 15 11 4 44 41 3

TOTAL 76 47 7 88 81 7

Após o refinamento, os 14 documentos restantes foram submetidos ao


cruzamento, através da leitura dos títulos, que identificou nove duplicações. Desse
modo, resultaram cinco produções, duas dissertações (D’Andrea, 2016; Santos, 2016)
e três teses (Bezerra, 2015; Neiva, 2019; Oliveira, 2015).

701
Nas produções, há um relativo consenso em relação ao conceito de
assexualidade como referente à falta de atração sexual ou desejo sexual, com
exceção do estudo de D’Andrea (2016), que considera “impreciso” esse ponto de
vista. Para ele, reduzir a assexualidade a uma ausência de atração sexual não condiz
com a diversidade de experiências de vida dos sujeitos que se consideram dessa
orientação, “saindo de uma leitura dicotômica de sexo ou não sexo, para uma visão
polimórfica de possibilidades de vida” (p. 13). Dessa forma, em sua dissertação, o
autor adota a ideia de sexualidade (incluindo, portanto, a assexualidade) como rizoma,
que abarca essa visão ampliada e plural.
Percebe-se, a partir do exposto pelo autor, a importância de considerarmos as
particularidades de cada sujeito em relação à sua sexualidade. Contudo, apesar da
busca por uma visão ampliada, apontamos a necessidade de constante reflexão sobre
o rumo de nossas produções e discussões, com o cuidado de não cairmos numa
relativização e categorização dos fenômenos que gere certo enfraquecimento dos
discursos e do próprio movimento de visibilização das causas pelas quais os sujeitos
lutam.
A partir do olhar da Psicologia, permeado pelas produções de Michel Foucault
e Gilles Deleuze, dentre outros, a pesquisa de D’Andrea (2016) busca pesquisar a
assexualidade no contemporâneo, em meio a sua emergência, a partir de relações
nosite The Asexual Visibility Education Network(AVEN) e em redes sociais (Facebook)
que tratem da temática (netnografia), bem como a partir de entrevistas com pessoas
que participam desses espaços e se identificam como assexuais. Em sua dissertação,
apesar de apontar críticas ao conceito de assexualidade adotado pela AVEN,
organização de grande visibilidade que reúne pessoas que se classificam como
assexuais, o autor reconhece a importância de espaços como esses na ajuda com o
processo de autoidentificação, uma vez que viabilizam trocas de relatos e dão
visibilidade à orientação.
Em sua dissertação da área de Psicologia, Santos (2016), aponta para a
dificuldade de se chegar a um consenso sobre o que é assexualidade. A partir de uma
revisão de literatura, a autora encontrou trabalhos que apontam a assexualidade como
patologia e disfunção, enquanto outros vinculam à construção sócio-histórica do
indivíduo. Diante disso, a autora apresenta a assexualidade como uma nova forma de
se entender a sexualidade, através da manifestação de uma sexualidade humana
caracterizada pela falta de atração sexual e/ou o ato sexual. Além disso, considera

702
que assexuais apresentam diferentes vivências e formas de ser, ou seja, apresenta a
assexualidade de caráter pluralista e multifacetado.
Santos (2016) posiciona a sexualidade na dimensão do desejo, entretanto,
diferencia essa dimensão de desejo sexual. Vivências de desejo podem ocorrer
através da linguagem, os discursos, os saberes e a fala são libidinais e substituem o
sexo, para os assexuais. Assim, questiona-se a afirmativa de que assexuais não
desejam, o desejo é elemento essencial e está ligado aos modos de existência, e não
estão necessariamente relacionados ao sexo.
Em contrapartida, Neiva (2019) em sua tese na área de Antropologia social
aponta que assexuais não possuem o interesse em praticar atos sexuais devido à
“ausência de atração sexual”. Para tal afirmação ela recorre ao conceito da
comunidade Aven, bem como às entrevistas realizadas pela pesquisadora de forma
presencial e por via online por meio da Comunidade assexual, que se identifica como
A2 e grupo Ace no WhatsApp.
Na tese de Bezerra (2015) são abordadas as diferentes formas de
assexualidade, definidas historicamente pela comunidade acadêmica. Entretanto, o
autor define os assexuais como pessoas que não sentem atração sexual e aponta o
caráter auto identificatório da sexualidade. Em seu texto, ele desmistifica alguns dos
mitos mais comumente associados aos assexuais, qual seja o celibato. Contrapõe-se
também a ideia da religiosidade como a causa da assexualidade, ou ainda que
assexuais, necessariamente, não pratiquem o ato sexual.
Na busca de uma explicação determinista da sexualidade ou uma relação de
causalidade tão presente nas “ciências duras”, Bezerra (2015) aponta pesquisas que
tentam encontrar explicações fisiológicas para a assexualidade (como desequilíbrios
hormonais) ou atribuem a causa a experiências sexuais/românticas traumatizantes na
infância ou adolescência. Entretanto, “produções discursivas dos próprios assexuais,
mostram que não se trata de experiências traumatizantes, além de a maior parte dos
assexuais manter ou desejar manter relacionamentos amorosos” (Bezerra, 2015, p.9).
Bezerra (2015) cita pesquisas que elencam benefícios da assexualidade como,
entre outras coisas, “a vantagem de sofrer menos pressão social para encontrar um
parceiro adequado.” (Bezerra, 2015, p.35). O autor não se posiciona claramente
quanto a essa afirmação, de modo que fica ambíguo se ele concorda com afirmação
ou discorda dela. Entretanto, com base em discussões sobre violência social e
expectativas dos scripts de gênero, propostas por Oliveira (2015) e Neiva (2019), faz-

703
se necessário destacar as evidências que apontam para uma maior pressão social,
uma vez que as expectativas da Sociedade em relação ao casamento e a construção
de relacionamentos se intensificam na experiência assexual.
O que podemos observar em uma das reflexões de Neiva (2019) sobre a fala
de uma de suas entrevistadas na pesquisa:

O que também ressalta aos olhos é que para seus amigos há a possibilidade de ela
estar protagonizando uma fraude e que, portanto, não saiu ainda do armário da
homossexualidade lésbica. Ou seja, um dos preconceitos que sofrem é por parecer
impensável para muitos(as) a possibilidade de não ser sexual. Ou é heterossexual e
faz parte da norma, ou está no armário, já que não mostra para a sociedade uma vida
sexual ativa (p.100).

A produção mais antiga do corpus é de Oliveira (2015) defendida no seu


doutorado em Sociologia da Educação, que se configura como a primeira tese com
essa temática a ser produzida no Brasil. Assim como Neiva (2019), a autora realizou
entrevistas presenciais e online com pessoas assexuais, que permitiu identificar uma
diversidade de experiências da assexualidade. Para Oliveira, a assexualidade pode
ser compreendida como “como forma de viver a sexualidade caracterizada pelo
desinteresse pela prática sexual, que pode ou não ser acompanhado pelo
desinteresse por relacionamentos amorosos” (Oliveira, 2015, p.12).
Em contraposição, a produção mais recente, a tese da Antropologia social
intitulada “Já experimentou para saber se gosta? Assexualidades na sociedade
sexualizada”, de Giórgia de Aquino Neiva (2019), cujo título reflete o relato de
entrevistados da pesquisa que destacaram ser a pergunta que as pessoas assexuais
frequentemente escutam.
No que diz respeito à proposta de D’Andrea (2016) sobre o que é tratado no
Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (APA, 2014), acerca da
assexualidade, percebe-se uma problematização da ausência de sofrimento apontada
no manual para a classificação de pessoas tanto com “Transtorno do
interesse/excitação sexual feminino” quanto “Transtorno do desejo sexual masculino
hipoativo”. Para o autor, por não podermos julgar a sexualidade como algo linear e
universal, no qual cada contexto (histórico, político, social e cultural) permite uma
forma de tratar as diversas orientações sexuais; enfatiza que os critérios de
historicidade e de territorialidade precisam ser evidenciados ao se tratar do próprio

704
sofrimento das pessoas que se consideram assexuais. Em seu ponto de vista, esses
aspectos estão ausentes na proposta do referido manual.
Outro ponto de destaque, do referido autor, em relação à assexualidade diz
respeito ao posicionamento como orientação sexual, compartilhado por D’Andrea
(2016), Bezerra (2015), Oliveira (2015) e Neiva (2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As produções analisadas permitem a discussão do conceito de assexualidade,


que apresenta divergências e indica esforço dos(as) pesquisadores(as) para
consolidar aspectos de sua nomenclatura e significado. Percebe-se rupturas nas
proposições iniciais de aspectos biológicos e continuidades na forma como o conceito
é abordado, principalmente, em relação à abordagem de D’Andrea (2016).
As produções elucidaram, ainda, a dificuldade de encontrar pessoas assexuais
para participar de pesquisas, uma vez que, apesar da estimativa de que 7% das
mulheres e 2,5% dos homens brasileiros sejam assexuais (Freitas, 2017), muitos
deles não divulgam esse fato por medo de sofrer violência ou preconceito. Desse
modo, as entrevistas online e a busca de participantes em comunidades virtuais são
uma estratégia utilizada por pesquisadoras (Oliveira, 2015; Neiva, 2019) para
conseguir ter acesso às histórias de vida e às suas observações acerca de sua própria
sexualidade.
Oliveira (2015) destaca que, apesar do avanço das políticas públicas e na
produção acadêmica, ainda se faz necessário ampliar o espectro desses estudos para
romper com o “conjunto de normas sociais sexo-normativas que estabelecem o
interesse sexual e o interesse amoroso como universais e do silenciamento das
assexualidades” (p. 51).
Por fim, diante do que foi apresentado por pesquisadores(as) acerca das
limitações do conceito de assexualidade e a pluralidade de vivências relacionadas a
essa orientação sexual, a terminologia assexualidades - no plural - pode evidenciar
melhor as diversidades presentes na comunidade assexual sem que esta perca sua
força de coesão.

705
REFERÊNCIAS

American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de


Transtornos Mentais, (vol.5). Porto Alegre: Artmed.

Barboza, A. M. M., Rocha, M. L. B., Falcão, C. A. & Oliveira, A. S. S. (no prelo).


Metassíntese do conceito de assexualidade. Ebook Desfazendo Gênero.

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Psicologia, Universidade Federal de Alagoas, Maceió). Recuperado de
http://www.repositorio.ufal.br/handle/riufal/123.

Bezerra, P. V. (2015). Avessos do excesso: a assexualidade. (Tese de Doutorado,


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Assis, Assis, Brasil).
Recuperado de https://repositorio.unesp.br/handle/11449/132159.

D’Andrea, L. S. (2016). Deslocando sobre o arcos-íris com tonalidades cinza e preto:


assexualidades em trânsito. (Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil). Recuperado de
https://periodicos.ufpb.br/index.php/artemis/article/download/36065/20606.

Freitas, H. (05 de outubro, 2017). Assexualidade: pouco discutida, mais comum do


que se imagina [página da web]. Recuperado de
https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,assexualidade-pouco-
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Gomes, L. G. C. (2014). Da sexualidade humana como um direito da personalidade:


entre lutas e reconhecimento. (Dissertação de Mestrado, Universidade de Maringá,
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Neiva, G. A. (2019). “Já experimentou para saber se gosta?” – assexualidades na


sociedade sexualizada. (Tese de doutorado, Universidade Federal de Goiás,
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Oliveira, A. A. S., Sarmento, M., Rocha, M. L. B. & Bueno, L. D. (2019). Metassíntese


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Oliveira, A. A. S., Bastos, J.A., Canuto, L.T., Santos Júnior, P.S., Bueno, L.D. & Rocha,
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contribuição da metassíntese ao conhecimento científico. In: Oliveira, A. A. S.

706
(Org.). Psicologia Sócio-histórica e o contexto de desigualdade psicossocial: teoria,
método e pesquisas. (pp.71-86) Maceió: EDUFAL.

Oliveira, A. A. S., Trancoso, A. E. R., Bastos, J. A. & Canuto, L. T. (2015).


Metassíntese: apontamentos para sistematização de revisões amplas e crítica
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Santos, V. K. (2016). (AS)Sexualidades: processo de subjetivação e resistência.


(Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
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/Val%C3%A9ria%20Konc%20dos%20Santos.pdf

707
64- AVALIAÇÃO DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR DE ESTUDANTES DE
PSICOLOGIA DE UM CENTRO UNIVERSITÁRIO

Anne Caroline da Silva Alves1,


Bianca Cristina Yarmalavicius Pereira2,
Karine Didone Bonfim3,
Nathália Abrantes Muniz de Freitas4,
Priscilla Laureano de Sousa5,
Railander Lagass Pereira6,
Vitória Rodrigues Bugalho7,
José Maria Montiel8

Resumo: Os alimentos possuem papel fundamental na vida do ser humano, porém


para o ser humano por meio do fenômeno de socialização os alimentos e seus hábitos
alimentares por vezes, acabam por adquirem um significado para além do significado
fisiológico. Este estudo tem como objetivo avaliar o comportamento alimentar de
estudantes do curso de psicologia. A amostra foi composta por 41 estudantes de uma
Universidade da grande São Paulo. Para avaliação das dimensões foi utilizado um
questionário sociodemográfico dos participantes e a versão reduzida do instrumento
The Three Factor Eating Questionnaire de 21 itens (TFEQ-R21), traduzido e validado
no Brasil. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade São Judas
Tadeu (CAAE: 14882719.7.0000.0089), sob o parecer 3.429.111. Os resultados desse
estudo apontaram que quanto maior a restrição cognitiva, menor o descontrole
alimentar e quanto maior o descontrole alimentar, maior é a alimentação emocional
em estudantes do curso de psicologia. Por isso se faz necessário se atentar aos
hábitos alimentares dos estudantes, pois alguns comportamentos podem ser de risco
para o desenvolvimento de um transtorno alimentar, que gera prejuízos na vida
pessoal e social do jovem universitário.

Palavras chaves: comportamento alimentar, estudantes universitários, emoções.

1. Universidade São Judas Tadeu, Graduanda em Psicologia. Email: caroline.anne@uol.com.br


2. Universidade São Judas Tadeu, Graduanda em Psicologia. Email: biacrisy@hotmail.com
3. Universidade São Judas Tadeu, Graduanda em Psicologia. Email: karinedidone@gmail.com
4. Universidade São Judas Tadeu, Graduanda em Psicologia. Email: nath_abran23@hotmail.com
5. Universidade São Judas Tadeu, Graduanda em Psicologia. Email: priscillalaureano2@gmail.com
6. Universidade São Judas Tadeu, Graduando em Psicologia. Email: railanderlp@gmail.com

708
7. Universidade São Judas Tadeu, Graduanda em Psicologia. Email: vitoriia_rb@hotmail.com
8. Universidade São Judas Tadeu, Psicólogo e Doutor em Psicologia com ênfase em Avaliação
Psicológica em Contextos de Saúde Mental pela Universidade São Francisco - USF. Email:
montieljm@hotmail.com

1. Introdução
O termo comportamento alimentar é utilizado para expressar todo tipo de
construto no âmbito da alimentação, ou seja, o conceito teórico da alimentação, que
envolve o modo de comer e pode ser sintetizado como as ações em relação ao ato de
se alimentar (Alvarenga, 2016). Assim, o comportamento alimentar é um conjunto de
ações relacionadas ao alimento, que envolve desde a escolha até a ingestão, bem
como, tudo a que ele se relaciona (Vaz & Bennemann, 2014).
Neste contexto, o humor e as emoções podem influenciar na escolha dos
alimentos, uma vez que o indivíduo come aquilo que deseja e/ou o que sua cultura
designa. Para o ser humano, através do fenômeno de socialização, a comida adquire
um significado para além do fisiológico, havendo o desejo de comer, mesmo na
ausência de necessidades energéticas e nutricionais (Balaias, 2009; Natacci &
Ferreira Júnior, 2011).
Segundo Natacci & Ferreira (2011), as principais dimensões de comportamento
associados ao hábito alimentar envolvem a restrição cognitiva, a alimentação
emocional e o descontrole alimentar. Esses três fatores caracterizam o
comportamento alimentar dos indivíduos e podem ser associados com os transtornos
alimentares (TA) e a obesidade.
A alimentação emocional ocorre quando o ato de se alimentar adquire
significados que transpassam as funções nutritivas; ela pode, por exemplo,
representar um prazer imediato e, portanto, servir para aliviar e compensar
sentimentos tidos por negativos, como tristeza, angústia, ansiedade e medo, tornando
o alimento um condutor de afeto (Balaias, 2009; Kaufman, 2013).
A restrição alimentar pode ser considerada como a tendência para restringir a
ingestão de alimentos, de forma deliberada, para prevenir o aumento de peso ou
promover a perda ponderal. O comportamento restritivo passa a ser compreendido
como o resultado da interação entre fatores fisiológicos, na origem do desejo de
comida (apetite), e os esforços cognitivos para resistir a este desejo. Os indivíduos
com comportamento alimentar restritivo, independentemente da classificação de

709
peso, suspendem a ingestão, não como resposta aos mecanismos de saciedade, mas
porque chegaram a um limite de ordem cognitiva. (Moreira, Sampaio & Almeida, 2003;
Viana, 2002).
Devido a fatores fisiológicos e psicossomáticos, a tendência após um período de
restrição é o descontrole, a desinibição alimentar (Viana, Candeias, Rego & Silva,
2009). O descontrole alimentar pode ser definido como a perda do autocontrole e
consumo exagerado de alimentos, com ou sem presença de fome (Tholin,
Rasmussen, Tynelius & Karlsson, 2005).
Entre os indivíduos que manifestam maior insatisfação com o peso e
preocupações com o ganho e controlo ponderal, encontram-se os estudantes
universitários (Moreira, Sampaio & Almeida, 2003). Paixão, Dias & Prado (2010)
ressaltaram que ao entrar na universidade o estudante passa por várias mudanças no
seu estilo de vida, a mudança na alimentação é uma delas.
O ingresso no ensino superior gera mudanças no cotidiano do estudante,
proporcionando novas experiências associadas a novos e distintos sentimentos, o que
influencia a percepção do estudante em relação a sua qualidade de vida e bem-estar
(Silva & Heleno, 2012). Como estão mais preocupados em ter um bom desempenho
acadêmico, participar das relações culturais e manter boas relações sociais, deixam
de lado a importância de uma alimentação saudável (Alves & Boog, 2007). Esses
maus hábitos alimentares podem ser influenciados pelas novas relações sociais e
novos comportamentos, assim como pela ansiedade que pode transformar as suas
alimentações num “refúgio” em situações de estresse mental e físico (Santos, Chaud
& Marimoto, 2014).

2. Objetivos e justificativa
Torna-se importante o conhecimento sobre o comportamento alimentar em
estudantes universitários, pois a alimentação é um dos comportamentos mais
primitivos do ser humano e com o passar do tempo, o ato de comer adquiriu múltiplos
significados que podem influenciar outras dimensões, uma vez que alimentar-se não
visa somente à sobrevivência, mas também se tornou um ato social e uma forma de
lidar com as emoções. O universitário enfrenta muitos desafios durante sua trajetória
acadêmica, podendo se utilizar dos alimentos para aliviar as frustrações. Desta forma,
é relevante estudar o comportamento alimentar em estudantes, pois a alimentação é
um dos fatores que podem influenciar o nível de saúde.

710
O objetivo geral desse trabalho é analisar o comportamento alimentar de
estudantes universitários do curso de psicologia de um Centro Universitário. Os
objetivos específicos são verificar as dimensões do comportamento alimentar
(Restrição Cognitiva, Alimentação Emocional e Descontrole Alimentar) e correlacionar
as dimensões do comportamento alimentar com os dados de identificação (gênero,
turno, prática de atividade física, dieta e situação de trabalho).

3. Método
A abordagem da pesquisa quantitativa, de caráter descritivo e delineamento
transversal. A amostra foi composta por 41 estudantes de um Centro Universitário da
grande São Paulo. Para participar do estudo, foi considerado como critério de inclusão
estudantes universitários a partir dos 18 anos, matriculados em um curso de
psicologia. Não foram incluídos estudantes de pós-graduação e matriculados em
outros cursos. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e
esclarecido (TCLE), o qual foi apresentado em duas vias, sendo uma via para os
participantes e outra via para a pesquisadora. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê
de Ética da Universidade São Judas Tadeu (CAAE: 14882719.7.0000.0089), sob o
parecer 3.429.111.
Foi utilizado como instrumento um questionário de identificação e a versão
reduzida do instrumento The Three Factor Eating Questionnaire de 21 itens (TFEQ-
R21), traduzido e adaptado por Natacci e Ferreira Júnior (2011). Medeiros, Almeida,
Sampaio e Almeida (2016) realizaram um estudo de validação dessa versão em
português aplicada a estudantes universitários. Nesse estudo, a amostra foi composta
por 433 estudantes da Universidade do Rio Grande do Norte.
O TFEQ-R21 é composto por um total de 21 itens, sendo eles subdivididos em
três diferentes escalas, que avaliam as dimensões do comportamento alimentar:
Restrição Cognitiva (RC); Alimentação Emocional (AE); e Descontrole Alimentar (DA).
A média de cada uma das variáveis de comportamento será calculada e transformada
em uma escala de 0 a 100 pontos.
Foram realizadas análises descritivas (média, desvio padrão e frequência), dos
resultados dos instrumentos utilizados de modo a caracterizar a amostra. Além disso,
foi feito a aplicação do teste de normalidade Kolmogorov-Smirnov, teste de Levene,
teste T de Student e correlação de Pearson, com o nível de significância de 0,05 (5%).
Foi utilizado o software Statistical Package for the Social Sciences (SSP) versão 21.0.

711
4. Resultados e discussão.
Participaram deste estudo 41 estudantes, com a média de idade de 23,3 anos.
Os dados sociodemográficos encontrados neste estudo apontaram que a maioria dos
participantes é do gênero feminino (82,9%), estudam no turno da manhã (75,6%),
trabalham (53,7%), levam refeições para a faculdade (53,7%), não fazem dietas
(47,6%) e não praticam atividade física (70,7%).

Tabela 1
Caracterização da amostra em relação à idade e os resultados da escala TFEQ-R21.
Média (DP) Mínimo Máximo
Idade 23,3 (6,3) 18 46
DA 46,6 (21,8) 0 96,3
RC 34,8 (18) 5,6 77,8
AE 52,8 (31,7) 0 100
DP: desvio padrão.

Foi utilizado a escala TFEQ-R21, que dimensionou os três fatores do


comportamento alimentar. Ela foi avaliada por meio de escores com variação de 0 a
100 pontos para cada escala de comportamento. A escala da RC afere a proibição
alimentar para influenciar o peso ou a forma corporal, a escala do DA verifica a
tendência a perder o controle sobre comer quando se sente fome ou quando se está
exposto a estímulos externos e a escala da AE mensura a propensão no consumo
alimentar exagerado em resposta a estados emocionais negativos, como por exemplo:
solidão, ansiedade ou depressão. (Santana, 2016). Na tabela 1 constam os resultados
referentes à escala TFEQ-R21 e idade dos participantes.

Tabela 2
Caracterização da amostra em relação às variáveis gênero, turno, trabalho, levar
refeições para universidade, dieta e atividade física e valores de referência para o
Teste T de Student em relação às médias das escalas do TFEQ-R21.
DA RC AE
N (%) Média p Média p Média p
(DP) (DP) (DP)
Gênero
Masculino 7(17,1) 53,4(23,3) 31,7(16,3) 56,3(35,2)
0,413 0,626 0,776
Feminino 34(82,9) 45,2(21,6) 35,4(18,5) 52,1(31,4)

712
Turno
Manhã 31(75,6) 41,6(20,6) 36,3(18) 45,3(30,1)
0,008 0,337 0,006
Noite 10(24,4) 62,2(18,4) 30(18,1) 76,1(21,9)
Trabalha
Sim 22(53,7) 48,5(19,3) 33,5(14,5) 62,9(27,9)
0,562 0,653 0,027
Não 19(46,3) 44,4(24,8) 36,3(21,8) 41,2(32,5)
Levar
refeições
Sim 22(53,7) 40,7(19,8) 40,4(18,9) 57,3(27,6)
0,063 0,031 0,336
Não 19(46,3) 53,4(22,7) 28,3(14,9) 74,6(35,8)
Dieta
Sim 5(12,2) 39,2(31) 48,9(13,8) 71,1(12)
0,429 0,062 0,016
Não 36(87,8) 47,6(20,6) 32,8(17,8) 50,3(32,8)
Atividade
Física
Sim 12(29,3) 42,6(21,2) 40,7(22,4) 55,1(26,1)
0,456 0,180 0,774
Não 29(70,7) 48,3(22,2) 32,4(15,7) 51,9(34,1)
DP: desvio padrão.

Não houve diferenças estatísticas nos escores dos três fatores do


comportamento alimentar quanto ao gênero e a prática de atividade física. Em relação
ao turno, houve diferenças significativas nas escalas DA e AE. Os estudantes de
psicologia do turno da noite apresentaram maior descontrole alimentar e alimentação
emocional do que os estudantes do turno da manhã. Quanto à escala RC não houve
diferenças entre os turnos.
Na variável trabalho não houve diferenças nas escalas DA e RC. Na escala AE
estudantes de psicologia que trabalham demonstraram possuir maior alimentação
emocional do que os estudantes que não trabalham.
Também houve diferença estatística na variável que avalia se estudantes levam
suas refeições para a universidade na escala RC. Estudantes de psicologia que levam
suas refeições para a universidade possuem maior restrição cognitiva do que aqueles
que não levam. Não houve diferenças nas escalas DA e AE.
Quanto à dieta, houve diferença estatística na escala AE, podendo inferir que
estudantes de psicologia que aderem a dietas possuem maior alimentação emocional
do que os que não aderem. Não houve diferenças significativas nas escalas DA e RC.

713
100 p<
0,003
100 r =
80 - 0,456
80 n=
60

RC
60
DA

40
40 p
< 0,000 20
20 r
= 0,528
0
0
0 20 40 60 80 100
0 20 40 60 80 100
A B DA
AE

Figura 1 - A. Diagrama de dispersão, reta de regressão linear e índice de correlação


de Pearson entre os escores das escalas DA e AE. B. Diagrama de dispersão, reta
de regressão linear e índice de correlação de Pearson entre os escores das escalas
RC e DA.

Na Figura 1A pode ser observada uma correlação positiva entre os escores das
escalas DA e AE, ou seja, quanto maior os escores de descontrole alimentar, maior
os escores da alimentação emocional. No estudo de Souza, Gomes, Silva e Messias
(2017) onde investigaram a compulsão alimentar entre estudantes de nutrição
utilizando a escala TFEQ-R21 encontraram também uma correlação positiva entre AE
e DA. Medeiros et al. (2016) também obteve uma correlação positiva entre as escalas
quando aplicada em estudantes universitários.
Bernardi, Cichelero e Vitolo (2005) afirmaram que a vivência de estados
emocionais negativos leva à interrupção do autocontrole, conduzindo, assim, a
escolhas alimentares inapropriadas, as quais, de certa forma, aliviam as tensões
vigentes.
Também foi observada uma correlação negativa entre os escores das escalas
RC e DA, ou seja, quanto maior a restrição cognitiva, menor os escores de descontrole
alimentar (Figura 1B). De forma contrária, no estudo de Medeiros et al. (2016) houve
uma correlação positiva entre essas escalas.

714
5. Conclusão
Os resultados deste estudo mostram que os estudantes de psicologia do turno
da noite apresentaram maior descontrole alimentar e alimentação emocional do que
os estudantes do turno da manhã. Estudantes que trabalham possuem mais
alimentação emocional do que os que não trabalham. Da mesma forma, aqueles que
aderem a dietas possuem maior alimentação emocional do que os que não aderem.
Além disso, os que levam suas refeições para a universidade possuem maior restrição
cognitiva do que aqueles que não levam.
Em relação às dimensões do comportamento alimentar foi observado que
quanto maior a restrição cognitiva, menor o descontrole alimentar e quanto maior o
descontrole alimentar, maior é a alimentação emocional em estudantes do curso de
psicologia. Por isso se faz necessário se atentar aos hábitos alimentares dos
estudantes, pois alguns comportamentos alimentares podem ser de risco para o
desenvolvimento de transtornos, que podem gerar prejuízos na vida pessoal e social
do jovem universitário.

6. Referências

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comportamental. Brasil: Editora Manole.

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715
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Tholin, S., Rasmussen, F., Tynelius, P., & Karlsson, J. (2005). Genetic and
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Alves, H. J., & Boog, M. C. F. (2007). Comportamento alimentar em moradia estudantil:


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Santana, M. S. (2016). Contribuição da insatisfação corporal e de variáveis


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716
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http://dx.doi.org/10.17765/2176-9206.2017v10n1p15-23

717
65- OTIMISMO E ANSIEDADE: UM ESTUDO COM JOVENS UNIVERSITÁRIOS

Camila Santos Ferreira10


Jordanna Christina dos Santos1
Rute Dias Nunes1
Simara Veloso Rodrigues1
Victor Meireles de Souza1
Vinicius Santos de Oliveira1
Daiane Fuga da Silva11
Cláudia Borim da Silva12

Resumo: O objetivo deste estudo foi verificar o nível de ansiedade-estado e otimismo


de jovens universitários. Especificamente: Verificar as opiniões dos alunos acerca do
cenário político-educacional e relacioná-las com seu nível de otimismo e ansiedade;
correlacionar a ansiedade-estado e otimismo dos universitários; e analisar a relação
da ansiedade-estado e otimismo com a expectativa de atuação no mercado de
trabalho. A amostra é composta por 184 alunos de uma universidade privada da
cidade de São Paulo. Utilizou-se um questionário sociodemográfico; Teste de
Orientação de Vida (TOV-R); Inventário de Ansiedade Estado (IDATE-E). Os alunos
consideraram seu engajamento político como razoável, informando que acompanham
as notícias em órgãos oficiais ocasionalmente. Referem que as políticas educacionais
impactam na busca de seus objetivos e consideram ruins as mudanças na gestão da
educação no primeiro ano do novo governo presidencial. Não foi possível constatar
altos ou baixos níveis de ansiedade-estado e otimismo nos jovens universitários.
Houve uma correlação negativa significativa entre ansiedade-estado e otimismo,
evidenciando que estudantes com níveis altos de ansiedade-estado apresentaram
níveis baixos de otimismo. Não houve correlação significativa entre a expectativa de
atuação profissional e a área de formação.
Palavras-chave: otimismo, ansiedade, jovem universitário, políticas educacionais,
desempenho acadêmico.

10
Graduandos do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
11
Psicóloga e Mestre em Ciências do Envelhecimento pela Universidade São Judas Tadeu.
12
Doutora em Educação Matemática e Docente do curso de graduação em Psicologia da Universidade São Judas.

718
Introdução
O conceito de juventude passou por muitas mudanças nas últimas décadas,
deixando de ser uma fase definida apenas por características biológicas e etárias,
para dar lugar a um estágio complexo dependente dos contextos sociais, culturais e
políticos. Esta mudança depende da percepção que a sociedade tem acerca dessa
fase da vida (Doutor, 2016). Essa fase, segundo o Fundo de População das Nações
Unidas (2010), situada entre a infância e a idade adulta, é um período da vida de
aquisição de conhecimento, formação de identidade e de fundamental importância
para o indivíduo.
Este momento da vida é caracterizado pelo estatuto da juventude (Lei 12.852,
2013) como o de pessoas com idade entre 15 e 29 anos. Esse mesmo jovem poderá
sofrer ainda com pressões e cobranças externas que, segundo Morais, Mascarenhas
e Ribeiro (2010), requerem deste jovem adaptar-se a situações muitas vezes vindas
de familiares e sociedade, exigindo cada vez mais adaptações físicas, mentais e
comportamentais. Ainda conforme estes autores, “esse novo modo de vida baseado
na disputa diária para sobreviver nessa sociedade capitalista e com características
bem marcantes de competitividade, injustiças e desigualdades sociais, preconceito,
desempregos, etc. tem gerado males a saúde psíquica, sendo os principais e mais
comum o estresse, a ansiedade e a depressão” (p.2).
Para Dalgalarrondo (2008), o quadro de ansiedade generalizada caracteriza-se
pela presença de sintomas ansiosos excessivos, na maior parte dos dias, por pelo
menos seis meses. O autor ressalta, também, que sintomas como insônia, tensão,
angústia, irritação e ausência de concentração estão presentes. Além dos fatores
psíquicos, o jovem universitário lida ainda com questões socioeconômicas que podem
influenciar seu desempenho acadêmico. Atualmente, o Brasil dispõe de programas
que buscam reduzir as desigualdades sociais e aumentar o número de pessoas com
acesso à educação superior (Areque, 2014).
Diante das adversidades vividas nesta etapa da vida do jovem e as mudanças
governamentais a que estão sujeitos e que podem mudar sua estrutura, o otimismo é
uma característica positiva que pode auxiliar sua trajetória acadêmica e também se
reflete em seu desempenho acadêmico e sua vida social.
De acordo com Scheier e Carver (1985):

719
As pessoas diferem muito umas das outras em como elas se aproximam do
mundo. Algumas pessoas tendem a ser favoráveis em seus pontos de vista. Esses
otimistas esperam que as coisas sigam o seu caminho e geralmente acreditam que
coisas boas, e não más, irão acontecer com elas. Outras pessoas têm um conjunto
oposto de crenças. Esses pessimistas esperam que as coisas não sigam seu caminho
e tendem a prever resultados ruins. Além disso, a observação casual sugere que essas
diferenças individuais são relativamente estáveis ao longo do tempo e do contexto.
(p.219).

Levando em consideração esses aspectos, uma orientação otimista pode ajudar


o indivíduo a perceber suas atitudes sob uma perspectiva positiva, com isso pode
desenvolver estratégias frente às dificuldades da vida, que podem se relacionar com
saúde e bem-estar. De acordo com Bandeira, Bekou, Lott, Teixeira e Rocha (2002)
“uma orientação otimista está relacionada com a saúde física e mental, enquanto uma
orientação pessimista da vida, se relaciona com a depressão, ansiedade e prática de
comportamentos de risco” (p.252).
O universitário durante o seu período de estudo, passa por diversas etapas, até
integralizar a sua formação. Durante este percurso, a trajetória o leva a diversas
preocupações que podem ter influência direta em seus resultados e desempenho
acadêmico. Por exemplo, Schulman (1995, citado por Monteiro, Tavares, & Pereira,
2008), menciona que as respostas otimistas para os eventos negativos se apresentam
associadas com um melhor desempenho acadêmico em estudantes universitários.
Desse modo, frente ao contexto apresentado, é relevante abordar os aspectos
citados e que envolvem a ansiedade e otimismo dos jovens universitários,
considerando a vulnerabilidade a que este grupo é exposto e diante de possíveis
psicopatologias associadas que podem impactar o seu desempenho acadêmico.

Objetivo
O objetivo geral do estudo foi verificar o nível de ansiedade-estado e otimismo
de jovens universitários. Especificamente: a) verificar as opiniões dos alunos acerca
do cenário político-educacional e relacioná-las com seu nível de otimismo e
ansiedade. b) correlacionar a ansiedade-estado e otimismo dos universitários. c)
analisar a relação da ansiedade-estado e otimismo com a expectativa de atuação no
mercado de trabalho.

720
Método
O estudo consiste em uma pesquisa de levantamento que, de acordo com Gil
(2008), é aquela em que o pesquisador irá lidar diretamente com uma amostra do
público que ele pretende estudar, propiciando, assim, um contato direto com a
realidade dessas pessoas e podendo submeter os dados coletados a técnicas
estatísticas. Trata-se de um estudo descritivo-correlacional, de abordagem
quantitativa e delineamento transversal.
A amostra é composta por 184 estudantes de graduação, matriculados em uma
universidade privada da cidade de São Paulo, com idades entre 18 e 29 anos e de
ambos os sexos. Esta faixa etária foi definida de acordo com o estatuto da juventude.
Foi considerado como critério de inclusão: ser estudante universitário com idade entre
18 e 29 anos devidamente matriculado em uma universidade privada da cidade de
São Paulo.
Foram utilizados três instrumentos: 1) Questionário sociodemográfico elaborado
pelos pesquisadores para a caracterização dos participantes, contendo questões
acerca da vida social, acadêmica e sobre o posicionamento político-educacional do
estudante; 2) Teste de Orientação da Vida (TOV-R) validado por Bandeira et al.
(2002)13, que objetiva avaliar o constructo do otimismo com relação a eventos futuros.
O índice global do grau de otimismo pode variar entre 0 e 24 pontos, sendo que
valores mais altos da pontuação indicam alto grau de otimismo; 3) Inventário de
Ansiedade Estado (IDATE-E) traduzido e adaptado por Biaggio e Natalício (1979) que
visa avaliar o estado transitório de ansiedade frente às adversidades de um
determinado momento. A soma da pontuação em cada item pode variar entre 20 e 80
pontos, sendo que pontuações mais altas indicam alto estado de ansiedade.
O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da Universidade São Judas Tadeu (Parecer número 3.387.354 e CAAE:
14693419.9.0000.0089) e a coleta de dados ocorreu de forma individual na
dependência interna da própria instituição. Todos os participantes que aceitaram
participar do estudo, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE). Os resultados foram tabulados em planilha eletrônica no Microsoft Excel
(Pacote Office 2016) e analisados no Software SPSS (Statistical Package for Social

13
Agradecemos a autorização da autora para a utilização deste instrumento.

721
Science), versão 21.0. Os dados estão apresentados com frequência e porcentagem,
média e desvio padrão. Para atingir os objetivos específicos, foram utilizados a
correlação linear de Pearson e ANOVA. O nível de significância adotado foi de 5%.

Resultados e Discussão
A amostra é composta por 184 estudantes, com média de idade de 21,3
(DP=2,4), sendo 122 (66,3%) mulheres, 112 (61%) que cursaram o ensino médio em
escola pública, 89 (48,2%) cursam graduação na área de Ciências Biológicas e da
Saúde, 105 (57,1%) consideram que o desempenho acadêmico na graduação é bom
e 100 (54,7%) estão satisfeitos com este desempenho.
Verifica-se na Tabela 1 que, em relação aos temas referentes à política e
ensino, 48,1% da amostra declarou ter nível razoável de engajamento político. No que
se refere ao impacto que as políticas educacionais exercem no alcance dos objetivos
pessoais dos participantes, a maior parte (54,1%) afirma que existe muita influência.
Quando questionado se os participantes acompanham as notícias do MEC (Ministério
da Educação), 48,4% declararam que às vezes acompanham. 35,5% classificaram
como ruins as atuais mudanças na educação de ensino superior. No que diz respeito
a descontos e financiamentos de ensino superior, nota-se que a maioria dos
estudantes possuem desconto ou bolsa auxílio (94,6%), sendo que a principal bolsa
utilizada é fornecida pela instituição de ensino em que estão matriculados (43,5%).
Dias e Kerbauy (2015) verificaram que pessoas escolarizadas são mais
propensas ao engajamento político e encontram relação considerável entre o ensino
superior e os interesses voltados para o assunto, sendo esse, na prática, um fator que
levaria os estudantes a concluírem a universidade. Os autores ressaltam que os
estudantes tendem a ser mais atentos às notícias, pois as áreas política e acadêmica
fazem parte do seu meio social.

Tabela 1
Caracterização dos jovens universitários.
N %
Categorias
Engajamento político
Muito 24 13,1
Razoável 88 48,1
Pouco 62 33,3

722
Nada 10 5,5
Impacto das políticas educacionais nos objetivos
Muito 99 54,1
Razoável 61 32,8
Pouco 23 12,6
Nada 1 0,5
Acompanhamento das notícias do MEC
Às vezes 89 48,4
Sim 51 27,5
Não 44 24,1
Classificação das atuais mudanças na educação
Ruim 66 35,5
Péssimo 61 33,4
Regular 46 25,1
Bom 9 4,9
Ótimo 2 1,1
Desconto ou Bolsa Auxílio
Sim 174 94,6
Não 10 5,4
Bolsa Auxílio
Bolsa USJT 80 43,5
Prouni 54 29,3
Bolsa Enem 22 12,0
Outros 28 15,1
Financiamento
FIES 27 14,7
Pravaler 10 5,4
Outros 147 79,9
TOTAL 184 100

Como pode ser observado na Tabela 2, não é possível afirmar que existe uma
tendência de baixos ou altos níveis de ansiedade-estado nem de otimismo nos jovens
universitários, uma vez que os scores médios estão muito próximos do ponto médio.
Silva, Sousa e Melo (2016) também encontraram pontuação muito próxima ao ponto
médio do instrumento de ansiedade-estado em estudantes de Psicologia. Com
relação ao otimismo, Bandeira, Bekou, Lott, Teixeira e Rocha (2002) avaliaram
estudantes de uma universidade pública de diversos cursos da graduação e
verificaram que a média do otimismo foi de 17,89, valor que está acima do identificado
no presente estudo.

723
Tabela 2
Média e Desvio Padrão da ansiedade-estado e otimismo dos universitários.
Categoria N Mínimo Máximo PME Média DP
Ansiedade-Estado 184 26,0 80,0 50 49,5 11,4
Otimismo 184 4,0 23,0 12 14,2 3,5
Nota: PME = Ponto Médio da Escala. DP = Desvio Padrão.

Ao correlacionar os níveis de ansiedade-estado e otimismo, verificou-se que há


uma correlação negativa entre as variáveis (r= -0,376; p= <0,001), revelando que os
universitários que apresentaram níveis altos de ansiedade-estado obtiveram
pontuações baixas em otimismo. Em estudo realizado por Scheier e Carver (1992,
citado por Bandeira et al., 2002) o baixo grau de otimismo aparece relacionado a
sintomas ansiosos, depressivos, sentimentos de solidão e estresse em alunos
universitários, e isto pode acarretar dificuldades de adaptação ao ambiente
universitário e, possivelmente, baixo desempenho acadêmico.

Tabela 3
Média, desvio padrão e Anova da pontuação de ansiedade-estado e otimismo
comparado pela atuação dos universitários no mercado de trabalho.
Mercado de
Categorias N M DP F p
trabalho
Sim 137 49,2 11,6
Ansiedade-Estado Já atua 41 49,3 11,1 1,166 0,314
Não 5 57,2 9,4
Sim 137 14,2 3,5
Otimismo Já atua 41 14,0 3,5 1,228 0,295
Não 5 11,8 1,6
Nota: M = Média. DP = Desvio Padrão.

Pode-se observar na Tabela 3 que não há diferença estatisticamente significante


no que diz respeito à pontuação de ansiedade-estado e otimismo com a expectativa
dos universitários em atuar no mercado de trabalho, de acordo com a área de
formação da graduação. No entanto, é observado que o grupo que declara não se
imaginar atuando profissionalmente na área de formação corresponde a um número
muito pequeno da amostra. Este dado levanta questionamentos acerca das variáveis

724
envolvidas na escolha do curso de graduação, bem como nos aspectos que levam o
estudante a desconsiderar a possibilidade de atuar na área escolhida.
Em uma pesquisa realizada com universitários do último ano de diversos cursos,
Gondim (2002) identificou que, de acordo com os estudantes, fatores como:
expectativa dos pais, pouco conhecimento acerca da realidade de mercado e
idealização da profissão influenciam tanto na escolha do curso de graduação como
na fragilização do perfil profissional dos estudantes concluintes.
Escudero (1999, citado por Cruz, Pinto, Almeida, & Aleluia, 2010) aponta que as
aspirações dos jovens universitários, quanto ao mercado de trabalho, iniciam na
universidade diante das exigências para atuação no âmbito profissional. A incerteza
de ingressar na área e a escassez de oportunidades podem produzir ansiedade e
desesperança.

Conclusões
De acordo com os dados obtidos, verifica-se que, embora não seja possível
identificar uma tendência de altos ou baixos níveis de ansiedade-estado e otimismo
na amostra estudada, existe uma correlação negativa significativa entre essas
variáveis, evidenciando que estudantes com níveis altos de ansiedade-estado
apresentaram níveis baixos de otimismo. Na presente pesquisa, não houve correlação
significativa entre a expectativa de atuação na área profissional escolhida com o
otimismo e ansiedade. No entanto, ressalta-se o número pequeno de participantes
que declararam não se imaginar atuando na área, levando à reflexão das possíveis
variáveis que podem ter influenciado na decisão de escolha do curso. Além disso, no
que se refere às políticas educacionais e ao atual contexto político, ainda que haja
pouco engajamento político e acompanhamento de notícias publicadas em órgãos
oficiais, a maioria dos participantes acredita que tais programas exercem influência na
busca por seus objetivos e classificou como ruins as atuais mudanças na educação.
Embora a amostra da pesquisa seja considerada expressiva, é importante
ressaltar que ela não é capaz de representar todos os jovens universitários da
instituição privada da cidade de São Paulo, ora pesquisada. O número pequeno na
amostra que declara não se imaginar atuando na área de formação aponta a
importância de se investigar em estudos futuros, os aspectos envolvidos na escolha
do curso de graduação e a perspectiva do mercado de trabalho dos jovens
universitários.

725
Referências

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Agradecimento
Agradecemos à Dra. Marina Bandeira, pela disponibilidade e autorização de uso
do Teste de Orientação da Vida (TOV-R).

727
66- CONFIGURAÇÕES VÍNCULARES DE UMA CRIANÇA REFUGIADA
SÍRIA: UM ESTUDO DE CASO CLÍNICO

Mariana Lopes da Silva14


Mayara Falcão Lopes15
Rosimeire Nogueira16
Hilda Rosa Capelão Avoglia17

Resumo: A temática abordada se refere a criança em situação de


refúgio, considerando as implicações culturais, políticas, sociais e religiosas.
Atualmente cresce o número de famílias refugiadas, sendo as crianças as
mais vulneráveis nesse processo de ruptura de vínvulos com o país de
origem. O objetivo deste estudo foi identificar e analisar a percepção da
criança em relação aos vínculos com seu país de origem e com o Brasil.
Trata-se de um estudo de caso, com desenho metodológico clínico
qualitativo, no qual contou-se com a participação de uma criança, 12 anos
de idade, que frequentava uma instituição educacional destinada a
refugiados, localizada na Região do Grande ABC-SP. Foram utilizados
como instrumentos entrevista semidirigida e o procedimento de Desenho
Estória com Tema (DE-T). Os dados foram analisados em uma perspectiva
psicanalítica. Os resultados indicaram a presença de sentimentos de
inadequação, medo e abandono, entretanto, os vínculos familiares e as
estratégias encontradas para preservação da cultura se mostraram como
mecanismos que atenuavam o sofrimento, possibilitando o uso de recursos
psíquicos para lidar com o rompimento de vínculos forçado pela situação de
refúgio. Os resultados permitem ampliar a compreensão diagnóstica
considerando-se a complexidade que envolve a convivência em outra
cultura e sua adaptação.

Palavras-chaves: Refúgio; Vínculos; Criança; Desenho Estória com Tema (DE-T).

1414
Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo
1515
Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo
16
Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo
17
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São
e do Programa de Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da Universidade Católica de Santos.

728
INTRODUÇÃO

1. Contextualizando a situação de refugiados

O tema “refúgio” vem sendo discutido há muito tempo, sendo que, por
questões culturais, políticas, sociais, religiosas, entre outras, milhões de pessoas
precisaram se deslocar, deixando seu país de origem para buscar proteção
internacional em outro lugar.
De acordo com a Convenção dos Refugiados (2013, p. 2), é determinado
que o refugiado é alguém que “temendo ser perseguido por motivos de raça,
religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do
país de sua nacionalidade e que não pode, em virtude desse temor, valer-se da
proteção desse país”.
Segundo relatório divulgado pela Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (ACNUR) em 2017, o número de pessoas em deslocamento
no mundo chega ao número de 68,5. Em termos nacionais, até o final do ano de
2018, 11.231 pessoa de diferentes nacionalidades foram reconhecidas refugiados
no Brasil,
Dados divulgados em 2016 pela Organização Não Governamental I Know
My Rights (IKMR) entre os anos de 2010 e 2015, o número de crianças de zero a
doze anos somam 599, que normalmente chegam ao Brasil acompanhadas de
seus pais ou responsáveis legais.
No Brasil, a lei que regula os direitos dos refugiados é a Lei 9.474/1997.
Considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) "como umas das leis
mais modernas, mais abrangentes e mais generosas do mundo" auxilia na
proteção internacional dos refugiados”.
De acordo com estudos recentes, a saúde mental de pessoas em situação
de refúgio apresenta certa complexidade, além de demonstrar o quanto a figura
da família é de suma importância para aqueles se encontram nessa situação de
refúgio.
Segundo Martins-Borges (2013) por possuir características involuntárias
e ocorrer de maneira rápida, os refugiados em seu deslocamento, trazem consigo
de forma limitada aquilo que determinava sua identidade, como costumes,
relações, profissão. Quando saem de seu local de origem de maneira repentina,

729
com frequência podem passar a sentir um sofrimento psicológico que está
interligado ao trauma sobre o qual foi sujeitado no período pré-migratório e
migratório, como morte de familiares e testemunha de violências diversas.

2. Vínculo e migração (Bowlby, 1984\2004).

Uma das formas de comportamento que é indicativo de medo é o


comportamento de apego, sendo capaz de aumentar a proximidade entre
pessoas e objetos e provedor também de proteção (Bowlby, 1984/2004).
Ainda segundo o referido autor, famílias que vivenciam situação de desastres
(durante e após), tem dificuldade em encontrar calma e direcionamento de ações para
outro alvo, enquanto não contam com a união da família novamente.
Subsequentemente à situação de desastre, há tendências de que as pessoas se
aproximem e criem laços mais estreitos com a figuras de apego, visto que a presença
de membros da família pode trazer sensações de aconchego e bem-estar (Bowlby,
1984/2004).
Estudos sobre morte e luto trazem outras situações, além da perda de
pessoas, como por exemplo, objetos com profundos significados, um animal de
estimação, migração forçada ou algo simbólico (Bowlby, 1984/2004).
Durante a Segunda Guerra Mundial, milhares de crianças refugiadas foram
abrigadas na Suíça e em outros países, dessa forma, foi possível demonstrar os
efeitos prejudiciais das separações de crianças de suas famílias, devido à guerra
não houve muito tempo para uma pesquisa sistemática, porém em um resumo
das descobertas dos pesquisadores das áreas médicas, educacionais e
assistencial mostrou que: além das perturbações da guerra, mostrou também as
rupturas de vínculos familiares e os distúrbios que isso causou (Bowlby,
1976/1988).

OBJETIVO

Identificar e analisar a percepção da criança refugiada sobre a


configuração dos vínculos no país de origem e no Brasil.

730
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa com delineamento metodológico clínico
qualitativo que contou com a participação de um menino, refugiado sírio, com idade
de 12 anos, residindo há 3 anos no Brasil. O local no qual realizou-se a coleta dos
dados foi em uma instituição educacional na Região do Grande ABC – SP
destinada a escolarização de crianças refugiadas sírias.

Os instrumentos utilizados foram a Ficha de Identificação da criança


contendo dados básicos como idade, sexo, ano escolar e país de origem. Além
desta, foi realizadauma entrevista semidirigida com a criança na qual foram
abordados aspectos sobre o país de origem e o país atual; e o procedimento de
Desenho-Estória com Tema (DE-T) a partir das consignas: “Desenhe uma criança
em seu país de origem” – como primeira produção, e “Desenhe uma criança em
seu país atual” – segunda produção. Os dados obtidos forma analsiados em uma
perspectiva psicanalítica, articulando-se a entrevista, bem como o material gráfo
verbal advindo do DE-T.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade


Metodista de São Paulo (CEP-METODISTA) com Parecer Nº
91369218.1.0000.5508.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O participante, identificado como K., tem 12 anos de idade, é de nacionalidade


síria e frequenta o 7º ano do Ensino Fundamental em uma escola particular destinada
a crianças refugiadas sírias, localizada na Região do Grande ABC-SP.

Dados da entrevista:

Durante a entrevista, K. informa de forma rápida que ele e a família tinham


que “fugir” do país e que antes de chegar ao Brasil, acreditava que aqui seria diferente,
pois havia visto via internet fotos do Brasil e, devido a isso, possuía outra visão do país.
Afirma que via as ruas e pensava que quando chegasse aqui moraria em uma casa
bonita. Nesse momento, foi possível identificar sentimentos de frustração.
Sobre seus pais, informa que na Síria sua mãe não precisava trabalhar e

731
que aqui essa rotina é diferente, associa a dificuldade financeira com a vinda ao Brasil
e, aparentemente lamenta essa vinda, pois devido a isso permanece menos tempo com
a família: [...] “lá eu tinha mais tempo, mais tempo para fazer tudo, e eu era o primeiro
da classe”. Sobre essa dificuldade em passar tempo com a família, K. diz: “meu pai
era mais jovem, minha mãe volta para casa cansada, lá ela não trabalhava, meu pai
chega tão tarde em casa...”.
Importante ressaltar que durante sua fala sobre a Síria, ele “engasgou”,
pediu uma pausa para beber água e verbaliza “eu não consigo mais”, fato este que
ocasionou na interrupção da entrevista com o menino.
Os dados obtidos na entrevista indicam que o participante apresenta
dificuldades em se adequar a vida atual morando no Brasil compartivamente a sua
vida na Síria. Importante destacar que, tasi afirmações são verbalizadas por K, mesmo
trazendo as situações de guerra com as quais convivia, infirmando inclusive que
soube que um tio morreu baleado.
É possível perceber sinais de ansiedade nas falas do participante,
ressaltando-se que, quando questionado sobre qual o futuro que deseja para ele e
seus familiares, responde: “quero ser mais feliz e ser melhor”. Diz ainda que tem o
sonho de ser tradutor árabe – português, possivelmente como uma forma de ajudar
seu pai devido a dificuldades em conseguir um trabalho melhor no Brasil por não falar
português corretamente.

Desenho-Estória com Tema (DE-T):

Ao elaborar a primeira produção gráfica (“Desenhe uma criança em seu


país de origem”) K. divide a folha em duas partes escrevendo “2012” na parte superior,
e “2009” na parte inferior. Na parte superior há dois helicópteros com granadas
pintadas de verde, um deles está atingindo com essas granadas um indíviduo que diz
“Eu vou morrer” e um carro ao lado, no outro helicóptero há dois soldados subindo até
o mesmo. Há também um soldado atirando com um sorriso no rosto em uma lateral e
na outra lateral uma casa, que parece estar destruída.. Na parte inferior, no ano de
“2009”, K. desenha um campo de futebol, uma casa ao lado e o que parece ser uma
grande porta, ao lado da casa. Ao lado dessa porta, há um carro e uma pessoa que
parece estar arrumando o interior do carro, sendo que ao lado, há um indivíduo
sorrindo.

732
Para a segunda produção gráfica (“Desenhe uma crinaça em seu país
atual”) K. não colore o desenho, utiliza apenas o lápis preto, desenhando uma casa
que ocupa 1/3 da folha do lado direito, um ônibus em uma rua na parte mediana da
folha, que parece estar em movimento, e um campo de futebol que ocupa 1/3 do lado
esquerdo da folha com pessoas jogando futebol.
O primeiro desenho do participante foi sobre seu país de origem, a Síria,
no qual separa o desenho em duas metades, dessa forma, representando a vida
no país em que nasceu, ou seja, caracteriado pela dualidade.Foi possível verificar
na análise dos dados a dissociação como mecanismo de defesa, pois, nessa
figura, o menino separa a folha em épocas históricas referentes a Síria, além de
especificar que um período era com a guerra, e em outro período, sem a guerra.
Conforme Piccolo (1981) a dissociação é o mecanismo pelo qual o ego e o objeto
são divididos, e isso se dá devido a função das características idealizadas e
persecutórias, como possivlemente vivenciava K em seu país de origem.
Assim, os dados permitem entender que K., consegue “separar” as
experiências vividas na Síria, como por exemplo, a experiência segura e protegida
de estar com seus pais, mesmo em um país em guerra e depois o sentimento de
abandono e medo, mesmo estando no mesmo local.
Essa análise pode ser articulada com o que foi manisfestado durante a
entrevista, na qual parece claro que essa separação em períodos quando ele
informa que eram felizes em 2009 e que em 2012 começaram as bombas - que
inclusive foram representadas graficamente - como uma alusão ao período de
guerra e medo desencadeado pela insegurança que a situação evocava. É
possível identificar esse mesmo mecanismo diferenciando-se do momento de
guerra no país de origem e no Brasil, quando o único desenho de figura humana
mais elaborado é aquele que o representa, enquanto os demais personagens da
figura foram representados como desenhos pedagógicos.
Representa a si mesmo no desenho, e neste caso, a figura se apresenta sem
os pés e as mãos, o que pode significar uma imaturidade sobre quem não quer
saber sobre os problemas do mundo e falta de confiança nos contatos sociais
(Campos, 1998), o que pode ser associado ao fato de K. deparar-se com
problemas tão complexos como a vivência da guerra e, consequentemente a
necessidde de sair de seu país.
O participante desenhou a boca proporcionalmente grande em

733
comparação ao restante do rosto. Para Campos (1998), demonstra uma
necessidade de inter-relação social. K., em seu relato, não informa amigos tanto
no país de origem, como no Brasil, suas relações sociais são focadas em sua
família. Ocorre também nessa figura a omissão do pescoço, que conforme o
referido autor, simbolicamente pode significar snetimentos de inferioridade, e essa
inferioridade é informada durante a entrevista quando o participante revela que
na Síria ele era o melhor aluno da sala, e esse status de melhor aluno não é
confirmado no Brasil.
A guerra foi representada com uso de cores fortes sobre o desenho, verde e
laranja e, conforme Hammer (1981) uma criança coloca cores em seus desenhos
para se expressar, K. expressou seu medo por meio da cor, porque apenas nessa
parte do desenho que ele desejou pintar. Desenhou soldados, com expressão de
riso na face, e um civil com um balão que representa fala ou pensamento com os
dizeres “eu vou morrer”.
Tanto na primeira quanto na segunda produção, as casas possuem o
mesmo padrão, porém o desenho da casa no Brasil, a porta é bem menor
comparada ao tamanho da casa. A partir de Campos (1998) isso pode
representar relutância do participante em estabelecer contato com o ambiente,
com retraimento no intercâmbio pessoal, tal relutância é percebida durante a
entrevista onde o mesmo informa que imaginava o Brasil de outra forma, e como
se decepcionou com a chegada ao país.
Em ambos os desenhos as portas se encontram fechadas o que pode
indicar autodefesa, defesa contra o mundo, e K. desenhou uma maçaneta que
pode indicar medo sobre o perigo externo. As janelas feitas por K. possuem
modelos de vidraças que demonstram isolamento e desejo de proteção, até
mesmo uma barreira para se proteger (Campos, 1998).
No desenho de K. os soldados foram feitos como figuras em palitos, de
acordo com Van Kolck (1984), refere-se a pessoas que acreditam que as relações
interpessoais são desagradáveis, o único não desenhado dessa forma o que
representa a si mesmo. Realizar desenhos de pessoas nesse formato também
indica características de pessoas inseguras (Hammer, 1981).
O desenho do campo de futebol está presente nas duas produções
gráficas, sendo possível associar com a questão cultural, na qual o jogo de futebol
integra um elemento de grande força cultural no Brasil e, nesse sentido, parece

734
se constituir uma identificação com o país onde mora atualmente. Há objetos no
céu, como helicópteros que representam medo e terror, e no segundo desenho,
um avião é desenhado, possivelmente o avião que os trouxeram ao Brasil,
segundo K. apresenta paz, durante o inquérito ele diz: “... não ter medo de cair
alguma coisa”, essas figuras podem ser elos que ligam os países a partir de
diferentes representações.
K. aborda seu sonho de trabalhar como tradutor árabe x português,
possivelmente o mecanismo sublimatório, que conforme Piccolo (1981), se refere
a capacidade de reparação do indivíduo, se expressando através da criatividade
e da capacidade de se realizar, podemos traduzir isso também como uma
necessidade de sempre estar conectado às suas origens.

DISCUSSÃO

Martins-Borges (2013) aponta que por não ter planejado a sua partida, o
refugiado não planejou também sua mudança entre o país de origem e o país que
o acolheu, além de que não se projetou nesse novo lugar, trazendo consigo pouco
do que definia sua identidade, o que faz com que o processo de migração
involuntária exija dessa pessoa um trabalho psíquico.
Estudos recentes mostram que a saúde mental de pessoas em situações
de refúgios é complexa e que a figura da família é essencial para os indivíduos
que se encontram nessa situação e compreende-se que essas perdas podem
também serem estendidas a lares e comunidades, podendo ser um fator gerador
de fragilidade emocional na família, pois estar em seu ambiente pessoal e
familiar, faz o indivíduo se manter a salvo de azares e perigos junto de
companheiros conhecidos, deleitando-se de costumes estabelecidos e sabendo
lidar com facilidade sobre alimentação, segurança e bem-estar perda de lares e
comunidades (Galyna; Silva; Haydu, & Martin, 2017; Parkes, 1998; Weine;
Muzurovic; Kulauzovic; Besic; Lezic, & Mujagic, 2004).
Tal perspectiva é assim expressa por Bowlby (1984/2004) compreendendo
que os indícios de aumento de risco e perigo fazem parte de uma situação
composta, podendo ocorrer em paralelo a indícios culturais de real tensão. E
também indicando alterações mais relacionadas com a experiência de ser uma
família deslocada, trazido pelo participante K. de doze anos quando se refer e a

735
mudanças para seus pais "Não é igual antes, é ruim...ninguém gosta de morar
em um lugar bom e conseguir fazer várias coisas e ser obrigado a sair do seu
país". Tais experiências vividas pelos participantes e sua família apontam um
sofrimento social, partindo do ponto de que o vínculo, por muitas vezes, não se
dá apenas com as pessoas, entes queridos, mas também com a sua cultura e o
modo de viver.
Pode-se entender que a família participante da pesquisa tenta essa
reaproximação com a sua cultura, praticando sua religião em uma mesquita , se
comunicando na lígua nativa (árabe) dentro de casa, fazendo comidas típicas da
Síria, frequentando uma escola que se ajusta à cultura muçulmana. Desse modo,
parece possível a criação de recursos psíquicos para uma possível adaptação no
Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente estudo foi analisar a percepção da criança


refugiada sobre a configuração dos vínculos no país de origem e no Brasil parece
ter se confirmado, considernado-se que as pessoas em situação de refúgio
apresenta certa complexidade, além de demonstrar o quanto a figura da família
é de suma importância para aqueles se encontram nessa situação.
A análise do material coletado aponta que, embora o participante
apresente sentimentos de inadequação, medo e abandono, os vínculos familiares
e a cultura do país de origem podem fazer facilitar o uso de recursos suficientes para
lidar com a situação de refúgio, apontando expectativas futuras. Tais expectativas
estão ligadas de certa forma com o país de origem como o desejo em se tornar
um tradutor de sua língua nativa (árabe) para o português.
Cabe ainda destacar o papel da família como elemnto capaz de facilitar o
estabelecimento de vínculos e que esses vínculos fazem com que as crianças se
fortaleçam para percorrer para enfrentar a adaptação nesse novo espaço teritorial
brasileiro.

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737
<http://www.scielo.br/pdf/icse/v21n61/1414-3283-icse-21-61-0297.pdf>. Acesso
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<http://www.ikmr.org.br/criancas/criancas-no-brasil/>. Acesso em: 9 set. 2017.

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Janeiro: Interamericana.

Martins-Borges L. (2013). Migração involuntária como fator de risco à saúde mental.


Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21. n. 40, Jan./ Jun. 2013.
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Van Kolck, O. L. (1984). Testes projetivos gráficos no diagnóstico


psicológico. São Paulo: Pedagógica e Universitária.

738
67- REPARAÇÃO MANÍACA E VERDADEIRA EM UMA CRIANÇA ACOLHIDA:
UM ESTUDO DE CASO CLÍNICO

Jaqueline dos Santos Corrêa Claro18


Hilda Rosa Capelão Avoglia19

Resumo: Na perspectiva psicanalítica de escola inglesa, o mecanismo de reparação,


ligado a culpa e angústias inerentes da posição depressiva do desenvolvimento, é
caracterizado por uma tentativa do sujeito de reparar o objeto alvo de suas fantasias
destrutivas. A reparação verdadeira exerce no desenvolvimento do ego um papel
estruturante, exigindo uma condição e atmosfera mental propícias para que os objetos
se reparem uns aos outros. Quando não asseguradas tais condições, a repetição
compulsória de ações reparatórias caracteriza uma reparação maníaca. Diante disto,
este estudo teve como objetivo analisar os mecanismos de reparação de um menino
de 8 anos, em situação de acolhimento, atendido semanalmente em um processo
psicoterápico lúdico de base psicanalítica. Trata-se de um estudo de caso, com
método clínico descritivo. Foram identificados recortes de fragmentos de sessões
visando análise posterior. Diante dos resultados, foi possível perceber demasiada
agressividade em relação aos brinquedos, levando-os ao dano e destruição. Esses
momentos foram continuamente seguidos por tentativas infrutíferas de conserto,
evidenciando a ação compulsória envolvida nesse processo e a desproporcionalidade
de sua ação reparatória em relação à ação destruidora. Assim, conclui-se que o
paciente, nos fragmentos apresentados, apesar de evidenciar atos reparatórios, não
se encontra, pelo menos o momento, em vias de uma reparação verdadeira do objeto,
mas sim de uma reparação maníaca que não lhe possibilita integração.

Palavras-chaves: Reparação; Reparação Maníaca; Psicoterapia da Criança;


Psicanálise da Criança.

18
Psicóloga clínica. Integrante do Grupo Mosaico – atenção e pesquisa sobre infância em contextos de
vulnerabilidade social.
19
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde - Universidade Metodista
de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da
Universidade Católica de Santos.

739
Introdução

De acordo com a perspectiva psicanalítica, especificamente de escola inglesa,


no processo de desenvolvimento a criança estabelece formas de relação com os
objetos, sendo que, inicialmente, ela os percebe enquanto objetos parciais, apesar de
já fazer uso de mecanismos de introjeção e projeção para constituí-los enquanto
“bons”, aqueles que dão o que necessita, e “maus” objetos, quando estes lhe falham
e nos quais se projeta sua própria agressividade (Simon, 1986).

Sentidos como perseguidores internos e externos, os maus objetos geram em


sua relação persecutória uma angústia básica: o medo de ser destruído. Entende-se,
em termos de desenvolvimento, que todas estas características dizem respeito ao que
se denomina posição esquizo-paranoide, como afirma Simon (1986) referindo-se a
obra de Melanie Klein.

Em sua obra sobre tal perspectiva de desenvolvimento, Meltzer (1989) observa


que a postulação do conceito de “posição” diz respeito ao entendimento de que
existam estados transitórios a serem vivenciados tanto na criança, como no adulto, e
que caracterizam especificamente áreas de relação de objeto em que há prevalência
de determinados sistemas de valores. Sendo assim, é coerente que se aborde a seguir
a denominada posição depressiva.

De acordo com o autor supracitado, esta posição se caracteriza no decorrer do


desenvolvimento, entre outros fatores, pela passagem das relações de objeto de
parciais para totais. Trata-se, nesse caso, de um processo universal e normal do
desenvolvimento, quando a elaboração da posição depressiva tende a ocupar o
restante do primeiro ano de vida do bebê. Faz-se necessário, entretanto, observar que
seu processo não encontra conclusão, acontecendo reiteradamente por toda a vida
(Meltzer, 1989).

A progressiva integração dos objetos e as boas experiências com a mãe ou


cuidador e com o mundo externo permitem à criança superar um pouco de suas
angústias paranoides, dando lugar a novas angústias e mecanismos de defesa. Dessa
vez, a perda do objeto amado assume o lugar principal de proteger o objeto bom,

740
passado a ser necessário para garantir a integridade do próprio ego, como menciona
Simon (1986).

A respeito dessa superação, destaca-se que esta se dá ante a possibilidade de


tolerar as angústias próprias da posição relacionadas à destruição do bom objeto,
considerando o fortalecimento da confiança na segurança do objeto interno para
suportar a separação do objeto externo. Quando não atingida a superação, pode
decorrer em regressão à posição esquizo-paranoide, além de outras condições
(Simon, 1986; Meltzer, 1989).

Ainda em relação à posição depressiva, pode-se citar que as principais defesas


utilizadas são a introjeção do bom objeto associada a reparação do objeto. A respeito
desta última, a reparação, Laplanche e Pontalis (2000) afirmam que se trata de um
mecanismo de papel estruturante no desenvolvimento do ego, visto que permite à
criança uma possibilidade de manter ou reestabelecer o corpo materno/objeto de amor
em sua integridade, depois de reconhecidos os efeitos de suas fantasias destrutivas
sobre ele.

Meltzer (1989), entretanto, destaca a realidade que a criança enfrenta ao


colocar seus impulsos reparatórios em prática, sendo um sentimento terrível de
frustação e incapacidade devido ao abismo que há entre o “quebrar” e o “juntar” (p.
70). Realizar o primeiro, se referindo ao “quebrar”, mostra-se bem mais fácil para ela
do que realizar o segundo, “juntar”. Assim, internamente, em suas fantasias e
sentimentos, na tentativa de reparar onipotentemente todo o dano causado, a criança
pode cair em um ciclo maníaco, como explica o referido autor.

Nesse sentido se adequa a constatação de Laplanche e Pontalis (2000) de que


quando não bem assegurado, o mecanismo de reparação tende para dois caminhos:
o das defesas maníacas, que diz respeito aos sentimentos de onipotência; e o dos
mecanismos obsessivos, que diz respeito às ações reparatórias compulsivamente
repetidas.

Há, de acordo com Simon (1986), uma necessidade superegoica de que os


detalhes sejam totalmente restaurados, em cada mínimo aspecto, possibilitando uma
combinação entre a restauração e a fantasia sádica que deu origem ao prejuízo. Se
não existe confiança suficiente na força reparadora, o dano não é desfeito pelo
conserto e as reparações compulsivas não têm fim.

741
Percebe-se nos fatores delineados até aqui uma distinção entre o que se
denomina reparação verdadeira e reparação maníaca. Ao contrário do que é
observado na reparação maníaca, na reparação verdadeira ocorre a reparação mútua
dos objetos, sendo esta garantida por uma condição mental favorável, originada pelos
sentimentos depressivos, de culpa e de remorso (Meltzer, 1989).

Diante do exposto, este estudo tem como objetivo analisar, a partir do relato de
uma experiência clínica, o uso de mecanismos de reparação em uma criança de 8
anos, acolhida, em processo de psicoterapia.

Método

Trata-se de um estudo de caso com uso de método clínico, envolvendo uma


criança que se encontra em situação de acolhimento há cerca de 4 anos, atendida em
uma Clínica Escola da Região do Grande ABC-SP. O processo de atendimento, na
modalidade de psicoterapia, ocorre há aproximadamente 1 ano e meio, com sessões
semanais de 50 minutos. Por questões éticas, sua identidade será preservada e lhe
será atribuído o nome fictício de Miguel.

Sobre a história de vida de Miguel sabe-se apenas que foi destituído de sua
família por motivos de negligência e violência, junto com seus outros 4 irmãos. Desde
que iniciou a psicoterapia, já vivenciou o início do processo para adoção mais de uma
vez, sendo estas tentativas frustradas após um tempo.

Para a realização dos atendimentos, utiliza-se a técnica da lúdica, havendo a


caixa lúdica que permanece com ele em todas as sessões e durante todo esse
período, conforme Aberastury (1984) e Ocampo e cols. (1986).

Para a realização deste estudo de caso, serão relatados, os fragmentos


clínicos, ou seja, são recortes referentes a alguns diferentes momentos das sessões.
Importante registrar que tais fragmentos foram selecionados a partir da própria visão
das autoras do presente estudo, considerando-se a importância de associações com
aportes teóricos acerca do desenvolvimento da criança. Quanto a análise do material
utilizou-se da perspectiva psicanalítica de escola Kleiniana. As descrições não
seguem necessariamente uma ordem cronológica ou evolutiva.

742
Resultados e Discussão

A seguir apresenta-se os resultados do estudo, transcrevendo os fragmentos


das sessões e, a seguir a análise proposta. Assim temos:

Fragmento 1:

Em determinado momento da sessão Miguel pega o seu carrinho e tenta retirar


os parafusos que prendem a tampa onde estão as baterias do brinquedo. Diante da
impossibilidade de realizar o que pretende, inicia o que parece um processo de
destruição deste. Desse modo, força as extremidades com o uso da tesoura, bate o
carrinho contra a mesa, consegue quebrar uma pequena parte e por meio dela
consegue forçar ainda mais para que todo o restante da tampa da bateria seja aberto.

Fragmento 2:

Nas sessões seguintes Miguel intensifica seus esforços e abre todo o carrinho,
utilizando-se de muita força e agressividade para isso. Ao perceber que este está todo
desmontado, inicia o processo inverso, buscando a todo custo recolocar cada peça
em seu lugar. Mostra-se frustrado quando não consegue encontrar o lugar devido. Por
fim, consegue fechar novamente o brinquedo, mas parece sentir-se culpado ao
perceber que o carrinho não funciona mais.

É possível relacionar essa necessidade de colocar cada mínima peça em seu


devido lugar no momento da reconstrução do objeto quebrado ao que foi classificado
por Simon (1986) como uma necessidade superegoica de que, ao realizar uma
reparação, cada aspecto destruído, prejudicado por determinada fantasia sádica, seja
restaurado totalmente em seus mínimos detalhes. A não obtenção da total
restauração pode também ser um aspecto intensificador da desconfiança no processo
de restauração, sendo este um provável fator que justifica o que se observa a seguir,
no próximo relato.

Fragmento 3:

As tentativas seguintes para o conserto do carro são aflitivas, sempre focadas


no tempo que há disponível para isso:

“Será que hoje vai dar tempo? [...] Que horas são? [...] A gente precisa correr!”.

743
Ele recorre à psicoterapeuta, solicitando sua ajuda para algumas tarefas
específicas, mas também se irrita com sua ineficiência ante à missão:

“Dá aqui! Deixa que eu faço!”.

Após várias sessões, o carrinho é fechado, algumas peças ficam para fora e
alguns parafusos não são colocados. Ao final dessa sessão, Miguel o joga no lixo,
insiste para ir ao banheiro e na volta inicia uma limpeza meticulosa de sua caixa lúdica.

Como observado, apesar de estar envolvido em um processo de reparação do


objeto, este mecanismo não parece bem assegurado se considerado o que apontam
Laplanche e Pontalis (2000) quando descrevem que nestes casos, o mecanismo de
reparação pode tender a defesas maníacas, relacionadas aos sentimentos de
onipotência, ou ainda, para mecanismos obsessivos, relacionados às ações
reparatórias compulsivamente repetidas.

As ações posteriores do paciente, como sua ida ao banheiro e a limpeza


meticulosa da caixa lúdica, parecem indicar ainda uma intensificação do sentimento
de culpa e demasiada angústia em permanecer naquele ambiente, com aquele objeto.
Simon (1986), ao tratar dos sentimentos, de culpa e remorso, e das angústias
depressivas vivenciadas pela criança ao perceber que seu objeto de amor se encontra
em pedaços, cita a angústia que esta pode experimentar de não conseguir fazer uma
restauração perfeita, do objeto “perfeito”; ou ainda, de que ao repará-lo seja
“atrapalhado pelos maus objetos e pelo próprio ódio” (p. 74).

Fragmento 4:

Em outra sessão, Miguel se utiliza do martelo para com força considerável


martelar todos os objetos que compõem a sala de atendimento. Agressivamente bate
o martelo contra a mesa até que este, com grande estrondo sonoro, se parta. O
paciente se assusta com o resultado. Inicialmente o abandona, mas depois se dedica
a diversas tentativas de restaurá-lo.

Para tanto, faz uso da cola líquida distribuída em grande quantidade sobre a
parte quebrada, tentando unir as partes. Faz força, apoia sobre a mesa e usa seu
corpo para garantir maior pressão, mas ao final as partes se soltam. Miguel repete o
procedimento, dessa vez, com uso de mais cola. No entanto, o resultado é o mesmo.
Parece frustrado e olha as partes decompostas por algum tempo.

744
Na próxima tentativa, recorre a um acumulado de papel, umedecendo-o em
cola e colocando-o entre as partes do martelo:

“Agora vai dar certo”.

Empenha-se em forçar o conserto do martelo e demonstra em seu semblante


a impressão de que foi exitoso. A parte quebrada se une à outra parte, no entanto,
antes que sequem, ele pega o martelo e tenta uma nova batida fazendo com que este
se quebre novamente.

Parece notório no fragmento acima a realidade enfrentada pela criança ao


colocar em prática seus impulsos reparatórios. Assim como observou Meltzer (1989),
a criança experimenta um sentimento terrível de frustração e incapacidade ao se dar
conta de que existe um abismo entre o quebrar um objeto e o reconstituí-lo, já que há
maior facilidade na realização do primeiro do que do segundo. Em perspectiva, essa
realidade é verificada também no fragmento anterior (fragmento 3), bem como no que
será destacado em seguida.

Fragmento 5:

Outro momento dos atendimentos de Miguel pertinente a esta discussão é


relacionado à destruição de sua espada. Após quebrar demoradamente a espada,
batendo-a, puxando as partes, removendo cada peça e se utilizando até mesmo dos
dentes para concluir esse processo, o paciente revela sua intenção de operar um
reparo.

Se dedica a recolocar os parafusos na base, a encaixar novamente os tubos


de iluminação que iluminavam a espada e a acertar o local das pilhas. O estrago à
parte superior, entretanto, não pode ser desfeito e Miguel se mostra bravo e inquieto
enquanto mexe nos pedaços, até jogar todos esses pedaços, de forma bruta e
agressiva, de volta em sua caixa lúdica.

Algumas sessões depois, após serem explorados por diferentes vezes e de


diferentes maneiras, os pedaços são jogados no lixo com evidente manifestação de
angústia.

A desproporcionalidade entre o dano e o conserto da espada parecem refletir


o que Metzer (1989) menciona como uma tentativa onipotente de restauração de todo
o dano causado, pela criança, em suas fantasias e sentimentos. Esse processo

745
interno, no entanto, a deixa a beira de precipitar-se em um ciclo maníaco, semelhante
ao que se observou no fragmento superior, com tentativas sucessivas e, por vezes,
claramente ineficientes, de reparar o objeto que se encontra em pedaços. Tanto no
martelo, como na espada, a impossibilidade de perfeita restauração parece levá-lo a
este ciclo maníaco.

Considerações Finais

Tratando-se de um estudo clínico descritivo, realizado a partir de recortes de


sessões, identifica-se que em todos os fragmentos aqui transcritos e analisados, foi
possível identificar demasiada agressividade por parte do paciente em relação aos
brinquedos, sendo suas ações causadoras de dano e destruição, gerando no próprio
paciente aparente culpa e angústia em relação à situação.

Esses momentos parecem desencadear no paciente uma contínua, porém


infrutífera, tentativa de conserto, evidenciando assim, a ação de cunho compulsório
envolvida nesse processo que apesar de reparatório, tende a não equilibrar a ação de
reparação com a de destruição. A primeira nunca satisfaz a segunda, contemplando
um ciclo maníaco.

Diante disto, pode-se concluir que o paciente, apesar de apresentar atos


reparatórios nos fragmentos descritos, não está em vias de uma reparação
verdadeira, nos termos apresentados por Meltzer (1989), que a caracteriza quando há
condição mental favorável para que os objetos se reparem uns aos outros. Ao
contrário, entende-se que há a ocorrência de uma reparação maníaca que não lhe
possibilita uma integração, pelo menos até este momento de seu processo
psicoterápico.

Torna-se importante, no entanto, ressaltar que há na evolução do caso


aspectos que parecem indicar a possibilidade de uma mudança na utilização deste
mecanismo por parte do paciente. Momentos recentes, para além dos aqui transcritos
e analisados, despertam para um prognóstico positivo em relação à capacidade de
integração durante o processo de reparação, levando a uma proposição de que seja
possível para um paciente, nestas condições, passar de uma reparação maníaca para
uma reparação verdadeira.

746
Este, e outros aspectos, poderão ser revelados a partir do acompanhamento
do caso e reflexão sobre o tema de modo a articular teoria e prática clínica.

Referências

Aberastury, A. (1984). Psicanálise da criança – teoria e técnica. Porto Alegre: Artes


Médicas.
Meltzer, D. (1990). O Desenvolvimento Kleiniano II: desenvolvimento clínico de
Melanie Klein. São Paulo: Escuta.
Simon, R. (1986). Introdução à psicanálise: Melanie Klein. São Paulo: EPU.
Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (1996). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes.
Ocampo, M.L; Arzeno, M. & Piccollo (1986). O processo psicodiagnóstico e as
técnicas projetivas. São Paulo: Vetor.

747
68- DESATENTO, CANSADO, PSICÓTICO: UM CASO NA CLÍNICA
PSICANALÍTICA

Carolina de Fátima Tse20


Hilda Rosa Capelão Avoglia21

Resumo: Este estudo foi baseado na apresentação do relato de experiência de


atendimento clínico na infância. O objetivo do estudo teve como objetivo investigar a
psicose como estrutura clínica no caso de um menino de 6 anos de idade com queixa
de desatenção na escola. Trata-se de um estudo de caso com uso do método clínico
no qual foram selecionados alguns fragmentos das sessões dos atendimentos da
criança que, posteriormente foram discutidos à luz da psicanálise, em especial no que
diz respeito a psicose, de modo a articular os postulados clínico-teóricos a partir da
leitura de Freud, além de outros dissidentes de escola francesa. Os resultados
indicaram a importância de se considerar aspectos que emergem a todo momento no
processo analítico da criança, como pensar sobre a vivência familiar no processo
analítico, além da comunicação por meio do desenho, como elementos que apontam
a constituição do paciente como sujeito. A evolução do caso contribui para
compreensão clínica do objetivo previsto.

Palavras-chave: Psicanálise; Análise da Criança; Psicose.

Introdução
O desenvolvimento do presente estudo segue, inicialmente, apresentando-se o
caso clínico através da identificação da criança e da entrevista realizada com a mãe.
Na sequência, apresentar-se-á os fragmentos clínicos, ou seja, recortes de momentos
das sessões ocorridas, sendo uma das autoras a analista em questão. Destaca-se
que tais recortes se referem a uma escolha seletiva exclusiva das pesquisadoras,

20
Professora do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo. Psicóloga, psicanalista pelo
Instituto Sedes Sapientae.
21
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde na Universidade Metodista de São
Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da Universidade
Católica de Santos.

748
buscando esclarecer ao leitor o percurso da reflexão com base na psicanálise de
escola francesa. Assim, quanto ao caso, apresenta-se:

O caso:

Trata-se de Luan22, um menino com 6 anos de idade, que viera encaminhado


pela escola, tendo sido informado que já havia sido atendido por uma psicóloga e
psicopedagoga por seis meses, depois disso, teve alta. Nas palavras da mãe: “Ela
disse que ele é assim mesmo, pra gente se acostumar que esse é o jeitinho dele, o
problema é só autoestima baixa, para acostumar que ele era assim, na dele e meio
distraído mesmo”.
Após três meses da “alta”, a mãe retornou à mesma profissional, pois
acreditava que algo estava errado, ainda sentia Luan “avoado ... desatento... no
mundo da lua23”. A criança voltou a ser atendida pela psicóloga, todavia, dois meses
depois a profissional entrou em contato comigo encaminhando-o alegando
interromper suas atividades clínicas.

As entrevistas com os pais:

Os pais comparecem ao primeiro atendimento relatando que Luan era um


menino desatento e não prestava atenção às aulas, deixava as lições incompletas e
mesmo em casa, se distraia facilmente; curiosamente seu problema não eram as
notas. Nas palavras da mãe: “Ele é meio avoado, aéreo, mas é muito bonzinho, você
vai ver quando conhecer ele” (sic).

Denise, a mãe, pedagoga, apontou as dificuldades de Luan em casa, dizendo


que o menino parecia estar sempre “No mundo da lua” (sic), por vezes, ela colocava
bilhetes em seu material escolar dizendo: “Presta atenção na aula”. Relatou que
diversas vezes foi à escola e que pretendia transferi-lo desta, pois a seu ver, a escola
não tinha “um plano de ação” (sic) para lidar com a criança.
Para a mãe, “ter um plano de ação”, seria equivalente a que todos os

22
Nome fictício visando assegurar o sigilo do participante.
23
A escolha do nome fictício atribuído ao participante parece não ter sido aleatória.

749
profissionais da escola estivessem sempre atentos a Luan, exigindo atenção integral
e cobrassem um bom comportamento do menino, comunicando-a caso isso não
acontecesse. Era necessário que verificassem cada lição que ele não completava, e
que a cada momento que ele se distraísse lhe fosse chamada atenção.
A mãe dizia ser muito atenta ao desempenho escolar de Luan, frequentemente
marcava reuniões na escola, chegando a discordar e travar inflamadas discussões
com o coordenador pedagógico; questionava o conteúdo, o material e a didática
adotada pela escola. O pai, Ronaldo, por sua vez, falava pouco e parecia não
conseguir expor suas ideias, mesmo quando lhe era oferecido espaço para falar.
Ambos compareceram a todas as entrevistas iniciais; entre os dados
relevantes, Denise relatou ter sofrido de depressão pós-parto. Comentou que tão logo
saiu da maternidade, foi para a casa de sua mãe, onde permaneceu por três meses,
acompanhada do bebê e do marido. Ronaldo relatou: “Quando ela (Denise) decidiu
voltar para casa, Luan estava com três meses, ela disse para voltarmos, pegamos
tudo e fomos. Assim que chegamos, parecia cenário de fuga, meio de filme, ela
começou a juntar tudo, não ficamos nem meia hora, enfiamos no carro e voltamos
para a casa da mãe dela, ficamos lá por mais 45 dias. Parecia que estávamos em
fuga” (sic). Passado esse período de 45 dias, a família voltou para casa.
Denise acrescentou durante as entrevistas que até o filho completar um ano,
ela tinha aversão à sogra (avó paterna de Luan), comentou que nunca fez tratamento
para a depressão que acreditava ter sofrido: “Não era um diagnóstico do médico, mas
eu acho que era isso que eu tinha [...] nunca tratei nada disso, mas hoje sei que era”.
A mãe contou sobre sua postura rígida em relação aos estudos de Luan,
tentando garantir-lhe as melhores notas e que todas as lições fossem completadas,
não admitindo falhas nesse sentido. Denise esclareceu ser muito severa com a
educação do filho. Referindo-se ao comportamento, não permitia que ele brincasse
como as demais crianças, isso quer dizer, embora as crianças estivessem correndo
nas festas, por exemplo, o menino não podia correr, pois, era “feio” ou “inapropriado”.
Ante o fim das entrevistas iniciais, foi marcada a primeira sessão com a criança
e logo Denise adverte: “Olha, eu não sei se ele fica com você na sala. Ele chorava
muito com a Paula24”.

24
A psicóloga que havia encaminhado o caso.

750
O menino bonzinho - Luan desvitalizado:

Já na primeira sessão, o menino aceita acompanhar a analista sozinho, sobe


as escadas vagarosamente, apoiando-se e, ao entrar na sala, jogou-se na poltrona e
contou como estava cansado, sem forças.

Na sala havia diversos brinquedos sob uma mesa. Estranhamento, a criança


sequer olhou para os brinquedos; sentado à frente, se encontrava um menino
extremamente desvitalizado: “Ain, to muito cansado”.

Logo nas primeiras sessões, tendo em mãos uma bolinha, a analista lhe
oferece dizendo que poderiam jogar. Era uma bolinha de papel que o menino sugeriu
que jogassem em um alvo, assim, foi proposto que fizessem um alvo na parede. Luan
aceita, marcam o alvo com uma fita adesiva. Ele pediu que a analista fosse a primeira,
assim, quando esta arremessou a bolinha, ele se desesperou, pareceu extremamente
angustiado, dizia que não queria que eu quebrasse a sala, não queria quebrar nada:

Luan: “Não quero mais jogar, não quero que quebre nada”.
Analista: “Nós podemos brincar, tudo permanece inteiro [...]”.
Foi destacado que não seria atacado e que seria suportável se algo quebrasse,
mesmo assim, não brincaram mais.
E assim seguiram-se as sessões. Luan não queria brincar de nada, costumava
contar coisas, mas era espantoso o sono que tomava a analista, como se não pudesse
ouvi-lo.
Certa sessão, Luan pegou uma moeda e convidou para jogar ‘Cara ou Coroa’,
um jogo relativamente simples, de certo modo, dinâmico. Mas, não foi assim. As
regras colocadas por Luan deixaram o jogo quase insuportável, brincaram desse
modo durante muitas sessões, quando ele disse:

Luan: ‘Você fez a mesma cara da minha mãe”


Analista: “E como é essa cara?”
Luan: “De cansada”

O primeiro sinal de quem era esse menino:

Certa sessão foi oferecido material gráfico ao menino, ele aceitou, deitou-se no
chão e desenhou uma casa, uma árvore e umas pessoas. Então, iniciou-se um diálogo

751
sobre os desenhos produzidos e Luan contou ser Guilherme, contou da casa, do que
acontecia lá.
Analista: “Puxa, eu estou entendendo como é difícil ser o Guilherme nessa casa ...”.
Assim, finalmente apareciam pistas do que o angustiava; dito isso, o menino dormiu
por 28 minutos.

Os altos e baixos, os avanços e os retrocessos:

Após essa sessão, um novo rumo do caso. Um saco com sucatas foi entregue
ao menino. Convidado a brincar, montaram uma cidade do Batman, cidade essa que
Luan dizia ser sempre noite; juntos brincaram de ‘fazer o dia’, brincaram de guerra, na
qual a analista era a inimiga, depois a parceira. Evidentemente era a analista quem
propunha e mantinha as brincadeiras, mas estas seguiam de uma maneira mais
criativa. O caso progrediu, de repente, até então...
Já não se mostrava mais criativo, não tinham mais jogos, pareciam ter perdido
o rumo do processo. Foram mais semanas de sessões sonolentas, enquanto Luan
contava acerca de sua admiração pelo Homem Aranha e sobre personagens da
Marvel. As sessões, no geral, eram tomadas por sono e por reclamações de cansaço
extremo.

Fragmentos do caso:

Nesta etapa apresentar-se-á alguns fragmentos de sessões de Luan, a fim de


ilustrar o presente estudo. Ressalta-se que não seguem necessariamente a ordem
cronológica e nem mesmo será especificado a qual sessão os fragmentos se referem.

Em uma determinada sessão, como ocorrido em diversas outras, Luan entra


na sala e diz de seu cansaço; atirou-se na poltrona e começou a contar-me a respeito
dos super-heróis. Eram histórias do Homem Aranha, Capitão América, de tantos
outros.
O discurso de Luan se apresentava extremamente confuso, uma fala
desconectada, que não parecia dita a ninguém. Mesmo afirmando que desconhecia
aqueles personagens, ele falava, falava, falava... Sua fala não continha pausas, não

752
mantinha interação, não havia nenhum momento sequer no qual Luan parecia
compreender que a analista não tinha a mínima ideia a respeito do que ele falava.
Assim, de posse de uma caixa com diversos bonecos de pelúcia previamente
preparada, intervém:

Luan: “O que é isso?”


Analista: “Brinquedos. Vou brincar que eles são meus ajudantes”.

Luan pareceu curioso.

Analista: “às vezes fica difícil de entender o que está me contando. Está vendo essa
caixinha? É lá que ele25 entra quando não está entendo nada ... quanto mais perto da
caixa, menos ele está entendendo .... o nome dele é João”

Sentado no chão à frente, retomamos a ‘conversa’, em poucos instantes, já


sem entender mais nada, a analista aproxima João da caixinha e, desse modo, Luan
parou de falar e olhou:

Luan: “Hum, não está entendendo?”


Analista: “Não”
Luan: “Eu falo confuso [...] eu confundo tudo aqui na minha cabeça

Assim, durante algumas sessões foram usados os ‘ajudantes’ para que


pudessem anunciar à Luan que estavam mais ou menos conectados a partir de sua
fala. Foi um momento interessante, pois, surgia um certo esforço para comunicar-se,
ele parecia falar à um outro, era possível, ainda que minimamente, entendê-lo.

Outro ponto relevante dos atendimentos de Luan estava relacionado com seus
medos, entre o real e a fantasia. O menino contava a respeito do Homem Aranha,
quando disse algo a respeito:

Luan: “Homem Aranha não existe ... minha mãe falou que o Homem Aranha não
existe”.

25
Elegeu-se um bichinho qualquer, mais um na conversa, ou seja, alguém que contava de maneira visual
e concreta que não era possível entender o que estava sendo dito.

753
Analista: “Mesmo ele não existindo de verdade, podemos brincar de Homem Aranha”
Luan: “Não dá, ele não existe”

Em outro momento, Luan chega com 3 bonecos da Marvel:

Luan: “Esse é meu pai”


Analista: “Olha! E esses outros?”
Luan: “Esse sou, essa é minha mãe”
Analista: “Então vamos brincar com que os bonecos são uma família? ... Talvez a sua
família?”
Luan: “Não, esse é meu pai, esse sou eu, essa é minha mãe”

Era espantoso como Luan parecia de fato, as vezes, não conseguir separar o
que era real e fictício. Por vezes, suas ideias a esse respeito eram tão misturadas que
Luan não podia ir ao banheiro sozinho, nem no consultório, nem em sua casa. Temia
ser atacado pelas personagens de filmes e desenhos.
Isso era tão vívido para Luan que em uma sessão saiu para ir ao banheiro,
como sempre fazia, deixou a porta da sala e do banheiro aberta, considerando-se que
são cerca de três passos que separam um espaço do outro. Foi possível escutar Luan
chorando e chamando pelo pai que estava na recepção, ele fez xixi na calça no
banheiro. Depois contou de ter sentido medo, tanto que fez xixi na calça.

Discussão

Esses fragmentos retratam um período da análise de Luan ainda permeada por


uma dúvida sobre o estar ou não no campo das neuroses. O menino demonstrava não
distinguir o real da fantasia; suas confusões nas falas; os super-heróis que tinham
caráter, por vezes, real. Lembro-me de Luan, em uma sessão, contar dos trajes dos
heróis, considerando-se que os trajes são justamente o que caracteriza um super-
herói.
Isso nos leva a pensar que os super-heróis não contam quem são, usam trajes
que lhe conferem algo especial, ganham poderes e habilidades absolutas e preservam
suas identidades. Com isso, vem junto à impossibilidade de fazer amigos, mas implica
em travar uma luta contínua contra os inimigos e ainda carregam a sina de não

754
poderem revelar quem de fato são. Em termos gerais, isso teria a ver com o modo de
operação da esquizofrenia. Lutar contra algo, deixar a relação com o outro de fora e
não desvelar a verdade sobre si, encoberto por aquilo que se cria como real.
Em termos teóricos, recorremos a Freud (1924/2015); o autor estabelecia, a
partir dos postulados acerca da segunda tópica, a neurose como um conflito entre o
Eu e o Id; a psicose como uma perturbação entre o Eu e o mundo exterior. O autor
entende que, no caso das psicoses, o Eu, a sua revelia, cria um mundo externo e
interno a partir dos impulsos desejosos do Id, sendo essa ruptura relacionada à
frustração insuportável do desejo por parte da realidade.
Ao que se refere às estruturas básicas, Bernardino (2004) a partir dos estudos
Lacanianos, compreende que seria a partir da castração e a resposta que o sujeito
encontra, no campo da linguagem, para lidar com a falta, isso quer dizer: no caso das
neuroses o sujeito recalca, na psicose a resposta é a foraclusão. A autora quer dizer
que nesse tipo de resposta não ocorre à simbolização da falta. Não se dá a afirmação
dos significantes primordiais, por conseguinte, o sujeito fica situado fora do campo
simbólico.
A partir dessa consideração, Luan no primeiro dia que esteve no atendimento,
não manifestava o mínimo interesse pelos brinquedos, não queria brincar, não
explorava sua caixa, não criava quase nada. É possível retomar a brincadeira com a
bola de papel, na qual Luan, tomado por total desespero, temia que a analista
destruísse a sala com uma bola de papel. Outra sessão apresentou sua família, eram
bonecos Lego de super-heróis, não podíamos brincar com os bonecos, ele dizia serem
seus pais e ele mesmo.
De certo modo, isso aparecia de maneira recorrente nas sessões com Luan.
Uma criança que parecia não poder diferenciar o real, a fantasia, as personagens e
nem mesmo a presença da analista. Havia algo, nesse caso, que era significativo,
dado os avanços e retrocessos, marcando intervalos como o rompimento de uma
sequência, foram fases “cortadas”. Com isso, é pertinente pensar que esse modo de
funcionamento, por vezes, escapa a neurose; dando sinais de uma estrutura a definir,
com a presença de elementos do campo “não neurótico”.
Além disso, evidenciava-se a maneira como Luan não se comunicava: ele
falava como se pouco se importasse se eram ou não recebidas pelo outro; falava como
uma torneira aberta que poderia encher um copo, contudo, mesmo que a analista
representasse um copo a receber isso, Luan não tinha ideia se o copo transbordava

755
e nada ficava ali, preenchido, retido.
Por outro lado, isso acontecia e Luan se deu conta que a figura da analista,
identificada com sua mãe, fazia ‘cara de cansada’ enquanto jogávamos ‘Cara ou
Coroa’, seja como for, quando ele disse que a analista fazia a “cara de sua mãe”, tinha
algo que anunciava que ele percebia sua presença e, assim, minimamente, podia
perceber mais alguém além de si mesmo. Claramente não eram muito frequentes
esses momentos, sendo que, de alguma forma Luan captou algo que dizia do que
estava acontecendo nas sessões, nesse momento tinha algo do Eu e Não Eu, dele e
do outro.
Atentando-se as entrevistas com a mãe, parecia evidente que algo das
primeiras relações se referia acerca da dupla atravessada pelo desespero da mãe,
despertada pelo nascimento de seu bebê. Como disse o pai: “Parecia uma cena de
filme, juntando tudo e indo embora”, em referência ao pós-nascimento de Luan em
que a mãe relatou ter sido muito conturbado, nem conseguindo ficar em sua própria
casa.
Desse modo, essa mãe, em tempo de reviver o próprio narcisismo outrora
perdido, investindo e ‘narcisisando’ esse bebê, tal como prevê Freud (1914/2014),
parecia escapar-lhe essas possibilidades, embora não sejam conhecidos os motivos.
Esse período, de acordo com o referido autor, a mãe é constituinte do Eu do bebê,
cuja existência ainda é marcada pela incapacidade de perceber-se como uma
totalidade, como a gestalt de si, portanto, sucumbiria longe daquela que lhe alimenta,
cuida, enfim. Entre outros, explicado de maneira bem simplista, é essa experiência
inicial que confere ao bebê a distinção de um corpo à parte da mãe. Ao que relatou a
mãe, esse período primordial da relação dual, esteve marcada permeada por profundo
desespero que a acometeu após o parto. Isso parece contar de uma criança, em que
a presença primordial da mãe, minimamente, nos parece comprometida.
Lacan prevê isso como o Outro primordial, que Gueller (2011) nos esclarece
como o primeiro representante da linguagem, para a criança, trata-se de quem oferece
um lugar singular em seu desejo; nessa relação, esse outro quem transforma os
registros das necessidades do bebê em demandas carregadas de desejo, esse
processo, em geral, é dado à mãe ou àquele encarregado dos primeiros cuidados do
bebê.
A partir disso, temos os primeiros indícios acerca da desvitalização de Luan. É
possível pensar em uma criança que ainda não podia comunicar suas necessidades,

756
por conseguinte, desejos; provavelmente como em suas relações primitivas,
demonstrava que faltava quem lhe falasse dos seus desejos. Era muito comum isso
se evidenciar nas poucas tentativas de brincar, pois, mesmo que Luan aceitasse algo,
era eu quem tinha de oferecer a brincadeira e iniciá-la, sendo essa uma questão para
a escola, que contavam de um menino apático que nunca tomava a frente nas
brincadeiras, em contrapartida, sempre participava do que os colegas propunham.
É nesse sentido que o estudo se volta a Luan e seus sintomas. A criança
‘avoada’, ‘do mundo da lua’, revelava uma criança que parecia faltar-lhe algo que o
convocasse, que falasse de seus desejos, algo de seus recursos simbólicos que
falassem o que talvez, lhe faltassem palavras.
Uma das possibilidades que parecem permear esse caso, ao que parece,
revelava uma mãe (em termos mais apropriados da escola inglesa) pouco continente.
Como quando Bion (1962/1971) discorreu a esse respeito; o autor conceituou a
condição de Rêverie, na qual a mãe capta as necessidades de seu bebê e, por
intuição, é receptiva, ou melhor, dizendo, continente das necessidades da criança,
acolhendo as identificações projetivas disparadas nela, passando com isso a acolher,
decodificar, nomeando e devolvendo de maneira desintoxicada. Essas ideias parecem
convergentes ao que esclareci anteriormente acerca do Outro primordial.

