Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ISBN: 978-65-87596-26-6
INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA
São Paulo
1
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo e Rilza Marigliano (Organizadoras)
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
2
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo e Rilza Marigliano (Organizadoras)
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA
3
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo e Rilza Marigliano (Organizadoras)
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA
4
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo e Rilza Marigliano (Organizadoras)
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
5
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
Comissão Organizadora
6
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
7
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
Seguiram os critérios:
8
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
1- Apresentação
2- Redação
a) Introdução/Revisão da Literatura
b) Relevância do tema investigado
c) Referências usadas: relevância e são suficientes
d) Objetivos e justificativa :clareza
e) Normas: APA (estão seguidas corretamente)
f) Método: descrição correta: participantes, procedimentos e instrumentos
g) Menção adequada dos aspectos éticos envolvidos
h) Resultados: apresentação com clareza, relação com os objetivos e o
método (podem ser apresentação de estudos de caso)
i) Discussão/ conclusões: qualidade, síntese dos resultados e relação com
os dados da literature
9
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
Conclusão da avaliação:
( ) Favorável- aceito sem modificações
( ) Favorável, com pequenas modificações
explicitadas no parecer
( ) Favorável, com grandes modificações explicitadas
no parecer –
( ) Desfavorável
10
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
MÉDIA FINAL
11
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
PROGRAMA
VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA PROPOSTAS DE
ATENÇÃO E PESQUISAS
29 de novembro de 2019
Instituto de Psicologia da USP – Bloco G
8h00– Recepção / Distribuição de material
9h00 – Abertura- Diretora - Prof. Dr. Gustavo Massola
12
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
SUMÁRIO
COMUNICAÇÕES
ORAIS 1ª Mesa- Propostas de atendimento psicológico no CIC Oeste –
p
Pag P
A Atuação Da rede no CIC - TAIPAS Edilaine Daniel Carvalho A
G
Relato da experiência: Projeto Leila Cury Tardivo, Helena Rinaldi a
“Atenção Psicológica no CIC – Rosa, alunos da Graduação e Pós- g
TAIPAS graduação
2ª Mesa - Violência e adolescência
13
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
14
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
15
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
16
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
17
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
PSICANALITICAMENTE ORIENTADA:
INTERLOCUÇÕES COM PICHON RIVIERE
48. IDOSOS COM ALZHEIMER: IMPACTO NOS Rosângela Vidal de Negreiros; Cristiana
CUIDADORES Barbosa da Silva Gomes; Jogilmira
Macedo Silva Mendes; Emanuel Nildivan
542
Rodrigues da Fonseca; Gilberto Safra.
49. ADOÇÃO E FUNCIONAMENTO FALSO SELF: Isabela Ferreira Miranda; Renata Bellini
UM ESTUDO DE CASO Begosso; Geovana Figueira Gomes;
Fernanda Kimie Tavares Mishima- 553
Gomes, Valeria Barbieri.
18
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
19
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
20
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
100. O QUE (NÃO) ESCUTAMOS QUANDO Kauê da Costa Alves e Kelly Cristina Brandão
ESCUTAMOS OS PAIS da Silva 1079
21
17ª JORNADA APOIAR: VIOLÊNCIA SOCIAL E AUTOINFLINGIDA- PROPOSTAS DE ATENÇÃO E PESQUISA.
22
TRABALHOS APRESENTADOS NA SESSÃO
DE PÔSTERES
TRABALHOS DO LABORATÓRIO DE
SAÚDE MENTAL E PSICOLOGIA CLÍNICA
SOCIAL
APOIAR
23
1- INTERVENÇÃO GRUPAL EM PESSOAS COM DOR CRÔNICA: PUBLICAÇÕES
DA PSYCINFO EM 2018
Resumo: A dor crônica, como doença, acomete um em cada cinco pessoas mundialmente,
aumenta com a idade, atinge mais mulheres, em trabalhos extenuantes ou naqueles com
menores níveis de escolaridade, portanto, população mais vulnerável. Há diversas formas
de intervenção psicológica que podem tornar o atendimento a essa demanda mais barato e
acessível. Neste estudo de revisão sistemática da literatura, objetivou-se buscar e analisar
as publicações sobre o tema ‘Intervenção psicológica grupal na dor crônica’ disponível on
line, na base de dados PsycINFO (APA). Os resultados da leitura e análise integral dos 29
artigos científicos, indicam que: (1) O Tipo de estudo majoritariamente de pesquisas de
campo (93%), com delineamento do tipo experimental (55%) e (2) os principais resultados
foram significativos (48%). Conclui-se que é necessário maior aprofundamento na análise,
pois fatores não abordados aqui (como o motivo de 52% das pesquisas serem não-
significativas) podem contribuir ainda mais para o refinamento das informações encontradas.
INTRODUÇÃO
1
Doutoranda em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo_ IPUSP. Professora, nível
graduação, na UMC e nível pós-graduação, nas Faculdades Educatie.
2
_Livre docente e Professora em nível graduação e pós-graduação no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo_ IPUSP
24
os casos em que se torna persistente, tornando-se inútil biologicamente e causando
impactos na vida das pessoas.
Muitos fatores podem contribuir para o estabelecimento dos quadros de dor, desde
baixa qualidade de vida até perdas financeiras e sociais que podem contribuir para
comorbidades como: imobilidade, desesperança, alterações do sono, problemas
nutricionais, dependência de medicamentos, de profissionais da saúde, de cuidadores e de
instituições, incapacidade para o trabalho, ansiedade, medo, amargura, frustração,
depressão até suicídio, são algumas das complicações que podem acompanhá-la (SBED,
s/d-2019).
No Brasil, a Sociedade Brasileira para Estudos da Dor (SBED), representante
da International Association for the Study of Pain (IASP), que é o maior expoente nos
estudos de dor (contribuindo inclusive com estudos da Organização Mundial de Saúde-
OMS) define dor como a “Experiência sensitiva e emocional desagradável associada ou
relacionada à lesão real ou potencial dos tecidos. Cada indivíduo aprende a utilizar esse
termo através das suas experiências anteriores” (SBED, s/d - 2019).
A dor pode ser aguda (alerta biológico), recorrente (período curto, mas frequente, como a
enxaqueca) ou crônica que é aquela dor em duração prolongada, que pode se estender de
vários meses a vários anos (persistente acima de três meses, embora não haja consenso)
e que está quase sempre [há exceções] associada a um processo de doença
crônica. Portanto, é uma manifestação biológica de intersecção subjetiva já que envolve
mecanismos físicos, psíquicos e culturais (SBED, s/d - 2019 e Volich, 2010).
A dor crônica, que se comporta como uma doença em si, acomete um e cada cinco
pessoas, aumenta com a idade, atinge mais mulheres, em trabalhos extenuantes ou
naqueles com menores níveis de escolaridade, é inútil como sinal biológico (SBED, s/d -
2019). Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2012) inexistem dados disponíveis no Brasil,
entretanto dados norte-americanos mostram que 31% da população norte-americana têm
dor crônica, acarretando incapacidade total ou parcial em 75% dos casos.
Esse conceito de dor crônica é abrangente e abarca o aspecto físico (real) e psíquico
(subjetivo), portanto considera a complexidade que envolve o adoecer de dor (doença em
si) mais do que apenas um sintoma (acessório) ligada a um quadro patológico. O conceito
de dor, atualmente compreende três componentes: o sensitivo-discriminativo (sensação
física), o afetivo-motivacional (emocional) e o congnitivo-avaliativo (pensamento) (Volich,
25
2010). Ressalta-se no presente estudo, o aspecto emocional e suas repercussões de
sofrimento para a pessoa que é diagnosticada com dor crônica.
Nesse sentido a teoria psicanalítica vem, desde seu início como ciência, tentando
ampliar a compreensão dos fenômenos psíquicos que não encontram explicação médica-
orgânica. Freud (1969/1996) ao estudar a histeria apontou caminhos para o entendimento
de como as dores da alma (psíquicas) poderiam ser expressas como sintomas físicos.
26
sucesso no grupo) e as características individuais de cada participante, sendo a motivação
a principal delas.
OBJETIVO
Tendo isto posto, o presente artigo tem o objetivo geral de buscar e analisar as
publicações sobre o tema ‘Intervenção psicológica grupal na dor cônica’ disponível on line,
sendo estabelecido como objetivos específicos investigar as seguintes variáveis: (1) Tipo
de estudo e (2) Principais resultados.
MÉTODO
27
sistemática da literatura psicológica, com produções a partir do ano 1800 até o presente,
disponibilizadas aos associados da APA ou àqueles que, por meio de parceria, possam
pagar por seus artigos. Essa base de dados foi escolhida por: (1) ser considerada uma fonte
de artigos científicos reconhecida pela comunidade científica internacional; (2) permitir uma
ampla pesquisa e busca de resumos de artigos, capítulos de livros, dissertações, teses, entre
outros; (3) abranger periódicos de área específica do conhecimento de psicologia.
Material
A amostra foi composta por 29 artigos publicados no ano de 2018 (de um n=61).
Foram utilizadas na busca bibliográfica as palavras-chave: Intervenção psicológica e dor
crônica (group intervention e chronic pain), em língua inglesa, sem determinar o tipo de
periódico em que foi publicado.
Os critérios de inclusão adotados foram: o texto citar ser pesquisa de intervenção e a
população estudada deveria ter dor crônica. Foram excluídos 32 artigos em que os
participantes sofriam de dor pós-cirúrgica, estudos sem intervenção, participantes de
programas que não mencionavam dor, entre outros.
Procedimento
Após a leitura dos 61 resumos, observou-se que 32 estavam fora dos critérios de
inclusão e foram descartados. Nos demais (n=29) foi feita a leitura integral do artigo,
resultando num fichamento (e tabelamento) individual dos trabalhos avaliados.
A análise e discussão se deram de forma Quantitativa, pois se usou prioritariamente
a estatística descritiva.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
28
(Tabela1). A seguir apresentam-se os resultados conforme destacados nos objetivos
específicos estabelecidos:
29
T Tabela 01: Artigos publicados em 2018 (n=29), PsycINFO, SP, 2019
Artigo F %
Tipo de estudo
Pesquisa 27 93
Teórica 2 7
29 100
Delineamento
Experimental 16 55
Descritiva 11 38
Quase-experimental 2 7
29 100
Abordagem
Interventiva 25 86
Não interventiva 4 14
29 100
Intervenção
Intervenção sem citação de formato 11 38
Grupo 7 24
Individual 7 24
Sem Intervenção 4 14
29 100
Nível de invasão da intervenção
Não invasiva 12 48
Invasiva 7 28
Pouco invasiva 6 24
25 0
População
Sem Informação 18 62
Idoso 3 10
Mulher 3 10
Mista (Homem e Mulher) 2 7
Artigos teóricos 2 7
Adolescente 1 3
29 100
Tamanho das amostras
01-50 13 45
51-100 7 24
101-150 4 14
151-200 1 3
201-250 1 3
251+ 3 10
29 100
Resultados
Significativos 14 48
Não citado 6 21
Pouco significativos 5 17
Médio significativos 4 14
Total 29 100
30
Referindo-se aos principais resultados, as pesquisas apontam que em catorze (48%)
dos estudos os resultados foram significativos, ou seja, colaboraram para a melhora dos
estados de dor nos pacientes. Pode-se apreender esses resultados no estudo de Torres;
Pedersen; & Pérez-Fernández (2018) cujo objetivo foi examinar a eficácia preliminar de uma
intervenção Grupal Musical e Imagética (GrpMI), que incluiu relaxamento, música e imagens
espontâneas, para melhorar o bem-estar psicológico subjetivo, capacidade funcional e
saúde, percepção da dor, ansiedade e depressão em mulheres com fibromialgia (FM).
Concluíram, após análises intra-grupo, que os participantes GrpMI tiveram um aumento
significativo no bem-estar psicológico e diminuição significativa no impacto da FM na
capacidade funcional e saúde, percepção da dor, ansiedade e depressão pós-tratamento,
com benefício sustentado em três acompanhamento mensal para todas as variáveis, exceto
o bem-estar psicológico. Os participantes do grupo controle apresentaram diminuição na
ansiedade-traço e depressão no pós-tratamento, sem benefício significativo no seguimento
de três meses. Análises intergrupos mostraram que, em comparação com os participantes
do grupo controle, os participantes do GRpMI apresentaram escores significativamente mais
altos para o bem-estar psicológico e ansiedade pós-tratamento no estado inferior; no
entanto, não foram observadas diferenças entre os grupos no seguimento de três meses.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
31
necessário um maior aprofundamento na análise a fim de contribuir ainda mais para o
refinamento das informações encontradas.
REFERÊNCIAS
Bushnell, M. C., Ceko, M. & Low, L.A. (2013). Cognitive and emotional control of pain and its
disruption in chronic pain. Nature Reviews Neuroscience (14) 502–511. Recuperado de
http://www.nature.com/nrn/journal/v14/n7/abs/nrn3516.html.
Freud, S. (1969/ 1996): Estudos sobre a histeria, In: Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud: edição standard brasileira. Volume II. Rio de Janeiro: Imago
Garland, Eric L.; Hanley, Adam W.; Bedford, Carter E.; Zubieta, Jon-Kar; Howard, Matthew O.;
Nakamura, Yoshio; Donaldson, Gary W.; & Froeliger, Brett (2018). Reappraisal deficits
promote craving and emotional distress among chronic pain patients at risk for prescription
opioid misuse. Journal of Addictive Diseases, Jun 1 , 2018, No Pagination Specified
Recuperado de: <http://dx.doi.org/10.1080/10550887.2018.1459148> Acesso em: mai,
2019.
Klein, M. (1957/1984). Inveja e gratidão: estudo das fontes do inconsciente. Rio de Janeiro:
Imago.
Laurentiis, V. R. F. (2016). Corpo e Psicossomática em Winnicott. São Paulo: DWW Editorial.
32
Mello-Filho, J.; Burd, M. (org)(2010). Psicossomática hoje [recurso eletrônico]. 2. ed. – Dados
eletrônicos. – Porto Alegre: Artmed.
Organização Mundial da Saúde - OMS – (2014). CID-10, V.1 - Classificação Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados À Saúde. Formato: LIVRO.
Powers, Abigail; Madan, Alok; Hilbert, Megan; Reeves, Scott T.; George, Mark; Nash, Michael
R.; & Borckardt, Jeffrey J.(2018) Effects of combining a brief cognitive intervention with
transcranial direct current stimulation on pain tolerance: A randomized controlled pilot study.
Pain Medicine, Vol 19(4), Apr 2018, 677-685. Recuperado de:
<http://dx.doi.org/10.1093/pm/pnx098 > Acesso em: mai, 2019.
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor SBED (s/d). O que é dor? Recuperado de < <
http://sbed.org.br/o-que-e-dor/> Acesso em jul, 2019.
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor_SBED, (s/d). 5º Sinal Vital. Recuperado de:
http://sbed.org.br/5o-sinal-vital/, acesso em: jul, 2019
Souza, A. P. R,; Crestani, A. H.; Vieira, C. R.; Machado, F. C. M.; & Pereira, L. L. (2011,
Jan./fev.). O grupo na fonoaudiologia: origens clínicas e na saúde coletiva. Revista CEFAC
Vol. 13(1), p. 140-151. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/rcefac/v13n1/200-09.pdf
Torres, Esperanza; Pedersen, Inge N.; & Pérez-Fernández, José I. (2018) Randomized trial of
a Group Music and Imagery Method (GrpMI) for women with fibromyalgia. Journal of Music
Therapy, Vol 55(2), Sum 2018, 186-220. Recuperado de:
<http://dx.doi.org/10.1093/jmt/thy005 > Acesso em: mai, 2019.
Turner; Liang; Rodriguez; Bobadilla; Simmonds; & Yin (2018). Randomized trial of a low-literacy
chronic pain self-management program: Analysis of secondary pain and psychological
outcome measures. The Journal of Pain, Aug 24 , 2018, No Pagination Specified.
Recuperado de: <http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2018.06.010> Acesso em: mai, 2019.
Volich, R.M. (2010). Psicossomática: de Hipócrates a Psicanalise. São Paulo: Casa do
Psicólogo
.Volpato, Gilson Luiz e colaboradores (2013). Dicionário crítico para redação científica.
Botucatu, SP: Best Writing
Williams, A.; Dongen; Kamper; O'Brien,; Wolfenden; Yoong; Hodder; Lee; Robson; Haskins;
Rissel; Wiggers; & Williams (2018). Economic evaluation of a healthy lifestyle intervention for
chronic low back pain: A randomized controlled trial. European Journal of Pain, Dec 4 , 2018,
No Pagination Specified Recuperado de : <http://dx.doi.org/10.1002/ejp.1334> Acesso em:
mai, 2019.
33
Winnicott, D. W. (1965/1994). O valor da consulta terapêutica. In: Winnicott, C.; Shephard, R.
(Org.). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas (1994). P. 244-248
Winnicott, D. W. (1971/1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.
Zimmerman, D. E. (1997). Grupoterapia Psicoanalítica. In: Zimmerman, D. E., Osório, L. C. e
colaboradores. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artmed
34
2- O DESENHO DA FIGURA HUMANA NA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DE
AGRESSORES SEXUAIS PEDÓFILOS NO CONTEXTO PRISIONAL
Introdução
35
nível social, econômico, religioso ou cultural (Balloni & Bisi, 2008 como citado em
Florentino, 2015). Já a violência sexual contra menores, é caracterizada por atos
praticados com finalidade sexual que, por serem lesivos ao corpo e a mente do sujeito
violado (crianças e adolescentes), desrespeitam os direitos e as garantias individuais
como liberdade, respeito e dignidade previstos na Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança
e do Adolescente (Brasil, 1990).
As agressões sexuais contra menores muitas vezes são consumadas por sujeitos
que portam o transtorno parafílico denominado pedofilia. A pedofilia por sua vez, é
caracterizada pelo Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-
V) como uma parafilia. A pedofilia é definida como interesse sexual predominante ou
exclusivo por crianças pré-púberes (geralmente com 13 anos ou menos), demonstrado
por um indivíduo adulto, tratando-se a criança como seu meio preferido ou único de
excitação e obtenção de satisfação sexual (American Psychiatric Association [APA],
2013).
36
A pedofilia se caracteriza pelo interesse sexual predominante ou exclusivo por
crianças pré-púberes (geralmente com 13 anos ou menos), consumado por um indivíduo
adulto, considerando a criança como seu meio preferido ou único de excitação e
obtenção de satisfação sexual. O DSM-V distingue a pedofilia do tipo exclusivo do não
exclusivo, a do tipo exclusivo são portados por sujeitos que se sentem atraídos
unicamente por crianças e a do tipo não exclusivo, se refere aos sujeitos que se sentem
atraídos por crianças e por adultos (APA, 2013).
Por outro lado, agressores sexuais infantis do tipo comum cometem o ato de
violência sexual, independentemente de qualquer transtorno sexual. Na maioria das
vezes o abusador se aproveita da relação com a família da vítima além de apresentar
motivações variadas para os seus crimes (Lanning KV, 2001 como citado em Serafim,
Saffi, Rigonatti, Casoy & de Barro, 2009).
37
3 - Embora o desenho de uma figura humana seja determinado por uma
combinação de fatores culturais, de treino pessoal, biomecânicos, transitórios e
caracterológicos, estes últimos podem ser isolados, identificados e quantificados. O
treinamento artístico não disfarça os aspectos caracterológicos, mas se combina com
eles.
4 - Existem operações intermediárias entre os detalhes de um desenho e as forças
que o determinaram; essas operações possuem uma gramática e uma sintaxe similares
às que governam os símbolos oníricos, as formações na fantasia e os deslocamentos
somáticos. O desenho da pessoa também possibilita o conhecimento de habilidades
sociais gerais e específicas do indivíduo, ou seja, as tendências e características
predominantes em sua personalidade que podem facilitar ou dificultar a interação social
e o estabelecimento de relacionamento com o outro.
O Desenho da Figura Humana (DFH) é uma técnica antiga e que vem sendo
utilizada na avaliação do desenvolvimento cognitivo, das características emocionais e
dos aspectos da personalidade dos indivíduos (Segabinazi & Bandeira, 2012 e Borsa &
Bauermann, 2013). Além disso, é uma técnica econômica, de fácil e rápida aplicação, o
DFH tem sido um dos instrumentos mais utilizados pelos psicólogos brasileiros sendo
empregado com sucesso na exploração de diversas características psicológicas 3
(Bandeira & Arteche, 2008 como citado em Borsa & Bauermann, 2013).
3
Atualmente o DFH isoladamente para avaliação da personalidade não é aprovado para uso
profissional do psicólogo pelo SATEPSI (www.cfp.org.br) . O emprego em pesquisa é estimulado,.e
dentro da bateria do HTP se encontra favorável.
38
No contexto da avaliação psicológica clínica, o DFH vem se mostrando um
instrumento sensível para avaliar problemas emocionais (Arteche, 2006 como citado em
Borsa & Bauermann, 2013) e, neste sentido, seu uso parece adequado em processos de
triagem ou de avaliação inicial (Bandeira & Arteche, 2008 como citado em Borsa &
Bauermann, 2013).
A avaliação das técnicas gráficas, e entre essas o Desenho da Figura Humana podem
ser avaliados ainda considerando a forma com que o indivíduo responde à tarefa de
desenhar. Nesse sentido, tem-se os chamados aspectos adaptativos que se referem à
adequação do examinando à tarefa, considerando a qualidade da produção tanto em termos
formais de correspondência ao grupo etário e sociocultural ao qual o indivíduo pertence,
quanto à compatibilidade entre o que foi solicitado e o que foi produzido (Van Kolck, 1984).
Como aspectos formais se interpretam os aspectos os quais traduzem as atitudes básicas
do indivíduo em relação a si mesmo e ao ambiente, assim como a forma como ele lida com
seus impulsos (Hammer, 1991). O conteúdo do desenho, contemplado pelo estudo dos
aspectos projetivos os quais se concentram no modo como o tema é tratado e avalia a
atribuição de qualidades às situações e objetos representados, o que permite identificar
áreas de conflito mais significativas (Van Kolck, 1984).
39
Objetivos e justificativa
Método
1 Procedimentos
2 Participantes
40
sexualmente a sua filha de 11 anos de idade e P2 foi pego em flagrante agredindo
sexualmente sua vizinha, uma criança de 5 anos de idade.
3 Instrumentos
41
Participante 1
ANEXO 1- Desenho da primeira pessoa do interno ANEXO 2- Desenho da segunda pessoa do interno
intitulado P1 intitulado P1
42
Participante 2
ANEXO 3- Desenho da primeira pessoa do interno intitulado P2 ANEXO 4- Desenho da segunda pessoa do interno intitulado P2
Resultados e discussão
43
O traçado predominante é trêmulo em ambos e interrompido traçados trêmulo
e interrompido se refere à forte identificação com o desenho da Pessoa, o que gera
maior ansiedade. Há evidências de falta de autonomia, falta de base e de segurança
pela ausência de linha de solo (Xandró, 2005).
Há fortes evidências de desorganização da personalidade de ambos: pois a
produção de ambos tem sinais de desorganização e muitos detalhes bizarros – mais
no P1, mas também no P2. Há indícios de transparência no P2, especialmente.
No P1 – os desenhos são incompletos e caindo – todos sinais de intensas
dificuldades e ausência de linha de solo em ambos.
Nos desenhos com relação aos aspectos projetivos predominam sentimentos
de inferioridade e inadequação, representação em palito no P1 indica evasão e com
detalhes bizarros.
Pode haver dissociação entre intenção e ação (Braços com falhas de
integração com o tronco) e desenvolvimento (no caso das pernas com falhas de
integração com o tronco) (Hammer, 1991). Há indícios de preocupação impulsos
sexuais: falta de corpo no P1 e transparência de seios no P2.
Chama atenção os indicativos de baixa capacidade de comunicação visual e
de pouca abertura para o contato com o mundo externo pelos olhos vazados (Van
Kolck, 1984).
Há indícios de dificuldades na área da sexualidade (frequência mais alta de
omissão e de representação infantil do nariz, e de revolta em relação à sociedade
(evidências da área sexual em P2). Há indícios de forte agressividade pelos dedos
como palitos, ausência de calçado em corpo nu (Van Kolck, 1984).
Há indícios de presença de necessidades orais e dependência ou
impossibilidade de comunicação ou ainda de gratificação oral (pela omissão da boca
ou aberta (Xandró, 2005).
Conclusão
44
desenhos bizarros. Há indícios de rejeição aos valores sociais convencionais e
expressão direta da agressividade.
A partir deste estudo, é importante destacar a relevância da aplicação do Desenho da
Figura Humana, tendo em vista sua praticidade e estudos que comprovam sua
capacidade em avaliar aspectos da da personalidade desses sujeitos. Tanto P1
quanto P2 apresentam aspectos de personalidade bastante regredidos, imaturos e
fixados em seus passados existenciais.
Referências
Aded, N. L., Dalcin, B. G., de Moraes, T. M., & Calvalcante, M. T. (2006). Abuso sexual
em crianças e adolescentes: revisão de 100 anos de literatura. Revista de
Psiquiatria Clínica, 33.
Ambiel, R. A. M. (2006). Diagnóstico de psicopatia: a avaliação psicológica no âmbito
judicial.
American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical Manual of Mental
Disorders (DSM-V) (5ª ed). Washington DC: APA.
Balloni, A., & Bisi, R. (2008). Processi di vittimizzazione e reti di sostegno alle
vittime. Rivista Salute e Società, 7.
Borsa, J. C. (2010). Considerações sobre o uso do teste da Casa-Árvore-Pessoa-
HTP. Avaliação Psicológica, 9(1), 151-154.
Borsa, Juliane Callegaro, & Bauermann, Mariana. (2013). O Desenho da Figura
Humana na avaliação da agressividade infantil. Avaliação Psicológica, 12(2), 273-
274.
Buck, J. N. (2003). Manual e Guia de Interpretação da técnica projetiva de desenho
da casa-árvore-pessoa (HTP) (1° ed.). (R. C. Tardivo, Trad.) São Paulo: Vetor.
Casarin, J. M., Botelho, E. H. L., & Ribeiro, R. K. S. M. (2016). Ofensores sexuais
avaliados pelo Desenho da Figura Humana. Avaliação Psicológica, 15(1), 61-
72.Carlstedt, A. (2012). Child sexual abuse: Crimes, victims, offender
characteristics, and recidivism.
Florentino, B. R. B. (2015). As possíveis consequências do abuso sexual praticado
contra crianças e adolescentes. Fractal: Revista de Psicologia, 27(2), 139-144.
45
Krugman, R. D., & Leventhal, J. M. (2005). Confronting child abuse and neglect and
overcoming gaze aversion: the unmet challenge of centuries of medical
practice. Child abuse & neglect, 29(4), 307.
Oliveira, S. M. M. (2016). O modus operandi de agressores sexuais adultos:
diferenças entre agressores sexuais de crianças, violadores e pedófilos
Alba Scortegagna, S., & do Amparo, D. M. (2013). Avaliação psicológica de ofensores
sexuais com o método de Rorschach. Avaliçãao Psicológica, 12(3).
Pádua Serafim, A., Saffi, F., Rigonatti, S. P., Casoy, I., & de Barros, D. M. (2009).
Perfil psicológico e comportamental de agressores sexuais de crianças. Archives
of Clinical Psychiatry, 36(3), 101-111.
Silva, C. C. P., Pinto, D. D. M., & Milani, R. G. (2013). Pedofilia, quem a comete?
Um estudo bibliográfico do perfil do agressor. Paraná, Brasil: CESUMAR.
Tardivo & Pinto Junior (2015). Estudo do Funcionamento Psicodinâmico de
agressores sexuais pedófilos por meio do questionário desiderativo. Subjetividade
e processos cognitivos
Tardivo, L. S. (2016). Atualização do teste do desenho casa-árvore pessoa (HTP) no
contexto brasileiro: Estudos de fidedignidade e validação. Instituto de Psicologia
Universidade de São Paulo. São Paulo: Vetor.
Viana, I. (2012). Como são tratados os doentes mentais infratores? Periculosidade,
medida de segurança. Scielo, p. 16.
46
3- A UTILIZAÇÃO DO QUESTIONÁRIO DESIDERATIVO EM PACIENTES
ESQUIZOFRÊNICOS NUMA UNIDADE DE INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA NO
ESTADO DA BAHIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Introdução
O movimento da reforma psiquiátrica brasileira é entendido como um amplo
processo político-social de transformação e traz como uma de suas lutas, a superação
47
do modelo hospitalocêntrico, da dicotomia sujeito/doença e de exclusão social,
propondo um novo olhar para as pessoas com transtornos mentais (Amarante, 2003
como citado em Castan & Brentano, 2017).
Fazendo o levantamento histórico dos transtornos mentais compreendidos
ao longo de toda narrativa, depara-se com a menção de alguns sintomas, hoje
associados aos sintomas da esquizofrenia, em textos hindus e gregos, no período
antes de Cristo. Porém, foi a partir do século XIX que surgiram descrições mais
precisas que delinearam a esquizofrenia tal como é conhecida hoje (Louzã & Helio,
2007 como citado em Moll & Saeki, 2009).
A esquizofrenia por sua vez, é uma patologia séria e persistente que
ocasiona comportamentos psicóticos e diversas dificuldades ligadas aos
relacionamentos interpessoais, ao processamento de informações, à solução de
problemas, entre outras. De acordo com essa afirmativa, a esquizofrenia é um
transtorno psicótico, uma vez que a psicose é definida segundo a percepção da
realidade de um paciente e do comportamento advindo dessa percepção (GW & MT,
2001 como citado em Moll & Saeki, 2009).
Em função disso, é interessante abordar um dos aspectos mais importantes
dessa nova configuração do campo da saúde mental na contemporaneidade: os
modos de trabalho com a loucura e diferentes transtornos psiquiátricos. Os psicólogos
compõem uma categoria profissional historicamente vinculada ao campo da reforma
psiquiátrica. Eles têm sido convocados a atuar nesse processo de luta antimanicomial
como atores sociais com uma grande importância. Uma das áreas possíveis de
atuação é a Psicologia da saúde (Sales & Dimenstein, 2009).
A psicologia da saúde pode ser compreendida como um domínio da psicologia
que utiliza vários conhecimentos resultantes de estudos e de pesquisas psicológicas,
com o intuito de promover e proteger a saúde. Ela se constitui como uma das formas
de se compreender o adoecimento e as maneiras pelas quais o homem pode manter-
se saudável. Em um campo não uniforme de teorias e técnicas, cujas contribuições
são oriundas de diferentes áreas ou especialidades, a psicologia da saúde vem
ganhando espaço e importância em âmbitos multi e interdisciplinares para a
compreensão dos vários fenômenos relacionados à saúde e ao adoecimento, bem
como vem propondo intervenções para a melhoria e manutenção do bem-estar
humano (Matarazzo, 1982 como citado em Capitão, Scortegagna & Baptista, 2005).
48
Neste contexto, a importância da Avaliação Psicológica do paciente, em
contextos de saúde humana, torna-se fundamental. O processo de avaliação, além de
voltar-se para a natureza da solicitação e das condições do paciente deve adequar-se
às características do ambiente (ambulatórios, enfermarias) que nem sempre são muito
adequadas. A escolha de instrumentos, como, por exemplo, entrevistas, protocolos,
questionários, testes psicológicos psicométricos, projetivos e técnicas de observação,
deve ser adequada e bem planejada, sob o risco de prejudicar a avaliação. (Capitão,
Scortegagna & Baptista, 2005). Esta, é uma ferramenta exclusiva do psicólogo, na
qual pode-se utilizar instrumentos para auxiliar na formulação de hipóteses e
inferências confiáveis para o diagnóstico (Lopes & Amorim, 2004 como citado em
Castan & Bretano, 2017).
As condições ideais para o trabalho avaliativo estão na possibilidade de
sobrepor diversificadas informações oriundas de observação, análise das funções
mentais, entrevistas e dados da história do sujeito. Estas devem ser cruzadas com os
resultados dos testes, que, ao longo do processo, geram hipóteses que vão sendo
validadas ou refutadas, dando origem à novas configurações de hipóteses (Anastasi
& Urbina, 2000 como citado em Castan & Brentano, 2017).
A literatura aponta que os testes projetivos, por serem constituídos de
materiais ambíguos e pouco estruturados, em que o indivíduo está livre para
responder, facilitam a projeção de aspectos mais profundos da personalidade
(inconscientes). Assim, as instruções ou os estímulos destes instrumentos atuam
como mediadores das relações vinculares que mobilizam variados aspectos na vida
emocional. Desta forma, através da Avaliação Psicológica com uso de testes
projetivos é possível a compreensão do funcionamento psíquico do ser humano
(Augras, 1980; Grassano, 1996; Bunchaft & Vasconcellos, 2001 como citado em
Medeiros & Pinto Junior, 2006).
Dentro da diversidade de instrumentos projetivos na área de avaliação
psicológica, o Questionário Desiderativo tem se destacado, na prática clínica, como
importante técnica projetiva, favorecedora de relevantes informações sobre os
dinamismos da personalidade dos indivíduos (Brêga, Frazatto & Loureiro, 2001;
Ocampo, Arzeno & Piccolo, 1979/1985; Paulo, 2005 como citado em Guimarães &
Pasian, 2009). Este por sua vez é um instrumento de Avaliação Psicológica que estuda
o grau de estruturação do Ego por meio de expressão verbal, mobilizando ansiedades
e defesas. Informando sobre características de personalidade, como defesas, conflitos
49
básicos, força do ego, qualidade dos afetos, tipo de relações objetais, entre
outras. Esse questionário consiste basicamente na questão: "O que você gostaria de
ser se não fosse uma pessoa? Por quê?", solicitando três escolhas e três rejeições
com as respectivas explicações. A resposta escolhida corresponde ao símbolo
desiderativo e o porquê da resposta representa a expressão desiderativa (Medeiros &
Pinto Junior, 2006).
O Desiderativo fornece informações acerca do funcionamento
psicodinâmico, como características de personalidade, defesas, conflitos básicos,
força do ego, qualidade dos afetos, tipo de relações objetais, recursos defensivos,
força do ego, aspectos afetivos, entre outras informações importantes em avaliação
psicodiagnóstica de abordagem psicodinâmica (Nijamkin & Braude, 1996/2000 como
citado em Guimarães & Pasian, 2009). É um instrumento aplicável a uma grande
parcela da população, além de ter seu uso favorecido por economia de tempo e por
não exigir habilidades específicas para respondê-lo. Essas características destacam
a técnica projetiva como um instrumento bastante promissor para o campo da
avaliação psicológica (Guimarães & Pasian, 2009).
Tanto as escolhas, como as rejeições são enquadradas em três categorias:
animal, vegetal e reino inanimado (Bunchaft & Vasconcelos, 2001; Nijamkin & Braude,
2000). Desta forma, este teste proporciona ao sujeito que o experencie uma vivência
de aniquilação enquanto ser humano, pois precisa imaginar-se como figura não-
humana, portanto e implicitamente: morta (Medeiros & Pinto Junior, 2006).
A riqueza das informações fornecidas, aliada a fatores como economia de
tempo, possibilidade de aplicação a um amplo espectro da população e a não
requisição de habilidades específicas (motoras, sensoriais) para respondê-lo, tornam-
no um instrumento bastante valioso e promissor para o campo da avaliação
psicológica (Guimarães, Pasian & Barbieri, 2006).
Assim, a cada nova consigna o sujeito submete-se a novas perdas, ou seja,
mortes imaginárias. O Questionário Desiderativo coloca o sujeito frente à pulsão da
morte e a impossibilidade de ser, podendo ser observado por meio das respostas o
esforço defensivo do Ego para se recuperar e absorver o impacto sofrido, assim como
sua modalidade defensiva predominante (Nijamkin & Braude, 2000 como citado em
Medeiros & Pinto Junior, 2006). Trata-se de um instrumento indicado para explorar a
angústia, fantasias e defesas em torno da morte (Ocampo, 1981 como citado em
Medeiros e Pinto Junior, 2006).
50
Embora o Questionário Desiderativo ainda não tenha sido validado pelo
Conselho Federal de Psicologia no Brasil, encontra-se, na revisão bibliográfica,
inúmeras pesquisas relacionadas a esta técnica projetiva.
(Sneiderman, 2012 como citado em Pinto Junior & Tardivo, 2016) considera o
Questionário Desiderativo uma técnica simples em termos de administração, rápida,
econômica e, sobretudo, rica em seus alcances exploratórios, propiciando a
investigação e interpretação de certas características e traços de personalidade e de
caráter do sujeito.
Desta forma, esse instrumento pode ser considerado uma técnica bastante
eficaz para o estudo do funcionamento psicológico e estrutura do Ego destes
pacientes psiquiátricos, por meio da análise de seus mecanismos de defesa, fantasias
e angústias primárias.
2 Objetivo
Descrever as impressões relatadas por pacientes esquizofrênicos durante
a aplicação do Questionário Desiderativo no hospital psiquiátrico Juliano Moreira
Espera-se que a realização desse estudo possa trazer efetivas contribuições
na compreensão de aspectos relativos a este espaço e à saúde mental destes
pacientes. Além disso, espera-se ampliar a percepção e reconhecimento da utilização
do questionário desiderativo neste contexto.
3 Relato de Experiência
O período referente às vivências relatadas neste trabalho foi de março a julho
de 2017. O primeiro momento da vivência no hospital psiquiátrico compreendeu em
captação da realidade, estratégia metodológica de aproximação com a instituição e
seus funcionários, que possibilitou a examinadora o reconhecimento do cotidiano no
serviço, as dificuldades e desafios enfrentados, o perfil sociodemográfico dos usuários
e as necessidades prementes a serem trabalhadas na instituição, estas adaptadas e
revistas a cada visita.
Uma das atividades desenvolvidas pela discente nesta unidade de Internação
Psiquiátrica foi a aplicação do questionário desiderativo junto a uma entrevista
semiestruturada. Os pacientes também assinaram o TCLE (termo de consentimento
livre e esclarecido).
51
A escolha dos usuários se dava pelo meio do diagnóstico psiquiátrico e
disponibilidade de cada um. A coordenadoria do hospital emitia diariamente uma lista
com os pacientes marcados para o turno e seus respectivos diagnósticos médicos.
Foram escolhidos então, apenas os usuários que possuíam o F20 - Transtorno
esquizofrênico, segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde - CID 10.
O primeiro contato com os usuários se deu através de uma abordagem
verbal da examinadora, onde o convite para a participação ao usuário era feito, logo
após, o TCLE era apresentado juntamente com a entrevista semiestruturada e
consequentemente, o objetivo e a estruturação do processo avaliativo também eram
abordados durante a apresentação. Além do termo de consentimento e rapport,
iniciava-se a obtenção de dados específicos e subjetivos de sua história passada e
atual, estabelecendo assim, uma relação terapêutica entre os envolvidos.
Após assinarem o TCLE e responderem a entrevista semiestruturada, a
acadêmica iniciava a aplicação do questionário. A maioria dos pacientes submetidos
a esta avaliação, relatavam que se sentiam angustiados diante das perguntas do
questionário. Ao serem questionados sobre essas indagações, foi percebido uma
resistência diante das respostas, eles diziam que não queriam pensar sobre o assunto
mencionando na pergunta pois isso os incomodava e os deixavam ansiosos e
impacientes. Muitos dos avaliados, deixaram as demais perguntas sem resposta e
diziam que não conseguiriam pensar sobre a questão enunciada pois “não existe isso
de ser outra coisa além de ser humano.” Sic.
A acadêmica também se mantinha atenta às suas impressões, relação com
o público, profissionais da área e reações com relação aos pacientes, sendo esta
também, uma fonte de informações e conhecimento dos casos. A própria história do
hospital, por si, já ofertava um misto de sensações e percepções acera do processo
de saúde mental. Foram realizadas 9 visitas à unidade hospitalar, onde 20 pacientes
participaram das avaliações, estas por sua vez, foram realizadas numa sala que ficara
disponível para a coleta de dados.
Em cada dia de aplicação do questionário desiderativo, foram comentados
o seu significado e sua representação. A singularidade expressa nas respostas e na
fala dos usuários, configurou-se em um momento de compartilhamento de diferentes
e semelhantes experiências de vida marcados por algum tipo de violência social, que
através da socialização verbal, permitiu uma troca de saberes e práticas cotidianas de
52
sofrimento e superação, apontando uma admirável capacidade de mudança do
homem.
Nesse sentido, todo processo foi valorizado, desde o primeiro contato com
os pacientes na sala de espera e corredores do hospital, até as atividades
desenvolvidas durante a dinâmica de coleta de dados, que abordaram conteúdos
psíquicos e simbólicos.
A experiência obtida foi de grande valia durante o processo de atividades no
hospital psiquiátrico. Todas as histórias carregavam em si uma grande representação
de lutas individuais e sociais, regados por meios de expressão individual e coletiva
contendo um essencial valor social e material para nossa sociedade.
O ser humano que vive a doença mental revela suas percepções em
perspectivas diante do mundo vida. Esse é o vivido, enraizado pela experiência
humana num leque de significados singulares em que cada um percebe, em dado
momento circunstancial. A essência do sujeito permanece como figura de fundo nas
suas significações como vida, mas elas não são estáticas. Há o movimento da
consciência diante de si, do tempo de novas experiências e significações do vivido.
Quando o ser humano necessita iniciar o seu pensamento, precisa se movimentar
diante de si, mergulhar em seu corpo, que constitui o seu mundo, sem negá-lo diante
das incertezas do mundo sensível (Freitas, et al., 2013 como citado em Ely et al.,
2017).
4 Discussão
A partir deste breve percurso, foi possível tecer considerações relevantes para
a compreensão de alguns fenômenos surgidos em processos de avaliação psicológica
desses pacientes. A partir do exposto, pode-se pensar que a dificuldade e resistência
dos pacientes em responder as questões abordadas no questionário seja derivado do
seu quadro clínico uma vez que indivíduos esquizofrênicos possuem algumas
limitações, de modo geral, decorrem da deterioração de vários processos mentais,
fazendo com que o indivíduo apresente alguns sintomas característicos da
esquizofrenia (OMS, 2000 como citado em Oliveira, Facina e Júnior, 2012).
Os sintomas negativos da esquizofrenia são aqueles em que ocorre perda
da função, caracterizando-se por diminuição da atividade motora e psíquica, bem
como das manifestações emocionais, exemplificados como afeto plano e anedonia.
53
Esses sintomas podem ocorrer também devido a causas secundárias da
doença como privação ambiental, quadros depressivos, ansiedade, além dos efeitos
colaterais das drogas antipsicóticas (OMS, 2000 como citado em Oliveira, Facina e
Júnior, 2012).
No Questionário Desiderativo, a racionalização se evidencia quando o sujeito
justifica a razão de sua escolha e pode fazê-lo dentro da lógica formal. Desta forma,
uma grande parcela dos participantes desta pesquisa apresentou dificuldade para
referir os motivos de sua escolha, tal falha, para (Nijamkin & Braude, 2000 como citado
em Medeiros & Pinto Junior, 2016), pode representar uma dificuldade para distinguir
fantasia e realidade e a sensação que as perguntas são um ataque à sua integridade;
ou ego não diferenciado, não reconhecendo situações geradoras de ansiedade e não
sabendo que recursos utilizar em sua defesa. Durante a aplicação do questionário no
hospital psiquiátrico, a impressão obtida perpassou a possibilidade de existir uma
dificuldade por partes dos pacientes em nomear e entender este fenômeno
caracteristicamente humano, ou seja, a morte, que ameaça à integridade e o
sentimento de onipotência do sujeito.
(Kusnetzoff, 1982 como citado em Medeiros & Pinto Junior, 2016) afirma que
diante de estímulos que possam resultar num perigo ameaçador do equilíbrio do
aparelho psíquico, entram em funcionamento as diversas operações defensivas,
tendentes a reduzir a tensão. Ainda segundo o autor, a palavra defesa, exprime o
conjunto de operações efetuadas pelo ego perante os perigos que procedem do id, do
superego e do mundo exterior.
Neste sentido, os mecanismos de defesa podem ser considerados estratégias
utilizadas pelo Ego para lidar com os diferentes eventos ou perigos que podem gerar
angústia ou sofrimento.
No que se refere especificamente aos mecanismos de defesa utilizados pelo
profissional de saúde frente à vivência de dor e morte, (Pitta, 1999 como citado em
Medeiros & Pinto Junior, 2016) aponta alguns: sublimação, fragmentação da relação
técnico-paciente, despersonalização e negação da importância do indivíduo,
distanciamento e negação de sentimentos, tentativa de eliminar decisões pelo ritual
de desempenho das tarefas e redução do peso das responsabilidades.
54
5 Referências
Capitão, Cláudio Garcia, Scortegagna, Silvana Alba, & Baptista, Makilim Nunes.
(2005). A importância da avaliação psicológica na saúde. Avaliação Psicológica, 4(1),
75-82. Recuperado em 07 de outubro de 2019.
Ely, Gabriela Zenatti, Terra, Marlene Gomes, Silva, Adão Ademir da, Freitas, Fernanda
Franceschi de, Leite, Marinês Tambara, & Brum, Bruna de Nicol. (2017). Percepções
do ser humano internado em unidade psiquiátrica sobre o viver com doença
mental. Texto & Contexto - Enfermagem, 26(3), e0280016. Epub August 17, 2017
Guimarães, Nicole Medeiros, & Pasian, Sonia Regina. (2009). Adequação ao Real de
adolescentes: possibilidades informativas do Questionário Desiderativo. Psicologia:
Teoria e Pesquisa, 25(3), 347-355.
Guimarães, Nicole Medeiros, Pasian, Sonia Regina, & Barbieri, Valéria. (2006). A
equação simbólica como recurso terapêutico: contribuições para análise do
questionário desiderativo. Paidéia (Ribeirão Preto), 16(35), 365-376.
Medeiros, Danuta, & Pinto Junior, Antonio Augusto. (2006). Um estudo sobre a
estruturação egóica de profissionais hospitalares por meio do questionário
desiderativo. Revista da SBPH, 9(1), 91-99. Recuperado em 07 de outubro de 2019.
Moll, Marciana Fernandes, & Saeki, Toyoko. (2009). A vida social de pessoas com
diagnóstico de esquizofrenia, usuárias de um centro de atenção psicossocial. Revista
Latino-Americana de Enfermagem, 17(6), 995-1000.
55
Oliveira, Renata Marques, Facina, Priscila Cristina Bim Rodrigues, & Siqueira Júnior,
Antônio Carlos. (2012). A realidade do viver com esquizofrenia. Revista Brasileira de
Enfermagem, 65(2), 309-316.
Sales, André Luis Leite de Figueiredo, & Dimenstein, Magda. (2009). Psicologia e
modos de trabalho no contexto da reforma psiquiátrica. Psicologia: Ciência e
Profissão, 29(4), 812.
56
4- OS MEDOS DAS CRIANÇAS HOJE: IDENTIFICAÇÃO E COMPREENSÃO POR
MEIO DO PROCEDIMENTO DE DESENHO-ESTÓRIA COM TEMA
(DE-T)
Gislaine Chaves
Geovana Figueira Gomes
Edna Pereira Torrecilha
Helena Rinaldi Rosa
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Valeria Barbieri
INTRODUÇÃO
O medo é uma emoção natural, e saudável, própria da condição humana
(Lemos & Mussoi, 2010). Constitui-se como importante sinal de alerta ante ao perigo,
ativando e potencializando o senso de sobrevivência humana, protegendo-nos do
caos.
57
O medo relaciona-se aos aspectos da realidade e do mundo imaginativo. As
pessoas, frequentemente, evitam situações que causam medo na vida real,
entretanto, o buscam na medida que acessam parques radicais, literatura, filmes e
programas de terror, entre outras situações da vida subjetiva, que possuem esse
objetivo (Lemos & Mussoi, 2010).
Santos (2003) afirma a importância da consideração do contexto histórico e
cultural na construção do medo. Assim, apesar de haver uma base fisiológica comum
imprescindível, o medo não é imutável e pode ser transformado de acordo com as
crenças pessoais que se formam no contexto do indivíduo e a sociedade
contemporânea, com suas particularidades, tem papel primordial para fundamentar
como serão experienciadas as emoções.
O estudo das etapas da infância aponta para medos comuns em diferentes
momentos do crescimento (Dumas, 2011), mas há também observações que
informam que a sua natureza se transforma conforme os avanços e as demandas da
sociedade (Bauman, 2008).
Freud (1909/2015) é um dos pioneiros no estudo do medo na abordagem
psicanalítica e analisou a fobia do pequeno Hans, de 5 anos, por meio dos relatos do
pai do menino, que também auxiliava no caso. Hans começou a apresentar um medo
intenso relacionado a cavalos, o que limitava a saída do menino de casa. Os conflitos
inconscientes que perturbavam o menino foram associados à ambivalência em
relação ao pai, que era uma pessoa admirada e amada, mas ao mesmo tempo gerava
ódio por ser uma figura de competição pelo amor da mãe. A criança, então, temia a
punição que poderia receber do pai caso realizasse suas fantasias amorosas. Assim,
a fobia apareceu como forma de proteção contra a angústia despertada por esses
conteúdos e desejos que não podiam ser realizados. Houve um deslocamento do
temor relacionado ao pai para a figura do cavalo, que nas fantasias do menino poderia
mordê-lo (castigá-lo). A escolha pelo cavalo como objeto de temor teve um significado
na vida de Hans, como a experiência anterior de uma ameaça em que o cavalo
morderia um amigo, junto com a admiração que a criança nutria por animais de grande
porte.
Winnicott (1994) também apresenta contribuições quanto à natureza das
angústias e dos medos para a abordagem psicanalítica. Com relação às angústias
vividas pelo bebê desde o início da vida, Winnicott (1963/1994) descreve, no estágio
de dependência absoluta, a presença das angústias impensáveis e o medo do
58
colapso. O colapso está relacionado com o fracasso na organização das defesas
contra as angústias impensáveis. Como ser dependente, o bebê não consegue se
defender das falhas que podem existir no ambiente, o que compromete o
desenvolvimento do seu sentido de ser; desse modo, ele apenas pode reagir e
desenvolver a ansiedade de aniquilamento. O ambiente, assim, precisa reduzir as
irritações ao redor do bebê, pois dessa forma, elas poderão ser absorvidas pela área
de onipotência dele.
Ao longo do desenvolvimento infantil, a criança pode apresentar alguns medos
que, a depender da circunstância, podem se tornar fobias, sendo que essa emoção
diz respeito ao desvelamento do desconhecido, do reconhecimento da realidade
interna e externa e de tomada de consciência sobre o mundo. Dessa forma, pode-se
dizer que o medo evolui conforme a idade. O recém-nascido vivencia a angústia de
separação da díade mãe/bebê, sendo esta considerada a angústia primeira, já que o
bebê é completamente dependente, no princípio da vida, de um outro que possa lhe
cuidar. Em torno dos seis e sete meses, o bebê se angustia diante daquilo que não
faz parte das referências que já possui, ficando incomodado com pessoas que não
reconhece. Por volta dos dois e três anos, a criança sofre com a ideia de que a figura
de referência, mãe ou outro significativo, pode sumir/desaparecer, pois ainda não
desenvolveu a noção de continuidade de objeto, ou dito de outra forma, de presença
e ausência (Anthony,2009).
O medo de ser abandonada ou ficar perdida ocorre por volta dos quatro e cinco
anos de idade, momento em que a criança alcança maior consciência de si e, por
conseguinte, do outro, fato que contribui para a presença de sentimento de culpa e
vergonha. Ainda de acordo Anthony (2009), a angústia de morte e de destruição, e a
compreensão do que isso significa, se fazem presentes por volta dos seis anos de
idade. O receio da morte da mãe, de se sentir dor e/ou se machucar, são exemplos
de tal angústia. Aos sente anos, a criança conquista a noção do Eu e, com isso, podem
surgir medos relacionados à rejeição alheia que farão, em maior ou menor
intensidade, parte da vida. Com a idade de oito anos, o medo da morte concreta, sua
e do outro, se efetiva. A criança reconhece, cognitivamente, o que representa a morte
e o ato de matar, compreensão que suscita a angústia de perda (Anthony, 2009),
De acordo com YI-FU (2005), ao longo do tempo, o medo tem sido tema de
muitos estudos. Entre estes, cabe citar o de Castilho (2000) que aponta que os medos
mais comuns na infância são de pequenos animais, aranhas, cobras, sapos, ratos,
59
injeções, escuridão, tempestade, bruxas, monstros, altura e ruídos intensos. Tais
achados são corroborados por Lemos e Mussoi (2010).
Muris, Merckelbach, Gadet e Moulaert (2000) descrevem, em pesquisa
realizada com crianças de idade de 4 a 12 anos, a presença comum de medos e
sonhos assustadores entre crianças de 4 a 6 anos, sendo estes ainda mais
proeminentes em crianças de 7 a 9 anos, havendo uma diminuição em frequência nas
crianças e pré-adolescentes com idade entre 10 e 12 anos. Os autores ainda
constataram que a prevalência de medos e sonhos assustadores relacionados à
criaturas imaginárias diminuiu com a idade, enquanto a preocupação com o
desempenho em provas e testes aumentou com o amadurecimento.
Adicionalmente, Vilhena, Bittencourt, Zamora, Novaes e Bonato (2011), em seu
estudo sobre o medo de crianças residentes no Rio de Janeiro, com idade de nove a
12 anos de idade, e as implicações da violência em suas produções, observaram que
tal variável oscilou de acordo com a classe social. Segundo as autoras, entre as
crianças de classe alta e média alta predominaram os medos de ladrão e sequestro,
sendo a favela um lugar de perigo. Já as crianças de classes populares, apontaram a
presença de medo de animais peçonhentos, de atropelamentos, do “caveirão” e de
balas perdidas, escancarando assim as representações sociais de cada população.
Ainda de acordo com os autores, como se trata de um afeto recriado ao longo
da vida do indivíduo, o papel do espaço físico ocupado por ele nessa construção é
fundamental. As diferenças encontradas entre as classes sociais reafirmam as
consequências da posição que o indivíduo ocupa no espaço, com os animais, sendo
motivo de perigo em comunidades mais carentes, com condições de moradias mais
precárias, enquanto as crianças de uma classe social mais alta entendem a favela
como objeto de temor. Os resultados encontrados refletem que medos reais estão
tomando o lugar de medos imaginários, dificultando que as crianças elaborem suas
ansiedades.
Numa visão mais recente, Nasi (2016), em sua dissertação de mestrado,
investigou o medo e sua evolução em crianças com idade entre seis e 11 anos por
meio do Desenho-Estória com Tema (DE-T) a partir dos aportes junguianos. Os
resultados encontrados apontaram para o desenvolvimento do medo de acordo com
o gênero, idade e ambiente social. Mais especificamente, a pesquisa observou a
preponderância de medos ligados à seres e situações concretas, seguido dos seres
fantásticos e sobrenaturais e, por último, ligado ao imaginário e projeções do futuro.
60
Assim, considerando a importância de se buscar entendimentos a respeito das
emoções das crianças, especialmente o medo, que é um sentimento que está
presente em todos os momentos da vida, mas que, a depender da intensidade, pode
comprometer o curso do desenvolvimento do indivíduo, entende-se a necessidade de
instrumentos que possam auxiliar no aprofundamento de tais concepções.
Nesse contexto, o DE-T (Aiello-Vaisberg, 1997) se apresenta como uma
alternativa para compreensão. O procedimento de Desenhos-Estórias com Tema foi
desenvolvido a partir da técnica de Desenhos-Estórias (D-E) de Walter Trinca (2013).
Trata-se de uma ampliação do Desenho-Estória proposto pelo mesmo autor, sendo
aplicado em diferentes estudos com temáticas previamente estabelecidas (Tardivo,
2013).
O procedimento pode ser aplicado de forma individual ou coletiva e consiste na
solicitação de um desenho a partir de determinado tema e, após a finalização deste,
pede-se também a elaboração de uma história sobre o mesmo. Dessa forma, a partir
de tal instrumento, objetivou-se compreender a experiência emocional de crianças do
terceiro ano de uma escola pública por meio do DE-T sobre “O medo de crianças em
São Paulo hoje".
MÉTODO
Esse estudo faz parte de um projeto maior, denominado “Os medos infantis na
contemporaneidade: relevância e repercussões interculturais: dados do Brasil,
França, Bélgica e Espanha”4 de autoria de Tardivo e Barbieri (2019) e teve como
intenção contribuir para o alcance de um de seus objetivos com vistas a identificar e
compreender os principais medos em crianças em idade escolar, a partir dos 8 anos
de idade, nos países já citados.
Para tanto, a fim de atingir os objetivos dessa pesquisa, foi adotada a proposta
de complementaridade referendada por Guimarães e Martins (2004). Tal
delineamento foi escolhido por abarcar o uso combinado de métodos qualitativos e
quantitativos, com vistas a obtenção de uma compreensão mais completa do
fenômeno em estudo.
Foram realizadas oficinas psicológicas em uma escola pública do estado de
São Paulo com alunos do terceiro até o nono ano do Ensino Fundamental entre os
USP sob a orientação da Profa. Dra. Valeria Barbieri e co-orientação de Leila SPC Tardivo.
61
meses de março e abril de 2019. No contexto do presente estudo foi abordado o
trabalho desenvolvido com os alunos do terceiro ano e, no primeiro encontro realizado
com eles, o qual contemplou a realização do DE-T. As crianças foram apresentadas à
atividade pelas pesquisadoras e convidadas a participar. Assim, duas salas do terceiro
ano fizeram parte da pesquisa, totalizando 55 participantes.
O DE-T foi aplicado coletivamente, de acordo com as orientações e instruções
oferecidas por Aiello-Vaisberg (1997) e Tardivo (2013). Foram distribuídas folhas de
sulfite A4 na posição vertical e foi solicitado aos alunos que cada um desenhasse o
que quisesse, a partir do seguinte tema: “O medo de crianças em São Paulo hoje” e
na sequência escrevesse uma história sobre o desenho, no verso da folha. Também
foi solicitado que incluíssem no verso da folha dados relativos ao sexo e idade para
fins de levantamento de dados.
Nessa etapa, foram oferecidos lápis preto número 2 e borracha. Ao final, os
desenhos dos participantes foram coletados pelas pesquisadoras e expostos em lugar
comum, com o cuidado de preservar o anonimato dos participantes. Foi solicitado para
que em pequenos grupos observassem a produção coletiva. Na sequência, os
participantes comentaram sobre os desenhos com vistas a elencar os temas
emergentes.
Os dados alcançados fornecem informações sobre a maneira como os alunos
participantes da pesquisa concebem e representam o medo. Desta forma, os
resultados foram analisados em termos quantitativos e qualitativos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Análise quantitativa
62
Cabe destacar que, embora fosse possível identificar mais de uma categoria nas
produções, deu-se preferência para a predominante no desenho (Tabela 1).
Tabela 1. Categorias temáticas, distribuídas por sexo, dos medos observados nos
desenhos.
Categorias N Meninas % N Meninos % N Total
Personagens fictícios (Boneca Momo/ Slender Man/ It: A coisa/ Anabelle/ Jason) 18 56,3 14 43,8 32
Monstros não específicos (Zumbis/ Fantasmas/ Monstros/ Caveira) 3 33,3 6 66,6 9
Situações de violência (Assalto/ Bandido/ Assassino) 2 25 6 75 8
Medos em geral (De crescer/ do escuro/ de tudo/ de se perder ou ser esquecida) 3 75 1 25 4
Outros (De animais / insetos/ do trânsito) 0 0 2 100 2
64
da web e exige que as crianças realizem atitudes auto e heteroagressivas, as quais
podem levar à morte. Além disso, dada a união de referências humanas e animais,
sua imagem causa bastante estranhamento e os elementos que compõe sua
apresentação, uma roda giratória que visa “hipnotizar” o interlocutor, são aspectos
que, somados, contribuem para que o sujeito, na tentativa de compreender tal
situação, possa levar mais tempo para se distanciar de suas recomendações e,
conseguintemente, apresentar dificuldades para dissociar fantasia e realidade. De
acordo com Steibel et al. (2011), é natural que as crianças na faixa etária estudada
apresentem dificuldade de distinção entre o real e o imaginário, já que se encontram
em processo de estruturação egóica.
Outros medos, em menor intensidade, se fizeram presentes, como os
relacionados à questões da vida cotidiana, por exemplo, da violência provocada por
assaltos e roubos, obtiveram uma frequência baixa de citação. Freitas-Magalhães
(2014) denomina tal medo como reativo, já que diz respeito ao medo da vivência de
uma situação real.
Tal achado chama atenção. As crianças desse estudo são residentes em São
Paulo e estudantes de uma escola pública, com predomínio de classe popular,
estando sujeitos à violência real e a exposição virtual, divulgada pela mídia, a todo o
momento. Sobre isso, Vilhena, Bittencourt, Zamora, Novaes e Bonatto (2011) ao
investigarem o medo de crianças da cidade do Rio de Janeiro, com idade entre nove
e doze anos, por meio de desenhos, apontam que, entre as classes mais baixas,
predominaram os desenhos relativos a animais peçonhentos, atropelamentos e de
balas perdidas e “caveirão”, dados dissonantes daqueles encontrados nesse estudo.
Dessa forma, infere-se que o aparecimento da Momo na época da referida pesquisa
pode ter contribuído para que a incidência da violência urbana tenha sido menos
frequênte nos desenhos. Além disso, considera-se que as questões geográficas e a
faixa etária dos participantes do estudo também pode ter favorecido a menor
prevalência desse tema, já que seus pensamentos, conforme citado por Steibel et al.
(2011) e Bulhões (2010), estão mais ligados a aspectos da fantasia.
Para Zimmerman (2001), os medos têm conexão com estados de ansiedade
que são desencadeados por fatores internos e externos. Isto significa dizer que o
medo deve ser interpretado como tendo conexão com aspectos conscientes e
inconscientes do sujeito, cabendo, portanto, uma análise mais aprofundada sobre a
criança para compreender os motivos que a levam a essa angústia.
65
Fenichel (1981) fundamenta tal compreensão, acrescentando que os sintomas
fóbicos fazem parte do desenvolvimento infantil normal e que os impulsos e fantasias
da criança podem ser projetadas e representadas sob a forma de medo. Assim,
compreende-se que uma leitura atenta das histórias elaboradas pelas crianças para
os desenhos, se mostra como uma maneira de melhor compreensão sobre o que elas
temem.
Análise qualitativa
A partir da leitura de todas as histórias, aquelas com conteúdo semelhante
foram agrupadas e analisadas. Dessa forma, dois eixos temáticos condizentes com
as histórias das crianças desse estudo foram criados: 1) Ameaça / Vulnerabilidade e
2) Morte. A título de ilustração, são apresentados alguns desenhos e suas respectivas
narrativas, sendo os dados discutidos.
1) Ameaça / Vulnerabilidade
Fazem parte desse eixo temático os desenhos cujas histórias revelaram a
presença de medo associado com a ideia de Ameaça/ Vulnerabilidade. Como
abordado, nesse estudo, os desenhos cuja angústia se relacionava àquela suscitada
por personagens fictícios prevaleceram, de modo que nas histórias não foi diferente.
O DE-T se referiu exclusivamente a apresentação do objeto causador do medo.
Título: A momo - “Era uma vez uma estátua do Japão chamada momo. Momo era uma
estátua normal, até um dia que ela criou um zap zap e começou a amaldiçoar e virar uma
lenda. Uns dias ela sumiu bastante, mas hoje ela voltou para uma vingança no Youtube. Eu
vi o vídeo da Momo aparecendo no Baby shark. Ela assusta crianças”.
66
Participante 2, 8 anos, masculino
Título: DHEIZON - “Eu tenho medo do Dheizon (Jason) porque ele usa uma serra elétrica”.
Título: MOMO - “A momo é conhecida como matadora de criança no Youbtube, ela fica
mandando mensagem no Whatsap que vai matar as pessoas”.
67
dizem respeito à sensação de vulnerabilidade, geralmente, provocada por situações
de instabilidade, como o susto relatado pela Participante 1 desse estudo.
Ainda nessa perspectiva, embora em menor quantidade, houve narrativas com
desfechos e possíveis soluções para lidar com o conflito suscitado.
Participante 4, 8 nos, feminino.
Título: Momo, a criatura da internet - “A momo é uma criatura que olha fixo, ela não pisca e
aterroriza pessoas na internet, forçando elas a se matarem. Se você encontrar ela na internet,
não responda ela”.
Sem título – Era uma vez três crianças numa pizzaria de Freddy. As crianças estavam no
palco e três animatronics assustadores, quando apareceu o purple guy um homem roxo e
assassino para mata-los, todas as crianças, os animatronics tentarão impedi-lo de fazer
aquilo”.
68
Participante 6, 8 anos, feminino.
Título: A menina que tinha medo de história de terror - “A criança com três anos tinha
medo de história de terror, a mãe disse para enfrentar o medo. Não teve mais medo de história
de terror”.
2) Morte
As histórias que compõem esse eixo temático referem-se às narrativas cujo
desfecho foi a morte. A seguir apresenta-se alguns dos DE-T produzidos pela amostra
analisada.
69
Participante 7, 8 anos, feminino.
Título: Momo e a morte -“Era uma vez, um dia chuvoso. E a Momo viu um vulto passando e
esse vulto era preto e a momo chegou perto (...) e viu uma faca na mão de uma pessoa
comum, com a roupa preta e (ela) matou a momo. Fim”
Título: O Assassinato - “Era uma noite escura, de tempestade e um menino estava dormindo
quando de repente um assassino apareceu e ele foi devagarinho para não acordar ele (o
menino) e matou-o”.
70
Participante 9, 8 anos, feminino.
Título: O domínio de Jeff The Killer – “Um dia sombrio e chuvoso um monstro chamado
Islander-Man matou a Momo e o Jeff The Killer ficou bravo e matou todo mundo da cidade e
o Islander-Man por último e o matou”.
71
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nos DE-T’s, observa-se que os medos das crianças desse estudo
estão atrelados com o seu processo de amadurecimento. As fantasias estão de acordo
com o processo evolutivo para a média da idade, de temor da perda e noção da morte,
evidenciando maior aproximação da realidade, dos contextos sociais a que estão
submetidos. De modo geral, os medos representados pelas crianças nesse estudo,
mostraram a presença de componentes universais e adequados à idade da amostra
investigada.
As produções, com suas imagens sombreadas e narrativas aterrorizantes,
atuaram como representantes do mundo interno das crianças investigadas, as quais
puderam reconhecer os medos internalizados por meio da projeção nas imagens
elaboradas, em sua grande maioria, nos personagens fictícios. Houve muitas
produções em que o medo foi unicamente exposto, dado que reflete a passividade
ante a situações aterrorizantes. No entanto, embora em menor quantidade, houver
produções em que o medo pôde ser confrontado e formas de enfrentamento foram
apresentadas.
A emoção do medo em forma de ameaça ou vulnerabilidade, e de morte,
demonstraram o quanto a instabilidade ambiental produz e provoca medo, sendo a
morte, simbolizada nos desenhos elaborados pela amostra investigada, uma saída
que minimiza a angústia, colocando fim ao caos, mas, consequentemente,
escancarando, a fragilidade da condição humana.
Assim, observa-se que o medo, no estudo realizado, pôde ser representado por
meio dos DE-T’s. Os principais temores e inseguranças puderam ser expressos,
permitindo o reconhecimento dos “monstros” a que as crianças do estudo participante
temem, oportunizando, assim, a continuidade do seu desenvolvimento, já que
puderam conversar sobre eles ao longo da oficina.
REFERÊNCIAS
72
em 07 de novembro de 2019, de
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
68672009000100009&lng=pt&tlng=pt.
Bauman, Z. (2008). Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar.
73
Trinca, W. (2013). O Procedimento de Desenhos-Estórias: formas derivadas,
desenvolvimento e expansões. São Paulo: Vetor.
Zimerman, D. E. Bion da Teoria à Prática: uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed,
2004.
74
5- PSICANÁLISE E ORGANIZAÇÃO: AS RELAÇÕES DE TRANSFERÊNCIA¹
Resumo: O objetivo desse artigo foi estudar as relações de transferência que ocorrem
na organização. Descreve o que é a relação de transferência, estudando as causas
das relações de transferência na organização e apontando os problemas que podem
interferir na relação homem-trabalho quando há relações transferenciais, de acordo
com o referencial psicanalítico foi verificado que existem três tipos de transferências:
persecutória, narcisista e idealizada. A partir do estudo teórico, se chega à conclusão
de que o líder e o liderado se aproveitam das relações na organização para
satisfazerem fracassos da infância, causando uma distorção dos papéis profissionais
exercidos por cada indivíduo envolvido, reforçando o aspecto emocional e dificultando
o sucesso dos processos organizacionais.
____________________________
1
Esse artigo é parte do Trabalho de Conclusão de Curso Pós-Graduação em Psicologia Organizacional orientado
pela Professora Mestre Marcia de Fátima Polini, a quem expresso minha gratidão .
75
INTRODUÇÃO
76
objetivos sem perder a sua identidade. Em suas relações com as outras pessoas
tendem a projetar um estado afetivo individual sobre o outro, principalmente nos
relacionamentos entre líderes e liderados, sendo que as raízes desses sentimentos,
denominado de transferência, compõem a história individual.
Para Freud (1913-1914/1976), o criador da psicanálise, esta ciência era
inicialmente um método de pesquisa e tratamento das neuroses e com o tempo se
estendeu para vários outros campos. A sexualidade infantil não se limita ao ato sexual,
mas é toda atividade pulsional buscando uma satisfação e tomando rumo na vida
adulta.
A Psicanálise, aplicada à dinâmica organizacional, enfatiza os processos
intrapsíquicos e inconscientes como fundamentais nesta dinâmica que envolve as
relações simbólicas entre o indivíduo e a organização. Dejours (1987) afirma que
organização de trabalho entra em conflito com o funcionamento psíquico dos homens,
quando estão bloqueadas todas as possibilidades de adaptação entre a organização
do trabalho e o desejo do sujeito, então emerge o sofrimento patogênico.
Chanlat (1994) afirma que quando o indivíduo não se adapta às funções que
exerce, sua energia psíquica se acumula transformando-se em fonte de tensão e de
desprazer. A carga psíquica cresce até que aparece a fadiga e depois a astenia, e, na
sequência, a psicopatologia.
No que se refere à organização, Bleger (1988) define instituição como uma
relação que se prolonga durante anos, com a manutenção de um conjunto de normas
ou atitudes. O enquadramento é uma instituição que define regras dentro de
parâmetros específicos, que controlam os fenômenos comportamentais. O autor
considera tais comportamentos difíceis de abordar nas organizações devido a
compulsão a repetição, que se baseia na repetição dos acontecimentos da infância, é
nítido a identificação com os pais. A cultura organizacional tenta enquadrar o indivíduo
da mesma forma como a simbiose com a mãe, que tenta enquadrar o comportamento
da criança em si com regras definidas. O enquadramento tem esta mesma função na
organização, de enquadrar o comportamento do indivíduo à organização.
A subjetividade, um dos focos do estudo da psicanálise, esteve por muito tempo
invisível nas organizações. O trabalho e os afetos com ele relacionados eram
considerados como não relevantes, pois o que mais se privilegiava estava ligado à
capacidade de trabalhar do indivíduo apenas. Esta preocupação com a capacidade
de trabalhar, é o que foi proporcionado aos estudiosos sobre o indivíduo no trabalho,
77
para refletir sobre o que seria esse ser humano que contribui para a produção dos
bens necessários a civilização. Ele é visto apenas como uma máquina de trabalho e
não como um indivíduo dotado de desejo e subjetividade. (Dejours, 1999)
78
e, estão sempre preparados para assumirem qualquer uma que seja
dessas posições, indiferentemente. O líder desse grupo é visto como
uma oportunidade para fuga ou para a luta. Se fracassar, ou tomar outro
rumo, ele será ignorado. A suposição básica de acasalamento baseia-
se na ideia do grupo de apoiar dois membros que produzirão uma nova
figura de líder, que assumirá plena responsabilidade pela segurança do
grupo. Um desejo inconsciente como se esses dois membros fossem
produzir um Messias, um Salvador, na forma de pessoa ou numa ideia
que possam aderir. Na realidade, nenhum Messias será produzido por
esses dois membros, pois esse desejo é simplesmente uma esperança
do grupo de que alguém vai conseguir ajudá-los. O comportamento
desta suposição básica se inicia com pares que conversam assuntos
diversos, à parte, sem que o grupo se incomode, desviando-se do foco
pelo qual o grupo se reuniu (p.134)
Pode-se ainda dizer que existe em todo mundo um desejo de mandar, de ter
poder, de não ser contestado (como um pai que manda no filho) e que provoca uma
identificação com aquele que exerce esse papel. Da mesma forma, existe também em
todo ser humano, em maior ou menor grau, tendências masoquistas, medo da
liberdade e vontade de obedecer (se pondo na posição do filho que obedece ao pai).
(Freitas, 1997)
Freud (1911-1913/1976), explicando sobre a transferência, afirma que quando
a necessidade do indivíduo de amar alguém não é completamente satisfeita na
realidade como a vida é no presente, então, o indivíduo se aproximará de quem ele
conhecer, seja quem for, com sentimentos relacionado à infância. Ele diz que a
transferência é um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do
passado esquecido e mais especificamente a infância. Por exemplo, a pessoa não se
recorda que costumava ser crítico e desafiador em relação a autoridade dos pais e
simplesmente repete esta atitude para com o médico, ou o líder, o professor, se
submetendo então à compulsão a repetição que substitui o impulso de recordar.
A transferência faz emergir um fantasma inconsciente que deforma os
sentimentos e as reações de um indivíduo em seu relacionamento com o outro.
Os indivíduos são propensos a reproduzir no presente, as atitudes adotadas no
início de sua vida em família. Porém, a transferência não tem origem em fatos isolados
ocorridos na infância ou juventude, pois são produzidas através de configurações que
foram duradouras nas relações com outras pessoas, reforçando em seguida em todas
as relações posteriores. (Chanlat, 1994)
Passando a discorrer sobre o tema da presente reflexão , a relação de
transferência na organização, temos o que segue:
79
Kohut (1971) afirma que a liderança pode ativar ou reativar diversos
sentimentos do passado nos indivíduos e, também, fazer com que o indivíduo tente
durante toda a sua vida, reencontrar parte da experiência de perfeição e de bem-estar
total, como se fosse uma segunda chance de remediar suas carências da infância.
Este sentimento tanto acontece com o líder quanto com o liderado.
Lacan também descreve a transferência, expressando que a:
80
Na transferência idealizada vivencia-se emoções de uma fase precoce do
desenvolvimento psíquico nutrindo um sentimento de união com uma pessoa
idealizada. Esta pessoa “perfeita” é uma fonte inesgotável de satisfação que longe
dela cai num sentimento de vazio. Admira-se sua beleza, sua inteligência ou seu rigor
moral. Ignora-se ou minimiza-se as características más desta pessoa idealizada e
reforça-se suas qualidades. (Chanlat, 1994)
Em geral, os indivíduos que idealizam o líder, têm fé e confiança neste líder e
procuram sempre agradá-lo da melhor forma possível. Melhoram sua conduta e
buscam sempre melhorar os seus resultados também. Podem sugerirem rivalidades
entre os grupos para atrair a atenção deste líder para si próprio e, se mais indivíduos
o idealizarem, pode causar uma coesão no grupo. Palavras de elogio os colocam em
estado de exaltação. Passam a ser extremamente dependentes deste líder mantendo-
se sempre na posição de liderado e este líder pode controlá-los e manipulá-los. Seu
senso de julgamento fica distorcido e, superestimam a capacidade deste líder que são
essas apreciações irrealistas e frágeis. Se este líder cometer uma falha grave com
este liderado, esta imagem reverenciada pode se quebrar causando em seu admirador
uma amarga decepção, podendo se formar uma revolta e uma hostilidade aberta.
Pode acontecer que essas falhas sejam “desculpadas”, racionalizando assim a
situação por tão elevado ser este investimento da preservação da imagem deste líder.
Em todo caso, essa idealização restringe o desempenho da atuação profissional.
(Chanlat, 1994)
Sabe-se que a fonte de toda transferência está localizada nos relacionamentos
na infância. Chanlat (1994) dá um exemplo de um liderado que vinha de uma família
desunida sendo o pai um oficial da marinha mercante e que permanecia raramente
em casa. Como agravante, quando os pais se separaram as reuniões familiares
reduziram-se mais ainda. A criança, então, começou a procurar substitutos do pai,
inicialmente na escola, depois na universidade. Na fase adulta continuou nesta
procura nas suas relações com o líder na organização.
81
além de não serem capazes de demonstrar simpatia pelos outros e não
tem nenhuma preocupação com seus direitos. São pessoas que
precisam desesperadamente de elogios. Na infância, seus pais os
relegaram por não estarem presentes em eventos festivos, nem se
preocuparam com o que sentiam. Então, essas pessoas, na fase adulta,
estão sempre em busca febril e incessante por pais substitutos capazes
de propiciar atenção e admiração. (Chanlat, 1994 p.115)
82
devido a sua desconfiança extrema. Sempre suspeitava das pessoas e nunca deixava
sua sala sem passar a chave em tudo. Seus colaboradores se sentiam muito
constrangidos com essa atitude. Ele agia sempre na defensiva quando tratava algum
assunto com o Presidente.
Em sua história, este dirigente era o caçula de uma família numerosa de irmãos.
Os pais trabalhavam fora dedicando pouco tempo para os filhos fazendo com que
houvesse sempre uma disputa entre eles para ter mais atenção dos pais nos
momentos livres. Mas os pais davam mais atenção ao caçula, o bebê é claro, fato que
causava extremo ciúme nos irmãos que, então, sempre atacavam ele com
brincadeiras aterrorizantes, quebravam seus brinquedos, tomavam suas economias e
sempre o culpavam por travessias. Quando ele se queixava com os pais, os irmãos o
chamavam de mentiroso e pressionavam a mãe para denunciar para o pai para que
fosse punido. Por isso este dirigente aprendeu sempre a ficar na defensiva,
transferindo esses comportamentos nos relacionamentos na organização. (Chanlat,
1994)
A relação com os indivíduos, na transferência persecutória, pode ser de
hostilidade, masoquismo moral e/ou de inveja, por este tipo de transferência tender
mais para o lado de consequências negativas. Como toda transferência resulta na
reconstituição ou reativação de antigas emoções do passado, no caso da hostilidade,
o indivíduo quer causar danos ao outro e atacá-lo, enquanto defesa contra seu
sentimento de perseguição. (Chanlat, 1994)
A transferência persecutória por inveja é o desejo de tomar do outro o que ele
possui. A inveja tem sua matriz na relação edipiana que é onde o indivíduo, em sua
infância, teve sentimentos hostis para um dos pais tendo o outro como objeto de amor.
No caso do liderado invejoso, o líder monopoliza e controla todo o poder, todos os
recursos, todos os elogios como se fossem feitos por falsidade, como se a injustiça
sempre reinasse na organização e que as pessoas são sempre maltratadas. Quando
o líder sente inveja dos seus liderados, ele julga que suporta toda responsabilidade da
equipe, que ele faz o trabalho sofrido enquanto os liderados não fazem nenhum
esforço. Sente-se mal recompensado por seus esforços, desencorajando sua equipe
e inibindo gravemente suas motivações, preparando o fracasso de seus liderados.
(Chanlat, 1994)
Sendo assim, pode-se identificar na organização a presença, mais ou menos
clara, das estruturas da transferência em vários indivíduos. Estilos de direção, de
83
comportamentos e decisão parecem estar frequentemente marcados e ligados por
decisões psicológicas próprias. (Chanlat, 1994)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Bleger, J. (1970). O grupo como instituição e o grupo nas instituições. São Paulo:
Martins Fontes.
Chanlat, J. F., Rondeau, A., Borzeix, A., Linhart, D., Kamdem, E., Gasparini, G., ... &
Vincent, S. (1996). O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. In O indivíduo
na organização: dimensões esquecidas.
Dor, J. (1991). O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
84
Duarte, D. A.; Castro, M. D.; Hashimoto, F. (2006). Psicologia do trabalho e
psicanálise: uma possibilidade de compreensão do sofrimento psíquico. In:
ENCONTRO DE PSICOLOGIA DE ASSIS, 19. 2006, Assis. Anais eletrônicos... Assis:
UNESP, 2006. Disponível
em:<http://www.assis.unesp.br/encontrosdepsicologia/ANAIS_DO_XIX_ENCONTRO
/112_DANIELE_ALMEIDA_DU ARTE.htm>. Acesso em: 21 dez. 2016.
Freitas, M. E. (1997). Cultura organizacional: sedução & carisma? São Paulo: 1997,
305p. Dissertação (Doutorado em Organizações, Recursos Humanos e Planejamento)
- Escola de Administração de Empresas de São Paulo, São Paulo.
85
6- O DESAFIO EM DESENVOLVER E IMPLANTAR UM GRUPO DE BRINCAR
COM FAMILIAS DE DEPENDENTES QUIMICOS:
UMA EXPERIÊNCIA DE TRABALHO NO REINO UNIDO5
Daniela Fuchs6
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo7
5
Agradeço a Asha Phillips, professora do curso de mestrado em Primeira Infância e Saúde Mental Infantil pela
Tavistock Clinic and University of East London (Reino Unido), e supervisora do trabalho realizado. “Relato de
experiência supervisionado pela psicanalista e professora do Curso de mestrado em Primeira Infância e Saúde
Mental Infantil” pela Tavistock Clinic e University of East London
6 Psicóloga – Mestre em Primeira Infância e Saúde Mental Infantil pela Tavistock Clinic and University
of East London (Reino Unido), pós -graduada da formação em Psicanálise com Crianças pelo Instituto
Sedes Sapientiae
7 Professora Associada do Instituto de Psicologia da USP, coordenadora do Laboratório de saúde
86
Introdução
87
“Bebês nascidos viciados em heroína são submetidos a traumáticas
experiências corporais intrusivas e intervenções médicas, mas o trauma
continua devido a indisponibilidade de uma figura de vinculo que possa
ajudar a criança a processar suas experiências emocionais da maneira
que uma mãe suficientemente boa faz com o seu bebê em circunstâncias
ordinárias” (p221) (tradução livre)
88
mãe recebe as projeções do bebê de uma maneira em que ela realmente vivencia os
seus sentimentos (projeção identificativa), e que é isso que possibilita que ela os
modifique para ele. Bion enfatiza que quando a mãe está aberta a digerir e tolerar
esses sentimentos incontroláveis que o bebê projeta nela, ela esta ajudando-o a
tolerar seu sofrimento psíquico, e ao mesmo tempo está o ensinando um modelo de
processamento de experiências emocionais.
Relato de experiência
Contexto
89
necessariamente estavam isentos do uso de substâncias químicas, no entanto
começavam um processo de desintoxicação com o acompanhamento médico. Os pais
com filhos de até 11 anos podiam residir no centro, sendo que as crianças maiores de
5 anos frequentavam escolas locais, enquanto as crianças de 0 a 5 anos frequentavam
a creche do centro, que se situava nos fundos da casa.
“Era dia do grupo e os pais não haviam escolhido uma atividade, a facilitadora então
sugeriu que eles fossem ao parque...no parque, duas mães se sentaram no balanço
e ficaram conversando. Assim que a facilitadora se aproximou as mães começaram a
falar de forma agressiva, a culparam pela falta de motivação, e a acusaram de não
escolher atividades interessantes para fazerem com seus filhos.”
90
Nesse novo formato, a rotina seria a mesma toda semana, uma vez que crianças
gostam e aprendem por repetição.
A primeira parte do grupo consistiria em um momento de roda, onde uma música
de boas-vindas seria cantada marcando a presença de cada família. Depois disto, uma
sacola com diferentes brinquedos e objetos seria apresentada pela facilitadora. Cada
criança seria chamada para escolher um dos objetos da sacola, e com a ajuda de seus
pais falar sobre o que escolheu. Em seguida, seria conduzida uma roda de música
que teria desde ritmos músicas infantis interativos e agitados até ritmos mais calmos
e lentos. A segunda parte do grupo seria caracterizada por atividades de artes tais
como tinta, argila, massinha e outros. Essas atividades variariam a cada semana, e
trariam a oportunidade de um brincar mais solto. Ao término das atividades do grupo,
todos voltariam a se reunir em uma roda para cantar uma música de despedida.
Com esta nova formatação tanto os pais quanto as crianças se beneficiaram. O
fato de o grupo ter uma estrutura contribuiu para que se sentissem mais confortáveis
em participar. No entanto, ainda havia bastante resistência e hostilidade de alguns dos
pais, aos quais tentavam boicotar o grupo e sua participação nele.
Nesta nova rotina estruturada do grupo, observou-se uma menor resistência dos
pais durante os momentos de roda. As famílias pareciam se desfrutar e se beneficiar
de cantar e escutar músicas rítmicas infantis. Muitas vezes, após o término de uma
música, os pais pediam com entusiasmo para repetir e cantar novamente. Isto, poderia
ser atribuído ao fato deles apreciarem a melodia do canto, que parecia contê-los. O
canto tem uma sequência, ao contrário de atividades criativas onde a imaginação e a
liberdade predominam mais. Alvarez (1992) escreve,
91
brincarem juntos. Assim sendo, a experiência de brincar com seus próprios filhos era
uma tarefa dolorosa e difícil. As rodas de música eram provavelmente mais fáceis
deles participarem por serem mais estruturadas, enquanto as atividades de brincar
mais livre como artes evocavam maior resistência. Alguns pais tinham dificuldades em
usar a imaginação, e em envolver seus filhos. Num primeiro momento eles se
colocavam numa posição autocentrada e mais infantilizada, explorando o brincar por
si próprios. A observação abaixo traz um exemplo disto,
“Veronica8 não sabe normalmente como envolver seu bebê Tom de nove meses
nas brincadeiras. Com ajuda ela está gradualmente explorando o brincar ela mesma,
e posteriormente envolvendo seu filho...Veronica posicionou o Tom em seu colo e
misturou o amido de milho com a água com suas mãos. A mãe estava impressionada
com a textura da mistura, e em como ela podia ser líquida e sólida ao mesmo tempo.
Quando a facilitadora sugeriu que ela colocasse a mão do Tom na mistura para ele
também sentir, Veronica pediu um tempo para que ela pudesse primeiramente
explorar sozinha...posteriormente ela colocou as mãos de seu filho na mistura para
que ele pudesse sentir a textura também.”
8
Todos os nomes neste trabalho foram modificados a fim de preservar a identidade das
pessoas envolvidas.
92
objeções, uma vez que os pais não queriam se sujar ou que seus filhos se sujassem.
Essas reclamações podiam ser relacionadas com o fato de que eles mesmos tinham
uma história “desarrumada”, o que poderia ter contribuído para reduzir a tolerância
deles para mais bagunça. Pesquisas mostram que mulheres dependentes químicas
tiveram um passado de maus-tratos, abuso, negligência, assim como vieram de
famílias que também são dependentes químicas (Belt & Punamaki, 2007). Dentro
deste contexto, o papel da facilitadora era o de mostrar que não é prejudicial se sujar,
e encorajar os pais a participar, mostrando que a bagunça poderia ser limpa e
arrumada depois. A observação abaixo demonstra algumas das tentativas de
encorajar isto,
“Depois da atividade de pintura, a facilitadora ajudou a mãe Sonia a levar sua filha de
um ano e meio para lavar as mãos. Ao ajudar, a própria facilitadora acabou ficando
com tinta pelo corpo todo. A mãe olhou-a aterrorizada e comentou que ela estava toda
suja. A líder do grupo respondeu que não havia problema, e que poderia se lavar
depois.”
Contudo, todos os esforços pareciam não ter impacto, uma vez que os pais
continuavam reclamando e se esquivando das atividades. Parecia que a “sujeira”
interna, conectada com o uso de drogas, estava sendo projetada e deslocada como
uma preocupação com a bagunça no mundo externo, e de ficar fisicamente sujo.
Apesar disto, a facilitadora continuou incluindo este tipo de brincar mais solto,
acreditando que era benéfico para as crianças e que isto poderia ajudar os pais a lidar
com seus sentimentos mais caóticos.
Conforme mencionado, muitos desses pais usuários haviam tido uma infância de
intensas experiências traumáticas, e com isto em mente poderia se pensar que a
negatividade deles não estava direcionada a pessoa da facilitadora, e sim ao que o grupo
de brincar poderia representar. Brincar com seus filhos não era algo simples, uma vez
que evocava experiências primitivas intensas de sofrimento. Como forma de defesa
destes sentimentos, alguns dos pais tinham uma atitude desdenhosa e se recusavam a
colaborar. A seguir uma ilustração de um ataque verbal de uma mãe ao grupo.
93
“A mãe estava com sua filha de quatro anos sentada no carpete e esperando pela vez
de elas brincarem com a argila...neste momento esta mãe sussurrou que ela odiava o
grupo e não sabia o que ela estava fazendo lá.”
Além disso, era proporcionado um espaço onde os pais podiam ser “crianças”
eles mesmos, e isto era visto como uma oportunidade de eles construírem aspectos
94
da infância das quais haviam sido privados. No entanto, para que isto acontecesse,
eles precisavam de um ambiente facilitador, como Alvarez e Phillips (1998), ressaltam,
“A líder mostrou uma sacola laranja grande e pediu para os pais e crianças
adivinharem o que poderia estar lá dentro. Uma das mães estava sentada ao seu lado
e mexeu sua cabeça para olhar dentro da sacola. A facilitadora brincou com ela e
disse que roubar não fazia parte do jogo. A mãe riu alto com prazer e comentou que
havia brinquedos com formatos de quadrado dentro da sacola.”
95
egoísta para uma preocupação para com o grupo e um desejo de fazer reparos pelos
seus ataques anteriores. Para Klein, a possibilidade de se viver a posição depressiva
é uma expressão de saúde.
De maneira geral o grupo continuou se desenvolvendo, e as famílias foram sendo
capazes de utilizá-lo com proveito e de forma positiva. A oportunidade de os pais
vivenciarem sua parentalidade sem serem julgados pelo seu vício, mostrou-se como
algo significativo. Belt & Punamaki (2007) ressaltam que “é importante que mães
usuárias sejam vistas como tendo potencial e capacidade de serem pais, e não apenas
como viciadas fadadas a recaídas” (p.206) (tradução livre)
Ocasionalmente alguns pais ainda demonstravam maiores dificuldades em
participar, sendo que isto era atribuído aos seus aspectos mais primitivos. Conforme
Youell (2008) ressalta “ensinar crianças ou adultos a brincar quando eles não tiveram
experiências satisfatórias nos seus primeiros anos não é uma tarefa fácil” (p128)
(tradução livre). Contudo, a sustentação do grupo como modelo de continência e do
brincar como sendo terapêutico, foram cruciais para que o trabalho continuasse
progredindo e sucedendo.
Conclusão
96
sendo, essa era uma ocasião em que os pais eram vistos como indivíduos e não como
usuários. Esse pode ser um aspecto crucial do seu processo de cura e tratamento.
Além disso, a possibilidade de os pais vivenciarem momentos prazerosos com seus
filhos, pode ser um aspecto positivo de vinculação e quebra de perpetuação de
experiências transgeracionais traumáticas.
Referências
Alvarez, A. (1992). Beyond the unpleasure principle. Play and Symbolism. In Alvarez,
A. (1992), Live company: Psychoanalytic psychotherapy with autistic children,
borderline deprive and abused children (pp. 163-173). London:
Tavistock/Routledge,
Bion, W.R. (1962). Aprender com a experiência. Rio de Janeiro, Brasil: Imago
Edwards, J. (1999). Kings, queens and factors: The latency period revisited. In Hindle,
D. & Smith, M. V. (1999), Personality development. A psychoanalytic perspective
(pp. 71-92). London: Routledge.
97
Hopkins, J. (2002). From baby games to let's pretend: The achievement of playing. In
Kahr, B., editor, Legacy of Winnicott. Essays on infant and child mental health
(pp.91-99). London: Karnac Books.
98
7- O DESENHO DA FIGURA HUMANA COM HISTÓRIA EM UM MENINO COM
DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM: COMPREENSÃO DOS ASPECTOS
EMOCIONAIS
Introdução
9
Psicóloga. Especialista em Neuropsicologia. Pesquisadora do Apoiar
10
Professora Livre Docente do IPUSP, no Programa de Psicologia do Escolar e do Desenvolvimento Humano.
11
Professora Associada do Instituto de Psicologia da USP; Coordenadora do Laboratório de saúde Mental e
Psicologia Clínica Social.
99
Dificuldades de aprendizagem
O tema dificuldades de aprendizagem tem despertado e ganhado cada vez
mais espaço dentro das investigações psicológicas acerca do desenvolvimento do
indivíduo. São queixas frequentes na clínica infantil tendo em vista que na escola
reflete-se o que ainda não se manifestou ou ainda não foi percebido no seio familiar
(Rosa, 2018).
É a aprendizagem compreendida como um processo de autoconstrução
modificando o que foi anteriormente aprendido. Tal processo pode ser dirigido,
produzido prioritariamente pela escola ou família, ou produzir-se forma espontânea,
por decisão do próprio aprendiz (Díaz, 2011).
100
padrões de integração entre o sistema nervoso central e o ambiente” (Condemarin, &
Blomquist, 1986, p. 17).
Sob o enfoque do desenvolvimento e avaliação da maturidade emocional e
cognitiva, o desenho vem sendo importante instrumento, sendo possível encontrar
paralelismos entre o desenvolvimento gráfico e o cognitivo (Rosa, Silva, Avoglia, &
Tardivo, 2018). A avaliação a partir da idade, investigando o que não seria comum
num desenho tanto do ponto de vista cognitivo ou emocional é parâmetro fundamental
que o profissional precisa lançar mão (Rosa, 2018).
101
Como uma variação das pesquisas do DFH, o Desenho da Figura Humana com
Histórias: DFH-H conta com a colaboração de Tardivo, Migliorini e Rosa (Migliorini &
Rosa, 2019; Tardivo, 2017). No DFH-, o desenho é um estímulo de apercepção
temática tendo como ponto de partida a universalidade da representação da figura
humana, a partir da qual o participantes elabora uma história. É um procedimento
simples e barato, de fácil aplicação, consistindo em pedir ao paciente ou participante
que desenhe uma pessoa, e a seguir, que escreva uma história seguida de um título
e inquérito (Migliorini &Rosa, 2019).
OBJETIVO
MÉTODO
O estudo foi realizado a partir do método clínico, com estudo de caso de um
menino, Pedro, de 12 anos, estudante do 7º. ano do Ensino Fundamental, com queixa
de dificuldade de aprendizagem, encaminhado e atendido no APOIAR.
Instrumentos e Procedimentos
Foram utilizados como instrumentos, entrevistas com a mãe (que assinou sua
concordância em utilização dos dados informados em pesquisa); com Pedro:
102
fundamentais para o desempenho escolar, mais especificamente da escrita, aritmética
e leitura.
12
Os nomes utilizados neste estudo foram substituídos por nomes fictícios.
103
Trechos do primeiro encontro com a criança
No primeiro encontro, Pedro demonstrou-se tímido, com voz extremamente
baixa, mas com um olhar doce e carinhoso. Foi levado à sala de atendimento, que
continha folhas, lápis, borracha, lápis de cor, alguns jogos de cartas, dominós de
palavras e números, a torre de Hanói, entre outros, todos dispostos sobre a mesa, ali,
desempenhando papel de mediadores do encontro. Iniciou-se a conversa
perguntando se ele sabia por que estava ali. Ele responde e sorri. Quando surgiu o
tema escolar, ele abaixa os olhos e uma lágrima escorre de seu rosto. (A psicóloga o
acolheu e tentou tranquilizá-lo).
104
humana incompleta, pela falta de orelhas, cílios e mãos, não é esperada na idade de
Pedro, o que pode indicar certa imaturidade emocional e cognitiva, tendo em vista o
paralelismo entre o desenvolvimento gráfico e cognitivo (Rosa, Silva, Avoglia, &
Tardivo, 2018).
Pedro apresentou três Indicadores Emocionais dos propostos por Koppitz
(1973): assimetria grosseira das extremidades, olhos estrábicos e braços compridos.
A autora constatou que, para diagnosticar a presença de problemas emocionais, era
suficiente um mínimo de dois indicadores. Rosa (2018) encontrou diferenças
significativas nos Indicadores Emocionais de crianças com e sem dificuldades de
aprendizagem, confirmando a constatação de Koppitz de dois indicadores para
sugestão de questões emocionais.
Nos Indicadores Maturacionais, Pedro apresentou presença de 16. Rosa (2018)
encontrou bom nível de sensibilidade dos Indicadores Maturacionais para discriminar
crianças com e sem queixas de aprendizagem, evidenciando que o as crianças sem
essa condição apresentaram desenhos mais elaborados e mais detalhados, e as que
tem mais dificuldades apresentaram desenhos mais empobrecidos. A média de pontos
Koppitz por idade e sexo foi de 18 entre os meninos na mesma faixa etária de Pedro,
enquanto ele atingiu 16. Em sua análise, Rosa (2006) dividiu ainda os indicadores em
itens esperados e itens excepcionais, a partir da amostra paulistana. Na faixa etária
de Pedro espera-se que desenhe: cabeça, olhos, boca, pernas, roupa, tronco, braços,
nariz, braço em 2 dimensões, pernas em 2 dimensões, pés, cabelo, pés
bidimensionais (Rosa, 2006). Os resultados obtidos por Pedro estão abaixo da média
em relação à amostra paulistana em sua faixa etária.
Rosa (2018) encontrou 17 Indicadores Maturacionais para crianças sem
dificuldade, na mesma faixa etária de Pedro; e 15 indicadores para as crianças com
dificuldades. Assim, os resultados de Pedro com 16 itens estão de acordo aos obtidos
por Rosa (2018); e com os dados da literatura que colocam que dificuldades
emocionais interferem no desempenho cognitivo (Rosa, Belizario, Alves, & Valente,
2019; Rosa, Silva, Avoglia & Tardivo, 2018).
História
Pedro conta a história de uma criança que não tinha pais e precisa ser
encaminhada a um orfanato. E na tentativa de ter uma segunda família, fica
105
novamente só, pois, os novos pais não oferecem condições afetivas de cuidar do
menino da história. E assim, esse menino foge, preferindo estar no orfanato
novamente, pois encontrou na companhia dos amigos um sentido mais aproximado
do que é ter família. Observa-se o não pertencimento da criança nessa família e pode-
se dizer, no mundo em que vive, inclusive o escolar. Sente-se não acolhido e não
compreendido por ela o que pode estar relacionado ao seu “desligamento”, sua
distração tanto na escola quanto em casa. E à necessidade de encontrar pessoas com
as quais possa se sentir mais feliz.
106
que requer capacidade e controle atencional com a mediação das funções executivas,
necessárias à habilidade de escrever.
DISCUSSÃO
O DFH mostrou imaturidade de desenvolvimento e presença de indicadores de
comprometimento emocional da criança. A respeito da omissão de mãos, Hernandez,
Rochefort, Trojan Neto, Sarmiento, Feijó & Curra (2000), a partir dos Indicadores
Emocionais de Koppitz, encontraram diferença estatística neste indicador, mostrando
que as crianças vitimizadas omitiram mais. Para Koppitz (1973) a omissão de mãos é
mais frequênte em crianças tímidas, indicando sentimentos de inadequação e/ou
culpa e insegurança, e este item aparece em crianças com distúrbios somáticos.
A história de Pedro também traz elementos emocionais importantes acerca do
seu desenvolvimento e de seu ambiente, sugerindo que ele pode ter a sensação
emocional de não ser cuidado, como se realmente faltasse a presença, ou o papel de
cuidadores das figuras materna e paterna. O papel da mãe, ou seja, da função
materna (que pode ser também o pai, ou aqueles que cuidam da criança) de oferecer
ambiente suficientemente bom, propício ao desenvolvimento saudável do indivíduo, é
reiteradamente tratado por Winnicott (1982; 1983). Quando fala do processo de
aquisição da inteligência, da aprendizagem e do desenvolvimento humano geral, o
autor entende que as necessidades para tal não são estáticas, estando sempre “num
estado de transformação qualitativa e quantitativa, em relação à idade da criança e às
necessidades em constante mutação” (Winnicott, 1982, p.203) sendo, o ambiente,
causador de grande impacto no humano. Complementa ainda que afirmando que a
aprendizagem é um modo de receber e aceitar os estímulos do ambiente; indo de
encontro às percepções de Rosa, Monaci, Olivi e Gandini (1993) quando entendem
que a capacidade de aprender a organizar-se psiquicamente estaria ligada à relação
emocional que a criança tem/recebeu de sua mãe.
Pedro procura em sua história busca figuras parentais, mas se sente não
atendido e compreendido, Pedro finalmente encontra em seus pares o espaço para
ficar bem afetivamente. Os resultados mostram que Pedro sente seu ambiente como
não tendo condições de atender às suas necessidades básicas. Tal sensação
encontra respaldo na realidade, já que a mãe fala do grande número de pessoas na
107
casa e todos os problemas emocionais relatados por ela ao longo das sessões, em
desabafo, antes ou após os encontros ou ainda por mensagens no celular.
A família só procurou ajuda psicológica porque foi exigido pela escola, após
outras tentativas anteriores de solicitação mais amigável; nunca tendo sido buscada a
ajuda, mesmo Pedro já denotando dificuldades escolares desde criança.
A mãe relata que a irmã gêmea é o “oposto” de Pedro, pois se desenvolveu e
ganhou destaque no desempenho escolar. Pedro então isola-se do restante da
família, vivendo “como se tivesse em outro lugar”. Pelo relato da história e pelos dados
da vida de Pedro, os amigos são a fonte de afeto e a ligação com o mundo exterior.
O TDE confirmou os dados obtidos no DFH: rendimento abaixo dos seus pares,
inferior se comparado a crianças na sua mesma faixa etária; sugerindo que Pedro
pode apresentar imaturidade para a aprendizagem, caminhando.
As dificuldades emocionais percebidas em Pedro, em sua relação com o
ambiente, somadas ao baixo desempenho escolar e dificuldades no seu
desenvolvimento maturacional, vão ao encontro dos dados da literatura, que aponta
que a maturidade para a aprendizagem está ligada à interação constante entre o
desenvolvimento da maturação biológica e o ambiente (Condemarim & Blomquist
(1986). Compreende-se que a maturidade para a aprendizagem como afirmam esses
autores definem: “o conceito de aptidão biológica, o qual constitui, principalmente, o
reflexo de certos padrões de integração entre o sistema nervoso central e o ambiente”
(p. 17).
Foram encontradas relações entre os resultados da análise do DFH-H e do
TDE, pois no DFH-H houve indícios das dificuldades emocionais e maturacionais da
criança, e na história, a sensação da falta de proteção e amparo. No TDE,
compreendeu-se de forma objetiva, as dificuldades da criança, fundamentais para o
desempenho escolar, mais especificamente da escrita, aritmética e leitura (Stein,
2011), com resultado inferior.
CONSIDERAÇOES FINAIS
No caso apresentado, o DFH-H revelou aspectos emocionais importantes, bem
como indicativos maturacionais que têm ligação com o desempenho cognitivo. Esses
dados são corroborados pela história associada, onde a criança se ressente da falta
108
de proteção, também obteve no TDE, um desempenho abaixo do esperado para sua
idade e e série escolar.
Os instrumentos empregados, junto das observações realizadas durante as
sessões com a mãe e Pedro, se mostraram sensíveis para confirmar as dificuldades
emocionais e maturacionais do menino. Também se confirma a relevância do
ambiente como fator fundamental para o desenvolvimento humano e para a aquisição
de habilidades para o processo de aprendizagem.
Conclui-se pela necessidade de se amparar crianças desde cedo quando
demonstram dificuldades em acompanhar o que se espera, no que se refere com
respeito às habilidades cognitivas. É fundamental prover também o cuidado à família
e à escola para que possam se constituir em ambiente que propicie o desenvolvimento
das crianças.
REFERÊNCIAS
Condemarin, M., & Blomquist, M. (1986). Dislexia: manual de leitura corretiva. Porto
Alegre: Artes Médicas.
Hernandez, J.A.E., Rochefort, A.V., Trojan Neto, B., Sarmiento, C.S.B.L, Feijó, S.M.L.,
& Curra, S.M. (2000). Indicadores emocionais do Desenho da Figura Humana de
crianças abusadas sexualmente. Aletheia (12), 43-52.
Migliorini, W. J. M., & Rosa, H. R. (2019). O desenho da figura humana, com história
(DFH-H): descrição do procedimento e interpretação. In Libro de Actas. Granada:
Asociación Española de Psicología Conductual.
Koppitz, E.L. (1973). El dibujo de la figura humana em los niños. Buenos Aires:
Editorial Guadalupe (original publicado em 1968)
Rosa, H.R., & Alves, I.C.B. (2014). Estudo normativo do Teste Goodenough-Harris em
crianças na cidade de São Paulo. Boletim - Academia Paulista de
Psicologia, 34(87), 336-351.
109
Rosa, H.R. (2018). Desenho da figura humana em crianças: indicadores emocionais,
evidências de validade e precisão. Tese de Livre Docência, Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo. doi:10.11606/T.47.2019.tde-25042019-
102736. Recuperado em 2019-10-20, de www.teses.usp.br
Rosa, H.R., Silva, M.A., Avoglia, H.R.C., & Tardivo, L.S.P.C. (2018). Desenvolvimento
infantil: como crianças desenham? In Luciana Maria Caetano (org). Psicologia para
pais e educadores. PR: Juruá, p. 1-8.
Rosa, H.R., Belizario, G. O., Alves, I.C.B., & de Castro Valente, M.L.L. (2019).
Indicadores emocionais de Koppitz no desenho da figura humana: comparação
entre uma amostra clínica e escolares. Avances en Psicología Latinoamericana,
37(2). 195-204. Doi: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.5118
Rosa, I.P., Monaci, E.M., Olivi, M.E.W., & Gandini, R.C.(1993). Algumas observações
sobre a interação da criança com distúrbio de aprendizagem e sua mãe. Mudanças:
Psicoterapia e Estudos Psicossociais Ano I- (1):95-107.
Rossetti-Ferreira, M.C., Amorim, K.S., & Oliveira, Z.M.R. (2009). Olhando a criança e
seus outros: uma trajetória de pesquisa em educação infantil. Psicologia
USP, 20(3), 437-464. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642009000300008
110
8- O COMPORTAMENTO AUTOLESIVO NA ADOLESCÊNCIA E O TESTE DE
FÁBULAS DE DÜSS: PSICODIAGNÓSTICO COMPREENSIVO
Gislaine Chaves
Loraine Seixas Ferreira
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Helena Rinaldi Rosa
INTRODUÇÃO
111
compreensão, já que pode, especialmente, na adolescência, ser indicador de entraves
em seu desenvolvimento.
O comportamento auto lesivo é amplamente definido na literatura científica, de
forma que muitos termos são utilizados com a intenção de nomeá-lo. Assim, haja vista
a complexidade do fenômeno, a comunidade científica apresenta dificuldades de
definição conceitual a nível universal, sendo a intencionalidade ou não para a morte
fruto de intensos debates.
Guerreiro e Sampaio (2013) apontam que a comunidade anglo-saxônica
considera duas definições: a) Deliberate Self-Harm (DSH): A questão da
intencionalidade não é discutida, sendo, até mesmo, as sobre dosagens consideradas
condutas auto lesivas; e b) Non Suicidal Self-Injury (NSSI): Realizado sem intenção
de morte declarada, sendo incluídos apenas os comportamentos de lesão superficial
da pele e atitudes semelhantes como arranhões e queimaduras.
Assim, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta para o comportamento
autolesivo como um problema de saúde pública. Trata-se de ato realizado,
principalmente, por adolescentes e jovens adultos (Tardivo, Ferreira, Alhanat, Chaves,
Rinaldi, Pinto Junior & Belisário 2019; Stewart Esposito, Glenn, Gilman, Pridgen, Gold,
& Auerbach, 2017; Washburn, 2012; Nock, 2010).
Nesse contexto, a conduta autolesiva na adolescência tem sido amplamente
investigada na atualidade, sendo considerado um comportamento cujas razões são
multifatoriais (Chaves, 2018). Muitos são os estudos nacionais (Vilhena & Prado,
2015; Drieu, Proia-Lelouey & Zanello, 2011) e internacionais (Brow & Plener, 2017;
Brunner et al., 2014) que se debruçam a compreender dados quantitativos, como
prevalência e recorrência a longo prazo, bem como qualitativos, que visam desde
reconhecer os fatores de risco (Rasmussen, Hawton, Philpott-Morgan, O'Connor,
2016; Jorge, Queirós & Saraiva, 2015) até propor medidas interventivas Plener,
Allroggen, Kapusta, Brähler,Fegert, & Groschwitz., 2016).
Tendo em vista a necessidade de trabalhos que forneçam subsídios para a
prática psicológica, especialmente, para o processo psicodiagnóstico, cabe citar o
estudo recentemente publicado por Tardivo et al. (2019). Os autores investigaram a
relação entre aspectos da personalidade, comportamento autolesivo e depressão em
pré-adolescentes e adolescentes na faixa etária de 11 e 16 anos, com e sem
comportamento autolesivo, por meio de entrevistas, aplicação do Inventário de
Depressão Infantil (CDI) e o Desenho da Figura Humana (DFH). Os resultados
112
permitiram associar o comportamento autolesivo dos participantes a sintomas
depressivos, com predomínio de autoimagem negativa, sentimentos de culpa,
dificuldades em lidar com pensamentos que provocavam dor, preocupações sexuais,
problemas corporais e dificuldades em conectar controle e impulsos.
Ainda nessa vertente de estudos que realizam a interlocução desse fenômeno
com a atividade clínica embasada por instrumentos projetivos e objetivos, cabe
apontar o trabalho apresentado por Tardivo, Chaves, Ferreira, Banhos e Martinez no
X Congreso Internacional y XV Nacional de Psicología Clínica (2017), o qual
investigou a maneira como os adolescentes que se autolesionam constroem o seu
mundo vivencial. Quatro adolescentes entre 12 e 13 anos de idade fizeram parte da
pesquisa, a qual contemplou entrevistas e a aplicação do HTP, CDI e BAI. Os
resultados apontaram para a influência dos pares no início da conduta, havendo sinais
de conflitos intrafamiliares e, consequentemente, de muito sofrimento, traduzido em
altos scores de ansiedade e depressão. Assim, nota-se que a realização de avaliações
psicológicas com esse público se torna uma ferramenta possível para melhor
compreensão e atuação do psicólogo junto ao jovem que sofre. Nesse contexto, o
Psicodiagnóstico Compreensivo se mostra como alternativa.
O Psicodiagnóstico Compreensivo foi proposto por Trinca (1984). Tal processo
objetiva clarificar a compreensão da conduta humana tendo em vista o emprego de
uma atitude clínica que considere o sujeito globalmente. O Psicodiagnóstico
Compreensivo abarca referenciais de vários campos do saber, como o Behaviorismo,
da Fenomenologia-existencial, Gestalt, Psicologia do Desenvolvimento, assim como
do funcionamento e estruturação familiar. No entanto, suas principais bases se
fundamentam nos aportes psicanalíticos, uma vez que tal abordagem valoriza o
exercício do raciocínio clínico e a compreensão dos conteúdos latentes dos sintomas,
lançando luz sobre a importância dos sentidos e significados dos movimentos
inconscientes inerentes ao indivíduo (Trinca, 1984).
Observa-se, dessa forma que Trinca (1984) estima a integração dos vários
elementos que dizem respeito a caso em um todo coerente, isto é, que leve em
consideração o dinamismo psíquico, intrafamiliar, social e cultural. Nas palavras do
autor (1984, p. 32):
113
embora as teorias sejam fatores importantes no background do
profissional, é mister que sua atividade clínica seja empreendida com
o mínimo de interferência de suas teorias sobre sua capacidade de
observar e captar os fatos relevantes.
114
reedição das vivências de sucesso e fracasso experimentadas na primeira infância
com vistas à sua integração (1968/1975).
Recorrendo aos aportes do desenvolvimento emocional infantil, o autor
(1960/1983) pontua que a experiência do lactente com o ambiente assume crucial
importância, já que quando este último se mostra falho “interrompe a continuidade do
ser” e compromete a estrutura de ego, suscitando a “ameaça de aniquilamento” ou
“desintegração”, pois o bebê reage, provocando marcas em seu desenvolvimento.
Em 1955, no trabalho intitulado Raízes primitivas da agressividade, Winnicott
(1964/1982) menciona três maneiras do bebê experenciar o ambiente: a) Por meio da
motilidade, na saúde, o bebê descobre constantemente o ambiente e é por este
descoberto; b) Numa outra maneira, o bebê sente-se submetido às intrusões
ambientais e reage, buscando refúgio na quietude por meio do solapamento do gesto
espontâneo; e, c) as intrusões são sentidas como extremas de modo que ao bebê não
cabe alternativa a não ser o ocultamento do verdadeiro eu. Dessa forma, as
experiências que afetam o bebê são registradas a nível somático e psíquico
(Winnicott, 1990). Como consequência, o sujeito pode ter sérias dificuldades de
integração a nível parcial e total, com prejuízos na compreensão psicossomática e na
aquisição de confiança no mundo.
Assim, para Winnicott (idem), os processos psicopatológicos derivam dos
movimentos defensivos realizados pelo indivíduo, nos diferentes estágios de seu
desenvolvimento, ante às falhas ambientais. Entretanto, o autor também reconhece e
aqueles jovens que convivem em “ambiente suficientemente bom” podem apresentar
sofrimento devido às condições da realidade externa, as expectativas geradas e a
pressão sentida, não havendo garantias, uma vez que a unidade psicossomática não
é estanque, estando atrelada à relação com o ambiente e de perdas e ganhos
enquanto parte natural desse processo. Ademais, o adolescente se depara com um
corpo diferente, genitalizado, cuja potencialidade para a violência e para o sexo está
dada, passível para a concretização de fantasias e desejos íntimos e antigos.
Com base nessa compreensão, Winnicott (1961/2005) salienta o esforço
realizado pela estrutura egóica para lidar com as exigências decorrentes das
mudanças puberais e do aparecimento das fantasias destrutivas, libidinais e
agressivas, incrementadas pela possibilidade de sua execução, reconhecendo como
fase permeada por turbulências, intenso sentimento de culpa (dado o retorno da
115
questão edípica) e depressão, assim, impondo ao jovem à busca por alternativas de
enfrentamento à violência das transformações.
Assim, a vista de tais apontamento, esse estudo objetivou por meio do
Psicodiagnóstico Compreensivo com o auxílio do Teste de Fábulas de Düss, investigar
aspectos da personalidade de três adolescentes que não possuíam transtorno
psiquiátrico diagnosticado e praticavam o comportamento auto lesivo.
MÉTODO
Nessa pesquisa, foi adotado o método clínico-qualitativo. Tal técnica é
referenciada por Turato (2010, p. 96) como “... um conjunto de técnicas e
procedimentos adequados para descrever e compreender as relações de sentidos e
significados dos fenômenos humanos” que, fomentado pelos questionamentos do
pesquisador sobre a origem destes últimos, busca apreensão das acepções
existentes.
Enquanto estratégia metodológica, foi empregado o delineamento de Estudo
de Casos Múltiplos. De acordo com Yin (2001), este proporciona maior generalização
dos achados, permitindo a expansão ou criação de teoria a respeito da questão em
investigação.
A presente proposta faz parte de um projeto maior, denominado “O Teste de
Fábulas de Düss: Estudos de validade e precisão junto a crianças e pré-adolescentes
vitimizados, com dificuldades de aprendizagem e comportamento auto lesivo” de
autoria de Tardivo (2018) e tem como intenção contribuir para o alcance de um de
seus objetivos que visa apresentar estudos de fidedignidade e validade para o Teste
de Fábulas de Düss. Dessa forma, participou desse estudo um Centro de Integração
e Cidadania (CIC) - programa do Governo do estado de São Paulo que integra
diversos serviços - que concordou em participar da pesquisa. Algumas adolescentes
buscaram o CIC e foram atendidas por uma das autoras desse artigo que participa
como voluntária na instituição.
Assim, participaram da pesquisa três adolescentes. A fim de compor o
psicodiagnóstico compreensivo, foram realizadas entrevistas semidirigidas com a
jovem e o familiar e/ou responsável com o intuito de possibilitar espaço de exposição
e a possibilidade de a pesquisadora intervir quando julgasse necessário (Ocampo &
Arzeno, 2003).
116
Ainda foi empregado o Teste de Fábulas de Düss. O mesmo encontra-se
aprovado para a realização de pesquisas. Nesse estudo, foram analisadas as histórias
elaboradas para as fábulas 4, 5 e 10, tendo em vista as categorias especificadas por
Tardivo (1998 citado por Tardivo, Pinto Junior & Santos, 2005, p. 62):
Fábula 4 – Enterro
13. Relação com a figura paterna – desejos destrutivos. 14. Relação com
a figura materna – desejos destrutivos. 15. Respostas adequadas à
realidade. 16. Outros não significativos. 17. Autodestruição; 18 – Velhice;
19 – Doença: 19a) coração; 19b) outras; 20 - Provocada por outros; 21 –
Acidental.
Fábula 5 – Medo
22. Medo de Objetos Internos; 22 a) masculinos; 22 b) femininos; 22 c)
sem definição clara de sexo. 23. Medo de objetos externos reais. 24.
Medo de autodestruição.
Fábula 10 – Sonho mau
34. Relação com circunstância difícil. 35. Relação com figuras fantásticas.
36. Relação com pessoas reais. 37. Relação com autodestruição.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Breve descrição dos casos
1. Bruna: 12 anos de idade, feminino, nível socioeconômico baixo. Estudante de
escola pública, reside em Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e
Adolescentes (SAICA) com o irmão mais novo. Bruna foi retirada das ruas e não se
tem o paradeiro dos pais. As psicólogas da instituição buscam atendimento devido a
menina não falar sobre o seu passado e, recentemente, apresentar discurso que
remete à ideação suicida e descobrirem o comportamento autolesivo. Sobre o sentido
da conduta autolesiva, Bruna não consegue dizer sobre as motivações para o ato,
mas afirma sentir alívio quando se corta.
117
acompanhamento psiquiátrico, no entanto se recusa a tomar as medicações. Quanto
ao sentido da conduta autolesiva, Carina não consegue explicitar o que leva à tal
comportamento, mas afirma sentir “esquecer um pouco dos problemas” (SIC).
118
por Tardivo (1998 citado por Tardivo, Pinto Júnior & Santos, 2005). Já Bruna faz
menção à morte autoprovocada, ao suicídio, que se dá de forma bastante cruel e se
origina a partir da discussão que ocorre entre o casal, dado compatível com a
categoria 20. Provocada por outros, como apresentado por Tardivo (idem).
No que diz respeito aos personagens, observa-se que Bruna e Carina
mencionam sobre a morte de um familiar (pai e mãe, e irmão), dado que se enquadra
nas categorias 13. e 14. Relação com a figura paterna e materna – desejos destrutivos.
Já Daniela afirma sobre a morte de uma pessoa qualquer, dado que pode ser
compreendido como pertencente à categoria 16. Outros não significativos.
Nesse contexto, pode-se afirmar que Bruna e Carina apresentam sentimentos
hostis e destrutivos para com as figuras familiares. Quanto à Bruna, os aspectos
destrutivos direcionam-se ao casal parental e, à Carina, ao irmão. Tais dados sugerem
aproximações com a história de vida dessas participantes, que se mostra permeada
por situações de violência, física e psicológica, intrafamiliar. Carina, durante as
sessões do psicodiagnóstico, se mostrou bastante preocupada com seu irmão devido
a sua relação com o mundo do tráfico de drogas e com o fato do mesmo não poder
ter ido para o SAICA por estar foragido da polícia, sentindo-se culpada por tê-lo
“abandonado” (SIC). Bruna, em nenhuma das sessões relatou sobre seu pai ou mãe,
mas, em sua narrativa, nota-se a presença de conteúdo violento e impulsivo diante de
situações de conflito entre os familiares.
Já Daniela demonstra evitar o contato com a situação, distanciando-se
afetivamente do personagem morto. Por um lado, a paciente protege-se contra acesso
a conteúdo mais profundo sobre aquilo que a incomoda e causa dor, mas por outro,
revela a presença de algo incontrolável, a doença e sua alta intensidade, como um
fator que leva ao fim da vida. Esse tema no desenho de Daniela também se aproxima
de sua vivência, apontando para as vozes que ouve e o medo de enlouquecer. Assim,
em conjunto, o conteúdo latente de tais narrativas parece referir-se à ordem da
impotência, dado que, por um lado, demonstra que as participantes se aproximaram
do sentido da história, mas, por outro, sugere fantasias de fragilidade frente ao tema.
Na Fábula 5, Medo, Carina e Daniela referem sobre o medo do escuro. Carina,
ao falar de seu medo, revela uma situação de si, comentando sobre a religião e as
informações que obteve sobre sua vida por esse intermédio. Daniela relata sobre o
sentido de desproteção que o escuro reserva. Já Bruna descreve personagens
fantásticos, enfatizando o medo suscitado pelo desconhecido. Tardivo, Pinto Júnior e
119
Santos (2005) afirma ser comum a presença de histórias relacionadas a aspectos da
fantasia e da realidade.
Sobre os personagens, Bruna denota medo de objetos internalizados, ligados
ao campo da fantasia, de sexo não definido. Daniela associa o medo de pesadelo ao
de ser abandonada, trazendo tal angústia à baila. Carina, por sua vez, se recusa a
associar sobre o medo e entrar em contato com tal sentimento. Assim, apesar das
diferenças, é possível observar, em todas as narrativas, o medo provocado pelo
inesperado, suscitando a presença da sensação de vulnerabilidade.
Tendo em vista as colocações de Winnicott (1996/2005) sobre o medo e a sua
relação com a elaboração de conteúdos ansiógenos, pode-se conceber que as
narrativas expressam o receio do desamparo. Tais dados são compatíveis com o
descrito por Chaves (2018) que, a partir de um estudo de caso de uma adolescente
que se autolesionava, refere a interferência da noção de desamparo como fator
significativo para a adoção de uma postura autoagressiva, ou em termos
winnicottianos, antissocial. Tardivo et al. (2019) endossa afirmando que a dor dos
adolescentes que se autolesionam estão associadas também à experiência de viver
em uma sociedade com referências fragilizadas.
Ademais, nota-se que Bruna e Daniela apontam para a presença de medo
ligado à figura humana, o que sugere conflitos no contato com o outro, que pode
assustar, como descrito por Bruna, quanto abandonar, como apontado por Daniela.
Dessa forma, infere-se, a partir de tais dados, que as participantes também ressaltam
a dificuldade de confiar no outro.
Na Fábula 10, Sonho mau, observa-se que todas as participantes se referem
sobre a ideia de pesadelo. Bruna, aponta para um sonho com uma figura humana,
dando mais coerência à sua narrativa a partir da justificativa do filme de terror como
estopim para tal situação. Carina não se aprofunda na temática, afirmando somente a
presença de uma frequência significativa de pesadelos no passado, mas que agora é
sua irmã quem vivencia essa circunstância, e, Daniela apresenta maior teor emocional
em sua resposta, salientando a noção de desproteção e de estar a mercê de si
mesma, escancarando as rachaduras na experiência de alteridade. De acordo com
Tardivo, Pinto Júnior e Santos (2005) a variabilidade de respostas é comum nessa
fábula. Pode-se observar a presença de aspectos da fantasia, como o filme de terror
apontado por Bruna, e de autodestruição, relatado por Daniela.
120
Ao se analisar individualmente cada resposta, compreende-se que Bruna, a fim
de lidar com a ansiedade, lança mão de conteúdos da vida real, o pesadelo para
justificar a presença da mulher, sem prejuízo significativo na organização lógica da
narrativa. Daniela sinaliza o temor da autodestruição a partir do abandono do outro. A
paciente aponta para a solidão como meio de sofrimento, revelando a dependência
em relação ao outro.
Já Carina faz uso maciço de mecanismo de defesa, como a negação,
impedindo a possibilidade de exposição de suas conflitivas. Sugere-se que Carina
evite entrar em contato com a angústia a todo custo, como uma maneira de preservar
o seu psiquismo, sugerindo a existência circunstância por demais penosa para ser
tolerada, evitando, assim, a possibilidade de elaboração da problemática
perturbadora.
Em síntese, pode-se observar que Bruna, Carina e Daniela apresentam
conflitos ligados ao desamparo. Costa (2000), baseado na teoria winnicottiana, refere
que a sensação de desamparo se articula com a compreensão de desadaptação do
ambiente, e não com a incapacidade concreta do indivíduo em se bastar sozinho. Isto
significa dizer que, para o autor, são os déficits no ambiente, como as intrusões ou
falhas que impossibilitam que o indivíduo possa vir-a-ser, que contribuem para a
paralisação das faculdades criativas do self, interrompendo o fluxo do seu
desenvolvimento, podendo incorrer na (re)vivência da angústia impensável.
Ainda, Costa (2000) aponta que na adolescência tal paralisação propicia o
retorno da situação de desamparo. Winnicott (1961/2005) aponta que nessa etapa da
vida ocorre a reedição das vivências de sucesso e fracasso experimentadas na
primeira infância com vistas à sua integração (1968/1975), sendo, portanto,
imprescindível o suporte da família ou substituto, e da sociedade, para a retomada do
amadurecimento. No entanto, cabe pontuar que para Winnicott (citado por André,
2001) atrelado à angústia impensável está a noção de desamparo e também de “um
combate, de uma primeira resposta contraposta ao perigo” (p. 96).
Nesse sentido, pode-se conceber que as participantes desse estudo revelam,
por meio das histórias elaboradas para o Teste Fábulas de Düss, rupturas no sentido
continuidade da vida, lançando mão de defesas primitivas contra a repetição da
ansiedade impensável. De forma que, na ânsia de se sentirem reais, Bruna, Carina e
Daniela lançam mão, paradoxalmente, de condutas prejudiciais para si,
121
exemplificadas pelos comportamentos autolesivo, na tentativa de superar a dor do
desamparo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente proposta possibilitou observar que as adolescentes participantes do
estudo vivenciam situações de intenso sofrimento. Suas histórias de vida são
permeadas por vivências violentas, tanto a nível concreto quanto simbólico, e o Teste
de Fábulas de Düss favoreceu o acesso ao mais íntimo da expressão de suas
fantasias, emoções, desejos e pensamentos, desvelando como conflito inerente à
todas as participantes a noção de desamparo. Assim, a conduta realizada por elas
mostrou-se paradoxal: a autolesão opera como uma tentativa de superar a dor do
desamparo.
REFERÊNCIAS
André, J. O Objeto Único. Cadernos da psicanálise, SPCRJ, vol 15, n,18, Rio de
Janeiro. 1999
Brunner, R., Kaess, M., Parzer, P., Fischer, G., Carli, V., Hoven, C. W. & Wasserman,
D. (2014). Life-time prevalence and psychosocial correlates of adolescent direct
self-injurious behavior: A comparative study of findings in 11 European countries.
Journal of Child Psychology and Psychiatry, 55, 337–348.
Brunner, R., Kaess, M., Parzer, P., Fischer, G., Carli, V., Hoven, C. W. & Wasserman,
D. (2014). Life time prevalence and psychosocial correlates of adolescent direct self-
injurious behavior: A comparative study of findings in 11 European countries.
Journal of Child Psychology and Psychiatry, 55, 337–348.
122
Drieu, D., Proia-Lelouey, N. & Zanello, F. (2011). Ataques ao corpo e traumatofilia na
adolescência. Àgora, v.XIV, n. 1, p. 9-20.doi http://dx.doi.org/10.1590/S1516-
14982011000100001.
Jorge, J. C., Queirós, O., Saraiva, J. (2015). Descodificação dos comportamentos auto
lesivos sem intenção suicida: Estudo qualitativo das funções e significados na
adolescência. Análise Psicológica, 33(2), 207-219.
Plener, P. L., Allroggen, M., Kapusta, N. D., Brähler, E., Fegert, J. M., & Groschwitz,
R. C. (2016). The prevalence of Nonsuicidal Self-Injury (NSSI) in a representative
sample of the German population. BMC Psychiatry, 16, 353.
http://doi.org/10.1186/s12888-016-1060-x.
Ryan, K., Heath, M. A., Lane, F., Young, E. L. (2008). Superficial self-harm:
Perceptions of young women who hurt themselves. Journal of Mental Health
Counseling, 30(3), 237-254.
Stewart, J. G., Esposito, E. C., Glenn, C. R., Gilman, S. E., Pridgen, B., Gold, J., &
Auerbach, R. P. (2017). Adolescent self-injurers: Comparing non-ideators, suicide
ideators, and suicide attempters. Journal of Psychiatric Research, 84, 105–112.
http://doi.org/10.1016/j.jpsychires.2016.09.031.
123
Tardivo, L. S. L. P. C., Pinto Junior, A. A. & dos Santos, M. R. (2005). Avaliação
psicológica de crianças vítimas de violência doméstica por meio do teste das
fábulas de Düss. Psic: revista da Vetor Editora, 6(1), 59-66. Recuperado em 15 de
novembro de 2019, de
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-
73142005000100008&lng=pt&tlng=pt
Tardivo, L.S.L.P.C., Ferreira, L.S., Alhanat, M., Chaves, G., Rinaldi, H.R. Pinto Junior,
A. A., Belisario, G.O. (2019). Self-injurious behavior in preadolescents and
adolescents: self-image and depression. Paripex – Indian Journal of research. v.8,
6, p. 1-5.
Washburn, J. J., Gebhardt, M., Styer, D. M., Juzwin, K. R., Gottlieb, L. (2012). Co-
occurring disorders in the treatment of nonsuicidal self-injury: An evidence-informed
approach. Journal of Cognitive Psychotherapy, 26, 348–364. doi:10.1891/0889-
8391.26.4.348
124
Winnicott, D. W. (1975). O brincar: uma exposição teórica. In D. W. Winnicott, O brincar
e a realidade (pp. 65-87). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado
em 1968)
125
9- IDOSOS COM DOR CRÔNICA: NÍVEL DE DEPRESSÃO E PROPOSTA DE
INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA GRUPAL
126
sintomas depressivos destes idosos que sofriam com dores crônicas, colaborando
também para a melhora de sua qualidade de vida.
Introdução
O aumento da população idosa tem despertado o interesse de vários
segmentos da ciência e da sociedade no estudo deste fenômeno que ocorre
mundialmente. Nos países mais ricos, embora já haja uma infraestrutura preparada
para atender esta população, ainda não foi possível uma adaptação completa para
dar toda a assistência necessária ao idoso. Em contrapartida, nos países pobres e em
desenvolvimento não houve nenhum tipo de preparo para receber esta população.
Assim, a escassez de recursos é muito grande e se torna ainda mais difícil dar conta
das necessidades e demandas decorrentes do envelhecimento (Mafra, 2011).
Vários órgãos governamentais são criados para dar suporte à população idosa,
como os Núcleos de Convivência do Idoso (NCI) que tem seu atendimento direcionado
ao auxílio das demandas desta população. Alguns equipamentos que prestam
serviços à população de maneira geral, também oferecem serviços específicos aos
idosos, como os Centros de Integração da Cidadania (CIC), que em parceria com as
secretarias de justiça e de saúde, oferecem serviços em diversas áreas aos idosos,
tanto na preparação de documentação, suporte para que o idoso saiba como
reivindicar seus direitos junto a outros órgãos e serviços de reabilitação física.
Entre os vários serviços prestados por estas instituições há uma grande procura
por atendimento na área da fisioterapia, pois notadamente, o período do
envelhecimento vem demarcado pelo desgaste fisiológico e ósseo. Estes desgastes
provocam dores lombares diversas, como também, problemas nos joelhos e outras
articulações que resultam em sérios prejuízos à locomoção (Rodrigues, 2010).
Outro serviço que tem se mostrado muito eficiente dentro das demandas da
população idosa, é o atendimento psicológico, que tem obtido uma grande procura,
devido aos altos níveis de depressão que os idosos têm apresentado. Em muitas
instituições, alunos dos cursos de psicologia, em caráter de estágio, ou alunos da pós-
127
graduação, como parte de suas pesquisas, têm prestado atendimento psicológico aos
idosos que participam destes núcleos (Rodrigues, 2010).
O atendimento psicológico oferecido ao idoso que sofre com os sintomas da
depressão tem se tornado uma necessidade de saúde pública, pois devido a diversos
fatores da vida cotidiana e da história clínica de cada idoso, verifica-se que cada vez
mais esta população procura os serviços de saúde apresentando esta demanda. A
clareza no diagnóstico esclarecendo qual o nível de depressão é apresentado pelo
paciente, facilita na escolha do tratamento mais indicado para cada caso e garante um
prognóstico mais positivo (Gil & Tardivo, 2010).
128
desesperança, dores pelo corpo, cansaço intenso mesmo sem que tenha realizado
alguma atividade e nas mulheres podem se agravar problemas no período menstrual.
Todos estes sintomas podem vir acompanhados de ideação suicida nos casos mais
severos da doença (Gil & Tardivo, 2010).
129
Método
Trata-se um estudo de exploratório em idosos, pois visa explorar um
problema, de modo a fornecer informações, no caso a presença de sintomas
depressivos nestes participantes, Foi realizada uma avaliação sobre aspectos
depressivos junto esses idosos, que sofrem com dor crônica, residentes em bairros
periféricos da cidade de São Paulo, os quais participavam das atividades oferecidas
em duas instituições: Núcleo de Convivência para Idosos (NCI), situada em um bairro
da zona leste e um Centro de Integração da Cidadania (CIC), situada na zona oeste.
Também se configura em estudo descritivo já que se propõe a descrever o
procedimento clínico empregado, como o atendimento breve em 12 sessões em
grupo, e os resultados obtidos no que se refere a presença e intensidade de sintomas
depressivos.
Participantes
Instrumentos e Procedimentos
Entrevista inicial:
Procedimentos
130
Geriátrica de Depressão- GDS-15. Ainda nesse encontro foi proposto um atendimento
psicológico em grupo com a duração de 12 sessões com foco nas queixas dos
participantes. Foram formados dois grupos de atendimento
Resultados e Discussão
131
Observa-se nos últimos anos que vários órgãos tem se disposto a prestar
atendimentos ao idoso em diversas áreas.
Para uma melhor compreensão da caracterização dos participantes os dados
são apresentados com as iniciais do nome, gênero, idade, estado civil, diagnóstico de
dor crônica e nível de depressão apresentado na escala GDS-15 antes da intervenção
grupal, segundo observado na Tabela 2:
132
P33 Z.L.S. FEMININO 64 ANOS CASADA ARTRITE SEVERA 11
P34 M.L.S. FEMININO 61 ANOS VIÚVA ARTRITE LEVE 6
P35 P.I.N. FEMININO 67 ANOS CASADA ARTRITE MODERADA 8
P36 R.S.F. FEMININO 71 ANOS VIÚVA DOR LOMBAR SEVERA 11
P37 M.M.C.L FEMININO 60 ANOS SOLTEIRA FIBROMIALGIA MODERADA 9
P38 S.F.E. MASCULINO 68 ANOS VIÚVO DOR LOMBAR MODERADA 8
P39 V.S.A. FEMININO 60 ANOS CASADA DOR LOMBAR SEVERA 15
P40 M.S.L. FEMININO 62 ANOS SOLTEIRA ARTRITE JOELHO SEVERA 13
A discussão nos encontros do grupo foi conduzida pelos temas que foram
selecionados no momento da triagem e apontados como fatores importantes a serem
discutidos, pois muitos dos participantes passavam por tais angústias e
questionamentos. Para cada encontro foi utilizada uma mesma sequência: abertura,
discussão, síntese da discussão e fechamento. Os participantes buscavam encontrar
estratégias para lidar com as dificuldades que envolviam seu relacionamento em
133
família causadas pela impotência que sentiam diante das dores e os sintomas de
depressão, em maior ou menor grau, que estavam vivenciando.
Na primeira sessão foi realizado o contrato das 12 sessões, houve a
apresentação de cada um dos participantes do grupo, com uma pequena narração
sobre quem eram e quais as suas expectativas para aqueles encontros. Nesta ocasião
foi apresentado pela pesquisadora quais os temas apontados na triagem tiveram
maior relevância e por esta razão seriam a base das discussões do grupo. Os temas
tiveram boa receptividade dos participantes que concordaram em abordá-los nos
encontros, uma vez que cada temática foi sugerida por eles mesmos.
Na segunda sessão foi discutido o tema: “a dificuldade de viver com dor e
desânimo para as tarefas”. Os participantes relataram que tinham muita dificuldade
em aceitar esta nova condição de limitação por conta da dor. Disseram que antes de
serem acometidos pelas dores e pela situação de desânimo que consideravam ser
uma “depressão” eram muito ativos. As idosas relataram que durante todo a sua vida
cuidavam de suas casas e seus filhos, além de trabalharem fora em empresas ou em
casas de família, e os idosos disseram que além de trabalhar como empegados a
semana inteira, quando chegava o final de semana e feriados, trabalhavam na
construção de suas casas, mas agora não conseguiam fazer nenhuma dessas
atividades.
Na terceira sessão o tema discutido foi: “a incompreensão dos familiares
diante da dor”. Neste encontro houve uma reclamação, principalmente por parte das
mulheres, que após terem envelhecido e estar sempre se queixando de dores,
passaram a ser incompreendidas por seus familiares. Disseram que tanto os filhos,
quanto seus companheiros (quando ainda os tinham morado na mesma casa)
cobravam que elas fizessem todas as tarefas da casa e quando elas reclamavam que
as dores as impediam de fazer as coisas, ouviam que era “frescura” (SIC) e não faziam
as tarefas porque não queriam.
O atendimento psicológico com foco na queixa dos participantes visou
proporcionar aos participantes um momento de escuta às suas angústias. A principal
queixa apresentada pelos idosos foi o relacionamento familiar, no qual relataram a
falta de diálogo e compreensão dos filhos e netos, quanto a esse momento de dores,
desmotivação para fazer suas atividades e a solidão que estão vivenciando nesta fase
da vida.
134
No estudo realizado por Mafra (2011) as relações familiares e os conflitos
existentes entre os membros mais jovens e os mais velhos de uma família podem se
dar devido à perda de autonomia do idoso. Neste contexto, há um desgaste e uma
sobrecarga para aqueles que ficam responsáveis pelo cuidado deste idoso, pois suas
limitações interferem em sua independência.
Na quarta sessão foi falado sobre: “o desejo de tomar menos
medicamentos”. Neste encontro os idosos manifestaram o descontentamento que
sentem em ter que tomar muitos medicamentos todos os dias. Grande parte deles
relatou tomar até seis tipos de remédios, , e ainda se queixaram das reações adversas
causadas por estes medicamentos e a necessidade de tomar medicamentos para o
estômago devido ao mal-estar que sentem.
Na quinta sessão foi discutido o tema: “a incompreensão dos filhos diante da
depressão”. Neste encontro foi relatado pelos participantes que sofrem com a reação
de seus filhos quando afirmam que não querem sair de casa ou não conseguem fazer
alguma atividade. Eles disseram que muitas vezes não sentem, se quer, o desejo de
se levantar da cama, pois sabem que ao dar início às suas atividades básicas de vida
diária (ABVD), as dores e a tristeza por viver desta maneira vão se intensificar. Os
filhos e familiares, segundo o relato dos idosos, não compreendem e cobram deles a
ajuda na realização de tarefas como: limpar a casa, lavar e passar as roupas da
família, preparar a comida e, no caso dos idosos, manutenção de coisas que possam
estar quebrados na casa.
No estudo de Rabelo e Neri (2014) ficou evidenciado que quando muitas
responsabilidades são atribuídas aos idosos, como os cuidados da casa, dos netos,
reponsabilidades financeiras, esses idosos ficam mais suscetíveis a quadros de
depressão. Mesmo com a evidência dos sintomas de depressão, muitas vezes os
filhos não percebem a gravidade da doença e continuam fazendo cobranças aos
idosos. Segundo as autoras, a sensação de perda da rede social de apoio e a falta de
suporte dos filhos faz com que os quadros de depressão diminuam ainda mais os
afetos positivos e potencialize ainda mais os afetos negativos. Desta maneira fica
ainda mais difícil que o idoso consiga sair dos quadros de depressão sem ajuda
médica, pois os distúrbios neuropáticos e as circunstâncias da vida podem agravar os
transtornos depressivos.
Na sexta sessão o tema trazido para discussão do grupo foi: “o sofrimento
diante da perda de autonomia e liderança”. A queixa dos idosos neste encontro foi
135
em relação a serem podados pelos filhos ou netos em suas decisões, tanto no que diz
respeito às questões financeiras, compra ou venda de algum bem, realização de
viagens ou algum outro tipo de procedimento médico. A grande reclamação dos idosos
é de se sentirem desrespeitados, pois alegam que sua opinião não é ouvida e que
seus filhos querem os obrigar a fazer as coisas segundo o ponto de vista deles.
No estudo realizado por Gaspar, Silva, Zepeda e Silva (2019) sobre a
autonomia do idoso, inclusive para tomar decisões que envolvam a finitude da vida e
que tratamentos paliativos esses idosos desejam ter. Para os atores a liderança do
idoso deve ser preservada, protegida e assegurada pelo Planejamento Social, pois o
idoso como cidadão de direitos deve ser ouvido e respeitado em suas decisões,
evitando assim que outros tomem as diretrizes de sua vida.
A sétima sessão teve como ponto de discussão o tema: “a falta de atenção
dos médicos quanto à sua dor”. Os idosos trouxeram em sua discussão a angústia
que sentem quando questionam aos médicos sobre o prognóstico de seu quadro de
saúde. Queixam-se da falta de respostas dos médicos sobre as medicações, e a
insistência desses profissionais interromperem a consulta. Ressentem-se do que eles
chamam falta de atenção
Para Silva et al. (2019) a sensação que os idosos têm da “falta de atenção dos
médicos” tem seu fundamento, pois a passividade que o idoso demonstra diante da
equipe médica é proveniente da representação social que se tem com relação a
medicina. Os autores ressaltam que é necessário muito cuidado com a comunicação
entre médico e paciente, pois devido a esse papel social do médico, muitas vezes as
informações não são claras e o paciente não consegue compreender o tratamento que
está realizando.
Na oitava sessão o tema discutido foi: “ser a principal renda para
manutenção da casa”. Devido ao padrão socioeconômico dos idosos atendidos, foi
observado que 90% deles residem na mesma casa que seus filhos e netos e, sendo
assim, participam na manutenção das despesas e pagamentos de contas da casa. A
queixa dos idosos consiste no fato de que tem que contribuir com todo o valor de suas
aposentadorias e pensões nas despesas da casa, e quando necessitam de dinheiro
para suprir algumas de suas necessidades, como comprar um remédio, por exemplo,
acabam por não o fazer, por já terem gastado todos os seus recursos.
Outro fator também relatado no discurso dos três participantes do gênero
masculino, foi a cobrança da família que consistia em exigir que esses idosos
136
continuassem a manter a casa financeiramente como na época em que trabalhavam.
Eles afirmam que por conta das dores que sentem não conseguem realizar trabalhos
extras que poderiam aumentar sua renda mensal, e o que recebem de aposentadoria
não supre as necessidades, isto aumenta sua sensação de impotência e tristeza
diante desta situação., como ressaltado por Soares & Caponi,( 2011).
Esta queixa dos idosos com relação as dificuldades no relacionamento familiar
envolvendo questões financeiras também foi observada no estudo de Rabelo e Neri
(2014), como um fator que prejudica as interações sociais e intergeracionais. Em seu
estudo foi verificado que os avós além de serem responsáveis em dar suporte
emocional à família, muitas vezes também arcam como as despesas, fazendo uso do
dinheiro da aposentadoria para o sustento da família
Esses dados corroboram a pesquisa de Tavares, Teixeira, Wajnman e Loreto
(2011), na qual também foi tratada a questão do idoso aposentado como mantenedor
de suas famílias. O estudo foi realizado com idosos aposentados de Viçosa-Minas
Gerias, os quais representavam a única renda com a qual a família poderia contar
para suprir todas as suas despesas. Os autores ressaltam que fatores como o
desemprego dos filhos, salários muito baixos, entre outros fatores, são os
responsáveis por ter na aposentadoria do idoso a principal fonte de renda da família,
assim como visto na pesquisa de Rabelo e Neri (2014
Na nona sessão o tema discutido foi: “a interferência dos filhos em sua vida
afetiva”. Dos 40 idosos que participaram da pesquisa, 13 idosos do NCI e 12, do CIC
de ambos os gêneros declararam ser viúvos, divorciados ou solteiros. Os idosos que
gostariam de reconstruir sua vida afetiva, sentem este direito desrespeitado, pois seus
filhos interferem nos relacionamentos, chegando a impedi-los de namorar. Os
participantes que relatam esta queixa dizem que um dos fatores que mais afeta os
filhos é a partilha dos bens que incluiria este novo membro. Por sua vez, os filhos
alegam não concordar com a nova união porque as prováveis companheiras ou
companheiros escolhidos por seus pais, têm metade de sua idade e estão com eles
apenas por interesse financeiro
Na décima sessão foram retomados os temas discutidos nas sessões
anteriores e foram ressaltados os pontos que provocam maior angústia nos
participantes. Neste momento também, deu-se início à preparação para término dos
encontros em grupo que aconteceria dali há duas semanas.
137
Na décima primeira sessão os idosos retomaram em seus relatos alguns
problemas que estavam vivenciando e, inclusive, já tinham sido tema das discussões
do grupo e foram convidados a realizar a reaplicação da escala de Depressão
Geriátrica GDS-15, visando investigar se houve alguma alteração nos resultados após
a intervenção.
Na decima segunda sessão foi realizada uma devolutiva aos participantes, na
qual foi falado de maneira geral sobre os resultados dos instrumentos. Foi dito que
houve diferença entre os resultados das escalas de depressão antes e depois da
intervenção, com resultados positivos no final das sessões, e por fim, neste encontro
foi realizado o encerramento dos atendimentos e agradecida a participação dos idosos
neste estudo.
Após analisada a segunda aplicação da escala de depressão geriátrica GDS-
15, foi possível confrontar os resultados antes e depois dos atendimentos psicológicos
e para maior compreensão destes resultados a Figura 3 apresenta os resultados da
primeira e da segunda aplicação:
138
P22 A.J.S. F 65 CASADA DOR LOMBAR NORMAL 4 NORMAL 3
P23 L.M.C.C. F 60 SOLTEIRA DOR LOMBAR MODERADA 8 MODERADA 8
P24 R.C.M. F 60 SOLTEIRA FIBROMIALGIA NORMAL 4 NORMAL 2
P25 M.T.C.S. F 66 DIVORCIADA ARTRITE PÉS NORMAL 3 NORMAL 3
P26 G.L.S. F 60 CASADA DOR LOMNAR NORMAL 2 NORMAL 2
P27 O.P.S. F 70 VIÚVA ARTRITE JOELHO MODERADA 9 MODERADA 8
P28 M.N.L. F 70 CASADA DOR LOMBAR MODERADA 8 LEVE 7
P29 L.S.N. F 69 SOLTEIRA DOR LOMBAR LEVE 7 NORMAL 5
P30 E.M.M. F 64 SOLTEIRA ARTRITE LEVE 6 LEVE 6
P31 I.S.S. F 60 CASADA FIBROMIALGIA LEVE 7 NORMAL 6
P32 T.C.L. F 60 SOLTEIRA DOR LOMBAR SEVERA 10 MODERADA 9
P33 Z.L.S. F 64 CASADA ARTRITE SEVERA 11 SEVERA 11
P34 M.L.S. F 61 VIÚVA ARTRITE LEVE 6 NORMAL 4
P35 P.I.N. F 67 CASADA ARTRITE MODERADA 8 MODERADA 8
P36 R.S.F. F 71 VIÚVA DOR LOMBAR SEVERA 11 SEVERA 11
P37 M.M.C.L F 60 SOLTEIRA FIBROMIALGIA MODERADA 9 MODERADA 9
P38 S.F.E. M 68 VIÚVO DOR LOMBAR MODERADA 8 LEVE 7
P39 V.S.A. F 60 CASADA DOR LOMBAR SEVERA 15 SEVERA 13
P40 M.S.L. F 62 SOLTEIRA ARTRITE JOELHO SEVERA 13 SEVERA 10
139
dificultando assim, o tratamento desta doença. Para Vitorino, Paskulin e Vianna
(2013), o isolamento do idoso não ocorre apenas no convívio em família, muitos idosos
que se encontram internados em Instituições de Longa Permanência (ILPI) também
apresentam este tipo de comportamento.
Os autores ressaltam que estar vivendo em sociedade é um sinal claro de que
o indivíduo possui uma boa saúde mental, por isto é muito comum que estes idosos
que optam pelo isolamento social apresentem sintomas de depressão de forma mais
acentuada. É necessário que o idoso saiba que tem e pode contar com uma boa rede
social de apoio que deve ser composta por familiares, amigos e pessoas que tenham
interesses em comum, como acontece nos núcleos de convivência e outros lugares
nos quais se reúnem.
No término das sessões de atendimento psicológico, foi relatada pelos
participantes a importância de terem um momento de escuta de suas angústias e o
quanto foi importante poderem dividir suas experiências com os outros membros do
grupo e saber que mais pessoas passam por situações semelhantes as deles. Para
Cordioli (2008), um dos fatores primordiais para um bom resultado do atendimento
psicológico em grupo é a adesão de seus participantes e a motivação com a qual eles
se dispõem a trazer suas histórias, possibilitando a troca de vivências entre eles.
Considerações Finais
Instituições que prestam atendimento a idosos como o NCI e o CIC têm
prestado um serviço essencial à sociedade possibilitando que esta população tenha
um atendimento de qualidade na área da Psicologia. Esta oportunidade de trabalho
torna-se um campo valioso de atuação, pela diversidade dos diagnósticos
apresentados e a possibilidade da utilização de diferentes técnicas que podem ser
adotadas no setting analítico.
Foi observado que participar do grupo de atendimento trouxe à maioria dos
idosos uma boa melhora nos sintomas da depressão e com isso, puderam também
desenvolver estratégias mais eficazes para lidar com os quadros de dor crônica que
sentiam. Muitos idosos manifestaram o desejo de continuar participando de
atendimentos psicológicos em grupo e, havendo a possibilidade, atendimentos
individuais também, pois viram o quanto é importante poder falar de suas angústias
sabendo que um psicólogo estava ali para lhes dar suporte.
140
Pode-se concluir que o atendimento psicológico foi importante importância para
a melhora nos sintomas depressivos apresentados por estes idosos que sofriam com
dores crônicas, colaborando também para o aumento de sua qualidade de vida.
Diante disto, se evidencia a necessidade de um olhar especial às questões do
envelhecimento e que se ofereça um atendimento psicológico a esta população.
Sugere-se que sejam feitas outras pesquisas, como também, a comparação com
idosos atendidos em outras instituições e com outras demandas.
Referências
Almeida, O.P.; & Almeida, S. A. (1999). Confiabilidade da versão brasileira da Escala
de Depressão Geriátrica (GDS) versão reduzida. Revista Arq. Neuropsiquiatria.
Vol.57, n. 2-B, p. 421-426. Recuperado de
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-
282X1999000300013
Gaspar, R.B.; Silva, M.M.; Zepeda, K.G.M.; & Silva, I.R. (Out./2019). O enfermeiro na
defesa da autonomia do idoso na terminalidade da vida. Revista Brasileira de
Enfermagem. Vol.72, n, 6, p. 1717-1724. Brasília. Recuperado de
http://www.scielo.br/pdf/reben/v72n6/pt_0034-7167-reben-72-06-1639.pdf
Gil, C. A. (2010). Recordação e Transicionalidade: A Oficina de Cartas, Fotografias e
Lembranças como intervenção psicoterapêutica grupal com idosos. Tese de
Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
141
Pensando Famílias. Vol.18, n, 1, p. 138-153. Recuperado de
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/penf/v18n1/v18n1a12.pdf
Tavares, V.O.; Teixeira, K. M. D.; Wajnman, S.; & Loreto, M. D. S. (Jan./Jul. 2011).
Interfaces entre a renda dos idosos aposentados rurais e o contexto familiar.
RevistaTextos & Contextos. Vol. 10(1). p. 94 – 108. Porto Alegre, Recuperado
de https://www.redalyc.org/pdf/3215/321527168008.pdf
142
10- A PERCEPÇÃO DA ADOLESCÊNCIA POR ADOLESCENTES QUE SE
AUTOLESIONAM13
INTRODUÇÃO
A identidade adulta vai se formando conforme o adolescente vai perdendo sua
condição de criança e, consequentemente, sua identidade infantil. Nesse processo,
as imagens parentais introjetadas, proporcionadas pelo mundo externo satisfatório,
ajudará o adolescente a elaborar as crises internas pelas quais passa e que
acontecem por ser essa uma etapa marcada por constantes desequilíbrios e
instabilidades (Winnicott, 1987/2002; Erikson, 1968/1976; Aberastury, 1983; Tardivo,
2007).