Lacan (1969/2003) em ‘Notas sobre a criança’ atentou-se a isso; o autor


compreende que a funções dos pais são primordiais para a constituição do sujeito, na
medida em que a mãe, por meio de seus cuidados, permite a satisfação das
necessidades, amparando a construção subjetiva da criança; enquanto o pai funciona
como um vetor encarnando a Lei no desejo viabilizando os processos simbólicos.
Nesse mesmo artigo, o autor discorre do sintoma da criança como resposta da
verdade da estrutura familiar.
Ao que parece, essa discussão dá indícios do “menino bonzinho” (sic) trazido
pela mãe, quando dizia o motivo pelo qual procurava atendimento. Era evidente a
necessidade da mãe em tolher quaisquer possibilidades de Luan, ele não podia correr
nas festas, as brincadeiras eram proibidas, algumas palavras eram vetadas de serem
ditas, tinha de ser o aluno exemplar e o filho perfeito. Talvez por esse motivo ela
colocava bilhetes em seu estojo dizendo para que fosse atento às aulas, como se ela
quisesse estar lá, mantendo-o sob controle, mesmo quando não estivesse presente.
Destaca-se ser a mãe quem ocupava as sessões com os pais, o pai, por sua vez,

757
pouco falava. No decorrer dos atendimentos, certa vez, o pai disse que talvez, dada a
rigidez da mãe, era o motivo pelo qual Luan dizia que nunca se casaria. A mãe não
pode ouvir isso, e mostrou-se muito incomodada.
Ao que parece, os sintomas de Luan davam notícias de seus pais, e no
momento que ele pode projetar-se nos desenhos, contando sobre a “mãe chata” e do
“pai bobalhão”. E a analista: “Puxa, eu estou entendendo como é difícil ser o
Guilherme nessa casa [...] essa mãe muito difícil e esse pai que sem lugar...”, sentia
que Luan, pela primeira vez, experimentava ser compreendido, assim, ele dormiu.

Gueller (2011) atenta que as crianças denunciam a verdade dos pais por meio
de seus sintomas, os pais, por sua vez, carregam o pedido de eliminarmos o sintoma
sem querer saber o que está implicado. Dito isso, algumas indagações emergem. Em
nome de que a mãe ‘fugiu’ de sua casa? O que a levou a tamanha angústia quando
nasceu seu bebê? O que a mãe esperava dessa criança? Por que lhe frustrava tanto
reconhecer que Luan não era (nem seria) somente aquilo que ela esperava que ele
fosse? São questões.
A análise aponta sobre as vivencias da família, indicando criar diversas
hipóteses, todavia, mesmo sem uma resposta convicta. Nesse momento, o desenho
de Luan contava: uma mãe extremamente rígida e um pai pouco autorizado a
envolver-se nisso. Um pai que pouco podia interditar qualquer relação entre mãe e
filho; eles que tomavam banho juntos, dormiam juntos, faziam lição juntos. O pai? Nas
palavras da mãe: “Ele é mais tranquilão (sic), só na hora da brincadeira”. Seria esse
o motivo que levava Luan, em dados momentos, enaltecer os Super-heróis? É
possível que fosse uma tentativa de valorizar esse pai.
De qualquer maneira, parece seguro afirmar que havia algo em Denise (mãe)
que não suportava essa situação, marcada pelo nascimento de Luan. E isso aparece
refletido no menino; como discutido anteriormente, esclarecia-se uma falha das
funções materna na constituição de Luan como sujeito.
Como isso reverberou nos atendimentos? Um menino que não distinguia entre
falar com sua analista, para a analista ou simplesmente falar. Penso que as pelúcias
utilizadas para sinalizar que ele falava, mas não se comunicava, talvez tenham sido
importantes para que ele pudesse dizer: “Fica uma confusão aqui na minha cabeça”,
referindo-se os motivos que o levavam a um discurso pouco compreensível; algo que
transbordava o interno e o representava como uma criança, por vezes, desconexa.

758
No percurso da análise dessa criança, foi oferecido o que o menino parecia
necessitar: uma figura na mesma visão winniccotiana; ou seja, ceder-lhe espaço e
acolher. Tal ideia surge advinda da possibilidade da falha do Outro primordial, uma
mãe que fosse dotada da capacidade de ajudar essa criança a processar aquilo que
acontecia com ele; incluindo aqui, a função simbolizante. Era necessário ajudar essa
criança a nomear aquilo que lhe acontecia, como os sentimentos de raiva, de tristeza,
de amor, enfim.
Se por um lado, o ‘pai bobalhão’ narrado por Luan indicava a desvitalização, a
‘mãe chata’ dizia exatamente desse lugar, de alguém que impedia a criança, afinal,
não podia sentir raiva, ódio, frustração; não podia correr como as demais crianças,
não podia brincar, quase que não podia existir.
Em termos teóricos era fácil deslizar para o pensamento de uma criança no
campo das psicoses. Retomando brevemente os postulados de Freud (1924/2015),
dado o afastamento da percepção e do mundo externo; embotamento afetivo, isto é,
na perda de todo interesse no mundo exterior; os remendos colocados onde
originalmente surgira uma fissura na relação do Eu com o mundo exterior.
É possível pensar que, caso esse menino não estivesse em análise,
possivelmente se estruturaria uma psicose, nesse sentido, era uma aposta no que
acredita Alfredo Jerusalinsky (2003), ao argumentar que na infância podem existir
estados provisórios que irão ser definidos de maneira mais tardia; nesse caso, a
estrutura poderia ainda não ter uma inscrição definitiva. Em concordância Bernardino
(2004) defende que as psicoses não-decididas são um operador clínico condizente
com a infância e caracterizariam o processo de estruturação subjetiva da criança. Para
a autora, isso implica na entrada da criança no campo da linguagem, a partir da
relação com um Outro que sustente esse processo, em tempo de constituição infantil.
Ao que parece, a análise de Luan foi produzindo-lhe algum efeito. Os
fragmentos relatados até aqui, em sua maioria, retratam o primeiro ano da análise do
menino, hoje, contamos quase três anos.
Mais recentemente, Luan chega com um boneco na mão, mostra para a
analista e mantém este diálogo que se mostra extremamente revelador dos avanços
de Luan.

Analista: Olha! O que é isso?


Luan: O que é isso, não. Quem é esse.

759
Analista: Quem é esse? E o que é isso?
Luan: Isso é um brinquedo ... esse é o Hobin Hood.

Referências

Bion, W. R. (1962). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Zahar.

Bernardino, L.M.F. (2004). As psicoses não definidas na infância: um estudo


psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Dolto, F. (1985). Seminário de psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

Freud, S. (2014). Neurose e psicose. In: O Eu e o Id, “Autobiografia” e outros textos


(1923-1924). Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIX. São Paulo: Cia das
Letras. (Original de 1924).

Freud S. (2015). Introdução ao narcisismo. In: introdução ao narcisismo, ensaios de


metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas de Sigmund Freud:
Freud, vol XXII. São Paulo: Cia das Letras. (Original de 1914).

Gueller, A.S. (2011). Demanda e transferência no tratamento psicanalítico com


crianças. In: Atendimento psicanalítico com crianças. Gueller. S. A. e cols. São Paulo:
Zogodone.
Jerusalinsky, A. (1988). Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre, Artes
Médicas.

Lacan, J. (2003). Nota sobre a criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. (Original de 1969).

760
69- VIOLÊNCIA, TECNOLOGIA: MÁSCARAS DE UM ANTAGONISMO NÃO
EVIDENTE

Caio Felix de Araujo26


Hilda Rosa Capelão Avoglia27
Plinio Thomaz Aquino Junior28

Resumo: Sob a avaliação da influência da tecnologia na constituição da saúde


mental, este estudo, agregado a conceitos da Psicologia Analítica, tem como objetivo
avaliar a caracterização da tecnologia como agente evolutivo sob o prisma da
violência. Ao colocar em observação o antagonismo da tecnologia como nova forma
de se relacionar com o mundo, no qual a identidade virtual do indivíduo pode diferir
de sua identidade social e, desse modo, auxiliar na busca pela compreensão real de
sua identidade, e suas facetas frente a liberdade de se recriar. Desse modo, o estudo
espera, apresentar novas abordagens acerca de um assunto que influencia não
somente o indivíduo e sua relação com a violência, mas uma redefinição da influencia
da violência na abrangência da constituição do sofrimento, utilizando a tecnologia para
este fim.

Palavras-chave: Tecnologia; Persona; Violência; Saúde Mental.

Introdução
A construção teórica sobre o conceito da influência da tecnologia na psique e
na constituição da saúde mental é um estudo complexo, diante do qual inúmeras
variáveis devem ser tratadas para alcançar sua compreensão (Araujo & Aquino Jr.,
2018). A violência como uma destas variáveis, influencia e pode comprometer o direito

26Graduando em Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo, Bacharel em Ciências da


Computação e Mestre em Engenharia Elétrica, pelo Centro Universitário da FEI.
27 Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade

Católica de Santos e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas


Públicas da Universidade Católica de Santos.
28 Professor Doutor, Orientador de Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-Graduação em

Engenharia Elétrica do Centro Universitário da FEI.

761
fundamental a vida, a saúde, ao respeito, à liberdade e dignidade humana (Vieira,
Assis, Nascimento, Vieira & Netto, 2003).
Como uma nova forma de interação social, a tecnologia e em especial as
mídias sociais são canais de comunicação online dedicados a entrada, interação,
compartilhamento de conteúdo e colaboração com base na comunidade, permitindo a
conexão de localidades distantes de tal maneira a intensificar as relações sociais em
escalas mundiais, sendo que, a transformação local não é influenciada somente por
acontecimentos próximos, mas modelados por eventos ocorridos a grandes distâncias
(Souza & Giglio, 2015), estes processos dialéticos e dialógicos influenciam a
sociedade e por sua vez o indivíduo.
Deste modo, o indivíduo, neste caso, que cria sua identidade virtual, como uma
persona29 determinada a esta nova forma de comunicação, criando uma percepção
de quem é o indivíduo neste novo espaço, onde novas construções individuais e
coletivas podem ser recriadas e reescritas sem a grande pressão de um mundo “real”
(Kokswijk, 2008).
Assim como qualquer criação, esta pode ser utilizada sob qualquer prisma,
considerando a tecnologia como uma construção social que representa a evolução,
conecta e desconecta a todos, mais do que isso, uma fotografia da sociedade e do
indivíduo em si (Boyd, Richerson & Henrich, 2013).
Neste prisma, ao afetar os mesmos constructos apresentados na vertente de
uma fotografia da sociedade, a violência social é qualquer violência cometida por
indivíduos ou pela comunidade, assumindo suas diversas formas (Tremblay, 2012),
como um fenômeno social complexo relacionado a natureza sócio-cultural e político-
ideológica e se mostra como um fator relevante a qualidade de vida, relacionando
tanto as condições gerais de existência e trabalho, como geradores de tensões,
desemprego entre outros (Vieira et. al., 2003). Essa mesma violência social cometida
no “real” se manifesta neste novo espaço virtual (Ferreira & Deslandes, 2018; Rogers
& Salgado, 2016).
No mundo virtual o indivíduo tem a capacidade de recriar sua própria
constituição, permitindo ser o que conscientemente deseja ser, entrar em contato com
o que realmente deseja entrar em contato, viver o que realmente quer viver. A

29“(…) A persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é


uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre os outros e
por outro lado a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo” (Jung,1957/2004, p.68)

762
personalidade ou traços de personalidade podem ser determinados no uso da
tecnologia (Araujo, 2013). Assim, modelos criados a partir destes traços permitem que
sistemas digitais adquiram habilidades que permeiam as especificidades do indivíduo
(Araujo & Aquino Jr., 2014).
Esta ilusão de vida tem gerado novos conflitos, pois o indivíduo fora desta
realidade critica ou se excluí, e aqueles que nasceram nesta nova realidade vivem
mais tempo no virtual do que no real. Entretanto, a perceção humana é diferente para
cada ser, seja por constituições biológicas ou psíquicas, o que vemos não é o que o
outro vê, o que determina o real? E, com isso, um novo conceito de real pode ser
instituído (Nietzsche, 1886/2002). O real é aquilo que realmente define a existência,
talvez recriá-la a partir da tecnologia seja a única forma de retirar as amarras sociais
e seguir uma nova estrutura, sendo, neste caso, permitido a escolha do que ver, o
que desejar e o que apresentar (Araujo & Aquino Junior., 2018).
Entre esta nova estrutura e a hipótese levantada, como dito acima, encontram-
se problemas. Como tudo, é possível desvirtuar uma constituição, pois encontra-se
mesmo no virtual necessidades individuais e coletivas, redes sociais onde uma foto
em ângulo perfeito referencia o que você significa para a sociedade, ou jovens tão
fixados na cultura do que os outros fazem ou do que desejam e ainda não tem, que
se distanciam da definição do que querem e de como alcançar o que sonham.
Jung (1959/2011) afirma que “todo indivíduo assume uma “máscara” sobre o
inconsciente coletivo”, sendo que a persona é a aparência que apresenta-se ao
mundo, seja por defesa, vergonha ou limitação, esta vivencia pode ser crucial para o
desenvolvimento da personalidade.
Ao compreender a relação da personalidade do indivíduo criada através de
suas personas escolhidas no mundo virtual, esse pseudo mundo simulando a
realidade, apresenta as mesmas características da violência determinadas na
sociedade, e com ela todos os fatores que ela afeta podem levar sua influencia
também no virtual até a constituição da saúde mental do indivíduo.

Objetivos
Como qualquer avaliação de correlação, a intensidade da relação possuem
uma relação de ordem (Siegel, 1975), ao avaliar a tecnologia em contraponto a
violência e sua relevância na formação do indivíduo, há duas hipóteses mais
relevantes para este trabalho:

763
1. A extensão social da vida ao qual o indivíduo esta incluídos: A tecnologia
acompanha a vida assim como a violência existente nela, como uma extensão da
realidade: seja na educação com o compartilhamento de mensagens e fotos; seja
nas redes sociais na divulgação somente dos momentos bons da vida; seja no
trabalho a necessidade de pertencer a grupos com o mesmo objetivo e se destacar
neles, entre qualquer necessidade social. Neste ponto não há uma visão evolutiva
na tecnologia, somente uma extensão da necessidade social ao qual vivemos
desde nosso nascimento.
2. A recriação da constituição de quem o indivíduo é: A liberdade permitida na
criação de uma nova persona, livre de impedimentos sociais como sexualidade,
maturidade, moralidade, religião, status social, riqueza ou qualquer impedimento
que o "mundo real" apresenta.
A extensão social da vida ao qual estamos incluídos tem inúmeros pontos
prejudiciais, assim como, vantajosos à constituição da psique, uma nova forma de
tratar grupos, novos impactos na exclusão digital, a violência ganha nova roupagem
entre inúmeros outros pontos relevantes ao estudo. Porém, o presente estudo será
focado na segunda posição, qual seja, a recriação da constituição do indivíduo no
mundo virtual.
Assim, diante destas considerações, este trabalho tem como objetivo, avaliar a
tecnologia e suas interações com os indivíduos em contraposição a violência, e como
consequência validar a relação do mundo virtual como parte da constituição da saúde
mental.

Um antagonismo não evidente


Engels30 afirma que “a história é, talvez, a mais cruel das deusas que arrasta
sua carruagem triunfal sobre montões de cadáveres, tanto durante as guerras como
em período de desenvolvimento econômico pacífico”. Ariés (1981) afirma que fugir do
meio ao qual está inserido ou destruir a constituição social a qual qualquer ser humano
vive é improvável e, em alguns textos, chega a ser instituído o impossível. Minayo
(1994) assegura que “na sua maioria, os eventos violentos e os traumatismos não são
acidentais, não são fatalidades, não são falta de sorte: eles podem ser enfrentados,
prevenidos e evitados” (p. 16). Os três autores levantam questões fundamentais, onde

30
Engels to Nikolai Danielson In St Petersburg, London (February 24, 1893), Marx and Engels
Correspondence publish to Internacional Publishers (1968).

764
a violência acompanha a evolução humana, como uma força inevitável e proposital,
porem que pode ser enfrentada e dentro das limitações do indivíduo evitada.
Dentro destas premissas, a constituição da saúde mental do indivíduo,
caracterizada no completo estado de bem-estar físico, mental e social (Nogueira,
2001), limitado pela violência social, é afetado dentro e/ou fora do mundo virtual.
O experimento executado por Araujo (2013) com 433 pessoas determinou uma
relação entre a personalidade do indivíduo e como este utiliza a tecnologia, este
estudo como um recorte deste trabalho, afirma também que os impulsos de violência
são copiados e espelhados no mundo virtual, sejam eles exacerbados em forma de
brincadeiras ou no ataque direto e ridicularização dos indivíduos envolvidos.
Sob uma perspectiva da Psicologia Analítica, permitindo a validação da
importância da tecnologia na constituição da saúde mental, a violência esta intrínseca,
porem o antagonismos ao obvio chama atenção.
A tecnologia mesmo que exprima a mesma imagem da violência daqueles que
a utilizam, assim como na história, ao mesmo tempo que a tecnologia serve para
atacar ela serve para defender. A mesma lança que fere o outro, o defende dos
predadores (Boyd, Richerson, & Henrich, 2013).
Constituindo a visão de que o indivíduo pode assumir a mascara que deseja
dentro deste mundo virtual, ele também é empoderado de abandonar suas limitações,
sejam elas físicas ou psicológicas, e se defender de uma forma quase impossível para
esse mesmo indivíduo no mundo “real”.
Dentro desta antítese, a mesma tecnologia que dá voz ao ódio, alimenta o
odiado a se defender, sem pudores e repressão. A mesma voz que se cala no dia a
dia, ganha força com o impulso de outros iguais, independente da distância, a voz
calada deste indivíduo ecoa por um mundo sem fronteiras e barreiras, e permite que
alcance sua liberdade.

Discussão
As Personas que este indivíduo assume ao longo da vida, constituem esses
traços de personalidade apresentados (Jung, 1959/2011). Pode-se afirmar neste
contexto, que a violência como catalizador, seja devido a um sofrimento não resolvido
ou criando, também é um fator que compõem esses traços de personalidade.
Desta forma, a tecnologia tem um papel, dentro desta nova sociedade que
coexiste no “real” e no virtual, determinante na formação da saúde mental dos

765
indivíduos, seja como antagonista, assim como colocada a hipótese neste trabalho,
seja como protagonista, expandindo sentimentos antes limitados aos locais de
convivência e hoje aberto ao mundo conhecido.
As duas forças apresentadas são factíveis e passiveis de experimentação,
porem a discussão relevante a este trabalho é a posição predominante neste
contraponto, onde a tecnologia não esta fadada a ser uma arma daqueles que tomam
a violência como razão e resolução para suas deficiências, mas sim, como método de
defesa, onde abrange a força da imaginação, retirando as limitações culturais e
genéticas e compondo um novo sujeito, livre para alcançar sua potencialidade
máxima, sem as amarras levadas a triste constante que é aceitar e sobreviver na vida
imposta por seu nascimento.

Considerações finais
Como contemplado ao início deste texto, a construção teórica sobre o conceito
da influência da tecnologia na psique e na constituição da saúde mental é um estudo
complexo, sendo que o presente estudo contribui com a discussão da relevância da
tecnologia sobre a violência social como agente apaziguador.
Ao permitir a redefinição de sua máscara para com a sociedade, o indivíduo se
despede do que lhe é imposto físico, psicológico e socialmente, e com isso possibilita
uma nova categoria para sua batalha contra a violência cotidiana.
Dentre inúmeros questionamentos e tão poucas respostas, este trabalho
alcança o seu objetivo, dando continuidade a discussão tão necessária e complexa.
Este estudo não tem nenhuma pretenção de provar que a tecnologia é benéfica contra
a violência, mas sim levantar a hipótese que há duas vertentes a serem seguidas,
onde a tecnologia mantenha o seu papel fundamental que é permitir que o ser humano
continue a evoluir.
Vale ressaltar que ao abrir a discussão sobre a constituição da saúde mental
do indivíduo utilizando a tecnologia como arcabouço de defesa em sua busca pela
individuação, abre-se precedentes para inúmeros outros fatores causadores de
sofrimento, sejam discutidos e auxiliados em sua resolução sob uma perspectiva
destas novas premissas delineadas sob um prisma da evolução através da tecnologia.

766
Referências

Araujo, C.F. (2013). Identificação da relação entre variáveis de navegação e perfis


psicológicos de usuários (Dissertação de mestrado). Centro Universitário FEI, São
Bernardo do Campo, SP, Brasil.

Araujo, C.F. & Aquino, P.T. (2014). Psychological personas for universal user
modeling in human-computer interaction. Human-computer Interaction, 8510(1),
3-13.

Araujo, C.F. & Aquino, P.T. (2018). O uso da tecnologia e sua influência na
constituição da saúde mental. Jornada APOIAR, Adolescência e Sofrimento: na
atualidade - Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 16.

Ariés, P. (1981) História social da criança e da família. 2° Ed. Rio de Janeiro; LTC.

Boyd, R., Richerson, P.J. & Henrich, J. (2013). Cultural Evolution: Society,
Technology, Language, and Religion. Cambridge, MA: MIT Press, v. 12.

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768
70- REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS DA VIDA ADULTA DE UM
ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI

Eduardo Marchese Damini31


Hilda Rosa Capelão Avoglia32

Resumo: A passagem da infância para o mundo adulto se dá de modo mais rápido


e precoce para o adolescente que integra os estratos menos favorecidos da
sociedade, trazendo implicações para seu desenvolvimento. O presente estudo
teve como objetivo identificar e analisar as representações simbólicas da vida
adulta em um adolescente que cumpria medidas socioeducativas. Trata-se de um
estudo de caso com método clínico no qual participou um adolescente de 17 anos
de idade que cumpria medida socioeducativa. O participante foi submetido a
entrevista semiestruturada e a aplicação do procedimento clínico do Desenho
Estória com Tema (DE-T). Os resultados foram analisados qualitativamente em
uma visão psicanalítica, tendo sido elaborada uma síntese integrando os dados
gráficos e verbais. A análise do conteúdo expressado pelo participante, apontou
uma percepção de futuro marcada por certa dicotomia entre a realidade vivida e o
futuro desejado, ao mesmo tempo que observou-se a ausência de perspectiva de
vida futura, uma vez que se percebia impossibilitado de mudar sua própria história.
O estudo permitiu ampliar a compreensão sobre o desajuste psicológico e social
da transgressão adolescente.

Palavras-chave: Adolescência; Medida socioeducativa; Vida adulta.

31
Psicólogo, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade
Metodista de São Paulo. Bolsista CAPES.
32
Psicóloga, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade
Metodista de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas
da Universidade Católica de Santos.

769
Introdução

As relações familiares dos adolescentes em conflito com a lei

A adolescência, caracterizada como a fase de transição para a vida adulta, gera


sentimentos ambivalentes de desejo e temor, traduzindo-se como uma fase crucial e
conturbada que desencadeia conflitos psicológicos relacionados as mudanças
corporais, tão contundentes nesta época (Aberastury & Knobel, 1981).

Outeiral (1998) observa que a passagem da infância para o mundo adulto se dá


de modo mais rápido e precoce, principalmente para o adolescente que integra os
estratos menos favorecidos da sociedade, trazendo implicações para seu
desenvolvimento. Embora apresentem aspectos verbais mais elaborados e uma
conduta mais adulta, continua o referido autor, trazem uma reação defensiva diante
da necessidade de sobrevivência, podendo ser considerados desajustados,
incontroláveis ou delinquentes e, assim, constituindo-se como elemento favorável a
tendência antissocial.

Sobre a tendência antissocial, Winnicott (1984) afirma que será manifesta no lar
ou na sociedade quando marcada pela falta de vivência familiar, demonstrando que a
delinquência pode ser entendida como um sinal de esperança para recuperar aquilo
que foi perdido em função de uma falha ambiental em fases anteriores de seu
desenvolvimento, na medida que acusa de forma implícita um pedido de ajuda por
parte da criança ou adolescente

Saes e Tardivo (2009) afirmam que essas falhas ambientais podem despertar
sentimentos de ódio, frustração e reações diversas de acordo com o grau de tensão
existente, assim, a agressividade se constitui em um recurso da criança para
defender-se de ataques fantasiosos. Neste caso, não encontrando uma estabilidade
ambiental, os atos antissociais poderão se repetir aumentando a violência, sendo
possível, segundo as referidas autoras, que cometa delitos e crimes, passando a atuar
contra a família e a comunidade, pois espera que uma dessas instâncias lhe ofereça
a estabilidade emocional para prosseguir sua trajetória de vida, impedindo-o da prática
da violência.

Ao se relacionar os cuidados e suporte da família à criança e ao adolescente às


condições ambientais favoráveis, Botarelli (2011) aponta que, devido as dificuldades

770
do Estado em primar por políticas públicas que atendam as demandas da população
como saúde, educação, segurança, cultura e habitação, a família acaba assumido
sozinha essa função. Os fatores socioeconômicos e as políticas sociais interferem na
família, minando sua possibilidade de oferecer afeto, segurança, continência e até
mesmo bens materiais.

Objetivo

Identificar e analisar as representações simbólicas da vida adulta de um


adolescente que convivia em contextos de violência e cumpria medidas
socioeducativas.

Método

Este estudo foi baseado no método clínico, qualitativo e exploratório, no qual


participou um adolescente de 17 anos de idade, que cumpria medidas socioeducativas
em uma instituição que atendia a essa demanda, localizada na Região do Grande
ABC-SP.

O estudo de caso que integra este artigo foi retirado de uma pesquisa maior,
intitulada "A vida no futuro: um estudo sobre as perspectivas pessoais e familiares de
adolescentes que cumprem medidas socioeducativas” aprovada pelo Comitê de Ética
da Universidade Metodista de São Paulo com Parecer Número 2.153.686.
Foi utilizado como instrumento uma Ficha de Identificação dos adolescentes
que continha dados como data de nascimento, escolaridade, frequência escolar,
componentes da família, tipo de delito cometido, tipo de medida socioeducativa que
cumpria, período/duração da medida socioeducativa, entre outros dados que foram
obtidos na entrevista.

Além dessa ficha, foi também realizada uma entrevista semiestruturada visando
estabelecer certa conversação entre o pesquisador e o entrevistado, possibilitando ao
entrevistador inserir questões, além daquelas que previamente planejou abordar,
como esclarece Bleger (1998).

Na sequência foi utilizado o procedimento clínico do Desenho Estória com


Tema (DE-T) que, conforme Aiello-Vaisberg e Ambrosio (2013) trata-se de uma
estratégia investigativa caracterizada pela versatilidade, capaz de oferecer uma

771
riqueza de dados quando devidamente analisada, destacando entre outros, seus
estudos com adolescentes, como previsto nesta pesquisa. A instrução disparadora,
conforme exige o procedimento, verbalizada ao adolescente participante foi, portanto:

1ª. produção: “Desenhe um adolescente que cumpre medida socioeducativa”; 2ª.


produção: “Desenhe um adulto que na adolescência cumpriu medida socioeducativa”;
3ª produção: “Desenhe a família de um adulto que na adolescência cumpriu medida
socioeducativa”.

Na sequência, foi solicitado ao participante que contasse livremente uma história


sobre cada um dos desenhos elaborados e lhes atribuísse um título, que também foi
registrado por escrito pelo pesquisador. Esta última fase de Inquérito e Título,
conforme Trinca (1997), complementou as informações trazidas pelo participante no
desenho.

O material relativo as produções gráficas e as histórias narradas foram analisadas


a partir de uma perspectiva psicanalítica, tendo sido devidamente discutido em
supervisões entre o pesquisador e a orientadora.

Resultados

Gabriel33, 17 anos, com ensino fundamental incompleto, cumpria medidas


socioeducativas em função de ato infracional envolvendo tráfico de drogas. Esteve
internado em regime fechado por 4 meses e no momento da pesquisa, cumpria
medidas socioeducativas em regime aberto.

a) Produções gráficas e respectivas histórias:


1ª produção do Desenho Estória com Tema: “Desenhe um adolescente que
cumpre medida socioeducativa”

Gabriel elaborou um desenho de tamanho pequeno, na metade inferior da


página. O desenho representava uma figura completa usando vestimentas e boné. Na
sequência contou a seguinte história:

33
Nome fictício do participante

772
História inventada a partir da primeira produção de Gabriel:
“...ele tava na vida... [pausa longa]. Ahh não sei dizer nada sobre ele... [pausa longa].

O que aconteceu com ele? Não sei... [pausa longa]”.

Título: “Um cara que tava na vida... não sei dizer isso não”.

2ª. produção do Desenho Estória com Tema: “Desenhe um adulto que na


adolescência cumpriu medida socioeducativa”

O participante desenhou um casal (um homem e uma mulher) no centro da


página, de tamanho pequeno, sendo que os dois estavam muito próximos.

História inventada à partir da segunda produção do participante 2:

“Ahh ... ele deve ter casado com alguém.... [não vem nada na minha cabeça...]. Tão
de mão dada...pensam em ter filho, casa.

Como era antes? O moleque era da vida louca... arrumou uma mulher... e agora tá
sossegado”

Título: “Era uma vez…”.

3ª. produção do Desenho Estória com Tema: “Desenhe a família de um


adulto que na adolescência cumpriu medida socioeducativa”

Nesta produção, o adolescente desenhou duas pessoas, sendo uma mãe e


uma criança, próximos um do outro e, ao lado da mãe, observou-se a presença de
uma cruz enterrada no chão, representando seu próprio túmulo.

História inventada a partir da terceira produção do participante 2:

“... tem o filho dele, a esposa dele e ele... Ele a sete palmos do chão... esse é o fim
dele. Se não sair dessa vida”.

O que aconteceu? A polícia matou ele porque quis...”

Título: “Aqui jaz um homem”.

773
Discussão

Gabriel associou o adolescente que cumpria medida socioeducativa com


alguém ausente de perspectivas e horizontes. Ao verbalizar “estar na vida” sem
finalidade, apresentou-se como inativo, ou seja, como expectador diante do que
ocorria na realidade ao seu redor. (“...ele tava na vida... [pausa longa]. Ahh não sei
dizer nada sobre ele...[pausa longa].

Da mesma forma, a construção das histórias foi demasiadamente simples, não


chegando a serem consideradas uma história, pois foram caracterizadas por pausas
longas, não desenvolvendo a narrativa; o participante apresentou dificuldades na
expressão verbal do que pensava, fazendo uso de negativismos defensivos (“...não
sei dizer isso não”; “.... não vem nada na minha cabeça”) possivelmente para proteger
a si mesmo do contato com a própria angústia ou ainda, por sentir-se esvaziado de
sentimentos que pudessem ir ao encontro de um futuro melhor.

Atribuiu a família, neste caso, a presença da mulher, que surgiu na segunda


produção gráfica como possibilidade de mudança e de abandono da condição de vida
atual, como adolescente (“O moleque era da vida louca... arrumou uma mulher... e
agora tá sossegado”).

A “vida louca”, a qual se referia na história, representava o conflito com a lei


que vivenciava e que desencadeou o cumprimento de medida socioeducativa e o
“estar sossegado” com a presença de sentimentos de insegurança, como se a família
garantisse essa condição. Nesse sentido, é possível associar tais sentimentos ao
estado de ambivalência, como explicam Aberastury e Knobel (1981), pois par aos
autores, os adolescentes transitam entre o desejo e o temor, o que implica nos
conflitos psicológicos manifestados nessa fase da vida.

Observou-se que, nesse contexto, o adolescente conferiu à história o título de


“Era uma vez”, o que simbolicamente representava o universo dos contos de fadas,
portanto, fantasioso e irreal, distante do que seria a história real.

No futuro na família, o adolescente representou graficamente a esposa e o filho,


entretanto, negou as projeções que havia feito nas duas produções anteriores,
corroborando assim a ideia de que eram desejos calcados na fantasia, longe do que
de fato parecia acreditar ser possível para sua vida futura. Assim, representou

774
graficamente a sua própria existência no futuro, estando morto: “Ele a sete palmos do
chão... esse é o fim dele”.

Ao deparar-se com a instrução de desenhar livremente um adolescente que


cumpriu medida socioeducativa no futuro, em sua própria família, Gabriel buscou base
para sua existência futura na mudança de vida no presente, porém, ao representar-se
morto no futuro, anulou a si mesmo duas vezes, tanto no presente quanto no futuro,
onde viu-se fatalmente vítima das circunstâncias.

Ao anular a si mesmo e condicionar sua existência no futuro à mudança de


vida, incluiu a polícia na narrativa, atendendo a ideação de finitude que caracterizou o
caso. Mostrou-se sem esperança e contundente ao falar da morte como algo
irreversível em sua vida.

. Os atos antissociais, cometimento de crimes e delitos, como no caso de Gabriel


envolvido com o tráfico de drogas, pode ser associado a ausência da continência
ambiental, sendo que, desse modo, como explicam Saes e Tardivo (2009), passou a
atuar com agressividade e contra a família e a comunidade, esperando que estes
espaços, garantam alguma estabilidade emocional para seguir com seu
desenvolvimento, afastando-o de atos violentos.

As mudanças no futuro foram sempre associadas à família e filhos, embora não


tenha ficado claro como o fariam essa construção. Este dado de suas produções vai
ao encontro da ideia dominante observada entre os participantes, de que a formação
de uma família pode gerar mudanças positivas em suas vidas. Neste sentido, entende-
se que pela fantasia, buscam a proteção de um pai protetor, idealizando a família que
não tiveram.

É possível apontar falhas ambientais ligadas as relações familiares como


disparadoras de frustrações e tensões no percurso de seu desenvolvimento, como
explicam Saes e Tardivo (2009).

Tal desejo pode ser explicado pela frase de Winnicott (1984, p.121): “[...] tudo
o que leva as pessoas aos tribunais (ou aos manicômios, pouco importa o caso) tem
seu equivalente normal na infância, na relação da criança com seu próprio lar". Há

775
que se considerar que tal noção esteja às avessas, uma vez que os participantes
podem estar projetando o passado desejado, baseando-se em imagens que cria para
seu futuro. Quando idealiza mata a si mesmo.

Considerações finais

Considerando o objetivo proposto pelo presente estudo, a análise permitiu


conhecer, em alguma medida, identificar e analisar as representações simbólicas de
um adolescente que convivia em contextos de violência e cumpria medidas
socioeducativas.

Conforme a finalidade deste estudo, ao analisarmos a perspectiva de vida no


futuro de um adolescente que vivia em contextos de violência, a construção da família
foi apontada como elemento transformador da vida, contudo, não identificou-se
indicadores para que esse desejo se realizasse, uma vez que tais conquistas se
apresentaram em confronto com a realidade.

Do contato direto do pesquisador com os adolescentes que cumprem medida


socioeducativa emergem alguns questionamentos: como ainda encontravam a
esperança diante da vida, ainda que essa esperança esteja representada pelo ato
infracional cometido; como permanecer no cumprimento das medidas as quais foram
penalizados, mesmo sabendo que as probabilidades de mudanças em si mesmo e na
sociedade estão diretamente no sentido contrário a sua “recuperação”.

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776
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olhar atual. In A presença de Winnicott no viver criativo: diversidade e

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Trinca, W. (1997). Formas de investigação clínica em Psicologia. São Paulo:

Vetor.

Winnicott, D. W. (1984). Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes.

Tradução de Álvaro Cabral.

777
71- A TRAMA QUE LIGA A SOLIDARIEDADE –
FORTALECENDO ESPAÇOS DE CONVIVÊNCIA - POLO DE CUIDADO.

Marli de Oliveira
Sandra Grandesso
Vicente Nascimento Alves

Resumo: Tocados pela inteligência coletiva (Levy,2003) e por uma força coletiva,
fomos impulsionados a desenvolver a formação em TCI para um grupo de
colaboradores em uma Organização da Sociedade Civil(OSC), localizada na periferia
zona oeste de São Paulo, com o desafio de implantar Rodas em todos os seus
projetos e serviços. Liga das Senhoras Católicas de São Paulo, nome original da Liga
Solidária. Idealizada por mulheres visionárias em 1923 na cidade de São Paulo,
a Liga Solidária, Organização da Sociedade Civil – (OSC) nasceu com o
compromisso de fortalecer e auxiliar na garantia de direitos sociais à população
paulistana. Hoje, próxima de completar 100 anos a organização, beneficia direta e
indiretamente mais de 13 mil crianças, jovens, adultos e idosos na capital. Atuando
nas causas de educação, cidadania e longevidade em nove programas Sociais, em
comunidades com alta vulnerabilidade social. É conhecida por inovar e promover o
empoderamento familiar há mais de nove décadas. Metodologia: Uma formação que
abrange Teoria – Prática e vivência. Realizamos a Formação da seguinte maneira:-
100 horas de Módulos: Teórico; - 80 horas: 8 encontros de Intervisão: Conversas
colaborativas sobre a prática das Rodas;- 60 horas de Rodas ;Totalizando: 240 hs.
Objetivos:- A capilaridade das Rodas e a ressonância para os diferentes públicos da
Liga Solidária; - Contribuir na diminuição do sofrimento dos indivíduos, fortalecendo
ambientes mais saudáveis de convívio na organização; - As rodas de TCI possam
fortalecer a Rede de apoio solidário de seus diferentes públicos. - Formar Terapeutas
Comunitários na Organização; - Ser Polo Formador em 2020. Considerações
Finais:Vivemos caminhos entre o velho e o novo na construção de uma nova cultura.
Integra esta mudança o Projeto LigAção, ancorado no processo de inovação que
conecta todos os colaboradores. Os colaboradores iniciaram a Formação em março
deste ano e estão realizando as Rodas em diferentes espaços da organização. O
impacto já evidenciado, foram realizadas até o momento 24 Rodas, impactando mais
de 500 pessoas.

778
72- AVALIAÇÃO DE RISCO DE SUICÍDIO: UM ESTUDO EM CONTEXTO DE
PESQUISA COM ADOLESCENTE

Isabella Amaral de Oliveira34


Vilma Valéria Dias Couto35

Resumo: Avaliação de risco de suicídio é uma demanda na prática clínica em saúde


mental e na pesquisa, especialmente com adolescente. Esse trabalho tem o objetivo
de apresentar o processo de avaliação de risco de suicídio de uma adolescente
conduzido em contexto de pesquisa. Buscamos verificar a contribuição de um modelo
de entrevista na compreensão do risco e no processo de julgamento clínico. Por meio
de estudo de caso, verificamos que o modelo ajudou a organizar e facilitou o raciocínio
clínico e o alcance dos objetivos da pesquisa.

Palavras-chave: adolescentes, risco de suicídio, pesquisa

Introdução

Avaliação de risco de suicídio é uma demanda constante na prática clínica em


saúde mental, especialmente com adolescentes, em função da maior incidência do
suicídio na idade entre 15 e 19 anos (Kölves & De Leo, 2016). Consideramos que em
pesquisas realizadas com adolescentes com tentativas de suicídio impõe a tarefa de
avaliação de risco atual, pois história prévia é um relevante fator risco para o suicídio
e/ou outra tentativa de morte (Couto, 2017). Trata-se de uma tarefa difícil se
considerarmos a complexidade do fenômeno estudado, a ampla gama de fatores
associadas ao risco e o compromisso ético da pesquisa com os participantes, que
prevê encaminhamento adequado. Os modelos mais usados na compreensão do
risco passam pelo levantamento da história do indivíduo e pela análise dos fatores
que compõem o risco e dos elementos que contribuem como fatores de proteção

34
Discente do curso de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
35
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro

779
(Montenegro, 2012). Embora o suicídio seja algo complexo e multifatorial, pesquisas
têm relacionado o risco de suicídio na adolescência a uma série de fatores, tais como
psicopatologia, história de tentativa de suicídio e conduta autolesiva (Braga &
Dell'Aglio, 2013; Kuczynski, 2014; Couto, 2017; Ministério da Saúde, 2017).
Na avaliação de risco é importante levantar a história atual e pregressa dos
comportamentos suicidas, incluindo ideações, atuações destrutivas e aspectos
relacionados, como: desejo de morrer, de não viver e de tentar o suicídio,
intencionalidade, natureza da ideação suicida, decisão, planejamento ou
impulsividade, comunicação, letalidade do plano, escolha de método e acesso a esse
método. Deve-se também considerar a ocorrência, as características de tentativas
anteriores e recentes e a letalidade das tentativas (Rodrigues, 2009).
Em uma perspectiva psicodinâmica, Sterian (2001) considera que diversos
fatores psicológicos devem ser considerados quando se pretende avaliar o risco de
suicídio. É importante descobrir o grau de suportabilidade de alguma vivência para
cada pessoa, a circunstância de vida que motivou tal decisão, em que momento de
sua história de vida essa experiência se insere, o que ou quem pretende atingir com
isso, qual o sentido que essa pessoa atribui ao seu ato, qual a sua verdadeira
determinação em conseguir efetuar essa autolesão (Sterian, 2001).
Segundo revisão de Goldston (2000) existem entrevistas desenvolvidas para
avaliar comportamento suicida que são específicas para uso com adolescentes e
crianças36. Entretanto, desconhecemos se essas entrevistas já foram padronizadas
para uso no Brasil. Em nossa pesquisa, tivemos acesso a um modelo de entrevista
semiestruturado (História de Avaliação de Risco e Tentativa de Suicídio - HeARTS)
desenvolvido por pesquisadores do Núcleo de Saúde Mental, Intervenção em Crise e
Prevenção do Suicídio da Universidade de Brasília que se mostrou-se útil para
avaliação em contexto clínico (Rodrigues, 2008; Montenegro, 2012 ). Esta entrevista
clínica possibilita uma investigação mais detalhada dos sinais de alerta, fatores de
risco e de proteção para o risco de suicídio.
Realizando nossa pesquisa com adolescentes que tentaram suicídio,
estabelecemos a avaliação do risco de suicídio dos participantes como um dos nossos
objetivos e adotamos o modelo de Check List da HeARTS (Montenegro, 2012) neste

36
Adolescent Suicide Interview (ASI), Child Suicide Potential Scales (CSPS), Evaluation of Suicide Risk
among Adolescents and Imminent Danger Assessment (ESRAIDA), Lifetime Parasuicide Count (LPC)
e Suicidal Behaviors Interview (SBI). Para mais informações consultar Goldston, 2000.

780
processo. Esse trabalho tem o objetivo de apresentar os resultados da avaliação de
risco de suicídio conduzida para uma adolescente em tratamento em um CAPSi
participante da pesquisa “Tentativa de suicídio em adolescentes: estudo de casos”.
Buscamos verificar a contribuição deste instrumento na compreensão do risco e no
processo de julgamento clínico.

Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de casos, que permite
uma investigação sistemática, individualizada e contextualizada de casos individuais
(Pereira, Godoy & Terçariol, 2009). Para este estudo selecionamos o caso Ágata 37,
adolescente de 15 anos, com história de tentativa de suicídio e em atendimento em
um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) de um município de
Minas Gerais.
Após entrevista com a mãe para obtenção de consentimento para participação
de menor em pesquisa e coleta de dados sobre história de vida e comportamento
suicida da filha, a adolescente foi entrevistada individualmente. A entrevista teve
duração de dois encontros e foi gravada com o consentimento das participantes.
Na entrevista com a mãe foi adotado um roteiro semiestruturado, elaborado
pelos pesquisadores, visando obter informações sobre contexto familiar, história de
vida da filha e tentativas de suicídio anteriores. Com Ágata, a entrevista foi orientada
pela História e Avaliação de Risco de Tentativa de Suicídio Check List/ HeARTS -
CL (Montenegro, 2012). Trata-se de um protocolo de entrevista semiestruturado
orientado para avaliação de risco de suicídio, composto de seções que abarcam: a)
contexto pessoal e relacional, b) histórico de comportamento suicida, c) histórico
pessoal e familiar de risco e d) risco atual de suicídio. Ao longo da entrevista, deve
ainda identificar fenômenos psíquicos (afetos intoleráveis, por exemplo) e outros
marcadores clínicos relevantes.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro sob Parecer no 3.049.952 e Certificado
de Apresentação para Apreciação Ética no 03269618.3.0000.5154.

37
Nome fictício

781
Resultados e Discussão
Ágata tem 15 anos, é estudante do primeiro ano do ensino médio, se
autodeclara negra e homossexual. Mora com a mãe, o padrasto, um irmão mais novo
(seis anos) e a avó materna. Ágata relatou que não tinha muito contato com o pai
biológico até a sua primeira tentativa de suicídio, quando ele tentou se aproximar dela.
Segundo sua mãe, Ágata recebeu diagnóstico de transtorno esquizoafetivo e faz
tratamento no CAPSi há dois anos. Durante a entrevista, apesar da atitude
colaborativa em participar do estudo, Ágata demonstrou dificuldade em falar
espontaneamente, era mais sucinta nas respostas, demonstrando resistência de
expressar seus pensamentos e sentimentos. Ágata manteve o olhar sempre baixo,
observando as mãos que não paravam de se movimentar, direcionou poucas vezes o
olhar para a entrevistadora e manteve tom de voz mais baixo.
No primeiro encontro, chamou atenção o uso de moletom (agasalho) grosso
em um dia de muito calor. No segundo, ela trouxe esse mesmo moletom em suas
mãos, sendo então observadas as diversas cicatrizes em seus braços, apontando
conduta de automutilação. Em uma primeira análise, Ágata indica dificuldade de se
expressar verbalmente, mas ela se deixa revelar se olharmos para seus gestos e
corpo. Por ter se apresentado de maneira reservada, a adolescente precisou ser
“apoiada” na entrevista, sendo necessárias mais perguntas investigativas, o que pode
ser compreendido como parte da sua dificuldade em falar de modo mais espontâneo.
Ágata relatou três tentativas de suicídio, todas dentro de um período de onze
meses. A entrevista foi realizada dez meses após sua tentativa mais recente, que
ocorreu em maio de 2018. Em duas tentativas foi feito uso de medicamentos como
método, enquanto na outra o método planejado foi a defenestração, porém também
fez uso de medicamentos e outras substâncias tóxicas visando alteração de
consciência (“ficar meio adormecida”) para conseguir realizar o ato fatal. Na tentativa
mais recente, após desentendimento com a mãe
Baseado no modelo de avaliação de risco de suicídio (HeARTS-CL,
Montenegro, 2012), foi feito um julgamento clínico de risco de suicídio atual. O relato
de Ágata indicou o rompimento de relação amorosa e conflitos com a mãe como
eventos precipitadores das tentativas de suicídio. De acordo com Montenegro (2012),
eventos precipitadores estão relacionados com o surgimento de afetos intoleráveis ou
perturbações internas difíceis de serem manejadas pela pessoa, como os conflitos
interpessoais vivenciados pela adolescente.

782
Analisando as relações interpessoais significativas, observa-se apoio eficaz
apenas da figura materna, tendo essa grande importância para a adolescente. Em
relação as amizades, Ágata não conseguiu identificar nenhuma relação importante.
Houve mudança de escola após a última tentativa de suicídio e a adolescente relatou
dificuldade de estabelecer novos vínculos e confiar nos pares. A falta de amigos
próximos, segundo Baggio, Palazzo e Aerts (2009), pode colaborar com um aumento
de 66% da prevalência de planejamento suicida em adolescentes. Nas explicações
das tentativas de suicídio, Ágata atribuiu importância ao fato de sentir-se sozinha, o
que ainda pôde ser observado na dificuldade de desenvolver e manter relações
interpessoais. A solidão reflete em uma chance três vezes maior de planejamento
suicida do que adolescentes que não possui esse sentimento (Baggio et al., 2009).
De acordo com Couto (2017), diferentes fatores de natureza familiar estão
associados com tentativas de suicídio em adolescentes. Para o caso de Ágata foram
identificados dois fatores de risco: psicopatologia parental, uma vez que a mãe disse
ter transtorno bipolar, e história familiar de tentativa de suicídio. A mãe relatou que
tentou suicídio duas vezes durante sua adolescência. Apesar da avaliação do
entrevistador não ter o objetivo de realizar diagnóstico, a indicação de transtorno
esquizoafetivo deve ser considerada como fator de risco. É consenso entre os
pesquisadores da área da suicidologia que a presença de psicopatologia aumenta o
risco de comportamentos suicida em adolescentes (Turecki & Brenty, 2016; Nock, et
al., 2013 citados por Couto, 2017).
A análise da história e das características das tentativas de suicídio são fatores
importantes a serem considerados na avaliação de risco atual de suicídio
(Montenegro, 2012). No caso de Ágata, foram indicadas três tentativas de suicídio no
prazo de onze meses. Segundo Werlang e Botega (2004), indivíduos com múltiplas
tentativas realizadas em um período menor de um ano, estão em maior risco de
suicídio do que indivíduos com apenas uma tentativa.
O método de intoxicação escolhido revela disponibilidade e facilidade de
acesso a medicamentos, o que favorece o impulso de tentar se matar. Observa-se
que os métodos utilizados pela adolescente estão aumentando a gravidade do dano
físico. A última tentativa provocou danos físico mais severo, que justificou
hospitalização e tratamento intensivo. Chama atenção o método planejado na
segunda tentativa (se jogar do prédio) que tem maior potencial de letalidade (produzir
morte). A alta letalidade evidencia o conhecimento e a capacidade de implementação

783
de método letal (Montenegro, 2012). Apesar da adolescente ter relatado agir por
impulso, suas tentativas de suicídio foram moderadamente planejadas, podendo ser
observadas algumas ações preparatórias.
Cabe ainda citar a presença automutilação, que mesmo sem intenção suicida,
é fator de risco de comportamento suicida (Fonseca, Silva, Araújo & Botti, 2018). A
automutilação tem sido observada em muitos adolescentes que tentaram se matar,
sendo comum falarem que fizeram isto para aliviar sentimento ou dor insuportável.
Segundo Simonsen (2015), diante de angústias que não conseguem dominar, os
adolescentes com automutilação buscam através da dor que eles próprios se infligem
tentar contê-las. Eles recorrem a feridas físicas na expectativa de diminuir o sofrimento
psíquico.
Na ocasião da entrevista, Ágata não relatou ideação suicida e nem intenção
suicida. Também não foram identificadas ações preparatórias que pudessem sinalizar
uma tomada de decisão em relação a uma nova tentativa. Em relação a atitude de
Ágata quanto às tentativas, apesar de relatar arrependimento, observou-se
sentimento ambivalente em relação ao ato.
Ela tem na mãe a principal razão para viver (“o que me impedia era que minha
mãe estava lá comigo, por que se eu tivesse sozinha eu teria conseguido”).
Atualmente, ela recebe cuidado e atenção da mãe, importante figura de suporte
afetivo e equilíbrio emocional em sua vida. Porém, o vínculo com a mãe é único, dentre
as relações que estabelece, o que preocupa. Caso ocorra uma nova situação de
desentendimento com a mãe, na ausência de outros vínculos significativos, há
chances de Ágata experimentar novamente os sentimentos de solidão e desamparo.
Sobre os fatores de proteção, Ágata possui um suporte social de grande importância
que é disponibilizado pelo CAPSi, onde faz atendimentos semanais e participa de
grupos terapêuticos com outros adolescentes que também possuem histórico de
tentativa de suicídio.
A análise de gravidade de risco atual apoiada na compreensão de fatores de
risco e proteção observados na história de Ágata, indicou risco de suicídio moderado
a curto prazo. Além de não relatar intenção atual de suicídio e estar em
acompanhamento no CAPSi, ela parece experimentar menos insegurança na relação
com a mãe, em função de estar recebendo mais atenção e cuidado materno. É
recomendável um trabalho com o intuito de ampliar a rede de apoio e as relações
interpessoais da adolescente, a fim de proporcionar um maior suporte social.

784
Trabalhar a adaptação de Ágata a nova escola também é relevante, permitindo que
ela estabeleça um bom convívio com os pares e não se sinta sozinha. O tratamento
para Ágata deve visar expressão verbal dos afetos e estabelecimento de vínculos de
confiança, diminuindo sentimento de rejeição e desamparo que precipitam as
tentativas de suicídio.

Considerações finais
Avaliação de risco de suicídio é uma tarefa complexa, principalmente no
contexto de pesquisa que conta com um número limitado de encontros com os
participantes. Em nossa pesquisa estamos verificando a contribuição do modelo de
entrevista orientado pela HeARTS CL na compreensão do risco e no processo de
julgamento clínico de adolescentes com histórico de tentativas de suicídio. Esse
modelo organiza e facilita o raciocínio clínico. Entretanto verificamos que o recurso da
supervisão conduzido pelo orientador do presente estudo foi fundamental na avaliação
do discente responsável pela condução da entrevista. Por fim, para o caso Ágata, o
modelo de entrevista apoiou ainda a devolutiva realizada com a adolescente e sua
mãe.

Referências

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adolescentes escolares: prevalência e fatores associados. Cad. Saúde Pública,
Rio de Janeiro, 25(1):142-150

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centes.pdf. Acesso em: 29 mar. 2019. [ Links

786
73- O “VAZIO” NO DESENHO LIVRE INFANTIL COMO INDICADOR DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Rosa Maria Lopes Affonso


UNINOVE
Rosa Inês Colombo
Universidade de Buenos Aires BA
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Universidade São Paulo USP

Resumo: Partimos do pressuposto que a pesquisa sobre a análise do desenho livre


infantil é importante para a investigação clínica de indicadores sobre Violência
Doméstica Infantil. Além disso a relevância do trabalho está no fato que comumente
as crianças não utilizam de linguagem verbal para expressar o seu sofrimento
psíquico. O objetivo foi investigar a expressão espontânea gráfica de crianças
abrigadas, atendidas em Ludoterapia, Ludodiagnóstico ou na Técnica do Desenho
Livre em uma clínica universitária da cidade de São Paulo. O Grupo experimental
consistiu em protocolos de desenhos livres de duas crianças do sexo feminino,
expressos nestes atendimentos por elas. O Grupo Controle consistiu em 377
protocolos de desenhos livres de crianças “normais” de 7 a 12 anos, de ambos os
sexos, frequentando uma escola particular na Zona Leste da Cidade de São Paulo.
Os atendimentos clínicos foram realizados em uma clínica universitária na Zona Norte
da Cidade de São Paulo onde a universidade tem convênio com o Sistema Único de
Saúde (SUS). A técnica gráfica foi realizada com caixa com 12 lápis de cores,
borracha, lápis preto n. 2 e apontador. E a análise foi baseada em KOLCK (1984). Os
resultados demonstram que há muitos aspectos a serem pesquisados sobre os
desenhos livres de crianças, mas acreditamos que o “vazio” nos desenhos,
principalmente, em crianças abrigadas, pode contribuir como um dos indicadores de
violência doméstica ou de desvalorização. A presente pesquisa sobre o “vazio” em
desenhos livres de crianças se refere a uma amostra muito pequena, mas relevante,
quando comparado com as crianças normais, logo é um aspecto que merece
investigação, considerando pouca pesquisa a respeito e a importância destes

787
resultados pode colaborar na compreensão da linguagem pré-verbal da criança em
geral.

Palavras-chave: Desenho livre. Violência doméstica. Ludodiagnóstico

Introdução

O traço espontâneo no papel pode ser observado desde os primeiros anos de


vida de uma criança, como se fosse um ato instintivo da nossa espécie ou uma
necessidade de registrar e dar significado às nossas vivências. Há autores que
mencionam esta necessidade a partir dos 8 meses de idade, ao final do primeiro ano
(PINTO, VILANOVA e VIEIRA, 1997; MEREDIEU, 1974). GREIG (2004) faz uma
exaustiva descrição das fases iniciais dos rabiscos infantis, círculos, garatujas até o
desenvolvimento dos desenhos mais complexos como a figura humana, casa,
paisagens e gravuras. Se observarmos a literatura sobre a evolução do grafismo
humano, há um valor incomensurável ao traço humano, onde, no contexto clínico
diagnóstico, podemos avaliar a cognição, a motricidade, a afetividade e a
personalidade do sujeito como um todo (BUCK, 2009). É a crença que o grafismo
concentra um marco de referência na Psicologia Clínica para a compreensão da
expressão humana, que desenvolvemos a presente pesquisa.

Os clínicos em geral, tem utilizado a expressão gráfica como instrumento do


diagnóstico de vários sintomas infantis de adultos tais com atraso no desenvolvimento,
de psicopatologias, envolvendo tanto transtornos de ansiedade, psicossomáticos,
esquizoides, entre outros. Estas pesquisas sobre os instrumentos gráficos utilizados
no diagnóstico psicológico levaram vários outros estudiosos a pesquisar como os
profissionais podem utilizar estas análises nas avaliações de crianças vítimas de
violência doméstica (TARDIVO, 2010a, 2010b, 2011, 2012a, 2012b).

AFFONSO (2012), TARDIVO (2012b) e COLOMBO (2009) são estudiosas das


evidências gráficas da criança como expressão de seu sofrimento psíquico seja em
testes projetivos gráficos como na expressão lúdica. Entendemos que a investigação
do grafismo infantil deve ser um capítulo que o psicoterapeuta deve se dedicar haja
visto que as crianças em geral utilizam espontaneamente o grafismo com muita
frequência nos atendimentos clínicos. Não é a toa que grandes teóricos como

788
WINNICOTT (1984) só utilizava o material gráfico como diagnóstico e intervenção
clínica psicoterápica.

DI LEO (1983) dedica uma obra especialmente ao estudo do desenho livre


infantil investigando todo o seu significado segundo os fundamentos do
desenvolvimento gráfico humano.

No atendimento ludoterápico ou ludodiagnóstico, apresentamos à criança que


procura ajuda terapêutica, vários materiais lúdicos, jogos de construção e materiais
gráficos. Foi no atendimento de crianças abrigadas que nasceu a presente pesquisa,
observando a necessidade da expressão de suas vivências através do grafismo, a
frequência em que isso foi observado e as semelhanças entre os desenhos
produzidos por estas crianças.

Crianças abrigadas são aquelas retiradas de suas famílias por diferentes


razões, seja por negligência e abandono educacional dos pais, violência sexual, física
e psicológica (AZEVEDO, GUERRA, 1993), muito embora, esta última nem sempre é
aquela que motivou o abrigamento infantil pelas particularidades e dificuldades de sua
identificação.

O material gráfico apresentado no presente estudo é aquele resultado da


expressão espontânea da criança em atendimento psicológico ludodiagnóstico,
desenho livre e ludoterápico em contexto clínico, técnicas essas onde a criança fica
livre para escolher o material e a expressão.

Objetivo

Investigar a expressão espontânea gráfica de crianças abrigadas, atendidas


em Ludoterapia, Ludodiagnóstico ou Desenho Livre em uma clínica universitária da
cidade de São Paulo.

Método

Sujeitos: Grupo Experimental: Foram atendidas em Ludoterapia 11 crianças


abrigadas, sendo 6 meninas e 5 meninos de 5 a 12 anos, mas serão apresentados os

789
desenhos de apenas duas meninas. Tal escolha deveu-se à perseveração nos
desenhos tanto nos primeiros encontros como no atendimento ludoterápico. Os
atendimentos foram num total de 8 encontros realizados semanalmente e foram
utilizados os desenhos livres expressos nestes atendimentos.

Caso 1: S., menina de 12 anos com queixa de enurese e agressividade,


frequentando o abrigo há um ano e meio. A criança foi retirada dos pais por
negligência educacional e suspeita de assédio sexual paterno.

Caso 2: F., uma menina de 6 anos de idade com queixa de timidez,


frequentando há um ano e meio o abrigo. A criança foi retirada dos pais devido a
abandono e negligência educacional, envolvimento com álcool e drogas e na época
do atendimento estava para ser adotada.

Grupo Controle: 377 protocolos de desenhos livres de crianças “normais” de 7


a 12 anos, de ambos os sexos, frequentando uma escola particular na Zona Leste da
Cidade de São Paulo.

Local: os atendimentos clínicos foram realizados em uma clínica universitária


na Zona Norte da Cidade de São Paulo onde a universidade tem convênio com o
Sistema Único de Saúde (SUS).

Material

A técnica de ludodiagnóstico e ludoterápica utilizada foi composta dos seguintes


materiais: animais domésticos e selvagens, bonecos correspondendo a uma família,
blocos de construção e materiais gráficos (folha de sulfite branca, caixa de lápis de
cores, lápis preto n. 2, borracha e apontador).

A técnica do desenho livre utilizada foi feita com material gráfico, caixa com 12 lápis
de cores, borracha, lápis preto n. 2 e apontador.

Procedimento:

O contato foi feito, inicialmente, com a psicóloga responsável do abrigo, na


clínica da universidade, e foram colocadas as queixas das crianças; um breve histórico
de cada criança com os motivos que levaram ao abrigamento e a assinatura do Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido. Após esse contato, foram estabelecidos os

790
horários dos atendimentos individuais de cada criança. Os atendimentos foram
realizados por alunos do 4º ano de psicologia com a supervisão feita no próprio local
e logo após os atendimentos. A supervisora também teve contato com as crianças,
apresentando-se às crianças durante os atendimentos.

Para o atendimento de cada criança, foi realizada a técnica ludodiagnóstica


com materiais lúdicos e gráficos com o aporte teórico de AFFONSO (2012). A técnica
do desenho livre foi baseada em KOLCK (1984), onde era solicitado que a criança
fizesse um desenho qualquer e após isto, era solicitada uma história. Nestas
investigações, era discutido com a criança sobre as queixas apresentadas pela
psicóloga.

Para efeito comparativo com os desenhos de crianças abrigadas foi realizado


também uma pesquisa com crianças “normais” onde foi solicitado o desenho livre.
Essa amostra do grupo controle foi realizada a partir da solicitação da Prof.ª Rosa Inês
COLOMBO que mencionou que estes aspectos observados nas crianças abrigadas
também são observados nas crianças “normais” e nosso interesse era verificar a
incidência destes aspectos, uma vez que nossa hipótese é a de que é maior no caso
de crianças abrigadas, muito embora não tenhamos ainda amostras equivalentes.

A análise dos desenhos livres foi baseada em Van KOLCK (1984) que sugere
investigar 17 indicadores: posição da folha de papel, tamanho do desenho em relação
à folha, tipo de linha e consistência do traçado, predominância de linhas retas, curvas
ou ângulos, correções e retoques; sombreamento ou borradura, negação, resistência
a desenhar, não completamento e omissões, obediência ao esquema do objeto
representado e detalhes, sequência, simetria, estereotipia, movimento; transparência;
perspectiva, valor atribuído às partes do desenho, simbolismos dos objetos ou formas
representadas.

Resultados

Serão apresentados alguns dos desenhos gráficos na sessão ludodiagnóstica,


da sessão do desenho livre aplicado ou das sessões de ludoterapia. A apresentação
dos desenhos com os vazios é para ilustrar nossa hipótese, não tem ainda valor
estatístico, pois nossa amostra é de apenas 11 crianças, no entanto, em todas as

791
crianças atendidas do abrigo observamos praticamente estes aspectos que nortearam
a presente pesquisa.

Dos aspectos propostos por Van Kolck (1984) ao analisar os desenhos destas
crianças, o que chamou atenção era o grande vazio presente no desenho, o tamanho
pequeno do mesmo, a perseverança do tema “casa” escolhido para o desenho,
ausência de linha de solo e a localização dos meninos.

1) O tema da casa nos desenhos, sempre presente, no nosso entender refere-


se à causa dos conflitos destas crianças, que simbolicamente no desenho
está associado às relações familiares (BUCK, 2009), logo, podemos dizer que
estas crianças abrigadas, longe de suas famílias, tentam através do desenho
elaborar suas perdas, abandono ou negligência. Na história, porém, há
elementos de idealizações ou de desejo em suprir esta falta. Podemos
identificar isto ao considerar a história em que há uma criança e a mãe estão
numa festa de aniversário (vide figura 1). A figura materna, no entanto, está
no alto do desenho ao lado da casa ou, em outro desenho em que a criança
diz que a mãe e a criança estão indo trabalhar. As crianças não estão
representadas no desenho (vide figura 1 e 2) e que, segundo COLOMBO
(2009) também caracteriza um indicativo de violência doméstica.
O que chama a atenção é a perseveração nas sessões desse tema, ou
seja, o terapeuta não solicitou seja na sessão de ludodiagnóstico seja na
sessão de desenho livre que a criança desenhasse a casa (vide desenhos
figuras 2, 3 4). Mas em oito sessões dos atendimentos, esse tema aparece
com frequência, daí nossa interpretação em relação ao desejo ou
necessidade de elaboração dos conflitos familiares.

2) O tamanho pequeno do desenho refere-se à investigação da relação dinâmica


entre o sujeito e às reações e às pressões do ambiente: com sentimento de
inadequação e inferioridade (desenhos pequenos) ou com fantasias
compensatórias de despersonalização (no caso de desenhos grandes). Vale
ressaltar que essa avaliação do desenho é feita a partir de um crivo proposto
por Van KOLCK (1984, p. 22).

792
Os desenhos analisados são muito pequenos (1/64 e 1/128 da folha de
sulfite A4) que, de acordo com Van KOLCK (1984, p. 20) traduz sentimentos
de inadequação e rejeição pelo ambiente, além de tendências ao isolamento.
Em um dos casos (caso 1), a tendência ao isolamento não foi observada,
considerando os dados da psicóloga, uma vez que S. é considerada a criança
que se preocupa muito com os seus amigos e precisa sempre agradar o outro.
Talvez tente compensar essa falta como se fosse uma formação reativa. No
entanto, seu sentimento de inadequação e de rejeição ao ambiente fica claro.
Manifestava sempre seu descontentamento com a situação de abrigamento,
ao mesmo tempo, a impossibilidade da sua família real cuidar dela. Ou seja,
representar seu desenho pequeno indicava sua dificuldade ou insatisfação
com seu ambiente negligente provocador de abandono e de separações.

3) Localização na folha: o lugar em que o sujeito representa o seu desenho


revela a sua orientação geral em relação ao ambiente que é dividido em 4
quadrantes da folha de papel. O quadrante observado preponderante nos
desenhos foi o 3º quadrante, ou seja, o canto inferior esquerdo e que segundo
Van KOLCK (1984) corresponde a conflitos, regressão, fixação a estágios
primitivos do desenvolvimento e egoísmo.
No caso dos desenhos, o que podemos afirmar é o quanto essas crianças
demonstraram sua rejeição e comportamento imaturo. Além disso, essa
representação, às vezes no 2o e no 3º quadrante e bem próximo da margem
inferior indica o quão dependente e de necessidade de apoio e segurança
essas crianças expressam na análise desses indicadores (vide Figuras
1,2,3,4,5 e 6)

4) Antes de analisarmos outro indicador temos que discutir tanto a localização


como o tamanho do desenho no caso dos sujeitos da presente pesquisa.
Consideramos os tamanhos na análise dos desenhos: o céu, nuvens, sol?
(Vide Figuras 1, 2, 3 e 4). Temos que os desenhos das casas em ambas as
crianças estão no 2º e no 3º quadrante, mas os desenhos do céu, nuvens, sol
aparecem no topo superior do 4º e/ou 1º quadrantes, respectivamente, cantos
superior esquerdo e superior direito. Logo, a localização total do desenho
seria 1º, 2º, 3º e 4º quadrante.

793
Se considerarmos o sol, nuvens e céu, tanto o tamanho como a localização,
estão sujeitos a questionamentos, o tamanho do desenho seria considerado grande e
a localização em toda a folha, ou seja, em todos os quadrantes. Algo que na avaliação
ficaria estranha se considerarmos este grande vazio nos desenhos. Denominamos
“espaços vazios” estes espaços que ficam entre os desenhos, por exemplo, entre a
casa e o céu (vide Figura 1), entre a casa e o sol (vide Figura 3).
De acordo com Van KOLCK (1984), a interpretação seria que um tamanho
exagerado sugerindo sentimento de constrição por parte do ambiente com fantasia
super-compensatória e, em relação à localização o desenho seria considerado centro,
com os sentimentos de segurança, autovalorização, emotividade e comportamento
adaptativo, além de equilíbrio e pessoa centrada em si e autodirigida. O que fazer ou
o que analisar com o “vazio” entre o céu, nuvens, sol no topo da folha e os desenhos
na margem inferior da folha? (vide figuras 1 e 2).
Consultando, pessoalmente, a professora Rosa Inês Colombo, perita do
Tribunal de Menor de Buenos Aires e Professora da Universidade de Buenos Aires,
sugeriu que esses “espaços vazios” são indicadores de comprometimento onde pode
haver em distanciamento entre o real e o imaginário infantil caracterizando uma
pressão do ambiente. Evidentemente, teríamos que verificar este aspecto em um
número maior de sujeitos, e entendemos que tanto a localização como o tamanho
teriam que ser investigados considerando estes vazios.
Professora Rosa COLOMBO (2019) menciona que:

“Estes vacios em lo diseños de los niños normales e de niños e de los niños víctimas
están muy relacionados con desvalorización nos dibujos que dan muy por debajo de
la hoja, pequeños y el resto muy por arriba como inalcanzable pero a la vez peligroso.
También dan cuenta de significaiones de no poder acceder al adulto. Pero pueden
aparecer em ambas muestras.

Para as professoras Carola de Agosta, Rosa Colombo e Barilari (2010) bem


como Carola de Agosta e Rosa Colombo (2012), não se trata de uma característica
que indica uma psicopatologia, no entanto, apontamos que se trata de indicador de
violência doméstica, entendendo a violência doméstica como aquela desestruturação
do ambiente, familiar ou não, e que agride a criança no seu processo educacional,
seja fisicamente ou psicologicamente, seja na intenção de negligência ou abandono.

794
Considerando as pesquisas associadas à localização e ao tamanho (VAN
KOLCK, 1984) que indicam como o sujeito interage com o ambiente, a nossa hipótese
pode ganhar maior relevância, se associarmos as observações da professora Rosa
Inês Colombo, sobre a desvalorização, é claro, diante do ambiente hostil.
Evidentemente, que esta hipótese deve ser investigada segundo as propostas da
professora Rosa Inês, comparando a incidência deste vazio tanto em desenhos de
crianças normais como em crianças abrigadas ou com outras circunstâncias clínicas.
Mas isso já é outra pesquisa. Nosso propósito é apontar, para a necessidade de
consideração destas representações e quem sabe, uma análise dos vazios em
desenhos, possa apresentar elementos a mais a ser considerado em nossas
investigações clínicas sobre o grafismo ou das representações gráficas do desenho
livre infantil ou em situações expressivas como o ludodiagnóstico em que a expressão
gráfica é utilizada.

De acordo com a sugestão da Prof.ª Rosa Inês COLOMBO iniciamos esta


investigação em crianças “normais” e apresentamos alguns destes dados apenas para
comparar com os sujeitos da presente pesquisa.

Tabela 1: Total de identificação de “espaços vazios” nos desenhos livres de


crianças normais e aquelas atendidas na Clínica com histórico de Violência Doméstica
(V.D.).

7a 8a 9a 10 a 11 a 12 a
Total Porcentagem
M F M F M F M F M F M F
Total de
Crianças 55 22 61 40 51 20 28 9 17 27 30 17 377 100%
Normais
Vazios de
Crianças 4 2 3 1 8 4 3 0 2 1 2 1 31 8%
Normais
Total de
crianças da 0 1 0 2 0 0 0 0 1 4 1 2 11 100%
Clínica com
V. D.
Vazios de
crianças da 0 1 0 1 0 0 0 0 1 4 1 2 10 90%
Clínica com
com V. D.

Podemos dizer que nesta pequena amostra de 11 crianças, é grande a


incidência destes “vazios”, comparativamente às crianças normais (vide Tabela 1),

795
logo é significativa a expressão de desvalorização e de acesso inalcançável, ou seja,
sentimentos possíveis de encontrarmos em crianças abrigadas. Evidentemente,
deveríamos ter um número maior de crianças abrigadas, mas podemos constatar, ao
menos, que estes aspectos dos vazios nos desenhos livres também não são
características encontradas com muita frequência em crianças normais: de uma
amostra de 377 sujeitos, apenas 8% apresentam essa característica (vide Tabela 1),
logo, vale a pena continuar essa investigação.

Figura 1: Desenho do caso 1: mãe numa Figura 2: Desenho do caso 1: mãe


festa com a filha passeando

796
Figura 3: Desenho do caso 2: uma
menina, flor e menino Figura 4: Desenho do caso 2. Mãe, flor e casa.
.

Figura 5: Desenho caso 2: Matinho e minhoca Figura 6: Desenho caso 2: uma casa
e bichinhos

797
Considerações Finais

Há muitos aspectos a serem pesquisados sobre os desenhos livres de crianças,


mas acreditamos que o “vazio” nos desenhos, principalmente, em crianças abrigadas,
pode contribuir como um dos indicadores de violência doméstica ou de
desvalorização. A presente pesquisa sobre o “vazio” em desenhos livres de crianças
se refere a uma amostra muito pequena, mas relevante, quando comparado com as
crianças normais, logo é um aspecto que merece investigação, mesmo porque, é um
dado que na literatura não há menção e a importância destes resultados pode
colaborar na compreensão da linguagem pré-verbal da criança em geral.

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Rio de Janeiro: Imago, 1984.

799
74 -CULTURA E O BRINCAR NA CONSTITUIÇÃO INFANTIL
Alana Madeiro de Melo Barboza38
Paula Orchiucci Miura39

RESUMO
O presente estudo conceitua a infância com base na noção de desenvolvimento
maturacional, proposta por Winnicott que reflete sobre a importância da relação com
o ambiente para o alcance de um desenvolvimento considerado satisfatório e da
constituição do self. Para além disso, entende-se a influência da cultura e da
brincadeira, no desenvolvimento e na constituição da infância. Assim, este trabalho
teve como objetivo analisar, a partir da teoria de Winnicott, as produções acadêmicas
sobre cultura, brincar e infância. Para isso, realizou-se um levantamento bibliográfico
nas bases SciELO e Portal de Periódicos CAPES e, após refinamento, analisaram-se
14 artigos. Elencaram-se as seguintes categorias temáticas: ambientes clínicos,
institucionais e a Psicanálise de crianças; escola, aprendizagem e o brincar;
possibilidades do brincar e brincadeiras na cultura; sujeitos da infância. A análise
possibilitou uma discussão sobre noções de cuidados, com reflexões sobre ser
criança, quem tem infância e a relevância do brincar no desenvolvimento. O brincar
também está ligado às relações intersubjetivas, a cultura e à saúde. As modificações
culturais influenciam o funcionamento da sociedade e isso reflete nos ambientes do
público infantil. É importante refletir sobre como as crianças podem ter infância,
respeitando a agressividade, o brincar, a aprendizagem e a saúde mental.

Palavras-chave: Cultura; Infância; Brincar; Winnicott.

INTRODUÇÃO

O presente estudo conceitua a infância a partir da noção de desenvolvimento


maturacional, proposta por Winnicott (1965/1983), que reflete sobre a importância da
relação com o ambiente para o alcance de um desenvolvimento considerado
satisfatório para a constituição do self. Tem-se como base a ideia do crescimento
emocional como uma jornada da dependência absoluta, rumo à independência
(Winnicott, 1965/1983), pois acredita-se que um indivíduo considerado saudável não
se torna isolado, mas mantem uma relação de interdependência com o ambiente, a
sociedade e a cultura.
A teoria de Winnicott (1971/1975) pode ser utilizada para refletir sobre o papel
da cultura na constituição subjetiva, por analisar o termo “experiência cultural” como

38
Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.
39
Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas.

800
uma ampliação da ideia dos fenômenos transicionais e da brincadeira. É a partir da
cultura que existe a possibilidade de se criar algo no espaço potencial, sendo um
espaço constituído por experiências internas e também pelo que é encontrado no
ambiente macrossocial, a exemplo da linguagem.
Assim, entende-se a influência da cultura na brincadeira e no desenvolvimento
do sujeito e, consequentemente, na constituição da infância. Nesse sentido, o
presente estudo40 teve como objetivo analisar, a partir da teoria de Winnicott, as
produções acadêmicas acerca da cultura, do brincar e da infância.

MÉTODO

A fim de elaborar uma revisão da literatura (Creswell, 2007), foi realizado um


levantamento bibliográfico em duas bases de dados online: a Scientific Eletronic
Library Online (SciELO) e o Portal de Periódicos CAPES/MEC, com as seguintes
combinações de descritores: “Brincar AND Winnicott”, “Brincadeira AND Winnicott”,
“Cultura AND Winnicott”, e “Infância AND Winnicott”.
Utilizando-se recorte temporal dos últimos 5 anos, foram encontradas 116
produções na CAPES e 12 na SciELO. As duplicações foram eliminadas e, como
critérios de inclusão, elegeram-se: artigos, com texto completo disponível, idioma em
português, inglês, italiano ou espanhol, pesquisas qualitativas e pesquisas que
apresentem discussões relacionadas ao tema infância, cultura e brincadeiras com
enfoque na teoria de Winnicott. Assim, posterior ao enquadramento desses critérios e
refinamento por meio da leitura flutuante, obteve-se um quantitativo de 25 artigos.
Após leitura na íntegra, a amostra final apresentou o total de 14 artigos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Por meio da leitura na íntegra dos artigos que compõem o quantitativo final, foi
possível elencar quatro categorias temáticas: ambientes clínicos, institucionais e a
Psicanálise de crianças; escola, aprendizagem e o brincar; possibilidades do brincar
e brincadeiras na cultura e; sujeitos da infância. As categorias foram analisadas de

40
Este artigo é um recorte de uma dissertação do Programa de Pós-Graduação em Psicologia –
Universidade Federal de Alagoas.

801
acordo com temáticas discutidas nas produções, o que possibilita a presença de
alguns artigos em mais de uma categoria.

Ambientes clínicos, institucionais e a Psicanálise de crianças


Pesquisas sobre crianças, ou com crianças, costumam ocorrer em alguns
locais característicos de vivências no período da infância, como: escolas, instituições
de acolhimento e variados ambientes clínicos. A partir dessa percepção, decidiu-se
por elaborar um tópico com o objetivo de refletir acerca desses locais e das produções
desenvolvidas com tais enfoques.
Pedroso, Lobato e Magalhães (2016) desenvolveram um estudo cujo objetivo
foi analisar as verbalizações de crianças em acolhimento institucional acerca das
formas relacionais com o ambiente. As autoras apontam a importância da qualidade
do cuidado para proporcionar a sensação de acolhimento pelo local e ressaltam que
instituições de acolhimento podem fornecer possibilidades de desenvolvimento social
e emocional. Entretanto, o ambiente de um abrigo também pode ser configurado a
partir da ideia de falha ambiental, se considerarmos que, apesar da potencialidade
das instituições, as crianças que se encontram nesses locais podem vivenciar
variadas dificuldades psicossociais em suas histórias de vida se o holding foi
proporcionado de forma mecânica e falha. Assim, “quando o ambiente não atua de
maneira facilitadora, pode contribuir para que as crianças não o identifiquem como
local supressor de suas necessidades” (Pedroso; Lobato & Magalhães, 2016, p.717).
Já Jorge (2015) desenvolve um estudo de caso acompanhado em atendimento
clínico sobre uma garota que encontrava-se na Casa Lar. A partir da noção da
importância da arte, Jorge (2015) percebeu que Luíza era uma menina passiva, mas
que, com a ajuda da música, conseguiu se expressar e firmar a transferência por meio
de cantorias. Com base na ideia de Winnicott (1971/1975, p.95), sobre a submissão
proporcionar “um sentido de inutilidade e está relacionada à ideia de que nada importa
e de que não vale a pena viver a vida”, seu papel como analista foi trabalhar esse
sentimento submisso vivenciado pela garota.
Apesar de fatores ambientais poderem sufocar processos criativos, o ambiente
não tem o poder de destruí-los por completo. Com base nisso, Jorge (2015) trabalhou
a espontaneidade e a criatividade de Luiza por meio da música e do processo de
cantar durante os atendimentos.

802
Vendruscolo e Souza (2015) observam a linguagem e o brincar na clínica
interdisciplinar de crianças com risco psíquico. A partir da noção proposta por
Winnicott de espaço transicional, as autoras percebem que é a partir da experiência
com e pelo outro que a criança consegue lidar com o processo de angústia e
desilusão. Entretanto, a intersubjetividade só é possível quando há uma vivência de
relação e confiança entre bebê e adulto. A partir dessa análise da interação entre
adulto e criança, as autoras concluem que o olhar interdisciplinar enriqueceu o
caminho clínico na escolha (ou não) por intervenção precoce e pelo melhor tipo de
intervenção, e pôde-se reafirmar a relevância da percepção de índices de risco para
se pensar em estratégias de saúde mental infantil.
Londero e Souza (2016) discutem sobre o comportamento antissocial a partir
da perspectiva de Winnicott e sua relação com distúrbios da linguagem. As autoras
afirmam que o ambiente clínico precisa ser estável o suficiente para não ser abalado
por reações destrutivas por parte do paciente, e desenvolvem reflexões sobre falhas
e deprivações ambientais que possam ocasionar interrupções no processo de vir a
ser do sujeito, sendo a tendência antissocial uma defesa para lidar com invasões e
angústias.
Diante disso, apoiam-se na afirmação de Winnicott (1971/1975) sobre a
agressividade não dever ser negada, visto que a experiência agressiva pode incluir o
desenvolvimento de recursos internos do sujeito e que sua não aceitação pode
resultar na inabilidade da criança lidar com tal sentimento. As autoras concluem
afirmando que sociedade e família podem falhar para com a criança se não
entenderem os significados de atitudes agressivas e, para além disso, apontam que a
alteração de linguagem oral ou escrita pode ser um sintoma inicial da tendência
antissocial.
Relacionando as propostas clínicas mais tradicionais, Teixeira, Saldanha e
Dauer (2016); Machado (2016) e França e Rocha (2015) trazem reflexões acerca do
desenvolvimento infantil e da Psicanálise de crianças. A partir da experiência em um
Serviço de Psicologia Aplicada, Teixeira; Saldanha e Dauer (2016) desenvolvem uma
pesquisa bibliográfica sobre o brincar por meio de uma discussão histórica acerca da
Psicanálise Infantil. As autoras apontam sobre a possibilidade do brincar como forma
de comunicação e a validação das formulações winnicottianas não somente na clínica
tradicional, mas em todos os atendimentos que apresentem o brincar como um
método que possibilita um setting espontâneo, criativo e acolhedor.

803
Machado (2016) discute sobre a psicanálise com crianças e reflete acerca da
relação adulto-criança e da criança enquanto ser, antes de objeto ou sujeito de
pesquisa. A autora apresenta uma discussão sobre a construção do verdadeiro self,
e também aponta a importância da acessibilidade das obras de Winnicott.
França e Rocha (2015) se utilizam do Mito do Cuidado, fábula de Higino, para
desenvolverem um artigo com foco na função do cuidado para a constituição psíquica
e na clínica psicanalítica com crianças com base em Winnicott e Ferenczi, como uma
clínica marcada pela ética do cuidado. Os autores afirmam que as dimensões do
cuidado são marcas da presença do outro que participam e contribuem para a
constituição subjetiva. A partir de tal afirmação, relacionam a ideia proposta por
Winnicott acerca do ambiente marcado por uma presença suficientemente boa na
experiência inicial de dependência absoluta, momento em que o cuidado do outro é
fundamental para a estruturação subjetiva. Os autores também percebem que, ao
valorizar a experiência e a importância do cuidado nas relações intersubjetivas, o
objetivo da psicanálise de crianças é “promover um terreno fértil à apropriação criativa
de si” (p. 419). Concluem, então, que a apropriação criativa do mundo é ponto de
partida, mas também de chegada, onde a dimensão relacional é parte constitutiva da
subjetividade.

Escola, aprendizagem e o brincar


Pentini (2018); Oliveira (2015); Maia e Vieira (2017) apresentam o ambiente
escolar e os processos de aprendizagem, relacionando-os ao brincar, como foco de
suas pesquisas. Devido a quantidade considerável de pesquisas nesses ambientes,
decidiu-se por discutir tais propostas na presente categoria temática.
Mediante uma revisão da literatura, Oliveira (2015) desenvolve uma crítica à
estrutura de funcionamento das escolas contemporâneas por meio de uma discussão
sobre infância e brincadeira. A autora critica a logística atual de uma vida sem
momentos para lazer, sendo a vida infantil e adolescente baseada no futuro, no
trabalho e na vida adulta.
Apesar da realidade constatada em sua pesquisa, Oliveira (2015) tem como
base a noção de brincar de Winnicott (1971/1975, p.70) como algo que “facilita o
crescimento e, portanto, a saúde”. Nesse sentido, a autora reconhece a necessidade
da garantia do direito fundamental de brincar, presente no ECA, e conclui apontando
a necessidade de mudanças no sistema de ensino das escolas públicas brasileiras, a

804
fim de abandonar os moldes do aprendizado por memorização e, levar em
consideração as possibilidades de aprendizagem por meio da espontaneidade e da
criatividade presentes no ato de brincar.
A partir de um recorte da dissertação de mestrado, Maia & Vieira (2017)
consideram diferentes possibilidades de se aprender ao analisar o brincar no contexto
da dificuldade de aprendizagem. De acordo com as autoras (2017, p.126), “o que está
em jogo na questão do saber, do conhecer e do brincar é exatamente o que Winnicott
denomina de espaço potencial, uma das principais ideias para se pensar a questão
do ensino aprendizagem nessa perspectiva”. As autoras concluem apontando a
efetividade do brincar e da criatividade como formas de lidar com os processos de
aprendizagem e suas dificuldades.
Também propondo uma reflexão do conceito de espaço potencial, Pentini
(2018) complementa a discussão com a ideia de experiência cultural ao se pensar um
projeto intercultural de uma experiência educacional na cidade de Roma, baseado no
conceito de espaço potencial, desenvolvido na teoria de Winnicott. A autora afirma
que, a partir de uma lei que promove a igualdade entre crianças, a continuidade
educacional e escolar ajuda na redução de desvantagens culturais, sociais e
relacionais, além de promover a inclusão.

Possibilidades do brincar e brincadeiras na cultura


Após análise das produções, foi percebida a relevância de temas como brincar
e cultura. Assim, foram selecionados os trabalhos de Pisetta (2017); Sekkel (2016);
Maia e Vieira (2017); Pedroso; Lobato e Magalhães (2016) por apresentarem
discussões que relacionam o brincar e a cultura, para compor esta categoria temática.
Pisetta (2017) faz aproximações das teorias de Freud, Lacan e Winnicott a fim
de discutir sobre como o brincar pode ser pensado pela psicanálise. A autora enfatiza
a repetição do brincar como pressão pulsional, numa articulação entre gozo e prazer,
seguindo o pensamento a partir da linguagem no trabalho do brincar e no se fazer
sujeito a cada novo contato com o objeto, e conclui afirmando que “pensar o brincar a
partir da repetição pode insinuar uma redução, mas toda atividade do brincar consagra
a importância da repetição no trabalho de uma criança, que, para Winnicott, é um
fazer, sobretudo” (p.110).
Assim, a autora utiliza Winnicott para teorizar sobre a importância do brincar
como atividade de construção subjetiva. Entretanto, Winnicott considera o brincar para

805
além do assujeitamento pulsional na infância. Assim, por meio da noção de objeto
transicional e espaço potencial de Winnicott, a autora discorre sobre o ganho de certo
domínio da experiência cultural possibilitado pelo ato de brincar.
Marie Claire Sekkel (2016) apresenta o brincar como atividade fundamental e
que se encontra presente em todas as culturas, sendo a brincadeira fundante e
permanente na vida cultural. Ela aponta a centralidade da brincadeira para o
desenvolvimento humano e para a vida da e na cultura como um ponto de
convergência.
Ela afirma que “o brincar é uma realidade entre mundos” (p. 91), sem ocorrer,
assim, entre pessoas e objetos isolados. Informa que o mundo interno ocasiona
mobilizações na criança e, a partir disso, a criança busca inspirações para as
brincadeiras na cultura. Assim, conclui que “a brincadeira nos inclui na vida, numa vida
humana com sentido, desejante e boa de ser vivida” (p. 93).
Maia & Vieira (2017) apontam que é por meio de uma maternagem
suficientemente boa que o sujeito se insere na cultura, sendo o brincar diretamente
associado ao viver. Em contrapartida, Pedroso, Lobato & Magalhães (2016)
desenvolveram reflexões acerca do brincar de crianças em situação de acolhimento,
e perceberam a importância do brincar na simbolização de experiências.

Sujeitos da infância
Nesta categoria, a ideia é refletir sobre a noção de ser criança, da infância e o
ter infância. Em seu artigo, Oliveira (2015) discorre sobre a concepção de infância
como algo construído historicamente e critica a ideia de uma única forma de infância
Para isso, a autora exemplifica a idade média, e também cita a época da escravidão
no Brasil. Essa crítica pode ser relacionada ao trabalho de Machado (2016) que
propõe o foco na existência da criança enquanto ser, a partir das relações adulto-
criança, sendo o adulto muitas vezes responsável pela falha ambiental da experiência
infantil de ser criança.
Já Hammoud (2015) faz articulações entre o desenvolvimento, a integração
psicossomática e o brincar, e afirma que, na compreensão winnicottiana, tais
conceitos são fundamentais para o desenvolvimento do espaço potencial. Hammoud
(2015) diz que, a partir do contínuo processo de vir a ser, o amadurecimento é
constituído por meio do estabelecimento da confiança e da relação com o ambiente.
Hammoud conclui afirmando que o brincar tem participação decisiva na constituição

806
do sujeito, na cura do sintoma e para a experiência com o mundo cultural
compartilhado.
Ao refletir sobre um projeto socioeducativo de uma periferia na cidade de
Roma, que tem o viver criativo como base para suas propostas, Pentini (2018) conclui
que as condições da infância variam de acordo com o local e a realidade de cada um,
e afirma que, em todos os lugares, a proposta educacional visa na manutenção ou
criação de condições para um desenvolvimento considerado satisfatório. Esse
pensamento pode ser complementado por Maia & Vieira (2017) ao apontarem a
criatividade como possibilidade de re-construção da noção de identidade por meio de
um ambiente escolar lúdico.
Por fim, França & Rocha (2016) desenvolvem uma discussão sobre as variadas
ideias de infância na contemporaneidade e suas formas de subjetivação a partir da
análise de documentários sobre a temática. Os autores perceberam que existem
oposições: enquanto alguns acreditam que a infância está hipervalorizada, outros
acreditam que a noção de infância tem perdido seu lugar; e como principal observação
a partir do documentário “A invenção da infância”, percebe-se que a experiência de
ser criança não significa necessariamente que os sujeitos carreguem as insígnias da
experiência de ter infância. A partir disso, “somos convocados a assumir uma postura
crítica sobre a concepção determinista do indivíduo, cujo objetivo maior é prever todos
os comportamentos humanos” (França & Rocha, 2016, p.374). Os autores concluem
ao afirmar que ser criança não significa necessariamente ter infância.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos artigos possibilitou uma discussão sobre noções de cuidados, ao


desenvolver reflexões acerca do que é ser criança e quem tem infância, mas,
principalmente, a relevância do brincar e das brincadeiras no desenvolvimento do
sujeito.
Dentre os pontos elencados nas discussões, percebeu-se uma crítica a noção
contemporânea de infância e um modus operandi focado no futuro. Entretanto, assim
como apontado na teoria de Winnicott, entende-se que a primeira infância tem um
papel crucial para um desenvolvimento considerado satisfatório e,
consequentemente, para que os sujeitos consigam, mesmo que minimamente, lidar
com frustrações e angústias. Percebe-se, também, a relevância dos conceitos

807
winnicottianos de ambiente e espaço potencial, para se pensar não somente sobre o
desenvolvimento infantil, mas para refletir sobre as noções de brincar e saúde.
Analisa-se também a importância e o papel da cultura na constituição do sujeito e das
relações intersubjetivas.
Constatou-se que as modificações culturais influenciam diretamente o
funcionamento social e isso reflete nos variados ambientes cujo enfoque é o público
infantil. É importante ressaltar a centralidade de uma noção ampliada do ambiente,
considerando os locais físicos e as relações. Também não se deve esquecer que o
brincar é fundamental na vida do ser humano e, diante disso, é preciso repensar
diferentes formas de possibilitar momentos lúdicos, sem desconsiderar as realidades
infantis, visto que não existe um único modo de ser criança e, ser criança não
necessariamente significa ter infância.
Portanto, percebe-se a importância de refletir sobre como todas as crianças
podem vivenciar sua infância, respeitando o brincar, a aprendizagem e a saúde
mental, sem desconsiderar as singularidades de cada um. Nesse sentido, percebe-se
que apesar do brincar e da infância serem assuntos bastante abordados, é relevante
continuar a desenvolver pesquisas sobre a temática, visto que a cultura e a sociedade
estão em constante transformação.

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809
75- DESENVOLVIMENTO DE PENSAMENTO CRÍTICO COM ADOLESCENTES
EM SEMILIBERDADE: DETERMINANTES DA EVASÃO ESCOLAR

Gabriella de Oliveira Machado¹


Giovana Hilberath Moreira¹
Thiago Bellei de Lima¹
Fernanda Bordignon Luiz²
Maísa Pereira Panutti³

Resumo: Este artigo trata-se de um relato de experiência de um trabalho


desenvolvido por três alunos de um projeto de extensão da Universidade Positivo,
chamado Projeto Guiar. O público-alvo foi um grupo de adolescentes em cumprimento
de medida socioeducativa de semiliberdade, no Paraná. O objetivo do trabalho foi
possibilitar o desenvolvimento de pensamento crítico a partir da análise de
determinantes da evasão escolar. Participaram do projeto, treze adolescentes entre
15 a 18 anos do gênero masculino em cinco encontros de grupo referentes ao tema
educação, no período entre setembro a outubro de 2019. Ao longo dos encontros, os
estagiários levantaram as principais demandas relacionadas ao tema do trabalho,
como a evasão escolar. Os encontros contaram com estratégias participativas de
recursos dinâmicos, como jogos, filmes e realização de projetos criativos. A
experiência de intervenção possibilitou o exercício do pensar crítico sobre a educação
e de seus direitos enquanto transformadores sociais e protagonistas da própria
história, com a criação de estratégias para mudar a realidade.

Palavras-chave: adolescentes em conflito com a lei; socioeducação; violência social;


pensamento crítico; educação.

Introdução
“Esse sistema tá mais pra sociopunição do que socioeducação”. Estas são
palavras de um adolescente que está cumprindo medida socioeducativa em uma Casa
de Semiliberdade, no Paraná, durante uma atividade de avaliação do sistema
educacional brasileiro, incluindo as medidas socioeducativas. As crianças e
adolescentes, principalmente os provenientes de camadas menos favorecidas
economicamente, são vítimas de todos os tipos de violência (social, física, sexual,

810
psicológica), à medida que têm seus direitos fundamentais negados (Monte, Sampaio,
Rosa Filho & Barbosa, 2011). Em 1990, apesar da promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA (lei no. 8.069), com o objetivo de garantir “todas as
oportunidades e facilidades para as crianças e adolescentes, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade
e dignidade” (art. 3), cabe questionar se estes direitos estão de fato sendo garantidos
ou a violência social continua sendo reproduzida pelo sistema?
Dentro da ampla problemática que é a violência social, têm-se a associação da
adolescência e vulnerabilidade social, em que, em alguns casos, ao mesmo tempo
que os jovens são vitimados pela violência, também são autores de atos infracionais
(Zappe & Dias, 2012). Há, assim, uma interferência do social e da violência,
abrangendo características da exclusão social e do acesso limitado a direitos,
segurança, educação e oportunidades como fatores de risco para essa população
(Gallo & Williams, 2005).
Ainda que a educação seja um direito primário previsto no ECA, pode-se
chegar à conclusão de que as medidas socioeducativas tem mais caráter de sanção
do que pedagógico, considerando que não se tem alcançado a ressocialização do
adolescente com muito sucesso (Ponte, Ribeiro, Rodrigues & Rodrigues, 2016). A
partir de como essa intervenção tem sido feita, surge o seguinte questionamento:
“essa prática socioeducativa possibilita aos adolescentes em conflito com a lei uma
possível ressocialização, ou apenas cumprem o seu dever de afastá-los para depois
devolvê-los à sociedade, como excluídos sociais?” (Coutinho, Estevam & Araújo,
2009). Portanto, o fato das opressões e da não garantia dos direitos se repetirem
dentro de contextos que deveriam ser de proteção, faz com que frases como a descrita
no início do texto sejam ditas por aqueles que foram excluídos socialmente e por um
conceito apresentado como prática educativa e de amparo social.
A vida escolar é prescrita como um dos pilares de atenção especial nos
objetivos das medidas socioeducativas devido aos consequentes proveitosos que a
educação traz à vida do adolescente, como mobilidade, inclusão social, aprendizagem
e estabelecimento de relações sociais positivas (Piazzarollo, Fernandes & Rosa,
2018). Segundo o artigo 101 do ECA, são descritas seis medidas socioeducativas
(advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade,
liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade, internação em

811
estabelecimento educacional). Este trabalho foi desenvolvido com adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa no contexto de uma Casa de Semiliberdade.
Entretanto, por mais que a educação seja foco atencional, estudos envolvendo
adolescentes em cumprimento de medida de liberdade assistida apresentaram altos
níveis de evasão escolar em sua amostra de pesquisa (Paula, Carvalho, Croque, &
Souza, 2017), além de autores que discorrem sobre a baixa escolaridade, expulsões
e outros comportamentos disruptivos como característicos dessa população (Gallo &
Williams, 2008). Contudo, o resultado presente na amostra dos autores transcende o
contexto da população dos adolescentes em conflito com a lei visto que a taxa de
evasão escolar no Brasil chega a 12,9% e 12,7% dentre os alunos que cursavam o
Ensino Médio nos anos de 2014 e 2015 (Brasil, 2017).
Freire (2005), em seu livro Pedagogia do Oprimido, apresenta que a educação
pode promover a emancipação e trabalhar na perspectiva de dar voz ao sujeito,
possibilitando que ele pense e repense sua história, atuando sobre ela como
protagonista. Deste modo, a escola tem uma importante função social, à medida que
pode ser um ambiente privilegiado de inserção e proteção para adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa, tornando-os protagonistas da sua própria
história. O produto da ideia de uma educação emancipatória é o pensamento crítico,
sendo ele o centro de qualquer atividade educacional, e definido por Lipman (1988)
como o pensamento responsável por facilitar o bom julgamento orientado por critérios,
autocorreção e sensibilidade ao contexto. Assim, é possível afirmar que o uso das
habilidades de pensamento crítico pode propiciar aos adolescentes estratégias de
defesa contra a manipulação, desinformação e estagnação (Guzzo & Guzzo, 2015).
Tendo em vista que a violência social assola os direitos educacionais dos
jovens e que a evasão escolar é uma problemática no Brasil, atingindo, também, os
adolescentes que estão em cumprimento de medidas socioeducativas e cujos direitos
primários foram negados durante uma vida exposta a fatores de riscos, parece
coerente que os próprios oprimidos dessa realidade criem as estratégias para sua
emancipação e garantia de direitos. Deste modo, é possível que uma das maneiras
de enfrentar os problemas citados, seja dedicar atenção a eles nos próprios sistemas
de ensino - como as medidas socioeducativas - utilizando a educação como
ferramenta para o desenvolvimento de pensamento crítico com adolescentes que
conhecem a violência social, os tornando protagonistas da luta por seus direitos e da
transformação de suas próprias realidades.

812
Objetivos
O objetivo das oficinas foi possibilitar o desenvolvimento de pensamento crítico
de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Semiliberdade a partir
da análise de determinantes da evasão escolar.

Público atendido
O público-alvo foi adolescentes do gênero masculino que cumprem medida
socioeducativa em uma Casa de Semiliberdade, no Paraná. Os encontros foram
coordenados por três graduandos do curso de Psicologia, participantes do projeto de
extensão Projeto Guiar – grupo de estudos e de intervenção com adolescentes em
conflito com a lei.

Relato da experiência
Foram realizados cinco encontros com treze adolescentes, com duração de
1h30, embora nem todos os adolescentes participaram de todos os encontros41.

4 Não é possível garantir o mesmo grupo de adolescentes para todos os dias de atividade por conta das atividades que estes possuem na Casa
de Semiliberdade, como cursos, exames médicos, entre outros. Além disso, existe uma grande taxa de evasão da medida socioeducativa, o que
faz com que o adolescente não possa mais participar das atividades dentro do Centro de Socioeducação ou Casa de Semiliberdade.

813
Tabela 1. Objetivos e Atividades Referentes a Cada Sessão.

Nº Objetivos Atividades

1 Caracterizar aspectos relevantes Exibição do filme “Escritores da Liberdade".


relacionados à educação no filme
“Escritores da Liberdade”

2 Desenvolver pensamento crítico. Caracterização de cenas e assuntos que abordem a


temática educação no filme “Escritores da
Liberdade”.
Realização do jogo “Concordo ou discordo” referente
à afirmativas sobre a educação.

3 Caracterizar a situação social da Realização do jogo de tabuleiro com o tema


educação no Brasil e desenvolver educação, com as subcategorias: Mitos ou
pensamento crítico. Verdades; Brasil ou Estados Unidos e Curiosidades.

4 Elaborar projetos autorais e Elaboração de um material, como panfleto/cartilha,


desenvolver pensamento crítico. contendo um projeto que visa criar estratégias para
diminuir a evasão escolar.

5 Identificar determinantes da evasão Baseado nas discussões e dados trazidos nos


escolar. encontros anteriores, realizar a elaboração de um
cartaz que exponha os fatores que determinam a
evasão escolar.

Descrição e análise das atividades desenvolvidas


A proposta inicial do trabalho emergiu a partir da caracterização da
necessidade de abordar a temática de educação com os adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade, visto que nos contatos com
os adolescentes durante os grupos semanais do Projeto Guiar a demanda relativa a
evasão escolar era significativa. Durante o plano de intervenção, foi estabelecido que
seriam elaborados, ao longo dos encontros, materiais criativos tocante a estratégias
que buscassem diminuir a evasão escolar e caracterização das variáveis envolvidas.
Os recursos didáticos adotados em cada sessão foram selecionados segundo o
critério da adequação ao conteúdo a ser trabalhado naquele dia, foram utilizadas a
exposição dialogada, dinâmicas grupais e filmes comentados.
Após a caracterização inicial da necessidade de se abordar a temática dentro
dos grupos semanais, foi exibido o filme “Escritores da Liberdade”, de 2007, para
introduzir o assunto. Dirigido por Richard LaGravanese, o filme aborda a história de
uma professora recém-formada que começa a atuar em uma escola pública dos
Estados Unidos, sendo encaminhada para lecionar em uma chamada “turma
problema”. No decorrer da obra e das intervenções realizadas pela professora, os
alunos se engajam, expressam suas perspectivas, reconhecem suas próprias

814
histórias e a dos demais colegas de turma, refletindo de forma crítica sobre seus ideais
e da sociedade ao seu redor. Assim, a história exposta aos adolescentes mostra que
o processo educacional engloba uma complexidade de fatores relacionados à
adequação de realidades culturais, ao mesmo tempo que gera conhecimentos
perceptíveis por uma aproximação de interesses, por seus ideais e fortalecimento de
ideologias e identidade (Schwartzman, 2006), além de uma reflexão acerca do papel
do professor e das instituições de ensino.
Concomitante a exibição do filme, os coordenadores avaliaram a importância
de debater o sistema educacional com os adolescentes, com o objetivo de
desenvolver pensamento crítico sobre a situação social da educação no Brasil e seus
direitos como estudantes, descobrindo-se diante do mundo enquanto indivíduos que
sofrem com o sistema, mas sobretudo, que lutam (Freire, 2005). Assim, na sessão
seguinte, foi solicitado que os adolescentes caracterizassem cenas e pontos
importantes do filme conectados com o processo educacional. Os adolescentes
apresentaram traços de identificação com os personagens da trama na medida em
que relataram que a escola retratada na obra era similar a que alguns estudavam, no
sentido de exclusão de alguns alunos. Os pontos trazidos pelos adolescentes em uma
roda de conversa abrangeram desde tópicos relacionados ao preconceito dos
americanos com os latinos, a diferença entre o Brasil e Estados Unidos no tangente
ao sistema educacional e de saúde pública, até relatos pessoais sobre situações
vividas dentro de suas realidades acadêmicas. E., de 15 anos, retratou que já havia
sido chamado de “vagabundo” por uma professora por estar usando chinelos e roupas
sem marca. Como conclusão, os adolescentes expressaram que se a atitude de
alguns professores diante dos alunos e das diferentes realidades dentro das salas de
aula fossem diferentes, talvez mais pessoas tivessem interesse pela escola. A crítica
presente no discurso dos adolescentes nos faz pensar na necessidade de uma
pedagogia que faça da opressão e de suas causas, objetos de reflexão dos oprimidos,
resultando em um provável engajamento necessário para que a luta pela libertação
seja efetiva (Freire, 2005).
Além da roda de conversa, durante a segunda sessão foi elaborado um jogo de
“Concordo ou Discordo”, que consistiu no posicionamento crítico dos adolescentes
diante de afirmativas sobre educação. Foram apresentadas frases referentes a
sabedoria popular, Filosofia, entre outros temas que possuem relação com educação,
como a frase atribuída a Sócrates “aquele que a palavra não educar, o pau também

815
não educará”, todos os adolescentes concordaram com a afirmativa. Um dos
adolescentes expressou que “se fosse aprender por apanhar eu nem tava aqui do
tanto que já apanhei na vida”. Para Sidman (1995) as crianças e adolescentes que
são educadas com o uso da punição, tendem a agir da mesma forma com outras
pessoas, posteriormente. Normalmente, crianças que têm seus comportamentos
frequentemente punidos tornam-se mais agressivas, mostrando que esse modelo
“educacional” é falho e gera subprodutos psicológicos e comportamentais danosos
(Sidman, 1995).
Na sessão subsequente, o recurso utilizado para desenvolvimento do
pensamento crítico foi um jogo de tabuleiro, feito pelos estagiários, relativo à várias
facetas da educação, com as subcategorias: Mitos ou Verdades; Brasil ou Estados
Unidos e Curiosidades. A primeira subcategoria se referia a dados relacionados ao
sistema educacional brasileiro em que os adolescentes deveriam se posicionar
afirmando se a informação era um mito ou uma verdade. A segunda subcategoria
surgiu a partir do interesse aparente dos adolescentes pelas diferenças entre o Brasil
e o Estados Unidos durante o segundo encontro, assim, a partir de uma afirmativa
referente ao processo educacional, os adolescentes deveriam adivinhar a qual dos
países a alegação se referia. Por fim, a última subcategoria expunha casos reais e
curiosidades alusivas a realidade educacional brasileira.
Martinez (1995) caracteriza a criatividade como um processo de
descobrimento ou produção de algo novo, valioso, original e adequado, com a
finalidade de cumprir com as exigências de determinada situação social, na qual se
expressa o vínculo dos aspectos cognitivos e afetivos da personalidade”. Na prática
educacional, o estímulo à articulação do pensar criativo com o pensar crítico,
possibilita uma nova forma de enfrentar os desafios do conhecimento, questionando-
os (Morin, 1999). Portanto, o objetivo do penúltimo encontro consistiu em desenvolver
o pensar crítico por meio da criatividade a partir da elaboração artística de um projeto
que visou criar estratégias para a diminuição da evasão escolar. Assim, os
adolescentes se dividiram em duplas com os estagiários e refletiram sobre os tópicos
de caracterização da realidade da educação no Brasil discutidos nas sessões
anteriores e elaboraram três projetos no formato de cartilhas. Os projetos criados por
eles foram nomeados de “Projeto construindo futuro”, “Mais atividades, menos drogas”
e “Esporte, escola e lazer” os quais carregavam estratégias que visavam a adesão
dos alunos à escola com atividades no contraturno, como oficinas (teatro, dança,

816
culinária, robótica, poesia), esportes e reparos na infraestrutura dos colégios e
readaptação do salário dos professores.
Considerando que o pensamento crítico é apresentado como estímulo para
uma adequada resolução dos problemas que surgem cotidianamente em diversas
circunstâncias (Saiz & Rivas, 20l0), a análise do contexto e da origem das
problemáticas sociais são competências necessárias. Desse modo, foi identificado a
necessidade de um aprofundamento nas representações sociais que os adolescentes
têm da evasão escolar. Assim, antes dos projetos que visam o combate da questão
principal continuarem a serem elaborados, o objetivo do último encontro relatado
neste artigo, foi a caracterização das causas da evasão escolar por meio de alguns
dados levados pelos coordenadores e da construção de um cartaz que ilustrasse a
temática. A crítica presente no cartaz dos adolescentes trouxe questões como a
estrutura escolar, trabalho infantil, racismo, falta de merenda, falta de condições, falta
de apoio, bullying, drogas, depressão e gravidez como possíveis causas da evasão
escolar.

Considerações finais
Considerando os determinantes identificados pelos adolescentes, suas
análises críticas e o produto das atividades realizadas, parece que o que foi proposto
corroborou com a crença na mudança, na educação e no pensar crítico como caminho
que direciona a uma ação libertadora de injustiças históricas, econômicas, políticas e
sociais, como foi proposto por Paulo Freire. O presente artigo buscou relatar, de forma
objetiva, parte de um projeto de intervenção que visou possibilitar o pensar crítico
sobre a violência social, a garantia de direitos e a criação de estratégias de mudança
da realidade com adolescentes em conflito com a lei. Na realização do projeto que
visava a diminuição da evasão escolar, no penúltimo encontro, E. enfatizou a
importância de se lutar por uma educação digna, colocando a frase: “sem educação,
o povo não tem voz”. Ao caracterizar os determinantes da evasão escolar e elaborar
projetos que visam sua diminuição, os adolescentes levantaram vários tópicos
demonstrando que são capazes de identificar que a problemática é um fenômeno
complexo, por causas geralmente sociais e não individuais. Assim, pode se concluir
que os adolescentes podem ser sujeitos da própria história e cultura, de forma ativa e
transformadora diante dos fenômenos que dizem respeito a suas realidades.

817
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819
76- IMAGEM CORPORAL DE IDOSOS LONGEVOS

Bianca Rodrigues Cordeiro de Souza


Professora Doutora Eliane Florêncio Gama

Resumo: A longevidade tem sido um fenômeno mundial e está sendo estudado em


face do seu impacto no âmbito dos profissionais que se especializam no atendimento
a essa população. A percepção da imagem corporal se modifica ao longo da vida. O
objetivo do estudo foi analisar a Imagem Corporal de idosos com idade ≥ a 80 anos.
Participaram do estudo 92 idosos, com idade média de 82,8 anos (±2,9), sendo 66 do
sexo feminino e 26 do sexo masculino. Os idosos responderam a um questionário
sociodemográfico e para a avaliar a imagem corporal foi utilizada uma Escala de
Silhuetas. Os resultados mostraram que 83,7% dos idosos apresentam distorção da
percepção da dimensão corporal, sendo mais frequente a superestimação do tamanho
corporal; e 54,4% dos idosos apresentaram insatisfação corporal, especialmente por
excesso de peso. Com isso, concluiu-se que homens e mulheres longevos podem
apresentar alterações da imagem corporal.

Palavras-chave: idosos longevos; satisfação corporal; dimensão corporal.

1. INTROCUÇÃO

Dados no Brasil e no mundo mostram um aumento no número de idosos, visto


que a fecundidade tem diminuído e a expectativa de vida, aumentado (Camarano,
2002; Rolim, 2005; Papalia & Feldman, 2013; Secretaria de Previdência, 2017). Esse
fenômeno é descrito na literatura internacional como “revolução da longevidade”, onde
se observa que cada vez mais pessoas se tornam octogenários ou mais. Projeta-se
que em 2050 em torno de 2,3 milhões de pessoas se tornarão centenárias (Kalache
et al. 2002). Dados do IBGE (2016, citado pelo Governo do Brasil, 2017) mostram que
o número de idosos, a partir de 60 anos, aumentou em 10 anos, indo de 9,8%, em
2005, para 14,3%, em 2015. Por outro lado, houve uma diminuição no número de

820
crianças e jovens, sugerindo uma tendência ao envelhecimento demográfico (Governo
do Brasil, 2017).
O envelhecimento é um processo que ocorre de maneira natural, onde,
gradualmente, espera-se mudanças físicas, cognitivas, orgânicas e sistêmicas. Tais
mudanças variam para cada pessoa, uma vez que a qualidade de vida pode influenciar
nesse processo (Papalia & Feldman, 2013) e, com isso, é possível que o indivíduo
sinta angústia ao vivenciar essa fase. Dessa maneira, verifica-se que todas essas
mudanças corporais, especialmente quando associadas às pressões sociais que
definem o padrão de beleza, podem influenciar em como a pessoa se relaciona com
sua imagem corporal. A imagem corporal é uma construção multidimensional que se
relacionada à percepção e a atitude quanto à forma e aparência corporal, tais como
pensamentos, sentimentos, crenças e comportamentos (Cash, 2004). A literatura não
é unânime quanto a denominação dos termos que definem os aspectos que compõem
a Imagem Corporal, portanto, nesse estudo, denominaremos de Percepção da
Dimensão Corporal ao aspecto perceptivo, e Satisfação Corporal ao aspecto
atitudinal.
A relação com a imagem corporal é tão significativa que pensamentos e
sentimentos negativos quanto à própria aparência podem desencadear uma série de
comportamentos disfuncionais, tais como distúrbios alimentares (anorexia, bulimia,
obesidade), insatisfação geral, depressão, mal humor e baixa autoestima. Por outro
lado, a satisfação corporal tem sido relacionada à comportamentos saudáveis, como
estar engajado com atividades físicas e alimentação adequada (Gardner, 2011;
Swami, Tran, Stieger & Voracek, 2015).
É possível que, pelos fatores socioculturais, haja uma diferença significativa
sobre como homens e mulheres vivenciam o processo de envelhecer, sendo que para
as mulheres parece ser mais doloroso e vergonhoso, uma vez que se cria uma
expectativa elas, mais que os homens, tenham uma beleza ao mesmo tempo juvenil
e adulta (Krekula, 2016; Watt, Konnert & Speirs, 2017).

2. OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA

O fenômeno da longevidade impacta diretamente nas políticas públicas e, em


particular, nas propostas de atendimento dos profissionais da Geriatria e Gerontologia.

821
Portanto o estudo se justifica por sua importância social e acadêmica, visto a
importância de se entender o envelhecimento de idosos longevos. Por isso, o objetivo
do estudo é analisar a Imagem Corporal dos idosos com idade igual ou superior a 80
anos e, como objetivos específicos, têm-se: identificar a percepção da dimensão
corporal e analisar a satisfação com o próprio corpo.

3. MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal, correlacional e de caráter descritivo. Para


sua realização, homens e mulheres idosos longevos, com idade igual ou superior a
80 anos, foram selecionados, sendo o único critério de exclusão: dificuldade física
e/ou cognitiva que dificultasse a compreensão das instruções. Todos os participantes
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Estes, foram
recrutados no Laboratório de Estudos do Movimento do Hospital das Clínicas (HC),
na “Casa do Idoso”, da Prefeitura Municipal de São José dos Campos, no evento 80+
e na clínica da Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo. Ressalta-se que a
pesquisa passou por avaliação e aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa -
CAAE: 49987615.3.0000.5404 oriundo do Processo Nº. 88881.068.447/2014-01
CAPES/PROCAD.
A imagem corporal foi avaliada pela aplicação do Escala de Silhuetas, versão
para adultos, que é composta por 15 cartões com diferentes formas corporais, em que
se considera altura, peso e IMC (Kakeshita, 2008). Estes cartões foram apresentados
de maneira aleatória, a fim de garantir que a sequência não influenciasse a escolha
do participante (Gardner, Jappe e Gardner, 2008). Solicitou-se que o participante
identificasse "qual a figura que melhor representa seu corpo hoje" (silhueta percebida
- SP) e, após, "qual a figura que melhor representa o corpo que você gostaria de ter"
(silhueta idealizada - SI). Na sequência, verificou-se a silhueta real, de acordo com o
IMC (cálculo que considera peso e altura). Por fim, analisou-se: Percepção da
Dimensão Corporal, sendo: adequada (SR=SP) - subestimada (SR>SP) -
superestimada (SR<SP); Satisfação Corporal, sendo: satisfeito (SP=SI) - insatisfação
por magreza (SP<SI) -insatisfação por excesso de peso (SP>SI).

822
Para a análise entre a Silhueta Real, Silhueta Percebida e Silhueta Idealizada foi
feita análise de variância (ANOVA) com um fator, seguida do teste de Bonferroni. Para
todos os resultados o nível de significância aceito foi de 5%.

4. RESULTADOS

Participaram do estudo 92 idosos com idade média de 82,8 anos (±2,9), sendo
71,7% (N=66) do sexo feminino e 28,3% (N=26) do sexo masculino. O Gráfico 1
apresenta a distribuição de frequência dos participantes quanto à classificação da
percepção da dimensão corporal, onde se verifica que apenas 16,3% dos idosos
apresentam uma percepção adequada do próprio tamanho corporal. Por outro lado,
os resultados apontam que 83,7% dos participantes possuem uma percepção
inadequada, sendo que 56,5% superestimam e 27,2% subestimam. Observou-se
diferença estatisticamente significante entre a SP e a SR (Tabela 3).

Tabela 3
Média, Desvio Padrão das silhuetas SR, SP e SI. Idosos longevos (n=92).
Silhueta Avaliada Média Desvio Padrão

SR 6,73* 1,77
SP 7,84 3,34
SI 6,91** 2,37
Fonte: produzido com base nos resultados desta pesquisa
*diferença em relação à SP p = 0,0004
**diferença em relação à SP p=0,0025
(F= 1159,467, p=,000)

Gráfico 1 – Distribuição de frequência dos idosos longevos (n=92) quanto à


classificação da percepção da dimensão corporal.

823
Fonte: produzido com base nos resultados desta pesquisa

No Gráfico 2 observa-se que a maioria da população, tanto homens como


mulheres, apresentam percepção inadequada de sua dimensão corporal, e consta que
homens se subestimam e mulheres se superestimam. Na análise estatística,
separando as mulheres dos homens, o resultado foi muito significante para mulheres
(p=0,0001) e não significante para homens (p=0,8), o que demonstra que as mulheres
influenciaram o resultado do grupo como um todo.

Gráfico 2 – Distribuição por sexo dos idosos longevos quanto a


classificação da percepção corporal.

Fonte: produzido com base nos resultados desta pesquisa

Quanto aos resultados da Satisfação Corporal de todo o grupo, os dados de


distribuição de frequência (Gráfico 3) mostram que mais da metade (54,4%) dos
idosos apresentam insatisfação corporal (SP<SI; SP>SI), a maioria (40,2%) por
excesso de peso. A análise estatística (Tabela 3) demonstra diferença significativa
entre a SP e a SI, sendo a SI menor que a SP, ou seja, a população estudada
apresenta insatisfação corporal por excesso de peso.

824
Gráfico 3 – Distribuição de frequência dos idosos longevos quanto à
classificação da (in)satisfação corporal.

Fonte: produzido com base nos resultados desta pesquisa

Ao verificar os resultados quanto à Satisfação Corporal, separando os homens


das mulheres (Gráfico 4), observa-se a maioria dos idosos, de ambos os grupos,
apresentam insatisfação corporal por excesso de peso. Ao se analisar os dados
estatísticos, o resultado é muito significativo para mulheres (p=0,0026), mas não é
significativo para homens (p=0,29), ou seja, o resultado geral do grupo que apresentou
insatisfação corporal foi influenciado pelas mulheres.

Gráfico 4 – Distribuição de frequência por sexo dos idosos longevos quanto


a classificação da (in)satisfação corporal.

Fonte: produzido com base nos resultados desta pesquisa

5. DISCUSSÃO

Ao se analisar a imagem corporal, os resultados deste estudo demonstraram que


houve predomínio da percepção inadequada quanto à dimensão corporal, onde as

825
mulheres tendem a se superestimaram e os homens, se subestimaram. Quanto ao
fator da satisfação com o corpo, observou-se que os participantes apresentaram
insatisfação corporal, especialmente por excesso de peso, para ambos os sexos.
A literatura nos mostra que, conforme vamos envelhecendo, há uma tendência
à mudança em como percebemos nosso corpo. É o que demonstrou o estudo com
mulheres de diferentes idades, realizado por Williamson, White, Newton Jr., Alfonso e
Stewart (2005) em que as idosas com mais de 75 anos não apresentaram diferença
significativa entre o corpo ideal, atual e possível (no inglês resoanable, um corpo
possível de se manter por um longo período), independente do IMC. Já no estudo de
revisão sistemática de Roy e Payette (2012), identificou-se que os idosos não
conseguiam perceber corretamente seu corpo, o que corrobora com os achados de
nossa pesquisa – houve um maior número de participantes com percepção corporal
inadequada.
Ainda relacionado à percepção da dimensão corporal, a diferença nos resultados
para homens e mulheres podem estar relacionadas aos padrões socioculturais de
gênero (Umstattd, Wilcox & Dowda, 2011; Jankowski et al., 2016). As mudanças
corporais que a mulher vivencia ao longo da vida, como: envelhecimento, gravidez,
dieta, alterações hormonais, atividade física e a própria mudança corporal relacionada
ao envelhecimento, podem gerar discrepância entre o tamanho corporal e os padrões
idealizados pela sociedade (Swami et al., 2010). Em contrapartida, o estudo de
Mangweth-Matzek, Kummer e Pope (2016) demonstrou que 39% dos homens entre
40 e 75 anos se percebiam magros ou muito magros.
Quando analisamos os resultados para a satisfação com a imagem corporal,
verifica-se que diferentes estudos apontam para uma tendência à insatisfação por
excesso de peso, especialmente nas mulheres (Liechty & Yarnal, 2010; Umstattd et
al., 2011; Roy & Payette, 2012; Jankowski et al., 2016), o que também foi encontrado
nos resultados de nosso estudo. É o que se verifica na pesquisa de Jankowski et al.
(2016), com idosos entre 65 e 92 anos, homens e mulheres, em que as mulheres
possuem maior preocupação com a aparência, além de relatarem insatisfação com
seu peso, desejando serem mais magras.
A literatura nos mostra que, quando se estuda a satisfação corporal em idosos,
há relação com a funcionalidade corporal e não apenas com a aparência, ou seja, um
corpo funcional e saudável é mais importante do que a aparência (Liechty & Yarnal,
2010; Roy & Payette, 2012; Toni, 2012; Jankowski et al., 2016). Jankowski et al. (2016)

826
identificou, em seu estudo com idosos, que a imagem corporal era um importante fator
para o bem-estar e a aparência foi vista como importante, contudo, era uma maneira
de comunicar sua identidade, capacidade e status social. Os idosos citaram como
aspectos importantes "dentes e pele limpas" e "vestir-se formalmente", por exemplo.
Semelhantemente, Toni (2012) identificou a importância da aparência para as idosas,
sendo que estava mais intimamente ligada ao estilo e à vestimenta.
Neste sentido, a importância da saúde física e mental parecem influenciar a
satisfação com o corpo (Umstattd et al., 2011; Roy & Payette, 2012; Lourenço et al.,
2012). Verificou-se ainda que, especialmente as mulheres a partir de 85 anos, podem
ter um declínio de suas funcionalidades por diversos fatores sociodemográficos,
como: viver só, viuvez, baixa escolaridade ou analfabetismo e baixa renda, além
daqueles mais relacionados com a idade avançada, como: doenças crônicas, efeitos
colaterais de medicações (especialmente antidepressivos), sedentarismo e
diminuição das atividades cotidianas, conforme os achados de Lourenço et al. (2012).
Estes aspectos podem influenciar em como o idoso cuida de si ou tem acesso a
condições favoráveis que garantam qualidade de vida, como medicação, cuidado
médico e contato social. (Lourenço et al., 2012).
Identifica-se como limitações do estudo a diferença do número de idosos homens
(n = 26) e mulheres (n = 66), entretanto, essa discrepância é observada em grande
parte dos estudos. Apesar disso, considera-se que esta é uma iniciativa valiosa para
o entendimento sobre estas questões para essa faixa etária.

6. CONCLUSÕES

Conclui-se que homens e mulheres longevos, podem apresentar insatisfação


corporal, especialmente por excesso de peso. Bem como uma percepção inadequada
da dimensão corporal, em que homens tendem a subestimar e as mulheres tendem a
se superestimar.
Verifica-se que o estudo da população idosa, especialmente daqueles a partir de
80 anos, é pouco explorado. Portanto, salienta-se a importância dos dados
encontrados nesta pesquisa que contribui significativamente no embasamento de
programas de intervenção com foco na melhoria dos aspectos relacionados à imagem
corporal. Acreditamos na importância de se estudar os diferentes fatores que podem
contribuir no embasamento dos profissionais que lidam com a população idosa.

827
7. REFERÊNCIAS

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830
77- IMPLICAÇÕES DA ANÁLISE FUNCIONAL EM PROBLEMAS DE
COMPORTAMENTO DE INDIVÍDUOS COM TEA

Dayane Beserra Santos


Igor Cezar Baptista de Lima
Izabella Pontes dos Santos
Jennifer Domingues Cortijo
Marcela Pereira Magalhães
Vanessa Ludimila Santos de Souza
José Maria Montiel
Universidade São Judas Tadeu - Curso de Psicologia

Resumo: Os objetivos deste estudo são descrever os dois principais


comportamentos-problemas presentes do repertório de uma pessoa com TEA - auto
lesivos e agressões -, discorrer sobre algumas implicações que envolvem a análise
funcional e apresentar algumas intervenções, sustentadas pela literatura, baseadas
neste procedimento, podendo auxiliar no processo terapêutico ao incrementar
recursos, técnicas e ferramentas úteis aos profissionais da educação e saúde. A guisa
de considerações pode-se observar que mesmo havendo um número variado de
procedimentos, no presente estudo serão mencionados os que se destacam por sua
eficácia através das práticas baseadas em evidências, tais como Reforçamento Não
Contingente, Treino de Comunicação Funcional, Comunicação Alternativa e Avaliação
de Preferências. Ainda cabe ressaltar a escassez de estudos desenvolvidos
nacionalmente e técnicas revisadas para a população brasileira, uma vez que
aspectos culturais e sociais podem interferir nos resultados.

Palavras-chave: Análise funcional; Autismo; Comportamento-Problema.

INTRODUÇÃO
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do
neurodesenvolvimento (APA, 2013) que abrange uma série de características para
seu diagnóstico, as mais relevantes referem-se a dificuldade na comunicação e no
desenvolvimento de relações sociais, padrão de comportamentos repetitivos e
interesses restritos. Tais particularidades trazem prejuízo à vida dos indivíduos e

831
limitam suas atividades diárias. Como investiga Rutter (2005), a etiologia da patologia,
pode depender de causas múltiplas, como disfunções neurobiológicas, pré-
disposições genéticas, fatores ambientais, déficits psicológicos e cognitivos, entre
outros. Os sintomas estão presentes desde o início do desenvolvimento, porém, em
alguns casos podem não se manifestar com clareza pois estão mascarados por
mecanismos de adaptação do próprio indivíduo ou devido a intervenções sofridas em
comportamentos emergentes. Em decorrência disso e visando a variação de
características do transtorno, leva-se em consideração sua magnitude quando
adotado o termo espectro.
Em relação à magnitude, há três níveis de classificação de gravidade que
podem variar de acordo com o contexto ou oscilar com o tempo, estes critérios são
avaliados a partir dos padrões de comunicação social e de comportamento restritivo
e repetitivo, podendo ser classificados, respectivamente, do nível menos
comprometido ao mais elevado em: exigindo apoio; exigindo apoio substancial e
exigindo apoio muito substancial. Além disso, antigamente o transtorno era
classificado em outras várias patologias, das quais foram todas agrupadas e estão
englobadas sob a denominação de espectro autista, sendo elas: autismo infantil
precoce, autismo infantil, autismo de Kanner, autismo de alto funcionamento, autismo
atípico, transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação, transtorno
desintegrativo da infância e transtorno de Asperger. (APA, 2013)
Cabe ressaltar que é comum a apresentação do transtorno associado a
comorbidades, como Transtorno de Oposição Desafiante (TOD), Transtorno
Estrutural da Linguagem, Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH),
Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação, transtornos de ansiedade,
transtornos depressivos, transtornos de comprometimento intelectual, entre outros
(APA, 2013). Ainda, o diagnóstico do transtorno se dá a partir de critérios clínicos.
Médicos psiquiatras e neuropsiquiatras se baseiam em relatos dos responsáveis
sobre a observação dos comportamentos do indivíduo, além das avaliações de outros
profissionais da saúde como psicólogos e psicopedagogos. (Pereira, Barbosa, Silva
& Orlando, 2015).
A análise do comportamento é uma ciência que circunda por três campos de
produção de conhecimento: a investigação experimental, produção reflexiva e
intervenções aplicadas aos problemas humanos. A análise do comportamento
aplicada (conhecida comumente pela sigla em inglês ABA - Applied Behavior Analysis)

832
ocupa um lugar intermediário entre a investigação básica e as intervenções
destinadas à solução de problemas humanos. (Tourinho & Sério, 2010). Atualmente,
a análise do comportamento aplicada tem se tornado influente devido a eficácia dos
procedimentos provindas do campo, sendo reconhecida especialmente na esfera de
prestação de serviço e no desenvolvimento de tecnologias e pesquisas direcionadas
para pessoas diagnosticadas com TEA (Oda, 2018).

1. Definição de problema de comportamento


Bolsoni-Silva & Del Prette (2003), realizaram um panorama acerca das diversas
definições do termo problema de comportamento e identificaram posturas distintas
diante delas. Alguns profissionais o definem a partir de uma perspectiva topográfica e
biológica, vendo-o como sintoma e outros de acordo com sua função dentro de um
contexto, identificando-o como um excedente ou como um déficit. Bueno e Britto
(2013), enfatizam também que o problema de comportamento não deve ser visto
como um sintoma que caracteriza alguma patologia, mas como uma resposta do
organismo que está em função das condições ambientais. Além disso, Bolsoni-Silva
e Del Prette (2003) destacam ainda a falta de consenso e clareza na utilização do
termo, não estabelecendo limites explícitos para os tipos de problemas de
comportamento.
Contudo, tal definição não abrange outros tipos de comportamentos
comumente presentes em indivíduos com TEA, tais como autolesão, seletividade
alimentar, distúrbios do sono, entre outros. Além disso, um estudo de Schmidt,
Dell’Aglio e Bosa (2007), mostrou que os pais destacam os problemas de
comportamento (ex.: agressividade, comportamentos disruptivos) como uma das
principais dificuldades de pessoas com TEA, seguido por problemas com a realização
de atividades de vida diária (ex.: autocuidados). Com base nisso, os comportamentos
problema a serem abordados neste trabalho serão comportamentos autolesivos e
agressão, devido a maior incidência e gravidade relatada pelos pais conforme
mencionado acima e a necessidade de um enfoque metodológico.

1.1 Comportamento Autolesivo


Conforme destacam Garcia e Oliveira (2016), comportamentos autolesivos
(SIB, do inglês self-injurious behavior) caracterizam-se como respostas que geram
danos físicos ao próprio corpo e impedem o desenvolvimento da pessoa, trazem

833
riscos à saúde física e impossibilitam uma boa qualidade de vida. Ainda conforme os
autores, a forma como esse comportamento se manifesta varia entre ingerir objetos
não comestíveis, bater no próprio corpo, bater a cabeça em objetos, morder a si
próprio, machucar-se com as unhas e abocanhar a mão.
A partir de uma revisão literária, Ceppi e Benvenuti (2011), analisaram
procedimentos de análise funcional do SIB em que foi possível observar como uma
modificação na forma de responder relaciona-se funcionalmente com mudanças no
ambiente. Esse método permite identificar as relações de dependência entre as ações
e as mudanças ambientais, o que geralmente é feito através da noção de
contingência. SIB pode ser mantido por reforço positivo, reforço negativo e reforço
automático, dessa forma, ao identificar qual a consequência reforçadora deste
comportamento se favorece a escolha do melhor tratamento para uma intervenção e
promove-se qualidade de vida.

1.2 Comportamento agressivo


Outro comportamento-problema que ocorre frequentemente e faz parte do
repertório de alguns indivíduos dentro do espectro são os comportamentos
heteroagressivos, segundo a Cartilha Autismo e Realidade (2013), disponibilizada
pelo Ministério Público de São Paulo, comportamentos heteroagressivos são aqueles
que visam atingir outras pessoas, tais como chutes, pontapés, beliscões, mordidas,
tapas e empurrões. Episódios que contam com este tipo de comportamento podem
oferecer risco iminente ao bem-estar de ambas as partes envolvidas, isto é, tanto para
o emissor, quanto para o alvo da ação. Cabe ressaltar que além de existirem diversas
topografias de resposta na classe de comportamentos, agressivos, tais
comportamentos também são emitidos em níveis de gravidade variadas, que podem
aumentar ainda mais os danos causados quando emitidos.

2. Análise funcional
Para que a análise funcional seja realizada, é necessário que ocorra
anteriormente uma coleta de informações acerca dos comportamentos aos quais
deseja-se identificar a função, para tal, como apontado nos estudos de Hanley (2012),
Iwata e Dozier (2008) e O’Neill, Horner, Albin, Sprague, Storey e Newton (1997), o
processo de avaliação funcional pode ser desenvolvido por meio de três estratégias

834
principais: métodos com informantes, observação direta e análise funcional
propriamente dita.
O método com informantes é uma coleta indireta das informações, podendo ser
feita por questionários, escalas e entrevistas. Já a observação direta trata-se de uma
estratégia descritiva em que ocorre a observação do ambiente natural de um indivíduo
em busca de informações sobre o comportamento-alvo, porém não há a manipulação
de variáveis. Por fim, há a análise funcional que, assim como a observação, está em
contato direto com o ambiente onde supostamente ocorre o comportamento e ainda
há manipulação de variáveis.
Bueno e Britto (2013), afirmam que a proposta da análise funcional é identificar
as variáveis que controlam e mantém o comportamento que se pretende modificar
para, então, levantar hipóteses sobre a função desse tipo de comportamento, que
podem variar desde uma forma de se comunicar, até maneiras de obter acesso a itens
de interesse e, por fim, selecionar um tratamento adequado a essa função. Logo, não
é a topografia do comportamento que define o tratamento a ser selecionado e aplicado
durante a intervenção, dependendo dos riscos que esses comportamentos implicam
ao indivíduo ou as pessoas à sua volta, estes podem receber um tratamento específico
e momentâneo para reduzir danos, mas a intervenção será sempre direcionada a sua
função.
Cabe ressaltar que Beavers, Iwata e Lerman (2013) realizaram uma revisão de
literatura a fim de explorar as publicações em análise funcional do comportamento no
período de 2001 a 2012. Os autores combinaram os resultados de seus próprios
achados, obtidos através de uma análise de mesma natureza desenvolvida por
Hanley, Iwata e McCord (2003) em que inclusive empregaram o mesmo método de
pesquisa e seleção de dados. Os autores concluíram que no período analisado houve
um aumento de publicações sobre o tema, em que a maioria das pesquisas envolveu
indivíduos que possuem alguma deficiência intelectual e, destes, o que se sobressai
são estudos com pessoas com autismo, dados que também se mostram superiores
aos encontrados por Henley et. al. (2003). Acentuam-se também dados superiores em
estudos com população sem deficiências intelectuais, que aumentou de 9% para
21,5%, quando comparado aos resultados obtidos em 2003. A partir disso, pode-se
supor que o crescimento de publicações tanto em análise funcional, quanto de estudos
que envolvem também o autismo, podem apontar para maior interesse no tema e
talvez na difusão da prática como estratégia de intervenção comportamental eficiente.

835
3. Algumas Implicações quanto à avaliação e possíveis intervenções

3.1 Condições de teste


O estudo de Iwata, Dorsey, Slifer, Bauman e Richman (1994) descreve um
arranjo de quatro condições antecedentes e consequentes que foram delineadas para
simular aquelas que poderiam evocar e manter comportamentos de autolesão
emitidos por nove crianças autistas. O reforçamento positivo era disponibilizado na
forma de atenção social contingente a autolesão. Para o reforçamento negativo, uma
tarefa com instruções difíceis era apresentada, sendo interrompida quando o
comportamento de autolesão ocorria, em uma condição de demanda. Na condição de
sozinho, o participante era deixado a sós na sala, sem acesso a brinquedos ou demais
materiais. Já na condição de controle, o participante era deixado sozinho em uma
sala, sem nenhuma instrução, mas eram lhe disponibilizados objetos preferidos ou
brincadeiras. O resultado das análises funcionais (experimentais) apontou que a
autolesão foi fortemente influenciada pelas consequências da atenção social
(condição de atenção) e da fuga de demanda (condição de demanda), se comparadas
às condições de controle e de sozinho.

3.2 Falsos negativos


Durante análises funcionais, os resultados podem constatar falsos negativos, ou
seja, os comportamentos alvos que se buscam identificar as funções não ocorrem
durante as condições de teste, mas ocorrem em contextos naturais. Com isso, Call,
Wacker, Ringdahl e Boelter (2005) defendem que condições de antecedentes
combinados durante análises funcionais podem ser semelhantes às operações
motivadoras do ambiente natural do indivíduo, assim evocando tais problemas de
comportamento. Logo, tais condições poderiam reduzir a ocorrência de falsos
negativos. Neste estudo, foram criadas condições de antecedentes combinados
utilizando demanda com restrição de itens tangíveis ou desvio de atenção, além do
acesso a fuga ou atenção contingente ao problema de comportamento. Apesar da
amostra não ser diagnosticada com TEA, os autores acreditam que resultados
semelhantes poderão ser encontrados em futuras pesquisas adaptadas a esta
população.

836
3.3 Variáveis Antecedentes Combinadas
Hanley, Jin, Vanselow e Hanratty (2014) descrevem uma análise funcional e o
tratamento subsequente que realizaram em três indivíduos diagnosticados com TEA
que emitem problemas de comportamentos severos, tais como agressão, disrupção e
autolesão. Para realizar a análise funcional, utilizam como instrumento uma entrevista
aberta com os pais e de uma breve observação das crianças, constituída por questões
referentes aos problemas de comportamento, o contexto em que ocorrem e a forma
como os pais reagem diante da ocorrência destes. Utilizam na intervenção um treino
de comunicação funcional, cumprimento de instruções e treino de tolerância de atraso
e negação de pedidos. Os resultados indicam que realizar uma avaliação em condição
de teste sem isolar os antecedentes (demandas, atividades não preferidas, atenção,
dentre outros) pode facilitar com que os problemas de comportamento sejam
evocados. Ademais, os mesmos autores enfatizam que o treino de tolerância diante
de situação de atraso ou negação de pedidos devem vir acompanhados de atividades
alternativas.

4. Intervenções

4.1 Reforçamento não contingente


De acordo com Sella e Ribeiro (2018) reforçamento não contingente (do inglês,
non-contingent reinforcement ou NCR) é umas das estratégias mais comuns na
literatura para o tratamento de comportamentos-problema fundamentado na função
do comportamento, é uma técnica que atua de modo que o reforçador do
comportamento problema é entregue com o passar do tempo, independente do que o
indivíduo esteja fazendo. Garcia e Oliveira (2016) realizaram um estudo em um
adolescente de 13 anos com TEA, atendido em uma instituição brasileira, com o
objetivo de verificar a efetividade do tratamento planejado com base em análise
funcional experimental, visando reduzir o (SIB), ao identificar a topografia específica
do SIB que consistia em desferir tapas de intensidades leve/moderada direcionados a
cabeça ou rosto, com qualquer uma das mãos, realizou-se uma análise funcional a
fim de detectar o que mantinha esse comportamento. Os dados obtidos evidenciaram
que o SIB do participante era socialmente mantido por reforçamento negativo (fuga
de demanda) diante disso, o pesquisador utilizou como método de intervenção o NCR
juntamente ao treino de mando (aprender a fazer pedidos). Este procedimento

837
consistiu no fornecimento de reforçador comestível e social em um esquema de tempo
variável (VT), que oscilou entre um e três minutos, nos momentos em que o
participante permanecia na cadeira do lazer. Os autores afirmam que o NCR
juntamente com um item preferido foi o suficiente para gerar comportamentos
colaborativos e diminuir a taxa de comportamento problema. O NCR tem evidenciado
a produção de menos comportamentos-problema, pois diferente da extinção, que em
sua fase inicial tem aumento da frequência inicial do comportamento, no NCR o sujeito
continua a receber o reforçador funcional.

4.2 Treino de Comunicação Funcional


Os trabalhos de Carr e Durand (1985) e Habarad (2015) pontuam que uma das
funções de um comportamento disruptivo está na dificuldade de comunicação dos
indivíduos com TEA. No estudo de Habarad (2015), que teve como objetivo ampliar e
otimizar o repertório de mandos de um menino de 12 anos para diminuição de
autolesivo, verificou-se a partir dos dados que em um pequeno espaço de tempo, com
o aumento do repertório dos pedidos, ocorreu simultaneamente a diminuição de tais
comportamentos, confirmando a hipótese inicial da autora. Carr e Durand (1985),
também se dedicaram a investigar a relação entre a emissão de comportamentos
disruptivos e o déficit comunicativo. Foi identificado que os comportamentos
ocorreram quando os adultos não direcionaram a atenção às crianças ou de acordo
com o nível de dificuldade da demanda exposta a estes, a partir disso foram ensinadas
a solicitar atenção e assistência nas tarefas. Os resultados foram consistentes com a
hipótese de que alguns problemas de comportamento podem ser vistos como meios
não verbais de comunicação, por terem funções equivalentes a uma comunicação
adequada.

4.3 Comunicação Alternativa


Por meio de comunicação alternativa é possível atuar em problemas de
comportamento antes mesmo que estes ocorram, já que depois de saber qual é a sua
função, o objetivo passa a ser ensinar o indivíduo a se retirar de situações estressoras
de maneira adequada como, por exemplo, pedir por término de atividades, pedir para
se retirar do local atual, pedir para que a pessoa com quem está interagindo pare o
que está fazendo, pedir por algum item desejado, entre outros.

838
Um dos meios de comunicação mais utilizados por indivíduos com déficits
comunicativos é o Picture Exchange Communication System (PECS) ele funciona por
meio da entrega de figuras ou fotos de itens organizados em uma sentença feita pelo
sujeito, esses pedidos são de interesses já pertencentes ao repertório da pessoa, ele
envolve não só a troca da fala por figuras como também ajuda a expressar
sentimentos e desejos Ferreira, Bevilacqua, Ishihara, Fiori, Armonia, Perissinoto e
Tamanaha (2017). Vale ressaltar, que o PECS não substitui a fala para indivíduos que
possuem habilidade de emitir sons e/ou algumas palavras, ele servirá como um
estímulo ao desenvolvimento da mesma uma vez que, ao entregar a sentença
montada, também serão exigidas nomeações aproximadas dos itens apresentados.

4.4 Avaliação de preferência


A diversidade de comportamentos é que impulsiona o clínico a buscar
instrumentos específicos para ajudar no diagnóstico diferencial e na identificação de
diferentes intervenções em situações em que os sujeitos com autismo podem
apresentar algum risco para si e para os demais. Diante disso, é muito utilizada a
avaliação de preferência que é uma técnica que pode servir como intervenção
antecedente ao comportamento-problema.
A avaliação de preferência de itens de interesse do indivíduo atua como uma
forma de estabelecer momentaneamente o valor reforçador de um item, que poderá
ser utilizado para aumentar a motivação em situações que costumam ser o contexto
em que ocorre um episódio comportamento-problema. Além disso, um dos motivos
para se realizar uma avaliação de preferência envolve utilizar tais reforçadores como
consequências para ampliar o repertório comportamental do indivíduo ou reduzir
comportamentos inadequados, promovendo o repertório de comportar-se de maneira
eficaz diante de oportunidades de escolha. Nesse cenário, pesquisadores norte-
americanos elaboraram métodos para avaliação de preferência de estímulos e cerca
de quatro tipos de avaliações foram desenvolvidos sendo estas: estímulo único,
estímulo pareado, estímulos múltiplos sem reposição e breve operante livre, em que
também são registrados o tempo de manipulação do objeto, posição em qual estava
sendo apresentado, número de vezes em que o sujeito escolheu o item e ordem
hierárquica de preferência. (Oda, 2018).

839
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora seja um tema em crescimento, muitas pessoas, inclusive profissionais,
desconhecem as dificuldades e facilidades que o Transtorno do Espectro Autista gera
na vida dos indivíduos acometidos por esta patologia. Alguns comportamentos
emitidos por pessoas próximas podem agravar os comportamentos-problema ou
dificultar um trabalho já existente para a redução destes.
A análise funcional se mostra eficaz em diversos contextos por não focar em
uma particularidade do transtorno, mas na função do comportamento emitido.
Identificar o que mantém o comportamento e de que forma ele é reforçado é
fundamental para selecionar a melhor forma de intervir em sua função, a partir disto,
é possível escolher uma técnica de acordo com o comportamento-problema a ser
modificado, sendo possível utilizar o Reforçamento Não-Contingente, Comunicação
Funcional, Comunicação Alternativa (PECs) e Avaliação de Preferência. Almeja-se
que as técnicas aqui apresentadas, atuem de forma a diminuir o efeito reforçador
contingente a comportamentos-problema, levando o emissor a buscar outras formas
de comunicar o que deseja.
Inclusive, verifica-se que as produções no campo da análise funcional vêm
expandindo-se ao longo dos anos, não somente para os trabalhos com TEA, mas
também para outros transtornos e déficits, o que pode indicar sua eficácia e o
interesse em aprimorá-la. Cabe ressaltar que houve dificuldade para encontrar
pesquisas desenvolvidas nacionalmente acerca do tema, bem como técnicas
validadas para a população brasileira, o que pode denotar que o conhecimento ainda
é restrito aos profissionais, podendo não alcançar todos os campos de atuação.
Finalmente, espera-se que pesquisa futuras, colaborem para a expansão de
informações acerca do tema, esclareça, desmistifique o campo e possibilite a escolha
e a realização de intervenções eficazes para esta população.

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conceituais e aplicadas, pp. 1-13. São Paulo: Roca.

843
78- MARCAS NO CORPO: A DOR DE UMA ADOLESCENTE VÍTIMA DE
VIOLÊNCIA SEXUAL

Amanda Ribeiro Alves Barbosa42


Hilda Rosa Capelão Avoglia43

Resumo: A infância e adolescência são alvos de violência, em especial a violência


física e sexual, nas mais variadas culturas. Nesse contexto situa-se a automutilação
que se refere a um comportamento de agressão direta ao próprio corpo, sendo que
quando ocorre com frequência direciona ao enquadramento como característico de
um nível patológico e altamente perigoso para a integridade física do indivíduo. Desta
forma, a presente pesquisa teve como objetivo analisar os prejuízos emocionais
causados pela violência sexual em uma adolescente do sexo feminino, relacionando-
os com o comportamento auto lesivo. Trata-se de um estudo de caso clínico qualitativo
que envolve uma adolescente de X anos de idade, vítima de violência sexual na
infância, que foi submetida a entrevista semiestruturada e a técnica do Desenho da
Figura Humana (DFH). Os dados coletados foram analisados e articulados
qualitativamente a partir da perspectiva psicanalítica. Os resultados indicaram a
presença de sentimento de culpa, fixação emocional e elevado nível de ansiedade
que parecem ser atenuados mediante o comportamento de automutilação. A
experiência da violência sexual ainda assombra a participante, que denota ausência
de recursos internos para enfrentar a situação e, dessa maneira, direciona suas
angústias atacando o próprio corpo.

Palavras-chave: Adolescência; Automutilação; Violência Sexual.

42
Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo. Bolsista PIBIC 2018-2019.
43
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúda da Universidade Metodista de São
Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da Universidade
Católica de Santos.

844
INTRODUÇÃO

Dentre todas as fases do ciclo vital humano, a adolescência é o período no qual


muitas transformações vêm à tona, uma vez que é um período marcado pela saída do
mundo infantil e inserção em um mundo adulto de novas descobertas e muitas
incertezas.

Para psicanálise, conforme Blos (1998), a primeira infância e a puberdade são


dois períodos importantes no desenvolvimento da sexualidade, sendo a puberdade a
representação das manifestações físicas da maturação sexual. Essas mudanças
físicas refletem em grande parte dos aspectos comportamentais deste período,
afetando profundamente os adolescentes em seus interesses, comportamento social
e qualidade da vida afetiva. Porém, não podemos considerar que os fatores
fisiológicos são unicamente responsáveis por esse processo já que além dessas
modificações, outras a nível mental e emocional estão ocorrendo simultaneamente.
Além disso, as disposições já existentes também devem ser consideradas.

Sobre o comportamento do adolescente, Blos (1998) considera os momentos


que marcaram a trajetória de vida e o ambiente em que esse indivíduo está inserido.
Ainda segundo o referido autor, a adolescência é um período de maturação em que é
necessário lidar com as dificuldades de suas experiências, a fim de atingir uma
estabilidade egóica, bem como a organização das pulsões. Nesse período, o indivíduo
vivenciará um lento rompimento dos laços emocionais com a família e entrando em
um mundo com muitos receios ou excitações, desta forma, é uma experiência que
está entre as mais complexas da existência humana.

Consoante a essa complexidade, Braun (2002) afirma que a infância e


adolescência são alvos de violência em várias culturas e ao longo de toda a história
de evolução do homem. Assim, crianças e adolescentes podem ser submetidas a
violências psicológica, sexual, física, econômica, ausência escolar, negligência, entre
outras. Desta forma, estão sujeitos a situações de abuso de poder, sendo colocados
como objetos de maus-tratos.

A literatura descrever que, em grande maioria, a violência é sofrida dentro do


próprio ambiente familiar, pois, há um mito familiar marcado por segredos que são
transmitidos de geração para geração. Com isso, grande parte do que ocorre dentro

845
das residências, permanece em silêncio, pois crianças e adolescentes sofrem o medo
do mal que lhes pode ser feito, caso rompam tal silêncio (BRAUN, 2002).

Segundo Braun (2002), a violência é um mal que atinge crianças e


adolescentes sem distinção sociocultural, e sua importância está justamente no
sofrimento indescritível, que predominantemente, é silencioso; e, também no fato da
violência doméstica, a negligência e o abuso sexual, podem ser fatores impeditivos
de um bom desenvolvimento físico e mental da vítima.

A automutilação pode ser definida como um comportamento intencional que


envolve agressão direta ao próprio corpo, sem a intenção consciente de suicídio,
sendo esse comportamento inaceitável socialmente para a cultura local, conforme
explica Giusti (2013). Geralmente acontece mais que uma vez, e sua premeditação
pode variar de dias ou instantes antes do ato. Para a referida autora, apesar de haver
uma distinção entre aqueles com ideação suicida e os que praticam a automutilação,
há um risco eminente de suicídio em ambos, pois a inabilidade de controle dos atos
nas pessoas que se automutilam pode ocasionar ferimentos mais graves ou outras
maneiras de suicídio não conscientes.

Sobre a incidência da automutilação, a autora Giusti (2013) postula que os


adolescentes são os mais acometidos pelo ato, iniciando geralmente entre os 13 e 14
anos, quanto a gênero, não há dados consistentes para avaliação. As experiências
traumáticas relacionadas a infância, é um dos fatores de risco associado a esse
comportamento, contribuindo para o desenvolvimento deste.

OBJETIVO

Analisar os prejuízos emocionais causados pela violência sexual em uma


adolescente do sexo feminino, relacionando-os com o comportamento autolesivo.

MÉTODO

Trata-se de um estudo de caso clínico exploratório de natureza qualitativa,


buscando-se entender o significado individual ou coletivo do fenômeno na vida das

846
pessoas, como explica Turato (2005), observando-se o significado estruturante em
torno do significado atribuído aos fenômenos.
Assim, o artigo foi constituído a partir do recorte de uma pesquisa maior cujo
objetivo foi analisar a autoimagem corporal de adolescentes do sexo feminino que se
automutilam. Assim, diante dos resultados da referida pesquisa, destacou-se um caso
que, especificamente envolvia o comportamento de automutilação e violência sexual,
alvo do presente estudo.

Dessa forma, apresenta-se Nicole44, uma adolescente de 11 anos de idade,


que frequentava a 7ª série de uma escola pública da Região do Grande ABC-SP e
apresentava comportamento autolesivo, além de ter sido vítima de abuso sexual,
conforme relatos da própria adolescente. A participante assinou o Termo de
Assentimento, assim como seus pais assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.

Como instrumentos foram utilizados a Entrevista do tipo semidirigida e o Teste


do Desenho da Figura Humana (DFH) de Machower, conforme a orientação
estabelecida por Van Kolck (1984). A coleta de dados ocorreu no espaço da escola,
seguindo acordos mantidos com a direção e com a adolescente. Os dados obtidos
foram analisados de modo a integrar-se aspectos gráficos e verbais, considerando-se
o DFH e a entrevista. Tal procedimento foi baseado em uma perspectiva psicanalítica.

RESULTADOS
No que se refere a entrevista semi-dirigida observou-se que Nicole inicia a
entrevista demonstrando sinais de angústia, que se manifestam ao relatar o abuso
sexual sofrido aos quatro anos de idade, sendo o autor da agressão o namorado da
tia na época. A vivência desse episódio parece gerar sentimentos de culpa, pois não
conseguiu contar à sua família sobre o acontecido, além disso, essa culpa também se
apresenta revestida de medo e vergonha.
“Eu fui dormir na casa da minha tia um dia, aí no meio da noite ele entrou no
quarto e abusou de mim, eu nunca contei isso pra ninguém até hoje, mas aí aconteceu

44
Nome fictício visando assegurar o sigilo ético.

847
com minha prima também. Minha tia descobriu por que quando foi dar banho nela, a
calcinha estava suja de sangue.”
A prisão do autor da violência sexual soa como um alívio para Nicole, mesmo
carregando as marcas e o peso de nunca ter dividido sua dor com a família. Esses
sentimentos se agravaram quando, após anos, ela reencontra esse mesmo homem,
no caso, o abusador. “Eu estava na rua, tinha ido na padaria, quando eu ia atravessar
a rua o vi do outro lado, fiquei apavorada e corri. Mas eu vi ele me olhando”.
Após esse dia, Nicole afirma que perdeu o pouco de paz que ainda lhe restava,
segundo ela, todos seus sentimentos ruins parecem ter se intensificado. “Desde
aquele dia, não tem uma noite que eu não deite e não sinta ele em cima de mim
fazendo aquelas coisas, sinto ele no meu corpo, as vezes chego a sonhar com aquilo.
Dói muito.”
Nicole afirma não ter uma boa relação com a família, o que dificulta o
estabelecimento de uma relação de confiança que a encoraje a dividir suas dores
nesse ciclo familiar. “Moro com a minha mãe, mas ele me xinga demais, o tempo todo,
diz que não sirvo pra nada. Meu pai eu quase nunca vejo, meu tio as vezes é mais pai
que ele. Na minha casa, sou sozinha, fico isolada.”
A realidade para Nicole se mostra como assustadora, o mundo não parece um
lugar seguro, as pessoas não transmitem segurança, afirma que não sente que há
alguém que se importe genuinamente com ela. “Minha família sabe que eu me corto,
mas fingem que não sabem, porque não se importam. Minha mãe pediu pro meu tio
falar comigo. Às vezes é difícil encarar a realidade de frente, me cortar as vezes é
menos dolorido, enquanto me corto, esqueço a dor”

No que se diz respeito ao Teste Desenho da Figura Humana (DFH), alguns


aspectos merecem destaque visando a construção de uma análise mais detalhada do
caso. Desse modo, a adolescente elabora a primeira figura de acordo com seu próprio
sexo, de frente e inclinada, no entanto, na fase de Inquérito, refere trata-se de uma
menina com 4 anos de idade, ou seja, a idade que tinha quando sofreu a violência
sexual. Tais aspectos remetem a certa fixação emocional ou alguma forma de reagir
a uma situação presente que leva o indivíduo a pensar em situações anteriores em
sua vida (Van Kolck, 1984). Quanto a inclinação da figura é possível associar a
indicadores de instabilidade e equilíbrio precário.

848
O nariz foi uma parte omitida no desenho da figura, o que aponta para a
presença de timidez, passividade, afastamento, sensação de desamparo ou
sentimento de castração; índice de deterioração. No desenho os braços da figura se
mostram para atrás do corpo e, conforme análise dos indicadores estabelecidos por
Van Kolkc (1984) sugerem fuga do contato, rejeição e, mesmo, atitude primitiva;
necessidade de controlar a expressão de impulsos agressivos ou hostis.
Identificou-se sinais de vitalidade sexual com domínio dos impulsos sexuais
sobre os intelectuais, associados ao desenho dos cabelos compridos e em
abundância, com franja na testa (Van Kolck (1984). Sentimentos de culpa e ansiedade
elevada foram identificados na segunda produção gráfica (desenho da figura do sexo
oposto) quando sombreia o rosto da figura. De modo geral, verifica-se a
desproporcionalidade entre as partes do corpo, apontadas como desarmonia na
personalidade e no comportamento.
Outro aspecto que merece atenção no desenho da segunda figura humana, se
refere a omissão das mãos, expressando problemas de contato, adaptação social e
manipulação; com possível sentido de desejos de automutilação devidos à culpa por
masturbação ou roubo.
Diante dos aspectos apresentados, segue-se na articulação integrada dos
dados, buscando atender ao objetivo proposto no estudo.

DISCUSSÃO
Nicole convive com as repercussões e sofrimento de um abuso sexual ocorrido
aos 4 anos de idade, fato este que parece ter deixado marcas não apenas em seu
corpo, mas também intensas feridas emocionais. Essas marcas emocionais se
mostram representadas em suas produções gráficas, assim como em seu relato na
entrevista semidirigida. Segundo Braun (2002) a violência sexual é extremamente
marcante, causando um desgaste emocional profundo à vítima.
Assim, a análise do material gráfico e verbal aponta que Nicole desenha duas
figuras femininas, mesmo tendo recebido essa orientação, indicando uma possível
resistência em estar em contato com a figura masculina, porém, apesar de apresentar
essa dificuldade em desenhar uma figura masculina, destaca-se que, durante o
inquérito, Nicole atribui a produção gráfica como sendo uma pessoa do sexo
masculino.

849
A partir de suas respostas, a hipótese levantada é de que essa figura se
constitua na representação do agressor, ou seja, do homem que a abusou na infância.
Esse acontecimento se presenta como muito intenso na vida da participante, em seus
relatos atribui grande ênfase a tal acontecimento, além disso, sua primeira produção
gráfica indica aspectos representativos de fixação emocional em situações anteriores
de sua vida, ao referir-se, durante o Inquérito, a uma menina de 4 anos, ou seja, a
idade na qual sofreu a violência sexual.
No teste DFH observa-se omissão das mãos e os braços foram desenhados
voltados para trás do corpo, tal indicador é interpretado por Van Kolck (1984) como
problemas ou fuga de contato, e dificuldade em adaptação social.

Sobre a incidência da automutilação, a autora Giusti (2013) postula que os


adolescentes são os mais acometidos pelo ato, iniciando geralmente entre os 13 e 14
anos, como é o caso de Nicole. Já quanto ao gênero, não há dados consistentes para
avaliação, como explica o autor. As experiências traumáticas relacionadas a infância,
são um dos fatores de risco associados a esse comportamento, contribuindo para o
desenvolvimento do comportamento auto lesivo.

A omissão das mãos e os braços desenhados para trás na primeira figura


desenhada, é uma expressão do desejo de automutilação, a interpretação é de que
tal comportamento seja derivado de um forte sentimento de culpa e desejo de fuga
diante de sentimentos que não consegue suportar.

É possível identificar dificuldades no que tange as relações familiares, pois a


participante se sente insegura com relação ao tratamento que recebe, principalmente
por parte de sua mãe, não sente um interesse genuíno por parte da mesma e nem de
outros familiares, como o pai e os irmãos. Não encontra a segurança que procura em
sua família e, consequentemente, não se sente protegida e confiante para partilhar
seus sofrimentos e angústias.

Nicole teve seu corpo ferido na ocasião da violência sofrida e ainda parece
assombrada pelas marcas emocionais geradas a partir dessa violência, e não
encontra recursos internos, nem tampouco externos, que aliviem seu sofrimento e que
auxiliem a lidar com ele. O comportamento auto lesivo pode ser compreendido como
uma maneira de fugir de uma realidade que, para ela, se apresenta incompreensível.

850
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A adolescência é um período de muitas fragilidades, levando-se em conta as


marcas emocionais herdadas da infância, essa fragilidade tende a aumentar. O
desenvolvimento deste trabalho possibilitou a reflexão sobre como o amparo,
segurança e confiança que o papel familiar deve transmitir para as crianças e
adolescentes, podem refletir no desenvolvimento emocional desses indivíduos.

A violência contra crianças e adolescentes, ainda é um mal que assombra a


sociedade, principalmente levando-se em conta que grande parte delas acontece
dentro do âmbito familiar. O que contribui para o sentimento de culpa, medo e
insegurança da vítima, que tomada por esses sentimentos, não revela seu sofrimento,
visto tamanha insegurança que lhe é transmitida.

Os ataques ao corpo aparecem como um pedido de ajuda para lidar com as


angústias que os recursos internos não conseguem dar conta. Atrelado a isso, um
grande sentimento de culpa pelo corpo que foi violentado sem possibilidade de defesa.

Esse estudo reforça a necessidade de atenção no olhar psicológico e social


para a infância e adolescência, que ainda são as maiores vítimas de violência, bem
como sofrimento psíquico na sociedade atual.

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Campinas, v. 39, n. 3, p.507-514.

851
Van Kolck , O. L. (1984). Testes projetivos gráficos no diagnóstico psicológico. São
Paulo: EPU.

852
79- PERCEPÇÃO DA INTERGERACIONALIDADE NO MERCADO DE
TRABALHO

Fernanda Cristina Grilletti 1


Gabriela Matias Santos Da Silva 1
Giovanna Broti Dente 1
Iago Sampaio Vieira Amancio 1
Isabela Silva Fernandes 1
José Maria Montiel 2
Renatto Cesar Marcondes 3
Resumo: Introdução: O trabalho é considerado um elemento central na vida do
homem e o contexto organizacional possui grande influência na construção identitária
dos sujeitos. São notáveis estereótipos negativos relacionados à idade, inclusive no
mercado de trabalho, que acarretam a distorção da imagem do trabalhador. Objetivo:
Descrever as relações intergeracionais nas organizações, avaliando a percepção do
jovem, pessoa de meia-idade e idoso sobre a atuação profissional de indivíduos de
diversas idades. Métodos: Trata-se de uma pesquisa descritiva, de levantamento de
dados. A coleta de dados foi online e participaram 231 pessoas, que responderam um
formulário de dados demográficos e um Questionário de Relações Intergeracionais. A
análise dos dados foi feita pelo Software Statistical Program for Social Sciences
(SPSS). Resultados: O adulto tende a visualizar como indiferente a relação de idade.
O público de meia-idade tende a ter uma visão positiva sobre si mesmo e os idosos
tendem a ver mais característica positivas entre os de meia-idade. Considerações
Finais: O envelhecimento da força de trabalho é cada vez mais presente e os
estereótipos acerca deste público geram efeitos autoconfirmatórios. É fundamental
reforçar a necessidade de desenvolvimento de mais pesquisas sobre o tema,
considerando que se configura como tópico extremamente importante atualmente.

Palavras-chave: Intergeracionalidade. Mercado de Trabalho. Ageísmo.

853
Introdução

O trabalho é considerado por diversos autores como um elemento central na vida


do homem em diversas esferas (econômica, social, cultural). Segundo Roelen,
Koopmans, Notenbomer e Groothoff (2008), muitas pessoas gastam boa parte de
suas horas diárias no trabalho, que além de fornecer sustento, contribui para a criação
da identidade social e fornece sentido de utilidade. O trabalho, enquanto regulador
social, intermedia a composição do tempo, espaço, valida as fases da vida e suas
atividades, de modo que, atualmente, as pessoas organizam suas vidas a partir das
necessidades do trabalho (Lima, Carvalho & Tanure, 2012; Satuf et al., 2018; Vitória,
Rego & Boas, 2016).

Tal concepção, no entanto, é um construto psicológico, multidimensional e


dinâmico (Tolfo & Piccini, 2007), que pode variar de acordo com faixa etária, história
e momento de vida do indivíduo (Lima et al., 2012; Satuf et al., 2018; Vitória et al.,
2016). O contexto organizacional possui grande influência na construção identitária
dos sujeitos, sendo um dos pilares para sua autoestima e senso de utilidade, de
maneira que o rompimento com o mundo do trabalho traz uma perda significativa de
vínculos sociais, impactando também na qualidade de vida, podendo trazer
sentimentos de inutilidade e solidão (Silva & Helal, 2019), como, por exemplo, em
indivíduos na meia-idade e idosos que, ao se depararem com a velhice e a
aposentadoria, passam a ter que lidar com a perda do trabalho e, em alguns casos,
com o sentimento de incapacidade (Moreira, 2011).

Atualmente são notáveis estereótipos negativos relacionados à idade (França,


Siqueira-Brito, Valentini, Vasques-Menezes & Torres, 2017), inclusive no mercado de
trabalho (Goldani, 2010), que acarretam, principalmente, na distorção da imagem do
trabalhador mais velho (Vitoria et al., 2016). O preconceito não se restringe apenas
do jovem para o mais velho, o inverso também acontece. Jovens que estão
alcançando o topo da carreira mais cedo são associados à falta de competência para
assumir tal posição e precisam enfrentar a insegurança em relação ao executivo mais
velho, que também se sente ameaçado no que tange sua permanência no mercado
(Lima et al., 2012).

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a


expectativa de vida dos brasileiros é de 76 anos e estima-se que em 2060, pessoas

854
de 0 a 14 anos representarão 13% da população brasileira, as de 15 a 29 anos, 15,3%,
de 30 a 59 anos, 38% e indivíduos com mais de 60 anos, 33,7%, ou seja, mais de
70% da população se enquadrará no grupo de meia-idade ou idoso (IBGE, 2017).
Além disso, fatores relacionados a alterações políticas – como a reforma da
previdência – farão com que, cada vez mais, o mercado tenha que olhar e se
questionar sobre o ageismo, preconceito com a idade, uma vez que os encontros
intergeracionais no ambiente de trabalho tendem a aumentar (Vitoria et al., 2016).

Objetivo

Devido este contexto, este estudo visa descrever as relações intergeracionais


nas organizações, avaliando a percepção do jovem, pessoa de meia-idade e idoso
sobre a atuação profissional de indivíduos de diversas idades.

Justificativa

Com a estimativa de inversão da pirâmide etária e as mudanças políticas, será


necessário investir em equipes intergeracionais – diferentes gerações trabalhando no
mesmo lugar, com suas formas de agir, pensar, ver o mundo e executar o trabalho
(Comazzetto, Perrone, Vasconcellos, & Gonçalves, 2016) – a fim de possibilitar-se a
troca de experiências e produção de conhecimento.

Método

Trata-se de uma pesquisa de caráter descritivo, seguindo a proposta


metodológica de levantamento de dados. Para que esta pesquisa fosse realizada de
forma experimental, houve a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética da
Universidade São Judas com parecer 3317456 e CAAE 12506019.0.0000.0089 e
foram seguidas todas as normas éticas relacionadas a este caráter de pesquisa. A
coleta de dados foi online, por meio da plataforma GoogleForms.

Considerou-se a expectativa de vida nacional de 76 anos (IBGE, 2017), em que


se estipularam três grupos etários para a análise: adultos, sendo pessoas de 18 a 37

855
anos, pessoas de meia-idade, de 38 a 59 anos, e idosos, indivíduos com mais de 60
anos.

Nesta pesquisa participaram 231 pessoas – sendo 65% do sexo feminino e 35%
do sexo masculino. Em relação à idade, 58% dos que responderam eram adultos (18
a 37 anos), 35%, de meia-idade (38 a 59 anos) e 6%, idosos (mais de 60 anos). Os
participantes responderam a um formulário para coleta de dados demográficos de
autopreenchimento, elaborado para este estudo, que visava coletar informações
pessoais dos participantes, como idade, grau de escolaridade, situação de trabalho
atual, cargo e dentre outros dados. Foi também utilizado o Questionário de Relações
Intergeracionais, material de autoria própria, composto por 30 perguntas fechadas
que foram elaboradas a partir do levantamento bibliográfico sobre relações
intergeracionais no mercado de trabalho.

A análise dos dados foi feita pelo Software Statistical Program for
Social Sciences (SPSS), versão 21.0. Foram realizadas análises de estatística
descritiva, com cálculo de porcentagens para verificar as características
sociodemográficas da amostra, como sexo e faixa etária, e análise de teste de Qui-
quadrado, para verificar se havia associação estatisticamente significativa entre a
faixa etária dos respondentes e as perguntas do Questionário de Relações
Intergeracionais. Os resultados e discussão foram focados nas perguntas que
apresentaram essa associação estatisticamente significativa. O nível de significância
adotado para os testes estatísticos foi de 5%.

Resultados e Discussão

No estudo houve 231 respondentes, sendo que a maioria foi do sexo feminino
(149), o que representa 64,5% da amostra, enquanto 35,5% (82) foram do sexo
masculino. Apesar de buscar-se equilíbrio na faixa etária dos respondentes, a maioria
pertencia ao grupo de adultos (de 18 a 37 anos), que compõem 58% da amostra,
enquanto 35,5% eram pessoas de meia-idade (de 38 a 59 anos) e 6,5%, idosos.

No que tange a percepção sobre desatualização profissional, as faixas etárias


respondentes adulto e meia-idade possuem semelhanças entre a percepção das

856
diferentes idades, que assim como os idosos, acreditam que a questão da idade é
indiferente para desatualização.

Importante destacar que, para os idosos, a porcentagem em relação ao


indiferente foi muito maior que a das demais faixas etárias, conforme Tabela 1,
podendo estar relacionado à questão mencionada na literatura, em que os mais velhos
tendem a estimar a aprendizagem contínua e muitas vezes são as próprias
organizações que tendem a não investir no desenvolvimento desses profissionais
(Vitoria et al., 2016).

Tabela 1

Associação entre faixa etária e Q3 (desatualização profissional)

Quem você percebe como profissional desatualizado?

Faixa Etária Adulto Meia-idade Idoso Total χ² p


Indiferen
(de 18 a 37 (de 38 a 59 (mais de 60
te
anos) anos) anos)

Adulto 52 134
3 (2,2%) 30 (22,4%) 49 (36,6%)
(de 18 a 37 anos) (38,8%) (100%)

Meia-idade 35 19,80 0,00


7 (8,5%) 8 (9,8%) 32 (39,0%) 82 (100%)
(de 38 a 59 anos) (42,7%) 9 3
Ademais,
Idoso a pesquisa demostra o oposto do mencionado por Vitoria et.al (2016)
3 (20,0%) 0 (0,0%) 3 (20,0%) 9 (60,0%) 15 (100%)
(mais de 60 anos)
no qual afirma que indivíduos mais velhos tendem a ter opiniões mais favoráveis a
cerca Total
deles mesmos, já que a percepção 96 231
13 (5,6%) 38 (16,5%) das
84pessoas
(36,4%) de meia idade da pesquisa foi
(41,6%) (100%)
equivalente à dos adultos, sendo os idosos vistos, em segundo lugar após o
indiferente, como os mais desatualizados profissionalmente. Na pesquisa de Dennis
e Thomas (2007) também é percebido que os mais velhos não são bem avaliados por
gestores quanto sua versatilidade, adesão ao novo e novas tecnologias, no entanto,
são reconhecidos por sua experiência, senso de dever, habilidade em resolução de
problemas e atitudes.

Outra associação estatisticamente significativa na pesquisa foi a da percepção


em relação a quem lida melhor com a pressão na rotina de trabalho, em que o
indivíduo de meia-idade é percebido, por todas as faixas etárias, como aquele que lida
melhor com essa pressão, conforme evidenciado na Tabela 2.

857
Tabela 2
Associação entre faixa etária e Q4 (pressão no trabalho)

Quem você acha que lida melhor com a pressão na rotina de


Total χ² p
trabalho?
Faixa Etária Adulto Meia-idade Idoso
Indiferent
(de 18 a 37 (de 38 a 59 (mais de 60
e
anos) anos) anos)

Adulto
33 134
(de 18 a 37 36 (26,9%) 59 (44,0%) 6 (4,5%)
(24,6%) (100%)
anos)

Meia-idade
(de 38Segundo
a 59 Lima et
8 (9,8%) al. (2012), que chegam 17
os jovens6 (7,3%)
51 (62,2%) rápido82ao topo 22,375
(100%) de sua0,001
(20,7%)
anos)
carreira são mais inseguros e não se sentem confiantes quanto à sua competência
paraIdoso
aquele cargo. Neste sentido, pode-se inferir que a pressão que o mesmo sofre é
(mais de 60 1 (6,7%) 7 (46,7%) 4 (26,7%) 3 (20,0%) 15 (100%)
aumentada
anos) e, por isso, os trabalhadores mais sêniores, que possivelmente já
passaram por tais pressões, já aprenderam a lidar melhor53com elas231na rotina de
Total 45 (19,5%) 117 (50,6%) 16 (6,9%)
(22,9%)
trabalho, em comparação aos mais novos, corroborando com a (100%)
hipótese dessa
pesquisa (Tabela 2).

De acordo com a Tabela 3, enquanto indivíduos de meia-idade têm a percepção


de que eles mesmos são melhores como chefes, adultos e idosos percebem como
indiferente a faixa etária para essa questão.

Tabela 3
Associação entre faixa etária e Q6 (melhor como chefe)
Quem você acha que é melhor como chefe?

Faixa Etária Idoso Total χ² p


Adulto Meia-idade Indiferent
(mais de 60
(de 18 a 37 anos) (de 38 a 59 anos) e
anos)

Adulto
22 (16,4%) 43 (32,1%) 9 (6,7%) 60 (44,8%) 134 (100%)
(de 18 a 37 anos)

Meia-idade
2 (2,4%) 42 (51,2%) 6 (7,3%) 32 (39,0%) 82 (100%)
(de 38 a 59 anos) 17,211 0,009
Segundo Lima et al. (2012), o quadro de instabilidade – devido aos novos
Idoso
(mais de 60 das organizações,
movimentos 0 (0,0%) 6 (40,0%)
como fusões e 2aquisições
(13,3%) 7 (46,7%)
de – leva à maior
15 (100%)
empresas
anos)
competição pelos cargos gerenciais, impulsionando o maior uso de preconceitos entre
Total 24 (10,4%) 91 (39,4%) 17 (7,4%) 99 (42,9%) 231 (100%)
os trabalhadores mais jovens e os mais velhos, como por exemplo os mais velhos
considerarem os mais jovens pouco competentes para assumir posição de liderança,
algo confirmado também na pesquisa de Comazzetto et al. (2016). O resultado desta

858
pesquisa corrobora com a literatura, uma vez que que nenhum idoso percebe o adulto
como o melhor chefe, assim como os de meia–idade, cuja minoria optou por esta faixa
etária.

Conforme apresentado na Tabela 4, houve associação estatisticamente


significativa entre idade e percepção sobre qual faixa etária possui mais paciência
para transmitir conhecimento aos outros. Tanto jovens quanto pessoas de meia-idade
e idosos acreditam que indivíduos de meia-idade possuem maior paciência para
ensinarem.
Tabela 4

Associação entre faixa etária e Q09 (transmissão de conhecimento)

Quem tem mais paciência para transmitir conhecimento para outras pessoas?
Faixa Etária Adulto Meia-idade Idoso (mais Total χ² p
Segundo Comazzetto et(deal.
(de 18 a 37 anos)
(2016) e Lima,
38 a 59 anos)
et al. (2012)Indiferente
de 60 anos)
os mais jovens são mais
individualistas, priorizando seus próprios interesses. Esta pesquisa vai ao encontro da
Adulto
29 (21,6%) 43 (31,3%) 40 (29,9%) 57 (42,5%) 134 (100%)
(de 18 a 37 literatura
anos) já que que nenhum idoso percebe o adulto como aquele que transmite seu
conhecimento para
Meia-idade outras pessoas, assim como os de meia–idade.
4 (4,9%) 42 (51,2%) 15 (18,3%) 33 (40,2%) 82 (100%) 19,701 0,003
(de 38 a 59 anos)

Idoso
0 (0,0%) 6 (40,0%) 5 (33,3%) 4 (26,7%) 15 (100%)
(mais de 60 anos)
Há, entretanto, necessidade de se considerar a troca intergeracional, uma vez
Total 33 (14,5%) 90 (39,0%) 43 (18,6%) 94 (40,7%) 231 (100%)
que indivíduos de diferentes idades, possuem experiencias profissionais e pessoais
diferentes, influenciadas pela própria sociedade da época na qual nasceram (Vitoria
et al., 2016).
Tabela 5

Associação entre faixa etária e Q20 (comprometimento no trabalho)


Quem você percebe como mais comprometido com o trabalho?
Faixa Etária Adulto Meia-idade Idoso (mais Total χ² p
Indiferente
(de 18 a 37 anos) (de 38 a 59 anos) de 60 anos)

Adulto
17 (12,7%) 38 (28,4%) 8 (6,0%) 71 (53,0%) 134 (100%)
(de 18 a 37 anos)

Meia-idade
3 (3,7%) 48 (58,5%) 5 (6,1%) 26 (31,7%) 82 (100%) 51,794 0,000
(de 38 a 59 anos)
Também foi possível observar associação estatisticamente significativa entre a
Idoso (mais
0 (0,0%)
faixa etária do respondente e4 (26,7%)
a percepção de7 (46,7%)
quem é mais4 (26,7%) 15 (100%)
comprometido com o
de 60 anos)

Totaltrabalho, conforme
20 (8,7%) pode ser90observado
(39,0%) na Tabela
20 (8,7%)5. Os 101
respondentes
(43,7%) 231 de meia-
(100%)

859
idade e idosos se percebem como mais comprometidos, já os adultos têm a
percepção de que a idade é indiferente no quesito comprometimento com o trabalho.

Para Vitória et al. (2016) e Cappi e Araujo (2015), os mais velhos tendem a ser
mais comprometidos com o trabalho, se comparados com indivíduos de outras idades.
Nesta pesquisa evidencia-se que tanto os de meia-idade, como os idosos não
percebem os adultos como comprometidos, visto que se obtiveram poucos indivíduos
e no caso dos idosos nenhum respondente optando por essa alternativa.

Considerações finais

O envelhecimento da força de trabalho tem se tornado cada vez mais presente


e os estereótipos acerca deste público interferem nas ações desses indivíduos, o que
resulta em queda de desempenho e até mesmo influencia em sua autopercepção em
quesitos de confiança e autoestima.

Quanto aos resultados encontrados no estudo, percebeu-se que todas as faixas


etárias consideram como indiferente a questão da idade em relação a desatualização.
O público de meia-idade está mais associado a perfis de pessoas que lidam melhor
com pressão, e estes tendem a ter uma visão positiva sobre si mesmos. Enquanto os
idosos tendem a ver mais características positivas entre os de meia-idade, e os
adultos perceberam como indiferente a questão da idade na maioria das questões.

Considerando que questões relacionadas à importância da diversidade nas


organizações estão sendo evidenciadas recentemente, e que idosos e pessoas com
meia-idade provavelmente não lidaram com esse assunto tão fortemente quanto os
adultos lidam, isso pode explicar as respostas indiferentes prevalecer neste último
grupo.

Pensando no atual e futuro perfil demográfico brasileiro, seria mais recomendado


que as organizações começassem a ver a intergeracionalidade como aliada, uma vez
que a tendência é conciliar a experiência dos mais velhos com a inovação dos mais
novos. Mostra-se, então, necessário modificar a gestão de recursos humanos, a fim
de que lide melhor com esse novo contexto, propagando aos demais colaboradores
tal cultura.

860
Para próximos estudos, avalia-se espaço para melhores resultados na pesquisa
sem a opção “indiferente” como alternativa de resposta. A alternativa foi incluída como
meio de evitar enviesamento nas respostas dos participantes, entretanto há a
possibilidade de ter causado o efeito contrário.

Ademais, recomenda-se que haja equivalência de representatividade dos


respondentes em cada faixa etária para garantir maior fidedignidade quanto à hipótese
gerada. É fundamental reforçar a necessidade de desenvolvimento de mais pesquisas
sobre o tema, considerando que se configura como tópico extremamente importante,
presente e significativo na atualidade.

Referências
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862
80- PERFIL E QUEIXAS DO PACIENTE ADOLESCENTE DE UM SERVIÇO DE
PSICOLOGIA EM UM AMBULATÓRIO-ESCOLA

Teresa Helena Schoen

Resumo: Este trabalho teve por objetivo identificar o perfil demográfico e principais
problemas de comportamento dos adolescentes atendidos em psicoterapia individual
de um ambulatório-escola multiprofissional especializado em adolescentes na cidade
de São Paulo. Método: Trata-se de um levantamento descritivo documental, composto
por 85 prontuários. Resultados: Havia mais adolescentes do sexo feminino, na faixa
etária dos 13 aos 15 anos. A maioria dos pacientes encontrava-se na série escolar
adequada para sua idade, embora a queixa mais frequente tenha sido dificuldades
escolares. Observou-se que muitos dos problemas citados nos prontuários eram
decorrentes de baixo repertório de comportamentos socialmente habilidosos,
incluindo conflitos familiares. Questões médicas e de violência também foram citadas
como motivos para busca de atendimento psicológico. Considerações finais: Este
estudo permitiu o aperfeiçoamento ético e técnico dos profissionais e seus resultados
orientaram a adoção de diversas medidas para melhorar a qualidade dos registros
nos prontuários.

Palavras-chave: serviço-escola, psicoterapia, adolescência, saúde mental

Introdução
A prevalência de doença mental e de sofrimento psicológico é maior do que a
disponibilidade de serviços de atenção primária. Entretanto, a procura por
atendimento psicológico ainda é menor que a necessidade da população (THE
ESEMED/MHEDEA 2000 INVESTIGATORS et al., 2004). Os serviços-escola têm um
importante papel social e político, na sua tríplice função de ensino, pesquisa e
extensão (MARTURANO; SILVARES; OLIVEIRA, 2014); ao mesmo tempo em que
fornece a possibilidade de treinamento de alunos e profissionais em formação, é um
local de atendimento gratuito ou a baixo custo à população (AMARAL et al., 2012) e
possibilita a pesquisa e o desenvolvimento do conhecimento psicológico.

863
Como colocam Borges, Glidden, Bisewski, Corrêa e Tomaselli (2018), o
desconhecimento a respeito da demanda da clientela e seu perfil pode dificultar o
aperfeiçoamento do serviço prestado. Portanto, conhecer a clientela a que este
serviço-escola se destina é um dos passos para desenvolver meios que possam
ampliar o atendimento e manter a qualidade do serviço realizado, adequando-os ao
momento histórico e às características do local e da clientela (AMARAL et al., 2012).
Schoen-Ferreira, Silva, Farias e Silvares (2002), ao traçar o perfil
sociodemográfico e identificar as principais queixas apresentadas por adolescentes
encaminhados para psicoterapia individual em um ambulatório-escola, observaram
que no referido serviço foram atendidos, no período de 1997 a 2000, 61 adolescentes,
sendo a maioria (33) do sexo masculino. A faixa etária com mais adolescentes (27) foi
a adolescência média, dos 13 aos 15 anos, seguida da adolescência inicial (10 a 12
anos [com 19 adolescentes]). Importante anotar que 24 adolescentes tinham sido
retidos na série escolar por pelo menos uma vez, destes, 18 por duas ou mais vezes.
As autoras também ressaltam que em alguns prontuários havia dados faltantes. Em
relação às queixas, a com maior prevalência foi ‘problemas com a escolarização’,
presente em 28 prontuários de pacientes. A segunda queixa na ordem de prevalência
foi ‘desobediência em casa’, seguida de ‘desobediência na escola’. Outras queixas
registradas foram enurese noturna, agitação motora e obesidade.
Este trabalho tem por objetivo identificar o perfil dos adolescentes (idade,
sexo, escolaridade e problemas comportamentais que os próprios adolescentes que
dizem ter), atendidos em primeira consulta em um serviço de atendimento psicológico
de um ambulatório-escola especializado em adolescentes na cidade de São Paulo.

Método
Trata-se de um levantamento feito por meio de análise descritiva documental,
de abordagem quantitativa. Esta pesquisa tem aprovação do Comitê de Ética em
Pesquisa da Unifesp (CAAE nº 16183819.4.00005505).

Participantes: A amostra foi composta por 85 prontuários de pacientes que


foram atendidos em pelo menos uma consulta individual, por psicólogo em um
ambulatório-escola de uma universidade pública. Os pacientes podem ter vindo esta
única vez ou ter seguido em atendimento psicológico.

864
O Serviço
O Centro de Atendimento e Apoio ao Adolescente – CAAA –, criado em 1993,
como setor da Disciplina de Especialidades Pediátricas do Departamento de Pediatria
da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (Unifesp), tem a
finalidade de promover, integrar, apoiar e incentivar o cuidado à saúde do
adolescente. Suas atividades seguem os objetivos da universidade dentro do tripé
ensino-pesquisa-assistência. Abrangem os cursos de graduação (atualmente apenas
medicina), especialização (para formados nas áreas de saúde ou educação),
mestrado, doutorado e pós-doutorado, oferecendo base teórico-prática para a
formação de novos profissionais, de diferentes áreas, incluindo psicólogos que se
inscrevem no programa de especialização em adolescência.

Instrumentos: Para este trabalho foram analisados os prontuários dos


pacientes atendidos em consulta individual por psicólogos, anotando os dados
demográficos (sexo, idade, escolaridade) e a queixa que levou a procura do
atendimento e os resultados do instrumento de triagem Youth Self Report
(ACHENBACH; RESCORLA, 2001). Este instrumento faz parte do protocolo de
atendimento no setor e deveria ser aplicado a todos os pacientes que passam pelo
serviço de psicologia.
O Youth Self Report – YSR - é um inventário para triagem de problemas de
comportamento respondido pelo próprio adolescente (dos 11 aos 18 anos). As
respostas devem referir-se somente aos seis meses anteriores, contados a partir da
data do preenchimento. Os itens estão escritos na primeira pessoa do presente do
Indicativo. É composto por duas partes: a primeira são sete questões sobre
competência social (que não foi utilizada neste trabalho) e a segunda, 112 itens que
avaliam problemas de comportamento. Os itens da segunda parte do YSR são
assinalados pelo próprio adolescente da seguinte forma: 0 – ‘esta frase é falsa’; 1 –
‘esta frase é às vezes verdadeira’; e 2 – ‘esta frase é frequentemente verdadeira’.
Neste trabalho, os itens assinalados como 1 ou 2 foram considerados como
assinalados positivamente (está presente este comportamento), e os itens
assinalados com 0 (zero) como assinalados negativamente (está ausente este
comportamento). O somatório dos escores obtidos na segunda parte permite ao
avaliador traçar um perfil comportamental do adolescente, derivado da análise de oito
agrupamentos de itens (Ansiedade/Depressão, Retraimento/Depressão, Queixas

865
Somáticas, Problemas de Sociabilidade, Problemas com o Pensamento, Problemas
de Atenção, Violação de Regras e Comportamento Agressivo). O agrupamento das
três primeiras síndromes forma a Escala de Internalização; e o agrupamento das duas
últimas forma a Escala de Externalização. A Escala Total de Problemas de
Comportamento é composta pelo somatório de todos os itens.

Procedimento: Foi realizada uma busca ativa dos prontuários dos pacientes
que foram atendidos por psicólogos que realizavam psicoterapia individual no CAAA.
Em sua maioria, os profissionais eram especializandos do curso Adolescência para
Equipe Multidisciplinar, ou seja, psicólogos já formados. Alguns já haviam terminado
sua especialização e estavam fazendo Atualização Profissional. Os dados coletados
(idade, sexo, escolaridade e queixa inicial) foram lançados em planilha Excel. No caso
de dados ausentes, quando possível, o psicólogo responsável pelo atendimento foi
contatado para sanar dúvidas. Os resultados do YSR foram importados do programa
específico e incorporados à planilha Excel. Conforme orientação do manual do YSR
(ACHENBACH; RESCORLA, 2001), os indivíduos podem ser considerados não-
clínicos (menos problemas de comportamento), limítrofes ou clínicos (mais problemas
de comportamento), sendo que, estas duas últimas indicam a presença significante
de problemas.
Os dados quantitativos foram descritos por meio de médias ou frequências.

Resultados e Discussão
O objetivo deste trabalho foi identificar o perfil dos adolescentes atendidos em
primeira consulta em um serviço de atendimento psicológico de um ambulatório-
escola especializado em adolescentes na cidade de São Paulo. Como limitação,
indica-se que foram analisadas exclusivamente as fichas dos atendimentos pelos
profissionais que atendem de forma individual. Não foram incluídos os atendimentos
psicoterápicos em grupo ou grupos de prevenção ou de orientação.
A principal dificuldade encontrada foi que alguns prontuários não continham
todos os dados utilizados neste estudo. Isto não quer dizer que o profissional não
tenha perguntado, somente não está anotado. Este é um problema comum nos
trabalhos envolvendo análise documental (BONADIMAN et al., 2015; FERREIRA;
TEIXEIRA, 2017; MARAVIESKI; SERRALTA, 2011; SCHOEN-FERREIRA et al.,
2002; VIOL; FERRAZA, 2015). O preenchimento correto dos prontuários deve ser

866
assunto discutido nos cursos de graduação e enfatizado nos de pós-graduação, como
as especializações. Nos locais de trabalho parece ser importante que haja uma
supervisão dos prontuários. Segundo a Resolução nº 001/2009, do Conselho Federal
de Psicologia - CFP, o registro documental é importante tanto para o psicólogo, quanto
para o paciente e para a instituição e deve conter, entre outras questões, a
identificação do usuário e a avaliação da demanda. Importante deixar anotado que
alguns prontuários não estavam no arquivo, conforme prescreve a respectiva
resolução. Alguns especializandos têm o costume de levar os prontuários consigo
quando saem do ambulatório. Este trabalho foi uma oportunidade ímpar para se
trabalhar com todos os profissionais que atendem neste setor questões éticas
envolvidas no atendimento a pacientes, em específico, a Resolução nº 001/2009, do
CFP.
O YSR foi preenchido por 72 dos 85 adolescentes. Três estavam fora da faixa
etária do instrumento (tinham 10 ou 19 anos), cinco tinham Deficiência Intelectual, o
que dificultava o entendimento das questões (por esta razão, provavelmente, o
profissional optou por não aplicar o instrumento). Em relação a ausência do YSR nos
outros cinco prontuários pode ser que o profissional tenha aplicado mas esquecido de
anexar o instrumento no prontuário (ferindo a Resolução nº 001/2009 do CFP) ou não
aplicou por ser contra a utilização de instrumentos psicométricos padronizados. Ao
serem entrevistados para ingresso no curso de especialização, todos os profissionais
dizem que fariam o psicodiagnóstico com instrumentos padronizados, seguindo o
protocolo do setor. Entretanto, na prática, durante o desenrolar do curso, os
profissionais que não concordam, deixam de utilizar os instrumentos e não notificam
os docentes. Desta forma, seguindo o tripé da universidade, embora a assistência ao
paciente esteja preservada, com boa qualidade, e o ensino esteja sendo realizado (o
especializando aprendeu sobre o instrumento), tal procedimento atrapalha a pesquisa,
com a ausência de dados para estudos. O atendimento foi útil ao paciente (e sua
família, escola...) e ao profissional, mas não à sociedade como um todo, pois não
colaborou para o acúmulo de conhecimento científico, nem o avanço da psicologia
como ciência.
Posto os problemas encontrados para realização do estudo, passamos a
apresentar o perfil do paciente. Os dados demográficos dos adolescentes atendidos
em psicoterapia individual podem ser observados na Tabela 1.

867
Tabela 1: Distribuição dos pacientes por ano de atendimento e faixa
etária, por sexo
Ano fem Masc total
2015 7 7 14
2016 9 9 18
2017 20 11 31
2018 11 11 22
Faixa etária
Inicial (10, 11, 12 anos) 14 12 26
Média (13, 14, 15 anos) 20 20 40
Final (16, 17, 18 e 19 anos) 12 6 16
Sem idade 01 01
Total 47 38 85

Diferentemente do levantamento anterior (SCHOEN-FERREIRA et al., 2002),


neste estudo houve mais adolescentes do sexo feminino passando em atendimento
psicológico. Este dado vai ao encontro do estudo de Borges (BORGES et al., 2018).
Vale ressaltar que, entre os mais velhos, houve o dobro de pacientes do sexo
feminino. O que vai ao encontro de inúmeros estudos que observam que a procura
por atendimento psicológico, entre adultos, é majoritariamente feminina, como por
exemplo, Maravieski e Serralta (2011). Entretanto, outros estudos, como Silva (2018)
ou Ferreira e Teixeira (2017), encontram mais adolescentes do sexo masculino sendo
atendidos em seus respectivos serviços-escola. Esta controvérsia leva-nos a refletir
que, na adolescência, o indivíduo ainda está em pleno desenvolvimento, portanto, a
cada época que se fizer o estudo, algumas questões, como o sexo dos pacientes,
podem estar refletindo o perfil do atendimento a crianças (estudos em serviço-escola
observam que há maioria de pacientes do sexo masculino) ou o perfil do atendimento
a adultos, com maior busca por atendimento psicológico por mulheres.
A média da idade dos pacientes foi de 14 anos, variando de 10 a 19 anos. Em
relação à faixa etária, este levantamento foi ao encontro do estudo anterior, no mesmo
ambulatório (SCHOEN-FERREIRA et al., 2002), com mais pacientes na faixa
adolescência média (dos 13 aos 15 anos). Isto pode ser devido ao Estatuto da Criança

868
e do Adolescente (NUCCI, 2014), que considera adolescência a partir dos 12 anos,
de forma que indivíduos com 10 ou 11 anos estejam sendo atendidos em ambulatórios
para crianças. Vale ressaltar que a faixa com menos pacientes foi a da adolescência
final (16, 17, 18 e 19 anos). Com certeza não é por falta de demanda, mas às inúmeras
atividades que jovens estão envolvidos, inclusive o fato de a escola atualmente ser de
período integral, e o ambulatório-escola estudado atende apenas no período diurno,
das 8 às 16 horas. Portanto, o horário do funcionamento do setor pode ser um entrave
para o atendimento de jovens. Talvez outros serviços-escola, que tenham
atendimento noturno ou aos sábados, não enfrentem esta dificuldade.
Em relação à escolaridade, 12 adolescentes cursavam o Ensino Fundamental
I; 46 o Ensino Fundamental II; 22 o Ensino Médio; dois haviam completado o Ensino
Básico; dois não frequentavam a escola e um adolescente não tinha essa informação
no prontuário. Comparando estes dados com o do trabalho anterior (SCHOEN-
FERREIRA et al., 2002), observa-se um pouco menos de adolescentes cursando o
Ensino Fundamental, um pouco mais cursando o ensino Médio. Em termos bruto, a
mesma quantidade (2) de adolescentes fora da escola. No estudo atual há a anotação
de pacientes que já terminaram a Escola Básica. Analisando esses dados, parece que
houve um avanço na escolaridade dos pacientes. Em relação à defasagem escolar
(foram considerados defasados a criança ou adolescente que tivesse dois ou mais
anos de atraso em relação à idade prevista para cursar a série), 18 adolescentes
encontravam-se defasados em relação à escolaridade, ou seja, cursando séries mais
baixas para a sua idade. Este dado corrobora o principal motivo de procura para
atendimento psicológico, qual seja, dificuldades escolares.
A queixa mais frequente (36 adolescentes) foi dificuldades escolares,
semelhante ao trabalho de Schoen-Ferreira et al. (2002). Pode ser que esta não tenha
sido a motivadora da procura por atendimento, mas, na anamnese, foi identificada
como uma queixa importante. Alguns adolescentes que apresentavam problemas com
a escolarização tinham Deficiência Intelectual (já conhecida ou diagnosticada no
processo de avaliação psicológica), Anemia Falciforme ou Déficit de Atenção e
Hiperatividade. Associadas à dificuldade escolar, também apareceram problemas
com a socialização, timidez, dificuldades em seguir regras, dificuldades com a fala e
problemas de comportamento. Ou seja, múltiplas queixas, necessitando o
adolescente e sua família de acompanhamento e apoio. Problemas com a
escolarização segue sendo o principal motivo de atendimento psicológico na faixa

869
pediátrica, sendo que, na adolescência, questões derivadas da dificuldade de
aprendizagem (como seguir regras, socialização...) tornam-se muito evidentes e
preocupantes.
Conflitos familiares, especialmente com a mãe, estiveram anotados em oito
prontuários. Com certeza, se fosse lido os atendimentos posteriores, seriam
encontrados mais adolescentes ou responsáveis reclamando de dificuldade no
convívio familiar. Embora o ingresso na adolescência exija que o indivíduo se defronte
com exigências adaptativas de diferentes naturezas, levando a momentos de
desajuste, confusão e conflitos, observa-se que o aumento de conflitos familiares
nesta fase deve-se mais a poucas habilidades sociais, tanto por parte dos filhos
quanto por parte dos responsáveis. Uma delas é a dificuldade para resolução de
problemas, de forma calma e racional. Alguns adultos esperam que seus filhos sejam
obedientes, sigam as regras impostas pelos pais, não dando oportunidade para os
adolescentes discutirem e até proporem novas formas de ser e estar na família e no
mundo. Ao mesmo tempo, muitos adolescentes recusam-se a assumir algumas
responsabilidades na família (arrumar o quarto, lavar a louça, dividir as tarefas
domésticas) ou como estudantes (fazer a lição de casa, estudar para a prova),
precisando os pais desgastarem-se cobrando comportamentos que já deveriam estar
instalados, inclusive seguir as orientações dos profissionais de saúde. Cinco pacientes
tinham anotações no seu prontuário no sentido de dificuldade de adesão ao
tratamento nutricional ou médico.
Outra questão que motivou a procura por atendimento psicológico, podendo
ou não estar associada à dificuldade de aprendizagem ou a conflitos familiares, foi
ansiedade, anotado em oito prontuários. Timidez foi anotado em seis prontuários.
Também houve casos de encoprese, tricotilomania, abuso sexual, fobias, estresse
pós-traumático, cansaço excessivo e agressividade, entre outros. Observa-se que
algumas dessas queixas já estavam presentes na infância. Na adolescência, quando
se espera um comportamento um pouco mais maduro por parte do adolescente, a
assunção de responsabilidades, o desenvolvimento do autocontrole ou mesmo uma
maior autonomia, os problemas tornam-se mais preocupantes e com consequências
fora do ambiente familiar.
Quatro pacientes, todas do sexo feminino, estavam em atendimento
psicológico por Autolesão Não Suicida (cutting). Entretanto, 14 adolescentes
anotaram de forma positiva o item 18 do YSR (machuco-me de propósito ou já tentei

870
me matar). Este comportamento parece estar ocorrendo com mais frequência
atualmente, não tendo aparecido no trabalho anterior realizado neste setor (SCHOEN-
FERREIRA et al., 2002).
Em relação ao Youth Self Report – YSR (ACHENBACH; RESCORLA, 2001),
foi observado que as adolescentes do sexo feminino apresentaram escores mais altos
que os adolescentes masculinos, em relação aos problemas de comportamento, em
todas as escalas e subescalas (Tabela 2). Os adolescentes mais novos informaram
mais problemas de comportamento que adolescentes mais velhos em quase todas as
subescalas.

Tabela 2: Média dos T escores nas escalas e subescalas do Youth Self Report, por
sexo e faixa etária, dos pacientes em atendimento psicoterápico
sexo faixa etária
fem masc inicial média final total
Ans depre 61,60 57,41 61,95 58,78 59,94 59,92
Isol depre 60,14 55,17 58,9 57,19 59,31 58,14
Prob somáti 57,28 54,45 57,2 55,69 55,81 56,14
Prob contato social 59,65 56,17 61,4 57,31 56,44 58,25
Prob pensamento 59,44 55,76 57,6 57,69 59,00 57,96
Prob atenção 57,02 56,93 57,85 56,81 56,31 56,99
Quebrar regras 54,42 51,79 52,7 53,25 54,44 53,36
Agressividade 57,47 53,97 55,95 57,36 53,25 56,05
Internalizante 62,60* 55,34 61,7* 58,11 60,69* 56,68
Externalizante 53,07 48,10 51,2 51,78 49,31 51,07
Total de problemas 59,42 53,59 58,55 56,55 56,37 57,07
* Média no intervalo da categoria limítrofe

Os itens de problemas de comportamento mais assinalados positivamente


foram: 45 (sinto-me nervoso ou tenso [64]), 8 (sou distraído, não consigo prestar
atenção por muito tempo [63 adolescentes]), 50 (sou medroso ou ansioso [61
adolescentes]), 78 (sou desatento ou me distraio facilmente [61]), 3 (discuto muito [59
adolescentes]), 86 (sou teimoso [58]), 29 (tenho medo de determinados animais,
situações ou lugares [57 adolescentes]), 69 (sou reservado, fechado, guardo as coisas

871
para mim mesmo [56 adolescentes]), 112 (preocupo-me muito [56 adolescentes]), e
75 (sou tímido [55 adolescentes]). Estes itens vão ao encontro das queixas
apresentadas na primeira consulta com o psicólogo.

Considerações finais
A oferta de atendimento psicológica, proporcionada pelos serviços-escola, e,
como neste caso, em um ambulatório multiprofissional, é de extrema importância para
auxiliar o adolescente a se desenvolver de forma saudável. Estudos sobre
adolescência proporciona aos adolescentes, sua família e demais contextos de
convivência, e aos profissionais que atuam com esta faixa etária, conhecimento
importante sobre o desenvolvimento humano.
Os locais de atendimento ao adolescente devem se esforçar para serem
serviços amigáveis aos jovens e a suas famílias. Os cuidados primários precisam ser
de alta qualidade, e estudos como este, do perfil da clientela, favorecem a construção
do conhecimento sobre adolescência, e por conseguinte, o desenvolvimento de
serviços amigáveis, de alta qualidade.

Referências

ACHENBACH, T. M.; RESCORLA, L. A. Manual for the ASEBA School, Age forms
& profiles. Burlington, VT: University of Vermont, Research Center for Children,
Youth & Families, 2001.

AMARAL, A. E. V. et al. Serviços de psicologia em clínicas-escola: revisão de


literatura. Boletim de Psicologia, 2012.

BONADIMAN, M. D. et al. Perfil dos usuários do LIOP – Laboratório de Informação e


Orientação Profissional da UFSC: mudanças observadas nos últimos anos.
Caminho Aberto: revista de extensão do IFSC, v. 1, n. 3, p. 91–100, 2015.