As crises vivenciadas pelos adolescentes nesse período apresentam
características específicas (por exemplo, indecisões, inquietações, entusiasmos
13
Trabalho realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001
143
versus desânimos repentinos), as quais Knobel (Aberastury & Knobel, 1981;
Aberastury, 1983) denominou “síndrome normal da adolescência”, definida por
expressões de comportamentos comuns aos adolescentes, dentre eles, a tendência
grupal e a busca da identidade e de um si mesmo claramente definidos. Sobre a
tendência grupal, Dolto (1990) afirma que essa está presente em quase todos os
adolescentes e funciona como uma forma de complementaridade, assim como de
obter segurança, equilíbrio e neutralidade.
A tendência a grupal marca a separação entre o adolescente e os pais. No
entanto, o adolescente ainda precisa muito dos pais, justamente por ser um período
no qual o jovem é capaz de interessar-se por si mesmo e continuar existindo para si,
possibilitando-o a flutuação entre a independência rebelde e a dependência regressiva
(Winnicott, 1961/2011). Dessa forma, Aberastury (Aberastury & Knobel, 1981) escreve
que, quando não é possível ao adolescente o ambiente facilitador, este pode sentir-se
ameaçado. Tardivo (2007) acrescenta que o adolescente que experiência um
ambiente não suficientemente bom pode sentir-se vulnerável e os conflitos serão mais
intensos, estando mais suscetível a condutas hetero e autoagressivas, como a
drogadição e outros perigos.
Os conflitos da adolescência, associados a vivência em um ambiente (social e
familiar) com uma estrutura fragilizada permite observar adolescentes em
comportamentos de risco, tais como os comportamentos autolesivo (Nock, Joiner,
Gordon, Lloyd-Richardson e Prinstein, 2006), o qual é mais frequente no já no início
da adolescência (American Psychiatric Association, 2014; Giusti, 2013; Brown &
Plener, 2017). Estudos recentes comprovam que esse comportamento ocorre em
meio aos conflitos vivenciados pelos adolescentes, ligados à experiência de viver em
uma sociedade com estruturas enfraquecidas (Tardivo et al, 2019).
Dentro desse contexto, muitos autores buscam fatores que possam estar
relacionados ao comportamento. Entre os aspectos mais descritos, encontra-se os
eventos negativos ao longo da vida do sujeito e adversidades familiares;
características pessoais do adolescente; fatores psicológicos e psiquiátricos e fatores
sociais (bullying, mídia, internet, dificuldade de relacionamento e amigos com o
mesmo comportamento) (Yip, 2005; Giusti, 2003; Hawton, Saunders & O’Connor,
2012; Silvia & Botti, 2017; Fortes & Kother, 2017; Chaves, 2018; Bernal, 2019; Tardivo
et al, 2019).
144
Sendo assim, é importante pensar as lesões corporais intencionais como um
sinal da aflição que esses adolescentes vivem (Le Breton, 2010). Bernal (2019),
também apresenta o comportamento autolesivo como uma pista das aflições, um
pedido de ajuda. A autora escreve em seu trabalho sobre a ausência do Outro, a falta
de um espaço de ressonância no qual o adolescente possa ser compreendido, tendo
como consequência a impossibilidade de encontrar palavras para comunicar o
sofrimento, restando ao adolescente mostrar, ao invés de dizer, sendo os cortes um
apelo, uma comunicação primitiva.
A partir do exposto, compreende-se que a adolescência é uma etapa de grande
importância no desenvolvimento, além de ser um estágio de grandes conflitos
(Erikson, 1968/1976), que apresenta aspectos esperados do desenvolvimento do
adolescente (Winnicott, 1961/2011e 1968/ 2005; Erikson, 1968/1976; Aberastury,
1983; Dolto, 1990, Tadivo, 2007), por exemplo, a “síndrome normal da adolescência”
(Aberastury, Knobel, 1981 ), mas também comportamento que são preocupantes por
colocar a vida dos jovens em risco (Nock, Joiner, Gordon, Lloyd-Richardson e
Prinstein, 2006 ), dentre eles a autolesão, comportamento que vem aumentando no
Brasil e em todo o mundo (Brasil, 2013 e 2017; Giusti, 2013; American Psychiatric
Association, 2014 ).
Diante às questões que relacionam motivos e fatores de risco para
comportamentos prejudicais, dentre eles aspectos que dizem respeito ao próprio
indivíduo (insegurança, ansiedade, depressão, sentimento de culpa, dentre outros), a
falta de um ambiente suficientemente bom (tanto na esfera familiar quanto na social),
e que não possibilita a comunicação do sofrimento, é importante compreender como
os adolescentes, que utilizam da autolesão uma forma de expressar as angústias que
vivem, percebem a adolescência nos dias de hoje.
OBJETIVOS
Compreender a percepção da adolescência, atualmente, sob a perspectiva de
adolescentes que apresentam comportamento auto lesivo.
MÉTODO
Tipo de estudo
A pesquisa utilizou como fundamento a Metodologia da Pesquisa Clínico-
Qualitativa, definida por Turato (2000) como o estudo “de um conjunto de métodos
145
científicos, técnicas e procedimentos, adequados para descrever e interpretar os
sentidos e significados dados aos fenômenos e relacionados à vida do indivíduo”
(p.96). Por se tratar de um estudo com três participantes, utiliza também método de
pesquisa de múltiplos casos, o qual propicia o enriquecimento pelas diferentes
percepções e experiências dos indivíduos que estão no mesmo lugar e ao mesmo
tempo (Stake, 2011).
Participantes
O estudo contou com três adolescentes, duas com 14 anos e uma de 15 anos.
Todas as participantes iniciaram o atendimento psicoterapêutico devido ao
comportamento autolesivo.
Procedimentos e instrumentos
Todas as participantes desse estudo eram integrantes de um grupo de Oficinas
Psicoterapêuticas para adolescentes, realizados em um serviço de integração à
cidadania, mantido pelo Governo do Estado de São Paulo. Essas Oficinas são um
modo de atendimento clínico diferenciado, realizado em grupo, no qual o
psicoterapeuta busca, por meio da sustentação, acolhimento (holding) e dos
conteúdos que surgem no grupo, criar um ambiente suficientemente bom, que
favoreça a expressão do viver para a retomada do crescimento emocional dos sujeitos
em sofrimento (Tardivo, 2009).
Visando facilitar a expressão do viver e a comunicação emocional, as Oficinas
Psicoterapêuticas propõe o uso de materiais mediadores de diferentes naturezas
(materiais gráficos, fotos, entre outros), os quais funcionam como mediadores das
experiências emocionais que podem ser expressas criativamente, possibilitando ao
paciente sentir-se vivo, amadurecendo emocionalmente e, assim, reconhecer-se
como indivíduo (Tardivo & Bonfim 2007; Ambrósio, Aiello-Fernandes & Aiello-Vaisber,
2012).
No grupo trabalhado nesta pesquisa foi utilizado como mediadores materiais
gráficos. No primeiro encontro, foi solicitado um desenho diretivo, trabalhando-se com
a técnica do Desenho Temático, derivado do Procedimento de Desenhos-Estórias
(Trinca, 1997), o qual serviu de disparador para os encontros seguintes. Para esse
encontro foi solicitado que os adolescentes fizessem um desenho com o tema “Um
adolescente em São Paulo hoje”, ou seja, cada um deveria realizar um desenho do
146
tema e, em seguida, foi solicitado que o próprio participante escrevesse uma história
ou associação. Neste trabalho serão apresentados os Desenhos Temáticos
produzidos por três adolescentes com comportamento autolesivo que participaram
das Oficinas.
RESULTADO
Conhecendo as participantes14
Jucélia, 15 anos
A mãe da adolescente buscou atendimento porque mesma estava muito mais
quieta do que de costume, sem interação com outras pessoas, ficava trancada no
quarto e havia se cortado “para aliviar a tristeza que estava sentindo por causa do pai”
(SIC). A adolescente mora com sua mãe, padrasto e irmãos. Os pais se separam
quando ela era pequena e com o decorrer dos anos, o pai foi se afastando até
perderem definitivamente o contato. A paciente relata ainda ouvir vozes e ver olhos
que a mandam “fazer coisas ruins” (SIC), com o colocar fogo na casa, se cortar e até
tirar a própria vida. Durante os primeiros contatos, Jucélia apresenta também as
dificuldades que enfrenta na família, pois a mãe não confia nela para deixá-la sozinha
em casa e Jucélia não gosta que a mãe conte sobre seus problemas para a família,
pois todos acreditam que o que ela sente, ouve e vê seja por “falta de Deus” (SIC).
Também relata sobre situações de bulliyng e rejeição por parte dos colegas da escola.
Carmen, 14 anos
A mãe de Carmen procura atendimento por ter observado uma mudança no
comportamento da filha, que está mais calada, fechada no quarto, não compartilha
com o que está acontecendo, e há duas semanas esses comportamentos pioraram,
acrescidos de choro fácil e insônia. A paciente teve episódios de corte em momentos
que diz sentir algo que não sabe explicar, mas que sente muito raiva de tudo o que
aconteceu com ela (referindo-se ao pai) e que os cortes a faz sentir mais aliviada e a
dor da inflação é compreendida como um “dor boa” (SIC), pois ajuda a não entrar em
contato com o sofrimento. A adolescente mora com a mãe e o padrasto. Os pais se
separaram quando a adolescente tinha cerca oito anos e, segundo a mãe, o pai é
distante. Carmen e o pai não se falam há quatro meses, o que a faz sofrer, pois
147
gostaria que ele fosse mais presente e se preocupasse mais com ela. Quanto a vida
escolar, a adolescente diz que sofreu bullying na escola quando mais nova.
Marina, 14 anos
A mãe relatou, em tom agressivo, que Marina está quieta e chorando com
facilidade, que só quer ficar no celular e não faz nada que a mãe manda com relação
aos serviços domésticos. Diz que sempre tem que ir buscar a filha na escola, porque
ela “passa mal” (SIC) (sintomas de ansiedade e comportamento autolesivo). Marina
passou a se cortar há um ano para aliviar algo que não sabe nomear. Quando a mãe
descobriu os cortes, brigou com a filha que passou a se cortar nas nádegas a fim de
esconder o ato da mãe. A adolescente mora com os pais e tem um irmão que não
mora mais com eles. Marina diz que com a mudança do irmão “sobrou tudo” (SIC)
para ela, referindo-se às brigas dos pais, pois o pai é alcoólatra e, quando bebe, briga
muito com a mãe e os filhos tentam protegê-la. Ambos brigam muito com os filhos e o
pai menospreza o sofrimento da filha, dizendo que é frescura, e a mãe corrobora,
falando que ela “tem que parar com isso” (SIC). Quanto à vida escolar, a adolescente
diz que conversa com todo mundo, mas que os colegas menosprezam as angústias
dela, dizendo que não aguentam mais o jeito dela: uma hora está “normal” (SIC) e na
outra, “mal” (SIC).
148
apresentando uma moça que estava feliz, mas a sociedade a julgou tanto, que ela se
fechou.
Questionadas sobre qual título poderiam dar para suas produções, pensando
no desenho e na associação, Carmen, coloca como tema de seu desenho: “os
problemas pessoais, tanto os do próprio adolescente quanto o dos outros, mas que
interferem na vida do adolescente e as consequências que esses problemas
acarretam” (SIC). Marina diz que o tema do desenho dela é sobre conflitos familiares
e Jucélia não fala nada.
DISCUSSÃO
O primeiro encontro, utilizando como material o Desenho Temático, permitiu
uma compreensão global de como as integrantes do grupo compreendem a fase que
estão vivendo. Os desenhos, as associações que fizeram dos mesmo e os temas
conversados durante essa sessão apontam para uma questão importante para todos
eles: o mundo como um lugar não suficientemente bom. As produções apresentam
149
conflitos em todos os ambientes (casa, escola e sociedade) o que, segundo elas,
geram demasiados problemas para o adolescente.
O ambiente sentido como repleto de falhas é um dos fatores descrito pelos
autores para a compreensão da autolesão e que também foi apresentado na produção
do Desenho Temático das três adolescentes. Esse ambiente compreende desde os
conflitos familiares, como a ausência ou negligência de um dos pais (como apontam
Carmen e Jucélia, que se sentem abandonadas pelo pai) e graves problemas na
estrutura da família (como na de Marina, que o pai alcoólatra ocasiona conflitos
severos a todos os membros) (Yip, 2005, Hawton, Saunders & O’Connor, 2012, Giusti,
2003, Silvia; Botti, 2017 & Tardivo, et al, 2019). Quanto aos conflitos familiares, as
adolescentes ainda acrescentam a falta de atenção e/ ou incompreensão sentida dos
pais no que diz respeito às angústias das filhas.
Essa incompreensão também é identificada na relação com os colegas da
escola, por exemplo quando a Marina diz que os amigos não aguentam o jeito dela.
Além desse fator, no que diz respeito à escola, as três participantes relataram já ter
sofrido bullying em algum momento da vida escolar. Esse é um ponto importante, pois
os autores trabalhados na introdução apontam para a importância do grupo e pares
para o adolescente, por oferecer segurança, equilíbrio e neutralidade (Aberastury &
Knobel, 1981; Dolto, 1990). No entanto, o bullying impede que o adolescente possa
confiar nesse ambiente e, consequentemente, se afastam dos grupos, têm poucos
amigos, não tendo quem possa oferecer os benefícios descritos pelos autores,
sentindo-se sozinhos.
As participantes também demonstraram que, para elas, o adolescente hoje vive
em uma sociedade da qual não se pode confiar, que os julgam, cobram e os deixam
doentes. Retomando Tardivo (2007), o adolescente que experiência um ambiente não
suficientemente bom, como o apresentado pelos participantes, está mais propício a
drogadição e outros perigos, pois a falta de um ambiente facilitador pode levar o
adolescente a se sentir ameaçado, vulnerável e dificultar a tarefa da busca pela
identidade adulta (Aberastury; Knobel, 1981; Tardivo, 2007).
Outro dado apresentado pelas adolescentes é como o jovem enfrenta todos
esses conflitos e como se colocam diante do mundo: com o “sorriso falso”. O “sorriso
falso” apareceu na produção de Marina, quando ela expõe suas angústias (que não
podem ser manifestadas, ou que não são compreendias) e para que ninguém perceba
150
seu sofrimento, está sempre sorrindo. Carmen concordou com o termo usado por
Marina, dizendo que tem o mesmo comportamento.
Com essa informação, parece que as participantes estão querendo mostrar que
sentem que não é possível ao adolescente ter seu próprio movimento, ou o gesto
espontâneo, pois precisam sempre corresponder à necessidade do outro, enquanto
às suas não são atendidas. Winnicott (1964/1982) escreve que, na ausência de um
ambiente suficientemente bom (do qual as adolescentes apresentaram sentir falta) a
criança oculta seu Eu verdadeiro e cala seu gesto espontâneo, na tentativa de se
defender das falhas do ambiente, sendo esse o estágio inicial do Falso Self.
A falta de um espaço para ser compreendido e ter suas necessidades atendidas
é apresentada por Bernal (2019), ao escrever sobre a importância do Outro na relação
com o adolescente, por Chaves (2018) ao reconhecer a relevância do ambiente para
a restauração do sentimento de confiança e de esperança no caso de uma
adolescente que se autolesionava e por Bernardes (2015) que aponta para a
necessidade de visibilidade observada nos adolescentes que se cortam, sendo a
autolesão um meio de perda de contato com o ambiente considerado hostil e sem
possibilidade de diálogo. Assim, frente a impossibilidade de comunicar o sofrimento,
resta ao adolescente apenas mostrá-lo, como acontece na autolesão, sendo esse
comportamento um indicativo das angústias que sente (Le Breton, 2010; Tardivo et al,
2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi possível observar pela produção das três adolescentes participantes que,
para elas, o adolescente que vive em São Paulo nos dias atuais é um indivíduo
cercado de situações conflituosas com o ambiente, seja no âmbito familiar, escolar ou
social. No que diz respeito à autolesão, esse dado também foi encontrado nos
trabalhos científicos e teorias apresentadas na introdução, confirmando a percepção
das adolescentes sobre suas vivências.
Isto posto, é notório o quanto é importante também para o adolescente a
vivência em um ambiente suficientemente bom, conforme apontado por Winnicott, no
qual os vínculos afetivos favorecem a continuidade do desenvolvimento. Sendo assim,
a falta desse ambiente, como apresentada pelas adolescentes, têm levado a prejuízos
no desenvolvimento, como o envolvimento em comportamento de risco, tais como a
autolesão.
151
REFERÊNCIAS
Aberastury, A.; Knobel, M. (1981). Adolescência normal – um enfoque psicanalítico.
Porto Alegre: Ed. Artmed
152
Fortes & Kother, 2017;
Hawton, K.; Saunders, K.; Rory C O'connor, R (2012). Self-harm and suicide in
adolescents. The Lancet, v. 379, Issue 9834, 23–29 June, p. 2373–2382
Nock, M.K.; Joiner Jr, T.E.; Gordon, K.H.; Lloyd- Richardson, E.; Prinstein, M.J. (2006).
Non-suicidal self-injury among adolescents: Diagnostic correlates and relation to
suicide attempts. Psychiatry research, 144 (1), 65-72. Recuperado de
doi:10.1016/j.psychres.2006.05.010
Tardivo, L.S.L.P.C., Ferreira, L.S., Alhanat, M., Chaves, G., Rinaldi, H.R. Pinto Junior,
A. A., Belisario, G.O. (2019). Self-injurious behavior in preadolescents and
adolescents: self-image and depression. Paripex – Indian Journal of research. v.8, 6,
p. 1-5.
153
Winnicott, D. W. (1961/2011). Adolescência. Transpondo a zona das calmarias. In:
Winnicott, D. W. (2011). A família e o desenvolvimento individual. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2011. p. 115 – 127.
154
11- O TAT NA COMPREENSÃO DOS ASPECTOS PSICOLÓGICOS DE UMA PRÉ
ADOLESCENTE VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR
Resumo: A literatura aponta que o abuso sexual infantil é como uma vivência que traz
graves consequências psíquicas para a vítima. Diversos sentimentos emergem dessa
experiência. Este artigo objetivou apresentar o uso do Teste de Apercepção Temática
(TAT) com vistas a analisar os aspectos psicológicos uma pré-adolescente que sofreu
violência sexual intrafamiliar, confirmando os dados apontados pela literatura sobre
vítimas de abuso intrafamiliar. O TAT revelou os sentimentos da menina de
isolamento, autodesvalorização, de ambivalência em relação a um ambiente hostil que
não a compreende, não a protege e nem acolhe. Denota sentimentos ambivalentes e
dificuldades no estabelecimento da identidade. O TAT mostrou-se sensível no caso
apresentado, revelando aspectos psicológicos cujos efeitos resultaram em quadro
depressivo com ideação suicida e conduta auto lesiva. Assim o caso demandou
atenção psicológica que foi oferecida à jovem e à sua mãe. Sugere-se que mais
estudos sejam feitos, de forma que se possa desenvolver intervenções que possam
minorar as consequências graves que o abuso sexual intrafamiliar acarreta para o
desenvolvimento e saúde mental das vítimas.
INTRODUÇÃO
De acordo com a OMS (1999), a violência sexual cometida contra crianças e
adolescentes é um problema de saúde pública, dada a sua alta frequência e as graves
sequelas, físicas e psíquicas, para a vítima e sua família. Caracteriza-se por
comportamentos realizados com fins sexuais, prejudiciais ao corpo e mente do sujeito
violentado, desprezando os direitos e garantias preconizadas pela Lei nº 8.069/90 –
155
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que visam a proteção e o cuidado à
criança e ao adolescente (BRASIL, 1990, Artigos 7º, 15, 16, 17 e 19).
Dados do Disque 100 apontam que, em 2018, foram registradas um total de
17.093 denúncias de violência sexual contra menores de idade. A maior parte, 70%,
refere-se a abuso sexual infantil intrafamiliar, isto é, aquele perpetrado por algum
conhecido da criança e/ou adolescente, caracterizando-se como incesto. Em geral, os
casos de abuso sexual ocorrem com maior frequência em meninas.
Florentino (2015) aponta que o incesto é uma das formas de violência sexual
infligida à criança e adolescente mais comumente praticada em nossa cultura, cuja
duração tende a ser longa e pode se dar com o conhecimento e/ou consentimento de
outras pessoas da família. Em sua revisão da literatura, o autor aponta as potenciais
implicações decorrentes de tal circunstância, desvelando as graves, extensas e
diversas sequelas nos sujeitos por ela vitimados, especialmente em nível psíquico.
Segundo Tardivo, Pinto Júnior e Santos (2005), as consequências do incesto
são devastadoras para a vítima, “a transgressão do incesto implica na perturbação da
noção de identidade e outros distúrbios de personalidade e de adaptação social” (p.
60). Pinto Júnior, Lopes, Pinheiro, Ortiz e Oliveira (2012) apontam, ainda, que a
violência sexual que ocorre dentro do contexto familiar apresenta determinantes
históricos, sociais e psicológicos específicos, exigindo, portanto, uma compreensão
profunda dessa dinâmica.
De acordo com Furniss (1993), o grau de severidade dos efeitos do abuso
sexual varia de acordo com a idade da criança no início do abuso sexual, duração do
abuso, o grau da violência, a diferença entre idade e o grau de parentesco entre a
pessoa que cometeu o abuso e a vítima, a ausência das figuras parentais protetoras
e de apoio social, o grau de segredo e ameaças. Outros fatores são acrescentados
comprometendo a saúde emocional, como os tipos de atividade sexual; dissolução da
família depois da revelação e negação do perpetrador de que o abuso aconteceu
(Amazarray e Koller, 1998).
No que tange ao contexto familiar, Habigzang, Ramos e Koller (2011),
ressaltam que a família tem sido repetidamente apontada como o lugar mais íntimo
de proteção para o ser humano, oferecendo relações constantes e estáveis de
reciprocidade. No entanto, nem sempre esta é a realidade. Alguns ambientes
domésticos têm sido palco de frequentes e severos sofrimentos e de exposição ao
risco. Além disso, esta atitude da família contribui para a crença da criança de que ela
156
é a responsável pela violência e não os agressores. Apesar de acreditar na revelação
da criança, muitas famílias não apresentam uma postura protetiva. Isto se deve a
diferentes situações: medo de outras formas de violência pelos agressores, falta de
conhecimento das leis de proteção à criança e banalização da violência, entre outras.
Ainda, de acordo com Tardivo, Pinto Júnior e Santos (2005) e Pinto Júnior et
al. (2012), muitas são as dificuldades enfrentadas quanto à identificação da violência
sexual intrafamiliar, uma vez que se trata do rompimento de um conluio de silêncio
entre a vítima, o agressor e a família. Dessa forma, pode-se reconhecer que a
violência sexual se apresenta como fator de risco para o desenvolvimento de crianças
e adolescentes, sendo imprescindíveis ações que viabilizem o atendimento,
reconhecimento e auxílio a essa demanda (Tardivo, Pinto Júnior e Santos, 2005;
Tardivo, Pinto Júnior & Vieira, 2012).
No que diz respeito à atuação do psicólogo, Tardivo (2005) defende que a este
cabe uma compreensão aprofundada da situação, levando em consideração a vítima
e sua família. Para tanto, destaca a validade do processo psicodiagnóstico nesse
contexto.
No tratamento do adolescente, Zavaschi, Telelbom, Gazal e Shansis (1991)
apontam que o terapeuta deve realizar a intervenção no sentido de reverter os
sentimentos de desamparo, isolamento e autoacusação que paralisam a vítima. Cabe
a esse profissional ficar atento ao grau de desamparo e desintegração do ego, deve
orientar aqueles que convivem com a criança a acolhê-la, pois a vítima precisa sentir
que outra pessoa cuida dela. É necessário criar um clima de segurança e aceitação a
fim de que a vítima, por meio de apoio emocional, possa resgatar a autoestima e a
esperança e comece a se comunicar. Ainda, de acordo com os autores, o abuso
distorce a visão que a criança tem do que a vida lhe pode oferecer.
Tardivo (2012) aponta para o uso de instrumentos projetivos nesse contexto,
uma vez que são capazes de abarcar os meandros mais sutis de tal vivência, no
entanto, de forma qualificada e acolhedora, em que a subjetividade do indivíduo em
análise seja reconhecida e protegida. Nesse sentido, o Teste de Apercepção Temática
– TAT (Murray, 2005) mostra-se apropriado por se tratar de um instrumento que busca
revelar a atitude e a estrutura do indivíduo frente a realidade experimentada,
baseando-se em suas experiências passadas e anseios presentes (Tardivo, 2017).
Murray (2005) partiu do pressuposto de que cada sujeito iria experimentar uma
mesma situação de maneira diferente, de acordo com sua perspectiva pessoal. Esta
157
maneira pessoal de elaborar uma experiência revelaria a atitude e a estrutura do
indivíduo frente à realidade, na qual ele poderia expressar sentimentos, lembranças,
ideias. Assim, o terapeuta teria acesso à personalidade subjacente deste indivíduo.
Para Murray, a personalidade é vista como um compromisso entre os impulsos e as
demandas do ambiente. O TAT envolve a apresentação de uma série de pranchas,
selecionadas pelo examinador ao sujeito que deverá, assim, contar uma história sobre
cada uma das pranchas (Murray, 2005). A análise dos dados seguiu a denominada
“livre inspeção do material (Tardivo, 2013) a partir das orientações teóricas propostas
por Murray (2005) e por Silva (1989).
OBJETIVO
O TAT foi utilizado com a finalidade de revelar aspectos psicológicos, em
especial, as relações afetivas com as figuras parentais internalizadas e sobre o
estabelecimento da identidade. Assim visou compreender como a adolescente se
coloca diante da realidade vivida e como ela se relaciona com as pessoas e o mundo.
MÉTODO
A investigação foi realizada a partir do método clínico-qualitativo, o qual se
caracteriza por se debruçar sobre a compreensão dos significados - conscientes e/ou
inconscientes - atribuídos às experiências (Turato, 2000), comum às pesquisas de
cunho qualitativo. Trata-se da apresentação de um caso de uma adolescente vítima
de abuso sexual intrafamiliar, atendida no Projeto APOIAR.
Utilizou-se como instrumento, neste trabalho, o TAT. São apresentados alguns
dos relatos feitos por uma adolescente vítima de abuso sexual: as pranchas 1, 2, 3,
7MF, analisadas segundo a proposta de Silva (1989) e Murray (2005). Esta escolha é
feita em função dos conteúdos temáticos evocados por essas pranchas.
Segundo Murray (2005), a prancha 1 é considerada como aquela a ser sempre
aplicada no início por não representar uma situação ameaçadora. A prancha procura
também entender como o sujeito se relaciona com questões de autoridade, bem como
com suas expectativas de futuro. Na prancha 2 há um triângulo explícito, assim,
espera-se respostas edípicas, mas algumas vezes as respostas são estereotipadas.
Na prancha 3 (usada a masculina, considerada mais adequada para ambos os sexos),
geralmente as pessoas tratam dos sentimentos de tristeza, abandono e depressão; a
158
arma é pouco percebida. A prancha 7 MF foi escolhida por evocar a relação com a
figura materna, que pode ser percebida/tomada como modelo pelas adolescentes.
RESULTADOS
O CASO
Maria15 buscou atendimento psicológico para a filha, Rosa, após esta escrever
uma carta mencionando sobre a violência sexual sofrida pelo padrasto, o qual
reconhecia como pai. Na carta, a menina relata os abusos ocorridos desde os seis
anos de idade. A busca pelo atendimento se dá a partir do momento que Rosa, a
paciente, passa a se auto lesionar e apresentar ideação suicida. A idade da menina,
na época do atendimento, era de 11 anos. São apresentadas a seguir as histórias que
ela contou e a análise de cada uma.
O T.A.T.
159
Prancha 2 – A estudante no campo
A moça espera uma perua escolar. Está é a mãe (se referindo à mulher grávida)
ao lado e um homem, ele pode ser o pai, um parente ou padrasto que está cuidando
de sua horta. Ela pensa que o ônibus vai demorar ou está com raiva das pessoas que
estão atrás, porque eles têm discutido ou ela fez algo que eles interpretaram mal.
Talvez tenham mandado ela (se referindo à jovem) fazer coisas da casa, como
arrumar algum móvel que a mãe falou e ela arrumou outro. A mãe descansa porque
andou no sol e o homem está usando um cavalo para fazer a horta. A mãe discutiu
com a filha e não quer falar com ela e nem tem coragem para olhar para a filha. A
moça está trabalhando, não sei se é a palavra certa, sabe, quando as pessoas se
casam, parece que eles estão plantando alguma coisa, como alface, tomate,
cebolinha. Não estão bem porque a filha e a moça estão sérias e o moço não sei se
está sério porque não dá para ver o rosto dele. No final a filha (se referindo à jovem)
volta para a casa e volta a falar com os pais, mas, ainda tem aquela tensão.
Análise: Há esperança de ir para algum lugar, mas não crê que tem recursos,
como na prancha anterior. Relata que houve brigas no ambiente familiar e apresenta
uma mãe que está em conflito com ela. Demonstra sentimentos de raiva pela falta de
compreensão e porque a interpretaram mal, sente-se excluída. Apresenta uma mãe
cansada, hostil, que não conversa e nem olha para a filha. No momento, seguinte, ela
se identifica como a jovem que está casada, há uma troca de papel com a mãe,
havendo na verdade, confusão na identidade e desconforto e uma disputa em ocupar
este lugar. Sente-se exposta e cobrada por obrigações impostas pelos pais. Demostra
passividade, obedecendo aos desejos deles. Apresenta-se submissa e passiva na
relação familiar, mesmo existindo a rivalidade e tensão no ambiente. Coloca-se em
diferentes papéis, tomando por sua vez o lugar da mãe, atuando como esposa do
padrasto.
160
mancha de sangue no chão. Ela está deprimida por causa do marido, ela vai se
separar e viver a sua vida, sair e se cuidar. Vai pensar mais nela e não vai mais se
preocupar em fazer comida para o marido. Ele batia nela e, também a segurava forte
pelos braços, jogou ela no sofá. Nesse canto onde ela chora, tem uma faca ao lado
da tesoura, ela usava a faca para cortar para fazer comida, cortar cebola e quando o
marido bateu, ela caiu com a faca. A moça arrumou um trabalho, se separou e foi
morar com a mãe, um parente ou irmão. Separou-se e foi embora viver a vida dela.
Análise: A paciente identifica-se com a mulher fragilizada pelas agressões
físicas, sente-se desprezada jogada em um canto, humilhada, angustiada e triste.
Como forma de lidar com os sentimentos, corta o cabelo e apresenta ideação suicida.
No relato de que não tinha mancha de sangue no chão, ela pode ter cortado o pulso.
Sente-se desvalorizada e deprimida ao lidar com a separação do padrasto, como
também com a violência que sofreu. A paciente busca recursos externos, um trabalho,
mas é como se ela estivesse acoplada à vida da mãe quando retrata que se separou
e foi embora viver a vida dela.
161
Análise: A paciente tem necessidade de atenção materna, expressando
sentimentos de raiva e tristeza por não receber essa atenção. Procura uma explicação
de que a mãe talvez, tenha ido buscar meios para sanar dúvidas sobre o que o
padrasto fez no ambiente familiar como figura de marido e pai, em livros, jornal e bíblia.
Diante disso, percebe a mãe como uma figura de apoio, respaldada no ensinamento
religioso, mas, que também sempre tem outras prioridades. Traz dúvidas de como se
deu / dá o relacionamento da mãe com o padrasto. Há ambivalência nos sentimentos,
ora sente-se bem, ora triste, insegura a respeito de se o que ela fez foi certo ou errado.
Sente-se culpada pelo sentimento afetuoso que sentia pelo padrasto e como forma de
castigo não recebe a atenção que gostaria da mãe, que está sempre ocupada. Há
troca de lugar, identificando-se com a pessoa que está em dúvida diante de um
relacionamento com um homem.
DISCUSSÃO
162
estabelecimento da identidade havendo confusão e trocas de papel) , e nas relações
(Tardivo & Pinto Junior, 2010).
Em relação ao que sente pelo abusador, foi possível constatar que os
sentimentos predominantes referidos são: amor, raiva, ódio, declarando que ele fez
coisas erradas e retratando imensa ambivalência, quando descreve que o pai traz
lembranças de coisas boas e ruins. Além da culpa quando relata, na descrição da
casa: está tudo arruinado e a culpa de tudo também é do meu pai. Foi possível
observar sentimentos de perdas e, ainda coação em ter que assumir subjetivamente
e objetivamente outros papéis na relação familiar, contribuindo para que ainda se
sentisse culpada pelas vivências sofridas. Tais sentimentos foram trazidos por Tardivo
et al. (2005; 2007; 2008) e por Pinto Junior et al. (2012).
A importância da proteção familiar foi apontada por Habigzang et al. (2011). A
vítima de abuso sexual precisa saber que não tem culpa, pois, nenhum
comportamento adolescente tem a ver com o abuso sofrido, seja ele de qualquer
natureza, intrafamiliar ou extrafamiliar. Independente do âmbito que ocorrer, essas
situações traumáticas produzem reações fisiológicas e emocionais na vítima que traz
referências a “sentirem-se abandonadas, sozinhas e sem esperança. O atendimento
deve ser no sentido já exposto por Zavaschi, et al. (2001), de modo a reverter tais
sentimentos e, por meio de apoio emocional, resgatar a autoestima e a esperança.
CONCLUSÃO
O presente estudo teve como objetivo principal apresentar o teste TAT e a
contribuição da sua análise para compreensão do adolescente vítima de abuso sexual,
o que foi atingido. O TAT revelou os sentimentos da menina de isolamento,
autodesvalorização, de ambivalência em relação a um ambiente hostil que não a
protege.
Entre adolescentes, é comum a presença de quadros depressivos, isolamento
e autodesvalorização. O atendimento dessas vítimas deve favorecer que o
adolescente se defronte com as fantasias, pensamentos e busque uma melhor
compreensão e apoio diminuir o impacto traumático, facilitando a verbalização dos
sentimentos e prevenindo comportamentos autodestrutivos como abuso de droga,
tentativas de suicídio, entre outros.
É de suma importância o desenvolvimento de estudos acerca dos aspectos
psicológicos decorrentes do abuse sexual a longo prazo para compreensão das
163
demais variáveis desse fenômeno e a possibilidade de superar os traumas por ele
causados. O TAT mostrou-se sensível para esse estudo no caso apresentado,
revelando aspectos psicológicos cujos efeitos resultaram em quadro depressivo com
ideação suicida e conduta auto lesiva. Assim o caso demandou atenção psicológica
que foi oferecida à jovem e à sua mãe.
Sugere-se que outras investigações sejam realizadas com um número maior
de casos, em diferentes ambientes, a fim de que, se conhecendo melhor o fenômeno,
seja possível intervir para minorar as consequências tão graves que o abuso sexual
intrafamiliar acarreta para o desenvolvimento e saúde mental das vítimas.
REFERÊNCIAS
164
Tardivo, L. S. L. P. C., Pinto Junior, A. A., & Santos, M. R. (2005). Avaliação
psicológica de crianças vítimas de violência doméstica por meio do Teste das
Fábulas de Düss. Psic: revista da Vetor Editora, 6(1), 59-66. Recuperado em 20
de outubro de 2019, de
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-
73142005000100008&lng=pt&tlng=pt.
Tardivo, L. S. L. P. C. (2008). Violência Doméstica: Aspectos Clínicos de Avaliação e
Modelos de Intervenção. Psicologia Saúde & Doenças, v. 9,
Tardivo, L. S. L. P. C., & Pinto Júnior, A. A. (2010). Inventário de Frases no Diagnóstico
de Violência Doméstica contra crianças e adolescentes. 1 ed. São Paulo: Vetor
Editora Psico-pedagógica, v. 1, 88p.
Tardivo, L. S. L. P. C., Pinto Júnior, A. A., & Colombo, R. I. (2009). Ninos sometidos a
violência em el hogar em Brasil y Argentina: uma triste similut. In: Alberto Trimboli
et al (Org.) El padecimento mental – entre la salud y la enfermedad. 1 ed. Buenos
Aires: AASM, V. 1, P. 192-193.
Tardivo, L. S. L. P. C., Pinto Júnior, A. A., & Vieira, F. C. (2012). Avaliação psicológica
de crianças vítimas de violência doméstica por meio do teste das fábulas de Duss.
Revista de La Associacion de Rorschach, 10, 15-40.
Tardivo, L. S. L. P. C. O Procedimento de Desenhos-Estórias na expressão e na
compreensão de vivências emocionais. In: Walter Trinca. (Org.). Formas
Compreensivas de Investigação Psicológica: Procedimento de Desenhos-Estórias
e Procedimento de Desenhos de Família com Estórias..São Paulo: Vetor Editora,
2013, p. 145-168.
Tironi, C. M. R., Tardivo, L.S.P.C., & Colombo, R. I. (2013). Juego de Interrelaciones
Familiares com ninos victimas de violência doméstica em Brasil y Argentina: uma
comparación. In: Libro de Trabaljos del XVII Congreso Nacional de
Psicodiagn´sotico y XXIV Jornadas Nacionales de ADEIP: El Diagnóstico
Psicológico em la actualidad – subjectividades, contextos e instrumentos. Buenos
Aires, Argentina.
Zavaschi, M. L. S., Telelbom, M., Gazal, C. H., & Shansis, F. M. (1991). Abuso sexual
na infância: um desafio terapêutico. Revista de Psiquiatria/RS, 13(3), 136-145.
165
12- A VISÃO PSICANALÍTICA SOBRE POSSESSÃO DEMONÍACA
Denise Blanche,
Maria Hosana Andrade dos Santos,
Davi Rodrigues Silva
Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Resumo: O artigo traz uma discussão sobre a visão com relação à possessão
demoníaca, em suas análises Sigmund Freud a denomina como neurose demoníaca,
em seu texto: Uma neurose demoníaca do século XVII. São apresentados conceitos
psicanalíticos com relação à estrutura psíquica e da personalidade para que
possamos entender de forma mais clara a interpretação de Freud com relação ao caso
de Christoph Haizmann, o pintor que após a morte de seu pai decide realizar um pacto
com o diabo com o intuito de ser libertado de um estado depressivo, o mesmo
acreditava que este pacto pudesse ser finalizado apenas com a ajuda dos padres na
capela de Mariazell, após finalizar o pacto dedicasse a servir aos monges pelo resto
da vida.
(Artigo apresentado para conclusão do curso de Psicologia da Universidade Brasil, sob orientação do
Professor Ms. Fábio Pinheiro Santos)
166
Introdução
1. Conceitos Psicanalíticos
A separação da estrutura psíquica foi entendida inicialmente como consciente,
pré-consciente e o inconsciente. Entre 1920 e 1923, Freud remodela a teoria do
aparelho psíquico e introduz os conceitos de id, ego e superego para descrever a
personalidade e compreender os processos patológicos da vida mental. O id constitui
o reservatório da energia psíquica, é onde se “localizam” as pulsões de vida e a de
morte, tem características inconscientes e é regido pelo instinto e princípio do prazer.
O ego possui as funções de memória, sentimento, percepção e pensamentos
estabelece o equilíbrio entre as exigências do id e as “ordens” do superego, ele é
orientado pelo princípio da realidade e juntamente com o princípio do prazer governam
o funcionamento psíquico.
Segundo Freud (1923-1925 p.49) “É fácil ver que o ego é aquela parte do id
que foi modificada pela influência direta do mundo externo, por intermédio do pcpt.-
Cs.; em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de superfície. Além disso, o
167
ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e
esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente no id, pelo
princípio de realidade. Para o ego, a percepção desempenha o papel que no id, cabe
ao instinto. O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em
contraste com o id, que contém as paixões”.
O superego origina-se com o complexo de Édipo, a partir da internalização das
proibições, dos limites e da autoridade. O superego refere-se a exigências sociais e
culturais.
A energia dos instintos sexuais é chamada por Freud (1905) de “libido”, ela existe
desde o princípio da vida após o nascimento. O desenvolvimento da sexualidade se
dá em um período complexo e longo, até chegar na vida adulta. As funções de
obtenção de prazer e reprodução do sexo podem estar associadas tanto no homem
quanto da mulher.
168
Complexo De Édipo E Castração
169
de Pottenbrunn, datada de 1º de setembro de 1677:
170
teria de solicitar ao demônio para devolver seu outro compromisso anterior que foi
escrito em tinta. Ele orou de novo e recebeu de volta o pacto, se sentiu inteiramente
livre e ingressou na ordem dos Irmãos Hospitalários.
No manuscrito o compilador não esconde a indagação que foi feita pelo superior
do Mosteiro dos Irmãos Hospitalários em 1714 (em Viena) com relação à história do
pintor, o reverendo Pater Provincialis comunicou que o irmão Crisóstomo havia sido
tentado novamente pelo espírito mau, embora isso só acontecia quando ele bebia
vinho em demasia.
[...] Mas, pela graça de Deus, sempre fora possível repelir essas tentativas. O Irmão
Crisóstomo morrera de febre héctica. ’pacificamente e bem confortado’ no ano de
1700, no Mosteiro da Ordem, em Neustatt sobre a Moldávia. (Freud, 1923-1925, p.94)
Haizmann projeta no demônio os aspectos que sentia com relação ao seu pai.
Confirmado pela forma que o diabo se apresentou pela primeira vez como sendo um
171
cidadão honesto de idade avançada, barbas castanhas, vestido com uma capa vermelha,
apoiado com a mão direita em uma bengala e com um cão negro ao lado. Posteriormente
aparece com chifres, garras de águia e assas de morcego.
172
maligno por nove vezes. Nas fantasias neuróticas o número nove e conhecido como
o número dos meses de gravidez o que pode ser significativo sob outros aspectos
também, a modificação está de acordo com as exigências da condensação e do
deslocamento.
Segundo Freud (1923), a atitude feminina de um menino para com o pai sofre
repressão, ele compreende que a rivalidade com uma mulher pelo amor do pai tem
como condição a perda de seus próprios órgãos genitais masculinos, ou seja, a
castração. O repudio da atitude feminina é resultado de uma revolta contra a
castração, encontra sua expressão mais forte na fantasia inversa de castrar o pai, de
transformá-lo em mulher. Sendo assim os seios do demônio corresponde a uma
projeção da própria feminilidade sobre o substituto paterno. Ou ainda pode ser
entendido como uma forma de indicação de que os sentimentos da criança pela mãe
foram deslocados para o pai sugerindo intensa fixação na mãe que é responsável por
parte da hostilidade da criança para com o pai. Seios grandes são as características
sexuais positivas da mãe, mesmo numa ocasião em que a característica negativa de
uma mulher seria a falta de um pênis, ainda é desconhecida da criança.
173
salvá-lo do pacto com o demônio e de conseguir a libertação no dia da natividade da
Virgem (08 de setembro).
Discussão
Entende-se que o pai é representado tanto por Deus como pelo Demônio figura
está de projeção de impulsos não aceitos para com o pai como ódio e aspectos
reprimidos da sexualidade. Portanto nos deparamos com uma pessoa que assinou um
compromisso com o diabo, a fim de ser libertado de um estado de depressão.
Na Idade Média vários atos ou simplesmente desejos que hoje são corriqueiros,
eram considerados pecados, assim como na inquisição um simples resfriado, falar
com animais, autismo entre outros, eram sinais de bruxaria, as neuroses de daquela
época ganharam a representação demoníaca como única explicação aceitável.
Conclusão
174
Haizmann assinou um compromisso com o objetivo de ser libertado de um
estado de depressão, onde depositou sua dor e a falta que sentia de seu pai,
acreditava que o pacto ajudaria a recuperar sua inspiração para pintar. Esse pacto foi
a tentativa de estar sobre o jugo de um pai protetor novamente, Haizmann podia então
voltar ao seu ofício de pintar, mas ao término dos nove anos perderia essa proteção.
Após tentar viver com sua irmã, Haizmann decide se voltar para a proteção de
Mariazell dedicando-se a seguir os monges pelo resto de sua vida. Dessa forma
concluímos que ele foi ligado ao pai por um amor intenso, uma melancolia grave que
surge como forma neurótica de luto. Trata-se de uma neurose demoníaca.
Referências
Freud, S. (2006). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Ed. Imago, 19.
https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/uma-breve-compreensao-sobre-o-
complexo-de-edipo. Acessado em 17/09/2017 às 22h14.
https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/ampliando-as-visoes-sobre-a-
formacao-da-neurose © Psicologado.com. Acessado em 09/10/2017 às 17h13.
175
13- REFLEXÕES SOBRE VIOLÊNCIA E DESAMPARO NO FILME “CORINGA” 16
Introdução
16
Joker (no Brasil, Coringa) 2019,. Direção de Todd Phillips, Roteiro cde Todd Phillips e Scott Silver.
Baseado no personagem de mesmo nome da DC Comics, Joaquin Phoenix como o Coringa. Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Joker_(filme_de_2019
17
Psicóloga graduada pela UEM, especialista em Saúde da Criança e Adolescente pelo HC-UFPR
18
Psicóloga graduada pela UFPR
19
Professora associada do Instituto de Psicologia da USP, coordenadora do Laboratório de Saúde Mental e
Psicologia Clínica Social
176
Coringa é um dos filmes mais comentados dos últimos tempos e, segundo
Hughes(2019), escritor no site da revista Forbes, se tornará o primeiro filme para
maiores de idade no topo da marca de US$ 1 bilhão nas bilheterias mundiais. O longa-
metragem da DC Comics, dirigido por Todd Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix,
gerou polêmica e dividiu opiniões. Muitos o consideraram uma grande obra de arte
com potencial para levar o Oscar 2020 e outros o chamaram de perigoso, incitador de
violência e irresponsável. O filme retrata a origem de um dos vilões mais famosos das
histórias em quadrinhos e, ao contrário das produções cinematográficas anteriores, o
arqui-inimigo de Batman é o protagonista. Não incorre na tradicional oposição entre o
bem e o mal, o herói e o vilão ameaçador, mas privilegia contar a história de um ser
humano, no âmbito familiar e social.
O filme retrata a vida de Arthur Fleck, cidadão de aproximadamente trinta anos
que vive no subúrbio de Gotham City. Ele e sua mãe convivem no mesmo apartamento
e se esforçam para sobreviver em meio a falta de recursos psíquicos e sociais. Arthur
sofre de um distúrbio neurológico que o faz rir em momentos inapropriados, realiza
tratamento com psicofármacos e, rotineiramente, frequenta o serviço de assistência
social. Aspirante à comediante, Arthur alterna seus afazeres entre sua profissão como
palhaço e seu divertimento de assistir diariamente com a mãe um determinado
programa de comédia da TV. Já em uma das primeiras cenas do filme, quando é
atacado por um grupo de meninos e repreendido pelo chefe devido ao acontecimento,
é possível ver a agressividade e injustiça que acometem a vida de Arthur. Após ter
sofrido essa humilhação, um colega de trabalho lhe dá uma arma e lhe sugere utilizá-
la para proteção. Perde seu trabalho quando descobrem que ele portava a arma
enquanto trabalhava num hospital infantil. Após ser vítima de violência mais uma vez,
agora por executivos da empresa de Thomas Wayne, um homem poderoso da cidade,
Arthur reage e executa os três homens. Posteriormente, recebe a notícia de que o
programa de assistência social teve seu orçamento cortado e ficará sem o auxílio para
obter ser medicamentos.
As diversas situações retratadas no filme demonstram que o palhaço não era
escutado, acolhido em sua subjetividade nem tendo suas demandas reconhecidas e
levadas a sério. Após roubar o prontuário de sua mãe quando referente ao período
em que ela se tratou no Asilo Arkham, Arthur descobre fatos sobre sua história muito
dolorosos. Foi adotado e criado por Penny, cuja condição psíquica era bem
comprometida, além de ter sido vítima da violência do namorado de sua mãe. Esses
177
eventos desencadeiam uma mudança no posicionamento de Arhur: de um cidadão
sem recursos e invisível, ele se torna um homicida, aplaudido por ativistas e conhecido
como “Coringa”.
Discussão
178
incompletude. Essa interpretação inicial reconhece a fragilidade e o desamparo do
pequeno ser humano e, assim, concede a ele o que necessita, amparando-o em sua
ansiedade. Segundo Marin (1999), tal processo se torna prejudicado quando os pais
apresentam um ideal de felicidade, uma imagem ideal de bebê sem angústias, em que
é insuportável assumir o que é mau, feio e faltoso. Eles podem acabar se calando e
abandonar o bebê a seus próprios fantasmas. A excitação incontrolada de uma
criança pede uma intervenção que, se não for realizada pelos pais, acabará sendo
feito por órgãos sociais, como a polícia, por exemplo.
Quanto mais se deixa de reconhecer esse mal-estar intrínseco à vida humana,
mais os sujeitos ficam abandonados aos seus próprios impulsos, na ilusão de serem
onipotentes. Segundo Marin (1999), a ideia de se submeter ao outro se torna
insuportável, os laços são rompidos, a infelicidade é instaurada e a solidão se torna
um modelo ideal de maturidade. Isso contribui para a formação de práticas
aniquiladoras. Freud (1929/1996), em Mal-estar na Civilização, traz importantes
colocações sobre a vida do sujeito na cultura e a concepção de felicidade. Nesse texto,
o autor afirma que a felicidade, enquanto total satisfação pulsional é impossível.
Atender totalmente ao princípio do prazer é não reconhecer que há o princípio da
realidade, na qual sempre haverá o desprazer.
“Coringa” retrata a dificuldade de reconhecimento da violência, não a gerada
pelas grandes massas, mas as mais privadas e individualizadas que ocorrem
cotidianamente. Num contexto de constantes humilhações, injustiças, discursos
políticos completamente distantes da realidade social, piadas que expõem as dores e
as duras condições de minorias, silenciamento e rejeição, a Arthur Fleck, no
imaginário materno, fora dado o lugar daquele que faria os outros felizes.
Ao longo da trama, é possível perceber grandes contradições. Ainda criança,
algumas de suas necessidades vitais, como a de ser protegido, fora negligenciada. O
reconhecimento das angústias e a intervenção necessária para nomeá-las e aplacá-
las parecem ter falhado na relação entre mãe e filho. Fica evidente que a mãe, ao
nomeá-lo “Happy”, apresenta dificuldade em se deparar com o que falha, o que é
doloroso e que afeta o filho. Ela o cria a partir do ideal de felicidade. Curiosamente, o
distúrbio neurológico que o acomete o faz rir em situações embaraçosas e
desagradáveis, promovendo a repetição desse descompasso de suas vivências e
aquilo que é possível de ser reconhecido pelos outros.
179
Outra situação contrastante é a que aponta um serviço de assistência social
que não acompanha as demandas do sujeito para o qual, supostamente, é oferecido.
Arthur não se sente escutado, pois a profissional que o atende insiste na rigidez das
mesmas perguntas. A esse respeito, é possível pensar nas formas de tratamento
oferecidos que pouco permitem que o sujeito seja escutado, uma vez que estão mais
preocupadas em circunscrever os sintomas apresentados, levantando uma categoria
diagnóstica, a qual ditará um modelo de trabalho
Socialmente, Birman (2001) comenta que a subjetividade contemporânea está
permeada por fantasias de poder e onipotência. Consequentemente, a violência que
caracteriza o mal-estar na atualidade é compreendida na aniquilação do outro e na
utilização desse outro enquanto objeto de satisfação. Assim, o importante não é o
outro e nem as trocas com ele, a importância se dá ao poder do eu e como o outro,
em lugar de objeto, pode satisfazer o eu. Isso é mostrado no filme quando Arthur está
sentado em um dos bancos do metrô. Aparentemente, o vagão está vazio, há somente
uma mulher e um grupo de meninos fazendo piadas machistas para a passageira. Ela
parece um pouco intimidada, mas continua a leitura do seu livro, já os garotos riem e
perguntam insistentemente o telefone da moça. Nesse momento, Arthur, que estava
sentado há uma certa distância, começa a rir. Sua risada compulsiva chama a atenção
dos rapazes e da moça. Esta, contudo, permanece sentada, enquanto o grupo juvenil
se incomoda.
Pode-se dizer que o incômodo foi gerado pela sensação de onipotência perdida
daqueles jovens, principalmente a experimentada pelo que aparentemente era o líder
do grupo. Perdendo força, o jovem se irrita, caminha em direção a Arthur e começa a
socá-lo. Este tenta explicar acerca do distúrbio neurológico que o faz rir, mas o líder
dos meninos não dá espaço para escutá-lo e o objetifica. Arthur é anulado em sua
subjetividade e alteridade, acaba perdendo mais uma vez sua voz.
Winnicott (1986) afirma que amor e ódio são os principais elementos para a
construção das relações humanas, ambos envolvendo agressividade. Já no mundo
psíquico de um bebê existe tanto amor como ódio agindo em plena intensidade. Não
se cura a agressividade madura, uma vez que ela deve ser notada e consentida.
Quando a agressão não é negada, sendo aceita a responsabilidade pessoal, é
aproveitável para que um trabalho de reparação e restituição possa ocorrer. Para a
construção da personalidade, é importante que haja o reconhecimento da própria
180
crueldade e avidez, o que possibilitará que estas sejam dominadas e transformadas
em atividades sublimadas.
Há, portanto, um jogo de forças no interior da personalidade e, quando as forças
destrutivas buscam exercer o domínio, o indivíduo necessita fazer algo para se salvar.
Um dos caminhos é “pôr para fora o seu íntimo”, dramatizando exteriormente o que
se passa em seu mundo interior, representando por si mesmo o papel destrutivo e
provocando seu controle por alguma autoridade externa. O adulto tem por tarefa
impedir que a agressão da criança fuja ao controle, oferecendo uma autoridade
confiante. Quando existe esperança, quanto ao que se vive internamente, o indivíduo
pode usufruir do uso de impulsos instintivos, inclusive os agressivos, para converter o
que era dano na fantasia em bem na vida real. Mas, se a destruição for excessiva e
incontrolável, não resta espaço para o trabalho de reparação e o indivíduo só poderá
negar a propriedade de fantasias más ou dramatizá-las (Winnicott, 1986).
Nesse sentido, vale trazer as considerações de Clarkin, Yeomans e Kernberg
(2006) os quais também se referem à relevância do desenvolvimento infantil na
estruturação da personalidade. Relacionam a Teoria das Relações de Objeto com a
estrutura da personalidade, sugerindo que, no curso do desenvolvimento infantil,
várias duplas internas são criadas baseadas em experiências iniciais. Com respeito
às relações de objeto, as experiências satisfatórias da criança envolvem uma imagem
ideal de um outro carinhoso e perfeito e um self satisfeito, enquanto as experiências
frustrantes envolvem uma imagem totalmente negativa de uma privação ou mesmo
de um outro abusivo e de um self necessitado e desamparado.
181
(Clarkin,Yeomans e Kernberg, 2006; Tardivo e Pinto Junior, 2010; Manfre, Tardivo e
Pinto Junior, 2014).
182
reconhecidas, fazendo com que a pulsão de morte e o sentimento de desamparo
surgissem de forma avassaladora. Desde cedo, convocado a fazer as pessoas felizes,
Arthur sofreu abusos constantes, sem que houvesse o olhar e a ação de alguém que
interpretasse suas angústias e que o reconhecesse em seu mal-estar. Dessa forma,
Arthur, cujo corpo franzino indicava grande fragilidade e vulnerabilidade frente aos
outros, de uma postura passiva, na qual não se considerava existindo, passa a uma
posição ativa que desencadeia em atos extremamente violentos.
De acordo com Winnicott (1986) é um árduo processo dominar ideias e
excitações agressivas e poder controlá-las sem perder a capacidade para ser
agressivo em momentos apropriados, seja amando ou odiando. A mãe exerce
importante função nos primeiros tempos do bebê para que este adquira formas de
reconhecer que o mundo está situado fora do seu controle mágico. Dessa forma, a
criança se torna capaz de odiar, agredir e gritar ao invés de aniquilar o mundo de
forma mágica.
Pode-se considerar que, por dificuldades no processo de nomeação de
angústias, integração de experiências ruins e boas, até mesmo a falha em ter acesso
à verdade de sua história, Arthur se desenvolveu a partir de precários recursos para
simbolizar suas experiências. Isso retoma o que Freud afirmou sobre a criança que
encontra um objeto substituto para se vingar da ausência da mãe. No caso de Arthur
o substituto não foi um brinquedo, mas uma pessoa real, e a vingança não foi uma
mera brincadeira, mas uma dramatização do seu caótico mundo interno na realidade,
gerando mortes reais. Arthur não tinha apenas um substituto da mãe para se vingar,
ele se vingou da própria mãe. Depois de descobrir as verdades que ela não lhe
contava, como o fato de ter sido adotado e de não ser filho de Thomas Wayne, há um
distanciamento desse laço amoroso com a mãe, uma quebra de confiança, o que
provoca uma sede de vingança e, consequentemente, a morte dela por sufocamento.
Winnicott (1986) afirma que a criança que não apresenta um quadro de
referência e se sente insegura em seu lar se torna angustiada. Se nela houver
esperança, procurará fora de casa a estabilidade que necessita para seu crescimento
emocional. Os comportamentos delinquentes indicam que alguma esperança
subsiste, pois apelam à uma autoridade que estabeleça limites ao excesso de
excitação vivido pelo indivíduo. A transgressão contra a sociedade é uma forma de
restabelecer o controle proveniente do exterior.
183
A menos que se veja em apuros, o delinquente só poderá tornar-
se cada vez mais inibido no amor e, por conseguinte, cada vez
mais deprimido e despersonalizado, tornando-se por fim
totalmente incapaz de sentir a realidade das coisas, exceto a
realidade da violência" (p. 131).
Considerações Finais
184
atos. Eles são apenas condenados como “problemas” sociais, sendo a solução
paradoxal proposta, muitas vezes, a de matá-los para acabar com a violência.
O filme se propõe a narrar as origens daquele que é considerado um dos
maiores vilões da história e nos mostrar quem é ele: Arthur Fleck, um palhaço que
sonha em ser comediante, mas que acaba assumindo uma postura violenta. Nessa
situação, livre de julgamentos morais, o diretor do filme valorizou a história de um
homem comum, permitindo que os espectadores pudessem considerar que o palhaço
matador não era só isso, mas que existia uma história por trás dos seus atos.
Referências
Clarkin J.F., Yeomans F.E., Kernberg O.F. (2006). Psychotherapy for Borderline
Personality. Focusing on Object Relations. Arlington: American Psychiatric Publishing
Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização (1930 [1929]). Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud., 21.Rio de Janeiro: Imago.
Hughes, M. (2019, Novembro, 4). Como Coringa chegou a U$$1 bilhão em bilheteria.
[Web Page]. Recuperado de https://forbes.com.br/negocios/2019/11/como-coringa-
chegou-a-us-1-bilhao-em-bilheteria/
Manfre, V.,Tardivo, L.S. L. P. C. ; Pinto, A.A. (2014) Use of the Phrase Inventory of
Intrafamily Child Abuse (PIICA) with Brazilian Victims of Sexual Abuse. Journal of
Child and Adolescent Trauma, v. 7, p. 107-110.
Melman, C. (1931). O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud.
185
Phillips, T. (Produtor/Diretor).(2019). Coringa. [Motion Picture]. Estados Unidos: DC
Comics.
186
14- O QUESTIONÁRIO DESIDERATIVO EM CRIANÇAS COM DIFICULDADES
DE APRENDIZAGEM: ESTUDO SOBRE FORÇA DO EGO20
20
Parte da pesquisa do Pós-doutorado de Marlene Alves da Silva no Departamento
de Psicologia Clínica do IPUSP sob a supervisão de Leila SPC Tardivo
187
1. Introdução
A Psicologia da Educação tem estudado o processo de construção da
aprendizagem em diferentes vertentes, no entanto, as dificuldades de aprendizagem
têm sido alvo do modelo clínico que se baseia na subjetividade e visa analisar as
aptidões e as características de personalidade. Sofre influência dos fatores biológicos,
psicológicos, sociais, pedagógicos e de repertório psicomotor, entre outros (DeLay,
Hanish, Martin, & Fabes, 2016; Mashburn, Justice, Downer, & Pianta, 2009; Moreira,
Fonseca & Diniz, 2000; Schunck, 2012).
A aprendizagem envolve adquirir e modificar conhecimentos, habilidades,
estratégias, atitudes e comportamentos. As pessoas aprendem habilidades cognitivas,
linguísticas, motoras e sociais, e estas ocorrem de muitas formas. Segundo Schunck
(2012), citado por Shuell (1986), não há consenso na definição de aprendizagem,
assim como sobre as causas, processos e consequências.
Nesse sentido, a aprendizagem pode ser definida como uma modificação do
comportamento do sujeito em função da experiência, e pela finalidade e exigências
determinadas pelo processo escolar. E pode ser caracterizada pelo estilo sistemático,
intencional e pela organização das atividades que a desencadeiam, atividades que se
implantam em um quadro de finalidades e exigências determinadas pela instituição
escolar.
Schunck (2012) aponta três critérios importantes para aprendizagem: aprender
envolve mudança, perdura ao longo do tempo e ocorre por meio da experiência.
Assim, a aprendizagem é um processo de constante mudança e de forma duradoura
no comportamento da pessoa, e essa mudança é o resultado de uma prática ou de
outras formas de experiência. Na visão do autor, a aprendizagem é o processo
contínuo de mudanças baseado nas experiências vividas. Sendo assim, as pessoas
aprendem quando se tornam capazes de fazer algo diferente, portanto, o processo de
aprendizagem é inferencial. Não se observa o aprendizado diretamente, mas sim seus
resultados que são avaliados com base no que as pessoas dizem, escrevem e fazem.
O segundo critério se refere à situação de a aprendizagem perdurar ao longo do
tempo, o que exclui mudanças comportamentais temporárias (Schunck, 2012).
O terceiro critério diz respeito à aprendizagem ocorrer por meio da experiência,
da prática ou da observação de outros. Esse critério exclui mudanças
comportamentais que são determinadas pela hereditariedade, alterações
maturacionais em crianças, transtornos neurológicos e/ou psiquiátricos. Vale ressaltar
188
que as pessoas podem ser geneticamente predispostas a agir de determinadas
maneiras, mas o desenvolvimento dos comportamentos depende do ambiente. A
linguagem infantil é fruto do ensino e das interações com os pais, professores e outras
crianças (DeLay, Hanish, Martin, & Fabes, 2016; Mashburn, Justice, Downer, & Pianta,
2009; Silva; Oliveira, & Ciasca, 2017; Schunck, 2012).
Pode-se considerar as dificuldades de aprendizagem como uma discrepância
educacional significativa entre o potencial intelectual esperado e o nível de realização
das atividades. A fase de desenvolvimento da criança dos seis aos onze anos tem
uma estreita relação entre produtividade escolar e adaptação afetivo-social e,
consequentemente, com repercussões em sua saúde mental.
Segundo Drowet (2001), dificuldades de aprendizagem são diferentes dos
distúrbios de aprendizagem, pois os distúrbios são problemas de ordem neurológica,
com perdas físicas, sensoriais, emocionais e intelectuais. Enquanto as dificuldades de
aprendizagem podem ocorrer em crianças que não apresentam nenhum destes
problemas citados, e sim algum atraso escolar, em alguma época da vida, ou questões
de outra ordem (emocional, social etc.).
Ainda, as dificuldades emocionais influenciam em problemas acadêmicos e
esses, por sua vez, afetam os sentimentos e os comportamentos, como afirmam
Roeser e Eccles (2000). Tais dificuldades podem ser expressas de forma internalizada
- baixa autoestima e autoeficácia - ou externalizada - déficit de habilidades sociais,
problemas de comportamento, comportamentos antissociais ou inadaptação social,
ausência do desenvolvimento de consciência fonológica, expectativas negativas dos
professores (Elias, 2003; Motta, 2003 e Bianchi, 2005) e, ainda, um ambiente familiar
repleto de adversidades (Ferreira & Marturano, 2002).
Estudos apontam que crianças que são tímidas ou que têm baixa atenção ou
controle inibitório têm maior probabilidade de manter relações dependentes com os
professores (Ewing & Taylor, 2009;), assim como, são mais propensas a ter resultados
acadêmicos mais pobres (Rudasill & Rimm- Kaufman, 2009; Rudasill, & Acar, 2019).
No entanto, as relações criança-professor podem ser favoráveis às crianças que
encontram o ambiente de aprendizagem formal, o escolar (Schmitt, Pentimonti, &
Justice, 2012).
189
O Questionário Desiderativo
O Questionário Desiderativo como técnica projetiva que avalia o grau de
estruturação do ego, com base no referencial psicodinâmico e constituído por
conjunto específico de questões a serem respondidas livremente pelo examinando,
avalia a preservação e a flexibilidade egóica, seus pilares de sustentação, defesas
psíquicas, aspectos afetivos e relações objetais (Nijamkim, & Braude, 2000). Foi
proposto inicialmente por dois psiquiatras espanhóis, Pigem e Córdoba, em 1946, e
teve modificações em sua forma de aplicação, na Argentina em 1956, realizadas pelo
professor Jaime Bernstein que fundamentou sua proposição numa concepção teórica
psicanalítica. Essa técnica é composta de seis perguntas, sendo três escolhas e três
rejeições que comtemplam diferentes níveis de preservação da vida, passando pelos
reinos animal, vegetal e inanimado (Nijamkim, & Braude, 2000).
Nas catexes positivas, o respondente utiliza mecanismos para se manter
integrado, sendo escolhidos elementos ligados ao que o ego deseja ser. As catexes
negativas se referem às repostas que revelam o que o avaliado teme acontecer caso
as defesas falhem, e os conteúdos que projetivamente ele se defende. A técnica
propõe que a pessoa fantasia não ser uma pessoa, o que se constitui em possibilidade
simbólica de morrer. (A pergunta básica feita: se você não pudesse ser uma pessoa,
o que mais gostaria de ser e por quê? e em seguida o que menos). Dessa forma,
destaca as forças defensivas e torna-se possível avaliar como o sujeito organiza sua
identidade – seus mecanismos de defesa- para manter sua estrutura.
A partir do enfoque psicanalítico e com as contribuições de Klein (1946/1963),
o QD visa obter informações a respeito de como são os objetos introjetados; ou seja,
os símbolos aceitos expressam as imagens benevolentes e benéficas associadas a
um bom objeto (protetor, doador, gratificante), e os símbolos rejeitados, as imagens
persecutórias associadas ao objeto mau (frustrador, cruel). Pode-se também verificar
como a pessoa utiliza as defesas, especialmente a dissociação. Por esse enfoque, o
conjunto de respostas pode ser considerado como uma amostra das fantasias
inconscientes e das relações de objeto do sujeito (Grassano, 1997).
Nijamkim e Braude (2000) pontuam que este teste se revela bastante sensível
para a avaliação das identificações e defesas predominantes em cada sujeito.
Palacios (2016) que utilizou o Questionário Desiderativo em um estudo de caso clínico
de um menino de 11 anos com dificuldades de aprendizagem. O teste projetivo foi
aplicado no processo psicodiagnóstico e posteriormente reaplicado no final do
190
processo terapêutico, que constou de 50 sessões. Os dados foram analisados por
meio do referencial psicanalítico freudiano/kleiniano e os resultados mostraram que o
teste foi eficaz para a exploração e análise das áreas do desenvolvimento do aparelho
psíquico infantil, colaborando, assim, para o delineamento das intervenções clínicas
necessárias durante o processo psicoterapêutico do paciente.
II JUSTIFICATIVA e OBJETIVO
Este estudo faz parte de um projeto mais amplo da supervisora responsável,
Leila Tardivo, aprovado pelo CNPq, para realização, a partir de março de 2018 com a
aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos do IPUSP. Trata-se
do projeto O QUESTIONÁRIO DESIDERATIVO NO BRASIL: FIDEDIGNIDADE,
VALIDAÇÃO E RESPOSTAS MAIS FREQUENTES Processo (CNPq): 309809/2017-
7.
O presente estudo tem como objetivo estudar as caraterísticas de personalidade,
em especial, a força de ego de crianças com dificuldades de aprendizagem. Ainda,
verificar as respostas mais frequentes para QD em crianças e adolescentes de 6 a 12
anos de idade com e sem dificuldade de aprendizagem (consideradas como grupo
controle).
III. MÉTODO
1 Caraterização da Amostra
Participaram desta pesquisa 60 crianças, ambos os sexos, com idade de 06 a 12
anos, estudantes de Escolas Públicas da Bahia e de São Paulo. Todos sem
rebaixamento intelectual segundo o R-2. A amostra foi dividida em dois grupos: G-1-
Grupo Clínico, 30 crianças com dificuldades de aprendizagem e G2- Grupo Controle:
30 crianças com desempenho compatível para sua idade e grau de escolaridade. A
amostra foi composta por conveniência. O critério de inclusão no G 1 e 2 foi por
indicação dos professores e da escola. Os grupos são semelhantes em idades e sexo.
A tabela 1 apresenta a distribuição da amostra.
191
Tabela 1 – Distribuição dos participantes quanto a Sexo, Idade e Escolaridade
Dificuldade de
Característica Grupo Controle P-value
aprendizagem
Idade 6 1 (3,3%) 1 (3,3%) 0,9866
7 6 (20,0%) 6 (20,0%)
8 7 (23,3%) 6 (20,0%)
9 4 (13,3%) 5 (16,7%)
10 3 (10,0%) 4 (13,3%)
11 4 (13,3%) 5 (16,7%)
12 5 (16,7%) 3 (10,0%)
Sexo Feminino 10 (33,3%) 11 (36,7%) 1,0000
Masculino 20 (66,7%) 19 (63,3%)
Escolaridade 1 1 (3,3%) 1 (3,3%) 0,5493
2 8 (26,7%) 8 (26,7%)
3 6 (20,0%) 8 (26,7%)
4 4 (13,3%) 4 (13,3%)
5 3 (10,0%) 6 (20,0%)
6 6 (20,0%) 1 (3,3%)
7 2 (6,7%) 2 (6,7%)
Total Geral 30 (100,0%) 30 (100,0%)
Observa-se que para todas as variáveis estudadas houve pouca diferença entre
os grupos e na variável Escolaridade, o grupo com Dificuldade de aprendizagem com
um percentual um pouco maior em 3º e em 5º anos do que o Controle, mas a diferença
observada não foi significante (p-value = 0.5493).
2. Instrumentos
- Questionário Desiderativo
- R-2: Teste Não Verbal de Inteligência para crianças (Rosa & Alves, 2018).
3. Procedimentos
Foi feito o contato com a instituição escolar; os TCLEs foram assinados pelos
pais e/ou responsáveis. As aplicações foram individuais.
AVALIAÇÃO
192
IV.RESULTADOS
Serão apresentadas as tabelas com todos os resultados e descritas as que
tiverem diferenças significantes (ou uma tendência nessa direção)
Teste Completo: nota-se nos dois grupos poucos casos de testes incompletos, com o
grupo controle um pouco superior, sem diferença significativa (p-value=0.4238)
Resposta Antropomórfica: nota-se o grupo Dificuldade com um percentual maior de
Catexia Positiva e menor de nenhuma, sendo os dois grupos significativamente
diferentes (p-value=0.0165).
Nota-se nesses aspectos inícios de maior dificuldade em atender ao esperado no teste
e, uma maior fraqueza de ego,
193
Tabela 3. – Distribuição dos participantes quanto às escolhas de reinos
Grupo
Dificuldade de
Característica Classe Controle p-value
aprendizagem
Reino 1+ Animal 29 (96,7%) 26 (92,9%) 0,6053
Inanimado 0 (0,0%) 0 (0,0%)
Vegetal 1 (3,3%) 2 (7,1%)
Reino 2+ Animal 1 (3,3%) 1 (3,3%) 0,2267
Inanimado 14 (46,7%) 8 (26,7%)
Vegetal 15 (50,0%) 21 (70,0%)
Reino 3+ Animal 0 (0,0%) 2 (6,7%) *0,0336
Inanimado 16 (53,3%) 22 (73,3%)
Vegetal 14 (46,7%) 6 (20,0%)
Reino 1- Animal 10 (33,3%) 17 (56,7%) *0,0007
Inanimado 16 (53,3%) 5 (16,7%)
Vegetal 4 (13,3%) 8 (26,7%)
Reino 2- Animal 11 (37,9%) 5 (17,2%) 0,0946
Inanimado 10 (34,5%) 8 (27,6%)
Vegetal 8 (27,6%) 16 (55,2%)
Reino 3- Animal 8 (28,6%) 8 (28,6%) *0,0002
Inanimado 4 (14,3%) 17 (60,7%)
Vegetal 16 (57,1%) 3 (10,7%)
Sequência Positiva Animal/Inanimado/Vegetal 14 (46,7%) 5 (17,9%) *0,0450
Animal/Vegetal/Inanimado 15 (50,0%) 21 (75,0%)
Vegetal/Animal/Inanimado 1 (3,3%) 1 (3,6%)
Vegetal/Inanimado/Animal 0 (0,0%) 1 (3,6%)
Sequência Negativa Animal/Inanimado/Vegetal 6 (21,4%) 3 (11,1%) *0,0003
Animal/Vegetal/Inanimado 4 (14,3%) 13 (48,1%)
Inanimado/Animal/Vegetal 10 (35,7%) 0 (0,0%)
Inanimado/Vegetal/Animal 4 (14,3%) 3 (11,1%)
Vegetal/Animal/Inanimado 0 (0,0%) 4 (14,8%)
Vegetal/Inanimado/Animal 4 (14,3%) 4 (14,8%)
194
Para a Sequência Negativa, observa-se maior mescla das sequências
e houve para o Dificuldade o maior percentual na mesma escolha do
Positivas, que foi Animal/Vegetal/Inanimado, mas agora somente com
48.1%. Já para o Controle a mais frequente foi
Inanimado/Animal/Vegetal. A diferença entre eles foi significativa (p-
value=0.0003).
195
percentual. Não houve nenhuma resposta Inadequada. A diferença
entre os grupos não foi significativa, mas o resultado ficou muito
próximo da significância, indicando uma tendência (p-value=0.0522).
Positiva/Inanimada: notam-se os grupos bem semelhantes com um
percentual maior de adequada e a diferença não sendo significativa (p-
value=0.7710).
Positiva/Vegetal: nota-se o grupo Dificuldade com um percentual um
pouco maior de Por indução, mas a diferença entre os grupos não foi
significativa (p-value=0.1923).
Negativa/Inanimada: nota-se o grupo Dificuldade com um percentual
um pouco maior de Por indução, sendo significativamente diferente (p-
value=0.0419).
4.Qualidade da resposta
196
Convencional 17 (60,7%) 22 (81,5%)
Original 11 (39,3%) 5 (18,5%)
8.Tempo de reação
197
Tabela 6– Médias e Desvios padrão para Tempo de reação
Grupo
Dificuldade de
Resposta Reino Controle p-value
aprendizagem
Positiva Animal 7,1±6,8 17,4±12,9 *<,0001
Inanimado 13,9±11,1 20,6±15,3 0,0533
Vegetal 10,1±11,1 20,0±9,5 *<,0001
Negativa Animal 11,9±12,3 15,9±12,9 *0,0354
Inanimado 12,3±13,9 19,5±11,7 *0,0041
Vegetal 12,9±14,9 20,2±16,4 *0,0163
198
Dissociação Adequada 1
Inadequada 0
Identificação Projetiva: Símbolo estruturado 1
Símbolo não estruturado 0
Racionalização: Adequada 1
Inadequada 0
Perspectiva vincular da Narcísica 0
resposta: Inclui o outro 1
Tabela 8. Médias e Desvios padrão para Pontuações das categorias relativas aos
aspectos gerais e aos específicos
Grupo
Dificuldade de
Resposta Controle p-value
aprendizagem
199
V - DISCUSSÃO
Importante destacar que muitas comparações entre os dois grupos: de crianças
com dificuldades de aprendizagem e crianças sem essa condição na avaliação no QD
não foram significantes. Pode-se sugerir a necessidade de ampliação da amostra, pois
muitas categorias em crianças de 6 a 12 anos, sendo 30 em cada grupo pode não ter
sido um número suficiente para evidenciar os resultados de forma mais evidente. Até
porque houve casos em que se observa uma tendência.
Dessa forma, pode-se verificar que quando houve diferença ou tendência, essa
sempre indicou o grupo clínico maiores indícios de dificuldades no QD. Ou seja, é
possível observar que as dificuldades emocionais quando se evidenciaram foram mais
presentes entre as crianças com problemas de aprendizagem como apontaram
Roeser e Eccles (2000).
200
responder, o fazem dando respostas mais convencionais, o que reflete uma maior
rigidez que as crianças do grupo controle. Tais categorias respondem a uma maior
possibilidade de responder ao QD, de forma mais evoluída considerando Braude e
Nijamkim (2000), Grassano (1986); e Pinto, Rosa, Chave, & Tardivo (2018). Também
no estudo de Pinto Junior e Tardivo (2018), que encontraram sinais de mais
dificuldades em grupo de adolescentes infratores quando comparados ao grupo
controle (sem essa condição).
Outro dado importante nesta investigação que evidencia a maior dificuldade das
crianças com problemas de aprendizagem se refere ao tempo de reação – sempre
maior no grupo com dificuldades de aprendizagem. Dessa forma, essas crianças
necessitaram mais tempo para elaborar suas respostas, o que é indicativo da
presença mais intensa de ansiedade (Nijamkim, & Braude, 2000). Trata-se assim de
indício da presença de problemas emocionais nesse grupo o que interfere no
desenvolvimento das habilidades acadêmicas.
Finamente, o resultado mais relevante nessa investigação, que confirma a
maior dificuldade emocional das crianças com dificuldades de aprendizagem, se
podendo considerar, nesse grupo (onde o nível intelectual é compatível com a idade)
que se trata de sintoma de problemas emocionais – é o índice de força do ego. Foram
obtidos índices menores do índice de força de ego, proposto por Tardivo e Pinto Junior
(2018), tanto nas categorias específicas, como na soma total (sendo esse o mais
relevante.
Assim, o Questionário Desiderativo como técnica projetiva que avalia o grau
de estruturação do ego, com base no referencial psicodinâmico (Nijamkim, & Braude,
2000), evidenciou nesse estudo a maior fragilidade do ego das crianças com
dificuldades de aprendizagem. Trata-se também de evidência de validade concorrente
do QD com essa forma de avaliação, em especial para esse resultado, que se refere
à diferença entre os grupos com e sem dificuldades de aprendizagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foram alcançados os objetivos propostos para o estudo Vale mencionar que
em diversas categorias de análise não foram encontradas diferenças entre os dois
grupos. Importante ampliar a amostra já que em muitos casos foram notadas
tendências. Porém, quando houve diferenças, essas sempre indicaram mais
dificuldades no grupo clínico.
201
A presença de mais ansiedade pelo maior tempo de reação entre as crianças
com dificuldades de aprendizagem E principalmente, o índice de força de ego menor
no QD como um todo, nesse grupo confirma a presença de dificuldades emocionais
nas crianças que se ressentem de não conseguir aprender como os demais de sua
idade. Tem-se assim evidência de validade concorrente dessa forma de avaliação no
QD entre os grupos de crianças com e sem dificuldades de aprendizagem
Confirma-se, portanto, que dificuldades de aprendizagem em crianças sem
rebaixamento intelectual, podem ser manifestações de problemas emocionais, o que
requer da família e da escola cuidado e amparo para que essas crianças possam se
desenvolver com saúde e qualidade.
REFERÊNCIAS
DeLay, D., Hanish, L. D., Martin, C. L., & Fabes, R. A. (2016). Peer effects on Head
Start children’s preschool competency. Developmental Psychology, 52(1), 58-70.
Ewing, A. R., & Taylor, A. R. (2009). The role of child gender and ethnicity in teacher-
child relationship quality and children’s behavioral adjustment in preschool.
Early Childhood Research Quarterly, 24(1), 92–105. doi:10.1016/j.
ecresq.2008.09.002
202
Klein, M. (1946/1963). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides (1946). “ ____.
Inveja e gratidão e outros trabalhos, 4 (1946): 17-43
Mashburn, A. J., Justice, L. M., Downer, J. T., & Pianta, R. C. (2009). Peer effects on
children’s language achievement during pre-kindergarten. Child Development,
80, 686–702.
Nijamkim, G., & Braude, M. (2000). Questionário desiderativo. São Paulo: Vetor.
Pinto Jr. A.; Rosa, H.R.; Chaves, G.; Tardivo, L.S.L.P.C. (2018). O Questionário
Desiderativo: fundamentos psicanalíticos e revisão da literatura.. PEPSCIC, v.
70, p. 274-287.
Roeser, R. W., & Eclles, J. S. (2000) Schooling and mantal healh. In: Sameroff, A. J.,
Lewis, M., & Miller. S. M. (orgs) Handbook of developmental psychopahology.
Nova York: Kluwer/Plenum (pp. 135 – 156)
Rosa, H. R., & Alves, I. C. B. (2012). R-2: Teste Não Verbal de Inteligência para
crianças. São Paulo: Vetor Editora.
Rudasill, K. M., & Acar, I. (2019) The Synergy of Teacher-Child Dependency and
Temperament for Children’s Early Language Skills, Early Education and
Development, 30 (5), 639-654. DOI: 10.1080/10409289.2019.1572383
203
Rudasill, K. M., & Rimm- Kaufman, S. E. (2009). Teacher–child relationship quality:
The roles of child temperament and teacher–child interactions, Early Childhood
Research Quarterly 24, 107–12. DOI: 10.1016/j.ecresq.2008.12.003
Schunk, Dale H. (2012). Learning theories: an educational perspective. 6th ed. Boston,
Pearson.
204
15-DESENHO-ESTÓRIA COM TEMA (DE-T) NA EXPRESSÃO E COMPREENSÃO
DE ANGÚSTIAS NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
205
² Psicólogo.Membro do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Social – APOIAR – Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)
³Mestranda do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Saúde
Mental e Psicologia Clínica Social – APOIAR – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(IPUSP).
Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
Coordenadora do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social – APOIAR.
Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
Coordenadora do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social – APOIAR.
Tema / Introdução
206
de inspirador para o uso de outros mediadores, bem como permite que diversas
temáticas possam ser estudadas.
207
individuais e coletivas. Tal tipo de proposta possibilita ao jovem a observação do meio
em que se encontra inserido e de si mesmo, estimulando reflexões sobre as questões
iminentes em que estão sujeitos, permitindo um protagonismo acerca de seu contexto.
Objetivos
Relatos de Experiência
208
Em um outro momento foi dialogado com os estudantes as temáticas que
surgiram, percebendo que naturalmente as temáticas que mais compareceram nos
desenhos foram as que eles próprios deram mais ênfase neste momento. Os
psicólogos foram proporcionando algumas reflexões para estes sobre como são estes
medos, o que são, o que é possível fazer diante deles. Como pode-se ver abaixo,
“Momo” e assalto, a violência urbana, foram os tópicos que mais compareceram entre
as crianças.
Por fim, pediu-se que estes fizessem cartazes propondo recursos, formas de
enfrentamento desses medos, soluções, formas de lidar com eles, onde estes
propuseram conversar com pessoas e pedir ajuda (pai, amigos, professores, psicólogo
compareceram como figuras de referência nesse sentido) e, no caso do assalto,
polícia e prisões.
209
Nessa etapa, foram utilizados lápis preto número 2 e borracha. Ao final, os
desenhos dos participantes foram coletados pelos estudantes e psicólogos e expostos
em lugar comum, com o cuidado de preservar o anonimato dos participantes, e
solicitado para que em pequenos grupos observassem a produção coletiva. Na
sequência, foi solicitado aos participantes que comentassem os desenhos com
objetivo de elencar os temas emergentes. Ao final, foi realizado um diálogo sobre o
que acharam da experiência e o que pensavam sobre os temas abordados nos
desenhos.
210
Medo - 3o Ano (8-9 anos)
Sem Violência
Medo - 3o ano histórias Urbana
Tema Número de Desenhos 21% 18%
Violência Urbana 7
Filmes de Terror 7
Momo 8 Política
13% Momo
Política 5 20%
Animais Peçonhentos 4 Filmes de
Animais
Terror
Sem histórias 8 Peçonhent
18%
os
Total 31 10%
211
A análise geral das produções realizadas pelos participantes desse estudo
durante o procedimento de DE-T, demonstra que os desenhos elaborados foram
facilitadores da expressão de angústia e expectativa dos adolescentes quanto a vida
contemporânea. É relevante observar que no 7º ano, 32% dos alunos expressaram
suas aflições quanto a violência na cidade de São Paulo, por meio de desenhos e
estórias com conteúdo de morte e/ou drogas. Por outro lado, 12% manifestaram
inquietações quanto a vida conectada pela internet, enquanto 36% dos adolescentes
apreciam conhecer lugares, e obter prazer ao se aventurar na descoberta do
mundo/cidade.
Discussão
Nesse contexto, cabe ressaltar o trabalho desenvolvido por Tardivo (2007) que,
bem lembrando Bleger (1975) durante a elaboração de sua livre docência, aponta que
toda conduta possui um sentido e que, portanto, faz-se necessária a compreensão
das possíveis motivações dessa escolha para esses jovens que por um lado, parece
estar relacionada à influência da tendência grupal, característica da adolescência, mas
por outro, revela a importância e o interesse do grupo em abordar o assunto
claramente explicitado por um de seus membros.
212
significa infantilidade, estando o jovem suscetível aos mais variados tipos de
consequências, tal como exposto nas figuras 3 e 5 do 7º ano.
213
Outro ponto levantado sobre esse aspecto refere-se ao enquadre proposto pela
oficina, uma vez que foi realizada durante o expediente escolar. Dado o tempo
predeterminado para realizar as produções, esse fato pode ter interferido no processo
de latência e elaboração dos trabalhos como um todo, tanto na qualidade, como na
ausência de histórias, caracterizando uma limitação do estudo.
214
compartilhados por seu grupo de colegas. Com relação aos pais, demonstram afetos
de ordem contrária. Ainda conforme demonstra esse mesmo autor, o adolescente
demonstra-se como um ser que padece, causando na família sensação por vezes de
incomodo e irritação, ao passo que se sentem também incomodado por ela, mas é
antes de tudo aquele que é o maior espectador do desabrochamento do próprio pensar
e ao surgimento de uma força nova; uma força presente e de importância tal que sem
ela realizações duradouras não se concretizariam na vida adulta.
Referências
215
16-O MEDO DA VIOLÊNCIA EM PRÉ-ADOLESCENTES: COMPREENSÃO E
INTERVENÇÃO EM OFICINAS PSICOLÓGICAS
21
Psicólogas. Pesquisadoras do Apoiar
22
Professora Livre Docente do IPUSP, no Programa de Psicologia do Escolar e do Desenvolvimento Humano.
23
Professora Associada do Instituto de Psicologia da USP; Coordenadora do Laboratório de saúde Mental e
Psicologia Clínica Social.
216
permitiram a possibilidade de elaboração de tais conflitos e de reconhecimento das
alternativas adaptadas ao contexto. Por fim, os resultados demonstraram a
importância da experiência de cuidado ao jovem e ao pré-adolescente para além da
clínica tradicional individualizada, valorizando a relação entre informação, cognição e
afeto, provenientes das Oficinas Psicológicas.
INTRODUÇÃO
Pré-Adolescência e Adolescência
A adolescência trata-se de etapa do desenvolvimento fortemente marcada
pelas alterações biopsicossociais. O indivíduo atravessa uma série de modificações a
nível físico, com as alterações puberais, assim como a nível psíquico e social, com a
saída da infância para a adolescência, e exercício de novos papéis (Tardivo, 2007).
De acordo com Bloss (1998), a adolescência pode ser pensada em etapas,
sendo a primeira delas, a pré-adolescência. Nesta etapa, evidenciam-se as alterações
fisiológicas e, dá-se início ao afrouxamento dos laços familiares, com o consequente
maior interesse no grupo. No entanto, segundo o autor, a oscilação com a infância
ocorre com mais frequência do que na adolescência propriamente dita, sendo comuns
condutas ora infantis, e ora mais próximas do mundo adulto. Nesse sentido, observa-
se que a intensidade de tais transformações pode contribuir para que o pré-
adolescente sinta mais presentemente uma emoção: o medo.
217
dos Direitos Humanos, 2018), no entanto, atinge de forma mais hostil os seres mais
indefesos da sociedade como mulheres, crianças e adolescentes, sem, contudo,
poupar os demais (Santana & Camargo, 2005). Há um custo humano de dor e
sofrimento invisível, que não pode ser calculado, mas que se percebe o grande
impacto mundialmente verificado (Dahlberg & Krug, 2006).
Realidade principalmente dos grandes centros urbanos, a violência é um dos
fatores que põem em risco a saúde física e psicológica dos jovens. Apontamentos da
Organização Pan Americana de Saúde-OPAS (2019) demonstram que os homicídios,
mortes no trânsito e suicídios correspondem a metade de todas as mortes entre jovens
de 10 e 24 anos nas Américas. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública-
SSP (2018) somente na cidade de São Paulo em 2018, 749 pessoas sofreram
tentativa de homicídio, 28.548 sofreram lesão corporal, 132.219 pessoas foram
roubadas, 749 perderam a vida em latrocínios, e assim segue a lamentável lista. De
acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA (2019), nos últimos dez
anos “a taxa de homicídios cresceu de 30 para 41 mil homicídios por 100 mil
habitantes” (p.8)
Broide & Broide (2016) em trabalho com jovens expostos a violências variadas
em periferias, apontam que estes vivem em alerta máximo, e as relações são pautadas
pelo medo, sendo “a vida uma corrida de obstáculos” (p.72). Acrescentam ainda que
tais obstáculos levam a situações-limite, onde acontecimentos destrutivos podem
acontecer a qualquer momento. Mediante a experiência vivida ou, simplesmente, o
medo da violência pode gerar danos similares à saúde, principalmente no pré-
adolescente, dada a sua condição de vulnerabilidade emocional. “Sempre se pagará,
sério preço orgânico e psíquico, por se viver o medo. O medo faz definhar” (Morais,
1985, p.14/15).
Tardivo (2019) define o medo como uma emoção caracterizada como uma
resposta iminente a ameaça real ou percebida. Complementa que, aspectos culturais
são relevantes na construção e configuração do medo. Para a autora ainda, a
sociedade contemporânea e as inúmeras situações de violência a que se expõem as
pessoas, geram uma sensação de vulnerabilidade.
Tendo em vista tal consideração e, somando-se a isso, a recomendação da
Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), sobre a importância dessa etapa do
desenvolvimento para a realização, e efetividade, de ações de prevenção e promoção
de saúde, compreende-se que um estudo que envolva a investigação do medo dos
218
pré-adolescentes pode ser interessante na medida que permite conhecê-los mais
profundamente para, se necessário propor, medidas interventivas. Isto é, de cuidado.
OBJETIVO
MÉTODO
Estudo qualitativo realizado em dois encontros, denominados Oficinas
Psicológicas. Para este estudo, apresentou-se o material produzido por um grupo de
7 participantes, 5 meninos e 2 meninas, entre 10 e 11 anos, de uma classe do quinto
ano do Ensino Fundamental composta por 31 alunos, de escola pública na cidade de
São Paulo.
Como procedimento, aplicou-se no primeiro encontro do estudo, o
Procedimento de Desenho-Estória com Tema (DE-T) “Desenhe o medo de pré-
adolescentes na cidade de São Paulo hoje e escreva uma história no verso da folha”.
No segundo encontro, foi solicitado aos mesmos jovens que se reunissem em grupo
e confeccionassem cartazes a partir da orientação: “Como lidar com os medos”.
O estudo faz parte do Projeto de Pesquisa intitulado “Os medos infantis na
contemporaneidade: relevância e repercussões interculturais a partir de dados do
Brasil, França, Bélgica e Espanha” coordenado no Brasil pela professora livre docente
Leila S.L.P.C. Tardivo, e que visa investigar, identificar e compreender os principais
medos de escolares até 12 anos, em diferentes países: Brasil, Bélgica, Espanha e
França a fim de pensar em ações interventivas e preventivas.
219
Desenho-Estória com Tema que visa investigação de imaginários coletivos, proposto
por Aiello-Vaisberg (2004), originado da criação de Trinca (1987). O Procedimento
vem sendo empregado por Tardivo (2007) e equipe, que propõe que se alie ao estudo,
a possibilidade de intervenção, a partir de como o indivíduo representa uma situação
ou condição.
Na sala onde se desenvolveu o estudo o medo da violência predominou.
Assaltos, armas e ataques foram representados nos desenhos e nas histórias
elaboradas. Foram utilizados no presente estudo, as produções de 7 pré-
adolescentes, 5 meninos e 2 meninas, sendo os desenhos exibidos nas Figuras 1 a
7, que ilustram o medo predominante da sala composta por 31 alunos.
“Eu estava no ônibus com minha mãe e as “Tenho medo dessas coisas porque
amigas e as filhas delas, até que chegou
acontece muito” *
um homem. Eu e as meninas estávamos no
fundo, quando ele perguntou se a gente
menina, 11 anos
estava sozinha, mas não. A polícia passou
na frente do ônibus e ele se escondeu. Eu e
as filhas das amigas começamos a chorar,
e ele desceu do ônibus” *
menina, 10 anos
220
Figura 3: História C Figura 4: História D
Figura 7: História G
menino, 10 anos
221
A segunda parte das Oficinas Psicológicas seguiu com a proposta de que os
participantes criassem cartazes oferecendo, por meio lúdico, soluções para lidarem
com seus medos. Foi dada a eles a orientação “confeccione cartazes respondendo à
questão: o que fazer para encontrar meios e saídas para lidar com os medos?”
Na sala investigada, os escolares (nem todos estavam presentes nesse dia-
havia 27 alunos) foram divididos em 5 grupos com uma média de 6 pré-adolescentes
em cada um. Assim, propuseram as soluções por eles imaginadas.
222
Na sala investigada, percebeu-se a ideia de falar com os adultos, pais,
psicólogo e polícia apareceu em 4 dos 5 grupos, ou seja, sujeitos identificaram a figura
do adulto enquanto representantes potenciais de resolução, segurança e confiança.
DISCUSSÃO
A partir dos resultados obtidos por meio da temática do medo com o auxílio do
DE-T observou-se que o medo da violência urbana se apresenta como a principal
preocupação dos pré-adolescentes da amostra investigada. ), a violência é alvo de
preocupação por parte de toda a sociedade de modo que os adolescentes estão tão
envolvidos quanto os demais.( Santana e Camargo 2005)
Dentre as particularidades e complexidade do medo da violência descrito pelos
participantes, encontra-se o medo de assaltos, que aparece com predominância nas
histórias (A, B, C, D, F e G), levando mais vez ao encontro com o cotidiano,
coadunando com os dados de altos índices deste tipo de violência, fornecidos pela
SSP (2018), na cidade de São Paulo. Na história G, parece que o saber da violência,
mesmo em outro país, gera similar sensação de medo. Nas construções elaboradas
pelos pré-adolescentes apareceu para além da temática do próprio medo de sofrer
com a violência, o imaginário dos participantes à respeito das causas da violência,
como na história F, onde o escolar sugere que a causa de alguém se tornar um ladrão
origina-se da privação e dificuldades, o que, segundo sua perspectiva, seriam causas
que levariam à violência/marginalidade.
Estas percepções dos pré-adolescentes, configuram-se como indício do impacto
da violência na esfera do desenvolvimento coletivo e individual. Tardivo, Pinto Júnior
223
e Santos (2005) alertam para o fator de risco de prejuízos no desenvolvimento quando
exposição à violência física ou psicológica. Outras consequências originadas da
exposição à violência, ou medo dela, aparecem ainda nas histórias A e E. Na primeira,
consequências imediatas como tristeza e choro ficam evidentes diante da exposição
e experiência de um episódio de violência, uma tentativa de assalto; e na outra criação,
uma história fictícia de alguém que se vingaria de um ato de violência extremo de
roubo e homicídio; sugerindo mais uma vez as consequências no desenvolvimento
dos pré-adolescentes descrito por Tardivo, Pinto Júnior e Santos (2005).
Ainda sobre as possíveis consequências sugeridas nas histórias elaboradas,
foi possível perceber que, das sete criações, três pré-adolescentes insinuaram terem
sido eles mesmos vítimas de assaltos (A,D e G) e indicaram o medo que sentem a
partir da experiência vivida; os outros quatro não deram indícios de serem sujeitos das
histórias, mas o medo pareceu como similar em todas as sete construções de
desenhos e histórias por eles criados. Os danos causados pela exposição ou medo
da violência parecem cobrar peço similar, recorrendo a Morais (1985) afirmando o
autor haver um sério preço orgânico e psíquico, por se viver o medo, em suas
palavras, o medo faria definhar. Tal perspectiva vai de encontro as colocações de
Tardivo (2019), quando, se pode pensar na emoção do medo como uma resposta
iminente a ameaça real ou percebida.
Quando se trata dos conteúdos que contemplam a violência, pode-se perceber
os componentes da cultura. No presente caso, os dados preocupantes fornecidos
pelas instituições de referência mundiais e nacionais que se debruçam em fornecer
informações a respeito do impacto da violência urbana, corroborando com a sensação
de vulnerabilidade descrita pelos pré-adolescentes (OMS, 2018; OPAS, 2019; SSP,
2019; IPEA, 2019).
Na segunda parte das Oficinas Psicológicas onde se trabalhou a elaboração dos
conteúdos temidos pelos participantes, percebeu-se que estes sentem a necessidade
de encontrar apoio e segurança. De modo que, apesar do medo ainda presente,
demonstraram sentimento de esperança. A figura do adulto foi considerada como uma
possibilidade de sentirem menos afetados pelo medo da violência. Winnicott (1982)
aponta que quando uma criança não se sente segura, mas ainda tem esperança,
procura uma estrutura no ambiente que possa lhe tirar parte de sua angústia, e “esta
segurança pode vir de adultos como avós, tios, professores, amigos” (p.257).
Coaduna-se com o que as crianças da amostra demonstraram, ou seja, esperança de
224
sair do labirinto do seu medo, um medo tão real como é a violência em que a sociedade
em geral está inserida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Dahlberg, L. L., & Krug, E.G. (2006). Violência: um problema global de saúde
pública. Ciência & Saúde Coletiva, 11(0), 1163-1178.
225
Organização Mundial da Saúde (2018). The Burden of Mental Disorders in the region
of the Americas, 2018. Disponível em
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_joomlabook&view=topic&id=210
Tardivo, L.S.L.P.C., Pinto Junior, A. A., & Santos, M. R. (2005). Avaliação psicológica
de crianças vítimas de violência doméstica por meio do teste das fábulas de
Düss. Revista de Psicologia da Vetor Editora, 6(1), 59-66.
Winnicott, D.W. (1982) A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: LTC Editora
226
17- QUAL AUTOAGRESSÃO? APROXIMAÇÕES DO TEMA
“AUTOAGRESSIVIDADE” EM CRIANÇAS
1. Introdução
O interesse por estudar este tema surgiu a partir da prática clínica das
pesquisadoras que perceberam uma comoção entre pais, escolas e profissionais da
saúde diante da possibilidade de crianças iniciarem a prática de autoagressão no
contato com vídeos, jogos ou aplicativos como Baleia Azul (em 2017), SimSimi (em
2018) e Momo (em 2018/2019). Estes conteúdos foram veiculados nas mídias digitais
comumente acessadas pelo público infanto-juvenil nos últimos três anos, e
incentivavam a prática autoagressiva e o suicídio de crianças valendo-se de ameaças
às suas famílias.
O objetivo deste trabalho é fazer uma revisão narrativa de literatura numa
aproximação do tema autoagressividade infantil. Além disso pretende-se verificar se
227
existem estudos que possam justificar a preocupação parental sobre a motivação
infantil para a autoagressão.
Desde 2009, o SINAN (Sistema de Notificação de Agravos de Notificação),
recurso de Vigilância Epidemiológica do SUS (Sistema Único de Saúde), recomenda o
preenchimento da Ficha de Notificação de Investigação de Violência Interpessoal ou
Autoprovocada, parte do Sistema VIVA (Sistema de Vigilância de Violências e
Acidentes), cujo preenchimento tornou-se compulsório por meio da Portaria GM/MS
nº 2.472 de 31 de agosto de 2010. Estes dados estão disponíveis no site do DATASUS
(2019), banco de dados do Ministério da Saúde. O Gráfico 1 mostra o número total de
notificações de violência autoprovocada (por força corporal, objeto contundente,
objeto perfurocortante, objeto ou substância quente, envenenamento e enforcamento)
em crianças entre 5 e 14 anos de idade, na cidade de São Paulo de 2013 a 2017, ou
seja, dos cinco últimos anos publicados no site até o momento:
2017 387
58
2016 173
25
2015 89
8
2014 0
0
2013 0
0
Estes dados precisam ser avaliados com cautela, já que a experiência das
pesquisadoras no campo da saúde pública constatou a subnotificação de dados de
violência por vários motivos: falta de informação dos profissionais sobre os objetivos
da coleta destes dados, medo de represália das famílias dos pacientes ou dos
agressores, falta de tempo ou de interesse para os devidos registros e até mesmo
desconhecimento da Portaria. Isso pode explicar o fato de nenhuma notificação de
autoagressão ter sido feita nos anos de 2013 e 2014 e o seu sucessivo crescimento.
Além disso, estas notificações podem ser feitas pelo profissional de saúde na
suspeita de violência ou agressão, prescindindo de investigação, o que já compromete
228
a confiabilidade e objetividade dos dados registrados. É possível que os dados sejam
referentes aqueles eventos que chegam aos serviços de saúde de urgência e
emergência em caráter acidental, e não por ocorrerem com maior frequência ou de
forma deliberada entre as crianças e adolescentes. Vale lembrar que nos serviços
particulares de saúde as notificações de violência ainda são um tabu, muitas vezes
não constando das estatísticas do Ministério da Saúde.
Segundo o site da Prefeitura do Município de São Paulo (2019), dados do IBGE,
com base no censo de 2010, estimam uma população geral de 11.253.503 habitantes
na cidade, sendo 758.279 crianças de 5 a 9 anos e 867.430 crianças de 10 a 14 anos.
Sendo assim, o número de notificações registadas no DATASUS não chegaria a 1%
da população geral.
Em abril de 2019, o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos
sancionou a Lei nº 13.819/2019, que institui a Política Nacional de Prevenção da
Automutilação e do Suicídio. Esta lei também prevê a notificação compulsória e
sigilosa em casos de tentativas de suicídio e práticas de automutilação de crianças,
adolescentes e jovens por estabelecimentos de saúde, segurança, escolas e
Conselhos Tutelares. Este ministério estima que 20% de jovens (14 milhões de
pessoas) no Brasil, se automutilam. No site não há estatísticas disponíveis sobre o
tema e nem menção quanto às formas com que as notificações deverão ser feitas, há
apenas a notícia sobre a capacitação de profissionais para atendimento telefônico de
possíveis casos.
Segundo o DSM 5 (2014), Plener e Fegert (2012), Zetterqvist (2015), Rodríguez
(2017) e Santos e Faro (2018), o fenômeno da autoagressividade vem crescendo nos
últimos anos, principalmente entre adolescentes entre 12 e 15 anos de idade, na sua
maioria entre o sexo feminino (com a proporção entre o sexo feminino e masculino de
3:1 ou 4:1). Os autores mencionam ainda que a autoagressividade pode acometer
crianças de ambos os sexos a partir dos 8 ou 9 anos de idade. A duração média desta
prática é de 3,5 anos, não estando necessariamente ligada ao suicídio. Selby et al.
(2013) entendem que a prática autoagressiva pode levar, em última instância, ao
comportamento suicida.
2. Desenvolvimento
229
alguma psicopatologia. O DSM 5 (2014) menciona que a prática da autolesão não
suicida pode ser adotada por crianças pequenas no sentido de experimentação, que
descontinuam a prática por causar muita dor, sem a função de trazer algum tipo de
alívio emocional. Ainda de acordo com o DSM 5 (2014), faltam informações acerca do
que pode incentivar ou inibir o surgimento e o desenvolvimento desta prática, mas
observa-se que, quando uma pessoa que pratica autolesão não suicida é internada,
outras pessoas tendem a iniciar a prática.
Plener e Fegert (2012) verificaram que, desde os anos 60, há registros de
práticas autoagressivas, embora o primeiro estudo epidemiológico tenha ocorrido
somente em 2002. Santos e Faro (2018) ressaltam que durante muito tempo este
comportamento foi entendido como relacionado ao suicídio e ao Transtorno de
Personalidade Borderline, o que tem se mostrado pouco preciso.
Os achados das pesquisas mais recentes, segundo Plener e Fegert (2012),
permitiram a revisão de critérios do DSM IV, que entendia que a prática autolesiva não
suicida configurava um dos sintomas do Transtorno de Personalidade Borderline.
Na busca de uma definição do fenômeno da autoagressividade na infância foi
consultado o site da International Society for the Study of Self-Injury, www.itriples.org,
que reúne diversos materiais sobre autoagressão, entre eles, algumas escalas. Estas
escalas supõem que haja uma deliberação auto danosa na prática da autoagressão
não suicida, incluindo nesta definição um grande espectro de comportamentos a partir
de diferentes pressupostos.
A Escala de Avaliação de Condutas de Automutilação (SHI) de Sansone,
Sansone e Wiederman (1998) refere: o abuso de álcool, dirigir irresponsavelmente,
esquecer de tomar medicamentos, envolvimento em relacionamentos promíscuos,
envolvimento em relacionamentos para ser rejeitado, envolver-se em relacionamentos
abusivos, torturar-se com pensamentos autodestrutivos, passar fome para punir-se,
uso abusivo de medicamentos (incluindo laxantes), faltar ao trabalho sem motivo e
comportamentos que significam punição por ter se distanciado de Deus. No
Questionário de Auto Injúria (SIQ) de Alexander (1999) os comportamentos
autoagressivos seriam: cirurgias estéticas sem necessidade ou em excesso, fazer
tatuagens, ‘body piercing’ ou furar orelhas excessivamente, ingerir álcool até vomitar
ou passar mal, usar drogas ilegais, abusar de medicamentos prescritos, vomitar após
ingerir uma grande quantidade de alimentos, comer excessivamente, não alimentar-
se de propósito (exceto por motivos religiosos), uso de laxantes ou diuréticos sem
230
necessidade, praticar atividade física quando doente, fumar, dirigir de forma arriscada,
evitar consultas médicas mesmo quando doente, relacionar-se com pessoas
perigosas, envolver-se em brigas, fazer sexo desprotegido, machucar cutículas ou
unhas de forma proposital.
Já a escala Alexian Brothers Assessment of Self-Injury, de Washburn et al.
(2015) inclui outros comportamentos como: inserir coisas sob a pele, sufocar-se
intencionalmente, lançar-se de escadas, não seguir orientações médicas e exercitar-
se excessivamente para causar dor. A Escala de Avaliação Sobre Autoinjúria (ISAS),
de Klonsky e Olino (2008) aparece com bastante frequência nas pesquisas mais
recentes. Nela, a autoagressividade é avaliada pelos comportamentos de: cortar-se,
morder-se, queimar-se, gravar símbolos sobre a pele, beliscar-se, puxar ou arrancar
os cabelos, coçar-se ou arrancar a pele até ferir, bater no próprio corpo, esfregar a
pele em superfícies ásperas, perfurar o corpo e ingerir substâncias perigosas.
Santos e Faro (2018) e Completo (2014) ressaltam a heterogeneidade da
terminologia relacionada às condutas autoagressivas na literatura científica. Os
autores identificam termos que, na literatura, já foram entendidos como sinônimos, a
saber: automutilação, autodano, autoinjúria, ‘caving’, ‘cutting’, autolesão,
parassuicídio, comportamento suicidário, autoabuso, violência autoinfligida.
Guerreiro e Sampaio (2013) perceberam que, na literatura de língua inglesa, há
divergências na denominação de condutas autoagressivas. A automutilação
deliberada (deliberate self harm) inclui todos os tipos de autolesão sem se
preocuparem com a sua intencionalidade e reconhecendo a dificuldade de
mensuração do fenômeno. A autolesão não suicida (non suicidal self injury) envolve a
intensão de lesionar a pele de diferentes formas, mas sem a intenção suicida.
Segundo os autores, as diferenças sobre as nomenclaturas atribuídas ao fenômeno
de autolesão e as diferentes compreensões acerca da intencionalidade (suicida ou
não suicida) geram imprecisões no levantamento de dados epidemiológicos e
impedem os avanços das pesquisas relacionadas ao tema.
Existem outros vieses no levantamento de dados, aventados por Guerreiro e
Sampaio (2013) e pelo DSM 5 (2014). Eles estariam relacionados à confiabilidade dos
dados (por serem autorreferidos), à avaliação da intencionalidade da pessoa ao
autolesionar-se (muitas vezes a pessoa não tem consciência do que a leva a este
comportamento), às motivações do início desta prática (geralmente não mencionada)
e à constatação de que geralmente as pessoas que se autolesionam não buscam
231
nenhum tipo de serviço de saúde. O DSM 5 (2014) questiona se as pessoas não
buscam os serviços de saúde porque estas práticas são entendidas como
estigmatizantes ou porque são comportamentos percebidos como positivos pelo
praticante.
Zetterqvist (2015) identificou diferenças de intenção, métodos, letalidade,
frequência e funções das práticas autolesivas. A conclusão da autora é a necessidade
de mais estudos sobre o tema para a sua caracterização como doença, para a
identificação dos riscos, prevalência e prevenção.
Rodríguez (2017) questiona se este fenômeno da autolesão não suicida deve
ser compreendido como um sintoma de outros transtornos ou como um transtorno por
si só. O autor encontrou esta prática geralmente associada a doenças como:
hipomania, transtorno opositivo desafiador, transtorno obsessivo compulsivo,
diferentes formas de angústia, déficit de atenção com hiperatividade, ansiedade
generalizada, distimia, fobia social, transtornos de conduta, dependência de álcool,
bulimia e drogadição.
Na atual literatura científica Santos e Faro (2018), Zetterqvist (2015), Completo
(2014), Guerreiro e Sampaio (2013), Klonsky (2007) apontam a tendência em definir
a autolesão não suicida como o ato deliberado de machucar diferentes partes do corpo
sem intenção suicida. Santos e Faro (2018), e Completo (2014) entendem que dentro
das condutas autolesivas existe uma classe de comportamentos denominados
comportamentos indiretamente autolesivos, que se caracterizam por serem
involuntários, prazerosos, divertidos e não acarretarem prejuízos imediatos ao
praticante, mas que podem ser nocivos a longo prazo.
Bohne e Wilhelm (2005) estudaram comportamentos como roer unhas, puxar
cabelos e machucar a pele como patologias sub-reconhecidas com início na infância.
Embora estes comportamentos tenham a capacidade de, isoladamente e a longo
prazo, acarretarem infecções, cicatrizes, ausência de pelos e deformações da pele,
das unhas e até mesmo deformações posturais, eles não têm um estatuto reconhecido
de doença, constando na literatura como sintomas relacionados a patologias do
controle dos impulsos ou caracterizando a escoriação neurótica (ou skin-picking). Os
autores enfatizam que, muitas vezes, estes comportamentos não são diferenciados
em graus de gravidade e são acompanhados de justificativas estéticas aceitáveis
socialmente, como espremer espinhas e cravos, remover os cabelos grisalhos ou mais
crespos, ou aparar as unhas.
232
Diferente do que foi exposto até o momento, Bohne e Wilhelm (2005)
mencionam que os fatores desencadeantes do comportamento autoagressivo seriam,
além de sentimentos negativos, a percepção tátil ou visual de irregularidades na pele
ou unhas, a proximidade entre mão e rosto, ocorrendo até mesmo na ausência de
pensamentos com mãos ociosas. Outro dado relevante é que o comportamento de
roer unhas ocorre na sua grande maioria entre os homens. As consequências deste
tipo de autoagressão seriam a vergonha e retraimento social.
No DSM 5 (2014) o termo ‘autoagressão’ aparece oito vezes, o termo
‘autolesão’ aparece setenta e três vezes e o termo ‘automutilação’ aparece dezoito
vezes. Enquanto sintoma, a autoagressão está presente nos quadros de transtornos
do neurodesenvolvimento (deficiências mentais e autismo por exemplo) como
decorrentes de condutas motoras repetitivas ou de estereotipias motoras. Sintomas
autoagressivos aparecem ainda em quadros catatônicos como consequência de
atividades motoras excessivas. Nos transtornos de pica, que levam à ingestão de
substâncias não nutritivas, a autoagressão pode se caracterizar pela ingestão de
coisas potencialmente nocivas ao organismo. Enquanto parte dos sintomas dos
transtornos de impulso, as autoagressões resultam de transtornos de comportamentos
repetitivos recorrentes e focados no corpo. A autoagressão aparece também nos
transtornos dissociativos, de identidade ou de personalidade, geralmente associada a
perturbações da consciência, como ocorre nos estados hipnóticos, estados de
despersonalização e personalidade borderline.
A autoagressão ganha um estatuto nosológico no DSM 5 (2014) quando se fala
em tricotilomania, skin-picking e autolesão não suicida. Neste manual a tricotilomania
é caracterizada como:
A. Arrancar o próprio cabelo de forma recorrente, resultando
em perda de cabelo.
B. Tentativas repetidas de reduzir ou parar o comportamento
de arrancar o cabelo.
C. O ato de arrancar cabelo causa sofrimento clinicamente
significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional
ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
D. O ato de arrancar cabelo ou a perda de cabelo não se deve
a outra condição médica (p. ex., uma condição
dermatológica).
E. O ato de arrancar cabelo não é mais bem explicado pelos
sintomas de outro transtorno mental (p. ex., tentativas de
F. melhorar um defeito ou falha percebidos na aparência, no
transtorno dismórfico corporal). (DSM 5, 2014, p.251)
233
Já nos transtornos de escoriação, ou skin-picking, a autolesão obedece aos
seguintes critérios diagnósticos do DSM 5 (2014):
234
angústia generalizada ou autocrítica, ocorrendo no período
imediatamente anterior ao ato de autolesão.
2. Antes do engajamento no ato, um período de preocupação
com o comportamento pretendido que é difícil de controlar.
3. Pensar na autolesão que ocorre frequentemente, mesmo
quando não é praticada.
D. O comportamento não é socialmente aprovado (p. ex., piercing
corporal, tatuagem, parte de um ritual religioso ou cultural) e não
está restrito a arrancar casca de feridas ou roer as unhas.
E. O comportamento ou suas consequências causam sofrimento
clinicamente significativo ou interferência no funcionamento
interpessoal, acadêmico ou em outras áreas importantes do
funcionamento.
F. O comportamento não ocorre exclusivamente durante episódios
psicóticos, delirium, intoxicação por substâncias ou abstinência
de substâncias. Em indivíduos com um transtorno do
neurodesenvolvimento, o comportamento não faz parte de um
padrão de estereotipias repetitivas.
O comportamento não é mais bem explicado por outro transtorno
mental ou condição médica (p. ex., transtorno psicótico,
transtorno do espectro autista, deficiência intelectual, síndrome
de Lesch-Nyhan, transtorno do movimento estereotipado com
autolesão, tricotilomania [transtorno de arrancar o cabelo],
transtorno de escoriação [skin-picking]). (DSM 5, 2014, p.803 e
804)
3. Conclusão
A autoagressividade é um comportamento crescente entre crianças e
adolescentes. Ainda assim, os pesquisadores parecem não conseguir mensurar este
fenômeno ou levantar dados de forma objetiva e confiável pela heterogeneidade com
que a autoagressão se manifesta, a dificuldade de acesso ao fenômeno, a
multiplicidade e imprecisão das definições e de terminologias a ela relacionadas. As
definições existentes abarcam somente os casos mais graves de autoagressão,
235
podendo haver aqueles que passam despercebidos ou que são desconsiderados
enquanto formas de sofrimento mental apontando para uma insuficiência destas
definições.
As escalas internacionais têm adultos como público-alvo e abarcam um grande
número de comportamentos autodanosos, o que dificulta a coleta e a comparação dos
dados. Parece não haver pesquisas sobre crianças abaixo dos 12 anos de idade
praticantes de autoagressão embora se saiba que elas existem.
REFERÊNCIAS
Alexander, L. A. (1999). The functions of self-injury and its link to traumatic events in
college students. ProQuest Dissertations and Theses, (February), 79--79 p.
Recuperado de
http://search.proquest.com/docview/304515512?accountid=14553%5Cnhttp://op
enurl.library.uiuc.edu/sfxlcl3?url_ver=Z39.88-
2004&rft_val_fmt=info:ofi/fmt:kev:mtx:dissertation&genre=dissertations+&+these
s&sid=ProQ:ProQuest+Dissertations+&+Theses+Full+Text&atitl.
Klonsky, D., & Olino, T. M. (2008). Identifying Clinically Distinct Subgroups of Self-
Injurers Among Young Adults: A Latent Class Analysis. Journal of Consulting
Pychology, 76(1), 22–27. Recuperado de https://psycnet.apa.org/fulltext/2008-
00950-004.pdf.
Lewis, S. P., & Plener, P. L. (2015). Nonsuicidal self-injury: A rapidly evolving global
field. Child and Adolescent Psychiatry and Mental Health, 9(1), 4–6. Recuperado
de https://doi.org/10.1186/s13034-015-0081-4.
236
da Saúde. Roteiro para uso do SINAN NET, análise da qualidade da base de
dados e cálculo de indicadores epidemiológicos e operacionais: violência
Interpessoal / autoprovocada. Brasília, 2019. Recuperado de
https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=2a
hUKEwiKuuDIpefjAhWoErkGHd0_CboQFjAAegQIABAC&url=http%3A%2F%2Fp
ortalsinan.saude.gov.br%2Fimages%2Fdocumentos%2FAgravos%2FViolencia
%2FCADERNO_ANALISE_SINAN_Marco_2019_V1.pdf&usg=AOvVaw21Qi3Ew
koqca9Y26fWuL1s.
Plener, P. L., & Fegert, J. M. (2012). Non-suicidal self-injury: State of the art
perspective of a proposed new syndrome for DSM V. Child and Adolescent
Psychiatry and Mental Health, 6(1), 9. Recuperado de
https://doi.org/10.1186/1753-2000-6-9.
Santos, L. C. S., & Faro, A. (2018). Aspectos conceituais da autoinjúria: Uma revisão
teórica. Revista Psicologia Em Pesquisa, 12(1), 1–10. Recuperado de
https://doi.org/10.24879/201800120010092.
Washburn, J. J., Potthoff, L. M., Juzwin, K. R., & Styer, D. M. (2015). Assessing DSM–
5 nonsuicidal self-injury disorder in a clinical sample. Psychological Assessment,
27(1), 31–41. Recuperado de https://doi.org/10.1037/pas0000021.
237
18-O DESENHO DA FIGURA HUMANA COM HISTÓRIA: UM ESTUDO DE
CASO
Introdução
238
vertente psicanalítica e dos achados de Koppitz (1973) e Trinca (1997) sobre a
validade das técnicas projetivas envolvendo a produção de uma figura humana em
contexto clínico e de triagem. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho foi realizar a
aplicação do DFH-H em um adolescente com queixas de sudorese e introversão a
fim de investigar os seus aspectos emocionais.
Método - Instrumento
Procedimento
As seguintes instruções são lidas para a criança: Nesta folha eu quero que
você faça o desenho de uma pessoa. Faça o mais bonito que você puder. Leve o
tempo que quiser e trabalhe com muito cuidado. Se a criança fizer um desenho do
tipo esquemático, como palitos, aceitar o desenho e pedir um outro que seja mais
completo e que não seja de palitos; (2) se a criança pedir sugestões ou tiver dúvidas
sobre como fazer alguma parte do desenho, deve-se dizer: Faça da maneira como
você achar melhor, sem fornecer instruções específicas. Terminado o desenho e
sem retirar a folha da frente da criança, o entrevistador solicitará a ela que conte
uma história associada ao desenho: Você, agora, olhando o desenho, pode inventar
uma história, dizendo o que acontece. Lembrando que a história deve ser registrada
por escrito, durante a entrevista, seja pela criança ou pelo entrevistador.
239
uma parte ambígua do desenho, o examinador pode perguntar (apontando): “O que
é isto?” As respostas das crianças devem ser anotadas (em outra folha) e a
identificação das partes deve ser feita diretamente nos desenhos. Não é necessário
fazer perguntas sobre aspectos claros do desenho. Para finalizar, solicita-se que dê
um título para a história.
Participante
Resultados e discussão
240
ausência de normas para a sua faixa etária (14 anos) e à falta de boa parte dos
indicadores maturacionais, já que a figura foi representada somente até o tronco.
Sua produção apresentou os seguintes Indicadores Emocionais: (8) figura grande,
(15) braços colados ao corpo, (17) mãos cortadas, (28) omissão das pernas e (29)
omissão dos pés. Segundo Koppitz (1973 apud Rosa, 2018), a presença de dois
Indicadores Emocionais já indicaria possíveis dificuldades emocionais e a
necessidade de encaminhamento da criança para avaliação psicológica.
241
ansiedade, resultados confluentes com os encontrados em sua história. Do mesmo
modo, a ausência das pernas (28) e dos pés (29) também indica insegurança e
angústia, uma certa ausência de apoio emocional no qual se firmar, bem como
presença de grande timidez. Além disso, a não representação da parte inferior do
corpo pode indicar dificuldades no enfrentamento de questões sexuais, fato, no
entanto, esperado para um jovem de 14 anos em período puberal.
242
Figura 1 - DFH-H de um menino de 14 anos de idade.
História:
L: “Ele está olhando para o lado, para a esquerda ou
para a direita? esquerda, eu acho. Olhando com uma
cara de estranhamento, eu acho.
Inquérito:
[...] Aplicador: Onde ele está?
243
L: Na rua. (Cobre a cara com o capuz e o rosto fica escondido dentro
do capuz até o fim do procedimento)
Aplicador: Será que tem algo escondido?
L: (Silêncio durante 01’05”). Um acidente de carro. [...] O carro estava
em uma rua reta e bateu em uma placa [...] de limite de velocidade.
[...] Aplicador: Alguém se
feriu? L: Não.
Aplicador: Teve socorro?
L: Não.
Aplicador: E as pessoas?
L: Dois adultos. Estão desesperados com o
carro. [...] Aplicador: O que você vê?
L: Várias pessoas olhando e outras
ignorando. [...] Aplicador: Dá para consertar
o carro?
L: Deve dar. [...] Precisa de capô novo, para-choque novo, remoldar a
frente do carro, trocar os pneus, trocar o acelerômetro, alguns fios.
faróis. Acho que só!
Título: O acidente
Conclusões
244
puberal. Nesse sentido, a utilização do DFH-H como instrumento de triagem ou de
avaliação inicial pode ser de grande valia para a construção de um quadro clínico
do paciente, sobretudo no que concerne aos aspectos projetivos e emocionais,
âmbito de análise deste estudo. Desse modo, fazem-se necessárias mais
pesquisas, com amostras mais amplas bem como estudos clínicos, para confirmar
o emprego desse procedimento e sua validade.
Referências
Migliorini, W. J. M., & Rosa, H. R. (2018). Desenho da Figura Humana com Estória:
um procedimento para entrevista inicial com crianças e adolescentes.
Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras,
Assis, Brasil/Universidade de São Paulo (USP), Instituto de Psicologia, São
Paulo, Brasil. Assis.
Tardivo, L.S.P.C. Leila (1997). Análise e interpretação. In: Walter Trinca (org.).
Formas de investigação clínica em psicologia: Procedimento de desenhos-
estórias: Procedimento de desenhos de família com estórias. Vetor.
245
19-SOBRE A FALTA E O MEDO: O IMPACTO DA RELAÇÃO TERAPÊUTICA NA
VIDA DE DOIS IRMÃOS
INTRODUÇÃO
246
Dentre as formas de violência contra crianças e adolescentes, os maus-tratos
figuram como uma das mais danosas, principalmente devido a sua prevalência e aos
impactos que causam no desenvolvimento dos jovens afetados. Nesse cenário, a
negligência é a modalidade de maus-tratos mais frequente em diversos países,
incluindo o Brasil (Pasian et al., 2013). Fonseca e Ferreira (2019), propõe uma
definição de negligência que compreende
247
Conforme já apontava Winnicott (1975, citado por Campos & Arruda, 2014), o brincar
é por si mesmo terapêutico, podendo prescindir de interpretação verbal, sendo papel
do terapeuta sustentar este brincar do paciente.
OBJETIVOS
RELATOS DE EXPERIÊNCIA
Bruno
Bruno, foi atendido pela primeira autora deste relato durante dois anos, dos
seus 9 aos 11 anos. As queixas iniciais indicavam que era um menino agitado e com
dificuldades de concentrar-se. A escola havia recomendado a busca por atendimento,
já que o menino não aprendia a ler ou escrever e, seu comportamento causava
prejuízo na relação com as outras crianças.
Foram realizadas entrevistas com os principais cuidadores do menino, em que
foi possível delinear sua história. Esta mostrou-se marcada por constante
instabilidade, característica do modo como sua mãe, Anita, foi construindo as relações
importantes da vida dos dois.
Bruno não conheceu o pai biológico, mas no seu primeiro ano de vida, o
companheiro de sua mãe, Richard, tornou-se pai de consideração do menino. Neste
casamento foi concebido um segundo filho, Luís, que, desde o início da vida, mora
com a família de Richard, tendo um contato pobre com os pais e o irmão. Após o
primeiro ano de atendimento de Bruno, o irmão mais novo passou a ser atendido pela
segunda autora deste relato.
Um acontecimento relevante na história de Bruno, que aponta sinais de
negligência, foi um acidente doméstico grave que ocorreu quando era muito pequeno,
248
colocando-o em uma situação de risco de vida, mas do qual se recuperou sem
sequelas importantes.
Pouco após o nascimento do segundo filho, Anita separou-se de Richard e este
passou a ter um contato quase inexistente com Bruno. Desde as entrevistas, Anita
mostrou-se uma mulher muito prática, assertiva e tempestuosa, com dificuldades
importantes de investir no vínculo com os filhos. Se ausentando de sua casa, durante
a maior parte do dia e negligenciando aspectos importantes do cuidado com Bruno,
como a necessidade de a criança ficar acompanhada de um adulto durante o período
que fica em casa, ou de haver uma organização de sua rotina. Além disso, mostra
dificuldades de interessar-se pelo universo infantil habitado pelo filho e de acessar um
aspecto mais afetivo do cuidado com a criança.
Há alguns anos, Anita iniciou outro relacionamento, com Adriana, que mora
com ela e Bruno. Ela é retratada como uma cuidadora mais disponível, descrevendo
sua relação com o menino de forma muito afetiva, com histórias bastante ricas em
detalhes de como ela se dedica a essa maternidade, afirmando tê-lo assumido como
filho. Porém, esses relatos contrastam com as outras observações da família, o que
parece indicar que o cuidado vai se dando de forma balizada pelas vontades de Anita.
Bruno, por sua vez, se mostra como uma criança com dificuldades de lidar com
seus impulsos, sendo muito agitado e desconcentrado. Mas que consegue se engajar
bem no contato com a terapeuta, durante as brincadeiras e conversas.
Diante de tudo isso, a primeira estratégia pensada para os atendimentos foi
que o espaço das sessões fosse sendo utilizado para pensar, em conjunto com os
cuidadores, as questões relacionadas às formas de cuidado presentes e possíveis
naquelas relações. E para proporcionar oportunidades de realizarem atividades em
conjunto. Porém, como as expectativas da família para o tratamento da criança,
pareciam passar por um lugar de terceirização do cuidado com o filho, foi sendo um
desafio procurar maneiras de implicá-los no processo.
Ao longo do primeiro ano de atendimento, aconteceu um processo constante
de negociação sobre quem acompanharia o menino. Quando comparecia às sessões,
Anita mantinha uma postura defensiva, oferecendo respostas curtas e mostrando-se
preocupada em se afirmar como uma boa mãe. Fazia um movimento de cancelar as
consultas seguintes, quando havia momentos na sessão em que ela podia examinar
mais profundamente sua relação com o filho, ou em que ela podia se aproximar dele
por meio de brincadeiras propostas.
249
Durante o segundo semestre de atendimento, Bruno foi acompanhado por
Richard algumas vezes. Este se mostrava contrafeito em precisar participar, além de
ficar evidente que não tinha nenhuma intimidade com a vida do filho. Após um
desentendimento com Anita, antes do fim do semestre, parou de levar o menino.
Apesar do não envolvimento dos cuidadores, ao longo do primeiro ano, Bruno vai
apresentando melhora no comportamento e nas dificuldades de aprendizagem.
No ano seguinte, com o início do atendimento do Luís, Bruno passou a ser
levado à psicoterapia, pela família paterna, com quem tinha pouca relação. Com isso,
houve a necessidade de uma mudança de estratégia terapêutica. E o tempo particular
com Bruno foi aproveitado, de maneira geral, com jogos e brincadeiras escolhidos por
ele. Ele apresentou um comportamento bastante competitivo, animado e engajado
nestas atividades. Mostrando predileção por atividades mais estruturadas durante
quase todo o período em que foi atendido.
No último semestre, ocorreu uma mudança e os interesses do menino se
voltaram para recursos criativos, como pintura e massinha de modelar. Além disso, foi
surgindo uma fala espontânea e o menino foi usando o espaço para contar
acontecimentos de sua vida.
Essas mudanças pareceram indicar um fortalecimento do vínculo terapêutico.
Nas primeiras interações com massinha, Bruno se dedicava mais a uma brincadeira
independente, que não incluía a terapeuta. Houve uma ocasião que construiu uma
muralha e colocou uma representação sua dentro, dizendo que morava lá sozinho.
Após algumas sessões, a brincadeira mudou, havendo a construção conjunta de
personagens de massinha, seguida da representação delas realizando atividades,
como jogar videogame e futebol.
Observando o conteúdo das brincadeiras, foi marcante o uso do espaço para
expressar algo de seu sofrimento. Por exemplo, as pessoas que ele criava com a
massinha eram sempre muito finas e, portanto, não se mantinham inteiras,
constantemente perdiam pedaços, o que o leva a concentrar sua atenção quase total,
em tentar reconstruí-las.
Houve, por fim, duas cenas importantes no final do segundo ano de
atendimento. Em uma, Anita relata ter lido mensagens que Bruno trocou com colegas,
em que conta ter sido abandonado por Richard, afirmando que isso o deixaria triste.
Após o ocorrido, Bruno passa a apagar as mensagens de seu celular. Na segunda
250
cena, uma semana após a primeira, Bruno confronta a terapeuta, acerca das
confidencialidades entre ela e sua mãe.
Fica então evidente, que as dificuldades de Anita, determinam ainda, diversas
impossibilidades para exercer uma maternagem suficientemente boa. Há na história
dela marcas profundas, que acabaram por constituir dificuldades importantes de
vinculação. Em comparação, o comportamento de Bruno nos atendimentos e as duas
cenas relatadas, parecem apontar que o menino tem mostrado, cada vez mais,
condições de encontrar possibilidades de cuidado e saúde por si mesmo. E um
possível caminho de terapia futuro seja o fortalecimento da saúde emocional de
Bruno, para lidar e sobreviver às dificuldades de afeto e vinculação que os cuidadores
apresentam. Enquanto proporcione meios de Anita cuidar mais ativamente de suas
questões.
Luís
O primeiro contato da segunda autora deste relato de experiência com a
história de Luís, sete anos, meio-irmão de Bruno, se dá através dos diferentes núcleos
familiares que circundam o menino: seu pai (Richard); sua tia e seu avô paternos
(Verônica e Eduardo); e sua mãe (Anita). Através dos relatos (por vezes consoantes,
por vezes complementares, por vezes contraditórios) de todos os atores desse drama
familiar, a história desse jovem protagonista é delineada.
A gestação de Luís é descrita como tranquila por parte de Anita. Durante as
primeiras semanas de vida, Luís mora com os pais e o irmão mais velho. É a partir de
um acidente de Anita que Luís vai para os cuidados dos pais e irmã caçula de Richard.
Um arranjo que deveria ser temporário vai se estendendo no decorrer de meses, até
que o menino é informalmente adotado pelos familiares do pai. Com a separação de
Anita e Richard, o contato do menino com os pais, principalmente com a mãe, se torna
cada vez mais raro. Na primeira infância de Luís, portanto, seus avós e sua tia figuram
como principais cuidadores, e o desenvolvimento do menino é por eles é descrito
como típico. É apenas quando o menino já está mais velho, a partir dos quatro anos,
que Anita passa a buscá-lo nos fins de semana. Em relação ao pai, ele só o vê
esporadicamente, na ocasião de algum programa diferente.
Quando Luís estava com cinco anos, ocorre um episódio que é descrito
unanimemente como significativo. É época de férias escolares, e Anita leva Luís em
uma viagem. Inicialmente, o período combinado para o passeio é de apenas alguns
251
dias, no entanto, Anita acaba estendendo a viagem para algumas semanas,
contrariando as vontades de Verônica e de Eduardo. Ocorrem trocas tensas entre as
duas famílias, com ameaças (por ambas as partes) de se entrar na justiça pela guarda
do menino.
Após esse episódio e a volta de Luís para a casa do avô e da tia, a relação
entre as famílias se apazigua. Apesar da resolução "pacífica" para o conflito familiar,
seus efeitos no desenvolvimento de Luís não passam despercebidos. Por um lado,
Verônica e Eduardo contam que, após esse incidente, Luís voltou para casa muito
irritado, bravo, "explodindo" com facilidade, e mais desobediente do que era antes.
Por outro, Anita relata que, após a viagem, Luís começou a agir de maneira mais
tímida com ela, se recusando a sorrir, a conversar e a olhar nos olhos. Richard conta
que Luís não responde verbalmente a suas perguntas, sendo necessário que ele o
"obrigue" a falar. Todos os entrevistados afirmam que em situações sociais, tanto com
outras crianças, mas principalmente com adultos (que não sejam Verônica ou
Eduardo), Luís se porta de maneira extremamente retraída, apresentando
impossibilidade de falar e interagir, diferentemente de como se comportava
anteriormente.
Assim, Anita chega ao serviço de psicologia com a hipótese de que seu filho
pode apresentar algum transtorno. Enquanto Verônica e Eduardo defendem que com
eles “o Luís é um menino normal”, apontando que seus problemas comportamentais
e dificuldades interpessoais começaram após a criança passar a ter um contato mais
regular com a mãe. É neste panorama que Luís começa a ser atendido.
Inicialmente, Luís se mostra retraído e fechado. Só entra na sala de
atendimento acompanhado. Não olha na direção da terapeuta, se recusando a
interagir. Durante as brincadeiras, Luís mantém uma expressão neutra/séria no rosto
em todos os momentos.
Após as primeiras sessões, Luís passa a aceitar entrar sozinho com a
terapeuta. A princípio, como o menino brinca de maneira ensimesmada, não sendo
receptivo à participação mais ativa da terapeuta, ela se envolve nas brincadeiras
realizando a narração das ações dos personagens. A partir de tal narração, Luís
começa a reagir de maneira mais explícita, por vezes sorrindo diante de algum
elemento da estória construída conjuntamente. Com o tempo, o menino permite que
a terapeuta participe ativamente de tais brincadeiras, controlando o movimento de
252
certos personagens. Além disso, Luís passa adotar jogos com bola, engajando
ativamente a terapeuta nas partidas.
O momento de virada nos atendimentos ocorre pouco depois das primeiras
brincadeiras com a bola. Ao explorar a caixa lúdica, Luís se depara com dois telefones
de brinquedo e começa a brincar com eles. A terapeuta pergunta se ela pode pegar
um dos telefones emprestado para fazer uma ligação, e Luís coloca um dos telefones
na mesa, mais próximo dela, e depois se afasta, levando o outro consigo. Através
dessa linha telefônica imaginária, a terapeuta manifesta seu desejo por contatar Luís,
mas aceita quando ele se mostra impossibilitado de responder verbalmente. Ela então
"deixa um recado" a ser repassado a Luís, na forma de um elogio fervoroso a suas
habilidades no futebol, seguido de um desafio a uma partida, que ele prontamente
aceita.
Depois dessa troca inicial, torna-se habitual que Luís pegue o telefone e
entregue o outro a terapeuta quando quer lhe dizer algo. A princípio, ele fala de
maneira muito enrolada e murmurada, de forma que é impossível compreender o que
diz. Ainda assim, a terapeuta incentiva tais falas, que vão se tornando mais claras com
o passar do tempo.
Após cinco meses de atendimento, Luís passa a revirar/bagunçar mais a caixa
lúdica e a própria sala de atendimento, demonstrando um comportamento mais
travesso. O menino passa a demonstrar maior agressividade nas brincadeiras. Além
disso, percebe-se que, na própria sala de espera, Luís se porta de forma mais
extrovertida e menos retraída.
Após cerca de seis meses de atendimento, Luís começa a preferir brincadeiras
de faz de conta, nas quais o enfoque está nas ações e trocas estabelecidas entre ele
e a terapeuta, mediadas pelo espaço físico da sala de atendimento. É justamente a
partir de tais brincadeiras que Luís passa a prescindir do uso dos telefones para se
comunicar verbalmente com a terapeuta, e passa a fazê-lo de maneira mais
espontânea, menos tensa e com menores tempos de latência em suas respostas.
Conforme a terapia progride, torna-se comum que, entre uma brincadeira e
outra, Luís suba em cima da poltrona para olhar para fora da janela, e comece um
diálogo qualquer com a terapeuta, diante do qual ela faz perguntas disparadoras e
reage a suas colocações. Ele ainda se mostra reticente em relação a fazer contato
visual com a terapeuta, porém sua postura é menos cabisbaixa e ele é capaz de olhar
da direção do rosto da terapeuta durante as brincadeiras.
253
Por meio de entrevistas com os responsáveis, sabe-se que Luís passou a
interagir com mais facilidade com os colegas na escola, e tem se mostrado mais à
vontade para se comunicar com sua professora. Na casa da mãe, Luís age com mais
segurança e menos timidez, apesar de manifestar dificuldades na interação com Anita.
Com o pai, a relação permanece ambígua, com Luís manifestando vontade de fazer
atividades com Richard, ao mesmo tempo em que apresenta comportamento ansioso
em tais interações.
DISCUSSÃO
254
em vista tais conceitos, é possível realizar uma comparação com o desenvolvimento
manifestado por Luís em seu processo psicoterapêutico, no qual, a princípio, ele
apresentou uma não comunicação reativa (idêntica à que apresenta em outros
contextos cotidianos), sendo depois possível a comunicação silenciosa, o que permitiu
que ele desenvolvesse confiança naquele "mundo" da psicoterapia e passasse a
explorar outras formas de comunicação, inclusive a verbal. Nesse contexto, foi crucial
que a terapeuta pudesse acompanhar o silêncio do paciente, compreendendo tal
silêncio como manifestação de um nível regredido no qual Luís se refugiava e do qual
apenas poderia sair por si só.
Com base nos relatos de experiência, é possível inferir que as terapeutas foram
capazes de manejar o setting de maneira a favorecer a existência do espaço
transicional para as crianças atendidas, ou seja, uma área intermediária entre
realidade subjetiva e realidade compartilhada (Ribeiro, 2007, citado por Costa et al.,
2013), que propicia expressão e amadurecimento emocionais. É nesse espaço que a
criança pode descobrir a si e aos outros/mundo, através da facilitação do terapeuta,
que realiza a apresentação de objetos, bem como oferece holding e handling
(originalmente imcumbências da mãe do bebê), não se ausentando abruptamente –
ou seja, basicamente, atuando como uma mãe suficientemente boa (Costa et al.,
2013). Percebe-se como tal cuidado foi crucial para a melhora das crianças atendidas,
em particular de Bruno, que manifestou o desenvolvimento de habilidades sociais e
de vinculação cada vez mais complexas, investindo em relações inclusive para além
do espaço de terapia. Além disso, mostrou maior domínio e contenção de seu próprio
comportamento, que facilitaram o enfrentamento de suas questões de aprendizagem.
REFERÊNCIAS
255
Efron, A. M., Fainberg, E., Kleiner, Y., Sigal, M., & Woscoboinik, P. (2011). A hora de
jogo diagnóstica: o processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. In:
Ocampo, M. L. S., Arzeno, M. E., & Piccolo, E. G. O Processo Psicodiagnóstico e
as Técnicas Projetivas. São Paulo: Martins Fontes.
França, R. M. P., & Rocha, Z. (2015). Por uma ética do cuidado na psicanálise da
criança. Psicologia USP, 26(3), 414-422.
Pasian, M. S., Faleiros, J. M., Bazon, M. R., & Lacharité, C. (2013). Negligência
infantil: a modalidade mais recorrente de maus-tratos. Pensando famílias, 17(2),
61-70. Recuperado em 16 de novembro de 2019, de
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-
494X2013000200005&lng=pt&tlng=pt.
256
TRABALHOS DO LABORATÓRIO DE SAÚDE
MENTAL E PSICOLOGIA CLÍNICA SOCIAL
SER E FAZER
257
20- “MUNDOS INVERTIDOS”: IMAGINÁRIO COLETIVO SOBRE A RELAÇÃO
HETEROSSEXUAL
258
O Problema de Pesquisa
259
heterossexuais frente aos relacionamentos, constatam imaginários conforme os quais
homens e mulheres vivenciam necessidades conjugais diferentes perante o
relacionamento e, ainda assim, para atingirem a felicidade, precisam casar, trazendo
à tona o mito do amor romântico.
Deparamo-nos com uma sociedade que lida com estigmas relacionados a
construção de uma família nuclear, composta por pais e filhos. O fato de as relações
amorosas heterossexuais causarem sofrimentos sociais é, em si mesmo, bastante
importante do ponto de vista psicológico, mesmo quando só consideramos o homem
e a mulher. Contudo quando lembramos que a sociedade, em que vivemos, considera
a família nuclear, constituída a partir do estabelecimento de laços afetivo-sexuais,
como o melhor ambiente para a proteção e preparação das novas gerações,
percebemos que o tema das relações heterossexuais apresenta alta relevância.
Sabemos que mudanças significativas têm permitido a constelação de novas
configurações familiares, mas tal fato não atinge uma abrangência suficiente para já
enfraquecer imaginários conservadores que idealizam a criação de filhos como
derivada de uma suposta necessidade feminina, biologicamente fundada, de se tornar
mãe e da necessidade masculina de se comportar de modo viril (Zanello, 2018). Tal
idealização, em torno de famílias nucleares tradicionais como ambientes necessários
para a criação de filhos, demonstra a importância da produção de conhecimentos
científicos sobre imaginários relativos às relações heterossexuais.
Estratégias Metodológicas
260
recusa teorizações metapsicológicas, que são o cerne da metapsicologia, afirmando
a primazia do mundo intersubjetivo e relacional na constituição do viver humano.
Para produzir conhecimento compreensivo, a pesquisa qualitativa psicanalítica
que desenvolvemos se articula por meio de uma postura compreensiva perante a
dramática da vida humana. Desse modo, consideramos que os fenômenos
psicológicos ocorrem inevitavelmente em campos intersubjetivos que, por seu turno,
inserem-se em contextos macrossociais econômicos, históricos, geopolíticos e
culturais.
Partindo da psicologia psicanalítica concreta, entendemos como tarefa
necessária definir conceitos de caráter metodológico, com intuito de esclarecer a
proposta de nosso estudo. Utilizamos como diretrizes fundamentais os conceitos de
conduta, campos de sentido afetivo-emocional e imaginário.
O conceito de conduta corresponde a todos os atos e manifestações humanas,
que tomamos como inerentemente carregados de sentidos. As condutas emergem de
campos inter-relacionais, não correspondendo a mero efeito do psiquismo individual,
concebido como isolado do acontecer intersubjetivo.
O campo de sentido afetivo-emocional corresponde à compreensão psicológica
de que todas as manifestações humanas emergem a partir de um fundo
constitutivamente vincular, denominado campo, por meio do qual se constelam
sentidos afetivo-emocionais (Bleger, 1963/2007). Tais campos psicológicos não
conscientes são concebidos, na perspectiva da psicologia psicanalítica concreta,
como inconscientes intersubjetivos, habitados por pessoalidades individuais e
coletivas, segundo os quais se organizam imaginários coletivos.
Assim, tanto a conduta como o campo de sentido afetivo-emocional são
produzidos por atos humanos, na medida em que assumimos metodologicamente,
como psicólogos/psicanalistas, que não invocaremos entidades sobre-humanas nem
infra-humanas como determinantes.
Na medida em que não invocamos entidades sobre-humanas nem infra-
humanas nas determinações dos atos humanos, estamos assumindo que os atos
emergem a partir de campos intersubjetivos que, por seu turno, são criados pelas
próprias condutas. Sendo assim, não existem diferenças ontológicas entre condutas
e campos de sentido afetivo-emocional, de modo que a noção de imaginário serve
para referir tanto atos imaginativos quanto campos imaginários como formas de
atualização da capacidade humana de imaginar, no sentido de criar realidades.
261
Estudar imaginários coletivos a partir de condutas humanas permite chegar
interpretativamente a seus determinantes afetivo-emocionais não conscientes. Na
medida em que os atos humanos podem ser individuais ou coletivos, são várias as
condutas que se prestam a ser tomadas como material de pesquisa de imaginários
coletivos, desde entrevistas, individuais ou coletivas, até manifestações disponíveis
na web e produções culturais, como peças literárias, filmes e canções, entre outros
(Aiello-Vaisberg & Machado, 2008).
Diante do objetivo de produzir conhecimento compreensivo acerca de
imaginários coletivos sobre relações heterossexuais, operacionalizamos o método
psicanalítico a partir de três procedimentos investigativos: produção, registro e
interpretação do material de pesquisa.
O procedimento investigativo de produção do material de pesquisa se cumpriu
a partir da decisão de trabalhar com vídeos do canal “Porta dos Fundos”, disponíveis
na plataforma virtual do YouTube. Tal escolha justifica-se pelo amplo e significativo
acesso ao conteúdo humorístico produzido neste canal. Interessadas em estudar a
temática dos relacionamentos afetivos, inserimos no campo de busca, do canal “Porta
dos Fundos”, as palavras: relacionamento e casamento, o que nos levou ao contato
com diversos vídeos, dentre os quais selecionamos três produções por tematizarem
manifestamente essa temática, considerando, ainda, os impactos
contratransferenciais que geraram sobre as pesquisadoras, que os vivenciaram como
especialmente expressivos. Os vídeos estão denominados no canal do YouTube da
seguinte forma: “Precipício”, “Histérica” e “Bromance”.
Em relação ao procedimento investigativo de registro do material de pesquisa,
salvamos os próprios vídeos, de modo a ficarmos independentes da possibilidade de
se tornarem indisponíveis na web.
Finalmente, no que tange o procedimento investigativo de interpretação do
material de pesquisa, entramos em contato com os três vídeos repetidas vezes,
mantendo-nos em estado de atenção flutuante, para que pudessem surgir as
associações livres. Inicialmente, lançamos mão de um recurso facilitador da adoção
da atitude fenomenológica, exigida pelo método psicanalítico, optando por
confeccionar desenhos livres que retratassem o impacto transferencial de cada vídeo
assistido pelo grupo. Em seguida, procedemos a várias conversas livres sobre as
impressões causadas pelos vídeos. Por essa via, que se fez à luz das palavras de
ordem de Herrmann (1979), “deixar que surja”, “tomar em consideração” e “completar
262
a configuração de sentidos emergentes”, buscamos criar/encontrar substratos
emocionais inconscientes, ou seja, os campos de sentido afetivo-emocional, que
correspondem ao inconsciente intersubjetivo com o qual trabalha a psicologia
psicanalítica concreta (Bleger, 1963/2007).
Por fim, após a suspensão do uso do método psicanalítico, dedicamo-nos as
interlocuções reflexivas. Nesse momento realizamos um trabalho reflexivo e de
teorização, em que os resultados interpretativos, apresentados como campos, são
compreendidos de forma aprofundada, com auxílio de literatura psicanalítica e de
outras áreas que venham a contribuir com as reflexões.
Figura 1 “Precipício”
263
No vídeo “Precipício” as diferenças entre homens e mulheres são
demonstradas através de necessidades distintas, sendo que a figura feminina aparece
como carente de afeto e segurança e a masculina como desprovida de sensibilidade
afetiva.
Figura 2 “Histérica”
264
A produção humorística “Histérica” demonstra uma figura masculina
estereotipada em padrões de condutas que tradicionalmente são consideradas
femininas, como o descontrole, a imaturidade afetiva, a necessidade de atenção e
dependência emocional, ao mesmo tempo em que a mulher se apresenta de modo
sereno, calmo, pragmático e racional, vale dizer, segundo padrões habitualmente
atribuídos aos homens. De modo inteligente e refinado, o vídeo opera uma disjunção
entre o padrão e a condição de gênero.
Figura 3 “Bromance”
Interlocuções Reflexivas
A compreensão de que homens e mulheres são seres muito diferentes entre si,
a ponto de não terem muitas afinidades, pode ser relacionada a sofrimentos sociais
na medida em que as características de gênero são socialmente produzidas. Padrões
265
e estereótipos substituem a realidade de que a fisiologia genital não determina traços
psicológicos.
Em trechos do nosso material de pesquisa, a personagem feminina figura como
louca, irritante, necessitada de um relacionamento estável, insegura e dependente. Já
a figura masculina é denotada como imatura, não emotiva e autossuficiente. Este
achado converge com o que costumamos encontrar em nossa experiência clínica,
bem como com padrões sociais segundo os quais os homens não devem expor seus
sentimentos, pois podem ser considerados frágeis e afeminados, enquanto às
mulheres tais exigências não seriam feitas, em função de suas deficiências
intrínsecas.
Vários aspectos, presentes no material aqui estudado, parecem
compreensíveis à luz dos diferentes modos pelos quais o casamento pode ser visto
por homens e mulheres, segundo diferentes expectativas. De acordo com Zanello
(2018), podemos constatar que filmes e outros meios tecnológicos demonstram que o
ideal da mulher, mas não do homem, seria casar e deste modo obter um companheiro.
Nessa linha, o casamento é visto como solução de uma necessidade feminina, mas
não masculina, de modo que ao casar o homem faria uma concessão. Provavelmente
a questão da maternidade, não tematizada nesses três vídeos, seja algo de suma
importância nesse contexto, na medida em que a realização feminina parece ser a
maternidade (Visintin & Aiello-Vaisberg, 2017; Schulte, Gallo-Belluzzo & Aiello-
Vaisberg, 2019), da qual o casamento seria requisito prévio nas condições de
normalidade.
O homem aparece, em “Bromance”, por exemplo, um tanto perplexo pelo fato
da mulher não se colocar na posição de quem deve aceitar e acolher as escolhas do
companheiro. Entendemos que tal expectativa se funde exatamente na fantasia de
concessão, que faz sentido num contexto segundo o qual o casamento seria antes de
mais nada uma realização para a mulher. Por outro lado, a mulher parece almejar do
namorado/companheiro condutas carinhosas e protetoras, que provavelmente
tornariam visível sua própria importância na vida do homem com quem ela se
relaciona. Tal necessidade figura como característica natural da mulher e não como
fruto de processos de socialização vigentes na sociedade em que vivemos.
Winkler (2019), em seu estudo sobre imaginários coletivos de mulheres jovens
sobre o tornar-se adulta, encontrou um campo denominado “Manual para ser mulher”,
que se organiza ao redor da fantasia de que é preciso seguir certas normas de gênero
266
para ser mulher adulta. Assim, revela que a mulher para ser aceita precisa
corresponder a certos padrões pré-estabelecidos, para assim obter uma aprovação.
Nessa linha, o casamento simbolizaria um importante sinal de obtenção de aprovação,
a mulher figurando como alguém de valor porque um homem quis se casar com ela.
Esse campo também demonstra uma importante crítica a respeito da submissão
feminina, imposta socialmente, que precisa agradar aos demais para ser aceita.
Quando se trata da relação amorosa heterossexual, os materiais permitiram a
percepção de diferenças complementares nos relacionamentos, configurados, na
maioria das vezes, através da concepção do homem como ser capaz, forte, seguro,
provedor e da mulher como física e emocionalmente frágil, incapaz e carente.
Os achados deste estudo convergem com o pensamento de que o sexismo
gera sofrimentos emocionais socialmente determinados e importantes de serem
reconhecidos, não apenas para as mulheres, mas também para os homens. Desse
modo, converge com visões, como a de bell hooks (2017), autora que insiste na ideia
de que as transformações da sociedade defendidas pelas feministas mais lúcidas
política e eticamente, visam mudar a vida e beneficiar mulheres e homens.
Referências
267
Greenberg, J. R. & Mitchell, S. A. (1994). Relações Objetais na Teoria Psicanalítica.
Porto Alegre: Artes Médicas.
* 1 Mestre em Ciências Sociais pela UNESP., Doutoranda em Psicologia pela PUC-Campinas, bolsista da
CAPES.
**Mestre em Psicologia pela PUC-Campinas, Doutoranda em Psicologia pela PUC-Campinas, bolsista da
CAPES.