BORGES, C. D. et al. Caracterização de queixas e perfil de usuários atendidos em um


serviço-escola de psicologia. Revista Sul Americana de Psicologia, v. 6, n. 2, p.
185–219,

872
81- PROJETO DE VIDA DE ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA

Jhenifer de Souza Fortunato¹;


Tairine Camila Fernandes45;
Ma. Sueli dos Santos Vitorino²;

Resumo: O presente trabalho trata-se de uma revisão de literatura que buscou


explorar em pesquisas empíricas projetos de vida de adolescentes em cumprimento
de medida socioeducativa. Analisou-se seis artigos científicos encontrados na base
de dados Scielo e em referências bibliográficas, produzidos entre os anos de 2014 e
2018 com o objetivo de identificar os aspectos norteadores do projeto de vida de
adolescentes em conflito com a lei.

Palavras-chave: Medidas Socioeducativas; Projetos de Vida; Adolescente em


Conflito com a Lei; Ato Infracional.

INTRODUÇÃO

Na adolescência escolhas são feitas e projetos começam a ser construídos, contendo


a visão que o adolescente tem de si mesmo, das suas qualidades e daquilo que deseja
alcançar (Catão, Lima, & Marcelino, 2009).

Dias, Machado, Silveira e Zappe (2015) afirmam que os projetos futuros


possuem influência das condições socioeconômicas e culturais apresentadas nos
contextos que os adolescentes estão inseridos.

O adoecimento de uma sociedade impacta todos que nela vivem,


principalmente os adolescentes, que são significativamente mais vulneráveis, tal

1. Graduandos de Psicologia. Universidade de Mogi das Cruzes - UMC

2. Doutoranda em Psicologia Clínica na IPUSP e Docente UMC e Faculdades Educatie

873
impacto compromete a saúde mental desses jovens e os estimula a recorrer a
prostituição, ao uso de drogas, aos atos infracionais, etc. (Aberastury & Knobel, 1981).

A prática infracional é encarada pelos jovens como forma de saída da tensão


entre desejos e possibilidades, uma vez que possibilita o acesso a bens de consumo
que dificilmente seriam conquistados de outra forma, entretanto, essas práticas geram
novas tensões e dilemas em relação aos projetos de futuro, pela possibilidade de
alteração na expectativa de sobrevivência (Koerich, 2016). Segundo o Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE, 2006), grande maioria dos atos
infracionais julgados pelo Poder Judiciário resultam em Medidas Socioeducativas,
essas medidas são divididas entre: medidas privativas de liberdade (internação e
semiliberdade), medidas não privativas de liberdade (liberdade assistida e prestação
de serviço à comunidade) e medidas de internação provisória.

Um estudo de Coscioni, Marques, Rosa, e Koller (2018) a respeito de projetos


de vida de adolescentes em medida privativa de liberdade (internação), evidenciou
que a entrada e a permanência dessa população no mundo do crime se relaciona com
a privação de recursos recorrente da desigualdade social do país, a ausência da
necessidade dos requisitos de escolaridade no mundo do crime (diferente do mercado
de trabalho), o preconceito em relação ao histórico de cumprimento de medida
socioeducativa, as emoções intensas proporcionadas pelos atos infracionais, a
necessidade de aprovação e a impulsividade. A pesquisa ainda chamou a atenção
para um ponto crucial, uma parte dos adolescentes apresentam relatou aspiração de
futuro voltadas a educação, família e trabalho, porém não apresentaram sentido de
ação para essas aspirações, já a outra parte de adolescentes expos projetos de vida
voltados para a prática de atos infracionais que incluía um sentido de ação explicito
para o futuro.

De acordo com Koerich (2016), apesar das medidas socioeducativas não


privativas de liberdade serem maioria em execução no país, ainda é um assunto sobre
o qual pouco se fala no meio acadêmico se comparada as MSE privativas de
liberdade, que devido a sua complexidade ganhou significativa relevância nas
produções das ciências sociais.

Esse estudo tem como objetivo geral identificar os aspectos norteadores do


projeto de vida de adolescentes em conflito com a lei.

874
MÉTODO

Esta é uma pesquisa bibliográfica que segundo Gil (2002) “é desenvolvida com
base em material já elaborado, constituído principalmente através de livros e artigos
científicos”. Esse estudo possui objetivo exploratório, pois possibilita uma investigação
apurada dos aspectos que envolvem o tema em questão além de ser descritiva de
levantamento, uma vez que busca descrever as características de determinada
população (GIL, 2002).

Realizou-se busca por estudos empíricos na base de dados Scielo, no idioma


português, com os descritores: “projetos de vida”, “adolescentes em conflito com a lei”
e “medidas socioeducativas”, porém em decorrência da escassez de estudos sobre o
tema encontrou-se apenas dois artigos. As referências desses dois artigos
encontrados foram analisadas, na tentativa de encontrar outros estudos empíricos,
desta maneira foram encontrados mais quatro artigos, a partir da leitura dos mesmos
descartou-se dois por não se tratar de pesquisa empírica. Realizou-se duas novas
buscas na base de dados Scielo, a primeira com descritores “adolescentes” e “medida
socioeducativa de internação” o que resultou em mais um artigo e a segunda com os
descritores “adolescente” “privação de liberdade” e “futuro” que também resultou em
apenas um artigo empírico relacionado ao tema. Por fim, totaliza-se, neste estudo,
uma amostra de seis trabalhos publicados. Todos os artigos foram lidos integralmente,
analisados quanto aos temas presentes na literatura e os aspectos relevantes
presentes nos artigos e separados por categorias de norteadores que permeiam a
vida do adolescente em conflito com a lei: motivação para o ato infracional, família,
social e escola.

RESULTADOS

A tabela 1 refere-se aos dados dos estudos analisados: título, referências,


instrumentos e participantes da pesquisa. A tabela 2 apresenta os resultados obtidos
através da análise das categorias identificadas nos artigos como principais
norteadores dos projetos de vida dos adolescentes em conflito com a lei. Os artigos
receberem numeração de 1 a 6, para facilitar a identificação em cada tabela.

875
Tabela 1 – Descritivo de artigos para levantamento de dados
Artigo Título Referências Instrumentos de Participantes
Pesquisa
Perfil de adolescentes em LUDKE NARDI, Fernanda; Ficha de dados e questionário 143 adolescentes em
privação de liberdade: MACHADO JAHN, Guilherme; com 47 questões objetivas sobre cumprimento de MSE em meio
eventos estressores, uso de DALBOSCO DELL'AGLIO, fatores de risco e de proteção, fechado no Rio Grande do Sul.
drogas e expectativas de como educação, eventos Idades entre 14 e 20 anos. Sendo
Débora. Perfil de adolescentes em
futuro estressores, violência intra e 128 do sexo masculino e 15 do
privação de liberdade: eventos extrafamiliar, suicídio, uso de sexo feminino.
estressores, uso de drogas e drogas, expectativas do futuro,
expectativas de futuro. Psicol. etc.
1 rev. (Belo Horizonte), Belo
Horizonte , v. 20, n. 1, p. 116-137,
2014 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.p
hp?script=sci_arttext&pid=S1677-
11682014000100008&lng=pt&nrm
=iso>.

Entre trajetórias, desejos e Koerich, B. R. (2016). Entre Observações diárias registradas 10 jovens em cumprimento de
(im)possibilidades: projetos trajetórias, desejos e em diário de campo e entrevistas. medida socioeducativa por
de futuro em jovens da (im)possibilidades: projetos de diferentes atos infracionais
socioeducação de meio
2 futuro em jovens da
aberto.
socioeducação de meio aberto.
Revista Contraponto, 3(2).

Projetos de vida de SIQUEIRA, Aline Cardoso; SEHN, Entrevistas semiestruturadas com 44 adolescentes do sexo
adolescentes em medida Amanda Schöffel; PORTA, eixos norteadores. masculino com idades entre 12 e
socioeducativa: fragilidades Daniele Dalla. Projetos de vida de 20 anos sendo 22 brasileiros e 22
e possibilidades. portugueses.
adolescentes em medida
3 socioeducativa: fragilidades e
possibilidades. Dissertação –
Universidade Federal do
Maranhão, Maranhão, 2015.

Projeto de vida de Silveira, K. S. S., Machado, J. C., Duas entrevistas individuais Cinco jovens do sexo masculino
adolescentes privados de Zappe, J. G., & Dias, A. C. G. guiadas com cada adolescente. que estavam privados de
liberdade: implicações para (2015). Projetos futuros de liberdade pela prática de ato(s)
o processo infracional(is)
adolescentes privados de
socioeducativo
4 liberdade: implicações para o
processo socioeducativo.
Psicologia: Teoria e Prática,
17(2), 52-63.

Sentidos da trajetória de GOMES, Clara Costa; 7 encontros em grupo (método 21 adolescentes dos quais 18
vida para adolescentes em CONCEICAO, Maria Inês sociodramático) cada dia com um eram do sexo masculino e três do
medida de liberdade Gandolfo. Sentidos da trajetória tema: 1) Apresentação da sexo
assistida pesquisa, da equipe e dos feminino. A idade variou entre 15
de vida para adolescentes em
adolescentes; 2) Contrato de e 20 anos.
medida de liberdade assistida. funcionamento do grupo e
Psicol. estud., Maringá , v. 19, levantamento de demandas; 3)
n. 1, p. 47-58, Mar. 2014 . Discussão sobre as demandas e
5 Disponível em: criação do personagem; 4)
<http://www.scielo.br/scielo.php?s Produção individual da história do
cript=sci_arttext&pid=S1413- personagem; 5) Integração das
histórias individuais e criação de
73722014000100007&lng=en&nr
uma história coletiva do
m=iso>. personagem; 6) Escrita da história
pessoal; e 7) Dramatização do
futuro da própria vida e discussão
sobre os projetos de vida.

876
Projetos de vida de COSCIONI, Vinicius; MARQUES, Entrevista e grupos focais de seis 25 adolescentes do gênero
adolescentes em medida Mauricio Pinto; ROSA, Edinete participantes. masculino em medida
socioeducativa de Maria; KOLLER, Silvia Helena. socioeducativa de internação
internação
Projetos de vida de adolescentes
em medida socioeducativa de
6 internação. Ciências Psicológicas,
v. 12, n. 1, 2018.

Tabela 2 – Descritivo de norteadores de Projeto de Vidas dos adolescentes

Artigo Motivação Família Social Escola


para a
conduta
infracional
69, 2% moravam com a mãe, Ser respeitado na comunidade na qual Os adolescentes em conflito com a
28, 7% moravam com o pai, 12,6 está inserido é uma questão importante lei podem se afastar da escola
% tinham a presença do para os adolescentes participantes do justamente por causa do trabalho
padrasto. Monoparentalidade estudo e no discurso de adolescentes do uma vez que as urgências de suas
como aspecto presente na sexo feminino a maternidade é uma vidas lhe cobram dedicação ao
1 maioria das famílias de jovens forma de atingir esse status. O grupo trabalho e ao sustento
em conflito com a lei. formado pelos adolescentes é comprometendo os planos
Expectativa de construir uma considerado um fator de risco ao ato acadêmicos.
família apontada como a mais infracional e muitas infrações podem ser
desejada entre os fatores cometidas nessa relação, assim como, o
expostos aos adolescentes. uso de drogas.
Mundo do crime A evasão escolar foi
como maneira de significativamente observada nos
acesso a bens de entrevistados, tendo como uns dos
consumos, esses seus principais motivos ambiente
bens geralmente escolar não condizente com a
estão associados a realidade dos jovens e abandono
momentos de escolar também por parte dos pais.
conquistas de Escolaridade encarada pelos
relações afetivas e jovens apenas como um modo
2
afirmação da inserção menos precária no
masculinidade. A mercado de trabalho, porém alguns
prática infracional é deles apontam os estudos por si só
encarada pelos como insuficiente para a inserção
adolescentes como digna no mundo do trabalho.
uma forma de
saída da tensão
entre desejos e
possibilidades.
Dificuldade dos Fragilidades na estrutura Os adolescentes em conflito com a
adolescentes em familiar. 37,7 % pai ausente. 34% lei podem se afastar da escola
concretizarem seus famílias monoparentais. justamente por causa do trabalho
projetos de vida uma vez que as urgências de suas
devido a falta de vidas lhe cobram dedicação ao
políticas públicas e trabalho e ao sustento
3
programas que comprometendo os planos
acompanham acadêmicos. Evidencia dos internos
esses jovens após a busca pela conclusão dos
o término da estudos, como um pré-requisito
medida para pensar possibilidades futuras.
socioeducativa.
Os projetos de vida dos Apresentam como projeto desvincular-se Menos da metade dos participantes
adolescentes incluem a da criminalidade, mas não apresentam tem como projeto de vida voltar a
construção de uma família e metas claras para que esse objetivo seja estudar. A minoria apresenta
também auxilio a família de atingido. Adolescentes apresentam projeto de estudo vago, visto que,
4 origem, principalmente a mãe. A projeto de vida limitado, pertinentes a não delimitam o nível de estudo
família é apontada como situação de exclusão e vulnerabilidade que pretende alcançar, tão pouco
referência central nos projetos de vivenciados cursos que pretendem fazer. A
vida. Um dos participantes dificuldade de permanência e de
descreveu como projeto vingar a acesso a escola faz com que o

877
violência familiar que sofreu, estudo não ganhe prioridade dentro
homicídio de seu irmão. do projeto de vida.

Jovens relataram O apoio da família, Aqueles que mantém vínculo com a


perceber a prática principalmente a mãe, é escola tem estruturado um projeto
infracional como apontada como fundamental para de vida, enquanto aqueles que não
um modo de o processo da mudança. tem vinculo com uma instituição de
inserção social. Omissão paterna, mães usam ensino não demonstrar ter nenhum
Relataram ver no técnicas indutivas e pais usam projeto de vida estruturado
ato infracional de técnicas coercitivas. Pessoa com
tráfico e roubo uma a qual o adolescente tem um
maneira de relacionamento amoroso também
conseguir dinheiro é fundamental para o processo
fácil, usado para de mudança.
satisfazer prazeres
pessoais, uso de
5
drogas, festas e
mulheres, portar
arma de fogo.
Sentimento de
descrença na
justiça, fazendo da
prática infracional
uma maneira de
afronta as normas
e inconformismo
com a inoperância
da segurança
social.
A falta de Evidencia-se nos adolescentes Para a concretização da mudança
escolarização e que pretendem desvincular-se da de vida alguns adolescentes
profissionalização, vida do crime a pretensão de reconhecem a importância de
os poucos passar mais tempo com a família retomar os estudos, seja a
recursos, são visto e de constituir sua própria família. conclusão do Ensino Médio,
como motivações Outros pretender retomar a ingresso em cursos técnicos ou
para ingresso conduta infratora na intenção de superiores.
mundo do crime e vingar a morte de uma familiar. Encaram a os estudos como uma
até mesmo para a maneira de se inserir no mercado
6 permanência de trabalho ou de abrir o próprio
neste, visto que, negócio de maneira lícita.
segundo os
adolescentes os
atos infracionais
proporcionam a
eles bens
materiais, prazer e
adrenalina e uso
de drogas.

DISCUSSÃO

Esse artigo buscou identificar os aspectos norteadores do projeto de vida de


adolescentes em conflito com a lei, por meio de uma revisão de literatura. Os
resultados apontaram como norteadores: (1) a relação familiar, (2) o meio social em
que está inserido e (3) a escolarização.

Além dos norteadores dos projetos de vida, foi possível identificar nos estudos
a motivação que levou o adolescente a ingressar no mundo do crime, que na grande

878
maioria dos casos é encarado como uma forma de sobreviver a situação de
vulnerabilidade, desigualdade e exclusão social (LUDKE NARDI, et al., 2014) sendo
essa também motivação daqueles que tem como projeto de vida retomar a conduta
infratora (KOERICH, 2016).

No que diz respeito as relações familiares, notou-se que as relações e os


vínculos dos adolescentes com seus entes contribuem para a esperança de mudança
de vida, os adolescentes projetam possibilitar uma vida melhor para sua família de
origem e a construção de sua própria família (COSCIONI, et al., 2018). Em
contrapartida, situações de omissão, principalmente paterna, contribuiu para a
conduta infracional, além disso, em sua minoria alguns adolescentes apresentam
como ideal retornar ao mundo do crime no intuito de vingar a morte de seu familiar
(PORTA, et al., 2015).

A realidade social em que esses adolescentes estão inseridos não contribui


para que sejam estruturados projetos de vida a longo prazo, desta forma, os
adolescentes em sua maioria apresentam projetos de vida limitados, sem metas claras
para que sejam atingidos os objetivos (DIAS et al., 2015).

Quanto a escolarização, os jovens em conflito com a lei apresentam como


projeto de vida retomar os estudos (DIAS, et al., 2015), ao mesmo tempo que
reconhecem a incongruência entre o ambiente escolar e sua realidade, as dificuldades
advindas de atrasos na aprendizagem e o preconceito em decorrência de seu histórico
infrator (LUDKE NARDI, et al., 2014).

CONCLUSÃO

A partir da realização desse estudo foi possível observar a escassez acerca de


materiais sobre o tema em língua portuguesa e a necessidade dada a relevância do
tema, de uma maior produção científica. Notou-se também a necessidade de políticas
públicas para essa população e a necessidade de que os projetos de vida sejam
pensado juntamente com o adolescente desde o início do cumprimento da medida
socioeducativa a ele imposta, de maneira individual considerando os norteadores de
sua vida e as limitações encontradas por ele. Essa pesquisa tem limitações que não
permitem a generalização de seus resultados, como o baixo número de material

879
estudado, portanto são necessárias mais pesquisas sobre o tema buscando leituras
em outros idiomas, por exemplo, a fim de se ampliar os conhecimentos sobre o tema,
publicados na literatura estrangeira.

REFERÊNCIAS
ABERASTURY, A., & Mauricio Knobel. (1981). Adolescência normal. Porto Alegre:
Artmed.

COSCIONI, V., KOLLER, S. H., MARQUES, M. P., & ROSA, E. M. (2018). Projetos de
vida de adolescentes em medida socioeducativa de internação. Ciencias
Psicológicas, vol. 12, núm. 1.

CONCEICAO, M. I. G., & GOMES, C. C. (2014) Sentidos da trajetória de vida para


adolescentes em medida de liberdade assistida. Psicol. estud., Maringá , v. 19, n. 1,
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DIAS, A. C. G., MACHADO, J. C., SILVEIRA, K. S. S., & ZAPPE, J. G. (2015). Projetos
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socioeducativo. Psicol. teor. prat., São Paulo , v. 17, n. 2, p. 52-63.

GIL, A. C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas.


KOERICH, B. R. (2016). Entre trajetórias, desejos e (im)possibilidades: projetos de
futuro em jovens da socioeducação de meio aberto. Rio Grande do Sul: Revista
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LUDKE NARDI, F.; MACHADO JAHN, G.; DALBOSCO DELL'AGLIO, D. (2014). Perfil
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expectativas de futuro. Belo Horizonte: Psicol. rev.
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PORTA, D. D., SEHN, A. S. & SIQUEIRA, A. C., (2015) Projetos de vida de
adolescentes em medida socioeducativa: fragilidades e possibilidades. Dissertação –
Universidade Federal do Maranhão.
SINASE. Sistema Nacional Socioeducativo. Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente, 2006.

880
82- A (IN)VISIBILIDADE SUBJETIVA QUE ASSOMBRA OS ENCARCERADOS DO
HOSPITAL DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO (HCT) DO ESTADO DA BAHIA:
PERCEPÇÕES DA PSICOLOGIA

Flaviany Silva46
Cláudia Vaz47

Resumo: O encarcerado portador de sofrimento psíquico, encontra-se vulnerável


diante de si próprio, e na sua relação com a sociedade. Em razão de ser visto como
louco é considerado perigoso, não possível de conviver com as pessoas tidas como
“normais”, o que ocasiona preconceitos, discriminações e a exclusão do contexto
social por diversas maneiras. Este artigo buscou, através do relato de experiência,
utilizando uma abordagem qualitativa e fundamentação teórica em artigos e livros
sobre o tema, compreender e discutir a importância do psicólogo forense no manejo
da autopercepção de (in)visibilidade dos encarcerados do HCT do Estado da Bahia.
A análise parte das experiências vivenciadas, durante o período de estágio, tendo
como guia os seguintes fatores: Autopercepção, Família, Valoração Social e Empatia.
Constatou-se que é papel do psicólogo forense, auxiliar no sistema judiciário, além de
contribuir, dentre outras atribuições, com o tratamento, de forma clínica, do portador
de transtorno mental, trabalhar as angústias do encarceramento e do cuidado com os
familiares.

Palavras–Chave: Psicologia Forense. Subjetividade. Hospital de Custódia e


Tratamento. Loucura. Encarcerado

46
Discente do décimo semestre do curso de Psicologia da Universidade Salvador (UNIFACS).
E-mail: flavianyleonardo@yahoo.com.br
47
Psicóloga. Professora adjunta da Universidade Salvador do Mestrado em Direito, Governança e Políticas Públicas
(UNIFACS). Doutorado em Educação pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: claudiavaz@unifacs.br

881
Introdução

O Hospital de Custódia e Tratamento (HCT), anteriormente chamado de


manicômio judiciário, é um local de custódia e tratamento de pessoas que se
encontram em privação de liberdade, devido a alguma infração cometida, necessitam
de avaliação psiquiátrica e psicológica por apresentarem possíveis transtornos
mentais, podendo ou não serem classificados como inimputáveis, ou seja, isentos de
pena pelo judiciário.
De acordo com o Código penal, no Art. 26:

É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental


incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz
de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (Brasil, CP - Decreto
Lei 2848/40)

Por conta da isenção da pena é aplicada a Medida de Segurança, sob a forma


de internamento em hospital de custódia e tratamento (HCT) ou tratamento
ambulatorial, com prazo estabelecido a ser cumprido de um mínimo de um a três anos.
O internamento sustenta-se na periculosidade.
O HCT é um órgão vinculado a Secretaria de Administração penitenciária e de
atuação de segurança, sendo também, considerado clínica psiquiátrica, pois além da
realização de exames que atestem a sanidade mental do infrator, tem o objetivo de
dispor de tratamento psiquiátrico e psicológico ao encarcerado, prezando pela
dignidade do mesmo, bem como garantir a sua qualidade de vida, durante todo o
período de internação (Cordioli et al, 2006 como citado em Ribeiro, 2016).
Os HCT’s foram constituídos no decorrer do século XX, com a finalidade de
custodiar e ressocializar os encarcerados, que por determinação judicial,
encontravam-se cumprindo medida de segurança. Porém, muitas denúncias de maus-
tratos, violência física, o desrespeito ao sujeito e à sua subjetividade são realizadas e
relatadas pelos próprios internos (Basaglia, 1991 como citado em Lira, 2016).
Todavia pouco se sabe como realmente são tratados e sobre a eficácia desse
tipo de instituição. Tanto pelo treinamento e capacitação dados aos funcionários, que
não fazem parte da equipe de saúde, no manejo com os portadores de transtornos
mentais, quanto pela inadequação do espaço físico, e pela necessidade do aumento
do quadro de colaboradores, no que diz respeito aos profissionais de saúde, como

882
psicólogos e psiquiatras, em função da dificuldade em cumprir os prazos
estabelecidos para a emissão dos laudos de sanidade mental, e para a continuidade
do próprio tratamento.
Com isso, o objetivo do artigo é discutir, através do relato de experiência, a
importância do psicólogo forense no manejo da autopercepção de (in)visibilidade dos
encarcerados do HCT, de maneira a validar e explicar, através de uma abordagem
qualitativa, a seriedade do trabalho do profissional de psicologia, expondo como essa
atuação contribui para auxiliar as pessoas privadas de liberdade nesse processo. É
papel do psicólogo forense, auxiliar o sistema judiciário, além de contribuir, dentre
outras atribuições que serão relatadas no decorrer do artigo, com o tratamento, de
forma clínica, do portador de transtorno mental, trabalhar as angústias do processo
de privação de liberdade e do cuidado com os familiares.
O conceito de transtorno mental, segundo o DSM-V (2014), diz respeito a uma
síndrome que afeta significativamente a cognição, o controle emocional e o
comportamento do ser humano, refletindo em alterações psicológicas, biológicas ou
de desenvolvimento implícito a atividade mental.
Para Freud (2016, p.9) na construção da loucura:

[...] em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática, ou os


limites são traçados incorretamente; casos em que partes do próprio corpo, e
componentes da própria vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem
como alheios e não pertencentes ao Eu; outros, em que se atribui ao mundo externo
o que evidentemente surgiu no Eu e deveria ser reconhecido por ele.

De modo que claramente, diante do conceito de loucura, a construção da


subjetividade desse sujeito é afetada, influenciando assim na sua percepção diante
de todo o contexto, a partir do significado que tais situações dão às suas emoções e
ao seu universo idealizado, modificando, portanto, o comportamento diante das
circunstâncias. De acordo com Mameluque (2006), tal constituição se dá de maneira
individual, em função das suas relações sociais, vivências e constituição biológica.

Entretanto, no que diz respeito a sociedade nos diferentes contextos sociais,


devido à falta de informação e manejo no assunto, contribui para que a loucura seja
considerada perigosa, pois denota um ser desajustado, impulsivo e capaz de cometer
os mais diversos atos violentos. Ressalta-se que o termo jurídico periculosidade, de
forma preconceituosa, está vinculado apenas aos portadores de doenças mentais, no

883
intuito de preservar a sociedade dita “normal”, de tais doentes infratores, em que a
avaliação de periculosidade é realizada pelos psiquiatras.

Diante disso, afirmações subjetivas, observadas durante o período de estágio


como: “Eu sou um bicho”; “As pessoas têm medo de mim”; “Me sinto muito sozinho”;
“Quando eu chego perto, as pessoas se afastam”, foram constantes nas experiencias
de estágio dentro do Hospital de Custódia e Tratamento (HCT) – Ba, além dos
sentimentos de medo, angústia e desamparo, em razão de que se sentem esquecidos
pelos próprios familiares e excluídos pela sociedade. Surgem, então,
questionamentos que os deixam vulneráveis diante de si mesmos e dificultam a
construção de projetos de vida e a percepção do significado do sentido de existir. Em
razão de ser visto como louco é considerado perigoso, não possível de conviver com
as pessoas tidas como “normais”, o que ocasiona preconceitos, estigmas e a
consequente exclusão do contexto social por diversas maneiras.

O componente procedimental para a fundamentação do relato de experiência


utilizou-se da pesquisa de artigos e livros, que permitiram a revisão bibliográfica do
tema proposto, fazendo uso de fontes de pesquisa como: SCIELO, PEPSIC, revistas
eletrônicas e livros onde foram triados quais corresponderam ao tema, e assim,
grifados os pontos importantes a serem utilizados na elaboração do artigo.

O artigo teve a natureza de relato de experiência, de forma exploratória, com a


intenção de discutir novos saberes, de maneira a contribuir para a forma de atuação
da psicóloga ou psicólogo forense, e sua importância para o manejo da autopercepção
de (in)visibilidade dos encarcerados, portadores de transtornos mentais, em privação
de liberdade. Assim, através de uma análise qualitativa de dados, foi captado a
essência dos acontecimentos, e que possibilitaram o aprofundamento das vivências,
que por mais que seja de modo particular, o trabalho da psicóloga ou psicólogo terá
uma condução muito semelhante dentro dos predizeres éticos que serão norteadores
para atuação do profissional.

De maneira que o método usado foi o hipotético-dedutivo, o observacional e


entrevistas, pois foram utilizadas as vivências relatadas, encontradas em artigos dos
últimos dez anos que tiveram êxito, e as vivências empíricas observadas durante os
atendimentos aos internos do HCT-Ba, em decorrência do estágio específico III, do

884
curso de psicologia, no ano de 2019, permitindo assim, que se valide a hipótese
proposta.

Este estudo está dividido em três seções. Na primeira seção, há a introdução


ao tema proposto, na segunda seção, são analisadas a construção da loucura, o
processo da subjetividade. Na terceira seção, o estudo tende discutir o processo de
autopercepção do encarcerado, bem como todo esse contexto pode influenciar no
processo da doença, refletindo sobre a atuação do psicólogo no âmbito jurídico e a
loucura na sociedade.

A loucura

A loucura é atravessada por muitas crenças, conceitos interpretados de


maneira errônea e comportamentos que acabam por colocar, à margem da sociedade,
os classificados como loucos. Tais loucos são excluídos do convívio social, sendo
muitas vezes colocados em hospícios e assim esquecidos pelos próprios entes
queridos. E por que não seriam esquecidos pela sociedade?
Para Foucault (2010, p.8), a história da loucura é marcada tanto pela
convivência com os loucos “conhecidos”, quanto pela exclusão e indiferença com
relação aos loucos “desconhecidos”. Mas ao acontecer a ruptura entre a razão e a
loucura, dando lugar a loucura como patologia, a segregação passa a ser crucial na
“convivência” com os loucos de maneira geral, dando origem à “estrutura de exclusão”
(Batista, 2014).

É incorporado à história da saúde mental, maus-tratos, violência e tortura,


desaprovação do ser enquanto existente no mundo e sua subjetividade. Os sujeitos
portadores de transtornos mentais, eram transferidos para outros lugares e fora da
sua cidade natal, com o pressuposto de assegurar a sociedade da não convivência
com os loucos. (Foucault, 1997 como citado em Lira, 2016; Basaglia, 1991 como
citado em Lira, 2016)

Faz-se importante salientar que tais lugares não eram exclusivos dos
portadores de transtornos mentais, e sim um local onde as pessoas que eram
excluídas ou consideradas criminosas, como loucos, prostitutas e doentes, dividiam o
mesmo espaço. Espaço esse sem o objetivo de medicalização, mas apenas
assistencial, “semijurídica”. (Lira, 2016)

885
Foi a partir do século XVIII que passaram a separar os loucos dos criminosos,
e assim a loucura começou a fazer parte do âmbito médico, porém não houve a
libertação dos loucos, e sim um aprisionamento ainda maior deles. De forma, que eles
eram acorrentados, trancados e tratados como bicho.
De acordo com o psiquiatra Philippe Pinel, para se conhecer a loucura faz-se
necessário a liberdade deles, no intuito de observar, descrever e classificar, atestando
ou não a patologia. Para tal, sugeriu a soltura dos loucos, dentro do local em que eram
mantidos presos, a fim da comprovação do seu método e de um tratamento mais
“humanizado”. (Foucault, 1997 como citado em Lira, 2019; Amarante, 1996 como
citado em Lira, 2019)
Segundo Foucault (2008) como citado em Povidello e Yasui (2013), a loucura
é algo produzido pelo próprio homem, advém de um saber médico, sendo esta
classificação o início de uma segregação da sociedade, onde de um lado ficam os
“normais” e do outro, de maneira excluída, os “loucos”, sob a alegação de que tal
separação é para a segurança da própria sociedade. E entender como funciona essa
estrutura de exclusão, o que está por baixo dessa operação, foi o objetivo de Foucault.
A loucura, até chegar o momento de ser compreendida como doença mental,
passou por diversos períodos históricos, tornando o significado constituído atualmente
pelo saber médico, e experiências da sociedade, um conceito diferente dos tempos
anteriores. Entretanto, Foucault (2006) não conceitua a loucura, pois o que realmente
importa é o que é compreendido, o significado dado a essa palavra, e o que as
diversas formas de se pensar podem alterar com relação a essa exclusão. Mas, para
isso se faz importante expor os mecanismos de eliminação que rodeiam em torno do
conceito médico e a própria loucura, enquanto estratégia que se operava sobre os
corpos.
A construção da loucura perpassa por diversas experiências vividas pela
humanidade no decorrer dos tempos, em que significados e condutas foram retiradas
e acrescentadas, a fim de adequação para o convívio considerado aceito por todos,
até se transformar no que se conhece por doença mental. Pois os loucos de outrora
eram aquelas pessoas que diziam a verdade, tidos como geniais e criativos, só que
de uma maneira exagerada, e válida pela sociedade, ou seja, ainda não excluídos.
No momento em que se misturam loucos, prostitutas, doentes etc., há a
vitimização, no sentido de exclusão, do corpo do louco, tal como os leprosos, na sua
época. De modo que passam a viver numa lógica a parte da sociedade, passando a

886
ser compreendido pela medicina, como doente, sendo atrelado a incapacidade de si
e a convivência com os outros.

O processo de autopercepção do encarcerado


A forma como o sujeito se percebe está intrínseca à construção da sua
subjetividade e da percepção do seu contexto social. A subjetividade é formada ao
longo da vida do sujeito, diante de todas as suas vivências, contexto social, cultura no
qual está inserido e seu desenvolvimento biológico, de forma a considerá-lo um ser
único, tornando-os seres iguais, diante de uma classificação social, e ao mesmo
tempo diferentes, perante o significado dado a tais situações (Lira, 2016).

Entretanto, no contexto do encarcerado, a subjetividade desse sujeito é posta


em dúvida, pois ela acaba se perdendo diante do novo contexto vivenciado. A começar
pela perda da liberdade, dos pertences, da individualidade, das vestes, pois falam
muito sobre sua forma de se expressar junto ao mundo, e passando a ter hora para
dormir, comer, tomar banho de chuveiro e de sol, falar com seus familiares, caso
sejam presentes.

A sistemática violação da intimidade do preso, com as naturais consequências


ofensivas ao patrimônio físico, moral e espiritual, compõe um trecho significativo dessa
odisseia[...]Carnelutti, como citado em Dotti, assim definiu esse aspecto do drama
carcerário: O recluso deixa de sentir-se um homem. O signo do homem é seu nome,
e recluso já não tem nome. A essência do homem é a individualidade, e o recluso já
não tem individualidade. (Dotti, 1998, p.104 como citado em Mameluque, 2016).

Essa perda da identidade e do mundo, que é visivelmente perceptível, diante


dos próprios muros do HCT, dos olhares distantes dos próprios internos, do
tratamento social ofertado pelos agentes, que se mostram despreparados para tal
manejo, são trazidos através dos discursos dos encarcerados, obtidos pelas
entrevistas e gritos pelos corredores do HCT, de acordo com os depoimentos a seguir:

“As pessoas têm medo de mim...Poucas pessoas aqui dentro e lá fora, pegam
na minha mão direito...eu me vejo como um bicho...” (F., 40 anos)

“Me sinto presa...oprimida aqui dentro.” (R., 39 anos)

“Não é assim que trata uma pessoa...fale comigo direito que não sou bicho...”
dirigindo-se ao agente penitenciário (J., 30 anos)

887
Diante de tal invasão física, social e subjetiva, o encarcerado se perde na sua
própria existência e atrelado aos sentimentos de medo, angústia e desamparo, pois
sentem-se esquecidos pelos próprios familiares e excluídos pela sociedade, começam
questionamentos que os deixam vulneráveis diante de si mesmos e tirando o
significado do sentido de existir, trazendo a autopercepção de (in)visibilidade perante
a si e ao mundo.

A atuação do psicólogo forense no sistema prisional

Existem muitas dúvidas sobre o que é, e o que realmente faz um psicólogo


forense. Perguntas como: Quais são suas atribuições? Para que serve? Como me
tornar um psicólogo forense? Essas inquietações são constantes quando surge o
assunto.

A psicologia forense é uma área de especialização e tida como nova no


contexto judicial. Pelo fato de ser uma área de início recente, existem vários
significados no que diz respeito ao seu papel dentro da justiça. Papéis estes que vão
desde a identificação de cena do crime, para possíveis características dos criminosos,
passando por palestras, debates e até aplicação da lei. (Paulino & Almeida, 2014;
Huss, 2011)

Segundo Paulino & Almeida (2014), a especialização nessa área consiste em


preparar o profissional de psicologia para a descrição da pessoa, sua maneira de
pensar e agir, suas formas de se relacionar socialmente e sobre o seu papel no
contexto em que vive, utilizando para tal, além da teoria, a sua percepção.

De maneira que a atuação do psicólogo forense incide em assessorar o sistema


legal. O discurso e as práticas em psicologia estão atrelados ao sistema judiciário.
Isso inclui a psicologia cognitiva, psicologia fisiológica, psicologia do desenvolvimento,
psicologia social, psicologia penitenciária, psicologia criminal e psicologia clínica
(Huss, 2011), sendo esta última o foco da atividade do psicólogo dentro do Hospital
de Custódia e Tratamento (HCT).

As atribuições do psicólogo no sistema prisional baseiam-se em:

[...] avaliações psicológicas e elaboração de relatórios, laudos e pareceres; atenção


psicológica; pronto-atendimento; encaminhamentos; reuniões de equipe;

888
acompanhamento extramuros; atuação nas relações institucionais; atuação em rede;
elaboração de projetos, pesquisas e produções e práticas acadêmicas; promoção de
eventos; recrutamento e seleção; atuação conjunta com a equipe de saúde;
coordenação da biblioteca (CREPOP, 2012).

A prática do psicólogo dentro do Hospital de Custódia e Tratamento, é voltada


para a avaliação de sanidade mental, pareceres e tratamento dos encarcerados
portadores de transtornos mentais. O profissional irá avaliar a imputabilidade penal;
efeitos da violência na vítima e a possível existência de algum transtorno. Cabe ao
profissional de Psicologia questionar-se sobre a loucura: É a loucura que pertence a
sociedade ou é a sociedade que pertence à loucura? A vertente aqui explanada é o
ponto em que a sociedade estigmatiza, discrimina o louco e o louco infrator. Uma vez
que existe uma coletividade despreparada para conviver com a loucura, devido a uma
cultura enraizada de que o louco, seja ele infrator ou não, tem que ficar no hospício,
fora do convívio social, pois são imprevisíveis e perigosos. De modo que tal postura
mostra claramente a falta de informação que resulta na falta de empatia e manejo,
para com os portadores de transtornos mentais.

Os cuidados que permeiam o tratamento dos doentes mentais, requer, nos dias
de hoje, a participação efetiva tanto da família, quanto da sociedade. Porém, o medo
e o preconceito que estão intrínsecos a este contexto, ocasionam o despreparo
criando muitos percalços para a ressocialização do encarcerado, após a saída do
HCT. E quando se fala em sociedade, inclui-se também, os profissionais envolvidos,
tanto dentro do Hospital de Custódia e Tratamento, quanto os profissionais dos
centros psicossociais.

Para Maciel et al (2011), tais questões emocionais e culturais é que atrapalham


o processo e a aceitação dessa política de assistência, devido ao significado dado ao
louco, como sendo um ser sem razão, sem juízo, imprevisível e agressivo. O que torna
o encarcerado incapaz de conviver fora dos muros do HCT, sendo assim esquecidos
pela sociedade e família, em razão dessas representações influenciarem na interação
com os mesmos. Vale ressaltar, que esses significados contribuem bastante na
continuidade da segregação dos loucos frente ao mundo ao qual pertence.

Para Melman (2001), a sociedade atual não está preparada para o desafio de acolher
e cuidar das pessoas acometidas por transtorno mental grave. Ainda predomina a
visão preconceituosa em relação ao fenômeno da doença mental, o que continua

889
propiciando o processo de exclusão e de marginalização social e afetiva dessas
pessoas que necessitam de atenção psiquiátrica. (Maciel, S., Barros, D., Camino, L.,
Melo, J., 2011)

Faz-se importante salientar que as classes tidas como dominantes é que


corroboram para que tais significados permaneçam inseparáveis à loucura, em razão
de utilizarem essa fundamentação nas decisões de inimputabilidade, internação
involuntária/compulsória e interdição. Fomentando “verdades” com relação aos
loucos, fazendo com que sua ressocialização se torne inviável, devido a maneira de
se comportar ser diferente dos demais (Barros-Brisset, 2012).

Os profissionais de psicologia no contexto de atuação no Hospital de Custódia


e Tratamento não devem limitar-se a análise dos fatores individuais (orgânicos,
psiquiátricos, personalidade e sociofamiliares) da pessoa que cumpre medida de
segurança. É preciso ter atenção aos aspectos biopsicossociais, valorizar os fatores
ambientais, observar a vida da pessoa que cometeu o crime e as intervenções que
ocorreram.

Relato e análise de experiência

A experiência se deu em decorrência do estágio específico III, do curso de


psicologia, no ano de 2019, permitindo assim, que se valide a hipótese proposta. A
observação foi feita empiricamente durante os atendimentos realizados aos
encarcerados, através dos discursos e de maneira natural de acordo com o dia a dia
na instituição, englobando todos os contidos no contexto, encarcerados, profissionais
e familiares.

A análise foi realizada por uma estudante de psicologia do 10º semestre,


partindo das experiências vivenciadas, durante o período de estágio, tendo como guia
os seguintes fatores: Autopercepção, Família, Valoração Social e Empatia.

Autopercepção

Foi claro perceber que os encarcerados se sentem (in)visíveis perante o


mundo, diante da classificação da loucura que lhe é intitulado e o tratamento atribuído
pelos agentes penitenciários e profissionais que não são da área de saúde. São
invadidos por tantas regras, horários e vestes, que acabam por tirar a autonomia de

890
si mesmos e por consequência sua identidade, enquanto seres humanos. Trazendo o
medo e a angústia como sentimentos predominantes e juntamente, diante de tal
invasão, uma autopercepção de (in)visibilidade perante a si e ao mundo.

Família

Independente do sofrimento psíquico que existe por trás de cada encarcerado,


há uma família que nitidamente não está preparada para lidar com tal situação, tanto
pela falta de conhecimento sobre o assunto, quanto pelo preconceito existente por
parte de uma sociedade que, também, não está preparada para lidar com a loucura,
e com isso estigmatiza os familiares e a loucura. E toda essa falta de manejo, acaba
por contribuir com o medo e a angústia desses familiares, ao se deparar com um louco
no seio familiar.

Valoração social e empatia

O tratamento que é atribuído ao encarcerados, reflete um clima de descaso e


falta de manejo no que diz respeito a saúde mental e principalmente ao significado de
humanização. É notório a expressão de tristeza e falta de cuidado junto aos
encarcerados, devido a grosseria e falta de empatia por parte dos agentes
penitenciários. Existe uma desvalorização social partindo do próprio contexto do HCT,
local este que tem o objetivo de ressocialização, mas que na prática, contribui para a
exclusão, quase que em massa, dos encarcerados do convívio social, tanto por falta
de profissionais de psicologia e psiquiatria, como na falta de capacitação dos
profissionais que não são da área de saúde, no processo de manejo.

Considerações finais

Este artigo discutiu por meio de um relato de experiência, a importância do


psicólogo forense no manejo da autopercepção de (in)visibilidade dos encarcerados
do HCT, de maneira a validar e explicar, através de uma abordagem qualitativa, a
seriedade do trabalho do profissional de psicologia, expondo como essa atuação
contribui para auxiliar as pessoas privadas de liberdade nesse processo. A prática do
psicólogo dentro do Hospital de Custódia e Tratamento, é voltada para a avaliação de
sanidade mental, pareceres e tratamento dos encarcerados portadores de transtornos
mentais. O profissional irá avaliar a imputabilidade penal; efeitos da violência na vítima

891
e a possível existência de algum transtorno. Cabe ao profissional de Psicologia
questionar-se sobre a loucura: É a loucura que pertence a sociedade ou é a sociedade
que pertence a loucura? Constatou-se que é importante valorizar os fatores
ambientais, observar a vida da pessoa que cometeu o crime, as intervenções que
ocorreram e os aspectos biopsicossociais.

É importante salientar, também, a existência de um ambiente mais humanizado


quanto ao tratamento destinado ao portadores de sofrimento psíquico, de forma a
modificar as práticas desenvolvidas pelos profissionais que não são da área de saúde,
além do aumento dos psicólogos e psiquiatras para que seja possível desenvolver um
trabalho mais efetivo junto aos encarcerados, sempre pautado pela ética de respeito
ao próximo, e no entendimento de que cada sujeito é único e percebido na sua
integralidade.

Tal experiência foi positiva no sentido do cuidado do outro em sofrimento, de


forma singular, e fazer uma reflexão, como incentiva Foucault, de sempre olhar com
estranhamento e resistência os comportamentos tidos como regras de maneira que
equiparam o sujeito, e acabam com sua subjetividade, deixando apenas uma única
visão de “cura” e “tratamento” das doenças do corpo, e buscar maneiras de cuidar que
não destruam a existência e sua singularidade.

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medida-de-seguranca-no-brasil>

894
83- QUEM SÃO AS VÍTIMAS SEGUNDO OS RELATÓRIOS SOBRE VIOLÊNCIA?

Thais Teixeira
Maria Carolina Rissoni Andery
Maria Helena Pereira Franco

Resumo: O número de casos de homicídios na cidade de São Paulo apresenta a


realidade vulnerável à qual os habitantes estão expostos. Por meio dos dados dos
Atlas da Violência 2017, 2018, e 2019 e Índice de Vulnerabilidade Racial de 2014 e
2017, evidencia-se a necessidade de se refletir acerca da vulnerabilidade e o perfil
das vítimas de homicídio. Este artigo tem como objetivo discutir os dados presentes
nos Atlas da Violências, Índice de Vulnerabilidade Racial e a forma como os relatórios
compreendem e apresentam as vítimas, definem um perfil e discutem sobre saúde e
segurança pública. Para tanto, o método utilizado é o qualitativo a fim de interpretar o
objeto de estudo e compreender o fenômeno, violência. A análise dos dados direciona
a discussão das representações sociais das vítimas e ajuda a compreender como são
mencionadas, uma vez que há um grande número de jovens, sendo em sua maioria
homens e negros. Além disso, de acordo com os Atlas da Violência, há diminuição no
número de mortes na cidade de São Paulo, dado que reforça a reflexão acerca das
mortes por causa indeterminada e possíveis subnotificações, assim como discutem
os Atlas, o Índice de Homicídios da Adolescência (2017, 2018).

Palavras-chave: Violência; Atlas da Violência; Vulnerabilidade Social; Homicídio.

Introdução

O Atlas da Violência tem como marco de origem a parceria entre o Instituto de


Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP) e, segundo Cerqueira et al. (2017), este estudo objetiva - a partir de dados
empíricos - promover análises e discutir possibilidades em relação à diminuição dos
altos índices de homicídios de jovens. Cerqueira e Lobão (2004), Cerqueira (2013,
2014) e Cerqueira e Moura (2014) vêm discutindo a temática da letalidade juvenil,

895
destacando o perfil de vítimas composto por jovens do sexo masculino, negros e
moradores de periferias, com baixo poder econômico e com baixa escolaridade.
Numa apresentação inicial dos assuntos abordados nos três últimos Atlas da
Violência (Cerqueira, et al., 2017, 2018 e 2019), com base nas informações fornecidas
nos sumários destes relatórios, apontamos que todos apresentam a questão dos
homicídios nas unidades federativas, por região - como representado no Gráfico 1
(Cerqueira et al., 2019) - homicídio dos jovens nomeado como juventude perdida,
violência contra negros e contra a mulher, armas de fogo e em relação às mortes
violentas indeterminadas e a qualidade dos dados. Os atlas de 2017 e 2018
apresentam um estudo evolutivo dos homicídios no Brasil e dados sobre ações
policiais, sejam a forma violenta com que elas são impostas e sua letalidade. Os atlas
de 2018 e 2019 divulgam o estudo sobre segurança pública. O atlas de 2018 amplia
a discussão dos dados sobre a evolução de homicídios no mundo e nos continentes
e nos países além de apresentar os objetivos de um desenvolvimento sustentável. Por
sua vez, o de 2019 veicula informação sobre a conjuntura da violência letal no brasil
e sobre violência contra a população LGBTI+.

Gráfico 1 - Taxa de Homicídios no Brasil e regiões (2007-2017)

Fonte: Cerqueira et al. (2017).

896
Os números apresentados promovem uma reflexão acerca do problema de
segurança pública e desenvolvimento, citados pelos autores, e sobre a diferença racial
existente no país. Esse percurso teórico é consolidado junto ao Mapa da
Desigualdade (2015-2016, 2017) e aos Índices de Vulnerabilidade Juvenil à Violência
e Desigualdade Racial (2015, 2017), que têm como objetivo gerar material com a
intenção de formulação e implementação de políticas públicas considerando o
enfrentamento dos altos números de violência contra adolescentes e jovens entre 12
e 29 anos (os três Atlas da Violência indicam os jovens entre 15 a 29 anos) e
estratégias de prevenção; e em seus dados discutem o risco relativo em relação a
análise racial entre negros (negros e pardos) e brancos (brancos e amarelos) e
variáveis socioeconômicas.
Nesse sentido o Índice da Desigualdade de 2015 (p. 23), expressa que “o
panorama nacional apresenta uma taxa de homicídio entre jovens negros 155% maior
do que a de jovens brancos” o que mostra a seletividade da violência e a necessidade
de implementação de políticas públicas focalizadas para este grupo de risco. São
Paulo está abaixo dessa média nacional e apresenta a menor taxa da região sudeste
de homicídio de jovens negros; mesmo assim ao olharmos para os números é de
49,1% a diferença entre homicídios de jovens negros para jovens brancos. E o
Relatório Anual de 2015-2016 (Mapa da Desigualdade) da Rede Nossa São Paulo
demonstra que há diferença de 25 anos na expectativa de vida de moradores dos
bairros Cidade Tiradentes e Alto de Pinheiros na cidade de São Paulo. Ou seja, os
dados demonstram fenômenos socioeconômicos e demográficos com forte correlação
entre vulnerabilidade dos jovens à violência e diferenças regionais. Fatores que
devem ser enfrentados a partir de políticas de prevenção e integração das áreas
correspondentes (saúde, educação, habitação) e União, Estado e municípios.
Cabe ressaltar que a análise deste artigo é realizada sobre dados de fontes
secundárias, os relatórios do Atlas da Violência e Índice de Vulnerabilidade, com o
intuito de destacar a notoriedade e influência destas pesquisas que são usados como
referências materiais para embasar outros estudos, desenvolvimento de diretrizes de
políticas públicas e medidas de segurança pública.
Portanto, serão apresentados os dados, compilados pelo ano base, dos três
Atlas da Violência para que possamos discutir com os dados presentes nos Atlas da
Violências, Índice de Vulnerabilidade Juvenil e Desigualdade Racial e a forma como

897
os relatórios compreendem e apresentam as vítimas, definem um perfil e discutem
sobre saúde e segurança pública.

Atlas de 2017 Atlas de 2018 Atlas de 2019


(ano base 2015) (ano base 2016) (ano base 2017)

Quem mais morre homens entre 15 a homens entre 15 a homens entre 15 a


por homicídio? 29 anos 19 anos 19 anos

Número de 31.264 jovens 33.590 jovens 59,1% do total de


homicídios assassinados - assassinados - 65.602 de óbitos -
92% sexo 94,6% sexo 94,4% sexo
masculino masculino masculino

Homicídios de negros 71% das negros 71,5% das negros 75,5% das
pessoas negras pessoas pessoas que são pessoas
assassinadas assassinadas assassinadas

Nesta tabela, são apresentados os dados sobre homicídio por ser a maior
causa de morte apresentadas pelos autores. Percebe-se a relevância desta análise
devido o aumento dos índices de homicídio de jovens negros à nível nacional.
Cerqueira et al. (2019) apresentam um aumento de 33,1% na taxa de homicídios de
negros, descrevendo uma piora na letalidade racial no Brasil e exemplificando o
possível problema de desenvolvimento econômico, social e de saúde. Os autores
(Cerqueira et al., 2017, 2018, 2019; Brasil, 2014, 2017) discutem o fato por serem os
jovens as principais vítimas e por estar em curso uma transição demográfica com o
envelhecimento da população - discussão presente socialmente quando falamos da
previdência, por exemplo. Isto demonstra que a importância de tal discussão está para
além desses dados.
A alta letalidade de jovens gera fortes implicações, inclusive sobre o
desenvolvimento econômico e social. De fato, a falta de oportunidades, que
levava 23% dos jovens no país a não estarem estudando nem trabalhando em
2017, aliada à mortalidade precoce da juventude em consequência da
violência, impõem severas consequências sobre o futuro da nação (Cerqueira
et al., 2019, p. 6).

898
Além do problema relacionado ao número de morte dos jovens, há outro fator
de extrema importância, o número de pessoas negras que são assassinadas. Como
podemos ver na tabela, o número de negros que são assassinados é grande,
demonstra a vulnerabilidade dessa parcela da população em comparação com não
negros e alertam para o racismo presente na sociedade, definindo um perfil em
relação a quem mais morre. Isto concorda com o Índice de Vulnerabilidade Juvenil e
Desigualdade Racial (2015), que demonstrou a relação entre a cor da pele e o risco
de exposição à violência e sua observação sobre a agenda de inclusão social e um
novo modelo de desenvolvimento brasileiro: “deve ser o da redução das
desigualdades raciais, até como instrumento de prevenção das absurdas taxas de
mortes violentas no país”. (Brasil, 2015, p. 40).
Em relação ao gênero das vítimas, os Atlas de 2017, 2018 e 2019 e o Índice de
Vulnerabilidade Juvenil e Desigualdade Racial de 2014 demonstram que o maior
número de homicídios é dos homens. Já o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à
Violência e Desigualdade Racial de 2017, demonstra que a taxa de homicídio é maior
entre as mulheres negras, deixando fora dessa estatística somente o Paraná; outra
mudança apresentada neste material é o ajuste relacionado à faixa etária, nesta
edição os jovens são considerados entre 15 e 29 anos, assim como nos Atlas da
Violência.
Há mais um fator importante a ser investigado e está relacionado à qualidade
dos dados, sendo uma temática abordada nos três Atlas (2017, 2018, 2019).
Compreende-se que, conforme mais apurada é a qualidade dos dados, mais se
alcança a realidade dos fatos e legitima o discurso. Por exemplo, diante de um
homicídio seguido de ocultamento de cadáver, pode-se se tratar de um caso de
inscrição na lista de desaparecidos, sem que a família saiba a veracidade dos fatos.
Carneiro e Gennari (2019) destacam que o direito fundamental da identidade pessoal
das vítimas de crime, propondo a utilização do banco de dados genéticos nacional, a
fim de identificar o corpo das vítimas além de retirá-las das listas de desaparecidos,
pois não seria a lista adequada para o caso. Deste modo, a subnotificação ou o
escamoteamento dos dados afasta a compreensão da realidade, podendo influenciar
na promoção e manutenção de políticas públicas para a redução de homicídios
juvenis, conforme indicam os dados dos relatórios supracitados.
Acerca do perfil das vítimas destacado, Feffermann (2013) identifica uma
perpetuação de ideologias racistas apartando-os como “classes perigosas”, que

899
resulta no genocídio da juventude negra cometido tanto pelo crime organizado
associado ao tráfico quanto pela força do Estado, concretizando a letalidade policial.
Ou seja, tem-se um perfil de quem mais morre no país e consequentemente um
problema de saúde pública e desenvolvimento social.
Em relação a São Paulo, há pequena diminuição na taxa de homicídio do
Estado desde os anos 90. No tocante aos anos base e números: em 2015 foram 5.427
homicídios, em 2016: 4.870 e em 2018: 4.631, segundo o Atlas de 2019 (p. 20) “a
diminuição registrada em 2017 (-5,6%) tem que ser vista com bastante cautela, uma
vez que a taxa de mortes violentas com causa indeterminada (MVCI) aumentou 13,4%
nesse último ano”. A isto, relaciona à qualidade da classificação dos dados.
Apesar dos números apresentados nos Atlas da Violência e Índice de
Vulnerabilidade Juvenil à Violência e desigualdade social de 2017 em que mostra que
apesar da taxa com menor disparidade, no Estado de São Paulo há 1,6 vezes mais
risco de jovens negros morrerem aos jovens brando, se observarmos somente a
cidade de São Paulo, temos, como foi exposto, há uma grande diferença em relação
a expectativa de vida na cidade. Situação que nos deixou com perguntas: as pessoas
que moram nas periferias de São Paulo, as quais a expectativa de vida é reduzida em
25 anos em relação às pessoas que moram em bairros nobres da capital paulista, têm
acesso à essa informação? Compreendem essa diferença? Em qual medida elas são
ouvidas para construção de materiais acadêmicos e de referência sobre o assunto?

Considerações Finais

Os dados encontrados nos materiais vão de acordo com a observação feita no


Índice de Vulnerabilidade Juvenil e Desigualdade Racial de 2014: “sem um olhar
institucional sobre como temos gerido ações, programas e políticas públicas de
segurança, os dados apenas irão retratar processos históricos e políticos e pouco
avançaremos na conquista de maior eficiência democrática e de inclusão cidadã” (p.
40). Pois, como foi demonstrado na tabela, há um aumento no número de homicídios
contra os jovens, em específico os jovens negros, o que retrata a fala de Feffermann
(2013) e ressalta o imaginário popular do combate a um inimigo.

Além disso, a leitura dos dados e discussão sobre diminuição do número de


homicídios e quem são os alvos principais nos leva a pensar sobre a dificuldade de

900
acesso direto às pessoas mais vulneráveis - e, consequentemente, vítimas diretas e
indiretas desses crimes - seja para intervenção, seja para a pesquisa. Esta redução
dos índices é abordada por Cerqueira (IPEA, 2018), quando declara a necessidade
do trabalho conjunto entre agentes sociais e políticos para a diminuição dos
homicídios no Brasil, embasado na proposta da gestão política. O autor afirma,
também, que:

Segurança Pública é algo que depende da união de vários esforços: do Estado,


dos vários órgãos do Estado – e estamos falando não apenas do Executivo, mas o
Legislativo e o Judiciário, empresários, comunidades envolvidas e a academia. Então,
tem que haver uma articulação e mobilização de todos esses atores sociais e políticos
e, por isso, o comprometimento do político principal é fundamental para fazer essa
articulação. (0:38’ – 1:03’).

Em vista disso, diante dos estudos e relatórios que analisam os dados de


violência, é preciso tornar práticos os esforços voltados à esta temática, com
implementação de prevenção de violência e busca de resolução dos casos
executados. É reiterada a importância da ação coletiva visando a diminuição desse
índice de homicídios, contando com os esforços da Segurança e Saúde Públicas junto
à sociedade, para a compreensão e dissolução deste perfil que nasce com prazo de
vida delimitado, mediante a violência acometido por e contra ele. Assim como, faz-se
importante dar voz e visibilidade às vítimas indiretas e parte da população mais
afetada, uma vez que são identificadas, parte de diversas discussões sobre o assunto
e a participação delas no processo de execução dos materiais e/ou políticas públicas.

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https://nossasaopaulo.org.br/portal/mapa_2017_completo.pdf

902
84- OFICINA PSICOSSOCIAL, MASCULINIDADES E SAÚDE MENTAL DE
HOMENS: RELATO DE EXPERIÊNCIA

Itallon Lourenço da Silva48


Breno Cesar de Almeida da Silva49
Dolores Cristina Galindo50
Vanessa Clemente Furtado51

Resumo: Trata-se de um relato de experiência que discorre sobre uma oficina


realizada pelo “Coletivo de Saúde Mental”, projeto de extensão da Universidade
Federal de Mato Grosso, com o tema Masculinidades e Saúde Mental dos Homens.
A oficina baseou-se no método de oficina psicossocial para a compreensão das
masculinidades e dos aspectos sociais envolvidos no sofrimento psíquico dos
homens. Os resultados apontaram para a existência de relações conflituosas entre as
masculinidades e dificuldades de expressão de sentimentos envolvidos a “medo” e
“amor”. Foi possível constatar também uma heterogeneidade das masculinidades,
envolvendo aspectos como raça, classe e orientação sexual como necessários para
compreensão do fenômeno.

Palavras - Chave: Saúde Mental; Masculinidades; Gênero; Homens.

Introdução
As Masculinidades e Feminilidades são, para a Psicologia Social da Saúde,
determinantes sociais nos processos de saúde e doença. Na compreensão de Buss e
Pellegrini Filho (2007), determinantes sociais dizem respeito a um conjunto de “fatores
sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que
influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população”

48
Psicólogo. Graduado pela Universidade Federal de Mato Grosso
49
Psicólogo. Mestrando em Psicologia pela FFCLRP - Universidade de São Paulo
50
Psicóloga. Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso
51
Psicóloga. Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso

903
(p 78). Assim, as formas como as masculinidades, como produtos da cultura, são
construídas social, cultural e historicamente, bem como a forma como são ensinadas
por meio de socialização influenciam em como os sujeitos agem, pensam, sentem,
expressam-se, e também como adoecem, sofrem e percebem o mundo ao seu redor.
As imposições das masculinidades, em especial a masculinidade hegemônica,
estabelecem-se à partir de práticas sociais, cobranças e atitudes que são iniciadas na
infância, concretizam-se na vida adulta e se prolongam até a velhice. Apontando sua
característica normativa, Connell e Messerschmidt (2013) conceituam a
masculinidade hegemônica como distinta das masculinidades subordinadas,
ressaltando que sua imposição se deu não só como expectativas de papéis sociais,
mas principalmente como um padrão de práticas, estabelecendo, desta forma, uma
hierarquia entre as masculinidades. Portanto, essas práticas sociais operam como
mecanismos reguladores para enquadrar os indivíduos no que se determina como
como sendo comportamentos de homens e de mulheres, e para estabelecer uma
hierarquia entre as próprias masculinidades.
Ao discorrer sobre as construções de masculinidades, Nascimento, Segundo e
Barker (2011) ressaltam a importância de considerar fatores sociais como raça/etnia,
classe, orientação sexual, geração na interpretação das masculinidades. Com tais
ideias, enfatizam que o olhar amplo para a temática ajuda a compreender a pluralidade
de ser homem, os diferentes perfis de masculinidades e considerar a existência de
diferentes construções. Tais ideias vão de encontro com o pensamento de Connell e
Messerschimidt (2013) quando apontam as reflexões de mulheres negras como
Angela Davis, bell hooks, sobre o perigo da centralização dos questionamentos
sexuais sem considerar fatores como raça, classe e outras categorias de análise.
Em sua pesquisa sobre suicídio de homens idosos, Minayo, Meneghel e
Cavalcante (2012, p. 2) apontam que o padrão de masculinidade hegemônica
“contribui para que eles sejam, ao mesmo tempo, vítimas e principais autores das
diferentes expressões de violência social e, principalmente, de autoviolência letal”. Tal
argumento corrobora com os dados divulgados pelo Ministério da Saúde (2019) que
apontam o aumento de suicídio entre homens de 10 a 29 anos, sobretudo das classes
mais baixas e negros, equivalente a uma proporção de seis a cada dez suicídios de
jovens no Brasil.
Ainda que se assuma a importância de identificar e compreender aspectos
sociais e culturais nos processos de adoecimento, há ainda uma escassez de

904
produções que aprofundem o adoecimento psíquico como decorrente de fatores
culturais, como o gênero. Windomöller e Zanello (2016) enfatizam que há uma
tendência de pesquisas voltadas à depressão masculina, cujo foco principal direciona-
se aos aspectos físicos e fisiológicos, sendo essas pesquisas majoritariamente
quantitativas, e que utilizam de testes psicométricos para a compreensão
epidemiológica. Contudo, há ainda a necessidade de se compreender as dinâmicas
das relações e pesquisas que priorizem as narrativas dos próprios homens.
Uma das formas de priorizar tais narrativas são as concepções de Miranda
Afonso (2011) sobre dinâmica de grupo, que compreendem os processos grupais à
partir da perspectiva de luta por autonomia, e defendem o uso de oficinas
psicossociais como instrumentos que possibilitem processos de mudança em diversos
contextos, gerando, assim, análises críticas das relações.

Objetivo
Apresentar oficina realizada pelo projeto de extensão “Coletivo de Saúde
Mental” que teve como objetivo propor o diálogo com homens sobre as influências do
machismo na produção de saúde mental e adoecimento psíquico dos homens.

Relato do Processo
A oficina, com duração total de quatro horas, teve como público-alvo membros
internos e externos da comunidade acadêmica e foi desenvolvida com vinte pessoas
do gênero masculino de variadas orientações sexuais, espectros de gênero
(cisgêneros e transgêneros), raças/etnias, idades, classes sociais e condições físicas.
O recrutamento dos participantes ocorreu através da divulgação por mídias sociais e
material impresso. Como critério de inclusão considerou-se a identificação com o
gênero masculino e serem maior de 18 anos.
O primeiro momento da oficina consistiu na exibição de um trecho do
documentário “A máscara em que você vive” (Newson, 2015), que problematiza as
construções culturais de ser homem em sociedade, apresentando consequências
psicológicas envolvidas aos comportamentos nocivos para ser reconhecido como
“homem”, e que teve como finalidade causar sensibilização aos participantes por meio
de histórias relatadas no documentário.

905
O segundo momento tratou de conduzir a uma roda de conversa pautada em
três eixos temáticos: 1) identificações com a problemática, 2) consequências do
machismo, e 3) construção de estratégias de enfrentamento.
O primeiro eixo pautou-se na compreensão da temática, reflexões sobre a
história de vida dos participantes e identificações com outras narrativas. Neste
momento os integrantes foram convidados a produzir relatos orais sobre a própria
experiência de vida, externalizando sentimentos e emoções - incluindo dificuldades
em relatá-las, e a questionar possíveis pressões externas e internas. A intenção deste
momento foi de impulsionar produções de sentido sobre experiências de vida e
estabelecer associações a outras narrativas.
O segundo eixo consistiu no debate sobre as consequências do machismo nas
vidas de homens e mulheres e na violência de gênero como um problema individual,
interpessoal e social, a fim de elucidar sequelas sociais decorrentes de
comportamentos pautados na violência. Inclui-se neste eixo debate sobre violência
contra a mulher, contra a população LGBT e violência autoinfligida.
O terceiro eixo, por fim, propôs construir estratégias de enfrentamento pessoais
e coletivas à problemática, considerando as demandas específicas e comuns do
grupo, nas esferas micro e macropolíticas.

Discussão
O primeiro eixo apresentou heterogeneidade nas narrativas dos participantes
relacionadas às experiências individuais e ao pertencimento a outros grupos, este
último que está associado a fatores como raça, classe e geração. Kimmel (1998)
considera as masculinidades como associações de significados em mudanças
constantes, portanto considerar a homogeneidade das narrativas das masculinidades
sem considerar suas diferentes dinâmicas reduz o escopo de análise .
Os relatos comuns envolviam a expressão de sentimentos como “amor” e
“medo”, explicados por Connell e Messerschimidt (2013) como efeitos das
masculinidades que colocam homens em situações de risco e fazem com que tenham
dificuldade de lidar com os próprios sentimentos. O desamparo social relacionado à
expressão desses sentimentos foi relatado como consequência dessa tentativa,
principalmente quando se referia a assuntos referentes a paternidade, relações
familiares, desemprego, educação dos filhos e obrigações conjugais.

906
Estes relatos vão de concordância com o que Connell e Messerschimidt (2013)
explanam sobre as masculinidades hegemônicas, quando dizem não serem
construídas para representar homens de fato, mas para serem usados como modelos
a serem seguidos. Assim, essa incessante busca pela “masculinidade ideal” invalida
e rejeita as experiências subjetivas, incluindo sentimentos e sensações.
O segundo eixo foi influenciado pelas narrativas e dinâmicas presentes no
primeiro eixo, em que as diferentes masculinidades se confrontaram e foram
colocadas em questão. Connell e Messerschimidt (2013) explicam que uma hierarquia
das masculinidades se desenvolveu principalmente com a violência sofrida pelos
homossexuais na década de 70. Tal hierarquia se mostrou presente nesse eixo
quando participantes homossexuais relataram violências sofridas por homens
heterossexuais em relação à sexualidade. Um dos participantes, homem trans, relatou
invalidação de sua identidade de gênero por homens cisgêneros das diferentes
sexualidades. Participantes negros, gordos e orientais relataram sentirem-se
inferiorizados por homens pertencentes à masculinidade hegemônica (brancos,
cisgêneros, heterossexuais).
Ainda sobre o segundo eixo, assuntos como depressão e suicídio foram
trazidos como problemas poucos discutidos e pensados, assim como a dificuldade e
pouco interesse em compreender a necessidade de ajuda profissional. Cristo (2012)
relata que o homem é visto socialmente como invulnerável nos aspectos físicos,
mentais e sociais e ressalta a existência da Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde do Homem que considera o homem como mais vulnerável à violência, uma vez
que ela é atrelada ao seu empoderamento. Dessa forma, as masculinidades se
estabelecem como formas de imposição de poder e despreza a possibilidade de
sofrimento mental dos homens.
O terceiro eixo trouxe a autorreflexão, a psicoterapia, e a continuidade e
expansão de grupos psicossociais como estratégias de enfrentamento às imposições
da masculinidade, corroborando com as ideias de Miranda Afonso (2011) sobre os
ganhos das dinâmicas de grupo em produzir sentidos e possibilitar escolhas dentro
do contexto social, e com Cristo (2012) no que se refere à importância de proporcionar
aos homens alternativas de se relacionar com o mundo e possibilidade de
ressignificações das experiências e das relações.

907
Considerações finais
Os relatos da oficina direcionaram a um entendimento envolvendo fatores como
raça, classe e orientação sexual nas dinâmicas das relações e possibilitaram observar
as construções de “ser homem” como heterogêneas e multifacetadas, tendo em vista
que o sujeito que passa a ser um homem cisgênero heterossexual, branco de classe
média é diferente de ser um homem cisgênero negro da periferia. Também é possível
a compreensão de que os homens não vivem em relações harmoniosas, e que as
masculinidades são permeadas por conflitos envolvendo poder e dominação.
A heterogeneidade das masculinidades, seus impactos na produção de saúde
e doença e os fatores sociais envolvidos na produção da violência, sobretudo contra
mulheres e LGBTs, são ainda campos emergentes para Psicologia, tanto no que se
refere a compreender os fatores psicossociais envolvidos no desenvolvimento, como
em conceituar teoricamente fatores envolvidos nos processos psíquicos.
Compreender tais fenômenos são necessários para desenvolver práticas em
psicologia que levem em consideração tais fenômenos, promovam autonomia dos
sujeitos e proporcionem mudanças sociais significativas.

Referências

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PHYSYS: Revista Saúde Coletiva, 17(1), 77-93.

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909
85- PESQUISANDO A ETIOLOGIA DO SOFRIMENTO PSÍQUICO PELA
ARTICULAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA.

Cláudia Henschel de Lima


Rosângela Maria de Oliveira
Flora Elias Pereira
Nubia Ferreira Espinoza
Daniel Cavalcante Moreira
Debora Assis
Thalles Sampaio

Resumo: O presente trabalho é fruto do projeto encaminhado à Pro-Reitoria de


Assuntos Estudantis da Universidade Federal Fluminense (UFF. PROAES) e cuja
implantação de três bolsas de desenvolvimento acadêmico se consolidou a partir de
maio de 2019. Assim, articulou-se aos demais pesquisadores do Laboratório de
Investigação das Psicopatologias Contemporânea (LAPSICON). No presente relato
de experiência, apresentaremos uma organização dos dados epidemiológicos em
torno dessas formas de sofrimento psíquico para ressaltar a necessidade de uma
pesquisa mais profunda sobre a etiologia, a causalidade psíquica, das seguintes
formas de sofrimento psíquico: recurso à droga, autolesão, depressão, ideação
suicida e Transtorno do Espectro Autista (TEA). Identificamos que as formas de
sofrimento abordadas possuem traços em comum – cada qual com sua especificidade
– relativos à repetição ritualística, ao traço invasivo da linguagem e à angústia por
aniquilamento. Nesse sentido, identificamos a importância do questionamento acerca
da irrupção pulsional e suas características etiológicas na estruturação do sujeito e as
formas de sofrimentos daí decorrentes.

Palavras-chave: Psicopatologia. Psicanálise. Pulsão.

1. Introdução.

O presente trabalho é fruto do projeto encaminhado à Pro-Reitoria de Assuntos


Estudantis da Universidade Federal Fluminense (UFF. PROAES) e cuja implantação

910
de três bolsas de pesquisa se consolidou a partir de maio de 2019. Um primeiro
desenvolvimento do projeto – entre maio e setembro de 2019 - foi apresentado em
duas fases na Universidade Federal Fluminense e recebeu o prêmio de segundo lugar
na Agenda de Desenvolvimento Acadêmico, ocorrida na UFF em 2019.
Ele se insere na linha dos projetos de pesquisa encaminhados pelo Laboratório
de Investigação das Psicopatologias Contemporâneas (LAPSICON), desde o ano de
2011 aos Editais PIBIC/ CNPq/ UFF, FOPPIN e FAPERJ – todos contemplados com
bolsa de iniciação cientifica – garantindo a continuidade da pesquisa sobre sofrimento
psíquico contemporâneo iniciada em 2011 e, ao mesmo tempo, possibilitando aos
jovens ingressos no curso de psicologia da UFF (Campus de Volta Redonda), e que
ainda não estão vinculados a um grupo de pesquisa, a oportunidade de ter o primeiro
contato com a formação de pesquisadores na graduação e com pesquisadores do
Laboratório que estão no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ.
Entendemos que a articulação entre teoria e clínica psicanalítica, presente no
desenvolvimento deste projeto, permite problematizar e reconhecer a complexidade
psicopatológica dos quadros clínicos acolhidos e tratados no Serviço de Psicologia
Aplicada da UFF (SPA. UFF. Campus de Volta Redonda), bem como a formação mais
aprofundada para saber lidar com essas situações na ocasião do ingresso no estágio
curricular obrigatório do curso de psicologia desta instituição. No presente relato de
experiência, apresentaremos uma organização dos dados epidemiológicos em torno
dessas formas de sofrimento psíquico para ressaltar a necessidade de uma pesquisa
mais profunda sobre a etiologia, a causalidade psíquica, das seguintes formas de
sofrimento psíquico: recurso à droga, autolesão, depressão, ideação suicida e
Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Desde 2011, a pesquisa tem se dedicado a investigar a etiologia psíquica do
sofrimento psíquicos contemporâneo avançando na direção dos problemas clínicos
típicos da condução de tratamento de pacientes atendidos pela linha de estágio
curricular obrigatório do curso de graduação em Psicologia, em “Psicanálise e Saúde
Mental”: qual é a natureza desses transtornos? Que fatores psíquicos os determinam?
A articulação da pesquisa com a condução dos casos clínicos atendidos pela
linha de estágio, não evidência somente a dimensão mais local dos sofrimentos
psíquicos que são encaminhados para tratamento no SPA da UFF em Volta Redonda.
Antes, verifica o quanto essas formas de sofrimento psíquico se disseminam na
população brasileira e, mais especificamente, entre jovens. Neste sentido, a inserção

911
de graduandos na pesquisa desenvolvida pelo LAPSICON, por meio dos Editais
abertos pela UFF – e, em especial, pelo Edital PROAES – contribui diretamente no
desenvolvimento da pesquisa em psicopatologia e saúde mental conduzida pelo
LAPSICON, já reconhecido na comunidade científica por sua articulação com a
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF) e por
sua inserção no GT “Psicopatologia Psicanálise” da Associação Nacional de Pesquisa
e Ensino de Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP).

2. Relato da Experiência

O relato da experiência em torno da pesquisa do LAPSICON, se refere ao


período de maio a setembro de 2019, com o apoio auxiliar de bolsistas de Iniciação
Científica e de mestrandos do Programa de Pós-Graduação em psicologia da UFRJ.
A relevância científica e acadêmica da pesquisa sobre a causalidade de formas
de sofrimento psíquico – como o recurso à droga, autolesão, depressão, ideação
suicida e Transtorno do Espectro Autista (TEA) - se alinha, ainda, ao reconhecimento
de sua gravidade e, consequentemente, à necessidade de se articular aos esforços
de política pública na área. É o caso, por exemplo, do Plano Nacional de Prevenção
à Automutilação e ao Suicídio, sancionado em abril de 2019 - e que dispõe sobre a
obrigatoriedade de notificação das ocorrências de autolesão por parte de escolas
públicas e privadas do país52 - e da própria parceria entre a Secretaria Municipal de
Educação de Volta Redonda e a UFF para o encaminhamento de casos notificados
no município53.
A gravidade da autolesão se expressa nos dados da Organização Mundial da
Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde. Com relação aos dados mais globais da OMS
(2017), observamos que a autolesão ocupa o terceiro lugar, entre as cinco causas
mais frequentes de morte entre jovens de 15 a 19 anos, conforme verifica a tabela 1,
adaptada dos dados da OMS (2018):

52O Plano precisa, ainda, ser regulamentado.


53A parceria vem sendo firmada, em 2019, pela coordenação do LEPIA/ UFF – Volta Redonda,
coordenado pelo prof. Antonio Augusto Pinto Junior e com a participação do LAPSICON.
Desde o ano de 2018, o LEPIA e o LAPSICON integram o Núcleo de Investigação das Psicopatologias
da Infância e da Adolescência (UFF. Volta Redonda. ICHS. Departamento de Psicologia).

912
Tabela 1
Principais de morte na adolescência em escala global, na faixa etária de 10-19
anos no ano de 2015.

Causas de Morte Número de Mortes


Acidentes de trânsito 115. 302
Infecções de vias aéreas superiores 72. 655
Autolesão 67. 149
Doenças diarreicas 63. 575
Afogamento 57. 125

Nota. Fonte: Adaptado de Organização Pan-Americana da Saúde (2018). Ação Global Acelerada para a Saúde de
Adolescentes (AA-HA!): guia de orientação para apoiar a Implementação pelos países. Washington, D.C.

A situação fica mais complexa quando verificamos os dados de gênero para


autolesão, expostos nas tabelas 2 e 3: a ocorrência da autolesão se converte em
segunda principal causa de morte entre adolescentes do gênero feminino.

Tabela 2.
Cinco causas principais de morte em adolescentes do gênero masculino, entre
10-19 anos, no ano de 2015.

Causas de Morte Número de


Mortes
Acidentes de trânsito 88. 590
Violência Interpessoal 42. 277
Afogamento 40. 847
Infecções respiratórias do trato inferior 36. 018
Autolesão 34. 650

Nota. Fonte: Adaptado de Organização Pan-Americana da Saúde (2018). Ação Global Acelerada para a Saúde de
Adolescentes (AA-HA!): guia de orientação para apoiar a Implementação pelos países. Washington, D.C.

Tabela 3.
Cinco causas principais de morte em adolescentes do gênero feminino, entre
10-19 anos, no ano de 2015.

Causas de Morte Número de


Mortes
Infecções respiratórias do trato inferior 36 637
Autolesão 32 499
Doença diarreica 32 194
Condições maternas 28 886
Acidentes de trânsito 26 712

Nota. Fonte: Adaptado de Organização Pan-Americana da Saúde (2018). Ação Global Acelerada para a Saúde de
Adolescentes (AA-HA!): guia de orientação para apoiar a Implementação pelos países. Washington, D.C.

913
Com relação ao Brasil, pode-se afirmar que a autolesão representa um
problema cuja amplitude ainda não está nítida no país. Mas, podemos localizar índices
inequívocos de sua presença. O Ministério da Saúde indica que, entre 2011 e 2018
ocorreram 339.730 casos de autolesão no país. Essa categoria inclui autoagressões,
automutilações e tentativas de suicídio. As ocorrências estão distribuídas na faixa
etária de 15 a 29 anos (cerca de 45% dos casos). Tomando como perspectiva a série
histórica, observamos um salto dos números: em 8 anos, os casos passaram de a
14.940, em 2011, para 95.061 em 2018.
A autolesão representa apenas um aspecto da gravidade e complexidade das
formas de sofrimento psíquico contemporâneas. Os brasileiros lideram o ranking de
ocorrência de ansiedade da Organização Mundial da Saúde (OMS) e ocupam o quinto
lugar entre os países com maior índice de casos diagnosticados como depressão.
Entre os anos de 2000 e 2012, a taxa de suicídio, no Brasil, subiu 10.4%.
Outros dados que ressaltam a gravidade das formas de sofrimento psíquico se
referem ao uso de drogas. O World Drug Report (2018) registrou que globalmente, as
mortes causadas pelo uso de drogas aumentaram em 60% em 15 anos. E, em 2017,
o transtorno por uso de substâncias chegou à marca de meio milhão de mortes no
mundo inteiro. Um outro dado, destacado pelo mesmo relatório, se refere a faixa etária
de risco para o desencadeamento do uso de drogas sugerindo que a adolescência
(12-17 anos) é o momento de risco crítico, podendo atingir o pico na juventude (entre
18 e 25 anos). Um outro dado importante se refere a ocorrência de uma tipologia do
uso de drogas entre os jovens: drogas de clubes na vida noturna e locais recreativos
entre os jovens afluentes; e uso de inalantes entre crianças em situação de rua para
lidar com suas circunstâncias difíceis. Tanto a localização da adolescência como fator
de risco, como o gênero e a tipologia do recurso à droga de acordo com o contexto,
evidenciam a complexidade das variáveis subjetivas e de contexto envolvidas na
investigação do tema.
Uma outra forma de sofrimento psíquico que vem sendo investigada, é o
Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ao longo de levantamentos realizados sobre o
tema no site científico Global Autism Prevalence, temos registrado a raridade de
pesquisas epidemiológicas conduzidas no Brasil sobre o tema. O site apresenta uma
linha do tempo da pesquisa na área e registra a ocorrência de pesquisas sobre o tema
desde o ano de 1966, com a primeira pesquisa realizada no Reino Unido. No entanto,
registra apenas uma (01) pesquisa brasileira sobre Transtorno do Espectro Autista: o

914
estudo piloto de Paula, Ribeiro, Fombonne & Mercadante (2011), realizado em Atibaia.
O IBGE, por exemplo, não tem um levantamento sobre Transtorno do Espectro Autista
e não há previsão para tal por razões técnicas (Paiva Junior, 2019), corroborando em
2019, a afirmação de Rodrigues Savall e Dias (2018) sobre a ausência de pesquisas
sobre a incidência do TEA no Brasil.
Um outro ponto importante, no domínio de investigação do TEA, se refere a
clássica confusão diagnóstica entre Transtorno do Espectro Autista e esquizofrenia –
seguindo a orientação da psiquiatria esquiroliana - e quadros de comorbidade entre
depressão maior e o próprio TEA – o que pode mascarar o quadro do transtorno e
inviabilizar seu diagnóstico adequado. Tomando como exemplo o próprio artigo
pioneiro de Kanner (1943) no tema, o autor já alertava para essa confusão diagnóstica
e suas consequências nefastas para a perspectiva e qualidade de vida dos pacientes:
“(…) diversas crianças de nosso grupo eram apontadas como idiotas ou imbecis,
sendo que uma delas ainda reside numa escola estadual para oligofrênicos e duas
foram previamente diagnosticadas como esquizofrênicas” (Kanner, 1943, p. 242).
A falta de critério e aprofundamento profissional baseado em metodologia clínica
faz com que o TEA, atualmente, seja objeto de disputa de saberes, submetido às
vicissitudes desses agentes. Laurent (2014) identifica a correlação entre o grande
aumento do diagnóstico de TEA nas últimas décadas e o recurso ao paradigma
diagnóstico comportamental e alerta para o fato de que abordagens excessivamente
superficiais e que observem mais a funcionalidade comportamental, além de serem
sentidas como invasivas à lógica autística, com frequência acabam recorrendo à uma
direção exclusivamente medicamentosa de tratamento com risco de medicalização.
No campo da anorexia, pudemos verificar uma situação análoga, no campo da
pesquisa diagnóstica. Por meio da análise e organização do levantamento conceitual
sobre o tema no campo da psicopatologia clássica e da psicanálise foi possível
problematizar a validade da classe de Transtorno Alimentar, definida na quinta edição
do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5) para
elucidação do quadro etiológico da anorexia. E conduzir uma pesquisa, em
psicanálise, sobre os determinantes psíquicos de seu desencadeamento.
A tabela 4, elaborada durante o desenvolvimento da pesquisa, sintetiza a
evolução do diagnóstico dos transtornos alimentares entre a terceira e quinta edição
do DSM na direção de uma amplificação dos grupos nosológicos e do recuo da
investigação etiológica.

915
Tabela 4.
Evolução na tipologia dos transtornos alimentares

Edições do Evolução na tipologia dos transtornos alimentares


DSM

DSM-III Anorexia nervosa e bulimia nervosa como grupos nosológicos


específicos (APA, 1980).

DSM-III-TR Distinção entre:

1.Transtorno alimentar (anorexia nervosa).

2.Perturbação do comportamento alimentar (bulimia nervosa, pica e


transtorno ruminativo da infância).

DSM-IV e Os transtornos alimentares estão divididos em dois grupos: anorexia


DSM IV-TR nervosa e bulimia nervosa.

Pica e transtornos ruminativos da infância são incluídos na seção de


Transtornos Alimentares da Primeira Infância (APA, 2002).

DSM-V Anorexia nervosa, bulimia nervosa, pica, transtorno de ruminação,


transtorno da evitação ou restrição alimentar, e transtorno da compulsão
alimentar: categorizados como transtornos alimentares (APA, 2014).

A tabela ressalta a elevada quantidade de grupos nosológicos para os


transtornos alimentares estabelecidos com base em uma sintomatologia
comportamental, descritiva e ateórica. Esse ateorismo empírico tem, como efeito, uma
inflação diagnóstica tanto no interior da classe diagnóstica como na multiplicação das
categorias no campo da pesquisa diagnóstica.
A anorexia é um fenômeno clínico severo que apresenta as taxas mais
elevadas de mortalidade entre os transtornos psicopatológicos (Alckmin-Carvalho,
Santos, Rafihi-Ferreira & Soares, 2016). O que confirma a observação de Lutemberg
(2014) sobre a gravidade do quadro clínico das patologias atuais, com risco de vida
para o paciente, e da qual se infere a dimensão de urgência clínica que é
desconhecida pelo próprio paciente.
Do DSM-5 (APA, 2014) é possível extrair as características clínicas mais
evidentes da anorexia para a psiquiatria contemporânea: perda intensa de peso,
obtida pela restrição autoimposta de alimentos e pela negação do sujeito com relação
a seu estado de saúde, medo intenso de adquirir peso ou se tornar obeso a despeito
de estar com peso abaixo do normal e distorção da imagem corporal. Tais

916
características se referem ao funcionamento comportamental do paciente,
demonstram a gravidade e urgência clínica do quadro sem, no entanto, evidenciar
uma interrogação acerca de sua etiologia. Avançando no detalhamento das
características clínicas descritivas da anorexia, o DSM-5 (APA, 2014) distingue, ainda,
seus dois subtipos: o tipo “restritivo” e o tipo “compulsão alimentar purgativa”,
conforme estão sintetizados na tabela 5, também elaborada ao longo da pesquisa.
Tabela 5.
Critérios diagnósticos para anorexia nervosa no DSM-5.

A. Restrição da ingestão calórica em relação às necessidades, levando a um peso


corporal significativamente baixo no contexto de idade, gênero, trajetória do desenvolvimento
e saúde física. Peso significativamente baixo é definido como um peso inferior ao peso
mínimo normal ou, no caso de crianças e adolescentes, menor do que o minimamente
esperado.

B. Medo intenso de ganhar peso, engordar, ou comportamento persistente que


interfere no ganho de peso, mesmo estando com peso significativamente baixo.

C. Perturbação no modo como o próprio peso ou a forma corporal são vivenciados.


Influência indevida do peso ou da forma corporal na autoavaliação ou ausência persistente
de reconhecimento da gravidade do baixo peso corporal atual.

Determinar o subtipo;

(F50.01) Tipo restritivo: Durante os últimos três meses, o indivíduo não se envolveu
em episódios recorrentes de compulsão alimentar ou comportamento purgativo (i.e., vômitos
autoinduzidos ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas). Esse subtipo descreve
apresentações nas quais a perda de peso seja conseguida essencialmente por meio de dieta,
jejum e/ou exercício excessivo.

(F50.01) Tipo compulsão alimentar purgativa: Nos últimos três meses, o indivíduo se
envolveu em episódios recorrentes de compulsão alimentar purgativa (i.e., vômitos
autoinduzidos ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas).

Especificar se:

Em remissão parcial: Depois de terem sido preenchidos previamente todos os


critérios para anorexia nervosa, o Critério A (baixo peso corporal) não foi mais satisfeito por
um período sustentado, porém ou o Critério B (medo intenso de ganhar peso ou de engordar
ou comportamento que interfere no ganho de peso), ou o Critério C (perturbações na
autopercepção do peso e da forma) ainda está presente.

Em remissão completa: Depois de terem sido satisfeitos previamente todos os


critérios para anorexia nervosa, nenhum dos critérios foi mais satisfeito por um período
sustentado.

Especificar a gravidade atual:

917
O nível mínimo de gravidade baseia-se, em adultos, no índice de massa corporal (IMC)
atual (ver a seguir) ou, para crianças e adolescentes, no percentil do IMC. Os intervalos abaixo
são derivados das categorias da Organização Mundial da Saúde para baixo peso em adultos;
para crianças e adolescentes, os percentis do IMC correspondentes devem ser usados. O
nível de gravidade pode ser aumentado de maneira a refletir sintomas clínicos, o grau de
incapacidade funcional e a necessidade de supervisão.

Leve: IMC ≥17kg/m2

Moderada: IMC 16-16,99kg/m2

Grave: IMC 15-15,99kg/m2

Extrema: IMC <15 kg/m2

Nota. Fonte: Adaptado de “Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais – 5a Edição”, de American
Psychiatry Association, 2014.

Da mesma forma, a leitura dos critérios diagnósticos para a anorexia deixa claro
que o DSM-5 não avança a descrição da fenomenologia clínica apresentada na
direção de sua etiologia, deslocando-se rapidamente para a identificação
comportamental dos seus subtipos e especificações. De fato, o medo intenso de
ganhar peso, com ocorrência de restrição da ingesta calórica em relação às
necessidades - mesmo com peso já inferior ao peso mínimo normal - e a perturbação
no modo como o próprio peso ou a forma corporal são vivenciados, indicam à irrupção
de uma perturbação na relação entre o indivíduo e a experiência de seu corpo. E que
apenas é indicada sem que haja, por exemplo, uma interrogação referente à etiologia
psíquica dessa perturbação para além da descrição de sua fenomenologia observável.
O divórcio com a pesquisa etiológica em psicopatologia é, portanto, inseparável da
ascensão de uma concepção ateórica cujo resultado é a inflação diagnóstica, já
mencionada anteriormente.
O estudo de Alckmin-Carvalho, Santos, Rafihi-Ferreira e Soares (2016)
corrobora com esse ponto, ao levantar que tratamentos ambulatoriais e unidades de
internação apresentam índices desanimadores de aderência ao tratamento e
recuperação da anorexia a ponto de constatarem que, para esses casos, a recaída e
a demanda de novo tratamento parecem ser mais a regra do que exceção. Os autores
citam dois estudos longitudinais com pacientes que deram entrada em uma unidade
de internação com diagnóstico de anorexia. O primeiro estudo longitudinal citado por

918
Alckmin-Carvalho, Santos, Rafihi-Ferreira & Soares (2016) foi conduzido nos anos de
1970 e acompanhou, durante 41 anos, pacientes com diagnóstico de anorexia; o
estudo registrou um percentual de 5% de óbitos, 39% de recuperação completa e 66%
de recaída e nova demanda de tratamento. O segundo estudo longitudinal
acompanhou, durante noventa meses, uma amostra de 243 mulheres com anorexia e
observou que apenas 33% das participantes se recuperaram completamente, com
percentual de recaída de um terço após o tratamento.
Na direção contrária da perspectiva ateórica do DSM, dois estudos de Recalcati
(1997, 2011), seguindo o marco teórico da psicanálise, já exploravam a relação entre
os sintomas clínicos da anorexia e os processos psíquicos em jogo em sua formação
verificando, assim, a necessidade de elucidar tais sintomas à luz dos processos de
recalcamento e foraclusão - típicos da constituição das estruturas psíquicas (neurose
e da psicose) - e do destino assumido pela pulsão em cada estrutura. Dessa forma, a
referência de Recalcati aponta para a íntima relação entre teoria e clínica, ao
considerar que as características clínicas da anorexia são dependentes do
funcionamento psíquico na neurose e na psicose, e não são indicativas da classe dos
transtornos alimentares, conforme sugere o DSM-5.
Entendemos que a relevância da pesquisa sobre a causalidade psíquica
dessas formas de sofrimento psíquico reside em desenvolver uma teoria etiológica
sobre seu desencadeamento, a partir das premissas conceituais da psicanálise e em
íntima conexão com a formulação de um protocolo de condução de tratamento mais
adequada à essa etiologia, impactando diretamente:

1. Na qualidade de vida de pacientes que fazem acompanhamento psiquiátrico e


uso de psicotrópicos por longo tempo.

2. Na redução dos riscos envolvidos nesses sofrimentos psíquicos.

3. Na redução de custos referentes a adesão ao tratamento nos serviços de


saúde.

Assim, como vem sendo desenvolvida a pesquisa no LAPSICON? O


laboratório, fundamentado na psicopatologia psicanalítica, reconhece a presença de
traços psíquicos comuns ao TEA, ao uso de drogas, a autolesão, a anorexia. A tabela
6, elaborada durante a pesquisa, sintetiza esses traços.

919
Tabela 6.
Um esboço dos traços psíquicos comuns às diversas formas de sofrimento
psíquico contemporâneo.

Traços psíquicos Especificidades

Repetição ritualística Transtorno do Espectro Autista: a imutabilidade


dos atos

Anorexia: a metodologia da dieta e do exercício


físico;

Autolesão: a forma de preparação dos cortes;

Uso de drogas: a forma como o sujeito prepara o


ato de se drogar

Característica invasiva da Transtorno do Espectro Autista: estereotipia;


linguagem e o transtorno como defesa
à invasão Anorexia: recusa do alimento;

Autolesão: o corte na autolesão.

Angústia por risco de Transtorno do Espectro Autista: o refúgio na


aniquilamento repetição;

Anorexia: a recusa do alimento e o esvaziamento


na anorexia;

Autolesão: o corte para apaziguamento da


angústia na autolesão.

O reconhecimento desses traços, a partir da parceria com os bolsistas de


iniciação científica e da participação na supervisão dos casos clínicos do SPA nos
conduz à hipótese de pesquisa de que as formas de sofrimento psíquico aqui
apresentadas são decorrentes da irrupção pulsional no funcionamento psíquico.
Investigar a especificidade dessa irrupção em cada forma de sofrimento psíquico e
sua relação com os processos psíquicos de constituição da neurose e da psicose vem
sendo o objetivo da pesquisa sobre a etiologia psíquica dessas formas de sofrimento
psíquico.

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Recuperado de
http://www.unodc.org/wdr2018/prelaunch/WDR18_Booklet_1_EXSUM.pdf

921
Sobre os Autores:
Cláudia Henschel de Lima (Professora Associado I. Departamento de Psicologia.
Universidade Federal Fluminense. Campus de Volta Redonda. Docente Colaboradora
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio de
Janeiro).
Rosângela Maria de Oliveira (Bolsista de Desenvolvimento Acadêmico –
PROAES/UFF. Estudante de Graduação em Psicologia. Departamento de Psicologia.
Universidade federal Fluminense. Campus de Volta Redonda).
Flora Elias Pereira (Bolsista de Desenvolvimento Acadêmico – PROAES/UFF.
Estudante de Graduação em Psicologia. Departamento de Psicologia. Universidade
Federal Fluminense. Campus de Volta Redonda).
Nubia Ferreira Espinoza (Bolsista de Desenvolvimento Acadêmico – PROAES/UFF.
Estudante de Graduação em Psicologia. Departamento de Psicologia. Universidade
Federal Fluminense. Campus de Volta Redonda).
Daniel Cavalcante Moreira (Bolsista de Iniciação Científica - FAPERJ/ Matrícula.
2018036003. Estudante de Graduação em Psicologia. Departamento de Psicologia.
Universidade Federal Fluminense. Campus de Volta Redonda).
Debora Assis (Bolsista de Iniciação Científica -CNPq/UFF. Estudante de Graduação
em Psicologia. Departamento de Psicologia. Universidade Federal Fluminense.
Campus de Volta Redonda).
Thalles Sampaio (Mestrando. Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Universidade Federal do Rio de Janeiro).

922
86- DESIGUALDADE DE GÊNERO EXPRESSA NAS FALAS DAS
MULHERES PARTICIPANTES DE UM PROGRAMA DE UNIVERSIDADE ABERTA
À TERCEIRA IDADE

Roana de Jesus Braga54,


Prof. Dr. Mariele Rodrigues Correa55,

Resumo: Nos últimos anos a população idosa brasileira tem crescido


expressivamente, sendo cerca 56% desse contingente composto por mulheres, de
acordo com o IBGE. Elas também são maioria na Universidade Aberta à Terceira
Idade (UNATI), do campus de Assis. O programa possui cursos voltados para a
terceira idade e um espaço de socialização e trocas de experiências entre idosos e
intergeracionais. Esse estudo parte de uma iniciação científica realizada na UNATI,
com o objetivo de entender os significados e sentidos, que as mulheres atribuem ao
processo de envelhecimento, e quais as influências da UNATI nesse processo. Foram
entrevistadas 34 mulheres, por meio de um roteiro semiestruturado, com perguntas
que davam um panorama demográfico das participantes, sobre a velhice, a UNATI e
os homens. Foi realizada a análise de conteúdo com base em Bardin, elencando
algumas categorias para o desenvolvimento da iniciação científica. Esse trabalho é
referente à análise de uma das categorias, que fala sobre as lutas femininas em
assumir diversos papéis sociais. Elas usam a palavra luta para expressar as
dificuldades em cuidar dos filhos, da casa e do marido, e para expressar o percurso
em busca da liberdade de tomar suas próprias decisões.

Palavras-chave: Envelhecimento; feminino; Universidade Aberta à Terceira Idade.

54 Mestranda da Universidade Estadual Paulista (UNESP).


55 Docente da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

923
Introdução

Tótora (2006) aponta que a palavra “velhice” passou ao longo dos anos a
carregar um significado de finitude, privação e decadência a partir do século XIX, e
desde então, homens e mulheres costumam tentar evitar essa fase da vida com
cosméticos, intervenções cirúrgicas e uma série de outros artifícios para tentar, de
alguma forma, amenizar ou eliminar sinais dessa fase da vida. Para a autora, ao falar
das pessoas que não tentam barrar o processo de envelhecimento, “a velhice, neste
sentido, deixa de ser uma fase cronológica e passa a constituir-se em atitude para
fazer a vida recriar-se a cada momento como se fora o derradeiro dia” (2006, p. 45).
A velhice e o envelhecer são os nomes que a cultura engendra ao longo do
tempo. Velho, idoso, ancião, terceira idade, por exemplo, são palavras que tentam dar
conta da diversidade dos modos de envelhecer em diferentes contextos históricos.
Atualmente, utiliza-se de forma mais frequente a expressão “terceira idade”, que, no
contexto francês, originou-se da necessidade de nomear um envelhecer que
começava a se delinear na década de 1960, representado pelo signo do
envelhecimento ativo e independente. Terceira idade é um contraponto da imagem de
velhice como um momento da vida marcado pela decadência física, invalidez, de
quietude e isolamento social e afetivo (Peixoto, 2003). O surgimento desse termo
propicia a visão de velhice como apenas mais uma fase da vida com potencial de
inúmeras realizações, como realização de projetos abandonados na juventude;
criação de novos hábitos e novas habilidades; construção de novos vínculos afetivos
e engajamentos sociais (Silva, 2008).
Ao adentrar a terceira idade as pessoas possuem a oportunidade de refletir
sobre sua identidade perante valores sociais a respeito dessa época, podendo
vivenciar uma velhice para além desses constructos sociais. A velhice pode ser
analisada de acordo com os princípios da psicologia do desenvolvimento humano, ao
pensar na trajetória do indivíduo para lidar com os desafios do envelhecer. O
envelhecimento é um processo de desenvolvimento e não apenas uma forma de
enxergar uma fase da vida (Neri, 2008).
Erikson (1998) discorre que a velhice constitui a oitava fase do desenvolvimento
humano, sendo essa uma época da vida em que o sujeito lida com questões
existenciais relacionadas à Integridade versus Desespero. Ocorre nessa fase uma
reflexão sobre suas conquistas e desilusões, na tentativa de buscar equilíbrio em sua

924
narrativa pessoal. O autor aponta que a proximidade com a morte é um fator que
instiga o indivíduo para uma reflexão introspectiva de sua integridade. Elaborar esses
questionamentos ao longo da oitava fase do desenvolvimento é uma maneira de
passar progressivamente pela velhice.
Sobre o processo de envelhecimento, é importante considerar as diferenças de
gênero, uma vez que a sociedade compõe uma série de normativas para construção
da identidade do homem e da mulher. Atualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE, 2018) discorre que as mulheres vivem cerca de 7 anos a mais do
que os homens, esse dado pode ser explicado com o cuidado das mulheres em não
se colocarem em situações de risco físico e ao fato de que elas aderem a programas
de prevenção de saúde. De acordo com Neri (2008), a feminização da velhice também
está atrelada às mudanças na expectativa social atribuída às mulheres, juntamente
com sua crescente participação nas esferas sociais. Butler (2018) reflete sobre a
existência de mecanismos da lei dominante na sociedade, que apreendem o feminino
por meio da justificativa da existência de uma ameaça, a autora (ibidem, p.7) afirma
“[...] ameaçava até nos colocar em apuros, para evitar que tivéssemos problemas”. O
termo “feminino” nesse contexto carrega significados mutáveis de acordo com as
necessidades apresentadas pelos mecanismos disciplinares de segurança.
O termo “natureza feminina” era propagado para reafirmar o lugar da mulher
enquanto frágil, dependente e maternal. Por meio desse contexto social e pelo fato de
as mulheres cuidarem da educação dos filhos, esses dispositivos de controle da
mulher continuam se propagando. Contudo, as grandes guerras levaram a mulher a
ocupar o espaço público enquanto os homens lutavam na guerra. Elas trabalhavam e
cuidavam dos filhos, assim tiveram oportunidade de usufruir da liberdade desse lugar
e posteriormente com o fim da guerra, elas reivindicaram esse lugar para si (Caixeta
& Barbato, 2004).
Atualmente na velhice é de se esperar que as mulheres tenham maior liberdade
de escolha para ocupar novos espaços. A Universidade Aberta à Terceira Idade
(UNATI) disponibiliza oficinas e cursos, que auxiliam na aprendizagem horizontal
sobre diversos temas e possibilitam a troca de experiências de vida entre os
participantes e professores do programa. A UNATI também é um espaço de
socialização e reflexão, que possibilita às mulheres pensar o feminino na sociedade.

925
Justificativa E Objetivos

Atualmente a longevidade da população engloba vários países, deixando sua


marca inédita na história. Contudo, com os valores apresentados pela sociedade
moderna de inovação, juventude e consumo desenfreado, a velhice pode adquirir uma
imagem negativa. O envelhecimento pode ser visto como um caminho contínuo de
perdas físicas, psíquicas e sociais (Ferrigno, 2010). Contudo essa época é potente de
várias realizações e programas voltados para a velhice auxiliam a romper paradigmas
perante o envelhecimento. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE,
2018) reflete que no Brasil há uma feminização da velhice, uma vez que elas
representam 56% dos idosos.
Essa diferença de gênero ressalta um campo a ser analisado nos estudo sobre
envelhecimento humano. As representações sociais do homem e da mulher se
constituem como campo importante para a análise, pois interferem na forma como os
idosos significam sua identidade diante da terceira idade. As idosas de agora são
mulheres que outrora vivenciaram as lutas femininas por igualdade e
representatividade social.
Busca-se os significados e sentidos, que as mulheres participantes da UNATI
atribuem às adversidades do processo de envelhecimento. E entender qual a
influência da Universidade Aberta à Terceira Idade (UNATI) da Universidade Estadual
Paulista (UNESP) de Assis nesse processo.

Metodologia

O presente estudo é proveniente de uma iniciação científica realizada durante


a graduação em psicologia, amparada pelo Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica (PIBIC). Realizada na Universidade Aberta à Terceira Idade
(UNATI) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Assis
(UNESP). Foram realizadas 34 entrevistas por meio de um roteiro semiestruturadas
com pelo menos uma participante de cada oficina oferecida pela UNATI no ano de
2016. A faixa etária das mulheres entrevistadas era de 58 anos à 80 anos.
As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas para posterior estudo dos
dados. Foi utilizado a análise de conteúdo de Bardin (2009), que é um método que
possibilita o estudo da fala dos participantes, por meio do tratamento descritivo dado

926
às informações coletadas com as entrevistas semiestruturadas, por exemplo. Esse
método apresenta instrumentos que permitem a organização e categorização das
informações coletadas por meio da fala para, assim, realizar a análise do discurso
apresentado.
A pesquisa foi avaliada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus de Assis, processo CAAE nº
51148115.3.5401, e segue as normas e pressupostos teóricos deste comitê. O Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado por todas entrevistadas e
a pesquisadora explicou cuidadosamente o conteúdo do termo.

Resultados e Discussão

No presente estudo será analisada a desigualdade de gênero expressa na fala


das mulheres participantes da UNATI, fomentada pela PIBIC. Essa foi uma das
categorias elencadas por meio da análise de conteúdo da Bardin (2009) durante uma
pesquisa de iniciação científica.
As mulheres usam a palavra “luta” em dois sentidos, primeiramente para
expressar as dificuldades de crescer em uma sociedade patriarcal, que designa uma
série de papéis sociais para as mulheres. Apontam que na velhice elas adquiriram voz
e potência para realizar suas próprias vontades. Para a maioria a perda do marido se
constitui em uma experiência dolorosa, contudo permite com que elas conquistem a
liberdade escolha. A palavra luta também é usada para falar sobre as dificuldades de
conciliar uma rotina atarefada, em que elas cuidavam dos filhos, do marido, da casa
e lutavam por uma vida profissional. Sobre as diferenças entre o envelhecimento
feminino e masculino, elas dizem que os homens são mais preguiçosos, enquanto
elas são dinâmicas e envolvidas socialmente. Poucas mulheres ressaltam o
companheirismo da relação com o parceiro durante a terceira idade.
A representação do termo “feminino” pode expressar funções normativas, que
controlam a expressão da identidade da mulher. Entretanto, há a possibilidade de
construção de uma linguagem própria, que possibilite legitimar e dar visibilidade para
as mulheres, subvertendo mecanismos que pouco ou não as representavam (Butler,
2018). A expressão da voz dessas mulheres se constitui como uma forma de dar
visibilidade política e romper com discursos normativos, que estabelecem um lugar
para as mulheres na sociedade. Contudo, para algumas a sua voz só pode ser

927
expressa a partir da morte de figuras masculinas, que exerciam poder sobre elas. A
entrevistada 10 fala sobre figuras masculinas de sua vida, que a sufocaram,
impedindo a expressão da sua identidade. Ela diz:

Eu comecei a viver mesmo a partir dos 60 anos, depois que eu fiquei viúva, porque
eu era uma pessoa triste. Eu sou filha de palhaço de circo. Eu passei cinquenta
anos da minha vida sufocada. Graças a Deus meu marido morreu. Então, hoje
eu vivo. Eu vegetei por quarenta anos, dos 19 até os 60. Essa a melhor época
da minha vida. Estou sendo eu mesma. Eu tinha quase 60, quando eu me
libertei.

Os autores Juliana Caixeta e Silviane Barbato (2004) comentam sobre os


lugares ocupados por homens e mulheres na sociedade e a separação do âmbito
privado e público. Para as mulheres é reservado o âmbito privado onde é atribuída a
função de cuidadora da casa e sua possibilidade de circulação social é limitada. A
entrevistada 10 é um exemplo dessa dinâmica social, uma vez que ela era proibida
de sair de casa, sendo atribuída a ela a responsabilidade de cuidar e educar os filhos,
sem a participação do pai. Suas funções se restringiam ao âmbito privado, contudo
na velhice, sem o marido, ela conseguiu a liberdade de habitar o espaço público.
Quando perguntada sobre o porquê ela alcançou a liberdade apenas depois da morte
do marido e se ele a impedia de fazer algumas coisas, ela afirma:

Não, não me deixava sair para canto nenhum. Meus filhos, também, ele nunca foi um
pai carinhoso. Ele não foi um pai participativo. Bebia. Jogava. Caia na rua de
bêbado.

Para a entrevistada 1 a UNATI dá a oportunidade do desenvolvimento de


habilidades, que não podiam ser exploradas anteriormente. Na velhice ela pode
usufruir das conquistas provenientes da luta feminina por direitos. Ela fala sobre
desenvolver habilidades no seguinte trecho:

Eu me interesso pelo conhecimento que eu adquiro. Línguas. Eu faço também a


seresta. Eu gosto muito de música. Gosto muito de cantar. É uma oportunidade.
A UNATI ela abre estas oportunidades pra gente desenvolver certas
habilidades que a gente sempre teve, mas com o trabalho (e) o cuidado com
os filhos a gente nunca conseguiu desenvolver. Então, agora a gente está
conseguindo desenvolver nesta idade porque nunca é tarde.

928
Novas oportunidades podem ser atribuídas às mudanças no papel da mulher
na configuração social, instigadas pelas lutas de mulheres em busca de direitos.
Paredes e Guzman (2014) afirmam que o feminismo é uma luta por direitos e liberdade
sobre seus corpos, endossando o direito de expressar seus pensamentos e tomar
suas próprias decisões. A palavra feminismo significa em geral a luta de mulheres,
que se expressa na fala da maioria das entrevistadas. A entrevistada 11 quando
perguntada sobre a diferença do envelhecimento do homem e da mulher, reflete sobre
as lutas, que presenciou ao longo de sua vida na sua família. Ela expressa em sua
fala a força da mulher diante da luta, em sua fala:

A mulher, olha, eu sempre elogiei a mulher, porque começando por minha mãe. Minha
mãe já faleceu. Chamava Vitória e sempre foi uma vitoriosa, porque ela criou
nove filhos sozinha. Meu pai nos abandonou, veio para São Paulo e ela ficou
lá no Nordeste naquele lugar seco, pobre e ela nos criou. E nos educou para a
vida ‘né?’. Então, eu sempre me admirei muito, tenho minha mãe como
espelho, minha vó e todas as mulheres. A maioria das mulheres são assim de
lutar. Porquê e tantas outras mulheres que eu vejo que são testemunho vivo de
arregaçar as mangas e ir à luta. Então, porque os homens nesta faixa etária
não participam, porque eles nunca participam de nada. São uns molengos. Uns
acomodados.

As entrevistadas falam dos homens como preguiçosos diante das mulheres,


que anseiam por liberdade. Elas não aparentam querer atacar os homens, mas sim
buscar pela sua expressão na sociedade. Paredes e Guzman (2014) apontam que as
lutas feministas abarcam todas as mulheres de diferentes povos e classes sociais,
valorizando as histórias e lutas locais. O feminismo ao longo dos anos deflagrou
inúmeras discussões, entre elas, propunha estudos relacionados aos gêneros. Ao
falar de gênero pensa-se na construção e na percepção social do que é ser homem
ou mulher, antecedendo a definição do sexo biológico (Costa Júnior 2014). Diferenças
entre poderes sociais apresentados pelos gêneros são expressos através das
restrições, que aparecem nas falas das entrevistadas. A entrevistada 4 diz que o
marido possuía estudo, mas esse direito era expresso como sendo masculino. Ele a
impediu de estudar e apenas depois de sua morte, ela conquistou a liberdade para
fazer suas vontades. Quando perguntada se o marido a deixou estudar, ela respondeu
que:

929
Não. E a gente era tão besta naquela época. Você se submetia a tanta coisinha Ele
era uma pessoa estudada. Ele era professor, mas na cabeça dele parece que
mulher, não pode saber? E não dá para entender certas coisas. Então aquilo
que a gente não pode fazer na nossa idade, a gente quer aproveitar o tempo
agora, pelo menos no meu caso é isso. Aquilo que eu não pude fazer quando
eu era jovem, porque eu me casei, agora que eu estou viúva, eu quero
recuperar o tempo perdido.

As limitações são apresentadas nos discursos como sendo carregadas ao


longo de toda a vida. Algumas entrevistadas apontam que o pai já não permitia que
elas tomassem suas próprias decisões, sendo assim o marido apenas reiterou a
realidade vivida na infância. A entrevistada 13 expressa essa questão, quando
perguntada se o marido a deixou estudar:

Não, não jamais. Voltei a estudar; ele não deixou. ele me pegou pelo colarinho e disse
para escolher ou a família ou o estudo. É, filhinha, os homens antigos tinham
disso. Ciúmes ‘né?’ Sei lá, ignorância total. E eu era uma pessoa que se tivesse
oportunidade de estudar, o pai já não deixou ‘né?’. Aí casei e o marido não
deixou. Eu tenho certeza de que eu seria uma aluna muito aplicada. Eu tenho
certeza de que ia chegar bem longe viu, mas foi podada. Mas estou aqui,
sobrevivi.

O fato de ela falar “sobrevivi” representa a “luta” feminina por direitos iguais
para todos na sociedade. Ela expressa a luta de várias mulheres no cotidiano, tendo
a figura repressora masculina podando suas vontades e realizações.

Considerações Finais

As mulheres participantes da pesquisa carregam as memórias de anos de lutas


feministas por direitos perante uma sociedade, que impõe normas para o
comportamento feminino. Elas contam sobre as dificuldades em lidar com os pais, que
reiteram as normas sociais de como a mulher deve ser e agir. Posteriormente o marido
assume esse lugar de poder na vida delas e dita inúmeras regras e funções para as
mulheres.
Na velhice elas carregam em sua história formas de repressão, mas também
possuem a vivência de várias lutas diárias em busca de direitos. Elas fazem parte do
grupo de mulheres que conseguiram alcançar algumas mudanças sociais. Contudo

930
parece que é na velhice, que elas conseguem usufruir mais dessas conquistas,
quando não há a tarefa de cuidar da casa, dos filhos e do marido.
Nesse contexto, a Universidade Aberta à Terceira Idade possibilita a realização
de desejos de outras fases da vida, mas também dispõe de um espaço de reflexão
sobre normas sociais relacionadas ao feminino. Na UNATI onde foi realizado o estudo
os professores costumam ser mais jovens e essa interação intergeracional com as
idosas possibilita a reflexão e a troca de experiências. Neste contexto diferentes
gerações se unem para novas realizações e pela busca de direitos sociais.

Referências

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Butler, J. (2018) Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização brasileira. 16ªed.

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Paidéia, 14(28), 211-220.

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cidades do nordeste brasileiro (tese de doutorado). Faculdade de Medicina da
Cidade de São Paulo. São Paulo.

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Ferrigno, J. C. (2010) Coeducação entre gerações. São Paulo: SESC.

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vida era de 76 anos. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de
noticias/releases/23200-em-2017-expectativa-de-vida-era-de-76-anos. Acesso
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Neri, A. L. (2008 )(org.) Palavras-chave em gerontologia. Campinas: Alínea.

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comunitário? Ed. Comunidad mujeres creando comunidad. La Paz: Moreno Artes
Gráficas.

Peixoto, C. (2003) Entre o estigma e a compaixão e os termos classificatórios: velho,


velhote, idoso, terceira idade... In: Barros, M. L. M. (org.) Velhice ou Terceira
Idade? Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de
Janeiro: FGV Editora. 57-84.

931
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identidades atreladas ao processo de envelhecimento. Rio de Janeiro: História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, 15(1), 155-168.

Tótora, S. (2006) Ética da vida e o envelhecimento. In: Côrtes, B. Mercadante, E. &


Arcuri, I (Org). O envelhecimento e velhice: um guia para a vida. São Paulo: Vetor
Editora. 2ªed.

932
87- SUICÍDIO E IDEAÇÕES SUICIDAS NA INFÂNCIA: UMA REVISÃO DA
LITERATURA

Alana Madeiro de Melo Barboza56


Laura Lima Branco57
Heliane de Almeida Lins Leitão58

Resumo: Apesar do suicídio ter maior incidência a partir do final da adolescência, não
se deve negligenciar possíveis sinais na infância, visto que, para que uma criança
pense ou cometa suicídio, ela precisa estar em profundo sofrimento psíquico. Diante
disso, este artigo tem como objetivo analisar produções da área da Psicologia acerca
do suicídio e/ou ideações suicidas na infância, assim como os fatores psicológicos
relacionados ao tema. Assim, realizou-se um levantamento bibliográfico no Portal de
Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC) com o propósito de elaborar uma
revisão de literatura. Os resultados mostram escassez de estudos sobre ideações e o
suicídio na infância. Dos 64 artigos encontrados, apenas 4 abordavam
especificamente o tema, sendo 3 estudos de caso e 1 de análise documental de dados
acerca do suicídio infantil no Brasil. Destaca-se que, dos 4 artigos sobre suicídio
infantil, 3 buscaram apoio teórico em Winnicott, indicando a relevância desse autor
para a análise e discussão do tema, com contribuições para a compreensão e
intervenção nessas situações. Por fim, ressalta-se a importância de pesquisas sobre
o suicídio infantil, considerando-se o crescente número de casos registrados e suas
graves consequências físicas e psicológicas na infância.

Palavras-chave: Infância; suicídio; Ideação suicida.

INTRODUÇÃO

O suicídio tem maior incidência a partir do final da adolescência, sendo menos


frequente na infância e no início da adolescência antes dos 15 anos de idade (Shaffer
& Fischer, 1981). No entanto, não se deve negligenciar possíveis sinais apresentados

56
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas.
57
Psicóloga pela Universidade Federal de Alagoas.
58
Drª em Psicologia e Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade de Alagoas.

933
nessa faixa etária. Para que uma criança pense ou cometa suicídio, ela precisa estar
em profundo sofrimento psíquico, que pode ser possibilitado ao não experienciar um
ambiente considerado satisfatório.
Friedrich (1989) afirma que a primeira pessoa a descrever suicídios de crianças
e jovens foi Casper durante um estudo na Prússia, entre os anos de 1788 e 1797.
Mas, mesmo sendo um estudo de uma população específica, Shneidman (1975)
afirma que o suicídio retratado por Casper é um fenômeno universal, sem apresentar
distinção de raça e classe social.
Entre os anos de 2000 e 2008 no Brasil, foram registrados 43 casos de suicídio
de crianças menores de 10 anos, representando 0,1% do total de mortes. Nesses
casos, 80% dos meninos recorreram ao enforcamento e, entre as meninas, notou-se
que os métodos preferidos foram intoxicação medicamentosa, afogamento e o uso de
objetos cortantes (Souza, 2010 apud Lemos & Sales, 2015). Ainda em relação a
gênero, estudos mostram que, apesar da incidência de tentativas de suicídio ser maior
entre meninas, a prevalência dos atos suicidas que levam à morte predomina entre os
meninos, visto que se utilizam de meios mais violentos (Leitão, 2017).
Em seu estudo, Pfeffer (1996) caracterizou o comportamento suicida de
crianças e adolescentes com pensamentos sobre provocar intencionalmente danos
ou a morte auto infligidos (também conhecidos como ideação suicida) e atos que
causem danos (tentativa de suicídio) ou a própria morte (suicídio). Leitão (2017) afirma
que “o gesto suicida remete à impulsividade, exposição ao perigo, tendência a testar
os limites e à relação com a transgressão, comuns na juventude”. Na leitura
psicanalítica, refere-se à passagem ao ato como referência ao suicídio, passagem
essa associada às questões citadas e à busca de escape ao sofrimento.
Estima-se que os atos que causem danos superem o número de suicídios em,
pelo menos, dez vezes (Botega, 2014). Porém, não foram encontrados registros de
abrangência nacional em nenhum país acerca dessas tentativas. Owens, Horrocks e
House (2002) afirmam que uma tentativa de suicídio aumenta seu risco em, pelo
menos, cem vezes em relação aos índices presentes na população geral. Portanto,
ideações suicidas e tentativas de suicídio são o principal fator de risco para sua futura
concretização.
Assim, essa pesquisa tem como objetivo investigar produções da área da
Psicologia sobre ideações suicidas infantis, analisando os artigos encontrados, a fim
de buscar entender suas implicações e o funcionamento do tema suicídio dentro de

934
uma fase tão precoce da vida como a infância, e quais processos de mudança
levariam a tais pensamentos e ideias suicidas.

MÉTODO

Foi realizada uma pesquisa teórica através de levantamento bibliográfico no


banco de dados Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC) e estudo
aprofundado. Primeiramente, fez-se uma análise quantitativa de artigos publicados,
obtidos através dos descritores: Infância, criança, infantil, combinando-os (AND) com
os descritores suicídio, morte e morrer. A pesquisa realizada mostrou um total de 87
artigos e observa-se que o maior quantitativo de produções foi obtido através dos
descritores Criança AND Morte. Após cruzamento para eliminar duplicações e
refinamento por meio da leitura na íntegra das produções encontradas, buscou-se
definir aqueles artigos relacionados especificamente ao tema do suicídio infantil,
totalizando 4 produções. Os achados revelam que os descritores ‘morte’ e ‘morrer’
não se mostraram relevantes na busca de estudos específicos sobre o suicídio, os
quais só foram capturados através do termo ‘suicídio’.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Um importante e surpreendente resultado é que, 3 dos 4 artigos encontrados


sobre suicídio infantil, usam o aporte teórico de Winnicott. Tal dado sugere que a teoria
de Winnicott se mostra relevante para o levantamento de questões e para a análise
do fenômeno do suicídio infantil, oferecendo elementos conceituais pertinentes para
reflexões sobre o tema.
Miceli e Zornig (2012) informam que, de acordo com Winnicott, para a
existência de uma boa saúde mental o bebê precisaria de uma mãe que assuma
ativamente o papel de cuidadora, ajudando-o a adaptar-se ao mundo ao seu redor,
sem tornar-se intrusiva, isto é, respeitando o momento do bebê, sendo uma adaptação
que precisa ser bem dosada. Geraldini (2016), Alvez e Uchôa-Figueiredo (2017),
afirmam que a presença de uma mãe suficientemente boa ocasiona uma proteção
contra estímulos que o bebê ainda não é capaz de assimilar. Para além da relação
mãe-bebê, as relações estabelecidas entre os familiares e o ambiente também irão

935
garantir a organização psíquica necessária para o desenvolvimento saudável desse
bebê.
A partir da definição de ambiente como facilitador do desenvolvimento,
Lowenkron (2006) desenvolve a investigação do caso de suicídio de um menino de 5
anos citado em seu artigo. A situação familiar de violência, dificuldades na relação
com a mãe e, consequentemente, a ausência de um ambiente facilitador foram
considerados colaboradores na configuração de uma realidade psíquica que o levou
a significar o suicídio como última saída para o seu sofrimento.
A autora ainda traz a questão do ambiente no desenvolvimento do ato
antissocial, ao falar que mesmo durante as entrevistas realizadas no início do
tratamento, pouco foi dito sobre as tentativas de suicídio, expondo assim o ambiente
onde aquela criança estava inserida “cercado de silêncio, de ausência de palavras,
onde explosões de violência e passagens ao ato eram frequentes” (Lowenkron, 2006,
p. 181). Esse ambiente, por fim, poderia estar ligado ao comportamento antissocial da
criança, que não possuía espaço para ter o desenvolvimento do seu eu e sua
autonomia enquanto si mesmo, o que posteriormente o levou a buscar uma última
chance de ser ele mesmo, e dessa forma expressar seu falso ou verdadeiro self por
meio da tentativa de suicídio.
Lemos e Salles (2015), chamam atenção para o fato de ser preciso desmitificar
a ideia que criança não comete suicídio ou não pensa sobre isso. Segundo as autoras,
essa mistificação sobre o suicídio na infância seria a causa da dificuldade de encontrar
trabalhos dedicados ao suicídio que tratem do tema aplicando-o nas fases iniciais do
desenvolvimento. Apontam ainda que uma criança que tenta ou comete suicídio está
em sofrimento psíquico, sendo de fundamental importância a análise de fatores
ambientais para a compreensão do suicídio infantil.
As autoras também discutem os fatores de risco para o suicídio na infância,
destacando: problemas escolares, dificuldade de acesso a tratamentos específicos e
fácil acesso a meios letais, eventos traumáticos, maus-tratos, carência de afeto e de
segurança, dentre outros. Sinaliza assim, que os contextos de desenvolvimento da
criança, incluindo-se, por exemplo, as relações parentais, escolares e comunitárias,
assim como conflitos familiares e estressores externos e violência também são fatores
de risco.
Lowenkron (2006), a partir das noções de autonomia e submissão, discute as
implicações do ambiente na constituição do falso self. A criança cujo

936
desenvolvimento inicial se deu num ambiente não suficientemente bom, estaria
sujeita a organização do falso self. A criança, nesse sentido, passaria a usar o falso
self como meio principal de se conectar com o mundo, de forma que estaria
vulnerável a ter ideações suicidas ainda na infância.
Para o paciente citado por Lowenkron, o uso do falso self se justificaria pela
tentativa de se rebelar contra sua existência em um ato de ter autonomia sobre sua
própria morte, ou de submissão, aceitando o domínio do falso self sobre o verdadeiro
self. Na ameaça de aniquilamento e angústia existencial, ocasionada do seu
desenvolvimento maturacional interrompido, o indivíduo passa a organizar-se de
forma defensiva na busca por tornar-se real, e concretizar o seu verdadeiro self, sob
o controle do falso self. A percepção de que esse verdadeiro self possa não emergir
pode gerar episódios de agressividade que, segundo Dezan e Mishima-Gomes
(2012), podem ocasionar surtos recorrentes de sentimentos e condutas agressivas
contra os outros, mas sobretudo contra si mesmo, levando assim, ao suicídio e/ou
ideação suicida.
O paciente de Lowenkron (2006) não possuiria tais condições psíquicas para
suportar as investidas de aniquilamento do self. Levando-o assim, a tentativa de
suicídio como forma de buscar livrar-se desse controle do falso self. Essa tentativa,
no entanto, foi sem sucesso, visto que o paciente não possuía os meios necessários
para conseguir subjugar seu próprio eu dominante. Um eu oriundo de uma falha
primitiva na relação mãe-bebê.
A agressividade está no cerne da problemática do suicídio. Luz (2008), tendo
como base a teoria winnicottiana, discute a agressividade em crianças em idade
escolar, defendendo que a educação não deve controlar a agressividade, mas ser
responsável pela criação de um ambiente que proporcione a criança aceitar e
conhecer como parte de si mesma a sua agressividade. Faz-se importante destacar
também as implicações do ambiente que seja retaliativo ou intrusivo, ressaltado por
Tommasi (1997) tendo como base a teoria winnicottiana, para o desenvolvimento do
bebê que pode por sua vez passar a perceber a realidade externa e as reações que
recebe do mesmo como seu próprio impulso destrutivo. Vivendo assim sua
destrutividade como real, uma vez que o ambiente é tido para o bebê em seus
primeiros momentos de vida como uma extensão dele mesmo.
Dessa forma o bebê será impedido de usar mecanismos que o auxiliem a
constituir uma integração do self e a separação do eu e do não-eu. Esse impedimento

937
consequentemente transformará seu ódio inicial de agressividade e destrutividade
natural, em um estado permanente que reproduz o comportamento agressivo como
única forma de interagir com o mundo externo. Sendo essa a única forma que
reconhece como real, significando e exteriorizando seu comportamento aprendido no
impedimento de sua integração total por meio da agressividade no mundo exterior a
si mesmo.
O artigo de Osti e Sei (2016) discute o caso de uma criança que possuía
sintomas por conta da experiência de um ambiente não suficientemente bom. Tais
sintomas se apresentavam em torno de suas ações programadas, diante de atender
o desejo do outro, quer fossem seus pais, e/ou professores, e se preocupava em não
fazer algo que pudesse deixá-los com raiva. No entanto, por ser uma submissão
sustentada pelo falso self, a menina apresentava comportamentos sociais
considerados inadequados, apresentando, por exemplo, tensão, agressividade, e
problemas de relacionamento com os colegas de escola.
Por esse motivo, as autoras apontam que o ambiente não suficientemente
bom, acabou por deixar Julia com ideações suicidas, resistente a construção de si
mesma, do seu verdadeiro self, sendo o falso self nesse caso, responsável por
atender as expectativas dos outros, em forma de submissão ao ambiente que lhe foi
oferecido desde seu nascimento.
Deza e Mishima-Gomes (2012) discutem a agressividade infantil como
consequência de ambientes controladores, nos quais a criança precisa reprimir seus
impulsos agressivos. Segundo as autoras, caso uma criança precise manter seu
verdadeiro self obscurecido pelo falso self, pode ocasionar uma agressividade que
acabará por tornar a criança em uma pessoa tensa, excessivamente controladora e
séria. Assim como as reclamações que chegaram sobre Julia a princípio. Essa
repressão causa a inibição dos impulsos da criança, impedindo o desenvolvimento
das ações espontâneas do verdadeiro self, e principalmente da sua capacidade
criativa (Winnicott, 1993/1999).
Deve-se considerar a importância da capacidade criativa na criança, visto que
é por meio dela que o indivíduo sente que a vida vale a pena ser vivida (Vilete, 2000).
Essa criatividade, porém, é gerada em muitos aspectos por meio do ambiente em
que o indivíduo é inserido, visto que é construído desde o início pela relação mãe-
bebê, posteriormente entre o bebê e a família, e por fim entre o indivíduo e a
sociedade. Segundo Vilete (2000) todos esses ambientes, caso sejam

938
suficientemente bons darão espaço para o bebê, criança, adolescente e adultos
expressarem seu viver criativo.
Baseados no conceito de privação e desamparo de Winnicott, Feijó e Oliveira
(2016) reafirmam sobre a privação afetiva durante o desenvolvimento, ao falar que as
privações na infância podem causar danos sociais, cognitivos e relacionados a
afetividade, ressaltando assim, a importância da devoção dos pais para com seus
filhos, ainda na primeira fase de vida.
Franco e Mazzorra (2007 apud Feijó & Oliveira, 2016), também destacam como
as perdas afetivas influenciam os sujeitos. Acrescentam que vivências de tais perdas,
podem gerar “culpa, castração, onipotência, rejeição, retaliação, idealização e
desidealização do objeto perdido, além de agressividade e reparação e repetição da
situação perdida” (p.75). Assim, perdas afetivas estão constantemente relacionadas a
tentativas e ideações suicidas.
Tendo tal afirmação como base, Chaves e Rabinovich (2010) refletem sobre a
associação da delinquência à privação da vida familiar, feita por Winnicott ao dizer
que “uma criança sofre privação quando passam a lhe faltar certas características
essenciais da vida familiar” (p. 138), “como a depressão da mãe em um momento
crítico, ou mesmo a dissolução da família” (p. 173).
No caso apresentado pelos autores, quando o jovem estava com 5 anos, seus
pais se separaram e ele foi separado da mãe ao ir morar em São Paulo com seu pai
e uma madrasta, sem um bom relacionamento. Mesmo após retornar à cidade de
origem, com 12 anos, depois de assassinar seu pai e a madrasta, não se sentia
igualmente amado em relação aos irmãos e revelou que neste momento não se
sentia acolhido na casa materna.
Relacionando a privação aos atos antissociais, Chaves e Rabinovich (2010)
chamam atenção para o fato de que, se por um lado a pessoa privada de algo passa
por momentos de depressão e inibição, por outro, existe a sobrevivência de alguma
esperança e, é nesses momentos que existe a capacidade de cometer atos
antissociais como um pedido de socorro.
Assim, Vagostello (2002) afirma que, entre todas as violências que podem ser
sofridas por uma criança – incluindo a violência sexual – é o abandono a forma de
violência mais sutil de todas, mas ainda aquela com maior grau de severidade.
Destaca ainda dois pontos, a violência física e a afetiva. A primeira sendo a de
necessidades básicas das crianças como alimentação e higiene. Enquanto a segunda

939
seria o distanciamento emocional, o que geraria a falta de interesse nas necessidades
básicas da criança. Para a autora, esses dois tipos de violência seriam os
responsáveis por problemas físicos e de desenvolvimento, mas também de problemas
psicológicos que, em sua maioria, podem ser auto infringidos e fatais.

CONCLUSÃO

É notável que todas as produções foram encontradas a partir do ano 2000,


mostrando o recente interesse de pesquisa pela temática da morte e do suicídio infantil
e sua crescente relevância no século atual. Além disso, a análise realizada revelou
que cada autor publicou apenas um artigo sobre o assunto, não havendo uma
produção sistemática, consistente e aprofundada de grupos de pesquisa.
É importante enfatizar que o crescimento de casos de suicídio do público
infanto-juvenil registrados aponta a importância de, cada vez mais, se desenvolver e
aprofundar estudos acerca do tema, levando em consideração as graves
consequências físicas e psicológicas da ideação suicida na infância. Visto que se
destaca um número pequeno de artigos abordando especificamente o tema do
suicídio.
Essa falta de publicações, corrobora assim a ideia equivocada, destacada por
alguns autores, de que não existe suicídio na infância. Trazendo como consequência
a escassez de trabalhos sobre o tema que resulta em importante lacuna no
conhecimento, com repercussões para a discussão e o planejamento de
possibilidades de intervenção nos números crescentes de suicídio e/ou ideações
suicidas entre crianças e adolescentes.
Por esta razão, os artigos discutidos salientam que é preciso desmitificar a ideia
de que criança não comete suicídio ou não pensa sobre isso, e que estressores
externos e violência também são fatores de risco para o suicídio na infância. É
importante, também, que se destaque a ocorrência de suicídios e/ou ideações
suicidas na infância decorrentes de conflitos familiares, principalmente entre os
responsáveis e dos pais com os filhos, fator este que está entre os mais citados no
risco de suicídio de crianças e adolescentes.
Diante disso, autores salientam a importância da análise do ambiente,
especialmente dos relacionamentos familiares, a fim de estudar as características do
suicídio em uma fase tão precoce como a infância. Por fim, dos quatro artigos

940
encontrados que discutem o suicídio infantil, apenas 1 não faz uso da teoria
winnicottiana como base de discussão teórica.
Conclui-se, assim, que o pensamento psicanalítico de Winnicott se constitui em
importante aporte teórico para subsidiar a análise e discussão do tema. Conceitos
como provisão ambiental, privação e constituição do self emergem como ferramentas
conceituais importantes utilizadas pelos autores pesquisados.
Apesar de os autores se referirem constantemente a falhas ambientais,
privação, desamparo e a prevalência do falso self, deve-se salientar que existe uma
possibilidade de recuperação dessas falhas, de forma que a criança consiga lidar
melhor com a questão do suicídio e de ideias suicidas, podendo encontrar uma forma
de continuar seu desenvolvimento de forma satisfatória.
Neste sentido Winnicott também contribui com a discussão, propondo o
ambiente analítico como possibilidade de elaboração psíquica e retomada do curso
do amadurecimento emocional.

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942
88 - BEM-ESTAR PSICOLÓGICO DA POPULAÇÃO LGBTQ+

Aline Aguiar dos Santos Moraes59


Beatriz Lopez Diaz Sensato1
Elaine Aparecida Meirelis1
Eloize Bife Pereira1
Elvis Feliciano1
Juliana Portugal Pavanello1
Daiane Fuga da Silva60
Cláudia Borim da Silva61
Resumo
Este estudo buscou analisar o bem-estar psicológico da população LGBTQ+ e,
especificamente, comparar o nível dos seis fatores do BEP (Bem-estar psicológico)
dos participantes de diferentes orientações sexuais, que revelaram (ou não) a sua
orientação sexual para a família, que se sentem confortáveis (ou não) com a sua
orientação sexual. Para a realização da pesquisa, utilizou-se um questionário
sociodemográfico, contendo também questões acerca da qualidade das relações
interpessoais, além da Escala de Bem-Estar Psicológico. A amostra, autogerada, é
composta por 100 participantes, com idade média de 22 anos. Foi possível observar
que os participantes apresentam nível abaixo na dimensão domínio sob o ambiente,
o que revela uma dificuldade em controlar atividades externas, ou seja, as questões
voltadas para as atitudes da sociedade, como situações de preconceito. Além disso,
indivíduos que assumiram sua orientação sexual para a família e que se sentem
confortáveis com esta identificação, apresentam um bem-estar psicológico mais
elevado.
Palavras-chave: bem-estar psicológico, LGBTQ+, homossexualidade.

Introdução
A dinâmica das configurações familiares e seus modos de expressão têm
tomado novos direcionamentos em função das mudanças em relação aos núcleos
parentais. A emergência social de novas configurações conjugais e familiares e seu

59
Graduandos do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
60
Psicóloga e Mestre em Ciências do Envelhecimento pela Universidade São Judas Tadeu.
61
Doutora em Educação Matemática e Docente do curso de graduação em Psicologia da Universidade
São Judas Tadeu.

943
respectivo reconhecimento jurídico é um exemplo real dessas mudanças (Amorim,
2017; Amorin, 2005). A sexualidade, como fruto de uma construção social, envolve
entre seus diversos aspectos, a discussão sobre identidade de gênero e orientação
sexual e é produto do momento histórico, da cultura e da sociedade na qual o indivíduo
está inserido (Gross & Carlos, 2015).
Assim, o termo “gênero” propõe-se para se referir a padrões tipicamente
masculinos e femininos. “Sexo”, para a diferenciação genética e morfológica dos
organismos e “identidade de gênero” para a forma como um indivíduo se percebe e
se classifica, sendo masculino ou feminino. Denomina-se como “cisgênero” pessoas
que se identificam com o sexo designado em seu nascimento. “Transexualidade” ou
“transgeneridade” caracteriza-se como a pessoa que possui uma identidade de
gênero diferente do sexo designado em seu nascimento e que buscam se adequar à
sua própria identidade (Menezes et al., 2010). Pessoas não-binárias, em
contrapartida, são as que não se identificam com o conceito binário de gênero, ou
seja, não se identificam nem com o feminino nem com o masculino. Além disso,
pessoas que se identificam como gênero fluído possuem o espectro de gênero em
constante mudança (Reis & Pinho, 2016).
Um outro elemento que envolve a sexualidade é a orientação sexual. Por
orientação sexual homoafetiva, caracteriza-se como o direcionamento do desejo
sexual para pessoas de mesmo sexo, ou ainda, de ambos os sexos (Herek, 2007;
Madureira & Branco, 2007). Laurenti (1984) explica que em determinado momento
histórico, a homossexualidade foi considerada como patologia e transtorno, nas
versões 6 e 8 do CID (Classificação Internacional de Doenças). Com o avanço da
ciência e a ascensão dos movimentos políticos no final do século XX e início do século
XXI, a ideia da homossexualidade como doença veio a ser refutada. Em 1990, foi
declarado oficialmente que a homossexualidade não se constituía como doença ou
distúrbio, tendo sido o código retirado do CID-10 (Organização Mundial de Saúde,
1997).
Apesar da ascensão da visibilidade sobre o assunto, é fato que a homofobia
ainda é um problema social. Em função do preconceito, indivíduos da população
LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Queers) ainda encontram
dificuldades na garantia de direitos no Brasil e, apesar de existirem leis que deveriam
culminar na penalização em casos de homofobia, casos de agressão são cada vez
mais recorrentes (Costa & Nardi, 2017). Indivíduos LGBTQ+, por estarem mais

944
expostos a situações estressoras devido à sua orientação sexual e/ou identidade de
gênero, possuem maior risco de desenvolverem problemas relacionados à saúde
mental. A violência, tanto física quanto psicológica, pode afetar diretamente seu bem-
estar e causar impactos irrefutáveis à vítima (Braga, 2017).
Machado e Bandeira (2012) afirmam que o bem-estar é um conceito estudado
na Psicologia Positiva que busca compreender no que se constitui o bem-viver. Os
autores explicam que a teoria do bem-estar psicológico (BEP) surgiu no final da
década de 1980, com o trabalho de Ryff (1989) e agrega áreas da psicologia do
desenvolvimento humano, psicologia humanista-existencial e saúde mental, e está
relacionada a experiências de autorrealização e sentido de vida. Nesse sentido, diante
do presente exposto, é relevante abordar os aspectos que envolvem o bem-estar da
população LGBTQ+, considerando a vulnerabilidade que este grupo é exposto frente
a situações estressoras de preconceito, que podem comprometer a saúde física e
psicológica desta população.

Objetivo
Este estudo buscou analisar o bem-estar psicológico da população LGBTQ+ e,
especificamente, comparar o nível dos seis fatores do BEP (Bem-estar psicológico)
dos participantes de diferentes orientações sexuais, que revelaram (ou não) a sua
orientação sexual para a família, que se sentem confortáveis (ou não) com a sua
orientação sexual.

Método
O estudo consiste em uma pesquisa de levantamento, que se caracteriza pela
interrogação direta das pessoas cujo comportamento se deseja conhecer.
Basicamente, procede-se à solicitação de informações a um grupo significativo de
pessoas acerca do problema estudado para, em seguida, mediante análise
quantitativa, obterem as conclusões correspondentes aos dados coletados (Gil, 2008).
Trata-se de um estudo descritivo-correlacional (Almeida & Freire, 2008), de
abordagem quantitativa e delineamento transversal.
A amostra foi composta por 100 participantes, de 18 a 30 anos, pertencentes à
população LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Queers) que
responderam aos instrumentos: 1. Questionário sociodemográfico. 2. Escala de Bem-
Estar Psicológico, validado para a população brasileira por Machado, Bandeira e

945
Pawlowski (2013)62. Esta escala é constituída por 36 afirmativas, que devem ser
respondidas em uma escala Likert de seis pontos, que varia entre discordo totalmente
até concordo totalmente. Os 36 itens da EBEP são divididos em seis dimensões,
sendo: relações positivas com outros; autonomia; domínio sob o ambiente;
crescimento pessoal; propósito na vida; e autoaceitação.
O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da Universidade São Judas Tadeu (Número do parecer de aprovação: 3.373.142 e
CAAE: 14692619.5.0000.0089). A amostra foi obtida pelo método autogerado, em que
buscou-se participantes que fizessem parte da população LGBTQ+ para,
voluntariamente, responderem a pesquisa. Estes, em seguida, indicaram outros
participantes de seu círculo social. Todos os participantes que aceitaram fazer parte
do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os resultados foram tabulados em planilha eletrônica no Microsoft Excel
(Pacote Office 2016) e analisados no Software SPSS (Statistical Package for Social
Science), versão 21.0. Os dados estão apresentados com frequência e porcentagem,
média e desvio padrão. Para atingir os objetivos específicos, foram utilizados teste t
de Student, ANOVA e teste de Duncan com nível de significância de 5%.

Resultados e Discussão
A amostra foi composta por 100 participantes, com média de idade de 22,6 anos
(DP=3,2), sendo a maior parte mulher cisgênero (54,6%), homem cisgênero (35,1%),
não binário (4,1%), gênero fluído (3,1%), mulher transgênero (2,1%) e homem
transgênero (1%). A maioria é solteiro (81%), reside com a família (73%) e possui
renda mensal de um a dois salários mínimos (32%).
Pode-se observar na Tabela 1, que o nível de bem-estar psicológico dos
participantes LGBTQ+, foi positivo em todas as dimensões exceto no domínio sob o
ambiente, demonstrando que os participantes possuem relações satisfatórias com
outras pessoas, autodeterminação e independência, bem como capacidade de avaliar
a si mesmo e resistir às pressões sociais e de perceber a si mesmo como um indivíduo
em constante desenvolvimento. Além disso, ter nível positivo de BEP nestas cinco
dimensões, implica em possuir senso de direção na vida, com objetivos pelos quais
vale a pena viver, habilidade de ter uma atitude positiva em relação a si mesmo, de

62
O instrumento está disponível para uso público, conforme os autores informaram.

946
conhecer e aceitar múltiplos aspectos, incluindo qualidades boas e ruins, além de
sentirem-se bem em relação ao passado (Machado, Bandeira e Pawlowski, 2013).
Por outro lado, os participantes apresentaram nível abaixo na dimensão domínio
sob o ambiente (M= 20,8 ± 6,2), que revela uma dificuldade em controlar atividades
externas, ou seja, as questões voltadas para as atitudes da sociedade, como por
exemplo, situações de preconceito. Historicamente, o conceito de orientação sexual e
identidade de gênero foi construído de modo a considerar os modelos que fogem da
constituição binária e heterossexual como algo aversivo. Situações de preconceito são
vivenciadas dentro e fora do contexto familiar, tornando dificultoso para o indivíduo
sentir-se seguro em meio à tantas adversidades (Perucchi, Brandão & Vieira, 2014).

Tabela 1
Média e Desvio padrão da pontuação de bem-estar psicológico da população
LGBTQ+.
Média
Dimensões Mínimo Máximo PME DP
(n=100)
Relações positivas com outros 10 36 21 25,5 5,3
Autonomia 8 36 21 25,1 5,5
Domínio sob o ambiente 6 35 21 20,8 6,2
Crescimento pessoal 21 36 21 32,1 3,7
Propósito na vida 9 36 21 27,0 5,7
Autoaceitação 8 36 21 25,6 6,0
Nota: PME = Ponto Médio da Escala; DP= Desvio Padrão.
Com relação aos dados da Tabela 2, não houve diferença estatisticamente
significante entre o bem-estar psicológico dos participantes que revelaram ou não a
sua orientação sexual para a família. Este resultado é contraditório ao obtido por
Campos (2015), em que o autor investigou associações entre o bem-estar de
homossexuais e o apoio social familiar em 20 indivíduos, cujo resultado mostrou que
este apoio se apresenta em seus indicadores como o fator mais importante para o
bem-estar dessa população, pois 25% apresentaram como consequência da falta de
apoio familiar, aspectos como distanciamento da família, insatisfação com a vida
pessoal e dificuldade de se relacionar socialmente. Outro estudo que evidencia a
relevância do apoio familiar foi realizado por Ghorayeb (2012), no qual teve o objetivo
de avaliar o impacto da discriminação na saúde mental de sujeitos homossexuais,
concluiu que, quando os indivíduos decidem se assumir para a família, 35%

947
internalizam o sentimento de vergonha da orientação sexual ao supor que o outro (pai
e mãe) sentirá vergonha dele. Assim, 40% dos adolescentes homossexuais
manifestaram prevalência de transtornos mentais, no entanto, quando o sujeito é bem
recebido pela família, a proteção aumenta, e o risco desses transtornos diminuem.
Nesse sentido, o processo de aceitação da família é essencial para o enfrentamento
do preconceito vivenciado pelo indivíduo fora de casa.

Tabela 2
Média, desvio padrão e teste t da pontuação de bem-estar psicológico da população
LGBTQ+ comparado ao fato de ter contado para a família sobre sua orientação sexual.
Dimensões Contou n M DP t p
Sim 69 25,3 5,5 -
Relações positivas com outros 0,651
Não 31 25,9 4,7 0,453
Sim 69 25,6 5,5
Autonomia 1,438 0,154
Não 31 23,9 5,5
Sim 69 20,1 6,2 -
Domínio sob o ambiente 0,100
Não 31 22,4 5,8 1,658
Sim 69 32,1 3,7
Crescimento pessoal 0,202 0,841
Não 31 32,0 3,5
Sim 69 26,9 5,5 -
Propósito na vida 0,774
Não 31 27,3 6,2 0,288
Sim 69 25,9 5,9
Autoaceitação 0,568 0,572
Não 31 25,1 6,2

Pode-se identificar na Tabela 3, que existe uma associação positiva


estatisticamente significante entre o bem-estar psicológico de indivíduos que estão
confortáveis com sua orientação sexual nas dimensões autonomia, propósito na vida
e autoaceitação. Quando aplicado o teste estatístico de Duncan, o único grupo
considerado diferente foram as pessoas que não quiseram responder sobre este
sentimento de conforto na dimensão propósito com vida, em que elas apresentaram
menor pontuação de bem-estar.
Em um estudo de Lomando, Wagner e Gonçalves (2011), evidenciou-se a
relevância da família e dos amigos como rede de apoio, encontrando uma correlação
positiva entre adaptabilidade e apoio social familiar (r = 0,347; p = 0,001). Os
resultados obtidos indicam que, ao possuir um apoio social firmado e constituído em
respeito e amor, os indivíduos possuem uma tendência a serem mais confiantes, e,
assim, confortáveis consigo mesmos. Além disso, para Barbero (2003), quando
alguém resolve contar essa particularidade, retira das costas o peso da enganação,

948
ou seja, tende a deixar de viver uma vida na qual precisa mentir para os outros para
poder ser quem se é de fato. Este aspecto é de muita relevância tanto para a saúde
mental, tanto quanto para o bem-estar psicológico.

Tabela 3
Média, desvio padrão e ANOVA da pontuação de bem-estar psicológico da população
LGBTQ+ em relação aos participantes se sentirem confortáveis com a sua orientação
sexual.
Confortáve
Dimensões n M DP F p
l
Sim 89 25,7 5,5
Relações positivas com
outros Não 7 25,5 3,6 0,781 0,461
Neutro 4 22,2 1,5
Sim 89 25,6 5,3
Autonomia Não 7 21,1 6,4 4,691 0,011
Neutro 4 19,2 4,7
Sim 89 20,7 6,2
Domínio sob o ambiente Não 7 23,1 7,0 0,900 0,410
Neutro 4 18,0 4,2
Sim 89 32,2 3,5
Crescimento pessoal Não 7 31,8 5,2 1,038 0,358
Neutro 4 29,5 3,4
27,2
Sim 89 a 5,6
27,8
Propósito na vida Não 7 a 6,2 3,271 0,042
20,0
Neutro 4 b 4,0
Sim 89 26,1 5,9
Autoaceitação Não 7 21,4 4,8 3,590 0,031
Neutro 4 20,7 5,7

Conclusões
Os resultados analisados indicam que, nas dimensões do bem-estar psicológico
(autonomia, crescimento pessoal, propósito na vida e autoaceitação) os aspectos
foram percebidos como positivos, indicando que esses indivíduos possuem
características que envolvem relações satisfatórias, autodeterminação e
independência. Entretanto, os participantes apresentaram níveis abaixo na dimensão
domínio do ambiente, que revela uma dificuldade em controlar questões externas e

949
que envolvem atitudes da sociedade. No que se refere à revelação da orientação
sexual, foi possível observar que não houve diferença significativa entre indivíduos
que não assumiram sua identidade sexual para a família. Além disso, a autoaceitação
apresenta-se como um fator de muita relevância para as dimensões autonomia,
propósito de vida e aceitação, sendo o BEP maior em indivíduos que se sentem
confortáveis com sua orientação sexual.
Compreende-se, que apesar desta pesquisa abranger um número relevante de
jovens, não configura o resultado único de toda a população em questão. No entanto,
levando em consideração as questões propostas e levantadas nesta pesquisa, é
possível compreender os aspectos que envolvem o indivíduo LGBTQ+ e que estão
intrinsecamente ligados ao bem-estar. Evidencia-se a necessidade de aprimorar este
conteúdo, com o propósito de envolver questões sobre o papel da sociedade para a
população LGBTQ+, uma vez que este público enfrenta preconceitos e dificuldades
que podem comprometer o seu bem-estar psicológico.

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Agradecimento
Agradecemos ao Wagner de Lara Machado, Denise Ruschel Bandeira e Josiane
Pawlowski pela disponibilidade e autorização de uso da Escala de Bem-Estar
Psicológico.

952
89- TENTATIVA E IDEAÇÃO SUICIDA NA ADOLESCÊNCIA: UM ESTUDO DE
CASO CLÍNICO

Mellina Harue Shima Jecks63


Bruna de Lima Coutinho 64
Loraine Seixas Ferreira65

Resumo: A tentativa e a concretização do suicídio podem acontecer durante todo o


curso da vida de um indivíduo, e foi apresentada como a segunda maior causa de
morte entre jovens de 15 a 29 anos ao redor do mundo, em 2016. Desta forma, o
objetivo deste trabalho foi apresentar e analisar a tentativa e ideação suicida de uma
adolescente encaminhada para atendimento psicológico em uma clínica escola do
curso de psicologia de uma Universidade do Estado de São Paulo. O estudo foi
baseado no prontuário da adolescente e os dados foram analisados e interpretados
de forma qualitativa. As relações familiares e suas vivências no ambiente escolar não
foram vivenciados de forma saudável, despertando sentimentos angustiantes que ao
procurar soluções para tal sentimento, fomentou comportamentos agressivos, auto
lesivos e a tentativa de suicídio. Conclui-se que os conflitos familiares somados a
dificuldade de relacionamento no ambiente escolar contribuíram para a ideação e
tentativa de suicídio da adolescente.

Palavras-chave: Suicídio, Pensamento suicida, Adolescência.

Introdução
Palmonari (2004) relata sobre a ligação existente entre a adolescência e a
puberdade, porém as coloca como dois fenômenos diferentes, sendo que o primeiro
se refere a componentes psicológicos e sociais, que estão diretamente relacionados

63
Graduanda em Psicologia pela Universidade São Judas
64
Graduanda em Psicologia pela Universidade São Judas
65
Docente no curso de Psicologia da Universidade São Judas, mestre em ciências pelo Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, doutoranda pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

953
aos processos de mudanças físicas, enquanto o segundo envolve transformações
biológicas inevitáveis, no entanto, ambos vivenciados na passagem da infância para
a vida adulta. Segundo o art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil,
1990), a adolescência é um estágio de desenvolvimento entendido entre 12 e 18 anos,
período no qual Peres e Rusember (1998), relatam ser um momento delicado para os
jovens, de realocações dos papéis referentes aos pais, da gradual entrada na vida
adulta, da perda do corpo infantil e a ascensão da sexualidade, tudo isso podendo
acarretar algumas crises, que podem ser vivenciadas com maior sensibilidade.
Winnicott (1963/2008) fundamenta a concepção de que esta fase é de fato um período
conturbado, no qual a prepotência desses jovens, unido com a dependência das
figuras dos pais, faz o cenário parecer desajustado e confuso.
Pratta e Santos (2007) retratam a perda da dependência infantil como
sendo algo ameaçador ao adolescente, pois faz com que eles lidem com o
ressentimento, o medo e a culpa: fatores esses que eventualmente contribuem para
o conflito em enfrentar e assumir seu próprio desejo e construir seu caminho a partir
de suas preferências. Neste momento, esses jovens carecem do apoio de seu grupo
familiar, com o ideal de lidar e responder a esses grandes desafios colocados por tais
exigências.
Winnicott (1963/2008) apresenta que o desenvolvimento saudável depende do
ambiente, sendo ele, objeto de aprendizado para as primeiras relações fundamentais.
Kancyper, L. (1999 citado por Jordão, 2008) contrapõem dizendo que, quando esse o
acolhimento provindo desse ambiente não acontece, e as expectativas que são
depositadas despertam sentimentos angustiantes difíceis de serem elaborados que
pode acarretar – ou em certas situações acentuar – algumas dificuldades,
principalmente em termos de relacionamentos. Desta maneira, pode afetar o bem-
estar e a saúde psíquica desses jovens.
Dias (2003) expõe que a natureza das relações na adolescência, inclui,
do mesmo modo, os vínculos de amizade que se unem não apenas a socialização,
mas também à forma como eles compõem sua identidade. Segundo Winnicott
(1963/2008) os grupos na adolescência são como um conjunto de indivíduos
separados que tentam formar um agregado em torno de alguma preocupação ou
interesse em comum, estando desta forma, protegidos e recuados. Ainda segundo o
autor (idem), os adolescentes iniciam sua participação em vários grupos, pois dessa
forma, conectam seu mundo pessoal com os fenômenos externos, fazendo desses

954
encontros, novas experiências a serem vivenciadas. Seguindo esta linha de raciocínio,
Pigozi e Machado (2015) e Carvalho et al. (2017) retratam que, dentre essas relações
de amizade, as que não forem bem-sucedidas, podem acarretar no chamado bullying,
capaz de provocar sérias consequências à saúde psíquica do adolescente, que além
de lidar com mudanças pessoais intensas, busca a aceitação pelas suas
particularidades, em meio à distinção entre seus pares.
O adolescente vivencia intensos conflitos e mudanças, que podem deixar
marcas a longo prazo, provocando sentimentos que serão carregados ao longo de
sua vida, e ao procurar soluções para os problemas, apela a comportamentos
agressivos, impulsivos ou suicidas, caminhando para a ideação suicida, sendo ele
precursor para o suicídio. (Barrios, Everett, Simon, & Brener, 2000; Flechner, 2000;
Turecki, 1999). Teixeira (2004) coloca que este momento delicado propicia ao
adolescente, que já tem à tendência em comunicar-se por meio da ação, a buscar
alternativas para o alívio de seus conflitos e de seus sofrimentos, expondo
comportamentos agressivos, falso sentimento de segurança, sobre o futuro,
depressão, ideação suicida, tentativas de suicídio e a busca pela morte.
Farias (2003, citado por Moraes, 2005) e embasado em Winnicott (1963/2008),
descreve que nesta fase intensificam-se as incertezas, e retrata como elemento
central nos casos de suicídio a impossibilidade de o indivíduo perceber-se real. Sendo
assim, o suicídio pode ser considerado como uma nova esperança do ser, de
transformar o self verdadeiro real, ou ainda de preservar a realidade interna. Segundo
Moraes (2005), não existe a possibilidade em se falar de suicídio na teoria
winnicottiana sem falar sobre a falha da mãe, compreendendo que a ideação ou o
comportamento suicida, tem seu início no momento do amadurecimento em que
alguma falha impede a continuidade de um ser saudável. O suicídio, a ideação suicida
ou a tendência suicida podem “estar presentes naquelas situações em que as
interrupções do processo de amadurecimento, por serem tão prematuras, não
permitiram que o indivíduo escapasse à psicose, na qual predomina a ansiedade de
aniquilamento” (Faria 2003 p.93 citado por Moraes, 2005 p.291).
De acordo com Werlang, Borges e Fensterseifer (2005), o comportamento
suicida envolve, casualmente ou regularmente, ideias, desejos e atos que aparecem
na intenção da ânsia de morrer e no preparo da ação, além do pensamento de como
a morte impactaria na vida de outras pessoas, muitas vezes, sendo visto como solução
para algo que, não aparenta ter saída. Nesse comportamento, o indivíduo tenta pôr

955
um fim a todos seus sentimentos, ao contrário, por exemplo, daquele que pratica a
autolesão não suicida, se fere buscando se sentir melhor (Giusti, 2013).
Segundo a Organização Panamericana de Saúde (OPAS, 2018), cerca
de 800 mil pessoas cometem suicídio, e existe um número maior de pessoas que
tentam executá-lo. Ainda segundo a OPAS as tentativas e concretizações podem
ocorrer durante toda a trajetória da vida de um indivíduo, apresentando-se como a
segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos em torno do mundo,
no ano de 2016. Durante o período da adolescência, as ideias de morte que podem
aparecer fazem parte de um processo de elaboração de estratégias, que acontece
desde a infância até a adolescência, para lidar com situações estressoras existentes,
como compreender o sentido da vida e da morte (OMS, 2002).
A tentativa de suicídio pode ser considerada como um ato determinado, porém
que foi descontinuado antes que resultasse em morte. Já o suicídio em si é
considerado como forma de morte que é criado a partir de um ato direto ou indireto
praticado pela própria vítima, sendo a morte, o resultado esperado (OPAS, 2018)
Essa pesquisa tem como objetivo apresentar e analisar o caso de uma
adolescente que foi encaminhada para atendimento psicológico após duas tentativas
de suicídio, visto que, esse tema tem se apresentado cada vez mais em foco, e
necessitando de um olhar mais centralizado.

Método
Esta pesquisa foi realizada através do estudo e análise do prontuário de uma
adolescente que passou por atendimento psicológico em psicodiagnóstico no ano de
2013, psicoterapia, também em 2013 e no Programa de Atenção às Tentativas de
Suicídio (PROATES) no ano de 2014, na clínica-escola do curso de psicologia de uma
Universidade do Estado de São Paulo. Foi solicitada a autorização da psicóloga
responsável da clínica-escola, para que o prontuário pudesse ser acessado. O
prontuário submetido à pesquisa teve o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
assinado pelo responsável da paciente no início de seus atendimentos.
Tratou-se de uma pesquisa documental qualitativa, que de acordo com Pádua
(1997), “é aquela realizada a partir de documentos, contemporâneos ou
retrospectivos, considerados cientificamente autênticos (não fraudados); tem sido
largamente utilizada nas ciências sociais, na investigação histórica, afim de
descrever/comparar fatos sociais, estabelecendo suas características ou tendências”

956
(p.62). O estudo foi realizado a partir de um estudo de caso que segundo Yin (2009)
esse tipo de investigação se dá quando há o desejo de compreender, de maneira mais
aprofundada, um acontecimento da vida real e atual, cujo o entendimento está
vinculado a “importantes condições textuais” (p 39). Com isso o estudo de caso tem
como objetivo explicar, descrever, ilustrar e explorar situações excessivamente
complexas, que não podem ser explicadas por um raciocínio de causa e efeito.
A partir da coleta de dados o caso foi descrito e analisado e seus achados foram
relacionados na discussão. A identificação do prontuário se deu por nome fictício, para
facilitar a compreensão do relato que foi exposto nesta pesquisa e para preservar a
identidade da participante. Este estudo foi parte de um projeto de pesquisa aprovado
pelo Comitê de Ética66 em Pesquisa da Universidade São Judas, do estado de São
Paulo.

Relato do Caso Clínico


Liz tinha 13 anos quando iniciou no atendimento psicológico, após ser
encaminhada por um hospital do estado de São Paulo, devido a uma internação de
12 dias, por conta de uma gastrite nervosa, que os médicos acreditavam ter causas
emocionais. Morava com a mãe, o padrasto, com o qual não tinha boa relação, e a
sobrinha dele. Liz contava que, apesar da relação com o padrasto ser conflituosa, no
início do relacionamento entre ele e sua mãe, não o aceitava, porém preferia ele ao
seu pai biológico.
Sua mãe conheceu o pai biológico aos 13 anos e engravidou aos 17. A gravidez
foi bem aceita, mas quando Liz nasceu, seu pai não a assumiu, exigindo o teste de
DNA, e mesmo com o resultado positivo, negou-se a registrá-la. O genitor não a
procurava com frequência, e quando a encontrava, ele falava sobre si, suas
expectativas para o futuro, e fazia comparações entre ela e suas outras filhas,
comentando que a adolescente tinha espinhas no rosto e a pele de sua outra filha era
“limpinha”. Liz disse que em um dos encontros o pai a chamou de “bastarda”, o que a
fez desejar morrer.
No período escolar, relatou que não tinha muitas amizades com as meninas,
pois a chamavam de “testuda e gorda.” ou de “gordinha de cabelo enroladinho” (sic).

66
CAAE: 12517219.1.0000.0089

957
Sua mãe discordava dos insultos feitos a filha e a levou para tirar fotos e realizar um
trabalho como modelo, mas a adolescente não foi chamada, o que a fez acreditar e
dizer que “não me chamaram porque sou feia, não tenho altura para passarela e sou
desengonçada.” (sic). Comentou que nesse período, gostava de fazer trabalhos
voluntários como monitora, porém sua mãe não ficava satisfeita, por achar que ela
deveria procurar um estágio.
A mãe também relatava que a Liz parecia ser “antissocial”, por não fazer
amizades e não gostar de sair, porém a filha conta que ela não permitia que saísse
sozinha, apenas acompanhada, mesmo quando ia ao shopping com as amigas. Liz
mencionou seu interesse por meninos, embora sua mãe não aceitasse, contrapondo
que ela era nova para namorar e que lhe dava “bons” (sic) conselhos como “olha,
confiei no seu pai, na sua idade já me interessava por ele, gostei dele e olha o que
aconteceu comigo” (sic). Em uma das sessões foi questionado à mãe como ela definia
a filha, a mesma respondeu que sentia saudades de quando Liz era pequena, porque
era meiga e comportada, e que naquele período estava revoltada, agressiva e a
olhava de forma estranha. Dizia para a adolescente que “tudo o que seu pai não fez
eu fiz por você e você tem que reconhecer e me respeitar.” (sic).
Sobre as tentativas de suicídio, a primeira ocorreu, segundo seus relatos, em
janeiro de 2013. Nesse episódio, Liz tomou os remédios de sua tia (Rivotril), foi levada
ao hospital e lá fizeram lavagem estomacal; relatou que fez isso porque sua mãe
proibiu o relacionamento dela com outro garoto: “queria sair deste mundo” (sic). A
segunda tentativa ocorreu em fevereiro do mesmo ano, em que a adolescente ingeriu
“cândida”. Disse que estava chateada com sua mãe, pôr a ter proibido de namorar, e
queria fazer algo para a mãe se sentir culpada. Foi para o hospital e lá fizeram outra
lavagem estomacal. Na terceira tentativa, sua mãe relatou que não tinha certeza, mas
viu a filha andando cambaleando e depois debruçando-se na janela do quarto, gritou
para que ela saísse e após esse episódio pediu para o marido colocar tela no quarto.
No período que estava em atendimento contou às terapeutas que havia cortado
seu braço com gilete após ser ofendida na escola, quando os colegas a chamavam
de “gorda.” Fala que não teve intenção suicida, mas “queria sentir o corte na pele”
(sic).

958
Discussão
No decorrer das sessões foi relatado que o pai de Liz sempre foi ausente, e
que ela não gostava dele por ele não a considerar como filha, causando-lhe mal-estar,
e quando lembrava dessa situação, sentia vontade de se matar; sobre sua relação
com a mãe, a paciente relatou não se sentir à vontade para realizar seus desejos, pois
ela a impedia de vivenciar várias situações e com o padrasto ela trouxe os conflitos e
brigas na relação entre eles. Foi possível observar que parte do que a paciente
apresentou durante as sessões, referiu-se sobre questões familiares. Marcelli e
Braconner (2007) expõe que o ambiente familiar também pode desempenhar um
papel de agente de reações ansiosas e depressivas, no momento em que esse
sentimento se liga ao desentendimento conjugal dos pais, a um divórcio, ou um
controle excessivo partido dos responsáveis, que freiam o desejo do adolescente de
se tornar independente, fazendo com que ele apenas consiga expressar esse querer,
de forma agressiva e imprudente.
Com relação ao ambiente escolar, esse também não aparentava ser saudável,
considerando que ela sofria bullying dos colegas. Em seus relatos, Liz trazia
comportamentos autolesivos, dos quais cortou seus braços, pois sentiu vontade, após
ter sido ofendida na escola. Assim como exposto anteriormente por Pigozi e Machado
(2015) e Carvalho et al. (2017), o bullying sofrido por Liz provocou consequências em
sua saúde psíquica, que encontrou nos cortes uma forma de lidar com o sofrimento.
Segundo a paciente, esse comportamento foi tomado por um impulso, seguido
da explicação de que nem sempre “consegue manter o controle” (sic). Giusti (2013)
retrata que a impulsividade apresenta características voltadas para um baixo nível de
noção de risco, respostas impulsivas e dificuldade em controlar os desejos, e os
recorrentes comportamentos para obtenção de prazer e gratificação.
Quanto a autolesão, como mencionado na introdução, pode ser entendido
como uma forma do indivíduo se sentir melhor (Giusti, 2013), mas também um jeito
de evitar o aniquilamento, ou seja, se apresenta na forma de uma defesa diante da
falha do ambiente que ocorreu quando o indivíduo deveria realizar a tarefa de
integração e personalização (Rodrigues e Lima, 2012). Essas características podem
ser observadas em Liz, que se cortava para sentir a dor do corte, como uma tentativa
de desviar o foco da dor psíquica para a dor física e dar um contorno ao seu corpo e,
assim, evitar o aniquilamento.

959
Ainda sobre a autolesão, os relatos do prontuário, a terapeuta do caso
descreveu que a paciente apresenta baixa autoestima, “devido a sentimentos de
inadequação em relação a si mesma” (sic). Os estudos de Tardivo et al (2019) também
apontaram insegurança como característica presente em adolescentes com
comportamento auto lesivo, além de outros aspectos, como sintomas de ansiedade e
depressão, sentimento de culpa e negação dos pensamentos dolorosos em
adolescentes com comportamento auto lesivo.
Apesar do DSM-5 (American Psychiatric Association, 2014) apresentar a
autolesão como um comportamento não suicida, a ideação pode estar associada a
esse comportamento, como no caso de Liz. Ambos os comportamentos parecem estar
relacionados aos ambientes conflituosos que a paciente vive (bullying na escola,
conflitos em casa com a mãe e padrasto, relacionamento conturbado como pai), pois,
como apresentado por Kancyper, L. (1999 citado por Jordão, 2008), quando o
ambiente não favorece o acolhimento necessário, sentimentos angustiantes e de difícil
elaboração são despertados, afetando a saúde psíquica do adolescente.
Sobre as tentativas de suicídio que a mãe de Liz relatou durante as sessões,
as três foram por ingestão de substâncias. Kitagawa, Sales, Paiano e Oliveira (2019),
escrevem que este método geralmente tem baixa letalidade, visto que, desta maneira,
as vítimas têm maiores chances de obterem socorro e chegarem com vida ao hospital.
Botega, Cano, Kohn, Pereira e Bonardi (1995) concluíram que as tentativas advindas
desse método, são regados de impulsividade, por serem de fácil acesso.
Werlang, Borges e Fensterseifer (2005) escrevem em como a ideia de morte
impactaria a vida das pessoas a volta do sujeito. No caso de Liz, a adolescente via na
morte uma forma de impactar diretamente a vida da mãe, pois ao justificar o motivo
para a tentativa de suicídio, explica que foi para que a mãe sentisse culpa de suas
proibições.
As falhas paternas também parecem estar muito presentes nos sentimentos de
Liz, o que gera conflitos emocionais significativos para a adolescente. Ao escrever
sobre as falhas maternas, Winnicott (1963/2008) não culpa a mãe, mas a coloca como
uma representante direta da relação bebê e mundo externo, sendo o papel do pai
muito importante nessa fase da vida da criança. Liz foi negada por ser pai desde o
nascimento, que a chama de “bastarda”. Retomando Farias (2003, citado por Moraes,
2005), Liz se encontrava em uma fase da vida em que as incertezas são
intensificadas, tendo na tentativa de suicídio, uma esperança de preservar sua

960
realidade interna de todas as angústias que estão mais intensas pelas crises da
adolescência.

Conclusão
No presente artigo pode-se perceber o quanto as relações familiares, e as
vivências escolares acentuaram os comportamentos e sentimentos depressivos e
ansiosos da adolescente que estava entrando no período conturbado que é a
adolescência, o que pode, de alguma maneira, atrapalhar seu desenvolvimento e
passagem saudável por esta fase. Liz, ao relatar sobre como se sentia referente a
todas as questões apresentadas na discussão e no caso clínico, foi observado que as
duas tentativas de suicídio foram de forma impulsiva e afrontosa para com sua mãe,
diferentemente do comportamento autolesivo que foi apresentado, já que esse havia
sido realizado por motivos de bullying que sofreu na escola. Isto posto, pode-se
constatar que a adolescência é vista como um período delicado que demanda maior
atenção em sua integralidade.

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963
90- SOLIDÃO SOCIAL E EMOCIONAL EM UNIVERSITÁRIOS

Alyne Manfron Serpa67


Ana Beatriz D’Anunzio Foschini Guardia1
André Lucas Viana de Araujo1
Bruno Manzaro1
Joyce Carneiro Bispo1
Leticia Pinheiro Cadete1
Daiane Fuga da Silva68
Cláudia Borim da Silva69

Resumo: A solidão é experienciada por todas as faixas etárias da vida. O fim da


adolescência, fase de maior ingresso nas universidades, apresenta maior risco para
vivenciar a solidão, devido a reavaliação das relações. O objetivo foi analisar o nível
de solidão e pertença em universitários, especificamente: comparar os níveis de
solidão e pertença dos alunos em relação ao sexo e de estudantes que moram (ou
não) sozinhos; analisar o nível de solidão em relação à satisfação nos
relacionamentos; e analisar o nível de pertença em relação à satisfação nos
relacionamentos. Participaram da pesquisa 234 alunos de uma universidade privada
da cidade de São Paulo, que responderam à um questionário sociodemográfico com
perguntas relativas à satisfação nos relacionamentos interpessoais, Escala de Solidão
e Escala de Necessidade de Pertença (versões reduzidas). A média de idade dos
participantes foi de 22 anos e houve correlação positiva entre solidão e necessidade
de pertença. Mulheres sentem mais solidão do que homens. Há correlação negativa
entre o nível de solidão e as categorias de satisfação nos relacionamentos. Somente
os grupos Amizade e Conjugal apresentaram diferença significativa em relação à
satisfação nos relacionamentos quando analisada a necessidade de pertença.

Palavras-chave: Solidão. Necessidade de Pertença. Relacionamentos Interpessoais.


Universitários.

67
Graduandos do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
68
Psicóloga e Mestre em Ciências do Envelhecimento pela Universidade São Judas Tadeu.
69
Doutora em Educação Matemática e Docente do curso de graduação em Psicologia da Universidade São Judas.

964
Introdução
A solidão é um fenômeno intrínseco da humanidade. Sua longeva presença
histórica fez com que fosse percebida e conceituada de diversas maneiras, como por
exemplo, do isolamento voluntário à exclusão (Tanis, 2003). Dentre estes conceitos,
temos a solidão quantitativa, que se desenvolve a partir da quantidade inferior de
relações interpessoais existentes se comparadas às desejadas, e a solidão qualitativa
que se baseia na qualidade ou intimidade desejada não alcançada (De Jong-Gierveld,
Van-Tilburg & Dykstra, 2016). Neste contexto, as mesmas autoras desenvolveram a
escala de solidão De Jong-Gierveld, sendo referenciada em diversos trabalhos e
usada em versão reduzida neste estudo.
A solidão é definida como um conceito bifatorial, chamado de modelo de
discrepância cognitiva, sendo caracterizada pela presença de sentimento de vazio e
rejeição, ou seja, é uma medida subjetiva. Diferentemente do isolamento social, que
é caracterizado pela falta de presença objetiva e real do contato interpessoal
(Cacioppo, Fowler & Christakis, 2009; Hawkley & Cacioppo, 2010; Russell, Cutrona,
McRae & Gomez, 2012). A solidão emocional e social, definidas primeiramente por
Weiss (1973), são os constructos utilizados na Escala de Solidão de De Jong-
Gierveld: a solidão emocional diz respeito à ausência de um vínculo íntimo ou
profundo com outra pessoa e a solidão social é apontada como a falta de um grupo
maior de contatos ou rede social. Esses dois constructos foram utilizados para
referenciar o presente estudo.
De acordo com De Jong-Gierveld, Van-Tilburg & Dykstra (2016), a solidão é
diretamente afetada pelos valores e normas culturais, devido aos ideais construídos
em relação ao tamanho das redes sociais e obrigações familiares. Além disso, existem
variáveis políticas, econômicas e sociais associadas à solidão, sendo observáveis por
meio da posição socioeconômica do indivíduo e a disponibilidade de políticas públicas
para o seu bem-estar social, como por exemplo, a diminuição dos recursos financeiros
disponíveis, que pode gerar dificuldades para o estabelecimento de relações mais
estáveis.
Coelho, Maio, Gouveia, Wolf e Monteiro (2017), fizeram uma pesquisa com 225
pessoas, com idade média de 23 anos, a maioria do sexo feminino, e observaram que
a pontuação no Questionário de Necessidade de Emoções, o mesmo utilizado neste

965
estudo, se correlacionou com a solidão emocional e total. Assim, indivíduos com
maiores escores de evitação evocam, com maior frequência, percepções de ausência
de vínculos significativos e sentimento de vazio. Há correlação entre necessidade de
emoções e a necessidade de pertença, de modo que pessoas com altos escores de
aproximação podem satisfazer sua necessidade de pertencer com mais frequência do
que pessoas com altos escores de evitação.
Segundo Bastos e Costa (2005), na adolescência, as formas vinculares se
alteram. As figuras parentais deixam de ser protagonistas e de atuar como principal
fonte de segurança. Nessa fase, os jovens buscam em seus pares, formas de
identificação que lhes proporcionem certo nível de pertencimento. A presença de
redes de suporte social promove sentimentos de valorização e autoestima, assim,
dificultando a presença de isolamento (Fontinha, 2010).
Özdemir e Tuncay (2008) realizaram um estudo com 721 alunos de três
universidades de Ankara, e encontraram evidências de que os alunos do primeiro ano
universitário têm maior experiência de sentimentos de solidão se comparados com os
outros anos. Adolescentes que sofrem de solidão crônica são mais propensos a relatar
psicopatologia, bem como, depressão, suicídio e déficits de habilidades sociais
(Schinka et al., 2012). Majd Ara, Telepasand e Razaei (2017) pontuaram que a solidão
foi um forte preditor para depressão e funcionou como mediador entre as relações
interpessoais sociais negativas e a depressão. Cacioppo & Patrick (2010) alertam para
a relação entre solidão e o uso de drogas ilícitas, além de ideação suicida, causando
um declínio na saúde mental. Assim, diante do contexto apresentado, é relevante
abordar os aspectos de solidão social e emocional, principalmente em universitários
egressos no primeiro ano da graduação, considerando a vulnerabilidade que este
grupo se encontra diante de possíveis psicopatologias associadas.

Objetivo
A pesquisa buscou analisar o nível de solidão e pertença em universitários.
Especificamente: a) comparar os níveis de solidão e pertença dos alunos em relação
ao sexo e de estudantes que moram (ou não) sozinhos. b) analisar o nível de solidão
em relação à satisfação nos relacionamentos. c) analisar o nível de pertença em
relação à satisfação nos relacionamentos.

966
Método
Foi feito estudo de levantamento, que se caracteriza pela interrogação direta das
pessoas cujo comportamento se deseja conhecer (Gil, 2008). Trata-se de um estudo
descritivo-correlacional (Almeida & Freire, 2008), de abordagem quantitativa e
delineamento transversal. O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa (CEP) da Universidade São Judas (Parecer número 3.317.458 e CAAE:
12512519.00000.0089).
Participaram do estudo alunos matriculados em qualquer curso de graduação
em uma universidade privada de São Paulo, maiores de 18 anos, sendo estes os
critérios de inclusão. Os alunos foram abordados em espaços de convívio do campus
e após assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), foram
aplicados os instrumentos.
Foram utilizados o Questionário Sociodemográfico com questões em relação à
satisfação nas relações interpessoais nas categorias familiar, amizades, profissional
e conjugal. Também foi utilizado a Escala de Solidão De Jong Gierveld Versão
Reduzida, validada para a população brasileira por Coelho, Fonseca, Gouveia, Wolf e
Vilar (2018). O instrumento avalia a percepção subjetiva do sentimento de solidão e
possui seis afirmativas com cinco possibilidades de respostas que variam entre
discordo totalmente (1) e concordo totalmente (5). Há dois grupos de itens, um deles
avalia solidão social e outro que avalia solidão emocional, com pontuação máxima de
15 pontos para cada grupo, indicando o nível de solidão em cada aspecto. A
pontuação agregada avalia a solidão geral, que seria a relação entre a solidão
emocional e social, com no máximo 30 pontos, sendo esta pontuação indicativa de
alto nível de solidão, enquanto 0 pontos, pontuação mínima, indica baixo nível.
Por fim, adotou-se a Escala de Necessidade de Pertença Versão Reduzida,
validada para a população brasileira por Coelho, Gouveia, Fonseca, Araújo e Villar
(2018). O instrumento possui 10 itens que avaliam em qual medida os indivíduos
desejam ser aceitos por outros e pertencer a diferentes grupos. É uma escala likert
com cinco possibilidades de resposta, sendo (1) nem um pouco e (5) extremamente.
Quanto mais próximo de 50, maior a necessidade de pertença, quanto mais próximo
a 10, pontuação mínima, menor o nível de necessidade de pertença.
Os resultados foram tabulados em planilha eletrônica no Microsoft Excel (Pacote
Office 2016) e analisados no Software SPSS (Statistical Package for Social Science),

967
versão 21.0. Os dados estão apresentados com frequência e porcentagem, média e
desvio padrão. Para atingir os objetivos específicos, foram utilizadas a correlação de
Pearson, teste t de student, ANOVA e teste de Tukey. O nível de significância adotado
foi de 5%.

Resultados e Discussão
A amostra foi composta por 234 estudantes de uma universidade privada, com
média de idade de 22,4 anos (DP= 4,4), sendo 152 mulheres (64,96%), 222 (94,9%)
solteiros, 95 (40,6%) possuem renda mensal entre 3 e 6 salários mínimos, 112 (48,1%)
participantes estão matriculados em cursos da área de saúde e 218 (93,6%) não
possuem graduação anterior.
Como pode ser observado na Tabela 1, as médias de Solidão (17,0±4,4) e
Necessidade de Pertença (31,9±6,6) ficaram próximas ao ponto médio, assim, não
permitindo categorização de nível alto ou baixo das variáveis na população estudada.
No entanto, houve correlação positiva entre as variáveis (r= 0,187; p= 0,004),
indicando que pessoas com mais necessidade de pertencer, também experimentam,
com mais frequência, sentimentos de solidão. Esse resultado se assemelha ao de
Mellor et al. (2008) e Coelho et al. (2018), que encontrou uma correlação positiva
significativa entre as duas categorias.

Tabela 1
Média e Desvio Padrão da pontuação da solidão e necessidade de pertença dos
universitários.
Categorias Mínimo Máximo PME Média DP
(n=234)
Solidão 7 29 18 17,0 4,4
Necessidade de Pertença 15 48 30 31,9 6,6
Nota: PM = Ponto Médio; DP = Desvio Padrão.

É possível verificar na Tabela 2, a prevalência dos sentimentos de solidão em


mulheres, quando comparado com a experiência dos homens (p=0,044). Com relação
aos universitários que moram sozinhos ou não, não houve diferença significativa entre
solidão e pertença. A literatura indica que mulheres sentem mais solidão do que
homens. Uma meta-análise de 102 estudos, realizada por Piquart e Sörensen (2001),

968
mostrou que as mulheres relatam maiores níveis de solidão, assim corroborando o
dado encontrado no presente estudo.

Tabela 2
Média, desvio padrão e teste t de student da pontuação de solidão separado por sexo
e status de moradia dos universitários.
Solidão Pertença
N Média DP t p Média DP t p
Sexo
F 152 17,4 4,5 32,6 4,5
2,028 0,044* 1,963 0,051
M 81 16,2 4,1 30,8 4,1
Mora
sozinho
Sim 11 17,4 4,2 29,0 6,3
0,268 0,789 -1,514 0,131
Não 223 17,0 4,4 32,1 6,6
Nota: F= Feminino. M= Masculino. *p ≤ 0,05%.

A Tabela 3 apresenta os resultados das comparações entre os níveis de


satisfação nos relacionamentos interpessoais e a solidão, sendo possível identificar
diferença significativa em todas as categorias. Após aplicação do teste de Tukey, na
categoria “Familiar” os resultados indicam menor presença de solidão para aqueles
que se encontram muito satisfeitos com suas relações. A categoria “Amizade”
apresentou forte correlação, com diferenciação entre todos os níveis, assim, quanto
mais satisfeito com as amizades, menos frequente são as experiências de solidão.
Para as categorias “Conjugal” e “Profissional” não houve diferenciação entre os níveis
de satisfação em grupos qualitativamente opostos, de modo que a presença de
insatisfação promove mais solidão se comparado com pessoas satisfeitas.
Mellor et al. (2008) identificaram correlação negativa e significativa entre solidão
e satisfação nos relacionamentos pessoais, sendo esta uma categoria interpessoal
próxima a utilizada neste trabalho.

969
Tabela 3
Média, desvio padrão e ANOVA da pontuação de solidão em relação à satisfação nos
relacionamentos dos universitários.
Pouco Muito
Satisfação Insatisfeito Satisfeito F p
satisfeito satisfeito

19,3 ± 2,2 18,6 ± 4,2b 17,3 ± 4,2b 15,3 ±


<0,00
Familiar ab (n=4) (n=49) (n=113) 4,4a 6,234
1
(n=68)
20,3 ± 3,7a 17,5 ± 3,8b 14,4 ± <0,00
Amizade -- (n=34) (n=134) 4,4c (n=66) 26,878
1
19,2 ± 5,2a 17,3 ± 4,5a 16,7 ± 4,1b 16,2 ±
Conjugal (n=27) (n=52) (n=92) 4,1b (n=62) 3,180 0,025

Profission 18,5 ± 4,6a 17,7 ± 3,9a 16,9 ± 4,6b 14,8 ±


(n=27) (n=61) (n=116) 3,5b (n=30) 4,169 0,007
al
Nota: Médias seguidas de mesma letra não diferem entre si pelo teste de Tukey.

Na Tabela 4, pode-se verificar que as categorias “Amizade” e “Conjugal”


apresentaram diferença significativa em relação à satisfação nos relacionamentos dos
universitários quando analisada a necessidade de pertença. No estudo de Mellor et
al. (2008), foi pontuada correlação negativa entre a necessidade de pertencer e a
satisfação nos relacionamentos pessoais, assim como identificado em duas das
quatro categorias investigadas neste trabalho.

Tabela 4
Média, desvio padrão e ANOVA da pontuação de pertença em relação à satisfação
nos relacionamentos dos universitários.
Pouco Muito
Satisfação Insatisfeito Satisfeito F p
satisfeito satisfeito

34,0 ± 9,4 33,3 ± 6,9 31,9 ± 6,7 31,0 ± 6,2


Familiar (n=4) (n=49) (n=113) (n=68) 1,296 0,276

34,6 ± 6,3a 31,4 ± 6,3b 31,8 ±


Amizade -- (n=34) (n=134) 7,2b (n=66) 3,258 0,040

34,2 ± 6,0a 32,7 ± 7,1b 30,6 ± 6,6b 32,3 ±


Conjugal (n=27) (n=52) (n=92) 6,3b (n=62) 2,679 0,048

Profission 32,7 ± 6,5 32,7 ± 6,1 31,4 ± 7,2 31,8 ± 5,4


(n=27) (n=61) (n=116) (n=30) 0,667 0,573
al
Nota. Médias seguidas de mesma letra não diferem entre si pelo teste de Tukey.

970
Conclusões
A partir dos resultados, é possível identificar correlação positiva significativa
entre sentimentos de solidão e a necessidade de pertença. Além disso, mulheres
experimentam mais solidão do que homens. Pode-se observar a ausência de
diferenciação entre as médias dos grupos de satisfação nos relacionamentos, nas
categorias “Conjugal” e “Profissional” com o nível de solidão, e os grupos “Amizade”
e “Conjugal” com nível de pertença.
Em relação à satisfação nos relacionamentos, a categoria “Amizade” apresentou
forte correlação negativa com a solidão e diferença significativa entre todas as
categorias dos relacionamentos, podendo considerar a influência da faixa de
desenvolvimento em que os participantes se encontram, sendo a maioria pertencente
ao grupo de jovens adultos.
Não foi possível aprofundar o estudo com a avaliação da necessidade de
emoções e necessidade de pertença dos estudantes, assim, sugerindo que novos
estudos contemplem essas análises para que se possa compreender o estudante de
forma ampla.

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Agradecimento
Agradecemos ao Gabriel Lins de Holanda Coelho, autor que participou do estudo
de validação da Escala de Solidão Versão Reduzida e Escala de Necessidade de
Pertença Versão Reduzida, pela disponibilidade e autorização de uso do instrumento.

974
91- ESPERANÇA DA POPULAÇÃO NEGRA EM RELAÇÃO ÀS QUESTÕES
ÉTNICO-RACIAIS

Danielle Teixeira da Silva70


Kézia Silva Castro1
Milena Matos Barbeiro1
Suzana Magalhães Fernandes Gomes1
Talita de Campos Faria1
Daiane Fuga da Silva71

Eliana Ribeiro da Silva3

Cláudia Borim da Silva4

Resumo: O objetivo geral deste estudo foi avaliar o nível de esperança cognitiva e
disposicional da população que se autodeclara preta ou parda, especificamente:
comparar o nível de esperança disposicional, autocentrada e altruísta das pessoas
que já sofreram e as que não sofreram violência racista; e comparar a opinião dos
participantes sobre o desejo e expectativa em relação à diferentes questões étnico-
raciais. A pesquisa foi realizada com uma amostra de 102 pessoas autodeclaradas
pretas ou pardas que responderam aos instrumentos: questionário sociodemográfico,
Escala de Esperança Cognitiva e a Escala de Esperança Disposicional. Os resultados
mostram que esperança disposicional e autocentrada obteve média alta, ou seja, os
participantes apresentam esperança em relação a si. Quanto à esperança altruísta, a
média esteve abaixo do ponto médio da escala, o que indica que a população preta
e/ou parda não possui esperança em relação ao meio em que estão inseridos. Os
participantes que relataram que já sofreram algum tipo de violência racista,
apresentaram níveis mais baixos de esperança. Quando analisado a visão dos
participantes em relação às questões étnico-raciais, houve disparidade entre aquilo

70 Graduandos do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.


71 Psicóloga e Mestre em Ciências do Envelhecimento pela Universidade São Judas Tadeu.
3 Doutora em Educação-Currículo PUC/SP e Docente do curso de graduação em Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
4 Doutora em Educação Matemática e Docente do curso de graduação em Psicologia da Universidade São Judas Tadeu

975
que desejam muito e o que de fato acham que irá acontecer, comprometendo ainda
mais a esperança da população negra.

Palavras-chave: esperança, racismo, políticas públicas, negros.

Introdução
O conceito de raça surgiu para classificar as espécies de vegetais e animais. Em
humanos, foi utilizado para pontuar as características em comum em descendentes
de um mesmo ancestral, propondo uma ideologia de hierarquização racial pautada
em relações de poder e dominação (Munanga, 2004). Essas características dão forma
às classificações étnicas e no Brasil, foram usadas as desenvolvidas pelo IBGE
(2011), que se baseiam na cor de pele dos indivíduos, sendo elas preto, branco, pardo,
amarelo e indígena. Esses conceitos, de branco e preto, por exemplo, variam de
acordo com a construção histórica de cada local e são percebidos como “raça social”
que produzem os racismos populares (Munanga, 2004).
O racismo é uma forma de legitimar práticas que estabelecem desvantagens ou
privilégios para indivíduos de acordo com o grupo racial ao qual pertencem. Essas
desvantagens se dão pela concepção estrutural do racismo, que caracteriza essa
crença de hierarquização racial como parte da estrutura social em que os indivíduos
estão inseridos, considerando que as ações individuais e as desigualdades
institucionais são consequências da naturalização das violências estruturais (Almeida,
2018). O preconceito racial é a chave que transpõe a ideologia racista para o senso
comum e possibilita a reprodução do racismo, é um julgamento negativo antecipado
direcionado a um grupo étnico. Esse julgamento prévio é inflexível em relação às
evidências que o conteste, pois trata-se de uma crença já formada em relação àquele
sujeito. Quanto à discriminação racial, esta é a manifestação do preconceito racial.
Enquanto o racismo e o preconceito se encontram no âmbito das ideias, a
discriminação está no campo da ação, ou seja, a prática do preconceito (Gomes,
2005). Apesar dessa distinção, o senso comum utiliza o termo racismo em substituição
ao termo discriminação racial ou preconceito racial de forma genérica.
Dentro de todos os traços que evidenciam o racismo no Brasil, o mais forte e
evidente são as taxas de homicídios da população negra. O Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (2018) elaborou o Atlas da Violência com um levantamento em

976
grupos populacionais que são considerados pretos e pardos e não negros (brancos e
amarelos), e revelou-se um abismo social. “Em 2016, por exemplo, a taxa de
homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra
40,2%)” (p.40). Neste mesmo estudo, no Atlas da Violência, há o relato de que em um
período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu
23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%.
A conscientização política da população negra cresce, promove movimentos
sociais e pressiona o Estado a desenvolver e criar políticas públicas para protegê-los.
Um exemplo da constituição de grupos sociais em prol desse público é o Movimento
Negro Unificado (MNU, 2017), que foi fundado em 1978, sendo considerado uma
entidade pioneira na luta do Povo Negro no Brasil, possuindo um referencial histórico
através de suas ações contra a discriminação racial no país. Segundo Lima (2010),
com a ajuda de movimentos voltados para a população negra, o Estado viu como
necessário mudanças e criação de novas leis. Assim, em 1988, a nova Constituição
introduziu a criminalização do racismo que culminou a edição da Lei 7716 (1989) que
definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Segundo Gomes (2005) a permanência do preconceito racial em no Brasil indica
a existência de um sistema social racista que possui mecanismos para operar as
desigualdades raciais dentro da sociedade. Por isso, é necessário discutir as formas
de superação do racismo e verificar a viabilidade de esperança em relação à mudança
deste cenário.
A esperança é um recurso cognitivo-afetivo ativado em tempos de ameaça.
Snyder et al. (1991) conceituou esperança como “um conjunto de funções cognitivas
compostas de um senso reciprocamente derivado do êxito em: (a) agenciamento
(determinação direcionada a um objetivo), e (b) rotas (planejamento de meios para
alcançar objetivos)” (p.570). Essas etapas ocorrem de forma simultânea, sendo o
agenciamento a motivação para alcançar a meta; e as rotas, os caminhos que serão
traçados para alcançar esse objetivo, configurando o conceito de Esperança
Disposicional.
Pacico e Bastianello (2014) explicam que a Esperança Cognitiva foi definida por
Staats, em 1989, como a interação entre desejos e expectativas, podendo ser
compreendida através dos conceitos de esperança altruísta (esperança em relação
aos outros) e esperança autocentrada (em relação a si mesmo). Tendo origem na
infância, a esperança segue sendo reforçada ao longo do desenvolvimento do

977
indivíduo e pode ser notada quando as crianças aprendem as relações temporais
entre suas ações e os resultados delas, tornando-as conscientes de que são sujeitos
responsáveis por suas atitudes (Creamer et al., 2009).
Essa consciência a respeito dos próprios atos reflete no que Sartore e Grossi
(2007) apresentam como conceito de esperança, que faz com que o indivíduo monte
uma estratégia de enfrentamento diante de uma situação de conflito, produzindo
expectativas otimistas em relação às consequências que suas atitudes trarão. Silva,
Moledo, Flores, Menezes e Silva (2018) tratam esse poder de mudança promovido
pela esperança não como algo que se estende além das expectativas individuais em
relação ao futuro, mas como algo que ultrapassa os limites pessoais dos indivíduos,
sendo um importante agente da movimentação populacional.
Diante do contexto apresentado, é relevante abordar a esperança da população
negra em relação aos aspectos estruturais das questões étnico-raciais, considerando
a vulnerabilidade a que este grupo é exposto, especificamente, em relação à episódios
de racismo e discriminação.

Objetivo
Avaliar o nível de esperança cognitiva e disposicional da população que se
autodeclara preta ou parda. Especificamente: a) Comparar o nível de esperança
disposicional, autocentrada e altruísta das pessoas que já sofreram e as que não
sofreram violência racista. b) Comparar a opinião dos participantes sobre o desejo e
a expectativa em relação à diferentes questões étnico-raciais.

Método
O estudo consiste em uma pesquisa de levantamento, que de acordo com Gil
(2008), é aquela em que o pesquisador irá lidar diretamente com uma amostra do
público que ele pretende estudar, propiciando assim, um contato direto com a
realidade dessas pessoas e podendo submeter os dados coletados a técnicas
estatísticas. Trata-se de um estudo descritivo-correlacional (Almeida & Freire, 2008),
de abordagem quantitativa e delineamento transversal.
O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da Universidade São Judas Tadeu (Parecer número 3.373.143 e CAAE:

978
14693519.0.0000.0089). A amostra é composta por 102 participantes autodeclarados
pretos ou pardos que foram contatados e convidados a participar da pesquisa via
grupo de whatsapp e coletivos ativistas que se identificam com o tema. Neste convite,
foram informados os objetivos da pesquisa e os aspectos éticos que garantiram o
sigilo de informações pessoais. Para os convidados que aceitaram participar da
pesquisa, foram agendados dia, horário e local de preferência do voluntariado para a
realização da coleta de dados. A aplicação foi feita de forma individual, com tempo
estimado de 20 minutos e todos os participantes assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram utilizados três instrumentos, sendo eles: 1) questionário sociodemográfico
elaborado pelas autoras, com questões relacionadas aos aspectos étnico-raciais
elaborados; 2) Escala de Esperança Cognitiva, versão adaptada e validada em língua
portuguesa, por Pacico, Zanon, Bastianello e Hutz (2011) do The Hope Index criado
por Staats (1989), que define esperança como a interação entre desejos e
expectativas. O instrumento é uma escala likert com pontuação entre 0 e 5, sendo que
quanto maior a pontuação, mais esperançoso é o participante. A escala é composta
por 21 itens, distribuídos em dois fatores: esperança autocentrada e esperança
altruísta; 3) Escala de Esperança Disposicional, validada para a população brasileira
por Pacico, Bastianello, Zanon e Hutz (2013). Ela é composta de 12 itens igualmente
e tem formato de autorrelato. As respostas devem ser marcadas numa escala Likert
de cinco pontos (sendo 1 = totalmente falsa e 5 = totalmente verdadeira). Quanto
maior a pontuação, mais esperançoso é o participante.
Os resultados foram tabulados em planilha eletrônica no Microsoft Excel (Pacote
Office 2016) e analisados no Software SPSS (Statistical Package for Social Science),
versão 21.0. Os dados estão apresentados com frequência e porcentagem, média e
desvio padrão. Para atingir os objetivos específicos, foram utilizados teste t de student
e teste não paramétrico de Wilcoxon. O nível de significância adotado foi de 5%.

Resultados e Discussão
A amostra foi composta por 102 participantes, com idade média de 25,4 anos
(DP=7,7), sendo 53 mulheres (53,5%), 47 (46,1%) pessoas com ensino médio
incompleto, 48 (47,1%) relataram que a cor do pai é preta e da mãe 44 (43,1%) é
preta. Disseram que o preconceito racial existe (n=46; 46,9%), porém é ignorado e,

979
67 (65,7%) já sofreram preconceito e 78 (76,5%) presenciaram situações de
preconceito.
Pode-se observar na Tabela 1, que a pontuação média da escala de “Esperança
Disposicional” foi 29,8, acima do ponto médio (24), indicando que os participantes
tendem a ser esperançosos. Com relação à “Esperança Cognitiva”, na subescala
“Esperança Autocentrada”, a média da amostra (220,1) foi superior ao ponto médio
de 187,5, indicando que os participantes são esperançosos em relação a si. O mesmo
ocorreu no trabalho de Silva, Moledo, Flores, Menezes e Silva (2018), em que os
autores avaliaram a esperança de universitários em relação às eleições e
identificaram valores de esperança disposicional e autocentrada acima do ponto
médio. No presente estudo, a subescala “Esperança Altruísta”, obteve média de (63,5)
e este valor está abaixo do ponto médio (75). Staats e Partlo (1993) relatam que
pessoas com pouca ou nenhuma esperança tendem a ter baixas expectativas, tanto
para si, mas também com relação aos outros e ao meio. Assim, é possível levantar a
hipótese de que os participantes estão desesperançosos quanto a possibilidade de
mudança futura, como por exemplo no item 10 presente nesta subescala: “não ser
vítima de crime”. Sendo interpretado como algo distante de ser alcançado.

Tabela 1
Média e Desvio Padrão da Esperança Disposicional, Esperança Autocentrada e
Esperança Altruísta dos participantes.

Categorias Mínimo Máximo PME Média DP


(n=102)

Esperança Disposicional 16 40 24 29,8 5,2

Esperança Autocentrada 116 300 187,5 220,1 45,4

Esperança Altruísta 12 145 75 63,5 27,5


Nota: PME = Ponto Médio da Escala. DP = Desvio Padrão.

Como pode ser observado na Tabela 2, houve diferença estatística na


“Esperança Disposicional” e na “Esperança Altruísta”, o que revela que os
participantes que relataram que já sofreram algum tipo de violência racista,
apresentaram níveis mais baixos de esperança. Segundo Silva (2005), a maioria da
população negra vive em incessante sofrimento mental em decorrência da violência
racista. Essa condição constante pode causar transtornos, tais como taquicardia,

980
ansiedade, depressão, dificuldade de se abrir, entre outros. A exposição cotidiana a
situações humilhantes e constrangedoras podem desencadear um número de
processos desorganizadores dos componentes psíquico e emocional, assim, podendo
comprometer a esperança de que este cenário possa ser modificado.

Tabela 2
Média, Desvio Padrão e teste t da pontuação de Esperança Disposicional, Esperança
Autocentrada e Esperança Altruísta dos participantes em relação a ter sofrido
violência racista.
Categorias Sofreu N M DP t P

Sim 67 28,8 5,5


Esperança Disposicional -2,873 0,005
Não 35 31,6 3,9

Sim 67 218, 1 45,6


Esperança Autocentrada -0,605 0,547
Não 35 223,8 45,2

Sim 67 59,4 25,7


Esperança Altruísta -2,145 0,034
Não 35 71,4 29,3

Nota: M = Média; DP = Desvio Padrão.

Ao analisar a comparação das opiniões dos participantes em relação a questões


étnico-raciais (Figura 1), verifica-se diferença significativa na pontuação do quanto
deseja versus o quanto acha que vai acontecer em todos os itens, com destaque para:
“Privilégios brancos”, que diz respeito à possibilidade das pessoas brancas
reconhecerem seus privilégios sociais; “Oportunidades iguais”, que engloba a
percepção de ter oportunidades iguais entre pretos e brancos no mercado de trabalho;
e “Reportagens”, que representa a possibilidade da justiça atuar contra os atos de
racismo divulgados em reportagens. Esses resultados relacionam-se com o contexto
histórico e estrutural que estamos inseridos. Segundo Madeira e Gomes (2018) os
indicadores educacionais, econômicos, políticos e sociais, permitem um diagnóstico
da estruturação das desigualdades sociais e raciais brasileiras e, apesar das
conquistas dos movimentos negros, as disparidades ainda são grandes, fazendo-se
necessário analisá-las para que se possa intervir adequadamente visando a sua
superação.

981
Nota: Valores de Z variando entre -4,138 até -8,448
Figura 1. Comparação da opinião dos participantes sobre o desejo e expectativa em
relação à diferentes questões étnico-raciais.