*** Graduandas em Psicologia pela PUC-Campinas
*** Professora Livre Docente pelo Instituto de Psicologia pela Universidade de São Paulo. Orientadora dos
Programas de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica De Campinas e do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Coordenadora da “Ser E Fazer”: Oficinas
Psicoterapêuticas de Criação do IPUSP e do NEW- Núcleo De Estudos Winnicottianos De São Paulo.
268
21 – “A VADIA COMPETENTE”: IMAGINARIO SOBRE A MULHER NO MERCADO
EXECUTIVO
Ingrid Pedrosa,
Isabella El Dorr
Tânia Aiello-Vaisberg
269
O PROBLEMA DE PESQUISA
270
(Aquino, Menezes, & Marinho, 1995) e objetificação do corpo feminino (Grisci, Deus, Rech,
Rodrigues & Gois, 2015).
Metodologia
Optamos por uma pesquisa qualitativa empírica organizada em três etapas definidas
por Aiello-Fernandes, Ambrosio & Aiello-Vaisberg (2012), por meio das quais
operacionalizamos o uso do método psicanalítico na presente produção de conhecimento
científico: procedimento investigativo de produção do material de pesquisa, procedimentos
investigativos de registro do material de pesquisa e procedimento investigativo de
interpretação do material da pesquisa. Finalizamos o trabalho com uma última seção,
denominada interlocuções reflexivas, que corresponde ao que é habitualmente denominado
discussão de resultados. Nesse momento, suspendemos o uso do método psicanalítico para
empreender um trabalho de cunho reflexivo em diálogo com autores que possam nos ajudar
a iluminar questões levantadas pelos campos de sentido afetivo-emocional
criados/encontrados.
271
De fato, as produções do Porta dos Fundos, apresentam na maioria das vezes
questões atuais a partir de um jornalismo caricato, as quais através do humor fazem o público
refletir a respeito de uma crítica. Podemos considerar que assistir uma produção do grupo
exige conhecimento e percepção do contexto social e histórico do mundo para entender a
piada. Os vídeos são carregados de ironia e sarcasmo para transparecer preconceitos e
hábitos humanos. As produções do Porta dos Fundos devem ser consideradas como
pertencentes ao gênero infoentretenimento, que se define a partir da dualidade: transmitir uma
informação atual, de forma não passiva, mas crítica, e entreter o telespectador. Ao
observamos as publicações encontramos temáticas e críticas sociais, debates sobre
fanatismo religioso, machismo, homofobia, racismo, entre outros comportamentos em
sociedade comuns (Morelli, 2017).
272
promoção, não reforçaria exatamente a fala machista de que a mulher assediada teria culpa
de ser assediada?
Não chegamos a uma conclusão fechada, mas pensamos o quanto a mulher e nós
mulheres do grupo, muitas vezes acordamos mais cedo como ela para passar maquiagem e
não entendemos que essa “manipulação para ser bonita ou vista” faz parte de um sistema
machista que impõe sobre essa ação de se fazer isso por ser mulher. Pensamos o quanto
valorizamos o que os outros acham bonito, o quanto criticamos nossas imperfeições e o
quanto estamos sendo objetos sexuais dos homens em nossas imagens do dia-a-dia. Claro,
que também conversamos como o cuidado conosco é algo bom, o quanto os homens
deveriam se cuidar, ao recordarmos da cena em que a atriz do vídeo diz que alguns homens
da empresa sequer tomavam banho.
Estas e outras questões, como a mulher receber 30% a menos que os homens da
empresa, não poder engravidar estando trabalhando, que foram trazidas neste vídeo
demonstram que existe uma grande presença do machismo nas empresas. Ao conversarmos
sobre nossas experiências, pensamos como as mulheres tem receio em engordar e não saber
como se vestir para ir a uma entrevista de emprego. Além disso, lembramos que os meninos
sofrem mais pressão para entrar numa faculdade e conversamos sobre cursos de graduação
diretamente ligados ao cuidado com outras pessoas, como o de psicologia por exemplo,
majoritariamente escolhido por mulheres e, àqueles voltados à área de exatas ocupados, em
sua maioria, por homens.
273
Campos de Sentido Afetivo-Emocional
“Eu tenho experiência em ser mulher da empresa, eu acordo todo dia uma hora antes
de qualquer homem para passar rímel...”
“Fazendo aquele papel clássico mesmo, aquele que vira piadinha, vira troféuzinho.
Enfim, aquela que todo mundo quer comer...”
“Qual a sua pretensão salarial?”. “Trinta por cento a menos que qualquer homem no
meu cargo.”.
“Você não vai poder ser promovida, você sabe, né?!” “Não, eu estou contando em ficar
estagnada, mesmo enquanto os homens da empresa sobem, mesmo os incompetentes.”
“Eu aviso também meu ginecologista para não engravidar esse ano e não atrapalhar
sua empresa.”
274
Interlocuções Reflexivas
275
participação mundo laboral se torna mais difícil e mais complexa, pois os obstáculos são
vários (Batista & Cacciamali, 2009; Bertolin, 2017).
Apreciações Finais
O imaginário coletivo aponta que para obter um cargo alto empresarial, a mulher deve
lançar mão de atributos eróticos, pois apresentar-se profissionalmente competente não lhe
garantirá uma colocação. O humor, no vídeo, provém do fato da mulher intencionalmente
assumir sua sexualidade como forma de obter vantagens sobre seus concorrentes. Tal
vantagem é relacionada a estar disponível de forma a ser um objeto para o homem, ser
submissa à questão de desigualdade salarial e ter menos oportunidades de crescimento
dentro da empresa. Assim, caricaturando a situação, a produção humorística conspira contra
a negação de um acontecer que deveria ser superado em nome do ideal ética da equidade
de gênero.
276
Referência Bibliográfica
Betiol, M. I. S., & Tonelli, M. J. (1991). A mulher executiva e suas relações de trabalho.
Revista de Administração de Empresas, 31(4), 17-33.
277
Figueiredo, D. de C., Nascimento, F. S., & Rodrigues, M. E. (2017). Discurso, culto ao
corpo e identidade: representações do corpo feminino em revistas brasileiras*.
Linguagem em (Dis)curso, 17(1), 67-88.
Garcia, C. F., & Viecili, J. (2018). Implicações do retorno ao trabalho após licença-
maternidade na rotina e no trabalho da mulher. Fractal: Revista de Psicologia,
30(2), 271-280
Grisci, C. L. I, Deus, E. S., Rech, S., Rodrigues, M. F., & Gois, P. H.. (2015). Beleza
Física e Trabalho Imaterial: do Politicamente Correto à Rentabilização.
Psicologia: Ciência e Profissão,35(2), 406-422. Doi:10.1590/1982-
370302282013
Haussmann, S., & Golgher, A. B. (2016). Shrinking gender wage gaps in the Brazilian
labor market: an application of the APC approach. Nova Economia, 26(2), 429-
464. Doi:10.1590/0103-6351/2680
Madalozzo, R., & Blofield, M. (2017). Como famílias de baixa renda em São Paulo
conciliam trabalho e família?. Revista Estudos Feministas, 25(1), 215-240.
Doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p215
Madalozzo, R., Martins, S. R., & Shiratori, L. (2010). Participação no mercado de
trabalho e no trabalho doméstico: homens e mulheres têm condições iguais?.
Revista Estudos Feministas, 18(2), 547-566.
Morais, M. B. L. (2008). Humor e psicanálise. Estudos de Psicanálise, 31, 114-124.
278
Morelli, B. T (2017). O fenômeno youtuber como construtor da opinião pública: estudo
de caso Porta dos Fundos. 2017, 93f. Dissertação de Mestrado (não publicado)
Mídia e Tecnologia - FAAC - UNESP, Bauru, 2017.
Renault, E. (2010). A critical theory of social suffering. Critical Horizons, 11(2) 221-
241. Doi:10.1558/crit.v11i2.221
Schulte, A.A., Gallo-Belluzzo, S.R., & Aiello-Vaisberg, T.M.J. (2017) Mãe brasileira
trabalhando no exterior: considerações preliminares. In Tardivo, L.S.L.P.C. (org).
O procedimento de desenhos-estórias na clínica e na pesquisa: 45 anos de
percurso (e-book), São Paulo: IP/USP, 286-305.
279
Vieira, A.; & Amaral, G. A. (2013). A arte de ser Beija-Flor na tripla jornada de trabalho
da mulher. Saúde e Sociedade, 22(2), 403-414. Doi:10.1590/S0104-
12902013000200012
280
22- COLLECTIVE IMAGINARY REGARDING IMPRISONED MOTHERS
Abstract
This study is part of a larger set of studies addressing maternal suffering and its
objective is to investigate the collective imaginary concerning imprisoned mothers from
a concrete psychoanalytical perspective. This qualitative study uses the
psychoanalytical method to analyze online newspaper news that specifically
addressed motherhood in prison. The psychoanalytical investigation of 49 news stories
resulted in the interpretative production of three affective-emotional fields: “The O.R.
is yours”; “Do you think you’re a mother?”; and “Redeeming motherhood”. The results
in general suggest that the idealization of mothers persists even in adverse contexts,
such as that of a penitentiary setting, while at the same time mothers are censured for
having had a child. This situation aggravates the suffering of these women and
impedes recognition of the humanity of these women-mothers.
Introduction
This study’s objective was to psychoanalytically investigate the collective
imaginary concerning mothers serving a court-imposed sentence of prison detention.
The justification for conducting this study is that it can support interventions and
preventive measures concerning the care provided to mothers and their children in a
prison setting. It is common in our society for women-mothers to suffer because of
socially imposed demands. Suffering, however, may take different forms if women also
face unfavorable conditions, such as detention.
According to Moura and Araújo (2004), who performed a bibliographic review of
the history of maternity in Europe and Brazil, they verified how recent the conception
of maternal exclusivism is in Western society. Only in the 18 th century, through
philosophical, medical and political discourse, did a supposed maternal instinct come
to be viewed as inherent to the feminine nature.
281
This social organization of motherhood seems to remain in force in Brazil, as
Visintin and Aiello-Vaisberg (2017) empirically verified. In a study addressing the
collective imaginary of motherhood in Brazilian blogs authored by mothers, the authors
found an idea/fantasy, according to which motherhood should be seen and
experienced as the destiny of a woman. Thus, it becomes clear that mothers bear
heavy cultural demands and a possible consequence is compromising other forms of
personal fulfillment.
If, on the one hand, as researchers, we depart from a theoretical framework that
values life’s concrete conditions in order to produce knowledge of the affective and
emotional dimensions of human actions (Politzer, 1928; Bleger, 1963/2007), we are
also aware that Brazilian society, which experiences the phenomenon we are now
addressing, is deeply marked by social inequality (Morgan, 2017), machismo (Silva,
2018), and racism (Fernandes, 2018). INFOPEN (Brazilian Prison Information Survey)
supports this assertion (Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2016). According
to this report, 62% of the female prison population is Afro-descendent; 50% is aged
between 18 and 29 years of age; 45% did not complete primary school; and 74% of
these women has at least one child. Thus, we need to give critical consideration to
such a context in which motherhood is experienced, in order to produce psychological
knowledge.
Many recent studies, even though based on different theoretical frameworks,
seem to agree that the prison system continues to contribute to the suffering of
mothers. Diuna, Corrêa and Ventura (2017) worked with focal groups and warn that
the discipline that is expected in a prison setting to control mothers who care for their
children seems to significantly aggravate maternal suffering, as that kind of discipline
restricts the care provided to children, in addition to threatening mothers with the
possibility of being separated from their children. Chinalia (2017) investigated the
collective imaginary toward women arrested for petty theft and verified that their
existential drama may be strongly marked by the fact they are mothers. Martins (2016),
on the other hand, conducted a psychoanalytical study, interviewing some imprisoned
mothers, and found that the participants suffered due to forced separation from their
children. These women seem to be socially abandoned, concluding that penitentiary
facilities are not prepared to deal with motherhood. For this reason, Mariano and Silva
(2018), in a qualitative study based on symbolic interactionism, argue that
282
breastfeeding seemed to be a maternal experience that made mothers feel
encouraged due to being able to take care of their children.
Starting with an approach known as concrete psychoanalytical psychology
(Bleger, 1963/2007), we sought to investigate the collective imaginary concerning
imprisoned mothers, keeping in mind that this population’s suffering is often
disregarded by society. For that, we used online newspaper news, given its wide
circulation in modern Brazilian society (Ferreira-Teixeira & Aiello-Vaisberg, 2017).
Method
The psychoanalytical method was adopted in this qualitative study. In
agreement with Herrmann (1979/1991), considering the invariance of the
psychoanalytical method, it logically precedes the establishment of theories and
clinical procedures. Thus, we adopted this method to understand human actions and
their meanings, even if the individuals themselves do not acknowledge such meanings.
Therefore, in order to achieve this study’s objective, the psychoanalytical method
followed three investigative steps, namely:
1. Selecting material
2. Recording material
3. Interpreting material
To comply with the first item, Google News was accessed every day from
September 25th to December 31st 2018 and the term “imprisoned mothers” was
searched, while all news items directly available from the site were retrieved. All news
identified was read and those that clearly addressed motherhood in prison were
selected, 53 news items, in total. Four appeared more than once and were considered
only once, so that a corpus of 49 news items was selected.
In regard to the second item, to prevent the loss of data, all news items were
retrieved and stored in a specific file. This file also facilitated reading on the part of the
research group.
The third procedure concerned the reading of news in light of the
psychoanalytical method, that is, floating reading and the free association of ideas.
This procedure is intended to interpret affective-emotional determinants of those
communications; that is, fields of affective-emotional meaning, are understood here as
283
unconscious emotional subtract, which ground the collective imaginary concerning
imprisoned mothers.
To finalize this empirical study, we discussed the results concerning empirical
interpretations based on authors who favor deeper understanding of data. This point
of the process is called reflective interlocutions, which coincides with what is usually
called discussion, in empirical studies.
“Having children in a place like this is very difficult; it is not everyday that you can see
and care for your children. No matter how well my children are doing, a mother always
takes better care than others”
Another excerpt exemplifies the second field, “Do you think you’re a mother?”
In this case, the news listed cases in which judges denied mothers the right for home
imprisonment or confinement. His justification is that those mothers would not be fit to
exercise motherhood.
1
T.N.: “O.R.” is an abbreviation of “police occurrence report”, and in Brazil it is used as slang, meaning
anything that is a problem or trouble.
284
Another [judge], whose name is not mentioned, denied habeas corpus to an inmate,
arguing prostitution and her need to receive governmental financial aid: “People stated
that the accused does not work and uses the money provided by governmental
financial aid to support herself”. Later, he contradicts himself, stating she “made sex
programs and stored drugs”. He concludes saying that "under the poor care provided
by the mother, [the child] would be exposed to harm inherent to close contact with
criminality; thus I consider the mother figure dispensable for the child’s wellbeing.”
Excerpts that concern the third field “Redeeming motherhood” are also
presented. This part of the news conveys the idea that there is hope as a consequence
of the arrival of a baby, that a child would not only be a “promise of life”, but motherhood
would be “promise of a new life”:
What changes in their lives in a detention facility with the arrival of a baby? The painful
separation from their children. Promise of change of life. Emotional fragility. The hope
a child will bring to the history of inmates.
The excerpt below portrays a mother who says that the experience of prison was strong
enough to prevent her from doing anything that would jeopardize her freedom and the
birth of her daughter reinforced this conviction.
The birth of the girl, according to her, reinforced her desire to choose the other side of
life, often the most difficult one. “It is the first and last time, and now I don’t want it
anymore. I have to pay what I owe. First time was a blow and it is more than enough
for me not to want this path anymore,” she says.
The first field of “the O.R. is yours” conveys an idea that persists, despite the
difficulties of the current Brazilian prison system (Tavares & Menandro, 2004),
especially female prisons (Pimentel, 2016), that mothers should continue to be almost
fully responsible for their children. The field “the O.R. is yours” seems to agree with the
results of other studies addressing motherhood and motherhood in prison (Ferreira-
Teixeira & Aiello-Vaisberg, 2017; Halasi, 2018; Schulte, Gallo-Belluzzo & Aiello-
Vaisberg, 2019; Visintin & Aiello-Vaisberg, 2017).
This field seems to indicate the naturalization of motherhood to the extent in
which not only is the concrete context of life of these mothers disregarded, but they
are also required to be fully responsible for providing care to their babies as if they
285
were the most fit for the task (Moura & Araújo, 2004), as the following excerpt shows:
“If I knew I was pregnant, I would not have gone to the drug dealer. It is scary realizing
that you are going to have a child in prison.” Data indicate that an imprisoned mother
feels hopeless and experiences feelings of guilt (Ambrosio; Aiello-Fernandes & Aiello-
Vaisberg, 2013; Aiello-Vaisberg 2017).
Even though mothers are considered the ones to be responsible for their babies,
there is also another field of affective-emotional meaning indicating that an imprisoned
mother would be incompatible with motherhood. Thus, the field “Do you think you’re a
mother?”, which also provides a foundation for the collective imaginary towards the
imprisoned mother, portrays a situation that may even aggravate their suffering.
In certain situations, when affection is established between a mother and baby
and there is a legal right to home confinement, babies are forcibly separated from their
mothers (Gomes, Souzas, Oliveira, Santos & Esteves, 2018). That is, considering a
model of motherhood idealized some centuries ago (Halasi, 2018), this separation is
considered a violence. The history of Bruna is a moving example: “At the moment you
do something wrong, you know you’ll come here to pay. But, how do they [the children]
deal with it emotionally? At school, their mother is not going to the parent-teacher
conferences. Their friends will visit and ask for their mothers. It messes with them.”
The collective imaginary of imprisoned mothers, as portrayed in the news, is
clearly contradictory. On the one hand, mothers are supposed to take care of their
children, but at the same time, they experience recriminations for being momentarily
in detention. On the other hand, motherhood is seen as a possibility to salve these
women, indicating that motherhood is still greatly valued by society. The field
“Redeeming motherhood” would be a response to the first two fields. From an
unconscious point of view, becoming a mother would be a realization for women, so
that an imprisoned mother could redeem herself from her problems by having a child.
Such an idea, which disregards these women’s concrete life conditions, denies the
various dimensions of human life, putting women in a perverse situation in which
inmates would sometimes be considered fully responsible for their children while
experiencing recriminations for having become mothers.
Therefore, imprisoned mothers constantly face two opposing ideals of
motherhood. A potential consequence of this would be guilt, something quite common
in the experience of modern motherhood. Recent studies corroborate this idea, as
reported by Halasi (2018). “I changed my life and it seems that everything becomes
286
more difficult. In the middle of last year, I got arrested and I was pregnant. I thought
that God was working for me to change my ways. God is ridding me of something out
there. To change my mind.”
Considering not only the limitations of the source of the data, but also the scope
that is inherent to a scientific initiation project, this study sheds light on the importance
of concrete conditions amidst which human relationships take place. Because of social,
economic, institutional, legal and historical-cultural determinants, imprisoned mothers
are faced with a situation that needs to be changed, considering a fundamental respect
for humankind. Caring for a baby under sufficiently good living conditions (Winnicott,
1960/2018) necessarily requires to give strong consideration to caregivers who
assume parental tasks, father and mother roles, through cultivating a sufficiently good
social environment in which respect, solidarity and equalitarian values prevail, while at
the same time social distress with the potential to cause helplessness, humiliation,
injustice and guilt are minimized.
References
Diuana, V., Corrêa, M.C.D.V., & Ventura, M. (2017). Mulheres nas prisões brasileiras:
tensões entre a ordem disciplinar punitiva e as prescrições da maternidade. Physis:
Revista de Saúde Coletiva, 27(3), 727-747. doi: https://dx.doi.org/10.1590/s0103-
73312017000300018
287
Ferreira-Teixeira, M. C., & Aiello-Vaisberg, T. M. (2017). Maldade, drogas ou
desespero: o imaginário sobre a mãe que abandona seu bebê. Memorandum:
Memória e História em Psicologia, 33, 128-141.
Gomes, S. A. A., dos Santos, A. M., Souza, A. J., de Oliveira, L. G. B., & Esteves, J.
L. N. (2018). Substituição da prisão preventiva ou provisória para prisão domiciliar das
gestantes ou mães de filhos menores de 12 anos. Revista do Curso de Direito do
Centro Universitário Brazcubas, 2(1).
Mariano, G. J. dos S., & Silva, I. A. (2018). Significando o amamentar na prisão. Texto
& Contexto - Enfermagem, 27(4), e0590017. doi: https://dx.doi.org/10.1590/0104-
07072018000590017
288
Moura, S. M. S. R. D., & Araújo, M. D. F. (2004). A maternidade na história e a história
dos cuidados maternos. Psicologia: ciência e profissão, 24(1), 44-55.
289
23- INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA E DEPENDÊNCIA QUÍMICA NO IMAGINÁRIO
DE ESTUDANTES DE PSICOLOGIA
2
Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Mestre pela Faculdade de
Ciências Médicas da Unicamp.
3
Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Bolsista CNPq de
Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
4
Professora Livre Docente em Psicopatologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, Orientadora de Mestrados e Doutorados no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
e na Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
290
O PROBLEMA DE PESQUISA
Neste campo de atuação, ainda são muitos os profissionais que acreditam que
a melhor forma de assistência ao dependente dar-se-ia por meio da internação
fechada de longa permanência. Tal posicionamento causa estranheza, uma vez que
se encontra cada vez mais firmada, cientificamente falando, a percepção de que a
dependência química ultrapassa causalidades orgânicas, envolvendo determinações
sociais, políticas, econômicas, legais e culturais. Sendo assim, somos levados a
concluir que os avanços na produção de conhecimento não evitam a persistência de
visões estereotipadas quando se trata deste tema (Assis, Barreiros & Conceição,
2013).
. Concordamos com autores, tais como Lopes, Lemos, Lima, Cordeiro e Lima
(2009) e Vargas, Bittencourt, Rocha e Oliveira (2013) que, tendo constatado pouco
conhecimento teórico sobre a dependência química, apontam para a necessidade da
maior inclusão dessa problemática nos cursos de graduação da área da saúde, para
que seja possível chegar a uma capacitação profissional adequada. Entretanto,
compreendemos, a partir do referencial que adotamos, que no trato de várias questões
humanas não bastam conhecimentos teóricos, tornando-se necessário o que
poderíamos denominar, inspirando-nos em textos winnicottianos, desenvolvimento de
capacidade afetivo-emocional6, algo que não se conquista de uma vez por todas, mas
que demanda ser continuadamente elaborado, ao longo da formação e do exercício
profissional.
5
O leitor interessado pode obter uma visão geral acerca da produção grupal no lattes da terceira autora.
6
Lembramos aqui que a visão winnicottiana sobre o processo de amadurecimento emocional pode ser
descrita como desenvolvimento de capacidades – de ficar só, de se preocupar, de acreditar, de brincar –
que dependem do encontro entre o potencial herdado com um ambiente humano suficientemente bom
(Winnicott, 1945, 1962, 1975).
292
estudantes de psicologia sobre o dependente químico, a partir da psicologia
psicanalítica.
ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
293
Herrmann (2001) apresenta importante contribuição para a interpretação do
material ao postular palavras de ordem, as quais seguimos, visando auxiliar
psicanalistas na apropriação do material clínico: “deixar que surja”, “tomar em
consideração” e “completar a configuração de sentido”. A primeira palavra se cumpre
quando o analista/pesquisador aguarda o surgimento de algo, no material, que capture
sua atenção. A segunda palavra refere à manutenção de uma abertura por meio da
qual impactos afetivo-emocionais, relativos ao que se destacou, possam ocorrer. A
terceira palavra corresponde ao fruto, inevitavelmente hipotético, do encontro de duas
subjetividades, a do pesquisador e a da pessoalidade, individual ou coletiva, autora
da comunicação emocional. Desse modo, o método é colocado em marcha, tendo em
vista não apenas comprovar hipóteses previamente enunciadas, mas, sobretudo,
exercer sua função heurística.
INTERPRETAÇÃO
294
Este é um jovem com 26 anos, solteiro, mora com a mãe e os irmãos. É
dependente químico desde sua adolescência, passou a usar drogas depois do
falecimento de seu pai, isso faz 11 anos.
Agora com uma idade de decisões, pois se ele continuar nesta vida vai virar
um “Zé ninguém”, por conta disso resolveu que precisa de ajuda, depois de ver sua
família sofrendo muito, resolveu se internar, esse cigarro de maconha que ele está
fumando é o último de sua vida, ele assegura que ao passar o portão da clínica
(placa escrito existir) ele vai lutar para ser uma pessoa melhor.
295
É o exemplo de alguém que se perde e o sorriso ao encontrar novamente o
caminho, o sol volta a brilhar é como encontrar uma luz no escuro.
296
João começou a usar drogas com quinze anos na tentativa de fugir de seus conflitos
e assim continuou até os vinte e cinco, quando resolveu buscar ajuda em uma
clínica especializada e iniciar um processo de libertação das drogas pois para ele
esses dez anos de adicção foram como um tempo de escravidão.
INTERLOCUÇÕES REFLEXIVAS
297
deputado Paulo Delgado, nos anos 80 e aprovada 12 anos depois, em 6 de Abril de
2001 (Brasil, 2001). Se além disso considerarmos os modos pelos quais se organizam
hoje, os serviços de saúde mental pública – lembrar da rede, do Centro de Atenção
Psicossocial, do projeto terapêutico singular, o espanto fica ainda maior. Estamos,
portanto, diante da necessidade de reconhecer que o modelo asilar segue vigente em
termos do imaginário dessa pessoalidade coletiva, que é o estudante de psicologia,
de quem compreensivelmente poderia se esperar maior sintonia com a própria
reforma brasileira.
Vale ainda ressaltar que a persistência desse modelo significa, também, que
os estudantes não tem uma clara noção sobre a problemática da dependência, na
medida em que a encaram de acordo com os mitos do ser humano natural, abstrato e
dissociado das condições concretas de sua aparição na cena social (Bleger,
1963/2007). Assim, concluímos que o imaginário aqui criado/encontrado tem caráter
claramente empobrecido e reducionista.
Essa pesquisa não produziu resultados que nos permitam verificar o quanto
esse imaginário se deve a condições prévias à entrada na faculdade, de tipo social,
econômico, cultural ou político-ideológico, mas podemos afirmar que, pelo menos até
o inicio da disciplina, na qual se deu a realização da pesquisa, o curso e o próprio
ambiente académico, num sentido amplo, não teriam favorecido uma aprendizagem
satisfatória com relação ao uso abusivo de drogas.
Finalizando, destacamos a necessidade de que na formação dos profissionais
de saúde seja incluído, além dos conceitos formais dos transtornos mentais, um
espaço para as discussões sobre imaginários coletivos e teorias prévias sobre cada
diagnóstico a fim de que preconceitos e estigmas possam ser trabalhados.
Acreditamos que um ensino eticamente comprometido com necessidades da
população brasileira demanda uma formação que possa preparar a (o) futura (o)
psicóloga (o) para atuar profissionalmente de modo mais inclusivo.
REFERÊNCIAS
298
Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2017). Estilo Clínico Ser e Fazer: Resposta Crítico-
Propositiva a Despersonalização e Sofrimento Social. Boletim – Academia
Paulista de Psicologia, 37 (92), 41-62.
Ávila, C.M., Tachibana, M. & Aiello-Vaisberg, T.M.J. (2008). Qual é o lugar do aluno
com deficiência? O imaginário coletivo de professores sobre a inclusão escolar.
Paidéia, 18, 155-164.
Bisch, N. K., Moreira, T. de C., Benchaya, M. C., Pozza, D. R., Freitas, L. C. N. de,
Farias, M. S., Ferigolo, M., & Barros, H. M. T. (2019). Aconselhamento telefônico
para jovens brasileiros usuários de cocaína e/ou crack. Quem são esses
usuários? Jornal de Pediatria, 95 (2), 209-216. Doi: 10.1016/j.jped.2017.12.016
Cunha, P. J., Oliveira, P. A. de, Cortezzi, M., Busatto, G. F., & Scivoletto, S. (2015).
Executive dysfunction and low academic attainment in adolescent substance
abusers with a history of maltreatment. Medical Express, 2 (6), M150506. Doi:
10.5935/MedicalExpress.2015.06.06
Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Lopes, G. T., Lemos, B. K. J., Lima, H. B., Cordeiro, B. R. C. & Lima, L. S. V. (2009).
Concepções de acadêmicos de enfermagem sobre usuários de drogas. Revista
Brasileira Enfermagem, 62 (4), 518-23.
299
Maciel, S. C., Silva, F. F. da, Pereira, C. A., Dias, C. C. V., & Alexandre, T. M. de O.
(2018). Cuidadoras de Dependentes Químicos: Um Estudo sobre a Sobrecarga
Familiar. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 34, e34416. Doi:
10.1590/0102.3772e34416
300
24- IMAGINÁRIOS COLETIVOS DE JOVENS COM ANEMIA FALCIFORME
301
Introdução
302
A abordagem adequada desses pacientes visa tanto tratar os prejuízos já
instalados como prevenir as complicações que possam vir a ser causadas pela
doença. Assim, os cuidados gerais voltam-se ao acompanhamento de lesões
orgânicas, do desenvolvimento somático e psicológico e de comorbidades específicas
(MORAES et al, 2017). Segundo Zago (2001), a severidade e letalidade do quadro
diminui sensivelmente quando se realiza diagnóstico precoce e tratamento que, de
acordo com o que preconiza a ANVISA (2002), depende de colaboração
multiprofissional.
Diante do exposto, consideramos justificada realização de investigação sobre
os imaginários de indivíduos com anemia falciforme sobre sua condição.
Método
303
interpretativa de dois campos sentido afetivo-emocional de caráter intersubjetivo.
Aqui, usamos o conceito de campos de Bleger (1963/2007), e de Hermann (2001),
como conjuntos das regras lógico-emocionais, que sustentam condutas em geral,
entre as quais destacamos o imaginário coletivo (AIELLO-VAISBERG; MACHADO,
2008).
O primeiro campo, que chamamos de “Compartilhando a dor”, organiza-se ao
redor da crença de que o compartilhamento da experiência de viver com doença
falciforme fortalece a pessoa.
Destacamos, a seguir, trechos dos depoimentos que exemplificam o campo
citado.
I. Devemos compartilhar mecanismos de enfrentamento e conversar sobre
como nos sentimos durante esses períodos difíceis (sintomáticos), porque dessa
maneira poderemos trazer esperança e conforto a outras pessoas em momentos de
necessidade.
II. Falar livremente sobre a doença me ajudou a criar um sistema de apoio
confiável e compassivo. Quando eu estava na escola, minha avó informava que eu
sofria de doença falciforme e o que isto significava. Isso tornou mais fácil para as
pessoas entenderem o que eu estava passando, para que elas pudessem me apoiar
quando eu tivesse uma crise de dor. Sempre que estava no hospital, meus amigos
levavam minha lição de casa e os livros para que eu pudesse estudar da minha cama.
Eu trabalhei muito para acompanhar meus estudos, para não perder muito e manter-
me atualizado com o resto da turma.
III. Não conheço mais ninguém que sofra de doença falciforme além de meu
irmão. Fico feliz por ter alguém, que também tem anemia falciforme para conversar
quando estou sofrendo com a dor da doença. Isso nos aproxima mais. Quando estou
com dor, posso falar sobre isso e ele sabe do que estou falando.
IV. Eu sei que existem muitas pessoas com doença falciforme por aí, mas
muitas delas provavelmente têm vergonha ou estão escondendo isso, o que está
errado. Tentamos ser honestos e abertos porque queremos que os outros tentem
entender melhor a doença.
V. Eu realmente acredito que as pessoas devem aprender sobre a doença
falciforme e as pessoas devem falar sobre isso. Acredito que isso mudará a maneira
como a doença é vivenciada por quem a tem e a maneira como essas pessoas são
tratadas.
304
VI. Quanto mais falamos sobre doença falciforme e compartilhamos nossas
histórias, mais seremos ouvidos e compreendidos.
VII. Eu não acho tão importante que as pessoas saibam! Não acho que devo
mantê-la (a doença) escondida para sempre... Tudo bem que as pessoas saibam, mas
a questão é: como reagem, o que vão pensar e o que vão dizer...
VIII. Muitas pessoas ocultam seu diagnóstico e vivem com medo de serem
tratadas de maneira diferente ou nunca conseguirem trabalho. Sinto que as pessoas
com doença falciforme precisam começar a falar sobre isso livremente e sem
preconceitos, em vez de escondê-lo. As pessoas agem como se fosse vergonhoso ter
a doença... somos considerados um peso. Esconder a doença só piora o estigma que
a cerca. Se as pessoas fossem corajosas o suficiente para se levantar e falar sobre
seu sofrimento, talvez a doença fosse mais compreendida e talvez os empregadores
percebessem que nem todo paciente com anemia falciforme sofre da mesma maneira
e que a doença pode não necessariamente impedi-los de fazer seu trabalho com
sucesso.
IX. O emprego tem sido um desafio, porque me sinto desaprovada pelas
pessoas. Quando preciso faltar no trabalho, sempre sinto algum tipo de desaprovação.
É uma espécie de discriminação velada.
X. O estigma associado à doença falciforme foi a razão pela qual perdi meu
emprego ... Um dia, fiquei doente e, quando voltei ao trabalho, havia perdido o
emprego. Meus chefes não queriam arriscar ter alguém que passaria muito tempo fora
do trabalho durante uma crise de dor. Sem esse trabalho, estou lutando para
sobreviver.
Conclusão
O quadro geral indica que, para além dos desconfortos, dores e riscos próprios
da patologia, a pessoa com anemia falciforme enfrenta preocupações relativas aos
modos como as demais reagem à sua condição, esperando atitudes solidárias e
305
afetuosas, mas também temendo tornar-se vítima de incompreensões, preconceitos
e discriminações. Portanto, o imaginário com o qual nos defrontamos, no presente
estudo, focaliza uma questão básica: devemos ou não devemos revelar nossos
problemas?
A relevância do compartilhamento do drama vivido fica especialmente evidente
quando algo, como a doença de um familiar, em geral, motivo de tristeza, passa a ser
experimentado com felicidade à medida que abre espaço para um encontro inter-
humano.
Notamos que mesmo sendo, mundialmente, uma doença de alta prevalência,
as pessoas que se encontram nesta condição parecem ter a ideia de que têm uma
doença estranha, o que parece apontar para a existência da ocultação da patologia,
possivelmente em virtude do temor do preconceito e da discriminação.
Podemos, portanto, afirmar que os modos pelos quais o ambiente social lida
com tais situações exerce influência significativa na vida de quem apresenta essa
doença. Aqui cabe lembrar que o contexto capitalista neoliberal, fortemente
competitivo, certamente não favorece a constituição de campos vinculares éticos e
solidários, para fortalecer campos nos quais as pessoas são vistas como superiores
ou inferiores, sendo esses últimos discriminados e desprezados.
Finalizamos lembrando que, na medida em que as dores e os desconfortos da
patologia orgânica se fazem acompanhar de sofrimento emocional socialmente
determinado, fica clara a importância de cuidados psicológicos. Por outro lado, esses
não dispensam a busca de transformações éticas por meio do trânsito de campos
competitivos para campos solidários, o que, está fortemente associado aos modo
como a sociedade se estrutura política e economicamente.
Referências
306
Ambrosio,F. F.; Fernandes,R. A.; -Aiello-Vaisberg. T. M.J.(2012) “O Método
Psicanalítico como Abordagem Qualitativa: considerações preliminares” Jornada
APOIAR. São Paulo: IPUSP.
307
25- “CUIDADO É COISA DE MULHER”: IMAGINÁRIOS SOBRE MATERNIDADE
EM POSTAGENS DO FACEBOOK
Resumo: Este trabalho tem como objetivo investigar imaginários coletivos sobre
maternidade, a partir da perspectiva da psicologia psicanalítica concreta. Organiza-se
como uma pesquisa qualitativa e empírica, com o uso do método psicanalítico, que
utilizou, como material, todas as 317 publicações postadas no ano de 2016 na página
“Depressão pós-parto e maternidade”, da plataforma Facebook, por entender a
depressão pós-parto como artificio metodológico privilegiado na busca de
conhecimento compreensivo que subsidie a clínica psicológica da maternidade, da
família e do cuidado. A consideração psicanalítica do material, em estado de cultivo
de atenção flutuante e de associação livre de ideias, permitiu a produção interpretativa
de um campo de sentido afetivo-emocional, o qual intitulamos de “Cuidado é coisa de
mulher”. Tal campo organiza-se ao redor da crença de que as atividades de cuidado,
aí incluída a maternidade, são melhor realizadas quando assumidas por mulheres.
Esse campo maior contém dois subcampos: “Nasci para cuidar” e “Cuidando sou feliz”.
O quadro geral indica que o cuidado não é visto como esforço e trabalho, o que permite
que seja invisibilizado e desvalorizado, tornando-se, desse modo, causa de
sofrimentos sociais, que atingem as mulheres, e de empobrecimento da vida afetivo-
emocional dos homens, na medida em que seguem afastados de importantes esferas
da condição humana.
308
O problema de pesquisa
309
oportuno o desenvolvimento de estudos sobre a maternidade que é, provavelmente,
a matriz a partir da qual se pensam as práticas de cuidado em geral.
Sendo assim, tencionamos, com esta pesquisa, investigar imaginários coletivos
sobre maternidade, entendendo-os como ambientes dramáticos pelos quais
indivíduos e coletivos transitam. Para isso, nos valeremos da psicologia psicanalítica
concreta, isto é, da consideração do drama humano como um fenômeno concreto,
inserido em seus contextos macrossociais.
Considerações metodológicas
310
suscitados por esse encontro. Tomando as palavras de Herrmann (1979/1991) como
guias da interpretação psicanalítica, ou seja, “deixar que surja”, “tomar em
consideração” e “completar a configuração do sentido emergente”, tal material foi
considerado em âmbito do grupo de pesquisa, a fim de cumprir o procedimento
investigativo de interpretação do material, isto é, a criação/encontro dos campos de
sentido afetivo-emocional, resultados da nossa pesquisa.
Por fim, cessamos o uso do método psicanalítico e realizamos um trabalho
dialógico-reflexivo dos campos criados/encontrados, ou seja, tecemos interlocuções
reflexivas desses resultados com a teoria de outros autores, buscado produzir
conhecimento compreensível sobre o tema estudado.
Interpretação e interlocuções
311
reconhecimento e gratidão, na medida em que a mulher estaria obtendo vantagens
ao cuidar do filho.
O campo de sentido afetivo-emocional aqui criado/encontrado, bem como os
subcampos, indicam, a nosso ver, que podemos observar, na sociedade brasileira,
uma organização binária e sexista dos cuidados, embora reconheçamos que tenham
ocorrido avanços com o advento dos movimentos feministas (Maux & Dutra, 2009;
Vásquez, 2014). Em outras palavras, encontramos, no material, que a mulher continua
sendo concebida e cobrada pelo cuidado do bebê, de outrem e do lar, ao passo que
aos homens é delegado o espaço de provedor, ausente e distante dos assuntos que
tangem ao mundo privado.
Esse imaginário acaba por impactar não apenas mulheres, mas a população
de modo geral, visto que não concebe o cuidado enquanto uma capacidade humana,
recorrendo a abstrações que o naturalizam como feminino, contribuindo para
mascarar as condições concretas de vida e perpetuar relações de desigualdade e
opressão (Aiello-Vaisberg, 2017).
Assim, à luz de autoras como Butler (2003), podemos pensar que gênero seria
a repetição de atos performativos, cujo modelo não existe um original. Em outras
palavras, ao reproduzirmos cotidianamente que mulheres são sexualmente
comedidas, dóceis, belas e naturalmente preparadas e desejantes de serem mães,
enquanto homens são reduzidos a meros provedores e parceiros sexuais (Zanello,
2018), damos aparente estabilidade ao o que corresponderia a cada gênero.
Contudo, submeter-se às referidas normas impactaria diretamente a
criatividade e espontaneidade das pessoas, ou seja, o que entenderíamos, com base
no pensamento de Winnicott (1971/1975, 1956/1978, 1963/1983), como sua própria
saúde mental. Com isso, gostaríamos de salientar que a submissão às normas de
gênero acaba por afetar a sociedade de modo geral, não apenas mulheres e mães,
mas também filhos, homens, pessoas transgênero e todos os demais.
Enfim, podemos pensar que o cenário supracitado afeta não apenas a
organização social e as relações familiares e interpessoais (Borsa & Nunes, 2011),
mas a própria saúde mental das pessoas. Portanto, esperamos, com esse trabalho,
fornecer conhecimento compreensivo sobre o tema, visando contribuir com subsídios
para intervenções psicoterapêuticas e psicoprofiláticas, assim como para debates
sociais, em prol de uma sociedade equitativa em relação as condições de gênero, que
não onere as mulheres com as responsabilidades do cuidado.
312
Referências
Aching, M. C., & Granato, T. M. M. (2016). The good enough mother under social
vulnerability conditions. Estudos de Psicologia (Campinas), 33(1), 15-24.
Badinter, E. (2012). The Conflict: Woman and Mother. Melbourne: The Text Publishing
Company.
Gottlieb, A., & DeLoache, J. S. (2016). A World of Babies: Imagined Childcare Guides
for Eight Societies. Reino Unido: Cambridge University Press.
313
Cadernos Pagu, (16), 137-150.
314
26 - “MINHA VIDA MUDOU PARA SEMPRE”: EXPERIÊNCIA VIVIDA
DE PERDA POR SUICÍDIO
315
Introdução
316
emocional de pessoas que perderam alguém próximo por suicídio. Justifica-se como
busca de conhecimento compreensivo sobre o tema, que pode ser útil na clínica
psicológica, em vertentes psicoterapêuticas e psicoprofiláticas, bem como contribuir
com futuros projetos na área de políticas públicas em posvenção ao suicídio e fornecer
subsídios para debates no âmbito de movimentos sociais e da sociedade civil como
um todo.
Método
317
necessariamente de campos de sentido afetivo-emocional, de caráter relacional.
Sendo assim, estudar imaginários coletivos a partir de produções humanas, como
vídeos do YouTube, permite-nos produzir interpretações de seus determinantes
afetivo-emocionais inconscientes (Aiello-Vaisberg & Machado, 2008). A bem da
clareza, vale dizer que, nessa perspectiva, os conceitos apresentados não são
ontologicamente diferenciados, pois campos e imaginários são produzidos a partir de
atos humanos, tornando-se substrato de outros atos humanos, em um movimento
dialético e contínuo, que pode seguir caminhos de reprodução ou superação do que
se apresenta em dado momento.
A seguir, trazemos esclarecimentos necessários quanto ao trajeto
metodológico adotado, no âmbito do qual distinguimos uma forma de
operacionalização do método psicanalítico que abrange procedimentos investigativos
de seleção, registro e interpretação do material de pesquisa. Deste modo, cuidamos
de nossa comunicação com pesquisadores qualitativos que usam outros referenciais
ou que utilizam a psicanálise não como método, mas como corpo teórico.
Visando atender o procedimento investigativo de seleção do material,
escolhemos, por acessibilidade ou conveniência (Marotti et al., 2008), um vídeo da
plataforma YouTube, intitulado “Como é perder alguém por suicídio”, do canal Math
Horácio Traduz (2017). Nesse, pessoas que perderam alguém por suicídio
expressavam livremente as suas experiências.
Em seguida, fizemos o download do referido vídeo e transcrevemos as falas
daqueles que participaram da filmagem, cumprindo o procedimento investigativo de
registro do material. Tal etapa se fez necessária, uma vez que materiais online podem
ficar indisponíveis, sem qualquer aviso prévio.
Juntamente com o grupo de pesquisa, procedemos à interpretação
psicanalítica do material. Neste momento, cultivando um estado de atenção flutuante
e associação livre de ideias (Aiello-Vaisberg & Machado, 2005), buscamos
criar/encontrar os campos de sentido afetivo-emocional, que correspondem aos
resultados nesse tipo de pesquisa. Para isso, seguimos as palavras de ordem de
Herrmann (1979/1991), isto é: “deixar que surja”, “tomar em consideração” e
“completar a configuração do sentido emergente”.
Por fim, cessamos o uso do método psicanalítico para realizarmos as
interlocuções reflexivas. Essa etapa, que corresponde ao que é usualmente
designado como discussão dos resultados, consiste em um trabalho dialógico-
318
reflexivo com outras/os autoras/es, psicanalistas ou não, a fim de produzir
conhecimento compreensivo sobre o tema estudado.
319
Como corroborado por autores como Fukumitsu e Kovács (2016) e Dutra et al.
(2018), o suicídio de um ente querido pode desencadear sofrimento emocional que se
expressa sob forma de sentimentos variados e em diferentes intensidades, como, por
exemplo, desamparo, dúvidas, solidão, saudades, necessidades de explicações e
sensação de anestesia.
De acordo com Worden (2013), o luto causado por um suicídio gera
divergências entre teóricos, com alguns apontando maior dificuldade para esse ser
superado e outros não o diferindo dos demais lutos. Tomando como base o estudo de
Dutra et al. (2018), tal diferença se justificaria, pois pessoas que perderam alguém por
suicídio, para além da dor do luto, enfrentariam também julgamentos, preconceitos e
críticas sociais. A seu ver, a culpa também ocuparia um bom espaço, pois essas
pessoas tenderiam tanto a se responsabilizarem pela atitude de quem se suicidou
como a reprovarem a si mesmas por não terem sido capazes de evitar o acontecido.
De fato, o material aqui pesquisado permite compreender que a experiência de
suicídio se faz acompanhar por sofrimentos significativos das pessoas próximas,
podendo agravar dificuldades anteriores no lidar com adversidades e frustrações, o
que pode favorecer o adoecimento emocional. Entretanto, embora as pessoas que
perderam alguém por suicídio reconheçam, no material, a vivência desses impactos,
elas não percebem a si mesmas como quem precisaria de cuidado, pois justamente
contrapõem, talvez defensivamente, dois tipos de pessoas: aquelas que têm
problemas internos e se suicidam e aquelas outras que se encontram atingidas pelo
ato alheio de suicídio. As primeiras deveriam ter tido seus problemas internos tratados,
enquanto as segundas não necessitariam de tratamento, apesar de sofrerem.
Recordamos aqui um importante tema winnicottiano, vale dizer, a questão do
medo da loucura. Para esse autor, quando a pessoa teme o próprio caos interno, bem
como a perda de contato consigo mesmo, pode atribuir a loucura ao outro enquanto
se mantém submissa à realidade externa (Winnicott, 1971/1975), aferrando-se
defensivamente ao que julga concreto e estável para controlar as próprias fantasias.
Esse fato afetaria a capacidade criativa, levando à estagnação e ao estabelecimento
de relações rígidas com a realidade, o que conduz a uma vida impessoal (Pires, 2010).
Vale lembrar que, na teoria de Winnicott (1971/1975, 1956/1978, 1963/1983),
criatividade e autenticidade seriam pilares centrais para a saúde do indivíduo, sendo
que sua ausência provocaria sofrimentos radicais.
320
Assim, a posvenção nos parece de grande relevância, na medida em que visa
auxiliar aqueles que, por terem perdido pessoa próxima por suicídio, enfrentam
traumas, estresse, sofrimentos e adoecimento (Dutra et al., 2018). Contudo, devemos
chamar atenção para a possibilidade desses enlutados apresentarem grandes
resistências que, por medo e angustia, podem evitar a formulação de uma demanda
e ajuda psicológica. Desse modo, fica recomendada a atenção para uma clínica
baseada em enquadres diferenciados, que possa lidar com a situação emocional dos
enlutados sem fazer exigências que ultrapassem suas capacidades de momento.
Referências
321
Math Horácio Traduz (2017, 3 agosto). Como é perder alguém por suicídio [Vídeo].
Recuperado em 29 de outubro de 2019, de
https://www.youtube.com/watch?v=9OaPjM9dCPw&bpctr=1573792981.
Ministério da Saúde (2017). Agenda estratégica de prevenção ao suicídio.
Recuperado em 29 de outubro de 2019, de
http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/setembro/21/Coletiva-
suicidio21-09.pdf.
Pires, F. A. R. (2010). Criatividade no processo de amadurecimento em Winnicott.
Dissertação (Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica). Recuperado em
20 de novembro de 2019, de
https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/14988/1/FELIPE%20AUGUSTO%20R
IBEIRO%20PIRES.pdf.
Politzer, G. (2004). Crítica dos Fundamentos da Psicologia: A Psicologia e a
Psicanálise. Piracicaba: Editora Unimep. (Original publicado em 1928).
Universidade Federal de Minas Gerais. (2019). Setembro amarelo: mês de prevenção
ao suicídio. Recuperado em 20 de novembro de 2019, de
https://site.medicina.ufmg.br/setembroamarelo/#cartilha
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago (Original
publicado em 1971).
Winnicott, D. W. (1978). Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. (D. Bogomeletz,
Trad.) Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Original publicado em 1956).
Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a
teoria do desenvolvimento emocional. (I.C.S. Ortiz, Trad.) Porto Alegre: Artmed.
(Original publicado em 1963).
Worden, J. W. (2013). Aconselhamento do luto e terapia do luto. (4a ed.). São Paulo:
Rocco.
World Health Organization. (2019). Suicide in the world: Global Health Estimates.
Recuperado em 20 de novembro de 2019, de
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/326948/WHO-MSD-MER-
19.3-eng.pdf?ua=1
322
Anexo – Transcrição do material de pesquisa
O vídeo intitulado "Como é perder alguém para o suicídio", do canal Math Horácio
Traduz (2017), começa mostrando a frase "Este vídeo contém conversas sobre
depressão e tentativas de suicídio”. Posteriormente, é mostrado uma senhora (Sujeito
1) falando "Eu não entendo o porquê das pessoas não falarem sobre isso, eu não
estou envergonhada que minha filha escolheu este caminho para não estar aqui. Eu
estou muito triste pelo fato dela não estar comigo."
A seguir, aparece uma legenda na tela escrita: "Como é perder alguém para o
suicídio". Inicia-se, então, a apresentação dos participantes do vídeo. A primeira é
Marcela7 (Sujeito 2), que perdeu sua irmã de 19 anos para o suicídio. Logo após,
mostra-se Tereza (Sujeito 3), que perdeu seu pai e avô por suicídio quando ela era
criança. O vídeo segue mostrando Júlia (Sujeito 4), que perdeu sua melhor amiga de
29 anos para o suicídio. Depois, mostra-se Marcelo (Sujeito 5), que perdeu seu irmão
mais novo por suicídio, quando o mesmo tinha 22 anos. Novamente, vemos Paula
(Sujeito 1), a senhora do começo do vídeo, e consta que ela perdeu a filha para o
suicídio. Antônia (Sujeito 6) perdeu seu pai quando ela tinha 21 anos. Por fim, Marcos
(Sujeito 7), estando escrito que o mesmo perdeu seu melhor amigo para o suicídio.
O fundo preto volta à tela e surge a frase: "Como foi quando você descobriu?". Em
seguida, vemos as respostas de cada integrante do vídeo:
Sujeito 5: Eu tinha deixado meu celular no quarto e tinha 45 chamadas perdidas e eu
me senti sem força.
Sujeito 6: Foi tão chocante e tão inacreditável, mas também antes de eu sequer
atender a chamada, a luz do meu celular acendeu e eu sabia sobre o que era a ligação.
Sujeito 2: Eu acordei na manhã seguinte às duas, com dois policiais batendo na janela
do meu quarto, então eu os deixei entrar e eles pediram para eu sentar e disseram
que minha irmã foi encontrada.
Sujeito 7: Eu queria checar tudo duas vezes para que o nome certo aparecesse.
Sujeito 1: O sargento da polícia começou a conversar comigo, e assim que ele
começou a conversar comigo, foi como se meu coração tivesse sido rasgado em dois.
A próxima pergunta que aparece na tela é: "Como você se sentiu?". Seguem as
respostas:
7
Todos os nomes aqui utilizados são fictícios.
323
Sujeito 6: Não senti até um pouco de tempo depois que a poeira começou a se
acalmar, você tipo que percebe o que aconteceu.
Sujeito 1: Sensação física de ir, "não, não, é a minha filha. Minha filha se foi".
Sujeito 5: Eu cheguei em um ponto no aniversário do Otávio, onde eu fiquei
preocupado comigo mesmo.
Sujeito 1: Eu senti como se fosse me encontrar com ela.
Sujeito 5: Todos os primeiro, o primeiro aniversário, o primeiro ano novo, o primeiro
natal. Tudo isso te golpeia quando você menos espera.
Sujeito 1: Meu coração nunca mais foi o mesmo. E aí uma sensação física, de ter uma
parte minha levada embora.
Sujeito 2: Eu desenvolvi agorafobia, eu desenvolvi ansiedade severa e transtorno de
ansiedade generalizada, eu desenvolvi depressão pior que já tenho em minha vida
inteira.
Sujeito 4: Um vem e vai em ondas de sentimento de tristeza para, sim, claro, saudades
dela.
Sujeito 2: Se você puder imaginar uma noite onde você ficou chorando, ou chorando
sozinho, até dormir, porque alguém quebrou seu coração, cada santa vez que isso
aconteceu, tudo em uma única vez e o sentimento realmente nunca foi embora.
Sujeito 1: Isso quebrou meu coração.
A próxima questão foi "O que você levou desta experiência?". As respostas dos
participantes foram:
Sujeito 3: Eu acho que a maior coisa que eu levei através desta experiência é esta
espécie de fragilidade da vida, particularmente quando isso vem da saúde mental e
não tendo serviços ao seu redor.
Sujeito 7: Que saúde mental não é uma fraqueza.
Sujeito 3: As pessoas hoje em dia ainda estão varrendo isso para debaixo do tapete.
As pessoas ainda não estão conversando sobre isso, as pessoas ainda estão fingindo
que nada está acontecendo.
Sujeito 7: Não há nada de errado quanto a falar sobre isso, não há nada de errado
quanto a ter um momento de choro, não há nada de errado quanto dar ou receber um
abraço, e isso não é esperar para falar.
Sujeito 1: Então, eu acho que o diálogo é a chave, eu acho que a conversa é a chave,
eu acho que perguntar aos seus amigos se eles estão bem e assim os ouvir é a chave.
324
Sujeito 4: Isso realmente me faz notar o quão importante é se aproximar de qualquer
pessoa amada, para conversar mais sobre as coisas, expressar sentimentos e apenas
estar lá um para o outro.
Sujeito 2: Minha base inteira de quem eu sou mudou. Ela era minha única irmã, assim
foi minha melhor amiga por mais ou menos vinte anos.
Sujeito 5: Eu sinto como se não fosse a mesma pessoa que eu era e eu acho que um
monte de gente espera que você tipo volte a ser a mesma pessoa, mas eu nunca vou
ser aquele homem de novo. Toda minha experiência de vida mudou.
Sujeito 1: Eu acho que isso jamais vai ser normal para mim.
Sujeito 3: E se isto alcançar apenas uma pessoa que foi simplesmente como eu,
apenas quero que eles saibam que não estão sozinhos.
Sujeito 1: Você não está pensando sobre o que deixa para trás, mas a consequência
simplesmente dura para sempre. Cuidem de vocês mesmos, cuidem uns dos outros.
A vida é muito curta. Apenas curta ela.
O vídeo finaliza com um fundo preto.
325
27- CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE RACISMO E FORMAÇÃO DE
PSICÓLOGOS
Rafael Aiello-Fernandes
Tania Aiello-Vaisberg
Leila Cury Tardivo
326
Introdução
328
afastamento em relação a essa norma. O preconceito de cor consiste numa forma de
discriminação que se concretiza, na realidade cotidiana, a partir da classificação do
indivíduo em uma cromatologia hierárquica, segundo a pigmentação da pele, e na
produção de outras marcas como formato de nariz e cabelo. O ideal do
branqueamento e o preconceito de cor conformam um racismo assimilacionista,
universalista e heterófobo em relação ao negro, que se sustenta em uma mistura de
processos de inclusão e exclusão, configurando, concretamente, o que podemos
chamar de pseudo-inclusão ou inclusão subordinada. De fato, observamos que a
inclusão se deu historicamente, de forma meramente retórica, no âmbito cultural, na
medida em que alguns elementos de matriz africana foram simbolicamente clareados
e incorporados discursivamente à identidade brasileira. Por outro lado, constatamos
que a exclusão ocorre notadamente no campo social, político e econômico,
expressando-se sob forma de acesso diferencial a direitos básicos de cidadania e
participação na construção do comum. Isso tem consequências concretas na
produção de sofrimentos sociais e nas políticas de vida e morte da colonialidade, pois
garante estruturalmente oportunidades para um grupo, caracterizado por sua plena
humanidade, o branco, enquanto busca instituir morte, anomia, desagregação social
e despersonalização psicológica em outro, não visto como plenamente humanizado –
o que tem sua expressão máxima no alarmante índice de homicídios que acomete a
população negra em nosso país. No entanto, essa realidade foi e é mascarada pelo
que ficou conhecido como democracia racial – a concepção de que não sofreríamos
com o racismo e que as oportunidades eram e são iguais para todos independente de
cor, sendo que qualquer forma de preconceito se daria exclusivamente pelo fator
classe social. Temos assim, um racismo estrutural que se efetua na prática, em termos
sociais, institucionais e interpessoais, ao mesmo tempo que se nega discursivamente
(Aiello-Fernandes, 2018; D’Adeski, 2001; Guimarães,1999, 2012; Schwarcz,1993,
2012; Souza, 1983).
329
racismo, argumentando que esse não pode ser entendido fora de suas conexões com
as realidades econômicas e políticas e de sua relação com a temporalidade. Partindo
da psicanálise, afirma que a originalidade freudiana em relação ao saber de seu
tempo, relativa a levar em consideração a dimensão ontogenética na explicação das
psicopatologias, deveria ser complementada, no que diz respeito ao racismo, por uma
valorização da sociogênese. Com isso, Fanon (1952) abre a possibilidade de se
estudar os impactos existenciais da colonialidade na experiência vivida, articulando-
as com a realidade social (Maldonado-Torres, 2007). A partir disso, analisa diversos
aspectos da experiência emocional em um contexto no qual o racismo anti-negro gera
efeitos devastadores de despersonalização, subalternização e invisibilização do corpo
e da subjetividade negras, causando um complexo de inferioridade ligado ao lugar em
que o negro foi colocado na modernidade pela violência do escravismo, da expansão
imperial das nações colonizadoras e das ideologias justificadoras da dominação dos
povos considerados como “de cor”.
330
da interdependência entre o macrossocial, o econômico, o cultural e a vida emocional
em sua obra que, segundo nossa concepção, pode ser criativamente articulada com
as considerações blegerianas de crítica aos mitos do ser humano natural, isolado e
abstraído de suas ligações com o mundo concreto.
331
da conduta: o ambiente ou subcampo geográfico, que corresponde, praticamente, ao
que pode ser percebido por um observador relativamente externo ao acontecer em
pauta; o subcampo psicológico, que abrange as experiências vividas; e, finalmente, o
campo da consciência, que consiste nas experiências conscientemente percebidas
num certo momento. Além disso, a conduta deve ser sempre vista como vinculada a
macrocontextos econômicos mais amplos.
332
atravessam o campo social, podendo ser mantenedoras e reprodutoras destes ou
indicar posturas existências que clamem por mudanças.
Considerações finais
333
entre o potencial herdado e o ambiente que, por meio dos grupos primários, aporta a
herança cultural (Plastino, 2012).
Referencias
334
africanos em América Latina: Herencia, Presencia y Visiones Del Outro.
Córdoba:Ferreyra Editor, 35-52.
335
Mussatti-Braga, A. P. (2015) Os Muitos Nomes de Silvana: Contribuições
Clínico-Políticas da Psicanálise sobre Mulheres Negras. Tese de Doutorado, São
Paulo: Universidade de São Paulo.
Scharwcz, L.M. (1993) O Espetáculo das Raças. São Paulo: Companhia das
Letras.
Scharwcz, L.M. (2012) Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça
na sensibilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma.
336
28- SOFRIMENTO EMOCIONAL DE PÓS-GRADUANDOS: UM ESTUDO
PSICANALÍTICOPRELIMINAR
337
sistema educacional, ao modo como está organizada a pós-graduação brasileira e
como os sofrimentos de pós-graduandos e docentes são efeitos das políticas
neoliberais vigentes no país.
338
em condições adversas, como pobreza, tortura, violência contra a mulher,racismo,
entre outras (Kleinman, Das & Lock, 1997).
Cabe considerar que o conceito de sofrimento social corresponde a uma noção
central na psicologia psicanalítica concreta (Bleger, 1963/2007), na medida em que
essa perspectiva teórica parte de uma antropologia segundo a qual os seres
humanos são fundamentalmente sociais (Bleger, 1963/2007). Desta forma, quando
adotamos esse referencial, podemos afirmar que, em sentido amplo, todo sofrimento
é social, quer atinja pessoalidades individuais, quer coletivas. Contudo, concordar
com essa afirmação não nos impede de admitir que possa valer a pena reservar a
expressão sofrimento social – social suffering – para referir aos padecimentos muito
diretamente vinculados a contextos sociais.
De acordo com nossa experiência clínica, as condições de estudantes noinício e no
final do curso de graduação podem variar profundamente, em funçãodas questões
de vida que são colocadas nesses diferentes momentos. Por outro lado, temos
constatado, em nossa prática, que as questões enfrentadas na graduação e na pós-
graduação podem diferir bastante entre si. A nosso ver, fica, assim, justificada a
proposição de pesquisa que possa focalizar cada um desses períodos
separadamente.
A partir dessas considerações, estabelecemos o objetivo de investigar sofrimento
emocional de estudantes de pós-graduação, desde a perspectiva da psicologia
psicanalítica concreta. Assim fazendo, visamos produzir conhecimento que possa
ser útil na clínica dos sofrimentos sociais de jovens adultos, em vertentes preventivas
e interventivas.
339
texto freudiano, a saber, as perspectivas metapsicológica e clinico-dramática.
Concordando comPolitzer (1928/1998), Bleger (1963/2007) entendeu que a primeira
perspectiva deveria ser abandonada, na medida em que estaria vinculada a uma
forma positivista e fisicalista de pensar a ciência. A segunda, harmonizar-se-ia com
visões filosóficas segundo as quais as ciências humanas apresentamespecificidades
que devem ser levadas em conta.
Sob a égide da perspectiva clínico-dramática, fundamentamo-nos na psicologia
psicanalítica concreta (Bleger, 1963/2007). Deste modo, valemo-nos de três
principais conceitos por meio dos quais se teoriza o material. O primeiro deles é a
conduta, noção por meio da qual se abarcam todos os atos humanos,
independentemente de se expressarem simbolicamente, corporalmente, por meio de
ações no mundo externo ou por meio de produtos derivados dessas ações. O
conceito de conduta aplica-se tanto a atos individuais como a atos de pessoalidades
coletivas, de caráter transindividual. O segundo conceito metodológico, aqui
utilizado, é o de campo de sentido afetivo-emocional, que corresponde ao substrato
afetivo-emocional a partir do qual emergem os diferentes atos, já que esse referencial
teórico critica a ideia de que esses derivam simplesmente do que se passa no
psiquismo individual. Podemos afirmar que os campos equivalem a um inconsciente
intersubjetivo habitado porindivíduos e grupos. O terceiro deles, vale dizer, o conceito
de imaginário comoconduta e como campo corresponde a uma noção descritiva que
se tem provado útil na comunicação entre pesquisadores. Vale a pena chamar a
atenção para o fato do imaginário poder ser estudado não só como conduta, mas
também comocampo e acaba deixando claro que não existem diferenças ontológicas
entre atos e campos, uma vez que, como produções humanas, nas quais não
intervêm poderes sobrenaturais nem elementos infra-humanos, atos criam campos
e campos são substratos a partir dos quais emergem atos.
A fim de realizarmos o presente estudo, operacionalizamos o método psicanalítico a
partir de três procedimentos investigativos:
1. Procedimento investigativo de levantamento e seleção de postagens
2. Procedimento investigativo de registro do material
3. Procedimento investigativo de interpretação do material
340
O procedimento de levantamento e seleção de postagens se deu como busca de
vídeos do YouTube, por meio da utilização dos descritores “depressãouniversitário”.
A escolha desse material se deu em função da mídia denominadaYouTube ser um
importante canal de comunicação de experiências entre os jovens, entre outros tipos
de conteúdo (Salmons, 2015). Para seleção do material utilizamos os seguintes
critérios: a) que fossem depoimentos de pessoas que seidentificassem como pós-
graduandos e b) que abordasse manifestamente a questão do sofrimento emocional
de pós-graduandos. Foram selecionados para este trabalho preliminar os dois
primeiros vídeos que atendessem a esses critérios.
O procedimento de registro do material ocorreu por meio da transcrição das falas
veiculadas pelos vídeos. Assim, tanto os vídeos puderam ser revistos como os
registros escritos puderam ser relidos repetidas vezes. Cabe ainda destacar que as
transcrições representam um cuidado necessário uma vez que muitos materiais
podem deixar de estar disponíveis na web sem aviso prévio.
O procedimento investigativo de interpretação do material foi cumprido revisitando
os vídeos e suas respectivas transcrições, numa atitude de aberturaàs ressonâncias
e impactos emocionais que o encontro com as manifestações dos youtubers geram.
Utilizamos as premissas psicanalíticas, atenção flutuantee associação livre de ideias,
seguindo as recomendações metodológicas de Herrmann (1979), tomadas como
guias para a interpretação psicanalítica: “deixarque surja”, “tomar em consideração”
e “completar a configuração do sentido afetivo-emocional emergente”. Por esta via
chegamos à enunciação dos camposde sentido afetivo-emocional.
Finalizamos apresentando uma forma de discussão, que denominamos interlocuções
reflexivas, que se caracteriza pela suspensão do uso do método, abandonando a
atenção flutuante e a associação livre de ideias. Nesse momento, damos início a um
trabalho reflexivo, abordando as principais questões que surgiram nos campos de
sentido afetivo-emocional.
341
“Exigentes insensíveis” e “Sistema cruel”. Apresentamos, a seguir, cada um dos
campos.
O primeiro campo, “Exigidos infelizes”, organiza-se ao redor da fantasia de que os
estudantes de pós-graduação sofrem por receberem demandas desmedidas de
dedicação ao trabalho acadêmico.
O segundo campo, “Exigentes insensíveis”, organiza-se ao redor dafantasia de que
os sofrimentos provocados pelas demandas desmedidas não encontram
acolhimento por parte dos professores.
O terceiro campo, “Sistema cruel”, organiza-se ao redor da fantasia de que o modo
como se organiza o sistema de pós-graduação contribui diretamentepara o sofrimento
emocional de todas as pessoas nele envolvidas
Transcrevemos, a seguir, três trechos dos depoimentos estudados, cada um
emergente de um campo.
No primeiro trecho, emergente do campo “Exigidos infelizes”, a questão do
despreparo e da ansiedade parecem dominar a cena. A aluna se sente sem
condições de dar conta dos compromissos assumidos, mas encontra, no
atendimento psicológico, uma ajuda que se revelou decisiva.
Eu não tava dando conta de conciliar a dissertação e o canal, e era daí que vinha a
minha fonte de renda, e eu não conseguia mais ter um momento delazer, eu não
conseguia mais sentir prazer nas coisas. Quando eu estava fazendo algo da minha
vida que não era dissertação, eu pensava que eu precisava estar escrevendo a minha
dissertação. É sério. É horrível, mas é sério. E isso gera ansiedade, porque você
nunca está vivendo aquele momento, você nunca está vivendo o presente. Você está
sempre pensando no futuro, em algo que você deveria fazer. E aí sua cabeça frita, e
se você fica ansiosa, você não consegue produzir, sua tendência é procrastinar. E
se você não produz, você fica mais ansiosa, e esse é um ciclo que nunca acaba.
Porque você fica pensando no prazo que você tem que, no meu caso eu não
consegui cumprir, eisso me deixou ainda mais ansiosa. Porque eu pensei: eu não
vou terminar issonunca! Foi quando eu comecei a fazer terapia, já falei sobre isso
num vídeo, e fiquei quatro meses longe do canal. Se não fosse isso, eu acho que
não teria terminado minha dissertação. Sinceramente, eu não sei como eu estaria
hoje.
342
Notamos, no caso deste trecho emergente do primeiro campo, que a estudante sofre
por se sentir aquém do requerido, que fica dividida entre dedicar-se integralmente à
tarefa de escrita da dissertação ou permitir-se cuidar de seu sustento e usufruir de
algum lazer. A sensação de pressão é intensa, mas se mantém como autoexigência
e como reconhecimento de normas externas, que impõem prazos. Não aparece, por
outro lado, nenhuma crítica por ter que tirar seu sustento de outra fonte enquanto se
dedica à pós-graduação.
343
E eu não conseguia falar sobre isso no meu programa de pós-graduação. Até havia
uma sensibilidade em relação a algumas coisas, eu entreguei trabalhos depois do
prazo, e não tive problema com isso. Mas as coisas que me diziam em relação a isso
era quase um apagamento em relação ao meu emocional. Um dia, um professor veio
me perguntar o que estava acontecendo, e quando eu falei que tava tendo problemas
com a família, principalmente por conta da minha sexualidade e por conta da minha
militância, o professor respondeu que se eu não me expusesse tanto nas redes
sociais, talvez este problema não tivesse acontecendo. Quer dizer, basicamente, ele
pôs a culpa em mim, me sugeriu sutilmente voltar para o armário e me disse que eu
tinha que me concentrar no que era mais importante que, no caso, não era minha
saúde mental nem a relação com a minha família, era entregar os trabalhos no prazo.
Em uma outra situação, uma outra pessoa me disse que sofrer era uma escolha
minha e que eu podia me concentrar nos meus problemas ou me concentrar em fazer
um bomdoutorado, que era o que ia me trazer benefícios verdadeiros na vida.
A segunda parte do depoimento traz uma outra questão, ligada à vida sexual do
jovem, que se encontra visivelmente empenhado em assumir um posicionamento
sentido como mais autêntico, mesmo que desaprovado socialmente. Aqui ocorre
mais um encontro infeliz com um professor pouco sensível, que recomenda a adoção
de uma conduta baseada em análise fria dos próprios interesses e repressão de
sentimentos, segundo uma visão imatura da pessoa humana como ser racional capaz
de governar afetos e de escolher entresofrer e não sofrer.
Em relação ao terceiro campo, “Sistema cruel”, notamos, no próximo trecho, uma
mudança interessante de posicionamento imaginativo e clinicamente significativo. No
caso, o estudante não considera o sofrimento comodecorrente de conflitos internos
ou de um orientador “mau”, mas, sim, como um resultado que se dá em condições
concretas que afetam alunos e professores do sistema da pós-graduação.
Nesse caso, a primeira coisa que a gente precisa discutir é como a própriacultura da
universidade, a própria cultura da academia contribue diretamente para o sofrimento
emocional e psíquico das pessoas que estão envolvidas com ela. O que a gente
precisa questionar é a lógica que está na CAPES, no CNPq, nas reitorias, nas pró-
reitorias, é a lógica que está na base dos critérios de avaliação, nos prazos, da
exigência enorme por produtividade, é disso que a gente precisa falar, dando foco
344
em todo prejuízo excessivo que isso causa. O debate que a gente precisa levantar é
o debate que a gente tem plenascondições de produzir conhecimento de qualidade,
que a gente tem condição de produzir conhecimento de excelência sem precisar
acabar com a saúde mental das pessoas que estão na universidade brasileira.
Vemos, assim, que no primeiro trecho, aqui apresentado, a aluna se exige, não se
queixa de orientadores e professores, não critica as normas do sistema de pós-
graduação e consegue se resolver buscando ajuda psicológica. Ou seja,concebe-se
como pessoa que está enfrentando dificuldades e admite a possibilidade de obter
ajuda de outra pessoa, mas parece pairar ingenuamente no contexto institucional,
sem abordar crítica e lucidamente a dimensão institucional do sistema de pós-
graduação que, como sabemos, define-se a nívelministerial em nosso país
No segundo trecho, o estudante sente-se aquém do demandado, faz auto-exigências,
queixa-se e busca culpados aos quais atribui, de certo modo,responsabilidade pelo
seu sofrimento. Por outro lado, também não trata da dimensão institucional e das
políticas que norteiam aquilo que, no cotidiano, expressa-se como exigências ao
orientador e ao orientando.
Por sua vez, no terceiro trecho, fica nítido um posicionamento mais crítico que, ao
considerar a dimensão afetiva-emocional dos atos humanos, não o faz a partir de
compreensões internalistas, mas, sim, vinculares, levando devidamente em conta as
situações nas quais as pessoas trabalham. O sofrimento vivido é vinculado ao modo
como se organiza o sistema de pós- graduação, além do que se passa “entre” o aluno
e professores ou colegas, incluindo a dimensão macrossocial, vale dizer, o modo
como as políticas educacionais desconsideram as pessoas envolvidas.
345
Referências
Costa, E.F.O., Rocha, M.M.V., Santos, A.T.R.A., Melo, E.V., Martins, L.A.N., &
Andrade, T.M. (2014). Common mental disorders and associated factors among final-
year healthcare students. Revista da Associação Médica Brasileira, 60(6), 525-530.
https://dx.doi.org/10.1590/1806-
9282.60.06.009
Dejours, C. (1980). Travail, usure mentale: de la psychopathologie à la
psycodynamique du travail. Paris: Bayard.
Graner, K.M., & Cerqueira, A.T.A.R. (2019). Revisão integrativa: sofrimento psíquico
em estudantes universitários e fatores associados. Ciência & Saúde Coletiva, 24(4),
1327-1346. Epub May 02, 2019. https://dx.doi.org/10.1590/1413-
81232018244.09692017
Kleinman, A., Das, V. & Lock, M. (1997) Social suffering. Los Angeles: Universityof
Califórnia Press.
Silva, A.O., & Cavalcante Neto, J.L. (2014). Associação entre níveis de atividadefísica
e transtorno mental comum em estudantes universitários. Motricidade, 10(1),
49-59.
https://dx.doi.org/10.6063/motricidade.10(1).2125.
Silva, A.G., Cerqueira, A.T.A.R., & Lima, M.C.P. (2014). Social support and common
346
mental disorder among medical students. Revista Brasileira de Epidemiologia, 17(1),
229-242. https://dx.doi.org/10.1590/1415-790X201400010018ENG.
Vasconcelos-Raposo, J.; Soares, A.R.; Silva, F.; Fernandes, M.G.; Teixeira, C.M.
(2016). Níveis de ideação suicida em jovens adultos. Estudos de Psicologia
(Campinas), 33(2), 345-354. https://dx.doi.org/10.1590/1982-
02752016000200016
Vizzotto, M.M.; Jesus, S.N.; Martins, A.C. (2017). Saudades de casa: indicativosde
depressão, ansiedade, qualidade de vida e adaptação de estudantes universitários.
Revista Psicologia e Saúde, 9 (1), p. 59-73.http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v9i1.469.
347
29- IMAGINÁRIO COLETIVO SOBRE TRANSGENERIDADE EM VÍDEOS DO
PORTA DOS FUNDOS
Resumo: Este trabalho tem como objetivo investigar imaginários coletivos sobre
transgeneridade. Justifica-se na medida em que tais imaginários podem revelar como
estão organizadas as normas de gênero na sociedade contemporânea ocidental,
indicando suas repercussões sobre as subjetividades. Configura-se como um estudo
qualitativo e empírico, com o uso do método psicanalítico, que utilizou, como material,
vídeos humorísticos, correlacionados com a palavra-chave transgeneridade,
disponibilizados no YouTube pelo canal Porta dos Fundos, que consta com elevado
número de acessos e inscritos na referida plataforma. A análise do material permitiu
a produção interpretativa de três campos de sentido afetivo-emocional: “A ditadura do
gênero”, “Posso ser quem eu me sinto” e “Ao seu dispor”. O quadro geral aponta que,
sociedades que impõem uma organização binária e sexista, acabam por suscitar
sofrimento socialmente determinado, atingindo a todos, com destaque para aquele
vivenciado pelas pessoas transgênero. Podemos pensar, à luz da teoria do
amadurecimento emocional de D.W. Winnicott, que a submissão às normas de
gênero, assim como a violência sofrida pela população transgênero, limitam tanto o
potencial criativo como a espontaneidade pessoal, que são pilares fundamentais na
concepção de saúde mental desse autor.
348
Palavras-chave: Transgeneridade, Gênero, Humor, Imaginários coletivos, Método
psicanalítico.
Problema de pesquisa
8
Para Butler (2003), sexo e gênero não se diferenciam ontologicamente. Tal posicionamento demarca
que sexo não corresponde a um substrato “natural”, a partir do qual se construiria o gênero, de caráter
social, conforme encontramos em Beauvoir (1949/1986). Segundo Butler (2003), ambos os conceitos
se equivaleriam e seriam, então, ficções reguladoras criadas mediante a contínua repetição de atos
performativos, circunscritos em um tempo e espaço. Por esse motivo, utilizaremos, doravante, neste
texto, o termo “gênero”.
349
Visto compreendermos que nenhuma conduta está desvinculada do acontecer
humano em sua totalidade, isto é, de contextos sociais, econômicos, políticos,
culturais, históricos etc., entendemos que, em sentido amplo, todo sofrimento
emocional é também um sofrimento social (Bleger, 1963/2007). Assim, a Psicologia
teria muito a contribuir, no sentido de promover ações psicoprofiláticas e
psicoterapêuticas acerca das normas de gênero, uma vez que essas podem ser causa
de intenso sofrimento e adoecimento das pessoas.
Método
350
Para atender o procedimento investigativo de encontro com o material,
assistimos aos vídeos selecionados repetidas vezes, em estado de atenção flutuante
e associação de ideias, atentando-nos aos impactos que esses suscitavam em nós,
os quais foram registrados em uma narrativa (Anexo A) e um texto de impacto
contratransferencial (Anexo B). Esses, conjuntamente aos vídeos, constituem o nosso
material de pesquisa.
Por conseguinte, realizamos a interpretação do material, em busca da
criação/encontro dos resultados, isto é, dos campos de sentido afetivo-emocional.
Procuramos, para atender esse fim, seguir as recomendações de Herrmann
(1979/1991), o qual recomenda “deixar que surja”, “tomar em consideração” e
“completar a configuração de sentido”.
Por fim, cessamos o uso da atenção flutuante e da associação livre de ideias
para realizarmos um diálogo dos resultados com outros autores, psicanalistas ou não,
objetivando a construção de conhecimento compreensivo sobre a temática estudada.
351
Por fim, o campo “Ao seu dispor” organiza-se ao redor da crença de que
pessoas transgênero podem ser usadas como instrumento de satisfação sexual de
outrem. Tal imaginário deriva, a nosso ver, do fato de sofrerem ataques
despersonalizantes/ desumanizadores (Aiello-Vaisberg, 2017), que visam torna-las
objetos e invisibiliza-las. Surge como ilustração desse campo, no material, a pessoa
transgênero retratada ora como objeto de prazer, ora sob esforços para ocultá-la do
olhar social.
352
1956/1978, 1963/1983), podemos pensar a submissão às normas de gênero, assim
como a violência sofrida pela população transgênero, como algo limitador do potencial
criativo e da espontaneidade dessas pessoas, sendo esses pilares fundamentais na
concepção de saúde/doença do referido autor.
Enfim, podemos questionar também o próprio papel do humor, o qual pode
operar, de modo mais ou menos velado, para a legitimação e manutenção de
estruturas sociais desiguais e hierárquicas, ou servir como meio de problematização,
reflexão e transformação das condições sociais (Hoff, 2018; Moreira, 2018).
Referências
Arán, M., & Peixoto Júnior, C. A. (2007). Subversões do desejo: sobre gênero e
subjetividade em Judith Butler. Cadernos Pagu, (28), 129-147.
353
Psicologia & Sociedade, 26(3), 756-765. DOI:
https://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822014000300024
Hoff, R. S. (2018). Um olhar pela porta dos fundos: apontamentos sobre o humor
político audiovisual no youtube. Tese (Doutorado em Comunicação e
Informação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-
Graduação em Comunicação e Informação, Porto Alegre-RS, 248p.
Anexo A – Narrativa
Após assistirmos aos três vídeos selecionados do canal “Porta dos Fundos”,
cujo tema era a transgeneridade, propusemo-nos a realizar discussões em grupo com
o intuito de debater os impactos suscitados em cada um de nós no encontro com o
material. Estávamos emocionalmente abalados, perplexos, incomodados e
354
indignados ao término dos vídeos. Esses sentimentos foram despertados após
observarmos que o assunto estava sendo retratado ora com menosprezo, ora de
forma sagaz e às vezes de modo ambivalente. Todos concordaram que tal tema é
muito importante e muito sério, e que deveria ser apresentado sem corroborar com a
manutenção das violências que acometem essa população. Ao decorrer das
discussões surgiram muitos comentários sobre os vídeos e como eles retratavam as
pessoas transgênero de modo jocoso e bizarro. Apontamos os vídeos como
negativos, ruins e confusos, despertando em nós sentimentos de angústia.
355
em desistir por várias vezes e, após questionar as regras sobre a existência de apenas
dois pinos, me deram um terceiro, que chamaram de “outros”. Mesmo com esse
terceiro pino, o sentimento de não-pertencimento ainda me assombrava. Soava-me
impessoal a caracterização de “outros”. Seria um pino “faz de conta”, até mesmo, “café
com leite”? Poderia construir o meu próprio pino?
356
TRABALHOS DE OUTROS
PROGRAMAS E UNIDADES DA
357
30- HISTÓRIAS DE ABANDONO: EFEITOS NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA
Resumo: Esse trabalho tem como objetivo explicitar as funções da família para a
constituição subjetiva, por seu contraponto, através de um estudo de caso. Ou seja,
M., 12 anos, uma pré-adolescente com um histórico de sucessivos abandonos vividos
na condição de trauma, o que gera nela sintomas que são frequentemente entendidos
como delinquenciais, como desrespeito às regras simples em jogos e brincadeiras,
agressividade verbal e física, além de um comportamento de fuga bastante intenso. É
no contexto terapêutico que ela pode vivenciar a segurança e a constância de um
vínculo para poder entrar em contato e elaborar o significado dos traumas vivenciados
associados aos sintomas desenvolvidos. M. carregava uma narrativa de abandono,
relativa a várias repetições, o que implicava na impossibilidade dela se vincular à nova
família, sendo insustentável a filiação e a parentalidade, algo que contribuía para uma
visão estigmatizante envolvendo as adoções tardias. Vemos que M., ao ter um espaço
de escuta sólido, que resiste aos sucessivos “testes” e agressões, tem uma abertura
para que se estabeleçam vínculos duradouros. Entretanto, para que tal postura seja
sustentada, foi preciso colocar em perspectiva toda a sua história pregressa, pondo
em evidência para ela que algumas atitudes suas tinham um significado latente que
iam além de uma reação manifesta, e que cumpriam a função defensiva de não se
vincular.
Introdução
O presente caso foi encaminhado à Clínica Escola do Instituto de Psicologia da
USP pelo Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Osasco
em outubro d
e 2018. Por meio de uma narrativa de sucessivos abandonos podemos reafirmar, pelo
seu contraponto, o papel central da estrutura familiar na constituição subjetiva; bem
358
como apontar a importância do espaço terapêutico como propiciador do
estabelecimento de novos vínculos.
Entende-se que este trabalho possa investigar, através da Psicanálise Vincular
e da Psicanálise de Casal e Família, os pontos desta narrativa que contribuem para a
dificuldade da adoção de adolescentes e crianças mais velhas com um histórico de
sucessivos abandonos. Gomes e Levy (2016), apontam a Psicanálise Vincular como
aquela que enfatiza uma concepção de sujeito na qual ele se constitui no espaço da
intersubjetividade, ou seja, o indivíduo é determinado pelas dimensões social, cultural,
familiar e geracional.
A temática faz-se urgente embora a interface entre Psicanálise e Justiça esteja
cada vez mais se concretizando em estudos e pesquisas interdisciplinares. Entretanto,
quando constatamos um cenário social no qual temos, segundo o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), cerca de 5 mil crianças disponíveis para adoção, enquanto somam-
se 42 mil pretendentes habilitados disponíveis, observamos um descompasso
alarmante no qual mais de 85% destes somente aceitam adotar crianças até 7 anos
de idade, sendo que estas somam menos de 10% das crianças disponíveis hoje³ no
Cadastro Nacional de Adoção (CNA).
O primeiro contato, com a Psicóloga e a Assistente social da Vara, teve o
objetivo de descrever detalhadamente o percurso de M. em instituições de
acolhimento e adoções, e, adicionalmente a isso, houve mais uma reunião com a
psicóloga do acolhimento aonde M. se encontrava residente. Nos dois momentos, os
relatos apresentados sobre a pré-adolescente foram bastante parecidos: uma
facilidade para criar vínculos, inteligência e astúcia bastante proeminentes, porém,
podemos notar a dificuldade de M. em manter seus vínculos, e, junto disso, entramos
em contato com relatos transmitidos por M. à escola sobre abusos físicos, psíquicos
e emocionais por parte da família adotiva e outros personagens de sua história.
Salientam-se as dificuldades especiais na configuração de relações que
propiciem o surgimento de parentalidade e filialidade, termos descritos por Benghozi
(2010) como sendo as capacidades de sentir-se pai/mãe de alguém, assim como este
sujeito se dá a ser filho(a) destes. Tais dificuldades que se dão principalmente por
conta das idealizações dos pretendentes à adoção e à não correspondência da
criança a esse ideal, como descrito por Carvalho, Gomes, Pizzitola, Santos & Ishara
(2017), afinal, “a inexistência do vínculo biológico e de uma herança genética acabam
359
trazendo para a adoção muitas fantasias e preconceitos. A criança adotiva é marcada
por algo que vem de outro que na maioria dos casos é um desconhecido.”
Objetivo
O artigo tem por objetivo iniciar um trabalho de reflexão e investigação acerca
da importância da família na constituição subjetiva, abordando o avesso de um
processo ideal de filiação, que acaba por perpetuar abandonos, gerando
consequências importantes para novas tentativas de adoção. Salienta-se a incidência
de comportamentos agressivos que acabam por reeditar a cena do abandono, uma
vez que as famílias pretendentes à adoção se veem impelidas a interromper um
processo de adoção, tendo tomado o comportamento de M. como delinquencial, e não
um efeito de suas relações interpessoais até então, algo posto em evidência no
vínculo entre M. e a terapeuta-autora.
Relato
As funcionárias da Vara descrevem o caso como “complicado” e “bastante
difícil” para a criança: filha de mãe “hippie”, com problemas de drogadição, fora
deixada a uma cuidadora informal, que ficava integralmente com M. em troca de
pequena remuneração. Em determinado momento, no qual M. tem 3 anos de idade,
essa renda deixa de ser oferecida, e a cuidadora vai à justiça buscando regularizar a
situação por meio da adoção. No entanto, mediante avaliações do vínculo
estabelecido, é decidido o encaminhamento de M. a acolhimento, uma vez que a
“responsável”, ilegal naquele momento, se apresentava impaciente e agressiva com
a criança em diversas situações. Assim, M. é levada para o acolhimento em agosto
de 2009, e inicia-se o processo de busca por sua mãe biológica.
Em 2010, M. é trocada de instituição, e, na impossibilidade de localização de
quaisquer membros familiares, em 2011 dá-se início à destituição, em 2013 é
definitivamente destituída da família biológica. Aos 7 anos, tem-se, pela narrativa da
assistente social que acompanha o caso desde então, que M. se apresenta como uma
criança de fácil contato, bastante recursos afetivos e nenhuma dificuldade em suas
diversas relações, além de um ótimo desempenho escolar.
Em setembro de 2013, um casal pretendente a adoção faz aproximações à M.,
o homem é um ex-policial ferido em campo, deixado tetraplégico após os conflitos; a
mulher, então, sustenta a posição de cuidar do marido, e ambos apresentam o desejo
360
de serem pais, no entanto, com a aproximação, tem-se que a dinâmica do casal não
permite um terceiro a ser cuidado pela pretendente mãe, e ocorre a desistência do
processo em março de 2014. M. passa mal, tem reações físicas intensas, como
vômitos e febre. Em seguida, outra mulher tenta efetivar a adoção, mãe solteira de
uma menina de 12 anos, desiste do processo também no período de aproximação.
Fazemos aqui a primeira pontuação sobre o que parece ser um fator dificultador
nos encontros subsequentes de M. com novos grupos familiares. Carvalho (2017),
aponta que o processo de filiação e parentalidade, ou seja, considerar uma
criança/adolescente como filho e este considerar os pretendentes como pais, têm três
dimensões: biológica, psíquica e jurídica. De imediato, M. não se inclui em uma
linhagem biológica com os pretendentes, e judicialmente não se concretizam os
processos aos quais ela é exposta, no entanto, no âmbito psíquico aparece uma
narrativa de grande investimento dela nos vínculos propostos, e de grande sofrimento
na interrupção de um processo que legalmente não configura abandono, mas que
parece ter sido vivido como tal.
Finalmente, em novembro de 2014, M. é adotada por A. e E., casal que na
época da habilitação como pretendentes a adoção se acreditava infértil, mas que
durante esse processo passa por uma gestação, sem que o filho biológico os faça
desistir do processo. Em 2014 têm um filho de dois anos, mas seguem, após o período
de convivência, com a adoção. Parte do desejo de adotar vem do fato de que A., o
pai, fora adotado, e, mediante um sentimento de profunda gratidão, diz querer oferecer
as mesmas possibilidades a uma criança em acolhimento. Mendes (2007) traz
importantes reflexões sobre os pretendentes tardios “altruístas”, que acabam por não
permitir expressões de agressividade, rivalidade e competição, intrínsecos a relações
familiares, e o seguimento desta tentativa de adoção vem na direção desta
observação.
Após a adoção, a convivência familiar fica cada vez mais conturbada com M.
narrando situações de maus tratos e abuso, tanto na família adotiva quanto no período
que ficou em acolhimento. M. apresenta comportamentos sexualizados na escola, e a
mãe, é chamada diversas vezes e orientada a procurar psicoterapia à filha diante do
entendimento de que as narrativas advinham de fantasias. Em 2016 M. foge diversas
vezes de casa, mantendo este comportamento de fuga como sintoma importante até
hoje. Também neste momento, tem um movimento de questionar suas origens e
procura saber da família biológica. Neste ponto, mãe e filha já começam a se
361
distanciar, enquanto o pai já não fala mais com M. desde que ela insiste em fazer
sucessivas denúncias de agressões na escola, algo que o casal sustenta como sendo
mentira. E então o casal vem a ter mais um filho biológico, o que torna os vínculos
entre M. e os pais completamente insustentável.
Procuram novamente a Vara da Infância e pedem ajuda para lidar com tantos
conflitos, pensam em “devolver” a filha, e então são encaminhados para o serviço de
atendimento psicológico do IP-USP/ Laboratório de Casal e Família, coordenado pela
2ª autora. Em 2018, no entanto, entende-se, mediante terapia de casal, que não há
espaço para investir na parentalidade. Em maio de 2018 M. foge definitivamente,
chega a ser acolhida em São Paulo, fornece endereço e nome falso, mas “se entrega”
ao dizer o nome verdadeiro da escola, assim, é localizada. No entanto, não volta ao
convívio familiar, é encaminhada para um abrigo no bairro em que morava, no qual
fica por três meses até ser acolhida pela instituição que fez contato com o Instituto de
Psicologia. Lá, evidencia-se o sentimento de abandono da menina, assim como seus
movimentos de atuação e defesa. Por decisão judicial, a guarda permanece com o
casal adotivo, mas M. entra no cadastro para adoção internacional.
É neste ínterim que começo os atendimentos com M., e encontro, nas primeiras
sessões, uma garota bastante disposta ao vínculo, solícita nos jogos e nas propostas
de atividades e na comunicação. No entanto, quando começamos a nos aproximar,
por volta da quarta sessão, M. deixa de se dirigir a mim e inicia um movimento de
recusa aos nossos encontros permanecendo com a cabeça baixa na mesa, dizendo
que quer dormir pois está com sono ou que está irritada. Discutindo estratégias em
supervisão, mudamos o horário da sessão para que ela tivesse mais tempo de sono,
mas este movimento persiste, enquanto outras reclamações dela sobre o acolhimento
surgem, aparentemente sem correspondência com a realidade, como o não
oferecimento de refeições.
Vou sustentando as narrativas de M. e sua insistência em não se direcionar a
mim, e depois de algumas sessões nessa dinâmica, ela volta a se relacionar de forma
mais estável. Conseguimos conversar sobre seu cotidiano, enquanto pouco a pouco
vou interpretando algumas das narrativas dela, conectando-as ao seu passado
recente, mas M. se mantém completamente avessa a abordar diretamente o passado
e as situações de abandono.
Então, em 2019 vem da Itália um casal de pretendentes, para pai, E. e M. como
mãe, notícia que foi recebida por ela com bastante entusiasmo e disposição para
362
aprender uma nova língua e conhecer um novo país. O investimento de M. é grande,
sendo que nossas sessões passam a ter a Itália como tema pertinente, vemos mapas,
escrevemos cartas em italiano com a ajuda do Google Tradutor e ela aprende algumas
palavras. Os pretendentes italianos fizeram alguns poucos contatos com ela via Skype
e se engajaram no processo de adoção. O passo seguinte, com início em março de
2019, foi o período de convivência: ao desembarcar no Brasil, o casal esteve com o
juiz para receber a guarda provisória da criança. Desse modo, ela se instalara junto
de ambos em São Paulo, desfazendo seus vínculos na escola e na instituição aonde
morava. Dentro de 30 dias esse período se encerraria, e, não havendo grandes
complicações ou desistência, a adoção seria finalizada e a nova família seguiria para
a Itália.
Diante da situação jurídica peculiar de M., de abandono na família adotiva, há
o entendimento de que esse processo deveria ser executado de forma rápida, no
entanto, apresentei, na ocasião, alguns de meus anseios e me dispus a trabalhar junto
da equipe da Vara a fim de auxiliarmos M. nesse processo de transição para não
configurar nova situação de abandono. Uma das preocupações mais imediatas
tratava-se da grande quantidade de vínculos que M. perderia em um curtíssimo
espaço de tempo; para lidar com tal situação, acenei a necessidade de ela continuar
em atendimento psicológico na Clínica Durval Marcondes enquanto no período de
convivência. Manifestei também a necessidade do casal pretendente em comparecer
à Clínica para alguns encontros, além de ter deixado a possibilidade de um
atendimento familiar caso houvesse demanda.
Todas as propostas foram no sentido de auxiliar os sujeitos envolvidos a terem
um espaço para comunicarem suas angústias e trabalharem o que fosse possível
ainda no período de convivência no Brasil, mesmo sendo um processo no qual temos
pouca ou nenhuma interferência quanto à efetivação da adoção. Neste contexto, o
casal chega a comparecer ao Instituto de Psicologia com uma tradutora, também
advogada, responsável pela formalização do processo. Ela mantém a posição de se
efetuar o processo com rapidez e corte de diversos vínculos, mesmo depois de
conversarmos muito a respeito da especificidade do caso de M., já marcado por cortes
bruscos de vínculos. O resultado da repetição destas cenas é devastador. M. em
determinado momento retoma o comportamento de fuga, intensificado pela
impossibilidade de verbalizar suas angústias diretamente aos adultos responsáveis
363
por ela, dado o obstáculo do idioma, uma vez que o casal não falava português e ela
não tivera tempo de aprender vasto vocabulário em italiano.
Os pedidos de M. em revisitar o abrigo eram negados, sendo que o único
vínculo que permaneceu neste meio tempo era com a psicoterapeuta. As sessões
ficaram mais carregadas de afetividade, com M. sendo bastante carinhosa ao mesmo
tempo que reclamava muito do casal, principalmente do futuro pai, dizendo da pressão
que sentia para ser rapidamente incluída em uma família da qual não se sentia
participante. E então se configuraram as situações de fuga e sérias discussões entre
os três, sem que houvesse alguma possibilidade de significação e entendimento por
conta da diferença de línguas. Depois de três semanas de convívio, o vínculo se torna
insustentável, o casal retorna para a Itália e M. para o acolhimento.
Com este novo abandono em sua história, M. passa a procurar meios de
confirmar que não é capaz de manter vínculos e no espaço psicoterapêutico passa a
atuar, dizendo não se interessar mais pela terapia e se recusando a entrar em sessão.
No entanto, com uma proposta de sustentar a presença e a disponibilidade para
escutá-la, com o apoio constante da psicóloga da instituição de acolhimento, para
reforçar a terapia como lugar seguro e necessário, com o tempo as atuações se
tornam menos intensas e M. volta para as sessões, mesmo ainda sem querer falar
sobre suas últimas experiências e o significado destas.
Discussão
Frente a um caso bastante mobilizador e difícil, no qual a decisão judicial por
acelerar os processos burocráticos por um lado é compreensível, por outro, dentro da
perspectiva de construção de uma fialidade psíquica e afetiva (Carvalho, 2017),
entendemos que a pressa em efetivar a adoção internacional mobiliza ainda mais M.
no sentido de recusar essa mesma filiação, por defesa. Salienta-se a necessidade e
importância da preparação dos casais pretendentes, principalmente em se tratando
da adoção internacional. Além de serem indispensáveis cuidados na aproximação, e
atenção a aspectos como: dimensões da imigração, diferenças linguísticas,
dificuldades ou possibilidades de comunicação e compartilhamentos de afetos, perdas
e construções de vínculos.
Se a parentalidade passa pelo desejo de ter um filho/a (Carvalho., Gomes,
Pizzitola, Santos, & Ishara, 2017, p.50), temos também que pensar nas cadeias de
desejos, expectativas e fantasias que se articulam a esse desejo inicial. No caso de
364
uma adoção de crianças mais velhas e adolescentes (maioria no nosso sistema de
institucionalização, segundo estatísticas do Conselho Nacional de Justiça), algumas
das expectativas já são frustradas de imediato, tendo em vista uma subjetividade já
permeada por diversas influências antes da chegada dos pretendentes. Este tende a
ser um aspecto determinante quando na situação de aproximação da
criança/adolescente, não por acaso existe a preferência à adoção de bebês e crianças
menores de 3 anos.
Mendes (2017) afirma que as aproximações devem acontecer em um âmbito
tal em que a criança/adolescente não se veja invadido em excesso pelas expectativas
e projeções dos pais, sem, no entanto, configurar situação de pouco investimento por
parte deles. De fato, se dar a conhecer e parentalizar crianças mais velhas e
adolescentes pressupõe uma disposição e investimento psíquico e de tempo maiores,
aspectos para os quais nem sempre estamos preparados ou bem orientados, o que
causa atritos, conflitos e frustrações ao passo em que se depara com algo diferente
daquele “filho desejado”. O encontro com a alteridade caracteriza sempre o novo,
sejam em relações familiares ou quais outras que estabelecemos durante a vida, e,
mesmo com filhos biológicos, dar-se conta de que há ali uma pessoa que não é um
espelho ou projeção de si e das expectativas pré-estabelecidas, é fator de várias
dificuldades vinculares e frustrações na construção parental e de filialidade.
Frente ao exposto por Winnicott (1953), acerca das incertezas e fragilidades
dos vínculos em situações de adoção, nas quais as frustrações de vínculos
malsucedidos anteriormente estão em destaque, é grande a aflição do psicoterapeuta
que acompanha as preparações, seja dos pretendentes, seja das
crianças/adolescentes, frente a um tempo cronológico burocrático do sistema
judiciário que enquadra o processo de filiação em algo mensurável em dias e meses.
Mais ainda com a adoção internacional nos moldes atuais, quando se tem apenas
quatro semanas para a aproximação desses sujeitos, aproximação esta que está
atravessada por dificuldades diversas como diferenças sociais, culturais e de língua,
para além das angústias nos novos vínculos e nas perdas, rupturas e expectativas
que acompanham um processo de imigração.
M. tem especial dificuldade em acessar seu passado a fim de ressignificar as
narrativas de abandono. Neste caso em específico, as suas defesas contra um novo
abandono se dão na constituição de uma situação infértil para o estabelecimento de
vínculos duradouros, confirmando o status dela de “garota de abrigo”, conferindo a ela
365
um lugar de exclusão a priori. Assim, sem nova vinculação, seria impossível se dar
novo abandono, mas cria-se um paradoxo ansiógeno e angustiante: sua condição de
abandonada seria definitiva. Articular com esta posição para modificá-la implicaria na
aposta de que a manifestação da impossibilidade de um vínculo não é verdadeira para
a adolescente, mas sim uma posição defensiva específica para lidar com o medo da
possível rejeição. Só com a compreensão dessa dinâmica interna de M. seria possível
encontrar pretendentes que se mantenham disponíveis para as aproximações e
afastamentos de M. ao longo do tempo, constituindo desta maneira terreno sólido para
a relação. As expressões das dificuldades de M. foram tomadas invariavelmente por
rejeição, aprisionando-a nesse lugar conhecido da institucionalização, onde as
relações familiares não são parte constitutiva de sua subjetividade, reforçando uma
atitude defensiva no sentido da reação a quaisquer tentativas de aproximação.
Referências
Carvalho, F. De A., Gomes, I. C., Pizzitola, J.M., Santos, M., & Ishara, Y. (2017).
Grupos reflexivos com pretendentes a adoção: alcances e limites. In: Perspectivas
psicanalíticas atuais para o trabalho com grupos e famílias na Universidade. São
Paulo: Editora Cultura Acadêmica.
366
Gomes, I. C.; Levy, L. O mal-estar e a complexidade da parentalidade contemporânea.
Cadernos de Psicanálise – SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 25, n. 28, p. 217-238, 2009.
Disponível em: http://www.spcrj.org.br/img/publicacoes/2009.pdf
367
31- A VIOLÊNCIA DE GÊNERO TRANSFÓBICA COMO PRODUTO DA
INSUBORDINAÇÃO À HETERONORMATIVIDADE
Vinicius Alexandre
Manoel Antônio dos Santos
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP
Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero - VIDEVERSO
Resumo: Existe uma flagrante tentativa de contenção e eliminação das pessoas trans
pelo meio cada vez mais hostil à expressão das diferenças. A cultura heterossexual,
ao normatizar as expressões de gênero por meio da Heteronormatividade, produz
identidades consideradas abjetas, ou identidades insubordinadas. A insubordinação
produz violência contra estas identidades, incluindo as identidades trans. A violência,
entre outras razões, atua como um mecanismo para garantir a manutenção das
identidades heteronormativas, as quais são sustentadas por um contexto institucional
conservador e preconceituoso.
1. TEMA
A violência de gênero praticada contra pessoas trans pode ser interpretada como
um produto da insubordinação de identidades heteronormativas à cultura
heterossexual e à Heteronormatividade.
2. INTRODUÇÃO
368
trans é vista como uma ameaça a partir do momento que o indivíduo emerge como
prova viva de que o gênero não é limitado ao binarismo supostamente natural que é
disseminado pela cultura heterossexual. A naturalização deste binarismo torna o
conceito de gênero algo banal e irrefletido pelas massas.
Como já foi amplamente demonstrado ao longo da história, a irreflexão revela-
se como um potencial perigo para grande parte das vidas humanas, uma vez que os
atos irrefletidos e não pensados podem resultar em um conjunto de práticas violentas
contra elas, seja essa violência de natureza material, corporal ou simbólica1. Mas essa
forma de “não pensar” não seria possível se não houvesse um contexto institucional
que a alicerçasse e a validasse. Tão pouco é possível desconsiderar que este contexto
é mediado por mecanismos de poder que estabelecem um padrão aceitável de ser,
agir e existir, alienando as massas neste processo para que este padrão seja
entendido como natural de modo a garantir sua manutenção. Não cabe aqui
pensarmos todos os mecanismos que operam na sociedade, porém, para
compreender a violência perpetrada contra a população trans, precisamos
circunscrever um mecanismo em particular: a heteronormatividade.
3. DESENVOLVIMENTO DO TEMA
1
“A noção de coerção, ou de força, supõe um dano que se produz em outro indivíduo ou grupo
social, seja pertencente a uma classe ou categoria social, a um gênero ou a uma etnia. Envolve uma
polivalente gama de dimensões, materiais, corporais e simbólicas, agindo de modo específico na
coerção com dano que se efetiva [...] A afirmação de um dano supõe o reconhecimento das normas
sociais vigentes, pertinentes a cada sociedade, em um período histórico determinado, normas que
balizarão os padrões de legitimidade: a violência define-se então como um fenômeno cultural e
histórico. Revela-se como um procedimento de caráter racional, o qual envolve, em sua própria
racionalidade, o arbítrio, na medida em que o desencadear da violência produz efeitos incontroláveis
e imprevisíveis” (Santos, 2002, p.23).
369
gêneros, como uma base inquebrantável da sociedade e como aquela que porta os
mecanismos de reprodução sem os quais não haveria continuidade da vida.
Wittig (1992) observa que a pretensão excludente dessa cultura é
historicamente observada em Aristóteles, no momento em que ele define que a
Política está atrelada a união entre um homem e uma mulher, conquanto é possível
observar que, no mundo ocidental, o casal passou a representar o princípio da própria
união social. Dessa maneira, quaisquer formas de união e de relacionamentos que
escapem da lógica estabelecida pelas relações heterossexuais são imediatamente
rechaçadas, reprimidas e proscritas.
A Heteronormatividade é dotada de ousadia: ela intenta normatizar a maneira
como os desejos corporais e as sexualidades são vivenciados pelos indivíduos,
apregoando a máxima de que o desejo pelo sexo oposto é única realidade possível e
pensável (Petry & Meyer, 2011). Falamos aqui de um tipo de poder invisível e que
aglutina não só as experiências humanas que envolvem o desejo sexual, mas também
as identidades de gênero e suas expressões.
O sujeito heteronormativo não é apenas heterossexual, mas ele também está
sustentado no binarismo de gênero, binarismo este que estabelece, por uma relação
de oposição, que apenas as categorias “homem” e “mulher” são praticáveis (Butler,
2015). Um tipo de homem e mulher representados por todos os estereótipos sociais
pensáveis: um homem viril, esportista, agressivo e racional e uma mulher frágil,
emotiva, delicada e recatada, por exemplo. A estereotipia atua na construção de
identidades e corpos chamados cisgêneros (indivíduos cuja identidade de gênero
corresponde ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento).
A cisgeneridade atende à necessidade da Heteronormatividade em construir a
ilusão de uma “coerência” mimética entre o sexo, o gênero e a sexualidade. O objetivo
final é que os indivíduos acreditem que seus corpos biológicos ditam seus gêneros e
seus desejos sexuais. A compulsoriedade que instaura essa ilusão nas relações
interpessoais e na maneira como os indivíduos fundam suas identidades é a atitude
violenta que dará base a violência direcionada contra as identidades que escapam da
norma heteronormativa que sustenta a cultura heterossexual.
A cultura heterossexual, constituída aqui como sendo o baluarte geral ao qual
o juízo individual é subsumido, pretende se apresentar como originária e basal dentro
da história da humanidade. Esse mecanismo, no qual a noção de historicidade é
perdida ou sistematicamente elidida, tem por finalidade naturalizar a norma
370
heteronormativa no interior da sociedade. E ela o faz de maneira sorrateira, uma vez
que o pensamento heteronormativo raramente é caricatural; ao invés disso, ele se
veste de boa vontade e inteligência (Warner, 1991). Essa naturalização oferece um
conjunto de ideias, comportamentos e hábitos cristalizados dentro de uma pretensa
“ordem social” (Kristeva, 1982), na qual os indivíduos podem encontrar um repertório
“seguro” para “não pensar” sobre questões que emergem no plano individual. É um
caminho livre de problemas, no qual o se adequar-se é uma estratégia vista como
parte do plano natural do desenvolvimento humano e, de maneira não percebida
devido à ausência de reflexão, uma estratégia de sobrevivência ao meio.
Sobreviver ao meio, naturalmente, não envolve apenas adequar-se, mas
também atacar possíveis ameaças. E o que ameaça o sujeito cisgênero –
heterossexual? Precisamente todas as identidades e expressões incontidas pela
Heteronormatividade, ou então, as identidades insubordinadas a ela. Invariavelmente,
a ilusão de uma identidade heteronormativa fracassa diante das demandas da
realidade, de forma que inúmeras identidades vão escapar e se contrapor ao poder
da cultura heterossexual. Diante do fracasso iminente, as identidades pretensamente
heteronormativas atacam as identidades insubordinadas, também lidas como
identidades abjetas2, no intento de eliminá-las. A eliminação é tida como uma forma
de resguardar a própria existência da identidade heteronormativa: na presença do
diferente e do estranho, a identidade heteronormativa naturalizada é questionada em
sua própria integridade. O questionamento levanta dúvidas sobre a identidade e incita
um movimento onde o sujeito é obrigado a repensar as certezas sobre si mesmo, um
processo doloroso e que gera medo. O medo por sua vez gera a violência: é preciso
destruir as identidades que geram as incertezas sobre si mesmo, a fim de impedir que
estas “contaminem” a identidade “pura” e alinhada com a cultura e a normalidade.
Se é o medo que alimenta a violência contra o abjeto, podemos extrapolar que
o medo é a peça central contra as identidades trans. Esse medo, não por acaso, é
2
Por identidades abjetas, compreende-se aquelas identidades portadas por indivíduos que sofrem do
processo de abjeção, sendo que a abjeção “[...] relaciona-se a todos os tipos de corpos cujas vidas
não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante” (Butler, 2015, p.
32).
371
parte semântica da palavra “Transfobia”3, onde “fobia” (Fobia, 2018) significa
exatamente “medo”, de forma que o prefixo “trans” (Trans, 2018) se refere às
identidades que subvertem toda a base da cultura heteronormativa
A violência contra pessoas trans que emerge do medo do abjeto é antes de
mais nada, uma violência de gênero. Embora este termo geralmente seja usado para
caracterizar a violência perpetrada por homens cisgênero contra mulheres cisgênero,
a violência de gênero descreve qualquer tipo de violência enraizada em desigualdades
de poder baseadas em gênero e discriminação com premissa no gênero (2008). O
indivíduo trans ocupa um espaço desprivilegiado notável na cultura: se,
historicamente, as mulheres cisgênero tem ocupado lugares de pouco prestígio em
detrimento da soberania do homem cisgênero, a população trans não tem ocupado
lugar algum: não há espaço para um gênero que subverte a lógica sexo-gênero. Não
há qualquer proteção solidária de outras identidades oprimidas, uma vez que elas
ainda podem contar com algum tipo de “proteção” da cultura heterossexual por se
distanciarem menos da mesma. As identidades trans, por outro lado, são
diametralmente opostas a identidade heteronormativa, uma vez que elas “violam” a
base da norma: o corpo.
De fato, o discurso discriminatório não atinge apenas a construção subjetiva da
identidade de sujeitos abjetos, mas também seus corpos. Afinal de contas, o corpo é
um portador de discursos (Butler,1999). Quando alguém fala, se move, gesticula, se
comporta, pensa, se apresenta, entre outros atos comuns aos seres humanos, este
alguém não o faz a esmo: ele na verdade está materializando os discursos
incorporados por ele por meio do corpo. Desta forma, se o discurso promove abjeção,
logo os corpos tornam-se abjetos por extensão. E ser abjeto é sinônimo de ser
descartável.
3
“Transfobia” se refere a inúmeras circunstâncias que materializam a discriminação contra a população trans.
No que se refere ao seu cotidiano, as pessoas transgênero são alvos de preconceito, desatendimento de direitos
fundamentais (diferentes organizações não lhes permitem utilizar seus nomes sociais e elas não conseguem
adequar seus registros civis na Justiça), exclusão estrutural (acesso dificultado ou impedido à educação, ao
mercado de trabalho qualificado e até mesmo ao uso de banheiros) e de violências variadas, de ameaças a
agressões e homicídios, o que configura a extensa série de percepções estereotipadas negativas e de atos
discriminatórios (Jesus, 2014).
372
Como corpos podem ser descartados se dentro deles existe vida? Descartá-los
não seria então um genocídio? E se é o meio que reproduz a abjeção e, por
consequência, esse descarte, então os indivíduos não deveriam se sentir cúmplices
desse crime? Não se o crime não é sentido como crime. Não se o que é crime é
vendido pelo meio como uma necessária “manutenção da ordem”. Descarta-se os
corpos sem que o descarte fique aparente, havendo formas de fazê-lo, não só no nível
físico (assassinato) mas também no simbólico, através de uma série de condutas do
Estado que os fazem sentir como não pertencentes ao meio, destituindo-lhes o direito
de ser chamados de “cidadãos”.
Para exemplificar o que é dito, Jesus (2014) argumenta que existe uma
escassez alarmante de dados globais captados por órgãos governamentais oficiais
acerca da violência sofrida pela população trans. Na verdade, a coleta de dados sobre
violências contra pessoas trans mais apurada que existe no mundo é da TransGender
Europe (TGEU), uma organização não governamental. No Brasil a situação se repete,
sendo que aqui inexiste um sistema de informações oficial que contabilize as mortes
de pessoas trans, uma falta que tenta ser suprida por iniciativas isoladas de ONGs
como o Grupo Gay da Bahia (GGB). O que se estima, porém, é que o Brasil foi
responsável, isoladamente, por 39,8% dos assassinatos de pessoas trans registrados
no mundo entre 2008 e 2011, sendo o país que mais mata essa população (TGEU,
2012).
Segundo a mesma TGEU (2012), a maior parte dos crimes praticados contra
mulheres e homens trans e travestis (16,42%), ocorrem no espaço público das ruas,
sendo que grande parte destas vítimas atuava como profissionais do sexo (27,82%).
Os dados ainda revelam que a maior parte desses crimes foram planejados, uma vez
que 39,99 % das travestis foram assassinadas a tiros. E como se isso não bastasse
para demonstrar o plano do Estado em punir e eliminar identidades abjetas, somos
obrigados a nos deparar com o número de 5,15 % de pessoas trans e travestis
assassinadas pelo método arcaico do apedrejamento.
Para além do descarte físico, o contexto institucional encarrega-se de descartar
os corpos abjetos ao limitar e controlar seus fluxos e os espaços que eles ocupam, o
que é visível de inúmeras formas, sendo algumas delas: abusos policiais cometidos
contra pessoas trans e travestis que atuam como profissionais do sexo;
constrangimento sistemático na proibição de acesso a locais públicos como
restaurantes, banheiros e praças; insuficiência de leis que garantam os direitos civis
373
da população LGBT; exclusão do sistema de ensino por meio da evasão ocasionada
pelo bullying; exclusão do mercado de trabalho, entre outras.
A partir do momento em que somos submetidos reiteradamente a um discurso
ostensivamente misógino, homofóbico e transfóbico, reproduzindo e brandindo
preconceitos de todo tipo em uma espécie de desagravo à “deturpação” dos valores
tradicionais, é possível constatarmos o compromisso das instâncias de poder em
garantir a abjeção das identidades insubordinadas em função das identidades
normatizadas pela cultura heterossexual. A exaltação de uma suposta “família
tradicional” é utilizada como valor e álibi para justificar a reinstalação do reino da
barbárie. A partir do momento em que o atual presidente da república se mostra
complacente com atos de violência física e psicológica contra indivíduos que ele julga
“pervertidos” ou “baderneiros”, nosso espaço institucional torna-se fértil para propagar
tais atos sob o argumento de que estes são justos para manter a pretensa “ordem
social” livre da influência de identidades que contaminem o “cidadão de bem”. Este
último, por sua vez, sente-se livre para defender-se e empregar a violência como
mecanismo para garantir a manutenção de sua identidade heteronormativa.
Também é notório que o atual governo investe em uma agenda que garante a
gestão da banalidade da violência de gênero ao se posicionar conta o estudo de
gênero e sexualidade nas escolas públicas, sob o argumento de que esses
estabelecimentos devem se limitar a ensinar conteúdos didáticos estanques e de que
o método de ensino deve se pautar na memorização de tais conteúdos. Dessa
maneira, o espaço para o pensamento e para a reflexão crítica é tolhido para que a
“ordem” não seja questionada. Com isso, espera-se a criação de uma geração de
indivíduos que se limitem a julgar de irrefletida aquilo que lhes é fornecido pela cultura,
docilizando seus corpos e limitando suas experiências identitárias de gênero.
4. CONCLUSÃO
5. REFERÊNCIAS
Gender Secretariat, Department for Democracy and Social Development, Sida. (2008).
Action Plan for Sida’s Work Against Gender-Based Violence 2008–2010
Disponível em <http://webapps01.un.org/vawdatabase/uploads/Sweden%20-
%20Attachment%205%20Action%20Plan%20for%20Sidas%20Work%20Against%20
Gender-based%20violence.pdf > Acesso em 25 outubro de 2019.
Santos, J.V.T. (2002). Microfísica da violência: uma questão social mundial. Ciência e
Cultura, 54(1), 22-24.
375
Trans. Dicionário online Priberam, 25 julho. 2019. Disponível em:
<https://dicionario.priberam.org/prefixos> Acesso em 25 outubro de 2019.
376
32- A violência sexual e o adoecimento neurótico obsessivo: Uma crônica
psicanalítica
Introdução
4
Nome fictício baseado no conto mitológico do centauro Quíron, um ser que carregava consigo uma ferida que
jamais cicatrizava e iniciou uma busca pelo mundo pela cura de sua mácula (Commelin, 1957).
377
resgate da pessoalidade e toda sua polifonia em prol ao excesso de teorização (Safra,
2009).
Entre as crônicas que se desvelaram frente a fusão do universo interno do
pesquisador e a riqueza da experiência clínica um dos casos do adoecimento
neurótico obsessivo estava atrelado a terrível vivência da violência sexual durante o
delicado período da infância.
Segundo o Ipea (2014) crianças e adolescentes são vítimas de 70 % dos casos
de violência sexual no Brasil. Mais de 500 mil pessoas por ano passam por tal situação
no Brasil, porém, somente 10% dos casos chegam as autoridades, e metade das
ocorrências feitas, a crise na realidade é algo já recorrente à vítima (Cerqueira &
Coelho, 2014).
As consequências para as vítimas que se tem registro normalmente são “[...]
estresse pós-traumático (23,3%), transtorno de comportamento (11,4%) e gravidez
(7,1%)” (IPEA, 2014, p.14). Dentro do campo psicanalítico as consequências de tal
experiências podem ser catastróficas para o desenvolvimento emocional, acarretando
condições de adoecimento dentro do campo das neuroses (Firenze, 1992).
Utilizo-me da terminologia violência sexual em prol de abuso sexual, pois
segundo o dicionário de língua portuguesa Aurélio (2008), o termo abuso remete a um
objeto que fora excessivamente utilizado. Uma criança ou adolescente jamais deveria
ser descrito mediante a tal termo, pois um ser não deve ser de maneira alguma usado,
sendo mais adequado nesta pesquisa a utilização do termo violência sexual.
Objetivo
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma crônica psicanalítica que
desvela as consequências do adoecimento emocional devido a experiência traumática
da violência sexual dentro da tenra infância.
Justificativa
378
da singularidade, da relação do adoecimento emocional devido a essa natureza
traumática.
Método
Quíron apresentava rituais desde os seus quinze anos de idade e para si, era
como viver o inferno na terra. De uma família muito religiosa sentia que precisava
fazer o sinal da cruz em os batentes de porta e entrar nos lugares com o pé direito,
assim, não importa onde estivesse, estaria abençoado com uma benção de Deus. Era
bastante vergonhoso suas investidas sociais, precisava discretamente realizar seu
gesto de forma que não fosse notado, isso acontecia com muito mais intensidade
quando ia para sua escola.
Tinha também outros rituais. Gastava cerca de 10 litros de álcool por dia
lavando suas mãos até enrugarem. O medo de pegar alguma infecção por bactérias
ou fungos era intenso. Limpava e desinfetava todos os talheres, pratos, o chão, o
banheiro, sem a menor possibilidade de encontrar paz no que fazia. Em diversos
momentos de sua vida chegou até a pensar “eu venderia minha alma ao diabo para
que isso passasse”. No fim das contas já se sentia no inferno. Sua existência nesse
mundo parecia ser um misto de tormento e fragilidade.
379
Pensava em si como um dente-de-leão frente a ventania, mediante a qualquer
possibilidade de entrave desfragmentava-se no vento. Porém, ainda sim, havia um
sopro de vida em si, como no nome da própria flor, havia um pouco de leão nessa
pessoa.
Quíron sempre fora inimigo de seus pensamentos, constantemente profanas
imagens perpassavam sua mente, pensamentos como a imagem de Jesus Cristo e
Nossa Senhora tendo relações sexuais, o demônio junto com Jesus Cristo, etc. Não
conseguia entrar em uma igreja sem que imaginasse os santos e anjos relacionando-
se sexualmente. Seus pensamentos encaminhavam-lhe para aquilo que era de mais
proibido. A fusão entre o sagrado e o profano, entre a sexualidade e a violência. Os
pensamentos o deprimiam aos poucos, era extremante exaustivo lidar com eles. Seu
ritual de proteção buscava possibilidade de habitar o mundo de maneira segura,
habitar um espaço que não fosse sofrer das violências na vida.
Sempre fora uma pessoa introspectiva, odiava se expor socialmente. Em sua
adolescência detestava que o tocassem fisicamente e quando isso acontecia
instabilizava-se instantaneamente. Talvez por ser uma pessoa excessivamente
sensível passou por um longo período de bullying em sua escola, sendo detectado
pelos seus colegas como um alvo fácil para piadas não conseguia defender-se.
Lembrava-se que a diretora de sua escola esperou que saísse da sala de aula para
dar um recado para o restante de sua turma de classe. “Não mexam com ele porque
ele é frágil”, tal recado foi motivo de maior exposição para ele. Os colegas de
sala o chamavam de gay, doente e louco. Seus agressores como filhos de professores
da escola ficavam impunes a tudo. Quíron se uma pessoa cheia de segredos, pecados
e destinado a solidão. Essencialmente a solidão que vivenciava fazia-o sentir-se feio
e inseguro. Os afeto predominantes de suas relações sociais era o medo. Não
conseguia confiar plenamente nas pessoas.
Durante toda sua vida deixou de lado suas vontades para ceder a dinâmica
familiar. Era extremamente atendo a qualquer demanda dos membros familiares,
sacrificando seus desejos e seu tempo em prol a gestão familiar. Seu pai era bastante
imaturo, sonhador e egoísta, sempre fazia negócios que levavam a família à falência
e também tinha grande dificuldade de manter-se fiel a esposa.
Quíron guardava enorme rancor de seu pai. Essa dinâmica familiar era incapaz
de conter suas angústias, sua família incapaz de acolher seu sofrimento, um olhar de
acolhimento seria um bálsamo para suas feridas. Assim, bastante atendo aos
380
sofrimentos emocionais que o cercava, sentia que deveria sacrificar-se para auxiliar
na gestão de sua família.
O maior sacrifício que Quíron fez foi de sua própria sexualidade, sempre se
apaixonava por colegas de sua turma, porém, mantinha-se em silêncio. Jamais
conseguiu permitir-se relacionar, pois em seu íntimo todas as relações do campo
homoafetivo eram sinônimas de violência e exposição.
O sacrifício era parte de seu idioma pessoal, matava-se diariamente em prol a
harmonia do lar, assim como para expurgar seus conflitos internos. Dificilmente
angariava algo para si. Acreditava que a doação desmedida era um caminho para sua
salvação. Espelhava-se no exemplo do Cristo que fora crucificado para expurgar os
pecados do mundo, Quíron precisava sacrificar-se para expurgar seu passado de
violência de si, assim como sua verdadeira essencial, sua homossexualidade.
Referências
.
Cerqueira, D., & Coelho, D. D. S. C. (2014). Estupro no Brasil: uma radiografia
segundo os dados da Saúde (versão preliminar).
384
Ferenczi, S. (1992). Confusão de língua entre os adultos e a criança. Obras
completas, 4, 97-106.
Florensky, Pavel. (2012) A perspectiva inversa. São Paulo: Editora, v. 34, p. 109.
385
33- ADOLESCENTE COM ANEMIA FALCIFORME SUBMETIDA AO
TRANSPLANTE DE CÉLULAS-TRONCO HEMATOPOÉTICAS
Aline Guerrieri Accoroni
Lucas dos Santos Lotério
Hellen Cristina Ramos Queirós
Manoel Antônio dos Santos
Érika Arantes de Oliveira Cardoso
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – FFCLRP
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto – SP
Apoio: PIBIC - CNPQ
386
Introdução
O Transplante de Células-Tronco Hematopoéticas (TCTH) vem se constituindo,
ao longo dos anos, como uma alternativa terapêutica eficaz para diversos tipos de
doenças quando os tratamentos convencionais não oferecem prognóstico positivo
(Guimarães, Santos, & Oliveira-Cardoso, 2008; Oliveira-Cardoso & Santos, 2000;
Torrano-Masetti, Voltarelli, & Stracieri, 2000). Nesse tipo de tratamento, as células da
medula óssea doente do receptor são substituídas por células de uma medula sadia,
com o objetivo de reconstituição da hematopoese (Associação Brasileira de
Transplante de Órgãos - Manual de informações ao paciente de TMO, 1999).
As dificuldades relacionadas ao TCTH aparecem, inicialmente, no momento da
tomada de decisão entre fazer ou não o transplante. Submeter-se ao TCTH implica
expor o paciente a um considerável – embora controlado – risco de morte, em razão
das altas doses de quimioterapia e grave estado de imunossupressão. Em
contrapartida, não fazer o TCTH implica perder a única chance de cura que ele tem.
O paciente encontra-se perante uma decisão paradoxal, já que o procedimento pode
ser visto tanto como uma ameaça, em decorrência do risco de perda da sua
integridade física e até mesmo da própria vida, quanto como uma promessa de
resgate da saúde (Mastropietro, Oliveira-Cardoso, Santos, & Voltarelli, 2009).
Além disso, após a tomada de decisão, pode-se observar um aumento natural
no nível de estresse, decorrente da luta pela identificação de um doador compatível e
a reorganização psicossocial da família que busca os cuidados em relação à
preparação para o transplante. Nessa etapa, o processo de condicionamento e
isolamento pode fazer com que o paciente perca o controle e o cuidado pessoal em
decorrência da perda de privacidade, mudanças na alimentação e de consequências
da quimioterapia. Ademais, a espera pela pega da medula também se torna um fator
impulsionador de medo e insegurança tanto para a família quanto para o paciente
(Barrera, Boyd-Pringle, Sumbler, & Saunders, 2000; Campos & Gioia-Martins, 2011).
Por fim, no estágio pós-TCTH, o paciente vivencia uma série de recomendações e
restrições, como alimentar-se exclusivamente de alimentos cozidos, ingerir no mínimo
três litros de água por dia, ingerir grande quantidade de comprimidos, utilizar uma
máscara hospitalar para circular em locais fora de sua casa, bem como ao receber
visitas, entre outras limitações (Voltarelli & Stracieri, 2000).
Cabe considerar que cada indivíduo vivenciará essa etapa de maneira
diferente, de acordo com suas experiências prévias, o apoio a que tem acesso durante
387
todo o processo e no que diz respeito ao seu momento de vida. No que concerne a
esse último aspecto, sabe-se que a adolescência é uma etapa do desenvolvimento
humano caracterizada por uma série de transformações biológicas, psicológicas e
sociais, podendo ser definida como a transição da infância para a idade adulta.
Segundo Erikson (1976), só com a adolescência o indivíduo desenvolve os requisitos
preliminares de crescimento fisiológico, amadurecimento mental e responsabilidade
social para experimentar e atravessar a crise de identidade. Pode-se dizer que esse
período de crise de identidade ocorre devido à reestruturação da personalidade de um
modo geral. Há a culminação do processo de separação / individuação e substituição
do vínculo de dependência simbiótica com os pais da infância por relações objetais
de autonomia plena. Assim, essa “troca de papéis” gera um momento de reflexão e
uma consequente crise de identidade.
Durante as etapas do TCTH, o afastamento do adolescente de seu ambiente
social, do círculo de amigos e a ruptura de seu modo de viver anterior à manifestação
da doença podem desencadear ansiedade, tristeza, desânimo e frustração,
prejudicando o desenvolvimento saudável da autoconfiança e autonomia, processos
psicológicos de extrema importância nessa etapa da vida (Anders & Lima, 2004).
Assim, as transformações físicas e emocionais, em combinação com a independência
e autonomia adquiridas, presentes geralmente na adolescência, fazem parte do
processo de desenvolvimento da identidade pessoal, isto é, do processo de se
compreender como um indivíduo dotado de uma existência singular.
Em vista disso, pelas consequências já referidas, a presença de uma doença
crônica e seu tratamento podem influenciar esse processo (Perrin & Gerrity, 1984;
Zanoni, Dóro, Zanis, & Bonfim, 2010). Os efeitos adversos posteriores à realização do
TCTH na infância têm sido relativamente inexplorados, a despeito desses pacientes
enfrentarem situações extremamente estressoras, com marcado risco de morte,
isolamento da família e amigos, frequência irregular ao colégio, ruptura de sua rotina
e distanciamento forçado de sua vida normal (Nespoli et al., 1995).
Nesse cenário, este estudo teve por objetivo conhecer a percepção de
adolescentes transplantados em relação aos aspectos envolvidos no adoecimento,
tratamentos e momento pós-TCTH. Mais especificamente: compreender como o
adoecimento e o tratamento impactaram nas relações com a família e amigos,
estudos, atividades de lazer e hobbies e na percepção sobre a própria saúde.
388
Método
Delineamento da pesquisa
Trata-se de uma investigação descritiva, exploratória e qualitativa. O enfoque
qualitativo foi escolhido uma vez que se pretende investigar em profundidade o
fenômeno, na perspectiva de quem a vivência, buscando compreender ações dos
indivíduos, bem como os processos pelos quais os significados são elaborados e
descritos (Flick, 2009). Além disso, adotou-se, como estratégia metodológica, a
realização de um estudo de caso. Como descrito por Alves-Mazzotti (2006), o estudo
de caso deve ser crítico, extremo, único, ou, então, revelador, sendo que, em
quaisquer dessas situações, deve-se manter o foco nos fenômenos sociais que são
complexos e multifacetados.
Participante
Participou do presente estudo uma adolescente de 16 anos, denominada aqui
de Ana, tendo realizado o transplante há seis anos, e que foi diagnosticada com
Anemia Falciforme no exame do pezinho após dias de seu nascimento. Na época da
entrevista frequentava os serviços de saúde para acompanhamento pós-TMO,
comparecendo às consultas a cada um ano. Ana cursava o 1º ano do Ensino Médio,
tendo parado por dois anos para a realização do TCTH.
Instrumentos
Para a coleta de dados utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturado,
desenvolvido para este estudo, complementado pela experiência dos pesquisadores
e pelas necessidades da pesquisa. Assim, foram exploradas questões referentes à
vida pré-adoecimento, impacto do diagnóstico, perdas vivenciadas, fontes de apoio
social, a subjetivação da experiência do transplante e planos futuros.
Coleta de dados
A abordagem da participante ocorreu durante o retorno desta no Ambulatório
de TMO. A obtenção dos dados aconteceu em um encontro único em uma situação
face a face, sendo a entrevista audiogravada mediante consentimento do responsável
e da participante. Além disso, foi apresentado aos responsáveis o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, que continha as informações necessárias acerca
da pesquisa realizada.
389
Análise dos dados
Os dados foram submetidos à análise temática do tipo indutiva, segundo
recomendações técnicas de Braun e Clarke (2006). Para essas autoras a análise
temática é bastante útil e flexível para a pesquisa qualitativa em psicologia. Trata-se
de um método que identifica, analisa e relata padrões (temas) nos dados obtidos,
minimamente organizado e descreve o conjunto de dados em detalhes.
Os resultados foram organizados nas seguintes categorias temáticas:
a) Convivendo com a doença: impacto do diagnóstico, restrições do
adoecimento, vivências de tratamentos;
b) Sobrevivendo ao transplante: decisão pelo procedimento, vivência da
enfermaria, fatores que dificultaram e os que facilitaram;
c) Sobrevida que segue: vivendo no pós-TCTH: retomada da vida após o
procedimento, restrições, mudanças positivas e negativas, atividades atuais e
planos futuros.
Resultados e Discussão
Convivendo com a doença
A paciente relatou que seus pais nunca tinham ouvido falar sobre a doença e
que ficaram assustados no início do diagnóstico, buscando informações com
profissionais da cidade em que moravam. Além disso, sua mãe lhe contou que
acreditava que havia cometido algum erro para que a filha nascesse dessa forma. Não
ficou claro a que tipo de erro a mãe da paciente estava se referindo, porém Rodrigues,
Araújo e Melo (2010) apontam que no momento do diagnóstico de uma doença
genética, é comum a família buscar possíveis causas para o problema, bem como sua
nomeação. Assim, no momento da orientação genética, um forte sentimento de culpa
se instala no casal ao se deparar com o fato de que o filho saudável não existe mais
(Rodrigues, Araújo, & Melo, 2010). Ana é o único caso de Anemia Falciforme na
família, o que pode ter contribuído para a falta de conhecimento e informação de seus
pais sobre a doença.
Então, foi assim. eles nunca tinham ouvido falar, então eu fui o primeiro caso na minha
família sabe? Eles ficaram bem assim curiosos e tudo mais, até que teve um médico da
minha cidade que eu não lembro o nome, mas que ajudaram bastante eles sabe?
Explicaram tudo, conversaram, minha mãe conta que ela ficou muito mal, ela ficou
achando que o erro era dela, ficou naquela... meu pai também assustou bastante, só
que aí depois eles conversando [...]
390
Com relação ao conhecimento da doença pela paciente, o fato de Ana ter
crescido e convivido com a doença possibilitou que não existisse um momento de
“diagnóstico” propriamente dito em sua vida. A adolescente afirma que aprendeu a
conviver com a AF desde sempre e que foi uma adolescente muito curiosa, chegando
a procurar assuntos relacionados à sua doença nos mecanismos de busca online
como forma de se manter atualizada e entender os procedimentos pelos quais
passava.
É que tipo assim, conforme minha rotina de ter que tomar medicamento e vir no
hemocentro, tomar sangue e tudo mais, acho que eu já fui meio que natural sabe? [...]
É, e eu acho que quando tinha alguma coisa eu mesma ia atrás saber? Eu sempre fui
muito fuçada, eu ia na internet e eu procurava tudo sobre AF sabe?
No que se refere ao relacionamento com os pais, Ana afirmou que este sempre
foi positivo. De acordo com a adolescente, a relação com sua mãe é muito aberta e
afirmou se sentir confortável para conversar sobre diversos assuntos. Em vista disso,
pode-se supor que o relacionamento com a mãe tenha sido fonte de apoio para Ana
no enfrentamento da doença, decisão pelo transplante e enfrentamento do
procedimento. Dessa forma, é notável a importância do suporte social e emocional
inserido no contexto hospitalar, pois o enfermo terá uma série de desafios e
dificuldades a serem enfrentadas na busca pelo resgate de sua saúde (Rocha et al.,
2016).
Sempre foi bom, acho que eu sou mais próxima assim de conversar com a minha mãe,
porque ela sempre me criou assim “além de sua mãe eu sou sua melhor amiga” aí ela
falava “o que você contar para suas amigas você conta para mim” então eu tenho mais
isso com a minha mãe e com o meu pai eu já não tenho tanto essa liberdade, a gente
conversa e tudo...
391
Mudou, porque depois do transplante eu acabei ficando um pouco mal e eu acabei
entrando em depressão então eu acabei me afastando muito da minha mãe, mas agora
eu comecei a fazer tratamento e tudo mais então eu acho que tá até melhor com a minha
mãe e a minha irmã também.
Olha, a gente é quatro anos de diferença então a gente brigava mas era aquela briga
boba de criança mesmo. Como sempre era eu e ela, minha família é muito pequena
então não tinha muita criança para brincar então a gente sempre foi muito grudada.
Brigava mas não se desgrudava. [...] Ah eu não sei, eu meio que me senti grata por ter
ela comigo e por saber que ela ia arriscar a vida dela para salvar a minha sabe? Eu
fiquei grata.
Sobrevivendo ao transplante
Com relação ao conhecimento sobre o TCTH, Ana afirma que ela e seus pais
não tinham consciência da existência do procedimento até o momento em que o
médico apresentou esta possibilidade. Como sempre estava presente nas consultas
e participava ativamente das decisões acerca de seu tratamento, Ana contou que a
equipe médica explicou o que iria acontecer com seu corpo durante o transplante,
afirmando que sempre se sentiu confortável para tirar quaisquer dúvidas. Em um
estudo realizado por Oliveira-Cardoso e Santos (2013), a possibilidade de contar com
uma equipe empática, que mostra segurança e está sempre disposta a sanar
quaisquer dúvidas sobre o transplante pode se tornar um facilitador para o
enfrentamento das dificuldades encontradas nessa etapa, sendo fundamental para
um processo de decisão compartilhada entre o paciente, sua família e a equipe.
Eles (médicos) sempre foram bem atenciosos, sempre perguntando para mim se eu
tinha alguma dúvida e tudo mais.
Quando o transplante foi apresentado como forma de tratamento para Ana, esta
392
experimentou sentimentos de medo e susto. A paciente também relatou forte
preocupação não só consigo, mas também com seus pais, que já estavam fragilizados
por anos de tratamentos dolorosos e invasivos com sua filha. Frente a esse medo e
preocupação, Ana e seus pais optaram pela realização do transplante na esperança
de obter a cura e/ou aumentar sua expectativa de vida. Estudos realizados por Platt
et al. (1994) mostram que a expectativa de vida para indivíduos falcêmicos (em
homozigose) com crises frequentes variam entre 42 e 53 anos para homens e 48 e 58
anos para mulheres.
Tive medo, de verdade eu tive medo, tanto comigo quanto com meus pais. Eu não sabia
o que estava por vir, mas eu pensei “Ah, vamos arriscar”. E os médicos tinham falado
que para AF a expectativa de vida é até os 40 e tudo mais, e eu estava tendo reação
recebendo o sangue então meio que não tinha outra saída.
A gente fica muito debilitada sabe? Aí tudo que eu comia eu passava mal e teve aquela
coisa de dar muita feridinha na boca e perde o cabelo também, eu fiquei naquela sabe?
E os remédios, eram muitos remédios também e tinham uns que eram muito ruins.
[...] Voltar? Foi muito complicado, porque no começo a gente fica assim “dois anos sem
estudar” e depois vai voltando tudo aos poucos. Eu voltei com a máscara, né, que usa
393
por conta da quimioterapia e meus amigos já estavam em outras escolas (...)no começo
eu não queria ir, por conta da máscara e de não conhecer ninguém... Mas depois eu fui
me adaptando.
Com relação aos planos futuros, a paciente contou que quer ter uma profissão
e cursar uma faculdade, mas que ainda não sabe as áreas que gosta. Por fim, Ana
diz que o importante é “fazer algo que gosta” além de expor seu desejo de constituir
uma família.
Eu quero fazer alguma coisa sabe? Mas eu ainda não sei o que, eu quero me formar
sim e ter uma profissão sim. Mas eu to naquela de querer fazer alguma coisa que eu
goste sabe? Eu quero fazer por amor sabe? Por querer fazer mesmo, mas eu ainda não
achei, mas eu penso sabe, quero muito viajar sabe? Por que eu adoro viajar, então
queria conhecer muitos lugares, me formar, ser independente e todas essas coisas
assim.
Considerações Finais
Os resultados indicam que a escolha pelo Transplante foi pautada na
expectativa de benefícios, seja a esperança de cura e/ou de interrupção dos
tratamentos convencionais. As maiores dificuldades enfrentadas se relacionam à
necessidade de isolamento na enfermaria, com consequente isolamento social e
interrupções da vida escolar e de atividades prazerosas. Após o TCTH, a participante
conseguiu retomar atividades interrompidas e apresentam planos para o futuro, sendo
o tratamento tido como uma experiência positiva, apesar das dificuldades e
sofrimentos envolvidos. Além disso, após a realização do transplante, a participante
relatou mudança na qualidade de suas relações interpessoais, evidenciando maior
394
proximidade com seus pais e maior valorização da vida, em razão da alta
complexidade e risco elevado de morte envolvido no procedimento.
Referências
Alves-Mazzotti, A. J. (2006). Uso e abusos dos estudos de caso. Cadernos de
Pesquisa, 36(129), 637-651.
Anders, J. C., & Lima, R. A. G. (2004). Crescer como transplantado de medula óssea:
repercussões na qualidade de vida de crianças e adolescentes. Revista Latino-
Americana de Enfermagem, 12(6), 866-874.
Barrera, M., Boyd-Pringle, L. A., Sumbler, K., & Saunders, F. (2000). Quality of life and
behavioral adjustment after pediatric bone marrow transplantation. Bone Marrow
Transplant, Toronto, 26(1), 427-435.
Braun, V., & Clark, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative
Research in Psychology, 3(2), 77-101.
Flick, U. (2009). Introdução à pesquisa qualitativa (3. ed.). (Costa, J. E., Trad.). Porto
Alegre, RS: Artmed.
Nespoli, L., Verri, A. P., Locatelli, F., Bertuggia L., Taibi, R. M., & Burgio, G. R. (1995).
et al. The impact of paediatric bone marrow transplantation on quality of life.
Quality Of Life Reasearch, 4(1), 233-238.
395
L. M. Moscatello (Eds.), Transplante de medula óssea: abordagem multidisciplinar
(pp. 157-174). Rio de Janeiro: Lemar.
Perrin, E. C., & Gerrity, S. (1984). Development of children with a chronic illness.
Pediatr Clin North Am, 1, 21-34.
Platt, O. S., Brambilla, D. J., Rosse, W. F., Milner, P. F., Castro, O., Steinberg, M. H.,
& Klug, P. P. (1994). Mortality in sickle cell disease. Life expectancy and risk
factors for early death. The New England Journal of medicine, 330(23), 1639-44.
Rocha, V., Proença, S. F. F. S., Marques, A. C. B., Pontes, L., Mantovani, M. F., &
Kalinke, L. P. (2016). Comprometimento social de pacientes submetidos ao
transplante de células-tronco hematopoéticas. Revista Brasileira de Enfermagem.
69(3), 484-491.
Rodrigues, C. C. M., Araújo, I. E. M., & Melo, L. L. (2010). A família da criança com
doença falciforme e a equipe enfermagem: revisão crítica. Revista. Brasileira de
Hematologia e Hemoterapia, 32(3), 257-264.
Soares, L., Burille, A., Antonacci, M. H., Santana, M. G., & Schwartz, E. (2009). A
quimioterapia e seus efeitos adversos: relato de clientes oncológicos. Cogitare
Enfermagem, 14(4), 714-719.
Torrano-Masetti, L., Oliveira, É., & Santos, M. (2000). Atendimento psicológico numa
unidade de Transplante de Medula Óssea. Medicina (Ribeirao Preto. Online),
33(2), 161-169.
Voltarelli, J., & Stracieri, A. (2000). Aspectos imunológicos dos transplantes de células
tronco hematopoéticas. Medicina (Ribeirao Preto. Online), 33(4), 443-462.
Zanoni, A. P., Dóro, M. P., Zanis, J. N., & Bonfim, C. (2010). A percepção de
adolescentes submetidos ao transplante de células tronco hematopoéticas em
relação à própria hospitalização. Revista da SBPH, 13(1), 136-156.
396
34- PROCESSOS DE ADAPTAÇÃO TRANSCULTURAL DE INSTRUMENTOS DE
AVALIAÇÃO EM CUIDADOS PALIATIVOS
Introdução
Com o aumento da necessidade de disponibilizar instrumentos de avaliação
psicológica em diferentes idiomas, nota-se um movimento de intensificação dos
esforços de padronização dos procedimentos metodológicos a serem utilizados na
adaptação transcultural, de modo a garantir sua equivalência em diferentes contextos
397
e populações (Hambleton et al., 2005). De forma sintética, o processo de adaptação
inclui: (1) análise em relação à capacidade de um instrumento mensurar determinado
construto em outra língua e cultura; (2) etapas de tradução; (3) checagem de
equivalência da versão adaptada. O processo de adaptação de instrumentos
avaliativos deve considerar a relevância dos conceitos e domínios originalmente
examinados, além da adequação de cada item em termos da capacidade de
representar esses aspectos na população-alvo dentro da nova cultura (Borsa et al.,
2012). Deve considerar ainda aspectos como a equivalência semântica, linguística e
contextual entre itens originais e traduzidos e incluir análise das propriedades
psicométricas do instrumento (ITC, 2010). Borsa et al. (2012) chamam a atenção,
ainda, para a importância da avaliação conceitual de itens pela população-alvo e uma
discussão com o autor do instrumento original sobre as alterações propostas na nova
versão do instrumento.
Com a preocupação de orientar o processo de adaptação transcultural de
instrumentos psicológicos, a International Test Commission – ITC (2010) propôs 22
diretrizes práticas para o processo de adaptação transcultural, apresentadas em
quatro categorias: (1) Contexto, (2) Desenvolvimento do Teste e Adaptação, (3)
Administração e (4) Documentação/Interpretações de Escore. Essas categorias foram
posteriormente discutidas, com foco nas orientações práticas para a implementação
das diretrizes e prevenção de erros mais comuns em adaptações de instrumentos
utilizados no cenário da educação e da avaliação psicológica (Hambleton et al., 2005).
A adaptação transcultural de instrumentos é prática frequente na área da saúde
(Beaton et al., 2000). No âmbito dos Cuidados Paliativos, tem crescido o interesse em
adaptar instrumentos que auxiliem na identificação de sintomas e desconfortos físico,
psicossocial e existencial experimentados pelos pacientes. A Organização Mundial de
Saúde define Cuidados Paliativos como “uma abordagem que promove a qualidade
de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a
continuidade da vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, mediante a
identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e de outros problemas de
natureza física, psicossocial e espiritual” (WHO, 2012). Dispor de instrumentos
disponíveis e culturalmente adequados para a avaliação dos pacientes em Cuidados
Paliativos favorece a oferta de cuidado oportuno, com vistas à obtenção de ganhos
na qualidade de vida do paciente. Nesse contexto, instrumentos destinados à
avaliação de sintomas, de performance e de qualidade de vida tem sido foco de
398
diferentes estudos, com vistas ao potencial para direcionar o cuidado do paciente,
suporte à família, assim como as políticas públicas em saúde (Freire, Costa, Lima &
Sawada, 2018).
Objetivos
Diante da necessidade de exame e reflexão sobre processos de adaptação
transcultural de instrumentos avaliativos utilizados no contexto de Cuidados Paliativos,
este estudo teve por objetivo analisar estratégias metodológicas e cuidados técnicos
para sua implementação à luz das diretrizes propostas pela International Test
Commission (ITC).
Método
A fim de explorar a temática na literatura científica recente em Cuidados
Paliativos, foi realizada uma revisão de artigos publicados nesse campo, de forma a
possibilitar a análise crítica quanto aos caminhos metodológicos escolhidos para o
processo de adaptação transcultural dos instrumentos. A partir da referida questão
norteadora, foi realizada a busca eletrônica de publicações nas bases indexadoras
PubMed, BVS e SciELO, por meio do cruzamento das palavras-chave/descritores:
cross-cultural adaptation, translation, validation, palliative care, end-of-life, sem limitar
os índices ou campos de busca.
Foram definidos como critérios de inclusão: (1) publicação em periódicos
indexados nas bases selecionadas; (2) artigos redigidos em português, espanhol ou
inglês; (3) publicados entre 2006 e 2016; (4) estudos sobre a adaptação de
instrumentos avaliativos para a cultura brasileira no campo de Cuidados Paliativos.
Foram definidos como critérios de exclusão: (1) estudos de adaptação de
instrumentos para outras culturas; (2) artigos sobre o processo de validação ou
normatização de instrumentos, que não incluíssem as etapas iniciais da adaptação
transcultural. Os artigos repetidos em mais de uma base foram computados uma única
vez. Em seguida, foi realizada a leitura dos resumos por dois avaliadores
independentes, atenta aos critérios de inclusão e exclusão, a fim de selecionar os
artigos para exame na íntegra, segundo diretrizes PRISMA. A partir da leitura integral
dos textos, foi definida a amostra apresentada nesta análise crítica.
399
Resultados e Discussão
A revisão da literatura científica possibilitou o acesso a 906 artigos na base
PubMed, 343 estudos na BVS e 12 estudos na SciELO. A partir da leitura atenta dos
resumos e artigos recuperados na íntegra, foram aplicados os critérios de inclusão e
exclusão. A seleção final foi composta por sete publicações (Figura 1).
(n = 7)
402
Pelo conjunto de achados, nota-se que a maioria dos estudos se baseou em
referências técnicas que oferecem uma leitura do processo de adaptação de
instrumentos avaliativos aplicada aos contextos de saúde (Beaton et al., 2000;
Guillemin et al., 1993), sem mencionar diretamente as diretrizes do ITC. No que se
refere a essas referências técnico-científicas internacionalmente elaboradas, poucos
estudos explicitaram preocupação inicial com a categoria “Contexto” e a equivalência
de construto a ser avaliado entre as culturas de origem e de interesse, caracterizando
superficialmente o contexto cultural. Já quanto à categoria “Desenvolvimento do
Instrumento e Adaptação”, os estudos analisados mostraram preocupação com a
descrição das etapas técnicas seguidas, atentos à adequação linguística e cultural
necessária no processo de adaptação. As características psicométricas dos
instrumentos também foram foco de atenção da maioria dos artigos. Quando não
apresentadas, foi frequente a indicação da necessidade de serem investigadas em
estudos futuros. Quanto à “Administração” do instrumento, os artigos descreveram o
procedimento realizado, destacando em alguns casos o treinamento realizado e as
modificações utilizadas na aplicação da versão original, com vistas à adequação para
a realidade da cultura de interesse. Cabe ressaltar a orientação da ITC sobre a
importância de minimizar alterações na administração e fornecer minuciosa descrição
das instruções de aplicação dos instrumentos, com vistas à preservação da sua
qualidade informativa.
Os artigos analisados demonstraram cuidado na apresentação das alterações
realizadas para a adaptação dos instrumentos e, em sua maioria, buscaram
evidências de validade e fidedignidade. Apesar de não ser o objetivo das pesquisas
selecionadas, considera-se que seria importante oferecer mais informações sobre o
emprego dos instrumentos avaliativos em estudos transculturais e o cuidado com o
manejo de questões não-equivalentes ou modificadas entre as versões.
Conclusões
Com o intuito de conhecer as estratégias metodológicas utilizadas para
adaptação de instrumentos avaliativos utilizados no contexto de Cuidados Paliativos,
este estudo sintetizou o conhecimento produzido nos últimos anos a partir de uma
revisão da literatura científica do campo. Os artigos selecionados para a análise
oferecem reflexões sobre aspectos importantes a serem observados para o cuidado
403
em Cuidados Paliativos, incluindo diferentes instrumentos e ações que visam à
preservação da qualidade de vida e cuidado emocional do paciente e sua família.
Como contribuições para a área de estudo, esta revisão permitiu explorar como
os pesquisadores da área estão direcionando seus esforços para assegurar que
sejam visibilizadas as etapas metodológicas em observância às diretrizes
internacionais preconizadas para processos de elaboração e adaptação transcultural
de instrumentos de avaliação psicológica, evidenciando as diversas possibilidades
metodológicas, com seus alcances e limitações. A partir dos estudos analisados,
concluiu-se que há baixa utilização do guia de referência internacional na área (ITC),
o que sugere a necessidade de maior sistematização metodológica e incremento dos
cuidados na apresentação dos resultados das pesquisas realizadas.
Referências
Beaton, D. E., Bombardier C., Guillemin F., & Ferraz M. B. (2000). Guidelines for the
process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine, 25(24), 3186-
3191.
Borsa, J. C., Damásio, B. F., & Bandeira, D. R. (2012). Cross-cultural adaptation and
validation of psychological instruments: Some considerations. Paidéia (Ribeirão
Preto), 22(53), 423-432. doi:http://dx.doi.org/10.1590/1982-43272253201314
Carvalho, A. B., Garcia, J. B. S., Silva, T. K. M., & Ribeiro, J. V. F. (2016). Translation
and transcultural adaptation of Pain Quality Assessment Scale (PQAS) to
Brazilian version. Revista Brasileira de Anestesiologia, 66(1), 94-104. doi:
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjane.2013.10.018
Freire, M. E. M., Costa, S. F. G., Lima, R. A. G., & Sawada, N. O. (2018). Qualidade
de vida relacionada à saúde de pacientes com câncer em cuidados paliativos.
Texto & Contexto - Enfermagem, 27(2), e5420016.
doi:https://dx.doi.org/10.1590/0104-070720180005420016
Hambleton, R. K., Merenda, P., & Spielberg, C. (Eds.) (2005). Adapting educational
and psychological tests for cross-cultural assessment. Hillsdale, NJ: Lawrence
Erlbaum Association.