Conclusões
A partir dos dados obtidos neste estudo, verifica-se que a maioria dos
participantes ficou acima da média na avaliação da “Esperança Disposicional” e
“Esperança Autocentrada”, enquanto na “Esperança Altruísta”, o resultado
apresentou-se pouco abaixo da média. Assim, revelando uma tendência de a
população negra (pretos ou pardos) serem mais esperançosos em relação a si e
desesperançosos em relação aos outros e ao meio em que estão inseridos.
Com relação aos participantes que já sofreram algum tipo de violência racista,
notou-se diferença estatística nas categorias “Esperança Disposicional” e “Esperança
Altruísta”, o que revela que os participantes apresentaram baixa esperança. O
preconceito racial no Brasil vem de uma longa trajetória histórica, produzindo, assim,
um forte sistema social racista, e ao mesmo tempo sutil, perpetuando diversos
mecanismos para exercer as desigualdades raciais dentro da nossa sociedade. Por
isso, se faz necessário reconhecer a existência do racismo, bem como discutir tanto
as formas de superação dessa violência quanto a viabilidade para despertar a
esperança em relação a mudanças deste cenário.
No que diz respeito à opinião dos participantes em relação a questões étnico-
raciais, houve diferença significativa na pontuação do quanto deseja versus o quanto

982
acha que vai acontecer, principalmente nos itens: “Privilégios brancos”,
“Oportunidades iguais” e, “Reportagens”. Revelando que, muitos desejam mudanças
nesses aspectos, porém, poucos creem que isto seja uma possibilidade real. Apesar
do avanço de pesquisas com a população negra, o racismo ainda prevalece em
diversos contextos, por isso sua existência deve ser reconhecida e discutida a fim de
que se inicie a tão necessária e significativa mudança na nossa sociedade, no que
toca às igualmente tão desejadas equidades de oportunidades e inserção social.

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985
92- A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA PERCEPÇÃO DE
EDUCADORES

Mônica Cavalcanti Trindade¹,


Bianca Arruda Manchester de Queiroga²,
Luciane Soares de Lima³

Resumo: Objetivo: avaliar a percepção de educadores sobre seu papel diante da


violência doméstica contra a criança. Método: pesquisa qualitativa na qual foram
realizadas entrevistas semiestruturadas com profissionais que atuam junto à
educação infantil, sendo os relatos submetidos à análise de conteúdo na modalidade
temática. Resultados: emergiram os temas: comportamento infantil: espelho do
sofrimento; o poder de agressão da violência verbal; enfrentamento da violência:
primeiro uma questão familiar e a escola em defesa da criança: limites e
possibilidades. Conclusões: as falas demonstraram a percepção do outro como ser
biopsicossocial que expõe o sofrimento vivenciado em alterações comportamentais,
destacando a preocupação com a violência verbal que, apesar da invisibilidade,
provoca cicatrizes na vida da criança. Os educadores recorrem à notificação somente
quando não solucionam o conflito com a família, contribuindo para subnotificação. A
ausência de referência e contra-referência na abordagem da vitimização infantil,
suscita a necessidade de intersetorialidade no enfrentamento ao agravo.

Palavras-chave: Violência Doméstica; Maus-Tratos Infantis; Criança; Saúde Escolar.

¹Universidade Federal de Campina Grande. Campina Grande, Paraíba, Brasil.


²Universidade Federal de Pernambuco. Recife, Pernambuco, Brasil.
³Universidade Federal de Pernambuco. Recife, Pernambuco, Brasil.

Introdução
A violência manifesta-se sob formas variadas, em diferentes espaços, sem
distinção de classes sociais ocasionando prejuízos na saúde e qualidade de vida dos
indivíduos, além de representar violação dos direitos humanos. Reconhecido como

986
um problema de saúde pública tem origens macroestruturais, desenvolve-se e se
dissemina no cotidiano das relações interpessoais exibindo manifestações que
interagem, retroalimentam-se e se fortalecem (1).
Na infância, a violência doméstica que se encena no interior dos lares, emerge
como a forma mais comum praticada contra a criança, perpetrada por indivíduo em
posição de superioridade, de caráter abusivo, que pode provocar dano físico ou
psicológico à criança ou adolescente (1). O agressor pode ser alguém com laços
parentais com a vítima ou de convívio íntimo no espaço doméstico, ressaltando que
os pais biológicos, usando a autoridade que exercem sobre os filhos e encobertos
pela inviolabilidade da privacidade familiar, configuram como os principais autores da
agressão (2).
A família instituída socialmente, sempre representou o ninho de proteção,
amparo e sustento, compreendido como o espaço ideal para o pleno desenvolvimento
físico e emocional de crianças e adolescentes, assim sendo, é antagônico observar
que o lar e os atores que ali convivem, com a responsabilidade cultural e legal de
proteção, são os que praticam ações de cunho desumano contra sujeitos em
desigualdade de força e reação, pois é esperado pela sociedade que esse cenário
represente o “porto seguro” da criança(3).
Para identificação e manejo adequado, alguns sinais e sintomas observados
na vítima permitem categorizar o agravo em abuso físico, sexual, psicológico ou
negligência, que pode apresentar-se isolado ou simultaneamente em uma mesma
criança. Independentemente do tipo de agressão infligida, tal violência pode acarretar
prejuízos ao desenvolvimento biopsicossocial da criança com reflexos na vida adulta,
principalmente no que concerne à reprodutibilidade do comportamento violento em
gerações subsequentes (2).
Com a finalidade de prevenir danos dessa natureza, promover a saúde e
garantir cidadania, a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente em
1990, representou avanço no que diz respeito aos direitos de crianças e adolescentes,
o qual, em seu Art.13 discorre sobre a obrigatoriedade de notificar a suspeição ou
confirmação de casos de maus-tratos infantis ao Conselho Tutelar, órgão que tem a
missão de zelar pelo cumprimento da legislação que ampara a população alvo (4).
Corroborando a preocupação com o problema, em 2006, o Ministério da Saúde
implantou o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), com atuação na
vigilância contínua por intermédio da notificação compulsória das violências

987
doméstica, sexual e outras interpessoais ou autoprovocadas. Este, a partir de 2009,
funciona integrado ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) (5).
Conquanto, publicações nacionais referenciam que apesar da obrigatoriedade
de notificação e da existência de setores envolvidos com o problema, observa-se o
escasso conhecimento da magnitude do problema no tocante a dados estatísticos que
traduzam a realidade. A subnotificação reflete o reduzido registro procedente da
sociedade e de profissionais que lidam com crianças e adolescentes, gerando, dessa
forma, dados inconsistentes e fragmentados que dificultam a elaboração de
estratégias no combate ao agravo (5-6).
Nessa perspectiva, além de registros adequados, considera-se que ações de
enfrentamento a agravo com a magnitude da violência, necessitam de um trabalho
multidisciplinar que contemple a intersetorialidade compartilhada pelos diversos
setores e profissionais responsáveis pela assistência à criança. A escola, no campo
intersetorial, destaca-se por representar o primeiro espaço social do sujeito depois do
lar, o qual mantém convívio cotidiano com as crianças e suas famílias, portanto,
ambiente privilegiado para promoção da saúde e proteção integral de educandos,
reconhecendo casos de maus-tratos infantis e adotando medidas pertinentes (7).
A integração da escola às Redes de Proteção Social possibilita a atuação de
educadores com o envolvimento da comunidade em torno do problema, configurando
importantes agentes sociais na identificação da violação dos direitos de crianças e
adolescentes vitimizados, além de representar elo fundamental entre a sociedade e a
família. Contudo, para desempenhar seu papel, esse profissional, além de atento,
necessita estar capacitado para reconhecer peculiaridades das formas de
apresentação da violência doméstica e situações que configuram risco em seus
alunos (7-8).
Não obstante, a literatura tem descrito uma insuficiente participação do setor
educacional no manejo do problema, verificado em serviços de notificação, que
demonstram escassez de informações oficiais procedentes de escolas referentes a
atos violentos contra crianças, refletindo o ineficiente posicionamento dos
profissionais da educação, contribuindo para a subnotificação e suscitando
questionamentos sobre os motivos que poderiam refletir no posicionamento do
educador (9).
Compreendendo a escola como de importância inquestionável no combate à
violência doméstica é necessário entender o que justificaria a participação ineficaz

988
das instituições frente ao problema. Ante ao exposto, o objetivo do estudo foi avaliar
a percepção de educadores sobre seu papel diante da violência doméstica contra a
criança, abordando conhecimentos e atitudes em casos vivenciados no contexto de
trabalho.

Método
Trata-se de pesquisa descritiva de natureza qualitativa que transcorreu no
período de março a setembro de 2010, em escola pública municipal de Campina
Grande, cidade situada no agreste do estado da Paraíba. Participaram profissionais
do campo de pesquisa que de alguma forma estão inseridos no contexto da Educação
Infantil que vai além do espaço da sala de aula, compreendendo que a
responsabilidade e compromisso com os discentes não está limitado ao professor,
mas estende-se a todos que no âmbito da escola participam do convívio e formação
da criança.
Selecionou-se essa etapa do ensino básico, pois, representa o momento em
que o dever de cuidar e educar a criança se estende à escola, além de receberem
usuários em idade de franca vulnerabilidade a sofrerem agressões, oportunizando o
reconhecimento e adoção de medidas adequadas.
Delineou-se a amostra utilizando-se o método de inclusão progressiva, sem
delimitação prévia do número de participantes, sendo interrompida por critério de
saturação teórica, observado quando as informações relatadas pelos sujeitos
expressaram regularidade de apresentação (10).
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Estadual da Paraíba / CEP-UEPB, CAAE nº0596. 0133.000-09, em acordo com a
Resolução 196/96 sobre pesquisas em seres humanos do Conselho Nacional de
Saúde / Ministério da Saúde (11), e, assim como recomenda a referida resolução, os
educadores que se propuseram a participar do estudo assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.
Com a finalidade de coletar dados, utilizou-se a técnica de entrevistas
semiestruturadas, na qual o entrevistado pode verbalizar livremente sobre a temática
a partir de um roteiro com questões norteadoras relacionadas ao objeto de estudo.
Para complementar as entrevistas com informações que permitiram caracterizar os
participantes aplicou-se um instrumento com questões fechadas abordando:

989
naturalidade, sexo, tempo de residência em Campina Grande, estado civil, número de
filhos, grau de escolaridade e função que desempenha na escola.
Realizaram-se 13 entrevistas as quais foram gravadas em aparelho de áudio e
posteriormente transcritas na íntegra, sendo cada indivíduo identificado pela letra E
correspondente a palavra Educador e o número em algarismo arábico subscrito
correspondente a sequência de coleta (E1, E2...).
Depois de transcritas, as informações foram analisadas aplicando o método
de análise de conteúdo utilizando a modalidade temática, que consiste em desvendar
os núcleos de sentido representativos da comunicação, os quais dependendo da
presença ou frequência de aparição podem significar alguma coisa para o objeto
analítico pesquisado. O agrupamento dos resultados em unidades temáticas permite
a interpretação de motivações de opinião, de atitudes, de valores e crenças (12).
Após a realização de tratamento dos resultados emergiram os temas que
possibilitaram as discussões, fundamentadas na revisão da literatura que alicerçou o
estudo.

Resultados
Foram entrevistadas cinco professoras, uma orientadora educacional, uma
supervisora educacional, uma assistente social, uma secretária, dois auxiliares de
serviços gerais, uma diretora adjunta e uma gestora (diretora geral). Dentre os
entrevistados doze eram do sexo feminino e um do sexo masculino, todos com idade
superior a trinta anos, com naturalidade em cidades da região Nordeste e residentes
em Campina Grande há mais de vinte anos. O estado civil distribuiu-se em seis
casados, dois divorciados, dois separados e três solteiros e apenas os solteiros não
tinham filhos.
Identificaram-se quatro temas a partir dos relatos de educadores: 1)
Comportamento infantil: espelho do sofrimento 2) O poder de agressão da violência
verbal 3) Enfrentamento da violência: primeiro uma questão familiar 4) A escola em
defesa da criança: limites e possibilidades.
Tema 1: Comportamento infantil: espelho do sofrimento
No ambiente escolar, os educadores relataram que alguns estigmas
percebidos no comportamento do educando, podem refletir um sofrimento vivenciado
no âmbito familiar, demonstrando a visão humanística na prática destes profissionais,
reconhecendo que gestos e palavras podem significar pedido de ajuda quando estão

990
em perigo: A gente pode observar que a criança deva estar passando por alguma agressão
quando a gente observa que a criança ela é muito calada, ela fica muito só, procura se isolar
(E13). No momento que a criança tá ali no cantinho sem algum amiguinho por perto, calada
demais, se isolando (E11).
Em outro polo os educadores discorreram sobre sujeitos que quando vítimas
externalizam o seu sofrimento com agressividade nas interrelações com a
coletividade: A criança mudava de comportamento, ficava assim agressiva (E8). O
comportamento da criança porque muda muito, ela é uma criança calma, carinhosa, ela se
torna uma criança agressiva (E4).

Tema 2: O poder de agressão da violência verbal


Dentre os tipos de violência doméstica reconhecidos na literatura, estes
profissionais expressaram sentimento de revolta e inquietação com a criança exposta
à violência verbal, observado em tratamentos de depreciação, desrespeito e
humilhações: A violência verbal dói muito mais do que a física, eu tive poucos casos de
crianças relatarem em sala de aula algum tipo de violência, violências verbais, por exemplo: -
Hoje tia, minha mãe me chamou de cachorro da molesta, que eu sou um menino nojento, que
não valo nada, se eu não me cuidar quando eu crescer vou ser um ladrão. Pra mim isso é
uma violência muito mais grave do que uma palmada no bumbum (E5). Palavras de baixo
calão que os pais ou responsáveis, quem toma conta da criança dirigem a elas, a gente vê
isso na presença da gente na própria instituição, é:- nojento, essa peste. Então isso é uma
violência contra a criança, eles trazem essas marcas pra dentro da realidade da gente no
convívio com outros colegas (E6). A violência psicológica e emocional, talvez seja mais cruel
porque ela é silenciosa, nem sempre ela é vista, nem sempre ela está nas estatísticas. O que
vai para as estatísticas é mais o que está aos olhos (E10).
Outro fator considerado como violência psicológica foi a objetalização da
criança, onde não lhe é permitido exprimir suas aspirações e questionamentos, sendo
imposta a vontade do adulto a quem ela deve obediência: A outra coisa são os castigos,
a história da má interpretação dos limites, então se fazem os castigos psicológicos, você não
pode isso, ela fica tudo não, não, não, às vezes ela não cria dentro de si a possibilidade do
sim (E1). É você ir de encontro com o gosto dela, o prazer dela, às vezes a gente quer que as
crianças da gente fiquem sentadinha o tempo todo só estudando aquilo que a gente quer (E2).

Tema 3: Enfrentamento da violência: primeiro uma questão familiar

991
Quando indagado sobre qual seria a conduta inicial diante de casos de maus
tratos no cotidiano profissional, o educador considerou a notificação ao Conselho
Tutelar quando, a princípio, não consegue solucionar o problema com a família,
colocando a criança como depoente no intuito de averiguar o abuso, e posteriormente
conversando com os responsáveis: A atitude da gente, a princípio a gente observa,
conversa com a criança, depois chama a família, conversa com a família, quando o caso
continua a gente procura o Conselho Tutelar (E2). Primeiro eu converso com ela sobre o que
tá acontecendo de diferente, posteriormente eu converso com a família, a depender do rumo
das coisas aí assim a gente vai pra uma instância maior (E4).
Alguns educadores relataram procurar inicialmente a direção da escola para
comunicar situações referentes ao agravo em questão, entretanto a direção da
instituição também recorre à abordagem com a criança e a família como atitudes
iniciais: Procuro a direção da instituição, ela enquanto representante da instituição, a gente
passa pra ela e ela conversa com os pais (E6). O professor traz pra gente da direção e equipe
técnica, então a gente vai fazer essa conversação com a criança, vamos tentando chegar até
a criança no diálogo, pra ver se ela mesmo espontaneamente diz, então quando a gente
percebe isso, a gente chama a família, um caso mais delicado, mais profundo, que foge da
nossa instância, da nossa competência, a gente tem os outros instrumentos, a gente tem o
Conselho Tutelar que a gente pode encaminhar (E10).
Por outro lado, quando questionados diretamente sobre a conduta legal frente
a casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos no âmbito da escola, alguns
entrevistados afirmaram que o caminho seria a notificação ao Conselho Tutelar.
Observou-se nas falas discrepância entre a teoria e a prática frente ao agravo: Porque
a princípio a gente só sabe fazer isso, procurar o Conselho e ver o que é que ele pode fazer
e geralmente a gente deixa a parte legal pra o Conselho ver que a gente considera que seja
as pessoas mais entendidas do que a gente (E2). Em termos legais acionar o órgão
competente, que de imediato é o Conselho Tutelar (E7). Como eu disse, no caso ir para as
autoridades, no caso o Conselho Tutelar, denunciar para que haja uma investigação, pra ver
se verdadeiramente está acontecendo aquilo (E8).
Diante da posição de não notificar ao conselho tutelar inicialmente percebe-se
a insegurança e descrédito no referido serviço: O que eu acho que deveria ter e a gente
não tem, o Conselho Tutelar, eu não acho que ele funcione como deveria, porque nós tivemos
já casos em que a gente comunica ao Conselho Tutelar porque é a instância imediata pra
gente, é o contato e ele vem, no primeiro momento eles vêm, mas eu não vejo uma
continuidade desse trabalho (E6). O que dificulta muitas vezes é a ação do próprio Conselho

992
com a família que depende da pessoa que for tratar do caso, a gente já teve caso que teve
pessoas do Conselho que terminou assustando e aí a pessoa vem pra unidade revoltada,
então às vezes a forma como o Conselho chega é difícil, e depois, muitas vezes não resolve,
não consegue, não chega (E2).

Tema 4: A escola em defesa da criança: limites e possibilidades


Relacionado ao processo de enfrentamento da temática em foco, dos discursos
emergiram alguns pontos que dificultam as ações na escola. Ressalta-se a ausência
de referência e contra-referência entre os serviços responsáveis pela assistência à
criança observada na conduta setorializada da abordagem ao agravo: Não existe esse
feedback instituição-conselho tutelar, então o que deveria acontecer, porque a gente foi a
fonte, então a gente tinha obrigação de saber como a criança estava sendo acompanhada em
casa e eles como ela estava correspondendo na escola, isso deveria acontecer porque isso
influencia no comportamento, na aprendizagem e no desenvolvimento dessa criança (E6).
Por exemplo, um ACS (agente comunitário de saúde), um ACS ele adentra os lares, ele tem
outras percepções, então essas parcerias educação/saúde, e outros órgãos não poderiam
ficar de fora (E1). Uma parceria maior com a saúde, com os postos de saúde, então aqui é
uma coisa assim muito longe, a escola da saúde, e a gente percebe que isso prejudica um
pouquinho, então, o posto, ele conhece mais a família do que a gente aqui hoje, e ele sabe
dizer se aquela criança tem esse problema (E2).
Em outro momento, a falha no conhecimento sobre violência doméstica foi
percebida pelos participantes da pesquisa como limitação decorrente da lacuna na
formação pedagógica do educador: Um outro fator assim que eu considero assim como
um obstáculo é essa questão da informação mesmo, a formação inicial tanto do professor e
muito mais ainda dos pais é muito precária, então essa questão da formação continuada
dentro da escola é uma necessidade gritante, urgente mesmo, todo mundo já sabe mas
poucos concretizam (E3). O professor em si ele não é preparado pra isso, a própria formação
pedagógica dele não é para isso, nós não temos formação específica pra isso, a escola é
despreparada pra lidar com a situação de violência totalmente. Nós entramos na escola pra
lidar com todas as situações achando que vai só ensinar matemática ou português, a escola
de hoje é um desafio pra qualquer educador e ele não tem essa formação, então é importante
que haja essa formação continuada pra trazer novas informações (E10).
Nesse contexto, dentre as dificuldades para abordar a vitimização infantil foi
identificada a palavra “medo” verbalizada por E6 e E10 respectivamente: O que dificulta
é o medo que a gente tem, porque é uma área de risco onde trabalhamos, porque a gente
não sabe quem, porque tem os casos que a gente não tem como chegar, porque a gente

993
desconhece quem são os pais por trabalhar numa área de alta periculosidade, então esse é
um dos medos que a gente tem não saber com quem a gente tá lidando, o desconhecido,
porque a gente é conhecida, a gente não os conhece, mas eles conhecem a gente, isso é o
que dificulta (E6). Tem também, eu não sei se é o medo que a gente fale assim, mas não é
fácil lidar com as situações dependendo de onde a escola seja localizada, a escola está muito
exposta nas comunidades periféricas, é muito delicado entrar numa família, e a gente não
sabe exatamente onde tá entrando(E10).

Discussão
O predomínio de peculiaridades no comportamento infantil permeando a
percepção dos sujeitos pesquisados é contraproducente com estudos anteriores
realizados nos setores de saúde e educação onde as marcas físicas e a negligência
foram colocadas como principal fonte de indícios do agravo (8,13). No momento em que
o educador visualiza que a criança contextualiza de diversas formas na escola marcas
oriundas da convivência a que está exposta, possibilita que alterações
comportamentais como déficit de atenção, isolamento, agressividade ou baixo
rendimento escolar tenham maior visibilidade.
O isolamento observado em momentos de interrelação pessoal pode mascarar
problemas originados em conflitos familiares, decorrentes de sentimentos de culpa,
baixa autoestima e conceito negativo de si mesmo (13-14). Esse processo interfere
drasticamente em seus relacionamentos com o outro, pois ela visualiza em suas
ações o risco de não conquistar a afetividade e afastar as pessoas, reação confundida
como timidez, mas que esconde a dor da violência e da rejeição.
Por outro lado, a presença de agressividade é justificada em estudos como
sendo a reprodução do modelo de convivência familiar, no qual a violência é
apreendida como alternativa viável para resolução de conflitos interpessoais. Nessa
premissa, o comportamento agressivo, além de indicar provável exposição à violência
doméstica, reveste-se de preocupação por ser considerado preditor na gênese de
futuros agressores, perpetuando a cultura da violência em gerações subsequentes
(2,14).

Como não se materializa, a violência verbal ou psicológica é considerada entre


os tipos de maus-tratos infantis o que apresenta dificuldades para seu
reconhecimento, podendo desenvolver-se isolada ou camuflada na contextualização
de outras violências. Contribui negativamente na cognição e socialização de suas

994
vítimas, conservando-se invisível em atitudes que influenciam diretamente a formação
de uma identidade distorcida sobre si mesmo, e, permanece no universo da
subnotificação, seja pela inabilidade ou pela omissão em sua identificação (15).
Pode-se abstrair que o lugar de destaque da agressão verbal reflete o interesse
dos envolvidos na educação e formação de crianças, com o domínio que tem a palavra
e a afetividade na construção ou destruição da personalidade, repercutindo
diretamente no aprendizado e na aquisição de competências e habilidades ao longo
da vida.
Independentemente de sua modalidade ou gravidade, a notificação da violência
doméstica pelo educador representa cumprimento à observância legal nos termos do
Art.245 do Estatuto da Criança e do Adolescente que versa sobre a obrigatoriedade
do setor educacional em notificar ao Conselho Tutelar, órgão responsável por garantir
o cumprimento dos direitos outorgados no referido estatuto, casos suspeitos ou
confirmados de maus-tratos infantis detectados no ambiente de trabalho (4).
Para não ser considerado omisso, o educador necessita compreender que a
notificação não configura um ato de punição ao agressor, mas uma ação de cidadania,
iniciando um processo que resguarda os direitos e preserva o crescimento e
desenvolvimento saudável de seus educandos. Além disso, o profissional precisa
considerar que o problema não compromete apenas a saúde da vítima, mas de toda
a família, a qual merece o apoio e tratamento necessário para recuperação do núcleo
social que se encontra em conflito.
Não obstante, a resolutividade centrada na família encontrada nesse estudo,
reforça o princípio arraigado na sociedade no tocante a não interferir na privacidade
desse núcleo social, contudo deixa a criança desamparada e predisposta ao risco de
reincidência, por não compartilhar o agravo com outros setores de proteção à infância,
desconsiderando o problema como decorrente da dinâmica familiar, estando sob a
influência da cultura, valores e costumes locais (16).
Estudos com profissionais da educação de escolas públicas encontraram
posição semelhante frente à violência doméstica, os quais priorizaram convocar pais
e/ou responsáveis em detrimento da comunicação inicial aos órgãos competentes,
demonstrando a lacuna existente entre a identificação de casos e o número fidedigno
de notificações procedentes do setor educacional, gerando a subnotificação que
interfere substancialmente no enfrentamento da violência doméstica (9,13,17). Entre os
fatores encontrados na literatura que justifiquem a atitude de não recorrer ao

995
Conselho, pontua-se o descrédito na resolutividade do órgão no tocante ao agravo e
a ausência de parceria que desestimula o encaminhamento adequado (7,9), situação
que foi manifesta em relatos da presente pesquisa.
Para modificar esse panorama, a rede de proteção social consiste em uma
concepção de trabalho que possibilita ações permeadas por intersetorialidade e
interdisciplinaridade, permitindo que os diversos setores superem as dificuldades e
contemplem estratégias de forma integral, sem a fragilidade da conduta verticalizada
(7).

Na pesquisa, os sujeitos deixaram claro que a violência doméstica contra a


criança está sendo conduzida na escola de forma fragmentada provavelmente pela
falta de articulação entre a instituição educacional e outros segmentos da sociedade
civil, configurando a ausência de rede de proteção social atuante, contribuindo para
que as famílias, e, especialmente as crianças, permaneçam desprotegidas (8,9). A
literatura referência que a desarticulação pode originar-se do incipiente conhecimento
do educador acerca da violência doméstica contra a criança no curso de sua
qualificação profissional, imprescindível para o fortalecimento da intersetorialidade
(14,17).

As crianças na fase da educação infantil, que corresponde à creche e pré-


escola, iniciam o processo educacional que se propõe a complementar a socialização
recebida no núcleo familiar, requerendo profissionais competentes e habilidosos que
correspondam às peculiaridades dessa faixa etária.
A proposta pedagógica que contemple o desenvolvimento infantil nas esferas
física, psicológica, intelectual e social preconizado na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (18) deve vislumbrar que educar vai além do cuidado biológico e da
transmissão de conhecimentos, engloba ainda, respeitar a criança em seu contexto
sociocultural para enxergar particularidades inerentes ao convívio familiar violento. É
imprescindível que o tema seja discutido como proposta transversal no currículo de
graduação das disciplinas envolvidas com o cuidar e educar, e mantido em educação
continuada, desta feita, o educador não se sentirá inseguro em sua formação no
tocante ao reconhecimento dos casos, assim como da legislação vigente (7,13,16).
O receio de educadores em ser alvo de retaliação por parte da família quando
notificam ao Conselho Tutelar ou quando passivamente comunicam aos responsáveis
pela criança as suspeitas geradas na escola é comentado na literatura, destacando
que a escola pode ser confundida como intrusa em questões de cunho privativo

996
doméstico, demonstrando a supremacia familiar que pode estar ocultando a violência
doméstica contra a criança (7,9). Situação semelhante foi encontrada em estudo com
profissionais de saúde que compartilhavam do medo em ser alvo de retaliação pela
família, principalmente quando procedentes de áreas com risco social (17).
A capacitação profissional e a intersetorialidade com a construção da rede de
proteção social, destacando a integração dos setores educação e saúde (19),

ancorados na legislação vigente, constituem o caminho para afugentar não só os


medos, mas todos os entraves que enfraquecem as ações da equipe pedagógica na
instituição.

Conclusões
No cenário educacional pesquisado as alterações no comportamento infantil
emergiram como principais indicadores utilizados para suspeição do agravo,
visualizando o outro como um ser biopsicossocial que expõe dores e sofrimentos em
suas relações interpessoais. Confirmando o olhar que reconhece a subjetividade do
sujeito destacou-se a preocupação com a agressão permeada por palavras que
podem provocar cicatrizes tão graves quanto o espancamento, pela sutileza e
invisibilidade do ato.
A proteção integral à infância deixa de ser respeitada quando o educador adia
a notificação ao Conselho Tutelar de casos suspeitos ou confirmados de violência
identificados no âmbito escolar. Nesse sentido, a resolutividade focada na família
apreendida refletiu o poder desse núcleo social no momento de cuidar e decidir sobre
suas crianças, mesmo que estas sejam vítimas de maus-tratos perpetrados dentro do
lar, sugerindo a interferência dos valores culturais que perpassam as gerações.
A insegurança observada na conduta destes educadores diante de grave
problema de saúde pública evidenciou que a intersetorialidade e a rede de proteção
social, representam uma utopia no cotidiano da escola. Investir no trabalho
compartilhado e horizontalizado permitirá que os determinantes legais sejam
cumpridos, além de desenvolver parcerias com a saúde para elaboração de propostas
em educação e saúde, trocando vivências e reflexões que abordem a temática de
forma transversal.
Nessa premissa, o educador se sentirá seguro no desempenho de suas
atividades e não será considerado negligente no tocante aos seus deveres como ator
social com responsabilidade incontestável na promoção da saúde e garantia de

997
cidadania de seus educandos. Além disso, poderá evitar que pequenas vítimas se
reproduzam em futuros agressores, quebrando o ciclo da violência e promovendo a
cultura da paz.
Os dados observados nesta pesquisa não podem ser extrapolados ou
generalizados como representativos para outras escolas públicas, considerando que
representam a percepção de educadores inseridos no cenário escolar pesquisado,
portanto limitado a esse universo.

Colaboradores
Mônica Cavalcanti Trindade foi responsável pela concepção teórica, delineamento,
execução, análise, redação e revisão final do artigo. Bianca Arruda Manchester de
Queiroga foi responsável pela supervisão da pesquisa, redação e revisão final do
artigo. Luciane Soares de Lima foi responsável pela supervisão da pesquisa, redação
e revisão final do artigo.

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1000
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1001
93- IMPACTO DO BULLYING NA AUTOESTIMA DA PESSOA COM FISSURA
LABIAL E/OU PALATINA

Ingrid Tavares Paiva,


Luana Carramillo-Going,

Resumo: As fissuras de lábio e/ou palato são falhas congênitas que ocorrem durante
o desenvolvimento do feto, na fase embrionária. No Brasil, a incidências é de 1 a cada
650 nascimentos. (SANTOS, 2016) O presente trabalho tem como objetivo analisar a
bibliografia existente, a fim de correlacionar estas anomalias com a ocorrência de
bullying escolar e seu impacto na autoestima. A autoestima, por sua vez, compreende
a avaliação que o indivíduo faz e o valor que atribui a si mesmo. (VASCONCELOS,
2017) Utilizou-se o método de revisão de literatura. Em uma busca na fonte de dados
Bireme, foram encontrados inicialmente 38 artigos escritos nos últimos 10 anos. Os
documentos foram agrupados por afinidade temática e critérios como proximidade ao
objetivo da pesquisa e a área de estudo da psicologia foram aplicados para a selação
da amostra. Por fim, 2 artigos foram analisados. Conclui-se que a ocorrência de
fissuras labiopalatais é considerada um fator de risco para o bullying e posterior
surgimento de dificuldades sociais e psicológicas. Neste contexto, o psicólogo tem
papel fundamental, dada a importância do acolhimento dado a criança e a família.

Palavras-Chave: Fissura Labial. Fissura Palatina. Autoestima. Bullying. Psicologia.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva analisar a bibliografia existente, a fim de
correlacionar estas anomalias com a ocorrência de bullying escolar e seu impacto na
autoestima. As fissuras de lábio e palato são falhas congênitas no desenvolvimento
do feto, que ocorrem durante a fase embrionária, entre a quarta e oitava semana de
gestação no caso de embriões do sexo masculino (COLARES; RICHMAN, 2002), e
até a décima segunda semana de gestação no caso do sexo feminino.
É uma anomalia facial e, com frequência, implica consequências estéticas
visíveis que podem causar estranheza e dificuldade social. Outras consequências
comuns no desenvolvimento de crianças com essas diferenças são: dificuldade na

1002
fala, problemas auditivos, problemas respiratórios e desenvolvimento dentário
imperfeito. Ademais, o relacionamento mãe-bebê pode ser fragilizado, tanto pelo
rompimento da figura de ideal de bebê, quanto por fatores mais objetivos como a
dificuldade de sucção, que muitas vezes é uma das características dessas anomalias,
e que reflete um desafio no momento da amamentação. (SILVEIRA; WEISE, 2008)
O psicólogo atua neste e em outros momentos, na vida desses indivíduos. Além
da atenção pré-operatória e pós-operatória, fundamental nestes casos, é importante
ressaltar a função deste profissional no acolhimento e apoio a formação de uma
autoimagem e autoestima saudáveis, visto as dificuldades enumeradas aqui. Essas
dificuldades podem ser, também, dificuldades sociais. Dentre elas, dar-se-á especial
atenção, ao longo do estudo, ao tema do bullying. O termo, de origem inglesa, é
comentado por Vila e Diogo como sendo um ato de violência físico-psicológica e “[...]
uma ação discriminatória que se dá, sobretudo, na adolescência, podendo ser direto
ou indireto e ocorrendo nos mais variados contextos.” (VILA; DIOGO. 2009. p. 1). Esse
tipo de violência, caracterizada por comportamentos de intimidação e agressão,
possui grande potencial para minar a autoconfiança e autoestima do indivíduo.
A autoestima, por sua vez, compreende a avaliação que o indivíduo faz e o
valor que atribui a si mesmo. (VASCONCELOS, 2017. p. 197) Apesar de se tratar de
um conceito íntimo e pessoal, ela é também uma construção e, portanto, sofre
profundas influências do meio: A maneira como sou “gostado” pelo outro e o valor que
esse outro me dá (ou me nega) influenciarão diretamente a maneira como eu mesmo
me gosto e o valor atribuído a mim. Essa autovalorização, por sua vez, conduzirá em
certo nível a maneira como vou me portar em meio a sociedade (expansivo, retraído,
confiante, inseguro etc.), afetando diretamente o meu bem-estar físico e social.
O estudo por meio dos seguintes descritores: “lábio leporino”; “bullying” e
“autoestima buscou no sistema integrado de busca Lib.Steps, as pesquisas
desenvolvidas nos últimos 10 anos. Dentre as bibliotecas resultantes foi escolhida,
como fonte de dados, a Biblioteca Virtual em Saúde – BIREME.
Dos primeiros 125 artigos encontrados foram selecionadas 38 pesquisas que
tem a data de publicação posterior a 2010, seguido do recorte de semelhança com o
tema e, assim, foram selecionadas as que relacionam a fissura labiopalatina com a
autoestima e a autopercepção sobre a aparência (10). Para análise e discussão, por
relação ao objetivo de estudo deste trabalho, foram escolhidos os dois documentos
que priorizaram o bullying.

1003
Os estudos demonstram que a ocorrência de fissuras labiopalatais é
considerada um fator de risco para o bullying e posterior surgimento de dificuldades
sociais e psicológicas. Neste contexto, o psicólogo tem papel fundamental, dada a
importância do acolhimento dado a criança e a família.

DESENVOLVIMENTO DO TEMA

FISSURA LABIAL E PALATINA


Definição
Do latim, a palavra fissura significa “fenda” ou “pequena abertura/rachadura”.
(MICHAELIS). A condição é também conhecida na bibliografia mundial como
síndrome de Van der Woude e é popularmente chamada de lábio leporino.
Curiosamente, este derradeiro e mais popular nome se refere etimologicamente a
palavra lebre, já que esta possui uma fenda no lábio superior. (SANTOS, 2016)
As fissuras labiopatais são falhas no desenvolvimento do lábio e/ou palato (“céu
da boca”). Essas falhas são congênitas, e, portanto, ocorrem durante a fase
embrionária, entre a quarta e oitava semana de gestação no caso de embriões do
sexo masculino (COLARES; RICHMAN, 2002.), e até a décima segunda semana de
gestação no caso do sexo feminino, devido ao fechamento mais lento do palato em
meninas. Santos destaca que as FLP (fissura lábio palatinas) “englobam uma ampla
variedade de malformações que apresentam extensões e amplitudes distintas”
(SANTOS, 2016 p.5)

Causas’
As fissuras labiais e palatinas possuem causalidade multifatorial, o que significa
que sua existência não pode ser atribuída a um único fato ou episódio da vida da
gestante ou do feto, senão a combinação de alguns deles, quer sejam estes fatores
genéticos ou ambientais. (COLARES; RICHMAN, 2002.) Entre os fatores ambientais
se destacam a ingestão de bebidas alcoólicas, tabagismo, deficiências vitamínicas,
alguns tipos de medicação de uso contínuo, doenças virais agudas, radiações
ionizantes e determinantes químicas. (RAZERA; TRETTENE; TABAQUIM, 2015).
De acordo com o projeto de lei 1.172-B, elaborado por Hinterholz, “[...] se uma
criança de uma família nasce afetada pelo problema, o risco de que outra criança

1004
venha a nascer com a mesma condição aumenta de 2% a 4%.” (P.L. 1.172-B, Brasil,
2015, p.2). É possível estabelecer, uma relação causal entre idade paterna e
prevalência da enfermidade no bebê. (KUHN et al, 2012)
Alguns autores relatam a importância do ácido fólico, uma vitamina do
complexo B, para a prevenção de defeitos congênitos proveniente de defeitos no tubo
neural (DTN), razão pela qual a OMS já recomenda a ingestão de 0,4mg desta
vitamina, a partir de 30 dias antes da concepção até o terceiro mês de gestação.
(LINHARES; CESAR, 2016).

A formação dos genes depende do ácido fólico, vitamina do


complexo B que atua diretamente em quaisquer processos de
divisão celular e na produção de DNA. Sua importância para
o desenvolvimento fetal concentra-se principalmente nos três
primeiros meses de gestação. Mas para que chegue ao
embrião, o ácido fólico deve ser ingerido e processado pelo
organismo materno, o que depende da estrutura genética da
mulher. (MATTOSO, 2004).

Impactos Físicos, Psicológicos e Sociais


São diversas as áreas da vida afetadas quando há uma má formação fetal na
região da face, já que alguns dos principais órgãos do corpo humano, responsáveis
por funções como a fala, a alimentação e a respiração, se encontram nesta região.
Assim, é natural que a preocupação inicial com a funcionalidade destes órgãos se
sobreponha, até os primeiros anos de vida, a quaisquer outras preocupações acerca
da anomalia. O trabalho do psicólogo, nestes primeiros anos, será direcionado
principalmente a família da criança contemplando as seguintes questões entre outras:
Já sabiam sobre a má formação, ou foi descoberta ao nascer? Quais as impressões
que têm acerca de como será a vida dessa criança? Quais os seus anseios e
preocupações?
Com o desenvolvimento do paciente surgem outros pontos de atenção: A
comunicação pode ser prejudicada, principalmente em casos em que as primeiras
cirurgias são realizadas tardiamente. Desta forma, faz-se necessário o
acompanhamento com o profissional fonoaudiólogo desde que surgem as primeiras
palavras. Existe a possibilidade, porém, de que as cirurgias necessárias sejam
realizadas nos primeiros meses de vida, havendo o fechamento completo do palato
antes do desenvolvimento da fala, o que trará a criança um prognóstico positivo em
relação a sua capacidade articulatória. (RAZERA; TRETTENE; TABAQUIM, 2015).

1005
A questão ortodôntica costuma ser atingida na maioria dos casos. Associados
as complicações presentes na região bucal existe, ainda, uma chance de 60% de
complicações nasais importantes como desvio no septo e atrésias nasais, que
necessitam de uma correção cirúrgica. (SANTOS, 2016)
O acompanhamento psicológico, já fundamental e idealmente existente desde
o momento do nascimento da criança, passa a ter, então, um peso ainda maior, ao
passo que ela se desenvolve. Deve-se ressaltar a função da terapia na formação de
uma autoimagem e autoestima saudáveis, já que as diferentes formas de
apresentação das fissuras de lábio e palato implicam, na maior parte dos casos, em
um acometimento estético importante. Sendo a aparência física um dos principais
aspectos da socialização dos indivíduos na modernidade (FREITAS, 2016), é
fundamental considerar este como sendo um fator que coloca em risco a saúde
mental, além de um possível resultante de abalo social e psicológico: “A aparência
física, em especial a aparência facial, é um aspecto importante a ser considerado na
interação humana, contribuindo, inclusive, para a formação da opinião de uns sobre
outros.” (COLARES; RICHMAN, 2002. p.5).

1.4 Método do estudo teórico


Para melhor compreender, analisar e conhecer o tema proposto, foi escolhida a
metodologia de revisão e análise de literatura e, mais especificamente, a revisão
do tipo narrativa. Essa metodologia permite o entendimento amplo e preciso sobre
o conhecimento atual do tema, além de a possibilidade de integração de diferentes
pontos de vista. Assim, pretende-se manter o rigor e critério de um trabalho de
conclusão de curso, além de garantir que o tema seja suficientemente investigado,
sem que o investigador necessite ir a campo Por meio do sistema integrado de
busca Lib.Steps, na data de 18 de maio de 2019, realizou-se uma pesquisa com
os seguintes descritores: “lábio leporino”; “bullying” e “autoestima”. Dentre as
bibliotecas resultantes foi escolhida, como fonte de dados, a Biblioteca Virtual em
Saúde – BIREME.

Resultados e discussão
Dos primeiros 125 artigos encontrados, 8 foram descartados, pois foram
publicados apenas em idiomas diferentes daqueles estabelecidos para análise

1006
(português, espanhol e/ou inglês). Assim, os artigos publicados em japonês,
tcheco, chinês, polonês, alemão e norueguês foram excluídos da amostra.
Sob os 117 documentos restantes, utilizou-se o critério de ano de publicação:
45 artigos foram publicados antes de 2000, 34 foram publicados entre os anos 2000
e 2009, e 38 tem sua data de publicação posterior a 2010. Para que a amostra
temática fosse mais rica e relevante, optou-se por analisar, neste ponto, os artigos
publicados nos últimos 10 anos.
Após uma primeira leitura dos 38 artigos mais recentes, utilizou-se o critério de
semelhança com o tema e, assim, excluíram-se da amostra pesquisas acerca da
saúde bucal da pessoa com fissura (5); Estudos com enfoque físico-biológico sobre a
comunicação (2); Artigos que abordam as fissuras labiopalatais sob o ponto de vista
médico (6) e pesquisas que abordam outros fatores psicológicos implicados, como
qualidade de vida (15). Foi escolhida, após essa primeira análise, por similaridade e
relevância ao objetivo deste estudo, o eixo temático que relaciona a fissura
labiopalatina com a autoestima e a autopercepção sobre a aparência (10). Assim, a
amostra de 10 estudos originais, realizou-se uma leitura mais aprofundada e
compilação de dados iniciais. Após a classificação temática foi possível dividir os
documentos entre:
Aquelas que realizam um paralelo com o bullying escolar e seus impactos (2);
artigos que analisam a melhora ou não de autoestima e satisfação com a estética no
pós-operatório cirúrgico (5) e, ainda, autores que abordam o tema de uma maneira
generalista (3). Para análise e discussão, por relação ao objetivo de estudo deste
trabalho, foram escolhidos os dois documentos do primeiro grupo, relacionados ao
bullying: “Peer harassment and satisfaction with appearance in children with and
without a facial difference” (Assédio entre colegas e satisfação com a aparência em
crianças com ou sem diferenças faciais), estudo publicado em 2010 por Kristin
Feragen e Anne Borgen e “Frequency and socio-psychological impact of taunting in
school-age patients with cleft lip-palate surgical repair” (Frequência e impacto sócio-
psicológico da provocação em pacientes em idade escolar com correção cirúrgica de
fissura labiopalatina), publicado em 2015 por Lorot-Marchand e colaboradores.
No primeiro artigo, que é Norueguês, Kristin Feragen e Anne Borge entrevistaram
661 pessoas de até 16 anos de idade (434 possuíam fissura visíveis e 227 eram
afetadas por apresentações da anomalia não visíveis). Para mensurar a satisfação
com aparência e o assédio de colegas, utilizou-se alguns questionários: A Escala de

1007
Satisfação com a Aparência, desenvolvida pelo grupo de interesse especial em
Psicologia, da Sociedade de Anomalias Craniofaciais da Grã-Bretanha e Irlanda; o
Perfil de Percepção de Adolescentes, desenvolvido por Harter em 1988 e o
Questionário de experiência da Criança (CEQ, de 1982). Os dois primeiros
instrumentos permitiram que a medição de satisfação estética em crianças e
adolescentes fosse realizada e comparada entre as diferentes faixas de idade,
enquanto o terceiro tornou possível o entendimento sobre a qualidade da experiência
social vivida por estas pessoas.
Após a coleta de dados, a análise estatística mostrou informações interessantes
sobre os adolescentes: Meninas com fendas visíveis apresentaram significativamente
maior insatisfação com aparência, quando comparada a meninas com fendas não
visíveis e a meninos com diferenças faciais visíveis ou não. Ademais, entre os
adolescentes de 16 anos as chances de passar por sofrimento social decorrente de
bullying, em comparação com casos de fissuras esteticamente não afetas, eram
quase 2 vezes mais altas. Neste mesmo grupo, a insatisfação com a aparência estaria
diretamente associada ao assédio sofrido.
As crianças analisadas demonstraram resultados diferentes: Não houve alteração
significativa com relação a insatisfação estética e frequência de bullying e, apenas
uma quantidade de 25 a 41% dos infantes participantes relataram provocações, sendo
uma maior porcentagem de pais e crianças com fendas faciais visíveis.
Sobre a satisfação pessoal direta com a aparência estética: 69% das pessoas que
tinham fissura apenas no palato, sem fenda no lábio, responderam que consideram o
próprio rosto bonito, enquanto esse número é de apenas 36% entre os participantes
que possuíram fendas de lábio ou face (e, portanto, fendas mais visíveis). O grupo
com fissura palatal também relatou menor frequência, na amostra geral, em relação a
provocação dos colegas: apenas 46% dizem ter sofrido bullying em algum momento,
enquanto entre os respondentes acometidos ao nascer por fenda labial ou fenda labial
e palatina, as porcentagens foram de 73 e 77%, respectivamente. Esses dados
demonstram que a alteração estética, acima de tudo, estaria mais fortemente
associada a frequência do assédio escolar.
O trabalho de Feragen e Borge (2010), portanto, não conseguiu confirmar sua
hipótese de que a insatisfação com a aparência e a provocação escolar (bullying) são
mais frequentes em se tratando de crianças, porém demonstrou que a diferença facial
pode ser associada à insatisfação com a aparência, especialmente em meninas

1008
adolescentes. Relacionou ainda a ocorrência da prática de bullying escolar com o nível
de satisfação estética, em se tratando de adolescentes de ambos os gêneros. Assim,
concluiu que a idade poderia ser um fator de risco importante para o tema proposto
no estudo, sugerindo novos estudos longitudinais.
A segunda pesquisa trata-se de uma publicação francesa, elaborada por Lorot -
Marchand et.al., denominada, em português, “Frequência e impacto sociopsicológico
da provocação em pacientes em idade escolar com correção cirúrgica de fissura
labiopalatina”. Ela também objetivou analisar a importância, o impacto e a frequência
da provocação escolar em pessoas com fissuras de lábio e palato. Ela difere da
anterior, porém, pois toda a amostra foi constituída por adolescentes de 12 a 18 anos,
que já passaram por cirurgias reparadoras. Durante uma consulta multidisciplinar, 55
pacientes foram convidados a responder um questionário composto por 3 partes:
Análise global de perfil e histórico médico- cirúrgico; análise de provocações sofridas
e impacto psicológico destas e compreensão socioeconômica do participante.
A média de ocorrência de bullying em idade escolar, na população geral da França
segundo o artigo, é de 25%. No entanto, a média da população participante do recorte
estudado foi de 69%. Vale citar que a maior frequência foi relatada por participantes
que tinham sido acometidos por fenda de lábio e palato associadas (77%), seguido
por aqueles que apenas possuíam a má formação labial (72%) e, por último, pacientes
com fenda palatinas (46%). Tendo em vista que as fendas labiais costumam ter
consequências estéticas mais severas na face, é possível associar a frequência do
bullying sofrido com a aparência destas pessoas. Em geral as provocações também
atingiram seu “pico” de agressividade na adolescência. A vitimização “[...] teve um
forte impacto no bem-estar psicológico dos jovens, já que metade deles se sentiu
‘triste’ sobre isso e mais de um quarto deles relataram ‘estarem marcados para a
vida'”. (LOROT-MARCHAND, A. et.al. 2015)
Os autores de ambos os artigos incluem, portanto, o fator do bullying ou “assédio
escolar” para avaliar o impacto psicológico da existência de fissuras labiais e de
palato. Eles argumentam que “[...] a ocorrência de provocações e assédio entre
colegas é uma poderosa experiência social negativa durante a infância e
adolescência.” E ainda que “[...] crianças que parecem diferentes podem experimentar
mais provocações” (FERAGEN; BORGE, 2010).

1009
Conclusão

O presente estudo atingiu o objetivo de relacionar a ocorrência de bullying com a


existência de fissuras de lábio ou palato, porém a relação existente é de caráter
indireto: Descobriu-se que, quando ocorre, esta provocação escolar está mais
associada ao acometimento estético/facial do que ao fato de haver uma má formação
congênita em si. Esse resultado é expresso, por exemplo, quando dois dos autores
(Feragen e Borge) discorrem acerca de a maior incidência de bullying em participantes
com fissura labial, em relação aos participantes com fissura de palato.
Ambos os estudos destacam a maior frequência de assédio moral e psicológico
entre colegas na adolescência, quando comparada a incidência na infância. Além
disso, adolescentes do sexo feminino parecem ser as mais afetadas. É sugerido que
estudos posteriores sejam realizados para investigar melhor o corte de gênero e a
relação aqui encontrada.
Concluiu-se que as fissuras de lábio e palato podem ser fatores de risco para o
bullying escolar principalmente na adolescência quando estas afetam visivelmente a
face. Os resultados das provocações, por sua vez, podem afetar negativamente a
autoestima das pessoas vitimizadas, impactando diretamente o bem-estar psicológico
destes.

Referências

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appearance in children with and without a facial difference. Norway: Body Image,
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KUHN, Vivian Dutra et al. Fissuras labiopalatais: Revisão de literatura.
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MATTOSO, Diego. Genética materna é causa de lábio leporino. Saúde, 2004.


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MENDES, Valéria. A importância do ácido fólico na saúde do feto. Uai.com, 2016.


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SILVEIRA, Joao Luiz Gurgel Calvet; WEISE, Carla Mayara. Representações
Sociais das mães de Crianças portadoras de fissuras labiopalatais sobre
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VILA, Carlos; DIOGO, Sandra. Bullying. Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes:
Portugal, 2009.

1012
94- A VISÃO PSICANALÍTICA SOBRE POSSESSÃO DEMONÍACA

Davi Rodrigues Silva


Denise Blanche
Maria Hosana Andrade dos Santos
Fabio Pinheiro
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo

Resumo: O artigo traz uma discussão sobre a visão com relação à possessão
demoníaca, em suas análises Sigmund Freud a denomina como neurose demoníaca,
em seu texto: Uma neurose demoníaca do século XVII. São apresentados conceitos
psicanalíticos com relação à estrutura psíquica e da personalidade para que
possamos entender de forma mais clara a interpretação de Freud com relação ao caso
de Christoph Haizmann, o pintor que após a morte de seu pai decide realizar um pacto
com o diabo com o intuito de ser libertado de um estado depressivo, o mesmo
acreditava que este pacto pudesse ser finalizado apenas com a ajuda dos padres na
capela de Mariazell, após finalizar o pacto dedicasse a servir aos monges pelo resto
da vida.

Palavras-chave: Psicanálise. Neurose. Demoníaco. Pai. Pacto.

(Artigo apresentado para conclusão do curso de Psicologia da Universidade Brasil, sob orientação do
Professor Ms. Fábio Pinheiro Santos)

Introdução

1013
O objetivo é apresentar os principais conceitos psicanalíticos acerca da
estruturação psíquica do sujeito (Id, Ego e Superego) e como estes se relacionam à
conclusão de neurose demoníaca.

Em um de seus livros Freud (1923) traz o tema: Uma neurose demoníaca do


século XVII, escrita originalmente em alemão Eine Teufelsneurose im Siebzehnten
Jahrundert, conta a História de Christoph Haizmann, o pintor que perdera a capacidade
de pintar após a morte de seu pai. Em agosto de 1677 o artista sofre convulsões e admite
ter feito um pacto com o demônio, se comprometeu por escrito, a entregar-se de corpo
e alma para Satanás após um prazo de nove anos, que expiraria em setembro de 1677,
em troca da capacidade de pintar. Na segunda parte do artigo, entende-se o motivo para
tal pacto com o demônio, segundo Freud foi uma tentativa de se libertar de um estado
depressivo, o pintor tem por desejo um pai substituto, o pacto o faria ter este pai,
protegendo-o pelo período de uma infância (Nove anos).

Na Idade Média, entendia-se por possessão demoníaca, como algo espiritual,


outros seres que tomavam o corpo do indivíduo, atribuindo estes aspectos a demônios,
segundo a psicanálise percebemos que tal possessão demoníaca está relacionada a
uma neurose.

1. Conceitos Psicanalíticos
A separação da estrutura psíquica foi entendida inicialmente como consciente,
pré-consciente e o inconsciente. Entre 1920 e 1923, Freud remodela a teoria do
aparelho psíquico e introduz os conceitos de id, ego e superego para descrever a
personalidade e compreender os processos patológicos da vida mental. O id constitui
o reservatório da energia psíquica, é onde se “localizam” as pulsões de vida e a de
morte, tem características inconscientes e é regido pelo instinto e princípio do prazer.
O ego possui as funções de memória, sentimento, percepção e pensamentos
estabelece o equilíbrio entre as exigências do id e as “ordens” do superego, ele é
orientado pelo princípio da realidade e juntamente com o princípio do prazer governam
o funcionamento psíquico.
Segundo Freud (1923-1925 p.49) “É fácil ver que o ego é aquela parte do id
que foi modificada pela influência direta do mundo externo, por intermédio do pcpt.-
Cs.; em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de superfície. Além disso, o
ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e

1014
esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente no id, pelo
princípio de realidade. Para o ego, a percepção desempenha o papel que no id, cabe
ao instinto. O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em
contraste com o id, que contém as paixões”.
O superego origina-se com o complexo de Édipo, a partir da internalização das
proibições, dos limites e da autoridade. O superego refere-se a exigências sociais e
culturais.

Fases Do Desenvolvimento Psicossexual

A energia dos instintos sexuais é chamada por Freud (1905) de “libido”, ela existe
desde o princípio da vida após o nascimento. O desenvolvimento da sexualidade se
dá em um período complexo e longo, até chegar na vida adulta. As funções de
obtenção de prazer e reprodução do sexo podem estar associadas tanto no homem
quanto da mulher.

Freud (1905) também refere que a personalidade é desenvolvida através de


estágios de desenvolvimento na infância. Primeiro estágio é a fase oral, a zona de
erotização é a boca, ocorre do nascimento à idade de 1 ano, a interação da criança
com o mundo é através da boca e sua obtenção de prazer. Segundo estágio é a fase
anal, a zona de erotização é o ânus e a bexiga, ocorre na idade de 1 a 3 anos, onde
o foco principal da libido está no controle dos esfíncteres. Terceiro estágio é a fase
fálica a zona de erotização são os genitais e ocorre de 3 a 6 anos de idade. O quarto
estágio é o período de latência a zona erógena se localiza nos sentimentos sexuais
latentes ou inativos presentes no inconsciente, ocorre dos 6 anos à puberdade, a
criança se desenvolve em relacionamentos interpessoais. O quinto estágio é a fase
genital onde a zona de erotização está localizada nos interesses sexuais e ocorre da
puberdade ao fim da vida do indivíduo.

As experiências e situações ocorridas de caráter traumático na infância, traz


como consequência a origem dos sintomas atuais. A maioria dos pensamentos e
desejos reprimidos estão relacionados a conflitos de ordem sexual desenvolvendo o
funcionamento das neuroses.

1015
Complexo De Édipo E Castração

O complexo de Édipo é uma fase de triangulação que caracteriza o centro do


conflito humano, é em torno deste que se estrutura a personalidade acontece entre os
3 a 6 anos, na fase fálica (onde a zona de erotização é o órgão sexual). O menino
desenvolve desejo pela mãe, originalmente relacionado ao seio materno, o menino se
identifica com o pai, durante um período, este relacionamento se desenvolve até que
os desejos sexuais do menino com relação à mãe se tornam mais intensos e o pai é
percebido como um obstáculo entre eles, originando o complexo de Édipo.
O amplo resultado geral da pose sexual dominada pelo complexo de Édipo
pode, portanto, ser tomada como sendo a formação de um precipitado no ego,
consistente dessas duas identificações unidas uma com a outra de alguma maneira.
Esta modificação do ego retém a sua posição especial; ela se confronta com os outros
conteúdos do ego como um ideal do ego ou superego. (Freud, 1923-1925, p.46)
Freud (1905) descreve a neurose como quadro que se origina por situações
externas da vida do sujeito, causadas por uma angústia, ansiedade, medo ou alguma
expectativa desagradável. Na neurose o sujeito apresenta sintomas variados, mas
sempre com uma postura de vida que proporciona mais infelicidade do que o
necessário. Um comportamento exagerado e isso acontece para preservar uma parte
saudável de si mesmo, sendo uma forma de defesa. Na neurose o sujeito preserva
muito bem a realidade externa da realidade interna, essa separação é totalmente
consciente para si e sua personalidade não altera por conta disso, embora aja uma
disfunção anormal para algumas situações, o que irá diferenciar a neurose da
normalidade é a intensidade do comportamento e a forma em resolver conflitos de
maneira satisfatória.

2. O Caso De Cristoph Haizmann, O Pintor

O caso de Chistoph foi descrito em um manuscrito, divide-se em duas seções


distintas, sendo uma delas um relatório escrito em latim tendo por autoria um escriba
ou compilador, contém, um prefácio e uma descrição da cura real e a outra um
fragmento do diário do paciente escrito em alemão, a qual serve grande parte para
confirmação de julgamento do caso.
Freud relata uma parte do conteúdo que extraiu do prefácio, que traz o título de

1016
Trophaeum Mariano-Cellense, seria a narrativa de Leopoldus Braun, o padre da aldeia
de Pottenbrunn, datada de 1º de setembro de 1677:

Em 5 de setembro de 1677, o pintor Christoph Haizmann, bávaro, foi trazido a


Mariazell, com uma carta de apresentação do pároco da aldeia de Pottenbrunn
(na Áustria inferior), não muito longe dali. A carta declara que o homem estivera
morando em Pottenbrunn durante alguns meses, exercendo sua ocupação de
pintor. Em 29 de agosto, enquanto se encontrava na igreja da aldeia, fora
tomado por convulsões assustadoras. Como as convulsões tornaram a
apresentar-se durante os dias seguintes, fora examinado pelo Praefectus
Dominii Pottenbrunnensis, com vistas a descobrir o que o oprimia e se ele não
havia assumido intercâmbio ilícito com o Espírito Mau. A seguir, o homem havia
admitido que, nove anos antes, encontrando-se em estado de desalento quanto
à sua arte e duvidoso sobre a possibilidade de se sustentar, entregara-se ao
Demônio, que o havia tentado nove vezes, e dera-lhe seu compromisso por
escrito de pertencer-lhe em corpo e alma após um período de nove anos. Esse
período expiraria no 24º dia do mês corrente. A carta prosseguia dizendo que
o infeliz se havia arrependido e estava convencido de que só a graça da Mãe
de Deus em Mariazell poderia salvá-lo, obrigando o Maligno a liberá-lo do
compromisso, escrito com sangue. Por essa razão, o padre da aldeia
aventurara-se a recomendar miserum hunc hominem omni auxílio destitutum à
benevolência dos padres de Mariazell. (Freud, 1923 p. 90)

O manuscrito consiste em uma página de rosto colorida que representa a cena


da assinatura do pacto e a cena de redenção na capela de Mariazell, nas folhas
seguintes encontram-se oito quadros coloridos que representa as aparições do
demônio. Os quadros não são originais tratando-se de cópias fiéis das pinturas
originais de Cristoph.
Na descrição da cena de exorcismo, após ter passado um grande período de
penitência e oração em Mariazell, Christoph vê o demônio na sagrada capela em 08
de setembro a meia noite, (dia da natividade da virgem), sob a forma de um dragão o
qual lhe devolveu o compromisso que estava escrito em sangue. Entende-se que o
pacto fora feito em dois compromissos com o demônio, um em tinta preta e um
posterior redigido com sangue. Este seria o grande milagre, porém a cura não foi
duradoura, após um período o pintor deixou Mariazell melhor de saúde e foi para Viena
onde morou com uma irmã. Em 11 de outubro começam novas crises consistia em
visões e ausências nas quais via e experimentava todo tipo de coisas, em acesos
convulsivos acompanhados das sensações mais penosas, em certa situação com
paralisia das pernas. Neste momento não era o demônio que o atormentava, mas por
figuras sagradas, o Cristo e pela própria Santa Virgem, sofrera por ter ainda um

1017
intercâmbio com o demônio.
Christoph retorna a Mariazell e conta aos padres a razão para qual retornou,
teria de solicitar ao demônio para devolver seu outro compromisso anterior que foi
escrito em tinta. Ele orou de novo e recebeu de volta o pacto, se sentiu inteiramente
livre e ingressou na ordem dos Irmãos Hospitalários.
No manuscrito o compilador não esconde a indagação que foi feita pelo
superior do Mosteiro dos Irmãos Hospitalários em 1714 (em Viena) com relação à
história do pintor, o reverendo Pater Provincialis comunicou que o irmão Crisóstomo
havia sido tentado novamente pelo espírito mau, embora isso só acontecia quando
ele bebia vinho em demasia.

[...] Mas, pela graça de Deus, sempre fora possível repelir essas tentativas. O Irmão
Crisóstomo morrera de febre héctica. ’pacificamente e bem confortado’ no ano de 1700, no
Mosteiro da Ordem, em Neustatt sobre a Moldávia. (Freud, 1923-1925, p.94)

Análise De Uma Neurose Demoníaca


Freud (1923-1925) entende que se trata de fato de um caso clínico pelos sintomas
apresentados, Christoph ficou abatido, indisposto, era incapaz de trabalhar
adequadamente e estava preocupado em como ganhar a vida, podemos dizer que sofria
de depressão melancólica, o qual o próprio pintor na legenda de um dos retratos do diabo
o chama de melancolia “que eu procura-se diversão e banisse a melancolia”.

Nas aparições do demônio ele oferece a Christoph artes magicas, dinheiro e


prazer, porém, ele os rejeita, tornando difícil saber o que o pintor de fato queria do diabo
quando assinou o compromisso com ele. Nos compromissos não mencionam nenhuma
promessa feita pelo demônio, mas em troca da efetivação o pintor se compromete a
exigência efetuada pelo diabo, é ilógico que este homem deva entregar sua alma, não
por algo que deva conseguir do demônio, mas por algo que deva fazer para este.

No primeiro compromisso escrito à tinta diz o seguinte: Eu, Christoph Haizmann


subscrevo-me a este Senhor como seu filho obrigado até o nono ano. Ano de 1669. O
segundo escrito com sangue diz: Christoph Haizmann. Assino um compromisso com este
satã, de ser seu filho obrigado e no nono ano pertencer-lhe de corpo e alma. (Freud,
1923-1925, p. 97)

1018
Haizmann projeta no demônio os aspectos que sentia com relação ao seu pai.
Confirmado pela forma que o diabo se apresentou pela primeira vez como sendo um
cidadão honesto de idade avançada, barbas castanhas, vestido com uma capa
vermelha, apoiado com a mão direita em uma bengala e com um cão negro ao lado.
Posteriormente aparece com chifres, garras de águia e assas de morcego.

Na realidade, ambas as partes de sua doença demoníaca tinham o


mesmo significado. Ele quisera, todo o tempo, simplesmente tornar
segura sua vida. Primeiro tentara consegui-lo com ajuda do
Demônio, ao custo de sua salvação, e quando isso fracassou e teve
de ser abandonado, tentara alcançá-lo com o auxílio do clero, ao
custo de sua liberdade e da maioria das possibilidades de prazer
na vida. Talvez ele próprio fosse apenas um pobre-diabo
simplesmente sem sorte; talvez fosse ineficiente ou pouco talentoso
demais para ganhar a vida, e um daqueles tipos de pessoas que
são conhecidas como ‘bebês eternos’ - incapazes de arrancar-se
do estado beatífico no seio da mãe e que, por toda a vida, persistem
na exigência de serem nutridos por alguém. Foi assim que, nessa
história de sua enfermidade, ele seguiu o caminho que levou de seu
pai, por intermédio do Demônio como substituto paterno, aos
piedosos padres da Igreja. (Freud, 1923).

O Demônio é então a projeção de impulsos que Haizmann não aceita em seu


pai, e aspectos reprimidos da sexualidade conforme analisados por Freud nas pinturas
de Haizmann. É possível que o pai fosse contra o seu desejo de se tornar pintor, se
de fato aconteceu sua incapacidade de exercer a profissão após a morte do pai pode
ser entendida como fenômeno de “obediência adiada” que seria remorso e uma
autopunição bem-sucedida, o que seria obrigado a aumentar o seu anseio pelo pai
como protetor contra os cuidados da vida.

As contradições da natureza original de Deus, contudo, constituem


um reflexo da ambivalência que governa a atitude do indivíduo com
seu pai pessoal. Se o Deus benevolente e justo é um substituto do
pai, não é de admirar que também sua atitude hostil para com o pai,
que é uma atitude de odiá-lo, temê-lo e fazer queixas contra ele,
ganhe expressão na criação de Satã. Assim, o pai, segundo parece,
é o protótipo individual tanto de Deus quanto do Demônio. Mas
deveríamos esperar que as religiões portassem marcas indeléveis
do fato de que o primitivo pai primevo era um ser de maldade
ilimitada - um ser mais semelhante ao Demônio do que a Deus.
(Freud, 1923, p.102).

1019
Considera-se que o papel desempenhado pelo número nove o fato de que o
pacto com o maligno foi por nove anos, o pintor alega ter resistido às tentações do
maligno por nove vezes. Nas fantasias neuróticas o número nove e conhecido como
o número dos meses de gravidez o que pode ser significativo sob outros aspectos
também, a modificação esta de acordo com as exigências da condensação e do
deslocamento.

Freud (1923-1925) afirma que a neurose demoníaca não se diferencia muito de


uma simples neurose que surge na infância, no complexo de Édipo e o trauma da
castração. Nas relações do pintor com o demônio possui uma reverência sexual, em
uma segunda ocasião o diabo estava nu e disforme, e tinha dois pares de seios
femininos sendo repetida nas aparições subsequentes quer como um par único ou
duplo, em um deles exibe um grande pênis terminando por uma serpente, não a
indicações dos órgãos genitais femininos, entende-se que o demônio tinha o
significado de um substituto paterno para o pintor. Este fato determina o lado negativo
da relação com o pai o qual revela a sua atitude feminina para com o pai que culmina
pela fantasia de dar-lhe um filho. Através do luto pelo pai perdido e a intensificação de
seu anseio por ele sucede uma reativação de sua fantasia de gravidez reprimida a
muito tempo, sendo obrigado a se defender com uma neurose e rebaixamento do pai
ao demônio.

Segundo Freud (1923), a atitude feminina de um menino para com o pai sofre
repressão, ele compreende que a rivalidade com uma mulher pelo amor do pai tem
como condição a perda de seus próprios órgãos genitais masculinos, ou seja, a
castração. O repudio da atitude feminina é resultado de uma revolta contra a
castração, encontra sua expressão mais forte na fantasia inversa de castrar o pai, de
transformá-lo em mulher. Sendo assim os seios do demônio corresponde a uma
projeção da própria feminilidade sobre o substituto paterno. Ou ainda pode ser
entendido como uma forma de indicação de que os sentimentos da criança pela mãe
foram deslocados para o pai sugerindo intensa fixação na mãe que é responsável por
parte da hostilidade da criança para com o pai. Seios grandes são as características
sexuais positivas da mãe, mesmo numa ocasião em que a característica negativa de
uma mulher seria a falta de um pênis, ainda é desconhecida da criança.

1020
Se a relutância do pintor em aceitar a castração aumentou o anseio por seu
pai, é compreensível que tenha buscado auxílio e salvação na figura materna. Essa
pode ser a razão do pintor declarar que somente a Santa Mãe de deus de Mariazell
poderia salvá-lo do pacto com o demônio e de conseguir a libertação no dia da
natividade da Virgem (08 de setembro).

Discussão

Entende-se que o pai é representado tanto por Deus como pelo Demônio figura
está de projeção de impulsos não aceitos para com o pai como ódio e aspectos
reprimidos da sexualidade. Portanto nos deparamos com uma pessoa que assinou
um compromisso com o diabo, a fim de ser libertado de um estado de depressão.

Segundo Freud (1923-1925) o superego retém o caráter do pai, enquanto


quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir a
repressão, mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego,
sob forma de consciência ou talvez de um sentimento inconsciente de culpa. Na
medida em que o sujeito cresce, o papel do pai pode ser exercido por outras pessoas
que tenham sido colocadas ou consideradas como figura de autoridade, as regras e
proibições permanecem sendo de forte influência no ego e continuam
conscientemente a exercer o que Freud chama de censura moral.

[…] ao passo que as neuroses de nossos pouco psicológicos dias de


hoje assumem um aspecto hipocondríaco e aparecem disfarçadas
como enfermidades orgânicas, as neuroses daqueles tempos
surgem em trajes demoníacos e se tivesse concedido maior atenção
às histórias de tais casos na época não teriam sido difícil retratar
neles o tema geral de uma neurose. (Freud, 1923-1976b, p. 91).

Na Idade Média vários atos ou simplesmente desejos que hoje são corriqueiros,
eram considerados pecados, assim como na inquisição um simples resfriado, falar
com animais, autismo entre outros, eram sinais de bruxaria, as neuroses de daquela
época ganharam a representação demoníaca como única explicação aceitável.

1021
Conclusão

Entende-se que o pintor “sofreu” o complexo de édipo na infância, o qual os


impulsos institucionais foram reprimidos, tendo surgido na vida interna do paciente, os
sentimentos com relação ao pai foram transferidos ao Diabo.

Haizmann assinou um compromisso com o objetivo de ser libertado de um


estado de depressão, onde depositou sua dor e a falta que sentia de seu pai,
acreditava que o pacto ajudaria a recuperar sua inspiração para pintar. Esse pacto foi
a tentativa de estar sobre o jugo de um pai protetor novamente, Haizmann podia então
voltar ao seu ofício de pintar, mas ao término dos nove anos perderia essa proteção.
Após tentar viver com sua irmã, Haizmann decide se voltar para a proteção de
Mariazell dedicando-se a seguir os monges pelo resto de sua vida. Dessa forma
concluímos que ele foi ligado ao pai por um amor intenso, uma melancolia grave que
surge como forma neurótica de luto. Trata-se de uma neurose demoníaca.

Referências

Freud, S. (2006). O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Ed. Imago, 19.

Freud, S. (2006). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Ed. Imago, 19.

https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/uma-breve-compreensao-sobre-o-
complexo-de-edipo. Acessado em 17/09/2017 às 22h14.

https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/ampliando-as-visoes-sobre-a-
formacao-da-neurose © Psicologado.com. Acessado em 09/10/2017 às 17h13.

1022
95- DEPENDÊNCIA MATERNA NA RELAÇÃO MÃE-BEBÊ: UM ESTUDO DE
CASO SOBRE ADOÇÃO

Anna Cecília Latanzio Rodrigues Silva72


Jorge Luís Ferreira Abrão73

Resumo: A adoção e a maternagem se atravessam para pensar a relação mãe-bebê


em crianças adotivas. Diversos elementos psíquicos da mãe precisam ser elaborados
para o desenvolvimento desta relação, pois o ser mãe carrega núcleos narcísicos que,
com a chegada do filho, suprem algumas faltas primitivas. Assim, este artigo visa
discutir as dificuldades do processo de separação na relação mãe-bebê em um caso
de adoção de crianças gêmeas. O estudo de caso se dá com base no Desenho-Estória
com Tema e na entrevista semiestruturada realizados com uma mãe adotiva de duas
meninas gêmeas. Utilizou-se o método psicanalítico e narrativa psicanalítica para
compor a análise dos dados. Nota-se as dificuldades da mãe em perceber o
crescimento das filhas, visto que tal crescimento implica o seu envelhecimento.
Também estabelece com as filhas uma fusão mãe-bebê, a fim de alimentar seus
desejos narcísicos e um ideal de mãe e de filho construídos inconscientemente.
Portanto, em face do não desenvolvimento da fala de uma das meninas e da não
autorização para frequentar escolas, percebe-se a dificuldade materna em se
individuar e permitir um continuar a ser das filhas, o que apresenta uma mãe fixada
na dependência absoluta, dificultando o desenvolvimento emocional deste grupo
familiar.

Palavras-chave: Adoção. Relação mãe-bebê. Maternagem. Dependência.

Introdução
A adoção é um campo recheado de discussões e reflexões que permeiam
muitos vieses de análises, pois se construíram ao longo da história diversos mitos

72 Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho em Assis-
SP.
73 Professor Pós-Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho em Assis-SP.

1023
sobre tais processos em razão dos seus desdobramentos, como: a constituição
vincular entre pais e filhos; os comportamentos das crianças nas famílias adotivas; os
processos de devolução de crianças que têm se apresentado nas demandas do fórum;
entre outros. Com base nesses elementos, torna-se importante ampliar algumas
dessas discussões, como, por exemplo, os processos de construção da maternagem 74
de mães adotivas e seus vínculos afetivos.
Neste sentido, este trabalho se propõe a discutir as dificuldades do processo
de separação na relação mãe-bebê em um caso de adoção de crianças gêmeas.

Os desejos do adotante e os desdobramentos na maternagem adotiva


Há inúmeros questionamentos sobre os motivos que levam as pessoas a
buscar a adoção e, um desses elementos origina-se da infertilidade da mulher ou
mesmo de ambos (homens e mulheres), colocando-os a vivenciar inúmeros
sentimentos até decidirem pela adoção. Ladvocat (2002) acrescenta a necessidade
de os pais viverem o luto da infertilidade, para poder pensar futuramente novas
possibilidades, entre elas, a adoção. “A esterilidade biológica pode representar a
‘morte do desejo’ e pode empurrar o casal para o caminho da ‘necessidade’ de um
filho” (Dell’antonio, 2002, p. 236 citado por Ladvocat, 2002, p. 24).
Diante dos conflitos existentes nos pais, decorrentes dos problemas da
esterilidade, uma das fantasias presentes e que mobiliza persecutoriedade é a
fantasia de que roubaram a criança e o medo de perdê-la. Para Oliveira, Souto e Silva
Junior (2017), pensar o lugar da mãe e da criança dentro do campo do desejo é
decisório para algumas compreensões psíquicas, pois, para construir o vínculo com a
criança adotada, é importante destacar o desejo de ser mãe e o espaço psíquico
destinado para a entrada de um filho, caracterizando algo muito singular.
É necessário questionar se os pais que pretendem adotar desejam uma criança
ou têm necessidade de ter uma criança, visto que são entendidos como sinônimos.
Entretanto, há diferenças significativas, pois, a necessidade brota de uma falta e
busca satisfação plena, já o desejo parte de uma liberdade no processo de escolha e
da entrada em um novo relacionamento. “Se a mãe deseja o filho, acolhe suas

74
A maternidade se refere a um laço de sangue entre mãe e filho, ao passo que a maternagem está ligada à
relação afetiva, ao vínculo que se compõe entre mãe e filho e suas relações com o cuidado e o acolhimento
(Gradvohl, Osis, & Makuch, 2014).

1024
angústias, mas se tem a necessidade do filho, ela procura nele, inconscientemente, a
satisfação de suas próprias necessidades” (Villa, 2001, citado por Ladvocat, 2002, p.
35, grifo do autor).
Há uma gama de motivos que impulsiona a busca por filhos adotivos, além da
infertilidade. Outro propósito a destacar é a/o solidariedade/altruísmo, os quais não
são suficientes para o desenvolvimento do vínculo parental, uma vez que as diversas
emoções que são vividas nesta relação permanecem por um longo período de tempo,
o que necessita de condições psíquicas para vivenciá-las. Deve aparecer o desejo de
ter e estar com esse filho, pois a relação não se sustenta apenas em querer o bem
para ele, mas para que esta criança tenha um lugar nesta família (Otuka, Scorsolini-
Comin, & Santos, 2013).
A parentalidade75 é mais ampla e requer outros elementos psíquicos para se
estruturar. A esse respeito, Morelli, Scorsolini-Comin e Santeiro (2015) consideram
que ela está vinculada ao processo de adaptação dos pais com o filho adotivo, nesta
relação surgem conteúdos associados aos processos inconscientes desses pais
adotivos, como as fantasias, os lutos e as idealizações. Percebe-se a necessidade de
construção de um espaço no imaginário desses pais para que esse novo integrante
possa “nascer” com sua chegada a essa família nova, e aos poucos ir se identificando
no ambiente e ampliando o sentimento de pertencimento a este meio.
Nas condições relacionadas à maternagem em mães adotivas, vale destacar,
primeiramente, que as experiências emocionais em mulheres que serão mães, segundo
De Felice (2006), são contornadas pelo modo como a mãe internalizada atuará dentro
delas, trazendo, assim, as suas expressões da maternidade, as quais compõem as
relações mães-filhos diante dos fatores inconscientes e originários do psiquismo
materno. A história de vida da mãe pode impactar o desenvolvimento da condição de
maternar, pois os seus aspectos psíquicos, oriundos de sua história como filha,
precisam ter sido reprimidos e/ou elaborados para que não estraguem as
possibilidades de vivência do novo e do diferente, sendo importante o movimento de
ressignificar os conteúdos passados para que estes não fiquem se atualizando no
desenvolvimento presente e rompendo com as possibilidades de contar uma nova

75
Quanto à homossexualidade e ao lugar de pai e mãe, considerando as funções parentais, é possível
pensar nas figuras parentais, não necessariamente se tratando de diferenças sexuais, desde que esse casal
homossexual não tenha expressões vinculadas à anulação do sexo oposto (Hamad, 2002).

1025
história (Rotenberg, 2018). “No entanto, quando a mãe faz da criança um objeto
exclusivo de seu desejo, ou o bebê se torna um objeto de necessidade materna a
serem satisfeitas, a criança permanece como um ‘lactente prolongado’, atado a uma
mãe infantilizante e ansiógena” (De Felice, 2006, p. 136).
É importante destacar a ambivalência como um aspecto vivido na maternidade,
algo inerente a esse momento, coexistindo experiências de amor e ódio
simultaneamente na relação com seus filhos, desencadeando um sentimento de culpa
materno. Há sentimentos de raiva e ressentimento da mãe em relação ao filho pois,
muitas vezes, existe um conflito de necessidades, os da criança e os da própria mãe,
o que defronta com as exigências e expectativas sociais sobre a maternidade.
Winnicott (1956/2000) traz um conceito importante sobre as condições
necessárias para a função de maternar, a qual ele nomeou como “mãe
suficientemente boa”. Primeiramente, é importante considerar que a “mãe
suficientemente boa” é aquela que irá compreender as demandas do seu bebê, não
apenas as físicas como também as suas necessidades psíquicas. Esta junção
possibilita à mãe a condição de maternagem. Este conceito está ligado àquela mãe
que permite a vivência onipotente do bebê, garantindo esta experiência por diversas
vezes. Brota-se um self verdadeiro a partir do olhar inteiro desta mãe ao bebê.
(Winnicott, 1960/1983).
Esse autor se propôs a verificar as alterações que ocorrem na mulher quando
está gestando um bebê ou logo depois que o teve. Inicialmente, ocorrem basicamente
mudanças fisiológicas, a considerar em primeiro lugar o fato de sustentar o bebê em
seu útero. “De várias formas ela é encorajada por seu próprio corpo a ficar interessada
em si própria. A mãe transfere algo de seu interesse em si própria para o bebê que
está crescendo dentro dela” (Winnicott, 1960/1983, p. 52).
Por meio da identificação com este bebê, pode se desenvolver uma
sensibilidade maior quanto às necessidades dele, denominada de identificação
projetiva, a qual permanece por um determinado tempo após o parto, perdendo aos
poucos seu valor. Winnicott (1956/2000) denominou essa experiência de
“preocupação materna primária”, que se apresenta como algo significativo neste
processo de construção da maternagem, chegando a ser uma doença “saudável” em
que a mãe e o bebê se misturam em prol do desenvolvimento dele, processo

1026
denominado de dependência absoluta76. Em um segundo momento, essa mãe sai
desse processo de adoecimento para o outro estágio do desenvolvimento, ou seja, o
estágio de dependência relativa.
Como a criança supre uma falta materna ao nascer, fruto do narcisismo desta
mãe, é necessária uma atenção para que este bebê possa se tornar um indivíduo, não
sendo carregado pela função que a mãe quer que ele desempenhe; ao mesmo tempo
esse bebê imprime uma identidade nesta mãe. Ambos precisam renunciar ao
investimento narcísico que fazem um no outro, provedor da relação mãe-bebê.
Ressalta-se a necessidade de separação após o quarto mês de vida (Marson, 2008).
A função materna está relacionada à identificação da mãe com o bebê, mas
também com a condição desta enxergá-lo como outro, ter a possibilidade de vivenciar
a presença e a ausência, como também alienação e separação. Diante dos cuidados
necessários da mãe com o bebê, pode-se destacar a importância e a necessidade de
vivência do holding e do handling no favorecimento do desenvolvimento psíquico do
bebê e do vínculo mãe-bebê.

Winnicott (1945/1982) descreve holding, handling e apresentação de mundo como


fenômenos básicos de uma maternagem suficientemente boa, favorecedora da
constituição do self do bebê. O holding é, neste artigo, colocado como a sustentação
física e psicológica nos braços e na subjetividade materna, o que favorece a
constituição do bebê como unidade; o handling é descrito como o manuseio corporal
da criança nas atividades de troca, banho, favorecedor da personalização ou
localização do self num corpo próprio; a apresentação de mundo seria o fenômeno
responsável pela possibilidade de o bebê criar o mundo a partir de sua apresentação
em pequenas doses, o que favoreceria a experiência do self num tempo e espaço
compartilhados (Medeiros, & Aiello-Vaisberg, 2014, p. 52).

Esta identificação é que promove a proteção e o acolhimento do bebê às suas


necessidades, auxiliando-o no seu desenvolvimento e na capacidade de existir. Assim,
a ‘mãe suficientemente boa’ auxilia na construção do vínculo afetivo entre mãe e bebê.

76 Winnicott (1960/1983) explica que o bebê vivencia uma experiência de dependência absoluta,
na qual ele ainda não percebe a mãe como alguém separado dele, em um segundo momento do
desenvolvimento, ele vai se deparando com uma dependência relativa em que o lactente pode se
deparar com a necessidade de cuidados desta mãe e, aos poucos, pode relacionar este fato aos seus
impulsos pessoais até que chegue à independência relativa, na qual o bebê adquire formas para
alcançar o desenvolvimento de cuidados reais, introjetando-os.

1027
Quando se relaciona à adoção é importante considerar a seguinte reflexão de
Queiroz (2018):
Sabemos que o processo de filiação é muito complexo. Ter um filho não se resume ao
fato de procriar, de engravidar. É preciso considerar dois desejos, que não são a
mesma coisa: o de engravidar e o de ter um filho. Eles são distintos. Como nos ensinou
Dolto (1998), toda criança além de ser concebida, deve ser adotada pelos seus pais.
Isso significa dizer que a filiação não é apenas uma questão de corpo ou de filiação
biológica. Cada sociedade tem seu próprio sistema de parentalidade e de filiação, e
trata-se de um sistema de lugares e de posições, de relações ordenadas pela lei (p.
139).

De acordo com os pensamentos winnicotianos, pode-se considerar que, no


momento de dependência absoluta, é necessária a vivência da preocupação materna
primária, que não é alcançada pela mãe adotiva, como acontece com a mãe biológica,
mas há a possibilidade desta mãe adotiva se aproximar desta experiência baseada
em algumas condições. Tais condições dizem respeito, primeiramente, ao fenômeno
da gravidez, o qual esta mãe não experienciará fisicamente, porém mesmo sem
passar pela gestação ela pode viver um estado temporário de preocupação exclusiva,
identificando-se com o bebê sonhado dentro dela (Gomes, 2006; Winnicott,
1956/2000).
Os pais adotivos podem usufruir de suas sensibilidades, valendo-se de um
holding adequado e, assim, experienciar contatos muito profundos com a criança
adotada, aproximando-se de um contato mais íntimo e permitindo que esta criança se
sinta segura, acolhida e pertencente a esta família, possibilitando o desenvolvimento
emocional da criança.

Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa77, baseada em um estudo de caso com
uma mãe adotiva, que estava no momento da pesquisa com duas filhas gêmeas de 3
anos e 3 meses, sendo adotadas aos 9 meses de idade. Os instrumentos utilizados

77
Este trabalho é um recorte de uma pesquisa de mestrado, submetida ao Comitê de ética sob o número
de Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 76916617.2.0000.5401 e aprovação mediante o
parecer número 2.546.955.

1028
para compor o estudo de caso foram: o procedimento do Desenho-Estória com Tema
e a entrevista semiestruturada.
Utilizou-se de duas consignas para o desenvolvimento deste procedimento,
sendo a primeira: “Uma mãe cuidando de um bebê” (neste momento a mãe realiza o
desenho, após tal atividade é solicitado que ela conte uma estória do desenho – sendo
possível realizar o inquérito por parte do pesquisador, com o propósito de ampliar as
compreensões – e, por fim, dê um título para a estória.); em seguida, há a solicitação
da segunda consigna: “Você cuidando do bebê que você adotou”, seguindo os
mesmos passos citados na primeira consigna.
Após a realização do procedimento do D-E com Tema foi realizada uma
entrevista semiestruturada a fim de complementar os dados sobre a relação mãe-
bebê. Utilizou-se do método psicanalítico e da narrativa psicanalítica para compor a
descrição e análise dos dados.

Resultados

Apresentação do caso
Sônia78, 50 anos, é casada, ficou na fila de adoção por 4 anos, trabalha com o
marido (53 anos) no próprio negócio. Seu período de trabalho antes da chegada das
filhas era de carga horária completa, com oito horas diárias e, após a adoção, reduziu
sua carga horária para o período da tarde, em virtude da rotina que impôs a todos na
casa em virtude da adoção.
Sônia estava com muito receio de ser identificada, visto que foi orientada
inicialmente a sair de todas as suas redes sociais e de qualquer tipo de exposição em
razão da localidade dos genitores das filhas e do enfretamento quanto à destituição
do poder familiar.
No decorrer da entrevista, houve o desejo de apresentar as crianças para a
pesquisadora, relatando que já havia passado da hora delas acordarem e, a partir de
então, não foi possível construir novos questionamentos, pois as crianças
preencheram todo o espaço, sendo trocadas e alimentadas. Havia uma necessidade
de cumprimento da rotina.

78 Nome fictício.

1029
Uma das crianças tinha dificuldade com a fala, não tendo nenhuma
comunicação verbal, apenas resmungos. Para suprir as necessidades desta filha, a
mãe sugeria alguns desejos da criança, na tentativa de identificá-los.

Desenhos-Estória com Tema

Figura 1 - Primeiro desenho de Sônia


no D-E com Tema

Figura 2 - Segundo desenho de Sônia


no D-E com Tema

1030
A seguir, transcreve-se a estória da Figura 1, referente à primeira consigna:
“Uma mãe cuidando de um bebê”.
Título: Corpo a Corpo
Estória: Ah eu acho que as crianças gostam muito de colo, vixe, até então eu estou assim toda dolorida
[risos], e eu acho que o contato corpo a corpo assim mãe e filha é muito importante, uma coisa é você
por no carrinho e ficar chacoalhando a criança, outra coisa é você pegar no colo e dar carinho, eu acho
que é isso, acho que mãe não é mãe a distância, mãe tem que ser mãe presente, e o contato de mãe e
filho corpo a corpo acho que dá muita segurança pra criança e demonstra também que esse contato vai
trazer muito contato pra ela, segurança, equilíbrio, disciplina, alguém que ela possa ter confiança, mesmo
que nos momentos que você tem que corrigir, que você tem que ensinar, mas isso mostra que com o
calor do próprio corpo a criança sinta que ali que tá, que ela pode depositar assim, a vida dela, confiança
que é uma pessoa que está ali não só presente de corpo mas assim, de contato mesmo, de sangue.
(Como que você acha que esse bebezinho está se sentindo?) Amado [risos], feliz, eu até desenhei ele
dormindo sorrindo e, a mãe eu acho que está com tanto sono também que acaba entrando no mesmo
esquema. (Como que você acha que esta mãe está se sentindo, nesse lugar de cuidar dessa criança,
desse bebê?) Ah, ela está se sentindo recompensada, ela vê que a criança está respondendo aquilo que
ela está querendo propor pra ela, está se sentindo feliz também, muito feliz. (Como que você colocaria
um título pra essa estória?) Um título, é... eu colocaria: “corpo a corpo”.

A estória da Figura 2, transcrita a seguir, refere-se à segunda consigna: “Você


cuidando do bebê que você adotou”.

el
ria... sei lá, eu acho que na hora de cuidar... cuidar mesmo, trocar, dar banho, dar comida... até brincar, é uma forma de cuidar
sto de fazer, que é cuidar, eu gosto de ver bem. (Você gosta?) Gosto! E alimentação é uma coisa assim, que pesa bastante,
e de crescimento e a gente percebe quando a gente adotou elas eram bem bochechudas aí vai crescendo e vai emagrecendo,
s assim, bem e quando elas estão comendo é um sinal de que estão bem também, porque você pega as vezes que estão
ah, você quer morrer, porque já está doente e não quer comer. É perigoso, mas elas são tão fortes que mesmo doente elas
Nossa, come que, nossa, todo mundo fala “Sônia e aí?”, aí eu falo “não, só dessa última vez que não quiseram comer porque
na garganta, então comiam e vomitavam” porque dava aquela sensação de tosse... (As duas?) não... foi uma. Pegou uma
cou bastante o pulmão quase pneumonia, mas é assim, uma ficou doente na outra semana a outra fica, e a outra não ficou
ma gripe mais levezinha, melhorou mas de repente deu uma recaída de uma vez, aí que não comia nada mesmo, nossa e eu
que precisa comer, precisa estar bem, e a fome é um sinal que o organismo está bem, então eu acho assim, a parte de
e que mostra que você está cuidando delas e eu faço elas não comerem besteira, de ter uma saúde, ter uma alimentação
ado que eu estou vendo que muitas mães até hoje não tem, dá muita besteiras pros filhos comerem e é uma coisa que todo
nia você não dá isso?” “não” “Você não dá chocolate?” “não” “Não dá refrigerantes?” “não” “Não dá doce?” “não” “O que suas
arroz, feijão, fruta, legumes, carne, peixe, água, suco” e estão fortes né, se você ver o tamanho delas... Alimentação é uma
meu marido, a gente preza assim pra caramba, porque se elas tiverem essa coisa de comer saudavelmente na infância, depois
er problemas, pode até depois mais tarde querer comer as besteiras da vida, mas não estão sendo criadas em cima de lanche
s assim, a gente dificilmente, uma vez ou outra leva pra não falar que não foi, pra não ser uma criança também... né, é tudo
, eu que faço almoço e janta, eu que faço tudo, então a gente cuida muito dessa parte da alimentação delas, e é por isso que
bem e eu acho que é isso.(Como que você acha que essa criança está se sentindo? Essa bebê aí no seu desenho.) Com a

1031
ome (risos) (E essa mãe?) Essa mãe está feliz de estar vendo ela com fome. Pra poder nutrir, pra poder alimentar. (E como
o?) O título? “Cuidar é Saudável”.

Síntese da entrevista
Sônia e o marido buscaram a adoção em razão da infertilidade de ambos e de
tentativas frustradas de tratamentos e fertilizações. A motivação se deu também por
perceberem que estava se aproximando da velhice e o querer ser mãe, pois tanto ela
quanto o marido gostam muito de crianças.
Levou 4 meses para estarem cadastrados no fórum. Esperaram um ano e dois
meses, até que o fórum entrou em contato novamente para verificar o interesse do casal
na adoção e analisar novamente o perfil de interesse. Reavaliaram o perfil que havia no
sistema, no qual estava descrito que seus interesses eram de uma menina com até 4
anos de idade, a qual não era a realidade das crianças que estavam para adoção.
Diante desta situação, Sônia aceitou “abrir” o cadastro, havendo a possibilidade de
adoção de grupo de irmãos, crianças com deficiência etc. Contudo, depois de 15 dias,
os fóruns de diversas cidades começaram a telefonar sobre crianças disponíveis para
adoção em face do novo perfil, porém eram de cidades distantes e precisariam se
deslocar e abdicar do trabalho para período, surgiram duas crianças (gêmeas), na
mesma cidade de Sônia, então a equipe técnica entrou em contato, questionou o
interesse do casal e este aceitou.
Para conhecer melhor o campo da adoção, Sônia, por intermédio de um
movimento religioso, realizou um trabalho em um bairro carente de sua cidade. Nessa
atividade pôde compreender todo o envolvimento do Conselho Tutelar, as retiradas
de crianças de seus lares, os sofrimentos gerados tanto nos pais quanto nas crianças.
O objetivo deste grupo era realizar tentativas de resgatar o ambiente familiar para que
as crianças não fossem retiradas de seus pais.
Com o aceite na adoção das meninas surgiram as dificuldades na adaptação em
relação às rotinas, ao dormir, entre outras. Sônia considera ser uma experiência muito
parecida com o nascimento biológico, pois não há “manual de instrução”. Apresenta
dedicação exclusiva às filhas, dizendo que “tudo gira em torno delas” e nutre a ideia
de que salvou duas vidas, além de sentir muito prazer na maternidade. Sônia não
colocou as filhas na escola, relatando sempre desejar cuidar de seus filhos, além de
não ter “coragem, a criança não sabe nem falar, e eu vou dar pra outra pessoa cuidar

1032
né?”. Sônia leva as filhas no trabalho e lá elas dormem um período significativo, após
acordarem, “volto à função de mãe... sendo tudo maravilhoso”. A adaptação inicial
ocorreu de forma lenta, pois precisaram conhecê-las, e para isso criou uma rotina para
segurança delas e para si mesma, tendo horário para todas as atividades. Sônia trocou
os nomes das filhas, a fim de preservar a identidade de todos.

Discussão
Sônia carrega consigo elementos voltados à persecutoriedade vivida ao longo
dos processos de adoção, desde seu trabalho voluntário até os dias atuais. Ao realizar
o trabalho voluntário, Sônia se identifica com as mães dos bebês que são destituídos
do poder familiar. Neste sentido, ambas experienciavam a “perda” do filho, além de
reparar suas fantasias de roubos, visto que a adoção é possível a partir da destituição
do poder familiar.
O desejo pela maternidade foi sendo apresentado na entrevista e nos desenhos,
porém notou-se certa fusão neste movimento, como observado no primeiro desenho
“corpo a corpo”, no qual se observa mãe e filha desenhadas iguais, sendo a filha uma
miniatura da mãe, ambas embaladas em um sono, conforme também foi visto na
estória: “eu até desenhei ele dormindo sorrindo e, a mãe eu acho que está com tanto
sono também que acaba entrando no mesmo esquema”.
Destaca-se, aqui, o ideal de mãe que é construído no imaginário desta mulher,
dificultando as desconstruções deste lugar, para que possa, com isso, enxergar o
bebê como um “outro”, de forma a compreender as reais necessidades dele. No
segundo desenho, observou-se o modo como aparece a relação mãe-filha,
apresentando aspectos narcísicos desta mãe, voltada para esse lugar do idealizado,
embalada em seus próprios sonhos e desejos, além de permanecer na fusão com a
filha. Contudo, uma mãe voltada a si mesma e uma criança sedenta de fome,
assustada e com certa distância psíquica desta mãe.
É relevante apontar o quanto essa mãe está vinculada aos cuidados físicos de
nutrição, sendo necessário manter as filhas saudáveis, como garantia de cuidados
efetivos e reais, tornando-a boa mãe. Isso faz olhar para esse lugar do desejo, que
por vezes a tem deixado voltada para seus aspectos narcísicos, os quais a distanciam
da promoção de outros tipos de cuidados, como os de ordem mais subjetiva, que
poderão amparar as necessidades psíquicas deste bebê fruto de um abandono.

1033
Sônia vivenciou a experiência de espera para a adoção como um processo
gestacional, com o interesse de tornar o mais próximo possível do natural. Isso
possibilitou experimentar a condição de preocupação materna primária, entretanto,
pôde-se notar que aspectos narcísicos acabaram se sobrepondo em determinados
momentos, impossibilitando a vivência integral deste importante momento do
desenvolvimento, o qual favorece a vinculação mãe-bebê. Neste sentido, encontra-se
uma dificuldade materna em se desprender das crianças para resgatar sua vida e
permitir o desenvolvimento individualizado delas, que vivem integralmente com a mãe,
por meio de uma “dedicação exclusiva” a elas. Isso possibilitou pensar sobre a
dificuldade acentuada da fala de uma das filhas e a permissão para o desenvolvimento
e crescimento delas, o que impulsionaria o desenvolvimento das condições maternas
de Sônia e o enfretamento da realidade da adoção, com as idas à escola, a outros
grupos e em relação às próprias filhas.
Sônia, assim como todas as mães, carrega consigo sentimentos onipotentes, o
que intensifica seu ideal de ego, como o fato de ter salvado duas vidas e a
necessidade constante de as filhas “reconhecerem-na” por meio do sentir-se amada
por elas. Além de um desejo de romper com a história pregressa das filhas, a partir
de uma troca de nomes, o que na fantasia, aproxima de um nascimento por meio de
um parto natural e de um rompimento com a experiência de que suas filhas tiveram
uma mãe biológica.

Considerações finais
Os processos de desenvolvimento emocional são afetados por diversos
conteúdos inconscientes da dupla mãe-bebê. Neste sentido, pensar a adoção, implica
a elaboração dos lutos necessários de serem vividos pelo pretendente a adoção, além
de pensar em uma criança fruto de um abandono, ou de diversos abandonos, os quais
levam essa experiência originária em seu processo de vinculação. Diante disso, há
muitas outras experiências que perpassam a maternidade, como as revivências do
lugar de filha, as quais emergem “buracos psíquicos” muitas vezes desconhecidos e
que resultam nas dificuldades de desenvolvimento saudável das futuras relações com
seus filhos. No caso apresentado, a simbiose/fusão mãe-bebê tem sido um campo
significativo de análise, pois tem apresentado o desenvolvimento de sintomas e de
regressão do desenvolvimento emocional da dupla mãe-bebê, ou seja, é necessário

1034
compreender tais elementos para que se possa promover o continuar a ser dos
indivíduos, a fim de proporcionar um desenvolvimento/crescimento saudável desta
dupla.

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Winnicott, O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do
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1036
96- VIDEOGAME E SUBJETIVIDADE: SEUS SIGNIFICADOS NA ATUALIDADE

Pamella Sanchez Mello de Pinho 79


Drª. Thalita Lacerda Nobre80

Resumo: Os modos de interação social sofreram alterações ao longo dos tempos,


modificando a forma como as gerações brincam e apreendem as regras de inserção
nos contextos sociais. O vídeo game, modo virtual de interação social, mostra-se uma
constante neste âmbito, presente em diversas plataformas, interferindo na percepção
do sujeito sobre si e sobre o mundo que o cerca. Por meio de revisão de literatura,
buscou-se verificar a presença do vídeo game na sociedade, os diversos aspectos
abarcados e como o jovem adulto comunica-se neste meio. Compreendeu-se que o
vídeo game e outros aparatos podem auxiliar na ressignificação e inserção no meio
social. Faz-se necessário maior investigação, a fim de compreender melhor a posição
do vídeo game nesta dinâmica e seu papel como integrador social.

Palavras-chave: vídeo game; subjetividade; cultura digital; socialização.

79
Graduada em Psicologia, pela Universidade Paulista, Pós-Graduada em Neurociência e Psicologia
Aplicada, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestranda em Psicologia e Políticas Públicas, na
Universidade Católica de Santos. Email: pamellapinho@outlook.com
80
Pós doutoranda em Psicologia clínica pela PUC-SP, docente na Universidade Católica de Santos. Email:
thalita.nobre@unisantos.br
1037
1 INTRODUÇÃO

Os videogames são bastante utilizados como forma de entretenimento nos


lares e em casas de jogos. O que antes poderia ser considerado brinquedo ou artigo
relativamente infantil é considerado, atualmente, fonte de entretenimento para as mais
diversas idades, tendo jogadores de quase todas as idades.