404
International Test Commission - ITC (2010). International Test Commission guidelines
for translating and adapting tests. Recuperado em 15 setembro 2017, de
http://www.intestcom.org/upload/sitefi les/40.pdf
Monteiro, D. D. R., Almeida, M. D. A., & Kruse, M. H. L. (2013). Translation and cross-
cultural adaptation of the Edmonton Symptom Assessment System for use in
Palliative Care. Revista Gaúcha de Enfermagem, 34(2), 163-171. doi:
http://dx.doi.org/10.1590/S1983-14472013000200021
Oakland, T., Poortinga, Y. H., Schlegel, J., & Hambleton, R. K. (2001). International
Test Commission: Its history, current status, and future directions. International
Journal of Testing, 1, 3-32. doi:https://doi.org/10.1207/S15327574IJT0101_2
Paiva, B. S. R., Carvalho, A. L., Kolcaba, K., & Paiva, C. E. (2015). Validation of the
Holistic Comfort Questionnaire-caregiver in Portuguese-Brazil in a cohort of
informal caregivers of palliative care cancer patients. Supportive Care in
Cancer, 23(2), 343-351. doi:https://doi.org/10.1007/s00520-014-2370-5
Spexoto, M. C. B., Serrano, S. V., Halliday, V., Maroco, J., & Campos, J. A. D. B.
(2016). Cancer Appetite and Symptom Questionnaire (CASQ) for Brazilian
patients: cross-cultural adaptation and validation study. PloS one, 11(6),
e0156288. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0156288
Trotte, L. A. C., da Maia Lima, C. F., do Nascimento Pena, T. L., Ferreira, A. M. O., &
Caldas, C. P. (2014). Adaptação transcultural para o português do End of Life
Comfort Questionnaire-Patient [Cross-cultural adaptation of the End of Life
Comfort Questionnaire-Patient to Brazilian Portuguese]. Revista Enfermagem
405
UERJ, 22(4), 461-465. Recuperado em 25 de outubro de 2016, de https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/13783/10525
406
35- VIVENCIANDO O CÂNCER DOS SEUS MARIDOS: RELATOS DAS ESPOSAS
Introdução
407
aprender novas habilidades, assimilar conhecimentos médicos e aprender a conviver
com as limitações impostas pela doença no ente querido (Cardoso, Santos,
Mastropietro, & Voltarelli, 2010).
Justificativa
408
Objetivo
Método
409
Resultados e Discussão
410
encontrado na literatura, a antecipação da perda é essencial para que os familiares
se preparem para a morte do seu ente querido, facilitando a adaptação à morte
quando esta efetivamente ocorrer (Castro, 2016). Todas as participantes vivenciavam
um luto antecipatório, pois conviviam com a doença de seus maridos, e tinham que
dar conta da esperança da melhora deles, bem como da possibilidade de morte.
Nesse cenário, diversas mudanças são necessárias de modo à família adaptar-se à
nova realidade, sendo que antigos papeis e funções devem ser rearranjados. As
alterações na dinâmica familiar iniciam-se na fase pré-diagnóstica, quando há o início
dos sintomas, perpassando por todo o adoecimento e podem continuar após a morte
ou cura da pessoa doente (Melo et al. 2012).
411
2) Fé: principal fonte de apoio
412
possibilidade de simbolizar e integrar vivências, para que assim o indivíduo transforme
algo perigoso e ameaçador em algo palpável, que se pode recorrer, e assim passível
de modificação e elaboração (Reis et al., 2017).
Considerações Finais
Com o presente estudo, é possível fazer uma reflexão acerca das vivências e
modificações que o diagnóstico de uma doença potencialmente fatal como o câncer
provocou na vida das participantes. Receber essa notícia evocou inúmeros lutos,
sentimentos ambivalentes, alterações na dinâmica familiar, e a necessidade de
aprender novas habilidades e assumir novos papeis sociais. A necessidade de se
413
manterem fortes perante seus maridos foi um movimento de conseguir auxiliá-los
também a enfrentar a doença.
Referências
Areia, N. P., Fonseca, G., Major, S., & Relvas, A. P. (2018). Psychological morbidity
in family caregivers of people living with terminal cancer: prevalence and
predictors. Palliative and Supportive Care, 17(3), 286-293. doi:
https://doi.org/10.1017/S1478951518000044.
Beattie, S., & Lebel, S. (2011). The experience of caregivers of hematological cancer
patients undergoing a hematopoietic stem cell transplant: a comprehensive
literature review. Psychooncology, 20(11), 1137-1150.
Benites, A. C., Neme, C. M. B., & Santos, M. A. (2017). Significados da espiritualidade
para pacientes com câncer em cuidados paliativos. Estudos de Psicologia
(Campinas), 34(2), 269-279.
414
Blanc, L. O, Silveira, L. M. O. B., & Pinto, S. P. (2016). Compreendendo as
experiências vividas pelos familiares cuidadores frente ao paciente oncológico.
Pensando famílias, 20(2), 132-148.
Braun, V., & Clark, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative
Research in Psychology, 3(2), 77-101.
Cardoso, E. A., & Santos, M. A. (2013). Luto antecipatório em pacientes com indicação
para o Transplante de Células-Tronco Hematopoéticas. Ciência e Saúde
Coletiva, 18(1), 2567-2575.
Johansson, A. K., Sundh, V., Wijk, H., & Grimby, A. (2012). Anticipatory grief among
close relatives of persons with dementia in comparison with close relatives of
patients with cancer. American Journal of Hospice & Palliative Medicine, 30(1),
29-34.
Kübler-Ross (2000). Sobre a morte e o morrer. (P. Menezes, Trad.), São Paulo:
Martins Fontes. (Original publicado em 1969).
Matias, A. B., Cardoso, E. A., Mastropietro, A. P., Voltarelli, J. C., & Santos, M. A.
(2011). Qualidade de vida e transplante de células-tronco hematopoéticas
alogênico: um estudo longitudinal. Estudos em Psicologia (PUCCAMP),
28(2):187-197.
415
Melo, M. C. B., Barros, E. N., Campello, M. C. V. A, Ferreira, L. Q. L, Rocha, L. L. C,
Silva, C. I. M. G., ... & Santos, N. T. F. (2012). O funcionamento familiar do
paciente com câncer. Psicologia em Revista, 18(1), 73-89.
Reis, C. G. C., Farias, C. P., & Quintana, A. M. (2017). O Vazio de Sentido: Suporte
da Religiosidade para Pacientes com Câncer Avançado. Psicologia: Ciência e
Profissão, 37(1), 106-118.
Rodrigues, J. S. M., Sobrinho, E. C. R., Toledo, M. L. V., Zerbetto, S. R., & Ferreira,
N. M. L. A. (2013). O atendimento por instituição pública de saúde: percepção
de famílias de doentes com câncer. Saúde em Debate, 37(97), 270-280.
Sanchez, K. O. L., Ferreira, N. M. L. A., Dupas, G., & Costa, D. B. (2010). Apoio social
à família do paciente com câncer: identificando caminhos e direções. Revista
Brasileira de Enfermagem, 63(2), 290-9.
Sutherland, N. (2009). The meaning of being in transition to end-of-life care for female
partners of spouses with cancer. Palliative and Supportive Care, 7(4), 423-433.
416
36- MAL-ESTAR, VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO: ALTERIDADE E
MEDIAÇÃO NA RELAÇÃO TERAPEUTA-PACIENTE
Rinaldo Miorim5
Resumo: Este trabalho traz uma reflexão sobre a violência social e a crueldade como
elementos das linhas de força dos sofrimentos presentes no mal-estar
contemporâneo. Teve como ponto de partida as percepções do autor em seu trabalho
no campo da saúde mental na atenção primária em saúde, tendo como hipótese que
o contato com os traumas dos pacientes estabelece um deslocamento, que como
experiência de alteridade, aponta para necessidade de se encarar os aspectos
destrutivos dos comportamentos humanos em sua escala social. Segue o texto, a
partir do referencial da psicanálise, através de um percurso onde são feitas
considerações sobre o sujeito da modernidade avançada e da importância das
mediações simbólicas e da alteridade como resgate de uma ética que sirva de
resposta aos atuais modos de lidar com o desamparo, em contraposição a escalada
da violência, destruição e crueldade.
INTRODUÇÃO E OBJETIVO
Neste breve ensaio é proposta uma reflexão sobre meu ofício em saúde mental
e um olhar sobre a subjetividade contemporânea, especificamente focando a violência
e a agressividade como ações que se destacam nos sofrimentos presentes no mal-
estar da atualidade. Abordar tais questões envolve uma perspectiva sobre o
adensamento das condições psíquicas e os atravessamentos da clínica com o
universo psicossocial. Com relação as atuais formas de sofrimento psíquico, existe
um entrelaçamento de aspectos, que incluem os psicopatológicos e o campo
intersubjetivo, as circunstâncias que envolvem o estresse psicossocial, os problemas
5
Doutor em Psicologia Social e Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo
IPUSP, possui Especialização em Saúde Coletiva pela FMUSP. Psicólogo com atuação em Saúde
Mental e pesquisador ligado ao Grupo de Pesquisa em Mitopoética da Cidade do Laboratório de
Psicologia Social e Intervenção do Departamento de Psicologia Social do IPUSP.
417
socioeconômicos, a crise habitacional, o desemprego e as difíceis estratégias de
sobrevivência num mundo em que o mercado exige uma tal flexibilidade pessoal
capaz de minar qualquer forma de caráter. Mas pensemos também no complexo
circuito resultante da violência urbana, dos modos agressivos de se relacionar, como
os mal tratos, o abandono, a desconsideração pelo outro e os abusos que denunciam
a obscuridade e desumanidade de nosso contexto, inclusive quanto aos impulsos
destrutivos e cruéis que circulam em um campo social e intersubjetivo mais amplo
calcado em nossa verticalidade intrapsíquica.
Meu relato tem como ponto de referência a atuação em saúde pública nas
Unidades Básicas de Saúde da periferia da Grande São Paulo. Como psicólogo que
trabalha no campo da saúde mental e da saúde coletiva, acabei sendo sensibilizado
pelas vicissitudes do sofrimento psíquico através de um contato do tipo linha de frente,
de alguém que percorre as trincheiras dos desassossegos, das dores e sofrimentos
que envolvem os processos de saúde-doença como testemunha próxima dos
desconfortos e agonias vividas em nosso meio urbano periférico. Dentro de uma
perspectiva sobre as condições presentes na atualidade do mal-estar que envolvem
nossa cultura e civilização fui tendo a experiência de contato com os pacientes, em
suas formas de enfrentamento e de regulação psíquica, seja em processos de
avaliação ou de psicoterapia, individual ou em grupo, dentro de uma prática que
permitiu um encontro com as diversas condições enfrentadas pelo sujeito
contemporâneo, habitante principalmente das regiões suburbanas.
418
o mal-estar contemporâneo, mas também os modos de esperançar uma revitalização
do desejo como forma de afirmação vida, com seus fatos e fados, pois se a
desumanização opera no sentido de uma redução do desejo ao trauma, o encontro
terapêutico ao permitir a transformação da dor em sofrimento, operaria no campo da
alteridade e da possibilidade do resgate de uma ética de respeito à vida.
RELATO DA EXPERIÊNCIA
419
manifestações, investigando, tentando habitar seus aspectos e interstícios. Sobre a
violência, me chama a atenção principalmente o sofrimento e o ajuste psíquico, as
adaptações presentes na vida subjetiva e de seus modos de enfrentamento, mas
também, ao cuidar das suas dores, das ansiedades e de outros aspectos da sua
expressão sintomática, também experimento e observo o impacto das mesmas sobre
os profissionais da assistência. Lidar com a psicopatologia é difícil, escutar a dor
resultante da violência pode ser mais impactante. Mas por quê? Talvez pelo nosso
sentimento de revolta e indignação. Mas também ainda creio que fazer a escuta da
violência, seja a infantil, a que acomete as mulheres, das vítimas das variadas formas
de preconceito, da resultante da crescente criminalidade presente no meio urbano,
envolve termos que lidar com a ambivalência entre o civilizado e o bárbaro, com a
crueldade e destrutividade, que inclusive nos habita, que, por mais que tentemos nos
defender ou exorcizar se faz cada vez mais presente em nosso cotidiano, marcado
por relações de abuso, dominação e intolerância ao outro e ao diferente. É quando
parece entrarmos em contato com aqueles aspectos inumanos que nos excedem e
atormentam de forma extrema e paroxística, aspectos que extrapolam a clínica
individual e se espraiam pela esfera do coletivo e do psicossocial.
Penso que as amostras de crueldade expressas nas marcas das cicatrizes dos
agredidos que nos procuram na clínica ultrapassam o individual e trazem à superfície
os vapores perversos que nutrem toxicamente nossas relações coletivas. Mas a aura
de crueldade, do sadismo presente nos atos violentos e que deixa marcas profundas
em suas vítimas, acaba como que permeando o campo intersubjetivo, podendo ser
sentido empaticamente, percebido e vivenciado pelos técnicos em saúde que se
inclinam a cuidar do sofrimento alheio. Seria muito difícil, eu imagino, para aquele que
faz uma escuta qualificada destas vivências não se deixar afetar ou traumatizar pela
alteridade do encontro, vendo através da transmutação da dor (enclausurada no corpo
e em si mesmo) em sofrimento (compartilhada com o outro e articulada pela
linguagem), uma imagem de fundo que apresenta a crueldade que viraliza em nossos
grandes aglomerados humanos, como em nossas metrópoles aceleradas e
indiferentes. Uma vez que, o contato com as vítimas, prosseguindo para além das
queixas, dos sintomas e da angústia do paciente, acaba por abrir uma ponte para
enxergarmos a face cruel ou mesmo perversa daquele que, fazendo do gozo uma
420
forma descarga para suas excitações e impulsos destrutivos, feriu, agrediu ou
assassinou.
421
numa negação da potência de vida. Nesse sentido reflito sobre como os
comportamentos violentos, de dominação e de abuso, que ao se difundirem pelo
microcosmo das relações interpessoais, gerando uma atmosfera tóxica e epidêmica,
trazem à tona questões do macrocosmo social e que só intensificam o sentimento de
desamparo e o atual desalento frente aos rumos incertos de nossa cultura e
civilização.
DISCUSSÃO
Freud já tinha lançado a sua ideia de que a felicidade não parecer fazer parte
do projeto civilizatório. Como explicado em Birman (2003), articulação em torno da
422
oposição entre as exigências pulsionais e suas expectativas de satisfação, mediadas
por sua regulação simbólica, caracterizam uma assimetria e descontinuidade cujo
mal-estar coletivo é sua mais perfeita expressão. Entretanto, com relação a pulsão de
morte, Freud transmitiu sua preocupação frente à pujança das formas agressivas e
violentas atreladas ao projeto da sociedade moderna e que, na época da escritura do
Mal-estar da civilização, período entre as duas grandes guerras, já demonstrava uma
atmosfera bastante reservada frente aos progressos técnico-científicos e civilizatórios
resultantes do projeto modernizador. E assim termina seu Mal-estar da civilização com
uma questão que ficou em aberto:
A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que
ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação da vida
comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez,
precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os
homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que com sua ajuda,
não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem.
Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua
infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois
“Poderes Celestes”, o eterno Eros, desdobre suas forças para afirmar-se na luta com
seu não menos mortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com
que resultado? (Freud, 1997, pp. 111-112)
423
funcionariam como controle social também foram abordadas por Freud (1996). Tendo
a perversão suas dimensões sublime e abjeta imbricadas, sua aparente liberdade
pode transparecer justamente por encarnar a encruzilhada entre o bárbaro e o
civilizado, mas também corresponde ao negativo da liberdade, como observado por
Roudinesco (2008), uma vez que a perversão, como um sinônimo de perversidade,
tem nas formas de aniquilamento, na desumanização, nas expressões de ódio,
destruição, dominação e gozo, suas metamorfoses que se prolongam ao longo da
história humana. Se por um lado a perversidade humana parte do deleite do mal e da
destruição de si e do outro, também não é menos verdade o nebuloso limite entre as
partes obscuras de nosso psiquismo e suas possibilidades de sublimação, o que torna
nossa relação com a violência e a crueldade ainda mais complexa.
424
do sujeito contemporâneo é marcado pelos traços da hiperatividade, da compulsão e
do consumismo, mas que, paradoxalmente, encontra-se quase sempre aliado a um
vazio de si, como nos quadros depressivos. Subjetividades marcadas pelo excesso e
pelo ímpeto pela ação, todavia que se afundam numa instabilidade de afetos. Desta
forma a pobreza subjetiva passa a ser traduzida pela explosividade emocional, pela
irritabilidade do humor e pela ação violenta, de autoagressão, das patologias
corporais, ou da agressão exteriorizada. Corolário da fragilidade de mediação
simbólica, da anemia do repertório semântico, ou falta de articulação entre o eu e o
outro que no seu limite resultam nas tentativas de anulação do diferente. Ações
violentas que têm cada vez mais como ingrediente a presença da crueldade, como a
própria marca agressiva da cultura do excesso, quando a disseminação dos atos
violentos ganha cada vez mais contornos de um gozo fatídico e anti-humano, atos
contrários a própria vida em seu sentido mais amplo.
425
que a justiça, obra do amor, deve exercer” (p. 123). Pois além do mal, da pulsão de
morte, também existe a pulsão de vida, o amor e uma justiça, os limites éticos
fundados junto ao amor, tendo como critério de avaliação moral a própria vida e o
respeito ao outro fundamentados a abertura diante da alteridade. Da recuperação dos
valores humanísticos e espirituais, da necessidade de modelos saudáveis de
identificação afetiva e moral, viriam as virtudes da solidariedade e a compaixão.
Considerações finais
426
REFERÊNCIAS
Roudinesco, E. (2008). A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos.
Rio de Janeiro: Zahar.
427
37- CONTEXTO E IMPLICAÇÕES DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL EM
ADOLESCENTES6
Introdução
A partir de uma revisão bibliográfica, este trabalho busca oferecer um
panorama da organização da medida protetiva de acolhimento institucional no Brasil,
dando enfoque para a implicação desta medida ao público adolescente, destacando
particularidades envolvidas nesta realidade. No Brasil, a Lei n. 8.069, de 13 de julho
de 1990, dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), compreendido
6
Este trabalho é parte da pesquisa de Doutorado em curso no Programa de Psicologia Clínica do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
7
Doutoranda pelo Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP.
8
Professora Livre Docente, Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP.
428
como um expressivo marco que instituiu a promoção integral da criança e do
adolescente. O ECA define adolescente toda pessoa entre 12 e 18 anos de idade e,
em casos excepcionais, abrange também entre 18 e 21 anos. Está estabelecido que
a educação e criação da criança e do adolescente sejam prioritariamente realizadas
no âmbito familiar e, em situações particulares, em família substituta. A colocação em
família substituta pode ser mediante guarda, tutela ou adoção (ECA, Art. 19 e 28).
Seja na família natural ou família substituta, a convivência familiar e comunitária deve
ser assegurada em um ambiente que ofereça o desenvolvimento integral do indivíduo.
Quando a criança/adolescente se encontra em situação de risco em sua
integridade, a autoridade judiciária competente poderá determinar a aplicação de
medida protetiva. Tem-se duas modalidades principais de programas: o Acolhimento
Familiar e o Acolhimento Institucional. São medidas provisórias e excepcionais
aplicadas no período de transição para a reintegração familiar (ECA, Art. 101, IX, §
1o). É tido como prioritário a inserção da criança/adolescente em acolhimento familiar,
do que no acolhimento institucional (ECA, Art. 34, § 1o).
O Programa de Acolhimento Institucional é um acolhimento provisório para
crianças e adolescentes sob medida de proteção e em situação de risco pessoal e
social. O acolhimento é operacionalizado quando as famílias ou responsáveis,
ocasionalmente não podem oferecer a função de proteção e cuidado. As entidades de
acolhida devem oferecer atendimento em pequenas unidades e grupos, além de
conter registro no Conselho Municipal de Assistência Social e da Criança e
Adolescente (TJSP - Tribunal de Justiça de São Paulo).
O cenário das instituições de acolhimento no Brasil evidencia que, ainda que
os esforços sejam direcionados para a reintegração familiar ou inserção em família
substituta, nota-se que em alguns casos tais possibilidades não acontecem ou
demoram a se concretizar. A consequência é que uma parcela dos indivíduos cresce
nas unidades de acolhimento e desses, uma parte permanece no local até completar
a maioridade. Nesta direção, circunscrevendo os adolescentes em acolhimento
institucional, refletiu-se sobre a importância dos vínculos afetivos e da construção de
uma rede de apoio que favoreça a preparação para a vida pós instituição. Levantou-
se a questão de como a perspectiva de futuro tem sido pensada e discutida junto a
esses adolescentes.
Nota-se que muitas investigações científicas têm como público-alvo a infância,
bem como os efeitos e aspectos da institucionalização no desenvolvimento da criança,
429
sendo de extrema relevância conduzir certa visibilidade também para os jovens
acolhidos, a fim de legitimá-los como sujeitos em desenvolvimento e plenos de direitos
(Wendt, Dullius & Dell’Aglio, 2017).
Ainda são necessárias pesquisas que pensem a transição para a vida adulta,
trabalhando tópicos que versem sobre possibilidades de autonomia, entendendo este
conceito para além do alcance da maioridade; “há a necessidade da construção de
uma práxis que entenda as políticas públicas pelo olhar da criança e que garantam a
sua autonomia e o apoio necessário para a sua transição para a maioridade e saída
da instituição” (Poker, 2017, p.8).
Fontes Bibliográficas
Artigos científicos recentes que discutem a temática do acolhimento institucional e da
realidade dos adolescentes acolhidos; livros do psicanalista D. W. Winnicott.
Desenvolvimento
Os motivos que conduzem crianças e adolescentes ao acolhimento institucional
evidenciam certa multifatoriedade. Dentre os principais motivos que justificam a
medida protetiva se pode citar: uso de álcool e/ou outras drogas pelos responsáveis,
negligência da função parental (implicação na educação dos filhos) e dos cuidados
básicos (higiene e alimentação), condições inadequadas de moradia e genitores em
cumprimento de pena restritiva de liberdade. A negligência parental foi identificava
como um fator recorrente e em sua maioria se trata de pessoas em condição de
vulnerabilidade social. Ademais, a suspeita de violência física, sexual e psicológica é
um aspecto relevante que apareceu nos dados processuais (Mastroianni, Sturion,
Batista, Amaro, & Ruim, 2018).
Observa-se que uma expressiva parcela de crianças e adolescentes acolhidos
provêm das esferas sociais mais baixas. Sobre isso, Crestani e Rocha (2018) atribuem
alguns fatores, como a individualização de problemas sociais. Destina-se às famílias
pobres a culpabilização e a criminalização pela condição social que se encontram,
pois historicamente são reconhecidas como incapazes de gerir o cuidado e a
educação dos filhos. As autoras sugerem que mesmo que a legislação não permita
que as condições socioeconômicas sejam motivo para perda ou suspensão do poder
familiar; o acolhimento institucional continua sendo motivado, em muitos casos, pelas
430
condições de pobreza, de carência de recursos materiais, porém mascarado pelo
discurso da vulnerabilidade.
Na realidade brasileira os adolescentes tendem a estar entre a população com
menores chances de inserção em família substituta, quando comparados aos
acolhidos de menor idade. Dentre os acolhidos, a maioria possui menos de 12 anos e
está em situação jurídica provisória, com tentativa de reintegração familiar. Já para os
indivíduos em situação jurídica definida (destituição do poder familiar), a opção seria
a adoção. Entretanto, os dados indicam que a adoção nem sempre se efetivará, pois
a quantidade de candidatos habilitados no Cadastro Nacional de Adoção é menor
conforme a idade do indivíduo em acolhimento aumenta, isso porque a maioria dos
candidatos preferem adotar crianças de até 4 anos (Mastroianni, Sturion, Batista,
Amaro, & Ruim, 2018).
Uma pesquisa identificou que dos 87 adolescentes residentes em 11 unidades
de acolhimento na baixada santista, a maioria era do sexo masculino na faixa etária
de 15 a 17 anos. Além disso, 31% dos adolescentes da amostra (12 a 17 anos) se
encontravam acolhidos a mais de 2 anos, o que contraria as especificações do ECA
para o período máximo esperado em acolhimento institucional (Brito, Schoen,
Marteleto, & Oliveira-Monteiro, 2017).
O acolhimento institucional abrange particularidades, das quais algumas
tendem a repercutir na forma como o indivíduo se reconhecerá frente ao outro. Os
estigmas que incidem sob os adolescentes acolhidos podem ser notados em alguns
estudos. Ao ser investigado o imaginário social sobre as características de jovens
típicos brasileiros e jovens de instituições de acolhimento, uma pesquisa constatou
que os jovens típicos tiveram média mais alta de palavras positivas associadas:
trabalhador, sociável, saudável, apresentável, amado. Já os jovens em acolhimento
institucional apresentaram médias altas de atributos negativos: vulnerável, carente,
agressivo, baixa autoestima, traumatizado. Embora os participantes tenham
demonstrado representações negativas ao jovem de forma mais ampla (típicos e
acolhidos), houve maior incidência de reprodução de rótulos sociais pejorativos aos
jovens em acolhimento institucional. “A imagem que se tem de um jovem
institucionalizado, quando compartilhada socialmente, interfere diretamente na forma
como o jovem se percebe e como os grupos sociais o recebem, integrando-o ou não
naquele contexto” (Wendt, Dullius, & Dell’Aglio, 2017, p.537).
431
Essa questão nos direciona a pensar na necessidade de enfrentamento em
relação aos estigmas voltados à essa população nos diversos âmbitos da sociedade,
a fim de desmitificar situações, promover esclarecimentos e reflexões que
paulatinamente levem a mudanças culturais em termos do imaginário social.
Ao se refletir sobre a função exercida por uma unidade de acolhimento, deve-
se considerar que para tal medida houve em algum grau a violação de direitos,
exigindo-se o afastamento provisório do contexto familiar. A instituição de acolhimento
surge como um ambiente substitutivo que proverá recursos materiais e apoio afetivo
às crianças e adolescentes, enquanto aguardam decisão judicial de retorno à família
de origem ou encaminhamento à família substituta. A função dos cuidadores e a
qualidade do vínculo com os acolhidos é essencial para o oferecimento de suporte e
segurança em um meio favorável ao desenvolvimento saudável (Lemos, Gechele, &
Andrade, 2017).
O acolhimento institucional para muitos adolescentes é a chance de se
experimentar vivências afetivas positivas, diferentes das anteriores, em certos casos
marcadas pela incerteza e inconstância. Isso porque o acolhimento tem como função
oferecer condições que facilitem a estabilidade e a segurança das relações.
Proporcionar um espaço acolhedor e de confiança pode ser um desafio perante o
aspecto provisório do acolhimento. Porém, a provisoriedade não deve ser motivo para
a falta de implicação dos profissionais técnicos no cuidado e na garantia de direitos
protetivos (Wendt, Dullius, & Dell’Aglio, 2017). Fernandes e Oliveira-Monteiro (2016)
ao entrevistarem adolescentes acolhidos perceberam que diante da instabilidade dos
vínculos anteriores, a percepção do acolhimento pode ser boa. Os participantes
afirmaram receberem cuidados e ajuda dentro do serviço, principalmente da equipe
técnica, o que reforça a importância do estabelecimento de vínculos positivos de
referência nas unidades.
Contudo, nem sempre os profissionais que atuam nas unidades de acolhimento
conseguem se dedicar à qualidade do envolvimento afetivo com os acolhidos. Em
algumas realidades das casas lares, o cuidado das mães sociais se mantém
circunscrito às atividades de higiene pessoal, limpeza, alimentação e cumprimento de
horários na rotina, de forma que os cuidados afetivos acabam relegados a um segundo
plano. Ou seja, a manutenção das condições físicas de organização e funcionamento
da casa e da rotina dos acolhidos contribui para que pouco consigam se implicar em
experiências de contato, interação e fortalecimento de vínculos, possíveis de serem
432
experimentados nas situações de diversão, entretenimento e brincadeira (Lemos,
Gechele, & Andrade, 2017).
Nesta direção, o relato de uma pós-abrigada moradora em uma instituição de
acolhimento dos 10 aos 17 anos, reafirma a lógica do caráter de institucionalização,
frequente em alguns serviços. Nessa lógica, a garantia de direitos esbarra na
caridade, assujeitando o indivíduo a rotinas padronizadas e a uma quase invisibilidade
das suas particularidades. Tudo isso sustentado pelo entendimento de que, para uma
pessoa em situação de risco ou vulnerabilidade, a satisfação de recursos materiais
básicos é o suficiente (Poker, 2017). Acredita-se que esforços devem ser feitos na
superação dos problemas que frequentemente existem na aplicação da medida
protetiva de acolhimento institucional. O olhar do adulto, ao invés de desapropriar o
sujeito da sua experiência, deve potencializar o resgate e a afirmação da sua
identidade, possibilitando que a criança ou o adolescente possam falar do lugar que
ocupam.
O estado de identidade de adolescentes em situação de acolhimento
institucional foi tema de um estudo que verificou que os adolescentes mais velhos se
encontravam em estados imaturos de identidade, oferecendo indícios de maiores
prejuízos como: despreparo, desinteresse, dificuldade em exercer papeis sociais e
quanto aos próprios sentimentos. Outro agravante assinalado diz respeito ao fato de
que vários participantes tinham previsão de desligamento do acolhimento devido ao
alcance da maioridade; tais jovens apontaram certo despreparo e pouca qualificação
para inserção no mercado de trabalho (Brito, Schoen, Marteleto, & Oliveira-Monteiro,
2017). Tais questões reafirmam nossa preocupação em relação à forma como os
adolescentes estão sendo preparados a elaborar o desligamento institucional e pensar
sobre seus futuros.
Fernandes e Oliveira-Monteiro (2016) constataram a ocorrência de problemas
de ordem interna (emoções e aspectos psicológicos) e externa (comportamentos
negativos e agressivos) em adolescentes de serviços de acolhimento institucional. A
percepção pessoal frente ao contexto da instituição foi predominantemente de
indiferença nos meninos e de negatividade nas meninas. Os adolescentes de 11 a 14
anos tiveram percepção institucional mais negativa do que os mais velhos, de 15 a 18
anos, os quais revelaram maior indiferença. Aqueles com tempo de acolhimento até 2
anos apresentaram maior percepção negativa em relação ao serviço, do que os
institucionalizados há mais tempo. A indiferença apontada pelos mais velhos e há
433
mais tempo em situação de acolhimento é um dado relevante sobre os aspectos
psicológicos e emocionais desses jovens. “Essa indiferença pode ser um importante
sinal dos problemas emocionais desses adolescentes, como possível indicador de
desesperança ou descontinuidade do uso de recursos psíquicos para enfrentar a
situação e ter esperança de vida” (Fernandes & Oliveira-Monteiro, 2016, p. 87).
Tem-se observado estudos que tratam da transição para a vida adulta de
adolescentes em acolhimento institucional ou familiar, levantando a importância de
uma efetiva preparação para a vida pós acolhimento. “Ao se acercarem da
maioridade, os adolescentes que vivem nessas instituições enfrentam a necessidade
de se responsabilizarem pelas próprias vidas, estando ou não preparados para essa
transição” (Cassarino-Perez, Córdova, Montserrat, & Sarriera, 2018, p.1667). Apesar
de essa população ser exposta a experiências negativas que conduziram ao
acolhimento, tem-se apostado no fortalecimento de aspectos de superação e
resiliência. Os programas internacionais que têm se dedicado a facilitar a
emancipação dos jovens, têm como similaridade a intensificação do apoio frente à
moradia, relacionamentos interpessoais, trabalho, estudo e habilidades para a vida
cotidiana, ressaltando a relevância do apoio financeiro, emocional e social. Esses
foram considerados fatores essenciais para o favorecimento da transição para a vida
após a instituição.
Além disso, destaca-se o quanto “as condutas pró-sociais são importantes
recursos para o enfrentamento das adversidades [...], em especial, a partir da saída
desses adolescentes das instituições de acolhimento, o que se faz, obrigatoriamente,
ao completarem 18 anos de idade” (Fernandes & Monteiro, 2017, p.5). Ao se delinear
indicadores de comportamentos pró-sociais de partilha, ajuda, cuidado e empatia em
61 adolescentes em acolhimento institucional, um estudo notou que quanto a variável
tempo de institucionalização, os adolescentes com menor tempo mostraram mais pró-
sociabilidade do que os demais. Além disso, os resultados gerais apontaram
comportamentos positivos no público estudado, com relevância para os aspectos de
ajuda (tentar ajudar as pessoas), cuidado (dedicar tempo aos amigos solitários) e
empatia (colocar-se no lugar dos necessitados), o que confirma demais estudos que
apontam que a vivência institucional pode aproximar os sujeitos acolhidos,
contribuindo para comportamentos de afeto e ajuda entre os pares, pessoas
conhecidas ou com características semelhantes.
434
Para Winnicott (1965b/1982) a socialização é uma importante conquista em
termos de amadurecimento pessoal. Na adolescência, observa-se uma gradativa
inserção do indivíduo em grupos sociais que favorecem o percurso à uma maior
autonomia e independência das figuras da infância. Também demais pessoas passam
a fazer parte do mundo e das relações do indivíduo, para além das figuras parentais,
como os pares e novos modelos de referência.
Nota-se que o adolescente tende a se inserir em grupos cujos integrantes
possuem aspectos compartilhados e interesses em comum. Pode acontecer que um
integrante se destaque e ocupe o lugar de líder, atuando pelos demais, legitimando e
colocando em movimento a luta e motivações individuais (Winnicott, 1984a/2002a). O
indivíduo que alcança maior autonomia e desenvolve aspectos de socialização,
relaciona-se pouco a pouco com as atividades culturais, adentrando na experiência
cultural, a qual evidencia o lugar da realidade compartilhada, do espaço entre o mundo
subjetivo e a realidade objetiva, onde se aloca a possibilidade da criatividade do viver
humano (Winnicott, 1971a/1975). Compreende-se a importância para o adolescente
do fortalecimento do sentimento de pertencimento a um lugar, a um grupo que
compartilha as mesmas inquietações, experiências e expectativas. Por isso, os pares
tendem a ser uma rede de apoio fundamental para o adolescente em acolhimento
institucional, a fim de balizar os efeitos negativos do afastamento do convívio familiar
e potencializar os aspectos criativos e de socialização.
Conclusão
Verificou-se que a medida protetiva de acolhimento institucional é um recurso
acionado quando a criança e o adolescente estão em risco em seus meios familiares.
Há casos nos quais o acolhimento pode repercutir negativamente na autopercepção
dos adolescentes, sendo esta reforçada pelo estigma presente no imaginário social.
Porém, ainda que existam aspectos que exijam melhores adequações a fim de
minimizar os efeitos negativos do afastamento familiar, compreende-se que as
unidades de acolhimento, pela função que ocupam, possuem grande potência para
oferecer uma experiência positiva. Um fator a ser destacado é a identificação entre os
pares que tende a reforçar um ambiente no qual o adolescente se sinta parte e
compreendido pelos demais. Além disso, ressalta-se a necessidade de investimento
em ações que proporcionem a preparação para a vida após a saída da instituição,
reforçando a reflexão dos adolescentes sobre as perspectivas de futuro. Por fim, na
435
direção de Fernandes e Oliveira-Monteiro (2016), apresenta-se a necessidade de
mais pesquisas que explorem a experiência do acolhimento institucional para as
crianças e adolescentes e estudos que deem voz para que os próprios indivíduos
apresentem suas visões, no intuito de delinear subsídios para o aperfeiçoamento dos
serviços de acolhimento e das intervenções destinadas a essa população.
Referências
Mastroianni, F. C., Sturion, F. R., Batista, F. S., Amaro, K. C. & Ruim, T. B. (2018).
(Des)acolhimento institucional de crianças e adolescentes: aspectos familiares
associados. Fractal: Revista de Psicologia, 30(2), 223-233.
https://dx.doi.org/10.22409/1984-0292/v30i2/5496
Wendt, B., Dullius, L., & Dell’Aglio, D. D. (2017). Imagens Sociais sobre Jovens em
Acolhimento Institucional. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(2), 529-541.
https://dx.doi.org/10.1590/1982-3703004012016
437
38- PSICOTERAPIA BREVE OPERACIONALIZADA E TRANSTORNO
DEPRESSIVO: RELATO DE CASO
Resumo:
INTRODUÇÃO
A Psicoterapia Breve Operacionalizada (PBO) tem bases na teoria psicanalítica e
a teoria da adaptação. Por meio de interpretações teorizadas e conjecturas
adaptativas o paciente vai lançando luz sobre as motivações inconscientes e suas
repercussões na origem das situações-problema (SIMON & YAMAMOTO, 2009).
OBJETIVOS
Este trabalho tem como objetivo elucidar a eficácia terapêutica da Psicoterapia
Breve Operacionalizada em um quadro depressivo grave.
DESCRIÇÃO DO CASO
Paciente depressiva, 40 anos, casada. Afastada pelo
Dados e Contextos
INSS.
Nº de sessões 12
MATRIZ GRÁFICA
438
CONCLUSÃO
O estudo confirmou a Psicoterapia Breve Operacionalizada como um método
eficiente já que a paciente avançou para o Grupo 03 (Adaptação Ineficaz
Moderada). Logo, a PBO tem aplicabilidade para casos graves.
INTRODUÇÃO
O termo "Psicoterapia Breve" nasceu em 1924 quando dois discípulos de S.
Freud, S. Ferenczi e O. Rank, tentaram minimizar a duração dos tratamentos
psicanalíticos. Ferenczi, considerado por alguns como o Pai da Psicoterapia Breve
criticou a tradicional passividade do terapeuta propondo uma posição mais ativa
(KATHUNI, 1996). Mais adiante outros psicanalistas deram seguimento fazendo
outras transgressões ao modelo psicanalítico tradicional, aperfeiçoando a técnica até
culminar na Psicoterapia Breve que temos hoje.
A Psicoterapia Breve Operacionalizada proposta por Ryad Simon é um modelo
de psicoterapia elaborado a partir de sua atuação no campo de saúde mental (SIMON,
2005). Este modelo de psicoterapia está embasado na Teoria da Adaptação
(repertório de respostas apresentadas pelo sujeito visando uma organização frente a
situações que o modificam) (SIMON, 1989) somada à teoria psicanalítica.
A EDAO (Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada) é uma escala que
foi desenvolvida para classificar o indivíduo segundo sua adaptação (SIMON, 1989).
Foi criada como método de avaliação psicológica para diagnóstico, prognóstico e
encaminhamento. São quatro os setores adaptativos. O Afetivo-Relacional (A-R) diz
respeito aos sentimentos, atitudes e ações referentes a si e ao outro. A Produtividade
(Pr) está ligada ao trabalho, estudo ou qualquer atividade produtiva. Já o Setor Sócio-
Cultural (S-C) compreende sentimentos, atitudes e ações com relação à organização
social, valores, costumes culturais, e pressões sociais. E o Setor Orgânico (Or)
engloba o estado do organismo, sentimentos e ações relacionados ao físico, inclusive
439
a sexualidade. O Setor Afetivo-Relacional é o que exerce maior influência sobre a
totalidade adaptativa (SIMON, 1989).
O diagnóstico adaptativo se desdobra em cinco grupos de adaptação: G1
(Eficaz), G2 (Ineficaz Leve), G3 (Ineficaz Moderada), G4 (Ineficaz Severa) e G5
(Ineficaz Grave), além das situações de crise por perda ou aquisição.
Através da EDAO se consegue a delimitação do que o autor intitulou de
situação-problema, ou seja, variáveis que interagem entre si forçando o sujeito a
encontrar uma solução que se adiada pode originar uma crise adaptativa. (SIMON,
2005, p. 29). O autor também elaborou três grupos de soluções de adequação diante
de situações-problema: “adequadas”, se solucionam com satisfação e sem produzir
conflitos intra e/ou extra-psíquicos; “pouco adequadas”, quando solucionam
propiciando satisfação, mas geram conflitos intra e/ou extra-psíquicos, ou, solucionam
insatisfatoriamente embora sem conflito algum; e, “pouquíssimo adequadas”, quando
solucionam de forma insatisfatória e provocam conflitos intra e/ou extra-psíquicos.
Através do conjunto das soluções - “adequadas”, “pouco adequadas” ou “pouquíssimo
adequadas” -, ou pelo predomínio de uma delas, cada setor adaptativo é avaliado
como estando adequado, pouco ou pouquíssimo adequado (SIMON & YAMAMOTO,
2008).
O processo terapêutico transcorre face a face. A data do término é delimitada
e o número de sessões varia de uma a doze no máximo. O tempo sugerido para cada
sessão é de sessenta minutos. O tempo indicado de tolerância para o silêncio é de 5
minutos. O objetivo é a superação de soluções inadequadas para as situações-
problema compreendendo os dinamismos que a sustentam.
As entrevistas são bastante detalhadas, buscando informações sobre a história
de vida pregressa. Variam em número conforme a necessidade de maneira a
proporcionar um planejamento terapêutico eficiente, com a delimitação de situações-
problema. As entrevistas também podem revelar uma situação-problema que sustenta
as demais chamada de situação-problema nuclear.
A postura do psicoterapeuta é diretiva, buscando uma interação acerca dos
setores adaptativos e evitando associações livres prolongadas. São feitas
interpretações teorizadas onde a reconstrução da história do paciente será baseada
nas primeiras entrevistas, e não no material das sessões conforme propõe o modelo
psicanalítico (GEBARA, 2003, p.45). Por meio de interpretações teorizadas e
conjecturas adaptativas o paciente vai tendo clareza dos meandros de seu mundo
440
subjetivo e suas repercussões no mundo externo, lançando luz sobre as motivações
inconscientes e suas repercussões na origem das situações-problema (SIMON &
YAMAMOTO, 2009).
Visando não comprometer a relação terapêutica se interpreta somente a
transferência negativa (faltas e atrasos injustificados, silêncios prolongados, pedido
de redução do número de sessões, verbalizações superficiais, esquecimento do
pagamento, entre outros) (FREUD, 1912). São evitadas interpretações em níveis mais
profundos bem como a estimulação à neurose de transferência. Conforme a
necessidade, intervenções suportivas como o reasseguramento, a orientação e a
sugestão são utilizadas, estimulando a transferência positiva.
Freud defendia que a transferência poderia acontecer também fora da relação
analítica. (FREUD, 1912 apud SIMON, 2005). Em sua experiência, SIMON (2005)
percebeu que algo das transferências vividas fora da relação terapêutica (com a
família, parentes, amigos, entre outros) tinha a ver com a transferência vivenciada
com o terapeuta. A tais relações transferenciais externas denominou cotransferência.
A interpretação contransferencial é utilizada e indicada para a PBO porque impede
uma regressão indesejável e o estímulo à neurose de transferência (SIMON, 2005, p.
18).
A Psicoterapia Breve Operacionalizada não oferece restrições e pode ser
aplicada a qualquer sujeito, exceto àqueles que buscam aprofundamento no
autoconhecimento em níveis mais profundos do inconsciente. Àqueles que buscam
uma reestruturação da personalidade é indicada a psicoterapia psicanalítica ou a
psicanálise (SIMON, 2005).
OBJETIVOS
Este trabalho tem como objetivo elucidar a eficácia terapêutica da Psicoterapia
Breve Operacionalizada em um quadro depressivo grave.
MÉTODO
O método empregado nesse trabalho é clínico embasado em estudo de caso.
As reflexões nele explicitadas são oriundas de atendimentos realizados segundo os
pressupostos da Psicoterapia Breve Operacionalizada. É um estudo qualitativo que
visou comprovar a aplicabilidade terapêutica desse modelo psicoterápico em um caso
grave de depressão.
441
O processo terapêutico transcorre face a face, o número de sessões é de no
máximo doze e o tempo sugerido é de sessenta minutos. As entrevistas são bastante
detalhadas, buscando informações sobre a história de vida pregressa. A postura do
psicoterapeuta é diretiva, visando interação acerca dos setores adaptativos e evitando
associações livres prolongadas. A reconstrução da história do paciente é baseada nas
primeiras entrevistas e não no material das sessões conforme propõe o modelo
psicanalítico (GEBARA, 2003, p.45). Conforme a necessidade, intervenções
suportivas como o reasseguramento, orientação e sugestão são utilizadas,
estimulando a transferência positiva.
442
intensa e sono. Chegou bastante chorosa e desacreditada da vida. Deixara de
trabalhar porque tinha muito medo de enfrentar a situação envolvendo os patrões
naquele momento. Registrada há dois anos como empregada doméstica, começara a
perceber indícios de traição por parte da patroa. Julgava que o patrão não merecia
isso, sendo crente e trabalhador. Embora soubesse das traições da patroa sempre
agiu com descrição. Aquela, por sua vez, sentindo-se ameaçada repetidamente
buscava meios para prejudicá-la e demiti-la, o que a fazia sentir-se mal, culminando
no afastamento das atividades. Hoje quando pensa em trabalhar se sente mal e não
quer ver a patroa de forma nenhuma. Há crescente sentimento de desânimo e redução
da auto-estima. Não tem estímulo para se arrumar e toma banho só para não cheirar
mal. Está com 109 quilos, sente vergonha da sair na rua e não consegue levar a
O filho de 16 anos vinha demonstrando tendências homossexuais. Já há algum
tempo vinha abordando a mãe dizendo que precisava lhe contar algo, mas desistia
pela própria falta de coragem e falta de insistência por parte dela. Ela sofria porque a
falta de diálogo ocasionava distanciamento do filho. Afirma que não tinha preconceito
contra homossexuais, mas nunca imaginara que seu filho pudesse o ser. Não tem
plena certeza de que o filho é homossexual, porque em outra circunstância este
demonstrara interesse por uma colega de classe. Associa a tendência homossexual
do filho com a superproteção que demonstrou quando ele era bebê.
DISCUSSÃO
443
Trouxe numa das sessões que um dos filhos dizia repetidamente que precisava
lhe contar algo. Perguntou o que poderia levar uma mãe a colocar o filho para fora de
casa, e ela respondeu que quando havia amor não existiam motivos para tomar esta
atitude. Ele passava a noite fora sem avisar. Ela ficava bastante nervosa, perdia noites
de sono, imaginava tragédias de todo o tipo, mas não tinha coragem de se aproximar.
Imaginava que ele assumiria a homossexualidade mudando as roupas, o
comportamento social, trocando os amigos e fazendo escândalos, dando o que falar.
Também temia julgamento das pessoas da igreja. No processo terapêutico foi
trabalhada a culpa onipotente da paciente, que se sentia como a principal
colaboradora para a homossexualidade do filho. Sentia-se culpada porque o rejeitara
muito na gravidez. Quando nasceu teve compaixão e quis aplacar o incômodo da
culpa dispensando mimos e cuidados, o que o haveria tornado afeminado, diferente
dos outros filhos. Foi-lhe mostrado quanto sofrimento a culpa lhe trazia. Após duas
sessões dialogou com o filho, abandonou as fantasias angustiantes e entrou em
contato com sua culpa onipotente, sentindo alívio. A atitude de enfrentamento
propiciou aproximação, lhe conferindo maior autonomia para permitir ou proibir
passeios, saber mais sobre as amizades e locais frequentados. Diálogos posteriores
evidenciaram que a homossexualidade era uma hipótese apenas, considerando que
concomitantemente, seu filho passava por um momento de instabilidade próprio da
adolescência, e havia demonstrado interesse por uma menina da sala.
Abordou novamente a questão dos abusos trazida na fase das entrevistas.
Relata que tinha um corpo atraente. Sentia que as pessoas a queriam próxima não
por amor, mas por interesse sobre seu corpo e afazeres domésticos que executava.
Relatou que sentia muita vergonha e culpa de contar, mas se sentia bem na medida
em que o fazia. O terapeuta pôde ser internalizado como um objeto bom, atenuador
de seu superego rígido e acusador. A confiança e vínculo foram se fortalecendo e
proporcionando a transferência positiva em forma de gratidão.
Desde as primeiras sessões expressara sua insatisfação no relacionamento. A
vida sexual não lhe agradava. Tinha relação somente para fazer seu papel de esposa
e sentia que não o amava mais. Não sentia que o marido a auxiliava na educação dos
filhos e nem se posicionava como pai, pois quando era convidado a se impor como tal
dizia que os filhos eram dela. Ele disse numa ocasião que a via como uma mãe, o
que a comoveu. Neste momento, ficou claro que todos na casa eram filhos, inclusive
o marido. Isto lhe foi apontado também com a interpretação teorizada. Pôde perceber
444
que o marido não era refém da vida, e chamá-lo para as responsabilidades de um
adulto não era uma maldade. Compreendeu como a vida se tornara pesada porque
assumia vários papéis, trazendo sobrecarga. Dispôs-se a dividir mais as
responsabilidades com seu cônjuge e tratá-lo como adulto. Lembrou que desde a
infância já auxiliava no cuidado dos irmãos e afazeres domésticos. Começou a
trabalhar cedo e adquiriu responsabilidades muito rapidamente. Tal associação fez
com que se visse melhor nas situações cotidianas, além de perceber que colaborava
na sustentação delas, repetindo aquela postura de mãe cuidadora. Passou a pensar
mais em si e buscar maior autonomia. No processo terapêutico, embora com certa
dificuldade, tentou por várias vezes abordar a questão do casamento com o marido,
mas não houve aprofundamento no assunto por resistência dele. Gradativamente ia
ganhando força para encarar as adversidades.
Numa sessão subsequente relatou uma situação em que a nora passara mal
vindo a desmaiar. Em seguida um dos filhos teve crise de asma por ver a cunhada
desacordada e quase desmaiou também. A paciente disse que o primeiro pensamento
foi sair correndo desesperada. Mas respirou, acudiu o filho e levou a nora no hospital.
Reconheceu isto como grande progresso. Também trouxe um fato onde sua amiga
lhe procurou para saldar uma dívida. Havia fugido por várias vezes anteriormente.
Desta vez convidou a amiga para entrar e dialogaram sobre a dívida. Disse que foi
muito tranquilo porque fora compreendida após se explicar.
Nas últimas sessões demonstrou preocupação quanto ao fim do processo
psicoterápico. Manifestou o desejo de prosseguir com a terapia para compreender
melhor sua tendência à esquiva e resolver definitivamente a questão do seu
casamento, assunto que considerava mais complexo porque envolvia os filhos. Não
faltou e justificou a única vez que chegou atrasada. Na última sessão disse que se
sentia muito melhor. Começava a resgatar sua auto-estima e desejo de viver. Decidiu
retornar ao trabalho e estava ansiosa para tal. Conversara com a patroa chegando a
lhe fazer uma visita, porque já sentia saudades do trabalho, patrões e respectivos
filhos. Estava esperando vencerem os dias do INSS para retomar.
10. CONCLUSÃO
445
problema apresentadas pela vida. Ao longo do primeiro ano de vida estes sujeitos
apresentam extensas fixações nas posições esquizo-paranóide e depressiva (SIMON,
2005, p. 64). Embora apresentem melhores prognósticos os pacientes inclusos nos
quadros medianos, onde as forças de vida prevalecem no fator constitucional (SIMON,
2005, p. 128), a paciente conseguiu importante avanço, demonstrando que os casos
considerados graves também usufruem da PBO.
O estudo confirmou a Psicoterapia Breve Operacionalizada como um método
eficiente, já que aperfeiçoou a adaptação da paciente, possibilitando melhoras em
vários aspectos. No setor Afetivo-Relacional (A-R) ela adquiriu nova postura de
enfrentamento diante das dificuldades familiares, profissionais e sociais. A
passividade perdia a força diante cada atitude que tomava. Ia se aliviando
paulatinamente na medida em que resolvia os conflitos ao invés de ignorá-los. Passou
de “pouquíssimo adequada”, onde há excessivo predomínio das pulsões de morte,
para “pouco adequada”, em que há instabilidade e alternação das pulsões (SIMON,
2005, p. 37). No Setor da Produtividade progrediu igualmente. Com uma adaptação
mais eficiente no Setor Afetivo-Relacional resolveu o impasse quanto ao retorno às
atividades. Decidiu retornar ao emprego superando o receio de conversar com a
patroa, passando para “adequada”. Tendo em vista este panorama, avançou do Grupo
04 (Adaptação Ineficaz Severa) para o Grupo 03 (Adaptação Ineficaz Moderada)
(SIMON, 2005).
Em se tratando dos fatores internos (constitucionais) e externos (ambientais),
a nova força egóica adquirida possibilitou que lidasse melhor com circunstâncias
ambientais hostis, garantindo soluções mais maduras e menos angustiantes. Os
efeitos positivos da PBO geraram o desejo de prosseguir com a terapia no consultório
particular do terapeuta. Fora motivada pelas mudanças importantes que constatou:
sentir-se fortalecida significava maior realização e resgate de autonomia.
REFERÊNCIAS
446
GEBARA, A. C. Como Interpretar na Psicoterapia Breve Psicodinâmica. São
Paulo: Vetor Editora, 2003.
447
39- INTERSETORIALIDADE: PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO
CONSTRUÍDO JUNTO ÀS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE E EDUCAÇÃO
448
Introdução
449
Ghringhello e Borges (2013), incluem-se esses contextos “não só como parte do
processo de avaliação, mas também como objeto de nossa intervenção, através de
devolutivas e orientações em relação à queixa apresentada” (p.127).
Conhecer a escola10 e as relações estabelecidas pela criança com as pessoas
que convivem com ela neste ambiente será fundamental em situações nas quais as
dificuldades, apresentadas como queixa, estão diretamente relacionadas, ou se
manifestam especialmente neste espaço. Assim, em muitos desses casos, lidar-se-á
com crianças que apresentam necessidades de inclusão. Neste ponto, especial
atenção deve ser dada a histórica presença “da ideologia do esforço pessoal,
responsabilizando o aluno pelo seu fracasso escolar, ou seja, ele é culpado pela sua
deficiência e dificuldade no processo de inclusão escolar” (Barros, Silva, & Costa,
2015, p. 150).
10 Considera-se “escola uma instituição cujas funções são o ensino e a formação dos alunos, sendo ao mesmo tempo um
espaço físico e um campo relacional que envolve professores, alunos, funcionários e direção” (Ghringhello, & Borges, 2013,
p. 128).
450
Objetivos
Rafael13 tem sete anos, e sua mãe Larissa chegou à clínica-escola da UNIP
com um discurso choroso e angustiado sobre o comportamento agressivo de seu filho.
Sempre que era contrariado por figuras de autoridade, Rafael ficava nervoso e
agressivo, jogava coisas e se descontrolava, reações que a mãe nomeava como
“crises”. Desde que o filho tinha três anos esses comportamentos se evidenciaram: já
na creche ele agredia e passava saliva no rosto dos colegas. Atitudes que foram
piorando ao longo dos anos até que, nos dias atuais, o menino vive uma complexa
situação escolar: tem dificuldades de cumprir regras e combinados durante as aulas,
sente-se frustrado quando as situações saem de seu controle e fica com muita raiva,
agredindo seus colegas e professores a ponto das crianças se sentirem ameaçadas
e fugirem quando ele se aproxima.
Na entrevista inicial e de anamnese, Larissa contou que Rafael teve um
problema no nascimento. O parto foi de fórceps e como consequência, a criança teve
seu crânio “afundado” na região do lobo frontal e seu braço deslocado. No entanto,
alguma gravidade estava presente porque Rafael frequentou por cinco anos a
11
F91.3 (CID 10).
12
O NAAPA é um órgão da Prefeitura de São Paulo que visa prestar assistência e apoio aos estudantes com
desafios sociais, emocionais ou culturais para a garantia do direito à escolarização.
13 Todos os nomes mencionados são fictícios, foram alterados para preservar a identidade dos pacientes. Ao
iniciar o atendimento no Centro de Psicologia Aplicada, os pacientes assinam um TCLE autorizando a utilização
de dados para estudo, pesquisa e publicações, tendo em vista o caráter formativo da instituição clínica-escola.
451
instituição Lucy Montoro14, sendo acompanhado por fisioterapeutas e fisiatras, ou
seja, iniciando a vida com uma perda de funcionalidade.
Com relação à história de vida e ao contexto familiar um dado importante está
no fato do pai de Rafael ser dependente de álcool. Segundo a mãe, o marido não
chega a ser agressivo, porém chega em casa todos os dias alcolizado e vai dormir.
Larissa chegou a contar que Rafael se preocupa muito, quando o pai chega e vai
tomar banho alcoolizado, Rafael o segue porque tem medo dele escorregar no box e
se machucar. Os avós, tanto maternos como paternos, também são alcoolistas.
Referindo-se à um longo percurso de busca por tratamentos e ajuda
especializada, Larissa apresenta o diagnóstico de TOD oferecido por um psiquiatra,
em uma das tantas passagens do menino pela UBS e pelo CAPS IJ. No entanto,
apesar de já ter frequentado tantas instituições de saúde pública e, mesmo com este
diagnóstico, existia uma descontinuidade nos tratamentos e, ao procurar pelo serviço
da clínica-escola, a mãe procurava a confirmação para o possível diagnóstico de TOD,
além de pedir por orientação para lidar com o filho em relação a todos os problemas
que o garoto tem apresentado, principalmente da escola.
Ao longo das sessões do psicodiagnóstico interventivo, entre conversas com a
mãe e com a criança, o problema de desadaptação e de episódios de fúria, pareciam
ser mais recorrentes na escola do que em casa. Ocorriam em situações específicas,
com os professores especialistas que, de acordo com o discurso de Larissa, não
tinham o preparo adequado para lidar com Rafael. A mãe revelava a expectativa de
que as pessoas que conviviam com Rafael, soubessem como se dirigir a ele de uma
forma que ele não tivesse uma reação muito forte, não ficasse contrariado ao ponto
de explodir. Talvez, a manutenção de um modelo construído durante todos os anos
de tratamento no Lucy Montoro e que se alicerçava na ideia de que o menino
precisava de cuidados especiais.
No início da avaliação psicológica, o convívio na escola estava insustentável
tanto para a criança quanto para a mãe que já não conseguia mais ter contato direto
com a coordenadora e com a diretora da escola. Na visão de Larissa, as dirigentes se
recusavam a recebê-la quando ela tentava conversar. Nas aulas específicas como
inglês, artes, tecnologia e educação física, Rafael apresentava de forma mais
14 Os centros Lucy Montoro são uma rede de reabilitação do governo do Estado de São Paulo, referenciada
internacionalmente, sendo muito concorrido pelos pacientes, os processos de triagem e admissão rigorosos (só
atendem casos de pacientes com limitação às atividades básicas diárias).
452
recorrente os comportamentos agressivos que, de acordo com a mãe, surgiam
quando os professores não conseguiam explicar direito o que precisava ser executado
pela criança e, não entendendo a proposta, o menino partia para a agressão. Frente
a este contexto, os professores acabavam deixando Rafael fazer o que queria,
evitando lidar com essa situação de agressividade. Apenas o professor generalista,
responsável pela turma, João, sabia lidar com Rafael. Nas palavras de Larissa, “este
professor senta com Rafael para explicar direito as tarefas, e não permite que ele fique
excluído para resolver a situação” (sic).
Assim, a problemática de Rafel começou a se tornar um problema de inclusão
pois, a não adaptação do garoto ao ambiente escolar era nítida e, mesmo que os
responsáveis dentro da escola quisessem ajudar, não pareciam ter recursos
estruturais, pedagógicos, de pessoal enfim, de políticas públicas para uma inclusão
eficiente. Uma fala da mãe que traduz esse contexto, ocorreu em um dos
atendimentos quando contou, com a voz embargada, que a diretora e a coordenadora
sempre falam para ela que seu filho “surta", termo que a deixa muito magoada pois,
na sua percepção, "quem surta é louco, e meu filho não é louco” (sic).
Nas entrevistas iniciais, Larissa dizia que a escola estava cobrando o
diagnóstico do menino, pois outras crianças já haviam apresentado problemas de
comportamento que foram resolvidos. Por não compreenderem a dificuldade para a
obtenção de um diagnóstico mais definido e para o desenvolvimento de um
tratamento, no entendimento de Larissa, a escola a acusou de negligente,
denunciando-a ao Conselho Tutelar. Ao relatar esse fato, Larissa chorava muito,
demonstrando muita mágoa e uma grande angústia por temer perder a guarda do
filho. Durante as entrevistas devolutivas, como equipe terapêutica (supervisor de
estágio e estagiários) foram oferecidas várias orientações no sentido de mobilizar
Larissa a buscar soluções mais assertivas, que pudessem resolver a situação
conflitiva que havia se estabelecido na relação com a escola.
No desenrolar do processo de psicodiagnóstico, os problemas com a escola
pareciam aumentar de forma exponencial. Larissa buscou apoio, nas sessões de
devolutiva parcial, para contar que Rafael teve novas crises na escola e que a
instituição de ensino chamou o Samu para contê-lo, sem avisá-la. Surgia novamente
a fantasia de que poderia, por responsabilidade da escola, perder o filho. Assim, uma
guerra acaba sendo declarada; Larissa decide denunciar a escola para a Delegacia
de Ensino.
453
Paralelamente, logo após a entrevista inicial, Rafael foi encaminhado para o
CAPS IJ sendo solicitada uma avaliação multidisciplinar e, se necessário, posterior
acompanhamento. A vaga foi concedida e o menino passou a frequentar as atividades
do CAPS IJ e raramente falta. Foi feita uma visita para construir uma parceria com o
trabalho que vinha sendo desenvolvido pelos profissionais do CAPS IJ e para articular
um diagnóstico que integrasse os múltiplos aspectos da vida de Rafael, seguindo os
pressupostos do psicodiagnóstico interventivo. Outra finalidade era observar a forma
de estar do menino no CAPS IJ.
Durante a visita, percebeu-se que Rafael estava extremamente concentrado na
atividade que foi proposta, fazia tudo caprichosamente e esperava, pacientemente,
quando pedia algo a um dos profissionais. Após a observação do grupo, a equipe se
reuniu com os profissionais do CAPS IJ, que informaram que nada do que era relatado
na escola acontecia neste espaço, o que reforçava a ideia de que algo poderia estar
acontecendo, fundamentalmente, na escola. A terapeuta ocupacional já tinha tido
alguns encontros com a orientadora da escola e a sua sensação era de que existia
por parte do ambiente escolar um discurso um pouco agressivo e estigmatizado sobre
o menino.
No CAPS IJ Rafael teve apenas um momento mais delicado, chegou para o
grupo proposto em seu projeto terapêutico singular, grupo que tem uma proposta
direcionada, e pediu para brincar com os intrumentos musicais dispostos no espaço,
atividade que estava fora do previsto. Foi orientado que seria importante aguardar o
fim do grupo para poder brincar com os instrumentos. Rafael deixou clara sua
insatisfação, ainda assim conseguiu sentar-se à mesa com a mãe e produzir um
trabalho gráfico sobre o Setembro Amarelo, tema de abordagem delicada e que tende
a mobilizar os envolvidos na discussão.
Uma das etapas da atividade era colar sua produção em uma folha de papael
craft junto aos demais e deixar exposto dentro do CAPS IJ, nesse momento Rafael,
ainda incomodado, colou seu trabalho e pediu novamente para brincar com os
instrumentos, a orientação foi retomada e enfatizou-se que ele iria brincar, mas que
precisaria esperar o final do grupo, junto aos demais, para assim ter seu pedido
atendido.
Rafael acresce no incômodo e passa a se colocar de maneira indisponível,
senta no chão e repete diversas vezes que gostaria de brincar com os instrumentos
musicais, dinâmica que é recorrente em sua vida, principalmente na escola, e tende a
454
ser o início de uma desorganização importante que culmina em comportamentos
agressivos. A abordagem nessa situação foi acolher o incômodo do garoto, e construir
que ele tinha condições de aguardar o momento oportuno para brincar, ainda que
precisasse se irritar e expressar sua irritação daquela maneira, tudo ficaria bem, e que
a equipe estava ali para apoiá-lo.
Rafael se mateve sentado no chão e em silêncio até o final do grupo, sempre
com um terapeuta próximo e sua mãe alternando entre a atividade do grupo e os
cuidados do filho. Esse episódio se mostrou importante para secompreender o
caminho que a angústia de Rafael faz, que ele realmente sofre quando toma contato
com uma impossibilidade, e quando é validado nessa angústia suas possibilidades de
se apropriar da experiência e extrair dela uma outra maneira de vivê-la são
significativas.
Realizou-se a visita à escola e a equipe foi recepcionada pela coordenadora e
outros colaboradores administrativos. Para a reunião foram chamados todos os
professores que tinham contato com o menino para que contassem um pouco sobre
o que ocorria com Rafael. Estavam, também, presentes duas consultoras do NAAPA
(Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem), que integram os
acompanhamentos oferecidos a Rafael. No total, haviam 30 professores aguardando.
Cada um relatou uma passagem difícil e desafiante que se deu com o garoto. Todos
os professores pareceram bem preocupados e engajados na busca por uma solução.
Nas crises, Rafael parece perder totalmente o controle, arremessa objetos e parte
para dar socos e “voadoras” nos colegas e professores. Recentemente jogou uma
mesa escada abaixo e machucou uma professora. Houve outros relatos graves como
uma menina que foi transferida de escola também por causa de Rafael. Muitas
crianças são machucadas pelo menino e as mães dessas crianças estão começando
a ficar muito incomodadas, inclusive, começaram a se unir para fazer um abaixo-
assinado para o garoto ser expluso da escola. Quando Rafael tem crises, as crianças
ficam apavoradas, professores fecham as portas das salas de aula com a intenção de
proteger seu grupo de alunos.
Percebeu-se, por parte dos profissionais da escola, em conjunto com a equipe
multidisciplinar que acompanha o menino, uma grande preocupação e disponibilidade.
A coordenadora contou que já tentaram de tudo o que foi solicitado pelo CAPS IJ e
pelo NAAPA, como fazer acordos antes dos eventos acontecerem, dar a ele a
responsabilidade de ser auxiliar dos professores, conversar com ele, explicar, criar
455
laços, e outras tentativas, mas Rafael não responde bem e as crises de ira e de
descontrole continuam.
Discussão
Na conclusão do psicodiagnóstico compreendeu-se que Rafael lida o tempo
todo com uma fantasia de fracasso, de incompetência provinda, possivelmente, da
situação inicial de vida, desde uma espécie de “excepcionalidade”. Do ponto de vista
cognitivo, a criança apresenta recursos preservados, ou seja, o esmagamento
craniano, no momento do nascimento, não trouxe sequelas físicas. Mesmo assim,
toda vez o menino vê sua competência colocada em questão, algo que ocorre
principalmente no contexto escolar, é lançado em uma angústia – sofrimento,
colocando-se novamente na condição de não funcionalidade. Ao longo do processo,
percebe-se que a agressividade e a violência se colocam como a forma de Rafael
fazer uma afirmação de si, ou seja, de estabelecer-se como pessoa.
Junto a essa situação, encontra-se um contexto transgeracional, marcado pela
dependência do álcool que revela uma situação de fraturas do ethos, por um mundo
contemporâneo que impede, muitas vezes, o estabelecimento do ser (Safra, 2004).
Assim, se poderia dizer que “a droga seria um meio de suturar falhas no ethos
humano, ali onde não há presença do Outro há um objeto químico em um lugar
simbólico” (Fantini, 2006, p.25). Frente a este contexto, no qual o álcool e / ou as
drogas fazem parte da vida familiar, Fantini (2006) pôde compreender que: “a
agressividade ou até a violência, podem se desenvolver a partir de um anseio por
destruir tudo que pareça hipócrita no campo social, sendo essa a única possibilidade
de existência” (p. 177).
Da mesma forma, esse sofrimento, sem lugar de acolhimento no campo social,
sem entorno, procura ser resolvido ou melhor, destinado pela mãe por meio de uma
longa peregrinação pelas instituições públicas de saúde e de educação. De certa
forma, ela também faz uma afirmação de si pelas denúncias e processos que vai
movendo. Uma conduta que não oferece uma ajuda efetiva para Rafael, mas parece,
também, ser a forma encontrada por Larissa para ter alguma potência, alguma
competência. Une-se a esse quadro, o fato de que:
456
problemas, não sabem como agir. Encarando as dificuldades,
tentando explicar o aparecimento da doença, essas pessoas
mergulham na turbulência de suas dúvidas e conflitos” (Melman, 2001,
p. 19-20).
Paralelamente, vê-se o desamparo das instituições. Por mais que possam fazer
algo, inclusive, no âmbito escolar, acoplando recursos como a equipe do NAPPA, não
conseguem levar a cabo um tratamento e um acompanhamento em função da
segmentação do SUS e da educação pública, e das limitadas condições de trabalho
nas quais os profissionais também estão inseridos. Conjuntura que acaba retornando
como um revide sobre a família, uma vez que decorre uma angústia ao não se
encontrar um efetivo atendimento para Rafael. De maneira conclusiva, percebe-se a
dificuldade das escolas da rede estadual de São Paulo, em colocar em prática as
metodologias que agreguem o desenvolvimento educacional de seus alunos frente às
situações de adoecimento mental. Pois carecem de recursos preparatórios, para
implementar medidas profiláticas e preventivas, deixando-os com as mãos atadas às
situações problemáticas.
Vemos o papel da clínica-escola e fundamentalmente uma concepção
metodológica de psicodiagnóstico, ao buscar essas múltiplas visões, para compor
uma leitura sobre o que acontece com a criança, integrando o campo intrapsíquico,
intersubjetivo, transgeracional e social. Colocando-se também como um polo de
integração e de possibilidade de articulação desses vários atores.
457
Enfim, compreender que são diversos os espaços de circulação e que cada um
pode contribuir com sua especificidade traz força para o cuidado ofertado. No caso de
Rafael a importância está em desenvolver um olhar para o sofrimento, e que mesmo
as maneiras mais aniquiladoras de o demonstrar, contêm em si o caminho para sua
elaboração, nesse sentido:
Referências
458
Barros, A. B., Silva, S.M.M., & Costa, M. P. R. (2015). Dificuldades no processo de
inclusão escolar: percepções de professores e de alunos com deficiência visual em
escolas públicas. Boletim - Academia Paulista de Psicologia, 35(88), 145-163.
Recuperado em 27 de outubro de 2019, de
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
711X2015000100010&lng=pt&tlng=pt.
Cavalcanti, P. B., Carvalho, R. N., Miranda, A.P.R. S., Medeiros, K.T., & Dantas, A.
C.da S. (2013). A intersetorialidade enquanto estratégia profissional do serviço
social na saúde. Barbaroi, (39), 192-215. Recuperado em 27 de outubro de 2019,
de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
65782013000200009&lng=pt&tlng=pt.
Safra, G. (2004). A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Ideias & Letras.
Sanches, Antonio Carlos Gonsales, & Oliveira, Márcia Aparecida Ferreira de. (2011).
Educação inclusiva e alunos com transtorno mental: um desafio
459
interdisciplinar. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 27(4), 411-
418. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722011000400004
460
40- TRANSMISSÃO PSÍQUICA E PATOLOGIA: UMA DISCUSSÃO
PSICANALÍTICA DE THIS IS US.
Tema
Introdução
461
presente trabalho buscará discutir como a transmissão psíquica, isto é, aquilo que o
grupo familiar irá transmitir para o sujeito, pode influenciar em seus sintomas.
Cabe ressaltar que o presente trabalho é um recorte de um projeto de mestrado
que busca analisar como a transmissão psíquica têm influência em como os sujeitos
da terceira geração de uma família irão construir sua conjugalidade. Para isso, iremos
tomar como estudo de caso o seriado televisivo This is Us (Fogelman, 2016), lançado
em 2016, que acompanha a vida da família Pearson ao longo dos anos. Durante o
contato com o material ficcional escolhido para análise os sintomas dos sujeitos se
evidenciaram e apareceram em suas relações atuais. Daí consideramos importante
refletir sobre os mesmos, uma vez que esses sintomas se repetem ao longo das
gerações.
Para tanto, iremos retomar alguns apontamentos da Psicanálise de Casal e
Família sobre como ocorre a transmissão psíquica para, em seguida, passarmos à
discussão desses aspectos por meio do material ficcional escolhido.
463
Desta forma, tomar o sujeito a partir dos vínculos que construiu e do grupo
familiar no qual está inserido possibilita que se compreenda sua história familiar, o
legado que recebeu, o que pode vir a contribuir para o entendimento de seus sintomas
e se eles estão presentes nas gerações anteriores. Mas, de qual modo esse legado é
passado de geração para geração? Segundo Kaës (2014), há modalidades de
transmissão que vão influenciar em como esses conteúdos serão recebidos pelos
sujeitos: se pela ordem da apropriação, de um conteúdo que pode ser apropriado, ou
se pela ordem de não ditos, de um atravessamento.
Assim, a transmissão intergeracional é aquela que ocorre entre as gerações e
refere-se aos mitos familiares, às tradições, tendo conteúdos passíveis de serem
trazidos à consciência. Por conseguinte, já diz de um processo de metabolização, em
que o sujeito se apropria e dá significado para o que lhe foi transmitido via direta (Kaës,
2014). A transmissão transgeracional, por sua vez, alude a conteúdos não elaborados,
como alguma perda, segredo, trauma, podendo pular alguma geração, não
necessariamente estando presente em todas. É algo que atravessa o sujeito e tem
influência em sua vida, desembocando conteúdos que, por não serem da ordem de
expressão, aparecem em forma de sintoma, de não ditos, sendo de difícil acesso
(Kaës, 2014).
Em vista desses conteúdos que são transmitidos e que podem se referir a
elementos não elaborados pelas gerações anteriores, Correa (2003) assinala a
relevância do sujeito tomar conhecimento desse material, podendo elaborá-lo e
transformá-lo, uma vez que a transmissão psíquica é um processo que empreende a
todo momento um trabalho de elaboração e de modificação. É que o sujeito, embora
receba esses conteúdos, não é passivo nesse processo, conforme Kaës (2001) e
Granjon (2000), já que é herdeiro desses conteúdos, tendo a possibilidade de, como
Correa (2003) menciona, se apropriar do que recebeu, elaborá-lo e dar outro
significado para eles.
Isso posto, e levando em consideração as elucidações dos autores
mencionados acima, depreendemos que ao nascer, o sujeito vem a ocupar um lugar
previamente designado a ele e a participar de alianças inconscientes anteriormente
estabelecidas pelo seu grupo familiar, recebendo conteúdo ou sendo atravessado por
eles quando não puderam ser elaborados e transformados pelas gerações anteriores.
A herança psíquica funcionaria, assim, enquanto um lugar que o sujeito é chamado a
ocupar dentro do cenário familiar no qual está inserido, podendo ou não elaborar esse
464
lugar, transformá-lo e lhe dar um novo sentido, como mostra Kaës (2001). Porém,
quando não há essa possibilidade, o sujeito se torna parte de uma trama inconsciente
perpassada por não ditos, pactuando alianças inconscientes que o ajude, assim como
os outros sujeitos que dela fazem parte, a usufruírem de alguma defesa para tamponar
esse algo que não pode vir à tona (Kaës, 2014).
Nesses casos, a aliança inconsciente estabelecida no grupo familiar pode
configurar uma aliança defensiva, como elucida Kaës (2014), funcionando como um
pacto denegativo, o qual é instituído para assegurar as defesas que os indivíduos
necessitam quando iniciam, configuram ou almejam sustentar algum relacionamento
(Kaës, 2014). Desta forma, Kaës (2014) conclui que este pacto opera um papel
metadefensivo para aqueles que fazem parte dele, sendo acordado enquanto uma
maneira de solucionar alguns conflitos psíquicos e que permeiam os aspectos da
relação empreendida pelos sujeitos que nela estão.
Para que haja um comprometimento nesse acordo e se empreenda um trabalho
contínuo no mesmo, cada sujeito deve executar de maneira assimétrica ou simétrica
algum mecanismo de negação, repressão, desaprovação, entre outros, na relação e
em cada um dos membros que a compõe (Kaës, 2014). Para tanto, Kaës (2014)
compreende que é imprescindível que haja a participação de um outro ou outros, pois
não se realiza aliança sozinho, uma vez que é preciso que um outro acredite junto
com o sujeito ou que pelo menos finja acreditar para que ambos se beneficiem de
alguma forma. Esse acreditar em conjunto resguarda os sujeitos de se decepcionarem
e da perda daquilo que elegeram como objeto para acreditar fielmente (Kaës, 2014).
Contudo, quando do risco dessa crença decair ou da hostilidade que o sujeito
pode sentir caso empreenda outra forma de ver a realidade, a angústia toma conta
(Kaës, 2014). É que o pacto denegativo, justamente por funcionar enquanto um
acordo daquilo que não se quer saber, se há chances de se saber, os envolvidos se
sentiriam ameaçados, se empenhando para continuar a recobrir aquilo com o que não
querem ter contato.
Assim sendo, esses pactos estabelecidos inconscientemente entre os
membros do grupo familiar funcionam como uma forma desse grupo lidar com algum
conteúdo, e quando do risco desses pactos decaírem diante de alguma situação,
podem se evidenciar, por exemplo, por meio de sintomas, que embora venham a
aparecer em um sujeito, podem dizer de toda a dinâmica daquele grupo familiar e do
lugar que esse sujeito foi chamado a ocupar no grupo. Assim, os sintomas de algum
465
membro da família podem ser uma explicitação de alguns impasses e repetições que
compõem o grupo familiar no qual se subjetivou. Nesses casos, é como se esse
sujeito, em dado momento de sua vida, percebesse que está fazendo algo que o
remete àquilo que seus pais, avôs também fizeram durante suas vidas ou que
desejaram fazer, inclusive, tendo sintomas similares. Por conseguinte, se pensarmos
no sujeito enquanto constituído em um grupo e que se subjetiva nele por meio do
vínculo com os outros membros que dele fazem parte, podemos entender algumas de
suas patologias.
Tais aspectos podem ser observados na família Pearson, em que os sujeitos
da geração atual têm cada qual seu sintomas, os quais, se observados por essa ótica,
se referem não apenas à eles, mas a todo o grupo familiar e aos pactos que foram
estabelecidos entre eles inconscientemente. Desta forma, escolhemos um desses
sintomas, mais especificamente o alcoolismo, apresentado por um desses sujeitos,
em busca de olhar para além do sujeito que o apresenta.
Kevin Pearson, já adulto, com 38 anos, têm dificuldade em sua carreira de ator
ao se questionar se é bom o bastante para cada novo papel que se propõe interpretar,
o que o leva a duvidar de si mesmo e trocar várias vezes de produções, passando
pela TV, pelo teatro e pelo cinema. Quando se aproxima de atingir o auge nessas
produções, é como se desse um jeito de “estragar tudo” por não saber lidar com a
situação e não se sentir bom o bastante.
Esse sentimento de não ser bom o suficiente para algo o acompanha desde a
infância, quando tinha que dividir as atenções de seus pais com seus outros dois
irmãos: Kate, sua irmã gêmea, e Randall, seu irmão por adoção. Como Kate tinha
problemas com peso e seu pai, Jack, tentava confortá-la e compensar seu excesso
de peso, enquanto Rebecca voltava suas atenções para Randall para que ele não se
sentisse excluído por ser negro e adotado. Deste modo, Kevin cresceu tentando
chamar a atenção dos pais, sentindo que suas coisas pareciam menos importantes
para eles, duvidando de si mesmo em tudo o que fazia.
Vale ressaltar que tanto Kevin, como os irmãos configuram o “The big three”
pelos pais, tendo, assim, sido colocados em lugares: Kevin foi colocado como número
1, por ter sido o primeiro a nascer, o primeiro a andar e considerado como aquele que
466
conseguiria o que quisesse e que estaria encaminhado na vida, enquanto Kate foi
colocada como número 2 e Randall como número 3.
No presente, nesses momentos em que duvida de si mesmo ou que alguma
situação o remete a essas questões à algum acontecimento do passado, como a
morte de seu pai quando tinha 16 anos ou de quando perdeu a chance de conseguir
uma bolsa de atleta na Universidade por ter se acidentado durante um jogo de
futebol, Kevin recorre à bebida como uma válvula de escape, cedendo ao vício de
maneira a estragar novos papéis e relações. Kevin também bebe quando precisa lidar
com alguma questão e não há ninguém para auxiliá-lo, como por exemplo, quando
teve que decidir se deveria continuar em um seriado de televisão ou se mudar para
outra cidade e se arriscar em uma peça de teatro.
Kevin apresenta as questões que autores como Bauman (2001), Birman (2007)
e Cypel (2016) tem observado nos sujeitos contemporâneos acerca de uma ausência
de referência e insegurança frente ao que seguir, e do consumo e uso de alguma
substância para lidar com isso e tamponar algum tipo de falta.
Entretanto, se nos atentarmos à história da família Pearson, percebe-se que o
uso do álcool é recorrente na família e que atravessa as gerações. Tanto o avô paterno
de Kevin, como seu Tio Nick e seu próprio pai, Jack, recorreram à bebida em algum
momento de suas vidas. O pai de Jack bebia a ponto de ser abusivo com sua esposa
e com os filhos, comportamento este que Jack tentava contornar, ajudando a mãe e
ao irmão. Contudo, o próprio Jack começou a beber para lidar com o que aconteceu
em seu passado durante a Guerra, o que se tornou posteriormente um vício que quase
acabou com seu casamento em duas ocasiões. Seu tio Nick, ao ter se isolado depois
da Guerra do Vietnã em que ele e Jack participaram, também usa a bebida como um
refúgio para lidar com o que aconteceu durante esse período.
Tanto Nick como Jack demonstram recorrerem à bebida para lidarem com
aquilo que não conseguem falar, como se não tivessem com quem dividir o que
vivenciaram durante a Guerra. É como se beber fosse uma tentativa de procurar um
amparo para lidarem com suas angústias.
Como mencionado acima, Kevin também recorre ao álcool quando não sabe
lidar com as várias situações de sua vida e com o luto pela morte de seu pai. Kevin
passa a sensação de ter uma vida vazia, apesar de ser um artista, com dinheiro, fama
e várias mulheres interessadas nele. Mas é como se algo faltasse, algo que ele parece
buscar desde criança, mas que ainda não conseguiu encontrar. Podemos perceber
467
essa tentativa quando ele tenta retomar o relacionamento com sua ex-esposa ou se
aproximar de seu irmão adotado ou quando tenta morar com a mãe e o padrasto.
Levando em conta os apontamentos de Kaës (2001, 2011, 2014) sobre os
lugares que o indivíduo é chamado a ocupar dentro do grupo familiar, pode-se pensar
sobre o significado de ocupar o lugar de número 1, daquele que seria o sucesso da
família para Kevin. Ocupar o lugar de número 1 pareceu significar para seus pais que
Kevin poderia estar por conta própria enquanto eles estavam voltados para os
problemas dos outros dois filhos. Em algumas cenas, como quando ele e a ex-esposa
terminam outra vez, ela fica surpresa ao perceber que ele está sofrendo, dizendo que
sempre pensou que ele estivesse bem, o que também foi dito por seus pais em
algumas cenas.
Depreende-se que esse lugar demandou que Kevin sempre parecesse bem,
que realizasse seus desejos, que fosse um filho sem problemas para não ser mais
uma preocupação em meio às demandas dos outros dois filhos para Rebecca e Jack.
Pode-se notar, então, a dificuldade de Kevin em se abrir, de se mostrar
vulnerável ao outro, de compartilhar seu sofrimento nesse entorno familiar e em suas
demais relações. Porém, essa dificuldade em se abrir também acontecia com seu pai,
uma vez que ele jamais contou para Rebecca e para os filhos tudo o que aconteceu
com ele durante seu período no Vietnã. Assim sendo, depreende-se que a família de
Kevin é permeada pelo não compartilhamento de conteúdos individuais, pelo menos
não pela ordem da fala, o que nos remete aos pactos defensivos mencionados por
Kaës (2014) em que alguns conteúdos não podem vir à tona e em que os sujeitos
tentam obter uma defesa para lidar com esses conteúdos.
Isso também pode ser visto nos demais membros da família, como sua mãe e
seus irmãos, uma vez que eles também têm dificuldade para falar sobre a morte de
Jack, de compartilharem entre si o sofrimento que esse acontecimento causou para
cada um, Jack tendo sido colocado como aquele a ser lembrado como um bom
homem, um bom pai. Esse não compartilhamento das questões individuais e
familiares se apresenta similarmente nas relações estabelecidas por esses sujeitos,
como se os parceiros escolhidos tivessem dificuldade de entrarem nessas questões,
de fazerem parte desse grupo familiar.
468
Conclusões
Referências
Berenstein, I. (2011). Do ser ao fazer: curso sobre vincularidade. São Paulo: Via
Lehera.
Fogelman, D. (Criador), & Fogelman, D, Rosenthal, J., Todd, D., Olin, K., Gogolak, C.,
Requa, J., Ficarra, G., Aptaker, I., & Berger, E. (Produtores). (2016). This is Us
[DVD]. Estados Unidos: NBC.
469
Kaës, R. (2011). Um singular plural: a psicanálise à prova do grupo (L. P. Roaunet,
Trad.). São Paulo: Loyola.
Kaës, R. (2014). As alianças inconscientes (J. L. Cazarotto, Trad.). São Paulo: Ideias
& Letras.
470
41- PSICODINÂMICA FAMILIAR E OBESIDADE EM UM CASO DE CONVERSÃO
1 INTRODUÇÃO
471
vista como uma epidemia e um dos maiores problemas de saúde pública (Kalra et al,
2012).
O tema é alvo de preocupação entre os profissionais da saúde, principalmente
pelas comorbidades que lhe são associadas (Pulgarón, 2013). No que se refere à
saúde mental, embora o excesso de peso não implique necessariamente na vivência
de conflitos psicológicos, o que justifica não ser considerada uma psicopatologia como
os Transtornos Alimentares, existem relatos na literatura de que a Obesidade se
encontra tanto na origem de sofrimentos psicológicos, quanto de que são estes
últimos que colaboram com o surgimento da Obesidade (Kalra et al., 2012).
O sofrimento psicológico desencadeado pela Obesidade não pode ser
considerado apenas como consequência da patologia por si só, mas também pelas
representações sociais atribuídas à Obesidade. Na sociedade ocidental, por exemplo,
observa-se que o aumento da preocupação com a aparência, juntamente com a
valorização do corpo magro, traz como consequência o preconceito e a discriminação
contra pessoas obesas (Sousa, 2008).
Os estudos científicos sobre a Obesidade têm se concentrado principalmente
nos fatores biológicos e socioculturais promotores e mantenedores desse quadro em
detrimento dos aspectos psicológicos. Dessa forma, as propostas de tratamento
centram-se em estratégias que visam mudanças comportamentais (Mishima &
Barbieri, 2009).
Dentre as dificuldades enfrentadas nas famílias de indivíduos obesos, segundo
Latzer e Stein (2013), está a pouca percepção dos pais quanto ao excesso de peso
do filho. Os pais tendem a se preocupar mais com o baixo peso do que com o
sobrepeso.
Golan, Weizman, Apter e Fainaru (1998) verificaram que pais e mães obesos
são mais rígidos quanto aos hábitos alimentares e críticos diante do ganho de peso
do filho. Além disso, tendem a subestimar as dificuldades enfrentadas pelos filhos na
tentativa de mudarem hábitos alimentares inadequados.
Hughes, O’Connor e Power (2008) verificaram que tanto a rigidez e o
autoritarismo dos pais, como o excesso de permissividade aumentam as chances de
o filho apresentar sobrepeso e Obesidade. Latzer e Stein (2013) acrescentam que a
despreocupação, bem como a preocupação exagerada também pode favorecer o alto
IMC da criança. Agras e Mascola (2005) relatam que a presença de mães
superprotetoras e de pais distantes afetivamente é um padrão familiar observado com
472
frequência nos lares de crianças obesas. A superproteção pode despertar na criança
ansiedade de separação dos pais sempre que uma situação de stress se apresenta.
Nesses momentos, essas mães culminam na utilização da comida como um
apaziguador.
Henriques et al. (2015), a partir de entrevistas com mães de crianças obesas,
apontaram para as dificuldades de separação dessas mães em relação aos seus
filhos, bem como as dificuldades dos pais de se colocarem como figuras de interdição.
As autoras consideraram que quando a mãe deposita suas próprias expectativas no
filho, com prejuízos no reconhecimento das individualidades dele, em resposta, o
comer compulsivo pode surgir como uma tentativa do filho em atender às expectativas
maternas, como se tivesse se apropriando daquele alimento, mas sem perceber sua
real necessidade.
Mishima e Barbieri (2009) destacam que, caso o ambiente não se mostre
suficientemente bom, o brincar infantil, ao invés de trazer uma sensação prazerosa,
pode ser uma alternativa de controle das angústias. A brincadeira, da mesma forma
que a alimentação, pode se tornar compulsiva, repetitiva ou visar o prazer exagerado.
2 OBJETIVO E JUSTIFICATIVA
A melhor compreensão das famílias de indivíduos obesos é fundamental para
que elas sejam adequadamente inseridas no tratamento da Obesidade, bem como
para que seja oferecida uma maior atenção ao sofrimento psicológico de todos os
envolvidos. Apesar do aumento da preocupação científica com a investigação das
relações entre família e obesidade, a maioria dos estudos existentes continua focando
na compreensão de aspectos biológicos e hábitos alimentares dessas famílias. Dessa
forma, são escassos os estudos que investigam o funcionamento psicodinâmico
familiar e o quanto ele influencia no desenvolvimento e manutenção da obesidade.
A partir dessas considerações, o presente estudo objetiva investigar o
funcionamento psicodinâmico e características de personalidade do pai, mãe e filha
que apresenta Obesidade grau II. Trata-se de um estudo de caso, inserido dentro de
uma pesquisa maior, que visa avaliar famílias de mulheres com Obesidade, famílias
de mulheres com Transtornos Alimentares e de mulheres que não tenham nenhum
desses diagnósticos.
473
2 MÉTODO
4 RESULTADOS
A família Araújo era composta pelo pai, mãe e três filhos. A filha participante do
presente estudo era a filha mais velha do casal, Ana (25 anos). Havia recebido
diagnóstico de Obesidade grau II e estava iniciando tratamento para a Obesidade.
Disse que sempre sofreu com excesso de peso, todavia, os problemas se
intensificaram logo no início da adolescência, quando começou a sofrer com dores no
joelho. Os três participantes associaram o ganho de peso da filha às dificuldades
ortopédicas.
Ana já havia realizado duas cirurgias por conta de suas dores, bem como se
submetido a diferentes tratamentos medicamentosos. Na ocasião da coleta,
especialistas haviam descartado qualquer patologia ortopédica e diagnosticaram
Transtorno de Sintomas Somáticos, além de encaminharem para o tratamento da
Obesidade, acreditando que a perda de peso poderia colaborar com o alívio da dor.
Ana estava afastada do trabalho, permanecia a maior parte do tempo no
ambiente doméstico e consultório médicos, nunca havia tido relacionamentos
amorosos. Além das dores no joelho, queixava-se também de alergias de variados
474
alimentos e produtos, mas nunca havia investigado suas causas. Sua mãe a
acompanhava na maioria das consultas e seu pai auxiliava no transporte.
No que se refere à organização do pensamento, os participantes da família
Araújo apresentaram bom potencial criativo, porém demonstraram parcial
aproveitamento dos seus recursos. Eles demonstraram buscar um intenso controle
racional sobre os afetos, com a mãe obtendo maior sucesso. Pai e filha expressaram
melhor seus pensamentos individuais e criativos, porém evidenciaram maior
afastamento do pensamento coletivo. Apesar das tentativas de racionalização, os três
evidenciaram prejuízos no controle lógico em momentos de maior mobilização afetiva.
No que se refere aos relacionamentos, foi possível perceber uma família
marcada pelo distanciamento afetivo, embora os três tenham frisado a existência de
uma aparente “união” familiar e de um “bom” relacionamento entre os membros. O
sentimento de insatisfação em relação ao suprimento das necessidades afetivas
permeou a produção do pai, da mãe e da filha. Os desejos pulsionais, com frequência,
são percebidos como ameaças ao self, o que faz surgir a necessidade do controle
excessivo. A natureza desses desejos, sentidos como ameaçadores, varia entre os
participantes.
Mãe e filha evidenciaram intensa repressão dos seus desejos de natureza
sexual, o que sugere dificuldades na elaboração dos conflitos edípicos. Por sua vez,
o pai evidenciou sentimento de desamparo e busca de proteção, o que revela falta de
suporte para o alcance das vivências edípicas. Mãe e filha sinalizaram medo de
castração, enquanto o pai expressou o temor de rejeição e abandono.
No caso da filha, os afestos sofrem o destino da conversão, por meio da dor
que a impede de alcançar a autonomia da vida adulta. Sintomas conversivos (dor e
alergia) lhe ocasionam o ganho secundário de permanecer na infância e numa posição
de dependência da mãe. Ocorre, nesse contexto, a regressão da libido genital para a
oral, com os prazeres do contato com a mãe concentrando-se nessa última esfera, o
que pode responder pelo sintoma da Obesidade. O insucesso do controle racional
sobre os afetos é passível de conduzir a episódios de comer compulsivo.
Já Altamir evidenciou oscilar entre idealizações e a percepção da sua
fragilidade. Ele busca evitar mostrar ao outro (e a si mesmo) que dele necessita, sob
a capa de uma autossuficiência marcante. Por conta disso mostra-se rígido e exigente
com os demais, mas sobretudo consigo mesmo. Quando não consegue atingir suas
metas rigorosas, percebe-se uma intensa autodepreciação, e, consequentemente,
475
temor de que a exposição de si causaria rejeição e desprezo. Assim, para se proteger
das angústias suscitadas pelo próprio desamparo, recorre à defesa do falso self e
estabelece esse tipo de funcionamento.
No discurso de Abigail, o exercício da maternidade aparece como principal
justificativa para o afastamento em relação às suas próprias necessidades. A
insatisfação com o seu relacionamento conjugal se mostra latente, mas ela não
consegue expressá-la diretamente; somente aborda os seus sentimentos por
intermédio dos filhos. A partir desse funcionamento, a mãe estabelece uma relação
de dupla dependência com os filhos, principalmente com Ana. Dessa maneira, não
consegue se mostrar como um modelo de referência para que a filha desenvolva sua
identidade feminina e integre os desejos sexuais em sua personalidade.
O pai, por outro lado, demonstrou desejar a maior autonomia dos filhos, porém,
não consegue reconhecer a necessidade de bases anteriores de dependência para
que ela se torne possível. Esse funcionamento falso self exige-lhe um dispêndio
gigantesco de energia, dissimulado no rigor e rigidez para consigo e com os filhos.
Sente que faz todos os esforços que pode para oferecer aos filhos a presença parental
e os recursos materiais que ele próprio não teve, como uma via, inclusive, de superar
sua própria carência.
Ana, desde os 12 anos de idade, encontrou na sua suposta doença ortopédica
a justificativa para uma vida social e amorosa restrita, como um escudo para se
proteger do acesso aos conflitos emergidos com o surgimento da adolescência. Além
da mãe não ter conseguido se mostrar como figura de referência para que a filha
tivesse melhores condições de elaboração da inveja e do ciúme edipianos, o pai, rígido
e autoritário, parece ter dificultado a expressão dos desejos amorosos da filha em
direção a ele, e facilitado a percepção deles como algo proibido, incrementando,
assim, a angústia de castração da menina e a que reforça a necessidade da repressão
e deslocamento dos afetos até, finalmente, a descarga deles no corpo.
Destaca-se que, mesmo depois de várias conversas com os médicos sobre a
não existência de uma real patologia física em Ana, o suposto adoecimento (físico)
dela é reconhecido pelos três como a principal dificuldade da família. Os três
participantes, diante das tentativas de se afastarem das suas reais necessidades,
também se afastam dos descontentamentos relacionados ao próprio corpo. Os pais
evidenciaram boa compreensão sobre suas dimensões corporais, mas não se
aprofundaram no relato das possíveis satisfações e insatisfações relacionadas ao
476
corpo, do mesmo modo que não se aprofundaram na compreensão e no auxílio ao
modo como a filha lida e investe no seu corpo, limitando-se ao cuidado do joelho.
A filha demonstrou percepção do excesso de peso, porém tentou se apresentar
como despreocupada em relação a isso. Da mesma forma que os pais, considerou
como seu único problema as dores no joelho, mesmo tendo sido informada que elas
poderiam melhorar com o emagrecimento. O excesso de peso, assim como sua
suposta doença ortopédica, parece favorecer o afastamento das experiências afetivas
e da sua apropriação em relação ao seu corpo, como se tudo fosse acontecer quando
suas dores melhorassem.
5 DISCUSSÃO
No que se refere ao modo como os participantes percebem as funções paterna
e materna, os dados concordam com representações sociais ainda existentes na
atualidade sobre a necessidade de devoção materna e a maior aproximação da mãe
em relação aos filhos. Em contrapartida, o pai seria mais distante, reconhecido como
figura de autoridade e responsável pelo provimento financeiro da família (Perucchi &
Beirão, 2007).
Foram observados momentos nos quais a família escapa desse modelo, por
exemplo, quando falam que o pai auxilia nos afazares domésticos ou quando abordam
que ele auxilia no transporte dos filhos. Entretanto, parece que Altamir tem
dificuldades em se encontrar nesses papeis. Percebe-se seu desequilíbrio quando
sua função de provedor financeiro é prejudicada com a aposentadoria e com a sua
renda reduzida, bem como suas dificuldades em se aprofundar no cuidado dos filhos,
principalmente em participar do tratamento deles, sendo apenas o motorista.
A mãe, por sua vez, demonstrou se esquivar das próprias necessidades em
prol do cuidado dos filhos, com dificuldades, inclusive, de citar seus projetos
individuais. Da mesma forma que observou Leonidas (2016) em mães de pacientes
com transtornos alimentares, tem-se a apresentação de uma mãe que reduz a sua
feminilidade ao exercício da maternidade, com isso se esquiva da própria sexualidade
e outros aspectos da sua existência, a partir da suposta necessidade de atenção
integral aos filhos.
Por trás da busca pelo exercício de papéis construídos socialmente sobre
maternidade e paternidade, os dados revelam uma família com intensas dificuldades
em expressar e elaborar seus conteúdos afetivos. Os dados reiteram achados da
477
literatura sobre as dificuldades de acesso aos conteúdos afetivos nas famílias de
pessoas obesas, que levam os filhos a enfrentarem prejuízos na vivência da
transicionalidade e, consequentemente, no desenvolvimento da sua criatividade
(Mishima & Barbieri, 2009). Nesse sentido, pode-se inferir que a busca por modelos
estereotipados de paternidade e maternidade tornou-se como uma das estratégias de
marcarar a angústia suscitada pela insatisfação das suas necessidades afetivas.
Para Winnicott (1949/2000), o pai tem papel de relevância no processo de
amadurecimento, assumindo a função de primeiro modelo de integração, bem como
oferecendo suporte para o enfrentamento dos seus impulsos agressivos. Entretanto,
Altamir demonstrou dificuldades importantes no processo de integração dos seus
próprios conteúdos afetivos, de forma que ele também evidenciou buscar por
modelos. A perda real dos seus pais, assim como suas dificuldades de acesso a eles
quando ainda eram vivos, parecem justificar o sentimento de desamparo sentido por
Altamir.
Enquanto o pai tem na distância sua principal estratégia de busca por equilíbrio,
a mãe, por outro lado, demonstrou dificuldades em se separar dos filhos. Como dito
anteriormente, suas necessidades são confundidas com as deles. Os dados lembram
os achados de Henriques (2015) sobre as mães de pessoas obesas que, diante das
falhas na separação, depositam nos filhos suas próprias expectativas. Eles, em
resposta, comem exageradamente o alimento proveniente da mãe como tentativa de
atender às necessidades dela e, do mesmo modo, não conseguem acessar o que
realmente necessitam. Dessa forma, observou-se uma mãe com prejuízos em permitir
que os filhos caminhem rumo à indepência, como se ainda desejasse se manter no
estado de preoupação materna primária.
Nesse cenário, o pai, que se afasta, apesar do autoritarismo, apresenta
intensas dificuldades em se mostra como interditor e colaborar para que a mãe supere
esse momento de intensa dedicação aos filhos. Ela pede que ele a auxilie, mas tanto
ela não consegue dizer claramente, como ele não consegue entender. Destaca-se,
portanto, que apesar da aparente proximidade, assim como o pai, a mãe também não
consegue oferecer holding necessário para que filha busque estratégias criativas, e
não sintomáticas, para satisfazer suas necessidades.
No que se refere à obesidade, os dados apontam que as dificuldades de acesso
aos conteúdos afetivos levam os pais também a demonstrem pouco conhecimento
sobre os conflitos afetivos relacionados ao ganho de peso da filha. Apesar deles
478
também não serem obesos, como a literatura aponta sobre muitos pais de obesos, os
dados reiteram achados que revelam as dificudades dos pais em perceber o excesso
de peso dos filhos e quais atitudes estariam levando a isso (Latzer & Stein, 2013).
Na perspectiva winnicottiana, a alimentação reflete o modo como o indivíduo
busca a satisfação das suas necessidades. O fato de a família abordar a compra do
alimento como algo penoso, que traz à tona a percepção de que não podem ter o que
desejam, bem como a falta de percepção da alimentação como um momento de trocas
afetivas, revela as dificuldades deles em buscarem satisfação, o que, conforme aponta
Winnicott (1956/2000), pode colaborar com o surgimento de patologias associadas à
alimentação, como é o caso da filha, ou até mesmo com outros conflitos
experienciados pela família com o irmão mais novo.
6 CONCLUSÕES
Os participantes avaliados, e mais ainda seus familiares, evidenciaram a
vivência de intenso sofrimento emocional que parece estar contribuindo com o ganho
de peso. Nesse sentido, percebe-se que fugir da atenção às necessidades emocionais
desses pacientes pode resolver apenas parcialmente o problema, ou nem isso, já que
muitos não conseguem se quer perder peso ou aderir ao tratamento. Essas
informações apontam para a necessidade de reflexão acerca do modo como pessoas
obesas vêm sendo cuidadas pela sociedade.
As dificuldades de acesso às participantes de 18 a 25 anos faz pensar que a
família, apesar de também estar em sofrimento e colaborar com o desenvolvimento
dos sintomas, pode ser essencial para que os filhos busquem e se mantenham em
tratamento, pois quando ainda são menores e os pais são responsáveis por levá-los
foi observada uma maior procura (como acontece com as vacinas, por exemplo).
Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de valorização e incorporação da
participação desses familiares, mesmo em pacientes mais velhos.
REFERÊNCIAS
Golan, M., Weizman, A., Apter, A., & Fainaru, M. (1998). Parents as the exclusive
agents of change in the treatment of childhood obesity. The American Journal
of Clinical Nutrition, 67(1), 1130-1135.
479
Henriques, M. S. M. T. et al. (2015). O exercício da função materna em mães de filhos
obesos na perspectiva da psicanálise. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, 18(3), 461-475.
Hughes, S. O., O’Connor, T. M., & Power, T. G. (2008). Parenting and children’s eating
patterns: examining control in a broader context. International Journal of Child
and Adolescent Health, 1(1), 323-330.
Kalra, G., de Sousa, A., Sonavane, S., & Shah, N. (2012). Psychological issues in
pediatric obesity. Industrial Psychiatry Journal, 21(1), 11-17.
Latzer, Y., & Stein, D. (2013). A review of the psychological and familial perspectives
of childhood obesity. Journal of Eating Disorders, 1(1), 7.
Perucchi, J., & Beirão, A. M. (2007). Novos arranjos familiares: paternidade,
parentalidade e relações de gênero sob o olhar de mulheres chefes de família.
Psicologia Clínica, 19 (2), 57 – 69.
Pulgarón, E. R. (2013). Childhood obesity: a review of increased risk for physical and
psychological co-morbidities. Clinical Therapeutics, 35(1), A18-A32.
480
Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In: D. W. Winnicott, Textos
selecionados: Da pediatria à psicanálise. (D. Bogomoletz, trad., pp. 399-405) (2ª
ed.). Rio Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1956).
481
42- VIVENDO A TERMINALIDADE: EXPERIÊNCIA DE PACIENTES COM
CÂNCER DE CABEÇA E PESCOÇO
482
Introdução
Câncer é o nome dado a um conjunto de mais de 100 doenças que tem comum
o crescimento desordenado, ou seja, maligno, de células que invadem os tecidos e
órgãos, podendo espalhar-se para outras regiões do corpo, originando metástases.
Por sua vez, os cânceres de cabeça e pescoço (CCP) afetam as seguintes regiões
anatômicas: lábio, cavidade bucal, orofaringe, parede posterior, parede superior
(inferior do palato mole e úvula); nasofaringe (parede póstero-superior, desde o nível
da junção do palato duro com o palato mole até a base do crânio); parede lateral;
parede inferior do seio piriforme, parede posterior da faringe (superglote, epiglote,
supra-hióidea, preda ariepiglótica, face laríngea, aritecnóide, epiglote infra-hióidea,
bandas ventriculares); glote (cordas vocais, comissura anterior, comissura posterior);
subglote, seios maxilares, cavidade nasal e seios etmoidais, glândulas salivares e
glândula tireóide (Inca, 2018).
Kowalski (2014) afirma que cerca de 70% dos casos de CCP são
diagnosticados em estadio avançado, sendo estes referentes ao estadio III e IV,
comprometendo as chances de cura e causando alto impacto na vida dos pacientes,
sendo que pacientes em estadio III e IV receberão terapêuticas de tratamento, não
necessariamente curativas.
No caso de diagnósticos avançados em estadio III e IV de CCP, a experiência
da possibilidade da morte muitas vezes é iminente, sendo importante reconhecer que
há limites do ponto de vista da cura, uma vez que se trata de pacientes com baixas
ou nenhuma possibilidade curativa. Além do processo de finitude do corpo material,
faz-se importante as considerações psicossociais sobre a deformidade facial
ocasionada pelo CCP, que aqui serão compreendidas como mortes simbólicas. O
grande desafio para equipe de saúde é tornar este processo não somente uma
questão científica e sim existencial, uma experiência pessoal, para o paciente e seus
familiares.
As contribuições de Heidegger (1995) são importantes para compreensão do
processo de adoecimento e da experiência de finitude, visto que essa funda o sujeito,
em outras palavras, o homem é desde sempre finito. O homem existe finitamente, ele
não é anterior à finitude e tampouco existe possibilidade de esta não incidir sobre ele.
Sua morte é certa e, ao mesmo tempo, indeterminada quanto à quando acontecerá
(Leite, 2011).
483
Imagina-se que morrer é uma tarefa muito difícil, no entanto esta passagem
muitas vezes não é o tempo todo recôndita ou desconhecida. O próprio paciente
costuma paulatinamente aceitar seu sofrimento e seu adoecimento, o que possibilita
a criação de novas possibilidades e recursos para enfrentá-lo. Despedir é conceder o
presente de admitir e de viver o que a vida nessa etapa impõe ao sujeito: a sua morte
(Jaramillo, 2006).
Com base no exposto, este estudo teve por objetivo compreender a vivência
da terminalidade em pacientes com câncer de cabeça e pescoço avançado inseridos
em tratamento de controle e/ou em cuidados paliativos exclusivos.
Método
Trata-se de estudo qualitativo, descritivo de caráter exploratório, desenvolvido
a partir do referencial fenomenológico. O enfoque qualitativo foi escolhido uma vez
que se pretende investigar a experiência na totalidade, compreendendo os
significados e a essência dela.
A amostra da pesquisa foi composta por cinco pacientes vinculados ao hospital
de diagnóstico e prevenção do câncer, localizado em uma cidade do interior de São
Paulo. Seguiu-se os critérios de elegibilidade para participação na pesquisa: (a)
homens ou mulheres com mais de 18 anos, diagnosticados com câncer de cabeça e
pescoço avançado, isto é, com metástase a distância ou recorrência irressecável, sem
condições de cura; (b) estar em tratamento de controle e/ou em Cuidados Paliativos
exclusivos e encontrar-se em regime ambulatorial.
A coleta de dados foi realizada individualmente, em situação face a face, em
uma sala de atendimento psicológico do ambulatório, resguardando-se os princípios
de conforto e privacidade. Para análise dos dados as entrevistas foram transcritas na
íntegra respeitando-se a sequência e a forma como foram apresentadas as falas. Em
seguida os dados foram submetidos à análise fenomenológica em categorias
temáticas. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FFCLRP-USP
(CAAE – 97989718.8.0000.5407). Coube à pesquisadora o cuidado de esclarecer
antecipadamente o objetivo do estudo e as condições de sigilo quanto à identidade de
cada participante mediante aceite e assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido para a sua realização.
484
Resultados
A amostra foi composta por cinco participantes, todos com diagnóstico de câncer de
cabeça e pescoço avançado e em Cuidados Paliativos (Tabela 1):
Cavidade nasal
Ângela 48 Casada Dois Sete meses Católica Autônoma
infiltrativo na
retina ocular
Cavidade oral
(língua,
Bebeto 52 Casado - 11 meses - Autônomo
assoalho da
boca e palato)
Língua e
João 60 Casado Dois Um ano Evangélico Vendedor
assoalho bucal
Discussão
Os conteúdos dos discursos dos pacientes foram organizados em quatro
categorias:
486
2) A experiência da dor
Uma constante no discurso dos pacientes é a vivência intensa de dores.
Segundo a International Association of the Study of Pain, a dor é experienciada como
uma realidade subjetiva sendo esta sensorial e emocional, ainda assim relacionada
com as experiências vividas pelo indivíduo e sua compreensão do sofrimento.
“A dor é o que me limita, para tudo. A morfina de quatro em quatro horas, me
deixa drogado, se eu encostar em qualquer canto eu babo e durmo, e a dor
continua [...], não desejo pra ninguém e não sei por que tenho que passar por
isso, e há tantos anos (Léo)”.
Kovács (1997) afirma que a dor não é apenas a sensação dolorosa e não está
relacionada ao tamanho da lesão ou ao dano. A dor é a única manifestação que não
tem medida direta e deve ser medicada a partir da percepção do paciente. Somando-
se as perdas físicas, sociais, psíquicas, financeiras, profissionais e sonhos, a
experiência do espectro da dor poderá levar a pessoa à sensação do não-viver. E
esse não-viver pode ser equivalente ao morrer (Kovács, 1992, p.3). A consciência
autêntica da morte é caracterizada pela “espera”, que é a antecipação de sua
possibilidade. Na morte, nada se realiza, e é por isso que se espera. Sendo uma
possibilidade inelutável e sem apelo, tornar-se livre diante dela é sentir o nada de todo
o ser.
A experiência da dor, como processo de angústia tal qual apresentado por
Heidegger, fundamenta-se no desespero com a morte e este por sua vez aparece
apenas quando se percebe que não há mais tempo para tentar outra vida. É como se
sentisse que nada se fez e que agora já não há mais tempo para realizações
(Heidegger, 1955). Tal visão do limite irrevogável faz o homem perceber a
necessidade de fazer algo. Na experiência da dor nasce a angústia da morte.
488
4) O sagrado no processo de adoecer
A forma de enfrentamento, da doença e da morte, mais utilizada pelos
participantes do estudo está diretamente relacionada à força da fé e a crença religiosa,
em essência, nas formas de expressar a espiritualidade (Tretini, Valle &
Hammerschmidt, 2004).
“Quando eu olho para todos os outros dias, sinto Deus me ajudando o tempo
todo. Não seria possível sem ele (João).”
De acordo com Kubler-Ross (2000) nos primeiros estágios o paciente não
consegue enfrentar os fatos e existe a possibilidade de revolta contra Deus. Depois
de passado esse momento de raiva é comum a tentativa de algum tipo de acordo, ou
barganha, que mude ou adie o desfecho
“Eu converso com Deus o tempo todo. Tem horas que eu peço pra ele me levar
e que seja rápido, mas às vezes eu me confundo e queria ouvir que fui curado
(Léo).”
A espiritualidade constitui expressão da identidade e do propósito da vida.
Refere-se a toda vivência capaz de produzir mudança profunda no interior do ser
humano e que o conduz a um sentimento de maior harmonia consigo mesmo,
favorecendo a integração pessoal e com outras pessoas (Giovanetti, 2005). O alívio
do sofrimento ocorre na medida em que a fé religiosa permite transformações na
perspectiva pela qual o paciente percebe a doença (Aquino, 2007).
Considerações finais
O rosto, enquanto representação da identidade e narrativa da personalidade,
quando desfigurado viceja a impressão de uma personalidade também desfigurada.
O convívio social, dos participantes é atravessado pela vergonha, o que leva à
reclusão e ao sofrimento por ela ocasionado. Nota-se, portanto, o início das perdas,
as mortes simbólicas.
Tal compreensão sugere a necessidade de falar sobre a identidade perdida ao
longo do processo, ainda assim, possibilitar não só a fala, mas o espaço para a
expressão dos sentimentos como caminho possível para a elaboração das perdas.
As narrativas da experiência do vivido trazem nas entrelinhas as perdas do
status quo e de si mesmo, que conforme Áries (1977), a pessoa percebe as perdas
que teve com a sua própria morte – em vida – e teme a morte. O corpo – ou parte dele
– se torna insuportável aos olhos e precisa ser escondido. A fala cede lugar a outras
489
formas de expressão, como falar com a mão na boca, o uso constante de óculos de
sol, não sair de casa.
Ao refletir sobre as contribuições esperadas por este estudo entende-se que
para a elaboração da finitude e as perdas no processo vivencial, neste caso com
pacientes com câncer de cabeça e pescoço, faz-se necessário profissionais que
estejam familiarizados com o tema. Perde-se o “rosto”, a aparência, a sensualidade,
a força, a sensibilidade, o convívio e ganha-se sem escolha, a dor total crônica. Pelo
viés do sofrimento foi possível observar a importância das pequenas coisas do dia a
dia, os pacientes ao longo da travessia se reconhecem como outro ser-aí-no-mundo,
percebendo ganhos e perdas.
Diante das experiências de terminalidade apresentada pelo presente estudo, é
preciso oferecer aos pacientes, familiares e equipe, um espaço de escuta ativa e
cuidado genuíno dos aspectos psíquicos constituintes dessa experiência de adoecer
e do ser-em-finitude.
É válido acrescentar que se torna imprescindível a compreensão das perdas e
mudanças relacionadas do câncer de cabeça e pescoço que norteiam ações e
pensamentos para além do adoecimento, fomentando a preservação e o respeito a
sua autonomia. Considera-se aqui que não se pode generalizar e esperar que todas
as pessoas que passem por experiências semelhante compartilhem da mesma
compreensão.
Referências
Aquino, V.V. (2007) O significado das crenças religiosas para em grupo de pacientes
oncológicos em reabilitação. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 15(1), p.
42-47. doi: 10.1590/S0104-11692007000100007.
490
Giovanetti, J. P. (2005). Psicologia e espiritualidade. Em M. M. Amatuzzi (Org.),
Psicologia e espiritualidade (pp. 129-145). São Paulo: Paulus.
Yalom, I. (2008). De frente para o sol: Como superar o terror da morte (D. L. Schiller,
Trad.). Rio de Janeiro: Agir.
Kowalski, L. P. (2014). Human papillomavirus (HPV) and the prognosis of head and
neck cancer in a geographical region with a low prevalence of HPV infection.
Cancer Causes Control. Apr;25(4):461-71. doi: 10.1007/s10552-014-0348-8.
Kübler-Ross, E. (2000). Sobre a morte e o morrer. (P. Menezes, Trad.). São Paulo:
Martins Fontes. (Original publicado em 1969).
Leite, F. (2011) O ser para a morte a partir e depois de ser e tempo. Mimeo.
Rogers, C. (1987). Um jeito de ser (X. X. Sobrenome final, Trad.). São Paulo: EPU.
491
43- SEXUALIDADE E RELACIONAMENTOS AFETIVOS NO AUTISMO
Resumo: O presente estudo teórico tem por objetivo discutir aspectos da sexualidade
no Transtorno do Espectro Autista (TEA). Para tanto, inicialmente será proposta uma
definição a respeito do que se entende por TEA e na sequência discutir-se-á
manifestações de sua sexualidade. A visão preconceituosa de que as pessoas com
autismo seriam assexuadas gradualmente tem dado lugar à percepção de que a maior
parte delas tem interesse por relacionamentos amorosos e relações sexuais com
pares, sendo comum a experiência com tais relações nessa população. A discussão
da sexualidade no TEA se faz necessária pois permite desmistificar visões
preconceituosas e normatizadoras presentes entre os discursos socialmente
produzidos acerca desse tema.
Tema
492
confirmado em pesquisas recentes, cujos achados têm apontado para o fato de que
grande parte dos indivíduos com autismo tem experiências com relacionamentos
românticos e/ou desejo de estar engajado em uma relação íntima (Dewinter et al.,
2016; Strunz et al., 2017).
Tendo em vista que ainda é incipiente a produção de conhecimento sobre como
se dão, de fato, os relacionamentos afetivos e a sexualidade das pessoas com autismo
(Dewinter et al., 2016; Strunz et al., 2017) e que até hoje perdura uma visão de que
pessoas com TEA seriam seres assexuados ou que a sexualidade seria um assunto
problemático para esses indivíduos, pelos déficits severos de comunicação e empatia
que apresentam (Dewinter et al., 2017), faz-se necessário discutir a sexualidade no
TEA, de modo a ampliar o campo de sentidos produzidos a respeito desse tema,
evitando assim um olhar que se restrinja ao discurso sobre os déficits e a uma visão
preconceituosa sobre a sexualidade de tal população.
Introdução
494
crianças com tais características eram diagnosticadas como tendo um tipo de
esquizofrenia infantil. Desde sua inclusão no DSM, tal diagnóstico já foi nomeado
como Transtorno Autista, pelo DSM III, Transtorno Invasivo do Desenvolvimento
(TGD), pelo DSM IV e, finalmente, Transtorno do Espectro Autista (TEA) em sua
versão mais recente, o DSM 5 (Kaplan, 1997; Untoiglich, 2013).
Em sua última versão, foram excluídas as diversas categorias que
compreendiam os Transtornos Globais do Desenvolvimento, presentes no DSM IV,
propondo-se um quadro mais amplo designado como Transtorno do Espectro Autista
no DSM 5. O risco de tal alargamento dos critérios diagnósticos é o de haver uma
patologização de aspectos típicos do desenvolvimento infantil, associando-os ao
quadro de autismo, o que poderia contribuir com o fenomêno, mencionado
anteriormente, de uma “epidemia” de autismo.
O DSM 5 atualmente caracteriza o TEA como um prejuízo persistente na
comunicação social recíproca e na interação social, bem como por padrões restritivos
e repetitivos de comportamento e interesses. Tais características devem estar
presentes, de acordo com os critérios, desde o início da infância, causando prejuízo
para o funcionamento diário (American Psychiatric Association, 2014). Esse manual
traz como nova proposição o uso do termo espectro para designar a diversidade e
heterogeneidade de manifestações do autismo, que variam de acordo com a
gravidade da condição autista, o nível de desenvolvimento e a idade cronológica. A
fim de descrever a sintomatologia atual de cada paciente, o novo manual traz os
especificadores de gravidade, em que cada caso pode ser classificado nas categorias
Exigindo apoio (nível 1); Exigindo apoio substancial (nível 2); e Exigindo apoio muito
substancial (nível 3). Para cada um desses níveis, há um descrição específica em
termos das dificuldades de comunicação social, por um lado, e dos comportamentos
restritivos e repetitivos, por outro, sendo que o nível de gravidade deve ser avaliado
em separado para cada um desses critérios (American Psychiatric Association, 2014).
Assim, os prejuízos na comunicação e na interação social podem variar desde
um atraso na linguagem, com redução da compreensão da fala, até a ausência total
de fala, sendo que, mesmo quando há habilidades liguísticas formais preservadas (por
exemplo, gramática e sintaxe), deve existir prejuízo no uso da fala para comunicação
social. Já os déficits na comunicação não verbal se manifestam por meio do uso
reduzido ou ausente de contato visual, gestos, expressões faciais e entonação da fala.
Também caracterizam o autismo os padrões restritivos e repetitivos de
495
comportamento, que incluem o abanar de mãos, o uso repetitivo de objetos (como
enfileirar moedas), ecolalias e adesão a rotinas rígidas, com notável resistência às
mudanças (American Psychiatric Association, 2014).
Ressalta-se que o novo termo espectro autista engloba os transtornos que
anteriormente eram denominados de autismo infantil precoce, autismo infantil,
autismo de Kanner, autismo de alto funcionamento, autismo atípico, transtorno global
do desenvolvimento sem outra especificação, transtorno desintegrativo da infância e
transtorno de Asperger (American Psychiatric Association, 2014).
Quanto ao desenvolvimento e curso do transtorno, o DSM 5 (American
Psychiatric Association, 2014) aponta que os sintomas do TEA costumam ser
reconhecidos no segundo ano de vida. Nesse período, os pais podem relatar perda
ou atraso no desenvolvimento de habilidades linguísticas ou dos comportamentos
sociais. Somente uma minoria dos indivíduos diagnosticados consegue viver e
trabalhar de forma independente na fase adulta, sendo essa minoria composta por
aqueles que possuem habilidades de linguagem e capacidades intelectuais
superiores. Muitos indivíduos, tendo dificuldades em dar conta de demandas sociais
e se organizarem quanto a questões práticas, podem desenvolver ansiedade e
depressão. Alguns adultos, mesmo conseguindo suprimir certos sintomas em público,
sofrem intimamente com os esforços que executam para manterem uma fachada
socialmente aceitável (American Psychiatric Association, 2014).
Desenvolvimento do tema
A afirmação de que “sexo não é para a maioria das pessoas autistas” (Torisky
& Torisky, 1985, p. 216, trad. nossa) é contrariada por estudos mais recentes, que
mostram grandes semelhanças entre pessoas com autismo e a população geral, no
que se refere à experiência sexual (Dewinter et al., 2015, 2016, Kellaher, 2015). Tanto
os adolescentes com T.E.A. quanto seus pares na população geral demonstraram
atitudes positivas e permissivas em relação à sexualidade. Na verdade, encontrou-se
que garotos diagnosticados com T.E.A. são até mais tolerantes em relação à
homossexualidade (Dewinter, 2015; Kellaher, 2015).
Assim, a visão preconceituosa de que as pessoas com autismo seriam
assexuadas gradualmente tem dado lugar à percepção de que a maior parte delas
496
tem interesse por relacionamentos amorosos e relações sexuais com pares, sendo
comum a experiência com tais relações nessa população (Dewinter et al., 2017;
Kellaher, 2015; Strunz et al., 2017).
Apesar disso, a sexualidade desses indivíduos ainda é um tabu entre seus
familiares, que apresentam a expectativa de que eles sejam assexuados, ou que seus
impulsos sexuais sejam controlados e domesticados, tratando-os de forma
infantilizada e percebendo-os como dependentes (Tilio, 2017).
O início das pesquisas sobre sexualidade em indivíduos com autismo data de
uma década após a inclusão do diagnóstico de autismo infantil no DSM-III, em 1980.
À época, tais publicações involucravam a noção de que indivíduos com autismo eram
inaptos, não interessados e não apropriados para receber educação sexual e
manterem relacionamentos românticos. Poucas publicações abordavam histórias de
sucesso no âmbito da sexualidade e dos relacionamentos, havendo maior ênfase aos
comportamentos sexuais inapropriados. Essas publicações iniciais, contudo, se
baseavam principalmente em relatos de pais e cuidadores, ao invés de relatos diretos
de indivíduos com TEA (Kellaher, 2015).
Nos últimos anos, finalmente foi dada voz às pessoas com autismo para
revelarem suas experiências com a sexualidade. Estudos recentes, utilizando relatos
obtidos diretamente com indivíduos com TEA, foram publicados sobre o tema,
revelando que, ao menos no que se refere às pessoas com autismo de alto
funcionamento, elas têm tanta capacidade para assumirem o comportamento sexual
quanto os denominados “neurotípicos” (indivíduos sem diagnóstico de TEA). A
utilização de relatos diretos de indivíduos com TEA nas pesquisas recentes, ao invés
dos relatos de pais e cuidadores, é em si inovadora e permitiu verificar que as
experiências de pessoas com autismo com masturbação, pornografia e relações
sexuais com parceiros, ao contrário do que se pensava anteriormente, não diferem
significativamente da população geral. Além disso, adultos com autismo não são
menos interessados em sexo do que os demais, tendo níveis semelhantes de
conhecimento da linguagem sexual e de profundidade de experiência sexual
(Kellaher, 2015).
Por outro lado, outros estudos recentes sugerem que há diferenças entre
indivíduos com TEA e neurotípicos, apontando para um conhecimento
significativamente menor, nos primeiros, sobre doenças sexualmente transmissíveis,
contracepção e reprodução. Ainda, tais estudos mostraram que indivíduos com TEA
497
obtêm tais conhecimentos mais frequentemente por meio da televisão e da internet
do que por meio de conversas com pais, professores e pares (Kellaher, 2015). Outros
estudos apontam para uma tendência entre indivíduos com TEA de apresentarem
comportamentos sexuais inapropriados (Peixoto et al., 2017).
No que se refere à forma como os pais e familiares lidam com a sexualidade
dos indivíduos com TEA, a literatura da área mostra que esse tema é tabu para as
famílias. Os pais frequentemente descrevem essa fase como sendo muito dificil e
temem que, devido à falta de habilidades sociais, seus filhos se tornem vítimas ou
autores de abusos sexuais (Peixoto et al., 2017). Os familiares frequentemente
esperam que o indíviduo com TEA seja dessexualizado ou que sua sexualidade seja
domesticada, o que acaba acentuando as dificuldades em lidar com o assunto (Tilio,
2017). Em seu estudo de caso que envolveu um familiar cuidador de um indivíduo
com TEA, Tilio (2017) verificou que a família o significava como uma eterna criança
ou dependente. O autor considera que existe uma dificuldade, nas famílias dos
acometidos por TEA, de perceber que tais indivíduos se desenvolvem biológica e
sexualmente de maneira específica, havendo resistência em aceitar que se tratam de
indivíduos com direitos, desejos e manifestações sexuais, o que é congruente com as
restrições de admitir sua plena autonomia.
Conclusão
Referências
Dewinter, J., Vermeiren, R., Vanwesenbeeck, I., Lobbestael, J., & Van Nieuwenhuizen,
C. (2015). Sexuality in adolescent boys with Autism Spectrum Disorder: self-reported
behaviours and attitudes. Journal of Autism and Developmental Disorders, 45(3), 731-
741.
Dewinter, J., De Graaf, H., & Begeer, S. (2017). Sexual orientation, gender identity and
romantic relationships in adults and adolescentes with Autism Spectrum Disorder.
Journal of Autism and Developmental Disorders, 47(9), 2927-2934. DOI:
499
10.1007/s10803-017-3199-9.
Januário, L. M., & Tafuri, M. I. (2009). O sofrimento psíquico grave e a clínica com
crianças. Revista Mal-Estar e Subjetividade, 9(2), 527-550.
Kaplan, H. I., Sadock, B. J., & Grebb, J. A. (1997). Compêndio de psiquiatria: ciências
do comportamento e psiquiatria clínica (D. Batista, Trad.) (7ª ed.). Porto Alegre, RS:
Artes Médicas.
Kellaher, D. C. (2015). Sexual behavior and autism spectrum disorders: an update and
discussion. Current Psychiatry Reports, 17(4), 562. DOI: 10.1007/s11920-015-0562-4
Menezes, L. C., & Amorim, K. S. (2015). Para além dos déficits: interação e atenção
conjunta em crianças com autismo. Psicologia em Estudo (Maringá), 20(3), 353-364.
Peixoto, C., Rondon, D. A., Cardoso, A., & Veras, A. B. (2017). High functioning autism
disorder: marital relationships and sexual offending. Jornal Brasileiro de Psiquiatria,
66(2), 116-119.
Rios, C., Ortega, F., Zorzanelli, R., & Nascimento, L.F. (2014). From invisibility to
epidemic: the narrative construction of autism in the Brazilian press. Interface:
Comunicação, Saúde, Educação, 19(53), 325-336.
Strunz, S., Shermuck, C., Ballerstein, S., Ahlers, C.G., Dziobek, I., & Roepke, S.
(2017). Romantic relationships and relationship satisfaction among adults with
Asperger syndrome and high-functioning autism. Journal of Clinical Psychology, 73(1),
113-125.
Torisky, D. & Torisky, C. (1985). Sex education and sexual awareness building for
autistic children and youth: some viewpoints and considerations. Journal of Autism and
Developmental Disorders, 15(2), 213-216.
500
44- O CORPO COMO EXPRESSÃO: DESENVOLVIMENTO INFANTIL E
DEMANDAS CLÍNICAS CONTEMPORÂNEAS
INTRODUÇÃO
O trabalho visa discutir problemáticas relativas ao desenvolvimento
emocional infantil, embasado nos conceitos de verdadeiro e falso Self de Winnicott
(1964/2011), considerando a corporalidade em um tempo em que há forte destaque
para esta questão na cena social. A teoria winnicottiana contribui para a formação de
um olhar profissional que se compromete em reduzir a lacuna entre mente e corpo,
ao indicar possibilidades de articulação entre mente e psiquessoma, corpo e
inconsciente (Winnicott, 1949/2000).
A proposição dos conceitos de verdadeiro e falso Self sustenta a perspectiva
de que o sujeito dispõe de recursos para se adaptar às exigências ambientais,
enquanto consegue manter a própria existência e unicidade. Das inevitáveis falhas de
um “ambiente perfeito”, que garante o continuar a ser da criança, seguem-se reações
às intrusões que contribuem para a formação de um Self adaptado e socializado e
outro privado. A compreensão do bebê, e posteriormente da criança que sobrevive às
501
imperfeições e intrusões, permite que a existência prossiga, na medida em que os
ambientes que a recebem se ampliam (Winnicott, 1964/2011).
A atividade mental, proveniente da flexibilidade funcional do psiquessoma,
prepara gradualmente o indivíduo a cuidar de si próprio. Quando, porém, esse
funcionamento é intenso a um nível que passa a existir por si mesmo, a psique é
“atraída” a transformar-se puramente em mente, ocorrendo um rompimento entre esta
e o soma, que provoca dissociações na criança. Tal fenômeno afeta momentos
posteriores do desenvolvimento, como nos âmbitos da expressão da criatividade, agir
espontâneo e sentir-se verdadeiro (Silva, Lima & Barbosa, 2014; Winnicott,
1949/2000).
OBJETIVO
O estudo apresenta um relato de experiência que almeja analisar, por meio de
um caso clínico atendido no Serviço de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar
(STAIF), aspectos do desenvolvimento infantil orientado pela abordagem psicanalítica
winnicottiana.
502
A paciente Lívia15, sete anos, foi inscrita no serviço pela mãe, Silvia, que trouxe
como queixa principal obesidade infantil e ansiedade elevada. A criança vive com ela,
padrasto e irmã de cinco anos. O pai biológico mora em outra cidade, para onde a
filha viaja a cada quinze dias aos finais de semana. Silvia enfatiza que esta experiência
de viver alternadamente em dois ambientes pode ser prejudicial à criança, já que
considera as visões e práticas educacionais dos diferentes ambientes conflitantes, e
se mostra convencida que este é o principal conflito que a filha vive.
A mãe manifesta insegurança quanto ao cuidado com a saúde mental e física
de Lívia, que envolve as exigências com o próprio corpo. Há, assim, preocupações
sobre bullying na escola, reeducação alimentar e saúde física em geral, pelo fato de
ela ter engordado muito nos últimos tempos.
É notável ainda um intenso sentimento de culpa de Silvia em relação aos
cuidados e exigências com a filha, que envolvem seu papel na maternagem,
separação do pai biológico, e ambiente social escolar. Os pais se separaram quando
Lívia tinha quinze dias de vida, e o padrasto entrou na vida dela um ano depois. A
mãe afirma que seu sonho era engravidar e ter uma família.
Ela também diz que Lívia é uma criança que se adapta bem às mudanças
desde quando era bebê, por ter vivido intempéries junto com ela, como a separação
do pai biológico, mudança de cidade e, mais recentemente, duas transferências de
escola. Atualmente as duas filhas estudam no mesmo colégio, onde possuem bolsa
parcial e convivem com crianças de padrão socioeconômico bastante acima do deles,
o que é relatado pela mãe como uma preocupação.
Há reconhecimento sobre os abalos emocionais decorrentes da história de vida
da menina, mas que parecem compensados por habilidades que ela desenvolveu,
como a inteligência e força, na perspectiva da mãe. No momento em que a família
busca atendimento para ela, é perceptível o movimento materno de adaptar-se às
necessidades da filha, mas há foco exacerbado na queixa da obesidade e
comportamento da criança, e pouca atenção às necessidades emocionais. Ao relatar
as dificuldades da filha, a mãe refere-se frequentemente a si própria, demonstrando
um certo nível de indiferenciação entre ela e a filha.
Ao mesmo tempo, ela exige da filha controle e adequação aos padrões que
julga importantes. Silvia diz que a menina é linda e meiga, mas desleixada. Ao sentar
15
Todos os nomes utilizados são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes.
503
para fazer as refeições, “se alimenta como a Fiona”, personagem de desenho infantil
que é uma princesa ogra. Na percepção da mãe, ela pode estar “descontando suas
frustrações” na comida, e não sabe mais o que fazer, já pensou até se haveria uma
escola de “bons modos” para ajudá-la com tais questões. É principalmente no
comportamento alimentar que Silvia manifesta estar “perdendo o controle” sobre a
educação da filha, que ela mesma caracteriza como rigorosa.
Quando conheço Lívia pela primeira vez na sessão lúdica, confirmam-se
algumas características pontuadas pela mãe anteriormente, como a inteligência e
capacidade lúdica da criança. Com relação aos conteúdos da sessão, desenrolaram-
se brincadeiras que indicavam questionamentos sobre sua origem, um interesse
grande em ciências, especialmente sobre como os animais nascem. Ao se referir ao
pai, Lívia diz o nome do padrasto e, em seguida, conta sobre um evento vivido junto
à família do pai biológico sem mencioná-lo diretamente, algo que poderia remeter à
divisão entre suas famílias, como contado pela mãe.
Lívia é bastante dedicada à escola e gosta de falar sobre seus conhecimentos.
É relevante pontuar a observação da manifestação de um falso Self que agrada
principalmente os adultos, já que ela exibe aspectos intelectuais, de fato, adultizados.
O desenvolvimento exacerbado da mente prejudica, assim, a continuidade do ser
verdadeiro, visto que a criança defende-se do mundo através do funcionamento
mental proeminente para se proteger das falhas ambientais, ainda que tal função
esteja constantemente ameaçada de colapso.
Em outro momento, durante a sessão familiar, foi possível associar elementos
anteriormente trazidos por Silvia, na entrevista, e Lívia, na sessão lúdica, com a
dinâmica da família. Estiveram presentes as duas, padrasto e irmã mais nova, filha do
atual casal. Notou-se um ambiente familiar pouco compreensivo, ainda que afetuoso.
Ambos os pais desempenharam uma postura bastante onipotente com as filhas, ao
mesmo tempo em que se esforçaram para exibir à terapeuta a capacidade de cumprir
suas funções com excelência.
Como conceituado por Winnicott (1964/2011), o contexto familiar é um
elemento essencial para o desenvolvimento saudável da criança. Notou-se, durante a
sessão familiar e decorrer do caso, uma intensa ambivalência no cuidado com a saúde
mental e física de Lívia, e uma não aceitação da personalidade e corpo da menina
(Winnicott, 1949/2000).
504
A experiência corporal é um aspecto existencial extremamente complexo nos
planos individual e social. Para a criança em desenvolvimento, ainda, deve-se
acrescentar angústias mais primitivas de fragmentação e diferenciação eu-não-eu;
que fazem da imagem e vivência corporal um reflexo de inúmeras experiências
orgânicas e psíquicas.
A hiperadaptabilidade de Lívia parece ter sua origem em um processo de
consolidação de um funcionamento falso Self. Silvia racionaliza sua postura rígida e
controladora com as filhas, além da punição física. Diz ter muito medo do
desprendimento emocional das meninas durante a adolescência e, por isso, prefere
manter, em sua visão, a infalibilidade de suas práticas educacionais maternas.
As exigências da mãe relativas ao corpo da menina refletem valores estéticos
sociais. Nesse âmbito, ainda que os padrões de beleza estejam em constante
modificação e, nos tempos atuais, em certa ampliação, as imagens conservam o
superinvestimento em um ideal de perfeição que constitui fonte de sofrimento, conflito
e dor (Fernandes, 2003).
Por ocasião da aplicação do HTP, Lívia, ao saber da natureza da atividade que
precisaria realizar, mostrou-se impaciente e resistente. Tal situação pode ter
acontecido devido a esta técnica tocar diretamente a questão da imagem corporal,
que é um ponto de conflito importante entre a criança e a mãe. Por isso, neste
momento, a relação transferencial foi caracterizada pelo desafio por parte da menina.
Ela não se opôs claramente à tarefa, mas sua produção foi empobrecida.
Ao desenhar a casa, Lívia divide a folha em três partes, explicando que faria a
parte externa na primeira, e o interior do local nas outras duas. Ela acaba por usar
apenas a primeira parte, não finaliza a ideia inicial verbalizada. A produção é pobre
de detalhes, e reflete apenas a imagem que é transmitida ao mundo, sem oferecer
espaço para um contato mais criativo e profundo com o outro.
Ao desenhar a árvore, Lívia a faz com pressa e pouco cuidado. Observa-se
pouca afetividade, que pode ter relação com repressões que ela sofre, e vivência
emocional predominantemente amparada em um falso Self. O tronco tem uma fissura
destacada, explicado por ela como uma tentativa do lenhador de cortar a árvore, mas
que não aconteceu, pois a força da natureza não permitiu e o lenhador perdeu seu
machado. Assim, a produção mostra que, a despeito das invasões sofridas, houve a
possibilidade de preservar o seu desenvolvimento, mesmo que a espontaneidade e a
criatividade precisem ser mantidas dissimuladas por uma casca protetora adaptativa.
505
No desenho da pessoa há elementos que sugerem falhas no contato com a
realidade e, novamente, dificuldades emocionais. Nos pés, a menina se apoia sobre
saltos altos, o que remete a uma sustentação frágil e vulnerável. Mais uma vez é
notável o destaque para aspectos de intelectualização, dado que a cabeça desenhada
é grande comparada ao tronco, e bastante desproporcional ao resto do desenho.
Diante dos elementos proporcionados pela avaliação realizada, pondera-se
que Lívia tem espaço na família, mas este é reduzido. Seu papel e lugar como filha
está bem estabelecido, mas talvez não possa transitar entre outras formas de ser e
sentir, elementos que novamente revelam o funcionamento falso Self predominante.
Seu Self tem insuficiente possibilidade de manifestação, o que é corroborado pela
escassa espontaneidade e criatividade.
Embora Lívia tenha força para se opor e contestar o que lhe é imposto, surgem
dificuldades de integração decorrentes de uma mente super desenvolvida e
adultizada. Ao mesmo tempo em que há tentativa de unir a “princesa”, idealizada pela
mãe, e a menina “opositora”, o ambiente não parece fornecer espaço para essas duas
existências, elementos que conduzem a prejuízos para integração psicossomática da
criança.
Lívia, durante a sessão devolutiva, conta uma história sobre um colega de
classe que perdeu a mãe, e sugere querer conversar e ajudá-lo de alguma forma, mas
não sabe exatamente como abordá-lo. Nesse sentido, Winnicott (1949/2000) observa
que o indivíduo que tem um histórico de desenvolvimento no qual a função mental é
desvinculada do soma, em geral, é extremamente eficiente em cuidar do outro, e
capaz inclusive de ser um apoio excepcional devido a seus “poderes curativos”. Ainda,
a facilidade em se identificar com aspectos ambientais pode gerar dificuldades em
entrar em contato consigo mesmo, acreditando no seu potencial criativo e singular.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reflexão acerca do relato de experiência apresentado intencionou articular
particularidades do caso com elementos do contexto social, sobretudo pelo fato das
exigências sociais relativas a um corpo ideal percorrer também o mundo infantil. A
criança em desenvolvimento está criando recursos para sobreviver no mundo como
ela de fato é, na direção do desenvolvimento de um verdadeiro Self. Demandas e
exigências sociais e familiares idealizadas são fonte de sofrimento e mal estar para
506
aquele ainda em posição de vulnerabilidade e dependência, qualidades inerentes à
infância, principalmente quando o indivíduo é pouco fortalecido emocionalmente.
Apesar da relevância adaptativa do funcionamento de um falso Self, movimento
defensivo que capacita a criança a viver e sobreviver socialmente nos ambientes
como o escolar e familiar, a capacidade criativa é prejudicada. Neste caso clínico
discutido aqui, há elementos que evidenciam que as defesas da criança têm tais
características, além de notar-se a manifestação de intenso sofrimento emocional
decorrente de sua condição.
A qualidade empobrecida do agir espontâneo e criatividade, decorrentes do
pouco espaço disponível na vida da menina para tal, guardam grande potencial de
desenvolvimento. O espaço terapêutico visa proporcionar, assim, um ambiente capaz
de acolher e potencializar as possibilidades de emergência do verdadeiro Self, em
direção ao bem estar emocional.
REFERÊNCIAS
Winnicott, D. W. (2011). O conceito de falso self (1964). Tudo começa em casa (4a
ed.). São Paulo: Martins Fontes, 53-58.
507
45- ALOPECIA: O PRECONCEITO COMO VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES
COM CÂNCER DE MAMA
Resumo: O câncer de mama é o tipo de tumor que acomete mulheres com maior
prevalência após o câncer de pele não melanoma. Tipicamente, o tratamento envolve
a quimioterapia, tratamento cujos efeitos colaterais provocam alterações físicas,
dentre as quais a queda dos cabelos pode ser entendida como uma das mais
frequentes e ameaçadoras à constituição da imagem corporal feminina. Numa
sociedade onde existe um padrão de corpo imposto por uma cultura capitalista, a
perda dos cabelos como efeito colateral da quimioterapia acarreta não somente o
drama individual, como também a vivência do preconceito, uma forma de violência
social. Este apresenta um recorte de uma pesquisa qualitativa mais ampla sobre
imaginário coletivo e imagem corporal de mulheres com câncer de mama em
tratamento quimioterápico. Especificamente sobre a vivência do preconceito, os
resultados apontam no sentido de que a alopecia induzida por medicamentos, como
um efeito colateral da quimioterapia, atua como inibidor da livre expressão corporal no
mundo. Espera-se que o conhecimento produzido possa contribuir para o
planejamento de estratégias de promoção e prevenção de saúde junto aos serviços
de reabilitação psicossocial voltados à mulher com câncer de mama, possibilitando o
desenvolvimento de políticas sociais e públicas implementadas pelo Estado que sejam
sensíveis às necessidades de cuidado psicológico.
Introdução
O câncer de mama é o tipo de tumor maligno que acomete mulheres com maior
prevalência após o câncer de pele não melanoma. Estatísticas do Instituto Nacional
do Câncer apontam que, para o ano de 2019, são estimados cerca de 59.700 novos
508
casos no Brasil (Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva [INCA],
2019).
Tipicamente, o plano terapêutico envolve procedimentos tais como a cirurgia
(radical ou conservadora) da mama acometida, quimioterapia, radioterapia e
hormonioterapia, que podem ser combinados ou não, de acordo com a indicação e
especificidades de cada caso (Peçanha, 2008; Spina, 2000). As mulheres que
enfrentam a doença, em sua maioria, têm de se submeter à quimioterapia
antineoplásica, tratamento que consiste na administração de altas doses de grupos
farmacológicos em curtos períodos (também denominados ciclos), que objetivam
destruir as células cancerígenas para evitar o desenvolvimento do tumor e sua
disseminação para o restante do organismo (Lacerda, 2001). O tratamento
quimioterápico para o câncer de mama acarreta efeitos adversos que provocam
alterações no corpo e no estado psicológico da mulher e, entre as mudanças mais
frequentes, encontra-se a alopecia ou queda dos cabelos (Vidotti, 2017; Soares,
Burille, Antonacci, Santana, & Schwartz, 2009). Os temores relacionados às
consequências dos efeitos colaterais para o câncer de mama tornam-se importantes
de serem estudados, pois constituem, inclusive um fator impeditivo para a busca de
identificação precoce do câncer e da busca precoce de tratamento (Arán, Zahar,
Delgado, Souza, Cabral, & Viegas, 1996).
A partir de uma visão blegeriana de ser humano, que compreende o homem
como um ser inseparável do seu meio social, com uma condição natural de ser
concreto e histórico, adota-se a premissa de que existência é permeada por uma
cultura não aleatória e, consequentemente, o corpo feminino, compreendido como
uma conduta humana, existe num contexto que significa e dita o padrão do que seria
o corpo ideal para cada época (José Bleger, 1963/1989).
A literatura aponta a construção do corpo feminino como uma invenção humana
influenciada pelo modo de produção capitalista, pela mídia, pela indústria da moda e
da pornografia, o que termina por impor um padrão de corpo objetificado e explorado
no mercado do consumo (Strey, 2004; Del Priore, 2004). Os cabelos femininos estão
incluídos nesse contexto e comportam uma infinidade de produtos e técnicas que os
modele (Cruz, 2015), nesse sentido, torna-se importante abordar os significados
construídos a partir do contexto histórico e social aos cabelos.
Os cabelos femininos possuem um significado socialmente construído
entrelaçado com a feminilidade, sensualidade e com a própria identidade feminina. Os
509
cabelos vistosos, remetem ao significado simbólico de erotismo, juventude, vitalidade
e sensualidade, capaz de despertar atração. Em caso contrário, os cabelos
embranquecidos remetem ao envelhecimento, à finitude e à castração (Oliveira,
2007). E todos esses significados são ameaçados diante da possibilidade da perda
dos cabelos ocasionada pela quimioterapia, o que pode ser vista como uma ameaça
à própria imagem corporal (Power & Condon, 2008).
Sobre as estratégias de enfrentamento para a queda dos cabelos, a literatura
aponta casos em que houve a preparação para a queda do cabelo antes mesmo que
ela ocorresse, com destaque para o estudo de Frith, Harcout e Fussell (2007), que
identificou essa preparação fez com que a mulher se sentisse um pouco mais no
controle da vivência do efeito colateral da quimioterapia. Ainda sobre estratégias de
enfrentamento para a alopecia, a literatura (Reis & Gradim, 2018) aponta que o
desenvolvimento de novos hábitos, tais como o uso de adornos (lenços, perucas e
chapéus) minimizam o impacto na aparência. As referidas autoras descreveram ainda,
o desenvolvimento de novas crenças, por exemplo a crença de que é um momento
transitório e crença de que é um tratamento que pode livrá-las do câncer.
O preconceito pode ser vivenciado por meio de atitudes sutis, como olhares de
curiosidade, como demonstração de atenção indesejada ou por atitudes mais
explícitas, como comentários (Silva & Silva, 2019).
O preconceito pode ser entendido como uma expressão de violência social
(Bandeira & Batista, 2002), relacionada com a discriminação e com a exclusão social,
gerando situações que se manifestam em termos de humilhação, desqualificação,
intimidação e exclusão das relações. O preconceito, segundo essa perspectiva,
contém em si um padrão normatizado do que seria o outro (moral, estético, corporal,
entre outras expressões) e pode implicar em exclusão do que não se identifica com
esse outro idealizado dominante. As referidas autoras exemplificam (p. 132) como o
preconceito nega a alteridade: “ser mulher implica se identificar com todas as
mulheres. Mas, mesmo entre as mulheres, há· heterogeneidades. (...) Cada vez mais
a diferença acaba sendo sinônimo de marginalidade, e o outro, a alteridade, torna-se
estrangeiro dentro de seu próprio meio e passa a constituir-se em uma ameaça”.
A literatura contempla estudos de abordagem quantitativa sobre imagem
corporal e câncer de mama (Connor et al., 2016; Rush et al., 2015; Lee et al., 2017).
Os estudos qualitativos existentes sobre imagem corporal relacionada ao câncer de
mama são, majoritariamente, transversais (Lago, Andrade, Nery, & Avelino, 2015;
510
Machado, Soares, & Oliveira, 2015), sendo escassos os estudos longitudinais
qualitativos. Realizou-se um estudo maior, empírico, qualitativo e longitudinal em
Psicologia, segundo uma abordagem psicanalítica winnicottiana para compreender o
imaginário coletivo de mulheres com câncer de mama em tratamento quimioterápico.
No presente artigo, de modo específico, buscamos compreender a vivência subjetiva
do preconceito relacionado à perda dos cabelos, compreendido como expressão
social de uma violência velada direcionada às mulheres que sofreram alopecia
induzida pela quimioterapia.
Objetivo
Este estudo tem por objetivo compreender a vivência subjetiva do preconceito
relacionado à perda dos cabelos, compreendido como expressão social de uma
violência velada direcionada às mulheres que sofreram alopecia induzida pela
quimioterapia.
Método
Constituiu o corpus do presente estudo, as produções de três participantes,
mulheres com idades entre 53 e 60 anos, com câncer de mama e com prescrição de
tratamento quimioterápico. Os encontros foram realizados num instituto especializado
em oncologia numa cidade do interior de São Paulo. Foram realizados três encontros
individuais, com cada participante, sendo o primeiro antes do início do tratamento
quimioterápico, o segundo aproximadamente na metade do tratamento
quimioterápico, e o terceiro, ao final do tratamento quimioterápico. Em todos os
encontros foram utilizados os instrumentos: Diário de campo, Entrevista aberta com
questão disparadora: Conte-me: como você tem vivenciado seu corpo atualmente? e
o Procedimento do Desenho-Estória com Tema - PDET (Aiello,1991). O estudo seguiu
as orientações éticas vigentes, o projeto obteve aprovação pelo Comité de Ética em
Pesquisa, as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
o diretor da instituição firmou o Termo de Aceitação da Pesquisa, os encontros foram
realizados em uma sala privativa, e os nomes fictícios foram escolhidos livremente
pelas participantes. Os encontros foram audiogravados e transcritos na íntegra. A
análise dos dados ocorreu segundo as diretrizes de Fábio Herrmann. Para captar os
campos de sentido, Herrmann recomendou a realização de três etapas: A) deixar que
surja: ir ao encontro do material com o mínimo possível de pré-concepções para poder
511
deixar-se tomar e impregnar pelo material; B) tomar em consideração; levar em conta
o que se destaca em termos de pensamentos e sentimentos e C) completar o sentido:
captar as regras inconscientes dos campos de sentido (Herrmann, 2001).
Resultados
512
Antes do início Durante a quimioterapia Ao final
Grande
importância.
Alopecia ainda é um
Significado de Grande sofrimento
grande sofrimento e
cabelo Idealizado, emocional diante da
limita o contato
É possível vinculado ao ser queda dos cabelos e da
social.
ser quem mulher e à beleza. decisão de cortar os
Mas admitem outras
sou sem Cabelo é parte do cabelos. Começam a
possibilidades do
os cabelos seu ser. Dúvidas e utilizar novos adereços:
lenços, perucas, toucas. uso do cabelo, com
medos
outro corte, outro
relacionados à
formato, outra cor.
possível queda e à
exposição social.
Discussão
Numa sociedade onde existe um padrão de corpo imposto por uma cultura
capitalista, a perda dos cabelos como efeito colateral da quimioterapia acarreta não
somente o drama individual, como também a vivência do preconceito, uma forma de
violência social.
513
queda do cabelo, inclusive como um impeditivo de desempenho do contato social,
elas se perguntam como vão sair de suas casas sem o cabelo. Elas manifestam a
crença de que o cabelo seria tudo para uma mulher. Isso porque antes do tratamento,
as crenças sobre o cabelo também estão vinculadas à beleza feminina idealizada e
com a idealização do que seria o ser mulher, especialmente se retomarmos os
padrões de beleza atuais, os quais envolvem um cabelo farto e vistoso. Antes do
tratamento, no imaginário das mulheres entrevistadas, o efeito da alopecia induzida
pela quimioterapia aparece aos olhos delas e de terceiros, enquanto o câncer, como
o seio, ficaria escondido. Antes da quimioterapia existe a crença de que é um
tratamento que torna a doença visível aos olhos dos outros. Até a cirurgia para a
retirada do seio pode ser vista como menos prejudicial que a quimioterapia, pois o
seio ficaria escondido, na opinião das participantes.
Como o cabelo de Ma não caiu, ela não se sente exposta aos olhares de
terceiros, ela não sente que os outros a percebem como uma mulher com câncer de
514
mama. Ela não se sente ameaçada em sua vida pelo olhar de terceiro, nem pelo seu
próprio olhar refletido no espelho.
Isso não ocorreu com Maria e nem com Helena, que sofreram a alopecia como
efeito colateral da quimioterapia. E, durante o tratamento e ao final, expressaram a
diminuição do contato social em decorrência da quimioterapia, bem como dificuldades
de sair de casa, mesmo ao final do tratamento. Ao longo da quimioterapia, as
participantes efetivamente se sentiram expostas em decorrência da alopecia e
passaram a utilizar adereços para minorar os efeitos colaterais da quimioterapia. Os
contatos sociais ficaram circunscritos ao ambiente doméstico também em decorrência
da exposição social.
Conclusões
515
implementadas pelo Estado que sejam sensíveis às necessidades de cuidado
psicológico.