A característica distintiva mais essencial dos videogames é que eles


são interativos; os jogadores não podem se render passivamente ao
enredo de um jogo. Em vez disso, os videogames são projetados para
que os jogadores se envolvam ativamente com seus sistemas e para
que esses sistemas, por sua vez, reajam ao comportamento agentivo
do jogador. [...] Esses jogos podem ser jogados de forma cooperativa
ou competitiva, sozinhos, com outros jogadores fisicamente presentes,
ou com milhares de outros jogadores online, e são jogados em vários
dispositivos a partir de consoles (por exemplo, Nintendo Wii,
Playstation) até computadores para telefones celulares. (GRANIC;
LOBEL; ENGELS, 2014, p. 67, tradução livre)81

Por estar tão presente, muitas pesquisas são realizadas para compreender os
efeitos que tais tecnologias podem ter sobre o ser humano, principalmente sobre
aqueles que se encontram em fase de desenvolvimento.
Uma vez inserido no cotidiano, os efeitos podem ser diversos e, assim como a
maioria dos equipamentos tecnológicos, pode trazer malefícios e benefícios. E,
estando ao alcance de tantas pessoas, se faz necessário compreender os efeitos que
tais equipamentos proporcionam, bem como entender e buscar formas produtivas e
proveitosas de se utilizar estes recursos. Existem diversos artigos que enaltecem a
potencialidade do videogame como alternativa para o melhoramento de diversas
cognições, tais como atenção, memória de trabalho e longo-prazo e cognições
espaciais (GREEN; BAVALIER, 2012; FENG, SPENCE, 2014).
Como destacado anteriormente, o videogame encontra-se inserido no cotidiano
da população, sendo utilizado como fonte de entretenimento. Porém, com o uso do

81
The most essential distinguishing feature of video games is that they are interactive; players cannot passively
surrender to a game’s storyline. Instead, video games are designed for players to actively engage with their
systems and for these systems to, in turn, react to players’ agentive behaviors. […] These games can be played
cooperatively or competitively, alone, with other physically present players, or with thousands of other online
players, and they are played on various devices from consoles (e.g., Nintendo Wii, Playstation) to computers to
cell phones.

1038
aparelho, é possível questionar se há efeitos e quais seriam estes. Portanto,
pesquisas vêm sendo realizadas, investigando os diferentes efeitos e em quais áreas
os mesmos podem ser observados, principalmente na saúde mental, tendo em vista
a amálgama entre mundo “real” e virtual. Este ambiente passa a ser acessível na
medida em que as novas tecnologias são apresentadas e disponibilizadas para a
sociedade. Porém, é necessário ressaltar que o mundo virtual não é menos real
apenas por não ser palpável, afinal, as interações e ações ocorridas nele tem
consequências tão reais quanto fora dele.
Assim sendo, o presente trabalho busca, por meio de revisão bibliográfica,
apontar alguns dos benefícios do vídeo game e sua relação com a sociedade atual e
o contexto em que ela está entreposta.

3 DESENVOLVIMENTO DO TEMA

A sociedade, atualmente, encontra-se cercada de tecnologia. Esta, por sua vez,


está cada vez mais inserida no cotidiano, de modo a automatizar e agilizar tarefas
que, outrora, tomariam mais tempo. Dentro dessa cultura em constante
transformação, pensa-se os impactos que a tecnologia poderia ter sobre a
subjetividade do sujeito, que se constitui através da dialética entre seu mundo interno
e o contexto sociocultural em que está envolvido.
Segundo Kallas (2016), a tecnologia auxilia estas mudanças, de modo que
conceitos que antes estavam consolidados estão se modificando.

O conceito de intimidade, de espaço público e privado mudou. Antes,


protegidos pelo entre paredes de nosso quarto, líamos, escrevíamos
nossos diários, nossos poemas e os trancávamos no espaço mais
protegido do olhar alheio, como uma preciosidade que só a nós
pertencia. O espaço privado era bem diferenciado do espaço público.
(KALLAS, 2016, p. 55)

Assim sendo, entende-se que as delimitações entre privado e público e, por


consequência, o interno e o externo estão embaralhados. Há também uma constante
demanda por exposição, de mostrar o que se vive e produz. Afinal, a comunicação

1039
está mais acessível e imediata, permitindo que o sujeito seja alcançado onde quer que
ele esteja, a qualquer momento, o que levou a mudar a forma como o indivíduo se
comunica e percebe o outro dentro de sua realidade.
Com o crescimento das redes sociais, tornou-se frequente o compartilhamento
de informações. E isto não se dá através, apenas, de palavras, mas por meio de
imagens e vídeos, criando-se uma sociedade virtual que, direcionada pela sensação
de liberdade, exprime desmedidamente suas convicções e essa, por sua vez, é
sustentada por incontáveis novidades e atualizações. Por ser um meio estimulante e
através do anonimato e do espaço virtual, as fantasias podem ser experienciadas com
maior facilidade e aceitação sem necessariamente arcar com as responsabilidades
implicantes em determinadas situações. Afinal, a qualquer momento, quando
desagradado ou contrariado, o sujeito pode desvincular-se do aparelho que está
utilizando, seguindo com sua vida (KALLAS, 2016, p. 56).
Outro ponto a ser considerado é a retribuição que o mundo virtual propicia aos
seus usuários. Uma vez que se queira obter uma informação, poucos cliques ou
gestos tornam realidade aquilo que se deseja saber, trazendo com riqueza de detalhes
informações acerca do que foi pesquisado. Tais recompensas podem se tornar
irresistíveis para algumas pessoas, levando-as a abusar do uso desse mundo virtual.
Segundo Souza e Salgado (2008), é através da brincadeira que a criança
assimila regras e valores que o contexto do sócio-histórico em que está inserido, de
modo a carregar estes aprendizados ao longo de sua existência. Não obstante, por
mais que estes valores sejam ressignificados e modificados conforme o sujeito
experiencia o mundo, tais códigos de conduta e respeito para com a vez e opinião do
outro são apresentados e vivenciados através, também, da brincadeira.
Kallas (2016) torna a apontar como a vida virtual e a vida real mesclam-se, de
modo a levar as pessoas a mergulharem na primeira e transportarem para a segunda,
usando o exemplo do jogo “Second Life”82, onde as pessoas vivem vidas virtuais,
casando-se, comprando bens, trabalhando, entre outros. Ela questiona como a
subjetividade do indivíduo seria afetada, como ela se formaria diante das
transformações psicossociais e sócio-históricas. Cabe ressaltar que o jogo “Second
Life”, lançado em 2003, tinha uma representação diferente. A tecnologia não havia
alcançado a maior parte da população, ter equipamentos como computadores, vídeo

82
“Segunda Vida”, em tradução livre
1040
games e smartphones exigia alto poder aquisitivo, de modo que o jogo, por si só,
representava um outro universo destacado da realidade do jogador, pois havia uma
distância maior entre as interações feitas online e no mundo não virtual. Porém, o jogo
citado anteriormente caiu em desuso, pois o universo virtual não carecia mais de um
jogo em específico, pois se encontra ao alcance de muitos e com maior imersão,
graças à popularização da internet e à maior acessibilidade à celulares, computadores
etc.
Na obra “Psicologia de grupo e análise do ego”, Freud (1921) ressalta que a
experiencia subjetiva do sujeito tem como referência o outro, a linguagem e a
determinação simbólica dela. Isto também pode ser vislumbrado na obra Projeto para
uma psicologia científica (1950/1895), onde o autor frisa como, desde o início de sua
vida, o sujeito necessita e é amparado pelo outro. Em complemento a isso, Kallas
explica como a psicanálise percebe, do ponto de vista psicológico, a divisão entre
coletivo e individual

Não existe separação entre psicologia individual e coletiva e para a


psicanálise indivíduo e sociedade estão intimamente imbricados. O
inconsciente não está no registro do indivíduo, mas para além do
mesmo, incluindo o campo histórico e social (Birman, 04 jun. 2014).
(KALLAS, 2016, p. 57)

Portanto, a subjetividade é construída através da relação do sujeito com o outro,


obtendo-a através da linguagem que dá significado aos símbolos inseridos na
sociedade. Cada significado é interpretado e compreendido através do viés particular
de cada sujeito, que se modifica conforme sua vivência. Isso não seria possível sem
considerar o meio e a cultura em que esse sujeito está inserido. O outro é tão
importante quanto o sujeito para a construção da subjetividade deste.
Assim, quando se joga vídeo game, o jogador recebe informações sensoriais e
as processa, de modo a formular uma reação adequada para o estímulo recebido,
seja ele auditivo, visual ou tátil, proveniente do próprio aparelho (vibração de
controles). Ou seja, a informação é dotada de valor e desígnio, passando a ser
conhecimento, uma vez que passa a ter um contexto que embasa uma decisão.
Quanto mais necessária for a informação para que uma determinada decisão seja

1041
tomada, maior o envolvimento humano para lidar com tais dados e mais importantes
os mesmos se tornam (DA SILVA et al., 2011).
Desta forma, faz-se necessário ponderar sobre a individualidade deste mesmo
sujeito, que se encontra inserido neste contexto social. Afinal, é possível considerar a
mescla que a realidade virtual proporciona para este indivíduo. Dunker reflete sobre o
assunto, utilizando-se de um jogo virtual que exige interação com o mundo real.

[...] Além de uma nova narrativa há uma mudança na experiência de


realidade, primeiro interativa, depois compartilhada e finalmente capaz
de misturar o virtual e o real em plena luz do dia. O elemento novo aqui
não acontece sem a subtração de um ingrediente fundamental: o
conflito real. Não tenho mais de me retirar para uma vida interior onde
serei livre. Posso reduzir a espessura do conflito a uma série de
acumulações e me tornar, assim, o senhor de meu próprio universo.
Os monstros que tenho de enfrentar são apenas meus monstros. A
divisão muda de forma: agora ela se dá entre a extensão do mundo
em que você quer viver e o tamanho do eu que você pode pagar.

Portanto, percebe-se que a sociedade já vem, há algum tempo, modificando a


sua forma de perceber a individualidade, ressaltando-se que ela continua fortalecida
(senão mais evidente) diante dos novos aspectos que as últimas duas décadas têm
trazido. A tecnologia permeia cada vez mais as distintas camadas sociais e sendo,
neste ponto de vista, muito democrática, como citado anteriormente por Kallas. De
fato, os aparatos mais avançados continuam por ser mais acessíveis para aqueles
com maior poder aquisitivo, mas não se pode esquecer que as camadas mais pobres
também conseguem usufruir de tecnologias que antes não consideravam possíveis.
A subjetividade pode ser notada como fluida, pois é permeada pela tecnologia
e pela constante realidade, onde as informações e novidades são constantemente
impostas, uma vez que se reconhece a dependência dos mais diversos aparelhos
eletrônicos. A sociedade exige que o indivíduo esteja constantemente com pelo
menos um aparelho (como, por exemplo, o celular) para que este esteja sempre ao
alcance do outro, para resolver questões do trabalho ou conversas informais. Este
mesmo aparelho passa então a servir também para o entretenimento (como Dunker
usa como exemplo). Logo, realidade, virtual, trabalho e lazer misturam-se, rompendo

1042
com barreiras que antes determinavam como e onde deveriam ocorrer ou destinar o
tempo para cada atividade. A modernidade tornou-se espontânea e imediata, exigindo
que os indivíduos sejam dinâmicos e sem moldes, agindo conforme a situação e
quando ela se apresenta.

3.1 A socialização e o vídeo game

A sociedade passa constantemente por diversas transformações e, com isso,


as pessoas inseridas nela são afetadas, bem como as relações com os objetos. Estes
tornam-se símbolos ou signos de sua cultura e sociedade naquele momento histórico.
(SOUZA, SALGADO, 2008). Ou seja, em determinado contexto sócio-histórico, os
objetos e situações possuem um determinado significado. No entanto, outras
gerações surgem e a relação com os objetos e seus significados acabam por ter novos
conceitos, cujo sentidos são pertencentes, principalmente, a aquele contexto.
Outro ponto a ser observado é o papel que a brincadeira tem para a criança e
para as outras gerações. As autoras Santos e Barros (p. 8, 2016) ressaltam que, do
ponto de vista psicanalítico, a brincadeira tem caráter e possibilidades simbólicas e
“[...] servem de elo entre a relação do indivíduo com a realidade interior, e, a relação
do indivíduo com a realidade externa ou compartilhada, caracterizando o espaço físico
e psíquico do brincar.”. É através da brincadeira que são aprendidos conceitos, regras
e comportamentos aceitos e considerados necessários para o manejo social.
Atualmente, as brincadeiras estão conectadas em diversas plataformas (vídeo
game, celular, televisão, jogos de carta, revistas, sites na internet, dentre outros),
demandando tempo e estudo por parte daqueles que desejam estar inseridos e
compreenderem a cultura resultante desta diversidade. O desconhecimento desta
cultura, suas nuances e dispositivos, pode levar a exclusão social e não
reconhecimento diante dos pares. Consequentemente, os signos adquirem
significados diferentes de acordo com o passar das gerações.
Isto vem de encontro com o que Dunker (2016) também afirma sobre o receio,
por parte dos pais, de que seus filhos fiquem circunscritos à casa e que estes mesmos
pais, tendo filhos nesta geração que possui contato cada vez mais cedo com a
tecnologia e com universos fantasiosos coletivos, acabam por tornar-se, cada vez,
mais adolescentes. Afinal, para compreender sobre o que seus filhos falam, é preciso
conhecer contextos e situações específicas de determinado. (DUNKER, 2016)
1043
Através do que o autor expõe, nota-se que o referente jogo requer que haja um
conhecimento prévio acerca do contexto, o que facilita o distanciamento entre as
gerações. Porém, não se pode esquecer que pode haver o efeito contrário: a
aproximação. Assim sendo, ajuda-se o outro a compreender o jogo e, eventualmente,
alcançar um objetivo em comum, fazendo com que ambos ampliem a experiência do
jogo por si só. Ele se passa com o vídeo game e seus jogos. É necessário estar atento
às constantes informações, narrativas e suas interfaces, interligá-las e aplicá-las nos
diversos contextos em que o jogo e a cultura se encontram presentes.
De acordo com Fantin (2015), ao tratar-se de vídeo games, cada indivíduo é
atraído por algum aspecto de algum jogo, logo,

[...] as motivações e interações que certos games propiciam não


despertam igualmente o mesmo interesse a todas as crianças, pois o
processo de apropriação é ativo e ligado a fatores presentes em
determinados contextos que propiciam condições diferenciadas de
consumo. Dessa forma, seus usos se inscrevem em uma cultura
específica que varia conforme o meio social, o gênero, a faixa etária,
etc. [...] sabemos que a relação games-tempo pode ajudar a entender
os diferentes usos que crianças e jovens fazem dos jogos em geral e
dos games e particular. (FANTIN, 2015, p. 18).

Informações e conceitos são distribuídos pelo globo, logo, alcançam diversas


culturas diferentes, cujos valores diferem, bem como o modo de perceber sua
comunidade e o mundo que as cercam. Juntamente com as mudanças de significado,
modificou-se a forma como a sociedade se comunica, cada vez mais digital e
rapidamente. A comunicação tornou-se mais dinâmica, imediatista e impessoal, no
sentido de ocorrer através de uma tela sem, necessariamente, ver a outra pessoa ou
ouvir sua voz, apenas lendo o que escrevem e, algumas vezes, deduzindo a
entonação que foi dada à frase.
No vídeo game, isso não seria diferente. Antes do advento dos aplicativos de
comunicação, existiam jogos online que permitiam a interação entre seus participantes
para os mais diversos fins: negociar equipamentos ou itens, formar grupos para
alcançar um objetivo em comum, sanar dúvidas ou, simplesmente, interagir com
outras pessoas sem ter que locomover-se. É possível ter contato, literalmente, com o

1044
mundo com extrema facilidade, principalmente em Massive Multiplayer Online Games
(MMOGs) que em tradução livre, significa jogos online com milhares jogadores
jogando simultaneamente no mesmo ambiente virtual.
Diante dessas mudanças, passou-se a investigar como se dão as interações
sociais através do vídeo game, como elas afetariam seus jogadores e o que os
estimula a procurar o vídeo game. Szell e Thurner enfatizam este último ponto e
comentam sobre as interações sociais.

A motivação dos jogadores para participar de MMOGs é altamente


heterogênea, variando desde estabelecer amizades, ganhar respeito
e status dentro da sociedade virtual, até a diversão de destruir o
trabalho árduo de outros jogadores. Além das interações econômicas
e sociais, os MMOGs modernos também oferecem o componente de
exploração, por exemplo, os jogadores podem explorar seu ambiente
“físico”, como as características especificas de seu universo, os
detalhes “biológicos” dos monstros espaciais, etc., e compartilhar seus
achados dentro de comunidades especializadas. (SZELL, THURNER,
2010, p. 314, tradução livre)83

Isto vem ao encontro da concepção freudiana sobre a busca do prazer e


evitação do desprazer, onde pode-se pensar que o que leva o indivíduo a jogar vídeo
game é subjetivo, ou seja, particular para cada indivíduo, mas o vídeo game ou jogos
online podem ser catalizadores de impulsos e sentimentos, de modo à propiciar um
espaço “seguro” para se dar vazão à estes conteúdos internos.
De acordo com Grietenmeyer e Mügge (2014), as interações sociais podem ser
assimiladas de maneiras diferentes, onde “o estado interno atual do jogador, por sua
vez, afeta como as interações sociais são percebidas e interpretadas, e esse processo
de decisão determina como o jogador de vídeo game vai se comportar” (p. 579,
tradução livre)84. Portanto, o vídeo game pode potencializar o estado interno do

83
Motivation of players to participate in MMOGs are highly heterogeneous, ranging from
establishing friendships, gain of respect and status within the virtual society, to the fun of destroying the
hard work of other players. Besides economical and social interactions, modern MMOGs also offer a
component of exploration, e.g. players can explore their ‘physical’ environment, such as specific features
of their universe, ‘biological’ details of space-monsters, etc., and share their finding within ‘specialist’
communities.
84
The player’s present internal state in turn affects how social encounters are perceived and interpreted,
and this decision process determines how the video game player will behave
1045
indivíduo e, desta forma, apresentar-se como uma maneira pela qual este pode
descarregar motoramente sua agressividade sem, de fato, ferir alguém, usando
somente seus avatares em jogos de luta, por exemplo. A violência, então, é
extravasada de modo físico através do apertar dos botões do controle, cabendo
somente dentro da tela. Ademais, a atração pelo poder e a necessidade de controle
do sujeito são facilitadores para o uso do vídeo game, pois este proporciona um
universo a parte, onde o jogador manipula e decide o destino de personagens, cidades
e planetas, julgando como lhe aprouver.
Logo, além de possibilitar a exploração de lugares novos, com características
e simbologias únicas, permite que o indivíduo encontre e interaja com outros que
partilham das mesmas preferências, debatendo conceitos, itens e características. Ao
transpor a mesma situação para o mundo não virtual, estas mesmas interações não
seriam tão fáceis, demandando muito mais tempo e esforço. Além disso, quando o
debate deixa de ser prazeroso, tanto o locutor quanto o interlocutor podem
simplesmente “sair” do ambiente virtual em comum ou bloquear o indivíduo que lhe
incomoda. Não é preciso argumentar mais do que a pessoa julga ser necessário.
Nesta nova cultura, onde gerações estão cada vez mais imersas neste âmbito,
questiona-se como estes mesmos indivíduos lidam com a socialização no mundo não
virtual, principalmente quando se é exigido maior traquejo social, principalmente
quando é considerado adulto pela sociedade que o cerca. Juntando todos os aspectos
citados, pretende-se investigar como o vídeo game pode ser um catalisador para a
socialização entre jovens adultos, de modo a levantar dados sobre suas dificuldades
neste âmbito, compreender estas afetam o indivíduo e proporcionar ambiente de
acolhimento e segurança para estas pessoas se expressarem e debaterem.

4 CONCLUSÃO

A pluralidade encontra no vídeo game e suas diversas plataformas requisito de


que o indivíduo também seja plural, no sentido observar, apreender, ressignificar,
interligar e aplicar os conhecimentos e manejos adquiridos em outros contextos que
não estejam, necessariamente, no campo virtual, trazendo para a realidade. Diante
das conexões e variadas plataformas, o indivíduo encontra-se imerso na virtualidade
do mesmo modo que está imerso na realidade, onde, comumente, vê-se exigido a
interligar ambos os ambientes, interagindo e lidando com ambas as realidades
1046
simultaneamente, de modo que as divisões entre elas estão beirando a
imperceptibilidade.
O ser humano, pertencendo a uma coletividade e constantemente imerso nas
mais diversas culturas, possui sua própria particularidade, algo que somente aquele
individuo possui, que é resultado de sua subjetividade, construída em conjunto com a
realidade sociocultural em que está inserido. O indivíduo influencia e é influenciado
pelo contexto em que se encontra.
Assim sendo, percebe-se a necessidade de aprofundar a pesquisa para melhor
entender as modificações que o vídeo game e outras plataformas acarretam acerca
da subjetividade e da percepção do indivíduo de si e dos outros.

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1048
97- OS ASPECTOS PSICOLÓGICOS DE IDOSOS COM DOENÇA PULMONAR
OBSTRUTIVA CRÔNICA (DPOC)

Camila Santos de Assis85


Cinthia Lira Vieira86
Claudia Aranha Gil87

Resumo: O presente estudo teve como objetivo investigar os aspectos psicológicos


de idosos portadores da doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Trata-se de
uma pesquisa qualitativa, realizada com 5 idosos de ambos os sexos, frequentadores
do programa de Reabilitação Cardiorrespiratória de uma Universidade situada na
cidade de São Paulo. Foram utilizados como instrumentos: questionário
sociodemográfico, entrevista semiestruturada, além da técnica projetiva Teste de
Apercepção Temática para Idosos (SAT) e a Escala de Depressão Geriátrica (GDS-
15). Para a análise utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin. Observou-se que os
participantes experienciaram em sua maioria um forte impacto ao receber o
diagnóstico. Com relação à doença expressaram sentimentos negativos como solidão,
angústia, tristeza e culpa por uso de substâncias nocivas. Apresentaram como
principal problemática as limitações para o desenvolvimento de atividades diárias e a
impotência frente à doença e como fator positivo a rede de apoio, principalmente
familiar. A partir da técnica projetiva foram expressos sentimentos como: tristeza,
solidão, abandono, embora tenha surgido também em menor grau aspectos positivos
como esperança, melhoria de saúde e autocuidado. Desse modo, a técnica projetiva
suscitou pensamentos, atitudes e sentimentos que não foram observados inicialmente
por meio da escala e com menos ênfase nas entrevistas.

Palavras-chave: doença pulmonar obstrutiva crônica; envelhecimento; saúde mental;


técnica projetiva.

85
Estudante de Graduação em Psicologia da USJT
86
Estudante de Graduação em Psicologia da USJT
87
Psicóloga Clínica. Professora Doutora, no Programa de Pós Graduação Strictu Sensu em Ciências do
Envelhecimento e Professora no curso de Psicologia na Universidade São Judas Tadeu-USJT
1049
INTRODUÇÃO

O envelhecimento é um fenômeno dinâmico e multifacetado, ou seja, é


constituído de fatores normativos, que são comuns entre os indivíduos (biológicos), e
os não normativos, que estão mais ligados às esferas subjetiva, psicológica, social e
cultural (Neri,2006). Ao que tange os aspectos normativos, há os fatores biológicos,
que ocorrem concomitantes à idade como a diminuição da resiliência biológica, e à
diminuição da plasticidade comportamental, tendendo levar o idoso a ter dificuldades
em adaptar-se ao meio, enfrentar e recuperar-se diante dessas circunstâncias. (Neri,
2006). Vale ressaltar que essa etapa não é mais considerada uma fase somente de
perdas, mas sim de desenvolvimento, assim como as demais etapas da vida.

Essa população pelo próprio desenvolvimento em seu processo de


envelhecimento, apresenta maior nível de doenças crônico-degenerativas. Uma
destas patologias é a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), doença comum,
que pode ser prevenida e tratável, caracterizada por sintomas respiratórios
persistentes e limitação do fluxo aéreo, devido a anormalidades nas vias aéreas e/ou
alveolares, geralmente causadas por significativa exposição a partículas ou gases
nocivos (GOLD, 2005). Concomitante aos sintomas e impactos físicos do DPOC, os
pacientes são frequentemente acometidos por comorbidades simultâneas, como:
doenças cardiovasculares (DVC), ansiedade, depressão, dentre outras (Romaldini,
Casadeli, Cerezoli, Stirbulov, 2016). Vale ressaltar que estudos como de Godoy
(2013) elucidam a necessidade de reconhecer tais sintomatologias e a importância de
conhecê-las para um melhor auxílio e amparo ao paciente.

OBJETIVOS

Diante destas considerações, principalmente do impacto da DPOC na vida


desses idosos, esse trabalho teve como objetivo verificar investigar os aspectos
psicológicos, bem como a dinâmica psíquica de idosos com Doença Pulmonar
Obstrutiva Crônica DPOC. Como objetivos específicos é meta de o estudo também
avaliar a sintomatologia depressiva e investigar e analisar as principais percepções e
sentimentos vivenciados no envelhecimento de idosos com DPOC.

1050
MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo, exploratório, coletada em


campo. A pesquisa foi realizada com 5 idosos de ambos os sexos, acima de 60 anos
de idade, que frequentam um Laboratório de Reabilitação Cardiorrespiratória de uma
universidade da cidade de São Paulo. A coleta de dados ocorreu após aprovação do
Comitê de Ética da Universidade São Judas Tadeu, sob o parecer de número
09069319.5.0000.0089. Foram utilizados como instrumentos: questionário
sociodemográfico, entrevista semiestruturada elaborada pelas pesquisadoras, a
Escala de Depressão Geriátrica (GDS15) além da técnica projetiva: Teste de
Apercepção Temática para Idosos –SAT (Bellak e Abrams, 1998). A Escala de
Depressão Geriátrica (GDS), elaborada por Yesavage et al. (1983) foi desenvolvida
em sua versão abreviada para identificar e presença e a intensidade de sintomas
depressivos em idosos.

A Técnica de Apercepção para Idoso (SAT) elaborado por Bellak e Abrams


(1998) é uma técnica que tem por finalidade averiguar problemáticas específicas do
envelhecimento e as atitudes e apreensões das pessoas idosas em detrimento às
questões mais centrais da velhice. Este, é composto por cartões estímulos que contém
determinadas figuras e, conforme a apresentação de cada estímulo, o indivíduo
projetará suas apreensões, possibilidades para resolução de problemas e sua visão
de mundo com foco no levantamento de atitudes frente ao envelhecimento. Para este
estudo foram utilizadas 2 pranchas, sendo elas as de número 10 e 14. Essas foram
escolhidas apoiadas na hipótese que os estímulos das figuras poderiam suscitar
projeções relacionadas à temática da pesquisa.

Para a análise dos dados da entrevista foi utilizado a análise de conteúdo de


Bardin (2011), através de uma investigação que tem por finalidade a descrição objetiva
e sistemática de conteúdo manifesto da comunicação dos participantes. Para a
análise da escala utilizada e técnica projetiva foram utilizadas as suas respectivas
diretrizes de verificação e análise.

1051
RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram do estudo cinco idosos88, com média de idade de 69 anos, sendo


duas mulheres e três homens. Houve um predomínio de participantes do sexo
masculino, tal fato corrobora com as estatísticas encontradas na literatura, de acordo
com Azambuja, Bettencourt, Costa & Rufino (2013) a prevalência, assim como a
incidência de DPOC é maior entre homens, em especial em idosos acima de 75 anos
de idade. Sendo a DPOC uma doença crônica adquirível e tratável ela advém,
principalmente, da interação entre fatores como pré-disposição genética e hábitos de
vida não saudáveis ao longo da vida como o tabagismo. Vale ressaltar que todos os
idosos da pesquisa eram tabagistas.

Com relação ao estado civil e contexto familiar, quatro dos participantes


encontram-se casados sendo que três residem com pelo menos um de seus filhos.
Um deles é divorciado e mora em uma república e o outro reside somente com o
conjugue. Frente aos sintomas e limitações impostas pela DPOC, frequentemente os
idosos acometidos por esta necessitam de apoio social para lidar com tais demanda
e esse pode se dar tanto do ponto de vista físico quanto emocional, assim como
podem ser desempenhados por diferentes agentes, como familiares e profissionais da
saúde. (Mesquita, Morano, Landim, Collares & Pinto, 2012). Ao que tange a ocupação
profissional, três idosos são aposentados, um encontra-se desempregado e a outra é
dona de casa. Para Farias & Martins (2013) os sintomas que compõem a DPOC
contribuem para interferir em vários fatores na vida desses idosos doentes como
sociais, familiares, e destacamos aqui as próprias atividades profissionais.

No que tange ao tempo de diagnóstico e nível de DPOC, nota-se na


caracterização presente que três dos participantes apresentam de quatro a cinco anos
de tempo de diagnóstico (P1; P4; P5) e nível de DPOC de leve a moderado. Em
relação aos participantes (P2; P3), estes apresentam tempo de diagnóstico maior se
comparado aos anteriores, sendo de vinte e três anos e, vinte e seis anos,
respectivamente, assim como nível de acometimento de moderado a acentuado. Vale
salientar que três idosos fazem uso de oxigenoterapia.

Com relação à presença e a intensidade de sintomas depressivos nos idosos


participantes, observou-se que apenas um (P3) apresentou respostas de cunho

88
Para manter o sigilo da identidade dos mesmos, optou-se em nomeá-los numericamente.
1052
depressivo de acordo com a Escala de Depressão Geriátrica (GDS-15), atingindo uma
pontuação de oito pontos. Se compararmos o desempenho geral dos idosos da
amostra com estudos encontrados na literatura, pode-se observar que não é raro
concomitante ao quadro de DPOC apresentar-se comorbidades como depressão e
ansiedade, tais patologias podem estar associadas à limitação física enfrentada,
principalmente para realização de atividades básicas de vida diária influenciando em
uma redução na qualidade de vida

Ao que tange a análise de conteúdo das Entrevistas foram localizadas


categorias temáticas e determinadas unidades de significado. Com relação à temática
relacionada ao Diagnóstico da DPOC foi observado que dois participantes se
enquadram na unidade de significado na qual, inicialmente, sofreram um forte
impacto, mas, que hoje aceitam mais “Ah eu fiquei arrasado... ai fiquei arrasado, mas
tive que me conformar” (P2). Segundo Santos & Silva. (2016) a DPOC é uma doença
de processo irreversível que influencia em todos os aspectos de vida do indivíduo.
Com base na fala apresentada anteriormente nota-se o tema conformismo presente
que pode ser relacionado ao processo irreversível da doença.

Com relação às dificuldades relacionadas à doença, sendo a DPOC uma


doença crônica e tratável, não é incomum os pacientes enfrentarem dificuldades frente
à sintomatologia da doença, dificuldades essas que impactam diretamente nas
atividades básica de vida diária. Tais impactos foram apresentadas pelos cinco idosos,
no qual constituiu a unidade de significado “Limitações Para Desempenhar Atividades
Básicas”. Esta unidade de significado pode ser observada na fala do participante (P3):
“Se tem dificuldade pra tudo, eu tenho que tomar banho com oxigênio e mesmo assim
eu tenho que parar para descansar" (P3). Os impactos advêm, principalmente,
decorrentes da dispneia, pois além de ser o principal sintoma da DPOC, a falta de ar
impacta diretamente na capacidade funcional e nas tarefas cotidianas. Estas
dificuldades também são experienciadas em outros âmbitos, como no social, onde os
idosos por apresentarem mobilidades reduzidas são afetados em suas dinâmicas
relacionais e consequentemente nos aspectos emocionais (Silva e Silva, 2015; Melo
2017; Pereira, Pinto, Alcantara, Medeiros & Mota, 2009; Züge, Oliveira, Silva &Fleig,
2019).

Porém as limitações vivenciadas não se limitam somente a doença, na qual três


(P3, P4 e P5) deles atribuem também a idade, formando a unidade de significado
1053
“Dificuldades relacionadas à idade”, conforme relatou o P4: "quanto mais o tempo
passa mais a idade, a própria idade, se eu não tivesse doença nenhuma, a própria
idade vai me limitando". Pode-se observar que esses participantes possuem maiores
dificuldades com relação a idade devido não somente a condição da doença mais
também possivelmente a fatores subjetivos e de personalidade. Para Mucida (2006)
a velhice enquanto categoria social não refere nada sobre cada sujeito. Falar que um
indivíduo tem 60,70, 80 ou mais anos, mesmo que isso possa dar algumas indicações
relativas aos possíveis aspectos corporais, fisiológicos e sociais, não remete como
cada sujeito vivencia tais apontamentos a partir de seus traços e a peculiaridade de
sua história.

Como Estratégias de enfrentamento dos sintomas predominou a unidade de


significado “dedicação ao tratamento” presente no relato dos participantes (P4, P5, P2
e P3). Foi possível observar que mesmo diante do impacto estes apresentam
dedicação frente ao tratamento de sua doença. “Como eu tenho uma vida regrada, eu
acordo e faço uso dos medicamentos [...] eu procuro sempre acompanhar o ritmo da
minha doença” (P4). Para Rafael (2015) a experiência de continuidade do autocuidado
é considerada como uma reconstrução da identidade pessoal do indivíduo e surge da
capacidade de preservar ou adaptar os hábitos de autocuidado, mantendo a
integridade do indivíduo frente à doença.

No que diz respeito aos Sentimentos relacionados à doença, foi observado na


fala de três idosos (P1, P2, P3) a unidade de significado “culpa pelo uso de
substâncias nocivas”, principalmente o tabaco, sendo que esses demonstraram- se
culpados e arrependidos por sua condição, como conta P3: “eu que provoquei né, eu
tenho que entender eu que provoquei, se eu não tivesse fumado não tinha
acontecido”. Sabe-se que a carga tabágica tem relação com o desenvolvimento, à
progressão e a gravidade da DPOC, porém ela é uma patologia multissistêmica que
advém da interação de fatores genéticos e ambientais (Sales et al., 2018). Diante do
sentimento de culpa, o indivíduo pode experienciar um quadro depressivo acarretado
pelas perdas advindas do envelhecimento e da doença. Zimerman (1999) situa sobre
algumas características constituintes do quadro depressivo ocasionado pela perda,
em especial a depressão involutiva, na qual o paciente sofre com a perda de objetos
representados neste estudo como a perda da saúde fator enfrentado por todos os

1054
participantes, assim como há também a perda de atributos do ego como a
independência, aspecto esse também vivenciado.

Com relação à unidade de significado que mais se destacou na temática


relativa as Redes de Apoio, essa relaciona-se ao “apoio e ajuda financeira de
familiares próximos”, sendo que quatro participantes relatam receber essa ajuda para
custear a assistência médica e medicamentos "tenho sim meus filhos, pagam o
convenio, compram remédio [...] arrumar 18 a casa coisa que não posso fazer... agora
ce já pensou se eu não tivesse esses filhos” (P1). É sabido que a DPOC traz impactos
diretos na vida dos acometidos, e para lidar com tais limitações tem-se a necessidade
de apoios e até dependência de terceiros. Essa ajuda pode se manifestar no cotidiano
no auxílio a excussão de tarefas diárias, assim como ajuda financeira medicamentosa
e de serviços de saúde (Hopp, Wollenhaupt, Junior, Flores, Rossato 2019; Kerkoski
et al., 2018). Vale ressaltar que o apoio familiar é de suma importância, pois o
envelhecimento e a doença crônica acarretam perdas para os idosos. Para Rocha e
Ciosak (2014) o sentimento de pertencimento para indivíduos inseridos no seio
familiar é importante e contribuirá para se ter uma boa saúde psicológica e qualidade
de vida.

No que diz respeito às Perspectivas para o futuro houve o predomínio da


unidade de significado, “viver melhor junto a família” sendo composta por dois idosos
(P1 e P5). “Quero um fim de vida melhor. Ah meus filhos juntos, apesar deles vivem
juntos né, eles almoçam comigo, eu vou pra fora com eles” (P1). Frente todo o
contexto da doença, Bueno. (2017) situa que há barreiras e desafios que levam aos
familiares a atuarem como cuidadores no auxílio das atividades no cotidiano. Mediante
relato (P1) é possível notar a atuação desses filhos como cuidadores e que contribuem
para uma melhor vivência no cotidiano frente à doença.

Frente à aplicação e desenvolvimento da técnica de Apercepção Temática


(SAT), os participantes, de modo geral, apresentaram coerência na realização do
teste, compreendendo os temas adequadamente, demonstrando capacidade de
organização das informações, assim como um contato adequado com a realidade.
Com relação à prancha 10, pode-se observar a predominância dos seguintes temas:
tristeza (P2), solidão (P1), problemas relacionados à velhice (P1 e P4), morte (P1 e
P4), doenças (P2 e P5) abandono e isolamento (P4), e esperança de cura através de
medicamentos (P3). Ao que tange o clima das histórias, houve a predominância de
1055
climas de cunhos negativos como morte, abandono e doenças (P1, P2, P4 e P5), ao
passo que apenas um participante (P3) apresentou narrativa com desfecho positivo
exibindo elementos de esperança de cura frente a doenças. Vale ressaltar que dois
participantes (P2 e P4) trouxeram referências pessoais à história, projetando-se na
personagem, conforme discorre P2: “Ta muito doente... ta muito triste, meu coração
não vai aguentar... muito triste.” e o participante P4 “Eu senti isso... olhar para o relógio
e ver as horas passar e não poder fazer nada.” Assim é importante destacar que a
técnica projetiva empregada apresentou uma função fundamentalmente mediadora no
contato com o participante, favorecendo a expressão de conteúdos emocionais e
evidenciando uma forte necessidade de escuta (Barros, Gil & Tardivo, 2010).

Com relação aos temas mais frequentes discorridos na prancha 14 intitulada


“No banheiro”, pode-se observar o seguinte predomínio: Dificuldades em relação ao
autocuidado (P1), dependência (P5), perdas e solidão na velhice (P1 e P5) tristeza
(P2), esperança de cura através de medicamentos (P3), aspectos de vida relacionada
ao autocuidado, como se perfumar, arrumar-se e admirar-se no espelho, e relações
familiares (P4). Frente ao estudo de validação, 61% das histórias relatadas discorriam
sobre cuidados pessoais (Miguel, 2012). Entretanto, no presente estudo destacaram-
se narrativas com elementos de perda e solidão ao passo que na amostra de validação
essa temática foi apresentada por apenas 8% dos participantes.

No que diz respeito a percepção dos participantes dois destes (P4 e P5)
interpretaram a tarefa de forma atípica, contando histórias diferentes quando
comparado aos temas suscitados pela maioria. Em relação à qualidade das histórias
relatadas houve o predomínio de elementos mais descritivos das pranchas em
contrapartida apenas dois participantes apresentaram sentimentos, pensamentos e
atitudes das personagens. Sobre motivação em relação de interação com o ambiente
e as motivações para solução de problemas, houve predomínio de narrativas com
fatores ausentes e não discerníveis por não ter elementos suficientes na narrativa para
interpretação desta categoria em ambas as pranchas, tal fato pode relacionar-se com
sentimento de impotência frente a doença.

Ao que tange os sentimentos predominantes, pode-se observar que três (P1,


P2, P3) dos idosos participantes expressaram nas histórias sentimentos
predominantemente negativos, como solidão, tristeza e abandono. Entretanto, dois
(P4 e P5) participantes em suas histórias apresentaram sentimentos positivos como,
1056
esperança de melhoria com a utilização de medicamento e autocuidado, tal postura
pode estar relacionada com o pouco tempo de diagnóstico da doença, o impacto mais
atenuado dela frente as suas atividades diárias, assim como ao nível da DPOC (leve
e moderado). Com relação às perspectivas de futuro suscitadas nas narrativas,
predominaram as perspectivas negativas (P1, P2, P4) onde apresentam elementos de
insatisfação frente ao futuro assim como conflitos e adversidades que não foram
superadas. Ao passo que dois (P3 e P5) participantes trouxeram percepções
positivas, onde há perspectivas de solução das adversidades enfrentadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificou-se que os objetivos da pesquisa foram alcançados e que os


instrumentos utilizados neste estudo foram adequados. Quando aplicada a técnica
projetiva pode-se verificar conteúdos latentes que não convergiram com os conteúdos
manifestos por meio dos demais instrumentos. Desse modo, a técnica projetiva
suscitou pensamentos, atitudes e sentimentos como tristeza, abandono e solidão que
não foram observados inicialmente por meio da escala e com menos ênfase nas
entrevistas. O presente estudo teve como limitação o fato de contar com a participação
de poucos idosos, mesmo considerando o caráter qualitativo dele. Porém vale
salientar a dificuldade de acesso a esta população, que em alguns casos apresentou
resistência em participar da pesquisa. Ressalta-se a relevância de tal estudo, pois a
partir desse trabalho pode-se levantar as necessidades subjetivas, assim como a de
acolhimento e amparo psicológico frente ao impacto experienciados na DPOC. Por
fim, destaca-se a importância de outros estudos frente aos aspectos psicológicos e
emocionais, não só de idosos com DPOC, mas também portadores de outras doenças
crônicas.

REFERÊNCIAS

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1059
98- ANÁLISE PSICANALÍTICA DO DISCURSO DE ÓDIO PRESENTE NAS REDES
SOCIAIS DIGITAIS

Ingrid de Sousa Lima Silva


Dra. Thalita Lacerda Nobre

Resumo: Este trabalho teve como objetivo discutir sobre as manifestações psíquicas
presentes na propagação do discurso de ódio nas redes sociais digitais. Assim,
buscou-se compreender o sentido da satisfação das pulsões que regem tais
manifestações e compreender sobre os mecanismos de defesas que estariam
envolvidos neste comportamento. A metodologia empregada neste trabalho foi a de
pesquisa qualitativa de cunho documental. Em um primeiro momento, foi realizada a
pesquisa bibliográfica discutindo sobre o homem na pós-modernidade e sobre a
sociedade em rede. Posteriormente, foi realizado um aprofundamento sobre os
conceitos psicanalíticos para compreender as manifestações psíquicas na
disseminação desse tipo de discurso. Por último, foram reunidos recortes de algumas
postagens de conteúdos considerados violentos que foram publicados nas
plataformas sociais: Twitter, Facebook, Youtube e E-book. As amostras foram
analisadas qualitativamente sob a perspectiva psicanalítica e a partir disso, pode-se
concluir que as pulsões relacionadas ao ódio encontrariam satisfação na realidade
das redes pela via do ataque e destruição do outro como via de defesa para a não
destruição do próprio narcisismo, e mais, obteve-se que haveria, pela destruição do
outro, o alimento narcísico do próprio indivíduo. Também se obteve que, a fim de
resguardar a realidade, mecanismos de defesa foram utilizados nesse modo de
manifestação do discurso.

Palavras-chave: Discurso de ódio. Internet. Redes Sociais. Psicanálise. Mecanismos


de Defesa.

1060
INTRODUÇÃO
As redes sociais vieram com a intenção de expandir a intercomunicação
online, e isso se deu principalmente com a crescente sofisticação dos dispositivos
móveis com acesso às redes de qualquer lugar e hora.
Os conteúdos publicados na rede são propagados de forma abstrata e
intensificados, dada à capacidade de compartilhamento da rede, e por esta razão,
quando um usuário publica algum conteúdo, ele se torna muito mais abrangente, o
mesmo ocorre com a divulgação de mensagens violentas, que atingem uma
proporção de incentivo à intolerância, expandindo um discurso de ódio. (Santos,
2016). De acordo com Silva et. al. (2011), a internet funciona como um mecanismo de
projeção e assim como em um espelho, nela é refletido também aspectos menos
promissores do ser humano, como os atos ilícitos, a repercussão de mensagens
danosas e a violação de direitos.
Por este motivo, este trabalho objetiva identificar quais manifestações
psíquicas se fazem presentes na disseminação do discurso do ódio nas redes sociais,
bem como identificar as pulsões que regem este comportamento.
Deste modo, a curiosidade pelo tema proposto parte da percepção de toda a
problemática em torno da proliferação desse tipo de discurso nas redes sociais, visto
que, para Santos (2016), “O discurso de ódio é um fenômeno social e midiático que
se tornou um problema de segurança pública para os Estados”. Ou seja, considero
este trabalho de grande importância, pois a internet é um meio rápido de circulação
de conteúdo, e a propagação destes discursos ofensivos pode acarretar danos
significativos para a pessoa/grupo atingido.
Quanto a metodologia, este trabalho está assim organizado: num primeiro
momento apresento alguns levantamentos bibliográficos, conceituando e discutindo
sobre a entrada do homem na pós-modernidade, bem como do entendimento de como
se estabeleceu a comunicação da sociedade pós-moderna após o advento da
tecnologia e das mídias sociais, passando pela explicação do conceito de ciberespaço
e da criação de plataformas que visam expandir a intercomunicação online, as redes
sociais.
Num outro momento, apresento algumas considerações sobre a linha tênue
entre a liberdade de expressão e discurso de ódio, trazendo à tona a discussão sobre
como a propagação de discursos com tais conteúdos, publicados nas redes sociais
digitais, poderão acarretar danos significativos em vítimas de violência desta natureza.
1061
Posteriormente, utilizei alguns constructos teóricos que considero relevantes
para a elaboração deste trabalho, para explicar como se desenvolve a constituição do
sujeito sob a perspectiva da psicanálise e como o sentimento de ódio atua nas
manifestações psíquicas, levando a formação de mecanismos de defesa, que por sua
vez, poderão dirigir o discurso de ódio.
Para finalizar, a metodologia empregada neste trabalho foi a de pesquisa
qualitativa de cunho documental, partindo do recorte de algumas amostras do que foi
considerado manifestação de ódio publicadas no twitter, facebook, youtube e e-
book.89

RESULTADOS
Os resultados encontrados aliados à revisão bibliográfica sugerem que o
ciberespaço vem se tornando cada vez mais palco de exibição do mundo pulsional
dos internautas, uma vez que a consideramos como um mecanismo de projeção, na
qual o indivíduo busca se identificar com determinado grupo, repelindo o outro pelas
pequenas diferenças. Diferenças essas que de forma simultânea se apresenta como
estranha e familiar para este indivíduo.
Este estudo também se esforçou para tentar entender como o indivíduo se
alinha a um grupo, como se constitui a massa psicológica, como esta se organiza e
se mantém. O indivíduo revestido de “poderes” que a massa psicológica lhe veste,
sente-se desresponsabilizado por seus atos. A alma coletiva gerada pela massa leva
este indivíduo a sentir, agir e pensar de forma diferente de como ele sentiria, agiria e
pensaria isoladamente.
O artifício da distância entre agressor e vítima favorece a ação, pois o
anonimato parece dar direito e voz ao que não se poderia realizar pessoalmente.
Os resultados encontrados também deram espaço para a compreensão de
como o discurso de ódio serve como pano de fundo para a exteriorização do mundo
pulsional aglutinado ao mecanismo de defesa que o indivíduo utilizou para disferir o
ódio sob o outro. A partir da análise, foi possível compreender que as manifestações
de ódio são proferidas de forma descontrolada nas redes sociais e que esta

89
O e-book citado refere-se ao livro digital: O discurso de ódio em redes sociais de Marco
Aurelio Moura dos Santos. As postagens extraídas deste e-book para a elaboração deste trabalho são
recortes que o autor retirou também de redes sociais, como por exemplo, facebook e twitter.
1062
agressividade alimenta a não reflexão, que leva a intolerância a diferença do outro e
que por sua vez, gera ainda mais ódio e afastamento. Foi possível verificar que este
movimento se fortalece à medida que o agressor se identifica no grupo por indução
recíproca e reproduz comportamentos que possivelmente não o fariam na “vida real”.
Os mecanismos de defesa encontrados majoritariamente neste trabalho
foram: projeção, racionalização, deslocamento, formação reativa e isolamento. A
análise das amostras desenvolvida neste trabalho possibilitou compreender como
estes mecanismos de defesa atuam, uma vez que eles são considerados como
recursos irrealistas para lidar com a ansiedade que ataca o ego. Foi possível observar
a partir destes recortes que os mecanismos de defesa negam, distorcem e falsificam
a realidade, fazendo com que a pessoa não tenha acesso, conscientemente, de tal
modo de se posicionar, ou seja, eles atuam de maneira inconsciente.
Foi selecionado para este artigo os recortes referentes às postagens de
conteúdos considerados como discurso de ódio, regido por dois tipos de preconceitos:
misoginia e racismo.
O seguinte recorte trata-se de discurso de ódio orientado pela violência de
gênero feminino: misoginia e reflete a tendência da autora em fazer uma distinção
entre pessoas, classificando-as em dois grupos: aquelas ditas “corretas” “do bem”
“inteligentes”, que merecem o amor e respeito e aquelas que são dignas de desprezo
como pessoas “burras”, “vulgares” e etc. É possível verificar neste recorte, a
manifestação do mundo pulsional, predominantemente, a pulsão de morte, uma vez
que esta pulsão visa a desunião, a agressão se sobressai no comentário como fonte
de segregação de pessoas, sendo assim neste caso, o que é repudiado deve ser
excluído, logo é classificado em um grupo com menos valia.
Isso é bastante similar ao complexo de Madona-prostituta, descrito
primeiramente por Freud (1910) na qual o homem direciona a busca de seu objeto
amoroso àquela digna de respeito, pura, sublime, santificada (Madona) e despreza
aquela que se enquadra na categoria de meretriz, abjeta, depravada as quais não se
deve respeito, (prostituta). Este movimento de orientação da pulsão tem como
mecanismo regente o isolamento.

1063
Figura 9
Extraído de: https://www.facebook.com/forafeminismo5/

Na figura 9 a autora da postagem faz um comentário a fim de advertir outras


garotas que se previnam no carnaval para evitar doenças sexualmente transmissíveis,
entretanto as aconselha de maneira irônica, usando de palavras que dão a entender
certo menosprezo ao público-alvo, neste caso, mulheres feministas. Para expressar
este “conselho”, a autora no meu entendimento está utilizando do mecanismo de
deslocamento, uma vez que profere frases que por certo já escutou e lhe causou
algum sentimento, que lhe influenciou a escrever este comentário, ainda que não
tenha sido diretamente para a pessoa causadora de sua repulsão.
O próximo recorte enquadra-se na exposição de um discurso preconceituoso
sustentado pelo racismo. O racismo tem como fundamento a crença da existência de
raças humanas superiores e inferiores, correlacionando-as diretamente às
características físicas – como, por exemplo, a cor da pele – a qualidades morais,
intelectuais ou comportamentais. (BETONI, 2014)

1064
Figura 23
Extraído de:http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-
sul/noticia/2013/08/comentarios-de estudante-do-rs-contra-negros-revoltam-redes-
sociais.html

Nos comentários da figura 23 é possível verificar a influência do mecanismo


de deslocamento, visto que a autora transfere seu preconceito racial já consolidado
ante a população negra. Essa hipótese pode ser verificada em todos os comentários
da autora. É possível ver também a tentativa de negar seus sentimentos, pois ela não
reconhece em si mesma a tendência em agir de maneira racista. Interessante
observar também que possivelmente a autora não teve como objetivo notificar um
acontecimento que ocorreu com ela e sim de reafirmar seu preconceito associando-o
ao acontecimento de quase ter sido atropelada com experiências negativas, que
hipoteticamente, já teve com alguma pessoa negra e que por isso desloca seu
posicionamento racista generalizando-o a todos que se classificam neste grupo. Ela
reafirma isso usando o recurso CapsLock para salientar as palavras: “tinha que ser” e
“pretos”.
Acredito que a racionalização também esteja implicada nestes comentários
porque aparentemente a autora acredita que seus argumentos não são
deliberadamente odiosos e sim que testificam alguma razão para que ela apresente
este comportamento racista.
Os resultados obtidos viabilizaram também a discussão sobre alguns temas
que acredito ser de relevância social e que merecem mais pesquisas, como a
predominância do pensamento patriarcal sob o domínio do corpo da mulher, a
dificuldade de tratar a sexualidade feminina ainda nos dias atuais, o preconceito que
se reverbera em forma de discursos “inofensivos”, mas que refletem a importância de
se reavaliar como nosso país encara de maneira pouco promissora questões
relacionadas aos grupos minoritários e o impacto que estes discursos causam a essas
vítimas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho encontrou dificuldades em seu desenvolvimento, pois o tema
escolhido retrata uma realidade ainda pouco pesquisada. Diante disso, se faz
necessário a produção de mais pesquisas que abordem temas desta natureza, para

1065
que seja possível ampliar a investigação acerca do funcionamento psíquico envolvido
na manifestação do discurso de ódio, devido ao significativo número de denúncias
oficiais recebidas, bem como a conscientização social sobre os efeitos nocivos que
esta prática poderá resultar na vida das vítimas atingidas.
Considerando a problemática tratada neste estudo o Psicólogo tem papel
fundamental na criação de novas práticas que auxiliem na prevenção e no
enfrentamento de situações de exposição ao ódio - tanto de quem agride quanto de
quem é agredido.
Além da psicoterapia na qual tanto o agressor quanto a vítima poderá trazer
conteúdos a serem analisados, cabe ao psicólogo dedicar-se à elaboração de novas
pesquisas que abordem este tema visando ampliar o conhecimento da população
sobre este problema, bem como promover a conscientização sobre o impacto gerado
por manifestações de discurso de ódio direcionado às vítimas; realizar estudos a fim
de servir de embasamento para a implantação de novas legislações que previnam a
proliferação de discurso de ódio nas redes sociais.
O psicólogo também poderá introduzir em instituições como escolas,
empresas e faculdades, estratégias de divulgação de informações que previnam
situações que gerem sofrimento decorrente do discurso de ódio, essas estratégias
poderão ser concretizadas a partir de palestras, roda de conversa, dinâmicas de grupo
com técnicas de psicodrama.
Outra estratégia que o Psicólogo poderá adotar a fim de possibilitar a
prevenção e enfrentamento a episódios de exposição ao ódio, será abrir um espaço
de conversa dentro do próprio ambiente virtual, - como página no facebook, instagram,
canal no youtube – visando estender o campo de divulgação de informações dos
efeitos nocivos que o discurso de ódio acarreta nas vítimas. Poderá também, no
mesmo espaço virtual, formar grupos de apoio de pessoas que se sintam vitimadas
por alguma agressão desta natureza, onde possam encontrar acolhimento, serem
ouvidos e amenizar o sofrimento.

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1068
99- RELAÇÃO ENTRE A VIOLÊNCIA SOCIAL E PSICODINÂMICA NAS
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS PROFESSORES

Sandra de Oliveira Soares Cardoso90


Dra. Thalita Lacerda Nobre91

Resumo: A profissão de professor, na sua Representação Social, é geralmente


associada à vocação, devoção, prazer pelo ato de ensinar, de transmitir
conhecimento. No entanto, na última década, ser professor tem vindo a ser também
associada a uma profissão desmerecida, desacreditada e desautorizada. Aliada a
essas situações, surge a menção a doenças e a questões relacionadas com a saúde
mental. Esta é uma temática abordada pela psicodinâmica, que procura estudar a
forma como a doença surge associada ao trabalho, ao desempenho de determinada
função e os impactos negativos que tal situação provoca no professor. Assim, este
trabalho tem como questão problema: quanto a violência representada pela
desvalorização dos governos e pela população pode influenciar no adoecimento dos
professores? E objetivo geral, identificar o que é a psicodinâmica do trabalho e como
esta se relaciona com a profissão de professor. Utilizando como procedimento
metodológico a pesquisa bibliográfica que possibilita coletar informações publicadas
por diversos autores que abordaram o tema, verificou-se que a existência de
problemas de saúde relacionados com o desempenho da função de professor é
elevada e que é importante refletir sobre os motivos pelos quais essa situação se vem
tornando mais frequente.

Palavras-chave: Representações Sociais. Professores. Psicodinâmica. Violência


Social.

90 Mestre em Educação e Mestre em Gestão de Negócios. Mestranda em Psicologia, Desenvolvimento


e Políticas Públicas na Universidade Católica de Santos.
91
Dra. em Psicologia Clínica, Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia,
Desenvolvimento e Políticas Públicas da Universidade Católica de Santos.
1069
1. Introdução
Nas últimas décadas as carreiras profissionais caracterizam-se pela
instabilidade, sobretudo em função das mudanças sociais que ocorrem
contrariamente ao que acontecia em anos anteriores quando as mesmas eram
marcadas pela estabilidade de emprego e por uma progressão natural da carreira
(Gatti & Barreto, 2009).
As ações dos professores e as suas posturas constituem um processo social
e intersubjetivo, são desenvolvidos ao longo da vida tanto nas relações grupais e
comunitárias, que são delimitadas pelas condições no contexto tanto cultural, quanto
sociopolítico e é nestas interações que “se gestam as concepções de educação, de
modos de ser, que se constituem em representações e valores que filtram os
conhecimentos que lhes chegam” (Gatti, 2003, p. 192).
Ainda que esta profissão seja vista como indispensável, é uma das profissões
onde o reconhecimento é menor, sobretudo pela remuneração baixa e pelas
condições de trabalho, que muitas vezes se traduz em desmotivação. Segundo Souza
(2011), os salários baixos, a desvalorização social, a indisciplina dos alunos, a
violência nas escolas, fatores de ordem econômica e política estão dentre os vários
exemplos que desmotivam o professor e contribuem para que a sua saúde se
deteriore.
Perante todas estas condicionantes ao trabalho do professor, é quase
inevitável introduzir a questão da psicodinâmica e de como a prática cotidiana da
profissão de professor interfere no seu aspecto psicológico e na sua forma de atuar.
Nesse sentido, a questão que se coloca como problemática é: quanto a violência
representada pela desvalorização dos governos e pela população pode influenciar no
adoecimento dos professores?
Como objetivo geral, o trabalho procura identificar o que é a psicodinâmica do
trabalho e como esta se relaciona com a profissão de professor, em relação aos
impactos psíquicos e físicos que o desgaste na profissão vem causando.
Como objetivos específicos pretendem-se refletir sobre as representações
sociais dos professores e identificar que tipos de doenças surgem associados ao
exercício da sua função.
A justificativa para a abordagem desta temática relaciona-se com o fato de a
pesquisadora perceber, no seu cotidiano, como o exercício da profissão de professor
vem interferindo na saúde psíquica e física de colegas, decorrente da pressão e
1070
crescente desmotivação em relação aos resultados do seu trabalho e à sua relação
com alunos e instituição. É um tema com abundante literatura publicada, com enfoque
em várias áreas, como a psicologia, a sociologia, os direitos humanos e ainda com
pesquisas efetuadas visando relacionar a qualidade de vida no trabalho e as
incidências psicológicas resultantes da violência e estresse no desempenho da
profissão.
Metodologicamente, a característica implícita a uma ciência está ligada a
utilização de métodos científicos, assim “não há ciência sem o emprego de métodos
científicos” (Lakatos & Marconi, 2003, p. 83).
Segundo Andrade (2010) a pesquisa bibliográfica constitui-se como o passo
inicial que é dado já que todo o trabalho científico pressupõe uma pesquisa
bibliográfica preliminar visando compreender a teoria já existente a respeito deste
tema.
Assim, a abordagem metodológica considerada adequada na elaboração
deste artigo foi a pesquisa bibliográfica, a qual é composta de fontes secundárias que
“[...] abrange toda a bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo,
desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas, monografias,
teses, material cartográfico, etc.” (Lakatos & Marconi, 2003, p. 183), utilizando como
descritores: representações sociais do professor; psicodinâmica; doença no trabalho,
violência social. O material consultado e analisado utilizou bases de dados como a
Scielo, Google Books, repositórios e a web em geral, utilizando como descritores
palavras como “violência psicológica”; “psicodinâmica”; “professores e violência
psicológica”. Foram pesquisados mais de 30 trabalhos relacionados ao tema.

2 Psicodinâmica: o que é e como se apresenta?

Inicialmente apresentada na década de 1990, a Psicodinâmica surge como


um ramo da ciência associada à Psicopatologia do Trabalho. Criada por Lê Guillant,
esta vertente tem como principal figura, Christophe Dejours. Este procurava
compreender o sofrimento psíquico no trabalho e os seus esforços na área eram
direcionados no sentido de estabelecer relações entre os constrangimentos
organizacionais e injunções e a desestabilização psicológica sentido pelos indivíduos
(Dejours, 2004).

1071
Outro objetivo definido por Dejours nos seus estudos era compreender quais
as estratégias a que o trabalhador recorria para se manter saudável, apesar de
funcionar em uma organização do trabalho com aspectos, de certo modo,
patologizantes (Dejours, 2004).
Areosa (2014) ressalta que, numa perspectiva histórica, o trabalho de Dejours
menciona que a clínica do trabalho e a psicopatologia do trabalho dedicaram-se,
quase exclusivamente, aos efeitos negativos do trabalho. Porém, durante a década
de 1980, foram feitos novos contributos para essa discussão, com origem em outras
abordagens disciplinares como é o caso da ergonomia, a psicologia ou a sociologia.
Mendes (2007) acrescenta que uma das metas mais relevantes da
Psicodinâmica do trabalho é a compreensão de como a maioria dos indivíduos
consegue driblar as doenças mentais, apesar da pressão que é exercida pelas
organizações e é partindo dessa análise, sempre dinâmica e com contextos próprios
de trabalho que se observa e se procura estabelecer uma atuação, de forças visíveis
e invisíveis, subjetivas e objetivas, sociais, psíquicas, econômicas que podem
influenciar ou não, esse contexto. Significa, portanto, que os trabalhados conseguem
camuflar os seus problemas, boa parte deles resultantes do contexto do ambiente de
trabalho e da pressão que nele é exercida.
Dejours, Abdoucheli e Jayet (2007) explicam que, antes de qualquer coisa, a
organização do trabalho surge como uma relação social e intersubjetiva e essa
intersubjetividade encontram-se no próprio centro da organização do trabalho. É algo
determinado pelas relações sociais de trabalho já que o homem, enquanto ser
pensante com o foco na sua relação com o trabalho acaba por produzir interpretações
da sua situação e das suas condições, socializando estas últimas em atos
intersubjetivos, reagindo, organizando-se mentalmente, fisicamente e afetivamente,
de acordo com as suas interpretações.

3 Representações sociais dos professores e o impacto da psicodinâmica

As representações sociais que são construídas sobre a profissão de


professor, na opinião de Dotta (2006) ajudam a compreender questões relacionadas
com o prazer da profissão e o sofrimento que decorre do exercício da mesma. As
representações sociais que o professor constrói partem da apropriação que é feita da
prática dos saberes sociais, históricos e das suas relações. Tal fato aumenta o

1072
conhecimento sobre a educação e permite revelar os problemas que são enfrentados
tanto pelos professores como pela própria organização do trabalho.
Ensinar com prazer é uma característica geralmente associada ao professor,
por ser algo feito com vocação, com vontade. Segundo Lacroix (2007) é neste fazer
autorrealizador que o professor é visto como um indivíduo ativo, bem desenvolvido
enquanto ser humano e que retira satisfação da sua função. Enquanto ensina, o
professor transmite mais do que conhecimento sobre determinada matéria.
O que é exigido aos professores e aquilo que é oferecido em troca,
salvaguardando as diferentes épocas e momentos culturais, mostra que o papel do
professor e a sua importância para a sociedade, nem sempre foi devidamente
respeitada. Observe-se, por exemplo, o que acontece na educação infantil, onde os
vínculos afetivos são importantes. A figura do professor é, neste caso, o principal
instrumento de trabalho, envolvendo a pessoa na sua totalidade: o intelecto, o afeto,
as habilidades técnicas e científicas. Ao trabalharem com crianças, em especial
aquelas que são de origem mais humilde, o trabalho docente demanda maior
investimento de energia, causando sofrimento no professor pelo fato de nem sempre
poderem corresponder às necessidades das crianças (Moraes; 2005).
É também perceptível que, em termos das práticas educativas, são cada vez
maiores as evidências de sofrimento e de desprazer. No entender de Batista e Codo
(1999) o fato do professor enfrentar as dificuldades que surgem, ver o seu trabalho
reconhecido por outros e a valorização do seu esforço, tem o poder de transformar as
situações de desconforto e sofrimento no trabalho em prazer e dessa forma, o
professor procura utilizar mecanismos saudáveis que possam sobrepujar o sofrimento
e evitarem adoecer.
Camana (2007) menciona a questão do sofrimento dos professores, ao
classificá-lo como um fato socialmente importante, em virtude de afetar um número
considerável de professores e que tem consequências imediatas, como o absentismo,
a diminuição da qualidade pedagógica, a doença física e mental.
Dentre as dificuldades mais evidenciadas na profissão, existem três delas que
são consideradas como as mais importantes: a heterogeneidade das turmas é um
fator que afeta o desempenho do professor; o decorrente enfraquecimento do status
social que é o resultado da péssima imagem que vai sendo criada junto à sociedade;
e o fosso entre os resultados escolares e o esforço que é feito pelos professores. É a
junção destes fatores com outros que potenciam a desestabilização do professor no
1073
exercício da sua profissão e que vão gerando sofrimento, em função da diminuição do
prazer que é retirado do seu trabalho (Camana, 2007).
O fato de os professores serem alvos de críticas constantes enquanto é
discutida a situação da educação, é um reflexo da deterioração das condições de
trabalho. Os professores evidenciam diversos sinais de sofrimento decorrentes da
forma como a profissão se apresenta na atualidade, stress, esgotamento, ansiedade,
depressão, fadiga, são causados pelos fatores que potencializam o sofrimento, como
as relações hierárquicas, jornadas longas e exaustivas, dificuldades em controlar as
turmas, rebaixamento salarial, desvalorização e desqualificação social do seu trabalho
(NEVES, 2006).
Cungi (2006) indica que o aumento das jornadas de trabalho, a utilização e o
surgimento desordenado de novas tecnologias, a constante exigência de adaptação
a um mercado competitivo ao extremo, aliados a uma execução repetitiva de tarefas
e à falta de perspectivas de crescimento profissional, são estressores significativos
que promovem o stress ocupacional, considerado um sério e grave desafio à saúde
do professor.
Um dos problemas de saúde associados à profissão de professor é a
Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional que, segundo a
Psiquiatria, é caracterizada pelo stress crônico, desânimo e desmotivação no trabalho.
Pode traduzir-se a expressão por sensação de estar acabado e os seus reflexos mais
evidentes são o descontrole emocional e a agressividade. É a forma encontrada pelo
organismo para reagir a situações de stress laboral crônico e prolongado.
Segundo França e Ferrari (2012) o stress que é vinculado ao trabalho e
denominado de stress ocupacional, está relacionado com a falta de capacidade do
indivíduo em se adaptar às demandas existentes no seu trabalho e aquelas que ele
próprio percebe.
Por sua vez, Webber e Lima (2011) apresentam uma explicação mais
detalhada da Síndrome de Burnout, indicando que esta síndrome é um conceito
multidimensional e que envolve três componentes, a saber:
1. A exaustão emocional, situação pela qual os trabalhadores sentem não
poder dar mais de si próprios, a nível afetivo. Percebem que a sua energia
esgotou, juntamente com os seus recursos emocionais, em função do
contato diário com situações problemáticas;
2. A despersonalização, que se refere ao desenvolvimento de sentimentos e
1074
de atitudes negativas e com cinismo em direção às pessoas destinatárias
do seu trabalho, o endurecimento afetivo; e
3. A falta de envolvimento pessoal no trabalho, ou seja, uma tendência de
evolução pela negativa, que afeta a habilidade do indivíduo em efetuar o
seu trabalho e o atendimento ou contato com a organização e com as
pessoas usuárias do trabalho.

Além desta síndrome, Webber e Lima (2011) apontam ainda as doenças mais
comuns apresentadas pelos professores. Dentre elas destacam-se:

a) Stress, um esgotamento que interfere na vida do indivíduo, de uma forma


geral. O organismo fica cansado após todo o tempo em que esteve exposto
e sucumbe, acabando por gerar danos no sistema cardiocirculatório e
órgãos digestivos. O stress causa tensão, sensação de medo, cansaço,
raiva, sensação de derrota, ansiedade e falta de iniciativa. Regra geral, é
o resultado da pressão em alcançar metas definidas pela mercantilização
do ensino;
b) Depressão, onde o indivíduo perde o interesse por si mesmo, até mesmo
em relação aos cuidados pessoais e higiene. Costuma apresentar
sentimentos de culpa, dificuldade de concentração, alteração de sono e
apetite, chegando a apresentar ideias suicidas;
c) Insônia, que se desenvolve em períodos em que o stress está mais
elevado e é predominante nas mulheres e idosos. Pode derivar em outras
doenças como o alcoolismo, por exemplo;
d) Ansiedade, que deve ser entendido como um alerta já que adverte sobre
perigos iminentes e que torna o indivíduo incapaz de tomar medidas para
enfrentar as situações adversas. É um sentimento descrito como
desagradável, algo vago e que é acompanhada por sensações físicas de
vazio, frio no estômago, opressão no peito, dor de cabeça, palpitações,
excesso de transpiração e que pode, na sua forma mais avançada, evoluir
para transtorno de pânico. É uma sensação diferente do medo, já que este
é uma resposta a uma ameaça conhecida, enquanto a ansiedade é uma
resposta a uma ameaça vaga, desconhecida;
e) Pânico, que é uma reação sem sucesso contra a ansiedade. Como sinais
1075
apresenta palpitações, dispneia, vertigem, temores, náusea, desconforto
abdominal, ondas de calor e frio, desconforto, dor, medo de enlouquecer e
de morrer.

Costa e Germano (2007) acrescentam que existem ainda muitos professores


que, em função da doença apresentada, geralmente da área da psiquiatria,
neurologia, reumatologia (decorrente de lesões de esforços repetitivos) e
otorrinolaringologia (sobretudo por problemas nas cordas vocais, já que a voz é um
importante instrumento de trabalho para um professor), são readaptados e ficam
afastados temporária ou permanentemente para atividades administrativas.

4 Considerações finais

Profissão de grande importância e prestígio reconhecido desde há muito


tempo, à docência vem sendo cada vez mais desvalorizada e o trabalho do professor
vem sendo desmerecido e desqualificado, socialmente e economicamente. Essa
situação acaba por ter reflexos importantes no rendimento profissional do professor e
na sua saúde, física e mental pelo que uma reflexão relacionada com a psicodinâmica
do trabalho e as suas consequências naquilo que é a representação social do
professor acabam por ser relevantes na compreensão e eventual resolução de
algumas dessas situações.
A utilização da psicodinâmica visa compreender melhor como esse sofrimento
relacionado à profissão impacta na vida do professor e como ela pode, inclusivamente,
interferir na sua vida pessoal, já que as duas não são indissociáveis. Compreender
como a dinâmica profissional e as condições sob as quais os indivíduos a exercem
pode ajudar na compreensão de como é gerado esse sofrimento relacionado à
profissão e aprender como minimizá-lo.
As condições de trabalho a que os professores estão sujeitos atualmente
potencializam o surgimento de doenças como stress, depressão, ansiedade, cansaço
físico e mental devido às dificuldades encontradas e que acabam por sobrepor-se ao
prazer de ensinar. Turmas com excessivo número de alunos que dificulta o processo
de ensino e aprendizagem, horários sobrecarregados, condições precárias das
instalações, faltas de materiais pedagógicos, indisciplina, violência, incompreensão,

1076
tudo isto são situações que, pelo acumular, acabam dificultando a vida do professor e
acarretando problemas de saúde.
As mudanças no sistema educacional passam também pelo tratamento que é
dado aos professores e pelo resgatar da imagem e do prestígio antes atribuído a essa
nobre profissão, evitando o perpetuar desta situação que causa prejuízos à profissão
docente, ao indivíduo e que se refletem na qualidade de ensino que é prestada ao
aluno.

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1078
100- O QUE (NÃO) ESCUTAMOS QUANDO ESCUTAMOS OS PAIS

Kauê da Costa Alves92


Kelly Cristina Brandão da Silva93

Resumo: A partir das formulações de Freud e Lacan, os fenômenos da transferência


e da resistência estão imbricados e permeiam o processo analítico. De acordo com
Lacan, quem resiste é o analista. O presente trabalho trata-se de um estudo
exploratório, descritivo e qualitativo e objetiva discutir os efeitos discursivos de uma
proposta de dispositivo institucional grupal com pais de crianças com traços autísticos.
Os dados foram coletados no Programa de Treinamento em Serviço para Profissionais
da Saúde “Intervenção Precoce em Crianças de 0 a 3 anos”, realizado no Centro de
Estudos, Pesquisa e Reabilitação “Professor Doutor Gabriel O. S. Porto”, da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas
(CEPRE/FCM/UNICAMP). A escuta aos pais demonstrou que eles se sentiam
desamparados e excluídos do processo terapêutico de seus filhos e demandavam
referências dos terapeutas, em relação aos cuidados com os filhos e à nomeação
diagnóstica de suas dificuldades. Destaca-se que não há analista, quando não há
escuta. Uma escuta que não só está atenta ao paciente, mas que também flutua para
as forças que circunscrevem as próprias relações institucionais e
contratransferenciais.

Palavras-chave: Professionais de saúde. Intervenção com crianças. Escuta


terapêutica

INTRODUÇÃO
Não é novo o emprego da psicanálise ao campo da infância, dando voz e escuta
àqueles que, por muito tempo, tiveram suas especificidades negadas. Dentro deste

92
Graduando do 10º período em Psicologia, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).
Bolsista Fapesp de Iniciação Científica na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
93
Psicanalista. Doutora em Educação (FEUSP). Docente do Departamento de Desenvolvimento Humano
e Reabilitação, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas
(DDHR/FCM/UNICAMP).
1079
campo, muitos foram os autores influenciados pelos pressupostos freudianos,
estendendo a escuta do inconsciente, também, às crianças. Em sua prática, Dolto
(1981) inauguraria uma escuta do pequeno sujeito que incluía sua posição no discurso
parental. Passava-se da análise individual clássica de Melanie Klein, à implicação dos
pais nos sintomas de seus filhos. A tarefa do analista passaria, então, à escuta de
uma rede discursiva que incluía os pais, seus desejos e angústias, bem como, o
próprio manejo da transferência com a família.
Em “A Dinâmica da Transferência”, Freud (1912/2010) nos apresenta o laço
transferencial como um espaço onde os modos primitivos do sujeito e de sua vida
amorosa, ou seja, dos afetos, são revividos. À medida que o paciente vai encontrando
possibilidades de dirigir e projetar suas maneiras de se portar, suas representações
internas e seus “clichês”, com afirma Freud (1912/2010), o próprio analista será
incluso em uma “das ‘séries’ que o doente formou até então” (p.101).
Ao constatar que o fenômeno transferencial era o terreno próprio para uma
análise possível, favorecendo uma (re)atuação da vida pregressa, uma outra
consideração, tão importante quanto, surgiria a fim de se pensar sua dinâmica, a
transferência como “a mais forte resistência” ao tratamento e processo analítico
(FREUD, 1912/2010, p.102). Lançava-se, então, um novo desdobramento das ditas
resistências em análise, apresentadas por Freud no percurso de uma psicanálise. Na
tentativa de responder às suas próprias indagações, o autor desdobrou o conceito da
resistência em seus aspectos positivos e negativos, como inibidoras ou não, da
análise.
Apesar das considerações freudianas sobre o tema, e até mesmo a ênfase
relativa às próprias inibições do analista em análise (MEDEIROS, 2012), é Lacan
(1955, p. 287) quem faria a seguinte afirmação: “Não há outra resistência à análise
senão a do próprio analista”.
O método psicanalítico perseverou em expor a vida sexual e o motor da vida
psíquica, como determinantes da vida cotidiana. Em análise, destaca Medeiros
(2012), tratar-se-ia de ceder lugar ao desejo, onde em outros lugares cotidianos ele
pôde aparecer apenas em suas desvirtuações, ou ainda, em seus fracionamentos.
Nisto, então, consistiria a tarefa do analista, propiciar o aparecimento do desejo,
pois, não tendo nenhum obstáculo “à sua declaração é para lá que o sujeito é dirigido
e canalizado”, já que “o desejo é o que mantém a direção da análise” (MEDEIROS,
2012, p. 50). Entretanto, já antevisto em Freud, e muito bem pontuado em Lacan, “os
1080
fenômenos da transferência e resistência demonstram que o analista está sempre
obstaculizando essa apresentação do desejo. É, afinal, quando ele - o analista - se
faz presente no discurso do paciente, na transferência, que a resistência emerge”.
Calcados nesta compreensão sobre a relação analítica, lançamo-nos à
elaboração de uma indagação surgida em meio a um grupo de supervisão de
atendimentos clínicos, oferecidos em um Programa de Treinamento em Serviço, a
qual também constitui o título do presente trabalho: “O que (não) escutamos quando
escutamos os pais?”.
Objetiva-se, no decorrer deste trabalho, discutir os efeitos discursivos de uma
proposta de dispositivo institucional grupal com pais de crianças com traços autísticos.

MÉTODO
O presente trabalho trata-se de um estudo exploratório, descritivo e qualitativo,
derivado de uma amostra da pesquisa “Sinais de risco e sofrimento psíquico na
primeira infância: identificação e estratégicas de intervenção”, aprovada pelo Comitê
de Ética em Pesquisa da FCM/UNICAMP, com o parecer 1.846.495.
Os dados apresentados referem-se a sessões de um dispositivo institucional
grupal, destinado aos pais dos usuários que são atendidos no Programa de
Treinamento em Serviço para Profissionais da Saúde “Intervenção Precoce em
Crianças de 0 a 3 anos”, realizado no Centro de Estudos, Pesquisa e Reabilitação
“Professor Doutor Gabriel O. S. Porto”, da Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas (CEPRE/FCM/UNICAMP), com periodicidade
quinzenal.

A CRIAÇÃO DE UM LUGAR DE ESCUTA QUANDO NÃO SE ESCUTA

“Grupo de escuta”, “Grupo operativo”, “Grupo de acolhimento”, “Grupo de pais”,


como podemos nomeá-lo? Essas foram as perguntas de integrantes de um grupo de
supervisão, enquanto, em um movimento aparentemente “não-intencional”, os
profissionais participantes do Programa de Treinamento em Serviço em Intervenção
Precoce discutiam sobre novas possibilidades terapêuticas, a fim de também oferecer
acolhimento aos pais dos pacientes atendidos.

1081
O grupo foi criado a partir de discussões dos casos clínicos, objetivando, a
priori, fornecer escuta e acolhimento aos pais, a partir do método psicanalítico, o qual
privilegia, de acordo com Cazanatto, Martta e Bisol (2016), dar voz ao sujeito singular
e favorecer os furos institucionais.
A priori, a intenção era fornecer um espaço em que os pais pudessem
compartilhar experiências pessoais em relação aos seus filhos. Como bem sabemos,
o grupo, entre suas especificidades, possibilita que haja o encontro de diferentes
posições subjetivas e discursivas, favorecendo que seus integrantes circulem de uma
à outra posição (MERLETTI, 2018).
Esta foi a premissa inicial, um grupo para o compartilhamento de experiências
que pudesse ser construído a partir das próprias demandas parentais. Mantinha-se a
formulação lacaniana, de que a oferta cria a demanda. Não havia nada de
premeditado. Nenhum delineamento. Apenas o desejo de oferecer um lugar de escuta
aos pais. Havia, contudo, apenas uma condição, os encontros deveriam ser
conduzidos por um outro profissional que não atendesse as crianças.
Um dos autores do presente trabalho voluntariou-se a essa empreitada. Apesar
de também participar do referido Programa de Treinamento em Serviço, como
responsável pela filmagem dos atendimentos, seu lugar não era o de analista. A
posição de terceiro o habilitou a coordenar o grupo de pais.
O dispositivo grupal iniciou na semana seguinte a da discussão em torno de
sua criação e foi noticiado pelas psicólogas responsáveis pelos casos,
individualmente, a cada um dos pais, ainda na recepção do centro de atendimento.
Atualmente, o Programa atende sete crianças. Todas vêm aos atendimentos
acompanhadas por seus pais, a maioria apenas pela mãe.
No primeiro encontro do grupo, apenas uma das mães que acompanhava seu
filho não esteve presente. Neste dia, foi exposto aos pais a intenção em criar o
dispositivo: utilizar o horário em que os próprios filhos eram atendidos para ouvi-los,
coconstruir os espaços de compartilhamento, bem como, proporcionar um espaço de
acolhimento. O espaço foi aberto para que aqueles que estivessem ali pudessem se
apresentar, inclusive o próprio coordenador, além de contar como chegaram ao centro
de atendimento e outros assuntos que desejassem.
Todos os pais resumiram a sua experiência relativa à procura por serviços de
saúde que pudessem atender àquilo que chamavam de “atrasos no desenvolvimento”
ou “autismo”, nomeação que, para alguns pais, mostrava-se aterrorizadora.
1082
Ao serem perguntados pelo coordenador do grupo sobre o que pensavam da
proposta e dos encontros, eclodiu um primeiro fio condutor que levaria os profissionais
a (re)pensar o fazer clínico. Um dos pais, em sua resposta, apontou os primeiros sinais
de sua transferência com a terapeuta de seu filho. “Ah, acredito que vai ser um lugar
bom, a gente vai poder falar o que não pode falar lá no atendimento”.
Esta é a fala que iniciaria a discussão, em supervisão, sobre os vínculos entre
as famílias e o Programa. No grupo seguinte, novamente, algo semelhante foi
manifesto. A mãe que não esteve presente no primeiro encontro e que não sabia o
que fora discutido, enquanto se apresentava e falava de seu filho, fez a seguinte
pontuação: “Olha, o Ryan94 veio pra cá porque ele não conseguia comer alimento
sólido, eu não sei o que vocês fazem aqui, mas ele não melhorou”.
A partir destas falas, em supervisão, passamos a discutir o teor das demandas.
A ideia inicial, aparentemente despretensiosa, de um grupo de acolhimento, cederia
lugar para um grupo em que o próprio manejo profissional e arranjos institucionais
fossem denunciados. Os grupos subsequentes seguiram o mesmo movimento inicial
dos pais, entretanto, suas colocações não mais “passariam em branco”.
No terceiro encontro, Valdete, considerada a mãe mais falante, exporia, de
forma mais direta, o que fora apresentado anteriormente pelas demais mães. Ela
relatou que há algumas semanas começou a pensar que gostaria de saber como eram
os atendimentos e acompanhar um pouco mais de perto o que era feito. “Ah, é que eu
trago meu filho aqui, e é como se vocês pegassem ele, levassem ele lá pra dentro
[referindo-se ao centro de atendimento] e eu não sei bem o que acontece”.
Em meio à sua fala, passa a expor, também, suas fantasias em relação aos
atendimentos, “É como se a psicóloga soubesse mais coisas e não quisesse me falar,
sabe”. Passa a dizer diretamente sobre sua transferência com a terapeuta de seu filho,
relatando um episódio em que lhe solicitou um diagnóstico do filho, e, como resposta,
a terapeuta lhe havia perguntado o que mudaria na relação com ele, caso tivesse um
diagnóstico. “Eu entendi o que ela quis dizer, entendi que ela tava perguntado se
mudaria minha forma de amar meu filho por causa do diagnóstico”.
É interessante destacarmos que a fala de Valdete inicia com a seguinte
pontuação: “Eu estava pensando, há algumas semanas”. E então, passa a dizer sobre
seu desejo de poder acompanhar mais de perto os atendimentos. Podemos pensar o

94
Todos os nomes são fictícios.
1083
quanto o lugar de fala, aberto a partir do dispositivo grupal, fez emergir questões que,
por algum motivo (ou vários), não estavam sendo ouvidas. Esse espaço de escuta
possibilitou aos pais manifestar, ainda de forma incipiente, queixas e reivindicações
que antes eram latentes.
Estes são alguns recortes de momentos significativos vivenciados na
experiência deste grupo e que nos leva para uma segunda e última questão:

O QUE NÃO OUVIMOS E POR QUE NÃO OUVIR?

“É inegável que o controle dos fenômenos da transferência oferece as maiores


dificuldades ao psicanalista”, afirma Freud (1912/2010, p.108), já que perceber neste
processo significa também perceber suas próprias resistências e movimentos
contratransferenciais.
Amparados pela compreensão psicanalítica do fenômeno apresentado,
destacam-se algumas questões que nos levam à compreensão do porquê estas mães
apresentavam em suas “denúncias”, no grupo de pais, sentimentos de desamparo,
mostrando-se desassistidas, ao ponto de não se sentirem incluídas de forma efetiva
no processo terapêutico de seus filhos. Discutir essas questões é também pensar
sobre a relação estabelecida entre terapeutas e mães/pais, em que a proximidade
parecia pouco suportável.
Compreendendo a transferência como um espaço em que os modos clichês da
vida são revividos (FREUD, 1912/2010) e que “favorece a produção de sentidos para
as experiências de cada um dos parceiros da análise” (KUPERMAN, 2008, p. 82),
podemos pensar que a distância das terapeutas, denunciada pelos pais, remete à
maneira como, frequentemente, eles são tratados por diferentes profissionais, no
longo percurso na busca por atendimento, assim como na extrema dificuldade de
construir a parentalidade diante de crianças que pouco demandam e se mantêm,
muitas vezes, também distantes.
Pautado no paradigma que circunscreve os atendimentos do referido Programa
de Treinamento em Serviço, qual seja, a não patologização da infância, o próprio
movimento de resistir a incluir efetivamente estes pais nos atendimentos passou a
justificar a não-resposta e o não-diagnóstico. O não falar sobre, por sua vez, poderia
isentar os próprios analistas. Isentar-se não só da possibilidade de serem
responsáveis pelos destinos do tratamento, mas também distanciar-se da angústia.
1084
Retirar-se da relação é também retirar-se dos afetos que circundam essa clínica tão
complexa dos impasses precoces na constituição psíquica.
Comumente, em casos de filhos autistas, os cuidados dos pais são
apresentados na ordem do excesso, como se o próprio excesso de tratamentos,
influenciado pelo discurso vigente, também pudesse dar conta do excesso de
angústia, do excesso de feridas narcísicas que a não-resposta, vivenciada
diariamente no contato com os filhos, pode causar.
Para os analistas, atender estes casos é expor a si próprio, como alvo de uma
angústia que invade sem pedir licença.
Há ainda, nos relatos dos pais, um outro aspecto: a procura, demandada à
figura dos próprios analistas, de referências, seja no cuidado, no que podem fazer
com os filhos, sobre o que podem pensar e, até mesmo, como podem nomear suas
dificuldades. Há, sem dúvida, um atravessamento do discurso universitário, tal como
formalizado por Lacan (BRANDÃO, 2019), o qual produz o efeito de impedir, muitas
vezes, que os pais reconheçam a si mesmos como detentores de um saber sobre os
cuidados com os filhos.
No dispositivo grupal, quando é ofertado um lugar de fala, um dos pais, por
exemplo, relata sua indignação com a escola do filho, a qual não era tão boa quando
comparada com sua própria experiência escolar na infância. Lembra que antigamente
havia muitas atividades desenvolvidas na escola, diferente daquilo que observa
atualmente com o filho. Esse breve recorte demonstra a necessidade dos pais em
recobrar as próprias referências. A construção da parentalidade remonta à
revivescência da própria história e cuidados recebidos.
Para pais que enfrentam o dilema de terem um filho autista, o contato com a
própria história mostra-se uma tarefa laboriosa, à medida que não encontram
referências para lidar com aquilo que não reconhecem nos próprios filhos. E, por isso,
talvez, podemos apostar que o incisivo apelo é de que os analistas, amparados pelo
lugar do suposto saber, possam fornecer algumas referências de ancoragem. A
demanda parental é de um saber inédito, contudo, a oferta de um lugar de fala pode
favorecer, em contrapartida, um encontro, ou um reencontro com a própria história.
Um reencontro com algo que foge da ordem da prescrição normativa. Foge do
predominante discurso médico e organicista.
Cabe ainda, no presente trabalho, uma discussão sobre o próprio sintoma
institucional, o qual se reflete naquilo que aqui intitulamos de não-escuta dos analistas.
1085
Segundo Bleger (1984), à medida que o profissional se associa à instituição, seus
movimentos e articulações também vão sendo circunscritos pelos modos de operar
institucionais.
Desta forma, não se pode descartar a dimensão institucional do trabalho e nem
sua influência sobre os processos que ali se desdobram. As resistências da instituição
também passam a se constituir como resistências dos que ali operam. Ao pensarmos
sobre tais resistências, denunciadas em um dispositivo grupal, também nos
indagamos: “o que nas configurações institucionais também ocasiona as sensações
da não escuta e do não acolhimento?”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para aqueles que se aventuram à empreitada do fazer psicanalítico,


compreender os fenômenos que circunscrevem esta prática é de fundamental
importância. É a partir do próprio percurso analítico, do reconhecimento de dimensões
que fogem à obviedade da consciência, que são desvelados sentidos e significados,
liames, pactos e não-ditos que permitirão uma atuação menos ingênua às armadilhas
inconscientes.
É tarefa do analista reconhecer, não só seu paciente, mas a si próprio como
sujeito do inconsciente. Reconhecer que o inconsciente perpassa as relações, é
também reconhecer que as próprias resistências lhe fogem ao controle. Somente a
partir desta compreensão, podem-se produzir furos nas dimensões institucionais que
também compõem o pano de fundo de uma análise.
Não há analista, quando não há escuta. Uma escuta que não só está atenta ao
seu paciente, mas que também flutua para as forças que circunscrevem as próprias
relações institucionais.
Uma dupla tarefa se dá neste enredo: reconhecer que ser capturado por aquilo
que invade, que produz a repulsa, que delineia as relações é inevitável e, a partir
desse reconhecimento, apostar em uma posição de não-todo, evitando a onipotência
institucional.

1086
REFERÊNCIAS

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p.31-70.

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1087
101- O DISCURSO DE ÓDIO: UMA ANÁLISE PSICANALÍTICA
DAS MANIFESTAÇÕES PSÍQUICAS IMPLICADAS NESSA PRÁTICA

Naomy Ester de Melo e Marques


Profª. Drª. Thalita Lacerda Nobre

Resumo: Este trabalho teve por objetivo identificar as manifestações psíquicas


presentes na disseminação do ódio por meio de discursos nas redes sociais, bem
como identificar as pulsões que regem este comportamento e descrever os
mecanismos de defesas envolvidos, compreendendo a constituição da identidade dos
indivíduos e o comportamento em grupo. A metodologia empregada foi a de pesquisa
qualitativa de cunho documental, partindo do recorte de três amostras de discursos
de ódio publicadas no mesmo dia do mês de novembro de 2018, na página de notícias
e mídia do Facebook intitulada “O Antagonista”. Os públicos-alvo desta pesquisa
foram indivíduos cadastrados no Facebook, alfabetizados, com escolaridade variada
e de ambos os sexos, cuja idade atendesse os critérios para criação de um perfil nesta
rede social sendo, portanto, maiores de 14 anos. Estas amostras foram
posteriormente analisadas qualitativamente sob uma perspectiva psicanalítica, em
que foram encontradas a presença da manifestação do mundo pulsional nas
mensagens, assim como a expressão do narcisismo e o uso de mecanismos de
defesa como a negação, projeção, racionalização e o deslocamento.

Palavras-chave: Discurso de ódio. Redes Sociais. Psicanálise.

INTRODUÇÃO
A internet mostra-se um ambiente promotor de interações sociais, que
aproxima as pessoas em tempo e espaço, promovendo um grande fluxo de troca de
mensagens e informações. Entretanto, a internet também é palco de violência e
intolerância, a exemplo disso, tem-se a disseminação do discurso de ódio.
Especificamente no Brasil, a Safernet que é a organização responsável pelas
denúncias de crimes online, recebeu entre os anos de 2006 e 2017 a seguinte
quantidade de denúncias separadas por categoria: racismo, 5.534 páginas em 2.452

1088
hosts; xenofobia, 870 páginas em 437 hosts; apologia e incitação de crimes contra a
vida, 3.240 páginas em 2.107 hosts; homofobia, 1.100 páginas em 601 hosts;
intolerância religiosa, 886 páginas em 527 hosts; neonazismo, 319 páginas em 233
hosts. Em um ranking mundial das denúncias recebidas pelo site Safernet, o Brasil se
encontra entre os cinco países que mais possuem denúncias online incluindo o total
de páginas duplicadas, páginas distintas, hosts, IPs e páginas removidas
(SAFERNET, S/D)95.
Estes dados mostram comportamentos online movidos pelo ódio e que
sofreram acusação, no entanto, existem ainda, diversas formas de discurso de ódio
difundidas diariamente e que não recebem o mesmo tratamento.
A relevância para a realização deste trabalho, se deu pelo interesse em
entender quais são os aspectos inconscientes do ser humano que poderiam motivar
a manifestação de tais discursos agressivos e fazer uma aproximação do quanto a
psicanálise pode contribuir para a compreensão do comportamento no contexto social.
Para isso, o objetivo geral estabelecido para o trabalho foi identificar quais são
as manifestações psíquicas presentes na disseminação do discurso de ódio nas redes
sociais. Enquanto os objetivos específicos foram: compreender o comportamento do
indivíduo na massa em grupos virtuais; identificar as pulsões que regem o discurso;
identificar os mecanismos de defesa envolvidos na propagação de ódio.

MÉTODO
O método empregado para a realização do trabalho foi o de pesquisa qualitativa
de cunho documental que consiste na busca de dados por meio de documentos que
ainda não receberam um tratamento analítico, podendo ser utilizados documentos "de
primeira mão" que são documentos como cartas pessoais diários, gravações,
fotografias, ofícios etc. (GIL, 2002).
O critério de delimitação do termo “discurso de ódio” considerou o que se
enquadra na manifestação de preconceito, julgamento, ironia, desigualdade e
inferioridade. Para detectar estes fatores, foi utilizado o paradigma indiciário, uma
metodologia derivada de historiadores proposta por Carlo Ginzburg que é
caracterizada por “um método de conhecimento cuja força está na observação do
pormenor que pode ser revelado, mais do que apenas uma dedução sobre algum

95
SAFERNET, Indicadores da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos. Disponível
em: http://indicadores.safernet.org.br/index.html Acesso em: 10 set. 2018.
1089
aspecto investigativo” (Gomes, 2017, p.34). Portanto, o paradigma indiciário
empregado aqui, visou buscar comentários que contivessem vestígios de que o autor
não estava promovendo uma reflexão e sim um ataque.
Figueiredo e Minerbo (2006) propõem que a pesquisa em psicanálise consiste
na produção de conhecimentos em que a própria psicanálise pode assumir diversas
formas, tanto como objeto de estudo assim como pode contribuir com o uso dos seus
conceitos para investigar e compreender diversos fenômenos sociais ou subjetivos.
Desta forma, os conceitos em psicanálise foram usados na análise das amostras a fim
de interpretar o fenômeno do discurso de ódio no meio social virtual.

Procedimentos
Foram escolhidas três postagens96, dispostas em cinco amostras com
comentários contendo discurso de ódio publicados por usuários na página de notícias
e mídia “O Antagonista” do Facebook compreendendo o período de um dia do mês de
novembro em 2018. Posteriormente, estes recortes foram analisados qualitativamente
sob uma perspectiva psicanalítica.
Os públicos-alvo desta pesquisa são indivíduos que possuem uma conta cadastrada
no Facebook, cuja idade atenda os critérios para criação de um perfil nesta rede social
sendo, portanto, maiores de 14 anos, alfabetizados, com escolaridade variada e de
ambos os sexos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
O Antagonista é uma página para contato no Facebook proveniente de um site
de notícias e mídia fomentada por jornalistas, que recebe o mesmo nome. A criação
da página foi dada em 1 de janeiro de 2015 e atingiu a marca de 650 mil seguidores
no ano de 201797.
Os resultados encontrados pela análise das três amostras demonstram que o
sujeito manifesta no ambiente virtual os seus aspectos psíquicos inconscientes, sendo
estes a pulsão de morte, o narcisismo e os mecanismos de defesa, tais como
projeção, negação e racionalização.

96
O Antagonista. Disponível em: https://www.facebook.com/pg/oantagonista/posts/

97
O Antagonista. Disponível em: https://www.facebook.com/pg/oantagonista/about/?ref=page_internal
1090
A pulsão de morte é observada em todos os comentários selecionados, pois é
o instinto que sustenta o discurso de ódio. Este impulso agressivo encontra um meio
de ser satisfeito tanto quando o autor expressa a sua raiva e direciona o seu
comentário ofensivo a alguém, quanto em mensagens que visam a desunião.
Estes aspectos podem ser observados no primeiro trecho selecionado de um
comentário que diz “Preocupado com os direitos humanos dos humanos direitos, não
direito dos manos”. Em resposta a uma publicação intitulada: “Hoje Bolsonaro posa
de preocupado com os Direitos Humanos.” O autor promove a desunião ao separar
as pessoas em dois grupos, as pessoas que são “humanos direitos” e os “manos”,
atribuindo menos valia ao segundo grupo.
O narcisismo aparece nos trechos recortados, de forma não declarada, mas se
faz presente no momento em que difama o outro colocando-o em posição inferior, de
forma que o sujeito se reafirma ao adquirir uma posição mais favorável em seu ponto
de vista, assumindo o lado da razão. É próprio do narcisismo não aceitar o diferente
e o tentar repelir atribuindo-lhe características negativas. Como pode ser observado
no comentário: “E toda vez que ela fala, lembro que precisamos urgente de mais
manicômios” em resposta à publicação: “Gleisi98 : Toda vez que vejo entrevista de
Moro lembro do filme O Advogado do Diabo.”
Neste sentido, pensa-se que alguns mecanismos da própria rede social possam
contribuir para que este narcisismo se torne mais enfático, pois com o sistema de
filtros online os usuários passam a ficar cada vez mais próximos de conteúdos e
pessoas semelhantes a si, que é justamente o que se faz ao alimentar o narcisismo.
Estar longe de informações e pessoas distintas, evita que o sujeito tenha que lidar
com o que lhe traz aversão, assim ele pode se tornar cada vez mais intolerante com
os demais. Em contrapartida, a internet favorece a globalização que torna possível a
aproximação de diferentes raças e culturas, o que faz dela um meio de comunicação
com grande diversidade podendo gerar esses embates, quando a diferença esbarra
nos limites do narcisismo.
Quanto aos mecanismos de defesa, foram identificados quatro deles, que
atuam de forma relacionada. A projeção permite ao indivíduo transferir seus aspectos
negativos ao objeto, sendo que estes aspectos não são reconhecidos ou aceitos por

98
Gleisi Hoffmann é senadora do estado do Paraná e presidente do Partido dos Trabalhadores.

1091
si mesmo, pois ele utiliza para isso, o mecanismo de negação. Esta relação entre
negação e projeção está intimamente associada ao narcisismo, pois permite ao sujeito
justificar a sua aversão ao apontar no outro, seus aspectos negativos. A
racionalização, por outro lado, possibilita que estes dois mecanismos citados se
expressem por meio de mensagens de cunho moral ou lógico que expliquem suas
aversões.
O comportamento do usuário dentro do grupo na rede social também foi
verificado e foi percebido que, assim como nas massas, o sujeito online tende a ter
sua crítica rebaixada para deixar fluir o pensamento do grupo. Com isso, repercute
ideias por meio da repetição de ideologias. É importante ressaltar que a
indiferenciação da massa também é uma característica do sujeito pós-moderno, que
tenta afirmar a sua identidade por meio dos valores sociais, valores estes que visam
a individualidade e o apreço pela imagem. E que levam os aspectos antes
pertencentes à vida privada para a vida pública e, posteriormente se estende às redes
sociais, gerando um conflito devido à dificuldade em delimitar e diferenciar o que é
privado e liberdade de expressão de público e discurso de ódio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve o objetivo de verificar quais são as manifestações psíquicas
que permeiam a disseminação do discurso de ódio nas redes sociais, analisando o
comportamento de grupo, as pulsões que regem o discurso e os possíveis
mecanismos de defesa atuantes na propagação de ódio.
O objetivo foi cumprido por meio da pesquisa documental desenvolvida, que
visou fazer o recorte de publicações de discurso de ódio online pela página escolhida.
Estes recortes foram analisados por uma abordagem psicanalítica que verificou a
presença da manifestação do mundo pulsional nas mensagens, assim como a
expressão do narcisismo e o uso de mecanismos de defesa como a negação,
projeção, racionalização e o deslocamento. Corroborando com a hipótese do trabalho.
O comportamento em massa também foi acurado e foi percebida a repercussão
de um pensamento massificado pautado em discurso ideológico individualista
construído socialmente.
Estes resultados encontrados, aliados à revisão de literatura, podem
demonstrar que a internet aparece como um meio favorável para a propagação deste
discurso. Em razão da impressão de impunidade proporcionada pela dificuldade em
1092
delimitar o público e privado neste espaço, e pelo modo como lidamos culturalmente
com o discurso de ódio. Além de ser uma plataforma que favorece a aproximação por
meio de troca de mensagens virtuais, mas ainda mantém a distância física entre os
indivíduos. Por esta razão, o sujeito que propaga o ódio, demonstra por meio do
discurso, aspectos inconscientes da sua vida psíquica, que poderiam estar inibidos
em outros meios de convívio social.
Diante disso, se faz necessário que mais pesquisas sejam feitas a fim de
ampliar os conhecimentos acerca do funcionamento psíquico que envolve esta
prática, pois configura-se como um tema atual, devido a sua proporção de deflagração
e denúncias oficiais recebidas, bem como a sua associação ao momento político
nacional. É importante haver a contribuição de informações que possam sensibilizar
a população quanto a naturalização do discurso de ódio e promover uma reflexão
crítica a respeito deste comportamento e suas consequências psíquicas e sociais.

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1097
102- ÁLCOOL: PRAZER OU PROIBIÇÃO? UMA ANÁLISE DAS
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Larissa de Maria Simões Artiga99


Karolline Neves Campos Silva100
Danuta Medeiros101

Resumo: O álcool é um exemplo de substância psicoativa que, historicamente, possui


grande valorização e reconhecimento social em diversas culturas. O principal objetivo
desta pesquisa foi investigar as representações sociais de graduandos de
Enfermagem sobre os motivos pelos quais o consumo de bebidas alcoólicas ocorre.
Fizeram parte da amostra 28 universitários dos últimos semestres de graduação em
Enfermagem, de uma universidade privada na cidade de São Paulo-SP. Como
instrumentos de coleta de dados, utilizou-se um questionário de caracterização da
amostra e uma questão-caso, se referindo a uma história que narrava um contexto de
consumo de bebidas alcoólicas. Os dados foram analisados com base na metodologia
do Discurso do Sujeito Coletivo e articulados à luz da teoria psicodinâmica. Os
resultados revelam que a maioria dos estudantes afirma consumir bebidas alcoólicas
atualmente, e o quanto aspectos de socialização, válvula de escape e prazer
permeiam as razões para o consumo. Assim, questiona-se acerca de políticas
públicas com enfoque proibicionista, visto que o uso de substâncias psicoativas não
abrange apenas aspectos negativos, tal como foi apontado pelo presente estudo,
sendo importante ressaltar que se trata de um recorte de uma pesquisa mais extensa
que abarca o uso de outras substâncias lícitas.

Palavras-Chave: Representações Sociais. Bebidas Alcoólicas. Universitários. Saúde.

99
Aluna do 5º ano de graduação em Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
100
Aluna do 5º ano de graduação em Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
101
Doutora em Ciências/Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, docente no curso de
Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
1098
Introdução
Para muitos estudantes, a experiência do ingresso e permanência no ambiente
universitário denota um marco importante na sua constituição enquanto sujeito. Em
um período marcado por diversos desafios, tais como a perda de referências que
geram desamparo, desenvolvimento de autonomia, vivência de novas experiências e
aumento de responsabilidades (Teixeira, Dias, Wottrich & Oliveira, 2008), há também
o aumento da vulnerabilidade para a experimentação de substâncias psicoativas por
estes universitários (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas [SENAD], 2010).
O autor Dalgalarrondo (2008) compreende substância psicoativa como
“qualquer substância química que, quando ingerida, modifica uma ou várias funções
do SNC, produzindo efeitos psíquicos e comportamentais” (p. 344), citando dentre os
exemplos, as bebidas alcoólicas.
As variáveis que configuram as motivações para o consumo de substâncias
pelos universitários, como o álcool, podem ser diversas. No estudo de Zeferino,
Hamilton, Brands, Wright, Cumsille, & Khenti. (2015), por exemplo, os autores
verificaram que o consumo de drogas lícitas (álcool e tabaco) esteve associado à
influência de amigos que faziam uso de algum tipo de droga. Além disso, neste mesmo
estudo, os universitários que não se encontravam em algum tipo de relacionamento
amoroso demonstraram maior vulnerabilidade para o consumo dessas duas
substâncias (Zeferino et al., 2015).
Sobre as razões que determinam o consumo de substâncias, numa visão
psicanalítica, Alencar (2016), em sua tese sobre drogas e pulsão na modernidade,
afirma que “não se trata da droga, mas do sujeito e das associações que este produz
acerca da droga, da vida familiar, dos amores etc.” (p. 46). O autor cita a compreensão
do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi sobre essa temática, afirmando que para ele
o consumo de drogas não seria a causa de problemas, mas sim consequências de
conflitos psíquicos, sendo o uso de substâncias um modo de busca para solucioná-
los (Alencar, 2016). À vista disso, pensando nos possíveis desencadeadores do
consumo de álcool, é necessário que se conheça o mais amplamente possível o
contexto no qual o universitário está inserido, bem como as suas representações
sociais acerca dos sentidos subjetivos atribuídos ao consumo.
Para Lefèvre e Lefèvre (2003), uma das formas de se compreender as
representações sociais “consiste em entendê-las como a expressão do que pensa ou
acha determinada população sobre determinado tema” (p. 30). Entre as
1099
representações acerca do álcool, observa-se um exemplo familiar, compartilhado
culturalmente no país ao longo dos anos: os discursos presentes em letras de músicas
do gênero sertanejo, especialmente o “sertanejo universitário” na atualidade. Na
dissertação de Lioto (2012), a autora, analisando letras de canções deste gênero
musical que citam o álcool, observa semelhanças nos discursos das canções, as quais
atribuem à bebida a capacidade de solucionar ou amenizar problemas e de trazer
alegria.
Além dos discursos retratados pelas letras do sertanejo, há outro conteúdo
difundido ao longo dos anos, capaz de exemplificar e representar o modo como o
consumo do álcool é percebido: o contexto apresentado nas propagandas das marcas
de cerveja. Em uma análise de 18 comerciais de cerveja, realizada por Oliveira,
Romera e Marcellino (2011), os autores identificaram alguns padrões nesse tipo de
publicidade, entre eles: a unanimidade da presença de pessoas jovens, reunidas em
situações de lazer distintas que incluíam o consumo de bebida alcoólica, tais como
em bares, eventos festivos (exemplo: carnaval) e praias; exposição da sensualidade
feminina, incluindo a presença de cantores ou personalidades conhecidas pela mídia.
A associação entre cerveja, futebol e carnaval na publicidade é também apontada por
Pinsky e Jundi (2008).

Objetivos e Justificativa
Posto que o consumo de álcool é mais recorrente entre os universitários do que
na população geral (SENAD, 2010), e que vários estudos como o de Zeferino et al.
(2015) levantam que esta é uma das substâncias mais consumidas entre os
universitários, desperta-se o interesse e a necessidade de compreender mais
profundamente quais são as percepções de estudantes da área da saúde,
especialmente dos futuros enfermeiros, sobre o fenômeno do consumo. Diante disso,
o objetivo geral desta produção científica foi de investigar e caracterizar as
representações sociais que universitários dos últimos semestres de graduação em
Enfermagem, de uma instituição privada de ensino superior na cidade de São Paulo-
SP, possuíam acerca do consumo de álcool.

Método
A fim de atingir os objetivos propostos, optou-se por utilizar o desenho de
estudo denominado como qualiquantitativo pelos autores Lefevre e Lefevre (2010).

1100
Sendo uma pesquisa que tem como enfoque apreender as representações sociais de
um determinado grupo, ou seja, o que pensa um grupo de indivíduos acerca de um
determinado tema, os autores da proposta metodológica explicam que a opinião
coletiva é composta simultaneamente por uma dimensão qualitativa e outra
quantitativa, não havendo oposição entre elas, pelo fato de expressarem partes
distintas de um mesmo fenômeno (Lefevre & Lefevre, 2010).
De acordo com os autores, a dimensão qualitativa refere-se ao fato de que cada
opinião é uma qualidade, que será apreendida por meio de uma questão aberta, onde
o sujeito expressará livremente um depoimento, ideia ou opinião, que posteriormente
deverão ser descritas, ou seja, qualificadas (Lefevre & Lefevre, 2010). Após o
processo de descrição das qualidades, é então possível quantificá-las, processo este
que permite a percepção da adesão de uma determinada opinião entre os sujeitos
pertencentes àquele grupo, bem como o grau de compartilhamento destas opiniões
(Lefevre & Lefevre, 2010). Para Lefevre e Lefevre (2010), não há como quantificar o
que não foi, a princípio, qualificado, e é por essa razão que o método recebe o nome
de qualiquantitativo, ao invés de “quantiqualitativo”.
Participaram da amostra 28 estudantes universitários dos dois últimos
semestres de graduação em Enfermagem de uma universidade privada da cidade de
São Paulo-SP. Optou-se por incluir na amostra estudantes de ambos os gêneros,
maiores de 18 anos, devidamente matriculados no oitavo e nonos semestres,
excluindo os pertencentes a períodos anteriores.
Como instrumentos, utilizou-se: a) um questionário de caracterização da
amostra elaborado pelas autoras; b) apresentação escrita de uma história,
exemplificando um contexto de consumo de álcool e outras substâncias lícitas, sendo
esta: “Um grupo de estudantes universitários costuma se reunir à noite para irem a
bares próximos à faculdade. Lá, alguns bebem álcool, outros fumam cigarro, e alguns
compartilham o narguilé”. Em seguida, o universitário era convidado a responder à
duas questões-caso, sendo a primeira: “Por que você acha que os universitários fazem
o uso destas substâncias?”, para posterior análise do Discurso do Sujeito Coletivo -
DSC. Importante enfatizar que neste artigo estão dispostos apenas um recorte de um
estudo mais extenso que abrangeu outros objetivos e outras substâncias lícitas,
focando aqui nos dados obtidos apenas em relação às razões que motivam o consumo
de álcool, elegendo categorias de respostas específicas para fins de discussão.

1101
Após a autorização da coordenação do curso de Enfermagem e posterior
aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade selecionada
(CAAE nº 13473219.5.0000.0089), a coleta efetuou-se no mês de junho, no dia e
horário combinados previamente. Os instrumentos foram entregues em envelopes
lacrados, individualmente, a cada aluno que voluntariamente se propôs a participar da
pesquisa. Os estudantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
em duas vias, e em seguida responderam individualmente aos dois instrumentos, e
ao término foram recolhidos pelas pesquisadoras.
Os dados foram analisados a partir da metodologia do Discurso do Sujeito
Coletivo (DSC), sendo articulados à luz da teoria psicodinâmica. O DSC consiste em
uma técnica qualiquantitativa de pesquisa empírica proposta por Fernando Lèfevre e
Ana Maria Cavalcanti Lèfevre da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo (USP), que vem sendo desenvolvida desde o final da década de 1990 para
pesquisas de representação social, entre outros tipos, que tenham materiais verbais
como base (Lefevre & Lefevre, 2010).
Enquanto recurso metodológico que permite generalizações, o DSC possibilita
apresentar as distintas categorias de pensamento existentes entre os sujeitos de um
grupo acerca de um determinado assunto ou tema, por meio da qualificação desses
depoimentos ou discursos, além de permitir identificar semelhanças e diferenças
nestes modos de pensar, verificando também o grau de compartilhamento de uma
opinião entre os indivíduos que compõem essa coletividade, sendo esta a dimensão
quantitativa do DSC (Lefevre & Lefevre, 2010).

Resultados
Participaram da pesquisa o total de 28 estudantes universitários, com
predominância pelo gênero feminino (82,14%; n=23), de idades entre 21 a 44 anos
(M=24,96; DP=5,2), todos alunos dos dois últimos semestres de graduação em
Enfermagem de uma universidade privada de São Paulo - SP, sendo 71,43% (n=20)
alunos do nono semestre e 28,57% (n=8) do oitavo. Pouco mais da metade da amostra
(53,57%, n=15) foi composta por sujeitos que se declararam brancos e 42,86% (n=12)
por pardos. Quanto ao estado civil dos participantes, 50% (n=14) eram solteiros e
35,71% (n=10) estavam namorando.
Em relação ao consumo de álcool, a maioria dos universitários (75%, n=21)
afirma consumir bebidas alcoólicas atualmente, sendo que os tipos mais citados foram
1102
a cerveja e o vinho, seguidos por bebidas destiladas, tais como a vodca, uísque,
tequila, entre outras.
A seguir serão exibidos um recorte dos dados qualiquantitativos, sendo a
dimensão qualitativa exposta através dos Discursos do Sujeito Coletivo, e a dimensão
quantitativa sob a forma de gráfico (Figura 1), ambos construídos a partir das
categorias de respostas acerca dos possíveis motivos que levam ao consumo de
bebidas alcoólicas, de acordo com os universitários de Enfermagem.
Na sequência, as categorias mais mencionadas dentre os participantes foram:
A - Socialização e influência do meio (60,71%; n=17); B - Válvula de escape (46,43%;
n=13); C - Prazer (25%; n=7); D - Moda (17,86%; n=5); E- Dependência (14,29%;
n=4); F - Experimentação (7,14%; n=2); G - Desconsideração dos riscos (3,57%; n=1).
Para fins de posterior discussão, neste estudo a ênfase dada será para as três
primeiras.

20 17
Participantes (n)

13
15

10 7
5
4
5 2 1

0
A B C D E F G
Categorias

Figura 1. Distribuição da intensidade, segundo número de participantes, das categorias de resposta


para a questão-caso “Por que você acha que os universitários fazem o uso destas substâncias?”.

DSC categoria A - Socialização e influência do meio:


"Acredito que os universitários fazem o uso inicialmente para estabelecer vínculos,
fazer amigos, pois creio que esse é um modo de eles se ambientarem e serem
inseridos neste novo grupo, a partir da sensação de bem-estar social que é
proporcionada. Além disso, eu percebo que o consumo possui associação com o
ingresso desses sujeitos ao ambiente universitário, que inclui idas a bares e baladas,
onde a grande maioria dos estudantes usa como forma de diversão e confraternização
com os amigos. Assim, por estarem sempre próximos de pessoas que consomem e
para não ficarem de fora, acabam sendo influenciados a também consumir".

1103
DSC categoria B - Válvula de escape:
"Eu acredito que o uso funciona como uma forma de fuga da rotina cansativa e pesada
que os universitários possuem. O dia a dia de estudos acadêmicos, conciliado com
trabalho e vida pessoal, geram sentimentos de cobrança, estresse, cansaço físico e
mental. Então, eu acho que esses sujeitos bebem, na maioria das vezes, porque
precisam de uma válvula de escape, de modo a aliviar toda essa pressão, para
desestressar, relaxar e distrair a cabeça. Além disso, também é uma forma de criar
uma 'realidade' desejada para, de certo modo, fugir dos problemas".

DSC categoria C - Prazer:


"Eu penso que os universitários consomem por opção pessoal, porque gostam dos
efeitos gerados. O uso talvez proporcione uma sensação de prazer, misturada com
um bem-estar social. Eu também acho que os universitários buscam ter prazeres
momentâneos".

Discussão
Observando a predominância pelo feminino obtida na amostra dos
universitários de Enfermagem do presente estudo, destacando que aqui optou-se por
incluir ambos os gêneros, é um dado que fortalece os resultados obtidos por
Mendonça, Jesus e Lima (2018) e por Sawicki, Barbosa, Fram e Belasco (2018), que
em seus estudos também identificaram predominância pelo feminino entre
universitários da área da saúde, incluindo Enfermagem. De acordo com a literatura,
estes resultados ilustram um cenário social já antigo, em que as mulheres adquirem
predominância na profissão de Enfermagem, conforme apontado por Amorim (2009).
Para a autora, mesmo que a tarefa do cuidar compreenda homens e mulheres, o modo
como a divisão do trabalho se deu ao longo dos anos culminou para a concepção
social de que funções que demandem sensibilidade, carinho e afeto fossem tidas
como femininas, estando a atuação em Enfermagem desde sempre associada com
conceitos relacionados à submissão e devoção (Amorim, 2009).
Nota-se que a maioria dos universitários participantes relataram consumir
bebidas alcoólicas no período atual da pesquisa (75%, n=21). Isso se assemelha ao
dado obtido nas amostras de Gomes et al. (2019) e Pinheiro et al. (2017), em que o
uso atual de álcool entre acadêmicos de Medicina foi um pouco mais elevado,
correspondendo a 81,95% e 81,2%, respectivamente. Verifica-se que na amostra de
1104
universitários de Enfermagem de Sawicki et al. (2018), a porcentagem do uso atual
de álcool foi de 76,7%, resultado que se aproxima mais do observado pelo presente
estudo.
Ao recuperar o objetivo central desta pesquisa, a fim de investigar as razões
que motivam o consumo específico de bebidas alcoólicas, sob a percepção de
universitários de Enfermagem, verifica-se que a categoria que obteve maior grau de
compartilhamento aborda o aspecto de “socialização e influência do meio” (n=17). O
DSC da categoria A aponta para os significados do consumo de álcool enquanto
facilitador no estabelecimento de vínculos e na inserção ao ambiente universitário.
Neste contexto social, nota-se a importância atribuída ao sentimento de pertencimento
e à não exclusão pelos demais sujeitos semelhantes, fatores que parecem ilustrar a
influência que o meio exerce perante o consumo. Semelhante à isso, o estudo de
Zeferino et al. (2015) verificou associação entre o consumo de drogas lícitas e a
influência de amigos que usavam algum tipo de substância. Outro dado complementar
à influência do meio é observado na amostra de Rosa e Nascimento (2015), no qual
o bar demonstrou ser o principal lugar para o consumo de álcool, seguido por baladas,
festas e shows.
Salienta-se aqui a estreita relação entre os DSCs das categorias “B - Válvula
de escape” (n=13) e “C - Prazer” (n=7). Ao passo em que o primeiro ilustra o consumo
associado ao alívio de sentimentos penosos que permeiam a rotina do universitário, o
segundo assume o potencial que o álcool possui em propiciar sensações de prazer,
mesmo que momentâneas, que concomitantemente, também atuam na diminuição do
sofrimento do sujeito. Essa conexão entre prazer e válvula de escape retoma o que
Freud (1930[1929]/1974) nomeou como o propósito de vida dos seres humanos,
dizendo que estes “querem ser felizes e assim permanecer” (p. 94). Para o autor, esta
premissa envolve tanto a ausência de sofrimento, quanto a vivência de “intensos
sentimentos de prazer” (Freud, 1930[1929]/1974), p. 94).
Por interessante coincidência, essa relação “prazer e alívio de sofrimento” no
contexto de consumo de bebidas alcoólicas se faz presente também nas várias letras
de sertanejo universitário que mencionavam o álcool, analisadas por Lioto (2012), bem
como no conteúdo das propagandas de cerveja estudadas por Oliveira et al. (2011).
Entretanto, não se pode desconsiderar que, como o termo “droga” dificilmente é
vinculado ao álcool, há maior aceitação quanto à associação das bebidas alcoólicas

1105
à contextos de diversão e felicidade presentes nos veículos publicitários (Mendonça
et al., 2018).
Dentre as diversas formas existentes de se aliviar o sofrimento, Freud (1930
[1929]/1974) irá mencionar a intoxicação química como a maneira mais eficiente,
apesar de ser também a mais grosseira. No caso do álcool, considerando que trata-
se de uma droga “depressora” (SENAD, 2014), ou seja, afeta o cérebro e torna seu
funcionamento mais lento, diminuindo algumas capacidades cognitivas, pode existir a
percepção errônea de que ao beber, ao menos momentaneamente, o sofrimento do
sujeito possa ser diminuído ou esquecido, sensação esta capaz de ser percebida pelo
usuário como prazer e alívio de sofrimento, algo que é bastante expresso nas letras
do sertanejo universitário analisadas por Lioto (2012).
Assim, verifica-se forte associação entre as principais representações sociais
dos universitários de Enfermagem obtidas pelo presente estudo, com a ênfase dada
pelos veículos de comunicação quanto aos aspectos agradáveis e prazerosos do
consumo, seja por via de músicas ou em campanhas publicitárias em eventos festivos,
por exemplo, evidenciando muito pouco os prejuízos à saúde do usuário e de
terceiros, como no caso de acidentes de trânsito.

Considerações Finais
Conforme apontam os resultados parciais apresentados neste estudo, que já
eram esperados com base na literatura, houve predominância na amostra por
universitários consumidores atuais de bebidas alcoólicas. Havendo preferência pela
cerveja, verificou-se neste estudo o quanto este produto é envolto de valorização
social, não só pela publicidade que ressalta os prazeres advindos do consumo, como
também pelos discursos apresentados nas letras do sertanejo universitário, colocando
o álcool numa posição de cura de desilusões amorosas e fonte de momentos de
alegria.
É importante salientar as limitações deste estudo, considerando as
características amostrais e temporais, dentre elas a difícil comparação entre as
representações sociais por gênero, ou entre sujeitos consumidores e não
consumidores.
Recuperando o objetivo central e apoiado nas descobertas desta pesquisa, que
aqui se atenta apenas para a questão das bebidas alcoólicas, observa-se o quanto a
dimensão do prazer permeia o contexto do consumo de substâncias psicoativas. Visto
1106
isso, pensando na criação de políticas públicas que buscam a redução do uso, estas
não devem desconsiderar o aspecto prazeroso envolvido, tampouco basear-se na
proibição do uso. Ademais, outra problemática que merece maior investigação, que
também não foi o enfoque do estudo, refere-se à quais seriam as etapas anteriores
ao quadro de dependência e como se configura a linha tênue entre o consumo social
e o consumo tido como problemático.

Referências

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1108
103- A PERCEPÇÃO DA IMAGEM CORPORAL EM PACIENTES PÓS
BARIÁTRICOS

Aline Cordeiro dos Santos102


Karyne Santiago Lima103
Danuta Medeiros104

Resumo: Atualmente, apesar de a sociedade estar vivenciando um processo de


quebra de padrões estéticos, pode-se observar a crescente busca pelo “corpo
perfeito”, sendo este um dos principais motivos para a realização de métodos
invasivos de emagrecimento, como é o caso da cirurgia bariátrica. Pensando nisso, o
presente estudo buscou compreender a percepção da autoimagem após a realização
do procedimento cirúrgico. Para isso, participaram do estudo indivíduos que tinham
realizado o procedimento cirúrgico em um período mínimo de dois anos, de ambos os
sexos, com idade superior a 18 anos. A pesquisa foi realizada através da aplicação
do procedimento do Desenho Estória com Tema e de uma entrevista semiestruturada,
analisados a partir de uma visão psicodinâmica. Faz-se importante ressaltar que se
trata de um recorte de uma pesquisa mais extensa que investigou a percepção dos
participantes antes e após a realização do procedimento cirúrgico. Os resultados
apontam para uma satisfação da imagem corporal após o procedimento cirúrgico,
além de maiores afetos positivos e maior confiança pessoal frente à sociedade. Com
isso, espera-se suscitar uma reflexão sobre a temática, visto que a falta de
acompanhamento psicológico depois do procedimento cirúrgico pode gerar
complicações na percepção destes indivíduos sobre o próprio corpo.

Palavras-chave: Cirurgia Bariátrica. Percepção da Imagem Corporal. Autoimagem.


Desenho-Estória com Tema.

102 Graduanda do 5º ano de Psicologia pela Universidade São Judas Tadeu, USJT/SP, Brasil. Email:
psicologia.usjt.aline@gmail.com
103 Graduanda do 5º ano de Psicologia pela Universidade São Judas Tadeu, USJT/SP, Brasil. Email:

karyne.santiago@hotmail.com
104 Doutora do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu. E-mail:
danutamedeiros@yahoo.com.br
1109
INTRODUÇÃO
A imagem corporal, estudada por Schilder (1923, citado por Schakarowski &
Oliveira, 2014), diz respeito às representações inconscientes e conscientes que um
indivíduo possui sobre seu próprio corpo no espaço, e que envolve aspectos físicos,
emocionais e sociais. Com base nesse pensamento, podemos pensar nas relações
dos indivíduos com a sua autoimagem na atualidade, visto que em nossa sociedade
pode-se observar uma crescente busca pelo “corpo perfeito”, onde o padrão estético
ideal é considerado como sendo um corpo magro e sem curvas.
Mesmo com esse padrão, segundo os dados da Organização Mundial da
Saúde (OMS, 2018), no ano de 2016, mais de 1,9 bilhões de pessoas maiores de 18
anos estavam com sobrepeso, dentre eles, 650 milhões eram obesos, sendo que
essas porcentagens vêm aumentando com o passar dos anos. Devido a esse
crescimento alarmante e consequências no Brasil, o Ministério da Saúde (1999) afirma
que a obesidade se tornou objeto de políticas públicas, sendo ele próprio, através do
Sistema Único de Saúde (SUS), o autor das ações, que a partir de 1990 definiu
diretrizes para realizar trabalhos ligados a áreas de alimentação e nutrição da
população, o que inclui a prevenção e o tratamento da obesidade.
No entanto, a ineficácia dos tratamentos nutricionais, dos medicamentos
antiobesidade e da indicação de exercícios físicos regulares, fez com que novas
formas de tratamento surgissem, a fim de atender às necessidades desta população
(Truzzi, 2008). Assim, uma das formas de combate a obesidade é a Cirurgia Bariátrica,
que, segundo Segal e Fandiño (2002), é indicada para indivíduos que possuem um
Índice de Massa Corporal classificado com obesidade moderada (grau II), e
apresentam ao menos duas comorbidades como, por exemplo, hipertensão arterial e
apneia do sono, além de indivíduos com obesidade mórbida (grau III).
Mas a procura pela cirurgia bariátrica nem sempre está pautada nas indicações
médicas, e sim pela busca do corpo idealizado. Fagundes, Caregnato e Silveira (2016)
expõem que a procura pelo procedimento ocorre por motivos estéticos, sendo visto
como uma forma de não se sentir diferente ou inferior aos outros e de recomeçar uma
nova vida. Essa ideia corrobora com o que Berg (2008) afirma sobre a dificuldade que
alguns indivíduos, considerados obesos, têm em lidar com o próprio corpo que não
corresponde aos padrões sociais. Além disso, a cirurgia bariátrica parece surgir como
um último recurso, que oferece uma melhora mágica, atuando inicialmente no
imaginário através de uma promessa de modificação do olhar sobre si mesmo e o
1110
olhar das demais pessoas, para somente assim, o sujeito passar a existir de forma
completa (Machado, 2017).
No entanto, não se pode descartar a ideia de que a representação mental que
um indivíduo elabora sobre sua autoimagem não está pautado apenas nos padrões
sociais. Marchesini e Antunes (2017) explicam que a imagem corporal implica na
autopercepção do indivíduo sobre o próprio corpo e sobre as atitudes relacionadas a
esse corpo. Além disso, a perda de peso nem sempre irá garantir o aumento da
autoestima, já que muitos pacientes bariátricos, mesmo após perder uma grande
quantidade de peso se mostram insatisfeitos com sua imagem corporal (Faln, 2012,
citado por Marchesini & Antunes, 2017). Essa insatisfação pode estar relacionada com
o pensamento proposto por Benedetti (2003), sobre a necessidade de existir um
consenso entre as mudanças ocorridas e adaptação à nova realidade, caso contrário
o emagrecimento representará apenas um corpo que perdeu peso.

OBJETIVOS
O objetivo foi compreender a percepção da imagem corporal de indivíduos
submetidos à cirurgia bariátrica sobre si mesmo. Especificamente, buscou-se analisar
se a percepção que esses pacientes possuem sobre sua autoimagem é a mesma de
quando ainda não haviam sido submetidos a cirurgia bariátrica.

MÉTODO
O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa de campo qualitativa,
que é uma abordagem que não se atém aos dados numéricos, mas sim, a
investigação e o aprofundamento da compreensão e explicação de um determinado
grupo e as dinâmicas das relações sociais, se atentando com aspectos da realidade
que não podem ser expressos quantitativamente (Gerhardt & Silveira, 2009).
A pesquisa foi encaminhada e aprovada pelo Comitê de Ética da
Universidade105. A coleta de dados foi realizada no mês de junho de 2019, por meio
de encontros individuais, com data, horário e local escolhidos pelos participantes. Foi
apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), garantindo o
sigilo e o anonimato dos voluntários. Além disso, foi informado sobre o uso de um
gravador com o objetivo de captar na íntegra a produção verbal produzida.

105 CAEE 12510119.8.0000.0089


1111
Foram utilizados para a coleta de dados o procedimento “Desenho Estória com
Tema”, desenvolvido por Aiello-Vaisberg (1997, citado por Medeiros, 2014). Esse
procedimento é capaz de favorecer a expressão emocional de forma não defendida,
relaxada e lúdica, sendo utilizada por diferentes grupos para representações sociais.
Na presente pesquisa, o procedimento buscou investigar os aspectos relacionados à
percepção da autoimagem de indivíduos pós-bariátricos. Além disso, foi realizada
também uma Entrevista semi-estruturada contendo cinco perguntas referentes a
temática.
O início da atividade sucedeu com a realização do procedimento mediante a
instrução: “Desenhe uma pessoa que você considere com excesso de peso”, após a
execução do desenho foi requerido que o participante contasse uma história e
atribuísse um título a produção. Posteriormente foi dada uma nova orientação:
“Desenhe uma pessoa que você considere com um peso ideal” e o participante foi
convidado a contar uma história sobre o desenho e atribuir um título a produção. Por
fim os participantes responderam a uma Entrevista semi-estruturada.
Os dados coletados por meio da utilização do procedimento do Desenho
Estória com Tema e da realização da Entrevista Semi-Estruturada, foram
apresentados em forma de transcrições e analisados qualitativamente, segundo
proposto por Aiello-Vaisberg (1997, citado por Medeiros, 2014), buscando assim, uma
melhor compreensão da percepção da autoimagem dos pacientes que realizaram
cirurgia bariátrica.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dos 6 participantes, três eram mulheres e três eram homens, cinco eram
casados, e as idades variaram entre 34 e 50 anos. O tempo de realização de cirurgia
foi entre 3 e 13 anos, além de outros dados expostos na tabela a seguir.

Tabela 1 – Descrição da amostra

Participantes (P) P1 P2 P3 P4 P5 P6

Sexo M F F F M M

Idade 38 50 44 41 42 34

Estado Civil Solteiro Casada Casada Casada Casado Casado

Tempo de Cirurgia 12 anos 6 anos 5 anos 13 anos 3 anos 5 anos

1112
Peso Eliminado 61kg 42kg 24kg 37kg 40kg 55,6kg

O procedimento cirúrgico oferece uma mudança com relação ao peso que


desejam e a busca por um corpo idealizado, já que o peso anterior a ele é considerado
como algo negativo e fora do padrão social. Por conta disso, as motivações pelas
quais a pessoa obesa busca por um tratamento mais invasivo, podem variar. Apesar
de todos os seis participantes afirmarem que optaram pela cirurgia bariátrica por conta
da saúde, dois deles (P3 e P5) relataram motivações relacionadas a autoestima baixa
e estética, como podemos observar nos relatos de P3 "A autoestima baixa, relaxada.",
e também de P5 "Estética foi também, mas é mais alguns problemas de saúde que
eu tive".
A insatisfação com o excesso de peso, também pode ser observado nas
produções gráfico-verbais realizadas sob a orientação “Desenhe uma pessoa que
você considere com excesso de peso”, onde um deles (P3) possuía uma expressão
de infelicidade (ver Figura 1), tendo os lábios sido rabiscados diversas vezes pela
participante, e outros dois (P1 e P4) não continham expressões faciais, apesar de
quatro (P1, P2, P3 e P4) das seis histórias apresentarem afetos negativos referentes
à obesidade, sendo possível observar uma ambivalência em algumas das produções
gráfico-verbais.

Figura 1 Produção gráfico-verbal “Desenhe uma pessoa que você considera acima do peso” de P3

1113
A espera de um milagre
Era uma vez (risos) uma pessoa acima do peso, frustrada, triste e que era ponto de
referência (risos). Ah...desde ponto de referência, tinha dificuldades de subir no ônibus,
uma queda gerava quatro quedas. Era bem difícil, sei lá (risos). É isso!

Além disso, foram constatados sentimentos conflituosos com relação ao peso


atual dos participantes, onde três deles (P4, P5 e P6) relataram estar satisfeitos com
o peso atual, enquanto outros três (P1, P2 e P3) demonstraram o contrário. A
satisfação do P6 está presente abertamente quando ele afirma: “Muito satisfeito! Muito
satisfeito mesmo! Hoje eu estou completamente satisfeito com meu peso. Hoje eu
posso entrar em qualquer loja, pegar qualquer roupa e isso é...Tô muito satisfeito!”.
Por outro lado, o P1 destacou-se pela sua preocupação com o reganho de peso,
demonstrada na história do primeiro desenho, ao dizer: "E com o meu peso atual eu
estou totalmente ligado. Sempre procuro manter. ‘Ah, eu comi demais esse final de
semana! Ok, segunda feira é jejum!’”. Outro exemplo de insatisfação pode ser
destacado também na fala da P3, quando questionada como se sentia com o peso
atual: "Péssima, gigante! Horrível! A roupa aumentou um pouco. É muito horrível!".
Isso pode ser relacionado com o que Magdaleno Júnior, Chaim e Turato (2009)
afirmam, ao dizer que passado o período de grande satisfação com os resultados da
cirurgia bariátrica, o indivíduo pode sentir uma ameaça quando percebe que seu peso
começa a aumentar novamente, como se mesmo com pouco ganho de peso, a
obesidade estivesse retornando.
Outro aspecto relevante é que dois dos participantes (P5 e P6) que possuem
um menor tempo de cirurgia estão satisfeitos com o seu peso, o que corrobora com a
afirmação de Marchesini e Antunes (2017) de que quanto menor o tempo de cirurgia
maior o nível de satisfação dos pacientes. Por outro lado, a P4, mesmo possuindo 13
anos de cirurgia relata na entrevista sobre a sua grande satisfação com o peso atual,
dizendo “hoje eu me sinto muito bem com o peso. Claro que, o médico mandou eu
emagrecer mais 20! Mas eu to bem! Não tenho problema.”. Além disso, pode-se
observar que duas (P2 e P3) das três participantes do sexo feminino demonstraram
maior insatisfação referente ao peso atual, o que também vai de encontro com a
literatura que explica que essa insatisfação pode ser mais presente em mulheres por
conta da construção social da imagem corporal feminina idealizada exposta
constantemente pela mídia (Marchesini & Antunes, 2017).

1114
Contudo, todos os participantes disseram não se arrepender de terem realizado
o procedimento cirúrgico, visto que ele contribuiu para mudanças positivas em
diversos aspectos. Por exemplo, quando questionados, os entrevistados ressaltaram
mudanças na autoestima, já que passaram a perceber a sua autoimagem de maneira
mais positiva, bem como, melhorias na saúde e bem-estar, como dito por P2:
"Qualidade de vida em todos os sentidos, na questão pessoal, de saúde, autoestima,
é… Eu comigo mesma, as cobranças que eu fazia. A questão da vaidade, tudo! Pra
mim mudou tudo". Essas mudanças também surgiram nas produções gráfico-verbais
“Desenhe uma pessoa que você considera com o peso ideal”, onde alguns desenhos
tinham fisionomia alegre (P2, P3, P5 e P6) e as histórias continham discursos sobre
bem-estar e qualidade de vida. O P1, por exemplo, diz: “vida mais longa, é… Vida
melhor, saúde melhor, satisfação bem melhor”, e P3 afirma, “autoestima, vaidade,
preocupada mais com a aparência, mais disposta, mais entusiasmada com as coisas
da vida”.
Essas mudanças positivas à perda de peso podem estar diretamente
relacionadas com a percepção negativa que os participantes apresentaram sobre a
obesidade, já que três deles (P2, P3 e P4) ressaltaram algumas características
desfavoráveis e dissertaram sobre como uma pessoa obesa se sente, atribuindo
conotações negativas a figura do desenho realizado sob a orientação “Desenhe uma
pessoa que você considera acima do peso”, como no caso da história de P4.

Figura 2 Produção gráfico-verbal “Desenhe uma pessoa que você considera acima do peso” de P4

1115
O introspectivo
Tímido… Inseguro… E introspectivo. Ele… Ele vive se escondendo apesar da
inteligência dele. Ele não consegue socializar, devido ao peso, então ele vive se
escondendo apesar da grande capacidade… E não é pelo que os outros enxergam,
mas é como ele se enxerga! Então ele acaba tendo poucos momentos felizes nesse
sentido.

Essa fala da participante vai de encontro com o pensamento de Moreno, Silva,


Cecato, Bartholomeu e Montiel (2011), que afirmam que pessoas acima do peso
sofrem com sentimentos de inadequação, vergonha e culpa, gerados por uma baixa
autoestima e que consequentemente os faz se isolar por acreditar que não
correspondem aos padrões sociais. Com isso, a cirurgia bariátrica acaba funcionando
não apenas para uma contenção da obesidade, mas também como uma solução para
os conflitos biopsicossociais dos indivíduos. Ainda assim de acordo com Lacerda,
Castanha, Castanha, Campos, Ferraz e Vilar (2018), as mudanças geradas pelo
procedimento cirúrgico não são apenas positivas e podem levar a uma persistência
na percepção de imagem corporal com excesso de peso, o que gera insatisfação,
mesmo que o indivíduo tenha tido uma perda significativa de peso. Isso pode ocorrer
devido ao fato de as mudanças físicas não acompanharem, de forma imediata, a
imagem corporal, uma vez que as mudanças no nível psicológico podem exigir um
maior tempo para que ocorra uma elaboração a nível simbólico. Dessa forma, o
acompanhamento psicológico se faz imprescindível, tanto antes como depois do
procedimento cirúrgico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ineficácia dos métodos menos invasivos de emagrecimento não oferece ao
indivíduo obeso a imagem corporal idealizada por ele, assim a cirurgia bariátrica pode
ser entendida como uma solução mágica para resolução dos problemas de excesso
de peso. Essa compreensão pode estar ligada à falta de acompanhamento psicológico
acentuado, visto que a busca cirúrgica não se dá apenas por problemas físicos de
saúde, mas também por conflitos internos relacionados à autoimagem.
Conclui-se que há uma satisfação dos pacientes pós bariátricos em relação ao
peso e a uma melhora na percepção de sua autoimagem, visto que antes não se
sentiam pertencentes aos padrões sociais. No entanto, pode ser observado também

1116
uma rejeição a imagem corporal atual, o que demonstra a grande importância atribuída
a um peso idealizado, como se somente a partir do ideal alcançado, fossem aceitos,
e a partir disso fosse possível uma autoaceitação.
Em virtude de a pesquisa ter sido composta por uma amostra pequena,
recomendamos que sejam realizados novos estudos com essa temática, para ampliar
as produções científicas, visando auxiliar pacientes.

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1119
104- A VIOLÊNCIA DO CUIDADO EXCESSIVO

Henrique Thiago de Melo Silva


Profª Drª Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira
Leonardo Ferreira Galvão Tavares

Resumo: O autor discute um caso clínico em Psicanálise de acordo com a teoria


winnicottiana, remontando o cuidado absoluto da mãe com o bebê e a angústia
impensável adquirida pela falta do ambiente favorável e da mãe suficientemente boa,
a fim de trazer ao leitor como estes fatores são necessários para o desenvolvimento
psíquico saudável do bebê. Elucida-se então o caso de Marcelo, paciente de quinze
anos, e de sua mãe Andressa, que por querer manter o filho em um estágio de dupla
dependência em seu cuidado excessivo, acaba por impedir o amadurecimento
psíquico do paciente. Apesar da queixa da mãe, ela mantém inconscientemente a
ambiguidade neste desejo de emancipação versus da ilusão na manutenção de que
ela compõe com ele um ser único. Esta relação gera no garoto revolta, mas este
também se mantém na posição de dependente e com receio do futuro por não ter
consciência desta dependência absoluta. Conclui-se que a mãe mantém uma dupla
dependência com o filho, portanto é um ato de violência contra o desenvolvimento e
saúde psíquica dele; e da saúde mental dela mesma. Apesar de o cuidado ser
necessário, ele deve ser suficientemente bom, nem mais, nem menos.

Palavras-chave: Dupla Dependência, Psicanálise, Mãe Suficientemente Boa,


Winnicott.

Introdução

No início da vida do bebê a mãe é totalmente devota às necessidades e


cuidados deste, mas o bebê não possui consciência de sua dependência neste
período, o que Winnicott (1965/1993) chama de “dupla dependência”. Este processo
1120
é natural, e exponencialmente se perde à medida em que o bebê se desenvolve e
adquire consciência do cuidado; entretanto, o que ocorre se o ambiente não for
favorável? Se a mãe criar uma dependência deste cuidado e acabar por não permitir
que o desenvolvimento inato deste bebê se conclua?
De acordo com Winnicott (1993, p. 02), a mãe não adquire a forma do cuidado
inicial do bebê nesta dupla dependência de maneira formal, mas é algo sensível que
se desenvolve e se perde a medida que a criança também se desenvolve e se afasta;
porém, isto só é possível se o ambiente for favorável, logo, se a mãe for
suficientemente boa neste cuidado.
A mãe suficientemente boa é aquela que reconhece e fornece o espaço
potencial para que o bebê se desenvolva psiquicamente, pois dela é o dever de dar
subsídios ao bebê para que este conheça o mundo e nele se estabeleça: “Só na
presença dessa mãe suficientemente boa pode a criança iniciar um processo de
desenvolvimento pessoal e real” (Winnicott, 1965/1993).
Avançando, de acordo com Winnicott (1965/1993), o bebê possui uma natureza
inata ao desenvolvimento que se faz satisfatória caso o ambiente seja suficientemente
bom. Esse ambiente, como dito anteriormente, é apresentado ao bebê pela mãe que
proporciona o cuidado suficientemente bom; e qualquer falha nesse ambiente
facilitador traz ao bebê a angústia impensável, termo trazido por Winnicott ao explicar
que esta falta no ambiente, por conta da mãe, traz ao bebê um trauma, que interrompe
o processo de amadurecimento e quebra a experiência de si-mesmo, anterior a
constituição de um Eu (Dias, 1998).
Segundo Santos (2002, p. 01), “o trauma é constituído por uma reação
automática do bebê à intrusão ambiental [...] porque obriga o bebê a reagir ao invés
de continuar-a-ser”, e o continuar-a-ser constantemente é ameaçado pela angústia
impensável, que remete a um perigo incessante, ansiógeno, que o impregna a uma
não-existência ou, pelo menos, que esta existência venha a se perder.
Com base nesta teoria, viso discorrer sobre um Caso Clínico, em que o filho
buscava crescer, mas por barramento do ambiente (mãe) se mantinha preso a uma
dupla dependência com a mãe, preso a um trauma e estagnado em seu
desenvolvimento, sem ter consciência dessa barreira ao mesmo passo que se
utilizava dela como suporte.
Venho apontar como este tipo de relação, apesar de parecer cuidadosa por
parte da mãe, acaba sendo violenta ao desenvolvimento satisfatório.
1121
Objetivo

Pretende-se com o presente estudo relatar e discutir teoricamente sobre um


caso breve do autor principal em clínica psicanalítica, em que o cuidado excessivo de
uma mãe com um filho acabou por se tornar violento por ser um ato impeditivo de que
o outro se desenvolva/amadureça. Visa-se discutir sobre este modo de violência, uma
vez que, ao olhar unidimensional e leigo, o cuidado, mesmo que excessivo, pode ser
um sinônimo de proteção e não um ato barrativo do desenvolvimento, como o é.

Relato da Experiência

Marcelo106, um adolescente de quinze anos, foi trazido ao meu consultório por


sua mãe, Andressa107, por indicação de um colega. Andressa estava aflita, pois o filho
havia sido diagnosticado com depressão por um psiquiatra havia três meses. Apesar
do humor distímico e da atitude de isolamento do garoto, decidiram continuar apenas
com a medicação, até que o paciente tentou o suicídio por duas vezes, sendo ambas
as tentativas com os próprios medicamentos antidepressivos que estava tomando.
Primeiramente quero discorrer sobre a mãe, que comparecia à sessão sempre
acompanhada da avó de Marcelo, pois, segundo Andressa, a avó sabia mais do que
ela sobre ele por estar há mais tempo com o rapaz. Percebia-se em todas as sessões
com as mães (ouso dizer), que Andressa deixava a avó relatar muito, mas sempre a
desafiava em seguida, refutando na maioria das vezes qualquer exposição quanto ao
comportamento desafiador de Marcelo e qualquer forma de limitação dada pela avó
ao neto. Era claro como a avó tentava por muitas vezes limitar as ações de Marcelo,
ao mesmo passo que tentava manter o ambiente facilitador para o desenvolvimento
do neto, enquanto sua mãe, Andressa, barrava qualquer intervenção.
O pai de Marcelo havia deixado a família quando ele era ainda muito pequeno,
em torno dos dois anos de idade, o que fez com que a mãe, avó e avô tivessem que
tomar conta total da criação de Marcelo. Percebeu-se em meio às sessões que
Andressa tentava e justificava sempre reparar a falta do pai de Marcelo por meio dos
cuidados próximos, ou seja, de estar sempre ativa nos desejos e impulsos do filho,

106
Nome fictício.
107
Nome fictício.
1122
criando um ambiente que beirava a uma presença permanente e total da mãe com
Marcelo.
Sobre o paciente em si: Marcelo é um rapaz tímido, quase não fazia contato
visual comigo, buscava sempre algo para mexer com as mãos enquanto relatava algo
em sessão; parecia haver nele um desconforto de estar ali, de se abrir a si mesmo e
a mim. Notava-se, entretanto, que ao ouvir o que o analista dizia, fixava os olhos nos
olhos do analista, sem nem ao menos piscar. Este comportamento em análise chamou
minha atenção por ser atípico à minha experiência com pessoas introvertidas.
Com paciência, Marcelo foi se abrindo mais, perguntando mais sobre situações
da vida que assolam adolescentes: amor, sexo, amigos etc. O vínculo não foi de todo
demorado para se estabelecer, mas precisou de diversas atenções ao ambiente
acolhedor que construímos. Mais seguro em sua análise, Marcelo percebia que seu
desejo de morte estava cada vez mais ligado à sua agonia impensável e conseguia
compreender ao menos sobre o que ela era ao contrário do antigo “vazio sem sentido”
(sic).
O problema que Marcelo mais trazia era sua falta de prazer e vontade em
estudar. Em sua fantasia ele morreria com dezoito anos; então, todo momento dentro
de uma sala de aula era inútil e tirava tempo de seus prazeres – o qual era limitado a
um computador e a muitas horas livres de responsabilidades. Muitos dos problemas
relatados pela(s) mãe(s) eram de ele manipular situações ou criar adversidades e/ou
doenças para faltar nas aulas. Marcelo chegou a repetir um ano letivo por faltas,
alegando que não gostava de ninguém da escola (e que a culpa era da mãe por tê-lo
colocado lá).
O processo analítico se desenvolvia devagar, mas exponencialmente forte. A(s)
mãe(s) ouviam as intervenções e elaboravam aparentemente de modo satisfatório;
até que um dia, Marcelo, sabendo como manipular a insegurança de sua(s) mãe(s),
disse que não iria mais às aulas na escola na qual estava matriculado, mas se a mãe
o trocasse de escola ele estudaria. Sem pestanejar, Andressa entrou no processo de
transferência para outra escola.
Marcelo vinha às sessões após a aula no fim da tarde, enquanto estudava na
escola anterior, mas nesta escola nova aquele horário da sessão não era mais
possível; entretanto, já sabido por toda família, o analista não possuía mais nenhum
horário disponível dentro dos horários possíveis para Marcelo comparecer sem faltar
às aulas. Por indisponibilidade de horários, foi encerrado o processo e encaminhado
1123
o caso a outro analista, mas a mãe negou a sessão de devolutiva e de fechamento,
tão como a continuidade da análise com outro profissional, alegando que ela havia
feito o que era necessário para o filho; e que a responsabilidade da não permanência
na análise partia do analista, não dela nem do analisando.
O processo de análise de Marcelo se deu em apenas três meses.

Discussão

A preocupação da mãe com a saúde mental e segurança física do filho era


óbvia e consciente, mas o comportamento inconscientemente conivente da dupla
dependência que ela mantinha no filho incapacitava qualquer forma de
desenvolvimento emocional dele (Forlenza Neto, 2008). Nos momentos em que
barrava as intervenções satisfatórias da avó, em que o presenteava ou o mimava em
pequenas façanhas, em que o circundava em qualquer adversidade e tomava para si
as dores de dores subjetivas do filho, mantinha ele sob suas asas de proteção, lindas
e únicas, incapacitando Marcelo de ser e vir-a-ser para rumo à independência.
Para Marcelo, apenas restava a agonia impensável, visto em sua recorrente
fala a respeito do vazio que sentia. Marcelo mantinha em seu relato o cíclico pesar de
não ser compreendido, e de que não se compreendia, ao mesmo passo que apoiava
seus impulsos destrutivos e autodestrutivos nas desculpas de querer ser
independente, mesmo retornando à mãe nestes momentos e jamais o sendo. Sempre
validado pelos assentimentos ou barrado pelos julgares da mãe, tentava se fazer
independente, mas retornava ao cuidado absoluto, a dupla dependência, e se
mantinha. Esta dupla dependência, como já especificado, surge do barramento da
mãe, na falta do ambiente facilitador (Winnicott, 1965/1993) e permanece velado pelo
impeditivo de continuar a ser mascarado por cuidado, atenção e carinho excessivos.
O comportamento de Marcelo em se entreter com algo enquanto relatava e de
me encarar enquanto ouvia me pareceu ser de um bebê, inclusive de um em
dependência relativa, além daquele em que estava preso anteriormente, pois neste
estágio reconhece-se o outro. O seu olhar focado me remetia a alguém que quer tudo,
quer sugar toda informação possível para si: um voraz, mas neste caso um voraz por
libertação da regressão. Este ato me revelava a ânsia em sair das barragens da mãe,
mas em seguida relatava algo que confrontava esta ânsia, pois eram atos de violência

1124
contra si ou contra as normas da mãe, sempre com o intuito de trazer novamente a
ele o cuidado, carinho e atenção que caracterizava sua prisão de dependência.
O ato de Andressa em superproteger o filho, acabou por ser violento, pois o
que seria uma forma de abstê-lo dos pesares e dores do mundo, acabou por impedi-
lo destas dores e experiências, criando outras internas que acabaram por quererem
ser externalizadas, como exemplo fatídico as suas tentativas de suicídio com o
medicamento que, em tese, seria para sua “cura”. Andressa entrou em um processo
natural de preocupação materna primária (Winnicott, 1956/2000), mas não se afastou
naturalmente com o passar do desenvolvimento de Marcelo, mantendo esta
preocupação excessiva e absoluta, que prejudicou seu amadurecimento e manteve a
unidade do relacionamento.
Colocar Marcelo em uma bolha, impeditiva e de proteção excessiva, acabou
por retirá-lo do mundo ao invés de inseri-lo com o cuidado suficientemente bom de
proteção.
Os atos de manipulação de Marcelo, como o de mudar de escola em um
impulso destrutivo a sua análise e à própria mãe, tão como a veemência em que a
mãe de pronto cede à manipulação e compactua com a destrutividade, mais uma vez
retoma a dupla dependência de Marcelo e a manutenção ilusória da mãe de que ele
ainda compõe com ela um ser único e de cuidado extremo. Segundo Forlenza Neto
(2008), para deixar o jogo ilusório da mãe, haveria de ser dado espaço em análise
para a apercepção criativa de Marcelo, um espaço de construção em seu núcleo, em
que criaria o seio em sua onipotência ilusória, a fim de trabalhar este seio no espaço
potencial do setting, criando em si suas possibilidades, e por fim dar prosseguimento
às fases e ao próprio amadurecimento; este trabalho infelizmente não foi possível
devido à ruptura da análise.
Conclui-se que o cuidado é de ordem da necessidade, não do controle. Assim
como o bebê de forma inata cria o dois-em-um, a mãe também o faz, mas parte dos
dois esta separação com o processo natural do amadurecimento; por ordens da mãe,
este processo se estagnou, mas por dupla dependência cristalizada do filho, se
manteve como manipulação ambígua.
Apesar de o cuidado ser necessário, ele deve ser suficientemente bom, nem a
mais, nem a menos.

1125
Referências

Dias, E. O. (1998) A Teoria das Psicoses em D. W. Winnicott. Tese de Doutorado,


PUC, São Paulo, SP, Brasil.

Forlenza Neto, O. (2008). As principais contribuições de Winnicott à prática clínica.


Revista Brasileira de Psicanálise, 42(1), 82-88. Recuperado em 24 de outubro de
2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-
641X2008000100009&lng=pt&tlng=pt.

Santos, E. S. (2002). Angústias Impensáveis: mudanças na psicanálise tradicional.


Tese de doutorando em Filosofia no X Encontro Nacional de Filosofia, São Paulo:
IFCH/UNICAMP.

Winnicott, D. W. (1956/2000). A preocupação materna primária. In: Winnicott, D. W.


Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago.

Winnicott, D. W. (1965/1993). A família e o desenvolvimento individual. São Paulo:


Martins.

1126
105- FATORES MOTIVACIONAIS PARA O AUMENTO DO CONSUMO DE
ÁLCOOL POR MULHERES

Leonardo Ferreira Galvão Tavares


Henrique Thiago de Melo Silva
Profª Drª Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira

Resumo: O estudo trata-se de uma revisão bibliográfica acerca dos aspectos gerais
que justifiquem o aumento do consumo alcoólico por mulheres. Os resultados
mostram que existem diversos fatores relacionados: genéticos, fisiológicos,
psicológicos e socioculturais. O organismo feminino é mais frágil em relação aos
homens quanto à tolerância alcoólica. Exigências sociais dos papéis da mulher,
sobrecarga de responsabilidades, isolamento social, solidão e divórcio contribuem
para o consumo alcoólico por mulheres e estas são estigmatizadas o que impede a
busca por tratamento em caso de consumo excessivo caracterizado como doença.
Conclui-se que o consumo de álcool por mulheres está associado à complexidade e
particularidades individuais e de contexto sociocultural. Faz-se necessário a
realização de estudos que investiguem estas características para que seja possível
direcionar atenção e cuidado às mulheres alcoolistas.

Palavras-chave: consumo alcoólico por mulheres; mulheres alcoolistas; atenção à


mulher.

Introdução

Vivemos em uma época fruto do desenvolvimento da ciência, da tecnologia e


da racionalidade que emergiu na Europa nos séculos XVII e XVIII. Segundo Costa
(2005), o marco histórico para o aparecimento da Modernidade é a Revolução
Burguesa, que transformou o mundo ocidental com o surgimento de um novo tipo de
sociedade humana baseada em processos de racionalização que destruíram as bases
das sociedades tradicionais. Racionalidade pautada nos princípios científicos que se
tornou dominante sob os objetivos iluministas de esclarecer aos homens sua
capacidade de compreender racionalmente o mundo.

1127
Para os filósofos iluministas, quanto mais capazes formos de compreender
racionalmente o mundo e a nós mesmos, mais chance temos de torná-lo estável e
ordenado. Porém, o mundo atual, em vez de estar sob o comando da humanidade,
parece um mundo em descontrole. A vida se tornou insegura com novos riscos e
incertezas que afetam a todos, independentes do local onde se vive.
Em 2000, o Brasil foi considerado o terceiro maior consumidor de vinho do
mundo (Mello, Breda e Barrias, 2001 citado por Santos, 2008). Resgatando o processo
histórico e o contexto sociocultural que poderiam ter influência sobre o alcoolismo
feminino, Blume (1986 citado por Cesar, 2006) revela que o aumento do consumo de
bebida alcoólica por mulheres disparou a partir da Segunda Guerra Mundial.
É neste cenário de dúvidas e incertezas que se contextualiza e se desenvolve
o alcoolismo associado à mulher.

Objetivo

Fez-se uma revisão da literatura englobando a relação entre o alcoolismo e a


mulher, sendo o álcool uma substância psicoativa. Buscou-se descobrir quais motivos
contribuem para o aumento do consumo de bebida alcoólica por mulheres, sendo que
esta prática gera propensão a dependência alcoólica.

Resultados

Conforme Costa (2005), o consumo de bebidas alcoólicas por mulheres


aumentou consideravelmente no mundo todo nos últimos anos, pois elas têm
procurado alívio para as dificuldades pessoais e consecutivamente acabam tornando-
se dependentes. Segundo esse autor, são várias as causas para o aparecimento do
problema da dependência alcoólica: genética, psicológica e sociocultural, mas
ressalta que o organismo feminino é frágil em relação aos homens quanto ao consumo
de álcool e, por isso, nelas a doença se manifesta de forma mais grave e precoce.
Além disso, o preconceito contra a mulher dependente alcoólica é maior do que o
homem dependente alcoólico.
Foi no decorrer do século XX que o fenômeno da dependência de álcool e de
drogas adquiriu cada vez mais importância, tanto no nível conceitual como

1128
diagnóstico, o que levou a Organização Mundial da Saúde a enquadrar o alcoolismo
como uma doença, procede à sua transcrição:

Os alcoólicos são consumidores excessivos cuja dependência


do álcool é tal que apresentam quer uma perturbação mental
identificável, quer perturbações que afetam a sua saúde física
ou mental, as suas relações com os outros e o seu bom
comportamento social e econômico, quer ainda padrões de
perturbações desse gênero devem ser submetidos a tratamento
(Santos, 2008, p.21).

A maioria das pessoas não encara o álcool como uma droga capaz de alterar
o funcionamento psíquico e capaz de provocar dependência. O indivíduo consome
demasiadamente e não leva em consideração quando os efeitos da substância já não
são mais os mesmos, isso envolve o fenômeno que é definido como tolerância. Afirma
Weiten (2010, p.157), “tolerância é a progressiva diminuição na resposta de uma
pessoa a uma droga como resultado do uso continuado.” A tolerância leva a pessoa
aumentar o número de doses para conseguir o efeito desejado. Algumas drogas
produzem tolerância de maneira mais acelerada que as outras. No caso do álcool a
tolerância desenvolve-se lentamente.
Afirmam os autores (Cesar, 2006; Santos, 2008) que, do ponto de vista
metabólico, as mulheres são menos tolerantes ao álcool que os homens porque há
uma menor quantidade de enzimas metabolizadoras de álcool existente no organismo
feminino, causando assim uma intoxicação com o uso de metade da quantidade de
álcool usada pelo homem.
Segundo Pinheiro (2006, p.06), “quantidades equivalentes de álcool afetam
homens e mulheres diferentemente, devido às diferenças em peso e composição
corporal.” Isso se deve pelo fato de a mulher apresentar na sua composição corpórea
menos água e maior quantidade de tecido gorduroso.
Do ponto de vista fisiológico, a mulher sofre mais conseqüências clínicas, mais
risco de mortalidade decorrente do uso de álcool que o homem, mesmo com menor
tempo de consumo. Também apresenta maior percentagem para desenvolver
doenças hepáticas como a hepatite alcoólica que quase sempre progride para cirrose
(Cesar, 2006; Santos, 2008).

1129
O alcoolismo feminino pode provocar também miocardiopatia, lesão cerebral
problemas ginecológicos e obstétricos como: infertilidade, abortos espontâneos e
histerectomias. Pode provocar anomalias congênitas na prole, causar a síndrome fetal
alcoólica que compreende anormalidades físicas, seqüelas mentais e
comportamentais (Nóbrega e Oliveira, 2005).
Conforme alguns autores (Assis e Castro, 2010; Santos, 2008) o alcoolismo
feminino está relacionado com uma história familiar de abuso de álcool. É importante
também ressaltar que o alcoolismo sofre importante influência de fatores genéticos
que regulam o metabolismo do álcool quanto de genes que afetam traços de
personalidade (CISA, 2011). Mas o alcoolismo feminino não deve ser explicado
somente com base nos fatores genéticos e fisiológicos.
Dentre as causas psicológicas foi possível averiguar a crença que a bebida
afasta os problemas, diminui a ansiedade e a timidez. A depressão, transtornos
psicológicos e problemas afetivos como o isolamento, solidão, abandono e divórcio
também contribuem para o consumo abusivo por parte das mulheres.
Os aspectos socioculturais também foram motivos de estudos nos artigos
pesquisados. Segundo Mourad Lejoyeux (1997 citado por Santos, 2008), a evolução
do estatuto da mulher na sociedade, o seu acesso a postos de responsabilidade são
a origem de novas modalidades de alcoolização suscitadas ou favorecidas pelas
mudanças profissionais. Com a aceitação do consumo social de álcool por mulheres,
elas passaram a utilizá-lo como suposto facilitador de relações sociais e aumento de
performances profissionais.
Apesar do alcoolismo ser encarado como uma síndrome nos dias de hoje, na
qual esses fatores – fisiológicos, genéticos e psicológicos – preponderam, deve-se
levar em consideração também a influência do meio e as características de
personalidade, fatores estes que também favorecem a predisposição da dependência
(Grinfeld, 2004).
A visão da sociedade frente ao alcoolismo feminino é bastante agressiva: o
consumo alcoólico por mulher é considerado imoral, tendo comportamento
inadequado e sofre a estigmatização acabando por recorrer ao tratamento com menos
frequência do que os homens, o que lhes acarreta mais comprometimentos ao longo
do uso da substância psicoativa (Campos e Reis, 2010).

1130
Discussão

Pôde-se a partir deste estudo identificar múltiplos fatores que podem influenciar
no aumento do consumo de álcool por mulheres, sendo eles: genéticos, fisiológicos,
psicológicos e socioculturais.
O álcool é uma substância psicoativa de risco que pode levar a dependência.
Ainda hoje, é um elemento socialmente aceito e solicitado para as mais inusitadas
situações sociais e esta mesma sociedade tem um forte preconceito contra as
mulheres alcoolistas.
A cobrança da sociedade à mulher, como cumprir os seus postos de
responsabilidade tem a sobrecarregado ocasionando crises psicológicas, dando
espaço a sentimentos como tristeza, desgosto, ansiedade, medo, vergonha, culpa,
angústia e, com isso, fazendo com que a mulher procure apoio no álcool. Problemas
familiares e genéticos também podem estar relacionados ao consumo excessivo
alcoólico.
Qualquer um pode estar vulnerável à disposição do alcoolismo, mas a
dependência e consequência às mulheres podem surgir mais rápido do que nos
homens devido às suas características fisiológicas. Sendo que nelas a doença pode
ser mais grave, pois o metabolismo é mais frágil em relação aos homens.
O preconceito às mulheres perante a sociedade é maior devido a uma cultura
discriminatória, competitiva, machista e estigmatizante, onde a cobrança diante de
papéis a cumprir e a condenação de posturas inaceitáveis socialmente provoca
sentimento de culpa que as impedem de procurar tratamento.
Em nossa sociedade, ainda que contemporânea, existem reflexos de um
preconceito cultivado ao longo das gerações. A exigência social de que a mulher deve
estar sempre em ótima forma para realizar, sem nenhum deslize, seus deveres
familiares, sociais e profissionais, demonstra que não somente há um equívoco
evidente quando pensamos ser justos com o tratamento desta no cotidiano, mas
também semeia a hipocrisia de que a mulher, ao contrário do homem, não deve se
portar como uma alcoolista e muito menos ser tal. Uma vez que o repúdio à mulher
que bebe sempre foi uma ação inerente ao homem.
O consumo excessivo de bebida alcoólica é uma doença e para tanto há de se
ter tratamentos especializados para os potenciais pacientes, sendo que a mulher

1131
alcoolista não foge desse cenário. Portanto, a conscientização é necessária para que
se possa ajudar, ao invés de complicar a situação de quem precisa de cuidados.
Os resultados mostram que as mulheres ainda continuam enfrentando
obstáculos dentro de uma cultura discriminatória, de uma construção sociocultural
tradicional, acentuada pelas transformações sociais e alterações enfrentadas a partir
do século XX. Contudo é notável a busca pela extinção da discriminação e do
preconceito, que tende e deve a cada ano que passa repercutir em um final próspero
para que não haja mais o afastamento da mulher alcoolista, mas sim a aproximação
da mesma junto da sociedade perante um bem maior, em doutrina a aquela
superstição do homem que já devia ter mudado há muito tempo, mas que ao contrário
fora mantido: o julgamento pelas indiferenças, pelas oportunidades e circunstâncias
de cada indivíduo.
Essa situação levanta a questão de fazer ciência e produzir conhecimento
sobre o feminino em uma discussão sobre gênero. A segregação social e política que
historicamente foi imposta às mulheres gerou como consequência sua invisibilidade
enquanto sujeito, consequentemente, enquanto sujeito da ciência. O alcoolismo
feminino trilha caminhos próprios para seu desenvolvimento, sendo urgente seu
reconhecimento e formas diferenciadas de atenção à mulher.

Referências

Assis, D. F. F.; Castro, N. T. Alcoolismo Feminino: início do beber alcoólico e busca


por tratamento. Textos & Contextos, Porto Alegre, v.9, n.2, pp.358-370, ago./dez.
2010.

Campos, E. A.; Reis, J. G. Representações sobre o uso de álcool por mulheres em


tratamento em um centro de referência da cidade de São Paulo – Brasil. Interface –
Comunicação, Saúde, Educação, v.14, n.34, pp. 539-550, jul./set. 2010.

Cesar, B. A. L. Alcoolismo feminino: um estudo de suas peculiaridades. Jornal


Brasileiro de Psiquiatria, v.55, n.3, pp.208-211, 2006.

CISA (Centro de Informações Sobre Saúde e Álcool). Fatores protetores genéticos e


ambientais contra o alcoolismo encontrados em filhos de alcoolistas. Disponível em:
<http://www.cisa.org.br/categoria.html?FhIdTexto=a710ac29035926508ef4ed275d5b
61fd&ret=&>. Acesso em: 20 de abr. 2019.

Costa, C. Sociologia: Introdução à Ciência da Sociedade. 3ª Ed. SP: Ed. Moderna,


2005.

1132
Grinfeld, H. Efeitos genéticos e ambientais na descendência de alcoolistas: novo
enfoque utilizando modelo de filhos de gêmeos. Revista Einstein, v.2, n.1, p.80,
2004.

Nóbrega, M. P. S. S.; Oliveira, E. M. Mulheres usuárias de álcool: análise qualitativa.


Revista de Saúde Pública, v.39, n.5, pp.816-823, 2005.

Pinheiro, B. A. As relações sociais das mulheres portadoras de alcoolismo. Interface


– Natal/RN, v.3, n.1, jan./jun. 2006.

Santos, A. S. C. (2008). Nos bastidores do consumo: o álcool e a mulher. Disponível


em:
<https://bdigital.ufp.pt/dspace/bitstream/10284/790/3/Monoalexandracantara.pdf>.
Acesso em: 25 de mai. 2019.

Weiten, W. Introdução à Psicologia: Temas e variações. São Paulo: Pioneira


Thompson, 2010.

1133
106- CONSULTAS TERAPÊUTICAS COM PAIS E FILHOS: A EXPERIÊNCIA
COMPARTILHADA DO BRINCAR

Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira


Henrique Thiago de Melo Silva
Leonardo Ferreira Galvão Tavares

Resumo: Nos Serviços Escola dos Cursos de Graduação em Psicologia são


realizadas modalidades de atendimento psicológico à comunidade e, entre eles, há o
atendimento psicológico de pais que procuram ajuda especializada diante de
situações conflitivas com seus filhos, as quais eles não compreendem e se sentem
desamparados. Segundo Winnicott, as condições favoráveis apresentadas pelo
ambiente (pais/família) permitirão que a criança possa amadurecer no tempo e ritmo
desejáveis, ou seja, que ela possa “ser si mesma em um tempo e um espaço”. Nisto,
as Consultas Terapêuticas permitem a retomada do percurso de desenvolvimento da
criança desde que haja o suporte e o cuidado dos pais. A fim de exemplificar esse
método apresenta-se uma Consulta Terapêutica com Pais de Filhos, com sua
respectiva compreensão e análise sustentada no método psicanalítico, a fim de indicar
como essa modalidade de atendimento clínico favoreceu a retomada do percurso de
desenvolvimento da dupla pais/criança. Esse procedimento clínico psicanalítico à
relação pais e filhos tem relevância social e propõe um caráter promocional de saúde.

Palavras-chave: Consultas Terapêuticas, Psicanálise, Relação Pais e Filhos,


Winnicott.

Introdução

Winnicott disse: “Sempre esperamos que nossos pacientes terminem a análise


e nos esqueçam: e descubram que o próprio viver é a terapia que faz sentido” (1975,
p. 123).
Concordo com Winnicott. Penso que os pacientes vêm até nós, psicanalistas,
solicitando um espaço e um tempo para compreendermos juntos o que está se
passando com eles. Digo costumeiramente aos meus alunos que os pacientes vêm

1134
com as próprias pernas e vão embora com as pernas deles, e me parece que isso tem
relação com irem embora da análise e nos esquecerem, e viverem a vida que faz
sentido para cada um deles.
Entendo que essa proposição de Winnicott se sustenta na sua concepção de
ser humano: “um ser humano é uma amostra-no-tempo da natureza humana” (1990,
p. 29).
Concordo com Winnicott. Os seres humanos mostram-nos o que são e o que
não são em cada um dos momentos de suas vidas e por isso entendo que os
fenômenos humanos, quaisquer que eles sejam, não podem ser apreendidos e
descritos como se fossem representações absolutas e totais, pois são uma
manifestação temporal (em um dado momento) do processo de amadurecimento
emocional de um ser humano.
Entendo que essa maneira de pensar o fenômeno humano também transforma
o modo como compreendemos o sintoma psicológico que, a meu ver, passa a ser
visto não como ausência de saúde, mas como um fenômeno humano que indica uma
perturbação no processo de amadurecimento pessoal que necessita ser comunicada
e compreendida para ser integrada, por meio da experiência, ao modo de ser do
indivíduo.
O sintoma psicológico da criança, trazida à consulta em psicanálise por seus
pais, pode ser compreendido, então, como a comunicação de algo que se passa com
ela em um dado momento do seu processo de amadurecimento emocional, o que
implica na necessidade de um espaço e tempo para que isso seja integrado ao seu
modo de ser, desde que haja um ambiente favorável como apoio e suporte.
Considerando com Winnicott que as diversas tarefas que a tendência inata ao
amadurecimento emocional impõe ao ser humano, ao longo da vida, precisam ser
sustentadas por um ambiente facilitador que forneça cuidados para a expressão e a
experiência do que está naturalmente sendo vivido, incluí os pais nas Consultas
Terapêuticas das crianças em atendimento psicanalítico.
A minha compreensão psicanalítica do sintoma psicológico da criança e a
minha concepção de que os pais precisam resgatar a possibilidade de ser “um
ambiente desejável médio” (Winnicott, 1984, p. 13), em consonância com a minha
experiência clínica, me fizeram incluir os pais nas consultas terapêuticas e
desenvolver um meio de intervenção em psicanálise que denominei de Consultas

1135
Terapêuticas com pais e filhos, que foi objeto de estudo de minha Tese de Doutorado
defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em 2015.

Objetivo

A escolha e a definição de um tema de estudo estão intimamente vinculadas à


história de vida pessoal e profissional de seu proponente. Penso que não fujo a esta
regra e que a escolha da temática da presente Tese de Doutorado se deve,
primordialmente, à minha formação e experiência clínica em psicanálise, atendendo
pais e filhos em sofrimento desde o final da década de 80. Mas, é preciso incluir
também em minha trajetória profissional, a atividade de professora universitária e
supervisora clínica, na medida em que me proporciona cotidianamente a investigação
e intervenção das mais diversas demandas de pais e filhos em atendimento
psicológico no Serviço Escola de um Curso de Graduação em Psicologia em uma
universidade na cidade de São Paulo.
Solicito agora licença para uma aparente digressão do tema, mas que me é
muito cara. Se tomarmos o sintoma psicológico da criança como um fenômeno
humano que se processa e se constrói no cotidiano das experiências relacionais,
podemos entendê-lo como uma manifestação de algo que está sendo vivenciado pela
criança em um dado momento do seu amadurecimento pessoal. Se os pais são os
primeiros seres humanos com quem a criança se relaciona, são eles também os
responsáveis pela configuração de um ambiente favorecedor à potência da criança
para amadurecer e viver. Se ambos, pais e criança, estão atravessados por uma
cultura, histórica e socialmente determinada, pode-se levantar a hipótese de que o
sintoma psicológico apresentado pela criança revela a cultura em que eles (pais e
crianças) estão inseridos.
Estamos em uma época sustentada na individualidade, na materialidade e na
fruição imediata das experiências, o que não permite espaço e tempo para o
acolhimento de angústias, exigindo seu apaziguamento por meio de tratamentos
medicamentosos. Essa concepção ilusória de que tudo pode ser resolvido a partir de
ações que não nos impliquem, ou melhor, que não gerem compromisso com a
existência e o desenvolvimento do outro, também aparece na relação entre pais e
filhos e é por isso que tenho incluído os pais no atendimento clínico de seus filhos.
Eles também se encontram em sofrimento, principalmente por não conseguirem

1136
acolher a angústia de seus filhos, e por isso demandam a ação de um especialista –
o psicanalista – para, por um lado, manter a concepção ilusória de que não estão
implicados no processo de construção do sintoma da criança, e por outro, para
descobrir uma forma diferente de agir na relação com a criança, na medida em que
buscam compreender o lugar deles na vida de seus filhos.
Winnicott propõe uma forma de trabalho clínico psicanalítico em que haja a
reconstituição da esperança e da confiança da criança no ambiente e em si própria, e
isso faz todo o sentido quando pensamos que a criança na contemporaneidade é
incumbida de fazer-se a si mesma. Digo isso me baseando em uma concepção sócio-
histórica que estuda a sociedade contemporânea e que tem discutido a materialização
do ser humano e de seus fenômenos, instituindo-lhe a responsabilidade de fazer-se a
si mesmo, o que tem isentado os seus membros na construção do desenvolvimento
emocional de seus pares. Poderíamos pensar em uma vivência de abandono, de
orfandade tanto para os pais como para os filhos.
A proposta das Consultas Terapêuticas com Pais e Filhos põe em movimento
um encontro entre esses pares por meio da experiência do brincar, em um ambiente
especializado, no qual a criança conta como ela está no mundo, e os pais são
convidados a resgatar a sua compreensão empática quanto às necessidades da
criança, ou seja, a retomarem a sua capacidade de abrigar em si mesmos esse
momento emocional da criança. O analista está lá para favorecer esse ambiente para
ambos, apreendendo que a comunicação significativa da criança advém de sua
confiança de que o que está sendo comunicado será compreendido. Esta postura do
analista permite que a criança comunique a sua angústia baseando-se no vínculo de
confiança e de renovação da esperança de que ela está sendo escutada e
compreendida. E o que precisa ser compreendido? Precisa-se compreender que a
criança está apresentando seu modo de ser e viver em um dado momento e que ela
necessita resgatar confiança no suporte dos pais para reencontrar os recursos
indispensáveis à continuidade do seu desenvolvimento emocional.
A experiência criativa proposta na situação de Consultas Terapêuticas com pais
e filhos se estabelece na medida em que a criança e seus pais encontram um
ambiente suficientemente bom, isto é, um ambiente que se adapta às suas
necessidades e que por isso se torna digno de confiança. Estando confiantes no
ambiente, o espaço potencial pode ser resgatado e logo podemos observar o brincar
espontâneo e a comunicação da motivação da angústia. A intervenção, portanto, é
1137
bem simples: fornecer um ambiente confiável para os pais e para a criança, o que
permite o estabelecimento do brincar conjunto. É aí que acontece a escuta clínica: na
experiência compartilhada do brincar, em que o “indivíduo pode reunir-se e existir
como unidade, não como defesa contra a ansiedade, mas como expressão do EU
SOU, eu estou vivo, eu sou eu mesmo” (Winnicott, 1975, p. 83).

Relato da Experiência

Entendo ser necessário apresentar as Consultas Terapêuticas com a Lúcia e


seus pais, cujo nome é fictício para manter-se o sigilo quanto à identidade da criança.
O caso de Lúcia mostra-nos os sintomas apresentados por uma criança quando há o
desfalecimento de seus recursos defensivos em relação às angústias vivenciadas,
quando ela precisa deixar de ser si mesma para ser, reativamente, ao que o ambiente
– seus pais – precisam que ela seja. Isso se dá quando o ambiente perde sua condição
de suporte e apoio às necessidades da criança em cada um dos momentos do seu
amadurecimento emocional. A menina Lúcia tinha cinco anos quando foi trazida por
seus pais para atendimento psicológico no Serviço Escola. Na primeira entrevista com
seus pais, eles a descreveram como uma criança “agitada, desconcentrada, hiperativa
e manipuladora” (sic). Eles também informaram sua preocupação de que seu
comportamento a prejudicasse em seu desenvolvimento e em seu desempenho
escolar, porque ela “não parava quieta e não se concentrava nos estudos,
perguntando e questionando tudo para todos” (sic). Segundo eles, ela somente queria
brincar e não queria estudar. Outra reclamação deles é que Lúcia “queria saber tudo”
(sic) e dirigia seus questionamentos ininterruptos principalmente aos pais e aos avós,
quando estava com eles, mas isso também se repetia na escola com os professores
que estavam sucessivamente reclamando dessa conduta da menina. Apesar dos pais
mostrarem-se disponíveis e interessados em todos os momentos da entrevista,
demonstrando uma preocupação genuína com a filha, foi possível perceber que o pai
estava mais ansioso e perseguido do que a mãe. Enquanto o pai era mais enfático
quanto à problemática da criança, como se precisasse me convencer de que tudo
aquilo era real, a mãe estava mais calada e, em alguns momentos, em que
acrescentava algo ao que o pai dizia, parecia apontar que não acreditava que
houvesse algo de tão errado com a filha, mas ela também estava ali. Portanto, decidi
conhecer Lúcia para saber com ela se havia, ou não, um problema, e se houvesse,

1138
qual seria, assim como compreender o motivo que impulsionava aqueles pais a
perceberem sua filha como alguém que dava tanto trabalho aos adultos. Lúcia
participou de três consultas terapêuticas com outras crianças da mesma faixa etária.
Em todos esses atendimentos, a criança mostrou-se desinibida, atenta, falante e
criativa. Contudo, havia em alguns momentos, uma agitação exacerbada
desconectada de uma produção criativa e espontânea, acompanhada de um
incremento de atitudes agressivas por parte dela, que parecia indicar a emergência
de uma angústia. Ela surgia quando a menina não se sentia confiante em ser
reconhecida como si mesma, quando por alguma razão, não se sentia ouvida e vista
como distinta das outras crianças. Era como se ela perdesse a confiança de ser
reconhecida como si mesma e precisasse agir de modo agressivo como uma oposição
à ameaça de perda da sua identidade. Mostrava-se, ao mesmo tempo, preocupada
com os efeitos dessa ação, e o seu brincar se tornava inibido como se esperasse uma
reação de não aceitação e de intolerância do ambiente ao seu impulso destrutivo.
Compreendemos que ela estava apresentando uma necessidade de acolhimento e
suporte à excitação advinda de impulsos destrutivos – espontâneos e repletos de
vivacidade – que talvez não tenham sido tolerados pelos pais e por isso não puderam
ter sido experimentados em sua totalidade por ela, gerando um estado de angústia
primitiva na qual ela perdia de vista o brincar. Decidiu-se, então, convidar os pais a
participar de Consultas Terapêuticas com sua filha.
Na primeira Consulta Terapêutica com Lúcia e seus pais, a menina convidou
seus pais e a mim para brincar e isso ocorreu de maneira franca e genuína entre Lúcia
e sua mãe. O pai manteve-se mais como um observador, apesar de ser convidado por
Lúcia a brincar conosco. Em um dado momento da consulta, Lúcia se tornou mais
agitada e passou a desenhar correntes, laços com nós muito apertados, dizendo que
queria fazer algo que pudesse ser usado pelo pai e pela mãe, mas que não encontrava
o que servisse para os dois. Eu disse que nem sempre uma coisa servia para dois e
que ela podia fazer algo que ela sentisse que serviria para o pai diferente do que ela
sentia que serviria para a mãe. Ela então desenhou e pintou uma pulseira para a mãe
e um anel para o pai, que reagiu com contentamento, pela primeira vez, ao receber
esse presente de sua filha, o que a deixou bastante alegre e levou-a imediatamente a
desenhar e recortar mais pulseiras, tiaras, anéis, lenços, carteiras e outros “objetos”
que pudessem ser usados pelo pai e pela mãe. O pai expressou, então, sua surpresa
ao perceber que sua filha era uma pessoa criativa, que se mantinha atenta e
1139
concentrada no que estava realizando, assim como manifestava alegria ao ser bem
recebida em suas expressões afetivas, podendo estar mais identificado
empaticamente com a sua filha. Nesse momento, percebemos que o pai pôde colocar-
se no lugar da filha, assim como ela havia se colocado no lugar dele, mesmo que
ambos permanecessem sendo si mesmos, o que permitiu o começo de um novo
relacionamento. Isso indicou a existência de uma aproximação afetiva entre eles,
apesar do aparente distanciamento.
As Consultas Terapêuticas entre Lúcia e seus pais permitiram, então,
apresentá-la como uma criança que não só observava o mundo, mas que interagia
ativamente com ele, o que exigia dos seus pais um modo de relação também ativo e
participativo com ela. Nas palavras dela: “Agora vocês já sabem que eu sou uma
artista, não é mesmo, papai?” (sic). Logo depois que Lúcia disse isso, o pai me revelou
que ele se irritava com a filha porque ela se parecia com seu irmão, que também era
tão criativo quanto sua filha e por isso, segundo ele, bem mais amado por sua mãe, e
que isso o agredia. Entendemos, então, um dos motivos pelo qual o pai se opunha de
forma hostil à Lúcia e não podia se identificar empaticamente com ela, levando-o a
tratá-la como fazendo parte de sua realidade subjetiva. Foi possível também
apresentar aos pais a compreensão de que a agitação de Lúcia era uma manifestação
de sua angústia diante da distância afetiva do pai e da sua não identificação empática
à necessidade dela de ser si mesma. O estado de excitação exacerbado era
movimento em direção a ser reencontrada e reconhecida pelo pai como uma pessoa
distinta e única. A partir dessa compreensão foi proposta uma segunda Consulta
Terapêutica com Lúcia e seus pais, na qual pudemos observar, por meio do brincar
mútuo, que eles estavam se relacionando de maneira genuína e espontânea, e que
isso indicava que os pais e a filha haviam recuperado a capacidade de dar
continuidade à vida emocional da relação familiar. Os pais estavam devolvidos à Lúcia
e agora eles podiam se conhecer e se relacionar. Houve, então, o encerramento do
atendimento psicológico de Lúcia e seus pais no Serviço Escola.

Discussão

Faz-se importante salientar que, ao nos ocuparmos na clínica psicanalítica com


crianças e seus pais, é preciso realizar uma avaliação conscienciosa em relação ao

1140
momento do processo de maturação de cada uma das crianças e a sua interface com
o ambiente imediato. Dito de outra forma, a presença dos pais nas Consultas
Terapêuticas de seus filhos foi promovida pela analista quando havia indicativos da
capacidade da criança em ter esperança em um encontro humano que viesse em seu
auxílio, e quando os pais poderiam fazer um bom uso do progresso alcançado por ela
após a finalização das consultas. Além disso, o manejo e o suporte desenvolvidos
pela analista foram fundamentais para favorecer o momento da comunicação
significativa da criança e para sensibilizar e mobilizar novamente os pais em direção
à identificação empática com a criança, a fim de que proporcionassem o suporte e
apoio necessários para a continuidade do amadurecimento emocional.
Faz-se importante mencionar o aspecto preventivo dessa modalidade de
intervenção terapêutica, na medida em que promove a conscientização dos pais sobre
sua participação na constituição do sintoma da criança, além de auxiliar a criança a
elaborar sua angústia antes da estruturação de modos patológicos de resolução do
conflito. Além disso, por estarem sendo realizadas em uma instituição, o Serviço
Escola, as Consultas Terapêuticas com pais e filhos têm abarcado um número maior
de crianças e seus pais em um tempo breve de atendimento clínico psicanalítico,
promovendo as funções sociais dessa instituição: atender as necessidades da
população que a procura e formar profissionais capacitados a enfrentar as demandas
atuais da realidade sociocultural. A participação dos estagiários nas Consultas
Terapêuticas com pais e filhos permite a aprendizagem de outra modalidade de
intervenção aos futuros profissionais da psicologia, o que, a meu ver, garante uma
experiência clínica diferenciada e apropriada à prevenção e promoção de saúde da
criança e de seus pais, apontando para a sua relevância social.
A originalidade desse trabalho clínico psicanalítico está na constituição de uma
experiência compartilhada do brincar com os pais nas Consultas Terapêuticas com
seus filhos, o que tem permitido o acesso dos pais ao brincar tornando mais facilitado
o contato entre eles e a criança. Essa experiência compartilhada do brincar, mediada
pela condição de “cuidar-curar” da analista, atualiza as próprias condições favoráveis
dos pais de cuidar do filho.
Sempre esperamos que os pacientes nos esqueçam e vão embora, disse
Winnicott, para viver a vida que faz sentido para cada um deles. O nosso ponto de
partida é o nosso ponto de chegada.

1141
Referências

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1142
107- VIVÊNCIAS EMOCIONAIS DE CUIDADORES FORMAIS DE IDOSOS
PORTADORES DE DEMÊNCIA

Sibyli Friedrich Almeida Cunha1


Thamara Teixeira de Castro2
Valdiléa Rezende Souza de Luca3
Cláudia Aranha Gil4

Resumo: O envelhecimento tem sido amplamente estudado nos últimos anos em


decorrência do significativo aumento da expectativa de vida, sendo necessária a
atenção voltada aos profissionais que cuidam da população idosa. Este estudo objetivou
investigar as vivências emocionais de cuidadores de idosos demenciados e contou com
a participação de 10 cuidadores formais de idosos portadores de demência entre 21 e
59 anos, de ambos os sexos, que exercem a atividade há pelo menos 6 meses, em
regime domiciliar e em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI). Trata-se
de pesquisa de campo e abordagem qualitativa. Para a coleta de dados foram
utilizados: questionário sociodemográfico, Procedimento Desenho-Estória com Tema e
entrevista semidirigida. Observou-se por meio dos relatos que há impactos na saúde
física e mental dos cuidadores, sendo mais intensos em cuidadores de idosos
demenciados quando comparado aos cuidadores de idosos portadores de outras
patologias. Há predomínio da expressão de sentimentos positivos com relação aos
idosos. Por meio da técnica Projetiva foi possível obter maior aprofundamento dos
dados obtidos nas entrevistas, favorecendo a identificação de relatos autorreferentes,
sinalizando a necessidade de escuta dessa população. Observa-se a necessidade de
mais pesquisas que promoverão maior assertividade frente às demandas psicológicas
desses profissionais.

Palavras-chave: Envelhecimento, Cuidadores Formais, Demências, Saúde Mental,


Técnica Projetiva.

INTRODUÇÃO
As questões sobre envelhecimento humano vêm ganhando cada vez mais
espaço no cenário mundial e tem se tornado um dos fenômenos mais estudados na
atualidade. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018
1143
a população foi estimada em 208,5 milhões de habitantes, sendo que 28 milhões são
de idosos. Isto gerou um Índice de Envelhecimento (IE) de 63 idosos para cada 100
jovens, promovendo, assim, uma significativa mudança demográfica (IBGE, 2018).
O envelhecimento é um processo natural que começa na idade adulta, por
volta dos 30 anos, apresentando um declínio gradual das funções físicas e cognitivas
do indivíduo que são consideradas normais, ainda que vivenciadas como
desagradáveis por grande parte dos idosos (Berger, 2013). O processo de
envelhecimento transforma o organismo reduzindo suas capacidades funcionais e
psicológicas, dependendo do contexto biopsicossocial em que este indivíduo estiver
inserido (Neri, 2013; Costa, Castro, & Acioli, 2015).
As síndromes demenciais são as doenças mentais que mais acometem os
idosos atualmente e é definida como uma condição na qual ocorre decréscimo
cognitivo comparado a um nível prévio do indivíduo (Parmera & Nitrini, 2015). Existem
diversos tipos de demências, dentre as quais podemos destacar a Doença de
Alzheimer (DA), Demência Vascular, Demência Frontotemporal e Demência com
corpos de Lewi (Araújo & Nicoli, 2010), que são mais prevalentes no Brasil.
Em face à vivência de uma velhice fragilizada, faz-se necessário prover um
ambiente de cuidados e considerando as estimativas de crescimento populacional, a
figura do cuidador começa a ganhar notoriedade e espaço. De acordo com Marigliano
(2016), em virtude da mudança demográfica no Brasil a sociedade começa a perceber
o processo de envelhecimento sob uma nova perspectiva, oferecendo a partir de então
um novo olhar para o trato do idoso.
O cuidador formal é a pessoa com ou sem formação específica para o
exercício da função, remunerada, que atua vinculado à uma instituição de cuidados,
como por exemplo Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), Centros Dia
ou Hospitais Dia, ou no domicílio do idoso cuidado. Segundo Bifulco e Levites (2018),
é fundamental a busca de informações antes de tornar-se um cuidador, tendo em vista
que o conhecimento tem importância crucial neste processo. No Brasil ainda não há
formação oficial para cuidadores, apenas cursos particulares de curta duração.
Em um estudo focado na comparação do bem estar psicológico de
cuidadores de idosos com e sem demência, Barbosa, Cruz, Figueiredo, Marques e
Sousa (2011) identificaram que o cuidado de idosos demenciados implica em uma
série de dificuldades, especialmente no que tange a comunicação com o idoso e os
distúrbios comportamentais inerentes à doença, como a agitação e a agressividade.
1144
Desta forma, é de suma importância investimentos em estudos sobre as vivências
emocionais dos cuidadores formais com finalidade de analisar a perspectiva desta
área e promover conhecimentos e reflexões acerca do respectivo tema.

OBJETIVOS
O objetivo geral desse estudo foi investigar e analisar as vivências emocionais
de cuidadores formais de idosos demenciados. Especificamente objetivou-se verificar
principais motivações para escolha da profissão, analisar através dos relatos os
principais impactos que o cuidado do idoso demenciado produz na saúde física e
emocional do cuidador e comparar vivências emocionais entre cuidadores que atuam
em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) e no domicílio do idoso.

JUSTIFICATIVA
Considerando o aumento da população idosa no Brasil, cresce a procura por
cuidadores. Nesta profissão os profissionais podem sentir-se sobrecarregados tanto
física como emocionalmente. Portanto, realizar estudos que aprofundem essa
temática torna-se relevante para o campo científico, a fim de promover além do
conhecimento do tema, o oferecimento da escuta aos participantes.

MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa de campo, de caráter descritivo, abordagem
qualitativa, que foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São
Judas Tadeu (CEP) através do CAAE 12511119.3.0000.0089 e aprovado sob o
número 3.317.443. A amostra foi composta por 10 cuidadores formais de idosos
portadores de qualquer tipo de demência, sendo proporcionalmente divididos entre os
que atuam em domicílio ou Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), de
ambos os sexos, com idade entre 21 e 59 anos e que exerciam a atividade há pelo
menos 6 meses.
Em seus respectivos locais de trabalho os participantes leram e assinaram o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Na sequência foram aplicados um
questionário sociodemográfico, o Procedimento Desenho-Estória com Tema (Aiello-
Vaisberg, 1995) e uma entrevista semidirigida. Para a análise das entrevistas
semidirigidas e das estórias relativas aos desenhos, foi utilizada a Análise de Conteúdo
de Bardin (2011), técnica que procura condensar o volume amplo das informações que
1145
estão compreendidas, ressaltando categorias conceituais. Com relação à produção dos
Desenhos-Estória foi levado em conta todo o conjunto da produção e os principais temas
apresentados. Todos os resultados foram discutidos sob a luz da teoria sobre o tema.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Apesar da pesquisa prever a participação de cuidadores de ambos os sexos, a
amostra é predominantemente feminina (80%). Segundo Marigliano (2016), esta é uma
característica marcante encontrada nas pesquisas voltadas a cuidadores de idosos.
Em relação à faixa etária, assim como em outros estudos (Marigliano, 2016;
Paes, Cots, & Ramalho, 2017) a idade dos participantes varia entre 25 e 57 anos, sendo
que a média de idade dos cuidadores é de 42 anos. É interessante destacar que se
observarmos separadamente os dois grupos pesquisados, percebe-se que os
cuidadores domiciliares são mais jovens e têm em média 37 anos, ao passo que os que
atuam em ILPI são em média 10 anos mais velhos. Sobre este aspecto, Vieira, Gomes,
Fialho, Silva, Freitas e Moreira (2011) ressaltam que o fator idade restringe o tempo de
atuação do profissional.
No que tange à escolaridade, 80% dos participantes possuem alguma formação
voltada para a área da saúde. Pensando na formação deste profissional, Silva, Machado,
Ferreira e Rodrigues (2015) indicam que não há muitos cursos voltados para esta
atividade e dentre os existentes, não há uma matriz curricular específica e bem definida.
Observou-se dentre a população pesquisada que os profissionais melhor
remunerados atuam em ILPI, cuja média é de 2,8 salários versus 2,2 salários dentre
os domiciliares. Esta diferença para os cuidadores domiciliares pode estar pautada
na falta de clareza na comparação sobre os limites da função deste profissional e da
empregada doméstica, uma vez que, para esta segunda, não há exigências no que
tange a escolaridade e formação técnica (Marigliano, 2016; Couto, 2012).
No que se refere à jornada de trabalho, a carga horária é de 12 horas/dia
para 90% dos profissionais pesquisados. A regulamentação da atividade de cuidador
de idosos está em tramitação através do Projeto de Lei nº 4702/2012, mas já integra
o rol de profissões descrita na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO).
Para a análise de conteúdo das entrevistas semidirigidas, as respostas
obtidas foram agrupadas nas seguintes categorias temáticas: motivações para se
tornar um cuidador; características de cuidadores de idosos com demência; diferenças
nos cuidados de idosos com demência; impactos da função na saúde física e mental.
1146
Na categoria temática “Motivações para se tornar um cuidador” buscou-se
compreender os motivos que levaram os participantes a escolherem essa profissão.
Observou-se que a maioria dos participantes iniciaram suas carreiras a partir da
experiência de cuidado de um familiar, conforme identificado no estudo de Almeida,
Leite e Hildebrandt (2009) que ressaltam que os cuidadores estão na própria família.
Outra unidade identificada foi o interesse e o gostar de idosos, observada igualmente
entre os cuidadores domiciliares e institucionais. Nesse aspecto, a empatia aliada aos
conhecimentos técnicos soma para uma melhor qualidade de trabalho (Marigliano,
2016; Marigliano & Gil, 2018). Também foi encontrada a unidade necessidade
financeira como principal motivação para exercer a função de cuidador de idosos,
além da unidade experiência para cuidar dos pais que, segundo Sena e Gonçalves
(2008), ainda existe no Brasil a ideia de que o cuidado de um familiar doente deve ser
feito pela própria família.
A categoria temática “Características de cuidadores de idosos com
demência” revelou aspectos importantes sobre a percepção dos cuidadores. Dentre
os participantes notou-se relevância significativa para a unidade sentimentos positivos
no cuidado de idosos, igualmente representados nos dois cenários (domiciliar e ILPI).
Conforme estudo publicado por Gutierrez et al. (2017), este aspecto é muito singular
à medida que o cuidado pode ser visto positivamente através de diferentes prismas.
Outra unidade representativa é a valorização da conversa com o idoso, que
novamente foi observada nos dois grupos e demonstram que essa interação de
cuidado contribui para que o papel do cuidador seja mais gratificante, percebendo sua
valorização pela importância e necessidade das ações que executa (Couto, Castro, &
Caldas, 2016). Também foi observada a unidade de significado “Paciência/calma para
lidar com a agressividade dos idosos” que, segundo Camilo (2015), o autocontrole do
cuidador frente à agressividade do idoso está diretamente relacionada à autonomia
deste profissional quanto ao manejo do idoso demenciado. Uma unidade relevante é
a “Importância de manter a rotina”, posto que é necessário e valioso a manutenção do
hábito para o idoso, favorecendo a interação com o cuidador (Oliveira, Marcolino, &
Andrade, 2011). Houve também a menção sobre a unidade de significado
“Importância do apego à família do idoso” e sobre isso, Gil et al. (2018) explicam que
a contratação de um cuidador formal representa para a família uma redução
significativa da sensação de sobrecarga, além de proporcionar melhor qualidade de
vida para este idoso dependente.
1147
Na terceira categoria temática buscou-se compreender as “Diferenças no
cuidado dos idosos com demência”, na qual foram encontrados três aspectos
significativos. Dos participantes entrevistados, metade relatou que o “Cuidado com
idoso demenciado é mais difícil” do que com um idoso que possui doenças físicas.
Esta maior dificuldade foi encontrada nos estudos realizados por Pinto e Barham
(2014), que mostrou que cuidadores que atuam com este perfil de idosos tinham
percepções de sobrecargas mais intensas quando comparado ao cuidado de idosos
lúcidos. Outra importante unidade encontrada foi “Cuidar de idosos com questões
físicas é mais difícil”, que corrobora com o estudo publicado por Anjos, Boery, &
Pereira (2014), que observaram que a maior dificuldade do cuidador de idosos diz
respeito a atividades que exigem maior esforço físico.
A categoria temática “Impactos da função na saúde física e mental” tinha
como objetivo compreender se existiam e quais seriam os impactos na saúde do
cuidador, e nesse sentido, a grande maioria dos entrevistados compreendem que há
“Impacto na Saúde Física” e que estes impactos precisam ser considerados à medida
que tais problemas podem ser adquiridos com a frequência do trabalho (Anjos et al.,
2015; Gutierrez, et al., 2017; Marigliano, 2016). Uma unidade significativa identificada
foi a dos “Impactos positivos”, que expressa mudanças benéficas nas vidas dos
cuidadores de idosos, como explica Marigliano (2016), cujo estudo revelou que 40%
dos cuidadores mencionaram ter percebido mudanças positivas em suas vidas, visto
que o exercício da função proporciona um olhar mais humanizado para a figura do
idoso. Outra consideração importante foi percebida na unidade de significado
“Impactos na saúde mental”, onde se enquadram os aspectos psicológicos prejudiciais
frente a atividade de cuidar. Estudos publicados por Costa et al. (2015) abordam que
as alterações psicossociais são as mais sentidas pelo cuidador formal, que além da
sobrecarga emocional, podem apresentar prejuízos no autocuidado do próprio
cuidador. Também foi identificada a unidade de significado “Não sente impacto” que,
de acordo com Marigliano (2016), uma das causas de ausência de impacto pode estar
relacionada a saúde do idoso, bem como às melhores condições de trabalho.
A análise do Procedimento Desenho-Estória com Tema foi realizada
utilizando o conjunto do desenho com a estória. A grande maioria dos participantes
relataram histórias autorreferentes e fizeram desenhos expondo sua própria rotina
com o(s) idoso(s), suas dificuldades e seus sentimentos. Assim, é importante destacar
que a técnica projetiva empregada apresentou uma função mediadora no contato
1148
entre pesquisado e pesquisador, favorecendo a expressão de conteúdos emocionais
e evidenciando uma necessidade de escuta (Barros, Gil, & Tardivo, 2010). Os
principais temas encontrados na produção desenho-estória com tema foram:
“Dificuldades enfrentadas no trabalho com o idoso demenciado”; “Demonstração de
afeto ao idoso”; “Aspectos Infantis”; “Estratégias no cuidado com o idoso demenciado”.
A maioria dos participantes relatou sobre as “dificuldades enfrentadas no
trabalho com o idoso demenciado”, que de acordo com Novelli et.al. (2010) é muito difícil
lidar com os comportamentos e com os aspectos psicológicos dos idosos, independente
da fase da demência. A maior parte desses participantes são cuidadores domiciliares,
indicando que eles se sentem mais sozinhos, com grandes responsabilidades e sem
nenhum tipo de apoio, segundo Sena (2006).
Na temática “Demonstração de afeto ao idoso”, idoso e cuidador aparecem de
mãos dadas nos desenhos e relatam a necessidade de apoio e cuidado ao idoso. De
acordo com Marigliano (2016), os sentimentos servem como base de sustentação para
auxiliar nos problemas enfrentados.
No que diz respeito às “Estratégias no cuidado com idoso demenciado”, foi
identificado que, segundo Barbosa (2011), a compreensão é adquirida ao longo do
tempo pelas experiências e conversa com outros colegas da área. Em decorrência
disto, conseguem incorporar diferentes estratégias para o manejo dos idosos demenciados.
Por fim, na temática “Infantilização da velhice”, observou-se traços parecidos com
“mãe e filho” nos desenhos e relatos utilizando o diminutivo. De acordo com Marigliano
(2016), existe uma dificuldade em lidar com questões relacionadas ao envelhecimento e
por isso não mostram a velhice, produzindo desenhos com aspectos infantis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos dez anos notou-se crescimento significativo da expectativa de
vida e como reflexo deste cenário, houve crescimento no número de idosos portadores
de algum tipo de demência e dependentes de cuidados, que por sua vez repercutiu em
uma necessidade cada vez maior de contratação profissionais para auxiliar no cuidado
deste idoso fragilizado. Compreende-se que o objetivo proposto para esta pesquisa foi
atingido, à medida que foi possível perceber como o profissional percebe a relação com
o idoso cuidado, bem como os impactos de suas vivências. O instrumento utilizado para
1149
entender o imaginário coletivo sobre a temática foi adequado, pois possibilitou verificar
aspectos além dos que foram encontrados nas entrevistas.
Há vários fatores que podem despertar o desejo de tornar-se um cuidador
de idosos, mas para os participantes deste estudo, a motivação está relacionada
principalmente às vivências que tiveram em família e aos cuidados prestados para
estes parentes. Foi identificado que tanto em relação aos cuidadores de ILPI quanto
os domiciliares, há um predomínio da expressão de sentimentos positivos voltados
aos idosos, bem como a valorização da conversa e da manutenção de estados de
calma e paciência. Quanto às questões de cuidados específicos, verificou-se que de
modo geral esse cuidado é considerado mais difícil se levarmos em conta idosos com
outras patologias físicas.
A análise realizada através da técnica projetiva empregada trouxe
contribuições importantes para esse estudo, que corroboram com a análise efetuada
através dos demais instrumentos e permitiram um maior aprofundamento e
complementação dos dados obtidos por meio das entrevistas. Ao constatarmos um
predomínio de relatos autorreferentes, podemos considerar que esses sinalizam para
a necessidade de escuta dessa população. É necessário ressaltar a importância de
outros estudos em relação ao tema em questão, sugerindo-se, para trabalhos futuros, a
exploração do trabalho de cuidador em outros contextos e/ou com outros instrumentos.

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