Referências
Arán, M. R., Zahar, S., Delgado, P. G. G, Souza, C. M., Cabral, C. P. S., &Viegas, M.
(1996). Representações de pacientes mastectomizadas sobre doenças e
mutilação e seu impacto no diagnóstico precoce do câncer de mama. Jornal
Brasileiro de Psiquiatria, 45(11), 633-639.
Frith, H., Harcourt, D., & Fussell, A. (2007). Anticipating an altered appearance:
women undergoing chemotherapy treatment for breast cancer. European journal
of oncology nursing 11(5), 385-391.
Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.
516
Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva.
(2017). Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: INCA.
Recuperado de http://www.inca.gov.br/estimativa/2018/index.asp.
Pacheco Filho, R. A., Coelho Jr., N.,& Rosa, M. D. (2000). Ciência, pesquisa,
representação e realidade em psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Reis, A. P. A., & Gradim, C. V. C. (2018). A alopecia no câncer de mama. Rev enferm
UFPE on line, 12(2):447-55.
Soares, S. C., Burille, A., Antonacci, M. H., Santana, M. da G., & Schwartz, E. (2009).
A quimioterapia e seus efeitos adversos: relato de clientes oncológicos. Cogitare
Enfermagem, 22(4), 714-719.
518
46- COMPREENSÃO DO MORRER POR CRIANÇAS QUE CONVIVEM COM
VIOLÊNCIA NO CONTEXTO AMBIENTAL
Resumo: A literatura mostra que algumas das distorções a respeito do morrer feitas
pelas crianças são decorrentes da ausência de clareza a respeito do tema e podem
acarretar uma maior dificuldade nos processos de elaboração de perdas,
principalmente quando as crianças estão submetidas a um cotidiano marcado pela
violência. Este estudo qualitativo, descritivo-exploratório tem a finalidade de abordar
essas concepções de morte para crianças considerando a dimensão psicológica e o
contexto socioexperiencial das participantes. Foram entrevistadas seis crianças do
sexo feminino, com média de idade de 7,5 anos. Foi utilizado um livro infantil autoral
elaborado para esta pesquisa. A coleta dos dados foi realizada individualmente e as
verbalizações das crianças foram transcritas literalmente e submetidas à análise
temática. Os dados foram agrupados em cinco categorias: a) noção de finitude da
vida; b) temporalidade do morrer; c) finalidade do morrer; d) irreversibilidade da
morte; e) continuidade da vida. Um dado inusitado, e que pode estar relacionado
com a variável de contexto ambiental violento, foi a concepção da possibilidade de a
morte ocorrer em idades mais precoces, como na adolescência. A compreensão da
importância da memória e da preservação do morto como objeto de afeto daqueles
que permanecem vivos também são resultados inesperados.
Introdução
O desenvolvimento do conceito de morte pode fomentar diversas
interpretações que variam conforme a cultura, fase da vida e o contexto no qual o
indivíduo está inserido. Enquanto para a perspectiva cultural e religiosa a morte é
519
compreendida como um processo de transição no qual a vida transcende aos meros
processos biológicos, para a biologia a morte é conceituada como o cessar da
máquina corporal humana fazendo com que a vida seja interrompida de maneira
definitiva (Roazzi, Dias & Roazzi, 2010).
Para Torres (1978) essa perspectiva biológica abrange aspectos implícitos a
respeito das dimensões do conceito de morte e eles podem ser definidos de acordo
com a sua extensão, que compreende o grau de compreensão do indivíduo sobre os
seres que morrem; seu significado, que busca entender a compreensão do indivíduo
sobre o que é a morte; e duração, que visa entender a compreensão do indivíduo
acerca do tempo de permanência da morte.
Em estudo feito por Nagy (1948), a autora buscou compreender o que é a morte
para a criança na faixa etária de três a 10 anos e quais as teorias que ela constrói a
respeito da natureza da morte. No estudo, a autora encontrou diferentes tipos de
concepções que se relacionavam diretamente à idade da criança, desse modo, ela
concluiu que havia três estágios de desenvolvimento. No primeiro estágio, que
compreende a faixa etária entre três e cinco anos, a criança atribui vida e consciência
para os mortos; no segundo estágio, compreendido entre a faixa etária de cinco a
nove anos, a criança personifica a morte e, no terceiro estágio, compreendido pela
faixa etária de nove a 10 anos, a criança compreende o conceito biológico de que a
morte é o cessar da vida corporal.
No que tange ao estabelecimento de estágios de desenvolvimento, Piaget
observa que, ao nascer, o ser humano possui recursos apriorísticos que lhe propicia
realizar suas primeiras atividades que serão aperfeiçoadas conforme ele interage com
o meio em que vive. Esse aperfeiçoamento só é possível devido à existência de
estruturas cognitivas distintas as quais o autor chamará de estágios ou operações.
Essas estruturas irão diferir qualitativamente entre si, de modo que uma estrutura
inferior será a base para uma estrutura superior de maneira progressiva,
apresentando melhorias qualitativas conforme sua evolução (Rizzi & Costa, 2008).
Entretanto, essa teoria considera somente o desenvolvimento cognitivo da
criança em um contexto independente, não leva em conta sua experiência com a
morte, seja em seu contexto social ou em um contexto em que a própria criança é
impactada com uma doença terminal. Essas variáveis são fatores importantes que
podem afetar as cognições infantis a respeito da morte e, consequentemente, afetam
520
a compreensão da morte pela criança antes das idades sugeridas pelo seu
desenvolvimento (Torres, 1996).
Para que se tenha uma maior clareza a respeito do desenvolvimento do
conceito de morte, Torres (1996) fez uma revisão de literatura e definiu uma
abordagem multidimensional do conceito de morte separando-os em dimensões de
irreversibilidade, que é o reconhecimento de que, uma vez morto, o corpo físico não
pode retornar à vida; de não funcionalidade, que implica na compreensão de que as
funções corporais que definem a vida são interrompidas com a morte; e de
universalidade, que abrange a compreensão de que a morte se estende para todos
os seres vivos em algum momento de sua história.
Algumas ferramentas podem ser utilizadas como facilitadoras dessa
compreensão da morte. Para Kovács (2016), a ludoterapia – psicoterapia para
crianças – utiliza-se de recursos como desenhos e atividades lúdicas, uma vez que a
expressão de sentimentos por intermédio da fala ainda é custosa. Com uma função
ordenadora, a literatura também pode auxiliar na organização das experiências
existenciais da criança permitindo que ela desenvolva capacidades que possibilitem a
formação do senso crítico. Para isso, a biblioterapia – que é a utilização de qualquer
tipo de leitura por um adulto treinado visando à amenização do sofrimento psicológico
de uma criança -, possui papel fundamental para a construção de habilidades de
enfrentamento, uma vez que a criança pode distanciar-se de sua dor e expressar seus
sentimentos a partir de semelhanças e diferenças percebidas em relação aos
personagens da história (Paiva, 2011).
As concepções de morte e terminalidade, que se distinguem conforme as fases
de desenvolvimento piagetianas e pelo contexto individual no qual a criança está
inserida, são pouco explorados pela sociedade. No entanto, as distorções, feitas pelas
crianças, a respeito da terminalidade, dificultam os processos de elaboração de
perdas, principalmente para crianças submetidas a um meio cuja violência é mais
acentuada. Esse indivíduo, em um estágio operacional, embora possua a
aprendizagem útil necessária para lidar com as demandas de um conflito real que
impõe perdas, não necessariamente possui a capacidade de abstração necessária
para conseguir representar e melhor elaborar essas experiências de finitude da vida.
Levando em consideração esse panorama exposto, este projeto visa
compreender as concepções de terminalidade para crianças de 6 a 9 anos submetidas
a condições socioeconômicas vulneráveis e residentes no bairro de Heliopólis em São
521
Paulo. Haja vista a desigualdade social presente em nosso país, que é geradora de
violência (Silva & Aquino, 2004), é necessário que se lance um olhar mais atencioso
para a questão de como as crianças, que crescem nesse meio, conceituam a morte.
Desse modo, é possível adquirir arcabouço teórico para projetos de intervenção que
visem a minimização dos possíveis processos traumáticos da criança, que deverá
ocorrer por intermédio da preparação dos adultos responsáveis sobre como falar da
morte com crianças.
Este estudo, portanto, tem a finalidade de abordar essas concepções de morte
e terminalidade para crianças, por intermédio de uma abordagem multidimensional do
conceito de morte, que engloba os componentes de universalidade, não
funcionalidade e irreversibilidade.
Cuidados éticos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FFCLRP-USP
seguindo-se os procedimentos éticos de respeito aos voluntários e à instituição, de
acordo com a Resolução nº 466/12 sobre pesquisa envolvendo seres humanos (Brasil:
Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde, 2012) e do Conselho Federal de
Psicologia (nº 016/2000, de 20/12/2000).
Método
Tipo de estudo
Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo-exploratório, de corte transversal.
O enfoque qualitativo foi escolhido uma vez que se pretende investigar em
profundidade o fenômeno, na perspectiva de quem a vivência, buscando compreender
ações dos indivíduos, bem como os processos pelos quais os significados são
elaborados e descritos, considerando a dimensão psicológica e o contexto
sociohistórico dos participantes (Flick, 2009).
Participantes
Os participantes da pesquisa foram seis crianças do sexo feminino, com média
de idade de 7,5 anos, sendo três meninas de oito anos, duas de seis anos e uma de
nove anos, moradoras do bairro de Heliópolis em São Paulo. Foram considerados
critérios de inclusão: Ter idade entre seis e nove anos, ser residente da comunidade,
e pais aceitarem a participação na pesquisa. Foram excluídos participantes que
522
apresentassem dificuldades acentuadas de compreensão e comunicação, que
inviabilizariam o engajamento na tarefa e crianças que sofreram recentemente (menos
de um ano) alguma perda significativa. Esse último item foi verificado antes da
realização da pesquisa, no momento da proposta, visando não mobilizar
excessivamente crianças que estivessem, eventualmente, passando pelo processo
de enlutamento.
Cenário do estudo
Heliópolis localiza-se geograficamente na região sudeste de São Paulo e,
atualmente, é considerada uma das maiores favelas do Brasil devido a sua alta
densidade demográfica. Ao final da década de 90, Heliópolis era considerada uma
das comunidades mais violentas do estado de São Paulo e padecia com as ações do
crime organizado e as altas taxas de criminalidade e violência. O medo presente na
comunidade teve seu ponto alto com o assassinato de Leonarda, adolescente
executada a tiros a poucos metros da escola em que estudava. Essa tragédia deu
origem à Caminhada pela Paz, iniciativa do diretor do colégio em união com
professores e lideranças comunitárias que visava desnaturalizar a violência na
comunidade. Atualmente a Caminhada conta com a participação de milhares de
pessoas e é organizada pelo Movimento Sol da Paz, coletivo que foi originado a partir
do evento e, desde então, busca alinhar as demandas comunitárias, fortalecer as
escolas da região e levar aos moradores de Heliópolis a percepção de que a
superação do medo pode ser atingida por intermédio da educação e da união dos
membros da comunidade (Santis, 2014).
Instrumento
Conto da abelhinha Poli
Para intermediar a conversação foi utilizado um conto de autoria das
pesquisadoras, que possibilitou explorar, de forma lúdica, os conceitos relacionados
às dimensões de universalidade, funcionalidade e irreversibilidade da morte. Foi
elaborado um roteiro de perguntas que foi utilizado no decorrer da contação da
história, nos momentos em que os conceitos supracitados eram ilustrados.
Os materiais utilizados foram um celular Motorola Geração 5 para gravar a
entrevista e o conto.
523
Procedimento de coleta de dados
Os participantes foram convidados a participar por intermédio da técnica
snowball de amostragem não-probabilística. Nessa técnica os participantes iniciais do
estudo indicam novos participantes que por sua vez indicam novos participantes e
assim sucessivamente, até que se tenha alcançado o número proposto para a
pesquisa.
A duração total da contação de história foi em média 15 minutos.
Análise de dados
As respostas das crianças foram transcritas na íntegra e literalmente,
respeitando a sequência e a forma como foram apresentadas as falas.
Posteriormente, os dados foram submetidos à análise de conteúdo temática, segundo
Braun e Clarke (2006). Para esses autores, a análise temática é bastante útil e flexível
para a pesquisa qualitativa em psicologia. Ela é um método que identifica, analisa e
relata padrões (temas) nos dados obtidos. É minimamente organizada e descreve o
conjunto de dados em detalhes. O processo de análise temática é dividido em seis
etapas:
a) Familiarizar-se com os dados: Transcrever, ler e reler os dados e anotar as
ideias iniciais (busca de significados e padrões).
b) Gerar códigos iniciais: Coleta e codificação das características relevantes
dos dados de forma sistemática em todo o conjunto de dados. Organizar os dados em
grupos significativos. Os dados codificados diferem das unidades de análise (os
temas) que são mais amplas. Os temas serão desenvolvidos na próxima fase.
c) Buscar temas: Início da análise interpretativa dos códigos. Os códigos
diferentes podem se combinar para formar um tema abrangente. Pode ser útil nesta
fase usar representações visuais que ajudam a classificar os diferentes códigos em
temas, como tabelas, mapas temáticos, entre outros.
d) Rever os temas: Refere-se à revisão e ao refinamento dos códigos extraídos
para cada tema, ou seja, verificar se eles se referem a um padrão coerente e se
apresentam validade dos temas individuais em relação a todo o conjunto de dados.
Os dados que compõe os temas devem ser coerentes, e os temas diferentes devem
apresentar distinções claras e identificáveis. No final desta fase, é necessário saber
524
quais são os diferentes temas e como eles se articulam em relação a todo conjunto
de dados.
e) Definir e nomear temas: Definir e aperfeiçoar os temas apresentados.
Analisar os dados, identificar a “essência” e a especificidade de cada tema e gerar
definições claras e nomes para cada um deles. É importante não obter um tema muito
amplo, diverso e complexo.
f) Produzir o relatório: Análise final dos temas levantados. Selecionar exemplos
atrativos e pertinentes para exemplificar cada tema. Relacionar a análise com a
questão norteadora da pesquisa e com a literatura, visando articular o objetivo do
estudo e os achados empíricos.
Resultados e Discussão
Os dados foram agrupados em cinco categorias:
Categoria Resultado
525
Os dados obtidos corroboram a literatura, denotando que há compreensão da
irreversibilidade da morte nessa faixa etária, que se refere a noção de que depois da
morte o corpo físico não mais retomará a vida, mas que ainda não se alcançou a
concepção de sua universalidade, que é a compreensão de que todos os seres vivos
morrerão em algum momento (Torres, 1996).
Três resultados merecem destaque: a) a religiosidade presente no discurso; b)
a concepção da morte em uma etapa mais precoce do desenvolvimento; e c) a
possibilidade de continuação da vida pela preservação da memória do morto.
Tanto a religiosidade, quanto a possibilidade de se manter vivo quem morreu,
pela memória, podem estar relacionadas, de alguma forma, à negação da
terminalidade, em especial na crença de uma vida após a morte, na qual o morto
continua com características funcionais. Podemos notar essas relações na resposta
de Carol, seis anos, que, ao ser indagada sobre “se ela achava o morrer muito
estranho, assim como a abelha Poli”, respondeu: “Não, porque Deus cuida de nós”.
Essa fala demonstra a concepção de que a morte, apesar de cessar a vida do
indivíduo em um plano terreno, não impede a continuação de uma vida funcional em
um plano espiritual, uma vez que ele necessita de cuidados, essa afirmação pode nos
sugerir que esse indivíduo ainda possui necessidades tal qual o corpo vivo.
Essa concepção da morte como sendo um produto de um processo defensivo
é dado de outros estudos que consideram o meio sociocultural da criança (Orbach,
Gross, Glaubman & Berman, 1985). Segundo esses autores, para algumas crianças
a distorção encontrada na noção do conceito de morte é reflexo de um processo de
defesa ou uma falta de conhecimento. Logo, a compreensão da morte pela criança se
inicia com as experiências relacionadas a essa temática, que é por ela vivenciada, e
que, posteriormente, será expandida e aplicada aos demais objetos que possuem
vida. Corroborando para com a concepção de que os esquemas de desenvolvimento,
envolvidos na aquisição do conceito de morte, possuem um caráter dinâmico,
portanto, não linear ou acumulativo.
A compreensão precoce de que a morte não é privilégio da velhice, pode ser
também um dado do contexto social dessas crianças. Como podemos notar na fala
de Leticia, oito anos, que, ao ser indagada se todos morreriam um dia, respondeu
“Quando eles ficarem adolescentes, eles morrem” ou então, quando foi indagada a
respeito do “para que servia esse morrer”, respondeu “Porque quando a pessoa ficar
526
adolescente aí ela tem que morrer”. O relacionar da morte à adolescência, pode estar
associado ao caráter de uma comunidade marcada por um histórico combate à
violência que ainda vítima muitos de seus jovens. É importante ressaltar que a
Caminhada pela Paz, evento que ocorre há 21 anos nas ruas da comunidade, iniciou-
se devido ao assassinato de uma adolescente. Além disso, há as práticas infracionais
que muitas vezes culminam no assasinato de adolescentes, logo, há na cultura de
Heliópolis a demanda pelo desenvolvimento de fatores protetivos e preventivos
relacionados ao jovem (Pereira, 2017). Essas práticas, provavelmente, submetem
essas crianças a vivência de uma realidade não compartilhada por aquelas que vivem
em bairros de alto poder aquisitivo, por exemplo.
Para Tallmer, Formanek & Tallmer (1974) as experiências contribuem para com
as conceituações. Em estudo feito pelos autores com crianças de status
socioeconômico baixo e médio concluiu-se que crianças de classe baixa possuíam
mais facilidade em aprender conceitos funcionalmente úteis quando comparadas às
crianças de classe média. Essa conclusão os fez especular que tal agilidade de
aprendizagem se deve à exposição à violência real fazendo com que elas dispendam
sua inteligência para a aprendizagem daquilo que é útil. Todavia, essa noção mais
pertinente a respeito da morte, por esse grupo, não se relaciona com a noção de uma
violência que culmina na morte, mas sim com um modo mais realista e sensato de
lidar com o ambiente em que ela está inserida.
De um modo geral, obteve-se uma aprendizagem precoce e útil da
conceituação da morte nessas crianças, que pode ter sido imposta pelo meio social.
Apesar disso, Montoya (1983) pontua que apesar da criança de status
socioeconômico baixo saber lidar com essa exigência imediata do meio físico, ela não
possui a compreensão necessária a respeito de sua prática. Para ele, nas realizações
das crianças o real está bem construído, mas a organização da realidade em termos
representativos ainda é deficitária (Torres, 1996). Esse resultado é importante no
sentido de se conhecer a realidade dessas crianças e se pensar em estratégias de
ajuda condizente com suas necessidades.
Um limite do estudo é ter sido feito com crianças somente do sexo feminino e
restrito a uma comunidade específica. Sugere-se novas investigações, com ambos os
sexos e investigando outros contextos sociais.
527
Referências
Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative
Research in Psychology, 3(2), 77-101.
Flick, U. (2009). Introdução à Pesquisa Qualitativa. Porto Alegre, RS: Artmed Editora.
Kovács, M. J. (2016). Falando de morte com crianças. Psicologia Usp, 2(3), 170-
173.
Nagy, M. (1948). The child's theories concerning death. The Pedagogical Seminary
and Journal of Genetic Psychology, 73(1), 3-27.
Roazzi, M. M., Graça Bompastor Borges Dias, M. D., & Roazzi, A. (2010). Mais ou
menos morto: Explorações sobre a formação do conceito de morte em
crianças. Psicologia: Reflexão e Crítica, 23(3), 485-495.
Tallmer, M., Formanek, R., & Tallmer, J. (1974). Factors influencing children's
concepts of death. Journal of Clinical Child Psychology, 3(2), 17-19.
528
Torres, W. D. C. (1996). O desenvolvimento cognitivo e a aquisição do conceito de
morte em crianças de diferentes condições sócio-experienciais. (Tese de
doutorado).
Orbach, I., Gross, Y., Glaubman, H., & Berman, D. (1985). Children's perception of
death in humans and animals as a function of age, anxiety and cognitive
ability. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 26(3), 453-463.
Paiva, Lucélia Elizabeth. (2011). A arte de falar da morte para crianças: A literatura
infantil como recurso para abordar a morte com crianças e educadores. Aparecida,
SP: Ideias & Letras.
529
47- A CONSTRUÇÃO DA MATERNAGEM EM UTI NEONATAL A PARTIR DE
UMA INTERVENÇÃO PREVENTIVA PSICANALITICAMENTE ORIENTADA
Introdução
16
Psicanalista. Doutoranda em Psicologia clínica pelo IP-USP (bolsista CNPQ). Mestre em Psicologia social e especialista em
Psicanálise e linguagem pela PUC-SP. Professora da pós-graduação em Psicanálise do Centro Universitário Anhanguera de
Santo André.
17 Psicanalista. Professor no IP-USP e EACH-USP. Doutor e mestre em Psicologia clínica pela USP.
530
das interações do indivíduo com o seu meio sociocultural, ele não enfatizou a natureza
dialética dessas interações, por não ter se desprendido inteiramente de sua visão
antropocentrista do homem e de sua metapsicologia psicanalítica. Pichon-Rivière
(1965/2005a) acredita que isso impediu que Freud (1921/2011), apesar de ter
vislumbrado “que toda psicologia, num sentido estrito, é social” (p.47) formalizasse tal
indicação.
Objetivo
531
Relato de experiência
Fui chamada para atender Bete por conta do seguinte quadro: a puérpera havia
dado à luz há cinco dias e não apresentava sinais de produção de leite. O neonato,
nascido na 34ª semana de gestação, estava internado em UTI neonatal para
amadurecer o sistema pulmonar e ganhar peso.
Na ocasião o neonato não podia ser retirado da incubadora para sugar o peito
de Bete, e estava fazendo uso de sonda nasogástrica devido ao grande risco de
aspiração por conta de apresentar o quadro de fenda labiopalatina completa. A sucção
do mamilo pelo bebê que atua enquanto estimuladora na secreção da ocitocina pela
hipófise anterior, hormônio responsável pela “descida” e ejeção do leite materno
(Carvalho e Tamez, 2002), estava fora de questão. Se de um lado, a sucção, que
estimula a produção de leite materno estava impossibilitada, de outro o neonato,
Nando, havia apresentado intolerância às fórmulas de leite artificial testadas. A saúde
deste estava em risco por não ter recebido ainda o colostro (primeiro leite produzido
pela nutriz no pós parto, de consistência espessa e cor diferenciada, que reúne grande
quantidade de proteínas, leucócitos, lactoferrina, entre outros, sendo considerado a
primeira “vacina” que o bebê recebe por estimular o seus sistema imunológico
(Carvalho e Tamez, 2002)), pelo peso abaixo do esperado para a sua fase do
desenvolvimento, e pela impossibilidade da alimentação artificial (neste momento o
Banco de Leite atuava somente colhendo e armazenando leite da própria mãe para o
filho, não realizando pasteurização de leite humano que permitiria ao neonato receber
leite de outra nutriz), segundo o que afirmara a equipe médica que o avaliara.
Bete foi submetida à estimulação mecânica sem sucesso. Foi neste momento
que eu tive o primeiro contato com ela. Quando Bete começou a relatar a história da
sua gestação e as tensões vividas nos momentos que se sucederam ao parto (quando
confrontou a imagem do seu bebê imaginado com o bebê real), notei que ela
apresentava um sofrimento psíquico que constituía um entrave na construção de sua
maternagem.
Bete contava com 47 anos. Não notou que estava grávida de pronto, pois a sua
mesntruação ficara irregular devido ao que o ginecologista considerou o início da
menopausa. Dentro de poucas semanas ela começaria a reposição hormonal, e foi
por ocasião de exames ginecológicos anuais de rotina que se descobriu grávida de
três meses.
533
a maternidade ficou lotada com os familiares de Bete e membros da comunidade
religiosa que esperavam pela “chegada do Messias”.
534
Em reunião multidisciplinar semanal, onde participavam representantes de
equipe médica, de enfermagem, administrativa, psicológica e de assistência social,
perguntei que impressões os funcionários tinham de Bete, e alguns proferiram
palavras condenatórias pela puérpera ter ficado grávida em idade “tão avançada”.
“Não poderia dar certo” ou “O que ela esperava?” foram algumas das frases emitidas.
Profissionais da equipe de enfermagem confessaram que tratavam Bete com rispidez,
não fornecendo informações detalhadas sobre o estado de saúde de Nando nem
sobre os procedimentos que Bete precisava aprender para os cuidados com o bebê.
Discussão
535
Considerando que as bases da saúde mental se estabelecem
nos primeiros anos de vida e que estão intimamente
relacionadas com os laços afetivo, simbólico e corporal
estabelecidos no par mãe e bebê, entende-se que falhas nesse
processo de subjetivação permitem o surgimento de transtornos
psíquicos que podem interferir não só na inserção desse ser na
cultura como na montagem de sua realidade psíquica (p.19).
Quando se fala prevenção no âmbito psicanalítico ela está para além do que
possa soar a partir do discurso técnico-científico – pautado por sua vez por um ideal
de normatividade que não dá margem para o imprevisível e o singular. A dimensão da
prevenção em Psicanálise é pautada pela ética do desejo e pela viabilização de um
espaço onde o sujeito possa advir independentemente de suas características
biológicas, sociais ou familiares. Assim, uma escuta preventiva psicanaliticamente
orientada pode identificar fatores de risco para a assunção do sujeito do desejo,
fatores de sofrimento psíquico, e muito embora a dimensão dos acontecimentos
vividos possa ser construída no só-depois, ela poderá propiciar acolhimento e a
possibilidade da construção de uma significância para a experiência vivida (Crespin,
2004).
536
tensão oriunda destes últimos interferia diretamente no estabelecimento da relação
com Nando; na medida em que se pôde analisar o momento de interrupção do
equilíbrio familiar, bem como as motivações de tal ruptura, tal como propõe Pichon-
Rivière (2000) tanto através da escuta individual como no grupo terapêutico, Bete
pode se re-situar na própria história, rompendo com o estereótipo familiar, alterando
seus mecanismos de defesa e estabelecendo novas modalidades vinculares.
537
Zimmerman e Osório (1997) esta denominação inclui pessoas que compartilham uma
mesma categoria diagnóstica e necessidades, experiências afetivas e/ou dificuldades
advindas destas. A tarefa colocada a estas mães foi a de discutir em conjunto as
percepções que cada uma tinha da experiência de dar à luz a um bebê que
necessitavam de cuidados de saúde específicos e por isso estavam internados. Uma
fala comum a todas as integrantes do grupo em diferentes momentos foi a
oportunidade de poder dar vazão aos arrependimentos por ter engravidado e as
lamentações por ter mudado drasticamente de vida após o parto (tendo em vista que
os compromissos de uma mãe de bebê internado em UTI, ao contrário do que possa
se crer no senso comum, são inúmeras, pois elas precisam passar o dia na
maternidade por conta de colher leite ou amamentar, realizar posição canguru,
participar das reuniões médicas que ocorrem em momentos aleatórios do dia, etc.);
em quaisquer outros meios as mulheres não podiam admitir tais conteúdos posto que
eles contrastavam com a visão naturalizada maternidade como capacidade inerente
a toda mulher, e não enquanto processo. Ao fazerem uma simples menção a tais
conteúdos as mulheres eram duramente criticadas e/ou deslegitimadas socialmente,
portanto conviviam com sentimentos e pensamentos que não podiam compartilhar e
que as faziam se sentir como que “morando com um estranho dentro de si” ou
“impostoras”, conforme manifestaram em grupo. Compartilhar afetos e pensamentos,
além do desafio de construir, cada uma a seu modo, o modo de ser mãe (maternar),
foi decisivo para sair de uma posição depressiva e aprimorar a qualidade do vínculo
com os filhos.
538
Os aspectos através dos quais serão abordados tanto o
processo do adoecer como a terapia podem ser enunciados em
quatro direções: 1) da aprendizagem social (leitura da realidade);
2) da comunicação; 3) de um ponto central do desenvolvimento
e da cura; (...) 4) da avaliação, que utilizamos não só para medir
as mudanças nos dois aspectos do processo (o adoecer e o
curar-se), mas também por proporcionar material para a
construção da interpretação, na medida em que o processo
reativa os dois medos básicos (medo da perda e medo do
ataque, que são coexistentes e cooperantes, e alternadamente
manifestos e latentes) (p.143).
Considerações finais
539
Encontrando solidariedade entre as mães de outros bebês internados na UTI
neonatal, Bete pode se posicionar quanto a Nando, se aproximando dele
gradativamente, o que foi facilitado pela equipe de saúde já sensibilizada pela
situação. A convivência com outras mulheres de diferentes culturas e concepções
religiosas fez Bete reavaliar a própria concepção de religião, desconstruindo de vez a
possibilidade de que ela havia sido atingida por uma “maldição”. Com a conversa e
acolhimento de outras mulheres Bete pode se reposicionar no laço social, sendo que
seus comportamentos depressivos foram desaparecendo gradativamente. Após cerca
de quinze dias em que prosseguiram as sessões individuais de escuta
psicanaliticamente orientada e participação grupal, Bete apresentou sinais de
produção de leite, e a nutrição de Nando, que já apresentava sintomas de anemia e
estava sendo nutrido via enteral com fórmula artificial, passou a ser realizada com leite
materno. Cerca de um mês e meio após o nascimento Nando teve ganho de peso
suficiente para que a sonda nasogástrica fosse retirada e a amamentação no peito foi
estabelecida com sucesso.
Referências
FREUD, S. (1921/2011). Psicologia das massas e análise do eu. In. Obras completas,
v. XV. São Paulo: Companhia das Letras, p. 13-113.
540
WINNICOTT, D. W. (1967/1975). O papel de espelho da mãe e da família no
desenvolvimento infantil. In. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, p. 153-
162.
541
48- IDOSOS COM ALZHEIMER: IMPACTO NOS CUIDADORES
INTRODUÇÃO
Idoso pode ser definido como o indivíduo que apresenta 60 anos ou mais, e
nessa fase apresenta mudanças que constituirão e influenciarão o envelhecimento,
onde serão observadas notáveis mudanças nos níveis biológico, fisiológico e
542
psicossocial. No âmbito biológico e fisiológico destaca-se como mais suscetível a
presença de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), grupo de doenças
multifatoriais que se desenvolvem no decorrer da vida e são de longa duração. (Brasil,
2018).
É importante destacar o momento da transição demográfica constatada pelo
aumento significativo de idosos que vem apresentando mudanças no perfil das
doenças infectocontagiosas para as DCNT, merecendo as demências posição de
destaque.
O Alzheimer consiste em uma doença neurodegenerativa progressiva, de
etiologia desconhecida, de início insidioso, com componentes neuropatológicos e
neuroquímicos distintos, que vão além da biologia do envelhecimento e se desdobram
em mudanças sociais culturalmente estabelecidos, o que interfere diretamente na vida
familiar, seu diagnóstico ocorre através de critérios clínicos diferenciais (Marins,
Hansel, & Silva, 2016) e é responsável por 50-70% de todas as demências. (Talmelli,
Vale, Gratao, Kusumota, & Rodrigues, 2013).
Conviver com pessoas idosas que apresentam sinais característicos de
alzheimer significa uma mudança na estrutura e dinâmica familiar, devido
principalmente às novas necessidades do idoso, que precisam ser incluídas no
cotidiano de todos os envolvidos nesse processo. Geralmente, uma pessoa ocupa o
papel de cuidador, seja por instinto, vontade, disponibilidade ou capacidade, tornando-
se o cuidador principal assume tarefas assistenciais e responsabiliza-se pelas
necessidades da pessoa. (Montezuma, Freitas, & Monteiro, 2008).
O cuidador é aquele responsável pela pessoa doente ou dependente, de forma
que facilite as atividades diárias direcionadas a alimentação, higiene pessoal, além de
oferecer medicamentos de rotina e acompanhá-la junto aos serviços de saúde, ou
outras situações no seu cotidiano, não excluindo papéis de outros profissionais
legalmente estabelecidos (Gratão, Vendrúscolo, Talmelli, Figueiredo, Santos, &
Rodrigues, 2012).
Quando o cuidador se dedica integralmente ao idoso doente existe uma grande
probabilidade de ocorrer esgotamento físico e psíquico devido ao trabalho repetitivo e
contínuo, podendo afetar diretamente a qualidade de vida, nessas circunstâncias o
fator estressante não é um evento isolado, e sim as múltiplas demandas que resultam
da deterioração e da dependência, as quais levam o cuidador a uma sobrecarga física
e emocional. (Mooney, 2010).
543
Destacando assim, a relevância do estudo devido à alta incidência da Doença
de Alzheimer (DA) em nosso meio, além da valorização do cuidador como principal
aliado na manutenção da saúde da pessoa idosa e as mudanças severas na vida do
cuidador.
Destarte, pretende-se conhecer as características sociodemográficas de idosos
com DA e seus cuidadores, no que concerne aos impactos na saúde bem como à
sobrecarga, destacando como um ponto importante para discutir estratégias que
promovam o suporte ao binômio cuidador-pessoa idosa. Logo, surge como
questionamentos: Quais as características psicodemográficas das pessoas idosas
com DA e como os cuidadores são impactados em relação à sobrecarga?
O interesse em desenvolver essa pesquisa partiu da inquietação em avaliar a
saúde das pessoas idosas com DA e seus cuidadores quanto as Atividades de Vida
Diária (AVD), baseado nesse contexto faz-se importante refletir acerca das
necessidades de acompanhamento multiprofissional de quem cuida e dessa forma
possibilitar melhoria na qualidade de vida do cuidador.
Sabendo que a DA se distribui de forma heterogênea, a dificuldade do cuidar
nas fases da doença expressa um amplo desafio. Assim, pressupõe a necessidade
de conhecer o perfil dos cuidadores considerando as características
sociodemográficas e seu estado de saúde, bem como a saúde das pessoas idosas.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo descritivo, exploratório, quantitativo, realizado na Clínica
escola de uma Universidade pública da Paraíba, desenvolvido no laboratório de
neuro-modulação sensório-motora e cognitiva, promovendo atividades com pessoas
idosas com DA. A equipe é composta por neurologista, fisioterapeuta, alunos de
fisioterapia, de enfermagem e psicologia. A coleta de dados ocorreu entre agosto de
2017 a julho de 2018.
A população constituída pelos idosos cadastrados no projeto de extensão. Com
amostra composta de 42 pessoas, sendo 20 idosos e 22 cuidadores principais. Tendo
como critério de inclusão os idosos residirem no município, com diagnóstico de DA e
seus cuidadores. Foram excluídos os que não atenderam aos critérios de inclusão.
Para a coleta de dados foram utilizados roteiros semiestruturados de entrevista,
contendo questões objetivas para o cuidador, foi utilizado também o Índex de Katz
que segundo Brasil (2007), tem por objetivo avaliar o idoso na execução das
544
Atividades da Vida Diária determinando assim, a independência funcional do idoso
cuidado.
Foi usada a Escala de Sobrecarga do Cuidador de Zarit, que tem como objetivo
avaliar o bem-estar psicológico e socioeconômico do cuidador principal e a relação do
binômio cuidador e pessoa cuidada; a escala avalia o impacto percebido do cuidar
sobre a saúde física e emocional. Constituída por 22 perguntas, para cada pergunta
existe 5 escores, que pontuam descrevendo como cada afirmação afeta a pessoa; a
frequência com que ocorre a resposta: 0 (nunca), 1 (raramente), 2 (algumas vezes), 3
(frequentemente) e 4 (sempre) referem-se às possibilidades de resposta (Luzardo,
2006).
A coleta de dados ocorreu durante o atendimento da pessoa idosa com DA no
projeto de extensão, logo após as atividades desenvolvidas pelos alunos, nesta
ocasião os cuidadores ficavam numa sala de capacitação com os alunos de
enfermagem e psicologia, onde eram orientados quanto aos cuidados a serem
prestados aos idosos, de acordo com a fase da DA, nesta ocasião foram agendadas
as entrevistas nas suas residências.
O estudo foi submetido ao Comitê de Ética do Hospital Universitário Alcides
Carneiro da Universidade Federal de Campina Grande, sendo aprovado sob nº CAAE:
56457316.3.0000.5182.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em se tratando da caracterização da amostra, é possível observar a
prevalência de idosos do sexo feminino (60%), semelhante ao estudo de Soares,
Pereira, Figueiredo, Silva, & Portela (2015) que referiu uma maioria de 69,6%
mulheres portadoras de Alzheimer. Esse fato pode estar associado as mulheres
viverem mais e ficarem viúvas mais cedo.
Ao analisar a idade, observou-se um predomínio de pessoas maior/igual a 71
anos, representando 70% da amostra, nesse contexto, estudo realizado por Converso
e Latelli (2007) ressaltam que 10 a 15% de idosos apresentam esse tipo de demência
acima dos 65 anos. Partindo de um contexto geral, quanto mais idoso, mais limitados
nos tornamos a desenvolver atividades da vida diária, esses dados comprovam que a
perda de um funcionamento adaptativo e o declínio nas habilidades da pessoa
desempenhar tarefas do cotidiano podem ser fatores determinantes no surgimento da
DA.
545
Quanto ao estado civil, 35% dos idosos com DA são viúvos e 50% casados,
divergindo do estudo de Costa (2016) onde 55,6% dos idosos com eram viúvos e
33,3% casados.
É possível observar que, do total da amostra de idosos com DA, 55% têm até
4 anos de estudo, enquanto apenas 10% estudaram entre 9 e 12 anos. Uma maneira
de retardar o processo da doença é a estimulação cognitiva constante e diversificada
ao longo da vida; fato esse reforçado por Brasil (2018) onde refere quanto maior o
estímulo cerebral maior as conexões nervosas e ocorrendo a ampliação das
possibilidades de contornar as lesões cerebrais, sendo necessária uma maior perda
de neurônios para que os sintomas da doença comecem a aparecer.
Quanto ao tempo de diagnóstico 85% da amostra teve seu diagnóstico no
máximo há 5 anos, tornam-se mais susceptíveis as dúvidas dos cuidadores em
relação a DA e, mais angustiados em relação aos seus papéis sociais pela mudança
da rotina e adequação ao convívio em cada fases da DA.
Esses cuidadores têm papel fundamental a desempenhar, uma vez que
assumem a responsabilidade do cuidado contínuo e de crescente dependência,
initerruptamente. Nesse sentido, eles vivenciam um processo longo, que traz às suas
vidas grande desgaste físico e emocional.
Em relação aos cuidadores, o estudo revela que a maioria é do gênero feminino
77,27%, prevalecendo a idade de 31 a 59 anos. Esses dados assemelham-se ao
estudo de Ramos e Menezes (2012) que revelam o gênero feminino 95%; com média
de idade de 53,3 e sendo as filhas perfazendo 55%.
Quanto ao nível de escolaridade evidencia que a maioria 27,27% estudou mais
de 12 anos, fato que difere do estudo de Ramos e Meneses (2012), o qual revela que
50% dos cuidadores têm ensino médio completo. No tocante ao número de anos
dedicados ao cuidado, a maioria dos cuidadores revela cuidar dos idosos há no
máximo 5 anos, totalizando 81,81% da amostra, que coincide com o estudo de Ramos
e Meneses (2012), quanto ao tempo de diagnóstico dos idosos cuidados.
É notório que além de DA os idosos apresentam outras comorbidades, ligadas
ao processo demencial ou não, que revela um estado de saúde ainda mais
preocupante. No que se refere aos problemas de saúde que envolve os sintomas da
DA, a maioria, perfazendo total de 90% refere perda progressiva da memória, fato que
corrobora com o estudo de Alves, Silva, Medeiros, Assis, & Belchior (2014) o qual
546
enfatizam que 100% da amostra apresentou perda da memória recente; enquanto
apenas 10% relatam distúrbios do sono.
Em se tratando de doenças não relacionadas diretamente às demências, a
Hipertensão e Diabetes ganham destaque somando juntas 45%, no entanto alguns
idosos apresentaram mais de uma doença, sendo possível observar que 30% da
amostra é hipertensa e 15% diabética, esse fato enfatiza que as DCNT ainda é
bastante prevalente entre a população idosa (Santos, Pavarini, 2010).
547
no cuidado desses idosos em relação à realização das atividades básicas da vida
diária de forma autônoma.
Tabela 2 – Grau de dependência para as atividades básica da vida diária dos idosos com
doença de Alzheimer de acordo com o Índex de Katz, cadastrados no projeto de extensão.
Paraíba, 2018.
Atividades básicas da vida n %
diária
Independência 1 4,54
Dependência parcial 13 59,09
Dependência importante 7 31,81
Não informado 1 4,54
TOTAL 22 100
Fonte: Dados da pesquisa, 2018.
548
Tabela 3 - Condições de saúde dos cuidadores dos idosos com doença de Alzheimer,
cadastrados no projeto de extensão. Campina Grande - PB, 2018.
VARIÁVEIS n %
Problemas de Saúde
Não referem 9 40,90
Gastrite 6 27,27
Problema de coluna 6 27,27
Labirintite 1 4,54
Fonte: Dados da pesquisa do PIVIC, 2018.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebeu-se que, a maioria dos idosos são mulheres, baixa escolaridade e
perda progressiva da memória, metade da amostra apresentou hipertensão e/ou
diabetes, que necessitava de seus cuidadores parcialmente para realização de suas
atividades diariamente.
A pesquisa apresentou relevância ao abordar o conhecimento sobre as
características sociodemográficas e de saúde das pessoas idosas e seus cuidadores
enfatizando seu estado de saúde e sobrecarga; tornando possível a análise da
situação, visando contribuir com a melhoria da qualidade vida.
É importante ressaltar que os cuidados de forma humanizada, integral além do
apoio multiprofissional são as principais intervenções necessárias, uma vez que a DA
ainda é pouco conhecida e cada indivíduo acometido tem sua individualidade. Para
tanto, faz-se necessária à assistência e o cuidado dos cuidadores, sejam parentes ou
não. As condições de saúde dos cuidadores interferem fortemente no enfrentamento
da DA, uma vez que ele é o único elo entre a pessoa idosa e os serviços de saúde.
REFERÊNCIAS
Alves, A. S., Silva, Z. L., Medeiros, L. M., Assis, S. C., Belchior, A. C. S. (2014). Perfil
epidemiológico de pacientes com Doença de Alzheimer em um município
paraibano. Revista Brasileira de Educação e Saúde, 5(1), 9-17. Recuperado de
https://gvaa.com.br?revista/index.php/REBES/article/view/3139
550
Estadual de Campina Grande, Campina Grande - PB). Recuperado de
https://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/handle/123456789/11039
Mooney, S.F. (2010). Alzheimer: cuidar de seu ente querido e cuidar de você mesmo.
São Paulo: Paulinas.
Santos, A. A., Pavarini, S. C. I. (2010). Perfil dos cuidadores de idosos com alterações
cognitivas em diferentes contextos de vulnerabilidade social. Rev Gaúcha Enferm.,
551
31(1), 115-22. Recuperado de http://dx.doi.org/10.1590/S1983-
14472010000100016
Soares, N. M., Pereira, G. M., Figueiredo, R. I. N., Silva, R. V., Portela, A. S. (2015).
Impacto econômico do tratamento farmacológico de pacientes com Doença de
Alzheimer: 1ª Gerência Regional de Saúde da Paraíba. In Anais do Congresso
Brasileiro de Ciências da Saúde (1-10). Campina Grande, PB/Brasil: Editora
Realize.
Talmelli, L. F. S., Vale, F. A. C., Gratão, A. C. M., Kusumota, L., & Rodrigues, R. A. P.
(2013). Doença de Alzheimer: declínio funcional e estágio da demência. Acta
Paulista de Enfermagem, 26(3), 219-225. Recuperado de
https://dx.doi.org/10.1590/S0103-21002013000300003
552
49- ADOÇÃO E FUNCIONAMENTO FALSO SELF: UM ESTUDO DE CASO
Introdução
O processo de adoção é complexo e envolve vários aspectos do indivíduo, bem
como da família que vai recebê-lo. Para compreender o sucesso desse percurso, é
importante analisar não apenas o momento da adoção, mas o histórico anterior a esse
553
acontecimento. Dessa forma, a recepção e o acolhimento por parte dos pais em
relação à criança devem ultrapassar os cuidados comuns, pois leva em consideração
o caminho da criança até chegar na nova família. Os pais adotivos têm que tolerar as
consequências das falhas ambientais que ocorreram antes da chegada da criança
(Gomes, 2006).
Para Maggi (2009), é necessário o acolhimento materno do bebê desde seu
nascimento, com a finalidade de proporcionar um amadurecimento físico e emocional
saudáveis. No caso de uma adoção, particularmente, é necessário compreender como
ocorreram essas primeiras relações e os possíveis obstáculos que o indivíduo
enfrentou no primeiro ambiente.
Os estudos psicanalíticos realizados por Winnicott (1945/2000a) foram
revolucionários ao propor novas bases para a compreensão do desenvolvimento
emocional humano, especialmente ao apontar para a importância do ambiente no
amadurecimento infantil.
Para este autor (Winnicott, 1956/2000b) o bebê nasce com uma tendência inata
ao amadurecimento do Self potencial, que necessita de um ambiente com condições
favoráveis para que isso ocorra, com três estágios que marcam esses processos:
dependência absoluta, dependência relativa e rumo à independência. Este ambiente
é representado no início pela mãe devotada comum, ou de algum adulto que esteja
genuinamente empenhado durante o início da vida do bebê em atender as
necessidades apresentadas por ele em um tempo e ritmos próprios da dupla.
Nesse processo de amadurecimento, o bebê é capaz de estabelecer uma
noção do “vir a ser”, favorecida quando a criança recebe o suporte emocional e os
cuidados físicos adequados (holding e handling). Dessa forma, permite-se que o bebê
tenha sucesso nas tarefas desenvolvimentais de integração, personalização e
realização (Winnicott, 1960/1983). Em conjunto com a mãe suficientemente boa e um
ambiente acolhedor, o bebê será capaz de desenvolver uma noção de soma e psique,
das suas necessidades próprias e de que há um mundo externo, diferente dele.
Winnicott (1945/2000a) afirma que para compreender o papel do
amadurecimento do bebê é essencial entender o papel do sentimento de onipotência.
Nesse primórdio, é tarefa da mãe garantir que aquilo que seu filho deseja seja
encontrado no ambiente; a esse encontro Winnicott denominou processo de ilusão.
Esse processo, inicialmente, ocorre quase como mágico, em que a mãe é capaz de
oferecer o que o bebê necessita no momento adequado, de forma que ele acredita
554
que foi o criador daquele objeto de satisfação (dependência absoluta). Com o decorrer
do desenvolvimento, o bebê passa por situações de desilusão, nas quais a adaptação
da mãe às suas necessidades vai diminuindo e ele deixa de ser imediatamente
atendido, passando a ter que lidar com a falha materna por meio de novos recursos,
e aprendendo que, apesar da demora, poderá ser satisfeito (dependência relativa).
Tais situações auxiliam o desenvolvimento da tolerância à frustração e fortalecem o
ego.
Para Winnicott (1960/1983), quando existem falhas significativas no ambiente,
o bebê pode recorrer a mecanismos de defesa para proteger seu verdadeiro Self.
Dentre estes mecanismos tem-se o funcionamento falso Self. Nesse contexto, a mãe
não cumpre a sua função de maneira suficientemente boa, atuando em alguns
momentos de forma invasiva ou de forma negligente. Essa defesa é uma maneira de
submeter-se às expectativas e exigências do mundo externo, funcionando como uma
forma de adaptação, que pode ser considerada dissociativa em indivíduos com alto
grau de intelecto. Ou seja, o indivíduo consegue ter um bom desempenho em tarefas
acadêmicas, mas não se reconhece nesse sucesso. Assim, a atividade intelectual e a
existência psicossomática são vividas separadamente.
Esse funcionamento é fruto de um mecanismo de defesa chamado dissociação.
Ela deriva-se de uma integração parcial do indivíduo como consequência da falta de
uma mãe suficientemente boa no início da maturação do ego (Winnicott, 1945/2000a),
que favorece o desenvolvimento afetivo.
Este tipo de fenômeno tem uma conotação defensiva para o Self, pois, assim,
ele não tem de entrar em contato com a realidade desorganizadora que não atende
às suas necessidades. Por outro lado, este ambiente também lhe causa uma
ansiedade esmagadora e um medo de aniquilação de sua breve existência, com o
qual é incapaz de lidar, precisando recorrer a defesas mais poderosas, mas que lhe
impedem de crescer emocionalmente e caminhar em direção à maturidade (Winnicott,
1945/2000b; Santos, 1999).
É possível pensar acerca do falso Self defensivo quando se conhece as
particularidades iniciais vividas, o quanto o indivíduo recebeu do ambiente e foi capaz
de seguir seu curso de desenvolvimento. Ou seja, Winnicott (1945/2000a) destaca
que o vir a ser permite que o indivíduo sinta que tem um lugar e corpo próprios, com
estilo de ser e capacidade criativa, adaptado ao ambiente e também seguro para
manifestar seus desejos (rumo à independência).
555
De posse de tais considerações, pretende-se pensar sobre o funcionamento
psíquico de uma criança no contexto da adoção, destacando que este é um processo
mais amplo e que deve levar em consideração a história de vida da criança antes e
depois da inserção em uma nova família.
Objetivo
O objetivo do presente trabalho é apresentar um estudo de caso referente à
triagem de um menino de 8 anos de idade, adotado há 4 anos por um casal,
juntamente com sua irmã, de 10 anos. O atendimento foi realizado pelo Serviço de
Triagem e Atendimento Infantil e Familiar do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de
São Paulo (STAIF-FFCLRP-USP).
18
Todos os nomes são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes
556
Fica evidente na entrevista o quanto Lucas ainda não se sente acolhido em sua
nova família, ele e a irmã passam muito tempo juntos, pouco interagem com os pais
e nada contam do que acontece na escola, como se houvesse muitos segredos entre
os dois. Sua dificuldade em defecar e usar o banheiro causa grande transtorno na
casa, fazendo com que Ana passe muito tempo limpando tudo.
Na sessão lúdica, Lucas escolheu brincar com a massinha de modelar. Após
utilizar toda massinha disponível, ele tirou da caixa variados brinquedos, como
soldadinhos e carrinhos e, quando foi questionado sobre a brincadeira, disse que não
estava fazendo nada. Por fim, pediu para que a terapeuta jogasse Uno com ele e,
durante a partida, Lucas se mostrou bastante animado, engajado no jogo. Após a
primeira rodada em que a terapeuta venceu, pediu para jogar mais uma. Ao ganhar a
segunda partida, ele disse: “Empatou, você ganhou uma e eu ganhei outra” e seguiu
satisfeito para o próximo jogo.
Ao explorar a caixa novamente, Lucas encontrou uma fazendinha com vários
animais de plástico e os organizou na mesa. Em seguida, ele pegou a vaca de
brinquedo, disse que ela era a professora e posicionou todos os animais menores em
volta dela. Então, começou a interpretar a professora: “Olá, alunos! Hoje vou contar
para vocês uma história de um rinoceronte muito malcriado. Ele andava pela rua e
dava chifradas em todo mundo que ele encontrava. Que malcriado que era esse
rinoceronte, a mãe dele não deu educação para ele!”. Enquanto contava a história,
ele manuseava um rinoceronte de brinquedo dando “chifradas” nos outros animais.
Então, a professora continuou: “Até que um dia esse rinoceronte encontrou um cavalo
e deu uma chifrada nele. Mas o cavalo era grande e não deixou barato, deu um coice
no rinoceronte pra ele aprender”.
No início desta sessão Lucas mostrou-se bastante alheio e desatento ao
ambiente. Isso se alterou um pouco durante a brincadeira com o jogo Uno, que é mais
estruturada e com regras, e estas o auxiliaram a obter parâmetros para organizar-se.
O conflito expresso na última brincadeira pareceu refletir uma angústia intensa
relacionada ao controle pulsional, em que os aspectos agressivos não podiam ser
integrados ao Self. A etiologia de tal aspecto foi claramente referida pelo menino como
sustentada na dificuldade de oferta de holding e handling por parte do ambiente (o
aluno animal não recebeu educação do lar). Com isso, as pulsões se expressam de
forma descontrolada no meio (chifradas do rinoceronte), comprometendo a sua
adaptação, mas com a esperança de que um substituto parental pudesse oferecer a
557
experiência de continência que o garotinho não pode usufruir na família
consanguínea. O ambiente (cavalo), por mais que seja brusco (coice) oferece uma
barreira a este controle pulsional desenfreado (chifrada).
Na sessão seguinte foi realizada a aplicação do Procedimento de Desenhos-
Estórias. O primeiro desenho produzido era uma cena natalina, com vários objetos
desenhados e coloridos, mas separados por uma linha horizontal que cortava o
desenho, estando na parte de cima figuras fantasiosas (como um Papai Noel voando
no trenó e carregando presentes) e na parte de baixo representações quase literais
(como uma árvore de Natal conectada ao poste de luz, que permite que as luzes
estejam acesas). Tal cena pode ser interpretada como expressão de uma dissociação
da personalidade do menino, havendo de um lado o apego à fantasia, com
possibilidade de expressão criativa, e, de outro, uma adesão à realidade.
Os seguintes desenhos foram feitos com alguma dificuldade pelo menino, o
qual se queixou da atividade e apresentou comportamentos do tipo escrever o título
do desenho antes de fazê-lo e deixar de pintá-los, mesmo tendo lápis coloridos à
disposição. Essas unidades de produção (UP) foram menos criativas que a anterior,
por exemplo, a cópia de um personagem de desenho animado, na terceira UP, ou a
representação parcial de cenas, como na quarta UP, que era a imagem de um pedaço
de pé chutando uma bola, acompanhado de uma onomatopéia para representar o
som. A sequência destas UPs revela que, após uma representação parcial das
fantasias (na primeira UP), o garoto a abandona em prol de um apego mais adesivo à
realidade. Nesse sentido, não parece existir uma articulação harmônica entre mundo
interno e externo, sugerindo prejuízos na capacidade para usufruir dos objetos e
fenômenos transicionais. Desse modo, fica consolidado um funcionamento falso Self,
em detrimento da expressão do Self verdadeiro, mesmo que a função do primeiro seja
preservar o segundo.
Ao fim do quinto desenho, a criança foi avisada que a atividade havia
terminado; entretanto, Lucas protestou e afirmou desejar produzir mais um desenho.
Antes de um desejo de se expressar, esse comportamento pareceu ligar-se mais a
uma atitude desafiadora do garoto, relativa à imposição de um ritmo pessoal à
atividade. Assim, era ele quem definia quando e como o procedimento ia ser
finalizado. Neste último desenho ele representou três lápis, dois deles desenhados
grudados e outro, de tamanho maior, separado e com cor mais forte. Também havia
um apontador com uma lasca de lápis e uma borracha. Em termos simbólicos, os dois
558
lápis juntos pareciam representar ele e a irmã, com quem mantém uma relação
simbiótica19. Este vínculo parece ser resultante de uma tentativa de proteção mútua
entre os irmãos, uma vez que passaram juntos por diversas situações de abuso e
negligência, em que só podiam contar um com o outro. O outro lápis pode ser
interpretado como uma combinação do casal parental, unido para afinarem as
crianças. Contudo, as razões desse “aperfeiçoamento” não parecem ser
compreendidas pela criança como um cuidado íntimo, próximo e carinhoso, mas sim
como invasivo e castrador.
Diante dessas considerações, Lucas parece estar vivendo uma situação em
que, após ter vivido em um ambiente extremamente negligente e abusivo, e que não
lhe oferecia qualquer tipo de continência, foi transplantado para outro, extremamente
rigoroso em termos de imposição de normas e regras. Não parece ter havido
possiblidade de realizar uma transição fluida entre um meio e outro, mas sim uma
alocação brusca que desconsiderou a história e o ritmo do menino. Assim, essa
dificuldade de transição entre um ambiente e outro reflete, do ponto de vista interno,
os prejuízos em vivenciar as experiências transicionais do garoto em uma relação de
retroalimentação. Na tentativa de agradar os pais, Lucas busca adequar-se às
exigências deles, mas isso significa uma negação da própria história e de um sentido
de ser que vinha sendo construído por ele. Amar os pais adotivos significaria, portanto,
negar a si mesmo, o que somente é possível por meio de um funcionamento falso
Self. Assim, ele constrói dois setores em sua personalidade, e o verdadeiro Self,
representado pelas fezes produzidas, necessita ficar longe do alcance da percepção
dos pais.
Considerações finais
O caso analisado revela a complexidade do tema da adoção e a necessidade
de que a intervenção seja dirigida tanto à criança quanto aos pais adotivos. Na história
de Lucas a experiência vivida antes da adoção, junto à família consanguínea e a
instituição, embora dolorosa, não pode ser excluída do seu desenvolvimento
emocional. Embora seja desejo de muitos pais adotivos suprimir a história anterior do
filho, seja por amor ou por outras razões, a eliminação ou negação desse período de
vida pode provocar danos importantes ao amadurecimento do Self da criança. O
19
O caráter desta relação entre os dois irmãos foi expresso pela mãe na entrevista de anamnese.
559
menino em questão mostrou claramente que a sua inserção na família adotiva
dependia, para ele, em uma negação do verdadeiro Self, dadas as dificuldades dos
pais em acolher aquilo que ele já havia desenvolvido e, com doçura e paciência,
oferecerem os limites e contornos facilitadores de seu desenvolvimento. Em face
dessa situação, nada mais restava ao menino que construir uma vida falsa em
aparência, enquanto o espaço para a expressão do Self verdadeiro (mesmo que ainda
não socializado) ficava restrito a uma área escondida do mundo real. Nesse contexto,
a atitude dos pais e da criança diante da experiência da adoção é passível de provocar
não apenas o desagaste por parte dos pais, mas uma dissociação importante na
personalidade da criança.
Em situações como essa o trabalho psicoterapêutico necessita ser realizado
tanto com a criança quanto com os pais, a fim de desenvolver um relacionamento
entre ambos, a área da ilusão, de modo que a inserção da criança na nova família não
seja sentida por ela como uma invasão.
O trabalho de triagem interventiva realizado com a criança, por incluir a família,
permitiu a compreensão de sua situação de um ponto de vista global e, assim, o
encaminhamento do caso mais compatível com as necessidades da criança e da
família. Uma triagem realizada simplesmente com base em uma entrevista de
anamnese apenas poderia fornecer uma compreensão muito parcial e superficial do
caso, podendo redundar em um seguimento equivocado da criança.
Referências
560
Winnicott, D. W. (1983). Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro Self. In D.
W. Winnicott. O ambiente e os processos de maturação. (pp. 128-139). Porto
Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1960)
Winnicott, D. W. (2000a). Desenvolvimento emocional primitivo. In D. W. Winnicott.
Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise (pp. 269-285). (J. Russo, Trad.).
Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1945).
561
50- OBSTÁCULOS NO DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL INFANTIL: RELATO
DE UMA ADOÇÃO TARDIA
Resumo: O ambiente possui um papel importante nos primeiros anos de vida de uma
criança no que diz respeito ao seu amadurecimento emocional. O processo de
adoção, nesse sentido, merece atenção especial, pois envolve o tempo das vivências
iniciais com a mãe consanguínea, a separação entre ambas, e, eventualmente, a
institucionalização da criança, sua inserção em uma nova família e como essa a
recebe. Algumas rupturas em meio a este processo podem ter uma relação com a
tendência antissocial. O objetivo do presente trabalho é apresentar um relato de
experiência de um caso atendido em um serviço escola de uma universidade pública,
referente a uma menina de 11 anos, que foi adotada há 4 anos, com queixas de
comportamento desafiador e hipersexualizado. O processo de avaliação psicológica
realizado revelou que a menina, além de ter passado por diversos impasses ao longo
de sua vida, ainda enfrenta alguns obstáculos, como adaptação à nova família e
dificuldade no estabelecimento de vínculos. Sua desconfiança em relação ao
ambiente é notável, bem como a busca por encontrar suporte afetivo e segurança.
Algumas manifestações da criança sugerem esperança de retomada do seu
amadurecimento emocional e de reencontro com seu viver criativo.
Introdução
563
No que concerne ao papel dos pais, Vidigal e Tafuri (2010) postulam que a
parentalidade envolve processos mentais conscientes e inconscientes. Para Lemos e
Neves (2019), a constituição da parentalidade passa, dentro de uma perspectiva
psicanalítica, por dimensões intersubjetivas, vinculares e transgeracionais, o que torna
esse momento complexo tanto para os pais biológicos que acompanham o processo
de gestação, quanto para aqueles que adotam uma criança.
O impacto que as rupturas exercem na vida da criança pode ser decisivo em
seu amadurecimento (Winnicott, 1956/2000a). O bebê que no início de sua vida possui
um bom vínculo com a mãe e o perde, pode sofrer uma deprivação. Quando a criança
já possui idade suficiente para entender que a perda foi ocasionada por um fator
externo, ela passa a buscar que o ambiente repare a falta e devolva aquilo que lhe foi
retirado. Nessa busca ela pode testar continuamente o ambiente em uma conduta que
Winnicott chamou de “amolação”, que é passível de avizinhar-se, mais ou menos, com
o comportamento antissocial. É nesse momento que a tendência antissocial surge
como uma característica clínica (Winnicott, 1967).
Essa tendência antissocial aparece de duas formas: na primeira, a criança está
procurando algo que já teve e não encontra, então ela vai em busca de outro objeto
em outro lugar, o que muitas vezes se manifesta na forma do roubo. Na segunda, a
criança busca uma estabilidade ambiental que suporte seu comportamento impulsivo,
então essa busca pode se manifestar em conduta destrutiva (Winnicott,1956/2000a).
No caso de uma criança adotiva que passou por tal período de privação, é
possível que essas buscas e os comportamentos que a manifestam surjam no
contexto do novo lar. Nesse sentido, o desafio para os pais é tolerar a conduta da
criança, uma vez que eles podem tornar-se alvos de raiva e ódio sentidos pelo filho
(Gomes, 2006). Segundo Winnicott “[...] quando a história inicial não foi
suficientemente boa em relação à estabilidade ambiental, a mãe adotiva não está
adotando uma criança, mas um caso, e, ao se tornar mãe, ela passa a ser a terapeuta
de uma criança carente” (Winnicott, 1954/1997, p. 117).
Portanto, o processo de adoção envolve tanto aspectos individuais da criança
quanto da maneira como a nova família compreenderá as necessidades dela. O modo
como transcorre essa relação é essencial para o amadurecimento emocional infantil.
Por esse motivo, é um processo que exige cuidado e atenção, com estudos que
identifiquem os principais obstáculos a fim de auxiliar os envolvidos nesse processo.
564
Objetivos
20
Todos os nomes utilizados são fictícios para fins de preservação da identidade dos participantes.
565
80 anos). Além disso, ele tinha filhos adultos que frequentavam a casa e ajudavam
com as crianças em seus primeiros anos de vida. No entanto, segundo relato de
Cecília, ela era mandada para a escola, pois os adultos queriam livrar-se dela para
passar tempo apenas com Leonardo, que supostamente sofria abuso físico e/ou
sexual.
Quando a menina tinha em torno de três anos, ela e o irmão foram retirados da
família consanguínea devido à situação de vulnerabilidade a que estavam expostos e
foram levados para uma instituição onde viveram por quatro anos. Nesse período,
houve tentativas de reintegrar as crianças à família consanguínea, sem sucesso e, de
acordo com Cecília, com outros episódios de violência. Quando a família
consanguínea perdeu definitivamente a guarda, uma família tentou adotá-los, mas
eles foram devolvidos à instituição em menos de uma semana.
Marta e Luiz decidiram adotar as duas crianças, pois já haviam tentado
engravidar e não obtiveram resultado positivo. Após algumas tentativas de
inseminação artificial, desistiram de ter filhos, mas Luiz sabia que Marta queria ser
mãe e a convenceu a realizar a adoção. Assim, eles se inscreveram no sistema de
adoção nacional como casal disposto a receber uma criança de no máximo cinco
anos. Foi dessa forma que entraram em contato com Leonardo, ainda com quatro
anos. Como ele tinha uma irmã biológica, eles decidiram adotá-la também. As
crianças vivem com essa nova família há quatro anos.
Em entrevista de anamnese com Marta, foram levantadas algumas queixas.
Primeiramente, ela referiu as mentiras da menina, mas também contou que a filha tem
uma atitude hipersexualizada e, por isso proíbe-a de usar roupa curta. No entanto,
algumas vezes, a mãe já percebeu que a menina vai até a escola com a roupa que
ela aprova e, chegando lá, a troca para uma roupa mais curta. Quando a mãe a
confronta sobre o assunto, ela nega e diz que a troca de roupa dentro da mochila não
é dela. Há que se ressaltar que Marta é branca e que apresenta em seu discurso uma
evidente questão racial de sexualização da mulher negra quando se refere à filha.
Além disso, Marta também conta que as duas crianças pegam dinheiro da carteira dos
pais sem permissão e usam-no para comprar comidas e brinquedos.
Diante disso, o caso em consideração remete à experiência de deprivação,
conforme descrita por Winnicott (1956/2000a). Cecília viveu sob os cuidados de sua
mãe consanguínea por dois anos, até que ela foi embora e a criança a perdeu. Essa
modificação ambiental, independente da sua qualidade, alterou a vida da criança, que
566
passou a viver apenas com o pai e os irmãos, até chegar na instituição. O espaço de
tempo existente entre o abandono da mãe, a passagem para uma instituição e depois
para a nova família foi de sete anos. De acordo com Briani (2008), efeitos que
mudanças dessa natureza podem causar no psiquismo e na formação da identidade
de uma criança são significativos.
No contexto da família adotiva, os pais têm muita dificuldade para tolerar e
suportar os ataques vindos da filha, o que acontece, na verdade, é uma reação moral
por parte deles. Eles pedem ajuda ao padre da comunidade e matriculam Cecília na
catequese da igreja católica. Além disso, houve outras reações morais de punição,
por exemplo, quando Cecília fez aniversário e os pais não realizaram nenhuma
comemoração. Isso acontece porque, segundo os pais, a menina não merece estes
cuidados devido ao seu comportamento.
No encontro com Cecília, ela disse gostar muito de sua mãe, mas sente que
esta não dá a ela toda a atenção que gostaria de receber. Conta de alguns momentos
em que elas passaram juntas, como fazendo bolos e outras comidas. No entanto,
durante a entrevista de anamnese, Marta deixou claro que essas ocasiões
compartilhadas com sua filha na cozinha haviam sido estressantes. Ainda, a criança
disse que gostaria de passar mais tempo com a mãe conversando e fazendo
atividades só as duas. Por sua vez, Marta disse que gostaria de sentir amor por sua
filha, mas não se sente à vontade para o contato próximo, nem para abraçá-la e nem
para segurar sua mão.
Outra queixa relatada pela mãe envolve situações em que a filha a contraria.
Por exemplo, Marta pede que Cecília tome banho todos os dias, que realize os
cuidados necessários em seu período menstrual e que cuide das unhas e de seu
cabelo. No entanto, a menina não segue essas orientações, o que sugere ser esta
uma forma de expressão do seu ódio pela mãe (Gomes, 2006), por exigir esses
comportamentos de uma forma que não contempla afeto ou carinho.
Isso fica mais claro na sessão lúdica quando Cecília deu atenção especial aos
cabelos das bonecas com as quais brincou. Esse fato chama atenção por seu cabelo
ser extremamente curto e ela relatar que estava deste tamanho pois sua mãe o havia
raspado há pouco tempo. A dificuldade de Marta para aceitar o fato de não haver
semelhança física entre ela e a filha, remete à observação de Levinzon (2010) de que
muitos pais adotivos querem parecer-se com seus filhos para que não sintam a
distância biológica entre eles. Além disso, o gesto de impaciência da mãe com a falta
567
de cuidados da menina com o próprio cabelo, pode ser visto como um sinal de
violência e punição tanto pela distância biológica quanto afetiva entre as duas.
Esse mesmo tema apareceu no Procedimento de Desenhos-Estórias quando,
em seu primeiro desenho, a menina fez a família muito colorida com flores, árvores,
pássaros, uma borboleta e uma abelha. Sua história foi sobre um dia em que aquela
família havia ido ao zoológico e visto diversos animais. Os que ela mais gostou foram
o tigre e o leão, principalmente este último, devido a sua juba.
Cecília parece identificar-se com o leão, pois ela é uma menina forte, cheia de
vida e com recursos, no entanto, estes não foram valorizados pela sua mãe, revelando
a dificuldade desta última em aceitar os atrativos femininos da filha. Enquanto falava
do leão, Cecília desenhou também uma abelha, destacando o ferrão, e uma borboleta
colorida e feliz, revelando a coexistência de seus afetos amorosos e agressivos.
Na segunda unidade de produção, Cecília fez flores coloridas, árvores,
pássaros, uma borboleta e uma abelha. Sua história foi apenas a descrição do
desenho, acrescentando que aquela era uma natureza feliz. Esse desenho foi
parecido com o anterior, no entanto, não houve a presença de nenhuma figura
humana. Apareceram, dessa vez, nas árvores, alguns frutos que podem ser a
representação de sua feminilidade.
No terceiro e último desenho, a menina fez um coração flechado e triste e, ao
lado, um coração rindo que seria aquele que deu a flechada. Esse segundo coração
possui em seu desenho um traço perverso de estar rindo enquanto faz mal para o
outro. Nessa representação, a menina revela as dores e os abusos que sofreu ao
longo da vida por parte daqueles que amou e confiou, o que pode ter contribuído para
uma confusão entre amor e ódio. Desse modo, o comportamento agressivo pode ser
expressão do amor e vice-versa. É interessante ressaltar que, nos dois primeiros
desenhos, ela desenhou a linha do solo enquanto, no último, produziu balões em uma
representação de volatilidade e evasão da realidade.
Em suma, a história de vida de Cecília é permeada por diversos desafios. O
período inicial de vida foi conturbado, vivendo o abandono de sua mãe consanguínea
e sendo deixada em um ambiente tóxico. Esse período de sua vida junto com a
passagem para a instituição de acolhimento constituiu estressores importantes em
seu desenvolvimento emocional. Essa situação foi agravada pela conduta de sua
família atual, que não a aceita como é, o que a leva a sentir-se como uma intrusa que
568
foi acolhida na família apenas para acompanhar o irmão, o filho verdadeiramente
desejado.
Mesmo neste ambiente desfavorável, as manifestações clínicas da tendência
antissocial, vistas na menina, são consideradas um sinal de esperança, uma forma
em que ela manifesta inconscientemente um pedido para que o ambiente cuide dela
(Winnicott, 1956/2000a).
Considerações finais
569
Referências
570
51- MASCULINIDADES: UM DIÁLOGO COM EPISTEMOLOGIAS CONTRA-
HEGEMÔNICAS
Resumo: Este estudo teve por objetivo apresentar o Grupo de Estudos e Pesquisas
em Masculinidades, vinculado ao Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia
da Saúde (LEPPS-FFCLRP-USP), traçando sua trajetória de formação, objetivos e
modos de circulação dos saberes entre seus membros. A construção deste relato
de experiência se articula em torno de marcos teóricos e de pensadores que têm
guiado o pensamento e as leituras do grupo, que é constituído e gerido por
profissionais, pós-graduandos(as) e estudantes de Psicologia. Com esse propósito
delineiam-se cronologicamente as teorias e pensadores que têm guiado as leituras
e constituído o corpus de análise do tema das masculinidades, com foco nos
processos de socialização do conhecimento. Ao se apropriar criticamente desse
arcabouço teórico-conceitual, o Grupo pretende contribuir para qualificar o debate
científico no âmbito da Psicologia e da formação acadêmica, por meio do estudo
crítico de questões candentes da contemporaneidade, sob a perspectiva das
masculinidades.
Introdução
576
as questões relacionadas ao gênero com as de classe social (Connell &
Messerschmidt, 2005, 2013).
A conceitualização proposta por Connell fornece um arcabouço teórico potente
para a análise do tema, com especial interesse às questões globais da atualidade,
como o caráter multidimensional das relações e as pontes que articulam aspectos da
vida pessoal às estruturas organizacionais e macrossociais. É preciso, contudo,
retomar o significado de hegemonia em seu uso gramsciano, de matriz marxista, tal
como foi utilizado originalmente pela autora (Connell, 2005).
577
Como podemos compreender o gênero no mundo contemporâneo?
(1) variam de cultura para cultura, (2) variam em qualquer cultura no transcorrer de um
certo período de tempo, (3) variam em qualquer cultura por meio de um conjunto de
outras variáveis, outros lugares potenciais de identidade e (4) variam no decorrer da
vida de qualquer homem individua.
581
Referências
Beauvoir, S. (1970). O segundo sexo (S. Milliet, Trad.). São Paulo: Difusão Europeia
do Livro.
Davis, A. (2016/1981). Mulheres, raça e classe (H. R. Candiani, Trad.). São Paulo:
Boitempo.
582
Hasan, M. M. (2018). Early defender of women’s intellectual rights: Wollstonecraft’s
and Rokeya’s strategies to promote female education. Paedagogica Historica, 54(6),
766-782.
Lima Duarte, C. (2005). Nísia Floresta e mulheres de letras no Rio Grande do Norte:
Pioneiras na luta pela cidadania. Revista Estudos Feministas, 13(1), 179-199.
Rich, A. (1980). Compulsory heterosexuality and lesbian existence. Signs, 5(4), 631-
660.
Scott, J. W. (1989). Gender and the politics of history. New York: Columbia University
Press.
583
52- VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS FÍSICOS E
EMOCIONAIS EM GESTANTES ADOLESCENTES1
INTRODUÇÃO
586
Portanto, a pesquisa Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, entrevistou
23.894 mulheres atendidas em maternidades públicas, privadas e mistas,
contemplando capitais e cidades do interior do Brasil, entre os anos de 2011 e 2012.
Onde revelou altos índices de intervenções como o uso de ocitocina, amniotomia,
litotomia, manobra de Kristeler e episiotomia. Em relação à satisfação, constatou-se
iniquidade na assistência recebida. Mulheres pretas e pardas, de baixo poder
aquisitivo e baixa escolaridade, residentes nas regiões norte e nordeste, referem
menor satisfação com a assistência recebida. Quanto a saúde mental dessas
mulheres, a pesquisa aponta a depressão materna detectada em 26% das mães entre
6 a 18 meses após o parto, sendo mais presente em mulheres de baixo poder
econômico e social, o que revela que a satisfação com o atendimento influenciou o
adoecimento (Leal e Gama, 2014).
Ainda segundo a pesquisa realizada por Leal e Gama (2014), 52% das
mulheres tiveram seus filhos por cesariana, em se tratando especificamente de
serviços privados chegamos aos alarmantes 88%. Não havendo indicações clínicas e
obstétricas para esse número tão elevado de cirurgias, elevando com ele a exposição
aumentada dos riscos de morbidade e mortalidade, bem como suas repercussões
para os recém-nascidos, incluindo aumento da obesidade, diabetes, asma, alergias e
outras doenças não-transmissíveis. Se levarmos em consideração as adolescentes, a
cesariana foi empregado em 42% dos casos. A pesquisa destaca que em relação as
mulheres adolescentes estão submetidas a maiores riscos, por iniciarem
precocemente a vida reprodutiva. Além de destacar o perfil bastante desfavorável das
gestantes adolescentes entrevistadas, onde destaca, sobretudo o baixo poder
econômico, baixo nível de escolaridade e baixo acesso aos pré-natal.
No entanto, associações de classe, organizações sociais e instituições de
ensino, tem em sua grande parte, acatado as exigências dos movimentos de
mulheres, e promovidos atualizações e encontros baseados nas melhores evidencias
científicas. O que tem gerado produções como: a diretriz para a assistência ao parto
e nascimento no Brasil (2018) do MS. Recentemente, realizamos junto ao Conselho
Regional de Enfermagem da Paraíba, importante encontro sobre assistência de
enfermagem obstétrica e neonatal, fomentando as discussões para as boas práticas
e redução da violência obstétrica e morte materna. O evento ocorreu na cidade de
Campina Grande-PB, no início de outubro de 2019, atraindo mais de 500 profissionais
de enfermagem.
587
Eventos como esses, buscam fomentar a mudança do modelo obstétrico
brasileiro, centrado sobretudo na mulher, e baseado em evidências fortes, já
implementados em muitos países desenvolvidos, onde os índices de morte materna e
violência obstétrica são baixíssimos.
No que concerne aos impactos da gravidez em adolescentes, nessa fase da
vida pode acarretar um risco maior de baixo peso ao nascer (BPN) e a prematuridade,
que são apontados como principais responsáveis pelas maiores taxas de morbidade
e mortalidade no primeiro ano de vida do recém-nascido. Apontam como
consequência a gestação precoce a exposição a abortos, distúrbios de ordem afetiva,
tanto em relação à mulher quanto ao recém-nascido, propensão à baixa autoestima e
à depressão, consequências emocionais advindas de relações conjugais instáveis
(Gama, Szwarcwald, Leal, & Theme Filha, 2001).
Logo, os efeitos deletérios da violência obstétrica em mulheres adolescentes
podem ser maiores, sobretudo em seus aspectos emocionais e físicos, necessitando
um olhar diferenciado por parte das políticas públicas, visando redução de danos
psíquicos.
Não é recente essa preocupação com as gestantes adolescentes. Quando
consultamos a literatura, a gravidez na adolescência tem sido apontada como uma
condição de risco, quer seja para a mãe adolescente ou para seu filho, tendo-se
tornado uma preocupação por parte de investigadores e organizações internacionais
como a World Health Organization (WHO, 1986).
No aspecto relacionado a feminilidade e maternidade, de acordo com a teoria
psicanalítica, sob a perspectiva de Freud, o caminho que leva à feminilidade se dá por
meio da maternidade. O que caracteriza a maternidade como atributo feminino,
tornando a mulher plena. Nessa perspectiva reforçar a importância social da mulher
na sociedade nos ajuda a compreender o papel feminino, papel esse que é transferido
para a adolescente, influenciando suas escolhas e projeto de vida. Os eventos
transcorridos durante esse processo de crescimento, podem causar efeitos maléficos
na vida dessas mulheres.
Assim, Winnicott buscava chamar a atenção dos psicanalistas para a
importância e os efeitos do ambiente nos estágios precoces do desenvolvimento,
observando cuidadosamente a relação mãe-bebê, identificando nela semelhanças
que a caracterizavam ao setting freudiano em seus elementos de confiabilidade e
estabilidade (Granato & Aiello-Vaisberg, 2009).
588
Portanto, trabalhar com mulheres grávidas adolescentes, requer um preparo
maior e melhor do que efetivamente são implementados nas políticas de saúde do
Brasil, sobretudo nos lugares mais distantes dos grandes centros, onde as
atualizações não chegam de forma efetiva aos profissionais de saúde.
CONCLUSÃO
As análises aqui apresentadas mostram que no Brasil ainda impera o modelo
hegemônico do cuidado, centrado no modelo biomédico, e que as construções e
implementação das políticas públicas ainda tem pouca participação popular.
No entanto, não podemos negar que houve avanço nas discussões de temas
como, a violência obstétrica. Isso tem fomentado a busca pela mudança do modelo
obstétrico brasileiro, sendo esse centrado na mulher e justificados nas melhores
evidências científicas. Leis e proposituras abordando o tema da violência obstétrica
seguem sendo aprovadas em várias cidades e estados brasileiros, muitas entidades
de classe e movimentos sociais de mulheres já apoiam e exigem mudanças urgentes.
Os efeitos danosos da violência obstétrica, ainda geram divergências entre os
profissionais de saúde, algumas entidades médicas negam veementemente sua
existência, e não aceitam o emprego do termo. Negar sua existência, é negar a
presença dos efeitos danosos causados às mulheres, sejam eles de ordem física ou
emocional. Desse modo é preciso avançar na ruptura definitiva desse modelo de
assistência, e empregarmos o respeito as escolhas conscientes e orientadas das
mulheres.
REFERÊNCIAS
Leal, M. do C., Nogueira da Gama, S. G. Nascer no Brasil. (2014). Cad. Saúde Pública.
Rio de Janeiro, v. 30, supl. 1, p. 5,. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2014001300001&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 29.mai.2019.
Organização mundial de Saúde – OMS (2014). Prevenção e eliminação de abusos,
desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Disponivel em:
<http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR-14.23_por.pdf >.
Acesso em: 28. Abr. 2019.
Fundação Perseu Abramo, SESC (2010). Mulheres Brasileiras e Gênero nos espaços
Público e Privado: pesquisa de opinião pública. Disponível em:
<https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-
Content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra-o.pdf >. Acesso em: 09. mai. 2019.
590
53- EXPRESSÕES DO IMPACTO DO AUTISMO DO FILHO MAIS VELHO SOBRE
A RELAÇÃO ENTRE PAIS E CRIANÇAS MAIS NOVAS: UM ESTUDO
QUALITATIVO
Rogério Lerner
Milena Degasperi.
Resumo: Em estudo quantitativo de segmento, bebês com alto risco para problemas
de desenvolvimento tem sido avaliados em relação a autismo, problemas de
comportamento e de interação sócio emocional, atrasos na cognição e na linguagem.
Mães destes bebês estão sendo avaliadas em relação à função reflexiva, assim como
depressão, estresse e ansiedade. A experiência de campo tem, no entanto, mostrado
que há também outra dimensão que compõe o contexto de onde são extraídas as
perguntas disparadoras do estudo. Neste texto, alguns questionamentos têm sido
analisados e refletidos também a partir de uma dimensão qualitativa.
Introdução
Em pesquisa recente (DURAND et al., 2019), 144 díades compostas por mães
e bebês (de 0 a 2 anos) foram divididas em dois grupos: bebês com alto risco para
problemas de desenvolvimento (por terem um irmão mais velho com Transtorno do
Espectro do Autismo - TEA) e bebês com baixo risco (irmão mais velho sem
Transtorno do Espectro do Autismo). Alguns resultados observados:
591
de baixo risco para problemas de desenvolvimento;
2. Entre 01 e 02 anos, as mães dos bebês do grupo de alto risco para
problemas de desenvolvimento expressaram maior intrusividade e seus
bebês tendiam a ser menos cooperativos.
592
criança com autismo e com seus outros filhos, muitas vezes gerando efeitos adversos
entre os membros da família.
Uma situação bastante comum tem sido a presença, dentre os irmãos mais
novos, de características do autismo que, no entanto, não permitem que se feche
diagnóstico para tal condição. Uma menina de 5 anos, por exemplo, embora
claramente tivesse desenvolvimento típico, permaneceu ao longo de grande parte da
avaliação produzindo sons peculiares e um tanto descontextualizados. Ao final das
avaliações, pediu para se sentar no colo de uma das pesquisadoras e ficou apalpando
seu corpo sem nada dizer, muito embora soubesse falar bem. Outra participante do
estudo demonstrou aparente hipersensibilidade a estímulos auditivos, comum
característica das crianças com autismo. Repetidas vezes, durante as avaliações,
demonstrou muito incômodo ao ouvir sons muito distantes ou baixos, da TV e de seu
celular de brinquedo.
593
Ainda nessa linha da presença de sinais e sintomas de autismo dentre os
irmãos mais novos que, no entanto, não fecham diagnóstico para essa condição, há
o exemplo de um menino que muitas vezes durante a avaliação interrompeu a mãe
para direcionar a ela múltiplas solicitações, como doces que queria comer. Diante da
recusa da mãe, ele batia o pé e resmungava. A mãe disse que esse comportamento
do filho é frequente, e completou: “Ele faz isso para imitar o irmão mais velho”.
É interessante notar que essa imitação ou semelhança com o irmão mais velho
não é onipresente. Às vezes o que ocorre é justamente o contrário. Se por um lado
em muitas famílias as pesquisadoras estiveram às voltas com crianças que acabavam
repetindo modos de ser dos irmãos mais velhos, por outro também foi encontrado o
contrário. Uma garotinha de apenas 5 anos, muito sensível, parecia perceber muito
bem as expressões e manifestações comportamentais do irmão mais velho. Ela
parecia ter excelente função reflexiva e capacidade de mentalização e, diante das
crises do irmão mais velho, ela tentava atribuir significados e pensar sobre o que
poderia estar por trás daqueles comportamentos. Ela dizia: “Ele quer atenção” ou “Ele
também queria desenhar”.
Ao dar voz para aquilo que o irmão mais velho não conseguia nomear, essa
garotinha contribuía para o seu desenvolvimento e, diferentemente de outras crianças
da amostra, não repetia os comportamentos disruptivos do irmão. É interessante notar
que a mãe dessa menina observou: “O desenvolvimento do meu filho com autismo
aconteceu somente depois que a minha filha mais nova nasceu, ela contribuiu muito
para o desenvolvimento dele”. Vemos, a partir dessa ilustração, o quanto a reflexão e
verbalização sobre os comportamentos descontextualizados envolvidos no autismo
594
pode vir a influenciar as crianças mais novas para prevenir uma repetição desses
comportamentos e, ainda, contribuir para o desenvolvimento da criança mais velha.
Algo muito importante que tem sido observado, e tem chamado a atenção das
pesquisadoras devido à frequência, é o aspecto funcional das brincadeiras entre as
mães e seus filhos. Insistentemente, muitas mães do grupo dos irmãos com alto risco
para problemas de desenvolvimento pedem para que as crianças nomeiem os
brinquedos ou traduzam seus nomes para o inglês. Nota-se grande preocupação com
o desenvolvimento cognitivo ou de que o filho “saiba” determinadas coisas, em
detrimento de um jogo de faz de conta mais prazeroso que poderia se desenrolar na
díade se não houvesse tais preocupações. Uma das mães relatou, inclusive, grande
alívio ao saber o desenvolvimento do filho mais novo estava indo bem, de acordo com
as avaliações que foram feitas. Ela agradeceu e completou: “quando o filho mais velho
tem autismo, o medo em relação ao desenvolvimento do mais novo fica muito maior”.
Esta mãe descreveu alguns comportamentos do filho mais novo que ela considerava
semelhantes ao do filho com autismo e novamente buscou certificar-se de que tudo
corria bem.
Uma mãe relatou que, desde que o filho mais novo nasceu, tem investido muito
tempo e atenção nos aspectos diversos do desenvolvimento dele, passando uma
impressão para as pesquisadoras de que a mesma busca “compensar” o que não foi
possível de ser feito com o filho mais velho, autista. Ao receber o feedback das
pesquisadoras de que tudo estava bem, disse, bastante enfática: “Eu tive sorte com o
meu filho mais novo. Eu sei que quando a gente tem um filho autista a chance do outro
ser autista também é maior, mas ainda bem que meu filho está ótimo!”. Outra mãe
falou explicitamente sobre essa “compensação”, com o filho mais novo, do que não
pôde viver com o filho mais velho. Contou às pesquisadoras que planejou muito ter
um segundo filho e, quando engravidou e descobriu que era um menino, muitas
pessoas chegaram até a defender que ela não deveria ter a criança (pelo risco do
autismo). Muito convicta e desejosa de ter o bebê, todavia, a mãe sustentou a gravidez
até o final e relatou, na ocasião das avaliações, que desde que o mais novo nasceu
ela tem investido muito no desenvolvimento dele. Completou, dizendo que na escola
as professoras dizem que o menino está “acima da média”.
Essas ilustrações evidenciam o impacto do autismo do filho mais velho sobre a
relação que se estabelece com a criança mais nova e o quanto a experiência com a
595
criança mais velha muitas vezes é determinante da forma de se conceber um
referencial para o desenvolvimento infantil. Embora na experiência das pesquisadoras
esse impacto seja quase onipresente, ele não se apresentou da mesma forma em
todas as díades avaliadas.
Se, por um lado, é muito comum que as mães direcionem à criança mais nova
expectativas subestimadas sobre o desenvolvimento, já que muitos atrasos estão
presentes nas condições de Transtorno do Espectro do Autismo e é esse o referencial
que os pais conhecem, por outros algumas vezes ocorre justamente o contrário. Em
uma das famílias avaliadas, por exemplo, os pais relataram achar que a filha mais
nova estava atrasada, em muitos aspectos, em comparação ao filho mais velho com
autismo. Preocupada, a mãe disse às pesquisadoras: “Ele (filho mais velho com
autismo) aprendeu os números muito mais cedo do que ela, sentimos que ela está
atrasada”. A avaliação foi oportunidade para esclarecer, junto à mãe, de que a menina
na verdade não estava atrasada, e que a facilidade com que o menino mais velho
fazia uso dos números desde muito cedo, muitas vezes de forma descontextualizada
e repetitiva, na verdade fazia parte do quadro de Transtorno do Espectro do Autismo.
Ainda, vale notar que a experiência de campo tem evidenciado aquilo que na
literatura é descrito como o ciúme que as crianças mais novas muitas vezes têm do
irmão com autismo, ou do menor envolvimento parental com a criança mais nova
nessas famílias (ARAÚJO, SOUZA-SILVA & D’ANTINO, 2012). Um garotinho de 6
anos, durante a aplicação de um teste de capacidade cognitiva, de repente
interrompeu a pesquisadora para dizer: “Estou gostando muito!! Esse vai ser o meu
tratamento a partir de agora?”. O desejo de que aquele fosse o seu tratamento e de
que ele pudesse voltar a encontrar as pesquisadoras reapareceu ao longo das
avaliações. A mãe disse para as pesquisadoras que o menino é muito desejoso de
“ter um tratamento”, já que desde sempre acompanha o irmão mais velho nas diversas
clínicas, consultórios e dispositivos voltados ao seu cuidado.
Estas impressões qualitativas têm sido de grande auxílio para que seja possível
uma discussão mais aprofundada de alguns resultados quantitativos provenientes dos
participantes do grupo de alto risco para problemas de desenvolvimento, como, por
exemplo, na avaliação das brincadeiras entre as díades e, também, nas avaliações
de indicadores de função reflexiva.
A elaboração estatística dos dados, embora nos aponte um caminho, não
esgotam todas as possibilidades de compreensão do fenômeno. Por mais que o
596
resultado de um questionário de avaliação de sofrimento mental, como o SRQ (Self
Reporting Questionnaire - MARI & WILLIAMS, 1986), possa nos trazer fortes indícios
de que uma pessoa está em sofrimento, ainda assim, para uma análise mais
aprofundada, é necessário considerar os desafios, medos e dificuldades no dia a dia
que estão atrelados às condições particulares que o autismo suscita. Os dados
advindos das avaliações feitas de forma quantitativa são essenciais, principalmente
quando um dos objetivos de um trabalho é complementar ou modificar as políticas
públicas vigentes. No entanto, quando escutamos a demanda vinda dessas famílias,
seja dos pais ou mesmo das próprias crianças, tal qual o menino de 6 anos, ávido por
um “tratamento”, tão espontânea e explicitamente colocou, a necessidade de que
essas famílias sejam recebidas de forma mais completa nos serviços de atenção à
saúde se torna ainda mais urgente.
Referências
597
MARI, JJ & WILLIAMS, P. (1986). A validity study of a psychiatric screening
questionnaire (SRQ-20) in primary care in the city of São Paulo. Br J Psychiatry 1986;
148:23-6.
Agradecimento:
Sobre os autores:
Rogério Lerner
Milena Degasperi.
598
54- “VOCÊ DEIXA DE SER UMA PESSOA COM DIREITOS A PARTIR DO
MOMENTO EM QUE FALA QUE É HOMOSSEXUAL”: VIOLÊNCIA CONTRA
MULHERES LÉSBICAS
Carolina de Souza21
Manoel Antônio dos Santos22
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – FFCLRP-USP
Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS – FFCLRP-USP)
1. Introdução
Há evidências de que profundas disparidades de saúde ocorrem entre indivíduos
homossexuais quando comparados aos heterossexuais. Os estudos mostraram que
o assédio e a discriminação baseada na orientação sexual estão associados a maior
vulnerabilidade aos distúrbios psicológicos (Gregory Herek, Joseph Gillis, Jeanine
Cogan, & Eric Glunt, 1997; Ilan Meyer, 1995; Robin Lewis et al., 2015). Estudo
realizado na Austrália, observou que mulheres lésbicas e bissexuais eram
significativamente mais propensas a usar os serviços de saúde do que as
heterossexuais, porém, a satisfação das primeiras com esses serviços e a
continuidade dos cuidados eram significativamente menores (Tonda Hughes, Laura
Szalacha, & Ruth McNair, 2010).
As Unidades de Saúde da Família são vistas como um lugar “de mulheres” e
“para mulheres”, que é o maior público recebido ali. Geralmente, as ações do serviço
estão relacionadas com os aspectos reprodutivos e a porta de entrada é por conta da
maternidade. É comum que a mulher chegue ao serviço pelo fato de algum dos
agentes de saúde ter identificado a gravidez dela em uma de suas visitas e a partir
21
Psicóloga. Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Bolsista de Mestrado da FAPESP, processo número
2016/26212-2. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq) e do Grupo de Ação e
Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero - VIDEVERSO (FFCLRP-USP). Psicóloga voluntária do REMA - EERP-USP. E-mail:
carol.souza_@hotmail.com
22
Professor Titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Psicólogo, Mestre e
Doutor pelo IP-USP. Livre-docente pela FFCLRP-USP. Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (FFCLRP-USP-CNPq)
e do Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero – VIDEVERSO (FFCLRP-USP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq nível 1B. Coordenador da equipe de Psicologia do REMA - EERP-USP. Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP. E-mail:
manoelmasantos@gmail.com
599
daí essa mulher é captada para as outras ações. Percebe-se que o modelo de mulher
esperada nas Unidades de Saúde da Família é o seguinte: adulta, mãe e
heterossexual. Qualquer mulher que fuja desse padrão é invisibilizada ou passa por
serviços que não são adequados para suas demandas particulares (Ana Mello, 2014;
Kátia Souto, 2008).
Na maioria das vezes, as mulheres lésbicas passam despercebidas nos
serviços de saúde e a identificação de sua orientação sexual não ocorre de forma
direta, nas consultas com as mulheres, e sim pela identificação dos outros de
características tidas como do gênero masculino, como, “cabelo curto, jeito masculino
de andar, tipo de roupa” (p. 21). As mulheres que nem passam por essa identificação
estereotipada não são percebidas como lésbicas, ficando ainda mais invisibilizadas e
tendo suas demandas particulares não atendidas. Isso valida ideias de que mulheres
homossexuais não correm riscos de transmitir DST/AIDS e, por isso, não é necessário
realizar orientações específicas sobre prevenção (Ana Mello, 2014; Grayce
Albuquerque, Cíntia Garcia, Maria Alves, Cicera Queiroz, & Fernando Adami, 2013;
Michelle Cardoso & Luís Ferro, 2012; Regina Barbosa & Regina Facchini, 2009)23.
Os profissionais não sabem que abordagem utilizar quando identificam uma
mulher homo ou bissexual e acabam seguindo o protocolo de atendimento feito para
mulheres heterossexuais. Eles não sabem o que fazer, pois não tiveram em sua
formação a oportunidade de discutir sobre homossexualidade e sua interface com a
saúde. Assim, a produção de materiais informativos e de formação para os
profissionais de saúde precisa considerar a diversidade dos discursos. A abordagem
utilizada com um profissional que possui atitude de aceitação provavelmente terá que
23 Neste trabalho, ao formatar as referências, optei por incluir todos os prenomes ao lado dos respectivos
sobrenomes das(os) autoras(es), em vez de limitar-me à tradicional nomeação apenas dos sobrenomes. Essa
opção se justifica. O motivo para adotá-la é manter um estilo de redação científica consistente com o referencial
teórico que sustenta esta pesquisa, que se apoia nos estudos feministas. Uma das reivindicações das teóricas
feministas e do movimento feminista como um todo diz respeito à necessidade de dar ampla visibilidade à produção
intelectual e científica feita por mulheres. Desse modo, é recomendado explicitamente que se ofereça os primeiros
nomes de autoras e autores dos estudos referenciados, o que garante a imediata visibilidade das mulheres, que
de outro modo ficariam “invisíveis” quando as publicações aparecem referidas apenas pelos sobrenomes. Ao
adotar essa recomendação no processo de formalização e escrita deste projeto, estou consciente de que isso
implica transgredir uma das normas do estilo de redação científica definido pela American Psychological
Association - APA 7th edition. Acredito, contudo, que a relação custo-benefício pende favoravelmente com a
decisão que tomei após muita reflexão, tendo em vista o ganho substancial que isso traz em termos de coerência
não apenas com o referencial teórico, mas também com o tema investigado, lembrando que uma das metas desta
pesquisa é dar visibilidade às mulheres lésbicas no campo da saúde, considerando que são minorias nos serviços,
nos quais passam despercebidas como usuárias sexuadas e generificadas, assim como são minoritárias na
população geral.
600
ser diferente daquela utilizada com um profissional que possui um discurso de rejeição
ou um discurso mais rígido sobre a questão da homossexualidade. Além disso, os
profissionais também precisam ser cuidadosos ao lidar com as categorias de
classificação presentes nas mulheres de minorias sexuais, já que o significado das
palavras lésbica ou bissexual, por exemplo, pode não ser o mesmo para a dupla que
está na consulta (Ana Mello, 2014; Grayce Albuquerque et al., 2013; Michelle Cardoso
& Luís Ferro, 2012; Regina Barbosa & Regina Facchini, 2009).
Mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais que participaram de uma pesquisa
sobre as experiências de acesso aos serviços de assistência em HIV-aids
descreveram múltiplas barreiras ao cuidado e apoio em HIV, incluindo o estigma
generalizado, os pressupostos heteronormativos presentes nos serviços de mulheres
HIV-positivas e o tratamento discriminatório e desqualificado por parte dos
profissionais de saúde. Intervenções que abordem as formas de marginalização que
se intercruzam (estigma sexual, homo/transfobia e estigmas relacionados ao HIV) em
normas comunitárias e sociais e na programação e pesquisa em HIV-aids são
necessárias para promover a equidade em saúde entre mulheres LGBTI (Carmen
Logie, Lana James, Wangari Tharao, & Mona Loutfy, 2012).
Observa-se a urgência em refletir sobre a organização dos serviços de saúde
e sobre a formação dos profissionais a fim de se garantir uma escuta qualificada, um
respeito maior e um acolhimento adequado a todas as usuárias do sistema público de
saúde, de forma que a universalidade do acesso e a integralidade do atendimento
também sejam possíveis. É importante que haja um ambiente de apoio e acolhimento
em que estas mulheres se sintam seguras o suficiente para revelarem, caso queiram,
sua orientação sexual. Os clínicos que são capazes de fornecer tal ambiente podem
auxiliar lésbicas e bissexuais a desenvolverem suas habilidades de enfrentamento
(Ana Mello, 2014; Deborah Aaron & Tonda Hughes, 2007; Grayce Albuquerque et al.,
2016; Tonda Hughes, Timothy Johnson, Sharon Wilsnack, & Laura Szalacha, 2007).
Por outro lado, percebem-se também avanços em programas e políticas
públicas para atender as populações marginalizadas, como o programa Brasil sem
Homofobia, a Carta de Direitos dos Usuários da Saúde, a Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Mulher e a Política Nacional de Saúde Integral de LGBTI. O
obstáculo é que a efetivação destas políticas ainda é vista como algo desafiador. O
Estado, portanto, deve garantir o acesso aos direitos à liberdade de expressão, de
associação e de reunião pacífica a todos os cidadãos, independentemente do sexo,
601
orientação sexual ou identidade de gênero, e deve assegurar que quaisquer restrições
a esses direitos não sejam motivadas por discriminação. A fim de proteger o exercício
desses direitos, deve-se prevenir ou efetivamente investigar e punir os atos de
violência e intimidação. Ainda, o direito de acesso a instalações, bens e serviços de
saúde de maneira não discriminatória, especialmente para populações vulneráveis ou
marginalizadas é uma obrigação imediata e deve ser garantido pelos governos
(Grayce Albuquerque et al., 2013; 2016; United Nations Human Rights, 2012).
2. Justificativa e Objetivo
Ruth McNair e Rachel Bush (2016) pontuam, em particular, que os serviços de
saúde precisam ser sensíveis à população LGBTI. Em primeiro lugar, apenas algumas
participantes relataram ter recorrido a serviços específicos LGBTI, buscando, ao invés
disso, os serviços tradicionais; em segundo lugar, elas identificaram a necessidade de
os serviços convencionais serem mais LGBTI inclusivos. E, finalmente, mais de 2/3
das participantes identificaram a possibilidade de acesso a tais serviços como um fator
facilitador da procura por ajuda. No entanto, há evidências de que poucos serviços de
saúde realmente oferecem espaços orientados por tais cuidados. Além disso, para
que a ajuda profissional seja efetiva, ainda falta a necessária compreensão
abrangente da sexualidade e dos efeitos deletérios da discriminação baseada no
gênero e/ou na orientação sexual. Além disso, o apoio social pode deixar de abarcar
a amplitude inerente à diversidade das mulheres homossexuais que precisam de
ajuda, considerando que pode haver também certa heterogeneidade em meio à
aparente homogeneidade desse grupo. Por outro lado, considerando que as
experiências de receber suporte social afetam amplamente suas vidas, contribuindo
para suprir suas necessidades de saúde mental, disponibilizar cuidados sensíveis à
população LGBTI torna-se uma necessidade crítica na atual agenda de saúde (Ruth
McNair & Rachel Bush, 2016). Considerando o exposto, este trabalho tem por objetivo
compreender os sentidos atribuídos por um casal de mulheres lésbicas à
discriminação sofrida em serviços de saúde.
3. Método
Tipo de estudo: qualitativo, descritivo-exploratório e transversal.
Participantes: Uma mulher com câncer de mama (Débora) e sua parceira
(Helena), ambas maiores de 18 anos;
602
Procedimentos:
o Investigação: formulário de dados sociodemográficos; Critério de
Classificação Econômica – Critério Brasil (CCEB) (ABEP, 2016); roteiro
de entrevista semiestruturado;
o Constituição do corpus de pesquisa: entrevistas realizadas no local de
preferência das participantes; face-a-face, audiogravadas e transcritas.
o Procedimentos utilizados para análise do corpus: análise de conteúdo
temática indutiva (Virginia Braun & Victoria Clark, 2006) e análise de
gênero, aplicada ao cenário da saúde e do adoecer por câncer (Antonia
Xavier, Márcia Ataide, Francisco Pereira, & Velma Nascimento, 2010;
Mara Lago & Rita Muller, 2010).
Considerações éticas: projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
FFCLRP-USP (CAAE nº 65391517.4.0000.5407) e participação voluntária e
formalizada pela assinatura do TCLE.
4. Resultados e Discussão
Débora disse que teve mais de uma experiência de discriminação com os
médicos que encontrou ao longo do tratamento do câncer:
De você poder falar abertamente, de- que nem eu falei, tinha um profissional
que, quando ele perguntou sobre relação sexual, falei que tinha uma parceira,
ele riu e falou, “eu não consigo entender isso”. Só que eu acho que isso não
cabe ao profissional. Ele querer entender ou não. Cabe a mim, né, e eu só
quero que ele me escute, né, e que ele- se ele não for pra falar nada que vá
603
me agregar, que ele não fale nada, simplesmente me examine, faça o que tem
que ser feito, nada além, né (Débora, 37 anos, namorada da Helena).
604
É como se não existisse casal [durante as consultas]. É... tanto que assim ela
[médica] mal me cumprimenta quando eu entro na sala. Ela fala só com a
Débora, se direciona só com ela. Se eu falo alguma coisa, ela olha meio com
olho assim e se volta para a Débora, como se ela estivesse sozinha ali. [...] Eu
sou cara de pau. Então, o que eu tenho que falar, eu falo mesmo e não tô nem
aí. Mas às vezes dá vontade de falar “minha filha, eu tô aqui, você tem que
falar comigo também, porque eu quero saber o que tá acontecendo” (Helena,
22 anos, namorada de Débora).
5. Conclusões
Os achados deste estudo também permitem olhar em direção às questões de
saúde das mulheres lésbicas, que são em parte compartilhadas pelos demais
segmentos LGBTI, que têm suas vulnerabilidades ampliadas pela necessidade de
defenderem suas identidades e sexualidades dissidentes quando estão em contato
com os serviços de saúde. Combater as inequidades vivenciadas pelas mulheres
lésbicas no setor saúde consiste em um desafio para a efetiva implementação dos
direitos à saúde, com respeito à cidadania e à dignidade.
605
6. Referências
Aaron, D. J., & Hughes, T. L. (2007). Association of childhood sexual abuse with
obesity in a Community Sample of Lesbians. Obesity, 15(4), 1023-1028.
https://doi.org/10.1038/oby.2007.634
Albuquerque, G. A., Garcia, C. L., Alves, M. J. H., Queiroz, C. M. H. T., & Adami, F.
(2013). Homossexualidade e o direito à saúde: um desafio para as políticas
públicas de saúde no Brasil. Saúde em Debate, 37(98), 516-524.
https://doi.org/10.1590/S0103-11042013000300015
Albuquerque, G. A., Parente, J. S., Belém, J. M., & Garcia, C. L. (2016). Violência
psicológica em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no interior do
Ceará, Brasil. Saúde em Debate, 40(109), 100-111.
https://doi.org/10.1590/0103-1104201610908
Barbosa, R. M., & Facchini, R. (2009). Acesso a cuidados relativos à saúde sexual
entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cadernos
de Saúde Pública, 25(2), S291-S300. https://doi.org/10.1590/S0102-
311X2009001400011
Braun, V., & Clark, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative
Research in Psychology, 3(2), 77-101.
https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa
Cabral, F., & Diaz, M. (1999). Relações de gênero (pp. 142-150). Cadernos afetividade
e sexualidade na educação: Um novo olhar. Secretaria Municipal de Educação
de Belo Horizonte. Fundação Odebrecht. Belo Horizonte: Gráfica Editora Rona.
606
os Agentes Comunitários de Saúde? Tempus - Actas de Saúde Coletiva, 11(1),
121-139. https://doi.org/10.18569/tempus.v11i1.2327
Heilborn, M. (1997). Gênero, sexualidade e saúde. In: Saúde, sexualidade e
reprodução: Compartilhando responsabilidades (pp. 101-110). Rio de Janeiro,
RJ: UERJ.
Herek, G. M., Gillis, J. R., Cogan, J. C., & Glunt, E. K. (1997). Hate crime victimization
among lesbian, gay, and bisexual adults: Prevalence, psychological correlates,
and methodological issues. Journal of Interpersonal Violence, 12, 195-215.
https://doi.org/10.1177/088626097012002003
Hughes, T. L., Johnson, T. P., Wilsnack, S. C., & Szalacha, L. A. (2007). Childhood
risk factors for alcohol abuse and psychological distress among adult lesbians.
Child Abuse & Neglect, 31(7), 769-789.
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2006.12.014
Hughes, T., Szalacha, L. A., & McNair, R. (2010). Substance abuse and mental health
disparities: Comparisons across sexual identity groups in a national sample of
young Australian women. Social Science and Medicine, 71(4), 824-831.
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2010.05.009
Jennings, L., Barcelos, C., McWilliams, C., & Malecki, K. (2019). Inequalities in lesbian,
gay, bisexual, and transgender (LGBT) health and health care access and
utilization in Wisconsin. Preventive Medicine Reports, 14:100864.
https://doi.org/10.1016/j.pmedr.2019.100864
Lewis, R. J., Padilla, M. A., Milletich, R. J., Kelley, M. L., Winstead, B. A., Lau-Barraco,
C., & Mason, T. B. (2015). Emotional Distress, Alcohol Use, and Bidirectional
Partner Violence among Lesbian Women. Violence Against Women, 21(8), 917-
938. https://doi.org/10.1177/1077801215589375
Logie, C. H., James, L., Tharao, W., & Loutfy, M. R. (2012). ‘‘We don’t exist’’: a
qualitative study of marginalization experienced by HIV-positive lesbian,
bisexual, queer and transgender women in Toronto, Canada. Journal of the
International AIDS Society, 15, 1-11. https://doi.org/10.7448/IAS.15.2.17392
Machin, R., Couto, M. T., Silva, G. S. N., Schraiber, L. B., Gomes, R., Figueiredo, W.
S. . . . & Pinheiro, T. F. (2011). Concepções de gênero, masculinidade e
cuidados em saúde: Estudo com profissionais de saúde da atenção primária.
Ciência & Saúde Coletiva, 16(11), 4503-4512. https://doi.org/10.1590/S1413-
81232011001200023
607
McNair, R. P., & Bush, R. (2016). Mental health help seeking patterns and associations
among Australian same sex attracted women, trans and gender diverse people:
A survey-based study. BMC Psychiatry, 16:209.
https://doi.org/10.1186/s12888-016-0916-4
Meyer, I. H. (1995). Minority stress and mental health in gay men. Journal of Health
and Social Behavior, 36(1), 38-56. https://doi.org/10.2307/2137286
Popadiuk, G. S., Oliveira, D. C., & Signorelli, M. C. (2017). The National Policy for
Comprehensive Health of Lesbians, Gays, Bisexuals and Transgender (LGBT)
and access to the Sex Reassignment Process in the Brazilian Unified Health
System (SUS): progress and challenges. Ciência & Saúde Coletiva, 22(5),
1509-1520. https://doi.org/10.1590/1413-81232017225.32782016
Scott, J. W. (1989). Gênero: Uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade, 20(2), 71-99.
United Nations Human Rights. (2012). Born Free and Equal 2012. Estados Unidos.
Recuperado em 03 janeiro, 2017, de http://acnudh.org/wp-
content/uploads/2012/10/BornFreeAndEqualLowRes.pdf.
608
Valadão, R. C., & Gomes, R. (2011). A homossexualidade feminina no campo da
saúde: da invisibilidade à violência. Physis Revista de Saúde Coletiva, 21(4),
1451-1467. https://doi.org/10.1590/S0103-73312011000400015
Xavier, A. T. F., Ataide, M. B. C., Pereira, F. G. F., & Nascimento, V. D. (2010). Análise
de gênero para o adoecer de câncer. Revista Brasileira Enfermagem, 63(6),
921-926. https://doi.org/10.1590/S0034-71672010000600008
609
55- A VIOLÊNCIA DE GÊNERO TRANSFÓBICA COMO PRODUTO DA
INSUBORDINAÇÃO À HETERONORMATIVIDADE
Vinicius Alexandre
Manoel Antônio dos Santos
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP
Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero - VIDEVERSO
Apoio: CAPES (processo número 134357/2018-3)
Resumo: Existe uma flagrante tentativa de contenção e eliminação das pessoas trans
pelo meio cada vez mais hostil à expressão das diferenças. A cultura heterossexual,
ao normatizar as expressões de gênero por meio da Heteronormatividade, produz
identidades consideradas abjetas, ou identidades insubordinadas. A insubordinação
produz violência contra estas identidades, incluindo as identidades trans. A violência,
entre outras razões, atua como um mecanismo para garantir a manutenção das
identidades heteronormativas, as quais são sustentadas por um contexto institucional
conservador e preconceituoso.
1. TEMA
A violência de gênero praticada contra pessoas trans pode ser interpretada como
um produto da insubordinação de identidades heteronormativas à cultura
heterossexual e à Heteronormatividade.
2. INTRODUÇÃO
610
estranho constatar que existe uma flagrante tentativa de contenção e eliminação das
pessoas trans pelo meio cada vez mais hostil à expressão das diferenças. A existência
trans é vista como uma ameaça a partir do momento que o indivíduo emerge como
prova viva de que o gênero não é limitado ao binarismo supostamente natural que é
disseminado pela cultura heterossexual. A naturalização deste binarismo torna o
conceito de gênero algo banal e irrefletido pelas massas.
Como já foi amplamente demonstrado ao longo da história, a irreflexão revela-
se como um potencial perigo para grande parte das vidas humanas, uma vez que os
atos irrefletidos e não pensados podem resultar em um conjunto de práticas violentas
contra elas, seja essa violência de natureza material, corporal ou simbólica 24. Mas
essa forma de “não pensar” não seria possível se não houvesse um contexto
institucional que a alicerçasse e a validasse. Tão pouco é possível desconsiderar que
este contexto é mediado por mecanismos de poder que estabelecem um padrão
aceitável de ser, agir e existir, alienando as massas neste processo para que este
padrão seja entendido como natural de modo a garantir sua manutenção. Não cabe
aqui pensarmos todos os mecanismos que operam na sociedade, porém, para
compreender a violência perpetrada contra a população trans, precisamos
circunscrever um mecanismo em particular: a heteronormatividade.
3. DESENVOLVIMENTO DO TEMA
24
“A noção de coerção, ou de força, supõe um dano que se produz em outro indivíduo ou grupo
social, seja pertencente a uma classe ou categoria social, a um gênero ou a uma etnia. Envolve uma
polivalente gama de dimensões, materiais, corporais e simbólicas, agindo de modo específico na
coerção com dano que se efetiva [...] A afirmação de um dano supõe o reconhecimento das normas
sociais vigentes, pertinentes a cada sociedade, em um período histórico determinado, normas que
balizarão os padrões de legitimidade: a violência define-se então como um fenômeno cultural e
histórico. Revela-se como um procedimento de caráter racional, o qual envolve, em sua própria
racionalidade, o arbítrio, na medida em que o desencadear da violência produz efeitos incontroláveis
e imprevisíveis” (Santos, 2002, p.23).
611
heterossexual em interpretar a si própria como exemplar na sociedade. Essa cultura
pensa a si mesma como uma forma elementar nas relações humanas e entre os
gêneros, como uma base inquebrantável da sociedade e como aquela que porta os
mecanismos de reprodução sem os quais não haveria continuidade da vida.
Wittig (1992) observa que a pretensão excludente dessa cultura é
historicamente observada em Aristóteles, no momento em que ele define que a
Política está atrelada a união entre um homem e uma mulher, conquanto é possível
observar que, no mundo ocidental, o casal passou a representar o princípio da própria
união social. Dessa maneira, quaisquer formas de união e de relacionamentos que
escapem da lógica estabelecida pelas relações heterossexuais são imediatamente
rechaçadas, reprimidas e proscritas.
A Heteronormatividade é dotada de ousadia: ela intenta normatizar a maneira
como os desejos corporais e as sexualidades são vivenciados pelos indivíduos,
apregoando a máxima de que o desejo pelo sexo oposto é única realidade possível e
pensável (Petry & Meyer, 2011). Falamos aqui de um tipo de poder invisível e que
aglutina não só as experiências humanas que envolvem o desejo sexual, mas também
as identidades de gênero e suas expressões.
O sujeito heteronormativo não é apenas heterossexual, mas ele também está
sustentado no binarismo de gênero, binarismo este que estabelece, por uma relação
de oposição, que apenas as categorias “homem” e “mulher” são praticáveis (Butler,
2015). Um tipo de homem e mulher representados por todos os estereótipos sociais
pensáveis: um homem viril, esportista, agressivo e racional e uma mulher frágil,
emotiva, delicada e recatada, por exemplo. A estereotipia atua na construção de
identidades e corpos chamados cisgêneros (indivíduos cuja identidade de gênero
corresponde ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento).
A cisgeneridade atende à necessidade da Heteronormatividade em construir a
ilusão de uma “coerência” mimética entre o sexo, o gênero e a sexualidade. O objetivo
final é que os indivíduos acreditem que seus corpos biológicos ditam seus gêneros e
seus desejos sexuais. A compulsoriedade que instaura essa ilusão nas relações
interpessoais e na maneira como os indivíduos fundam suas identidades é a atitude
violenta que dará base a violência direcionada contra as identidades que escapam da
norma heteronormativa que sustenta a cultura heterossexual.
A cultura heterossexual, constituída aqui como sendo o baluarte geral ao qual
o juízo individual é subsumido, pretende se apresentar como originária e basal dentro
612
da história da humanidade. Esse mecanismo, no qual a noção de historicidade é
perdida ou sistematicamente elidida, tem por finalidade naturalizar a norma
heteronormativa no interior da sociedade. E ela o faz de maneira sorrateira, uma vez
que o pensamento heteronormativo raramente é caricatural; ao invés disso, ele se
veste de boa vontade e inteligência (Warner, 1991). Essa naturalização oferece um
conjunto de ideias, comportamentos e hábitos cristalizados dentro de uma pretensa
“ordem social” (Kristeva, 1982), na qual os indivíduos podem encontrar um repertório
“seguro” para “não pensar” sobre questões que emergem no plano individual. É um
caminho livre de problemas, no qual o se adequar-se é uma estratégia vista como
parte do plano natural do desenvolvimento humano e, de maneira não percebida
devido à ausência de reflexão, uma estratégia de sobrevivência ao meio.
Sobreviver ao meio, naturalmente, não envolve apenas adequar-se, mas
também atacar possíveis ameaças. E o que ameaça o sujeito cisgênero –
heterossexual? Precisamente todas as identidades e expressões incontidas pela
Heteronormatividade, ou então, as identidades insubordinadas a ela. Invariavelmente,
a ilusão de uma identidade heteronormativa fracassa diante das demandas da
realidade, de forma que inúmeras identidades vão escapar e se contrapor ao poder
da cultura heterossexual. Diante do fracasso iminente, as identidades pretensamente
heteronormativas atacam as identidades insubordinadas, também lidas como
identidades abjetas25, no intento de eliminá-las. A eliminação é tida como uma forma
de resguardar a própria existência da identidade heteronormativa: na presença do
diferente e do estranho, a identidade heteronormativa naturalizada é questionada em
sua própria integridade. O questionamento levanta dúvidas sobre a identidade e incita
um movimento onde o sujeito é obrigado a repensar as certezas sobre si mesmo, um
processo doloroso e que gera medo. O medo por sua vez gera a violência: é preciso
destruir as identidades que geram as incertezas sobre si mesmo, a fim de impedir que
estas “contaminem” a identidade “pura” e alinhada com a cultura e a normalidade.
Se é o medo que alimenta a violência contra o abjeto, podemos extrapolar que
o medo é a peça central contra as identidades trans. Esse medo, não por acaso, é
25
Por identidades abjetas, compreende-se aquelas identidades portadas por indivíduos que sofrem
do processo de abjeção, sendo que a abjeção “[...] relaciona-se a todos os tipos de corpos cujas
vidas não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante” (Butler,
2015, p. 32).
613
parte semântica da palavra “Transfobia”26, onde “fobia” (Fobia, 2018) significa
exatamente “medo”, de forma que o prefixo “trans” (Trans, 2018) se refere às
identidades que subvertem toda a base da cultura heteronormativa
A violência contra pessoas trans que emerge do medo do abjeto é antes de
mais nada, uma violência de gênero. Embora este termo geralmente seja usado para
caracterizar a violência perpetrada por homens cisgênero contra mulheres cisgênero,
a violência de gênero descreve qualquer tipo de violência enraizada em desigualdades
de poder baseadas em gênero e discriminação com premissa no gênero (2008). O
indivíduo trans ocupa um espaço desprivilegiado notável na cultura: se,
historicamente, as mulheres cisgênero tem ocupado lugares de pouco prestígio em
detrimento da soberania do homem cisgênero, a população trans não tem ocupado
lugar algum: não há espaço para um gênero que subverte a lógica sexo-gênero. Não
há qualquer proteção solidária de outras identidades oprimidas, uma vez que elas
ainda podem contar com algum tipo de “proteção” da cultura heterossexual por se
distanciarem menos da mesma. As identidades trans, por outro lado, são
diametralmente opostas a identidade heteronormativa, uma vez que elas “violam” a
base da norma: o corpo.
De fato, o discurso discriminatório não atinge apenas a construção subjetiva da
identidade de sujeitos abjetos, mas também seus corpos. Afinal de contas, o corpo é
um portador de discursos (Butler,1999). Quando alguém fala, se move, gesticula, se
comporta, pensa, se apresenta, entre outros atos comuns aos seres humanos, este
alguém não o faz a esmo: ele na verdade está materializando os discursos
incorporados por ele por meio do corpo. Desta forma, se o discurso promove abjeção,
logo os corpos tornam-se abjetos por extensão. E ser abjeto é sinônimo de ser
descartável.
26
“Transfobia” se refere a inúmeras circunstâncias que materializam a discriminação contra a população trans.
No que se refere ao seu cotidiano, as pessoas transgênero são alvos de preconceito, desatendimento de direitos
fundamentais (diferentes organizações não lhes permitem utilizar seus nomes sociais e elas não conseguem
adequar seus registros civis na Justiça), exclusão estrutural (acesso dificultado ou impedido à educação, ao
mercado de trabalho qualificado e até mesmo ao uso de banheiros) e de violências variadas, de ameaças a
agressões e homicídios, o que configura a extensa série de percepções estereotipadas negativas e de atos
discriminatórios (Jesus, 2014).
614
Como corpos podem ser descartados se dentro deles existe vida? Descartá-los
não seria então um genocídio? E se é o meio que reproduz a abjeção e, por
consequência, esse descarte, então os indivíduos não deveriam se sentir cúmplices
desse crime? Não se o crime não é sentido como crime. Não se o que é crime é
vendido pelo meio como uma necessária “manutenção da ordem”. Descarta-se os
corpos sem que o descarte fique aparente, havendo formas de fazê-lo, não só no nível
físico (assassinato) mas também no simbólico, através de uma série de condutas do
Estado que os fazem sentir como não pertencentes ao meio, destituindo-lhes o direito
de ser chamados de “cidadãos”.
Para exemplificar o que é dito, Jesus (2014) argumenta que existe uma
escassez alarmante de dados globais captados por órgãos governamentais oficiais
acerca da violência sofrida pela população trans. Na verdade, a coleta de dados sobre
violências contra pessoas trans mais apurada que existe no mundo é da TransGender
Europe (TGEU), uma organização não governamental. No Brasil a situação se repete,
sendo que aqui inexiste um sistema de informações oficial que contabilize as mortes
de pessoas trans, uma falta que tenta ser suprida por iniciativas isoladas de ONGs
como o Grupo Gay da Bahia (GGB). O que se estima, porém, é que o Brasil foi
responsável, isoladamente, por 39,8% dos assassinatos de pessoas trans registrados
no mundo entre 2008 e 2011, sendo o país que mais mata essa população (TGEU,
2012).
Segundo a mesma TGEU (2012), a maior parte dos crimes praticados contra
mulheres e homens trans e travestis (16,42%), ocorrem no espaço público das ruas,
sendo que grande parte destas vítimas atuava como profissionais do sexo (27,82%).
Os dados ainda revelam que a maior parte desses crimes foram planejados, uma vez
que 39,99 % das travestis foram assassinadas a tiros. E como se isso não bastasse
para demonstrar o plano do Estado em punir e eliminar identidades abjetas, somos
obrigados a nos deparar com o número de 5,15 % de pessoas trans e travestis
assassinadas pelo método arcaico do apedrejamento.
Para além do descarte físico, o contexto institucional encarrega-se de descartar
os corpos abjetos ao limitar e controlar seus fluxos e os espaços que eles ocupam, o
que é visível de inúmeras formas, sendo algumas delas: abusos policiais cometidos
contra pessoas trans e travestis que atuam como profissionais do sexo;
constrangimento sistemático na proibição de acesso a locais públicos como
restaurantes, banheiros e praças; insuficiência de leis que garantam os direitos civis
615
da população LGBT; exclusão do sistema de ensino por meio da evasão ocasionada
pelo bullying; exclusão do mercado de trabalho, entre outras.
A partir do momento em que somos submetidos reiteradamente a um discurso
ostensivamente misógino, homofóbico e transfóbico, reproduzindo e brandindo
preconceitos de todo tipo em uma espécie de desagravo à “deturpação” dos valores
tradicionais, é possível constatarmos o compromisso das instâncias de poder em
garantir a abjeção das identidades insubordinadas em função das identidades
normatizadas pela cultura heterossexual. A exaltação de uma suposta “família
tradicional” é utilizada como valor e álibi para justificar a reinstalação do reino da
barbárie. A partir do momento em que o atual presidente da república se mostra
complacente com atos de violência física e psicológica contra indivíduos que ele julga
“pervertidos” ou “baderneiros”, nosso espaço institucional torna-se fértil para propagar
tais atos sob o argumento de que estes são justos para manter a pretensa “ordem
social” livre da influência de identidades que contaminem o “cidadão de bem”. Este
último, por sua vez, sente-se livre para defender-se e empregar a violência como
mecanismo para garantir a manutenção de sua identidade heteronormativa.
Também é notório que o atual governo investe em uma agenda que garante a
gestão da banalidade da violência de gênero ao se posicionar conta o estudo de
gênero e sexualidade nas escolas públicas, sob o argumento de que esses
estabelecimentos devem se limitar a ensinar conteúdos didáticos estanques e de que
o método de ensino deve se pautar na memorização de tais conteúdos. Dessa
maneira, o espaço para o pensamento e para a reflexão crítica é tolhido para que a
“ordem” não seja questionada. Com isso, espera-se a criação de uma geração de
indivíduos que se limitem a julgar de irrefletida aquilo que lhes é fornecido pela cultura,
docilizando seus corpos e limitando suas experiências identitárias de gênero.
4. CONCLUSÃO
5. REFERÊNCIAS
Gender Secretariat, Department for Democracy and Social Development, Sida. (2008).
Action Plan for Sida’s Work Against Gender-Based Violence 2008–2010
Disponível em <http://webapps01.un.org/vawdatabase/uploads/Sweden%20-
%20Attachment%205%20Action%20Plan%20for%20Sidas%20Work%20Against%20
Gender-based%20violence.pdf > Acesso em 25 outubro de 2019.
Santos, J.V.T. (2002). Microfísica da violência: uma questão social mundial. Ciência e
Cultura, 54(1), 22-24.
617
<http://www.transrespect transphobia.org/uploads/downloads/TMM/TvT-TMM-
Tables2008-2011-en.pdf. > Acesso em 25 outubro de 2019.
618
TRABALHOS DE
UNIVERSIDADES
PARCEIRAS
619
56- A PERCEPÇÃO DE SUPORTE FAMILIAR EM UNIVERSITÁRIOS LGBTQ+
INTRODUÇÃO
Pesquisar sobre a família caracteriza-se como importante objeto de estudo. É
cada vez mais necessário investigar a função do grupo familiar no desenvolvimento
de jovens, visto que a transformação ocorre a todo o momento, levando a novos
620
questionamentos e mudanças que trazem para o sujeito e a família uma experiência
vivida muitas vezes sem ser percebida (Passos, 2005).
É por meio das relações e convívio familiar que se favorece a aquisição de
valores, habilidades, amadurecimento psíquico, afeto e confiança entre os membros
da família (Oliveira, Siqueira, Dell’Aglio, & Lopes, 2008). A instituição familiar deve ser
alvo de ação das políticas públicas que buscam a defesa dos direitos humanos civis
e a luta contra todo e qualquer tipo de violência e discriminação (Toledo, & Filho,
2013).
A relação qualitativa entre os componentes familiares pode ser entendida como
suporte familiar para eles, quando há demonstrações de atenção, carinho, diálogo,
liberdade, proximidade afetiva, autonomia e independência. O resultado de um
suporte familiar adequado é a sensação de pertencimento, cuidado, estima e efeitos
emocionais positivos (Williams, & Aiello, 2004).
Os vínculos parentescos já não se restringem a laços sanguíneos, mas também
de afeto. Cada pessoa tem e terá, ao longo de sua existência, várias famílias (a de
seus ancestrais, da sua infância, adolescência, de sua vida adulta e de sua velhice),
assumindo em cada fase características peculiares, mas mantendo a função de
preservar a integridade física e emocional (Montezuma, Freitas, & Monteiro, 2008).
Com isso, sendo a percepção consciência de algo exterior que vem de fora
(Dalgalarrondo, 2008), é imprescindível entender a qualidade e como se dá o
estabelecimento dessas relações, como é experimentada e vivenciada
especificamente pelo grupo LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e
queer), que está inserido em uma rede de convívio de um sistema familiar vulnerável
e constitui uma população de risco, pois está mais suscetível à exclusão social e
violência. No que concerne à diversidade sexual e de gênero a população LGBTQ+ é
de extrema importância. Este grupo representa um movimento social que é referência
para se pensar em temas como diferença, desigualdade, diversidade e identidade na
atualidade (Facchini, 2011). As três primeiras letras da sigla (LGB) se referem à
categoria de orientação sexual, a quarta, letra (T) é referente à identidade de gênero
e a letra (Q) sobre a teoria queer (Reymond, 2018).
Faz-se necessário diferenciar os conceitos “orientação sexual” e “identidade de
gênero”, pois o segundo termo diz respeito à maneira como a pessoa se reconhece
dentro dos padrões de gênero, já a orientação sexual se refere a quais sexos a pessoa
621
se sente atraída, podendo se encaixar em heterossexual, homossexual, bissexual e
assexual (Reis, 2018).
Estes padrões, instituídos culturalmente, incluem feminino e masculino,
existindo assim uma pluralidade de identidades de gênero. Dentre tantas
terminologias encontra-se o termo cisgênero, caracterizado como o “indivíduo que se
identifica, em todos os aspectos, com o gênero atribuído ao nascer” (Reis, 2011), além
de transgêneros, cuja identidade de gênero não se alinha de modo contínuo ao sexo
que foi designado no nascimento (Facchini, 2011).
Tendo em vista que na sociedade atual existe uma inquietação em torno de
práticas sexuais que não correspondem àquelas estabelecidas sócios-culturalmente,
o Conselho Federal de Psicologia estabelece que a Psicologia pode e deve contribuir
com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade,
permitindo a superação de preconceitos e discriminações (Resolução CFP N° 001/99,
1999, 22 de março). A dignidade e o respeito devem ser experimentados por todas as
pessoas, rompendo os preconceitos para que de fato a sociedade atue contra a
violência de gênero (Estachesk, 2016).
Historicamente tudo o que foge da heteronormatividade é visto como algo ruim
e negativo, por aspectos sociais e culturais. Com essas influências e mudanças nas
dinâmicas familiares, este estudo permitirá entender como se estabelecem as
percepções do suporte familiar.
OBJETIVO
O presente estudo busca investigar e analisar a percepção de jovens
universitários LGBTQ+ referente ao suporte familiar recebido, além de compreender
os fatores que influenciam nessas relações.
MÉTODO
Os objetivos serão investigados avaliando as diferenças nas pontuações dos
três fatores do Inventário de Percepção do Suporte Familiar (IPSF) em relação à
orientação sexual (LGBTQ+ versus heterossexuais). Trata-se de uma pesquisa
transversal. Com um recorte temporal do objetivo de estudo, em um curto período
(Fontelles, Simões, Faria, & Fontelles, 2009). Este estudo é classificado como
levantamento, com o objetivo de obter dados significativos da população amostral com
622
o intuito de ter uma resposta objetiva e rápida dentro do tempo de pesquisa
(Mascarenhas, 2012).
A amostra final é composta por 82 estudantes, maiores de 18 anos,
matriculados em qualquer curso de graduação de uma universidade privada na capital
de São Paulo. Após firmarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
responderam a dois instrumentos.
O questionário sociodemográfico desenvolvido pelos autores deste estudo é
composto por 11 itens e tem como finalidade coletar informações sobre o sexo
biológico, orientação sexual, idade, estudo (semestre), trabalho e com quem reside.
O Inventário de Percepção de Suporte Familiar (IPSF), foi elaborado e validado
por Makilim Nunes Baptista (Baptista, Teodoro, Cunha, Santana, & Carneiro, 2009).
Ele mede a percepção do participante em termos de afetividade, autonomia e
adaptação entre os membros familiares em 42 itens, distribuídos nos três fatores:
Afetivo-Consistente, Adaptação Familiar e Autonomia, com pontuação de 0 a 2
(Baptista et. al., 2009). São domínios que têm o objetivo de identificar a expressão de
afetividade, comportamentos familiares, emoções, entre outros. Para obtenção de um
melhor resultado, o domínio de Adaptação Familiar tem pontuação inversa, logo,
quanto maior a pontuação, maior o apoio familiar (Baptista et. al., 2009).
O projeto foi aprovado pelo comitê de ética da universidade (C.A.A.E. número
14883419.3.0000.0089) os participantes foram abordados em um ambiente de livre
circulação em um dos campus da instituição, posteriormente foram direcionados a
uma sala para aplicação dos instrumentos, pois ele é de uso restrito do psicólogo,
comercializado pela Vetor Editora e foi fornecido gratuitamente para execução dessa
pesquisa. A coleta de dados ocorreu entre Agosto e Setembro de 2019.
As respostas foram analisadas seguindo as orientações do manual do
Inventário de Percepção de Suporte Familiar (IPSF). O teste de Skewness-Kurtosis
foi utilizado para verificar a distribuição da pontuação final do IPSF. Devido à
distribuição não ser paramétrica foi utilizado o teste de Kruskal-Walls para se verificar
as diferenças entre o IPSF e seus fatores de acordo com as co-variáveis do estudo.
A análise estatística foi feita no IBM-SPSS (Statistical Package for the Social
Sciences), versão 22.0, sendo considerado um nível de significância de 5%.
623
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Participaram da amostra 82 indivíduos, sendo metade heterossexual e metade
LGBTQ+. Dentro desta amostra apenas 81 pessoas responderam sobre o gênero,
sendo assim 32,10% (n=26) dos participantes eram do gênero feminino e pertenciam
ao grupo LGBTQ+, 35,80% (n=29) eram heterossexuais do gênero feminino e 17,28%
(n=14) eram LGBTQ+ do gênero masculino e apenas 14,81% (n=12) eram
heterossexuais do gênero masculino.
A média de idade dos participantes foi de 21,98 anos (desvio padrão de 4,81
anos), sendo que o participante mais novo tinha 18 anos e o mais velho 49 anos de
idade. Por fim, 100% dos participantes (n=82) estavam cursando a graduação.
Tabela 1
Distribuição da pontuação do IPSF de acordo com a orientação sexual.
624
são distribuídas. No fator de adaptação familiar e no IPSF total, houve associação
entre a orientação sexual e a pontuação de maior ou menor suporte familiar. Ambos
os domínios têm o objetivo de identificar relações de confiança, liberdade e
privacidade entre os membros da família (Baptista et al., 2009), sendo a pontuação
total do inventário o conjunto de todos os fatores.
Tabela 2
Distribuição da pontuação final do IPSF e de seus fatores de acordo com a orientação
sexual e gênero.
IPSF total e
Grupo Gênero n(%) Mediana Mínimo Máximo p
seus fatores
Feminino 29(35,80%) 24,0 5,0 41,0
Hétero
F1 - Afetivo Masculino 12(14,81%) 30,5 16,0 37,0
0,024
Consciente Feminino 26 (32,10%) 21,0 8,0 38,0
LGBTQ+
Masculino 14 (17,28%) 20,0 7,0 33,0
Feminino 29(35,80%) 22,0 2,0 26,0
F2- Hétero
Masculino 12(14,81%) 23,5 15,0 26,0
Adaptação 0,04
Familiar Feminino 26 (32,10%) 18,0 6,0 26,0
LGBTQ+
Masculino 14 (17,28%) 20,0 14,0 25,0
Feminino 29(35,80%) 12,0 0,0 16,0
Hétero
F3- Masculino 12(14,81%) 14,0 8,0 16,0
0,112
Autonomia Feminino 26 (32,10%) 10,0 4,0 16,0
LGBTQ+
Masculino 14 (17,28%) 9,0 5,0 16,0
Feminino 29(35,80%) 56,0 10,0 83,0
Hétero
Masculino 12(14,81%) 70,0 44,0 78,0
IPSF total 0,009
Feminino 26 (32,10%) 47,5 24,0 77,0
LGBTQ+
Masculino 14 (17,28%) 51,0 27,0 72,0
*Teste H de Kruskal-Wallis
625
Os dados podem ser analisados com o viés da construção social que é pautada
às questões de feminilidade e masculinidade, sendo essa construção aceitável
socialmente para cada gênero e orientação sexual. A masculinidade entra na questão
de que o homem não deve expressar suas emoções e sentimentos, sendo uma de
suas dificuldades (Sousa Lima, 2007), confirmando o resultado.
No fator 2, de adaptação familiar, houve uma diferença significativa entre
heterossexuais masculino e LGBTQ+ feminino. A maior pontuação foi do grupo
heterossexual do gênero masculino com a mediana de 23,5 enquanto o grupo
LGBTQ+ feminino obteve a mediana de 18,0, ou seja, como este fator tem a
pontuação invertida, quanto maior a pontuação, melhor o suporte familiar. Logo,
apesar de haver uma grande diferença em relação ao tamanho dos grupos amostrais,
a categoria LGBTQ+ feminina teve a menor pontuação corroborando uma menor
percepção de suporte familiar neste fator e na pontuação total do inventário.
Tabela 3
Distribuição da pontuação final do IPSF e de seus fatores de acordo com o grupo e se
reside com a família.
IPSF e seus Reside com a
Grupo n(%) Mediana Mínimo Máximo p
fatores família
Sim 31(37,8%) 25,0 5,0 40,0
Hétero
F1 - Afetivo Não 10(12,2%) 33,0 10,0 41,0
0,085
Consciente Sim 35(42,7%) 20,0 7,0 38,0
LGBTQ+
Não 6(7,3%) 20,5 15,0 26,0
Sim 31(37,8%) 22,0 2,0 26,0
F2- Hétero
Não 10(12,2%) 22,5 10,0 26,0
Adaptação 0,024
Familiar Sim 35(42,7%) 18,0 6,0 26,0
LGBTQ+
Não 6(7,3%) 16,5 14,0 18,0
Sim 31(37,8%) 11,0 0,0 16,0
Hétero
F3- Não 10(12,2%) 15,0 9,0 16,0
0,071
Autonomia Sim 35(42,7%) 10,0 4,0 16,0
LGBTQ+
Não 6(7,3%) 10,5 5,0 15,0
Sim 31(37,8%) 57,0 10,0 74,0
Hétero
Não 10(12,2%) 70,5 30,0 83,0
IPSF total 0,037
Sim 35(42,7%) 50,0 24,0 79,0
LGBTQ+
Não 6(7,3%) 46,0 41,0 59,0
*Teste H de Kruskal-Wallis
626
Na tabela acima nota-se que apenas o fator 2 e a pontuação total do inventário
tiveram diferença entre orientação sexual e residir/morar com a família (p<0,05). O
grupo LGBTQ+ obteve menor pontuação, logo, uma menor adaptação ao ambiente
familiar comparado aos héteros, essa diferença entre a pontuação se mostra na
mediana dos grupos.
Na literatura, são encontrados dados que reforçam a pontuação da categoria
LGBTQ+ no índice adaptação familiar. Esse grupo vê a família como de extrema
importância, no entanto, a família faz parte de uma sociedade com valores sexistas,
racistas, feminicidas e que ainda repassam ideais heterocentrados, o que causa um
grande medo dos ataques homofóbicos frequentes dentro de casa (Giongo, 2018).
Apenas no fator 3 de autonomia não houve diferenças significativas entre os
grupos em nenhuma das análises. Podemos sugerir que o fato da amostra estar
cursando o ensino superior e ter acesso à educação faz com que os mesmos se
posicionem e sejam autores de si e de suas decisões, tornando-se independentes
neste processo formação, tendo autonomia independente da configuração familiar.
Afinal, o sucesso acadêmico não está associado somente ao desenvolvimento de
habilidades acadêmicas, mas também com competências cognitivas e sociais como o
desenvolvimento da autonomia (Ferreira, Almeida, & Soares, 2001).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo buscou diferenciar a percepção do suporte familiar entre
heterossexuais e o grupo LGBTQ+. Constatou-se que os homens heterossexuais, na
questão da afetividade e expressão dos sentimentos em relação à família, têm uma
pior percepção do suporte familiar, até mesmo por uma questão cultural da não
expressão de sentimentos por parte do gênero masculino, sendo um tabu que precisa
ser rompido. Descobriu-se que o grupo LGBTQ+ sofre em relação à adaptação
familiar, ou seja, são pessoas que estão em uma família com comportamentos
agressivos de brigas, gritos, irritações, incompreensão, isolamento e raiva em relação
aos membros.
Compreende-se que tais públicos tenham configurações familiares diversas, a
diversidade nesses grupos foi defrontada por uma pequena variação nos resultados,
o que indica que a orientação sexual não foi um fator direto na apresentação do
fenômeno, mas que o mesmo sofre influências, pressões e padrões sociais, culturais
e religiosos. Dessa forma, os resultados do presente estudo reforçam a necessidade
627
de produções científicas acerca do tema, principalmente no que se refere à população
LGBTQ+ e a especificidade como o suporte familiar é recebido por ela.
REFERÊNCIAS
Baptista, M. N., Teodoro, M. L. M., Cunha, R. V., Santana, P. R., & Carneiro, A. M.
(2009). Evidência de Validade entre o Inventário de Percepção de Suporte
Familiar – IPSF e Familiograma - FG. Psicologia: Reflexão e Crítica, 22(3).
Bueno, A. S., Estacheski, D. T., & Crema. E. C. (Orgs.). (2016). Gênero, educação e
sexualidade: reconhecendo diferenças para superar (pre)conceitos.
Uberlândia: Ed. dos Autores.
628
http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/cadernos_tematicos/11/frames/ca
d erno_tematico_11.pdf
Oliveira, D., Siqueira, A. C., Dell’Aglio, D. D., & Lopes, R. C. S. (2008). Impacto das
configurações familiares no desenvolvimento de crianças e adolescentes: uma
revisão da produção científica. Curitiba: Editora: Interação em Psicologia, 12(1),
87-98.
Passos, M. C. (2005). Nem tudo muda, muda tudo: um estudo sobre as funções da
família. In Carneiro, T. F. (Org). Família e casal: efeitos da contemporaneidade.
Rio de Janeiro: Editora PUC- Rio, 11- 23.
629
Reymond, L. P. P. (2018). Acolhimento da população LGBTQ+ no Distrito Federal.
Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Enfermagem). Universidade
de Brasília, Brasília.
Toledo, L. G., & Filho, F. S. T. (2013). Homofobia familiar: abrindo o armário 'entre
quatro paredes’. Rio de Janeiro: Arq. bras. psicol, 65(3).
NOTA DE AGRADECIMENTO
Agradecemos a Vetor Editora pelo apoio, suporte e disponibilização do
instrumento IPSF – Inventário de Percepção de Suporte Familiar para a realização
desse estudo, sem o qual não seria possível a execução da pesquisa.
630
57- ANÁLISE DE INDICADORES E PERCEPÇÃO DE ESTRESSE EM
ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS
Introdução
631
estudantes para que se possa desenvolver programas de intervenção e prevenção
apropriados, além de se implementar um currículo mais ajustado.
Todavia, é oportuno explicar que o estresse não é uma doença em si, mas sim
uma reação biológica do organismo que, mantida durante um período de tempo muito
prolongado, pode vir a gerar doenças, afirmam Matumoto et al., (2007).
O ambiente acadêmico é um grande fator estressor, pois nele o estudante está
na posição de indivíduo possuidor do “não saber”, devendo fazer um esforço para sair
desta condição além de enfrentar dificuldades, tais como a falta de tempo e
engajamento com outras atividades paralelas. A dinâmica e estrutura da universidade
diferem das instituições de ensino primário e médio, sendo uma transição com
necessidade de adaptação ao novo, podendo gerar estresse para Matumoto et al.,
(2007).
Como descrito por Monteiro et al, (2007), o estresse vivenciado por estudantes
pode afetar de forma negativa o desenvolvimento acadêmico e sua prática diária,
acarretando a problemas de motivação e possível rendimento acadêmico baixo.
Método
Participantes
Instrumento
632
participante em questão realiza atividades de lazer, entre outras. Um questionário de
rastreio também foi aplicado contendo perguntas que envolvem manifestações
atreladas ao estresse segundo os manuais CID-10 Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde [OMS] (1993) e
DSM-5 Associação Americana de Psiquiatria [APA] (2014), como por exemplo, “Como
você percebe seu nível de estresse?”, bem como questões relacionadas à
universidade, fatores que possam ser estressores neste ambiente, sintomatologia
percebida em intervalos de tempo (últimas vinte e quatro horas, últimas duas semanas
e últimos dois meses).
Resultados e Discussões
633
Tabela 1
Número de participantes por curso
634
Tabela 2
Distribuição de respostas sobre o estresse percebido no momento por sexo e
médias
_______________________________________________________________
Ausente Pouco Moderado Muito Excessivo
_______________________________________________________________
Homens 1 8 2 2 2
(n=15)
Mulheres 1 12 13 6 3
(n=35)
_______________________________________________________________
Média das notas de estresse atribuídas
_______________________________
Homens 2,7
Mulheres 2,9
635
Tabela 3
Distribuição do sexo dos participantes e presença de sintomatologia nas
últimas 24h
Mulheres Homens
___________ ___________
Menos da metade dos 24 12
sintomas apresentados
636
dois de natureza cognitivo/psicológica (vontade de fugir de tudo, ocorrência de
angústia/ansiedade diária). Verificou-se um fenômeno de percepção de sintomas de
natureza progressivamente mais cognitiva quanto maior o intervalo de tempo,
conforme representado pela Tabela 4:
Tabela 4
Natureza dos três sintomas mais citados em relação à suas características
Últimas duas 1 2
semanas
Últimos dois 2 1
meses
Considerações finais
637
Levando-se em conta a definição de que o estresse é um processo com etapas,
é possível se ter um estresse temporário (Lameu, Salazar e Souza, 2016). Observou-
se que nas últimas vinte e quatro horas que antecederam a aplicação do questionário,
64% dos participantes apresentaram menos da metade dos sintomas. Nas últimas
duas semanas, 30% relataram a presença de pelo menos metade ou mais dos
sintomas apresentados (e 68% dos entrevistados relataram menos da metade dos
sintomas). Já nos últimos dois meses, 82% dos participantes relataram ter
apresentado menos da metade dos sintomas. Na amostra, então, predominou o
estresse temporário.
É possível notar a evolução dos sintomas, de forma progressiva, seguindo em
direção a uma subjetivação do estresse registrado em torno das ideias de “estresse
vivido” e “estresse percebido”, (Guiho-Bailly 2002, p.184).
O estresse, quando em sua forma de agente e exposto ao sujeito é capaz de,
desencadear, mesmo nos que apresentam baixo nível de estresses, sérios problemas
de saúde nos docentes afirma Conceição, Bellinati, & Agostinetto (2019).
Para Loureiro et al. (2009) é fundamental uma avaliação aprofundada dos
possíveis estressores para que se possa desenvolver programas de intervenção e
prevenção apropriados. Um enfoque nos sintomas prevalecentes após dois meses
(sendo os sintomas “vontade de fugir de tudo” e “ocorrência de angústia/ansiedade
diária”) e em sua remissão poderiam auxiliar na promoção da qualidade de vida, sendo
importante encontrar indicadores sobre como este aspecto a influência em diferentes
populações.
Estudos futuros poderão investigar de forma mais precisa a relação entre
sintomas de ordem mais física e de ordem mais cognitiva associados ao estresse e
suas prevalências em populações com o passar do tempo, podendo haver
contribuições significativas em campos da saúde e articulações multidisciplinares,
uma vez que sintomas associados ao estresse muitas vezes progridem para quadros
de saúde mais complexos.
Referências
638
Conceição, J. B., Bellinati N. V. C., Agostinetto, L.. (2019). Percepção de estresse
fisiológico em professores da rede pública de educação municipal. Psicologia, Saúde
& Doenças, 20(2), 452-462. Recuperado de https://dx.doi.org/10.15309/19psd200214
Dalagasperina, P., & Monteiro, J K., (2016). Estresse e docência: um estudo no ensino
superior privado. Revista Subjetividades, 16(1), 36-51. Recuperado de
https://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.1.37-51
Loureiro, E. M. F., McIntyre, T. M., Mota-Cardoso, R., & Ferreira, M., (2009). Inventário
de Fontes de Estresse Acadêmico no Curso de Medicina (IFSAM). Revista Brasileira
de Educação Médica, 33(2), 191-197. https://dx.doi.org/10.1590/S0100-
55022009000200005
Luz, A., Castro, A., Couto, D., Santos, L., e Pereira, A., (2009, Setembro). Stress e
percepção do rendimento acadêmico no aluno do ensino superior. Actas do X
Congresso Internacional Galego-Português de Psicopedagogia. Braga, Minho,
Portugal, 10. Recuperado de
http://www.educacion.udc.es/grupos/gipdae/documentos/congreso/xcongreso/pdfs/t9
/t9c346.pdf
Monteiro, C. F. S., Freitas, J. F. M., & Ribeiro, A. A. P., (2007). Estresse no cotidiano
acadêmico: o olhar dos alunos de Enfermagem da Universidade Federal do Piauí.
Escola Anna Nery, 11(1), 66-72. https://dx.doi.org/10.1590/S1414-
81452007000100009
639
Oliveira, H. F. R., Risso, H. R. F., Vieira, F. S. F., Leal, K. A. S., Novelli, C., Noda, D.
K. G., Martins, G. C., Casagrande, R. M., Camargo, L. B., Passos, R. P. e Junior, G.
B. V. (2015). Estresse e qualidade de vida de estudantes universitários. Revista
CPAQV - Centro de Pesquisas Avançadas em Qualidade de Vida, Vol. 7, Nº. 2.
Guiho-Bailly, M. (2003). À propos de : « Quand les mots perdent leur sens » d'Annie
Chalons. Travailler, 9(1), 183-187. Recuperado de
https://dx.doi.org/10.3917/trav.009.0183.
640
58- CASAIS INTER-RACIAIS HÉTERO E HOMOAFETIVOS: RACISMO CORDIAL
E SUA NEGAÇÃO NA FAMÍLIA
Resumo: casais inter-raciais são aqueles cuja relação é composta por pessoas de
raças distintas. Este estudo de campo qualitativo investigou as percepções de 4 casais
inter-raciais adultos (2 homoafetivos e 2 heteroafetivos, formados por uma pessoa
negra e uma branca, paulistanos, adultos e em uma relação monogâmica) sobre a
raça. Examinou-se suas compreensões sobre: as identidades raciais negra e branca,
a inter-racialidade em outras configurações de relação e a relação das famílias com a
raça. Foram feitas, gravadas em áudio e parcialmente transcritas as entrevistas
semidirigidas (2 com cada casal e uma individual), que passaram por análise de
conteúdo e início de análise de discurso - interpretadas sob uma perspectiva
psicanalítica e de materialismo histórico. Apresenta-se resenhas das entrevistas
realizadas, cuja análise resultou em três categorias temáticas: a pessoa branca sem
branquitude e a negritude definida pelo racismo; raça como problema da pessoa negra
e dos outros casais inter-raciais; e a negação da raça e do racismo na família. Houve
racismo cordial e uso de projeção e negação como resistência ao tema tabu.
Palavras-chave: racismo; relações étnico-raciais, famílias inter-raciais; psicologia
social.
641
como sendo “um objeto de conhecimento, cujo significado estará sendo
constantemente renegociado e experimentado” (p.17). Nesse estudo optou-se pelo
uso do termo “raça”, pois ele abarca dois elementos – o genótipo, que remete à origem
genética e cultural, e o fenótipo, que compete às características físicas e observáveis
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2013) – enquanto “etnia” se
refere a um “grupo social cuja identidade se define pela comunidade de língua, cultura,
tradições, monumentos históricos e territórios” (Instituto AMMA Psique e Negritude,
2008, p.77), e “cor” está mais ligada à dimensão fenotípica (IBGE, 2013).
Por sua vez, o racismo diz respeito à discriminação e desigualdade concretas
e simbólicas (Guimarães, 1999) que garantem privilégios às pessoas brancas (Sovik,
2009). Assim, Nogueira (1985) explana que no Brasil prevalece o preconceito racial
de marca (fenotípico) em vez do de origem (genotípico). Há também o racismo cordial
(Turra & Ventura, 1995): uma forma de discriminação de aparência afável e bem-
educada que busca esconder seu cunho racista.
Enquanto matriz racial, afetiva e social dos sujeitos, a família perpassa o estudo
sobre casais e raça. Cada grupo familiar tem sua dinâmica, necessidades, modos de
comunicação, segredos, ruídos, afetos contraditórios e mecanismos de defesa
(Zimerman, 1999). Nessa linha, Schucman (2018), verifica, ao investigar a inter-
racialidade nas relações familiares, um apanhado de negações, identificações,
empatia e relações de poder.
2 Objetivos e Justificativa
O tema do evento, "Violência social e autoinflingida - propostas de atenção e
pesquisas", se relaciona ao trabalho pela atenção à interface social das
(inter)subjetividades. Há estudos sobre a intersecção entre a psique e a raça, que por
vezes tem elementos de violência e de sofrimento (Benedito, 2018; Bento, 2002;
Fanon, 1952/2008; Fernandes, 2018; Instituto AMMA Psique e Negritude, 2008;
Schucman, 2014; 2018). Assim, entende-se a 17ª Jornada Apoiar como um espaço
frutífero às discussões desta pesquisa.
Tendo em vista que "o preconceito racial humilha e a humilhação social faz
sofrer", o Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabelece normas para atuações e
conhecimentos antirracistas (Resolução CFP N.° 018/2002, 2002, 19 de dezembro).
Já o Código de Ética Profissional da(o) Psicóloga(o) (CFP, 2005) prevê que toda(o)
profissional “baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da
642
dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que
embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos” (p.7) e “atuará com
responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política,
econômica, social e cultural” (p.7).
Dada a escassez de estudos sobre o tema que englobem casais homoafetivos
e que, conforme Schucman (2018), o façam à luz da psicanálise; o artigo, recorte
parcial de um estudo mais amplo realizado em graduação (Trabalho de Conclusão de
Curso), investigou as percepções de casais inter-raciais hétero e homoafetivos sobre
raça: na identidade negra e branca coletiva e individual, em outros tipos de casais
inter-raciais e na família.
3 Método
O estudo de campo descritivo e qualitativo, cujo projeto foi aprovado no
respectivo comitê de ética, utilizou entrevistas semi-estruturadas com 8 adultos
cisgêneros nascidos e residentes na cidade de São Paulo que integravam 4 casais
monogâmicos formados por uma pessoa negra e uma branca, obtidos via amostra por
conveniência e apresentados abaixo, com nomes fictícios:
Casal 1. Negra e branco: 3 anos de namoro e 2 anos de casados. Karol (22,
negra, hétero, auxiliar adm., cristã e Ens. Médio completo) e Tiago (28, branco, hétero,
diretor financeiro, cristão e Ens. Sup. completo); Casal 2. Negra e branca: 5 anos de
namoro. Elen (24, negra, lésbica, assistente de RH, sem religião e cursava Ens. Sup.)
e Ana (24, branca, lésbica, auxiliar adm., sem religião e cursava o Ens. Sup.); Casal
3. Negro e branca: 5 anos de namoro. Caio (21, negro, hétero, desempregado,
umbandista e Ens. Técnico completo) e Júlia (20, branca, hétero, promotora de
eventos, católica e Ens. Técnico completo); e Casal 4. Negro e branco: 1 ano e 6
meses namoro. Michael (22, negro, gay, publicitário, espírita e Ens. Sup. completo) e
Jonas (24, branco, gay, vendedor, sem religião e Ens. Sup. incompleto).
Após contatos iniciais, os casais que atenderam aos critérios de inclusão foram
convidados a participar da pesquisa. Foram realizadas de 3 a 4 entrevistas por casal,
gravadas em áudio e parcialmente transcritas, de cerca de 1h cada, em ambientes
tranquilos da escolha dos participantes. Das entrevistas realizadas com cada par, 2
delas se deram com a presença de ambos os membros, e posteriormente cada pessoa
foi entrevistada individualmente. A 1ª entrevista abordou aspectos:
sociodemográficos, do casal e de raça; cada encontro teve início com a abordagem
643
de questões gerais do casal antes de ser inserido o tema da raça. Após cada
entrevista feita e parcialmente transcrita, elaborou-se roteiros para as entrevistas
seguintes.
O manejo, a categorização e o estudo dos dados se deram por análise de
conteúdo em Minayo (2012) – que baseia a construção de categorias temáticas de
análise que enfatizam os achados do estudo – e um início de análise de discurso em
Orlandi (2012) – que interpreta a forma como o discurso foi expresso e significado por
cada pessoa – e em Pêcheux (1997) – que articula a psicanálise (escuta e análise
diferenciada que interpreta a dimensão inconsciente) ao materialismo histórico (no
qual a palavra é entendida nas contradições em que se coloca, contextualizadas
dialética e historicamente na realidade social em movimento).
4 Resultados e discussão
Esta seção foi dividida em duas partes: uma apresenta as resenhas das
entrevistas feitas e a outra explana as categorias analíticas encontradas.
644
e do assédio sofrido pelo casal, mas manteve dificuldade de identificar a raça em sua
história pessoal. Ana mostrou-se mais tímida e ansiosa, sobretudo frente à raça; deu
respostas mais curtas e relatou, genericamente, o incômodo com o racismo sofrido
por outrem.
Casal 3: mostraram maior reserva frente à raça. Caio mostrou-se tímido, falou
pouco e deu breves complementos às falas mais detalhadas de Júlia. Abordou-se a
raça de cada um, sua diferença religiosa, inseguranças ligadas à raça e o contraste
entre cada um e suas famílias. Referiram conflitos familiares, críticas externas à
relação inter-racial e ciúme e falta de diálogo no namoro. Após as entrevistas
conjuntas, Júlia nos informou que deram “um tempo” da relação. Ainda assim, foram
convidados a uma escuta individual; Caio desistiu de participar e não respondeu as
tentativas de contato realizadas pelos pesquisadores, mas Júlia aceitou falar sobre
incômodos na relação, o silêncio de Caio sobre as emoções, o término, as famílias,
negritude, branquitude e a participação na pesquisa.
Casal 4: tiveram as entrevistas mais longas e aprofundadas e foram os mais
implicados nas questões raciais. Relataram episódios de racismo sofridos por Michael,
os privilégios da branquitude e a discriminação à população negra. Jonas se mostrou
mais cauteloso e Michael mais expressivo. Relataram conflitos familiares, episódios
de homofobia, incômodos frente à raça na relação, a importância da
representatividade e ambientes em que o casal se sente mais acolhido ou hostilizado
devido a raça e homoafetividade. Michael trouxe uma ambivalência frente ao orgulho
negro e aos incômodos na relação inter-racial, enquanto Jonas, ainda com dificuldade
de falar sobre raça e branquitude, relatou o cuidado e acolhimento com os conflitos
do namorado.
645
Sobre a própria negritude, a transição capilar teve um papel fundamental a
cada entrevistada(o) negra(o); a maioria negra relatou também que a vivência do
racismo teve papel importante no processo conceituado como “racialização” (Miles,
1989; 1996). As mulheres negras referiram dúvidas em relação à sua raça; ambas
afirmaram tê-la checado em seus registros de nascimento que, assim como terceiros,
as classificavam como pardas. Tais incertezas indicam o pardo ou mestiço brasileiro
enquanto:
‘um e outro’, ‘o mesmo e o diferente’, ‘nem um nem outro’, ‘ser e não ser’, ‘pertencer e
não pertencer’. Essa indefinição social ... conjugada com o ideário do branqueamento,
dificulta tanto a sua identidade como mestiço, quanto a sua opção de identidade negra
(Munanga, 2006, p.140).
646
indivíduo, pelo uso da linguagem, evidencia o conteúdo recalcado na tentativa de se
opor a um conflito, o que permite interpretar o que se tentou negar. Desse modo, é
como se a maioria da amostra branca dissesse "reconheço que as(os) brancas(os) no
Brasil têm privilégios e tendência ao racismo, mas seria demasiado incômodo
reconhecê-los em mim enquanto branco" - como se a relação ou o sujeito pudessem
descolar-se da realidade social.
Embora a relação inter-racial não tenha sido, por si só, catalizadora para uma
consciência antirracista, ela parece tê-lo sido no casal 4 - onde havia um diálogo
minimamente aberto sobre a raça, um reconhecimento das implicações sociais no
âmbito privado, e um esforço do branco em racializar-se (Miles, 1989; 1996) e
“desaprender” o racismo (Miranda & Passos, 2011).
647
“compensação” da negritude (Barros, 2003). O negro pode sentir tal cobrança mesmo
quando a branca, como Júlia, tem melhor condição financeira (Moutinho, 2004).
Enquanto os casais homoafetivos previam machismo e racismo nos casais
hétero, estes conjecturavam que os homoafetivos sofressem um duplo preconceito:
pela inter-racialidade e pela homo/lesbofobia. Todavia, o casal 2 disse não se
perceber alvo de nenhum preconceito racial. Embora tenham dito que a heterocromia
possivelmente seria alvo de hostilidade em locais voltados à valorização da cultura
negra, Michael e Jonas também não viam tal limitação como forma de preconceito,
mas um modo de respeito ao “quilombo urbano” e “espaço seguro para pessoas
negras”. Assim, o gay e a lésbica negros trouxeram, respectivamente, relatos pessoais
de racismo explícito e implícito, e de homo/lesbofobia ao casal, mas não de
discriminação racial à relação. Logo, na relação inter-racial homoafetiva, a raça foi
apresentada como um problema do negro; para Bento (2002), porém, o racismo é um
problema de ambos.
648
saúde”. Barros (2003) verificou opiniões contrastantes sobre a importância da raça na
educação dos filhos; seu estudo e o de Schucman (2018) mencionam os conflitos de
famílias inter-raciais sobre a consciência racial passada (ou não) dos pais aos filhos.
Michael contou da irmã mais velha, negra de pele mais clara que a dos outros
familiares, que só é sua irmã biológica por parte de mãe; ele referiu um silêncio na
família sobre o fato, que só soube há poucos anos. Caio contou não conhecer o pai
nem saber sua raça, e jamais falou sobre ele com a mãe. Karol disse não lembrar a
cor do pai, descrito como negro por Tiago e morto na infância dela. As falas reticentes
dos sujeitos negros indicam que o eixo raça-paternidade “por parte das famílias é uma
das zonas de ‘sombra e silêncio’ nas quais as falas dos entrevistados podem
submergir” (Moutinho, 2004, p.283).
Um conflito identificado no casal 1 refere-se à necessidade de Karol visitar a
mãe todo final de semana, o que Tiago se opunha, por terem a própria casa e família.
A dificuldade de se separar da família da mãe pode estar ligada a inseguranças em
relação à aceitação na familia de Tiago (maioria branca, maior nível econômico e
acadêmico) e a uma sensação de não pertencimento.
O casal 2 percebeu apenas a lesbofobia, e não a raça, como conflito também
na família. Elen referiu seu sofrimento por ter escondido o namoro dos parentes por
mais de 4 anos, por já ter visto casos de lesbofobia nesse âmbito; ela revelou a relação
aos familiares poucos meses antes das entrevistas, e estava ambivalente por não
mais omitir a relação, mas ter de lidar com a desaprovação da mãe. Ana, por sua vez,
relatou total apoio da família ao casal.
Apesar de não notarem racismo dirigido ao casal lésbico, elas relataram
episódios dele na família. Elen contou de sua avó que, mesmo sendo negra, tinha
falas racistas e, segundo a entrevistada, não aceitava a própria raça. Da mesma
forma, Ana referiu: “tem meu vô que é negro, fala que antigamente ele era branco, e
que depois do sarampo ele ficou negro do cabelo crespo. Tirando isso, não tem
diferença nenhuma”. Ana contou ainda que, segundo o avô, ela “era bem escurinha”
quando nasceu, e por isso foi apelidada como “nêga”, o que a namorada estranhou:
“aí ela [Elen] falou ‘você não é negra, você é branca’: tava me questionando, mas é o
apelido que eles me chamam”.
649
Elen diz “claro que a gente sabe que o preconceito tá aí, mas na nossa família
nunca teve isso ... A gente nunca sentiu nada na pele, nem a nossa família sentiu
nada na pele”, mas admite a oposição familiar à transição capilar:
eu achava meu cabelo feio, daí começar a alisar. Até minha mãe mesmo falou “vamos
alisar esse cabelo!?”; até na minha família, quando comecei [a transição capilar] …
meu pai mesmo, outro dia fiz escova no cabelo, e meu pai falou assim ‘eu prefiro você
de cabelo liso!’.
5 Conclusão
Na coletividade, a negritude foi ligada à vivência de discriminação, e a
branquitude à posse de preconceitos e privilégios, mas no âmbito individual a maioria
da amostra branca tomou a cor da pele como um dado meramente concreto, enquanto
a negritude pessoal foi marcada por elementos do racismo – que apareceu como
problema da(o) negra(o), negado na relação e projetado em outros casais inter-raciais.
A família, lócus de intersecção entre a origem racial e afetiva do casal, foi âmbito
sensível frente à raça, um tema tabu – marcadamente negado. Assim, a negação do
racismo na sociedade, perpetrada pelo mito da democracia racial (Hasenbalg, 1996)
é expressa nos grupos familiares – num “jogo de silêncio e não ditos” (Schucman,
2018, p.29).
650
6 Referências
Azevedo, T. (1996). As elites de cor – um estudo de ascensão social. Salvador:
Edufba. (Original publicado em 1955).
Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. (R. da Silveira, Trad.) São Paulo:
SciELO-EDUFBA. (Original publicado em 1952).
Freud, S. (2011). A negação (P. C. de Souza, Trad.). São Paulo: Companhia das
Letras. (Original publicado em 1925).
651
Miranda, C., &, Passos, A. H. (2011). Estudos críticos da branquitude e Educação
afrocentrada: novos aportes para uma educação anti-racista. Anais do Congresso
Luso Afrobrasileiro de Ciências Sociais, Salvador, BA, 11.
Nogueira, O. (1985). Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais (Vol. 9).
São Paulo: Ta Queiroz.
Pereira, M. E., &, Rodrigues, V. (2010). Amor não tem cor?! Gênero e raça/cor na
seletividade afetiva de homens e mulheres negros(as) na bahia e no rio grande
do sul. Revista da ABPN, 1 (2), 157-181.
Petruccelli, J. L. (2001). Seletividade por cor e escolhas conjugais no Brasil dos 90.
Estudos Afro-Asiáticos, 23(1), 29-51.
652
Silva, N. D. V. (1987). Distância social e casamento inter-racial no Brasil. Estudos Afro-
Asiáticos, 14, 54-83.
Turra, C., & Venturi, G. (1995). Racismo cordial: a mais completa análise sobre
preconceito de cor no Brasil. São Paulo: Ática.
653
59- ESTILOS PARENTAIS E PROBLEMAS DE COMPORTAMENTO NA
ADOLESCÊNCIA
INTRODUÇÃO
654
e inter-relacionais. Inicialmente, estas interações ocorrem pela relação da mãe com a
criança, aos poucos, as relações vão se expandindo dentro do grupo familiar, como a
relação pai-criança e a relação entre irmãos para estenderem-se para o mundo
externo à família.
A aprendizagem destes comportamentos sociais é influenciada pelas práticas
educativas parentais (Pacheco, Teixeira & Gomes,1999) caracterizadas como
estratégias usadas pelos pais para desenvolverem independência, disciplina,
autonomia, além de modelar os comportamentos, considerados por eles, adequados
aos seus filhos (Gomide, 2001).
O interesse pelo impacto das práticas parentais nos comportamentos dos filhos
é crescente (Bolsoni-Silva, Loureiro & Marturano, 2016), pois as interações familiares
vêm sofrendo mudanças nas últimas décadas; comportamentos até então
compreendidos como culturalmente aceitáveis e esperados, como a utilização de
força física na educação das crianças por parte dos pais ou cuidadores, atualmente
são criticados e coibidos pelos direitos constitucionais em função dos problemas e
prejuízos sociais associados que envolvem o indivíduo, a família e a comunidade.
Estas práticas educativas consideradas negativas para o desenvolvimento da criança
ainda persistem no contexto familiar, gerando problemas de comportamento que
ameaçam as inter-relações pessoais e as relações do indivíduo com o seu meio (Del
Prette & Del Prette, 2008).
Este trabalho tem por objetivo identificar os estilos parentais e correlacioná-los
com problemas de comportamento em adolescentes inseridos em escola de ensino
regular.
Método
Participantes: Foram convidadas para participar da pesquisa 50 mães de
crianças que apresentam problemas de comportamento detectados por uma escala
de triagem sobre problemas de comportamento, mas somente 10 aceitaram participar
do estudo. As participantes tinham idades variando de 29 a 43 anos e baixa
escolaridade (1º Grau). As crianças estavam cursando 6 o e 7oano do ensino
fundamental em uma escola localizada na cidade de Osasco – SP e suas idades
variavam de 11 a 14 sendo 5 do sexo masculino.
655
Instrumentos: Os instrumentos utilizados foram o Inventário de Estilos
Parentais (IEP) que tem como objetivo estudar a maneira utilizada pelos pais na
educação de seus filhos e o Child Behavior Checklist (CBCL).
1.O Inventário de Estilos Parentais (Gomide,2006) é composto por 42
questões que correspondem às setes variáveis de práticas educativas, cinco delas
vinculadas ao desenvolvimento do comportamento antissocial como negligência,
abuso físico, disciplina relaxada, punição inconsistente e monitoria negativa, e duas
que promovem comportamentos pró – sociais como monitoramento positivo e
comportamento moral. Cada questão é composta de uma frase à qual o respondente
deve indicar a frequência com que a figura materna/paterna age. Para cada prática
educativa foram elaboradas seis questões distribuídas espaçadamente ao longo do
inventário.
As chamadas práticas educativas positivas são a monitoria positiva, que
envolve o uso adequado da atenção e a distribuição de privilégios, o adequado
estabelecimento de regras, a distribuição continua e segura de afeto, o
acompanhamento e a supervisão de atividades escolares e de lazer, e o
comportamento moral que implica promover condições favoráveis ao
desenvolvimento das virtudes, tais como, empatia, senso de justiça, responsabilidade,
trabalho, generosidade e do conhecimento do certo e do errado quanto a uso de
drogas e álcool e sexo seguro sempre seguido de exemplo dos pais.
Já as práticas educativas negativas envolvem negligência, ausência de
atenção e de afeto; o abuso físico e psicológico, caracterizado pela disciplina através
de práticas corporais negativas, ameaça ou chantagem de abandono e de humilhação
do filho; a disciplina relaxada, que compreende o relaxamento das regras
estabelecidas; a punição inconsistente, em que os pais se orientam por seu humor na
hora de punir ou reforçar e não pelo ato praticado; e a monitoria negativa,
caracterizada pelo excesso de instruções independentes de seu cumprimento e,
consequentemente, pela geração de um ambiente de convivência hostil.
A escala possibilita respostas: Nunca, Às Vezes e Sempre. Ela é dividida em
quatro categorias: Estilo Parental de risco, Estilo Parental Regular abaixo da média,
Estilo Parental Regular acima da média, Estilos Parentais Ótimos.
656
social e os problemas de comportamento em crianças e adolescentes de 4 a 18 anos,
a partir de informações fornecidas pelos pais. Para este estudo foi utilizada a segunda
parte do CBCL, pois identifica os problemas de comportamento em crianças e
adolescentes. Esta seção do CBCL é composta por 112 itens referentes a problemas
de comportamentos que a mãe deve avaliar dando um valor numérico de 0, se o
comportamento é ausente; 1, se o comportamento é às vezes presente; ou 2, se o
comportamento é frequentemente presente. O somatório dos escores obtidos permite
ao avaliador traçar um perfil comportamental da criança ou adolescente. Esta lista de
afirmações foi agrupadas através de análise fatorial, a partir das respostas fornecidas
pelos pais para comportamento problemático e constituem oito síndromes: 1.
(Isolamento social, constituído por afirmações como: prefere ficar sozinho, não fala e
tímido); 2. Queixas somáticas (como, por exemplo, tontura, cansaço, dores de
cabeça); 3. Ansiedade/Depressão (solidão, sente-se nervoso, sente-se culpado); 4.
Problemas sociais (muito dependente, prefere crianças mais jovens); 5. Problemas de
pensamento (ouve vozes, comportamentos estranhos, ideias estranhas); 6.
Problemas de atenção (não consegue se concentrar, impulsivo); 7. Comportamento
delinquencial (não sente culpa, mente, faz uso de álcool ou drogas); 8.
Comportamento agressivo (é desobediente na escola, ataca as pessoas). As três
primeiras síndromes receberam uma análise fatorial que resultou no agrupamento que
recebeu a designação de problemas internalizantes e refere-se a um conjunto de
comportamentos considerados problemáticos mas que não se exercem diretamente
sobre o ambiente, restringindo-se ao âmbito privado da criança. As síndromes 7 e 8
receberam o mesmo tratamento e resultou no agrupamento que recebeu a designação
de problemas externalizantes, e refere-se a um conjunto de comportamentos
considerados problemáticos que se exercem diretamente sobre o ambiente.
Procedimento:
Com autorização da escola, em reunião de pais e mestres, os pesquisadores
explicaram o objetivo deste estudo e os instrumentos que seriam preenchidos. Dez
mães aceitaram participar e foram entrevistadas individualmente, após assinarem o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Análise Estatística: Foram elaboradas medidas descritivas e confeccionados
gráficos. Para verificar a correlação entre as variáveis foi utilizada a Correlação de
Sperman e para validar as correlações usou-se o Teste de Correlação.
657
Resultados
A Tabela 1 apresenta a média descritiva do teste CBCL por oito síndromes,
média total de problemas internalizantes e externalizantes e total.
658
Observamos que, em média, o comportamento Moral e a punição Inconsistente
apresentaram escores mais altos, seguidos da Disciplina Relaxada e Monitoria
Negativa.
A Tabela 3 apresenta a correlação entre estilos parentais, medido pelo IEP, e
problemas de comportamento medidos pelo CBCL.
Foi possível observar que Estilos Parentais de risco têm correlação positiva
com Problemas sociais. Problemas Externalizantes apresentam correlação negativa
659
com Monitoria Negativa. A punição inconsistente apresenta correlação negativa com
Violação de Regras. O comportamento moral apresenta correlação positiva com
ansiedade depressão.
Discussão
O presente estudo não apresentou correlação de problemas de comportamento
com estilos parentais. Somente algumas práticas educativas foram associadas ao
detalhamento de sintomas com problema comportamental. Problemas de
comportamento externalizantes caracterizados pela agressividade física e/ou verbal,
baixa autoestima, rebeldia, crueldade e delinquência estão relacionados a monitorias
negativas, que também podem ser denominadas de supervisão estressante que se
caracteriza por fiscalização e ordens excessivas dadas aos filhos, que em sua grande
maioria não são obedecidas e geram uma relação pais-filhos baseada em hostilidade,
insegurança e dissimulação. O controle parental e disciplina severa são os fatores
mais preponderantes para o surgimento de problemas de comportamento
externalizantes. Os nossos resultados apontaram uma correlação negativa no item
punição inconsistente e violação de regras, ou seja, quanto maior a punição menos
os adolescentes vão desobedecer às regras. Neste estudo, no início da adolescência,
o controle parental exerceu um controle sobre a agressividade e rebeldia dos filhos.
Podemos pensar que nestes itens os pais estão atentos à regra e seu próprio estado
de humor. Para apoiar e conduzir seus filhos na assunção de melhores
comportamentos é necessária uma consistência das regras e espaço para o diálogo.
Essa observação também é possível fazer no item de comportamento moral, pois
quanto maior o comportamento moral, maior será a ansiedade e depressão.
Abuso físico é caracterizado como maus-tratos infantis. Inclui abuso físico,
psicológico, sexual e negligência. Para Gomide (2011), práticas parentais violentas
têm sido consideradas como fatores etiológicos de problemas sociais e psicológicos,
como comportamento criminoso e distúrbio psiquiátrico. Além de que espancamentos,
atitudes autoritárias, disciplina severa, rejeição, falta de supervisão, separação,
divórcio, instabilidade familiar, conflitos conjugais e características desviantes
(criminalidade e abuso de substâncias psicoativas) podem ser fatores determinantes
para o surgimento de problemas de comportamento, seja ele externalizante ou
internalizante.
660
As mães que participaram deste estudo parecem, que ao administrarem
punição física, não associam também a punição verbal, por meio de insultos,
xingamentos e ameaças, diferente do encontrado por Rinhel-Silva, Constantino e
Rondini (2012).
A combinação de abuso físico e abuso psicológico pode acarretar o
desenvolvimento da agressão, delinquência, e do comportamento antissocial nas
crianças. Para Salvo, Silvares e Toni (2005) mãe com baixo nível de afeto positivo
usam mais frequentemente punição física que geram, com maior frequência,
problemas de comportamento.
Gomide (2003) diz que há uma grande importância na qualidade das relações
entre pais e filhos, pois é por meio de um relacionamento parental saudável que a
criança se desenvolve socialmente e com mais facilidade. Sendo assim a criança
necessita de um ambiente acolhedor e familiar com o intuito de protegê-la de eventos
que possam vir a ser ameaçadores.
Práticas educativas de disciplina relaxada é caracterizada pelo não
cumprimento de regras estabelecidas. Os pais estabelecem regras, ameaçam e
quando se confrontam com comportamentos agressivos dos filhos, renunciam a sua
responsabilidade educadora, retirando o que foi dito anteriormente. Esse tipo de
comportamento dos pais pode acarretar uma falha do desenvolvimento social,
podendo então a criança se tornar um adolescente delinquente e agressivo.
Pesquisas recentes indicam que a interação pais-criança é um processo
recíproco. Não apenas a ineficiência parental aumenta a probabilidade de a criança
vir a ter problemas de comportamento, mas o comportamento de hostilidade na
criança para com os pais é frequentemente seguido muitas vezes por uma visível
redução de esforços parentais em monitorar e disciplinar seus filhos. O nosso estudo
também mostrou que as famílias apresentam estilos parentais em risco para os filhos.
Observou-se uma tendência para manifestação de problemas sociais
relacionados a estilo parental negligente. Se esse estilo parental se apresentar ativo
no relacionamento pais-filho, a criança pode desencadear sentimento de insegurança,
vulnerabilidade, eventual hostilidade e agressão em relacionamentos sociais.
Punição inconsistente é outra monitoria negativa encontrada em nossos
resultados correlacionada ao comportamento de violar as regras. O determinante da
punição inconsistente é o estado emocional dos pais e não a conduta da criança, ou
seja, se em algumas situações a mãe/pai pune a criança em outro momento quando
661
tiver que punir novamente pelo mesmo comportamento isso não ocorre. Neste caso
há uma interiorização de valores morais, ou seja, a criança não aprende o que é certo
ou errado, porém ela aprende a discriminar quando o pai ou a mãe estão nervosos.
O comportamento moral é conceituado como dilemas humanos que envolvem
honestidade, generosidade, justiça, compaixão, entre outros, presentes em todos os
tempos, culturas e que são fundamentais para nossa convivência humana. Hughes e
Dunn (2000) focalizam a questão da moral nas relações entre estilos parentais e
comportamento sociomoral, argumentando que a delinquência na idade adulta pode
estar relacionada à criança não vivenciar e presenciar modelos morais nas atitudes
dos membros de sua própria família.
Os pais deveriam criar um conjunto de regras para os seus filhos sobre
segurança (onde devem ir, com quem podem associar-se, horário de estar em casa)
e autonomia (tomarem boas decisões em relação ao presente e futuro, a si e aos
outros) e, ainda, garantir o cumprimento dessas regras; além disso, ter ação disciplinar
que resolva quando as regras são violadas.
A monitoria positiva também envolve diálogo e respeito, além do suporte por
parte dos pais para com as crianças nos momentos de necessidade. Algumas
pesquisas relacionadas à comunicação indicam que a delinquência está associada a
comunicação pobre entre pais-filhos e que esses pais se preocupam menos e não
passam confiança para seus filhos, além de apresentarem baixo suporte de identidade
e possui déficit em planejamentos futuros.
Conclusão
Ainda que este estudo tenha sido conduzido com uma amostra restrita de
mães, nossos resultados não mostraram correlações de estilos parentais com
problemas de comportamento. No entanto, quando analisamos de forma detalhada os
itens das escalas verificamos correlações positivas para comportamento moral e
ansiedade e depressão; e para estilos parentais de risco e problemas sociais. Já os
problemas externalizantes apresentam correlação negativa com monitoria negativa e
a punição inconsistente apresenta correlação negativa com violação de regras.
Podemos concluir que o ambiente familiar desempenha um papel de mediador
entre o adolescente e a sociedade, e que dependendo da forma como se monitora o
adolescente ocorre a manifestação ou não de problemas de comportamento. A família
662
é um fator de proteção para que o adolescente tenha um desenvolvimento saudável
nos seus aspectos cognitivos, afetivos e sociais.
Referências
Achenbach, T. M.(2001). Manual for the Child Behavior Checklist/4-18 and 1991
profile. Burlington, VT: University of Vermont.
Gomide, P.I.C.(2011). Pais presentes pais ausentes: regras e limites. Rio de Janeiro:
Vozes
663
Pacheco, J.T.B.; Teixeira, M.A.P.; Gomes, W.B.(1999). Estilos parentais e
desenvolvimento de habilidades sociais na adolescência. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, 15(2),117-126.
Salvo, C.G.; Silvares, E.F.M.; Toni, P.M.(2005) Práticas educativas como forma de
predição de problemas de comportamento e competência social. Estudos de
Psicologia, 22 (2), 187-195.
664
60- MEDIAÇÃO ESCOLAR COM INTERVENÇÃO EM GRUPO DE ALUNAS QUE
PRATICARAM AUTOMUTILAÇÃO: RELATO DE EXPERIÊNCIA
Resumo: A mediação parte do princípio de que todo e qualquer conflito pode ser
mediado desde que o mediador tenha condições de fazê-lo. A mediação escolar
busca, através do diálogo, a resolução dos conflitos. A escola tem sido palco para
expressão de vários tipos de violência. Nos últimos anos, a frequência de
adolescentes que têm praticado a automutilação como forma de lidar com a tristeza e
a solidão tem aumentado, sendo a escola o local onde esta prática e suas
consequências são observadas. A professora mediadora escolar e comunitária
desenvolveu um trabalho com alunos do Ensino Fundamental II que infligiram auto
violência. Apresentar esta experiência de mediação/intervenção e suas
consequências é o objetivo deste relato. Verificou-se que a automutilação foi praticada
dentro e fora do ambiente escolar, principalmente por meninas, como “uma forma de
amenizar a própria dor”. A intervenção denominada Projeto Roda de Conversa foi
conduzida com os alunos que praticavam automutilação. O trabalho da professora
mediadora teve êxito, porém, é fundamental a participação dos pais e da rede de apoio
para auxiliar os alunos e demais profissionais que trabalham na escola, de maneira a
lidar com a automutilação e com outras formas de violência que ocorrem neste
ambiente.
665
Introdução
666
suas funções de educação e de socialização. O envolvimento dos próprios alunos
como mediadores de conflito no espaço escolar favorece o protagonismo juvenil.
No Estado de São Paulo, com a figura do professor mediador escolar e
comunitário, coube a este profissional a mediação dos conflitos escolares e apoiador
dos alunos nesta prática, bem como um facilitador na diminuição da violência nas
escolas, em suas diversas manifestações: entre alunos, alunos para com professor,
aluno para com o patrimônio público, comunidade para com a escola, entre outras.
Para aprofundar a compreensão da prática do professor mediador na rede de
ensino estadual, o trabalho de Gomes & Martins (2016) apresenta uma análise do
Sistema de Proteção Escolar (SPEC) enquanto política pública, e do Professor
Mediador Escolar e Comunitário, na mediação da violência e indisciplina escolar.
A mediação escolar e as formas de lidar com os diversos tipos de violência
estão em constante avaliação pela Secretaria de Estado de Educação de São Paulo.
Desde 01/10/19 está em vigor a Resolução 48 que – Institui o CONVIVA SP –
Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar no âmbito da rede estadual
de educação, o qual terá sua efetiva implementação a partir de 2020, após a pesquisa
de clima organizacional que está sendo realizada nas escolas.
Geralmente, violência é definida como uso intencional da força física ou do
poder, de maneira direta ou em forma de ameaça. A violência pode ser auto infligida,
interpessoal ou coletiva, que resulte ou tenha alta probabilidade de resultar lesão,
óbito, dano psicológico. De certa forma, a violência ocorre em contextos de
desigualdade e se relaciona pela característica do poder sobre o outro (Silva, Silva,
Passos, Soares, Menezes, Colares, & Santos, 2018). Para o objeto deste relato, a
violência que nos referimos é a violência contra si mesmo, especificamente, a
automutilação.
A automutilação tem crescido, principalmente, entre mulheres adolescentes. O
aumento crescente desta violência tem motivado a busca pela compreensão das
possíveis causas que levam a esta estratégia.
Silva et al (2018) realizaram uma pesquisa sobre a autopercepção negativa em
saúde em adolescentes, e encontraram que em relação ao sexo, a percepção
negativa foi maior para o feminino quando comparado ao masculino. Os autores
justificaram esse resultado afirmando que as moças apresentam maior sensibilidade
para detectar alterações fisiológicas e considerar hábitos inadequados à saúde, pelo
fato de serem mais atenciosas quanto aos cuidados de saúde.
667
Para este relato, compreenderemos automutilação como ato de machucar o
próprio corpo de formas diversas, por meio de cortes, queimaduras, auto
espancamento, entre outras, conforme proposto por Araújo, Chatelar, Carvalho, &
Viana (2016). Para Martinez (2018) a automutilação só pode ser entendida em
relações entrelaçadas entre o familiar, pessoal e social e constitui um fator de risco
para a saúde devido às suas relações com o suicídio.
Nesse relato de experiência será apresentado um recorte do trabalho
desenvolvido por uma professora mediadora escolar e comunitária (psicóloga escolar)
junto a alunos do 6º ao 8º ano do Ensino Fundamental II que se automutilaram.
668
(cortes com estilete ou lâmina do apontador, nos braços, pernas e barriga) para “aliviar
sua dor” (SIC).
Dos 466 alunos que cursaram o Ensino Fundamental II (manhã e tarde), com
idades entre 11 e 16 anos, a prática da automutilação, dentro e fora do ambiente
escolar, principalmente, por meninas do período vespertino, chamou a atenção no
ambiente escolar.
Em relação às mutilações, a professora mediadora era informada, pelos
próprios colegas dos alunos que se machucavam, professores ou outros profissionais
da instituição. Do total de alunos do Ensino Fundamental, onze foram atendidos com
esta demanda. Vale dizer que houve outros casos, os quais não foram acompanhados
pela mediação.
Dos onze alunos, apenas um era do sexo masculino. Ele foi o último que a
mediadora teve conhecimento que se cortava. Uma aluna, que participava da roda de
conversa, o trouxe para um encontro, ele gostou da dinâmica e permaneceu até o fim
do ano no projeto. O que levou este garoto a recorrer a esta prática, foi o término do
namoro.
As alunas referem solidão, luto, separação dos pais como desencadeadores da
autoagressão.
Antes do início do projeto, a mediadora praticava a escuta ativa das alunas que
se feriam a fim de compreender o que estava acontecendo. A escuta ativa é um dos
princípios da mediação, que consiste em escutar atentamente o interlocutor, não só
com os ouvidos, mas com todos os sentidos em alerta (Silva, 2002).
Como a escuta era frequente, ao menos, duas vezes por semana, a professora
mediadora foi motivada – pelos próprios alunos ouvidos – a desenvolver a intervenção
denominada Projeto Roda de Conversa, a fim de complementar o trabalho realizado,
individualmente, junto aos alunos.
Esta intervenção teve sua origem pelas características da demanda e obteve
total aceite por parte das alunas, bem como da direção escolar. As próprias alunas
sugeriram quem deveria participar da roda e se prontificaram a convidar os colegas.
A Roda de conversa se caracteriza como uma metodologia participativa. De
acordo com Silva (2002) corresponde ao emprego de métodos e técnicas que
possibilitem ao grupo vivenciar sentimentos, ressignificar conhecimentos e valores e
perceber as possibilidades de mudança. A Roda de Conversa teve como objetivo
elevar a autoestima dos alunos e discutir temas próprios da adolescência, sugeridos
669
por eles, tais como: sexualidade, orientação sexual, família, luto, solidão,
automutilação, entre outros.
Os encontros foram semanais com duração de 1h10 minutos, após o término
das aulas do período vespertino. Para participar das rodas de conversas havia
autorização dos pais dos alunos, uma vez que o encontro não era no horário de aula.
No primeiro semestre foram convidados aproximadamente 30 alunos, dos
quais, apenas oito frequentaram a roda de conversa e, destes, três que praticavam a
automutilação. Foram realizados cinco encontros no período de maio a junho/18.
Ainda por interesse e sugestão dos alunos, a roda de conversa teve
continuidade no 2º semestre. Novos alunos foram convidados a participar. Entretanto,
a média que aderiu foi, menor, seis alunos, sendo cinco que haviam praticado a
automutilação. Ocorreram onze encontros no período de agosto a novembro/18 dos
14 previstos. Dos participantes do projeto: duas mudaram de escola; todos os pais
ficaram cientes e foram orientados a procurar ajuda profissional (psicólogo e/ou
psiquiatra), com o encaminhamento escolar, mas nem todos o fizeram. Dois casos
não foram de automutilação e sim, tentativa de suicídio, estes foram acompanhados
pelo CAPSij (Centro de Apoio Psicossocial Infanto-Juvenil). Uma não mais se
machucou e a outra continua em acompanhamento neste serviço. Os demais, não
mais se feriram.
Discussão
670
“colocar-se no lugar do outro, sabendo ouvir e observar as perspectivas, os
valores, as formas de pensar e agir.” (item II). Este é o princípio da empatia,
citado em Cunha & Monteiro (2016).
671
Campos, Camargo, & Andrade (2017) relatam situações em que os jovens sofrem,
além do abandono, violência intrafamiliar, vivências de agressões físicas, negligência
e observam ainda a violência conjugal entre os pais.
A automutilação, não necessariamente, tem uma intenção suicida, mas é um
sinal de alerta, como indicaram Maurente, Garcia, Garcia, Grunbaum & Pérez (2018).
É preciso diferenciá-la de outras situações de maior gravidade, como a tentativa de
suicídio. Dentre elas estão o nível de letalidade, o grau de repetição e as
características direta e indireta do ato (Pattinson & Kahan, 1983, apud Maurente,
Garcia, Garcia, Grunbon & Pérez, 2018).
A automutilação é algo crescente e preocupante, o que levou a promulgação,
pelo Governo Federal, da Lei 13819 de 26 de abril de 2019 que Institui a Política
Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela
União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Por ser uma prática que repercute na escola, cabe a toda comunidade escolar
buscar meios para compreender e auxiliar os alunos a lidarem com suas dificuldades.
Neste sentido, a roda de conversa é uma prática que favorece os alunos a
falarem das situações que podem desencadear a automutilação, tais como, “traumas
familiares, como a separação dos pais, angústia, tristeza, alegria, insônia, ansiedade,
medo, frustração, sensação de culpa, entre outros” (Vieira, Pires & Pires, 2016, p.
258), questões que foram trazidas pelos alunos nas rodas realizadas.
Os mesmos autores destacam que quanto mais precoce e adequada a
abordagem sobre o comportamento automutilador, mais eficaz será seu prognóstico.
Possato, Rodríguez-Hidalgo, Ortega-Ruiz, & Zan (2016) destacam que
programas de formação para profissionais da educação sobre conflitos e outras
causas que repercutem negativamente na convivência escolar, assim como sobre as
estratégias mais apropriadas para sua prevenção e tratamento deveriam ser
desenvolvidos. Salientamos aqui, especificamente, a necessidade de abordar
temáticas relacionadas ao campo da saúde mental.
Conclui-se que o trabalho da professora mediadora teve êxito. Consideramos
que o fato da professora ser psicóloga, também foi uma variável que favoreceu o
processo. Contudo é fundamental a participação dos pais e da rede de apoio para
auxiliar os alunos e demais profissionais que trabalham na escola a lidar com a
automutilação e outras formas de violência que ocorrem neste ambiente.
672
Referências
Araújo, J. F. B. de, Chatelar, D. S., Carvalho, I. S., & Viana, T. C. (2016). O corpo na
dor: automutilação, masoquismo e pulsão. Estilos da Clinica, 21(2), 497-515.
Recuperado de: https://dx.doi.org/http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-
1624.v21i2p497-515
Cedaro, J. J., & Nascimento, Josiana P. G. do. (2013). Dor e Gozo: relatos de
mulheres jovens sobre automutilações. Psicologia USP, 24(2), 203-
23. Recuperado de: https://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642013000200002
Cunha, P.F.S. da & Monteiro, A.P.S (2016) Uma reflexão sobre a mediação escolar.
Ciências & Cognição. Vol 21(1) 112-123. Recuperado de
http://www.cienciasecognicao.org/revista/index.php/cec/article/view/1102/pdf_75
Gomes, R. A., & Martins, A. M.. (2016). Conflitos e indisciplina no contexto escolar: a
normatização do Sistema de Proteção Escolar em São Paulo. Ensaio: Avaliação e
Políticas Públicas em Educação, 24(90), 161-178. Recuperado
de https://dx.doi.org/10.1590/S0104-40362016000100007
673
Magalhães, J. R. F. de, Gomes, N. P., Mota, R. S., Campos, L. M., Camargo, C. L. de,
& Andrade, S. R. de. (2017). Violência intrafamiliar: vivências e percepções de
adolescentes. Escola Anna Nery, 21(1), e20170003. Epub January 16, 2017.
Recuperado de: https://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20170003
Maurente, L., Garcia, L., Garcia, I., Grunbaum, S., & Pérez, W. (2018). Las
automutilaciones en la adolescencia, cómo reconocerlas y tratarlas. Archivos de
Pediatría del Uruguay, 89(1), 36-39. Recuperado
de: https://dx.doi.org/10.31134/ap.89.1.7
674
estadual de educação e dá outras providências, publicada no DOE – Seção I –
02/10/2019 – pag. 32.
Silva, B.R.V.S., Silva, A.O., Passos, M.H.P, Soares, F.C, Valença, P.A.M., Menezes,
V.A., Amorim, V.C., da Franca, C. (2018) Autopercepção negativa de saúde
associada à violência escolar em adolescentes. Ciência & Saúde Coletiva, 23(9),
2909-2916. Recuperado de: https://dx.doi.org/10.1590/1413-
81232018239.12962018
675
61- OS PERCURSOS DE UMA CRIANÇA AUTISTA RUMO À SUBJETIVAÇÃO 3
Carolina Sarmanho*
Maria Izabel Tafuri**
INTRODUÇÃO
3
Monografia de especialização em Teoria Psicanalítica realizada no UniCeub, em Brasília
*Psicóloga clínica
**Dra. em Psicologia Clínica, professora aposentada da Universidade de Brasília
676
subjetiva. Cada analista com sua peculiaridade contribui para as formas de elaborar a
técnica ao trabalhar no cerne da constituição - Winnicott, Melaine Klein, Frances
Tustin, Margareth Mahler, Françoise Dolto, são alguns nomes que se destacam na
clínica psicanalítica com crianças (Tafuri, 2000).
O trabalho psicanalítico com crianças propõe constantes desafios. Por estar em
desenvolvimento, a criança não domina a linguagem, tal qual um adulto, prestando-
se de outras vias para manifestar seus processos internos, como a brincadeira,
desenhos, sonhos. Porém, não são as crianças que (normalmente) procuram
tratamento, mas os pais. Escutar os pais permite ao psicanalista saber qual posição a
criança assume no discurso familiar, como essa criança é dita e antecipada ao mundo
(Oliveira, 1996).
No que concerne aos casos de crianças autistas, o trabalho clínico dos
psicanalistas depara-se com um quadro complexo que mais diz do mal-estar
contemporâneo que da subjetividade da criança em questão. O termo autismo em
1911 surgira para nomear uma peculiaridade de retraimento subjetivo devido a
psicopatologia. Em 1943 passa a caracterizar um quadro psicopatológico infantil,
tendo grande repercussão a partir das pesquisas realizadas na área psiquiatria infantil
por Leo Kanner, pesquisador alemão erradicado nos EUA, de grande influência na
psiquiatria. Kanner observava crianças que compartilhavam entre si um quadro cuja
principal característica era a dificuldade extrema de se relacionar socialmente e
linguisticamente com os outros, baseando-se numa origem psicogênica e no
organicismo do funcionamento desse quadro. Dessa forma, a propagação da
descrição dessa doença psicopatológica rara, que afeta crianças desde o início da
vida, pode ser compreendida como um marco no estudo das psicopatologias (Tafuri,
2003).
Desde a década de 1940, então, pode-se considerar que essas duas
perspectivas coexistem acerca do quadro aqui estudado: por um lado observa-se o
autismo como signo de uma deficiência cerebral, uma condição inata e biologicamente
determinada, que desde o nascimento impossibilita o indivíduo de estabelecer
relações saudáveis com o meio. E por outro lado, o autismo passou a ser estudado
pelo viés psicanalítico a partir da perspectiva da constituição do sujeito, onde se
estabeleceu a existência de um paradigma teórico, clínico e técnico (Tafuri, 2003).
A criança autista exerce um fascínio sobre quem se presta a entendê-la, um
fascínio que reside no caráter enigmático do seu isolamento frente a tudo que vem
677
exterior. A prática clínica com essas crianças exigiu reposicionamentos da técnica
psicanalítica clássica, que além de considerar as diversas hipóteses e critérios
diagnósticos, acolhe a função ética de discutir como os aumentos diagnósticos se
entrelaçam às relações simbólico-culturais que hoje estruturam as novas famílias e
seus bebês. Tal tarefa implica refletir quais são os novos modos de subjetivação frente
ao discurso contemporâneo (Bernardino, 2016).
Na contemporaneidade, o autismo tornou-se um tema relevante principalmente
quando relacionado ao campo da educação. Há uma hiperprodução de diagnósticos
dessa síndrome, a princípio rara, respondendo a uma certa demanda social, o que
pode evidenciar a que as transformações de instituições como “família” e “escola” não
mais correspondem às implicações de inserir uma criança no mundo.
A psicanálise, por oferecer uma teoria e uma clínica que compreende o
processo de formação do ser humano, diferente do ser biológico, mas como um ser
social e cultural, possibilita entender o lugar do autismo dentro da sociedade. Acolher
a psicopatologia da criança leva a toda uma condução diferenciada de tratamento do
autismo, considerando-se que ali há, acima de tudo, uma criança.
OBJETIVOS E MÉTODO
Esse trabalho teve como objetivos gerais (i) organizar um saber sobre o
autismo no campo psicanalítico e (ii) exemplificar possibilidades de tratamento clínico
para crianças autistas que permitam a essas um desenvolvimento saudável. Como
objetivo específico, exemplificar, a partir da análise de vinhetas clínicas, as
possibilidades e a eficácia do tratamento psicanalítico de crianças autistas.
Como recursos metodológicos, utilizou-se revisão bibliográfica de textos
acadêmicos que articulam psicanálise e autismo, e também análise de caso clínico
que ilustra a fundamentação teórica construída. Considera-se o método psicanalítico
como norteador para o direcionamento e finalidade da pesquisa, que é de cunho
qualitativo descritivo. Considera-se aqui a ideia de “psicanálise aplicada”, uma vez que
os fenômenos a serem estudados compreendem o enredamento do sujeito nos
fenômenos sociais e culturais (Rosa, 2012).
A pesquisa qualitativa se desenvolve pela perspectiva de que há uma relação
dinâmica entre o mundo objetivo e a subjetividade dos indivíduos. Assim, busca-se
678
interpretar os fenômenos para lhes atribuir significado, tendo na figura do pesquisador
o instrumento-chave (Silva, Menezes, 2005).
JUSTIFICATIVA
679
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), que não têm o intuito de
compreender os quadros que descrevem, mas sim de classificar quanto aos sintomas
e distúrbios de forma categórica. Por um lado, por eles há a possibilidade de
comunicação entre diversos profissionais graças à uniformização dos termos. Por
outro lado, há graves desvantagens, concentrando-se no que as crianças têm em
comum e não nas peculiaridades que as distinguem como sujeitos únicos, sem levar
em consideração as sutilezas que o trabalho clínico evidencia. Um outro problema
reside na dificuldade dos pais em lidar com o diagnóstico recebido, desprovidos de
recursos para significá-lo (Januário, 2012).
A prática clínica deva resgatar o encontro necessário entre o fenômeno e a
linguagem que a noção diagnóstica ofusca. Por isso a proposta adotada nesse
trabalho, defendida por Januário (2009), é que o analista deva se colocar diante de
uma criança diagnosticada autista considerando a essa uma criança em sofrimento
psíquico grave. Tal escolha implica considerar que o diagnóstico está falando de uma
querela do sujeito contemporâneo, complexo e enigmático, à espera de uma aposta
que se faça valer.
Diante das considerações expostas, no referencial psicanalítico, o ato
diagnóstico de crianças, bem como o de adultos, deve ser necessariamente posto em
suspenso e confirmado à posteriori, no decorrer do processo analítico (Oliveira, 1996).
A psicanalista Leda Bernardino (2010), defende que a posição psicanalítica deveria
marcar um contraponto à generalização psiquiátrica, criando um espaço de aposta na
subjetividade. Acolher a psicopatologia infantil na clínica psicanalítica quer dizer
reconhecer uma instância de defesa, que protege um mínimo de existência simbólica
possível diante do sofrimento desmedido em não ter acesso ao sentido, ficando preso
na totalidade onipotente do Outro.
Maria Cristina Kupfer (1999) propõe então que um trabalho possível com
crianças com falhas no processo de constituição psíquica é a de manutenção de um
esquema corporal apesar da degradação do esquema pulsional que não se enlaçou
ao significante. Enfim, considera-se que são crianças que crescem, se desenvolvem,
se tornam profissionais qualificados, porém, terão como “definitivo” a dificuldade de
se relacionar.
Leda Bernardino (2004) complementa a ideia do tratamento psicanalítico de
crianças que tropeçam no caminho de ser infans ao estatuto do sujeito desejante.
Para a autora, não se deve pensar num diagnóstico definitivo para a criança
680
“tropeçante”, deve-se, na verdade, haver implicação do analista em se colocar no
lugar em que a criança precisa que ele esteja, o de supor ali um sujeito e
principalmente, fazendo apostas, aposta que tem sim, tem alguém ali, um sujeito que
habita aquele corpo.
Relato de Experiência
681
no tempo, se desorganizava diante de mudanças na rotina, apresentava dificuldades
para fazer tarefas escolares e de se manter em sala de aula. Suas brincadeiras eram
extremamente concretas e as fantasias referiam-se somente a objetos irreais, não
pertencentes ao cotidiano, evidenciando uma precariedade imaginária - era difícil
manter brincadeiras compartilhadas.
Quando não era entendido ou quando não conseguia entender algo,
apresentava um ensimesmamento impenetrável, se apagando quando era
convocado, e na sua estereotipia, corria de um lado para o outro emitindo sons sem
sentido. Quando conseguia falar de si, dizia que queria ficar sozinho e ir para um
deserto.
Essas dificuldades apresentadas pela criança eram indecifráveis para a família,
composta pelo casal parental do menino e sua irmã mais velha, já adulta, filha do
primeiro casamento da mãe. Depois do diagnóstico psiquiátrico, a mãe desse menino
passou a frequentar palestras sobre autismo e se empenhou para entender sobre
essa condição. Na busca de recursos para lidar com filho, acabou se submetendo a
um saber científico, apresentava um discurso técnico sobre o autismo, mas pouco
sabia dizer sobre a criança que era seu filho. Contudo, ao observar os encontros do
acompanhamento terapêutico, começa a perceber as possibilidades de se relacionar
e brincar com ele. O acompanhamento terapêutico proporcionou um vínculo com a
criança e uma aliança com a família.
A presença da mãe durante os encontros com a A-T foi imprescindível para a
evolução do menino. Presenciar e participar das mediações não só a auxiliaram na
elaboração de seu lugar como mãe como transformou a relação da família com o
menino. Na medida em que a mulher foi se percebendo mãe, abria-se o caminho
necessário para que emergisse ‘uma criança’ no lugar do que antes era ‘um autista’.
Carregando um saber sobre seu filho, a mãe, em função materna, passa a lhe oferecer
um lugar no mundo e na sociedade.
A passagem para o consultório contou com uma evolução no tratamento que
sustentou que o menino construísse recursos internos que dessem conta de elaborar
um mundo tão violento. Considerando que houve um fracasso na função primordial
de reconhecimento, a criança vivia ameaçada por uma realidade da qual ele não sabia
fazer parte. Contando com o tratamento psicanalítico, contudo, encontrou um
mediador que articulasse suas fantasias internas com o mundo externo. As sessões
682
terapêuticas eram um lugar seguro em que a criança podia se mostrar vulnerável, fora
de sua armadura impenetrável, onde poderia construir sua subjetividade.
Nas sessões escolhia desenhar, tendo um caderno só dele, comprado pela
analista, e que ficava guardado no consultório. Representando imagens dos
aterrorizantes jogos computador que gostava, geralmente jogos violentos de robôs,
mostrava algo da elaboração de seus conflitos internos, uma realidade cindida entre
o mundo humano e o mundo mecânico. Tratando desse enredo, tinha a chance de
organizar sua própria história de vida. Por meio dos desenhos e da elaboração de
seus sentimentos, a criança foi “se mostrando” cada vez mais. Apareceram as marcas
da subjetividade, ele passou a se autodenominar um “menino grande”, escolhia suas
roupas e mostrava sinais nítidos de independência. Mais bem articulado no mundo da
linguagem, era capaz de nomear seus sentimentos e de fazer acordos.
Desenvolvia-se a largos passos, mostrando cada vez mais que se organizava
internamente, inclusive tendo o tratamento por Risperidona suspenso, sem quaisquer
complicações. Após o advento da criança, que anteriormente era vista por si como um
robô e como um autista pelos pais, era frequente os questionamentos do menino sobre
seu corpo. Colocava-se de frente ao espelho e se analisava, perguntava sobre seus
cabelos, dentes, olhos, identificando-se humano.
No meio do ano de 2018, Lucas foi encaminhado para outra analista, após essa
terapeuta mudar de cidade. Como encerramento do primeiro trabalho de análise, o
menino desejou que fosse realizada uma “venda de garagem”, uma festa com
exposição e venda dos desenhos feitos por ele. A criança convidou amigos e
familiares para o evento, estipulou o valor de cada obra, e autografava as imagens
compradas. Esse vernissage representou não apenas a organização subjetiva, mas
também que ele ocupava um lugar social e que sua produção pessoal tinha valor. Um
movimento de construção de identidade própria e de circulação social.
CONCLUSÃO
683
simbólicas que outrora regularam as relações, o sujeito contemporâneo se vê perdido
no mar de possibilidades. O sujeito contemporâneo, incapaz de dizer de sua
identidade diante de todas as possibilidades padece num não-lugar.
Os pais, incapazes de saber de si, não conseguem dizer de seus filhos, com
consequências alarmantes. Nesse quadro, o manual de psiquiatria que propõe uma
classificação diagnóstica generalizável acaba recebendo status de referência
globalizada por dizer alguma coisa “sabível” sobre os sujeitos. Acontece que, no que
diz respeito ao campo da subjetividade, daquilo que constitui a individualidade de cada
um, os termos científicos diagnósticos têm pouco a dizer.
Munidos dessa compreensão teórica do momento cultural e histórico, os
analistas de criança têm como se colocar transferencialmente para a criança e para a
família de forma a acolher o mal-estar contemporâneo que ronda as clínicas infantis
da atualidade. Logo, o analista que recebe em seu consultório uma criança autista,
deverá atentar-se não só para as complexas peculiaridades desse quadro, como
também para as mais divergentes teorias que se formam ao redor desse estigma, que
desde sua criação é sinônimo de contradições.
Dessa forma, segue-se a recomendação de suspender o ato diagnóstico no
tratamento psicanalítico, para valorizar a construção de um espaço em que se possa
apostar na edificação subjetiva das crianças que chegam em sofrimento psíquico
grave. O trabalho com a família também é necessário, no caminho de instaurar uma
interrogação onde antes havia a certeza no que se refere à interpretação dos sintomas
do filho.
O caso da criança apresentado no artigo ilustra a complexidade de se trabalhar
com o estigma do autismo, além de demonstrar que há possibilidade para o sujeito
que carrega um diagnóstico determinante, por que na verdade, não é.
Os atendimentos evoluíram de acompanhamento terapêuticos na casa da
criança para atendimento individual, atravessado pela instituição universidade, e
atendimento individual em consultório particular. Nesse processo, é possível perceber
que o lugar que o menino ocupava no discurso familiar muda radicalmente, passando
de “ele é autista”, justificativa utilizada pela mãe para quaisquer comportamentos “fora
da normalidade” do menino, para “você é um menino grande”, argumento dirigido à
criança para lhe propor acordos e combinados dentro das possibilidades dele.
A mãe, quando anunciava que seu filho tinha Síndrome de Asperger, justificava
que “a habilidade dele era o desenho”. Por um certo tempo, a principal marca de uma
684
subjetividade que era dita do menino para ele, era que se tratava de um exímio
desenhista. Não obstante, essa criança, que pode criar por meio do tratamento
psicanalítico novas vias para retomar sua constituição subjetiva, assumiu um lugar
social próprio, o de artista, cuja produção tem valor simbólico e lugar para circulação
social, que ficou claro na realização da Vernissage na casa da família.
Supõe-se a essa criança que se desenvolve a olhos vistos um futuro. Sabe-se
que ele continuará a assumir sua subjetividade, organizando-se, como pode, na
cultura e nas relações, mesmo que, vez por outra, tenha uma escorregada ali ou aqui,
vagando como qualquer sujeito. Assim, a análise do caso ilustra a técnica clínica e
ratifica a ideia de que o acompanhamento psicanalítico de crianças com falhas no
desenvolvimento global possibilita a organização necessária para suportar e
aproveitar a vida.
REFERÊNCIAS
Bernardino, L. M. F. (2016). A intervenção psicanalítica nas psicoses não decididas
na infância. COLOQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 5. Disponível em:
<http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC000000003
2004000100004&lng=en&nrm=abn>
Bernardino, L.M.F. (2010). Mais além do autismo: a psicose infantil e seu não lugar na
atual nosografia psiquiátrica. Estilos da Clínica, 28, (61), 111-119.
Januário, L.M; Tafuri, M.I. (2009). O sofrimento psíquico grave e a clínica com
crianças. Revista Subjetividades, 9, (2), 527-550. Disponível em
<http://periodicos.unifor.br/rmes/article/view/1629/3620>.
685
Kupfer, M.C. (2004). Autismo: uma estrutura decidida? Uma contribuição dos estudos
sobre bebês para a clínica do autismo. COLOQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 5. São
Paulo Disponível em:
<http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC000000003
2004000100005&lng=en&nrm=abn>
Tafuri, M.I. (2003). Dos sons à palavra: explorações sobre o tratamento psicanalítico
da criança autista. ABRAFIPP, Brasília.
686
62- AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA E A DEPRESSÃO
EM CRIANÇAS NO AMBIENTE ESCOLAR
Introdução
687
A avaliação psicológica tem papel central nesse cenário, pois, como destaca
Simões (1999), os instrumentos psicológicos podem ter um impacto na prática clínica
e no contexto da pesquisa científica, sendo que auxiliam no rastreamento,
identificando os problemas psicológicos, definindo objetivo terapêutico, fatores de
risco e possibilitando o planejamento de intervenções e tratamentos.
A acurácia diagnóstica de inventários, escalas e entrevistas, bem como os
estudos de evidências de validade e confiabilidade são características psicométricas
fundamentais aos instrumentos psicológicos. Harrington (1993), Reynolds, Johnston,
(1994), Simões (1999). Entende-se dessa forma que a existência e o estudo das
propriedades psicométricas dos instrumentos utilizados na avaliação da depressão é
de grande importância, mesmo porque, menos da metade dos indivíduos que
possuem depressão são identificados pelo sistema de saúde, demonstrando assim a
importância em se ter, por exemplo, escalas capazes de rastrear possíveis casos
elevando a possibilidade de encaminhamentos para avaliações mais pormenorizadas
e tratamento especializado por profissionais de saúde.
Diante desse contexto, o presente estudo teve como objetivo analisar a
produção científica nacional em relação à avaliação psicológica como instrumento
para identificar depressão em crianças no ambiente escolar. Para, além disso,
relacionar quais as avaliações seriam mais indicadas nessas situações, associados
ao estudo da depressão, nome da revista em que os estudos foram publicados e os
anos de publicação.
Desenvolvimento
688
entre os Transtornos de Humor, onde o indivíduo acometido de tal patologia apresenta
os seguintes sintomas: redução do humor; redução da energia e diminuição da
atividade; alteração da capacidade de experimentar o prazer; perda de interesse;
diminuição da capacidade de concentração associadas em geral à fadiga importante,
mesmo após um esforço mínimo.
Observam-se em geral problemas do sono e diminuição do apetite. Existe
quase sempre uma diminuição da autoestima e da autoconfiança e frequentemente
ideias de culpabilidade e ou de indignidade, mesmo nas formas leves. Já o Manual
Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais DSM -V (1995) faz ressalvas no que
se refere às crianças e adolescentes indicando que pessoas nesta faixa etária,
acometidas pela depressão, podem desenvolver “um humor irritável ou rabugento, ao
invés de um humor triste ou abatido. Esta apresentação deve ser diferenciada de um
padrão de "criança mimada", que se irrita quando é frustrada.
Segundo Schwan & Ramires (2011), alguns estudos apontam a depressão na
infância como um problema crescente. A queda do rendimento escolar é um dos
primeiros indicadores de depressão em crianças, além do desenvolvimento do quadro
de disforia, isolamento e tristeza.
Segundo Barbosa & Lucena (1995), a escola é um local bastante favorável à
realização de estudos epidemiológicos em crianças. É provável que o comportamento
depressivo na infância ocorra no contexto educacional, sendo o baixo rendimento
escolar um dos primeiros sinais do surgimento de um possível quadro depressivo. É
de extrema importância o diagnóstico para a família da criança, visto que a depressão
pode acarretar problemas no seu repertório comportamental, variando desde extrema
irritabilidade à obediência excessiva, podendo ainda ocorrer uma instabilidade
significativa com relação a esses comportamentos.
Investigações para elucidar a origem e o curso de desenvolvimento dos
problemas têm convergido para uma concepção multifatorial e transacional, em que
as manifestações externalizantes refletem processos de trocas contínuas entre
características da criança nas interações sociais e características dos cuidadores e
seu contexto social/ecológico (Olson, Bates, Sandy, & Lanthier,. 2000).
Comportamentos externalizantes com componentes antissociais
frequentemente se desenvolvem em contextos de adversidade ambiental (Olson et
al.2000). Nessas trocas, o ambiente familiar apresenta práticas de socialização
violentas, exposição a modelos adultos agressivos, falta de afeto materno e conflitos
689
entre os pais (Blanz, Schmidt, & Günther, 1991; Dodge, Pettit & Bates, 1994; Ramsey,
Shinn, Walker & O’Neill, 1989; Shawe Emery, 1988; Vuchinich, Bank & Patterson,
1992). Tais práticas, por sua vez, estão frequentemente associadas a um contexto
social adverso, marcado por dificuldade econômica e estressores psicossociais
incidindo sobre a família (Mc Loyd, 1998).
Souza, Soldatelli & Lopes (1997), investigando o psicodinamismo familiar de
crianças agressivas, comprovaram os efeitos da privação emocional em meninos com
queixa de agressividade no ambiente escolar. As pesquisadoras demonstram que
estas crianças se apresentam de forma agressiva na escola com o fim de vivenciar
aquilo que seus lares não puderam oferecer: a possibilidade de uma expressão afetiva
mais espontânea e o estabelecimento de limites.
Kupfer (1998) analisa aspectos da cultura para afirmar que o professor
brasileiro não encontra mais uma rede de sustentação simbólica que lhe assegure o
suporte da autoridade no exercício da profissão. Sugere, assim, que a agressividade
na escola seja uma reação à falta de limites simbólicos essenciais para o aprendizado
e crescimento humano.
Para Souza e Castro (2008) a escola tem papel importante, na identificação
dos sintomas depressivos e na orientação inicial da família, para que possam buscar
um tratamento adequado para a criança e para minimizar, da melhor forma os fatores
do ambiente escolar.
O autor Simões (1999) considera que pelas características da manifestação da
depressão, seu principal impacto ocorre na própria criança e não nas pessoas que
convivem com ela, o que, por sua vez, dificulta o seu reconhecimento e o tratamento
da problemática. Com isso, verifica-se a tendência de se ter a criança como um
importante informante de seus sentimentos e os inventários e escalas de auto-
avaliação são vistos como instrumentos essenciais na avaliação de problemas
internalizantes.
Instrumentos e procedimentos
690
comportamento-problema (Perry, 1990; Sarwer & Sayers, 1998). Entrevistas podem
ser não estruturadas, semiestruturadas e estruturadas.
A entrevista não estruturada permite o surgimento gradual do problema-queixa,
e requer habilidade especial e treinamento do entrevistador para fazer perguntas a
partir de inferências sobre o material apresentado pelo informante (Sarwer & Sayers,
1998; Silverman & Serafini, 1998). As entrevistas semiestruturadas e estruturadas
investigam variáveis específicas de forma pontual. No formato semiestruturado, a
entrevista segue um roteiro de perguntas ou afirmações a serem respondidas pelo
informante de modo mais direcionado e controlado do que nas entrevistas não
estruturadas. No formato estruturado, o roteiro de perguntas tem formato e sequência
pré-estabelecidos, que exigem repostas de escolha forçada do tipo “verdadeiro” ou
“falso”; ou de “pouco frequente” a “muito frequente”.
De acordo com Gouveia, Barbosa, Almeida & Andrade Gaião. (1995) as
avaliações objetivas, como questionários, escalas de autoavaliação e inventários, são
instrumentos mais aplicados e são preferidos em relação às entrevistas clínicas. São
métodos que apresentam algumas vantagens, como a redução da subjetividade, a
diminuição da inferência e o efeito da opinião pessoal do pesquisador ou clínico. No
entanto, é importante lembrar que os inventários não substituem as entrevistas como
método de diagnóstico da depressão, sendo, na maioria das vezes, empregados como
medida de rastreamento de sintomas depressivos.
Dentre os inventários de autoavaliação relatados na literatura, o Children’s
Depression Inventory (CDI) ou Inventário de Depressão Infantil tem sido o instrumento
mais aplicado na identificação de sintomas depressivos. CDI foi o primeiro instrumento
elaborado para estudar os sintomas de depressão na infância. Foi proposto em 1983
por Kovacs (Kovacs, 1992), e surgiu de uma adaptação do BDI – Beck Depression
Inventory. Trata-se de uma escala de autoavaliação de 27 itens, destinada a identificar
os sintomas de depressão em pessoas de 7 a 17 anos e tem sido largamente utilizada
em estudos epidemiológicos internacionais e brasileiros.
De acordo com Lipp & Lucarelli (2005) a Escala de Stress Infantil (ESI):
Instrumento brasileiro e validado para a população infantil. Tem como objetivo avaliar
os sintomas de estresse em crianças de 6 a 14 anos de idade. Sendo composto por
35 itens com respostas em escala likert (0 a 5 pontos), abordando os fatores de
reações físicas (RF), psicológicas (RP), psicológicas com componente depressivo
(RPD) e psicofisiológicas (RPF) do estresse. Essa ferramenta permite classificar o
691
estresse em quatro fases: alerta ou alarme, defesa ou resistência, quase-exaustão e
exaustão.
A Escala Multidimensional de Ansiedade para Crianças (MASC) (March.
Parker, Sullivan, Stallings, Conners, 1997). Traduzida, adaptada e validada para a
população brasileira por Nunes (2004). Esse instrumento possui 39 itens que tem por
objetivo avaliar os sintomas ansiosos da criança em diferentes dimensões como:
sintomas físicos, de ansiedade social, do comportamento de evitar o dano e de
separação/pânico. Conta com opções de resposta do tipo likert de 4 pontos.
Com um outro embasamento teórico. estão os testes projetivos, instrumentos
que contribuem para a identificação e compreensão da patologia depressiva estão
que mobilizam conteúdos inconscientes. Quanto menores forem os recursos do ego
para lidar com esta situação, maior será o grau de distorção aperceptiva do estímulo,
no teste de apercepção temática (TAT) como no teste de apercepção temática para
crianças (CAT- A), teste de apercepção infantil (CAT-H) e scholastic aptitude test
(SAT).
O CAT (Children’s Apperception Test) de Leopold & Sorel Bellak foi publicado
em 1949 (Bellak, 1966); validado no Brasil por Miguel, Tardivo, Silva & Tosi (2010).
Destina-se a crianças de 3 a 10 anos, para quem as pranchas do TAT são pouco
mobilizantes, e em seu lugar são apresentadas cenas de animais, com as quais as
crianças se identificam facilmente (TARDIVO, 1998).
Tardivo & Moraes (2016) escrevem que evidências indicaram que algumas
crianças respondiam melhor a figuras de animais e outras a figuras humanas. Tanto
para as investigações com os manuais do CAT-A (um livro de instrução) como com o
CAT-H (10 cartões de aplicação) foi proposto um esquema de análise baseado no
original de Bellak, com contribuições de Tardivo (1998); composto pelos itens:
Autoimagem - características do herói; Relações objetais; Concepção do ambiente;
Necessidades e conflitos; Ansiedades; Defesas; Superego; Integração do ego. Foram
atribuídos pontos de acordo com a qualidade dos itens, para poder ser feito o estudo
estatístico da análise de conteúdo; em distintos estudos.
Um dos procedimentos que pode ser utilizado para a coleta de dados é
Desenho-Estória com Tema (D-E/T) que consiste em uma técnica de investigação da
personalidade que utiliza basicamente o desenho livre associado a histórias com uma
temática específica (Trinca & Tardivo, 2003). Esta técnica pode ser usada de várias
formas, como um desenho livre em que o indivíduo conta uma história sobre o que ele
692
desenhou, como desenho de família com estória e desenho-estória com tema. O D-E
consiste em uma técnica pautada nos desenhos livres que são técnicas gráficas que
facilitam a comunicação principalmente com crianças e adolescentes que não possui
facilidade em verbalizar seus conteúdos.
Este procedimento foi proposto em 1972 por Walter Trinca, caracterizado como
estratégia projetiva que fornece informações sobre a representação simbólica,
inteligência, psicomotricidade, vida afetiva, entre outras, é uma excelente técnica para
se trabalhar tanto com crianças quanto adolescentes, pois pelo desenho tendem a
expressar de forma inconsciente, uma visão de si mesmos tal como gostariam de ser
(Trapé Trinca, 2013; Trinca, 2013).
Foram acima, apresentados instrumentos de relevância para a avaliação
psicológica, porém é importante salientar que estes não substituem o olhar mais
amplo do sujeito como a avaliação clínica e outras técnicas utilizadas que visam
ampliar a visão do profissional em relação às intervenções e tratamentos adequados
para a criança no ambiente escolar.
Com base nos resultados da pesquisa, observa-se que a depressão na infância
está associada a questões psíquicas, físicas e cognitivas e podem interferir de
maneira significativa na vida da criança, prejudicando suas relações familiares, sociais
e escolares.
Conclusão
693
Desta forma, espera-se ter colaborado para a tal área, mais especificamente
em relação às habilidades sociais e para a vida e auxiliando, a partir de um olhar crítico
a entender as demandas enfrentadas pelas crianças. Assim, percebe-se a
necessidade do psicólogo buscar novas possibilidades diante dos muitos desafios
apresentados na avaliação psicológica, este profissional deve sair da zona de conforto
e buscar alternativas para ampliar o seu atendimento dentre estas se encontram as
escutas clínicas, técnicas e a capacidade de acolher e ser sensível.
Referências
Blanz, B., Schmidt, M. H. & Gunther, E (1991). Familial adversities and child psychiatric
disorders. Journal of child pschology and psychiatry, 32, 939-950.
Gouveia, V. V., Barbosa, G. A., de Almeida, H. J., & de Andrade Gaião, A. (1995).
Inventário de depressão infantil-CDI: estudo de adaptação com escolares de João
Pessoa. Jornal Brasileiro de Psiquiatria.Harrington, R. Depressive disorder in
childhood and adolescence. New York: John Wiley & Sons.
694
March, J.S.; Parker, J.D.; Sullivan, K.; Stallings, P. et al (1997). The Multidimensional
anxiety scale for children (MASC): factor structure, reliability, and validity. Journal
of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, 36(4):554-565.
https://doi.org/10.1097/00004583-199704000-00019
Miguel, A., Tardivo, L.C., Silva, M.C.V.M., & Tosi,S.M.V.D. (2010) Test de apercep o
infantil (CAT-A) figuras de animais, São Paulo: Vetor.
Nunes, M. F. O.; Muniz, M.; Reppold, C. T.; Faiad, C.; Bueno, J. M. H.& Noronha, A.
P. P. Diretrizes para o ensino de avaliação psicológica. Avaliação Psicológica, São
Paulo, v. 11, n. 2, p. 309-316, 2012.
Olson, S. L., Bates, J. E., Sandy, J. M. & Lanthier, R (200). Early develop mental
precursors of externalizing behavior in middle childhood and adolescence. Journal
of Abonormal Child Psychology, 28, 119-133.
Souza, Maria Abigail de; Castro, Rebeca Eugênia Fernandes (2008). Agressividade
infantil no ambiente escolar: concepções e atitudes do professor. Psicologia em
Estudo, Maringá, v. 13, n. 4, p. 837-845.
695
SIMÕES, M. R (1999). A depressão em criança e adolescentes: elementos para a sua
avaliação e diagnóstico. Psychologica, Coimbra, n. 31, p. 27-64.
Tardivo, L.S.P.C (1998). Teste de Apercepçao Infantil com figuras de animais (CAT-
A) e teste das Fábulas de Düss: estudos normativos e aplicações no contexto das
técnicas projetivas. São Paulo, Vetor.
696
63- ASSEXUALIDADE(S): METASSÍNTESE DE TESES E DISSERTAÇÕES
BRASILEIRAS
7
Bolsista CAPES. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFAL. E-mail:
laurabarrosrocha@gmail.com
8
Mestrandas do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail:
madeiro.alana@gmail.com; camila.danjos@gmail.com e camila.buarq@gmail.com
9
Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Professora Associada
da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: adeliasouto@ip.ufal.br
697
INTRODUÇÃO
698
pode sentir atração sexual, mas deve evitar ter relações sexuais por motivos de
crenças religiosas ou afins. Já assexualidade seria o “não interesse em praticar
relações sexuais com outrem devido à ausência de atração sexual” (Neiva, 2019, p.
44).
A terminologia “assexuado” foi erroneamente utilizada, por muito tempo, para
definir as pessoas que não tinham atração sexual por outrem. No entanto, esse termo
é originário da biologia para classificar um tipo de reprodução. Apenas após os anos
2000 que o termo “assexuais” passou a ser usado, e a definir uma orientação sexual
(Bezerra, 2015; Neiva, 2019).
Com essas considerações, investigou-se a produção acadêmica acerca da
assexualidade em teses e dissertações brasileiras. Identificaram-se os avanços nas
formas de conceituação, bem como se adotou um posicionamento político da
necessária discussão de formas não heteronormativas que são consideradas
marginais pela sociedade, para que a comunidade acadêmica possa contribuir para a
visibilidade da temática na sociedade e a despatologização da assexualidade.
MÉTODO
699
graduação no Brasil, em especial no que se refere à promoção e divulgação da
produção científica nas mais diversas áreas do conhecimento” (Bastos, 2014, p. 24).
Além de serem bancos de teses e dissertações de pesquisa gratuita e com adesão de
toda a pós-graduação brasileira.
A consulta aos bancos foi realizada através da inserção individual dos
descritores assexual e assexualidade nas bases de dados, sem delimitação temporal.
Em seguida, durante a fase de refinamento buscou-se, através da leitura flutuante dos
resumos das produções, determinar quais se referiam à assexualidade humana. Esse
processo de refinamento é um movimento de qualificação da amostra onde se verifica
a condição dos documentos guardarem “de fato relação com o objetivo que se propõe
investigar” (Oliveira et al., 2017, p.78).
Por sua vez, o cruzamento é responsável por eliminar as duplicidades de
material através da exclusão de produções repetidas no corpus. O armazenamento
do material realizou-se por meio do serviço de armazenamento e sincronização de
arquivos Google Drive.
A etapa da descrição diz respeito ao movimento de se conhecer e discutir os
aspectos importantes das produções acadêmicas, de forma a abarcar a quantificação
e a descrição histórica, geográfica e institucional das produções. Por último, a etapa
de interpretação das informações propriamente ditas, através de leitura aprofundada
que gerem sínteses temáticas, teóricas e metodológicas presentes nas produções. A
proposta se volta para pontuar os avanços e limitações na discussão do conteúdo dos
documentos (Oliveira et al., 2017).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
700
Tabela 1
Consulta aos bancos de dados (etapa de exploração)
Catálogo de Teses & Dissertações Banco de Teses e Dissertações (Bdtd)
Assexual 61 38 23 44 21 23
Assexualidade 15 09 06 44 21 23
TOTAL 76 47 29 88 42 46
Tabela 2
Etapa de refinamento
Catálogo de Teses & Dissertações Banco de Teses e Dissertações (Bdtd)
Assexual 61 58 3 44 40 4
Assexualidade 15 11 4 44 41 3
TOTAL 76 47 7 88 81 7
701
Nas produções, há um relativo consenso em relação ao conceito de
assexualidade como referente à falta de atração sexual ou desejo sexual, com
exceção do estudo de D’Andrea (2016), que considera “impreciso” esse ponto de
vista. Para ele, reduzir a assexualidade a uma ausência de atração sexual não condiz
com a diversidade de experiências de vida dos sujeitos que se consideram dessa
orientação, “saindo de uma leitura dicotômica de sexo ou não sexo, para uma visão
polimórfica de possibilidades de vida” (p. 13). Dessa forma, em sua dissertação, o
autor adota a ideia de sexualidade (incluindo, portanto, a assexualidade) como rizoma,
que abarca essa visão ampliada e plural.
Percebe-se, a partir do exposto pelo autor, a importância de considerarmos as
particularidades de cada sujeito em relação à sua sexualidade. Contudo, apesar da
busca por uma visão ampliada, apontamos a necessidade de constante reflexão sobre
o rumo de nossas produções e discussões, com o cuidado de não cairmos numa
relativização e categorização dos fenômenos que gere certo enfraquecimento dos
discursos e do próprio movimento de visibilização das causas pelas quais os sujeitos
lutam.
A partir do olhar da Psicologia, permeado pelas produções de Michel Foucault
e Gilles Deleuze, dentre outros, a pesquisa de D’Andrea (2016) busca pesquisar a
assexualidade no contemporâneo, em meio a sua emergência, a partir de relações
nosite The Asexual Visibility Education Network(AVEN) e em redes sociais (Facebook)
que tratem da temática (netnografia), bem como a partir de entrevistas com pessoas
que participam desses espaços e se identificam como assexuais. Em sua dissertação,
apesar de apontar críticas ao conceito de assexualidade adotado pela AVEN,
organização de grande visibilidade que reúne pessoas que se classificam como
assexuais, o autor reconhece a importância de espaços como esses na ajuda com o
processo de autoidentificação, uma vez que viabilizam trocas de relatos e dão
visibilidade à orientação.
Em sua dissertação da área de Psicologia, Santos (2016), aponta para a
dificuldade de se chegar a um consenso sobre o que é assexualidade. A partir de uma
revisão de literatura, a autora encontrou trabalhos que apontam a assexualidade como
patologia e disfunção, enquanto outros vinculam à construção sócio-histórica do
indivíduo. Diante disso, a autora apresenta a assexualidade como uma nova forma de
se entender a sexualidade, através da manifestação de uma sexualidade humana
caracterizada pela falta de atração sexual e/ou o ato sexual. Além disso, considera
702
que assexuais apresentam diferentes vivências e formas de ser, ou seja, apresenta a
assexualidade de caráter pluralista e multifacetado.
Santos (2016) posiciona a sexualidade na dimensão do desejo, entretanto,
diferencia essa dimensão de desejo sexual. Vivências de desejo podem ocorrer
através da linguagem, os discursos, os saberes e a fala são libidinais e substituem o
sexo, para os assexuais. Assim, questiona-se a afirmativa de que assexuais não
desejam, o desejo é elemento essencial e está ligado aos modos de existência, e não
estão necessariamente relacionados ao sexo.
Em contrapartida, Neiva (2019) em sua tese na área de Antropologia social
aponta que assexuais não possuem o interesse em praticar atos sexuais devido à
“ausência de atração sexual”. Para tal afirmação ela recorre ao conceito da
comunidade Aven, bem como às entrevistas realizadas pela pesquisadora de forma
presencial e por via online por meio da Comunidade assexual, que se identifica como
A2 e grupo Ace no WhatsApp.
Na tese de Bezerra (2015) são abordadas as diferentes formas de
assexualidade, definidas historicamente pela comunidade acadêmica. Entretanto, o
autor define os assexuais como pessoas que não sentem atração sexual e aponta o
caráter auto identificatório da sexualidade. Em seu texto, ele desmistifica alguns dos
mitos mais comumente associados aos assexuais, qual seja o celibato. Contrapõe-se
também a ideia da religiosidade como a causa da assexualidade, ou ainda que
assexuais, necessariamente, não pratiquem o ato sexual.
Na busca de uma explicação determinista da sexualidade ou uma relação de
causalidade tão presente nas “ciências duras”, Bezerra (2015) aponta pesquisas que
tentam encontrar explicações fisiológicas para a assexualidade (como desequilíbrios
hormonais) ou atribuem a causa a experiências sexuais/românticas traumatizantes na
infância ou adolescência. Entretanto, “produções discursivas dos próprios assexuais,
mostram que não se trata de experiências traumatizantes, além de a maior parte dos
assexuais manter ou desejar manter relacionamentos amorosos” (Bezerra, 2015, p.9).
Bezerra (2015) cita pesquisas que elencam benefícios da assexualidade como,
entre outras coisas, “a vantagem de sofrer menos pressão social para encontrar um
parceiro adequado.” (Bezerra, 2015, p.35). O autor não se posiciona claramente
quanto a essa afirmação, de modo que fica ambíguo se ele concorda com afirmação
ou discorda dela. Entretanto, com base em discussões sobre violência social e
expectativas dos scripts de gênero, propostas por Oliveira (2015) e Neiva (2019), faz-
703
se necessário destacar as evidências que apontam para uma maior pressão social,
uma vez que as expectativas da Sociedade em relação ao casamento e a construção
de relacionamentos se intensificam na experiência assexual.
O que podemos observar em uma das reflexões de Neiva (2019) sobre a fala
de uma de suas entrevistadas na pesquisa:
O que também ressalta aos olhos é que para seus amigos há a possibilidade de ela
estar protagonizando uma fraude e que, portanto, não saiu ainda do armário da
homossexualidade lésbica. Ou seja, um dos preconceitos que sofrem é por parecer
impensável para muitos(as) a possibilidade de não ser sexual. Ou é heterossexual e
faz parte da norma, ou está no armário, já que não mostra para a sociedade uma vida
sexual ativa (p.100).
704
sofrimento das pessoas que se consideram assexuais. Em seu ponto de vista, esses
aspectos estão ausentes na proposta do referido manual.
Outro ponto de destaque, do referido autor, em relação à assexualidade diz
respeito ao posicionamento como orientação sexual, compartilhado por D’Andrea
(2016), Bezerra (2015), Oliveira (2015) e Neiva (2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
705
REFERÊNCIAS
Oliveira, A. A. S., Bastos, J.A., Canuto, L.T., Santos Júnior, P.S., Bueno, L.D. & Rocha,
M.L.B. (2017). A produção de conceitos e de métodos na pesquisa psicológica:
contribuição da metassíntese ao conhecimento científico. In: Oliveira, A. A. S.
706
(Org.). Psicologia Sócio-histórica e o contexto de desigualdade psicossocial: teoria,
método e pesquisas. (pp.71-86) Maceió: EDUFAL.
707
64- AVALIAÇÃO DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR DE ESTUDANTES DE
PSICOLOGIA DE UM CENTRO UNIVERSITÁRIO
708
7. Universidade São Judas Tadeu, Graduanda em Psicologia. Email: vitoriia_rb@hotmail.com
8. Universidade São Judas Tadeu, Psicólogo e Doutor em Psicologia com ênfase em Avaliação
Psicológica em Contextos de Saúde Mental pela Universidade São Francisco - USF. Email:
montieljm@hotmail.com
1. Introdução
O termo comportamento alimentar é utilizado para expressar todo tipo de
construto no âmbito da alimentação, ou seja, o conceito teórico da alimentação, que
envolve o modo de comer e pode ser sintetizado como as ações em relação ao ato de
se alimentar (Alvarenga, 2016). Assim, o comportamento alimentar é um conjunto de
ações relacionadas ao alimento, que envolve desde a escolha até a ingestão, bem
como, tudo a que ele se relaciona (Vaz & Bennemann, 2014).
Neste contexto, o humor e as emoções podem influenciar na escolha dos
alimentos, uma vez que o indivíduo come aquilo que deseja e/ou o que sua cultura
designa. Para o ser humano, através do fenômeno de socialização, a comida adquire
um significado para além do fisiológico, havendo o desejo de comer, mesmo na
ausência de necessidades energéticas e nutricionais (Balaias, 2009; Natacci &
Ferreira Júnior, 2011).
Segundo Natacci & Ferreira (2011), as principais dimensões de comportamento
associados ao hábito alimentar envolvem a restrição cognitiva, a alimentação
emocional e o descontrole alimentar. Esses três fatores caracterizam o
comportamento alimentar dos indivíduos e podem ser associados com os transtornos
alimentares (TA) e a obesidade.
A alimentação emocional ocorre quando o ato de se alimentar adquire
significados que transpassam as funções nutritivas; ela pode, por exemplo,
representar um prazer imediato e, portanto, servir para aliviar e compensar
sentimentos tidos por negativos, como tristeza, angústia, ansiedade e medo, tornando
o alimento um condutor de afeto (Balaias, 2009; Kaufman, 2013).
A restrição alimentar pode ser considerada como a tendência para restringir a
ingestão de alimentos, de forma deliberada, para prevenir o aumento de peso ou
promover a perda ponderal. O comportamento restritivo passa a ser compreendido
como o resultado da interação entre fatores fisiológicos, na origem do desejo de
comida (apetite), e os esforços cognitivos para resistir a este desejo. Os indivíduos
com comportamento alimentar restritivo, independentemente da classificação de
709
peso, suspendem a ingestão, não como resposta aos mecanismos de saciedade, mas
porque chegaram a um limite de ordem cognitiva. (Moreira, Sampaio & Almeida, 2003;
Viana, 2002).
Devido a fatores fisiológicos e psicossomáticos, a tendência após um período de
restrição é o descontrole, a desinibição alimentar (Viana, Candeias, Rego & Silva,
2009). O descontrole alimentar pode ser definido como a perda do autocontrole e
consumo exagerado de alimentos, com ou sem presença de fome (Tholin,
Rasmussen, Tynelius & Karlsson, 2005).
Entre os indivíduos que manifestam maior insatisfação com o peso e
preocupações com o ganho e controlo ponderal, encontram-se os estudantes
universitários (Moreira, Sampaio & Almeida, 2003). Paixão, Dias & Prado (2010)
ressaltaram que ao entrar na universidade o estudante passa por várias mudanças no
seu estilo de vida, a mudança na alimentação é uma delas.
O ingresso no ensino superior gera mudanças no cotidiano do estudante,
proporcionando novas experiências associadas a novos e distintos sentimentos, o que
influencia a percepção do estudante em relação a sua qualidade de vida e bem-estar
(Silva & Heleno, 2012). Como estão mais preocupados em ter um bom desempenho
acadêmico, participar das relações culturais e manter boas relações sociais, deixam
de lado a importância de uma alimentação saudável (Alves & Boog, 2007). Esses
maus hábitos alimentares podem ser influenciados pelas novas relações sociais e
novos comportamentos, assim como pela ansiedade que pode transformar as suas
alimentações num “refúgio” em situações de estresse mental e físico (Santos, Chaud
& Marimoto, 2014).
2. Objetivos e justificativa
Torna-se importante o conhecimento sobre o comportamento alimentar em
estudantes universitários, pois a alimentação é um dos comportamentos mais
primitivos do ser humano e com o passar do tempo, o ato de comer adquiriu múltiplos
significados que podem influenciar outras dimensões, uma vez que alimentar-se não
visa somente à sobrevivência, mas também se tornou um ato social e uma forma de
lidar com as emoções. O universitário enfrenta muitos desafios durante sua trajetória
acadêmica, podendo se utilizar dos alimentos para aliviar as frustrações. Desta forma,
é relevante estudar o comportamento alimentar em estudantes, pois a alimentação é
um dos fatores que podem influenciar o nível de saúde.
710
O objetivo geral desse trabalho é analisar o comportamento alimentar de
estudantes universitários do curso de psicologia de um Centro Universitário. Os
objetivos específicos são verificar as dimensões do comportamento alimentar
(Restrição Cognitiva, Alimentação Emocional e Descontrole Alimentar) e correlacionar
as dimensões do comportamento alimentar com os dados de identificação (gênero,
turno, prática de atividade física, dieta e situação de trabalho).
3. Método
A abordagem da pesquisa quantitativa, de caráter descritivo e delineamento
transversal. A amostra foi composta por 41 estudantes de um Centro Universitário da
grande São Paulo. Para participar do estudo, foi considerado como critério de inclusão
estudantes universitários a partir dos 18 anos, matriculados em um curso de
psicologia. Não foram incluídos estudantes de pós-graduação e matriculados em
outros cursos. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e
esclarecido (TCLE), o qual foi apresentado em duas vias, sendo uma via para os
participantes e outra via para a pesquisadora. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê
de Ética da Universidade São Judas Tadeu (CAAE: 14882719.7.0000.0089), sob o
parecer 3.429.111.
Foi utilizado como instrumento um questionário de identificação e a versão
reduzida do instrumento The Three Factor Eating Questionnaire de 21 itens (TFEQ-
R21), traduzido e adaptado por Natacci e Ferreira Júnior (2011). Medeiros, Almeida,
Sampaio e Almeida (2016) realizaram um estudo de validação dessa versão em
português aplicada a estudantes universitários. Nesse estudo, a amostra foi composta
por 433 estudantes da Universidade do Rio Grande do Norte.
O TFEQ-R21 é composto por um total de 21 itens, sendo eles subdivididos em
três diferentes escalas, que avaliam as dimensões do comportamento alimentar:
Restrição Cognitiva (RC); Alimentação Emocional (AE); e Descontrole Alimentar (DA).
A média de cada uma das variáveis de comportamento será calculada e transformada
em uma escala de 0 a 100 pontos.
Foram realizadas análises descritivas (média, desvio padrão e frequência), dos
resultados dos instrumentos utilizados de modo a caracterizar a amostra. Além disso,
foi feito a aplicação do teste de normalidade Kolmogorov-Smirnov, teste de Levene,
teste T de Student e correlação de Pearson, com o nível de significância de 0,05 (5%).
Foi utilizado o software Statistical Package for the Social Sciences (SSP) versão 21.0.
711
4. Resultados e discussão.
Participaram deste estudo 41 estudantes, com a média de idade de 23,3 anos.
Os dados sociodemográficos encontrados neste estudo apontaram que a maioria dos
participantes é do gênero feminino (82,9%), estudam no turno da manhã (75,6%),
trabalham (53,7%), levam refeições para a faculdade (53,7%), não fazem dietas
(47,6%) e não praticam atividade física (70,7%).
Tabela 1
Caracterização da amostra em relação à idade e os resultados da escala TFEQ-R21.
Média (DP) Mínimo Máximo
Idade 23,3 (6,3) 18 46
DA 46,6 (21,8) 0 96,3
RC 34,8 (18) 5,6 77,8
AE 52,8 (31,7) 0 100
DP: desvio padrão.
Tabela 2
Caracterização da amostra em relação às variáveis gênero, turno, trabalho, levar
refeições para universidade, dieta e atividade física e valores de referência para o
Teste T de Student em relação às médias das escalas do TFEQ-R21.
DA RC AE
N (%) Média p Média p Média p
(DP) (DP) (DP)
Gênero
Masculino 7(17,1) 53,4(23,3) 31,7(16,3) 56,3(35,2)
0,413 0,626 0,776
Feminino 34(82,9) 45,2(21,6) 35,4(18,5) 52,1(31,4)
712
Turno
Manhã 31(75,6) 41,6(20,6) 36,3(18) 45,3(30,1)
0,008 0,337 0,006
Noite 10(24,4) 62,2(18,4) 30(18,1) 76,1(21,9)
Trabalha
Sim 22(53,7) 48,5(19,3) 33,5(14,5) 62,9(27,9)
0,562 0,653 0,027
Não 19(46,3) 44,4(24,8) 36,3(21,8) 41,2(32,5)
Levar
refeições
Sim 22(53,7) 40,7(19,8) 40,4(18,9) 57,3(27,6)
0,063 0,031 0,336
Não 19(46,3) 53,4(22,7) 28,3(14,9) 74,6(35,8)
Dieta
Sim 5(12,2) 39,2(31) 48,9(13,8) 71,1(12)
0,429 0,062 0,016
Não 36(87,8) 47,6(20,6) 32,8(17,8) 50,3(32,8)
Atividade
Física
Sim 12(29,3) 42,6(21,2) 40,7(22,4) 55,1(26,1)
0,456 0,180 0,774
Não 29(70,7) 48,3(22,2) 32,4(15,7) 51,9(34,1)
DP: desvio padrão.
713
100 p<
0,003
100 r =
80 - 0,456
80 n=
60
RC
60
DA
40
40 p
< 0,000 20
20 r
= 0,528
0
0
0 20 40 60 80 100
0 20 40 60 80 100
A B DA
AE
Na Figura 1A pode ser observada uma correlação positiva entre os escores das
escalas DA e AE, ou seja, quanto maior os escores de descontrole alimentar, maior
os escores da alimentação emocional. No estudo de Souza, Gomes, Silva e Messias
(2017) onde investigaram a compulsão alimentar entre estudantes de nutrição
utilizando a escala TFEQ-R21 encontraram também uma correlação positiva entre AE
e DA. Medeiros et al. (2016) também obteve uma correlação positiva entre as escalas
quando aplicada em estudantes universitários.
Bernardi, Cichelero e Vitolo (2005) afirmaram que a vivência de estados
emocionais negativos leva à interrupção do autocontrole, conduzindo, assim, a
escolhas alimentares inapropriadas, as quais, de certa forma, aliviam as tensões
vigentes.
Também foi observada uma correlação negativa entre os escores das escalas
RC e DA, ou seja, quanto maior a restrição cognitiva, menor os escores de descontrole
alimentar (Figura 1B). De forma contrária, no estudo de Medeiros et al. (2016) houve
uma correlação positiva entre essas escalas.
714
5. Conclusão
Os resultados deste estudo mostram que os estudantes de psicologia do turno
da noite apresentaram maior descontrole alimentar e alimentação emocional do que
os estudantes do turno da manhã. Estudantes que trabalham possuem mais
alimentação emocional do que os que não trabalham. Da mesma forma, aqueles que
aderem a dietas possuem maior alimentação emocional do que os que não aderem.
Além disso, os que levam suas refeições para a universidade possuem maior restrição
cognitiva do que aqueles que não levam.
Em relação às dimensões do comportamento alimentar foi observado que
quanto maior a restrição cognitiva, menor o descontrole alimentar e quanto maior o
descontrole alimentar, maior é a alimentação emocional em estudantes do curso de
psicologia. Por isso se faz necessário se atentar aos hábitos alimentares dos
estudantes, pois alguns comportamentos alimentares podem ser de risco para o
desenvolvimento de transtornos, que podem gerar prejuízos na vida pessoal e social
do jovem universitário.
6. Referências
Alvarenga, M., Antonaccio, C., Timerman, F., & Figueiredo, M. (2015). Nutrição
comportamental. Brasil: Editora Manole.
Kaufman, A. (2012). Alimentos e emoção. Revista Abeso, 60, 1-11. Recuperado de:
http://www.abeso.org.br/pdf/revista60/alimento_emocao.pdf
715
Moreira, P., Sampaio, D., & de Almeida, M. D. V. (2003). Associação entre
comportamento alimentar restritivo e ingestão nutricional em estudantes
universitários. Arquivos de Medicina, 17(5), 219-225. Recuperado de:
http://www.aidep.org/03_ridep/R16/R167.pdf.
Natacci, L. C., & Ferreira Júnior, M. (2011). The three factor eating questionnaire-R21:
tradução para o português e aplicação em mulheres brasileiras. Revista de
nutrição, 24(3), 383-394. doi: https://dx.doi.org/10.1590/S1415-
52732011000300002.
Tholin, S., Rasmussen, F., Tynelius, P., & Karlsson, J. (2005). Genetic and
environmental influences on eating behavior: the Swedish Young Male Twins
Study. The American journal of clinical nutrition, 81(3), 564-569. doi:
https://doi.org/10.1093/ajcn/81.3.564.
Paixão, L. A., Dias, R. M. R., & Prado, W. L. (2010). Estilo de vida e estado nutricional
de universitários ingressantes em cursos da área de saúde do Recife/PE. Revista
Brasileira de Atividade Física & Saúde, 15(3), 145-150. Recuperado de:
http://www.sbafs.org.br/_artigos/398.pdf.
Santos, A. K. G. V., Reis, C. C., Chaud, D. M. A., & Morimoto, J. M. (2014). Qualidade
de vida e alimentação de estudantes universitários que moram na região central
de São Paulo sem a presença dos pais ou responsáveis. Revista Simbio-Logias,
7(10). Recuperado de:
http://www.ibb.unesp.br/Home/Departamentos/Educacao/Simbio-
Logias/qualidade_de_vida_alimentacao_de_estudantes.pdf
716
universitários brasileiros e portugueses. (Tese de Mestrado, Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara). Recuperado de:
http://hdl.handle.net/11449/152823
Souza, M. A. A., Souza Gomes, V. C., Garcia, E. I., & de Omena Messias, C. M. B.
(2017). Incidência da síndrome do comer noturno e compulsão alimentar em
Estudantes de nutrição. Saúde e Pesquisa, 10(1), 15-23. doi:
http://dx.doi.org/10.17765/2176-9206.2017v10n1p15-23
717
65- OTIMISMO E ANSIEDADE: UM ESTUDO COM JOVENS UNIVERSITÁRIOS
10
Graduandos do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
11
Psicóloga e Mestre em Ciências do Envelhecimento pela Universidade São Judas Tadeu.
12
Doutora em Educação Matemática e Docente do curso de graduação em Psicologia da Universidade São Judas.
718
Introdução
O conceito de juventude passou por muitas mudanças nas últimas décadas,
deixando de ser uma fase definida apenas por características biológicas e etárias,
para dar lugar a um estágio complexo dependente dos contextos sociais, culturais e
políticos. Esta mudança depende da percepção que a sociedade tem acerca dessa
fase da vida (Doutor, 2016). Essa fase, segundo o Fundo de População das Nações
Unidas (2010), situada entre a infância e a idade adulta, é um período da vida de
aquisição de conhecimento, formação de identidade e de fundamental importância
para o indivíduo.
Este momento da vida é caracterizado pelo estatuto da juventude (Lei 12.852,
2013) como o de pessoas com idade entre 15 e 29 anos. Esse mesmo jovem poderá
sofrer ainda com pressões e cobranças externas que, segundo Morais, Mascarenhas
e Ribeiro (2010), requerem deste jovem adaptar-se a situações muitas vezes vindas
de familiares e sociedade, exigindo cada vez mais adaptações físicas, mentais e
comportamentais. Ainda conforme estes autores, “esse novo modo de vida baseado
na disputa diária para sobreviver nessa sociedade capitalista e com características
bem marcantes de competitividade, injustiças e desigualdades sociais, preconceito,
desempregos, etc. tem gerado males a saúde psíquica, sendo os principais e mais
comum o estresse, a ansiedade e a depressão” (p.2).
Para Dalgalarrondo (2008), o quadro de ansiedade generalizada caracteriza-se
pela presença de sintomas ansiosos excessivos, na maior parte dos dias, por pelo
menos seis meses. O autor ressalta, também, que sintomas como insônia, tensão,
angústia, irritação e ausência de concentração estão presentes. Além dos fatores
psíquicos, o jovem universitário lida ainda com questões socioeconômicas que podem
influenciar seu desempenho acadêmico. Atualmente, o Brasil dispõe de programas
que buscam reduzir as desigualdades sociais e aumentar o número de pessoas com
acesso à educação superior (Areque, 2014).
Diante das adversidades vividas nesta etapa da vida do jovem e as mudanças
governamentais a que estão sujeitos e que podem mudar sua estrutura, o otimismo é
uma característica positiva que pode auxiliar sua trajetória acadêmica e também se
reflete em seu desempenho acadêmico e sua vida social.
De acordo com Scheier e Carver (1985):
719
As pessoas diferem muito umas das outras em como elas se aproximam do
mundo. Algumas pessoas tendem a ser favoráveis em seus pontos de vista. Esses
otimistas esperam que as coisas sigam o seu caminho e geralmente acreditam que
coisas boas, e não más, irão acontecer com elas. Outras pessoas têm um conjunto
oposto de crenças. Esses pessimistas esperam que as coisas não sigam seu caminho
e tendem a prever resultados ruins. Além disso, a observação casual sugere que essas
diferenças individuais são relativamente estáveis ao longo do tempo e do contexto.
(p.219).
Objetivo
O objetivo geral do estudo foi verificar o nível de ansiedade-estado e otimismo
de jovens universitários. Especificamente: a) verificar as opiniões dos alunos acerca
do cenário político-educacional e relacioná-las com seu nível de otimismo e
ansiedade. b) correlacionar a ansiedade-estado e otimismo dos universitários. c)
analisar a relação da ansiedade-estado e otimismo com a expectativa de atuação no
mercado de trabalho.
720
Método
O estudo consiste em uma pesquisa de levantamento que, de acordo com Gil
(2008), é aquela em que o pesquisador irá lidar diretamente com uma amostra do
público que ele pretende estudar, propiciando, assim, um contato direto com a
realidade dessas pessoas e podendo submeter os dados coletados a técnicas
estatísticas. Trata-se de um estudo descritivo-correlacional, de abordagem
quantitativa e delineamento transversal.
A amostra é composta por 184 estudantes de graduação, matriculados em uma
universidade privada da cidade de São Paulo, com idades entre 18 e 29 anos e de
ambos os sexos. Esta faixa etária foi definida de acordo com o estatuto da juventude.
Foi considerado como critério de inclusão: ser estudante universitário com idade entre
18 e 29 anos devidamente matriculado em uma universidade privada da cidade de
São Paulo.
Foram utilizados três instrumentos: 1) Questionário sociodemográfico elaborado
pelos pesquisadores para a caracterização dos participantes, contendo questões
acerca da vida social, acadêmica e sobre o posicionamento político-educacional do
estudante; 2) Teste de Orientação da Vida (TOV-R) validado por Bandeira et al.
(2002)13, que objetiva avaliar o constructo do otimismo com relação a eventos futuros.
O índice global do grau de otimismo pode variar entre 0 e 24 pontos, sendo que
valores mais altos da pontuação indicam alto grau de otimismo; 3) Inventário de
Ansiedade Estado (IDATE-E) traduzido e adaptado por Biaggio e Natalício (1979) que
visa avaliar o estado transitório de ansiedade frente às adversidades de um
determinado momento. A soma da pontuação em cada item pode variar entre 20 e 80
pontos, sendo que pontuações mais altas indicam alto estado de ansiedade.
O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da Universidade São Judas Tadeu (Parecer número 3.387.354 e CAAE:
14693419.9.0000.0089) e a coleta de dados ocorreu de forma individual na
dependência interna da própria instituição. Todos os participantes que aceitaram
participar do estudo, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE). Os resultados foram tabulados em planilha eletrônica no Microsoft Excel
(Pacote Office 2016) e analisados no Software SPSS (Statistical Package for Social
13
Agradecemos a autorização da autora para a utilização deste instrumento.
721
Science), versão 21.0. Os dados estão apresentados com frequência e porcentagem,
média e desvio padrão. Para atingir os objetivos específicos, foram utilizados a
correlação linear de Pearson e ANOVA. O nível de significância adotado foi de 5%.
Resultados e Discussão
A amostra é composta por 184 estudantes, com média de idade de 21,3
(DP=2,4), sendo 122 (66,3%) mulheres, 112 (61%) que cursaram o ensino médio em
escola pública, 89 (48,2%) cursam graduação na área de Ciências Biológicas e da
Saúde, 105 (57,1%) consideram que o desempenho acadêmico na graduação é bom
e 100 (54,7%) estão satisfeitos com este desempenho.
Verifica-se na Tabela 1 que, em relação aos temas referentes à política e
ensino, 48,1% da amostra declarou ter nível razoável de engajamento político. No que
se refere ao impacto que as políticas educacionais exercem no alcance dos objetivos
pessoais dos participantes, a maior parte (54,1%) afirma que existe muita influência.
Quando questionado se os participantes acompanham as notícias do MEC (Ministério
da Educação), 48,4% declararam que às vezes acompanham. 35,5% classificaram
como ruins as atuais mudanças na educação de ensino superior. No que diz respeito
a descontos e financiamentos de ensino superior, nota-se que a maioria dos
estudantes possuem desconto ou bolsa auxílio (94,6%), sendo que a principal bolsa
utilizada é fornecida pela instituição de ensino em que estão matriculados (43,5%).
Dias e Kerbauy (2015) verificaram que pessoas escolarizadas são mais
propensas ao engajamento político e encontram relação considerável entre o ensino
superior e os interesses voltados para o assunto, sendo esse, na prática, um fator que
levaria os estudantes a concluírem a universidade. Os autores ressaltam que os
estudantes tendem a ser mais atentos às notícias, pois as áreas política e acadêmica
fazem parte do seu meio social.
Tabela 1
Caracterização dos jovens universitários.
N %
Categorias
Engajamento político
Muito 24 13,1
Razoável 88 48,1
Pouco 62 33,3
722
Nada 10 5,5
Impacto das políticas educacionais nos objetivos
Muito 99 54,1
Razoável 61 32,8
Pouco 23 12,6
Nada 1 0,5
Acompanhamento das notícias do MEC
Às vezes 89 48,4
Sim 51 27,5
Não 44 24,1
Classificação das atuais mudanças na educação
Ruim 66 35,5
Péssimo 61 33,4
Regular 46 25,1
Bom 9 4,9
Ótimo 2 1,1
Desconto ou Bolsa Auxílio
Sim 174 94,6
Não 10 5,4
Bolsa Auxílio
Bolsa USJT 80 43,5
Prouni 54 29,3
Bolsa Enem 22 12,0
Outros 28 15,1
Financiamento
FIES 27 14,7
Pravaler 10 5,4
Outros 147 79,9
TOTAL 184 100
Como pode ser observado na Tabela 2, não é possível afirmar que existe uma
tendência de baixos ou altos níveis de ansiedade-estado nem de otimismo nos jovens
universitários, uma vez que os scores médios estão muito próximos do ponto médio.
Silva, Sousa e Melo (2016) também encontraram pontuação muito próxima ao ponto
médio do instrumento de ansiedade-estado em estudantes de Psicologia. Com
relação ao otimismo, Bandeira, Bekou, Lott, Teixeira e Rocha (2002) avaliaram
estudantes de uma universidade pública de diversos cursos da graduação e
verificaram que a média do otimismo foi de 17,89, valor que está acima do identificado
no presente estudo.
723
Tabela 2
Média e Desvio Padrão da ansiedade-estado e otimismo dos universitários.
Categoria N Mínimo Máximo PME Média DP
Ansiedade-Estado 184 26,0 80,0 50 49,5 11,4
Otimismo 184 4,0 23,0 12 14,2 3,5
Nota: PME = Ponto Médio da Escala. DP = Desvio Padrão.
Tabela 3
Média, desvio padrão e Anova da pontuação de ansiedade-estado e otimismo
comparado pela atuação dos universitários no mercado de trabalho.
Mercado de
Categorias N M DP F p
trabalho
Sim 137 49,2 11,6
Ansiedade-Estado Já atua 41 49,3 11,1 1,166 0,314
Não 5 57,2 9,4
Sim 137 14,2 3,5
Otimismo Já atua 41 14,0 3,5 1,228 0,295
Não 5 11,8 1,6
Nota: M = Média. DP = Desvio Padrão.
724
envolvidas na escolha do curso de graduação, bem como nos aspectos que levam o
estudante a desconsiderar a possibilidade de atuar na área escolhida.
Em uma pesquisa realizada com universitários do último ano de diversos cursos,
Gondim (2002) identificou que, de acordo com os estudantes, fatores como:
expectativa dos pais, pouco conhecimento acerca da realidade de mercado e
idealização da profissão influenciam tanto na escolha do curso de graduação como
na fragilização do perfil profissional dos estudantes concluintes.
Escudero (1999, citado por Cruz, Pinto, Almeida, & Aleluia, 2010) aponta que as
aspirações dos jovens universitários, quanto ao mercado de trabalho, iniciam na
universidade diante das exigências para atuação no âmbito profissional. A incerteza
de ingressar na área e a escassez de oportunidades podem produzir ansiedade e
desesperança.
Conclusões
De acordo com os dados obtidos, verifica-se que, embora não seja possível
identificar uma tendência de altos ou baixos níveis de ansiedade-estado e otimismo
na amostra estudada, existe uma correlação negativa significativa entre essas
variáveis, evidenciando que estudantes com níveis altos de ansiedade-estado
apresentaram níveis baixos de otimismo. Na presente pesquisa, não houve correlação
significativa entre a expectativa de atuação na área profissional escolhida com o
otimismo e ansiedade. No entanto, ressalta-se o número pequeno de participantes
que declararam não se imaginar atuando na área, levando à reflexão das possíveis
variáveis que podem ter influenciado na decisão de escolha do curso. Além disso, no
que se refere às políticas educacionais e ao atual contexto político, ainda que haja
pouco engajamento político e acompanhamento de notícias publicadas em órgãos
oficiais, a maioria dos participantes acredita que tais programas exercem influência na
busca por seus objetivos e classificou como ruins as atuais mudanças na educação.
Embora a amostra da pesquisa seja considerada expressiva, é importante
ressaltar que ela não é capaz de representar todos os jovens universitários da
instituição privada da cidade de São Paulo, ora pesquisada. O número pequeno na
amostra que declara não se imaginar atuando na área de formação aponta a
importância de se investigar em estudos futuros, os aspectos envolvidos na escolha
do curso de graduação e a perspectiva do mercado de trabalho dos jovens
universitários.
725
Referências
Bandeira, M., Bekou, V., Lott, K. S., Teixeira, M. A., & Rocha, S.S. (2002). Validação
transcultural do Teste de Orientação da Vida (TOV-R). Estudos de Psicologia, 7(2),
251-258. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2002000200006.
Cruz, C. M. V. M., Pinto, J. R., Almeida, M. & Aleluia, S. (2010). Ansiedade nos
estudantes do ensino superior: Um Estudo com Estudantes do 4º Ano do Curso de
Licenciatura em Enfermagem da Escola Superior de Saúde de Viseu. Revista
Millenium, 38, 223-242. Recuperado de
https://revistas.rcaap.pt/millenium/article/view/8259.
Gil, A. C. (2008). Como elaborar projetos de pesquisa (4a. ed.). São Paulo, SP: Atlas.
726
Lei Nº 12.852 de 5 de Agosto de 2013 (2013). Dispõe sobre o Estatuto da Juventude
e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas
públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE. Brasília,
DF.
Silva, J. N. F., Sousa, A. V., & Melo, J. S. (2016). Ansiedade: Um Estudo em Alunos
de Psicologia. In Anais do 16º Congresso Nacional de Iniciação Científica (p.16).
São Paulo, SP.
Scheier, M. F., & Carver, C. S. (1985). Optimism, Coping, and Health: Assessment
and Implications of Generalized Outcome Expectancies. Health Psychology, 4(3),
219-247. doi: http://dx.doi.org/10.1037/0278-6133.4.3.219.
Agradecimento
Agradecemos à Dra. Marina Bandeira, pela disponibilidade e autorização de uso
do Teste de Orientação da Vida (TOV-R).
727
66- CONFIGURAÇÕES VÍNCULARES DE UMA CRIANÇA REFUGIADA
SÍRIA: UM ESTUDO DE CASO CLÍNICO
1414
Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo
1515
Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo
16
Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo
17
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São
e do Programa de Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da Universidade Católica de Santos.
728
INTRODUÇÃO
O tema “refúgio” vem sendo discutido há muito tempo, sendo que, por
questões culturais, políticas, sociais, religiosas, entre outras, milhões de pessoas
precisaram se deslocar, deixando seu país de origem para buscar proteção
internacional em outro lugar.
De acordo com a Convenção dos Refugiados (2013, p. 2), é determinado
que o refugiado é alguém que “temendo ser perseguido por motivos de raça,
religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do
país de sua nacionalidade e que não pode, em virtude desse temor, valer-se da
proteção desse país”.
Segundo relatório divulgado pela Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (ACNUR) em 2017, o número de pessoas em deslocamento
no mundo chega ao número de 68,5. Em termos nacionais, até o final do ano de
2018, 11.231 pessoa de diferentes nacionalidades foram reconhecidas refugiados
no Brasil,
Dados divulgados em 2016 pela Organização Não Governamental I Know
My Rights (IKMR) entre os anos de 2010 e 2015, o número de crianças de zero a
doze anos somam 599, que normalmente chegam ao Brasil acompanhadas de
seus pais ou responsáveis legais.
No Brasil, a lei que regula os direitos dos refugiados é a Lei 9.474/1997.
Considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) "como umas das leis
mais modernas, mais abrangentes e mais generosas do mundo" auxilia na
proteção internacional dos refugiados”.
De acordo com estudos recentes, a saúde mental de pessoas em situação
de refúgio apresenta certa complexidade, além de demonstrar o quanto a figura
da família é de suma importância para aqueles se encontram nessa situação de
refúgio.
Segundo Martins-Borges (2013) por possuir características involuntárias
e ocorrer de maneira rápida, os refugiados em seu deslocamento, trazem consigo
de forma limitada aquilo que determinava sua identidade, como costumes,
relações, profissão. Quando saem de seu local de origem de maneira repentina,
729
com frequência podem passar a sentir um sofrimento psicológico que está
interligado ao trauma sobre o qual foi sujeitado no período pré-migratório e
migratório, como morte de familiares e testemunha de violências diversas.
OBJETIVO
730
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa com delineamento metodológico clínico
qualitativo que contou com a participação de um menino, refugiado sírio, com idade
de 12 anos, residindo há 3 anos no Brasil. O local no qual realizou-se a coleta dos
dados foi em uma instituição educacional na Região do Grande ABC – SP
destinada a escolarização de crianças refugiadas sírias.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dados da entrevista:
731
que aqui essa rotina é diferente, associa a dificuldade financeira com a vinda ao Brasil
e, aparentemente lamenta essa vinda, pois devido a isso permanece menos tempo com
a família: [...] “lá eu tinha mais tempo, mais tempo para fazer tudo, e eu era o primeiro
da classe”. Sobre essa dificuldade em passar tempo com a família, K. diz: “meu pai
era mais jovem, minha mãe volta para casa cansada, lá ela não trabalhava, meu pai
chega tão tarde em casa...”.
Importante ressaltar que durante sua fala sobre a Síria, ele “engasgou”,
pediu uma pausa para beber água e verbaliza “eu não consigo mais”, fato este que
ocasionou na interrupção da entrevista com o menino.
Os dados obtidos na entrevista indicam que o participante apresenta
dificuldades em se adequar a vida atual morando no Brasil compartivamente a sua
vida na Síria. Importante destacar que, tasi afirmações são verbalizadas por K, mesmo
trazendo as situações de guerra com as quais convivia, infirmando inclusive que
soube que um tio morreu baleado.
É possível perceber sinais de ansiedade nas falas do participante,
ressaltando-se que, quando questionado sobre qual o futuro que deseja para ele e
seus familiares, responde: “quero ser mais feliz e ser melhor”. Diz ainda que tem o
sonho de ser tradutor árabe – português, possivelmente como uma forma de ajudar
seu pai devido a dificuldades em conseguir um trabalho melhor no Brasil por não falar
português corretamente.
732
Para a segunda produção gráfica (“Desenhe uma crinaça em seu país
atual”) K. não colore o desenho, utiliza apenas o lápis preto, desenhando uma casa
que ocupa 1/3 da folha do lado direito, um ônibus em uma rua na parte mediana da
folha, que parece estar em movimento, e um campo de futebol que ocupa 1/3 do lado
esquerdo da folha com pessoas jogando futebol.
O primeiro desenho do participante foi sobre seu país de origem, a Síria,
no qual separa o desenho em duas metades, dessa forma, representando a vida
no país em que nasceu, ou seja, caracteriado pela dualidade.Foi possível verificar
na análise dos dados a dissociação como mecanismo de defesa, pois, nessa
figura, o menino separa a folha em épocas históricas referentes a Síria, além de
especificar que um período era com a guerra, e em outro período, sem a guerra.
Conforme Piccolo (1981) a dissociação é o mecanismo pelo qual o ego e o objeto
são divididos, e isso se dá devido a função das características idealizadas e
persecutórias, como possivlemente vivenciava K em seu país de origem.
Assim, os dados permitem entender que K., consegue “separar” as
experiências vividas na Síria, como por exemplo, a experiência segura e protegida
de estar com seus pais, mesmo em um país em guerra e depois o sentimento de
abandono e medo, mesmo estando no mesmo local.
Essa análise pode ser articulada com o que foi manisfestado durante a
entrevista, na qual parece claro que essa separação em períodos quando ele
informa que eram felizes em 2009 e que em 2012 começaram as bombas - que
inclusive foram representadas graficamente - como uma alusão ao período de
guerra e medo desencadeado pela insegurança que a situação evocava. É
possível identificar esse mesmo mecanismo diferenciando-se do momento de
guerra no país de origem e no Brasil, quando o único desenho de figura humana
mais elaborado é aquele que o representa, enquanto os demais personagens da
figura foram representados como desenhos pedagógicos.
Representa a si mesmo no desenho, e neste caso, a figura se apresenta sem
os pés e as mãos, o que pode significar uma imaturidade sobre quem não quer
saber sobre os problemas do mundo e falta de confiança nos contatos sociais
(Campos, 1998), o que pode ser associado ao fato de K. deparar-se com
problemas tão complexos como a vivência da guerra e, consequentemente a
necessidde de sair de seu país.
O participante desenhou a boca proporcionalmente grande em
733
comparação ao restante do rosto. Para Campos (1998), demonstra uma
necessidade de inter-relação social. K., em seu relato, não informa amigos tanto
no país de origem, como no Brasil, suas relações sociais são focadas em sua
família. Ocorre também nessa figura a omissão do pescoço, que conforme o
referido autor, simbolicamente pode significar snetimentos de inferioridade, e essa
inferioridade é informada durante a entrevista quando o participante revela que
na Síria ele era o melhor aluno da sala, e esse status de melhor aluno não é
confirmado no Brasil.
A guerra foi representada com uso de cores fortes sobre o desenho, verde e
laranja e, conforme Hammer (1981) uma criança coloca cores em seus desenhos
para se expressar, K. expressou seu medo por meio da cor, porque apenas nessa
parte do desenho que ele desejou pintar. Desenhou soldados, com expressão de
riso na face, e um civil com um balão que representa fala ou pensamento com os
dizeres “eu vou morrer”.
Tanto na primeira quanto na segunda produção, as casas possuem o
mesmo padrão, porém o desenho da casa no Brasil, a porta é bem menor
comparada ao tamanho da casa. A partir de Campos (1998) isso pode
representar relutância do participante em estabelecer contato com o ambiente,
com retraimento no intercâmbio pessoal, tal relutância é percebida durante a
entrevista onde o mesmo informa que imaginava o Brasil de outra forma, e como
se decepcionou com a chegada ao país.
Em ambos os desenhos as portas se encontram fechadas o que pode
indicar autodefesa, defesa contra o mundo, e K. desenhou uma maçaneta que
pode indicar medo sobre o perigo externo. As janelas feitas por K. possuem
modelos de vidraças que demonstram isolamento e desejo de proteção, até
mesmo uma barreira para se proteger (Campos, 1998).
No desenho de K. os soldados foram feitos como figuras em palitos, de
acordo com Van Kolck (1984), refere-se a pessoas que acreditam que as relações
interpessoais são desagradáveis, o único não desenhado dessa forma o que
representa a si mesmo. Realizar desenhos de pessoas nesse formato também
indica características de pessoas inseguras (Hammer, 1981).
O desenho do campo de futebol está presente nas duas produções
gráficas, sendo possível associar com a questão cultural, na qual o jogo de futebol
integra um elemento de grande força cultural no Brasil e, nesse sentido, parece
734
se constituir uma identificação com o país onde mora atualmente. Há objetos no
céu, como helicópteros que representam medo e terror, e no segundo desenho,
um avião é desenhado, possivelmente o avião que os trouxeram ao Brasil,
segundo K. apresenta paz, durante o inquérito ele diz: “... não ter medo de cair
alguma coisa”, essas figuras podem ser elos que ligam os países a partir de
diferentes representações.
K. aborda seu sonho de trabalhar como tradutor árabe x português,
possivelmente o mecanismo sublimatório, que conforme Piccolo (1981), se refere
a capacidade de reparação do indivíduo, se expressando através da criatividade
e da capacidade de se realizar, podemos traduzir isso também como uma
necessidade de sempre estar conectado às suas origens.
DISCUSSÃO
Martins-Borges (2013) aponta que por não ter planejado a sua partida, o
refugiado não planejou também sua mudança entre o país de origem e o país que
o acolheu, além de que não se projetou nesse novo lugar, trazendo consigo pouco
do que definia sua identidade, o que faz com que o processo de migração
involuntária exija dessa pessoa um trabalho psíquico.
Estudos recentes mostram que a saúde mental de pessoas em situações
de refúgios é complexa e que a figura da família é essencial para os indivíduos
que se encontram nessa situação e compreende-se que essas perdas podem
também serem estendidas a lares e comunidades, podendo ser um fator gerador
de fragilidade emocional na família, pois estar em seu ambiente pessoal e
familiar, faz o indivíduo se manter a salvo de azares e perigos junto de
companheiros conhecidos, deleitando-se de costumes estabelecidos e sabendo
lidar com facilidade sobre alimentação, segurança e bem-estar perda de lares e
comunidades (Galyna; Silva; Haydu, & Martin, 2017; Parkes, 1998; Weine;
Muzurovic; Kulauzovic; Besic; Lezic, & Mujagic, 2004).
Tal perspectiva é assim expressa por Bowlby (1984/2004) compreendendo
que os indícios de aumento de risco e perigo fazem parte de uma situação
composta, podendo ocorrer em paralelo a indícios culturais de real tensão. E
também indicando alterações mais relacionadas com a experiência de ser uma
família deslocada, trazido pelo participante K. de doze anos quando se refer e a
735
mudanças para seus pais "Não é igual antes, é ruim...ninguém gosta de morar
em um lugar bom e conseguir fazer várias coisas e ser obrigado a sair do seu
país". Tais experiências vividas pelos participantes e sua família apontam um
sofrimento social, partindo do ponto de que o vínculo, por muitas vezes, não se
dá apenas com as pessoas, entes queridos, mas também com a sua cultura e o
modo de viver.
Pode-se entender que a família participante da pesquisa tenta essa
reaproximação com a sua cultura, praticando sua religião em uma mesquita , se
comunicando na lígua nativa (árabe) dentro de casa, fazendo comidas típicas da
Síria, frequentando uma escola que se ajusta à cultura muçulmana. Desse modo,
parece possível a criação de recursos psíquicos para uma possível adaptação no
Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
736
BRASIL. Lei 9.474, de 22 jul. de
1997.
Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951,
e
determina outras providências. Disponível e
m: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9474.htm. Acesso em: 22 set. 2017.
Bowlby, J. (1988). Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes.
(Original de 1967).
Bowlby, J. (1982). Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins
Fontes. (Original de 1979).
Galina, V.F.; Silva, T.B.B.; Haydu, M., & Martins, D. (2017). A saúde mental dos
refugiados: um olhar sobre estudos qualitativos. Interface, v.21, n.61, Jan. 2017.
Disponível em:
737
<http://www.scielo.br/pdf/icse/v21n61/1414-3283-icse-21-61-0297.pdf>. Acesso
em: 9 set. 2018.
IKMR I know my rights. São Paulo, 2017. Crianças no Brasil. Disponível em:
<http://www.ikmr.org.br/criancas/criancas-no-brasil/>. Acesso em: 9 set. 2017.
Parkes, C.M. (1998) Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo:
Summus.
Sujoldzic A.; De Lucia A.; Buchegger R.; Terzic R.; Behluli I., & Bajrami Z. (2003).
A European project on health problems, mental disorders and cross-cultural
aspects of developing effective rehabilitation procedures for refugee and immigrant
youth. Coll Antropol. v.27, n. 2. Disponível em :
<https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/14746129>. Acesso em 09 set. 2017.
738
67- REPARAÇÃO MANÍACA E VERDADEIRA EM UMA CRIANÇA ACOLHIDA:
UM ESTUDO DE CASO CLÍNICO
18
Psicóloga clínica. Integrante do Grupo Mosaico – atenção e pesquisa sobre infância em contextos de
vulnerabilidade social.
19
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde - Universidade Metodista
de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da
Universidade Católica de Santos.
739
Introdução
740
passado a ser necessário para garantir a integridade do próprio ego, como menciona
Simon (1986).
741
Percebe-se nos fatores delineados até aqui uma distinção entre o que se
denomina reparação verdadeira e reparação maníaca. Ao contrário do que é
observado na reparação maníaca, na reparação verdadeira ocorre a reparação mútua
dos objetos, sendo esta garantida por uma condição mental favorável, originada pelos
sentimentos depressivos, de culpa e de remorso (Meltzer, 1989).
Diante do exposto, este estudo tem como objetivo analisar, a partir do relato de
uma experiência clínica, o uso de mecanismos de reparação em uma criança de 8
anos, acolhida, em processo de psicoterapia.
Método
Sobre a história de vida de Miguel sabe-se apenas que foi destituído de sua
família por motivos de negligência e violência, junto com seus outros 4 irmãos. Desde
que iniciou a psicoterapia, já vivenciou o início do processo para adoção mais de uma
vez, sendo estas tentativas frustradas após um tempo.
742
Resultados e Discussão
Fragmento 1:
Fragmento 2:
Nas sessões seguintes Miguel intensifica seus esforços e abre todo o carrinho,
utilizando-se de muita força e agressividade para isso. Ao perceber que este está todo
desmontado, inicia o processo inverso, buscando a todo custo recolocar cada peça
em seu lugar. Mostra-se frustrado quando não consegue encontrar o lugar devido. Por
fim, consegue fechar novamente o brinquedo, mas parece sentir-se culpado ao
perceber que o carrinho não funciona mais.
Fragmento 3:
“Será que hoje vai dar tempo? [...] Que horas são? [...] A gente precisa correr!”.
743
Ele recorre à psicoterapeuta, solicitando sua ajuda para algumas tarefas
específicas, mas também se irrita com sua ineficiência ante à missão:
Após várias sessões, o carrinho é fechado, algumas peças ficam para fora e
alguns parafusos não são colocados. Ao final dessa sessão, Miguel o joga no lixo,
insiste para ir ao banheiro e na volta inicia uma limpeza meticulosa de sua caixa lúdica.
Fragmento 4:
Para tanto, faz uso da cola líquida distribuída em grande quantidade sobre a
parte quebrada, tentando unir as partes. Faz força, apoia sobre a mesa e usa seu
corpo para garantir maior pressão, mas ao final as partes se soltam. Miguel repete o
procedimento, dessa vez, com uso de mais cola. No entanto, o resultado é o mesmo.
Parece frustrado e olha as partes decompostas por algum tempo.
744
Na próxima tentativa, recorre a um acumulado de papel, umedecendo-o em
cola e colocando-o entre as partes do martelo:
Fragmento 5:
745
interno, no entanto, a deixa a beira de precipitar-se em um ciclo maníaco, semelhante
ao que se observou no fragmento superior, com tentativas sucessivas e, por vezes,
claramente ineficientes, de reparar o objeto que se encontra em pedaços. Tanto no
martelo, como na espada, a impossibilidade de perfeita restauração parece levá-lo a
este ciclo maníaco.
Considerações Finais
746
Este, e outros aspectos, poderão ser revelados a partir do acompanhamento
do caso e reflexão sobre o tema de modo a articular teoria e prática clínica.
Referências
747
68- DESATENTO, CANSADO, PSICÓTICO: UM CASO NA CLÍNICA
PSICANALÍTICA
Introdução
O desenvolvimento do presente estudo segue, inicialmente, apresentando-se o
caso clínico através da identificação da criança e da entrevista realizada com a mãe.
Na sequência, apresentar-se-á os fragmentos clínicos, ou seja, recortes de momentos
das sessões ocorridas, sendo uma das autoras a analista em questão. Destaca-se
que tais recortes se referem a uma escolha seletiva exclusiva das pesquisadoras,
20
Professora do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo. Psicóloga, psicanalista pelo
Instituto Sedes Sapientae.
21
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde na Universidade Metodista de São
Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da Universidade
Católica de Santos.
748
buscando esclarecer ao leitor o percurso da reflexão com base na psicanálise de
escola francesa. Assim, quanto ao caso, apresenta-se:
O caso:
22
Nome fictício visando assegurar o sigilo do participante.
23
A escolha do nome fictício atribuído ao participante parece não ter sido aleatória.
749
profissionais da escola estivessem sempre atentos a Luan, exigindo atenção integral
e cobrassem um bom comportamento do menino, comunicando-a caso isso não
acontecesse. Era necessário que verificassem cada lição que ele não completava, e
que a cada momento que ele se distraísse lhe fosse chamada atenção.
A mãe dizia ser muito atenta ao desempenho escolar de Luan, frequentemente
marcava reuniões na escola, chegando a discordar e travar inflamadas discussões
com o coordenador pedagógico; questionava o conteúdo, o material e a didática
adotada pela escola. O pai, Ronaldo, por sua vez, falava pouco e parecia não
conseguir expor suas ideias, mesmo quando lhe era oferecido espaço para falar.
Ambos compareceram a todas as entrevistas iniciais; entre os dados
relevantes, Denise relatou ter sofrido de depressão pós-parto. Comentou que tão logo
saiu da maternidade, foi para a casa de sua mãe, onde permaneceu por três meses,
acompanhada do bebê e do marido. Ronaldo relatou: “Quando ela (Denise) decidiu
voltar para casa, Luan estava com três meses, ela disse para voltarmos, pegamos
tudo e fomos. Assim que chegamos, parecia cenário de fuga, meio de filme, ela
começou a juntar tudo, não ficamos nem meia hora, enfiamos no carro e voltamos
para a casa da mãe dela, ficamos lá por mais 45 dias. Parecia que estávamos em
fuga” (sic). Passado esse período de 45 dias, a família voltou para casa.
Denise acrescentou durante as entrevistas que até o filho completar um ano,
ela tinha aversão à sogra (avó paterna de Luan), comentou que nunca fez tratamento
para a depressão que acreditava ter sofrido: “Não era um diagnóstico do médico, mas
eu acho que era isso que eu tinha [...] nunca tratei nada disso, mas hoje sei que era”.
A mãe contou sobre sua postura rígida em relação aos estudos de Luan,
tentando garantir-lhe as melhores notas e que todas as lições fossem completadas,
não admitindo falhas nesse sentido. Denise esclareceu ser muito severa com a
educação do filho. Referindo-se ao comportamento, não permitia que ele brincasse
como as demais crianças, isso quer dizer, embora as crianças estivessem correndo
nas festas, por exemplo, o menino não podia correr, pois, era “feio” ou “inapropriado”.
Ante o fim das entrevistas iniciais, foi marcada a primeira sessão com a criança
e logo Denise adverte: “Olha, eu não sei se ele fica com você na sala. Ele chorava
muito com a Paula24”.
24
A psicóloga que havia encaminhado o caso.
750
O menino bonzinho - Luan desvitalizado:
Logo nas primeiras sessões, tendo em mãos uma bolinha, a analista lhe
oferece dizendo que poderiam jogar. Era uma bolinha de papel que o menino sugeriu
que jogassem em um alvo, assim, foi proposto que fizessem um alvo na parede. Luan
aceita, marcam o alvo com uma fita adesiva. Ele pediu que a analista fosse a primeira,
assim, quando esta arremessou a bolinha, ele se desesperou, pareceu extremamente
angustiado, dizia que não queria que eu quebrasse a sala, não queria quebrar nada:
Luan: “Não quero mais jogar, não quero que quebre nada”.
Analista: “Nós podemos brincar, tudo permanece inteiro [...]”.
Foi destacado que não seria atacado e que seria suportável se algo quebrasse,
mesmo assim, não brincaram mais.
E assim seguiram-se as sessões. Luan não queria brincar de nada, costumava
contar coisas, mas era espantoso o sono que tomava a analista, como se não pudesse
ouvi-lo.
Certa sessão, Luan pegou uma moeda e convidou para jogar ‘Cara ou Coroa’,
um jogo relativamente simples, de certo modo, dinâmico. Mas, não foi assim. As
regras colocadas por Luan deixaram o jogo quase insuportável, brincaram desse
modo durante muitas sessões, quando ele disse:
Certa sessão foi oferecido material gráfico ao menino, ele aceitou, deitou-se no
chão e desenhou uma casa, uma árvore e umas pessoas. Então, iniciou-se um diálogo
751
sobre os desenhos produzidos e Luan contou ser Guilherme, contou da casa, do que
acontecia lá.
Analista: “Puxa, eu estou entendendo como é difícil ser o Guilherme nessa casa ...”.
Assim, finalmente apareciam pistas do que o angustiava; dito isso, o menino dormiu
por 28 minutos.
Após essa sessão, um novo rumo do caso. Um saco com sucatas foi entregue
ao menino. Convidado a brincar, montaram uma cidade do Batman, cidade essa que
Luan dizia ser sempre noite; juntos brincaram de ‘fazer o dia’, brincaram de guerra, na
qual a analista era a inimiga, depois a parceira. Evidentemente era a analista quem
propunha e mantinha as brincadeiras, mas estas seguiam de uma maneira mais
criativa. O caso progrediu, de repente, até então...
Já não se mostrava mais criativo, não tinham mais jogos, pareciam ter perdido
o rumo do processo. Foram mais semanas de sessões sonolentas, enquanto Luan
contava acerca de sua admiração pelo Homem Aranha e sobre personagens da
Marvel. As sessões, no geral, eram tomadas por sono e por reclamações de cansaço
extremo.
Fragmentos do caso:
752
mantinha interação, não havia nenhum momento sequer no qual Luan parecia
compreender que a analista não tinha a mínima ideia a respeito do que ele falava.
Assim, de posse de uma caixa com diversos bonecos de pelúcia previamente
preparada, intervém:
Analista: “às vezes fica difícil de entender o que está me contando. Está vendo essa
caixinha? É lá que ele25 entra quando não está entendo nada ... quanto mais perto da
caixa, menos ele está entendendo .... o nome dele é João”
Outro ponto relevante dos atendimentos de Luan estava relacionado com seus
medos, entre o real e a fantasia. O menino contava a respeito do Homem Aranha,
quando disse algo a respeito:
Luan: “Homem Aranha não existe ... minha mãe falou que o Homem Aranha não
existe”.
25
Elegeu-se um bichinho qualquer, mais um na conversa, ou seja, alguém que contava de maneira visual
e concreta que não era possível entender o que estava sendo dito.
753
Analista: “Mesmo ele não existindo de verdade, podemos brincar de Homem Aranha”
Luan: “Não dá, ele não existe”
Era espantoso como Luan parecia de fato, as vezes, não conseguir separar o
que era real e fictício. Por vezes, suas ideias a esse respeito eram tão misturadas que
Luan não podia ir ao banheiro sozinho, nem no consultório, nem em sua casa. Temia
ser atacado pelas personagens de filmes e desenhos.
Isso era tão vívido para Luan que em uma sessão saiu para ir ao banheiro,
como sempre fazia, deixou a porta da sala e do banheiro aberta, considerando-se que
são cerca de três passos que separam um espaço do outro. Foi possível escutar Luan
chorando e chamando pelo pai que estava na recepção, ele fez xixi na calça no
banheiro. Depois contou de ter sentido medo, tanto que fez xixi na calça.
Discussão
754
poderem revelar quem de fato são. Em termos gerais, isso teria a ver com o modo de
operação da esquizofrenia. Lutar contra algo, deixar a relação com o outro de fora e
não desvelar a verdade sobre si, encoberto por aquilo que se cria como real.
Em termos teóricos, recorremos a Freud (1924/2015); o autor estabelecia, a
partir dos postulados acerca da segunda tópica, a neurose como um conflito entre o
Eu e o Id; a psicose como uma perturbação entre o Eu e o mundo exterior. O autor
entende que, no caso das psicoses, o Eu, a sua revelia, cria um mundo externo e
interno a partir dos impulsos desejosos do Id, sendo essa ruptura relacionada à
frustração insuportável do desejo por parte da realidade.
Ao que se refere às estruturas básicas, Bernardino (2004) a partir dos estudos
Lacanianos, compreende que seria a partir da castração e a resposta que o sujeito
encontra, no campo da linguagem, para lidar com a falta, isso quer dizer: no caso das
neuroses o sujeito recalca, na psicose a resposta é a foraclusão. A autora quer dizer
que nesse tipo de resposta não ocorre à simbolização da falta. Não se dá a afirmação
dos significantes primordiais, por conseguinte, o sujeito fica situado fora do campo
simbólico.
A partir dessa consideração, Luan no primeiro dia que esteve no atendimento,
não manifestava o mínimo interesse pelos brinquedos, não queria brincar, não
explorava sua caixa, não criava quase nada. É possível retomar a brincadeira com a
bola de papel, na qual Luan, tomado por total desespero, temia que a analista
destruísse a sala com uma bola de papel. Outra sessão apresentou sua família, eram
bonecos Lego de super-heróis, não podíamos brincar com os bonecos, ele dizia serem
seus pais e ele mesmo.
De certo modo, isso aparecia de maneira recorrente nas sessões com Luan.
Uma criança que parecia não poder diferenciar o real, a fantasia, as personagens e
nem mesmo a presença da analista. Havia algo, nesse caso, que era significativo,
dado os avanços e retrocessos, marcando intervalos como o rompimento de uma
sequência, foram fases “cortadas”. Com isso, é pertinente pensar que esse modo de
funcionamento, por vezes, escapa a neurose; dando sinais de uma estrutura a definir,
com a presença de elementos do campo “não neurótico”.
Além disso, evidenciava-se a maneira como Luan não se comunicava: ele
falava como se pouco se importasse se eram ou não recebidas pelo outro; falava como
uma torneira aberta que poderia encher um copo, contudo, mesmo que a analista
representasse um copo a receber isso, Luan não tinha ideia se o copo transbordava
755
e nada ficava ali, preenchido, retido.
Por outro lado, isso acontecia e Luan se deu conta que a figura da analista,
identificada com sua mãe, fazia ‘cara de cansada’ enquanto jogávamos ‘Cara ou
Coroa’, seja como for, quando ele disse que a analista fazia a “cara de sua mãe”, tinha
algo que anunciava que ele percebia sua presença e, assim, minimamente, podia
perceber mais alguém além de si mesmo. Claramente não eram muito frequentes
esses momentos, sendo que, de alguma forma Luan captou algo que dizia do que
estava acontecendo nas sessões, nesse momento tinha algo do Eu e Não Eu, dele e
do outro.
Atentando-se as entrevistas com a mãe, parecia evidente que algo das
primeiras relações se referia acerca da dupla atravessada pelo desespero da mãe,
despertada pelo nascimento de seu bebê. Como disse o pai: “Parecia uma cena de
filme, juntando tudo e indo embora”, em referência ao pós-nascimento de Luan em
que a mãe relatou ter sido muito conturbado, nem conseguindo ficar em sua própria
casa.
Desse modo, essa mãe, em tempo de reviver o próprio narcisismo outrora
perdido, investindo e ‘narcisisando’ esse bebê, tal como prevê Freud (1914/2014),
parecia escapar-lhe essas possibilidades, embora não sejam conhecidos os motivos.
Esse período, de acordo com o referido autor, a mãe é constituinte do Eu do bebê,
cuja existência ainda é marcada pela incapacidade de perceber-se como uma
totalidade, como a gestalt de si, portanto, sucumbiria longe daquela que lhe alimenta,
cuida, enfim. Entre outros, explicado de maneira bem simplista, é essa experiência
inicial que confere ao bebê a distinção de um corpo à parte da mãe. Ao que relatou a
mãe, esse período primordial da relação dual, esteve marcada permeada por profundo
desespero que a acometeu após o parto. Isso parece contar de uma criança, em que
a presença primordial da mãe, minimamente, nos parece comprometida.
Lacan prevê isso como o Outro primordial, que Gueller (2011) nos esclarece
como o primeiro representante da linguagem, para a criança, trata-se de quem oferece
um lugar singular em seu desejo; nessa relação, esse outro quem transforma os
registros das necessidades do bebê em demandas carregadas de desejo, esse
processo, em geral, é dado à mãe ou àquele encarregado dos primeiros cuidados do
bebê.
A partir disso, temos os primeiros indícios acerca da desvitalização de Luan. É
possível pensar em uma criança que ainda não podia comunicar suas necessidades,
756
por conseguinte, desejos; provavelmente como em suas relações primitivas,
demonstrava que faltava quem lhe falasse dos seus desejos. Era muito comum isso
se evidenciar nas poucas tentativas de brincar, pois, mesmo que Luan aceitasse algo,
era eu quem tinha de oferecer a brincadeira e iniciá-la, sendo essa uma questão para
a escola, que contavam de um menino apático que nunca tomava a frente nas
brincadeiras, em contrapartida, sempre participava do que os colegas propunham.
É nesse sentido que o estudo se volta a Luan e seus sintomas. A criança
‘avoada’, ‘do mundo da lua’, revelava uma criança que parecia faltar-lhe algo que o
convocasse, que falasse de seus desejos, algo de seus recursos simbólicos que
falassem o que talvez, lhe faltassem palavras.
Uma das possibilidades que parecem permear esse caso, ao que parece,
revelava uma mãe (em termos mais apropriados da escola inglesa) pouco continente.
Como quando Bion (1962/1971) discorreu a esse respeito; o autor conceituou a
condição de Rêverie, na qual a mãe capta as necessidades de seu bebê e, por
intuição, é receptiva, ou melhor, dizendo, continente das necessidades da criança,
acolhendo as identificações projetivas disparadas nela, passando com isso a acolher,
decodificar, nomeando e devolvendo de maneira desintoxicada. Essas ideias parecem
convergentes ao que esclareci anteriormente acerca do Outro primordial.
757
pouco falava. No decorrer dos atendimentos, certa vez, o pai disse que talvez, dada a
rigidez da mãe, era o motivo pelo qual Luan dizia que nunca se casaria. A mãe não
pode ouvir isso, e mostrou-se muito incomodada.
Ao que parece, os sintomas de Luan davam notícias de seus pais, e no
momento que ele pode projetar-se nos desenhos, contando sobre a “mãe chata” e do
“pai bobalhão”. E a analista: “Puxa, eu estou entendendo como é difícil ser o
Guilherme nessa casa [...] essa mãe muito difícil e esse pai que sem lugar...”, sentia
que Luan, pela primeira vez, experimentava ser compreendido, assim, ele dormiu.
Gueller (2011) atenta que as crianças denunciam a verdade dos pais por meio
de seus sintomas, os pais, por sua vez, carregam o pedido de eliminarmos o sintoma
sem querer saber o que está implicado. Dito isso, algumas indagações emergem. Em
nome de que a mãe ‘fugiu’ de sua casa? O que a levou a tamanha angústia quando
nasceu seu bebê? O que a mãe esperava dessa criança? Por que lhe frustrava tanto
reconhecer que Luan não era (nem seria) somente aquilo que ela esperava que ele
fosse? São questões.
A análise aponta sobre as vivencias da família, indicando criar diversas
hipóteses, todavia, mesmo sem uma resposta convicta. Nesse momento, o desenho
de Luan contava: uma mãe extremamente rígida e um pai pouco autorizado a
envolver-se nisso. Um pai que pouco podia interditar qualquer relação entre mãe e
filho; eles que tomavam banho juntos, dormiam juntos, faziam lição juntos. O pai? Nas
palavras da mãe: “Ele é mais tranquilão (sic), só na hora da brincadeira”. Seria esse
o motivo que levava Luan, em dados momentos, enaltecer os Super-heróis? É
possível que fosse uma tentativa de valorizar esse pai.
De qualquer maneira, parece seguro afirmar que havia algo em Denise (mãe)
que não suportava essa situação, marcada pelo nascimento de Luan. E isso aparece
refletido no menino; como discutido anteriormente, esclarecia-se uma falha das
funções materna na constituição de Luan como sujeito.
Como isso reverberou nos atendimentos? Um menino que não distinguia entre
falar com sua analista, para a analista ou simplesmente falar. Penso que as pelúcias
utilizadas para sinalizar que ele falava, mas não se comunicava, talvez tenham sido
importantes para que ele pudesse dizer: “Fica uma confusão aqui na minha cabeça”,
referindo-se os motivos que o levavam a um discurso pouco compreensível; algo que
transbordava o interno e o representava como uma criança, por vezes, desconexa.
758
No percurso da análise dessa criança, foi oferecido o que o menino parecia
necessitar: uma figura na mesma visão winniccotiana; ou seja, ceder-lhe espaço e
acolher. Tal ideia surge advinda da possibilidade da falha do Outro primordial, uma
mãe que fosse dotada da capacidade de ajudar essa criança a processar aquilo que
acontecia com ele; incluindo aqui, a função simbolizante. Era necessário ajudar essa
criança a nomear aquilo que lhe acontecia, como os sentimentos de raiva, de tristeza,
de amor, enfim.
Se por um lado, o ‘pai bobalhão’ narrado por Luan indicava a desvitalização, a
‘mãe chata’ dizia exatamente desse lugar, de alguém que impedia a criança, afinal,
não podia sentir raiva, ódio, frustração; não podia correr como as demais crianças,
não podia brincar, quase que não podia existir.
Em termos teóricos era fácil deslizar para o pensamento de uma criança no
campo das psicoses. Retomando brevemente os postulados de Freud (1924/2015),
dado o afastamento da percepção e do mundo externo; embotamento afetivo, isto é,
na perda de todo interesse no mundo exterior; os remendos colocados onde
originalmente surgira uma fissura na relação do Eu com o mundo exterior.
É possível pensar que, caso esse menino não estivesse em análise,
possivelmente se estruturaria uma psicose, nesse sentido, era uma aposta no que
acredita Alfredo Jerusalinsky (2003), ao argumentar que na infância podem existir
estados provisórios que irão ser definidos de maneira mais tardia; nesse caso, a
estrutura poderia ainda não ter uma inscrição definitiva. Em concordância Bernardino
(2004) defende que as psicoses não-decididas são um operador clínico condizente
com a infância e caracterizariam o processo de estruturação subjetiva da criança. Para
a autora, isso implica na entrada da criança no campo da linguagem, a partir da
relação com um Outro que sustente esse processo, em tempo de constituição infantil.
Ao que parece, a análise de Luan foi produzindo-lhe algum efeito. Os
fragmentos relatados até aqui, em sua maioria, retratam o primeiro ano da análise do
menino, hoje, contamos quase três anos.
Mais recentemente, Luan chega com um boneco na mão, mostra para a
analista e mantém este diálogo que se mostra extremamente revelador dos avanços
de Luan.
759
Analista: Quem é esse? E o que é isso?
Luan: Isso é um brinquedo ... esse é o Hobin Hood.
Referências
Lacan, J. (2003). Nota sobre a criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. (Original de 1969).
760
69- VIOLÊNCIA, TECNOLOGIA: MÁSCARAS DE UM ANTAGONISMO NÃO
EVIDENTE
Introdução
A construção teórica sobre o conceito da influência da tecnologia na psique e
na constituição da saúde mental é um estudo complexo, diante do qual inúmeras
variáveis devem ser tratadas para alcançar sua compreensão (Araujo & Aquino Jr.,
2018). A violência como uma destas variáveis, influencia e pode comprometer o direito
761
fundamental a vida, a saúde, ao respeito, à liberdade e dignidade humana (Vieira,
Assis, Nascimento, Vieira & Netto, 2003).
Como uma nova forma de interação social, a tecnologia e em especial as
mídias sociais são canais de comunicação online dedicados a entrada, interação,
compartilhamento de conteúdo e colaboração com base na comunidade, permitindo a
conexão de localidades distantes de tal maneira a intensificar as relações sociais em
escalas mundiais, sendo que, a transformação local não é influenciada somente por
acontecimentos próximos, mas modelados por eventos ocorridos a grandes distâncias
(Souza & Giglio, 2015), estes processos dialéticos e dialógicos influenciam a
sociedade e por sua vez o indivíduo.
Deste modo, o indivíduo, neste caso, que cria sua identidade virtual, como uma
persona29 determinada a esta nova forma de comunicação, criando uma percepção
de quem é o indivíduo neste novo espaço, onde novas construções individuais e
coletivas podem ser recriadas e reescritas sem a grande pressão de um mundo “real”
(Kokswijk, 2008).
Assim como qualquer criação, esta pode ser utilizada sob qualquer prisma,
considerando a tecnologia como uma construção social que representa a evolução,
conecta e desconecta a todos, mais do que isso, uma fotografia da sociedade e do
indivíduo em si (Boyd, Richerson & Henrich, 2013).
Neste prisma, ao afetar os mesmos constructos apresentados na vertente de
uma fotografia da sociedade, a violência social é qualquer violência cometida por
indivíduos ou pela comunidade, assumindo suas diversas formas (Tremblay, 2012),
como um fenômeno social complexo relacionado a natureza sócio-cultural e político-
ideológica e se mostra como um fator relevante a qualidade de vida, relacionando
tanto as condições gerais de existência e trabalho, como geradores de tensões,
desemprego entre outros (Vieira et. al., 2003). Essa mesma violência social cometida
no “real” se manifesta neste novo espaço virtual (Ferreira & Deslandes, 2018; Rogers
& Salgado, 2016).
No mundo virtual o indivíduo tem a capacidade de recriar sua própria
constituição, permitindo ser o que conscientemente deseja ser, entrar em contato com
o que realmente deseja entrar em contato, viver o que realmente quer viver. A
762
personalidade ou traços de personalidade podem ser determinados no uso da
tecnologia (Araujo, 2013). Assim, modelos criados a partir destes traços permitem que
sistemas digitais adquiram habilidades que permeiam as especificidades do indivíduo
(Araujo & Aquino Jr., 2014).
Esta ilusão de vida tem gerado novos conflitos, pois o indivíduo fora desta
realidade critica ou se excluí, e aqueles que nasceram nesta nova realidade vivem
mais tempo no virtual do que no real. Entretanto, a perceção humana é diferente para
cada ser, seja por constituições biológicas ou psíquicas, o que vemos não é o que o
outro vê, o que determina o real? E, com isso, um novo conceito de real pode ser
instituído (Nietzsche, 1886/2002). O real é aquilo que realmente define a existência,
talvez recriá-la a partir da tecnologia seja a única forma de retirar as amarras sociais
e seguir uma nova estrutura, sendo, neste caso, permitido a escolha do que ver, o
que desejar e o que apresentar (Araujo & Aquino Junior., 2018).
Entre esta nova estrutura e a hipótese levantada, como dito acima, encontram-
se problemas. Como tudo, é possível desvirtuar uma constituição, pois encontra-se
mesmo no virtual necessidades individuais e coletivas, redes sociais onde uma foto
em ângulo perfeito referencia o que você significa para a sociedade, ou jovens tão
fixados na cultura do que os outros fazem ou do que desejam e ainda não tem, que
se distanciam da definição do que querem e de como alcançar o que sonham.
Jung (1959/2011) afirma que “todo indivíduo assume uma “máscara” sobre o
inconsciente coletivo”, sendo que a persona é a aparência que apresenta-se ao
mundo, seja por defesa, vergonha ou limitação, esta vivencia pode ser crucial para o
desenvolvimento da personalidade.
Ao compreender a relação da personalidade do indivíduo criada através de
suas personas escolhidas no mundo virtual, esse pseudo mundo simulando a
realidade, apresenta as mesmas características da violência determinadas na
sociedade, e com ela todos os fatores que ela afeta podem levar sua influencia
também no virtual até a constituição da saúde mental do indivíduo.
Objetivos
Como qualquer avaliação de correlação, a intensidade da relação possuem
uma relação de ordem (Siegel, 1975), ao avaliar a tecnologia em contraponto a
violência e sua relevância na formação do indivíduo, há duas hipóteses mais
relevantes para este trabalho:
763
1. A extensão social da vida ao qual o indivíduo esta incluídos: A tecnologia
acompanha a vida assim como a violência existente nela, como uma extensão da
realidade: seja na educação com o compartilhamento de mensagens e fotos; seja
nas redes sociais na divulgação somente dos momentos bons da vida; seja no
trabalho a necessidade de pertencer a grupos com o mesmo objetivo e se destacar
neles, entre qualquer necessidade social. Neste ponto não há uma visão evolutiva
na tecnologia, somente uma extensão da necessidade social ao qual vivemos
desde nosso nascimento.
2. A recriação da constituição de quem o indivíduo é: A liberdade permitida na
criação de uma nova persona, livre de impedimentos sociais como sexualidade,
maturidade, moralidade, religião, status social, riqueza ou qualquer impedimento
que o "mundo real" apresenta.
A extensão social da vida ao qual estamos incluídos tem inúmeros pontos
prejudiciais, assim como, vantajosos à constituição da psique, uma nova forma de
tratar grupos, novos impactos na exclusão digital, a violência ganha nova roupagem
entre inúmeros outros pontos relevantes ao estudo. Porém, o presente estudo será
focado na segunda posição, qual seja, a recriação da constituição do indivíduo no
mundo virtual.
Assim, diante destas considerações, este trabalho tem como objetivo, avaliar a
tecnologia e suas interações com os indivíduos em contraposição a violência, e como
consequência validar a relação do mundo virtual como parte da constituição da saúde
mental.
30
Engels to Nikolai Danielson In St Petersburg, London (February 24, 1893), Marx and Engels
Correspondence publish to Internacional Publishers (1968).
764
a violência acompanha a evolução humana, como uma força inevitável e proposital,
porem que pode ser enfrentada e dentro das limitações do indivíduo evitada.
Dentro destas premissas, a constituição da saúde mental do indivíduo,
caracterizada no completo estado de bem-estar físico, mental e social (Nogueira,
2001), limitado pela violência social, é afetado dentro e/ou fora do mundo virtual.
O experimento executado por Araujo (2013) com 433 pessoas determinou uma
relação entre a personalidade do indivíduo e como este utiliza a tecnologia, este
estudo como um recorte deste trabalho, afirma também que os impulsos de violência
são copiados e espelhados no mundo virtual, sejam eles exacerbados em forma de
brincadeiras ou no ataque direto e ridicularização dos indivíduos envolvidos.
Sob uma perspectiva da Psicologia Analítica, permitindo a validação da
importância da tecnologia na constituição da saúde mental, a violência esta intrínseca,
porem o antagonismos ao obvio chama atenção.
A tecnologia mesmo que exprima a mesma imagem da violência daqueles que
a utilizam, assim como na história, ao mesmo tempo que a tecnologia serve para
atacar ela serve para defender. A mesma lança que fere o outro, o defende dos
predadores (Boyd, Richerson, & Henrich, 2013).
Constituindo a visão de que o indivíduo pode assumir a mascara que deseja
dentro deste mundo virtual, ele também é empoderado de abandonar suas limitações,
sejam elas físicas ou psicológicas, e se defender de uma forma quase impossível para
esse mesmo indivíduo no mundo “real”.
Dentro desta antítese, a mesma tecnologia que dá voz ao ódio, alimenta o
odiado a se defender, sem pudores e repressão. A mesma voz que se cala no dia a
dia, ganha força com o impulso de outros iguais, independente da distância, a voz
calada deste indivíduo ecoa por um mundo sem fronteiras e barreiras, e permite que
alcance sua liberdade.
Discussão
As Personas que este indivíduo assume ao longo da vida, constituem esses
traços de personalidade apresentados (Jung, 1959/2011). Pode-se afirmar neste
contexto, que a violência como catalizador, seja devido a um sofrimento não resolvido
ou criando, também é um fator que compõem esses traços de personalidade.
Desta forma, a tecnologia tem um papel, dentro desta nova sociedade que
coexiste no “real” e no virtual, determinante na formação da saúde mental dos
765
indivíduos, seja como antagonista, assim como colocada a hipótese neste trabalho,
seja como protagonista, expandindo sentimentos antes limitados aos locais de
convivência e hoje aberto ao mundo conhecido.
As duas forças apresentadas são factíveis e passiveis de experimentação,
porem a discussão relevante a este trabalho é a posição predominante neste
contraponto, onde a tecnologia não esta fadada a ser uma arma daqueles que tomam
a violência como razão e resolução para suas deficiências, mas sim, como método de
defesa, onde abrange a força da imaginação, retirando as limitações culturais e
genéticas e compondo um novo sujeito, livre para alcançar sua potencialidade
máxima, sem as amarras levadas a triste constante que é aceitar e sobreviver na vida
imposta por seu nascimento.
Considerações finais
Como contemplado ao início deste texto, a construção teórica sobre o conceito
da influência da tecnologia na psique e na constituição da saúde mental é um estudo
complexo, sendo que o presente estudo contribui com a discussão da relevância da
tecnologia sobre a violência social como agente apaziguador.
Ao permitir a redefinição de sua máscara para com a sociedade, o indivíduo se
despede do que lhe é imposto físico, psicológico e socialmente, e com isso possibilita
uma nova categoria para sua batalha contra a violência cotidiana.
Dentre inúmeros questionamentos e tão poucas respostas, este trabalho
alcança o seu objetivo, dando continuidade a discussão tão necessária e complexa.
Este estudo não tem nenhuma pretenção de provar que a tecnologia é benéfica contra
a violência, mas sim levantar a hipótese que há duas vertentes a serem seguidas,
onde a tecnologia mantenha o seu papel fundamental que é permitir que o ser humano
continue a evoluir.
Vale ressaltar que ao abrir a discussão sobre a constituição da saúde mental
do indivíduo utilizando a tecnologia como arcabouço de defesa em sua busca pela
individuação, abre-se precedentes para inúmeros outros fatores causadores de
sofrimento, sejam discutidos e auxiliados em sua resolução sob uma perspectiva
destas novas premissas delineadas sob um prisma da evolução através da tecnologia.
766
Referências
Araujo, C.F. & Aquino, P.T. (2014). Psychological personas for universal user
modeling in human-computer interaction. Human-computer Interaction, 8510(1),
3-13.
Araujo, C.F. & Aquino, P.T. (2018). O uso da tecnologia e sua influência na
constituição da saúde mental. Jornada APOIAR, Adolescência e Sofrimento: na
atualidade - Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 16.
Ariés, P. (1981) História social da criança e da família. 2° Ed. Rio de Janeiro; LTC.
Boyd, R., Richerson, P.J. & Henrich, J. (2013). Cultural Evolution: Society,
Technology, Language, and Religion. Cambridge, MA: MIT Press, v. 12.
Minayo, M.C.S. (1994) A Violência Social sob a Perspectiva da Saúde Pública. Cad.
Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (1), 07- 18.
767
Nogueira, R.P. (2001). Higiomania: A obsessão com a saúde na sociedade
contemporânea. In E. Vasconcelos (Org.), A saúde nas palavras e nos gestos,
São Paulo: Hucitec, pp. 63-72.
Rogers R. & Salgado T.B.P. (2016) O fim do virtual: os métodos digitais. Lumina, 10(3),
1-34.
Souza, M.V. & Giglio, K. (2015). Mídias digitais, redes sociais e educação em rede:
experiências na pesquisa e extensão universitária. São Paulo: Blucher. pp. 156.
Vieira, G.O., Assis, M.M.A, Nascimento, M.A.A, Vieira, T.O & Netto, P.V. (2003).
Violência e Mortes por Causas Externas. Rev. Bras. Enferm., Brasília (DF), 56(1),
p. 48-51.
768
70- REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS DA VIDA ADULTA DE UM
ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI
31
Psicólogo, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade
Metodista de São Paulo. Bolsista CAPES.
32
Psicóloga, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade
Metodista de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas
da Universidade Católica de Santos.
769
Introdução
Sobre a tendência antissocial, Winnicott (1984) afirma que será manifesta no lar
ou na sociedade quando marcada pela falta de vivência familiar, demonstrando que a
delinquência pode ser entendida como um sinal de esperança para recuperar aquilo
que foi perdido em função de uma falha ambiental em fases anteriores de seu
desenvolvimento, na medida que acusa de forma implícita um pedido de ajuda por
parte da criança ou adolescente
Saes e Tardivo (2009) afirmam que essas falhas ambientais podem despertar
sentimentos de ódio, frustração e reações diversas de acordo com o grau de tensão
existente, assim, a agressividade se constitui em um recurso da criança para
defender-se de ataques fantasiosos. Neste caso, não encontrando uma estabilidade
ambiental, os atos antissociais poderão se repetir aumentando a violência, sendo
possível, segundo as referidas autoras, que cometa delitos e crimes, passando a atuar
contra a família e a comunidade, pois espera que uma dessas instâncias lhe ofereça
a estabilidade emocional para prosseguir sua trajetória de vida, impedindo-o da prática
da violência.
770
do Estado em primar por políticas públicas que atendam as demandas da população
como saúde, educação, segurança, cultura e habitação, a família acaba assumido
sozinha essa função. Os fatores socioeconômicos e as políticas sociais interferem na
família, minando sua possibilidade de oferecer afeto, segurança, continência e até
mesmo bens materiais.
Objetivo
Método
O estudo de caso que integra este artigo foi retirado de uma pesquisa maior,
intitulada "A vida no futuro: um estudo sobre as perspectivas pessoais e familiares de
adolescentes que cumprem medidas socioeducativas” aprovada pelo Comitê de Ética
da Universidade Metodista de São Paulo com Parecer Número 2.153.686.
Foi utilizado como instrumento uma Ficha de Identificação dos adolescentes
que continha dados como data de nascimento, escolaridade, frequência escolar,
componentes da família, tipo de delito cometido, tipo de medida socioeducativa que
cumpria, período/duração da medida socioeducativa, entre outros dados que foram
obtidos na entrevista.
Além dessa ficha, foi também realizada uma entrevista semiestruturada visando
estabelecer certa conversação entre o pesquisador e o entrevistado, possibilitando ao
entrevistador inserir questões, além daquelas que previamente planejou abordar,
como esclarece Bleger (1998).
771
riqueza de dados quando devidamente analisada, destacando entre outros, seus
estudos com adolescentes, como previsto nesta pesquisa. A instrução disparadora,
conforme exige o procedimento, verbalizada ao adolescente participante foi, portanto:
Resultados
33
Nome fictício do participante
772
História inventada a partir da primeira produção de Gabriel:
“...ele tava na vida... [pausa longa]. Ahh não sei dizer nada sobre ele... [pausa longa].
Título: “Um cara que tava na vida... não sei dizer isso não”.
“Ahh ... ele deve ter casado com alguém.... [não vem nada na minha cabeça...]. Tão
de mão dada...pensam em ter filho, casa.
Como era antes? O moleque era da vida louca... arrumou uma mulher... e agora tá
sossegado”
“... tem o filho dele, a esposa dele e ele... Ele a sete palmos do chão... esse é o fim
dele. Se não sair dessa vida”.
773
Discussão
774
graficamente a sua própria existência no futuro, estando morto: “Ele a sete palmos do
chão... esse é o fim dele”.
Tal desejo pode ser explicado pela frase de Winnicott (1984, p.121): “[...] tudo
o que leva as pessoas aos tribunais (ou aos manicômios, pouco importa o caso) tem
seu equivalente normal na infância, na relação da criança com seu próprio lar". Há
775
que se considerar que tal noção esteja às avessas, uma vez que os participantes
podem estar projetando o passado desejado, baseando-se em imagens que cria para
seu futuro. Quando idealiza mata a si mesmo.
Considerações finais
Referências
Aberastury, A., & Knobel, M. (1981). Adolescência normal. Porto Alegre: Artes
Médicas.
776
desenvolvimentos e expansões. São Paulo: Vetor.
Vetor.
777
71- A TRAMA QUE LIGA A SOLIDARIEDADE –
FORTALECENDO ESPAÇOS DE CONVIVÊNCIA - POLO DE CUIDADO.
Marli de Oliveira
Sandra Grandesso
Vicente Nascimento Alves
Resumo: Tocados pela inteligência coletiva (Levy,2003) e por uma força coletiva,
fomos impulsionados a desenvolver a formação em TCI para um grupo de
colaboradores em uma Organização da Sociedade Civil(OSC), localizada na periferia
zona oeste de São Paulo, com o desafio de implantar Rodas em todos os seus
projetos e serviços. Liga das Senhoras Católicas de São Paulo, nome original da Liga
Solidária. Idealizada por mulheres visionárias em 1923 na cidade de São Paulo,
a Liga Solidária, Organização da Sociedade Civil – (OSC) nasceu com o
compromisso de fortalecer e auxiliar na garantia de direitos sociais à população
paulistana. Hoje, próxima de completar 100 anos a organização, beneficia direta e
indiretamente mais de 13 mil crianças, jovens, adultos e idosos na capital. Atuando
nas causas de educação, cidadania e longevidade em nove programas Sociais, em
comunidades com alta vulnerabilidade social. É conhecida por inovar e promover o
empoderamento familiar há mais de nove décadas. Metodologia: Uma formação que
abrange Teoria – Prática e vivência. Realizamos a Formação da seguinte maneira:-
100 horas de Módulos: Teórico; - 80 horas: 8 encontros de Intervisão: Conversas
colaborativas sobre a prática das Rodas;- 60 horas de Rodas ;Totalizando: 240 hs.
Objetivos:- A capilaridade das Rodas e a ressonância para os diferentes públicos da
Liga Solidária; - Contribuir na diminuição do sofrimento dos indivíduos, fortalecendo
ambientes mais saudáveis de convívio na organização; - As rodas de TCI possam
fortalecer a Rede de apoio solidário de seus diferentes públicos. - Formar Terapeutas
Comunitários na Organização; - Ser Polo Formador em 2020. Considerações
Finais:Vivemos caminhos entre o velho e o novo na construção de uma nova cultura.
Integra esta mudança o Projeto LigAção, ancorado no processo de inovação que
conecta todos os colaboradores. Os colaboradores iniciaram a Formação em março
deste ano e estão realizando as Rodas em diferentes espaços da organização. O
impacto já evidenciado, foram realizadas até o momento 24 Rodas, impactando mais
de 500 pessoas.
778
72- AVALIAÇÃO DE RISCO DE SUICÍDIO: UM ESTUDO EM CONTEXTO DE
PESQUISA COM ADOLESCENTE
Introdução
34
Discente do curso de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
35
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
779
(Montenegro, 2012). Embora o suicídio seja algo complexo e multifatorial, pesquisas
têm relacionado o risco de suicídio na adolescência a uma série de fatores, tais como
psicopatologia, história de tentativa de suicídio e conduta autolesiva (Braga &
Dell'Aglio, 2013; Kuczynski, 2014; Couto, 2017; Ministério da Saúde, 2017).
Na avaliação de risco é importante levantar a história atual e pregressa dos
comportamentos suicidas, incluindo ideações, atuações destrutivas e aspectos
relacionados, como: desejo de morrer, de não viver e de tentar o suicídio,
intencionalidade, natureza da ideação suicida, decisão, planejamento ou
impulsividade, comunicação, letalidade do plano, escolha de método e acesso a esse
método. Deve-se também considerar a ocorrência, as características de tentativas
anteriores e recentes e a letalidade das tentativas (Rodrigues, 2009).
Em uma perspectiva psicodinâmica, Sterian (2001) considera que diversos
fatores psicológicos devem ser considerados quando se pretende avaliar o risco de
suicídio. É importante descobrir o grau de suportabilidade de alguma vivência para
cada pessoa, a circunstância de vida que motivou tal decisão, em que momento de
sua história de vida essa experiência se insere, o que ou quem pretende atingir com
isso, qual o sentido que essa pessoa atribui ao seu ato, qual a sua verdadeira
determinação em conseguir efetuar essa autolesão (Sterian, 2001).
Segundo revisão de Goldston (2000) existem entrevistas desenvolvidas para
avaliar comportamento suicida que são específicas para uso com adolescentes e
crianças36. Entretanto, desconhecemos se essas entrevistas já foram padronizadas
para uso no Brasil. Em nossa pesquisa, tivemos acesso a um modelo de entrevista
semiestruturado (História de Avaliação de Risco e Tentativa de Suicídio - HeARTS)
desenvolvido por pesquisadores do Núcleo de Saúde Mental, Intervenção em Crise e
Prevenção do Suicídio da Universidade de Brasília que se mostrou-se útil para
avaliação em contexto clínico (Rodrigues, 2008; Montenegro, 2012 ). Esta entrevista
clínica possibilita uma investigação mais detalhada dos sinais de alerta, fatores de
risco e de proteção para o risco de suicídio.
Realizando nossa pesquisa com adolescentes que tentaram suicídio,
estabelecemos a avaliação do risco de suicídio dos participantes como um dos nossos
objetivos e adotamos o modelo de Check List da HeARTS (Montenegro, 2012) neste
36
Adolescent Suicide Interview (ASI), Child Suicide Potential Scales (CSPS), Evaluation of Suicide Risk
among Adolescents and Imminent Danger Assessment (ESRAIDA), Lifetime Parasuicide Count (LPC)
e Suicidal Behaviors Interview (SBI). Para mais informações consultar Goldston, 2000.
780
processo. Esse trabalho tem o objetivo de apresentar os resultados da avaliação de
risco de suicídio conduzida para uma adolescente em tratamento em um CAPSi
participante da pesquisa “Tentativa de suicídio em adolescentes: estudo de casos”.
Buscamos verificar a contribuição deste instrumento na compreensão do risco e no
processo de julgamento clínico.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de casos, que permite
uma investigação sistemática, individualizada e contextualizada de casos individuais
(Pereira, Godoy & Terçariol, 2009). Para este estudo selecionamos o caso Ágata 37,
adolescente de 15 anos, com história de tentativa de suicídio e em atendimento em
um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) de um município de
Minas Gerais.
Após entrevista com a mãe para obtenção de consentimento para participação
de menor em pesquisa e coleta de dados sobre história de vida e comportamento
suicida da filha, a adolescente foi entrevistada individualmente. A entrevista teve
duração de dois encontros e foi gravada com o consentimento das participantes.
Na entrevista com a mãe foi adotado um roteiro semiestruturado, elaborado
pelos pesquisadores, visando obter informações sobre contexto familiar, história de
vida da filha e tentativas de suicídio anteriores. Com Ágata, a entrevista foi orientada
pela História e Avaliação de Risco de Tentativa de Suicídio Check List/ HeARTS -
CL (Montenegro, 2012). Trata-se de um protocolo de entrevista semiestruturado
orientado para avaliação de risco de suicídio, composto de seções que abarcam: a)
contexto pessoal e relacional, b) histórico de comportamento suicida, c) histórico
pessoal e familiar de risco e d) risco atual de suicídio. Ao longo da entrevista, deve
ainda identificar fenômenos psíquicos (afetos intoleráveis, por exemplo) e outros
marcadores clínicos relevantes.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro sob Parecer no 3.049.952 e Certificado
de Apresentação para Apreciação Ética no 03269618.3.0000.5154.
37
Nome fictício
781
Resultados e Discussão
Ágata tem 15 anos, é estudante do primeiro ano do ensino médio, se
autodeclara negra e homossexual. Mora com a mãe, o padrasto, um irmão mais novo
(seis anos) e a avó materna. Ágata relatou que não tinha muito contato com o pai
biológico até a sua primeira tentativa de suicídio, quando ele tentou se aproximar dela.
Segundo sua mãe, Ágata recebeu diagnóstico de transtorno esquizoafetivo e faz
tratamento no CAPSi há dois anos. Durante a entrevista, apesar da atitude
colaborativa em participar do estudo, Ágata demonstrou dificuldade em falar
espontaneamente, era mais sucinta nas respostas, demonstrando resistência de
expressar seus pensamentos e sentimentos. Ágata manteve o olhar sempre baixo,
observando as mãos que não paravam de se movimentar, direcionou poucas vezes o
olhar para a entrevistadora e manteve tom de voz mais baixo.
No primeiro encontro, chamou atenção o uso de moletom (agasalho) grosso
em um dia de muito calor. No segundo, ela trouxe esse mesmo moletom em suas
mãos, sendo então observadas as diversas cicatrizes em seus braços, apontando
conduta de automutilação. Em uma primeira análise, Ágata indica dificuldade de se
expressar verbalmente, mas ela se deixa revelar se olharmos para seus gestos e
corpo. Por ter se apresentado de maneira reservada, a adolescente precisou ser
“apoiada” na entrevista, sendo necessárias mais perguntas investigativas, o que pode
ser compreendido como parte da sua dificuldade em falar de modo mais espontâneo.
Ágata relatou três tentativas de suicídio, todas dentro de um período de onze
meses. A entrevista foi realizada dez meses após sua tentativa mais recente, que
ocorreu em maio de 2018. Em duas tentativas foi feito uso de medicamentos como
método, enquanto na outra o método planejado foi a defenestração, porém também
fez uso de medicamentos e outras substâncias tóxicas visando alteração de
consciência (“ficar meio adormecida”) para conseguir realizar o ato fatal. Na tentativa
mais recente, após desentendimento com a mãe
Baseado no modelo de avaliação de risco de suicídio (HeARTS-CL,
Montenegro, 2012), foi feito um julgamento clínico de risco de suicídio atual. O relato
de Ágata indicou o rompimento de relação amorosa e conflitos com a mãe como
eventos precipitadores das tentativas de suicídio. De acordo com Montenegro (2012),
eventos precipitadores estão relacionados com o surgimento de afetos intoleráveis ou
perturbações internas difíceis de serem manejadas pela pessoa, como os conflitos
interpessoais vivenciados pela adolescente.
782
Analisando as relações interpessoais significativas, observa-se apoio eficaz
apenas da figura materna, tendo essa grande importância para a adolescente. Em
relação as amizades, Ágata não conseguiu identificar nenhuma relação importante.
Houve mudança de escola após a última tentativa de suicídio e a adolescente relatou
dificuldade de estabelecer novos vínculos e confiar nos pares. A falta de amigos
próximos, segundo Baggio, Palazzo e Aerts (2009), pode colaborar com um aumento
de 66% da prevalência de planejamento suicida em adolescentes. Nas explicações
das tentativas de suicídio, Ágata atribuiu importância ao fato de sentir-se sozinha, o
que ainda pôde ser observado na dificuldade de desenvolver e manter relações
interpessoais. A solidão reflete em uma chance três vezes maior de planejamento
suicida do que adolescentes que não possui esse sentimento (Baggio et al., 2009).
De acordo com Couto (2017), diferentes fatores de natureza familiar estão
associados com tentativas de suicídio em adolescentes. Para o caso de Ágata foram
identificados dois fatores de risco: psicopatologia parental, uma vez que a mãe disse
ter transtorno bipolar, e história familiar de tentativa de suicídio. A mãe relatou que
tentou suicídio duas vezes durante sua adolescência. Apesar da avaliação do
entrevistador não ter o objetivo de realizar diagnóstico, a indicação de transtorno
esquizoafetivo deve ser considerada como fator de risco. É consenso entre os
pesquisadores da área da suicidologia que a presença de psicopatologia aumenta o
risco de comportamentos suicida em adolescentes (Turecki & Brenty, 2016; Nock, et
al., 2013 citados por Couto, 2017).
A análise da história e das características das tentativas de suicídio são fatores
importantes a serem considerados na avaliação de risco atual de suicídio
(Montenegro, 2012). No caso de Ágata, foram indicadas três tentativas de suicídio no
prazo de onze meses. Segundo Werlang e Botega (2004), indivíduos com múltiplas
tentativas realizadas em um período menor de um ano, estão em maior risco de
suicídio do que indivíduos com apenas uma tentativa.
O método de intoxicação escolhido revela disponibilidade e facilidade de
acesso a medicamentos, o que favorece o impulso de tentar se matar. Observa-se
que os métodos utilizados pela adolescente estão aumentando a gravidade do dano
físico. A última tentativa provocou danos físico mais severo, que justificou
hospitalização e tratamento intensivo. Chama atenção o método planejado na
segunda tentativa (se jogar do prédio) que tem maior potencial de letalidade (produzir
morte). A alta letalidade evidencia o conhecimento e a capacidade de implementação
783
de método letal (Montenegro, 2012). Apesar da adolescente ter relatado agir por
impulso, suas tentativas de suicídio foram moderadamente planejadas, podendo ser
observadas algumas ações preparatórias.
Cabe ainda citar a presença automutilação, que mesmo sem intenção suicida,
é fator de risco de comportamento suicida (Fonseca, Silva, Araújo & Botti, 2018). A
automutilação tem sido observada em muitos adolescentes que tentaram se matar,
sendo comum falarem que fizeram isto para aliviar sentimento ou dor insuportável.
Segundo Simonsen (2015), diante de angústias que não conseguem dominar, os
adolescentes com automutilação buscam através da dor que eles próprios se infligem
tentar contê-las. Eles recorrem a feridas físicas na expectativa de diminuir o sofrimento
psíquico.
Na ocasião da entrevista, Ágata não relatou ideação suicida e nem intenção
suicida. Também não foram identificadas ações preparatórias que pudessem sinalizar
uma tomada de decisão em relação a uma nova tentativa. Em relação a atitude de
Ágata quanto às tentativas, apesar de relatar arrependimento, observou-se
sentimento ambivalente em relação ao ato.
Ela tem na mãe a principal razão para viver (“o que me impedia era que minha
mãe estava lá comigo, por que se eu tivesse sozinha eu teria conseguido”).
Atualmente, ela recebe cuidado e atenção da mãe, importante figura de suporte
afetivo e equilíbrio emocional em sua vida. Porém, o vínculo com a mãe é único, dentre
as relações que estabelece, o que preocupa. Caso ocorra uma nova situação de
desentendimento com a mãe, na ausência de outros vínculos significativos, há
chances de Ágata experimentar novamente os sentimentos de solidão e desamparo.
Sobre os fatores de proteção, Ágata possui um suporte social de grande importância
que é disponibilizado pelo CAPSi, onde faz atendimentos semanais e participa de
grupos terapêuticos com outros adolescentes que também possuem histórico de
tentativa de suicídio.
A análise de gravidade de risco atual apoiada na compreensão de fatores de
risco e proteção observados na história de Ágata, indicou risco de suicídio moderado
a curto prazo. Além de não relatar intenção atual de suicídio e estar em
acompanhamento no CAPSi, ela parece experimentar menos insegurança na relação
com a mãe, em função de estar recebendo mais atenção e cuidado materno. É
recomendável um trabalho com o intuito de ampliar a rede de apoio e as relações
interpessoais da adolescente, a fim de proporcionar um maior suporte social.
784
Trabalhar a adaptação de Ágata a nova escola também é relevante, permitindo que
ela estabeleça um bom convívio com os pares e não se sinta sozinha. O tratamento
para Ágata deve visar expressão verbal dos afetos e estabelecimento de vínculos de
confiança, diminuindo sentimento de rejeição e desamparo que precipitam as
tentativas de suicídio.
Considerações finais
Avaliação de risco de suicídio é uma tarefa complexa, principalmente no
contexto de pesquisa que conta com um número limitado de encontros com os
participantes. Em nossa pesquisa estamos verificando a contribuição do modelo de
entrevista orientado pela HeARTS CL na compreensão do risco e no processo de
julgamento clínico de adolescentes com histórico de tentativas de suicídio. Esse
modelo organiza e facilita o raciocínio clínico. Entretanto verificamos que o recurso da
supervisão conduzido pelo orientador do presente estudo foi fundamental na avaliação
do discente responsável pela condução da entrevista. Por fim, para o caso Ágata, o
modelo de entrevista apoiou ainda a devolutiva realizada com a adolescente e sua
mãe.
Referências
Fonseca, P. H. N., Silva, A. C., Araújo, L. M. C., & Botti, N. C. L. (2018). Autolesão
sem intensão suicida entre adolescentes. Arquivos brasileiros de psicologia, 70(3),
246-258.
785
Goldston, D. B. (2000). Assessment of Suicidal Behaviors and Risk Among Children
and Adolescents. Technical report submitted to National Institute of Mental Health
under Contract No. 263-MD-909995
Kõlves & De Leo, (2016). Adolescent suicide rates between 1990 and 2009: analysis
of age group 15-19 years worldwide. J. Adolesc. Health.;58(1):69-77.
Pereira, L. T. K., Godoy, D. M. A., & Tercariol, D. (2009). Estudo de caso como
procedimento de pesquisa científica: Reflexão a partir da clínica fonoaudiológica.
Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 22, n. 3, p. 422-429.
786
73- O “VAZIO” NO DESENHO LIVRE INFANTIL COMO INDICADOR DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
787
resultados pode colaborar na compreensão da linguagem pré-verbal da criança em
geral.
Introdução
788
WINNICOTT (1984) só utilizava o material gráfico como diagnóstico e intervenção
clínica psicoterápica.
Objetivo
Método
789
desenhos de apenas duas meninas. Tal escolha deveu-se à perseveração nos
desenhos tanto nos primeiros encontros como no atendimento ludoterápico. Os
atendimentos foram num total de 8 encontros realizados semanalmente e foram
utilizados os desenhos livres expressos nestes atendimentos.
Material
A técnica do desenho livre utilizada foi feita com material gráfico, caixa com 12 lápis
de cores, borracha, lápis preto n. 2 e apontador.
Procedimento:
790
horários dos atendimentos individuais de cada criança. Os atendimentos foram
realizados por alunos do 4º ano de psicologia com a supervisão feita no próprio local
e logo após os atendimentos. A supervisora também teve contato com as crianças,
apresentando-se às crianças durante os atendimentos.
A análise dos desenhos livres foi baseada em Van KOLCK (1984) que sugere
investigar 17 indicadores: posição da folha de papel, tamanho do desenho em relação
à folha, tipo de linha e consistência do traçado, predominância de linhas retas, curvas
ou ângulos, correções e retoques; sombreamento ou borradura, negação, resistência
a desenhar, não completamento e omissões, obediência ao esquema do objeto
representado e detalhes, sequência, simetria, estereotipia, movimento; transparência;
perspectiva, valor atribuído às partes do desenho, simbolismos dos objetos ou formas
representadas.
Resultados
791
crianças atendidas do abrigo observamos praticamente estes aspectos que nortearam
a presente pesquisa.
Dos aspectos propostos por Van Kolck (1984) ao analisar os desenhos destas
crianças, o que chamou atenção era o grande vazio presente no desenho, o tamanho
pequeno do mesmo, a perseverança do tema “casa” escolhido para o desenho,
ausência de linha de solo e a localização dos meninos.
792
Os desenhos analisados são muito pequenos (1/64 e 1/128 da folha de
sulfite A4) que, de acordo com Van KOLCK (1984, p. 20) traduz sentimentos
de inadequação e rejeição pelo ambiente, além de tendências ao isolamento.
Em um dos casos (caso 1), a tendência ao isolamento não foi observada,
considerando os dados da psicóloga, uma vez que S. é considerada a criança
que se preocupa muito com os seus amigos e precisa sempre agradar o outro.
Talvez tente compensar essa falta como se fosse uma formação reativa. No
entanto, seu sentimento de inadequação e de rejeição ao ambiente fica claro.
Manifestava sempre seu descontentamento com a situação de abrigamento,
ao mesmo tempo, a impossibilidade da sua família real cuidar dela. Ou seja,
representar seu desenho pequeno indicava sua dificuldade ou insatisfação
com seu ambiente negligente provocador de abandono e de separações.
793
Se considerarmos o sol, nuvens e céu, tanto o tamanho como a localização,
estão sujeitos a questionamentos, o tamanho do desenho seria considerado grande e
a localização em toda a folha, ou seja, em todos os quadrantes. Algo que na avaliação
ficaria estranha se considerarmos este grande vazio nos desenhos. Denominamos
“espaços vazios” estes espaços que ficam entre os desenhos, por exemplo, entre a
casa e o céu (vide Figura 1), entre a casa e o sol (vide Figura 3).
De acordo com Van KOLCK (1984), a interpretação seria que um tamanho
exagerado sugerindo sentimento de constrição por parte do ambiente com fantasia
super-compensatória e, em relação à localização o desenho seria considerado centro,
com os sentimentos de segurança, autovalorização, emotividade e comportamento
adaptativo, além de equilíbrio e pessoa centrada em si e autodirigida. O que fazer ou
o que analisar com o “vazio” entre o céu, nuvens, sol no topo da folha e os desenhos
na margem inferior da folha? (vide figuras 1 e 2).
Consultando, pessoalmente, a professora Rosa Inês Colombo, perita do
Tribunal de Menor de Buenos Aires e Professora da Universidade de Buenos Aires,
sugeriu que esses “espaços vazios” são indicadores de comprometimento onde pode
haver em distanciamento entre o real e o imaginário infantil caracterizando uma
pressão do ambiente. Evidentemente, teríamos que verificar este aspecto em um
número maior de sujeitos, e entendemos que tanto a localização como o tamanho
teriam que ser investigados considerando estes vazios.
Professora Rosa COLOMBO (2019) menciona que:
“Estes vacios em lo diseños de los niños normales e de niños e de los niños víctimas
están muy relacionados con desvalorización nos dibujos que dan muy por debajo de
la hoja, pequeños y el resto muy por arriba como inalcanzable pero a la vez peligroso.
También dan cuenta de significaiones de no poder acceder al adulto. Pero pueden
aparecer em ambas muestras.
794
Considerando as pesquisas associadas à localização e ao tamanho (VAN
KOLCK, 1984) que indicam como o sujeito interage com o ambiente, a nossa hipótese
pode ganhar maior relevância, se associarmos as observações da professora Rosa
Inês Colombo, sobre a desvalorização, é claro, diante do ambiente hostil.
Evidentemente, que esta hipótese deve ser investigada segundo as propostas da
professora Rosa Inês, comparando a incidência deste vazio tanto em desenhos de
crianças normais como em crianças abrigadas ou com outras circunstâncias clínicas.
Mas isso já é outra pesquisa. Nosso propósito é apontar, para a necessidade de
consideração destas representações e quem sabe, uma análise dos vazios em
desenhos, possa apresentar elementos a mais a ser considerado em nossas
investigações clínicas sobre o grafismo ou das representações gráficas do desenho
livre infantil ou em situações expressivas como o ludodiagnóstico em que a expressão
gráfica é utilizada.
7a 8a 9a 10 a 11 a 12 a
Total Porcentagem
M F M F M F M F M F M F
Total de
Crianças 55 22 61 40 51 20 28 9 17 27 30 17 377 100%
Normais
Vazios de
Crianças 4 2 3 1 8 4 3 0 2 1 2 1 31 8%
Normais
Total de
crianças da 0 1 0 2 0 0 0 0 1 4 1 2 11 100%
Clínica com
V. D.
Vazios de
crianças da 0 1 0 1 0 0 0 0 1 4 1 2 10 90%
Clínica com
com V. D.
795
logo é significativa a expressão de desvalorização e de acesso inalcançável, ou seja,
sentimentos possíveis de encontrarmos em crianças abrigadas. Evidentemente,
deveríamos ter um número maior de crianças abrigadas, mas podemos constatar, ao
menos, que estes aspectos dos vazios nos desenhos livres também não são
características encontradas com muita frequência em crianças normais: de uma
amostra de 377 sujeitos, apenas 8% apresentam essa característica (vide Tabela 1),
logo, vale a pena continuar essa investigação.
796
Figura 3: Desenho do caso 2: uma
menina, flor e menino Figura 4: Desenho do caso 2. Mãe, flor e casa.
.
Figura 5: Desenho caso 2: Matinho e minhoca Figura 6: Desenho caso 2: uma casa
e bichinhos
797
Considerações Finais
Referências
798
TARDIVO L.S.P.C. (Org). Caderno de Anais da VIII Jornada Apoiar Promoção De
Vida E Vulnerabilidade Social Na América Latina: Reflexões E Propostas. São
Paulo: IPUSP; 2010a.
799
74 -CULTURA E O BRINCAR NA CONSTITUIÇÃO INFANTIL
Alana Madeiro de Melo Barboza38
Paula Orchiucci Miura39
RESUMO
O presente estudo conceitua a infância com base na noção de desenvolvimento
maturacional, proposta por Winnicott que reflete sobre a importância da relação com
o ambiente para o alcance de um desenvolvimento considerado satisfatório e da
constituição do self. Para além disso, entende-se a influência da cultura e da
brincadeira, no desenvolvimento e na constituição da infância. Assim, este trabalho
teve como objetivo analisar, a partir da teoria de Winnicott, as produções acadêmicas
sobre cultura, brincar e infância. Para isso, realizou-se um levantamento bibliográfico
nas bases SciELO e Portal de Periódicos CAPES e, após refinamento, analisaram-se
14 artigos. Elencaram-se as seguintes categorias temáticas: ambientes clínicos,
institucionais e a Psicanálise de crianças; escola, aprendizagem e o brincar;
possibilidades do brincar e brincadeiras na cultura; sujeitos da infância. A análise
possibilitou uma discussão sobre noções de cuidados, com reflexões sobre ser
criança, quem tem infância e a relevância do brincar no desenvolvimento. O brincar
também está ligado às relações intersubjetivas, a cultura e à saúde. As modificações
culturais influenciam o funcionamento da sociedade e isso reflete nos ambientes do
público infantil. É importante refletir sobre como as crianças podem ter infância,
respeitando a agressividade, o brincar, a aprendizagem e a saúde mental.
INTRODUÇÃO
38
Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.
39
Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas.
800
uma ampliação da ideia dos fenômenos transicionais e da brincadeira. É a partir da
cultura que existe a possibilidade de se criar algo no espaço potencial, sendo um
espaço constituído por experiências internas e também pelo que é encontrado no
ambiente macrossocial, a exemplo da linguagem.
Assim, entende-se a influência da cultura na brincadeira e no desenvolvimento
do sujeito e, consequentemente, na constituição da infância. Nesse sentido, o
presente estudo40 teve como objetivo analisar, a partir da teoria de Winnicott, as
produções acadêmicas acerca da cultura, do brincar e da infância.
MÉTODO
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Por meio da leitura na íntegra dos artigos que compõem o quantitativo final, foi
possível elencar quatro categorias temáticas: ambientes clínicos, institucionais e a
Psicanálise de crianças; escola, aprendizagem e o brincar; possibilidades do brincar
e brincadeiras na cultura e; sujeitos da infância. As categorias foram analisadas de
40
Este artigo é um recorte de uma dissertação do Programa de Pós-Graduação em Psicologia –
Universidade Federal de Alagoas.
801
acordo com temáticas discutidas nas produções, o que possibilita a presença de
alguns artigos em mais de uma categoria.
802
Vendruscolo e Souza (2015) observam a linguagem e o brincar na clínica
interdisciplinar de crianças com risco psíquico. A partir da noção proposta por
Winnicott de espaço transicional, as autoras percebem que é a partir da experiência
com e pelo outro que a criança consegue lidar com o processo de angústia e
desilusão. Entretanto, a intersubjetividade só é possível quando há uma vivência de
relação e confiança entre bebê e adulto. A partir dessa análise da interação entre
adulto e criança, as autoras concluem que o olhar interdisciplinar enriqueceu o
caminho clínico na escolha (ou não) por intervenção precoce e pelo melhor tipo de
intervenção, e pôde-se reafirmar a relevância da percepção de índices de risco para
se pensar em estratégias de saúde mental infantil.
Londero e Souza (2016) discutem sobre o comportamento antissocial a partir
da perspectiva de Winnicott e sua relação com distúrbios da linguagem. As autoras
afirmam que o ambiente clínico precisa ser estável o suficiente para não ser abalado
por reações destrutivas por parte do paciente, e desenvolvem reflexões sobre falhas
e deprivações ambientais que possam ocasionar interrupções no processo de vir a
ser do sujeito, sendo a tendência antissocial uma defesa para lidar com invasões e
angústias.
Diante disso, apoiam-se na afirmação de Winnicott (1971/1975) sobre a
agressividade não dever ser negada, visto que a experiência agressiva pode incluir o
desenvolvimento de recursos internos do sujeito e que sua não aceitação pode
resultar na inabilidade da criança lidar com tal sentimento. As autoras concluem
afirmando que sociedade e família podem falhar para com a criança se não
entenderem os significados de atitudes agressivas e, para além disso, apontam que a
alteração de linguagem oral ou escrita pode ser um sintoma inicial da tendência
antissocial.
Relacionando as propostas clínicas mais tradicionais, Teixeira, Saldanha e
Dauer (2016); Machado (2016) e França e Rocha (2015) trazem reflexões acerca do
desenvolvimento infantil e da Psicanálise de crianças. A partir da experiência em um
Serviço de Psicologia Aplicada, Teixeira; Saldanha e Dauer (2016) desenvolvem uma
pesquisa bibliográfica sobre o brincar por meio de uma discussão histórica acerca da
Psicanálise Infantil. As autoras apontam sobre a possibilidade do brincar como forma
de comunicação e a validação das formulações winnicottianas não somente na clínica
tradicional, mas em todos os atendimentos que apresentem o brincar como um
método que possibilita um setting espontâneo, criativo e acolhedor.
803
Machado (2016) discute sobre a psicanálise com crianças e reflete acerca da
relação adulto-criança e da criança enquanto ser, antes de objeto ou sujeito de
pesquisa. A autora apresenta uma discussão sobre a construção do verdadeiro self,
e também aponta a importância da acessibilidade das obras de Winnicott.
França e Rocha (2015) se utilizam do Mito do Cuidado, fábula de Higino, para
desenvolverem um artigo com foco na função do cuidado para a constituição psíquica
e na clínica psicanalítica com crianças com base em Winnicott e Ferenczi, como uma
clínica marcada pela ética do cuidado. Os autores afirmam que as dimensões do
cuidado são marcas da presença do outro que participam e contribuem para a
constituição subjetiva. A partir de tal afirmação, relacionam a ideia proposta por
Winnicott acerca do ambiente marcado por uma presença suficientemente boa na
experiência inicial de dependência absoluta, momento em que o cuidado do outro é
fundamental para a estruturação subjetiva. Os autores também percebem que, ao
valorizar a experiência e a importância do cuidado nas relações intersubjetivas, o
objetivo da psicanálise de crianças é “promover um terreno fértil à apropriação criativa
de si” (p. 419). Concluem, então, que a apropriação criativa do mundo é ponto de
partida, mas também de chegada, onde a dimensão relacional é parte constitutiva da
subjetividade.
804
fim de abandonar os moldes do aprendizado por memorização e, levar em
consideração as possibilidades de aprendizagem por meio da espontaneidade e da
criatividade presentes no ato de brincar.
A partir de um recorte da dissertação de mestrado, Maia & Vieira (2017)
consideram diferentes possibilidades de se aprender ao analisar o brincar no contexto
da dificuldade de aprendizagem. De acordo com as autoras (2017, p.126), “o que está
em jogo na questão do saber, do conhecer e do brincar é exatamente o que Winnicott
denomina de espaço potencial, uma das principais ideias para se pensar a questão
do ensino aprendizagem nessa perspectiva”. As autoras concluem apontando a
efetividade do brincar e da criatividade como formas de lidar com os processos de
aprendizagem e suas dificuldades.
Também propondo uma reflexão do conceito de espaço potencial, Pentini
(2018) complementa a discussão com a ideia de experiência cultural ao se pensar um
projeto intercultural de uma experiência educacional na cidade de Roma, baseado no
conceito de espaço potencial, desenvolvido na teoria de Winnicott. A autora afirma
que, a partir de uma lei que promove a igualdade entre crianças, a continuidade
educacional e escolar ajuda na redução de desvantagens culturais, sociais e
relacionais, além de promover a inclusão.
805
além do assujeitamento pulsional na infância. Assim, por meio da noção de objeto
transicional e espaço potencial de Winnicott, a autora discorre sobre o ganho de certo
domínio da experiência cultural possibilitado pelo ato de brincar.
Marie Claire Sekkel (2016) apresenta o brincar como atividade fundamental e
que se encontra presente em todas as culturas, sendo a brincadeira fundante e
permanente na vida cultural. Ela aponta a centralidade da brincadeira para o
desenvolvimento humano e para a vida da e na cultura como um ponto de
convergência.
Ela afirma que “o brincar é uma realidade entre mundos” (p. 91), sem ocorrer,
assim, entre pessoas e objetos isolados. Informa que o mundo interno ocasiona
mobilizações na criança e, a partir disso, a criança busca inspirações para as
brincadeiras na cultura. Assim, conclui que “a brincadeira nos inclui na vida, numa vida
humana com sentido, desejante e boa de ser vivida” (p. 93).
Maia & Vieira (2017) apontam que é por meio de uma maternagem
suficientemente boa que o sujeito se insere na cultura, sendo o brincar diretamente
associado ao viver. Em contrapartida, Pedroso, Lobato & Magalhães (2016)
desenvolveram reflexões acerca do brincar de crianças em situação de acolhimento,
e perceberam a importância do brincar na simbolização de experiências.
Sujeitos da infância
Nesta categoria, a ideia é refletir sobre a noção de ser criança, da infância e o
ter infância. Em seu artigo, Oliveira (2015) discorre sobre a concepção de infância
como algo construído historicamente e critica a ideia de uma única forma de infância
Para isso, a autora exemplifica a idade média, e também cita a época da escravidão
no Brasil. Essa crítica pode ser relacionada ao trabalho de Machado (2016) que
propõe o foco na existência da criança enquanto ser, a partir das relações adulto-
criança, sendo o adulto muitas vezes responsável pela falha ambiental da experiência
infantil de ser criança.
Já Hammoud (2015) faz articulações entre o desenvolvimento, a integração
psicossomática e o brincar, e afirma que, na compreensão winnicottiana, tais
conceitos são fundamentais para o desenvolvimento do espaço potencial. Hammoud
(2015) diz que, a partir do contínuo processo de vir a ser, o amadurecimento é
constituído por meio do estabelecimento da confiança e da relação com o ambiente.
Hammoud conclui afirmando que o brincar tem participação decisiva na constituição
806
do sujeito, na cura do sintoma e para a experiência com o mundo cultural
compartilhado.
Ao refletir sobre um projeto socioeducativo de uma periferia na cidade de
Roma, que tem o viver criativo como base para suas propostas, Pentini (2018) conclui
que as condições da infância variam de acordo com o local e a realidade de cada um,
e afirma que, em todos os lugares, a proposta educacional visa na manutenção ou
criação de condições para um desenvolvimento considerado satisfatório. Esse
pensamento pode ser complementado por Maia & Vieira (2017) ao apontarem a
criatividade como possibilidade de re-construção da noção de identidade por meio de
um ambiente escolar lúdico.
Por fim, França & Rocha (2016) desenvolvem uma discussão sobre as variadas
ideias de infância na contemporaneidade e suas formas de subjetivação a partir da
análise de documentários sobre a temática. Os autores perceberam que existem
oposições: enquanto alguns acreditam que a infância está hipervalorizada, outros
acreditam que a noção de infância tem perdido seu lugar; e como principal observação
a partir do documentário “A invenção da infância”, percebe-se que a experiência de
ser criança não significa necessariamente que os sujeitos carreguem as insígnias da
experiência de ter infância. A partir disso, “somos convocados a assumir uma postura
crítica sobre a concepção determinista do indivíduo, cujo objetivo maior é prever todos
os comportamentos humanos” (França & Rocha, 2016, p.374). Os autores concluem
ao afirmar que ser criança não significa necessariamente ter infância.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
807
winnicottianos de ambiente e espaço potencial, para se pensar não somente sobre o
desenvolvimento infantil, mas para refletir sobre as noções de brincar e saúde.
Analisa-se também a importância e o papel da cultura na constituição do sujeito e das
relações intersubjetivas.
Constatou-se que as modificações culturais influenciam diretamente o
funcionamento social e isso reflete nos variados ambientes cujo enfoque é o público
infantil. É importante ressaltar a centralidade de uma noção ampliada do ambiente,
considerando os locais físicos e as relações. Também não se deve esquecer que o
brincar é fundamental na vida do ser humano e, diante disso, é preciso repensar
diferentes formas de possibilitar momentos lúdicos, sem desconsiderar as realidades
infantis, visto que não existe um único modo de ser criança e, ser criança não
necessariamente significa ter infância.
Portanto, percebe-se a importância de refletir sobre como todas as crianças
podem vivenciar sua infância, respeitando o brincar, a aprendizagem e a saúde
mental, sem desconsiderar as singularidades de cada um. Nesse sentido, percebe-se
que apesar do brincar e da infância serem assuntos bastante abordados, é relevante
continuar a desenvolver pesquisas sobre a temática, visto que a cultura e a sociedade
estão em constante transformação.
REFERÊNCIAS
Jorge, J. A. (2015). "Temos a arte para não morrer perante a verdade" (ou simplesmente
Luiza). Winnicott e-prints, 10(1), 1-08
808
Machado, M. M. (2016) Infância é corpo encarnado: Uma perspectiva poético-existencial
para o ser criança. Childhood & Philosophy, 12(24), pp.455-468.
Pentini, A. A. (2018). Una rilettura interculturale del concetto di spazio potenziale di Donald
Winnicott. Analisi di un’esperienza educativa italiana. Educar em Revista, 34(68),
289-303.
809
75- DESENVOLVIMENTO DE PENSAMENTO CRÍTICO COM ADOLESCENTES
EM SEMILIBERDADE: DETERMINANTES DA EVASÃO ESCOLAR
Introdução
“Esse sistema tá mais pra sociopunição do que socioeducação”. Estas são
palavras de um adolescente que está cumprindo medida socioeducativa em uma Casa
de Semiliberdade, no Paraná, durante uma atividade de avaliação do sistema
educacional brasileiro, incluindo as medidas socioeducativas. As crianças e
adolescentes, principalmente os provenientes de camadas menos favorecidas
economicamente, são vítimas de todos os tipos de violência (social, física, sexual,
810
psicológica), à medida que têm seus direitos fundamentais negados (Monte, Sampaio,
Rosa Filho & Barbosa, 2011). Em 1990, apesar da promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA (lei no. 8.069), com o objetivo de garantir “todas as
oportunidades e facilidades para as crianças e adolescentes, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade
e dignidade” (art. 3), cabe questionar se estes direitos estão de fato sendo garantidos
ou a violência social continua sendo reproduzida pelo sistema?
Dentro da ampla problemática que é a violência social, têm-se a associação da
adolescência e vulnerabilidade social, em que, em alguns casos, ao mesmo tempo
que os jovens são vitimados pela violência, também são autores de atos infracionais
(Zappe & Dias, 2012). Há, assim, uma interferência do social e da violência,
abrangendo características da exclusão social e do acesso limitado a direitos,
segurança, educação e oportunidades como fatores de risco para essa população
(Gallo & Williams, 2005).
Ainda que a educação seja um direito primário previsto no ECA, pode-se
chegar à conclusão de que as medidas socioeducativas tem mais caráter de sanção
do que pedagógico, considerando que não se tem alcançado a ressocialização do
adolescente com muito sucesso (Ponte, Ribeiro, Rodrigues & Rodrigues, 2016). A
partir de como essa intervenção tem sido feita, surge o seguinte questionamento:
“essa prática socioeducativa possibilita aos adolescentes em conflito com a lei uma
possível ressocialização, ou apenas cumprem o seu dever de afastá-los para depois
devolvê-los à sociedade, como excluídos sociais?” (Coutinho, Estevam & Araújo,
2009). Portanto, o fato das opressões e da não garantia dos direitos se repetirem
dentro de contextos que deveriam ser de proteção, faz com que frases como a descrita
no início do texto sejam ditas por aqueles que foram excluídos socialmente e por um
conceito apresentado como prática educativa e de amparo social.
A vida escolar é prescrita como um dos pilares de atenção especial nos
objetivos das medidas socioeducativas devido aos consequentes proveitosos que a
educação traz à vida do adolescente, como mobilidade, inclusão social, aprendizagem
e estabelecimento de relações sociais positivas (Piazzarollo, Fernandes & Rosa,
2018). Segundo o artigo 101 do ECA, são descritas seis medidas socioeducativas
(advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade,
liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade, internação em
811
estabelecimento educacional). Este trabalho foi desenvolvido com adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa no contexto de uma Casa de Semiliberdade.
Entretanto, por mais que a educação seja foco atencional, estudos envolvendo
adolescentes em cumprimento de medida de liberdade assistida apresentaram altos
níveis de evasão escolar em sua amostra de pesquisa (Paula, Carvalho, Croque, &
Souza, 2017), além de autores que discorrem sobre a baixa escolaridade, expulsões
e outros comportamentos disruptivos como característicos dessa população (Gallo &
Williams, 2008). Contudo, o resultado presente na amostra dos autores transcende o
contexto da população dos adolescentes em conflito com a lei visto que a taxa de
evasão escolar no Brasil chega a 12,9% e 12,7% dentre os alunos que cursavam o
Ensino Médio nos anos de 2014 e 2015 (Brasil, 2017).
Freire (2005), em seu livro Pedagogia do Oprimido, apresenta que a educação
pode promover a emancipação e trabalhar na perspectiva de dar voz ao sujeito,
possibilitando que ele pense e repense sua história, atuando sobre ela como
protagonista. Deste modo, a escola tem uma importante função social, à medida que
pode ser um ambiente privilegiado de inserção e proteção para adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa, tornando-os protagonistas da sua própria
história. O produto da ideia de uma educação emancipatória é o pensamento crítico,
sendo ele o centro de qualquer atividade educacional, e definido por Lipman (1988)
como o pensamento responsável por facilitar o bom julgamento orientado por critérios,
autocorreção e sensibilidade ao contexto. Assim, é possível afirmar que o uso das
habilidades de pensamento crítico pode propiciar aos adolescentes estratégias de
defesa contra a manipulação, desinformação e estagnação (Guzzo & Guzzo, 2015).
Tendo em vista que a violência social assola os direitos educacionais dos
jovens e que a evasão escolar é uma problemática no Brasil, atingindo, também, os
adolescentes que estão em cumprimento de medidas socioeducativas e cujos direitos
primários foram negados durante uma vida exposta a fatores de riscos, parece
coerente que os próprios oprimidos dessa realidade criem as estratégias para sua
emancipação e garantia de direitos. Deste modo, é possível que uma das maneiras
de enfrentar os problemas citados, seja dedicar atenção a eles nos próprios sistemas
de ensino - como as medidas socioeducativas - utilizando a educação como
ferramenta para o desenvolvimento de pensamento crítico com adolescentes que
conhecem a violência social, os tornando protagonistas da luta por seus direitos e da
transformação de suas próprias realidades.
812
Objetivos
O objetivo das oficinas foi possibilitar o desenvolvimento de pensamento crítico
de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Semiliberdade a partir
da análise de determinantes da evasão escolar.
Público atendido
O público-alvo foi adolescentes do gênero masculino que cumprem medida
socioeducativa em uma Casa de Semiliberdade, no Paraná. Os encontros foram
coordenados por três graduandos do curso de Psicologia, participantes do projeto de
extensão Projeto Guiar – grupo de estudos e de intervenção com adolescentes em
conflito com a lei.
Relato da experiência
Foram realizados cinco encontros com treze adolescentes, com duração de
1h30, embora nem todos os adolescentes participaram de todos os encontros41.
4 Não é possível garantir o mesmo grupo de adolescentes para todos os dias de atividade por conta das atividades que estes possuem na Casa
de Semiliberdade, como cursos, exames médicos, entre outros. Além disso, existe uma grande taxa de evasão da medida socioeducativa, o que
faz com que o adolescente não possa mais participar das atividades dentro do Centro de Socioeducação ou Casa de Semiliberdade.
813
Tabela 1. Objetivos e Atividades Referentes a Cada Sessão.
Nº Objetivos Atividades
814
histórias e a dos demais colegas de turma, refletindo de forma crítica sobre seus ideais
e da sociedade ao seu redor. Assim, a história exposta aos adolescentes mostra que
o processo educacional engloba uma complexidade de fatores relacionados à
adequação de realidades culturais, ao mesmo tempo que gera conhecimentos
perceptíveis por uma aproximação de interesses, por seus ideais e fortalecimento de
ideologias e identidade (Schwartzman, 2006), além de uma reflexão acerca do papel
do professor e das instituições de ensino.
Concomitante a exibição do filme, os coordenadores avaliaram a importância
de debater o sistema educacional com os adolescentes, com o objetivo de
desenvolver pensamento crítico sobre a situação social da educação no Brasil e seus
direitos como estudantes, descobrindo-se diante do mundo enquanto indivíduos que
sofrem com o sistema, mas sobretudo, que lutam (Freire, 2005). Assim, na sessão
seguinte, foi solicitado que os adolescentes caracterizassem cenas e pontos
importantes do filme conectados com o processo educacional. Os adolescentes
apresentaram traços de identificação com os personagens da trama na medida em
que relataram que a escola retratada na obra era similar a que alguns estudavam, no
sentido de exclusão de alguns alunos. Os pontos trazidos pelos adolescentes em uma
roda de conversa abrangeram desde tópicos relacionados ao preconceito dos
americanos com os latinos, a diferença entre o Brasil e Estados Unidos no tangente
ao sistema educacional e de saúde pública, até relatos pessoais sobre situações
vividas dentro de suas realidades acadêmicas. E., de 15 anos, retratou que já havia
sido chamado de “vagabundo” por uma professora por estar usando chinelos e roupas
sem marca. Como conclusão, os adolescentes expressaram que se a atitude de
alguns professores diante dos alunos e das diferentes realidades dentro das salas de
aula fossem diferentes, talvez mais pessoas tivessem interesse pela escola. A crítica
presente no discurso dos adolescentes nos faz pensar na necessidade de uma
pedagogia que faça da opressão e de suas causas, objetos de reflexão dos oprimidos,
resultando em um provável engajamento necessário para que a luta pela libertação
seja efetiva (Freire, 2005).
Além da roda de conversa, durante a segunda sessão foi elaborado um jogo de
“Concordo ou Discordo”, que consistiu no posicionamento crítico dos adolescentes
diante de afirmativas sobre educação. Foram apresentadas frases referentes a
sabedoria popular, Filosofia, entre outros temas que possuem relação com educação,
como a frase atribuída a Sócrates “aquele que a palavra não educar, o pau também
815
não educará”, todos os adolescentes concordaram com a afirmativa. Um dos
adolescentes expressou que “se fosse aprender por apanhar eu nem tava aqui do
tanto que já apanhei na vida”. Para Sidman (1995) as crianças e adolescentes que
são educadas com o uso da punição, tendem a agir da mesma forma com outras
pessoas, posteriormente. Normalmente, crianças que têm seus comportamentos
frequentemente punidos tornam-se mais agressivas, mostrando que esse modelo
“educacional” é falho e gera subprodutos psicológicos e comportamentais danosos
(Sidman, 1995).
Na sessão subsequente, o recurso utilizado para desenvolvimento do
pensamento crítico foi um jogo de tabuleiro, feito pelos estagiários, relativo à várias
facetas da educação, com as subcategorias: Mitos ou Verdades; Brasil ou Estados
Unidos e Curiosidades. A primeira subcategoria se referia a dados relacionados ao
sistema educacional brasileiro em que os adolescentes deveriam se posicionar
afirmando se a informação era um mito ou uma verdade. A segunda subcategoria
surgiu a partir do interesse aparente dos adolescentes pelas diferenças entre o Brasil
e o Estados Unidos durante o segundo encontro, assim, a partir de uma afirmativa
referente ao processo educacional, os adolescentes deveriam adivinhar a qual dos
países a alegação se referia. Por fim, a última subcategoria expunha casos reais e
curiosidades alusivas a realidade educacional brasileira.
Martinez (1995) caracteriza a criatividade como um processo de
descobrimento ou produção de algo novo, valioso, original e adequado, com a
finalidade de cumprir com as exigências de determinada situação social, na qual se
expressa o vínculo dos aspectos cognitivos e afetivos da personalidade”. Na prática
educacional, o estímulo à articulação do pensar criativo com o pensar crítico,
possibilita uma nova forma de enfrentar os desafios do conhecimento, questionando-
os (Morin, 1999). Portanto, o objetivo do penúltimo encontro consistiu em desenvolver
o pensar crítico por meio da criatividade a partir da elaboração artística de um projeto
que visou criar estratégias para a diminuição da evasão escolar. Assim, os
adolescentes se dividiram em duplas com os estagiários e refletiram sobre os tópicos
de caracterização da realidade da educação no Brasil discutidos nas sessões
anteriores e elaboraram três projetos no formato de cartilhas. Os projetos criados por
eles foram nomeados de “Projeto construindo futuro”, “Mais atividades, menos drogas”
e “Esporte, escola e lazer” os quais carregavam estratégias que visavam a adesão
dos alunos à escola com atividades no contraturno, como oficinas (teatro, dança,
816
culinária, robótica, poesia), esportes e reparos na infraestrutura dos colégios e
readaptação do salário dos professores.
Considerando que o pensamento crítico é apresentado como estímulo para
uma adequada resolução dos problemas que surgem cotidianamente em diversas
circunstâncias (Saiz & Rivas, 20l0), a análise do contexto e da origem das
problemáticas sociais são competências necessárias. Desse modo, foi identificado a
necessidade de um aprofundamento nas representações sociais que os adolescentes
têm da evasão escolar. Assim, antes dos projetos que visam o combate da questão
principal continuarem a serem elaborados, o objetivo do último encontro relatado
neste artigo, foi a caracterização das causas da evasão escolar por meio de alguns
dados levados pelos coordenadores e da construção de um cartaz que ilustrasse a
temática. A crítica presente no cartaz dos adolescentes trouxe questões como a
estrutura escolar, trabalho infantil, racismo, falta de merenda, falta de condições, falta
de apoio, bullying, drogas, depressão e gravidez como possíveis causas da evasão
escolar.
Considerações finais
Considerando os determinantes identificados pelos adolescentes, suas
análises críticas e o produto das atividades realizadas, parece que o que foi proposto
corroborou com a crença na mudança, na educação e no pensar crítico como caminho
que direciona a uma ação libertadora de injustiças históricas, econômicas, políticas e
sociais, como foi proposto por Paulo Freire. O presente artigo buscou relatar, de forma
objetiva, parte de um projeto de intervenção que visou possibilitar o pensar crítico
sobre a violência social, a garantia de direitos e a criação de estratégias de mudança
da realidade com adolescentes em conflito com a lei. Na realização do projeto que
visava a diminuição da evasão escolar, no penúltimo encontro, E. enfatizou a
importância de se lutar por uma educação digna, colocando a frase: “sem educação,
o povo não tem voz”. Ao caracterizar os determinantes da evasão escolar e elaborar
projetos que visam sua diminuição, os adolescentes levantaram vários tópicos
demonstrando que são capazes de identificar que a problemática é um fenômeno
complexo, por causas geralmente sociais e não individuais. Assim, pode se concluir
que os adolescentes podem ser sujeitos da própria história e cultura, de forma ativa e
transformadora diante dos fenômenos que dizem respeito a suas realidades.
817
Referências
Freire, P. (2005). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, 42.ª
Lipman, M. (1988). Critical thinking – what can it be? Educational Leadership, 46(1),
38-43.
Educación.
Paula, A. da S., Carvalho, E. A. de, Croque, C. R., & Souza, K. R. (2017). Perfil
818
sociográfico de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas.
Sociedade em Debate, 23(1), 393- 410.
Sidman, M. (1995). Existe algum outro caminho? In: __. Coerção e suas
implicações. Tradução: Andery, Maria Amália; Sério, Tereza Maria. São Paulo:
Editoral Psy, 246 – 275.
819
76- IMAGEM CORPORAL DE IDOSOS LONGEVOS
1. INTROCUÇÃO
820
crianças e jovens, sugerindo uma tendência ao envelhecimento demográfico (Governo
do Brasil, 2017).
O envelhecimento é um processo que ocorre de maneira natural, onde,
gradualmente, espera-se mudanças físicas, cognitivas, orgânicas e sistêmicas. Tais
mudanças variam para cada pessoa, uma vez que a qualidade de vida pode influenciar
nesse processo (Papalia & Feldman, 2013) e, com isso, é possível que o indivíduo
sinta angústia ao vivenciar essa fase. Dessa maneira, verifica-se que todas essas
mudanças corporais, especialmente quando associadas às pressões sociais que
definem o padrão de beleza, podem influenciar em como a pessoa se relaciona com
sua imagem corporal. A imagem corporal é uma construção multidimensional que se
relacionada à percepção e a atitude quanto à forma e aparência corporal, tais como
pensamentos, sentimentos, crenças e comportamentos (Cash, 2004). A literatura não
é unânime quanto a denominação dos termos que definem os aspectos que compõem
a Imagem Corporal, portanto, nesse estudo, denominaremos de Percepção da
Dimensão Corporal ao aspecto perceptivo, e Satisfação Corporal ao aspecto
atitudinal.
A relação com a imagem corporal é tão significativa que pensamentos e
sentimentos negativos quanto à própria aparência podem desencadear uma série de
comportamentos disfuncionais, tais como distúrbios alimentares (anorexia, bulimia,
obesidade), insatisfação geral, depressão, mal humor e baixa autoestima. Por outro
lado, a satisfação corporal tem sido relacionada à comportamentos saudáveis, como
estar engajado com atividades físicas e alimentação adequada (Gardner, 2011;
Swami, Tran, Stieger & Voracek, 2015).
É possível que, pelos fatores socioculturais, haja uma diferença significativa
sobre como homens e mulheres vivenciam o processo de envelhecer, sendo que para
as mulheres parece ser mais doloroso e vergonhoso, uma vez que se cria uma
expectativa elas, mais que os homens, tenham uma beleza ao mesmo tempo juvenil
e adulta (Krekula, 2016; Watt, Konnert & Speirs, 2017).
2. OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA
821
Portanto o estudo se justifica por sua importância social e acadêmica, visto a
importância de se entender o envelhecimento de idosos longevos. Por isso, o objetivo
do estudo é analisar a Imagem Corporal dos idosos com idade igual ou superior a 80
anos e, como objetivos específicos, têm-se: identificar a percepção da dimensão
corporal e analisar a satisfação com o próprio corpo.
3. MÉTODO
822
Para a análise entre a Silhueta Real, Silhueta Percebida e Silhueta Idealizada foi
feita análise de variância (ANOVA) com um fator, seguida do teste de Bonferroni. Para
todos os resultados o nível de significância aceito foi de 5%.
4. RESULTADOS
Participaram do estudo 92 idosos com idade média de 82,8 anos (±2,9), sendo
71,7% (N=66) do sexo feminino e 28,3% (N=26) do sexo masculino. O Gráfico 1
apresenta a distribuição de frequência dos participantes quanto à classificação da
percepção da dimensão corporal, onde se verifica que apenas 16,3% dos idosos
apresentam uma percepção adequada do próprio tamanho corporal. Por outro lado,
os resultados apontam que 83,7% dos participantes possuem uma percepção
inadequada, sendo que 56,5% superestimam e 27,2% subestimam. Observou-se
diferença estatisticamente significante entre a SP e a SR (Tabela 3).
Tabela 3
Média, Desvio Padrão das silhuetas SR, SP e SI. Idosos longevos (n=92).
Silhueta Avaliada Média Desvio Padrão
SR 6,73* 1,77
SP 7,84 3,34
SI 6,91** 2,37
Fonte: produzido com base nos resultados desta pesquisa
*diferença em relação à SP p = 0,0004
**diferença em relação à SP p=0,0025
(F= 1159,467, p=,000)
823
Fonte: produzido com base nos resultados desta pesquisa
824
Gráfico 3 – Distribuição de frequência dos idosos longevos quanto à
classificação da (in)satisfação corporal.
5. DISCUSSÃO
825
mulheres tendem a se superestimaram e os homens, se subestimaram. Quanto ao
fator da satisfação com o corpo, observou-se que os participantes apresentaram
insatisfação corporal, especialmente por excesso de peso, para ambos os sexos.
A literatura nos mostra que, conforme vamos envelhecendo, há uma tendência
à mudança em como percebemos nosso corpo. É o que demonstrou o estudo com
mulheres de diferentes idades, realizado por Williamson, White, Newton Jr., Alfonso e
Stewart (2005) em que as idosas com mais de 75 anos não apresentaram diferença
significativa entre o corpo ideal, atual e possível (no inglês resoanable, um corpo
possível de se manter por um longo período), independente do IMC. Já no estudo de
revisão sistemática de Roy e Payette (2012), identificou-se que os idosos não
conseguiam perceber corretamente seu corpo, o que corrobora com os achados de
nossa pesquisa – houve um maior número de participantes com percepção corporal
inadequada.
Ainda relacionado à percepção da dimensão corporal, a diferença nos resultados
para homens e mulheres podem estar relacionadas aos padrões socioculturais de
gênero (Umstattd, Wilcox & Dowda, 2011; Jankowski et al., 2016). As mudanças
corporais que a mulher vivencia ao longo da vida, como: envelhecimento, gravidez,
dieta, alterações hormonais, atividade física e a própria mudança corporal relacionada
ao envelhecimento, podem gerar discrepância entre o tamanho corporal e os padrões
idealizados pela sociedade (Swami et al., 2010). Em contrapartida, o estudo de
Mangweth-Matzek, Kummer e Pope (2016) demonstrou que 39% dos homens entre
40 e 75 anos se percebiam magros ou muito magros.
Quando analisamos os resultados para a satisfação com a imagem corporal,
verifica-se que diferentes estudos apontam para uma tendência à insatisfação por
excesso de peso, especialmente nas mulheres (Liechty & Yarnal, 2010; Umstattd et
al., 2011; Roy & Payette, 2012; Jankowski et al., 2016), o que também foi encontrado
nos resultados de nosso estudo. É o que se verifica na pesquisa de Jankowski et al.
(2016), com idosos entre 65 e 92 anos, homens e mulheres, em que as mulheres
possuem maior preocupação com a aparência, além de relatarem insatisfação com
seu peso, desejando serem mais magras.
A literatura nos mostra que, quando se estuda a satisfação corporal em idosos,
há relação com a funcionalidade corporal e não apenas com a aparência, ou seja, um
corpo funcional e saudável é mais importante do que a aparência (Liechty & Yarnal,
2010; Roy & Payette, 2012; Toni, 2012; Jankowski et al., 2016). Jankowski et al. (2016)
826
identificou, em seu estudo com idosos, que a imagem corporal era um importante fator
para o bem-estar e a aparência foi vista como importante, contudo, era uma maneira
de comunicar sua identidade, capacidade e status social. Os idosos citaram como
aspectos importantes "dentes e pele limpas" e "vestir-se formalmente", por exemplo.
Semelhantemente, Toni (2012) identificou a importância da aparência para as idosas,
sendo que estava mais intimamente ligada ao estilo e à vestimenta.
Neste sentido, a importância da saúde física e mental parecem influenciar a
satisfação com o corpo (Umstattd et al., 2011; Roy & Payette, 2012; Lourenço et al.,
2012). Verificou-se ainda que, especialmente as mulheres a partir de 85 anos, podem
ter um declínio de suas funcionalidades por diversos fatores sociodemográficos,
como: viver só, viuvez, baixa escolaridade ou analfabetismo e baixa renda, além
daqueles mais relacionados com a idade avançada, como: doenças crônicas, efeitos
colaterais de medicações (especialmente antidepressivos), sedentarismo e
diminuição das atividades cotidianas, conforme os achados de Lourenço et al. (2012).
Estes aspectos podem influenciar em como o idoso cuida de si ou tem acesso a
condições favoráveis que garantam qualidade de vida, como medicação, cuidado
médico e contato social. (Lourenço et al., 2012).
Identifica-se como limitações do estudo a diferença do número de idosos homens
(n = 26) e mulheres (n = 66), entretanto, essa discrepância é observada em grande
parte dos estudos. Apesar disso, considera-se que esta é uma iniciativa valiosa para
o entendimento sobre estas questões para essa faixa etária.
6. CONCLUSÕES
827
7. REFERÊNCIAS
Cash, T. F. (2004). Body image: past, present, and future. Editorial / Body Image, 1,
1-5. doi:10.1016/S1740-1445(03)00011-1
Gardner, R. (2011). What affects body size estimation? The role of eating disorder,
obesity, weight loss, hunger, restrained eating, mood, depression, sexual abuse,
menstrual cycle, media influence and gender. Current Psychiatry Reviews, 7(2), 96-
103. doi: 10.2174/157340011796391193
Gardner, R. M., Jappe L. M., & Gardner L. (2008). Development and Validation of a
New Figural Drawing Scale for Body-Image Assessment: The BIAS-BD. Journal of
Clinical Psychology, 65(1), 113-122. doi:10.1002/jclp.20526
Jankowski, G. S., Diedrichs, P. C., Williamson, H., Christopher, G., & Harcourt, D.
(2016). Looking age-appropriate while growing old gracefully: A qualitative study of
ageing and body image among older adults. Journal of Health Psychology, 21(4),
550–561. https://doi.org/10.1177/1359105314531468
Kalache, A., Aboderin, I., Hoskins, I., & Fries, J. F. (2002). Compression of morbidity
and active ageing: Key priorities for public health policy in the 21st century. Bulletin
of the World Health Organization, 80(3), 243.
Liechty, T., Yarnal, C. (2010). Older women's body image: A lifecourse perspective.
Ageing and Society, 30(7), 1197-1218. doi:10.1017/S0144686X10000346
Lourenço, T. M., Lenardt, M. H., Kletemberg, D. F., Seima, M. D., Tallmann, A. E. C.,
& Neu, D. K. M. (2012). Capacidade funcional no idoso longevo: uma revisão
integrativa. Revista Gaúcha de Enfermagem, 33(2), 176-185. doi:
https://dx.doi.org/10.1590/S1983-14472012000200025
828
Mangweth‐Matzek, B., Kummer, K. K., & Pope, H. G. (2016). Eating disorder
symptoms in middle‐aged and older men. International Journal of Eating Disorders,
49(10), 953-957. doi: 10.1002/eat.22550.
Nakano, M. M., Diogo, M. J. D., & Jacob Filho, W. (2007). Versão brasileira da Short
Physical Performance Battery - SPPB: adaptação cultural e estudo da
confiabilidade. (Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas-SP.). Recuperado de:
http://www.repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/252485/1/Nakano_MarciaM
ariko_M.pdf
Roy, M., & Payette, H. (2012). The body image construct among Western seniors: A
systematic review of the literature. Archives of gerontology and geriatrics, 55(3),
505-21. doi: 10.1016/j.archger.2012.04.007
Swami, V., Frederick, D. A., Aavik, T., Alcalay, L., Allik, J., Anderson, D., ... & Danel,
D. (2010). The attractive female body weight and female body dissatisfaction in 26
countries across 10 world regions: Results of the International Body Project I.
Personality and social psychology bulletin, 36(3), 309-325. Doi:
10.1177/0146167209359702
Swami, V., Tran, U., Stieger, S., & Voracek, M. (2015). Associations Between
Women’s Body Image and Happiness: Results of the YouBeauty.com Body Image
Survey (YBIS). Journal of Happiness Studies. doi: 10.1007/s10902-014-9530-7
Toni, L. (2012). “Yes, I worry about my weight … but for the most part I'm content with
my body”: Older Women's Body Dissatisfaction Alongside Contentment, Journal of
Women & Aging, 24(1), 70-88, doi: 10.1080/08952841.2012.638873
Umstattd, M. R., Wilcox S., & Dowda M. (2011). Predictors of Change in Satisfaction
with Body Appearance and Body Function in Mid-Life and Older Adults: Active for
Life®. Annals of Behavioral Medicine, 41(3), 342-52. doi: 10.1007/s12160-010-
9247-8
Watt, A. D., Konnert, C. A., & Speirs, C. E. C. (2017). The mediating roles of primary
and secondary control in the relationship between body satisfaction and subjective
well-being among middle-aged and older women. The Journals of Gerontology:
829
Series B: Psychological Sciences and Social Sciences, 72(4), 603-612.
http://dx.doi.org/10.1093/geronb/gbv098
Williamson, D.A., White, M.A., Newton Jr., Alfonso, A., & Stewart, T. M. (2005).
Association of body size estimation and age in African-American females. Eat
Weight Disorders, 10(4), 216-221. doi: https://doi.org/10.1007/BF03327488
830
77- IMPLICAÇÕES DA ANÁLISE FUNCIONAL EM PROBLEMAS DE
COMPORTAMENTO DE INDIVÍDUOS COM TEA
INTRODUÇÃO
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do
neurodesenvolvimento (APA, 2013) que abrange uma série de características para
seu diagnóstico, as mais relevantes referem-se a dificuldade na comunicação e no
desenvolvimento de relações sociais, padrão de comportamentos repetitivos e
interesses restritos. Tais particularidades trazem prejuízo à vida dos indivíduos e
831
limitam suas atividades diárias. Como investiga Rutter (2005), a etiologia da patologia,
pode depender de causas múltiplas, como disfunções neurobiológicas, pré-
disposições genéticas, fatores ambientais, déficits psicológicos e cognitivos, entre
outros. Os sintomas estão presentes desde o início do desenvolvimento, porém, em
alguns casos podem não se manifestar com clareza pois estão mascarados por
mecanismos de adaptação do próprio indivíduo ou devido a intervenções sofridas em
comportamentos emergentes. Em decorrência disso e visando a variação de
características do transtorno, leva-se em consideração sua magnitude quando
adotado o termo espectro.
Em relação à magnitude, há três níveis de classificação de gravidade que
podem variar de acordo com o contexto ou oscilar com o tempo, estes critérios são
avaliados a partir dos padrões de comunicação social e de comportamento restritivo
e repetitivo, podendo ser classificados, respectivamente, do nível menos
comprometido ao mais elevado em: exigindo apoio; exigindo apoio substancial e
exigindo apoio muito substancial. Além disso, antigamente o transtorno era
classificado em outras várias patologias, das quais foram todas agrupadas e estão
englobadas sob a denominação de espectro autista, sendo elas: autismo infantil
precoce, autismo infantil, autismo de Kanner, autismo de alto funcionamento, autismo
atípico, transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação, transtorno
desintegrativo da infância e transtorno de Asperger. (APA, 2013)
Cabe ressaltar que é comum a apresentação do transtorno associado a
comorbidades, como Transtorno de Oposição Desafiante (TOD), Transtorno
Estrutural da Linguagem, Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH),
Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação, transtornos de ansiedade,
transtornos depressivos, transtornos de comprometimento intelectual, entre outros
(APA, 2013). Ainda, o diagnóstico do transtorno se dá a partir de critérios clínicos.
Médicos psiquiatras e neuropsiquiatras se baseiam em relatos dos responsáveis
sobre a observação dos comportamentos do indivíduo, além das avaliações de outros
profissionais da saúde como psicólogos e psicopedagogos. (Pereira, Barbosa, Silva
& Orlando, 2015).
A análise do comportamento é uma ciência que circunda por três campos de
produção de conhecimento: a investigação experimental, produção reflexiva e
intervenções aplicadas aos problemas humanos. A análise do comportamento
aplicada (conhecida comumente pela sigla em inglês ABA - Applied Behavior Analysis)
832
ocupa um lugar intermediário entre a investigação básica e as intervenções
destinadas à solução de problemas humanos. (Tourinho & Sério, 2010). Atualmente,
a análise do comportamento aplicada tem se tornado influente devido a eficácia dos
procedimentos provindas do campo, sendo reconhecida especialmente na esfera de
prestação de serviço e no desenvolvimento de tecnologias e pesquisas direcionadas
para pessoas diagnosticadas com TEA (Oda, 2018).
833
riscos à saúde física e impossibilitam uma boa qualidade de vida. Ainda conforme os
autores, a forma como esse comportamento se manifesta varia entre ingerir objetos
não comestíveis, bater no próprio corpo, bater a cabeça em objetos, morder a si
próprio, machucar-se com as unhas e abocanhar a mão.
A partir de uma revisão literária, Ceppi e Benvenuti (2011), analisaram
procedimentos de análise funcional do SIB em que foi possível observar como uma
modificação na forma de responder relaciona-se funcionalmente com mudanças no
ambiente. Esse método permite identificar as relações de dependência entre as ações
e as mudanças ambientais, o que geralmente é feito através da noção de
contingência. SIB pode ser mantido por reforço positivo, reforço negativo e reforço
automático, dessa forma, ao identificar qual a consequência reforçadora deste
comportamento se favorece a escolha do melhor tratamento para uma intervenção e
promove-se qualidade de vida.
2. Análise funcional
Para que a análise funcional seja realizada, é necessário que ocorra
anteriormente uma coleta de informações acerca dos comportamentos aos quais
deseja-se identificar a função, para tal, como apontado nos estudos de Hanley (2012),
Iwata e Dozier (2008) e O’Neill, Horner, Albin, Sprague, Storey e Newton (1997), o
processo de avaliação funcional pode ser desenvolvido por meio de três estratégias
834
principais: métodos com informantes, observação direta e análise funcional
propriamente dita.
O método com informantes é uma coleta indireta das informações, podendo ser
feita por questionários, escalas e entrevistas. Já a observação direta trata-se de uma
estratégia descritiva em que ocorre a observação do ambiente natural de um indivíduo
em busca de informações sobre o comportamento-alvo, porém não há a manipulação
de variáveis. Por fim, há a análise funcional que, assim como a observação, está em
contato direto com o ambiente onde supostamente ocorre o comportamento e ainda
há manipulação de variáveis.
Bueno e Britto (2013), afirmam que a proposta da análise funcional é identificar
as variáveis que controlam e mantém o comportamento que se pretende modificar
para, então, levantar hipóteses sobre a função desse tipo de comportamento, que
podem variar desde uma forma de se comunicar, até maneiras de obter acesso a itens
de interesse e, por fim, selecionar um tratamento adequado a essa função. Logo, não
é a topografia do comportamento que define o tratamento a ser selecionado e aplicado
durante a intervenção, dependendo dos riscos que esses comportamentos implicam
ao indivíduo ou as pessoas à sua volta, estes podem receber um tratamento específico
e momentâneo para reduzir danos, mas a intervenção será sempre direcionada a sua
função.
Cabe ressaltar que Beavers, Iwata e Lerman (2013) realizaram uma revisão de
literatura a fim de explorar as publicações em análise funcional do comportamento no
período de 2001 a 2012. Os autores combinaram os resultados de seus próprios
achados, obtidos através de uma análise de mesma natureza desenvolvida por
Hanley, Iwata e McCord (2003) em que inclusive empregaram o mesmo método de
pesquisa e seleção de dados. Os autores concluíram que no período analisado houve
um aumento de publicações sobre o tema, em que a maioria das pesquisas envolveu
indivíduos que possuem alguma deficiência intelectual e, destes, o que se sobressai
são estudos com pessoas com autismo, dados que também se mostram superiores
aos encontrados por Henley et. al. (2003). Acentuam-se também dados superiores em
estudos com população sem deficiências intelectuais, que aumentou de 9% para
21,5%, quando comparado aos resultados obtidos em 2003. A partir disso, pode-se
supor que o crescimento de publicações tanto em análise funcional, quanto de estudos
que envolvem também o autismo, podem apontar para maior interesse no tema e
talvez na difusão da prática como estratégia de intervenção comportamental eficiente.
835
3. Algumas Implicações quanto à avaliação e possíveis intervenções
836
3.3 Variáveis Antecedentes Combinadas
Hanley, Jin, Vanselow e Hanratty (2014) descrevem uma análise funcional e o
tratamento subsequente que realizaram em três indivíduos diagnosticados com TEA
que emitem problemas de comportamentos severos, tais como agressão, disrupção e
autolesão. Para realizar a análise funcional, utilizam como instrumento uma entrevista
aberta com os pais e de uma breve observação das crianças, constituída por questões
referentes aos problemas de comportamento, o contexto em que ocorrem e a forma
como os pais reagem diante da ocorrência destes. Utilizam na intervenção um treino
de comunicação funcional, cumprimento de instruções e treino de tolerância de atraso
e negação de pedidos. Os resultados indicam que realizar uma avaliação em condição
de teste sem isolar os antecedentes (demandas, atividades não preferidas, atenção,
dentre outros) pode facilitar com que os problemas de comportamento sejam
evocados. Ademais, os mesmos autores enfatizam que o treino de tolerância diante
de situação de atraso ou negação de pedidos devem vir acompanhados de atividades
alternativas.
4. Intervenções
837
consistiu no fornecimento de reforçador comestível e social em um esquema de tempo
variável (VT), que oscilou entre um e três minutos, nos momentos em que o
participante permanecia na cadeira do lazer. Os autores afirmam que o NCR
juntamente com um item preferido foi o suficiente para gerar comportamentos
colaborativos e diminuir a taxa de comportamento problema. O NCR tem evidenciado
a produção de menos comportamentos-problema, pois diferente da extinção, que em
sua fase inicial tem aumento da frequência inicial do comportamento, no NCR o sujeito
continua a receber o reforçador funcional.
838
Um dos meios de comunicação mais utilizados por indivíduos com déficits
comunicativos é o Picture Exchange Communication System (PECS) ele funciona por
meio da entrega de figuras ou fotos de itens organizados em uma sentença feita pelo
sujeito, esses pedidos são de interesses já pertencentes ao repertório da pessoa, ele
envolve não só a troca da fala por figuras como também ajuda a expressar
sentimentos e desejos Ferreira, Bevilacqua, Ishihara, Fiori, Armonia, Perissinoto e
Tamanaha (2017). Vale ressaltar, que o PECS não substitui a fala para indivíduos que
possuem habilidade de emitir sons e/ou algumas palavras, ele servirá como um
estímulo ao desenvolvimento da mesma uma vez que, ao entregar a sentença
montada, também serão exigidas nomeações aproximadas dos itens apresentados.
839
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora seja um tema em crescimento, muitas pessoas, inclusive profissionais,
desconhecem as dificuldades e facilidades que o Transtorno do Espectro Autista gera
na vida dos indivíduos acometidos por esta patologia. Alguns comportamentos
emitidos por pessoas próximas podem agravar os comportamentos-problema ou
dificultar um trabalho já existente para a redução destes.
A análise funcional se mostra eficaz em diversos contextos por não focar em
uma particularidade do transtorno, mas na função do comportamento emitido.
Identificar o que mantém o comportamento e de que forma ele é reforçado é
fundamental para selecionar a melhor forma de intervir em sua função, a partir disto,
é possível escolher uma técnica de acordo com o comportamento-problema a ser
modificado, sendo possível utilizar o Reforçamento Não-Contingente, Comunicação
Funcional, Comunicação Alternativa (PECs) e Avaliação de Preferência. Almeja-se
que as técnicas aqui apresentadas, atuem de forma a diminuir o efeito reforçador
contingente a comportamentos-problema, levando o emissor a buscar outras formas
de comunicar o que deseja.
Inclusive, verifica-se que as produções no campo da análise funcional vêm
expandindo-se ao longo dos anos, não somente para os trabalhos com TEA, mas
também para outros transtornos e déficits, o que pode indicar sua eficácia e o
interesse em aprimorá-la. Cabe ressaltar que houve dificuldade para encontrar
pesquisas desenvolvidas nacionalmente acerca do tema, bem como técnicas
validadas para a população brasileira, o que pode denotar que o conhecimento ainda
é restrito aos profissionais, podendo não alcançar todos os campos de atuação.
Finalmente, espera-se que pesquisa futuras, colaborem para a expansão de
informações acerca do tema, esclareça, desmistifique o campo e possibilite a escolha
e a realização de intervenções eficazes para esta população.
REFERÊNCIAS
840
Beavers, G. A, Iwata, B. A., & Lerman, D. C. (2013). Thirty years of research on the
functional analysis of problem behavior. Journal of Applied Behavior Analysis,
46(1), pp. 1-21. doi: 10.1002/jaba.30
Bruni, A. R., Gadia, C., Marco, C.L.S.T, Hora, C. L., Guilhardi, C., Romano, C., …
Duarte, V. R. (2013). Cartilha Autismo e Educação: Autismo e Realidade.
Ministério Público de São Paulo. Recuperado de
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/aa_ppdeficiencia/aa_ppd_au
tismo/aut_diversos/Cartilha-AR-Out-2013%20-%20autista%20na%20escola.pdf
Call, N. A., Wacker, D. P., Ringdahl, J. E., & Boelter, E. W. (2005). Combined
antecedent variables as motivating operations within functional analyses. Journal
of applied behavior analysis, 38(3), pp. 385–389. doi:10.1901/jaba.2005.51-04
Carr, E. G., & Durand, V. M. (1985). Reducing behavior problems through functional
communication training. Journal of Applied Behavior Analysis 18(2), pp. 111–126.
doi:10.1901/jaba.1985.18-111
Ferreira, C., Bevilacqua, M., Ishihara, M., Fiori, A., Armonia, A., Perissinoto, J., &
Tamanaha, A.C. (2017). Seleção de vocábulos para implementação do Picture
Exchange Communication System – PECS em autistas não verbais. CoDAS,
29(1). doi: 10.1590/2317-1782/20172015285
841
e treino de mando. Revista Brasileira de Análise do Comportamento, 12(1), pp.
54-64. doi: 10.18542/rebac.v12i1.3790
Habarad, S. M. C. (2015). The power of the mand: Utilizing the mand repertoire to
decrease problem behavior. Behavioral Development Bulletin, 20(2), pp.158-162.
doi: 10.1037/h0101310
Hanley, G. P., Jin C. S., Vanselow, N. R., & Hanratty, L.A. (2014). Producing
meaningful improvements in problem behavior of children with autism via
synthesized analyses and treatments. Journal of Applied Behavior Analysis, 47(1),
pp.16–36. doi: 10.1002/jaba.106
Iwata, B. A., Dorsey, M. F., Slifer, K. J., Bauman, K. E., & Richman, G. S. (1994).
Toward a functional analysis of self-injury. Journal of Applied Behavior Analysis,
27(2), pp. 197-209. doi: 10.1901/jaba.1994.27-197
O’Neill, R. E., Horner, R. H., Albin, R. W., Sprague, J. R., Storey, K., & Newton, J. S.
(1997). Functional assessment and program development for problem behavior: A
practical handbook, (3a. ed.). Connecticut, Estados Unidos: Cengage Learning.
842
Rutter, M. (2005). Aetiology of autism: findings and questions. Journal of Intellectual
Disability Research, (49)4, pp. 234-238. doi: 10.1111/j.1365-2788.2005.00676
Schmidt, C., Dell’Aglio, D. D., & Bosa, C. A. (2007). Estratégias de coping de mães de
portadores de autismo: lidando com dificuldades e com a emoção. Psicologia:
Reflexão e Crítica, 20(1), pp.124-131. doi: 10.1590/S0102-79722007000100016
843
78- MARCAS NO CORPO: A DOR DE UMA ADOLESCENTE VÍTIMA DE
VIOLÊNCIA SEXUAL
42
Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo. Bolsista PIBIC 2018-2019.
43
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúda da Universidade Metodista de São
Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da Universidade
Católica de Santos.
844
INTRODUÇÃO
845
das residências, permanece em silêncio, pois crianças e adolescentes sofrem o medo
do mal que lhes pode ser feito, caso rompam tal silêncio (BRAUN, 2002).
OBJETIVO
MÉTODO
846
pessoas, como explica Turato (2005), observando-se o significado estruturante em
torno do significado atribuído aos fenômenos.
Assim, o artigo foi constituído a partir do recorte de uma pesquisa maior cujo
objetivo foi analisar a autoimagem corporal de adolescentes do sexo feminino que se
automutilam. Assim, diante dos resultados da referida pesquisa, destacou-se um caso
que, especificamente envolvia o comportamento de automutilação e violência sexual,
alvo do presente estudo.
RESULTADOS
No que se refere a entrevista semi-dirigida observou-se que Nicole inicia a
entrevista demonstrando sinais de angústia, que se manifestam ao relatar o abuso
sexual sofrido aos quatro anos de idade, sendo o autor da agressão o namorado da
tia na época. A vivência desse episódio parece gerar sentimentos de culpa, pois não
conseguiu contar à sua família sobre o acontecido, além disso, essa culpa também se
apresenta revestida de medo e vergonha.
“Eu fui dormir na casa da minha tia um dia, aí no meio da noite ele entrou no
quarto e abusou de mim, eu nunca contei isso pra ninguém até hoje, mas aí aconteceu
44
Nome fictício visando assegurar o sigilo ético.
847
com minha prima também. Minha tia descobriu por que quando foi dar banho nela, a
calcinha estava suja de sangue.”
A prisão do autor da violência sexual soa como um alívio para Nicole, mesmo
carregando as marcas e o peso de nunca ter dividido sua dor com a família. Esses
sentimentos se agravaram quando, após anos, ela reencontra esse mesmo homem,
no caso, o abusador. “Eu estava na rua, tinha ido na padaria, quando eu ia atravessar
a rua o vi do outro lado, fiquei apavorada e corri. Mas eu vi ele me olhando”.
Após esse dia, Nicole afirma que perdeu o pouco de paz que ainda lhe restava,
segundo ela, todos seus sentimentos ruins parecem ter se intensificado. “Desde
aquele dia, não tem uma noite que eu não deite e não sinta ele em cima de mim
fazendo aquelas coisas, sinto ele no meu corpo, as vezes chego a sonhar com aquilo.
Dói muito.”
Nicole afirma não ter uma boa relação com a família, o que dificulta o
estabelecimento de uma relação de confiança que a encoraje a dividir suas dores
nesse ciclo familiar. “Moro com a minha mãe, mas ele me xinga demais, o tempo todo,
diz que não sirvo pra nada. Meu pai eu quase nunca vejo, meu tio as vezes é mais pai
que ele. Na minha casa, sou sozinha, fico isolada.”
A realidade para Nicole se mostra como assustadora, o mundo não parece um
lugar seguro, as pessoas não transmitem segurança, afirma que não sente que há
alguém que se importe genuinamente com ela. “Minha família sabe que eu me corto,
mas fingem que não sabem, porque não se importam. Minha mãe pediu pro meu tio
falar comigo. Às vezes é difícil encarar a realidade de frente, me cortar as vezes é
menos dolorido, enquanto me corto, esqueço a dor”
848
O nariz foi uma parte omitida no desenho da figura, o que aponta para a
presença de timidez, passividade, afastamento, sensação de desamparo ou
sentimento de castração; índice de deterioração. No desenho os braços da figura se
mostram para atrás do corpo e, conforme análise dos indicadores estabelecidos por
Van Kolkc (1984) sugerem fuga do contato, rejeição e, mesmo, atitude primitiva;
necessidade de controlar a expressão de impulsos agressivos ou hostis.
Identificou-se sinais de vitalidade sexual com domínio dos impulsos sexuais
sobre os intelectuais, associados ao desenho dos cabelos compridos e em
abundância, com franja na testa (Van Kolck (1984). Sentimentos de culpa e ansiedade
elevada foram identificados na segunda produção gráfica (desenho da figura do sexo
oposto) quando sombreia o rosto da figura. De modo geral, verifica-se a
desproporcionalidade entre as partes do corpo, apontadas como desarmonia na
personalidade e no comportamento.
Outro aspecto que merece atenção no desenho da segunda figura humana, se
refere a omissão das mãos, expressando problemas de contato, adaptação social e
manipulação; com possível sentido de desejos de automutilação devidos à culpa por
masturbação ou roubo.
Diante dos aspectos apresentados, segue-se na articulação integrada dos
dados, buscando atender ao objetivo proposto no estudo.
DISCUSSÃO
Nicole convive com as repercussões e sofrimento de um abuso sexual ocorrido
aos 4 anos de idade, fato este que parece ter deixado marcas não apenas em seu
corpo, mas também intensas feridas emocionais. Essas marcas emocionais se
mostram representadas em suas produções gráficas, assim como em seu relato na
entrevista semidirigida. Segundo Braun (2002) a violência sexual é extremamente
marcante, causando um desgaste emocional profundo à vítima.
Assim, a análise do material gráfico e verbal aponta que Nicole desenha duas
figuras femininas, mesmo tendo recebido essa orientação, indicando uma possível
resistência em estar em contato com a figura masculina, porém, apesar de apresentar
essa dificuldade em desenhar uma figura masculina, destaca-se que, durante o
inquérito, Nicole atribui a produção gráfica como sendo uma pessoa do sexo
masculino.
849
A partir de suas respostas, a hipótese levantada é de que essa figura se
constitua na representação do agressor, ou seja, do homem que a abusou na infância.
Esse acontecimento se presenta como muito intenso na vida da participante, em seus
relatos atribui grande ênfase a tal acontecimento, além disso, sua primeira produção
gráfica indica aspectos representativos de fixação emocional em situações anteriores
de sua vida, ao referir-se, durante o Inquérito, a uma menina de 4 anos, ou seja, a
idade na qual sofreu a violência sexual.
No teste DFH observa-se omissão das mãos e os braços foram desenhados
voltados para trás do corpo, tal indicador é interpretado por Van Kolck (1984) como
problemas ou fuga de contato, e dificuldade em adaptação social.
Nicole teve seu corpo ferido na ocasião da violência sofrida e ainda parece
assombrada pelas marcas emocionais geradas a partir dessa violência, e não
encontra recursos internos, nem tampouco externos, que aliviem seu sofrimento e que
auxiliem a lidar com ele. O comportamento auto lesivo pode ser compreendido como
uma maneira de fugir de uma realidade que, para ela, se apresenta incompreensível.
850
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
851
Van Kolck , O. L. (1984). Testes projetivos gráficos no diagnóstico psicológico. São
Paulo: EPU.
852
79- PERCEPÇÃO DA INTERGERACIONALIDADE NO MERCADO DE
TRABALHO
853
Introdução
854
de 0 a 14 anos representarão 13% da população brasileira, as de 15 a 29 anos, 15,3%,
de 30 a 59 anos, 38% e indivíduos com mais de 60 anos, 33,7%, ou seja, mais de
70% da população se enquadrará no grupo de meia-idade ou idoso (IBGE, 2017).
Além disso, fatores relacionados a alterações políticas – como a reforma da
previdência – farão com que, cada vez mais, o mercado tenha que olhar e se
questionar sobre o ageismo, preconceito com a idade, uma vez que os encontros
intergeracionais no ambiente de trabalho tendem a aumentar (Vitoria et al., 2016).
Objetivo
Justificativa
Método
855
anos, pessoas de meia-idade, de 38 a 59 anos, e idosos, indivíduos com mais de 60
anos.
Nesta pesquisa participaram 231 pessoas – sendo 65% do sexo feminino e 35%
do sexo masculino. Em relação à idade, 58% dos que responderam eram adultos (18
a 37 anos), 35%, de meia-idade (38 a 59 anos) e 6%, idosos (mais de 60 anos). Os
participantes responderam a um formulário para coleta de dados demográficos de
autopreenchimento, elaborado para este estudo, que visava coletar informações
pessoais dos participantes, como idade, grau de escolaridade, situação de trabalho
atual, cargo e dentre outros dados. Foi também utilizado o Questionário de Relações
Intergeracionais, material de autoria própria, composto por 30 perguntas fechadas
que foram elaboradas a partir do levantamento bibliográfico sobre relações
intergeracionais no mercado de trabalho.
A análise dos dados foi feita pelo Software Statistical Program for
Social Sciences (SPSS), versão 21.0. Foram realizadas análises de estatística
descritiva, com cálculo de porcentagens para verificar as características
sociodemográficas da amostra, como sexo e faixa etária, e análise de teste de Qui-
quadrado, para verificar se havia associação estatisticamente significativa entre a
faixa etária dos respondentes e as perguntas do Questionário de Relações
Intergeracionais. Os resultados e discussão foram focados nas perguntas que
apresentaram essa associação estatisticamente significativa. O nível de significância
adotado para os testes estatísticos foi de 5%.
Resultados e Discussão
No estudo houve 231 respondentes, sendo que a maioria foi do sexo feminino
(149), o que representa 64,5% da amostra, enquanto 35,5% (82) foram do sexo
masculino. Apesar de buscar-se equilíbrio na faixa etária dos respondentes, a maioria
pertencia ao grupo de adultos (de 18 a 37 anos), que compõem 58% da amostra,
enquanto 35,5% eram pessoas de meia-idade (de 38 a 59 anos) e 6,5%, idosos.
856
diferentes idades, que assim como os idosos, acreditam que a questão da idade é
indiferente para desatualização.
Tabela 1
Adulto 52 134
3 (2,2%) 30 (22,4%) 49 (36,6%)
(de 18 a 37 anos) (38,8%) (100%)
857
Tabela 2
Associação entre faixa etária e Q4 (pressão no trabalho)
Adulto
33 134
(de 18 a 37 36 (26,9%) 59 (44,0%) 6 (4,5%)
(24,6%) (100%)
anos)
Meia-idade
(de 38Segundo
a 59 Lima et
8 (9,8%) al. (2012), que chegam 17
os jovens6 (7,3%)
51 (62,2%) rápido82ao topo 22,375
(100%) de sua0,001
(20,7%)
anos)
carreira são mais inseguros e não se sentem confiantes quanto à sua competência
paraIdoso
aquele cargo. Neste sentido, pode-se inferir que a pressão que o mesmo sofre é
(mais de 60 1 (6,7%) 7 (46,7%) 4 (26,7%) 3 (20,0%) 15 (100%)
aumentada
anos) e, por isso, os trabalhadores mais sêniores, que possivelmente já
passaram por tais pressões, já aprenderam a lidar melhor53com elas231na rotina de
Total 45 (19,5%) 117 (50,6%) 16 (6,9%)
(22,9%)
trabalho, em comparação aos mais novos, corroborando com a (100%)
hipótese dessa
pesquisa (Tabela 2).
Tabela 3
Associação entre faixa etária e Q6 (melhor como chefe)
Quem você acha que é melhor como chefe?
Adulto
22 (16,4%) 43 (32,1%) 9 (6,7%) 60 (44,8%) 134 (100%)
(de 18 a 37 anos)
Meia-idade
2 (2,4%) 42 (51,2%) 6 (7,3%) 32 (39,0%) 82 (100%)
(de 38 a 59 anos) 17,211 0,009
Segundo Lima et al. (2012), o quadro de instabilidade – devido aos novos
Idoso
(mais de 60 das organizações,
movimentos 0 (0,0%) 6 (40,0%)
como fusões e 2aquisições
(13,3%) 7 (46,7%)
de – leva à maior
15 (100%)
empresas
anos)
competição pelos cargos gerenciais, impulsionando o maior uso de preconceitos entre
Total 24 (10,4%) 91 (39,4%) 17 (7,4%) 99 (42,9%) 231 (100%)
os trabalhadores mais jovens e os mais velhos, como por exemplo os mais velhos
considerarem os mais jovens pouco competentes para assumir posição de liderança,
algo confirmado também na pesquisa de Comazzetto et al. (2016). O resultado desta
858
pesquisa corrobora com a literatura, uma vez que que nenhum idoso percebe o adulto
como o melhor chefe, assim como os de meia–idade, cuja minoria optou por esta faixa
etária.
Quem tem mais paciência para transmitir conhecimento para outras pessoas?
Faixa Etária Adulto Meia-idade Idoso (mais Total χ² p
Segundo Comazzetto et(deal.
(de 18 a 37 anos)
(2016) e Lima,
38 a 59 anos)
et al. (2012)Indiferente
de 60 anos)
os mais jovens são mais
individualistas, priorizando seus próprios interesses. Esta pesquisa vai ao encontro da
Adulto
29 (21,6%) 43 (31,3%) 40 (29,9%) 57 (42,5%) 134 (100%)
(de 18 a 37 literatura
anos) já que que nenhum idoso percebe o adulto como aquele que transmite seu
conhecimento para
Meia-idade outras pessoas, assim como os de meia–idade.
4 (4,9%) 42 (51,2%) 15 (18,3%) 33 (40,2%) 82 (100%) 19,701 0,003
(de 38 a 59 anos)
Idoso
0 (0,0%) 6 (40,0%) 5 (33,3%) 4 (26,7%) 15 (100%)
(mais de 60 anos)
Há, entretanto, necessidade de se considerar a troca intergeracional, uma vez
Total 33 (14,5%) 90 (39,0%) 43 (18,6%) 94 (40,7%) 231 (100%)
que indivíduos de diferentes idades, possuem experiencias profissionais e pessoais
diferentes, influenciadas pela própria sociedade da época na qual nasceram (Vitoria
et al., 2016).
Tabela 5
Adulto
17 (12,7%) 38 (28,4%) 8 (6,0%) 71 (53,0%) 134 (100%)
(de 18 a 37 anos)
Meia-idade
3 (3,7%) 48 (58,5%) 5 (6,1%) 26 (31,7%) 82 (100%) 51,794 0,000
(de 38 a 59 anos)
Também foi possível observar associação estatisticamente significativa entre a
Idoso (mais
0 (0,0%)
faixa etária do respondente e4 (26,7%)
a percepção de7 (46,7%)
quem é mais4 (26,7%) 15 (100%)
comprometido com o
de 60 anos)
Totaltrabalho, conforme
20 (8,7%) pode ser90observado
(39,0%) na Tabela
20 (8,7%)5. Os 101
respondentes
(43,7%) 231 de meia-
(100%)
859
idade e idosos se percebem como mais comprometidos, já os adultos têm a
percepção de que a idade é indiferente no quesito comprometimento com o trabalho.
Para Vitória et al. (2016) e Cappi e Araujo (2015), os mais velhos tendem a ser
mais comprometidos com o trabalho, se comparados com indivíduos de outras idades.
Nesta pesquisa evidencia-se que tanto os de meia-idade, como os idosos não
percebem os adultos como comprometidos, visto que se obtiveram poucos indivíduos
e no caso dos idosos nenhum respondente optando por essa alternativa.
Considerações finais
860
Para próximos estudos, avalia-se espaço para melhores resultados na pesquisa
sem a opção “indiferente” como alternativa de resposta. A alternativa foi incluída como
meio de evitar enviesamento nas respostas dos participantes, entretanto há a
possibilidade de ter causado o efeito contrário.
Referências
Comazzetto, L. R., Perrone, C. M., Vasconcellos, S. J. L., & Gonçalves, J. (2016). A
geração Y no mercado de trabalho: um estudo comparative entre gerações.
Psicologia: Ciência e Profissão, 36(1), 145-156. doi: 10.1590/1982-
3703001352014
Dennis, H., & Thomas, K. (2007). Ageism in the workplace. Generations, 31(1), 84-89.
França, L. H. F. P., Siqueira-Brito, A. R., Valentini, F., Vasques-Menezes, I., & Torres,
C. V. (2017). Ageismo no contexto organizacional: a percepção de trabalhadores
brasileiros. Revista Brasileira De Geriatria e Gerontologia, 20(6), 762-772. doi:
10.1590/1981-22562017020.170052
Goldani, A. M. (2010). Ageismo no Brasil: O que significa? Quem pratica? O que fazer
com isto? Revista Brasileira De Estudos De População, 27(2), 385-405. doi:
10.1590/S0102-30982010000200009
Lima, G. S., Carvalho, A., Neto, & Tanure, B. (2012). Executivos jovens e seniores no
topo da carreira: conflitos e complementaridades. REAd. Revista Eletrônica de
Administração, 18(1), 63-96. doi: 10.1590/S1413-23112012000100003
861
Roelen, C. A. M., Koopmans, P. C., Notenbomer, A., & Groothoff, J. W. (2008). Job
satisfaction and sickness absence: a questionnaire survey. Occupational
Medicine, 58(8), 567-571. doi: 10.1093/occmed/kqn113
Satuf, C. V. V., Monteiro, S. J. F., Pereira, H., Esgalhado, G., Afonso, R. M., & Loureiro,
M. (2018). A influência da satisfação laboral no bem-estar subjetivo: Uma
perspectiva geracional. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 34, e3451. doi:
10.1590/0102.3772e3451
Silva, R., & Helal, D. (2019). Ageismo nas organizações: questões para debate.
Revista de Administração IMED, 9(1), 187-197. doi: 10.18256/2237-
7956.2019.v9i1.3167
Vitória, A., Rego, A., & Boas, M. V. (2016). Atitudes perante os trabalhadores mais
velhos: A perspectiva dos estudantes universitários. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, 32(2), e322210. doi:10.1590/0102-3772e322210.
862
80- PERFIL E QUEIXAS DO PACIENTE ADOLESCENTE DE UM SERVIÇO DE
PSICOLOGIA EM UM AMBULATÓRIO-ESCOLA
Resumo: Este trabalho teve por objetivo identificar o perfil demográfico e principais
problemas de comportamento dos adolescentes atendidos em psicoterapia individual
de um ambulatório-escola multiprofissional especializado em adolescentes na cidade
de São Paulo. Método: Trata-se de um levantamento descritivo documental, composto
por 85 prontuários. Resultados: Havia mais adolescentes do sexo feminino, na faixa
etária dos 13 aos 15 anos. A maioria dos pacientes encontrava-se na série escolar
adequada para sua idade, embora a queixa mais frequente tenha sido dificuldades
escolares. Observou-se que muitos dos problemas citados nos prontuários eram
decorrentes de baixo repertório de comportamentos socialmente habilidosos,
incluindo conflitos familiares. Questões médicas e de violência também foram citadas
como motivos para busca de atendimento psicológico. Considerações finais: Este
estudo permitiu o aperfeiçoamento ético e técnico dos profissionais e seus resultados
orientaram a adoção de diversas medidas para melhorar a qualidade dos registros
nos prontuários.
Introdução
A prevalência de doença mental e de sofrimento psicológico é maior do que a
disponibilidade de serviços de atenção primária. Entretanto, a procura por
atendimento psicológico ainda é menor que a necessidade da população (THE
ESEMED/MHEDEA 2000 INVESTIGATORS et al., 2004). Os serviços-escola têm um
importante papel social e político, na sua tríplice função de ensino, pesquisa e
extensão (MARTURANO; SILVARES; OLIVEIRA, 2014); ao mesmo tempo em que
fornece a possibilidade de treinamento de alunos e profissionais em formação, é um
local de atendimento gratuito ou a baixo custo à população (AMARAL et al., 2012) e
possibilita a pesquisa e o desenvolvimento do conhecimento psicológico.
863
Como colocam Borges, Glidden, Bisewski, Corrêa e Tomaselli (2018), o
desconhecimento a respeito da demanda da clientela e seu perfil pode dificultar o
aperfeiçoamento do serviço prestado. Portanto, conhecer a clientela a que este
serviço-escola se destina é um dos passos para desenvolver meios que possam
ampliar o atendimento e manter a qualidade do serviço realizado, adequando-os ao
momento histórico e às características do local e da clientela (AMARAL et al., 2012).
Schoen-Ferreira, Silva, Farias e Silvares (2002), ao traçar o perfil
sociodemográfico e identificar as principais queixas apresentadas por adolescentes
encaminhados para psicoterapia individual em um ambulatório-escola, observaram
que no referido serviço foram atendidos, no período de 1997 a 2000, 61 adolescentes,
sendo a maioria (33) do sexo masculino. A faixa etária com mais adolescentes (27) foi
a adolescência média, dos 13 aos 15 anos, seguida da adolescência inicial (10 a 12
anos [com 19 adolescentes]). Importante anotar que 24 adolescentes tinham sido
retidos na série escolar por pelo menos uma vez, destes, 18 por duas ou mais vezes.
As autoras também ressaltam que em alguns prontuários havia dados faltantes. Em
relação às queixas, a com maior prevalência foi ‘problemas com a escolarização’,
presente em 28 prontuários de pacientes. A segunda queixa na ordem de prevalência
foi ‘desobediência em casa’, seguida de ‘desobediência na escola’. Outras queixas
registradas foram enurese noturna, agitação motora e obesidade.
Este trabalho tem por objetivo identificar o perfil dos adolescentes (idade,
sexo, escolaridade e problemas comportamentais que os próprios adolescentes que
dizem ter), atendidos em primeira consulta em um serviço de atendimento psicológico
de um ambulatório-escola especializado em adolescentes na cidade de São Paulo.
Método
Trata-se de um levantamento feito por meio de análise descritiva documental,
de abordagem quantitativa. Esta pesquisa tem aprovação do Comitê de Ética em
Pesquisa da Unifesp (CAAE nº 16183819.4.00005505).
864
O Serviço
O Centro de Atendimento e Apoio ao Adolescente – CAAA –, criado em 1993,
como setor da Disciplina de Especialidades Pediátricas do Departamento de Pediatria
da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (Unifesp), tem a
finalidade de promover, integrar, apoiar e incentivar o cuidado à saúde do
adolescente. Suas atividades seguem os objetivos da universidade dentro do tripé
ensino-pesquisa-assistência. Abrangem os cursos de graduação (atualmente apenas
medicina), especialização (para formados nas áreas de saúde ou educação),
mestrado, doutorado e pós-doutorado, oferecendo base teórico-prática para a
formação de novos profissionais, de diferentes áreas, incluindo psicólogos que se
inscrevem no programa de especialização em adolescência.
865
Somáticas, Problemas de Sociabilidade, Problemas com o Pensamento, Problemas
de Atenção, Violação de Regras e Comportamento Agressivo). O agrupamento das
três primeiras síndromes forma a Escala de Internalização; e o agrupamento das duas
últimas forma a Escala de Externalização. A Escala Total de Problemas de
Comportamento é composta pelo somatório de todos os itens.
Procedimento: Foi realizada uma busca ativa dos prontuários dos pacientes
que foram atendidos por psicólogos que realizavam psicoterapia individual no CAAA.
Em sua maioria, os profissionais eram especializandos do curso Adolescência para
Equipe Multidisciplinar, ou seja, psicólogos já formados. Alguns já haviam terminado
sua especialização e estavam fazendo Atualização Profissional. Os dados coletados
(idade, sexo, escolaridade e queixa inicial) foram lançados em planilha Excel. No caso
de dados ausentes, quando possível, o psicólogo responsável pelo atendimento foi
contatado para sanar dúvidas. Os resultados do YSR foram importados do programa
específico e incorporados à planilha Excel. Conforme orientação do manual do YSR
(ACHENBACH; RESCORLA, 2001), os indivíduos podem ser considerados não-
clínicos (menos problemas de comportamento), limítrofes ou clínicos (mais problemas
de comportamento), sendo que, estas duas últimas indicam a presença significante
de problemas.
Os dados quantitativos foram descritos por meio de médias ou frequências.
Resultados e Discussão
O objetivo deste trabalho foi identificar o perfil dos adolescentes atendidos em
primeira consulta em um serviço de atendimento psicológico de um ambulatório-
escola especializado em adolescentes na cidade de São Paulo. Como limitação,
indica-se que foram analisadas exclusivamente as fichas dos atendimentos pelos
profissionais que atendem de forma individual. Não foram incluídos os atendimentos
psicoterápicos em grupo ou grupos de prevenção ou de orientação.
A principal dificuldade encontrada foi que alguns prontuários não continham
todos os dados utilizados neste estudo. Isto não quer dizer que o profissional não
tenha perguntado, somente não está anotado. Este é um problema comum nos
trabalhos envolvendo análise documental (BONADIMAN et al., 2015; FERREIRA;
TEIXEIRA, 2017; MARAVIESKI; SERRALTA, 2011; SCHOEN-FERREIRA et al.,
2002; VIOL; FERRAZA, 2015). O preenchimento correto dos prontuários deve ser
866
assunto discutido nos cursos de graduação e enfatizado nos de pós-graduação, como
as especializações. Nos locais de trabalho parece ser importante que haja uma
supervisão dos prontuários. Segundo a Resolução nº 001/2009, do Conselho Federal
de Psicologia - CFP, o registro documental é importante tanto para o psicólogo, quanto
para o paciente e para a instituição e deve conter, entre outras questões, a
identificação do usuário e a avaliação da demanda. Importante deixar anotado que
alguns prontuários não estavam no arquivo, conforme prescreve a respectiva
resolução. Alguns especializandos têm o costume de levar os prontuários consigo
quando saem do ambulatório. Este trabalho foi uma oportunidade ímpar para se
trabalhar com todos os profissionais que atendem neste setor questões éticas
envolvidas no atendimento a pacientes, em específico, a Resolução nº 001/2009, do
CFP.
O YSR foi preenchido por 72 dos 85 adolescentes. Três estavam fora da faixa
etária do instrumento (tinham 10 ou 19 anos), cinco tinham Deficiência Intelectual, o
que dificultava o entendimento das questões (por esta razão, provavelmente, o
profissional optou por não aplicar o instrumento). Em relação a ausência do YSR nos
outros cinco prontuários pode ser que o profissional tenha aplicado mas esquecido de
anexar o instrumento no prontuário (ferindo a Resolução nº 001/2009 do CFP) ou não
aplicou por ser contra a utilização de instrumentos psicométricos padronizados. Ao
serem entrevistados para ingresso no curso de especialização, todos os profissionais
dizem que fariam o psicodiagnóstico com instrumentos padronizados, seguindo o
protocolo do setor. Entretanto, na prática, durante o desenrolar do curso, os
profissionais que não concordam, deixam de utilizar os instrumentos e não notificam
os docentes. Desta forma, seguindo o tripé da universidade, embora a assistência ao
paciente esteja preservada, com boa qualidade, e o ensino esteja sendo realizado (o
especializando aprendeu sobre o instrumento), tal procedimento atrapalha a pesquisa,
com a ausência de dados para estudos. O atendimento foi útil ao paciente (e sua
família, escola...) e ao profissional, mas não à sociedade como um todo, pois não
colaborou para o acúmulo de conhecimento científico, nem o avanço da psicologia
como ciência.
Posto os problemas encontrados para realização do estudo, passamos a
apresentar o perfil do paciente. Os dados demográficos dos adolescentes atendidos
em psicoterapia individual podem ser observados na Tabela 1.
867
Tabela 1: Distribuição dos pacientes por ano de atendimento e faixa
etária, por sexo
Ano fem Masc total
2015 7 7 14
2016 9 9 18
2017 20 11 31
2018 11 11 22
Faixa etária
Inicial (10, 11, 12 anos) 14 12 26
Média (13, 14, 15 anos) 20 20 40
Final (16, 17, 18 e 19 anos) 12 6 16
Sem idade 01 01
Total 47 38 85
868
e do Adolescente (NUCCI, 2014), que considera adolescência a partir dos 12 anos,
de forma que indivíduos com 10 ou 11 anos estejam sendo atendidos em ambulatórios
para crianças. Vale ressaltar que a faixa com menos pacientes foi a da adolescência
final (16, 17, 18 e 19 anos). Com certeza não é por falta de demanda, mas às inúmeras
atividades que jovens estão envolvidos, inclusive o fato de a escola atualmente ser de
período integral, e o ambulatório-escola estudado atende apenas no período diurno,
das 8 às 16 horas. Portanto, o horário do funcionamento do setor pode ser um entrave
para o atendimento de jovens. Talvez outros serviços-escola, que tenham
atendimento noturno ou aos sábados, não enfrentem esta dificuldade.
Em relação à escolaridade, 12 adolescentes cursavam o Ensino Fundamental
I; 46 o Ensino Fundamental II; 22 o Ensino Médio; dois haviam completado o Ensino
Básico; dois não frequentavam a escola e um adolescente não tinha essa informação
no prontuário. Comparando estes dados com o do trabalho anterior (SCHOEN-
FERREIRA et al., 2002), observa-se um pouco menos de adolescentes cursando o
Ensino Fundamental, um pouco mais cursando o ensino Médio. Em termos bruto, a
mesma quantidade (2) de adolescentes fora da escola. No estudo atual há a anotação
de pacientes que já terminaram a Escola Básica. Analisando esses dados, parece que
houve um avanço na escolaridade dos pacientes. Em relação à defasagem escolar
(foram considerados defasados a criança ou adolescente que tivesse dois ou mais
anos de atraso em relação à idade prevista para cursar a série), 18 adolescentes
encontravam-se defasados em relação à escolaridade, ou seja, cursando séries mais
baixas para a sua idade. Este dado corrobora o principal motivo de procura para
atendimento psicológico, qual seja, dificuldades escolares.
A queixa mais frequente (36 adolescentes) foi dificuldades escolares,
semelhante ao trabalho de Schoen-Ferreira et al. (2002). Pode ser que esta não tenha
sido a motivadora da procura por atendimento, mas, na anamnese, foi identificada
como uma queixa importante. Alguns adolescentes que apresentavam problemas com
a escolarização tinham Deficiência Intelectual (já conhecida ou diagnosticada no
processo de avaliação psicológica), Anemia Falciforme ou Déficit de Atenção e
Hiperatividade. Associadas à dificuldade escolar, também apareceram problemas
com a socialização, timidez, dificuldades em seguir regras, dificuldades com a fala e
problemas de comportamento. Ou seja, múltiplas queixas, necessitando o
adolescente e sua família de acompanhamento e apoio. Problemas com a
escolarização segue sendo o principal motivo de atendimento psicológico na faixa
869
pediátrica, sendo que, na adolescência, questões derivadas da dificuldade de
aprendizagem (como seguir regras, socialização...) tornam-se muito evidentes e
preocupantes.
Conflitos familiares, especialmente com a mãe, estiveram anotados em oito
prontuários. Com certeza, se fosse lido os atendimentos posteriores, seriam
encontrados mais adolescentes ou responsáveis reclamando de dificuldade no
convívio familiar. Embora o ingresso na adolescência exija que o indivíduo se defronte
com exigências adaptativas de diferentes naturezas, levando a momentos de
desajuste, confusão e conflitos, observa-se que o aumento de conflitos familiares
nesta fase deve-se mais a poucas habilidades sociais, tanto por parte dos filhos
quanto por parte dos responsáveis. Uma delas é a dificuldade para resolução de
problemas, de forma calma e racional. Alguns adultos esperam que seus filhos sejam
obedientes, sigam as regras impostas pelos pais, não dando oportunidade para os
adolescentes discutirem e até proporem novas formas de ser e estar na família e no
mundo. Ao mesmo tempo, muitos adolescentes recusam-se a assumir algumas
responsabilidades na família (arrumar o quarto, lavar a louça, dividir as tarefas
domésticas) ou como estudantes (fazer a lição de casa, estudar para a prova),
precisando os pais desgastarem-se cobrando comportamentos que já deveriam estar
instalados, inclusive seguir as orientações dos profissionais de saúde. Cinco pacientes
tinham anotações no seu prontuário no sentido de dificuldade de adesão ao
tratamento nutricional ou médico.
Outra questão que motivou a procura por atendimento psicológico, podendo
ou não estar associada à dificuldade de aprendizagem ou a conflitos familiares, foi
ansiedade, anotado em oito prontuários. Timidez foi anotado em seis prontuários.
Também houve casos de encoprese, tricotilomania, abuso sexual, fobias, estresse
pós-traumático, cansaço excessivo e agressividade, entre outros. Observa-se que
algumas dessas queixas já estavam presentes na infância. Na adolescência, quando
se espera um comportamento um pouco mais maduro por parte do adolescente, a
assunção de responsabilidades, o desenvolvimento do autocontrole ou mesmo uma
maior autonomia, os problemas tornam-se mais preocupantes e com consequências
fora do ambiente familiar.
Quatro pacientes, todas do sexo feminino, estavam em atendimento
psicológico por Autolesão Não Suicida (cutting). Entretanto, 14 adolescentes
anotaram de forma positiva o item 18 do YSR (machuco-me de propósito ou já tentei
870
me matar). Este comportamento parece estar ocorrendo com mais frequência
atualmente, não tendo aparecido no trabalho anterior realizado neste setor (SCHOEN-
FERREIRA et al., 2002).
Em relação ao Youth Self Report – YSR (ACHENBACH; RESCORLA, 2001),
foi observado que as adolescentes do sexo feminino apresentaram escores mais altos
que os adolescentes masculinos, em relação aos problemas de comportamento, em
todas as escalas e subescalas (Tabela 2). Os adolescentes mais novos informaram
mais problemas de comportamento que adolescentes mais velhos em quase todas as
subescalas.
Tabela 2: Média dos T escores nas escalas e subescalas do Youth Self Report, por
sexo e faixa etária, dos pacientes em atendimento psicoterápico
sexo faixa etária
fem masc inicial média final total
Ans depre 61,60 57,41 61,95 58,78 59,94 59,92
Isol depre 60,14 55,17 58,9 57,19 59,31 58,14
Prob somáti 57,28 54,45 57,2 55,69 55,81 56,14
Prob contato social 59,65 56,17 61,4 57,31 56,44 58,25
Prob pensamento 59,44 55,76 57,6 57,69 59,00 57,96
Prob atenção 57,02 56,93 57,85 56,81 56,31 56,99
Quebrar regras 54,42 51,79 52,7 53,25 54,44 53,36
Agressividade 57,47 53,97 55,95 57,36 53,25 56,05
Internalizante 62,60* 55,34 61,7* 58,11 60,69* 56,68
Externalizante 53,07 48,10 51,2 51,78 49,31 51,07
Total de problemas 59,42 53,59 58,55 56,55 56,37 57,07
* Média no intervalo da categoria limítrofe
871
para mim mesmo [56 adolescentes]), 112 (preocupo-me muito [56 adolescentes]), e
75 (sou tímido [55 adolescentes]). Estes itens vão ao encontro das queixas
apresentadas na primeira consulta com o psicólogo.
Considerações finais
A oferta de atendimento psicológica, proporcionada pelos serviços-escola, e,
como neste caso, em um ambulatório multiprofissional, é de extrema importância para
auxiliar o adolescente a se desenvolver de forma saudável. Estudos sobre
adolescência proporciona aos adolescentes, sua família e demais contextos de
convivência, e aos profissionais que atuam com esta faixa etária, conhecimento
importante sobre o desenvolvimento humano.
Os locais de atendimento ao adolescente devem se esforçar para serem
serviços amigáveis aos jovens e a suas famílias. Os cuidados primários precisam ser
de alta qualidade, e estudos como este, do perfil da clientela, favorecem a construção
do conhecimento sobre adolescência, e por conseguinte, o desenvolvimento de
serviços amigáveis, de alta qualidade.
Referências
ACHENBACH, T. M.; RESCORLA, L. A. Manual for the ASEBA School, Age forms
& profiles. Burlington, VT: University of Vermont, Research Center for Children,
Youth & Families, 2001.
872
81- PROJETO DE VIDA DE ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA
INTRODUÇÃO
873
impacto compromete a saúde mental desses jovens e os estimula a recorrer a
prostituição, ao uso de drogas, aos atos infracionais, etc. (Aberastury & Knobel, 1981).
874
MÉTODO
Esta é uma pesquisa bibliográfica que segundo Gil (2002) “é desenvolvida com
base em material já elaborado, constituído principalmente através de livros e artigos
científicos”. Esse estudo possui objetivo exploratório, pois possibilita uma investigação
apurada dos aspectos que envolvem o tema em questão além de ser descritiva de
levantamento, uma vez que busca descrever as características de determinada
população (GIL, 2002).
RESULTADOS
875
Tabela 1 – Descritivo de artigos para levantamento de dados
Artigo Título Referências Instrumentos de Participantes
Pesquisa
Perfil de adolescentes em LUDKE NARDI, Fernanda; Ficha de dados e questionário 143 adolescentes em
privação de liberdade: MACHADO JAHN, Guilherme; com 47 questões objetivas sobre cumprimento de MSE em meio
eventos estressores, uso de DALBOSCO DELL'AGLIO, fatores de risco e de proteção, fechado no Rio Grande do Sul.
drogas e expectativas de como educação, eventos Idades entre 14 e 20 anos. Sendo
Débora. Perfil de adolescentes em
futuro estressores, violência intra e 128 do sexo masculino e 15 do
privação de liberdade: eventos extrafamiliar, suicídio, uso de sexo feminino.
estressores, uso de drogas e drogas, expectativas do futuro,
expectativas de futuro. Psicol. etc.
1 rev. (Belo Horizonte), Belo
Horizonte , v. 20, n. 1, p. 116-137,
2014 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.p
hp?script=sci_arttext&pid=S1677-
11682014000100008&lng=pt&nrm
=iso>.
Entre trajetórias, desejos e Koerich, B. R. (2016). Entre Observações diárias registradas 10 jovens em cumprimento de
(im)possibilidades: projetos trajetórias, desejos e em diário de campo e entrevistas. medida socioeducativa por
de futuro em jovens da (im)possibilidades: projetos de diferentes atos infracionais
socioeducação de meio
2 futuro em jovens da
aberto.
socioeducação de meio aberto.
Revista Contraponto, 3(2).
Projetos de vida de SIQUEIRA, Aline Cardoso; SEHN, Entrevistas semiestruturadas com 44 adolescentes do sexo
adolescentes em medida Amanda Schöffel; PORTA, eixos norteadores. masculino com idades entre 12 e
socioeducativa: fragilidades Daniele Dalla. Projetos de vida de 20 anos sendo 22 brasileiros e 22
e possibilidades. portugueses.
adolescentes em medida
3 socioeducativa: fragilidades e
possibilidades. Dissertação –
Universidade Federal do
Maranhão, Maranhão, 2015.
Projeto de vida de Silveira, K. S. S., Machado, J. C., Duas entrevistas individuais Cinco jovens do sexo masculino
adolescentes privados de Zappe, J. G., & Dias, A. C. G. guiadas com cada adolescente. que estavam privados de
liberdade: implicações para (2015). Projetos futuros de liberdade pela prática de ato(s)
o processo infracional(is)
adolescentes privados de
socioeducativo
4 liberdade: implicações para o
processo socioeducativo.
Psicologia: Teoria e Prática,
17(2), 52-63.
Sentidos da trajetória de GOMES, Clara Costa; 7 encontros em grupo (método 21 adolescentes dos quais 18
vida para adolescentes em CONCEICAO, Maria Inês sociodramático) cada dia com um eram do sexo masculino e três do
medida de liberdade Gandolfo. Sentidos da trajetória tema: 1) Apresentação da sexo
assistida pesquisa, da equipe e dos feminino. A idade variou entre 15
de vida para adolescentes em
adolescentes; 2) Contrato de e 20 anos.
medida de liberdade assistida. funcionamento do grupo e
Psicol. estud., Maringá , v. 19, levantamento de demandas; 3)
n. 1, p. 47-58, Mar. 2014 . Discussão sobre as demandas e
5 Disponível em: criação do personagem; 4)
<http://www.scielo.br/scielo.php?s Produção individual da história do
cript=sci_arttext&pid=S1413- personagem; 5) Integração das
histórias individuais e criação de
73722014000100007&lng=en&nr
uma história coletiva do
m=iso>. personagem; 6) Escrita da história
pessoal; e 7) Dramatização do
futuro da própria vida e discussão
sobre os projetos de vida.
876
Projetos de vida de COSCIONI, Vinicius; MARQUES, Entrevista e grupos focais de seis 25 adolescentes do gênero
adolescentes em medida Mauricio Pinto; ROSA, Edinete participantes. masculino em medida
socioeducativa de Maria; KOLLER, Silvia Helena. socioeducativa de internação
internação
Projetos de vida de adolescentes
em medida socioeducativa de
6 internação. Ciências Psicológicas,
v. 12, n. 1, 2018.
877
violência familiar que sofreu, estudo não ganhe prioridade dentro
homicídio de seu irmão. do projeto de vida.
DISCUSSÃO
Além dos norteadores dos projetos de vida, foi possível identificar nos estudos
a motivação que levou o adolescente a ingressar no mundo do crime, que na grande
878
maioria dos casos é encarado como uma forma de sobreviver a situação de
vulnerabilidade, desigualdade e exclusão social (LUDKE NARDI, et al., 2014) sendo
essa também motivação daqueles que tem como projeto de vida retomar a conduta
infratora (KOERICH, 2016).
CONCLUSÃO
879
estudado, portanto são necessárias mais pesquisas sobre o tema buscando leituras
em outros idiomas, por exemplo, a fim de se ampliar os conhecimentos sobre o tema,
publicados na literatura estrangeira.
REFERÊNCIAS
ABERASTURY, A., & Mauricio Knobel. (1981). Adolescência normal. Porto Alegre:
Artmed.
COSCIONI, V., KOLLER, S. H., MARQUES, M. P., & ROSA, E. M. (2018). Projetos de
vida de adolescentes em medida socioeducativa de internação. Ciencias
Psicológicas, vol. 12, núm. 1.
DIAS, A. C. G., MACHADO, J. C., SILVEIRA, K. S. S., & ZAPPE, J. G. (2015). Projetos
futuros de adolescentes privados de liberdade: implicações para o processo
socioeducativo. Psicol. teor. prat., São Paulo , v. 17, n. 2, p. 52-63.
880
82- A (IN)VISIBILIDADE SUBJETIVA QUE ASSOMBRA OS ENCARCERADOS DO
HOSPITAL DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO (HCT) DO ESTADO DA BAHIA:
PERCEPÇÕES DA PSICOLOGIA
Flaviany Silva46
Cláudia Vaz47
46
Discente do décimo semestre do curso de Psicologia da Universidade Salvador (UNIFACS).
E-mail: flavianyleonardo@yahoo.com.br
47
Psicóloga. Professora adjunta da Universidade Salvador do Mestrado em Direito, Governança e Políticas Públicas
(UNIFACS). Doutorado em Educação pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: claudiavaz@unifacs.br
881
Introdução
882
psicólogos e psiquiatras, em função da dificuldade em cumprir os prazos
estabelecidos para a emissão dos laudos de sanidade mental, e para a continuidade
do próprio tratamento.
Com isso, o objetivo do artigo é discutir, através do relato de experiência, a
importância do psicólogo forense no manejo da autopercepção de (in)visibilidade dos
encarcerados do HCT, de maneira a validar e explicar, através de uma abordagem
qualitativa, a seriedade do trabalho do profissional de psicologia, expondo como essa
atuação contribui para auxiliar as pessoas privadas de liberdade nesse processo. É
papel do psicólogo forense, auxiliar o sistema judiciário, além de contribuir, dentre
outras atribuições que serão relatadas no decorrer do artigo, com o tratamento, de
forma clínica, do portador de transtorno mental, trabalhar as angústias do processo
de privação de liberdade e do cuidado com os familiares.
O conceito de transtorno mental, segundo o DSM-V (2014), diz respeito a uma
síndrome que afeta significativamente a cognição, o controle emocional e o
comportamento do ser humano, refletindo em alterações psicológicas, biológicas ou
de desenvolvimento implícito a atividade mental.
Para Freud (2016, p.9) na construção da loucura:
883
intuito de preservar a sociedade dita “normal”, de tais doentes infratores, em que a
avaliação de periculosidade é realizada pelos psiquiatras.
884
curso de psicologia, no ano de 2019, permitindo assim, que se valide a hipótese
proposta.
A loucura
Faz-se importante salientar que tais lugares não eram exclusivos dos
portadores de transtornos mentais, e sim um local onde as pessoas que eram
excluídas ou consideradas criminosas, como loucos, prostitutas e doentes, dividiam o
mesmo espaço. Espaço esse sem o objetivo de medicalização, mas apenas
assistencial, “semijurídica”. (Lira, 2016)
885
Foi a partir do século XVIII que passaram a separar os loucos dos criminosos,
e assim a loucura começou a fazer parte do âmbito médico, porém não houve a
libertação dos loucos, e sim um aprisionamento ainda maior deles. De forma, que eles
eram acorrentados, trancados e tratados como bicho.
De acordo com o psiquiatra Philippe Pinel, para se conhecer a loucura faz-se
necessário a liberdade deles, no intuito de observar, descrever e classificar, atestando
ou não a patologia. Para tal, sugeriu a soltura dos loucos, dentro do local em que eram
mantidos presos, a fim da comprovação do seu método e de um tratamento mais
“humanizado”. (Foucault, 1997 como citado em Lira, 2019; Amarante, 1996 como
citado em Lira, 2019)
Segundo Foucault (2008) como citado em Povidello e Yasui (2013), a loucura
é algo produzido pelo próprio homem, advém de um saber médico, sendo esta
classificação o início de uma segregação da sociedade, onde de um lado ficam os
“normais” e do outro, de maneira excluída, os “loucos”, sob a alegação de que tal
separação é para a segurança da própria sociedade. E entender como funciona essa
estrutura de exclusão, o que está por baixo dessa operação, foi o objetivo de Foucault.
A loucura, até chegar o momento de ser compreendida como doença mental,
passou por diversos períodos históricos, tornando o significado constituído atualmente
pelo saber médico, e experiências da sociedade, um conceito diferente dos tempos
anteriores. Entretanto, Foucault (2006) não conceitua a loucura, pois o que realmente
importa é o que é compreendido, o significado dado a essa palavra, e o que as
diversas formas de se pensar podem alterar com relação a essa exclusão. Mas, para
isso se faz importante expor os mecanismos de eliminação que rodeiam em torno do
conceito médico e a própria loucura, enquanto estratégia que se operava sobre os
corpos.
A construção da loucura perpassa por diversas experiências vividas pela
humanidade no decorrer dos tempos, em que significados e condutas foram retiradas
e acrescentadas, a fim de adequação para o convívio considerado aceito por todos,
até se transformar no que se conhece por doença mental. Pois os loucos de outrora
eram aquelas pessoas que diziam a verdade, tidos como geniais e criativos, só que
de uma maneira exagerada, e válida pela sociedade, ou seja, ainda não excluídos.
No momento em que se misturam loucos, prostitutas, doentes etc., há a
vitimização, no sentido de exclusão, do corpo do louco, tal como os leprosos, na sua
época. De modo que passam a viver numa lógica a parte da sociedade, passando a
886
ser compreendido pela medicina, como doente, sendo atrelado a incapacidade de si
e a convivência com os outros.
“As pessoas têm medo de mim...Poucas pessoas aqui dentro e lá fora, pegam
na minha mão direito...eu me vejo como um bicho...” (F., 40 anos)
“Não é assim que trata uma pessoa...fale comigo direito que não sou bicho...”
dirigindo-se ao agente penitenciário (J., 30 anos)
887
Diante de tal invasão física, social e subjetiva, o encarcerado se perde na sua
própria existência e atrelado aos sentimentos de medo, angústia e desamparo, pois
sentem-se esquecidos pelos próprios familiares e excluídos pela sociedade, começam
questionamentos que os deixam vulneráveis diante de si mesmos e tirando o
significado do sentido de existir, trazendo a autopercepção de (in)visibilidade perante
a si e ao mundo.
888
acompanhamento extramuros; atuação nas relações institucionais; atuação em rede;
elaboração de projetos, pesquisas e produções e práticas acadêmicas; promoção de
eventos; recrutamento e seleção; atuação conjunta com a equipe de saúde;
coordenação da biblioteca (CREPOP, 2012).
Os cuidados que permeiam o tratamento dos doentes mentais, requer, nos dias
de hoje, a participação efetiva tanto da família, quanto da sociedade. Porém, o medo
e o preconceito que estão intrínsecos a este contexto, ocasionam o despreparo
criando muitos percalços para a ressocialização do encarcerado, após a saída do
HCT. E quando se fala em sociedade, inclui-se também, os profissionais envolvidos,
tanto dentro do Hospital de Custódia e Tratamento, quanto os profissionais dos
centros psicossociais.
Para Melman (2001), a sociedade atual não está preparada para o desafio de acolher
e cuidar das pessoas acometidas por transtorno mental grave. Ainda predomina a
visão preconceituosa em relação ao fenômeno da doença mental, o que continua
889
propiciando o processo de exclusão e de marginalização social e afetiva dessas
pessoas que necessitam de atenção psiquiátrica. (Maciel, S., Barros, D., Camino, L.,
Melo, J., 2011)
Autopercepção
890
si mesmos e por consequência sua identidade, enquanto seres humanos. Trazendo o
medo e a angústia como sentimentos predominantes e juntamente, diante de tal
invasão, uma autopercepção de (in)visibilidade perante a si e ao mundo.
Família
Considerações finais
891
e a possível existência de algum transtorno. Cabe ao profissional de Psicologia
questionar-se sobre a loucura: É a loucura que pertence a sociedade ou é a sociedade
que pertence a loucura? Constatou-se que é importante valorizar os fatores
ambientais, observar a vida da pessoa que cometeu o crime, as intervenções que
ocorreram e os aspectos biopsicossociais.
Referências
892
Barros-Brisset, F. O. Loucura, Direito e Sociedade Um Laço de Presunções
Ideologicamente Justificadas (2012) RDisan, São Paulo. v. 12, n. 3, p. 119-124.
Disponível em:
<file:///C:/Users/FLAVIANY%20LEONARDO/Documents/OneDrive/FLAVIANY/FLAVI
ANY%20FACUL%2010%20SEM/Estagio%20Esp%20III/Artigo/LOUCURA,%20DIRE
ITO%20E%20SOCIEDADE.pdf>.
Gil, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social (6ª ed.) (2008). São Paulo: Atlas.
893
Paulino, M.; Almeida, F. et al. Psicologia, justiça & ciências forenses: perspectivas
atuais (2014). Lisboa: PACTOR.
Santos, R. C.N. Cuidados Paliativos: Uma Perspectiva de Vida diante da Morte (2018).
Rev. Da Graduação em Psicologia da PUC de Minas. v.3, n.5. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/pretextos/article/view/15977/13035>
894
83- QUEM SÃO AS VÍTIMAS SEGUNDO OS RELATÓRIOS SOBRE VIOLÊNCIA?
Thais Teixeira
Maria Carolina Rissoni Andery
Maria Helena Pereira Franco
Introdução
895
destacando o perfil de vítimas composto por jovens do sexo masculino, negros e
moradores de periferias, com baixo poder econômico e com baixa escolaridade.
Numa apresentação inicial dos assuntos abordados nos três últimos Atlas da
Violência (Cerqueira, et al., 2017, 2018 e 2019), com base nas informações fornecidas
nos sumários destes relatórios, apontamos que todos apresentam a questão dos
homicídios nas unidades federativas, por região - como representado no Gráfico 1
(Cerqueira et al., 2019) - homicídio dos jovens nomeado como juventude perdida,
violência contra negros e contra a mulher, armas de fogo e em relação às mortes
violentas indeterminadas e a qualidade dos dados. Os atlas de 2017 e 2018
apresentam um estudo evolutivo dos homicídios no Brasil e dados sobre ações
policiais, sejam a forma violenta com que elas são impostas e sua letalidade. Os atlas
de 2018 e 2019 divulgam o estudo sobre segurança pública. O atlas de 2018 amplia
a discussão dos dados sobre a evolução de homicídios no mundo e nos continentes
e nos países além de apresentar os objetivos de um desenvolvimento sustentável. Por
sua vez, o de 2019 veicula informação sobre a conjuntura da violência letal no brasil
e sobre violência contra a população LGBTI+.
896
Os números apresentados promovem uma reflexão acerca do problema de
segurança pública e desenvolvimento, citados pelos autores, e sobre a diferença racial
existente no país. Esse percurso teórico é consolidado junto ao Mapa da
Desigualdade (2015-2016, 2017) e aos Índices de Vulnerabilidade Juvenil à Violência
e Desigualdade Racial (2015, 2017), que têm como objetivo gerar material com a
intenção de formulação e implementação de políticas públicas considerando o
enfrentamento dos altos números de violência contra adolescentes e jovens entre 12
e 29 anos (os três Atlas da Violência indicam os jovens entre 15 a 29 anos) e
estratégias de prevenção; e em seus dados discutem o risco relativo em relação a
análise racial entre negros (negros e pardos) e brancos (brancos e amarelos) e
variáveis socioeconômicas.
Nesse sentido o Índice da Desigualdade de 2015 (p. 23), expressa que “o
panorama nacional apresenta uma taxa de homicídio entre jovens negros 155% maior
do que a de jovens brancos” o que mostra a seletividade da violência e a necessidade
de implementação de políticas públicas focalizadas para este grupo de risco. São
Paulo está abaixo dessa média nacional e apresenta a menor taxa da região sudeste
de homicídio de jovens negros; mesmo assim ao olharmos para os números é de
49,1% a diferença entre homicídios de jovens negros para jovens brancos. E o
Relatório Anual de 2015-2016 (Mapa da Desigualdade) da Rede Nossa São Paulo
demonstra que há diferença de 25 anos na expectativa de vida de moradores dos
bairros Cidade Tiradentes e Alto de Pinheiros na cidade de São Paulo. Ou seja, os
dados demonstram fenômenos socioeconômicos e demográficos com forte correlação
entre vulnerabilidade dos jovens à violência e diferenças regionais. Fatores que
devem ser enfrentados a partir de políticas de prevenção e integração das áreas
correspondentes (saúde, educação, habitação) e União, Estado e municípios.
Cabe ressaltar que a análise deste artigo é realizada sobre dados de fontes
secundárias, os relatórios do Atlas da Violência e Índice de Vulnerabilidade, com o
intuito de destacar a notoriedade e influência destas pesquisas que são usados como
referências materiais para embasar outros estudos, desenvolvimento de diretrizes de
políticas públicas e medidas de segurança pública.
Portanto, serão apresentados os dados, compilados pelo ano base, dos três
Atlas da Violência para que possamos discutir com os dados presentes nos Atlas da
Violências, Índice de Vulnerabilidade Juvenil e Desigualdade Racial e a forma como
897
os relatórios compreendem e apresentam as vítimas, definem um perfil e discutem
sobre saúde e segurança pública.
Homicídios de negros 71% das negros 71,5% das negros 75,5% das
pessoas negras pessoas pessoas que são pessoas
assassinadas assassinadas assassinadas
Nesta tabela, são apresentados os dados sobre homicídio por ser a maior
causa de morte apresentadas pelos autores. Percebe-se a relevância desta análise
devido o aumento dos índices de homicídio de jovens negros à nível nacional.
Cerqueira et al. (2019) apresentam um aumento de 33,1% na taxa de homicídios de
negros, descrevendo uma piora na letalidade racial no Brasil e exemplificando o
possível problema de desenvolvimento econômico, social e de saúde. Os autores
(Cerqueira et al., 2017, 2018, 2019; Brasil, 2014, 2017) discutem o fato por serem os
jovens as principais vítimas e por estar em curso uma transição demográfica com o
envelhecimento da população - discussão presente socialmente quando falamos da
previdência, por exemplo. Isto demonstra que a importância de tal discussão está para
além desses dados.
A alta letalidade de jovens gera fortes implicações, inclusive sobre o
desenvolvimento econômico e social. De fato, a falta de oportunidades, que
levava 23% dos jovens no país a não estarem estudando nem trabalhando em
2017, aliada à mortalidade precoce da juventude em consequência da
violência, impõem severas consequências sobre o futuro da nação (Cerqueira
et al., 2019, p. 6).
898
Além do problema relacionado ao número de morte dos jovens, há outro fator
de extrema importância, o número de pessoas negras que são assassinadas. Como
podemos ver na tabela, o número de negros que são assassinados é grande,
demonstra a vulnerabilidade dessa parcela da população em comparação com não
negros e alertam para o racismo presente na sociedade, definindo um perfil em
relação a quem mais morre. Isto concorda com o Índice de Vulnerabilidade Juvenil e
Desigualdade Racial (2015), que demonstrou a relação entre a cor da pele e o risco
de exposição à violência e sua observação sobre a agenda de inclusão social e um
novo modelo de desenvolvimento brasileiro: “deve ser o da redução das
desigualdades raciais, até como instrumento de prevenção das absurdas taxas de
mortes violentas no país”. (Brasil, 2015, p. 40).
Em relação ao gênero das vítimas, os Atlas de 2017, 2018 e 2019 e o Índice de
Vulnerabilidade Juvenil e Desigualdade Racial de 2014 demonstram que o maior
número de homicídios é dos homens. Já o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à
Violência e Desigualdade Racial de 2017, demonstra que a taxa de homicídio é maior
entre as mulheres negras, deixando fora dessa estatística somente o Paraná; outra
mudança apresentada neste material é o ajuste relacionado à faixa etária, nesta
edição os jovens são considerados entre 15 e 29 anos, assim como nos Atlas da
Violência.
Há mais um fator importante a ser investigado e está relacionado à qualidade
dos dados, sendo uma temática abordada nos três Atlas (2017, 2018, 2019).
Compreende-se que, conforme mais apurada é a qualidade dos dados, mais se
alcança a realidade dos fatos e legitima o discurso. Por exemplo, diante de um
homicídio seguido de ocultamento de cadáver, pode-se se tratar de um caso de
inscrição na lista de desaparecidos, sem que a família saiba a veracidade dos fatos.
Carneiro e Gennari (2019) destacam que o direito fundamental da identidade pessoal
das vítimas de crime, propondo a utilização do banco de dados genéticos nacional, a
fim de identificar o corpo das vítimas além de retirá-las das listas de desaparecidos,
pois não seria a lista adequada para o caso. Deste modo, a subnotificação ou o
escamoteamento dos dados afasta a compreensão da realidade, podendo influenciar
na promoção e manutenção de políticas públicas para a redução de homicídios
juvenis, conforme indicam os dados dos relatórios supracitados.
Acerca do perfil das vítimas destacado, Feffermann (2013) identifica uma
perpetuação de ideologias racistas apartando-os como “classes perigosas”, que
899
resulta no genocídio da juventude negra cometido tanto pelo crime organizado
associado ao tráfico quanto pela força do Estado, concretizando a letalidade policial.
Ou seja, tem-se um perfil de quem mais morre no país e consequentemente um
problema de saúde pública e desenvolvimento social.
Em relação a São Paulo, há pequena diminuição na taxa de homicídio do
Estado desde os anos 90. No tocante aos anos base e números: em 2015 foram 5.427
homicídios, em 2016: 4.870 e em 2018: 4.631, segundo o Atlas de 2019 (p. 20) “a
diminuição registrada em 2017 (-5,6%) tem que ser vista com bastante cautela, uma
vez que a taxa de mortes violentas com causa indeterminada (MVCI) aumentou 13,4%
nesse último ano”. A isto, relaciona à qualidade da classificação dos dados.
Apesar dos números apresentados nos Atlas da Violência e Índice de
Vulnerabilidade Juvenil à Violência e desigualdade social de 2017 em que mostra que
apesar da taxa com menor disparidade, no Estado de São Paulo há 1,6 vezes mais
risco de jovens negros morrerem aos jovens brando, se observarmos somente a
cidade de São Paulo, temos, como foi exposto, há uma grande diferença em relação
a expectativa de vida na cidade. Situação que nos deixou com perguntas: as pessoas
que moram nas periferias de São Paulo, as quais a expectativa de vida é reduzida em
25 anos em relação às pessoas que moram em bairros nobres da capital paulista, têm
acesso à essa informação? Compreendem essa diferença? Em qual medida elas são
ouvidas para construção de materiais acadêmicos e de referência sobre o assunto?
Considerações Finais
900
acesso direto às pessoas mais vulneráveis - e, consequentemente, vítimas diretas e
indiretas desses crimes - seja para intervenção, seja para a pesquisa. Esta redução
dos índices é abordada por Cerqueira (IPEA, 2018), quando declara a necessidade
do trabalho conjunto entre agentes sociais e políticos para a diminuição dos
homicídios no Brasil, embasado na proposta da gestão política. O autor afirma,
também, que:
Referências
901
Secretaria Nacional de Juventude e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São
Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 87 p.
IPEA. [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada]. (2018). O que fazer para melhorar
a segurança no Brasil? [Arquivo de Vídeo do YouTube]. (3m26s). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Uq9kWontl1I>. Acesso em 31. Out. 19.
902
84- OFICINA PSICOSSOCIAL, MASCULINIDADES E SAÚDE MENTAL DE
HOMENS: RELATO DE EXPERIÊNCIA
Introdução
As Masculinidades e Feminilidades são, para a Psicologia Social da Saúde,
determinantes sociais nos processos de saúde e doença. Na compreensão de Buss e
Pellegrini Filho (2007), determinantes sociais dizem respeito a um conjunto de “fatores
sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que
influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população”
48
Psicólogo. Graduado pela Universidade Federal de Mato Grosso
49
Psicólogo. Mestrando em Psicologia pela FFCLRP - Universidade de São Paulo
50
Psicóloga. Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso
51
Psicóloga. Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso
903
(p 78). Assim, as formas como as masculinidades, como produtos da cultura, são
construídas social, cultural e historicamente, bem como a forma como são ensinadas
por meio de socialização influenciam em como os sujeitos agem, pensam, sentem,
expressam-se, e também como adoecem, sofrem e percebem o mundo ao seu redor.
As imposições das masculinidades, em especial a masculinidade hegemônica,
estabelecem-se à partir de práticas sociais, cobranças e atitudes que são iniciadas na
infância, concretizam-se na vida adulta e se prolongam até a velhice. Apontando sua
característica normativa, Connell e Messerschmidt (2013) conceituam a
masculinidade hegemônica como distinta das masculinidades subordinadas,
ressaltando que sua imposição se deu não só como expectativas de papéis sociais,
mas principalmente como um padrão de práticas, estabelecendo, desta forma, uma
hierarquia entre as masculinidades. Portanto, essas práticas sociais operam como
mecanismos reguladores para enquadrar os indivíduos no que se determina como
como sendo comportamentos de homens e de mulheres, e para estabelecer uma
hierarquia entre as próprias masculinidades.
Ao discorrer sobre as construções de masculinidades, Nascimento, Segundo e
Barker (2011) ressaltam a importância de considerar fatores sociais como raça/etnia,
classe, orientação sexual, geração na interpretação das masculinidades. Com tais
ideias, enfatizam que o olhar amplo para a temática ajuda a compreender a pluralidade
de ser homem, os diferentes perfis de masculinidades e considerar a existência de
diferentes construções. Tais ideias vão de encontro com o pensamento de Connell e
Messerschimidt (2013) quando apontam as reflexões de mulheres negras como
Angela Davis, bell hooks, sobre o perigo da centralização dos questionamentos
sexuais sem considerar fatores como raça, classe e outras categorias de análise.
Em sua pesquisa sobre suicídio de homens idosos, Minayo, Meneghel e
Cavalcante (2012, p. 2) apontam que o padrão de masculinidade hegemônica
“contribui para que eles sejam, ao mesmo tempo, vítimas e principais autores das
diferentes expressões de violência social e, principalmente, de autoviolência letal”. Tal
argumento corrobora com os dados divulgados pelo Ministério da Saúde (2019) que
apontam o aumento de suicídio entre homens de 10 a 29 anos, sobretudo das classes
mais baixas e negros, equivalente a uma proporção de seis a cada dez suicídios de
jovens no Brasil.
Ainda que se assuma a importância de identificar e compreender aspectos
sociais e culturais nos processos de adoecimento, há ainda uma escassez de
904
produções que aprofundem o adoecimento psíquico como decorrente de fatores
culturais, como o gênero. Windomöller e Zanello (2016) enfatizam que há uma
tendência de pesquisas voltadas à depressão masculina, cujo foco principal direciona-
se aos aspectos físicos e fisiológicos, sendo essas pesquisas majoritariamente
quantitativas, e que utilizam de testes psicométricos para a compreensão
epidemiológica. Contudo, há ainda a necessidade de se compreender as dinâmicas
das relações e pesquisas que priorizem as narrativas dos próprios homens.
Uma das formas de priorizar tais narrativas são as concepções de Miranda
Afonso (2011) sobre dinâmica de grupo, que compreendem os processos grupais à
partir da perspectiva de luta por autonomia, e defendem o uso de oficinas
psicossociais como instrumentos que possibilitem processos de mudança em diversos
contextos, gerando, assim, análises críticas das relações.
Objetivo
Apresentar oficina realizada pelo projeto de extensão “Coletivo de Saúde
Mental” que teve como objetivo propor o diálogo com homens sobre as influências do
machismo na produção de saúde mental e adoecimento psíquico dos homens.
Relato do Processo
A oficina, com duração total de quatro horas, teve como público-alvo membros
internos e externos da comunidade acadêmica e foi desenvolvida com vinte pessoas
do gênero masculino de variadas orientações sexuais, espectros de gênero
(cisgêneros e transgêneros), raças/etnias, idades, classes sociais e condições físicas.
O recrutamento dos participantes ocorreu através da divulgação por mídias sociais e
material impresso. Como critério de inclusão considerou-se a identificação com o
gênero masculino e serem maior de 18 anos.
O primeiro momento da oficina consistiu na exibição de um trecho do
documentário “A máscara em que você vive” (Newson, 2015), que problematiza as
construções culturais de ser homem em sociedade, apresentando consequências
psicológicas envolvidas aos comportamentos nocivos para ser reconhecido como
“homem”, e que teve como finalidade causar sensibilização aos participantes por meio
de histórias relatadas no documentário.
905
O segundo momento tratou de conduzir a uma roda de conversa pautada em
três eixos temáticos: 1) identificações com a problemática, 2) consequências do
machismo, e 3) construção de estratégias de enfrentamento.
O primeiro eixo pautou-se na compreensão da temática, reflexões sobre a
história de vida dos participantes e identificações com outras narrativas. Neste
momento os integrantes foram convidados a produzir relatos orais sobre a própria
experiência de vida, externalizando sentimentos e emoções - incluindo dificuldades
em relatá-las, e a questionar possíveis pressões externas e internas. A intenção deste
momento foi de impulsionar produções de sentido sobre experiências de vida e
estabelecer associações a outras narrativas.
O segundo eixo consistiu no debate sobre as consequências do machismo nas
vidas de homens e mulheres e na violência de gênero como um problema individual,
interpessoal e social, a fim de elucidar sequelas sociais decorrentes de
comportamentos pautados na violência. Inclui-se neste eixo debate sobre violência
contra a mulher, contra a população LGBT e violência autoinfligida.
O terceiro eixo, por fim, propôs construir estratégias de enfrentamento pessoais
e coletivas à problemática, considerando as demandas específicas e comuns do
grupo, nas esferas micro e macropolíticas.
Discussão
O primeiro eixo apresentou heterogeneidade nas narrativas dos participantes
relacionadas às experiências individuais e ao pertencimento a outros grupos, este
último que está associado a fatores como raça, classe e geração. Kimmel (1998)
considera as masculinidades como associações de significados em mudanças
constantes, portanto considerar a homogeneidade das narrativas das masculinidades
sem considerar suas diferentes dinâmicas reduz o escopo de análise .
Os relatos comuns envolviam a expressão de sentimentos como “amor” e
“medo”, explicados por Connell e Messerschimidt (2013) como efeitos das
masculinidades que colocam homens em situações de risco e fazem com que tenham
dificuldade de lidar com os próprios sentimentos. O desamparo social relacionado à
expressão desses sentimentos foi relatado como consequência dessa tentativa,
principalmente quando se referia a assuntos referentes a paternidade, relações
familiares, desemprego, educação dos filhos e obrigações conjugais.
906
Estes relatos vão de concordância com o que Connell e Messerschimidt (2013)
explanam sobre as masculinidades hegemônicas, quando dizem não serem
construídas para representar homens de fato, mas para serem usados como modelos
a serem seguidos. Assim, essa incessante busca pela “masculinidade ideal” invalida
e rejeita as experiências subjetivas, incluindo sentimentos e sensações.
O segundo eixo foi influenciado pelas narrativas e dinâmicas presentes no
primeiro eixo, em que as diferentes masculinidades se confrontaram e foram
colocadas em questão. Connell e Messerschimidt (2013) explicam que uma hierarquia
das masculinidades se desenvolveu principalmente com a violência sofrida pelos
homossexuais na década de 70. Tal hierarquia se mostrou presente nesse eixo
quando participantes homossexuais relataram violências sofridas por homens
heterossexuais em relação à sexualidade. Um dos participantes, homem trans, relatou
invalidação de sua identidade de gênero por homens cisgêneros das diferentes
sexualidades. Participantes negros, gordos e orientais relataram sentirem-se
inferiorizados por homens pertencentes à masculinidade hegemônica (brancos,
cisgêneros, heterossexuais).
Ainda sobre o segundo eixo, assuntos como depressão e suicídio foram
trazidos como problemas poucos discutidos e pensados, assim como a dificuldade e
pouco interesse em compreender a necessidade de ajuda profissional. Cristo (2012)
relata que o homem é visto socialmente como invulnerável nos aspectos físicos,
mentais e sociais e ressalta a existência da Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde do Homem que considera o homem como mais vulnerável à violência, uma vez
que ela é atrelada ao seu empoderamento. Dessa forma, as masculinidades se
estabelecem como formas de imposição de poder e despreza a possibilidade de
sofrimento mental dos homens.
O terceiro eixo trouxe a autorreflexão, a psicoterapia, e a continuidade e
expansão de grupos psicossociais como estratégias de enfrentamento às imposições
da masculinidade, corroborando com as ideias de Miranda Afonso (2011) sobre os
ganhos das dinâmicas de grupo em produzir sentidos e possibilitar escolhas dentro
do contexto social, e com Cristo (2012) no que se refere à importância de proporcionar
aos homens alternativas de se relacionar com o mundo e possibilidade de
ressignificações das experiências e das relações.
907
Considerações finais
Os relatos da oficina direcionaram a um entendimento envolvendo fatores como
raça, classe e orientação sexual nas dinâmicas das relações e possibilitaram observar
as construções de “ser homem” como heterogêneas e multifacetadas, tendo em vista
que o sujeito que passa a ser um homem cisgênero heterossexual, branco de classe
média é diferente de ser um homem cisgênero negro da periferia. Também é possível
a compreensão de que os homens não vivem em relações harmoniosas, e que as
masculinidades são permeadas por conflitos envolvendo poder e dominação.
A heterogeneidade das masculinidades, seus impactos na produção de saúde
e doença e os fatores sociais envolvidos na produção da violência, sobretudo contra
mulheres e LGBTs, são ainda campos emergentes para Psicologia, tanto no que se
refere a compreender os fatores psicossociais envolvidos no desenvolvimento, como
em conceituar teoricamente fatores envolvidos nos processos psíquicos.
Compreender tais fenômenos são necessários para desenvolver práticas em
psicologia que levem em consideração tais fenômenos, promovam autonomia dos
sujeitos e proporcionem mudanças sociais significativas.
Referências
Buss, P. M., & Pellegrini Filho, A. (2007). A saúde e seus determinantes sociais.
PHYSYS: Revista Saúde Coletiva, 17(1), 77-93.
908
Ministério da Saúde. Universidade de Brasília. Óbitos por suicídio entre
adolescentes e jovens negros de 2012 a 2016. Recuperado em 27 de outubro,
2019, de
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/obitos_suicidio_adolescentes_negro
s_2012_2016.pdf> Brasília. DF. 2018.
Nascimento, M., Segundo, M., & Barker, G. (2011). Reflexões sobre a saúde dos
homens jovens: uma articulação entre juventude, masculinidade e exclusão
social. In: Gomes, R. (Org.), Saúde do homem em debate [online] (pp. 111-128).
Rio de Janeiro: FIOCRUZ.
Newson, J. S. (2015). A máscara que você veste. Estados Unidos: Abigail Disney.
909
85- PESQUISANDO A ETIOLOGIA DO SOFRIMENTO PSÍQUICO PELA
ARTICULAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA.
1. Introdução.
910
de três bolsas de pesquisa se consolidou a partir de maio de 2019. Um primeiro
desenvolvimento do projeto – entre maio e setembro de 2019 - foi apresentado em
duas fases na Universidade Federal Fluminense e recebeu o prêmio de segundo lugar
na Agenda de Desenvolvimento Acadêmico, ocorrida na UFF em 2019.
Ele se insere na linha dos projetos de pesquisa encaminhados pelo Laboratório
de Investigação das Psicopatologias Contemporâneas (LAPSICON), desde o ano de
2011 aos Editais PIBIC/ CNPq/ UFF, FOPPIN e FAPERJ – todos contemplados com
bolsa de iniciação cientifica – garantindo a continuidade da pesquisa sobre sofrimento
psíquico contemporâneo iniciada em 2011 e, ao mesmo tempo, possibilitando aos
jovens ingressos no curso de psicologia da UFF (Campus de Volta Redonda), e que
ainda não estão vinculados a um grupo de pesquisa, a oportunidade de ter o primeiro
contato com a formação de pesquisadores na graduação e com pesquisadores do
Laboratório que estão no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ.
Entendemos que a articulação entre teoria e clínica psicanalítica, presente no
desenvolvimento deste projeto, permite problematizar e reconhecer a complexidade
psicopatológica dos quadros clínicos acolhidos e tratados no Serviço de Psicologia
Aplicada da UFF (SPA. UFF. Campus de Volta Redonda), bem como a formação mais
aprofundada para saber lidar com essas situações na ocasião do ingresso no estágio
curricular obrigatório do curso de psicologia desta instituição. No presente relato de
experiência, apresentaremos uma organização dos dados epidemiológicos em torno
dessas formas de sofrimento psíquico para ressaltar a necessidade de uma pesquisa
mais profunda sobre a etiologia, a causalidade psíquica, das seguintes formas de
sofrimento psíquico: recurso à droga, autolesão, depressão, ideação suicida e
Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Desde 2011, a pesquisa tem se dedicado a investigar a etiologia psíquica do
sofrimento psíquicos contemporâneo avançando na direção dos problemas clínicos
típicos da condução de tratamento de pacientes atendidos pela linha de estágio
curricular obrigatório do curso de graduação em Psicologia, em “Psicanálise e Saúde
Mental”: qual é a natureza desses transtornos? Que fatores psíquicos os determinam?
A articulação da pesquisa com a condução dos casos clínicos atendidos pela
linha de estágio, não evidência somente a dimensão mais local dos sofrimentos
psíquicos que são encaminhados para tratamento no SPA da UFF em Volta Redonda.
Antes, verifica o quanto essas formas de sofrimento psíquico se disseminam na
população brasileira e, mais especificamente, entre jovens. Neste sentido, a inserção
911
de graduandos na pesquisa desenvolvida pelo LAPSICON, por meio dos Editais
abertos pela UFF – e, em especial, pelo Edital PROAES – contribui diretamente no
desenvolvimento da pesquisa em psicopatologia e saúde mental conduzida pelo
LAPSICON, já reconhecido na comunidade científica por sua articulação com a
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF) e por
sua inserção no GT “Psicopatologia Psicanálise” da Associação Nacional de Pesquisa
e Ensino de Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP).
2. Relato da Experiência
912
Tabela 1
Principais de morte na adolescência em escala global, na faixa etária de 10-19
anos no ano de 2015.
Nota. Fonte: Adaptado de Organização Pan-Americana da Saúde (2018). Ação Global Acelerada para a Saúde de
Adolescentes (AA-HA!): guia de orientação para apoiar a Implementação pelos países. Washington, D.C.
Tabela 2.
Cinco causas principais de morte em adolescentes do gênero masculino, entre
10-19 anos, no ano de 2015.
Nota. Fonte: Adaptado de Organização Pan-Americana da Saúde (2018). Ação Global Acelerada para a Saúde de
Adolescentes (AA-HA!): guia de orientação para apoiar a Implementação pelos países. Washington, D.C.
Tabela 3.
Cinco causas principais de morte em adolescentes do gênero feminino, entre
10-19 anos, no ano de 2015.
Nota. Fonte: Adaptado de Organização Pan-Americana da Saúde (2018). Ação Global Acelerada para a Saúde de
Adolescentes (AA-HA!): guia de orientação para apoiar a Implementação pelos países. Washington, D.C.
913
Com relação ao Brasil, pode-se afirmar que a autolesão representa um
problema cuja amplitude ainda não está nítida no país. Mas, podemos localizar índices
inequívocos de sua presença. O Ministério da Saúde indica que, entre 2011 e 2018
ocorreram 339.730 casos de autolesão no país. Essa categoria inclui autoagressões,
automutilações e tentativas de suicídio. As ocorrências estão distribuídas na faixa
etária de 15 a 29 anos (cerca de 45% dos casos). Tomando como perspectiva a série
histórica, observamos um salto dos números: em 8 anos, os casos passaram de a
14.940, em 2011, para 95.061 em 2018.
A autolesão representa apenas um aspecto da gravidade e complexidade das
formas de sofrimento psíquico contemporâneas. Os brasileiros lideram o ranking de
ocorrência de ansiedade da Organização Mundial da Saúde (OMS) e ocupam o quinto
lugar entre os países com maior índice de casos diagnosticados como depressão.
Entre os anos de 2000 e 2012, a taxa de suicídio, no Brasil, subiu 10.4%.
Outros dados que ressaltam a gravidade das formas de sofrimento psíquico se
referem ao uso de drogas. O World Drug Report (2018) registrou que globalmente, as
mortes causadas pelo uso de drogas aumentaram em 60% em 15 anos. E, em 2017,
o transtorno por uso de substâncias chegou à marca de meio milhão de mortes no
mundo inteiro. Um outro dado, destacado pelo mesmo relatório, se refere a faixa etária
de risco para o desencadeamento do uso de drogas sugerindo que a adolescência
(12-17 anos) é o momento de risco crítico, podendo atingir o pico na juventude (entre
18 e 25 anos). Um outro dado importante se refere a ocorrência de uma tipologia do
uso de drogas entre os jovens: drogas de clubes na vida noturna e locais recreativos
entre os jovens afluentes; e uso de inalantes entre crianças em situação de rua para
lidar com suas circunstâncias difíceis. Tanto a localização da adolescência como fator
de risco, como o gênero e a tipologia do recurso à droga de acordo com o contexto,
evidenciam a complexidade das variáveis subjetivas e de contexto envolvidas na
investigação do tema.
Uma outra forma de sofrimento psíquico que vem sendo investigada, é o
Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ao longo de levantamentos realizados sobre o
tema no site científico Global Autism Prevalence, temos registrado a raridade de
pesquisas epidemiológicas conduzidas no Brasil sobre o tema. O site apresenta uma
linha do tempo da pesquisa na área e registra a ocorrência de pesquisas sobre o tema
desde o ano de 1966, com a primeira pesquisa realizada no Reino Unido. No entanto,
registra apenas uma (01) pesquisa brasileira sobre Transtorno do Espectro Autista: o
914
estudo piloto de Paula, Ribeiro, Fombonne & Mercadante (2011), realizado em Atibaia.
O IBGE, por exemplo, não tem um levantamento sobre Transtorno do Espectro Autista
e não há previsão para tal por razões técnicas (Paiva Junior, 2019), corroborando em
2019, a afirmação de Rodrigues Savall e Dias (2018) sobre a ausência de pesquisas
sobre a incidência do TEA no Brasil.
Um outro ponto importante, no domínio de investigação do TEA, se refere a
clássica confusão diagnóstica entre Transtorno do Espectro Autista e esquizofrenia –
seguindo a orientação da psiquiatria esquiroliana - e quadros de comorbidade entre
depressão maior e o próprio TEA – o que pode mascarar o quadro do transtorno e
inviabilizar seu diagnóstico adequado. Tomando como exemplo o próprio artigo
pioneiro de Kanner (1943) no tema, o autor já alertava para essa confusão diagnóstica
e suas consequências nefastas para a perspectiva e qualidade de vida dos pacientes:
“(…) diversas crianças de nosso grupo eram apontadas como idiotas ou imbecis,
sendo que uma delas ainda reside numa escola estadual para oligofrênicos e duas
foram previamente diagnosticadas como esquizofrênicas” (Kanner, 1943, p. 242).
A falta de critério e aprofundamento profissional baseado em metodologia clínica
faz com que o TEA, atualmente, seja objeto de disputa de saberes, submetido às
vicissitudes desses agentes. Laurent (2014) identifica a correlação entre o grande
aumento do diagnóstico de TEA nas últimas décadas e o recurso ao paradigma
diagnóstico comportamental e alerta para o fato de que abordagens excessivamente
superficiais e que observem mais a funcionalidade comportamental, além de serem
sentidas como invasivas à lógica autística, com frequência acabam recorrendo à uma
direção exclusivamente medicamentosa de tratamento com risco de medicalização.
No campo da anorexia, pudemos verificar uma situação análoga, no campo da
pesquisa diagnóstica. Por meio da análise e organização do levantamento conceitual
sobre o tema no campo da psicopatologia clássica e da psicanálise foi possível
problematizar a validade da classe de Transtorno Alimentar, definida na quinta edição
do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5) para
elucidação do quadro etiológico da anorexia. E conduzir uma pesquisa, em
psicanálise, sobre os determinantes psíquicos de seu desencadeamento.
A tabela 4, elaborada durante o desenvolvimento da pesquisa, sintetiza a
evolução do diagnóstico dos transtornos alimentares entre a terceira e quinta edição
do DSM na direção de uma amplificação dos grupos nosológicos e do recuo da
investigação etiológica.
915
Tabela 4.
Evolução na tipologia dos transtornos alimentares
916
características se referem ao funcionamento comportamental do paciente,
demonstram a gravidade e urgência clínica do quadro sem, no entanto, evidenciar
uma interrogação acerca de sua etiologia. Avançando no detalhamento das
características clínicas descritivas da anorexia, o DSM-5 (APA, 2014) distingue, ainda,
seus dois subtipos: o tipo “restritivo” e o tipo “compulsão alimentar purgativa”,
conforme estão sintetizados na tabela 5, também elaborada ao longo da pesquisa.
Tabela 5.
Critérios diagnósticos para anorexia nervosa no DSM-5.
Determinar o subtipo;
(F50.01) Tipo restritivo: Durante os últimos três meses, o indivíduo não se envolveu
em episódios recorrentes de compulsão alimentar ou comportamento purgativo (i.e., vômitos
autoinduzidos ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas). Esse subtipo descreve
apresentações nas quais a perda de peso seja conseguida essencialmente por meio de dieta,
jejum e/ou exercício excessivo.
(F50.01) Tipo compulsão alimentar purgativa: Nos últimos três meses, o indivíduo se
envolveu em episódios recorrentes de compulsão alimentar purgativa (i.e., vômitos
autoinduzidos ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas).
Especificar se:
917
O nível mínimo de gravidade baseia-se, em adultos, no índice de massa corporal (IMC)
atual (ver a seguir) ou, para crianças e adolescentes, no percentil do IMC. Os intervalos abaixo
são derivados das categorias da Organização Mundial da Saúde para baixo peso em adultos;
para crianças e adolescentes, os percentis do IMC correspondentes devem ser usados. O
nível de gravidade pode ser aumentado de maneira a refletir sintomas clínicos, o grau de
incapacidade funcional e a necessidade de supervisão.
Nota. Fonte: Adaptado de “Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais – 5a Edição”, de American
Psychiatry Association, 2014.
Da mesma forma, a leitura dos critérios diagnósticos para a anorexia deixa claro
que o DSM-5 não avança a descrição da fenomenologia clínica apresentada na
direção de sua etiologia, deslocando-se rapidamente para a identificação
comportamental dos seus subtipos e especificações. De fato, o medo intenso de
ganhar peso, com ocorrência de restrição da ingesta calórica em relação às
necessidades - mesmo com peso já inferior ao peso mínimo normal - e a perturbação
no modo como o próprio peso ou a forma corporal são vivenciados, indicam à irrupção
de uma perturbação na relação entre o indivíduo e a experiência de seu corpo. E que
apenas é indicada sem que haja, por exemplo, uma interrogação referente à etiologia
psíquica dessa perturbação para além da descrição de sua fenomenologia observável.
O divórcio com a pesquisa etiológica em psicopatologia é, portanto, inseparável da
ascensão de uma concepção ateórica cujo resultado é a inflação diagnóstica, já
mencionada anteriormente.
O estudo de Alckmin-Carvalho, Santos, Rafihi-Ferreira e Soares (2016)
corrobora com esse ponto, ao levantar que tratamentos ambulatoriais e unidades de
internação apresentam índices desanimadores de aderência ao tratamento e
recuperação da anorexia a ponto de constatarem que, para esses casos, a recaída e
a demanda de novo tratamento parecem ser mais a regra do que exceção. Os autores
citam dois estudos longitudinais com pacientes que deram entrada em uma unidade
de internação com diagnóstico de anorexia. O primeiro estudo longitudinal citado por
918
Alckmin-Carvalho, Santos, Rafihi-Ferreira & Soares (2016) foi conduzido nos anos de
1970 e acompanhou, durante 41 anos, pacientes com diagnóstico de anorexia; o
estudo registrou um percentual de 5% de óbitos, 39% de recuperação completa e 66%
de recaída e nova demanda de tratamento. O segundo estudo longitudinal
acompanhou, durante noventa meses, uma amostra de 243 mulheres com anorexia e
observou que apenas 33% das participantes se recuperaram completamente, com
percentual de recaída de um terço após o tratamento.
Na direção contrária da perspectiva ateórica do DSM, dois estudos de Recalcati
(1997, 2011), seguindo o marco teórico da psicanálise, já exploravam a relação entre
os sintomas clínicos da anorexia e os processos psíquicos em jogo em sua formação
verificando, assim, a necessidade de elucidar tais sintomas à luz dos processos de
recalcamento e foraclusão - típicos da constituição das estruturas psíquicas (neurose
e da psicose) - e do destino assumido pela pulsão em cada estrutura. Dessa forma, a
referência de Recalcati aponta para a íntima relação entre teoria e clínica, ao
considerar que as características clínicas da anorexia são dependentes do
funcionamento psíquico na neurose e na psicose, e não são indicativas da classe dos
transtornos alimentares, conforme sugere o DSM-5.
Entendemos que a relevância da pesquisa sobre a causalidade psíquica
dessas formas de sofrimento psíquico reside em desenvolver uma teoria etiológica
sobre seu desencadeamento, a partir das premissas conceituais da psicanálise e em
íntima conexão com a formulação de um protocolo de condução de tratamento mais
adequada à essa etiologia, impactando diretamente:
919
Tabela 6.
Um esboço dos traços psíquicos comuns às diversas formas de sofrimento
psíquico contemporâneo.
Referências
920
04712016000200016&Ing=pt
Kanner, L. (1943). Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child, (2), p. 217-
250. Recuperado de neurodiversity.com/library_kanner_1943.pdf
Paula, C. S., Ribeiro, S. H., Fombonne, E. & Mercadante, M. T. (2011). Brief report:
prevalence of pervasive developmental disorder in Brazil: a pilot study. Journal of
Autism Developmental Disorder., 41(12), 1738-42. doi: 10.1007/s10803-011-1200-
6
Recalcati, M. (2011). La Última Cena: Anorexia y Bulimia. Buenos Aires: Ediciones Del
Cifrado.
United Nations. (2018) World Drug Report 2018. [Versão digital em Adobe Reader]
Recuperado de
http://www.unodc.org/wdr2018/prelaunch/WDR18_Booklet_1_EXSUM.pdf
921
Sobre os Autores:
Cláudia Henschel de Lima (Professora Associado I. Departamento de Psicologia.
Universidade Federal Fluminense. Campus de Volta Redonda. Docente Colaboradora
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio de
Janeiro).
Rosângela Maria de Oliveira (Bolsista de Desenvolvimento Acadêmico –
PROAES/UFF. Estudante de Graduação em Psicologia. Departamento de Psicologia.
Universidade federal Fluminense. Campus de Volta Redonda).
Flora Elias Pereira (Bolsista de Desenvolvimento Acadêmico – PROAES/UFF.
Estudante de Graduação em Psicologia. Departamento de Psicologia. Universidade
Federal Fluminense. Campus de Volta Redonda).
Nubia Ferreira Espinoza (Bolsista de Desenvolvimento Acadêmico – PROAES/UFF.
Estudante de Graduação em Psicologia. Departamento de Psicologia. Universidade
Federal Fluminense. Campus de Volta Redonda).
Daniel Cavalcante Moreira (Bolsista de Iniciação Científica - FAPERJ/ Matrícula.
2018036003. Estudante de Graduação em Psicologia. Departamento de Psicologia.
Universidade Federal Fluminense. Campus de Volta Redonda).
Debora Assis (Bolsista de Iniciação Científica -CNPq/UFF. Estudante de Graduação
em Psicologia. Departamento de Psicologia. Universidade Federal Fluminense.
Campus de Volta Redonda).
Thalles Sampaio (Mestrando. Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Universidade Federal do Rio de Janeiro).
922
86- DESIGUALDADE DE GÊNERO EXPRESSA NAS FALAS DAS
MULHERES PARTICIPANTES DE UM PROGRAMA DE UNIVERSIDADE ABERTA
À TERCEIRA IDADE
923
Introdução
Tótora (2006) aponta que a palavra “velhice” passou ao longo dos anos a
carregar um significado de finitude, privação e decadência a partir do século XIX, e
desde então, homens e mulheres costumam tentar evitar essa fase da vida com
cosméticos, intervenções cirúrgicas e uma série de outros artifícios para tentar, de
alguma forma, amenizar ou eliminar sinais dessa fase da vida. Para a autora, ao falar
das pessoas que não tentam barrar o processo de envelhecimento, “a velhice, neste
sentido, deixa de ser uma fase cronológica e passa a constituir-se em atitude para
fazer a vida recriar-se a cada momento como se fora o derradeiro dia” (2006, p. 45).
A velhice e o envelhecer são os nomes que a cultura engendra ao longo do
tempo. Velho, idoso, ancião, terceira idade, por exemplo, são palavras que tentam dar
conta da diversidade dos modos de envelhecer em diferentes contextos históricos.
Atualmente, utiliza-se de forma mais frequente a expressão “terceira idade”, que, no
contexto francês, originou-se da necessidade de nomear um envelhecer que
começava a se delinear na década de 1960, representado pelo signo do
envelhecimento ativo e independente. Terceira idade é um contraponto da imagem de
velhice como um momento da vida marcado pela decadência física, invalidez, de
quietude e isolamento social e afetivo (Peixoto, 2003). O surgimento desse termo
propicia a visão de velhice como apenas mais uma fase da vida com potencial de
inúmeras realizações, como realização de projetos abandonados na juventude;
criação de novos hábitos e novas habilidades; construção de novos vínculos afetivos
e engajamentos sociais (Silva, 2008).
Ao adentrar a terceira idade as pessoas possuem a oportunidade de refletir
sobre sua identidade perante valores sociais a respeito dessa época, podendo
vivenciar uma velhice para além desses constructos sociais. A velhice pode ser
analisada de acordo com os princípios da psicologia do desenvolvimento humano, ao
pensar na trajetória do indivíduo para lidar com os desafios do envelhecer. O
envelhecimento é um processo de desenvolvimento e não apenas uma forma de
enxergar uma fase da vida (Neri, 2008).
Erikson (1998) discorre que a velhice constitui a oitava fase do desenvolvimento
humano, sendo essa uma época da vida em que o sujeito lida com questões
existenciais relacionadas à Integridade versus Desespero. Ocorre nessa fase uma
reflexão sobre suas conquistas e desilusões, na tentativa de buscar equilíbrio em sua
924
narrativa pessoal. O autor aponta que a proximidade com a morte é um fator que
instiga o indivíduo para uma reflexão introspectiva de sua integridade. Elaborar esses
questionamentos ao longo da oitava fase do desenvolvimento é uma maneira de
passar progressivamente pela velhice.
Sobre o processo de envelhecimento, é importante considerar as diferenças de
gênero, uma vez que a sociedade compõe uma série de normativas para construção
da identidade do homem e da mulher. Atualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE, 2018) discorre que as mulheres vivem cerca de 7 anos a mais do
que os homens, esse dado pode ser explicado com o cuidado das mulheres em não
se colocarem em situações de risco físico e ao fato de que elas aderem a programas
de prevenção de saúde. De acordo com Neri (2008), a feminização da velhice também
está atrelada às mudanças na expectativa social atribuída às mulheres, juntamente
com sua crescente participação nas esferas sociais. Butler (2018) reflete sobre a
existência de mecanismos da lei dominante na sociedade, que apreendem o feminino
por meio da justificativa da existência de uma ameaça, a autora (ibidem, p.7) afirma
“[...] ameaçava até nos colocar em apuros, para evitar que tivéssemos problemas”. O
termo “feminino” nesse contexto carrega significados mutáveis de acordo com as
necessidades apresentadas pelos mecanismos disciplinares de segurança.
O termo “natureza feminina” era propagado para reafirmar o lugar da mulher
enquanto frágil, dependente e maternal. Por meio desse contexto social e pelo fato de
as mulheres cuidarem da educação dos filhos, esses dispositivos de controle da
mulher continuam se propagando. Contudo, as grandes guerras levaram a mulher a
ocupar o espaço público enquanto os homens lutavam na guerra. Elas trabalhavam e
cuidavam dos filhos, assim tiveram oportunidade de usufruir da liberdade desse lugar
e posteriormente com o fim da guerra, elas reivindicaram esse lugar para si (Caixeta
& Barbato, 2004).
Atualmente na velhice é de se esperar que as mulheres tenham maior liberdade
de escolha para ocupar novos espaços. A Universidade Aberta à Terceira Idade
(UNATI) disponibiliza oficinas e cursos, que auxiliam na aprendizagem horizontal
sobre diversos temas e possibilitam a troca de experiências de vida entre os
participantes e professores do programa. A UNATI também é um espaço de
socialização e reflexão, que possibilita às mulheres pensar o feminino na sociedade.
925
Justificativa E Objetivos
Metodologia
926
às informações coletadas com as entrevistas semiestruturadas, por exemplo. Esse
método apresenta instrumentos que permitem a organização e categorização das
informações coletadas por meio da fala para, assim, realizar a análise do discurso
apresentado.
A pesquisa foi avaliada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus de Assis, processo CAAE nº
51148115.3.5401, e segue as normas e pressupostos teóricos deste comitê. O Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado por todas entrevistadas e
a pesquisadora explicou cuidadosamente o conteúdo do termo.
Resultados e Discussão
927
expressa a partir da morte de figuras masculinas, que exerciam poder sobre elas. A
entrevistada 10 fala sobre figuras masculinas de sua vida, que a sufocaram,
impedindo a expressão da sua identidade. Ela diz:
Eu comecei a viver mesmo a partir dos 60 anos, depois que eu fiquei viúva, porque
eu era uma pessoa triste. Eu sou filha de palhaço de circo. Eu passei cinquenta
anos da minha vida sufocada. Graças a Deus meu marido morreu. Então, hoje
eu vivo. Eu vegetei por quarenta anos, dos 19 até os 60. Essa a melhor época
da minha vida. Estou sendo eu mesma. Eu tinha quase 60, quando eu me
libertei.
Não, não me deixava sair para canto nenhum. Meus filhos, também, ele nunca foi um
pai carinhoso. Ele não foi um pai participativo. Bebia. Jogava. Caia na rua de
bêbado.
928
Novas oportunidades podem ser atribuídas às mudanças no papel da mulher
na configuração social, instigadas pelas lutas de mulheres em busca de direitos.
Paredes e Guzman (2014) afirmam que o feminismo é uma luta por direitos e liberdade
sobre seus corpos, endossando o direito de expressar seus pensamentos e tomar
suas próprias decisões. A palavra feminismo significa em geral a luta de mulheres,
que se expressa na fala da maioria das entrevistadas. A entrevistada 11 quando
perguntada sobre a diferença do envelhecimento do homem e da mulher, reflete sobre
as lutas, que presenciou ao longo de sua vida na sua família. Ela expressa em sua
fala a força da mulher diante da luta, em sua fala:
A mulher, olha, eu sempre elogiei a mulher, porque começando por minha mãe. Minha
mãe já faleceu. Chamava Vitória e sempre foi uma vitoriosa, porque ela criou
nove filhos sozinha. Meu pai nos abandonou, veio para São Paulo e ela ficou
lá no Nordeste naquele lugar seco, pobre e ela nos criou. E nos educou para a
vida ‘né?’. Então, eu sempre me admirei muito, tenho minha mãe como
espelho, minha vó e todas as mulheres. A maioria das mulheres são assim de
lutar. Porquê e tantas outras mulheres que eu vejo que são testemunho vivo de
arregaçar as mangas e ir à luta. Então, porque os homens nesta faixa etária
não participam, porque eles nunca participam de nada. São uns molengos. Uns
acomodados.
929
Não. E a gente era tão besta naquela época. Você se submetia a tanta coisinha Ele
era uma pessoa estudada. Ele era professor, mas na cabeça dele parece que
mulher, não pode saber? E não dá para entender certas coisas. Então aquilo
que a gente não pode fazer na nossa idade, a gente quer aproveitar o tempo
agora, pelo menos no meu caso é isso. Aquilo que eu não pude fazer quando
eu era jovem, porque eu me casei, agora que eu estou viúva, eu quero
recuperar o tempo perdido.
Não, não jamais. Voltei a estudar; ele não deixou. ele me pegou pelo colarinho e disse
para escolher ou a família ou o estudo. É, filhinha, os homens antigos tinham
disso. Ciúmes ‘né?’ Sei lá, ignorância total. E eu era uma pessoa que se tivesse
oportunidade de estudar, o pai já não deixou ‘né?’. Aí casei e o marido não
deixou. Eu tenho certeza de que eu seria uma aluna muito aplicada. Eu tenho
certeza de que ia chegar bem longe viu, mas foi podada. Mas estou aqui,
sobrevivi.
O fato de ela falar “sobrevivi” representa a “luta” feminina por direitos iguais
para todos na sociedade. Ela expressa a luta de várias mulheres no cotidiano, tendo
a figura repressora masculina podando suas vontades e realizações.
Considerações Finais
930
parece que é na velhice, que elas conseguem usufruir mais dessas conquistas,
quando não há a tarefa de cuidar da casa, dos filhos e do marido.
Nesse contexto, a Universidade Aberta à Terceira Idade possibilita a realização
de desejos de outras fases da vida, mas também dispõe de um espaço de reflexão
sobre normas sociais relacionadas ao feminino. Na UNATI onde foi realizado o estudo
os professores costumam ser mais jovens e essa interação intergeracional com as
idosas possibilita a reflexão e a troca de experiências. Neste contexto diferentes
gerações se unem para novas realizações e pela busca de direitos sociais.
Referências
931
Silva, L. R. F. (2008) Da velhice à terceira idade: o percurso histórico das
identidades atreladas ao processo de envelhecimento. Rio de Janeiro: História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, 15(1), 155-168.
932
87- SUICÍDIO E IDEAÇÕES SUICIDAS NA INFÂNCIA: UMA REVISÃO DA
LITERATURA
Resumo: Apesar do suicídio ter maior incidência a partir do final da adolescência, não
se deve negligenciar possíveis sinais na infância, visto que, para que uma criança
pense ou cometa suicídio, ela precisa estar em profundo sofrimento psíquico. Diante
disso, este artigo tem como objetivo analisar produções da área da Psicologia acerca
do suicídio e/ou ideações suicidas na infância, assim como os fatores psicológicos
relacionados ao tema. Assim, realizou-se um levantamento bibliográfico no Portal de
Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC) com o propósito de elaborar uma
revisão de literatura. Os resultados mostram escassez de estudos sobre ideações e o
suicídio na infância. Dos 64 artigos encontrados, apenas 4 abordavam
especificamente o tema, sendo 3 estudos de caso e 1 de análise documental de dados
acerca do suicídio infantil no Brasil. Destaca-se que, dos 4 artigos sobre suicídio
infantil, 3 buscaram apoio teórico em Winnicott, indicando a relevância desse autor
para a análise e discussão do tema, com contribuições para a compreensão e
intervenção nessas situações. Por fim, ressalta-se a importância de pesquisas sobre
o suicídio infantil, considerando-se o crescente número de casos registrados e suas
graves consequências físicas e psicológicas na infância.
INTRODUÇÃO
56
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas.
57
Psicóloga pela Universidade Federal de Alagoas.
58
Drª em Psicologia e Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade de Alagoas.
933
nessa faixa etária. Para que uma criança pense ou cometa suicídio, ela precisa estar
em profundo sofrimento psíquico, que pode ser possibilitado ao não experienciar um
ambiente considerado satisfatório.
Friedrich (1989) afirma que a primeira pessoa a descrever suicídios de crianças
e jovens foi Casper durante um estudo na Prússia, entre os anos de 1788 e 1797.
Mas, mesmo sendo um estudo de uma população específica, Shneidman (1975)
afirma que o suicídio retratado por Casper é um fenômeno universal, sem apresentar
distinção de raça e classe social.
Entre os anos de 2000 e 2008 no Brasil, foram registrados 43 casos de suicídio
de crianças menores de 10 anos, representando 0,1% do total de mortes. Nesses
casos, 80% dos meninos recorreram ao enforcamento e, entre as meninas, notou-se
que os métodos preferidos foram intoxicação medicamentosa, afogamento e o uso de
objetos cortantes (Souza, 2010 apud Lemos & Sales, 2015). Ainda em relação a
gênero, estudos mostram que, apesar da incidência de tentativas de suicídio ser maior
entre meninas, a prevalência dos atos suicidas que levam à morte predomina entre os
meninos, visto que se utilizam de meios mais violentos (Leitão, 2017).
Em seu estudo, Pfeffer (1996) caracterizou o comportamento suicida de
crianças e adolescentes com pensamentos sobre provocar intencionalmente danos
ou a morte auto infligidos (também conhecidos como ideação suicida) e atos que
causem danos (tentativa de suicídio) ou a própria morte (suicídio). Leitão (2017) afirma
que “o gesto suicida remete à impulsividade, exposição ao perigo, tendência a testar
os limites e à relação com a transgressão, comuns na juventude”. Na leitura
psicanalítica, refere-se à passagem ao ato como referência ao suicídio, passagem
essa associada às questões citadas e à busca de escape ao sofrimento.
Estima-se que os atos que causem danos superem o número de suicídios em,
pelo menos, dez vezes (Botega, 2014). Porém, não foram encontrados registros de
abrangência nacional em nenhum país acerca dessas tentativas. Owens, Horrocks e
House (2002) afirmam que uma tentativa de suicídio aumenta seu risco em, pelo
menos, cem vezes em relação aos índices presentes na população geral. Portanto,
ideações suicidas e tentativas de suicídio são o principal fator de risco para sua futura
concretização.
Assim, essa pesquisa tem como objetivo investigar produções da área da
Psicologia sobre ideações suicidas infantis, analisando os artigos encontrados, a fim
de buscar entender suas implicações e o funcionamento do tema suicídio dentro de
934
uma fase tão precoce da vida como a infância, e quais processos de mudança
levariam a tais pensamentos e ideias suicidas.
MÉTODO
RESULTADOS E DISCUSSÃO
935
garantir a organização psíquica necessária para o desenvolvimento saudável desse
bebê.
A partir da definição de ambiente como facilitador do desenvolvimento,
Lowenkron (2006) desenvolve a investigação do caso de suicídio de um menino de 5
anos citado em seu artigo. A situação familiar de violência, dificuldades na relação
com a mãe e, consequentemente, a ausência de um ambiente facilitador foram
considerados colaboradores na configuração de uma realidade psíquica que o levou
a significar o suicídio como última saída para o seu sofrimento.
A autora ainda traz a questão do ambiente no desenvolvimento do ato
antissocial, ao falar que mesmo durante as entrevistas realizadas no início do
tratamento, pouco foi dito sobre as tentativas de suicídio, expondo assim o ambiente
onde aquela criança estava inserida “cercado de silêncio, de ausência de palavras,
onde explosões de violência e passagens ao ato eram frequentes” (Lowenkron, 2006,
p. 181). Esse ambiente, por fim, poderia estar ligado ao comportamento antissocial da
criança, que não possuía espaço para ter o desenvolvimento do seu eu e sua
autonomia enquanto si mesmo, o que posteriormente o levou a buscar uma última
chance de ser ele mesmo, e dessa forma expressar seu falso ou verdadeiro self por
meio da tentativa de suicídio.
Lemos e Salles (2015), chamam atenção para o fato de ser preciso desmitificar
a ideia que criança não comete suicídio ou não pensa sobre isso. Segundo as autoras,
essa mistificação sobre o suicídio na infância seria a causa da dificuldade de encontrar
trabalhos dedicados ao suicídio que tratem do tema aplicando-o nas fases iniciais do
desenvolvimento. Apontam ainda que uma criança que tenta ou comete suicídio está
em sofrimento psíquico, sendo de fundamental importância a análise de fatores
ambientais para a compreensão do suicídio infantil.
As autoras também discutem os fatores de risco para o suicídio na infância,
destacando: problemas escolares, dificuldade de acesso a tratamentos específicos e
fácil acesso a meios letais, eventos traumáticos, maus-tratos, carência de afeto e de
segurança, dentre outros. Sinaliza assim, que os contextos de desenvolvimento da
criança, incluindo-se, por exemplo, as relações parentais, escolares e comunitárias,
assim como conflitos familiares e estressores externos e violência também são fatores
de risco.
Lowenkron (2006), a partir das noções de autonomia e submissão, discute as
implicações do ambiente na constituição do falso self. A criança cujo
936
desenvolvimento inicial se deu num ambiente não suficientemente bom, estaria
sujeita a organização do falso self. A criança, nesse sentido, passaria a usar o falso
self como meio principal de se conectar com o mundo, de forma que estaria
vulnerável a ter ideações suicidas ainda na infância.
Para o paciente citado por Lowenkron, o uso do falso self se justificaria pela
tentativa de se rebelar contra sua existência em um ato de ter autonomia sobre sua
própria morte, ou de submissão, aceitando o domínio do falso self sobre o verdadeiro
self. Na ameaça de aniquilamento e angústia existencial, ocasionada do seu
desenvolvimento maturacional interrompido, o indivíduo passa a organizar-se de
forma defensiva na busca por tornar-se real, e concretizar o seu verdadeiro self, sob
o controle do falso self. A percepção de que esse verdadeiro self possa não emergir
pode gerar episódios de agressividade que, segundo Dezan e Mishima-Gomes
(2012), podem ocasionar surtos recorrentes de sentimentos e condutas agressivas
contra os outros, mas sobretudo contra si mesmo, levando assim, ao suicídio e/ou
ideação suicida.
O paciente de Lowenkron (2006) não possuiria tais condições psíquicas para
suportar as investidas de aniquilamento do self. Levando-o assim, a tentativa de
suicídio como forma de buscar livrar-se desse controle do falso self. Essa tentativa,
no entanto, foi sem sucesso, visto que o paciente não possuía os meios necessários
para conseguir subjugar seu próprio eu dominante. Um eu oriundo de uma falha
primitiva na relação mãe-bebê.
A agressividade está no cerne da problemática do suicídio. Luz (2008), tendo
como base a teoria winnicottiana, discute a agressividade em crianças em idade
escolar, defendendo que a educação não deve controlar a agressividade, mas ser
responsável pela criação de um ambiente que proporcione a criança aceitar e
conhecer como parte de si mesma a sua agressividade. Faz-se importante destacar
também as implicações do ambiente que seja retaliativo ou intrusivo, ressaltado por
Tommasi (1997) tendo como base a teoria winnicottiana, para o desenvolvimento do
bebê que pode por sua vez passar a perceber a realidade externa e as reações que
recebe do mesmo como seu próprio impulso destrutivo. Vivendo assim sua
destrutividade como real, uma vez que o ambiente é tido para o bebê em seus
primeiros momentos de vida como uma extensão dele mesmo.
Dessa forma o bebê será impedido de usar mecanismos que o auxiliem a
constituir uma integração do self e a separação do eu e do não-eu. Esse impedimento
937
consequentemente transformará seu ódio inicial de agressividade e destrutividade
natural, em um estado permanente que reproduz o comportamento agressivo como
única forma de interagir com o mundo externo. Sendo essa a única forma que
reconhece como real, significando e exteriorizando seu comportamento aprendido no
impedimento de sua integração total por meio da agressividade no mundo exterior a
si mesmo.
O artigo de Osti e Sei (2016) discute o caso de uma criança que possuía
sintomas por conta da experiência de um ambiente não suficientemente bom. Tais
sintomas se apresentavam em torno de suas ações programadas, diante de atender
o desejo do outro, quer fossem seus pais, e/ou professores, e se preocupava em não
fazer algo que pudesse deixá-los com raiva. No entanto, por ser uma submissão
sustentada pelo falso self, a menina apresentava comportamentos sociais
considerados inadequados, apresentando, por exemplo, tensão, agressividade, e
problemas de relacionamento com os colegas de escola.
Por esse motivo, as autoras apontam que o ambiente não suficientemente
bom, acabou por deixar Julia com ideações suicidas, resistente a construção de si
mesma, do seu verdadeiro self, sendo o falso self nesse caso, responsável por
atender as expectativas dos outros, em forma de submissão ao ambiente que lhe foi
oferecido desde seu nascimento.
Deza e Mishima-Gomes (2012) discutem a agressividade infantil como
consequência de ambientes controladores, nos quais a criança precisa reprimir seus
impulsos agressivos. Segundo as autoras, caso uma criança precise manter seu
verdadeiro self obscurecido pelo falso self, pode ocasionar uma agressividade que
acabará por tornar a criança em uma pessoa tensa, excessivamente controladora e
séria. Assim como as reclamações que chegaram sobre Julia a princípio. Essa
repressão causa a inibição dos impulsos da criança, impedindo o desenvolvimento
das ações espontâneas do verdadeiro self, e principalmente da sua capacidade
criativa (Winnicott, 1993/1999).
Deve-se considerar a importância da capacidade criativa na criança, visto que
é por meio dela que o indivíduo sente que a vida vale a pena ser vivida (Vilete, 2000).
Essa criatividade, porém, é gerada em muitos aspectos por meio do ambiente em
que o indivíduo é inserido, visto que é construído desde o início pela relação mãe-
bebê, posteriormente entre o bebê e a família, e por fim entre o indivíduo e a
sociedade. Segundo Vilete (2000) todos esses ambientes, caso sejam
938
suficientemente bons darão espaço para o bebê, criança, adolescente e adultos
expressarem seu viver criativo.
Baseados no conceito de privação e desamparo de Winnicott, Feijó e Oliveira
(2016) reafirmam sobre a privação afetiva durante o desenvolvimento, ao falar que as
privações na infância podem causar danos sociais, cognitivos e relacionados a
afetividade, ressaltando assim, a importância da devoção dos pais para com seus
filhos, ainda na primeira fase de vida.
Franco e Mazzorra (2007 apud Feijó & Oliveira, 2016), também destacam como
as perdas afetivas influenciam os sujeitos. Acrescentam que vivências de tais perdas,
podem gerar “culpa, castração, onipotência, rejeição, retaliação, idealização e
desidealização do objeto perdido, além de agressividade e reparação e repetição da
situação perdida” (p.75). Assim, perdas afetivas estão constantemente relacionadas a
tentativas e ideações suicidas.
Tendo tal afirmação como base, Chaves e Rabinovich (2010) refletem sobre a
associação da delinquência à privação da vida familiar, feita por Winnicott ao dizer
que “uma criança sofre privação quando passam a lhe faltar certas características
essenciais da vida familiar” (p. 138), “como a depressão da mãe em um momento
crítico, ou mesmo a dissolução da família” (p. 173).
No caso apresentado pelos autores, quando o jovem estava com 5 anos, seus
pais se separaram e ele foi separado da mãe ao ir morar em São Paulo com seu pai
e uma madrasta, sem um bom relacionamento. Mesmo após retornar à cidade de
origem, com 12 anos, depois de assassinar seu pai e a madrasta, não se sentia
igualmente amado em relação aos irmãos e revelou que neste momento não se
sentia acolhido na casa materna.
Relacionando a privação aos atos antissociais, Chaves e Rabinovich (2010)
chamam atenção para o fato de que, se por um lado a pessoa privada de algo passa
por momentos de depressão e inibição, por outro, existe a sobrevivência de alguma
esperança e, é nesses momentos que existe a capacidade de cometer atos
antissociais como um pedido de socorro.
Assim, Vagostello (2002) afirma que, entre todas as violências que podem ser
sofridas por uma criança – incluindo a violência sexual – é o abandono a forma de
violência mais sutil de todas, mas ainda aquela com maior grau de severidade.
Destaca ainda dois pontos, a violência física e a afetiva. A primeira sendo a de
necessidades básicas das crianças como alimentação e higiene. Enquanto a segunda
939
seria o distanciamento emocional, o que geraria a falta de interesse nas necessidades
básicas da criança. Para a autora, esses dois tipos de violência seriam os
responsáveis por problemas físicos e de desenvolvimento, mas também de problemas
psicológicos que, em sua maioria, podem ser auto infringidos e fatais.
CONCLUSÃO
940
encontrados que discutem o suicídio infantil, apenas 1 não faz uso da teoria
winnicottiana como base de discussão teórica.
Conclui-se, assim, que o pensamento psicanalítico de Winnicott se constitui em
importante aporte teórico para subsidiar a análise e discussão do tema. Conceitos
como provisão ambiental, privação e constituição do self emergem como ferramentas
conceituais importantes utilizadas pelos autores pesquisados.
Apesar de os autores se referirem constantemente a falhas ambientais,
privação, desamparo e a prevalência do falso self, deve-se salientar que existe uma
possibilidade de recuperação dessas falhas, de forma que a criança consiga lidar
melhor com a questão do suicídio e de ideias suicidas, podendo encontrar uma forma
de continuar seu desenvolvimento de forma satisfatória.
Neste sentido Winnicott também contribui com a discussão, propondo o
ambiente analítico como possibilidade de elaboração psíquica e retomada do curso
do amadurecimento emocional.
REFERÊNCIAS
Leitão, H. A. L. (2017). Quando a vida não vale a pena: considerações sobre o suicídio
entre os jovens. Tópica - revista de psicanálise. Alagoas, 10, 25-32.
941
Lowenkron, A. M. (2006). Pesquisa clínica na psicanálise: caminhos. J. psicanal., São
Paulo, 39(71), 171-188.
Owens, D.; Horrocks, J. & House, A. (2002). Fatal and nonfatal repetition of self-harm.
Systematic review. British Journal of Psychiatry, 1(181), 193-199.
Souza, F. (2010). Suicídio: dimensão do problema e o que fazer. Psiquiatria hoje. 2(5),
6-8.
Shafer, D. & Fisher, P. (1981). The epidemiology of suicide in children and young
adolescents. Journal of the American Academy Child Adolescent Psychiatry, 20, 545-
565.
Vilete, E. P. (2000). Sobre o homem morto que caminha. Natureza Humana, 2(1). 149-
164.
942
88 - BEM-ESTAR PSICOLÓGICO DA POPULAÇÃO LGBTQ+
Introdução
A dinâmica das configurações familiares e seus modos de expressão têm
tomado novos direcionamentos em função das mudanças em relação aos núcleos
parentais. A emergência social de novas configurações conjugais e familiares e seu
59
Graduandos do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
60
Psicóloga e Mestre em Ciências do Envelhecimento pela Universidade São Judas Tadeu.
61
Doutora em Educação Matemática e Docente do curso de graduação em Psicologia da Universidade
São Judas Tadeu.
943
respectivo reconhecimento jurídico é um exemplo real dessas mudanças (Amorim,
2017; Amorin, 2005). A sexualidade, como fruto de uma construção social, envolve
entre seus diversos aspectos, a discussão sobre identidade de gênero e orientação
sexual e é produto do momento histórico, da cultura e da sociedade na qual o indivíduo
está inserido (Gross & Carlos, 2015).
Assim, o termo “gênero” propõe-se para se referir a padrões tipicamente
masculinos e femininos. “Sexo”, para a diferenciação genética e morfológica dos
organismos e “identidade de gênero” para a forma como um indivíduo se percebe e
se classifica, sendo masculino ou feminino. Denomina-se como “cisgênero” pessoas
que se identificam com o sexo designado em seu nascimento. “Transexualidade” ou
“transgeneridade” caracteriza-se como a pessoa que possui uma identidade de
gênero diferente do sexo designado em seu nascimento e que buscam se adequar à
sua própria identidade (Menezes et al., 2010). Pessoas não-binárias, em
contrapartida, são as que não se identificam com o conceito binário de gênero, ou
seja, não se identificam nem com o feminino nem com o masculino. Além disso,
pessoas que se identificam como gênero fluído possuem o espectro de gênero em
constante mudança (Reis & Pinho, 2016).
Um outro elemento que envolve a sexualidade é a orientação sexual. Por
orientação sexual homoafetiva, caracteriza-se como o direcionamento do desejo
sexual para pessoas de mesmo sexo, ou ainda, de ambos os sexos (Herek, 2007;
Madureira & Branco, 2007). Laurenti (1984) explica que em determinado momento
histórico, a homossexualidade foi considerada como patologia e transtorno, nas
versões 6 e 8 do CID (Classificação Internacional de Doenças). Com o avanço da
ciência e a ascensão dos movimentos políticos no final do século XX e início do século
XXI, a ideia da homossexualidade como doença veio a ser refutada. Em 1990, foi
declarado oficialmente que a homossexualidade não se constituía como doença ou
distúrbio, tendo sido o código retirado do CID-10 (Organização Mundial de Saúde,
1997).
Apesar da ascensão da visibilidade sobre o assunto, é fato que a homofobia
ainda é um problema social. Em função do preconceito, indivíduos da população
LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Queers) ainda encontram
dificuldades na garantia de direitos no Brasil e, apesar de existirem leis que deveriam
culminar na penalização em casos de homofobia, casos de agressão são cada vez
mais recorrentes (Costa & Nardi, 2017). Indivíduos LGBTQ+, por estarem mais
944
expostos a situações estressoras devido à sua orientação sexual e/ou identidade de
gênero, possuem maior risco de desenvolverem problemas relacionados à saúde
mental. A violência, tanto física quanto psicológica, pode afetar diretamente seu bem-
estar e causar impactos irrefutáveis à vítima (Braga, 2017).
Machado e Bandeira (2012) afirmam que o bem-estar é um conceito estudado
na Psicologia Positiva que busca compreender no que se constitui o bem-viver. Os
autores explicam que a teoria do bem-estar psicológico (BEP) surgiu no final da
década de 1980, com o trabalho de Ryff (1989) e agrega áreas da psicologia do
desenvolvimento humano, psicologia humanista-existencial e saúde mental, e está
relacionada a experiências de autorrealização e sentido de vida. Nesse sentido, diante
do presente exposto, é relevante abordar os aspectos que envolvem o bem-estar da
população LGBTQ+, considerando a vulnerabilidade que este grupo é exposto frente
a situações estressoras de preconceito, que podem comprometer a saúde física e
psicológica desta população.
Objetivo
Este estudo buscou analisar o bem-estar psicológico da população LGBTQ+ e,
especificamente, comparar o nível dos seis fatores do BEP (Bem-estar psicológico)
dos participantes de diferentes orientações sexuais, que revelaram (ou não) a sua
orientação sexual para a família, que se sentem confortáveis (ou não) com a sua
orientação sexual.
Método
O estudo consiste em uma pesquisa de levantamento, que se caracteriza pela
interrogação direta das pessoas cujo comportamento se deseja conhecer.
Basicamente, procede-se à solicitação de informações a um grupo significativo de
pessoas acerca do problema estudado para, em seguida, mediante análise
quantitativa, obterem as conclusões correspondentes aos dados coletados (Gil, 2008).
Trata-se de um estudo descritivo-correlacional (Almeida & Freire, 2008), de
abordagem quantitativa e delineamento transversal.
A amostra foi composta por 100 participantes, de 18 a 30 anos, pertencentes à
população LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Queers) que
responderam aos instrumentos: 1. Questionário sociodemográfico. 2. Escala de Bem-
Estar Psicológico, validado para a população brasileira por Machado, Bandeira e
945
Pawlowski (2013)62. Esta escala é constituída por 36 afirmativas, que devem ser
respondidas em uma escala Likert de seis pontos, que varia entre discordo totalmente
até concordo totalmente. Os 36 itens da EBEP são divididos em seis dimensões,
sendo: relações positivas com outros; autonomia; domínio sob o ambiente;
crescimento pessoal; propósito na vida; e autoaceitação.
O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da Universidade São Judas Tadeu (Número do parecer de aprovação: 3.373.142 e
CAAE: 14692619.5.0000.0089). A amostra foi obtida pelo método autogerado, em que
buscou-se participantes que fizessem parte da população LGBTQ+ para,
voluntariamente, responderem a pesquisa. Estes, em seguida, indicaram outros
participantes de seu círculo social. Todos os participantes que aceitaram fazer parte
do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os resultados foram tabulados em planilha eletrônica no Microsoft Excel
(Pacote Office 2016) e analisados no Software SPSS (Statistical Package for Social
Science), versão 21.0. Os dados estão apresentados com frequência e porcentagem,
média e desvio padrão. Para atingir os objetivos específicos, foram utilizados teste t
de Student, ANOVA e teste de Duncan com nível de significância de 5%.
Resultados e Discussão
A amostra foi composta por 100 participantes, com média de idade de 22,6 anos
(DP=3,2), sendo a maior parte mulher cisgênero (54,6%), homem cisgênero (35,1%),
não binário (4,1%), gênero fluído (3,1%), mulher transgênero (2,1%) e homem
transgênero (1%). A maioria é solteiro (81%), reside com a família (73%) e possui
renda mensal de um a dois salários mínimos (32%).
Pode-se observar na Tabela 1, que o nível de bem-estar psicológico dos
participantes LGBTQ+, foi positivo em todas as dimensões exceto no domínio sob o
ambiente, demonstrando que os participantes possuem relações satisfatórias com
outras pessoas, autodeterminação e independência, bem como capacidade de avaliar
a si mesmo e resistir às pressões sociais e de perceber a si mesmo como um indivíduo
em constante desenvolvimento. Além disso, ter nível positivo de BEP nestas cinco
dimensões, implica em possuir senso de direção na vida, com objetivos pelos quais
vale a pena viver, habilidade de ter uma atitude positiva em relação a si mesmo, de
62
O instrumento está disponível para uso público, conforme os autores informaram.
946
conhecer e aceitar múltiplos aspectos, incluindo qualidades boas e ruins, além de
sentirem-se bem em relação ao passado (Machado, Bandeira e Pawlowski, 2013).
Por outro lado, os participantes apresentaram nível abaixo na dimensão domínio
sob o ambiente (M= 20,8 ± 6,2), que revela uma dificuldade em controlar atividades
externas, ou seja, as questões voltadas para as atitudes da sociedade, como por
exemplo, situações de preconceito. Historicamente, o conceito de orientação sexual e
identidade de gênero foi construído de modo a considerar os modelos que fogem da
constituição binária e heterossexual como algo aversivo. Situações de preconceito são
vivenciadas dentro e fora do contexto familiar, tornando dificultoso para o indivíduo
sentir-se seguro em meio à tantas adversidades (Perucchi, Brandão & Vieira, 2014).
Tabela 1
Média e Desvio padrão da pontuação de bem-estar psicológico da população
LGBTQ+.
Média
Dimensões Mínimo Máximo PME DP
(n=100)
Relações positivas com outros 10 36 21 25,5 5,3
Autonomia 8 36 21 25,1 5,5
Domínio sob o ambiente 6 35 21 20,8 6,2
Crescimento pessoal 21 36 21 32,1 3,7
Propósito na vida 9 36 21 27,0 5,7
Autoaceitação 8 36 21 25,6 6,0
Nota: PME = Ponto Médio da Escala; DP= Desvio Padrão.
Com relação aos dados da Tabela 2, não houve diferença estatisticamente
significante entre o bem-estar psicológico dos participantes que revelaram ou não a
sua orientação sexual para a família. Este resultado é contraditório ao obtido por
Campos (2015), em que o autor investigou associações entre o bem-estar de
homossexuais e o apoio social familiar em 20 indivíduos, cujo resultado mostrou que
este apoio se apresenta em seus indicadores como o fator mais importante para o
bem-estar dessa população, pois 25% apresentaram como consequência da falta de
apoio familiar, aspectos como distanciamento da família, insatisfação com a vida
pessoal e dificuldade de se relacionar socialmente. Outro estudo que evidencia a
relevância do apoio familiar foi realizado por Ghorayeb (2012), no qual teve o objetivo
de avaliar o impacto da discriminação na saúde mental de sujeitos homossexuais,
concluiu que, quando os indivíduos decidem se assumir para a família, 35%
947
internalizam o sentimento de vergonha da orientação sexual ao supor que o outro (pai
e mãe) sentirá vergonha dele. Assim, 40% dos adolescentes homossexuais
manifestaram prevalência de transtornos mentais, no entanto, quando o sujeito é bem
recebido pela família, a proteção aumenta, e o risco desses transtornos diminuem.
Nesse sentido, o processo de aceitação da família é essencial para o enfrentamento
do preconceito vivenciado pelo indivíduo fora de casa.
Tabela 2
Média, desvio padrão e teste t da pontuação de bem-estar psicológico da população
LGBTQ+ comparado ao fato de ter contado para a família sobre sua orientação sexual.
Dimensões Contou n M DP t p
Sim 69 25,3 5,5 -
Relações positivas com outros 0,651
Não 31 25,9 4,7 0,453
Sim 69 25,6 5,5
Autonomia 1,438 0,154
Não 31 23,9 5,5
Sim 69 20,1 6,2 -
Domínio sob o ambiente 0,100
Não 31 22,4 5,8 1,658
Sim 69 32,1 3,7
Crescimento pessoal 0,202 0,841
Não 31 32,0 3,5
Sim 69 26,9 5,5 -
Propósito na vida 0,774
Não 31 27,3 6,2 0,288
Sim 69 25,9 5,9
Autoaceitação 0,568 0,572
Não 31 25,1 6,2
948
ou seja, tende a deixar de viver uma vida na qual precisa mentir para os outros para
poder ser quem se é de fato. Este aspecto é de muita relevância tanto para a saúde
mental, tanto quanto para o bem-estar psicológico.
Tabela 3
Média, desvio padrão e ANOVA da pontuação de bem-estar psicológico da população
LGBTQ+ em relação aos participantes se sentirem confortáveis com a sua orientação
sexual.
Confortáve
Dimensões n M DP F p
l
Sim 89 25,7 5,5
Relações positivas com
outros Não 7 25,5 3,6 0,781 0,461
Neutro 4 22,2 1,5
Sim 89 25,6 5,3
Autonomia Não 7 21,1 6,4 4,691 0,011
Neutro 4 19,2 4,7
Sim 89 20,7 6,2
Domínio sob o ambiente Não 7 23,1 7,0 0,900 0,410
Neutro 4 18,0 4,2
Sim 89 32,2 3,5
Crescimento pessoal Não 7 31,8 5,2 1,038 0,358
Neutro 4 29,5 3,4
27,2
Sim 89 a 5,6
27,8
Propósito na vida Não 7 a 6,2 3,271 0,042
20,0
Neutro 4 b 4,0
Sim 89 26,1 5,9
Autoaceitação Não 7 21,4 4,8 3,590 0,031
Neutro 4 20,7 5,7
Conclusões
Os resultados analisados indicam que, nas dimensões do bem-estar psicológico
(autonomia, crescimento pessoal, propósito na vida e autoaceitação) os aspectos
foram percebidos como positivos, indicando que esses indivíduos possuem
características que envolvem relações satisfatórias, autodeterminação e
independência. Entretanto, os participantes apresentaram níveis abaixo na dimensão
domínio do ambiente, que revela uma dificuldade em controlar questões externas e
949
que envolvem atitudes da sociedade. No que se refere à revelação da orientação
sexual, foi possível observar que não houve diferença significativa entre indivíduos
que não assumiram sua identidade sexual para a família. Além disso, a autoaceitação
apresenta-se como um fator de muita relevância para as dimensões autonomia,
propósito de vida e aceitação, sendo o BEP maior em indivíduos que se sentem
confortáveis com sua orientação sexual.
Compreende-se, que apesar desta pesquisa abranger um número relevante de
jovens, não configura o resultado único de toda a população em questão. No entanto,
levando em consideração as questões propostas e levantadas nesta pesquisa, é
possível compreender os aspectos que envolvem o indivíduo LGBTQ+ e que estão
intrinsecamente ligados ao bem-estar. Evidencia-se a necessidade de aprimorar este
conteúdo, com o propósito de envolver questões sobre o papel da sociedade para a
população LGBTQ+, uma vez que este público enfrenta preconceitos e dificuldades
que podem comprometer o seu bem-estar psicológico.
Referências
Almeida, L. S., & Freire, T. (2008). Metodologia da investigação em psicologia e
educação (4a. ed.). São Paulo, SP: Editora Psiquilibrios.
Amorim, A. M. A. (2017). Pensando em família: uma visão contemporânea dos direitos
das famílias e das sucessões. Mossoró, RN: Edições UERN.
Amorin, F. (2005). Casal de lésbicas adota crianças. Jornal Zero-Hora, 39.
Recuperado de https://www.terra.com.br/noticias/brasil/casal-de-lesbicas-pode-
adotar-crianca-afirma stj,a6b94bc92690b310VgnCLD200000bbcceb
0aRCRD.html
Barbero, G. H. (2003). Homossexualidade e identidades diversas: o preconceito que
as acompanha. Pulsional revista de psicanálise, 16(170), 27-36. São Paulo, SP:
Editora Escuta.
Braga, I. F. (2017). “Quem é homossexual carrega consigo o fardo do preconceito”:
violências contra adolescentes e jovens homossexuais e a rede de apoio social
(Tese de Doutorado, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade
de São Paulo, Ribeirão Preto). Recuperado
dehttps://teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/tde-17072017-161103/pt-
br.php
950
Campos, L. S. (2015). O bem-estar de homossexuais: Associações com o apoio social
familiar, resiliência, valores e religiosidade (Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal do Espírito Santo). Recuperado de
http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/3111/1/tese_7299_Disserta%C3%A7%C3
%A3o%20-%20La%C3%ADs%20Sudr%C3%A9%20Campos.pdf
Costa, A. B., & Nardi, H. C. (2017). Homofobia e preconceito contra diversidade
sexual: debate conceitual. Temas em psicologia, 23(3), 715-726. doi:
10.9788/TP2015.3-15
Gil, A. C. (2008). Como elaborar projetos de pesquisa (4a. ed.). São Paulo, SP: Atlas.
Ghorayeb, D. B. (2012). Homossexualidades na adolescência: aspectos de saúde
mental, qualidade de vida, religiosidade e identidade psicossocial (Tese de
Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo). Recuperado de
http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOS
IP/309446/1/Ghorayeb_DanielaBarbetta_D.pdf
Gross, J., & de Carlos, P. P. (2015). Da construção da sexualidade aos direitos
LGBT: uma lenta conquista. Revista Eletrônica Direito e Política, 10(2), 747-761.
doi: 10.14210/rdp.v10n2.p747-761.
Herek, G. M. (2007). Confronting sexual stigma and prejudice: Theory and practice.
Journal of social issues, 63(4), 905-925. doi:10.1111/j.1540-4560.2007.00544.x
Laurenti, R. (1984). Homosexualismo e a Classificaçäo Internacional de Doenças;
Revista de Saúde Pública, 18(5), 344-347. doi: 10.1590/S0034-
89101984000500002.
Lomando, E., Wagner, A., & Gonçalves, J. (2011). Coesão, adaptabilidade e rede
social no relacionamento conjugal homossexual. Psicologia: Teoria e
Prática, 13(3), 96-109. Recuperado de
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516368720110003
00008
Machado, W. L., & Bandeira, D. R. (2012). Bem-estar psicológico: definição, avaliação
e principais correlatos. Estudos de Psicologia, 29(4), 587-595. doi:
10.1590/S0103-166X2012000400013
Machado, W. L., Bandeira, D. R., & Pawlowski, J. (2013). Validação da Psychological
Well-being Scale em uma amostra de estudantes universitários. Avaliação
Psicológica, 12(2), 263-272. Recuperado de
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/avp/v12n2/v12n2a17.pdf
951
Madureira, A. F. A. & Branco, A. M. C. U. A. (2007). Identidades sexuais não
hegemônicas: processos identitários e estratégias para lidar com o preconceito.
Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23 (1), 81-90. Recuperado de
http://www.scielo.br/pdf/ptp/v23n1/a10v23n1.pdf
Menezes, A. B., Brito, R. C. S., & Henriques, A. L. (2010). Relação entre gênero e
orientação sexual a partir da perspectiva evolucionista. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, 26(2), 245-252. doi 10.1590/S0102-37722010000200006
Organização Mundial da Saúde. (1997). CID-10: Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (10ª revisão). São
Paulo, SP: Universidade de São Paulo.
Perucchi, J., Brandão, B. C., & Vieira, H. I. S. (2014). Aspectos psicossociais da
homofobia intrafamiliar e saúde de jovens lésbicas e gays. Estudos de
Psicologia, 19(1), 67-76. doi: 10.1590/S1413-294X2014000100009.
Reis, N., & Pinho, R. (2016). Gêneros não-binários: Identidades, expressões e
Educação. Reflexão e Ação, 24(1), 7-25. doi: 10.17058/rea.v24i1.7045
Ryff, C. D. (1989). Happiness is everything, or is it? Explorations on the meaning of
psychological well-being. Journal of Personality and Social Psychology, 57 (6),
1069-1081.
Agradecimento
Agradecemos ao Wagner de Lara Machado, Denise Ruschel Bandeira e Josiane
Pawlowski pela disponibilidade e autorização de uso da Escala de Bem-Estar
Psicológico.
952
89- TENTATIVA E IDEAÇÃO SUICIDA NA ADOLESCÊNCIA: UM ESTUDO DE
CASO CLÍNICO
Introdução
Palmonari (2004) relata sobre a ligação existente entre a adolescência e a
puberdade, porém as coloca como dois fenômenos diferentes, sendo que o primeiro
se refere a componentes psicológicos e sociais, que estão diretamente relacionados
63
Graduanda em Psicologia pela Universidade São Judas
64
Graduanda em Psicologia pela Universidade São Judas
65
Docente no curso de Psicologia da Universidade São Judas, mestre em ciências pelo Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, doutoranda pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
953
aos processos de mudanças físicas, enquanto o segundo envolve transformações
biológicas inevitáveis, no entanto, ambos vivenciados na passagem da infância para
a vida adulta. Segundo o art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil,
1990), a adolescência é um estágio de desenvolvimento entendido entre 12 e 18 anos,
período no qual Peres e Rusember (1998), relatam ser um momento delicado para os
jovens, de realocações dos papéis referentes aos pais, da gradual entrada na vida
adulta, da perda do corpo infantil e a ascensão da sexualidade, tudo isso podendo
acarretar algumas crises, que podem ser vivenciadas com maior sensibilidade.
Winnicott (1963/2008) fundamenta a concepção de que esta fase é de fato um período
conturbado, no qual a prepotência desses jovens, unido com a dependência das
figuras dos pais, faz o cenário parecer desajustado e confuso.
Pratta e Santos (2007) retratam a perda da dependência infantil como
sendo algo ameaçador ao adolescente, pois faz com que eles lidem com o
ressentimento, o medo e a culpa: fatores esses que eventualmente contribuem para
o conflito em enfrentar e assumir seu próprio desejo e construir seu caminho a partir
de suas preferências. Neste momento, esses jovens carecem do apoio de seu grupo
familiar, com o ideal de lidar e responder a esses grandes desafios colocados por tais
exigências.
Winnicott (1963/2008) apresenta que o desenvolvimento saudável depende do
ambiente, sendo ele, objeto de aprendizado para as primeiras relações fundamentais.
Kancyper, L. (1999 citado por Jordão, 2008) contrapõem dizendo que, quando esse o
acolhimento provindo desse ambiente não acontece, e as expectativas que são
depositadas despertam sentimentos angustiantes difíceis de serem elaborados que
pode acarretar – ou em certas situações acentuar – algumas dificuldades,
principalmente em termos de relacionamentos. Desta maneira, pode afetar o bem-
estar e a saúde psíquica desses jovens.
Dias (2003) expõe que a natureza das relações na adolescência, inclui,
do mesmo modo, os vínculos de amizade que se unem não apenas a socialização,
mas também à forma como eles compõem sua identidade. Segundo Winnicott
(1963/2008) os grupos na adolescência são como um conjunto de indivíduos
separados que tentam formar um agregado em torno de alguma preocupação ou
interesse em comum, estando desta forma, protegidos e recuados. Ainda segundo o
autor (idem), os adolescentes iniciam sua participação em vários grupos, pois dessa
forma, conectam seu mundo pessoal com os fenômenos externos, fazendo desses
954
encontros, novas experiências a serem vivenciadas. Seguindo esta linha de raciocínio,
Pigozi e Machado (2015) e Carvalho et al. (2017) retratam que, dentre essas relações
de amizade, as que não forem bem-sucedidas, podem acarretar no chamado bullying,
capaz de provocar sérias consequências à saúde psíquica do adolescente, que além
de lidar com mudanças pessoais intensas, busca a aceitação pelas suas
particularidades, em meio à distinção entre seus pares.
O adolescente vivencia intensos conflitos e mudanças, que podem deixar
marcas a longo prazo, provocando sentimentos que serão carregados ao longo de
sua vida, e ao procurar soluções para os problemas, apela a comportamentos
agressivos, impulsivos ou suicidas, caminhando para a ideação suicida, sendo ele
precursor para o suicídio. (Barrios, Everett, Simon, & Brener, 2000; Flechner, 2000;
Turecki, 1999). Teixeira (2004) coloca que este momento delicado propicia ao
adolescente, que já tem à tendência em comunicar-se por meio da ação, a buscar
alternativas para o alívio de seus conflitos e de seus sofrimentos, expondo
comportamentos agressivos, falso sentimento de segurança, sobre o futuro,
depressão, ideação suicida, tentativas de suicídio e a busca pela morte.
Farias (2003, citado por Moraes, 2005) e embasado em Winnicott (1963/2008),
descreve que nesta fase intensificam-se as incertezas, e retrata como elemento
central nos casos de suicídio a impossibilidade de o indivíduo perceber-se real. Sendo
assim, o suicídio pode ser considerado como uma nova esperança do ser, de
transformar o self verdadeiro real, ou ainda de preservar a realidade interna. Segundo
Moraes (2005), não existe a possibilidade em se falar de suicídio na teoria
winnicottiana sem falar sobre a falha da mãe, compreendendo que a ideação ou o
comportamento suicida, tem seu início no momento do amadurecimento em que
alguma falha impede a continuidade de um ser saudável. O suicídio, a ideação suicida
ou a tendência suicida podem “estar presentes naquelas situações em que as
interrupções do processo de amadurecimento, por serem tão prematuras, não
permitiram que o indivíduo escapasse à psicose, na qual predomina a ansiedade de
aniquilamento” (Faria 2003 p.93 citado por Moraes, 2005 p.291).
De acordo com Werlang, Borges e Fensterseifer (2005), o comportamento
suicida envolve, casualmente ou regularmente, ideias, desejos e atos que aparecem
na intenção da ânsia de morrer e no preparo da ação, além do pensamento de como
a morte impactaria na vida de outras pessoas, muitas vezes, sendo visto como solução
para algo que, não aparenta ter saída. Nesse comportamento, o indivíduo tenta pôr
955
um fim a todos seus sentimentos, ao contrário, por exemplo, daquele que pratica a
autolesão não suicida, se fere buscando se sentir melhor (Giusti, 2013).
Segundo a Organização Panamericana de Saúde (OPAS, 2018), cerca
de 800 mil pessoas cometem suicídio, e existe um número maior de pessoas que
tentam executá-lo. Ainda segundo a OPAS as tentativas e concretizações podem
ocorrer durante toda a trajetória da vida de um indivíduo, apresentando-se como a
segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos em torno do mundo,
no ano de 2016. Durante o período da adolescência, as ideias de morte que podem
aparecer fazem parte de um processo de elaboração de estratégias, que acontece
desde a infância até a adolescência, para lidar com situações estressoras existentes,
como compreender o sentido da vida e da morte (OMS, 2002).
A tentativa de suicídio pode ser considerada como um ato determinado, porém
que foi descontinuado antes que resultasse em morte. Já o suicídio em si é
considerado como forma de morte que é criado a partir de um ato direto ou indireto
praticado pela própria vítima, sendo a morte, o resultado esperado (OPAS, 2018)
Essa pesquisa tem como objetivo apresentar e analisar o caso de uma
adolescente que foi encaminhada para atendimento psicológico após duas tentativas
de suicídio, visto que, esse tema tem se apresentado cada vez mais em foco, e
necessitando de um olhar mais centralizado.
Método
Esta pesquisa foi realizada através do estudo e análise do prontuário de uma
adolescente que passou por atendimento psicológico em psicodiagnóstico no ano de
2013, psicoterapia, também em 2013 e no Programa de Atenção às Tentativas de
Suicídio (PROATES) no ano de 2014, na clínica-escola do curso de psicologia de uma
Universidade do Estado de São Paulo. Foi solicitada a autorização da psicóloga
responsável da clínica-escola, para que o prontuário pudesse ser acessado. O
prontuário submetido à pesquisa teve o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
assinado pelo responsável da paciente no início de seus atendimentos.
Tratou-se de uma pesquisa documental qualitativa, que de acordo com Pádua
(1997), “é aquela realizada a partir de documentos, contemporâneos ou
retrospectivos, considerados cientificamente autênticos (não fraudados); tem sido
largamente utilizada nas ciências sociais, na investigação histórica, afim de
descrever/comparar fatos sociais, estabelecendo suas características ou tendências”
956
(p.62). O estudo foi realizado a partir de um estudo de caso que segundo Yin (2009)
esse tipo de investigação se dá quando há o desejo de compreender, de maneira mais
aprofundada, um acontecimento da vida real e atual, cujo o entendimento está
vinculado a “importantes condições textuais” (p 39). Com isso o estudo de caso tem
como objetivo explicar, descrever, ilustrar e explorar situações excessivamente
complexas, que não podem ser explicadas por um raciocínio de causa e efeito.
A partir da coleta de dados o caso foi descrito e analisado e seus achados foram
relacionados na discussão. A identificação do prontuário se deu por nome fictício, para
facilitar a compreensão do relato que foi exposto nesta pesquisa e para preservar a
identidade da participante. Este estudo foi parte de um projeto de pesquisa aprovado
pelo Comitê de Ética66 em Pesquisa da Universidade São Judas, do estado de São
Paulo.
66
CAAE: 12517219.1.0000.0089
957
Sua mãe discordava dos insultos feitos a filha e a levou para tirar fotos e realizar um
trabalho como modelo, mas a adolescente não foi chamada, o que a fez acreditar e
dizer que “não me chamaram porque sou feia, não tenho altura para passarela e sou
desengonçada.” (sic). Comentou que nesse período, gostava de fazer trabalhos
voluntários como monitora, porém sua mãe não ficava satisfeita, por achar que ela
deveria procurar um estágio.
A mãe também relatava que a Liz parecia ser “antissocial”, por não fazer
amizades e não gostar de sair, porém a filha conta que ela não permitia que saísse
sozinha, apenas acompanhada, mesmo quando ia ao shopping com as amigas. Liz
mencionou seu interesse por meninos, embora sua mãe não aceitasse, contrapondo
que ela era nova para namorar e que lhe dava “bons” (sic) conselhos como “olha,
confiei no seu pai, na sua idade já me interessava por ele, gostei dele e olha o que
aconteceu comigo” (sic). Em uma das sessões foi questionado à mãe como ela definia
a filha, a mesma respondeu que sentia saudades de quando Liz era pequena, porque
era meiga e comportada, e que naquele período estava revoltada, agressiva e a
olhava de forma estranha. Dizia para a adolescente que “tudo o que seu pai não fez
eu fiz por você e você tem que reconhecer e me respeitar.” (sic).
Sobre as tentativas de suicídio, a primeira ocorreu, segundo seus relatos, em
janeiro de 2013. Nesse episódio, Liz tomou os remédios de sua tia (Rivotril), foi levada
ao hospital e lá fizeram lavagem estomacal; relatou que fez isso porque sua mãe
proibiu o relacionamento dela com outro garoto: “queria sair deste mundo” (sic). A
segunda tentativa ocorreu em fevereiro do mesmo ano, em que a adolescente ingeriu
“cândida”. Disse que estava chateada com sua mãe, pôr a ter proibido de namorar, e
queria fazer algo para a mãe se sentir culpada. Foi para o hospital e lá fizeram outra
lavagem estomacal. Na terceira tentativa, sua mãe relatou que não tinha certeza, mas
viu a filha andando cambaleando e depois debruçando-se na janela do quarto, gritou
para que ela saísse e após esse episódio pediu para o marido colocar tela no quarto.
No período que estava em atendimento contou às terapeutas que havia cortado
seu braço com gilete após ser ofendida na escola, quando os colegas a chamavam
de “gorda.” Fala que não teve intenção suicida, mas “queria sentir o corte na pele”
(sic).
958
Discussão
No decorrer das sessões foi relatado que o pai de Liz sempre foi ausente, e
que ela não gostava dele por ele não a considerar como filha, causando-lhe mal-estar,
e quando lembrava dessa situação, sentia vontade de se matar; sobre sua relação
com a mãe, a paciente relatou não se sentir à vontade para realizar seus desejos, pois
ela a impedia de vivenciar várias situações e com o padrasto ela trouxe os conflitos e
brigas na relação entre eles. Foi possível observar que parte do que a paciente
apresentou durante as sessões, referiu-se sobre questões familiares. Marcelli e
Braconner (2007) expõe que o ambiente familiar também pode desempenhar um
papel de agente de reações ansiosas e depressivas, no momento em que esse
sentimento se liga ao desentendimento conjugal dos pais, a um divórcio, ou um
controle excessivo partido dos responsáveis, que freiam o desejo do adolescente de
se tornar independente, fazendo com que ele apenas consiga expressar esse querer,
de forma agressiva e imprudente.
Com relação ao ambiente escolar, esse também não aparentava ser saudável,
considerando que ela sofria bullying dos colegas. Em seus relatos, Liz trazia
comportamentos autolesivos, dos quais cortou seus braços, pois sentiu vontade, após
ter sido ofendida na escola. Assim como exposto anteriormente por Pigozi e Machado
(2015) e Carvalho et al. (2017), o bullying sofrido por Liz provocou consequências em
sua saúde psíquica, que encontrou nos cortes uma forma de lidar com o sofrimento.
Segundo a paciente, esse comportamento foi tomado por um impulso, seguido
da explicação de que nem sempre “consegue manter o controle” (sic). Giusti (2013)
retrata que a impulsividade apresenta características voltadas para um baixo nível de
noção de risco, respostas impulsivas e dificuldade em controlar os desejos, e os
recorrentes comportamentos para obtenção de prazer e gratificação.
Quanto a autolesão, como mencionado na introdução, pode ser entendido
como uma forma do indivíduo se sentir melhor (Giusti, 2013), mas também um jeito
de evitar o aniquilamento, ou seja, se apresenta na forma de uma defesa diante da
falha do ambiente que ocorreu quando o indivíduo deveria realizar a tarefa de
integração e personalização (Rodrigues e Lima, 2012). Essas características podem
ser observadas em Liz, que se cortava para sentir a dor do corte, como uma tentativa
de desviar o foco da dor psíquica para a dor física e dar um contorno ao seu corpo e,
assim, evitar o aniquilamento.
959
Ainda sobre a autolesão, os relatos do prontuário, a terapeuta do caso
descreveu que a paciente apresenta baixa autoestima, “devido a sentimentos de
inadequação em relação a si mesma” (sic). Os estudos de Tardivo et al (2019) também
apontaram insegurança como característica presente em adolescentes com
comportamento auto lesivo, além de outros aspectos, como sintomas de ansiedade e
depressão, sentimento de culpa e negação dos pensamentos dolorosos em
adolescentes com comportamento auto lesivo.
Apesar do DSM-5 (American Psychiatric Association, 2014) apresentar a
autolesão como um comportamento não suicida, a ideação pode estar associada a
esse comportamento, como no caso de Liz. Ambos os comportamentos parecem estar
relacionados aos ambientes conflituosos que a paciente vive (bullying na escola,
conflitos em casa com a mãe e padrasto, relacionamento conturbado como pai), pois,
como apresentado por Kancyper, L. (1999 citado por Jordão, 2008), quando o
ambiente não favorece o acolhimento necessário, sentimentos angustiantes e de difícil
elaboração são despertados, afetando a saúde psíquica do adolescente.
Sobre as tentativas de suicídio que a mãe de Liz relatou durante as sessões,
as três foram por ingestão de substâncias. Kitagawa, Sales, Paiano e Oliveira (2019),
escrevem que este método geralmente tem baixa letalidade, visto que, desta maneira,
as vítimas têm maiores chances de obterem socorro e chegarem com vida ao hospital.
Botega, Cano, Kohn, Pereira e Bonardi (1995) concluíram que as tentativas advindas
desse método, são regados de impulsividade, por serem de fácil acesso.
Werlang, Borges e Fensterseifer (2005) escrevem em como a ideia de morte
impactaria a vida das pessoas a volta do sujeito. No caso de Liz, a adolescente via na
morte uma forma de impactar diretamente a vida da mãe, pois ao justificar o motivo
para a tentativa de suicídio, explica que foi para que a mãe sentisse culpa de suas
proibições.
As falhas paternas também parecem estar muito presentes nos sentimentos de
Liz, o que gera conflitos emocionais significativos para a adolescente. Ao escrever
sobre as falhas maternas, Winnicott (1963/2008) não culpa a mãe, mas a coloca como
uma representante direta da relação bebê e mundo externo, sendo o papel do pai
muito importante nessa fase da vida da criança. Liz foi negada por ser pai desde o
nascimento, que a chama de “bastarda”. Retomando Farias (2003, citado por Moraes,
2005), Liz se encontrava em uma fase da vida em que as incertezas são
intensificadas, tendo na tentativa de suicídio, uma esperança de preservar sua
960
realidade interna de todas as angústias que estão mais intensas pelas crises da
adolescência.
Conclusão
No presente artigo pode-se perceber o quanto as relações familiares, e as
vivências escolares acentuaram os comportamentos e sentimentos depressivos e
ansiosos da adolescente que estava entrando no período conturbado que é a
adolescência, o que pode, de alguma maneira, atrapalhar seu desenvolvimento e
passagem saudável por esta fase. Liz, ao relatar sobre como se sentia referente a
todas as questões apresentadas na discussão e no caso clínico, foi observado que as
duas tentativas de suicídio foram de forma impulsiva e afrontosa para com sua mãe,
diferentemente do comportamento autolesivo que foi apresentado, já que esse havia
sido realizado por motivos de bullying que sofreu na escola. Isto posto, pode-se
constatar que a adolescência é vista como um período delicado que demanda maior
atenção em sua integralidade.
Referências
Barrios, L. C., Everett, S. A., Simon, T. R., & Brener, N. D. (2000). Suicide ideation
among US college students: associations with other injury risk behaviors. Journal
of American College Health, (48), 229-233.
Botega, N.J., Cano, F.O., Kohn, S.C., Knoll, A.L., Pereira, W.A.B., & Bonardi, C.M.
(1995). Tentativa de suicídio e adesão ao tratamento: um estudo descritivo em
hospital geral. J Bras Psiquiatr (44),19-25.
Carvalho, R. G., Fernandes, E., Câmara, J., Gonçalves, J. A., Rosário, J., Freitas, S.,
& Carvalho, S. (2017). Relações de amizade e autoconceito na adolescência: um
estudo exploratório em contexto escolar. Estudos de Psicologia. Campinas 34 (3),
379-388.
961
Flechner, S. (2000). Psicoanálisis y cultura: la clínica actual de pacientes adolescentes
en riesgo. Un nuevo desafío? Revista Latino-Americana de Psicanálise, (4), 467-
482.
Kitagawa, T., Sales, C. C. F., Paiano, M., & Oliveira, M. L. F. (2019). Adolescentes
internados por tentativa de suicídio com agentes químicos: um estudo transversal.
Ciências Biológicas e da Saúde, 40(1), 5-14.
Marcelli, D., & Braconnier, A. (2007). Adolescência e Psicopatologia. (6a. ed). São
Paulo, SP: Artmed.
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&amp;view=article&am
p;amp;id=5671:folha - informativa-suicidio&amp;Itemid=839
Rodrigues, T., & Lima, B. C. (2012). "Aqui o sol nunca brilha: A angústia do Não ser
do adolescente. ” (CIPSI - Congresso Internacional de Psicologia, Brasil).
962
Tardivo, L.S.L.P.C., Ferreira, L.S., Alhanat, M., Chaves, G., Rinaldi, H.R. Pinto Junior,
A. A., Belisario, G.O. (2019). Self-injurious behavior in preadolescents and
adolescents: self-image and depression. Paripex – Indian Journal of research. v.8,
6, p. 1-5.
963
90- SOLIDÃO SOCIAL E EMOCIONAL EM UNIVERSITÁRIOS
67
Graduandos do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
68
Psicóloga e Mestre em Ciências do Envelhecimento pela Universidade São Judas Tadeu.
69
Doutora em Educação Matemática e Docente do curso de graduação em Psicologia da Universidade São Judas.
964
Introdução
A solidão é um fenômeno intrínseco da humanidade. Sua longeva presença
histórica fez com que fosse percebida e conceituada de diversas maneiras, como por
exemplo, do isolamento voluntário à exclusão (Tanis, 2003). Dentre estes conceitos,
temos a solidão quantitativa, que se desenvolve a partir da quantidade inferior de
relações interpessoais existentes se comparadas às desejadas, e a solidão qualitativa
que se baseia na qualidade ou intimidade desejada não alcançada (De Jong-Gierveld,
Van-Tilburg & Dykstra, 2016). Neste contexto, as mesmas autoras desenvolveram a
escala de solidão De Jong-Gierveld, sendo referenciada em diversos trabalhos e
usada em versão reduzida neste estudo.
A solidão é definida como um conceito bifatorial, chamado de modelo de
discrepância cognitiva, sendo caracterizada pela presença de sentimento de vazio e
rejeição, ou seja, é uma medida subjetiva. Diferentemente do isolamento social, que
é caracterizado pela falta de presença objetiva e real do contato interpessoal
(Cacioppo, Fowler & Christakis, 2009; Hawkley & Cacioppo, 2010; Russell, Cutrona,
McRae & Gomez, 2012). A solidão emocional e social, definidas primeiramente por
Weiss (1973), são os constructos utilizados na Escala de Solidão de De Jong-
Gierveld: a solidão emocional diz respeito à ausência de um vínculo íntimo ou
profundo com outra pessoa e a solidão social é apontada como a falta de um grupo
maior de contatos ou rede social. Esses dois constructos foram utilizados para
referenciar o presente estudo.
De acordo com De Jong-Gierveld, Van-Tilburg & Dykstra (2016), a solidão é
diretamente afetada pelos valores e normas culturais, devido aos ideais construídos
em relação ao tamanho das redes sociais e obrigações familiares. Além disso, existem
variáveis políticas, econômicas e sociais associadas à solidão, sendo observáveis por
meio da posição socioeconômica do indivíduo e a disponibilidade de políticas públicas
para o seu bem-estar social, como por exemplo, a diminuição dos recursos financeiros
disponíveis, que pode gerar dificuldades para o estabelecimento de relações mais
estáveis.
Coelho, Maio, Gouveia, Wolf e Monteiro (2017), fizeram uma pesquisa com 225
pessoas, com idade média de 23 anos, a maioria do sexo feminino, e observaram que
a pontuação no Questionário de Necessidade de Emoções, o mesmo utilizado neste
965
estudo, se correlacionou com a solidão emocional e total. Assim, indivíduos com
maiores escores de evitação evocam, com maior frequência, percepções de ausência
de vínculos significativos e sentimento de vazio. Há correlação entre necessidade de
emoções e a necessidade de pertença, de modo que pessoas com altos escores de
aproximação podem satisfazer sua necessidade de pertencer com mais frequência do
que pessoas com altos escores de evitação.
Segundo Bastos e Costa (2005), na adolescência, as formas vinculares se
alteram. As figuras parentais deixam de ser protagonistas e de atuar como principal
fonte de segurança. Nessa fase, os jovens buscam em seus pares, formas de
identificação que lhes proporcionem certo nível de pertencimento. A presença de
redes de suporte social promove sentimentos de valorização e autoestima, assim,
dificultando a presença de isolamento (Fontinha, 2010).
Özdemir e Tuncay (2008) realizaram um estudo com 721 alunos de três
universidades de Ankara, e encontraram evidências de que os alunos do primeiro ano
universitário têm maior experiência de sentimentos de solidão se comparados com os
outros anos. Adolescentes que sofrem de solidão crônica são mais propensos a relatar
psicopatologia, bem como, depressão, suicídio e déficits de habilidades sociais
(Schinka et al., 2012). Majd Ara, Telepasand e Razaei (2017) pontuaram que a solidão
foi um forte preditor para depressão e funcionou como mediador entre as relações
interpessoais sociais negativas e a depressão. Cacioppo & Patrick (2010) alertam para
a relação entre solidão e o uso de drogas ilícitas, além de ideação suicida, causando
um declínio na saúde mental. Assim, diante do contexto apresentado, é relevante
abordar os aspectos de solidão social e emocional, principalmente em universitários
egressos no primeiro ano da graduação, considerando a vulnerabilidade que este
grupo se encontra diante de possíveis psicopatologias associadas.
Objetivo
A pesquisa buscou analisar o nível de solidão e pertença em universitários.
Especificamente: a) comparar os níveis de solidão e pertença dos alunos em relação
ao sexo e de estudantes que moram (ou não) sozinhos. b) analisar o nível de solidão
em relação à satisfação nos relacionamentos. c) analisar o nível de pertença em
relação à satisfação nos relacionamentos.
966
Método
Foi feito estudo de levantamento, que se caracteriza pela interrogação direta das
pessoas cujo comportamento se deseja conhecer (Gil, 2008). Trata-se de um estudo
descritivo-correlacional (Almeida & Freire, 2008), de abordagem quantitativa e
delineamento transversal. O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa (CEP) da Universidade São Judas (Parecer número 3.317.458 e CAAE:
12512519.00000.0089).
Participaram do estudo alunos matriculados em qualquer curso de graduação
em uma universidade privada de São Paulo, maiores de 18 anos, sendo estes os
critérios de inclusão. Os alunos foram abordados em espaços de convívio do campus
e após assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), foram
aplicados os instrumentos.
Foram utilizados o Questionário Sociodemográfico com questões em relação à
satisfação nas relações interpessoais nas categorias familiar, amizades, profissional
e conjugal. Também foi utilizado a Escala de Solidão De Jong Gierveld Versão
Reduzida, validada para a população brasileira por Coelho, Fonseca, Gouveia, Wolf e
Vilar (2018). O instrumento avalia a percepção subjetiva do sentimento de solidão e
possui seis afirmativas com cinco possibilidades de respostas que variam entre
discordo totalmente (1) e concordo totalmente (5). Há dois grupos de itens, um deles
avalia solidão social e outro que avalia solidão emocional, com pontuação máxima de
15 pontos para cada grupo, indicando o nível de solidão em cada aspecto. A
pontuação agregada avalia a solidão geral, que seria a relação entre a solidão
emocional e social, com no máximo 30 pontos, sendo esta pontuação indicativa de
alto nível de solidão, enquanto 0 pontos, pontuação mínima, indica baixo nível.
Por fim, adotou-se a Escala de Necessidade de Pertença Versão Reduzida,
validada para a população brasileira por Coelho, Gouveia, Fonseca, Araújo e Villar
(2018). O instrumento possui 10 itens que avaliam em qual medida os indivíduos
desejam ser aceitos por outros e pertencer a diferentes grupos. É uma escala likert
com cinco possibilidades de resposta, sendo (1) nem um pouco e (5) extremamente.
Quanto mais próximo de 50, maior a necessidade de pertença, quanto mais próximo
a 10, pontuação mínima, menor o nível de necessidade de pertença.
Os resultados foram tabulados em planilha eletrônica no Microsoft Excel (Pacote
Office 2016) e analisados no Software SPSS (Statistical Package for Social Science),
967
versão 21.0. Os dados estão apresentados com frequência e porcentagem, média e
desvio padrão. Para atingir os objetivos específicos, foram utilizadas a correlação de
Pearson, teste t de student, ANOVA e teste de Tukey. O nível de significância adotado
foi de 5%.
Resultados e Discussão
A amostra foi composta por 234 estudantes de uma universidade privada, com
média de idade de 22,4 anos (DP= 4,4), sendo 152 mulheres (64,96%), 222 (94,9%)
solteiros, 95 (40,6%) possuem renda mensal entre 3 e 6 salários mínimos, 112 (48,1%)
participantes estão matriculados em cursos da área de saúde e 218 (93,6%) não
possuem graduação anterior.
Como pode ser observado na Tabela 1, as médias de Solidão (17,0±4,4) e
Necessidade de Pertença (31,9±6,6) ficaram próximas ao ponto médio, assim, não
permitindo categorização de nível alto ou baixo das variáveis na população estudada.
No entanto, houve correlação positiva entre as variáveis (r= 0,187; p= 0,004),
indicando que pessoas com mais necessidade de pertencer, também experimentam,
com mais frequência, sentimentos de solidão. Esse resultado se assemelha ao de
Mellor et al. (2008) e Coelho et al. (2018), que encontrou uma correlação positiva
significativa entre as duas categorias.
Tabela 1
Média e Desvio Padrão da pontuação da solidão e necessidade de pertença dos
universitários.
Categorias Mínimo Máximo PME Média DP
(n=234)
Solidão 7 29 18 17,0 4,4
Necessidade de Pertença 15 48 30 31,9 6,6
Nota: PM = Ponto Médio; DP = Desvio Padrão.
968
mostrou que as mulheres relatam maiores níveis de solidão, assim corroborando o
dado encontrado no presente estudo.
Tabela 2
Média, desvio padrão e teste t de student da pontuação de solidão separado por sexo
e status de moradia dos universitários.
Solidão Pertença
N Média DP t p Média DP t p
Sexo
F 152 17,4 4,5 32,6 4,5
2,028 0,044* 1,963 0,051
M 81 16,2 4,1 30,8 4,1
Mora
sozinho
Sim 11 17,4 4,2 29,0 6,3
0,268 0,789 -1,514 0,131
Não 223 17,0 4,4 32,1 6,6
Nota: F= Feminino. M= Masculino. *p ≤ 0,05%.
969
Tabela 3
Média, desvio padrão e ANOVA da pontuação de solidão em relação à satisfação nos
relacionamentos dos universitários.
Pouco Muito
Satisfação Insatisfeito Satisfeito F p
satisfeito satisfeito
Tabela 4
Média, desvio padrão e ANOVA da pontuação de pertença em relação à satisfação
nos relacionamentos dos universitários.
Pouco Muito
Satisfação Insatisfeito Satisfeito F p
satisfeito satisfeito
970
Conclusões
A partir dos resultados, é possível identificar correlação positiva significativa
entre sentimentos de solidão e a necessidade de pertença. Além disso, mulheres
experimentam mais solidão do que homens. Pode-se observar a ausência de
diferenciação entre as médias dos grupos de satisfação nos relacionamentos, nas
categorias “Conjugal” e “Profissional” com o nível de solidão, e os grupos “Amizade”
e “Conjugal” com nível de pertença.
Em relação à satisfação nos relacionamentos, a categoria “Amizade” apresentou
forte correlação negativa com a solidão e diferença significativa entre todas as
categorias dos relacionamentos, podendo considerar a influência da faixa de
desenvolvimento em que os participantes se encontram, sendo a maioria pertencente
ao grupo de jovens adultos.
Não foi possível aprofundar o estudo com a avaliação da necessidade de
emoções e necessidade de pertença dos estudantes, assim, sugerindo que novos
estudos contemplem essas análises para que se possa compreender o estudante de
forma ampla.
Referências
Ajrouch. K. J., Blandon, A., & Antonucci, T. C. (2005). Social networks among men
and women: The effects of age and socioeconomic status. Journal of Gerontology,
Social Sciences, 60(6), 311-317. doi: 10.1093/geronb/60.6.S311
Cacioppo, J. T., Fowler, J. H., & Christakis, N. A. (2009). Alone in the crowd: the
structure and spread of loneliness in a large social network. Journal of personality
and social psychology, 97(6), 977. doi: 10.1037 / a0016076
971
Cacioppo, J. T., & Patrick, W. (2010). Solidão, a natureza humana e a necessidade de
vínculo social. Rio de Janeiro, RJ: Record.
Coelho, G. L. D. H., Fonseca, P. N. D., Gouveia, V. V., Wolf, L. J., & Vilar, R. (2018).
De Jong Gierveld Loneliness Scale-Short Version: Validation for the Brazilian
Context. Paidéia (Ribeirão Preto), 28.
Coelho, G. L. H., Maio, G. R., Gouveia, V. V., Wolf, L. J., & Monteiro, R. P. (2017).
Questionário de necessidade de emoções (NAQ-S): Validade de construto,
invariância e fidedignidade. Psico-USF, 22(3), 461-472. doi: 10.1590/1413-
82712017220307
Coelho, G. L. H., Gouveia, V. V., Fonsêca, P. N., Araújo, R. D. C. R., & Vilar, R. (2018).
Escala de Necessidade de Pertença: Evidências de Qualidade Psicométrica. Psico-
USF, 23(1), 139-150. doi: 10.1590/1413-82712018230112.
De Jong-Gierveld, J., Van-Tilburg, T., & Dykstra, P. (2016). New ways of theorizing
and conducting research in the field of loneliness and social isolation. In A.
Vangelisti & D. Perlman (Eds.), The Cambridge Handbook of Personal
Relationships (Cambridge Handbooks in Psychology, pp. 391-404). Cambridge:
Cambridge University Press.
Fokkema, T., De Jong Gierveld, J., & Dykstra, P. A. (2012). Cross-national differences
in older adult loneliness. The Journal of psychology, 146(1-2), 201-228. doi:
10.1080/00223980.2011.631612
Gil, A. C. (2008). Como elaborar projetos de pesquisa (4a. ed.). São Paulo, SP: Atlas.
972
Hawkley, L. C., & Cacioppo, J. T. (2010). Loneliness matters: A theoretical and
empirical review of consequences and mechanisms. Annals of behavioral medicine,
40(2), 218-227. doi: 10.1007 / s12160-010-9210-8.
Majd Ara, E., Telepasand, S., & Razaei, A. M. (2017). A structural model of depression
based on interpersonal relationships: The mediating role of coping strategies and
loneliness. Archives of Neuropsychiatry, 54(2), 125- 130.
doi:10.5152/npa.2017.12711.
Mellor, D., Stokes, M., Firth, L., Hayashi, Y., & Cummins, R. (2008). Need for
belonging, relationship satisfaction, loneliness, and life satisfaction. Personality and
individual differences, 45(3), 213-218. doi: 10.1016 / j.paid.2008.03.020
Ozdemir, U., & Tuncay, T. (2008). Correlates of loneliness among university students.
Child and Adolescent Psychiatry and Mental Health, 2, 29–34. doi: 10.1186/1753-
2000-2-29
Russell, D. W., Cutrona, C. E., McRae, C., & Gomez, M. (2012). Is loneliness the
sameas being alone? The Journal of psychology, 146(1-2), 7-22. doi: 10.1080 /
00223980.2011.589414
Schinka, K. C., VanDulmen, M. H., Bossarte, R., & Swahn, M. (2012). Association
between loneliness and suicidality during middle childhood and adolescence:
longitudinal effects and the role of demographic characteristics. The Journal of
psychology, 146(1-2), 105-118. doi:10.1080 / 00223980.2011.584084
Tanis, B. (2003). Circuitos Da Solidão Entre a Clínica e a Cultura. São Paulo, SP: Casa
do Psicólogo.
973
Zapata, P. C. R., & Arredondo, N. H. L. (2012). Percepción de soledad en la mujer.
Ágora USB (Medellín), 12(1), 143- 164. Recuperado de
https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/lil-679718
Agradecimento
Agradecemos ao Gabriel Lins de Holanda Coelho, autor que participou do estudo
de validação da Escala de Solidão Versão Reduzida e Escala de Necessidade de
Pertença Versão Reduzida, pela disponibilidade e autorização de uso do instrumento.
974
91- ESPERANÇA DA POPULAÇÃO NEGRA EM RELAÇÃO ÀS QUESTÕES
ÉTNICO-RACIAIS
Resumo: O objetivo geral deste estudo foi avaliar o nível de esperança cognitiva e
disposicional da população que se autodeclara preta ou parda, especificamente:
comparar o nível de esperança disposicional, autocentrada e altruísta das pessoas
que já sofreram e as que não sofreram violência racista; e comparar a opinião dos
participantes sobre o desejo e expectativa em relação à diferentes questões étnico-
raciais. A pesquisa foi realizada com uma amostra de 102 pessoas autodeclaradas
pretas ou pardas que responderam aos instrumentos: questionário sociodemográfico,
Escala de Esperança Cognitiva e a Escala de Esperança Disposicional. Os resultados
mostram que esperança disposicional e autocentrada obteve média alta, ou seja, os
participantes apresentam esperança em relação a si. Quanto à esperança altruísta, a
média esteve abaixo do ponto médio da escala, o que indica que a população preta
e/ou parda não possui esperança em relação ao meio em que estão inseridos. Os
participantes que relataram que já sofreram algum tipo de violência racista,
apresentaram níveis mais baixos de esperança. Quando analisado a visão dos
participantes em relação às questões étnico-raciais, houve disparidade entre aquilo
975
que desejam muito e o que de fato acham que irá acontecer, comprometendo ainda
mais a esperança da população negra.
Introdução
O conceito de raça surgiu para classificar as espécies de vegetais e animais. Em
humanos, foi utilizado para pontuar as características em comum em descendentes
de um mesmo ancestral, propondo uma ideologia de hierarquização racial pautada
em relações de poder e dominação (Munanga, 2004). Essas características dão forma
às classificações étnicas e no Brasil, foram usadas as desenvolvidas pelo IBGE
(2011), que se baseiam na cor de pele dos indivíduos, sendo elas preto, branco, pardo,
amarelo e indígena. Esses conceitos, de branco e preto, por exemplo, variam de
acordo com a construção histórica de cada local e são percebidos como “raça social”
que produzem os racismos populares (Munanga, 2004).
O racismo é uma forma de legitimar práticas que estabelecem desvantagens ou
privilégios para indivíduos de acordo com o grupo racial ao qual pertencem. Essas
desvantagens se dão pela concepção estrutural do racismo, que caracteriza essa
crença de hierarquização racial como parte da estrutura social em que os indivíduos
estão inseridos, considerando que as ações individuais e as desigualdades
institucionais são consequências da naturalização das violências estruturais (Almeida,
2018). O preconceito racial é a chave que transpõe a ideologia racista para o senso
comum e possibilita a reprodução do racismo, é um julgamento negativo antecipado
direcionado a um grupo étnico. Esse julgamento prévio é inflexível em relação às
evidências que o conteste, pois trata-se de uma crença já formada em relação àquele
sujeito. Quanto à discriminação racial, esta é a manifestação do preconceito racial.
Enquanto o racismo e o preconceito se encontram no âmbito das ideias, a
discriminação está no campo da ação, ou seja, a prática do preconceito (Gomes,
2005). Apesar dessa distinção, o senso comum utiliza o termo racismo em substituição
ao termo discriminação racial ou preconceito racial de forma genérica.
Dentro de todos os traços que evidenciam o racismo no Brasil, o mais forte e
evidente são as taxas de homicídios da população negra. O Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (2018) elaborou o Atlas da Violência com um levantamento em
976
grupos populacionais que são considerados pretos e pardos e não negros (brancos e
amarelos), e revelou-se um abismo social. “Em 2016, por exemplo, a taxa de
homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra
40,2%)” (p.40). Neste mesmo estudo, no Atlas da Violência, há o relato de que em um
período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu
23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%.
A conscientização política da população negra cresce, promove movimentos
sociais e pressiona o Estado a desenvolver e criar políticas públicas para protegê-los.
Um exemplo da constituição de grupos sociais em prol desse público é o Movimento
Negro Unificado (MNU, 2017), que foi fundado em 1978, sendo considerado uma
entidade pioneira na luta do Povo Negro no Brasil, possuindo um referencial histórico
através de suas ações contra a discriminação racial no país. Segundo Lima (2010),
com a ajuda de movimentos voltados para a população negra, o Estado viu como
necessário mudanças e criação de novas leis. Assim, em 1988, a nova Constituição
introduziu a criminalização do racismo que culminou a edição da Lei 7716 (1989) que
definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Segundo Gomes (2005) a permanência do preconceito racial em no Brasil indica
a existência de um sistema social racista que possui mecanismos para operar as
desigualdades raciais dentro da sociedade. Por isso, é necessário discutir as formas
de superação do racismo e verificar a viabilidade de esperança em relação à mudança
deste cenário.
A esperança é um recurso cognitivo-afetivo ativado em tempos de ameaça.
Snyder et al. (1991) conceituou esperança como “um conjunto de funções cognitivas
compostas de um senso reciprocamente derivado do êxito em: (a) agenciamento
(determinação direcionada a um objetivo), e (b) rotas (planejamento de meios para
alcançar objetivos)” (p.570). Essas etapas ocorrem de forma simultânea, sendo o
agenciamento a motivação para alcançar a meta; e as rotas, os caminhos que serão
traçados para alcançar esse objetivo, configurando o conceito de Esperança
Disposicional.
Pacico e Bastianello (2014) explicam que a Esperança Cognitiva foi definida por
Staats, em 1989, como a interação entre desejos e expectativas, podendo ser
compreendida através dos conceitos de esperança altruísta (esperança em relação
aos outros) e esperança autocentrada (em relação a si mesmo). Tendo origem na
infância, a esperança segue sendo reforçada ao longo do desenvolvimento do
977
indivíduo e pode ser notada quando as crianças aprendem as relações temporais
entre suas ações e os resultados delas, tornando-as conscientes de que são sujeitos
responsáveis por suas atitudes (Creamer et al., 2009).
Essa consciência a respeito dos próprios atos reflete no que Sartore e Grossi
(2007) apresentam como conceito de esperança, que faz com que o indivíduo monte
uma estratégia de enfrentamento diante de uma situação de conflito, produzindo
expectativas otimistas em relação às consequências que suas atitudes trarão. Silva,
Moledo, Flores, Menezes e Silva (2018) tratam esse poder de mudança promovido
pela esperança não como algo que se estende além das expectativas individuais em
relação ao futuro, mas como algo que ultrapassa os limites pessoais dos indivíduos,
sendo um importante agente da movimentação populacional.
Diante do contexto apresentado, é relevante abordar a esperança da população
negra em relação aos aspectos estruturais das questões étnico-raciais, considerando
a vulnerabilidade a que este grupo é exposto, especificamente, em relação à episódios
de racismo e discriminação.
Objetivo
Avaliar o nível de esperança cognitiva e disposicional da população que se
autodeclara preta ou parda. Especificamente: a) Comparar o nível de esperança
disposicional, autocentrada e altruísta das pessoas que já sofreram e as que não
sofreram violência racista. b) Comparar a opinião dos participantes sobre o desejo e
a expectativa em relação à diferentes questões étnico-raciais.
Método
O estudo consiste em uma pesquisa de levantamento, que de acordo com Gil
(2008), é aquela em que o pesquisador irá lidar diretamente com uma amostra do
público que ele pretende estudar, propiciando assim, um contato direto com a
realidade dessas pessoas e podendo submeter os dados coletados a técnicas
estatísticas. Trata-se de um estudo descritivo-correlacional (Almeida & Freire, 2008),
de abordagem quantitativa e delineamento transversal.
O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da Universidade São Judas Tadeu (Parecer número 3.373.143 e CAAE:
978
14693519.0.0000.0089). A amostra é composta por 102 participantes autodeclarados
pretos ou pardos que foram contatados e convidados a participar da pesquisa via
grupo de whatsapp e coletivos ativistas que se identificam com o tema. Neste convite,
foram informados os objetivos da pesquisa e os aspectos éticos que garantiram o
sigilo de informações pessoais. Para os convidados que aceitaram participar da
pesquisa, foram agendados dia, horário e local de preferência do voluntariado para a
realização da coleta de dados. A aplicação foi feita de forma individual, com tempo
estimado de 20 minutos e todos os participantes assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram utilizados três instrumentos, sendo eles: 1) questionário sociodemográfico
elaborado pelas autoras, com questões relacionadas aos aspectos étnico-raciais
elaborados; 2) Escala de Esperança Cognitiva, versão adaptada e validada em língua
portuguesa, por Pacico, Zanon, Bastianello e Hutz (2011) do The Hope Index criado
por Staats (1989), que define esperança como a interação entre desejos e
expectativas. O instrumento é uma escala likert com pontuação entre 0 e 5, sendo que
quanto maior a pontuação, mais esperançoso é o participante. A escala é composta
por 21 itens, distribuídos em dois fatores: esperança autocentrada e esperança
altruísta; 3) Escala de Esperança Disposicional, validada para a população brasileira
por Pacico, Bastianello, Zanon e Hutz (2013). Ela é composta de 12 itens igualmente
e tem formato de autorrelato. As respostas devem ser marcadas numa escala Likert
de cinco pontos (sendo 1 = totalmente falsa e 5 = totalmente verdadeira). Quanto
maior a pontuação, mais esperançoso é o participante.
Os resultados foram tabulados em planilha eletrônica no Microsoft Excel (Pacote
Office 2016) e analisados no Software SPSS (Statistical Package for Social Science),
versão 21.0. Os dados estão apresentados com frequência e porcentagem, média e
desvio padrão. Para atingir os objetivos específicos, foram utilizados teste t de student
e teste não paramétrico de Wilcoxon. O nível de significância adotado foi de 5%.
Resultados e Discussão
A amostra foi composta por 102 participantes, com idade média de 25,4 anos
(DP=7,7), sendo 53 mulheres (53,5%), 47 (46,1%) pessoas com ensino médio
incompleto, 48 (47,1%) relataram que a cor do pai é preta e da mãe 44 (43,1%) é
preta. Disseram que o preconceito racial existe (n=46; 46,9%), porém é ignorado e,
979
67 (65,7%) já sofreram preconceito e 78 (76,5%) presenciaram situações de
preconceito.
Pode-se observar na Tabela 1, que a pontuação média da escala de “Esperança
Disposicional” foi 29,8, acima do ponto médio (24), indicando que os participantes
tendem a ser esperançosos. Com relação à “Esperança Cognitiva”, na subescala
“Esperança Autocentrada”, a média da amostra (220,1) foi superior ao ponto médio
de 187,5, indicando que os participantes são esperançosos em relação a si. O mesmo
ocorreu no trabalho de Silva, Moledo, Flores, Menezes e Silva (2018), em que os
autores avaliaram a esperança de universitários em relação às eleições e
identificaram valores de esperança disposicional e autocentrada acima do ponto
médio. No presente estudo, a subescala “Esperança Altruísta”, obteve média de (63,5)
e este valor está abaixo do ponto médio (75). Staats e Partlo (1993) relatam que
pessoas com pouca ou nenhuma esperança tendem a ter baixas expectativas, tanto
para si, mas também com relação aos outros e ao meio. Assim, é possível levantar a
hipótese de que os participantes estão desesperançosos quanto a possibilidade de
mudança futura, como por exemplo no item 10 presente nesta subescala: “não ser
vítima de crime”. Sendo interpretado como algo distante de ser alcançado.
Tabela 1
Média e Desvio Padrão da Esperança Disposicional, Esperança Autocentrada e
Esperança Altruísta dos participantes.
980
ansiedade, depressão, dificuldade de se abrir, entre outros. A exposição cotidiana a
situações humilhantes e constrangedoras podem desencadear um número de
processos desorganizadores dos componentes psíquico e emocional, assim, podendo
comprometer a esperança de que este cenário possa ser modificado.
Tabela 2
Média, Desvio Padrão e teste t da pontuação de Esperança Disposicional, Esperança
Autocentrada e Esperança Altruísta dos participantes em relação a ter sofrido
violência racista.
Categorias Sofreu N M DP t P
981
Nota: Valores de Z variando entre -4,138 até -8,448
Figura 1. Comparação da opinião dos participantes sobre o desejo e expectativa em
relação à diferentes questões étnico-raciais.
Conclusões
A partir dos dados obtidos neste estudo, verifica-se que a maioria dos
participantes ficou acima da média na avaliação da “Esperança Disposicional” e
“Esperança Autocentrada”, enquanto na “Esperança Altruísta”, o resultado
apresentou-se pouco abaixo da média. Assim, revelando uma tendência de a
população negra (pretos ou pardos) serem mais esperançosos em relação a si e
desesperançosos em relação aos outros e ao meio em que estão inseridos.
Com relação aos participantes que já sofreram algum tipo de violência racista,
notou-se diferença estatística nas categorias “Esperança Disposicional” e “Esperança
Altruísta”, o que revela que os participantes apresentaram baixa esperança. O
preconceito racial no Brasil vem de uma longa trajetória histórica, produzindo, assim,
um forte sistema social racista, e ao mesmo tempo sutil, perpetuando diversos
mecanismos para exercer as desigualdades raciais dentro da nossa sociedade. Por
isso, se faz necessário reconhecer a existência do racismo, bem como discutir tanto
as formas de superação dessa violência quanto a viabilidade para despertar a
esperança em relação a mudanças deste cenário.
No que diz respeito à opinião dos participantes em relação a questões étnico-
raciais, houve diferença significativa na pontuação do quanto deseja versus o quanto
982
acha que vai acontecer, principalmente nos itens: “Privilégios brancos”,
“Oportunidades iguais” e, “Reportagens”. Revelando que, muitos desejam mudanças
nesses aspectos, porém, poucos creem que isto seja uma possibilidade real. Apesar
do avanço de pesquisas com a população negra, o racismo ainda prevalece em
diversos contextos, por isso sua existência deve ser reconhecida e discutida a fim de
que se inicie a tão necessária e significativa mudança na nossa sociedade, no que
toca às igualmente tão desejadas equidades de oportunidades e inserção social.
Referências
Almeida, S. L. (2018). Estado e direito: a construção da raça. In: M.L. Silva, M. Farias,
M.C. Ocariz, & A. Stiel Neto (Orgs). Violência e Sociedade: O racismo como
estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro (pp. 81-96). São
Paulo, SP: Escuta.
Moledo, B.O., Silva, G. C. A., Flores, R. G., Menezes, Y. L., & Silva, C. B. Reflexos do
Cenário Político e o Voto como (des)Esperança de Universitários. Seção de Pôster
apresentado na 16ª Jornada APOIAR, São Paulo, SP.
Creamer, M., O’Donnell, M. L., Carboon, I., Lewis, V., Densley,K., McFarlane, A., ...
Bryant, R. A. (2009). Evaluation of the Dispositional Hope Scale in injury survivors.
Journal of Research in Personality, 43(4), 613-617. doi: 10.1016/j.jrp.2009.03.002
Gil, A. C. (2008). Como elaborar projetos de pesquisa (4a. ed.). São Paulo, SP: Atlas.
983
Lei nº 7.716/1989, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de
preconceito de raça ou de cor. Recuperado de:
http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%207.71
6-1989?OpenDocument
Pacico, J. C., Zanon, C., Bastianello, M. R., & Hutz, C. S. (2011). Adaptation and
validation of The Hope Index for Brazilian adolescents. Psicologia: Reflexão e
Crítica, 24(4), 666-670. doi: 10.1590/S0102-79722011000400006
Pacico, J. C., Bastianello, M. R., Zanon, C., & Hutz, C. S. (2013). Adaptation and
validation of the dispositional hope scale for adolescents. Psicologia: Reflexão e
Crítica, 26(3), 488-492. doi: 10.1590/S0102-79722013000300008
Staats, S., & Partlo, C. (1993). A brief report on hope in peace and war, and in good
times and bad. Social Indicators Research, 29(2), 229-243. doi:
10.1007/BF01077897
984
Silva, M. L. (2005). Racismo e os efeitos na saúde mental. In: L. E. Batista, S.
Kalckmann (Orgs.), Seminário saúde da população negra do Estado de São Paulo
2004 (pp. 129-132). São Paulo, SP: Instituto de Saúde.
Snyder, C. R., Harris, C., Anderson, J. R., Holleran, S. A., Irving, L. M., Sigmon, S. T.,
& Harney, P. (1991). The will and the ways: Development and validation of an
individual differences measure of hope. Journal of personality and social
psychology, 60(4), 570-585. doi: 10.1037 // 0022-3514.60.4.570
985
92- A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA PERCEPÇÃO DE
EDUCADORES
Introdução
A violência manifesta-se sob formas variadas, em diferentes espaços, sem
distinção de classes sociais ocasionando prejuízos na saúde e qualidade de vida dos
indivíduos, além de representar violação dos direitos humanos. Reconhecido como
986
um problema de saúde pública tem origens macroestruturais, desenvolve-se e se
dissemina no cotidiano das relações interpessoais exibindo manifestações que
interagem, retroalimentam-se e se fortalecem (1).
Na infância, a violência doméstica que se encena no interior dos lares, emerge
como a forma mais comum praticada contra a criança, perpetrada por indivíduo em
posição de superioridade, de caráter abusivo, que pode provocar dano físico ou
psicológico à criança ou adolescente (1). O agressor pode ser alguém com laços
parentais com a vítima ou de convívio íntimo no espaço doméstico, ressaltando que
os pais biológicos, usando a autoridade que exercem sobre os filhos e encobertos
pela inviolabilidade da privacidade familiar, configuram como os principais autores da
agressão (2).
A família instituída socialmente, sempre representou o ninho de proteção,
amparo e sustento, compreendido como o espaço ideal para o pleno desenvolvimento
físico e emocional de crianças e adolescentes, assim sendo, é antagônico observar
que o lar e os atores que ali convivem, com a responsabilidade cultural e legal de
proteção, são os que praticam ações de cunho desumano contra sujeitos em
desigualdade de força e reação, pois é esperado pela sociedade que esse cenário
represente o “porto seguro” da criança(3).
Para identificação e manejo adequado, alguns sinais e sintomas observados
na vítima permitem categorizar o agravo em abuso físico, sexual, psicológico ou
negligência, que pode apresentar-se isolado ou simultaneamente em uma mesma
criança. Independentemente do tipo de agressão infligida, tal violência pode acarretar
prejuízos ao desenvolvimento biopsicossocial da criança com reflexos na vida adulta,
principalmente no que concerne à reprodutibilidade do comportamento violento em
gerações subsequentes (2).
Com a finalidade de prevenir danos dessa natureza, promover a saúde e
garantir cidadania, a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente em
1990, representou avanço no que diz respeito aos direitos de crianças e adolescentes,
o qual, em seu Art.13 discorre sobre a obrigatoriedade de notificar a suspeição ou
confirmação de casos de maus-tratos infantis ao Conselho Tutelar, órgão que tem a
missão de zelar pelo cumprimento da legislação que ampara a população alvo (4).
Corroborando a preocupação com o problema, em 2006, o Ministério da Saúde
implantou o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), com atuação na
vigilância contínua por intermédio da notificação compulsória das violências
987
doméstica, sexual e outras interpessoais ou autoprovocadas. Este, a partir de 2009,
funciona integrado ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) (5).
Conquanto, publicações nacionais referenciam que apesar da obrigatoriedade
de notificação e da existência de setores envolvidos com o problema, observa-se o
escasso conhecimento da magnitude do problema no tocante a dados estatísticos que
traduzam a realidade. A subnotificação reflete o reduzido registro procedente da
sociedade e de profissionais que lidam com crianças e adolescentes, gerando, dessa
forma, dados inconsistentes e fragmentados que dificultam a elaboração de
estratégias no combate ao agravo (5-6).
Nessa perspectiva, além de registros adequados, considera-se que ações de
enfrentamento a agravo com a magnitude da violência, necessitam de um trabalho
multidisciplinar que contemple a intersetorialidade compartilhada pelos diversos
setores e profissionais responsáveis pela assistência à criança. A escola, no campo
intersetorial, destaca-se por representar o primeiro espaço social do sujeito depois do
lar, o qual mantém convívio cotidiano com as crianças e suas famílias, portanto,
ambiente privilegiado para promoção da saúde e proteção integral de educandos,
reconhecendo casos de maus-tratos infantis e adotando medidas pertinentes (7).
A integração da escola às Redes de Proteção Social possibilita a atuação de
educadores com o envolvimento da comunidade em torno do problema, configurando
importantes agentes sociais na identificação da violação dos direitos de crianças e
adolescentes vitimizados, além de representar elo fundamental entre a sociedade e a
família. Contudo, para desempenhar seu papel, esse profissional, além de atento,
necessita estar capacitado para reconhecer peculiaridades das formas de
apresentação da violência doméstica e situações que configuram risco em seus
alunos (7-8).
Não obstante, a literatura tem descrito uma insuficiente participação do setor
educacional no manejo do problema, verificado em serviços de notificação, que
demonstram escassez de informações oficiais procedentes de escolas referentes a
atos violentos contra crianças, refletindo o ineficiente posicionamento dos
profissionais da educação, contribuindo para a subnotificação e suscitando
questionamentos sobre os motivos que poderiam refletir no posicionamento do
educador (9).
Compreendendo a escola como de importância inquestionável no combate à
violência doméstica é necessário entender o que justificaria a participação ineficaz
988
das instituições frente ao problema. Ante ao exposto, o objetivo do estudo foi avaliar
a percepção de educadores sobre seu papel diante da violência doméstica contra a
criança, abordando conhecimentos e atitudes em casos vivenciados no contexto de
trabalho.
Método
Trata-se de pesquisa descritiva de natureza qualitativa que transcorreu no
período de março a setembro de 2010, em escola pública municipal de Campina
Grande, cidade situada no agreste do estado da Paraíba. Participaram profissionais
do campo de pesquisa que de alguma forma estão inseridos no contexto da Educação
Infantil que vai além do espaço da sala de aula, compreendendo que a
responsabilidade e compromisso com os discentes não está limitado ao professor,
mas estende-se a todos que no âmbito da escola participam do convívio e formação
da criança.
Selecionou-se essa etapa do ensino básico, pois, representa o momento em
que o dever de cuidar e educar a criança se estende à escola, além de receberem
usuários em idade de franca vulnerabilidade a sofrerem agressões, oportunizando o
reconhecimento e adoção de medidas adequadas.
Delineou-se a amostra utilizando-se o método de inclusão progressiva, sem
delimitação prévia do número de participantes, sendo interrompida por critério de
saturação teórica, observado quando as informações relatadas pelos sujeitos
expressaram regularidade de apresentação (10).
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Estadual da Paraíba / CEP-UEPB, CAAE nº0596. 0133.000-09, em acordo com a
Resolução 196/96 sobre pesquisas em seres humanos do Conselho Nacional de
Saúde / Ministério da Saúde (11), e, assim como recomenda a referida resolução, os
educadores que se propuseram a participar do estudo assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.
Com a finalidade de coletar dados, utilizou-se a técnica de entrevistas
semiestruturadas, na qual o entrevistado pode verbalizar livremente sobre a temática
a partir de um roteiro com questões norteadoras relacionadas ao objeto de estudo.
Para complementar as entrevistas com informações que permitiram caracterizar os
participantes aplicou-se um instrumento com questões fechadas abordando:
989
naturalidade, sexo, tempo de residência em Campina Grande, estado civil, número de
filhos, grau de escolaridade e função que desempenha na escola.
Realizaram-se 13 entrevistas as quais foram gravadas em aparelho de áudio e
posteriormente transcritas na íntegra, sendo cada indivíduo identificado pela letra E
correspondente a palavra Educador e o número em algarismo arábico subscrito
correspondente a sequência de coleta (E1, E2...).
Depois de transcritas, as informações foram analisadas aplicando o método
de análise de conteúdo utilizando a modalidade temática, que consiste em desvendar
os núcleos de sentido representativos da comunicação, os quais dependendo da
presença ou frequência de aparição podem significar alguma coisa para o objeto
analítico pesquisado. O agrupamento dos resultados em unidades temáticas permite
a interpretação de motivações de opinião, de atitudes, de valores e crenças (12).
Após a realização de tratamento dos resultados emergiram os temas que
possibilitaram as discussões, fundamentadas na revisão da literatura que alicerçou o
estudo.
Resultados
Foram entrevistadas cinco professoras, uma orientadora educacional, uma
supervisora educacional, uma assistente social, uma secretária, dois auxiliares de
serviços gerais, uma diretora adjunta e uma gestora (diretora geral). Dentre os
entrevistados doze eram do sexo feminino e um do sexo masculino, todos com idade
superior a trinta anos, com naturalidade em cidades da região Nordeste e residentes
em Campina Grande há mais de vinte anos. O estado civil distribuiu-se em seis
casados, dois divorciados, dois separados e três solteiros e apenas os solteiros não
tinham filhos.
Identificaram-se quatro temas a partir dos relatos de educadores: 1)
Comportamento infantil: espelho do sofrimento 2) O poder de agressão da violência
verbal 3) Enfrentamento da violência: primeiro uma questão familiar 4) A escola em
defesa da criança: limites e possibilidades.
Tema 1: Comportamento infantil: espelho do sofrimento
No ambiente escolar, os educadores relataram que alguns estigmas
percebidos no comportamento do educando, podem refletir um sofrimento vivenciado
no âmbito familiar, demonstrando a visão humanística na prática destes profissionais,
reconhecendo que gestos e palavras podem significar pedido de ajuda quando estão
990
em perigo: A gente pode observar que a criança deva estar passando por alguma agressão
quando a gente observa que a criança ela é muito calada, ela fica muito só, procura se isolar
(E13). No momento que a criança tá ali no cantinho sem algum amiguinho por perto, calada
demais, se isolando (E11).
Em outro polo os educadores discorreram sobre sujeitos que quando vítimas
externalizam o seu sofrimento com agressividade nas interrelações com a
coletividade: A criança mudava de comportamento, ficava assim agressiva (E8). O
comportamento da criança porque muda muito, ela é uma criança calma, carinhosa, ela se
torna uma criança agressiva (E4).
991
Quando indagado sobre qual seria a conduta inicial diante de casos de maus
tratos no cotidiano profissional, o educador considerou a notificação ao Conselho
Tutelar quando, a princípio, não consegue solucionar o problema com a família,
colocando a criança como depoente no intuito de averiguar o abuso, e posteriormente
conversando com os responsáveis: A atitude da gente, a princípio a gente observa,
conversa com a criança, depois chama a família, conversa com a família, quando o caso
continua a gente procura o Conselho Tutelar (E2). Primeiro eu converso com ela sobre o que
tá acontecendo de diferente, posteriormente eu converso com a família, a depender do rumo
das coisas aí assim a gente vai pra uma instância maior (E4).
Alguns educadores relataram procurar inicialmente a direção da escola para
comunicar situações referentes ao agravo em questão, entretanto a direção da
instituição também recorre à abordagem com a criança e a família como atitudes
iniciais: Procuro a direção da instituição, ela enquanto representante da instituição, a gente
passa pra ela e ela conversa com os pais (E6). O professor traz pra gente da direção e equipe
técnica, então a gente vai fazer essa conversação com a criança, vamos tentando chegar até
a criança no diálogo, pra ver se ela mesmo espontaneamente diz, então quando a gente
percebe isso, a gente chama a família, um caso mais delicado, mais profundo, que foge da
nossa instância, da nossa competência, a gente tem os outros instrumentos, a gente tem o
Conselho Tutelar que a gente pode encaminhar (E10).
Por outro lado, quando questionados diretamente sobre a conduta legal frente
a casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos no âmbito da escola, alguns
entrevistados afirmaram que o caminho seria a notificação ao Conselho Tutelar.
Observou-se nas falas discrepância entre a teoria e a prática frente ao agravo: Porque
a princípio a gente só sabe fazer isso, procurar o Conselho e ver o que é que ele pode fazer
e geralmente a gente deixa a parte legal pra o Conselho ver que a gente considera que seja
as pessoas mais entendidas do que a gente (E2). Em termos legais acionar o órgão
competente, que de imediato é o Conselho Tutelar (E7). Como eu disse, no caso ir para as
autoridades, no caso o Conselho Tutelar, denunciar para que haja uma investigação, pra ver
se verdadeiramente está acontecendo aquilo (E8).
Diante da posição de não notificar ao conselho tutelar inicialmente percebe-se
a insegurança e descrédito no referido serviço: O que eu acho que deveria ter e a gente
não tem, o Conselho Tutelar, eu não acho que ele funcione como deveria, porque nós tivemos
já casos em que a gente comunica ao Conselho Tutelar porque é a instância imediata pra
gente, é o contato e ele vem, no primeiro momento eles vêm, mas eu não vejo uma
continuidade desse trabalho (E6). O que dificulta muitas vezes é a ação do próprio Conselho
992
com a família que depende da pessoa que for tratar do caso, a gente já teve caso que teve
pessoas do Conselho que terminou assustando e aí a pessoa vem pra unidade revoltada,
então às vezes a forma como o Conselho chega é difícil, e depois, muitas vezes não resolve,
não consegue, não chega (E2).
993
desconhece quem são os pais por trabalhar numa área de alta periculosidade, então esse é
um dos medos que a gente tem não saber com quem a gente tá lidando, o desconhecido,
porque a gente é conhecida, a gente não os conhece, mas eles conhecem a gente, isso é o
que dificulta (E6). Tem também, eu não sei se é o medo que a gente fale assim, mas não é
fácil lidar com as situações dependendo de onde a escola seja localizada, a escola está muito
exposta nas comunidades periféricas, é muito delicado entrar numa família, e a gente não
sabe exatamente onde tá entrando(E10).
Discussão
O predomínio de peculiaridades no comportamento infantil permeando a
percepção dos sujeitos pesquisados é contraproducente com estudos anteriores
realizados nos setores de saúde e educação onde as marcas físicas e a negligência
foram colocadas como principal fonte de indícios do agravo (8,13). No momento em que
o educador visualiza que a criança contextualiza de diversas formas na escola marcas
oriundas da convivência a que está exposta, possibilita que alterações
comportamentais como déficit de atenção, isolamento, agressividade ou baixo
rendimento escolar tenham maior visibilidade.
O isolamento observado em momentos de interrelação pessoal pode mascarar
problemas originados em conflitos familiares, decorrentes de sentimentos de culpa,
baixa autoestima e conceito negativo de si mesmo (13-14). Esse processo interfere
drasticamente em seus relacionamentos com o outro, pois ela visualiza em suas
ações o risco de não conquistar a afetividade e afastar as pessoas, reação confundida
como timidez, mas que esconde a dor da violência e da rejeição.
Por outro lado, a presença de agressividade é justificada em estudos como
sendo a reprodução do modelo de convivência familiar, no qual a violência é
apreendida como alternativa viável para resolução de conflitos interpessoais. Nessa
premissa, o comportamento agressivo, além de indicar provável exposição à violência
doméstica, reveste-se de preocupação por ser considerado preditor na gênese de
futuros agressores, perpetuando a cultura da violência em gerações subsequentes
(2,14).
994
vítimas, conservando-se invisível em atitudes que influenciam diretamente a formação
de uma identidade distorcida sobre si mesmo, e, permanece no universo da
subnotificação, seja pela inabilidade ou pela omissão em sua identificação (15).
Pode-se abstrair que o lugar de destaque da agressão verbal reflete o interesse
dos envolvidos na educação e formação de crianças, com o domínio que tem a palavra
e a afetividade na construção ou destruição da personalidade, repercutindo
diretamente no aprendizado e na aquisição de competências e habilidades ao longo
da vida.
Independentemente de sua modalidade ou gravidade, a notificação da violência
doméstica pelo educador representa cumprimento à observância legal nos termos do
Art.245 do Estatuto da Criança e do Adolescente que versa sobre a obrigatoriedade
do setor educacional em notificar ao Conselho Tutelar, órgão responsável por garantir
o cumprimento dos direitos outorgados no referido estatuto, casos suspeitos ou
confirmados de maus-tratos infantis detectados no ambiente de trabalho (4).
Para não ser considerado omisso, o educador necessita compreender que a
notificação não configura um ato de punição ao agressor, mas uma ação de cidadania,
iniciando um processo que resguarda os direitos e preserva o crescimento e
desenvolvimento saudável de seus educandos. Além disso, o profissional precisa
considerar que o problema não compromete apenas a saúde da vítima, mas de toda
a família, a qual merece o apoio e tratamento necessário para recuperação do núcleo
social que se encontra em conflito.
Não obstante, a resolutividade centrada na família encontrada nesse estudo,
reforça o princípio arraigado na sociedade no tocante a não interferir na privacidade
desse núcleo social, contudo deixa a criança desamparada e predisposta ao risco de
reincidência, por não compartilhar o agravo com outros setores de proteção à infância,
desconsiderando o problema como decorrente da dinâmica familiar, estando sob a
influência da cultura, valores e costumes locais (16).
Estudos com profissionais da educação de escolas públicas encontraram
posição semelhante frente à violência doméstica, os quais priorizaram convocar pais
e/ou responsáveis em detrimento da comunicação inicial aos órgãos competentes,
demonstrando a lacuna existente entre a identificação de casos e o número fidedigno
de notificações procedentes do setor educacional, gerando a subnotificação que
interfere substancialmente no enfrentamento da violência doméstica (9,13,17). Entre os
fatores encontrados na literatura que justifiquem a atitude de não recorrer ao
995
Conselho, pontua-se o descrédito na resolutividade do órgão no tocante ao agravo e
a ausência de parceria que desestimula o encaminhamento adequado (7,9), situação
que foi manifesta em relatos da presente pesquisa.
Para modificar esse panorama, a rede de proteção social consiste em uma
concepção de trabalho que possibilita ações permeadas por intersetorialidade e
interdisciplinaridade, permitindo que os diversos setores superem as dificuldades e
contemplem estratégias de forma integral, sem a fragilidade da conduta verticalizada
(7).
996
doméstico, demonstrando a supremacia familiar que pode estar ocultando a violência
doméstica contra a criança (7,9). Situação semelhante foi encontrada em estudo com
profissionais de saúde que compartilhavam do medo em ser alvo de retaliação pela
família, principalmente quando procedentes de áreas com risco social (17).
A capacitação profissional e a intersetorialidade com a construção da rede de
proteção social, destacando a integração dos setores educação e saúde (19),
Conclusões
No cenário educacional pesquisado as alterações no comportamento infantil
emergiram como principais indicadores utilizados para suspeição do agravo,
visualizando o outro como um ser biopsicossocial que expõe dores e sofrimentos em
suas relações interpessoais. Confirmando o olhar que reconhece a subjetividade do
sujeito destacou-se a preocupação com a agressão permeada por palavras que
podem provocar cicatrizes tão graves quanto o espancamento, pela sutileza e
invisibilidade do ato.
A proteção integral à infância deixa de ser respeitada quando o educador adia
a notificação ao Conselho Tutelar de casos suspeitos ou confirmados de violência
identificados no âmbito escolar. Nesse sentido, a resolutividade focada na família
apreendida refletiu o poder desse núcleo social no momento de cuidar e decidir sobre
suas crianças, mesmo que estas sejam vítimas de maus-tratos perpetrados dentro do
lar, sugerindo a interferência dos valores culturais que perpassam as gerações.
A insegurança observada na conduta destes educadores diante de grave
problema de saúde pública evidenciou que a intersetorialidade e a rede de proteção
social, representam uma utopia no cotidiano da escola. Investir no trabalho
compartilhado e horizontalizado permitirá que os determinantes legais sejam
cumpridos, além de desenvolver parcerias com a saúde para elaboração de propostas
em educação e saúde, trocando vivências e reflexões que abordem a temática de
forma transversal.
Nessa premissa, o educador se sentirá seguro no desempenho de suas
atividades e não será considerado negligente no tocante aos seus deveres como ator
social com responsabilidade incontestável na promoção da saúde e garantia de
997
cidadania de seus educandos. Além disso, poderá evitar que pequenas vítimas se
reproduzam em futuros agressores, quebrando o ciclo da violência e promovendo a
cultura da paz.
Os dados observados nesta pesquisa não podem ser extrapolados ou
generalizados como representativos para outras escolas públicas, considerando que
representam a percepção de educadores inseridos no cenário escolar pesquisado,
portanto limitado a esse universo.
Colaboradores
Mônica Cavalcanti Trindade foi responsável pela concepção teórica, delineamento,
execução, análise, redação e revisão final do artigo. Bianca Arruda Manchester de
Queiroga foi responsável pela supervisão da pesquisa, redação e revisão final do
artigo. Luciane Soares de Lima foi responsável pela supervisão da pesquisa, redação
e revisão final do artigo.
Referências
Pfeiffer L, Rosario NA, Cat MNL. Child and adolescente physical abuse – a proposal
for classifyng its severity. Rev Paul Pediatr [periódico na internet]. 2011 [citado em
2015 Ago 10]; 29 (4): 477-82. Disponível em: www.scielo.br/scielo.
Assis FRER, Ferreira EB. Repercussions of domestic violence against childre and
teenagers. Adolesc Saude [periódico na internet]. 2012 [citado 2015 Out 15]; 9(2): 53-
9. Disponível em: www.lilacs.bvsalud.org.
998
Rates SMM, Melo EM, Mascarenhas MDM, Malta DC. Violence against children: an
analysis of mandatory reporting of violence, Brazil 2011. Cienc Saude Coletiva
[periódico na internet]. 2015 [citado 2015 Out 15]; 20(3): 655-65. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232015000300655&lng=pt. http://dx.doi.org/10.1590/1413-
81232015203.15242014.
Lima JS, Deslandes SF. A notificação compulsória do abuso sexual contra crianças e
adolescentes: uma comparação entre os dispositivos americanos e brasileiros.
Interface [periódico na internet]. 2011 [citado em 2015 Ago 10]; 15(38): 819- 32.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832011000300016&lng=pt. Epub 30-Set-2011.
Elsen I, Prospero ENS, Sanches EM, Floriano CJ, Sgrott BC. Escola: um espaço de
revelação da violência doméstica contra crianças e adolescentes. Psicol Argum
[periódico na internet]. 2011 [citado 2015 Out 15]; 29(66): 315-26. Disponível em:
www.lilacs.bvsalud.org.
Siqueira AC, Alves CF, Leão FE. Enfrentando a violência: a percepção de profissionais
da educação sobre a violação dos direitos de crianças e adolescentes. Educação
[periódico na internet]. 2012 [citado 2015 Nov 19]; 37(2): 365-80. Disponível em:
www.ufsm.br/revistaeducacao.
Bazon MR, Faleiros JM. Identifying and reporting child maltreatment in the educacion
sector. Paidéia [periódico na internet]. 2013 [citado 2015 Nov 19]; 23(54): 53-1.
Disponível em: www.scielo.br/paideia.
999
Ministério da Saúde. Disponível em: <www.conselho.saúde.gov.br>. Acesso em: 23
de setembro 2009.
Patias ND, Siqueira AC, Dias ACG. Bater não educa ninguém! Práticas educativas
parentais coercitivas e suas repercussões no contexto escolar. Educ Pesqui [periódico
na internet]. 2012 [citado em 2015 Mar 15]; 38(4): 981-96. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
97022012000400013&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1517-
9702. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022012000400013.
Garbin CAS, Queiroz APDG, Costa AA, Garbin AJI. Formação e atitudes de
professores de educação infantil sobre violência familiar contra criança. Educ Rev
[periódico na internet]. 2010 [citado 2015 Ago 12]; 2:207-16. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
40602010000500012&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-4060
1000
Coco M, Silva EB, Silva CM, Jahn AC. Violência contra crianças: dimensões
apreendidas nas falas de professoras de educação infantil e a articulação com o setor
saúde. Rev Min Enfer [periódico na internet]. 2010 [citado 2015 Out 15]; 14(4): 539-
47. Disponível em: www.lilacs.bvsalud.org.
1001
93- IMPACTO DO BULLYING NA AUTOESTIMA DA PESSOA COM FISSURA
LABIAL E/OU PALATINA
Resumo: As fissuras de lábio e/ou palato são falhas congênitas que ocorrem durante
o desenvolvimento do feto, na fase embrionária. No Brasil, a incidências é de 1 a cada
650 nascimentos. (SANTOS, 2016) O presente trabalho tem como objetivo analisar a
bibliografia existente, a fim de correlacionar estas anomalias com a ocorrência de
bullying escolar e seu impacto na autoestima. A autoestima, por sua vez, compreende
a avaliação que o indivíduo faz e o valor que atribui a si mesmo. (VASCONCELOS,
2017) Utilizou-se o método de revisão de literatura. Em uma busca na fonte de dados
Bireme, foram encontrados inicialmente 38 artigos escritos nos últimos 10 anos. Os
documentos foram agrupados por afinidade temática e critérios como proximidade ao
objetivo da pesquisa e a área de estudo da psicologia foram aplicados para a selação
da amostra. Por fim, 2 artigos foram analisados. Conclui-se que a ocorrência de
fissuras labiopalatais é considerada um fator de risco para o bullying e posterior
surgimento de dificuldades sociais e psicológicas. Neste contexto, o psicólogo tem
papel fundamental, dada a importância do acolhimento dado a criança e a família.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva analisar a bibliografia existente, a fim de
correlacionar estas anomalias com a ocorrência de bullying escolar e seu impacto na
autoestima. As fissuras de lábio e palato são falhas congênitas no desenvolvimento
do feto, que ocorrem durante a fase embrionária, entre a quarta e oitava semana de
gestação no caso de embriões do sexo masculino (COLARES; RICHMAN, 2002), e
até a décima segunda semana de gestação no caso do sexo feminino.
É uma anomalia facial e, com frequência, implica consequências estéticas
visíveis que podem causar estranheza e dificuldade social. Outras consequências
comuns no desenvolvimento de crianças com essas diferenças são: dificuldade na
1002
fala, problemas auditivos, problemas respiratórios e desenvolvimento dentário
imperfeito. Ademais, o relacionamento mãe-bebê pode ser fragilizado, tanto pelo
rompimento da figura de ideal de bebê, quanto por fatores mais objetivos como a
dificuldade de sucção, que muitas vezes é uma das características dessas anomalias,
e que reflete um desafio no momento da amamentação. (SILVEIRA; WEISE, 2008)
O psicólogo atua neste e em outros momentos, na vida desses indivíduos. Além
da atenção pré-operatória e pós-operatória, fundamental nestes casos, é importante
ressaltar a função deste profissional no acolhimento e apoio a formação de uma
autoimagem e autoestima saudáveis, visto as dificuldades enumeradas aqui. Essas
dificuldades podem ser, também, dificuldades sociais. Dentre elas, dar-se-á especial
atenção, ao longo do estudo, ao tema do bullying. O termo, de origem inglesa, é
comentado por Vila e Diogo como sendo um ato de violência físico-psicológica e “[...]
uma ação discriminatória que se dá, sobretudo, na adolescência, podendo ser direto
ou indireto e ocorrendo nos mais variados contextos.” (VILA; DIOGO. 2009. p. 1). Esse
tipo de violência, caracterizada por comportamentos de intimidação e agressão,
possui grande potencial para minar a autoconfiança e autoestima do indivíduo.
A autoestima, por sua vez, compreende a avaliação que o indivíduo faz e o
valor que atribui a si mesmo. (VASCONCELOS, 2017. p. 197) Apesar de se tratar de
um conceito íntimo e pessoal, ela é também uma construção e, portanto, sofre
profundas influências do meio: A maneira como sou “gostado” pelo outro e o valor que
esse outro me dá (ou me nega) influenciarão diretamente a maneira como eu mesmo
me gosto e o valor atribuído a mim. Essa autovalorização, por sua vez, conduzirá em
certo nível a maneira como vou me portar em meio a sociedade (expansivo, retraído,
confiante, inseguro etc.), afetando diretamente o meu bem-estar físico e social.
O estudo por meio dos seguintes descritores: “lábio leporino”; “bullying” e
“autoestima buscou no sistema integrado de busca Lib.Steps, as pesquisas
desenvolvidas nos últimos 10 anos. Dentre as bibliotecas resultantes foi escolhida,
como fonte de dados, a Biblioteca Virtual em Saúde – BIREME.
Dos primeiros 125 artigos encontrados foram selecionadas 38 pesquisas que
tem a data de publicação posterior a 2010, seguido do recorte de semelhança com o
tema e, assim, foram selecionadas as que relacionam a fissura labiopalatina com a
autoestima e a autopercepção sobre a aparência (10). Para análise e discussão, por
relação ao objetivo de estudo deste trabalho, foram escolhidos os dois documentos
que priorizaram o bullying.
1003
Os estudos demonstram que a ocorrência de fissuras labiopalatais é
considerada um fator de risco para o bullying e posterior surgimento de dificuldades
sociais e psicológicas. Neste contexto, o psicólogo tem papel fundamental, dada a
importância do acolhimento dado a criança e a família.
DESENVOLVIMENTO DO TEMA
Causas’
As fissuras labiais e palatinas possuem causalidade multifatorial, o que significa
que sua existência não pode ser atribuída a um único fato ou episódio da vida da
gestante ou do feto, senão a combinação de alguns deles, quer sejam estes fatores
genéticos ou ambientais. (COLARES; RICHMAN, 2002.) Entre os fatores ambientais
se destacam a ingestão de bebidas alcoólicas, tabagismo, deficiências vitamínicas,
alguns tipos de medicação de uso contínuo, doenças virais agudas, radiações
ionizantes e determinantes químicas. (RAZERA; TRETTENE; TABAQUIM, 2015).
De acordo com o projeto de lei 1.172-B, elaborado por Hinterholz, “[...] se uma
criança de uma família nasce afetada pelo problema, o risco de que outra criança
1004
venha a nascer com a mesma condição aumenta de 2% a 4%.” (P.L. 1.172-B, Brasil,
2015, p.2). É possível estabelecer, uma relação causal entre idade paterna e
prevalência da enfermidade no bebê. (KUHN et al, 2012)
Alguns autores relatam a importância do ácido fólico, uma vitamina do
complexo B, para a prevenção de defeitos congênitos proveniente de defeitos no tubo
neural (DTN), razão pela qual a OMS já recomenda a ingestão de 0,4mg desta
vitamina, a partir de 30 dias antes da concepção até o terceiro mês de gestação.
(LINHARES; CESAR, 2016).
1005
A questão ortodôntica costuma ser atingida na maioria dos casos. Associados
as complicações presentes na região bucal existe, ainda, uma chance de 60% de
complicações nasais importantes como desvio no septo e atrésias nasais, que
necessitam de uma correção cirúrgica. (SANTOS, 2016)
O acompanhamento psicológico, já fundamental e idealmente existente desde
o momento do nascimento da criança, passa a ter, então, um peso ainda maior, ao
passo que ela se desenvolve. Deve-se ressaltar a função da terapia na formação de
uma autoimagem e autoestima saudáveis, já que as diferentes formas de
apresentação das fissuras de lábio e palato implicam, na maior parte dos casos, em
um acometimento estético importante. Sendo a aparência física um dos principais
aspectos da socialização dos indivíduos na modernidade (FREITAS, 2016), é
fundamental considerar este como sendo um fator que coloca em risco a saúde
mental, além de um possível resultante de abalo social e psicológico: “A aparência
física, em especial a aparência facial, é um aspecto importante a ser considerado na
interação humana, contribuindo, inclusive, para a formação da opinião de uns sobre
outros.” (COLARES; RICHMAN, 2002. p.5).
Resultados e discussão
Dos primeiros 125 artigos encontrados, 8 foram descartados, pois foram
publicados apenas em idiomas diferentes daqueles estabelecidos para análise
1006
(português, espanhol e/ou inglês). Assim, os artigos publicados em japonês,
tcheco, chinês, polonês, alemão e norueguês foram excluídos da amostra.
Sob os 117 documentos restantes, utilizou-se o critério de ano de publicação:
45 artigos foram publicados antes de 2000, 34 foram publicados entre os anos 2000
e 2009, e 38 tem sua data de publicação posterior a 2010. Para que a amostra
temática fosse mais rica e relevante, optou-se por analisar, neste ponto, os artigos
publicados nos últimos 10 anos.
Após uma primeira leitura dos 38 artigos mais recentes, utilizou-se o critério de
semelhança com o tema e, assim, excluíram-se da amostra pesquisas acerca da
saúde bucal da pessoa com fissura (5); Estudos com enfoque físico-biológico sobre a
comunicação (2); Artigos que abordam as fissuras labiopalatais sob o ponto de vista
médico (6) e pesquisas que abordam outros fatores psicológicos implicados, como
qualidade de vida (15). Foi escolhida, após essa primeira análise, por similaridade e
relevância ao objetivo deste estudo, o eixo temático que relaciona a fissura
labiopalatina com a autoestima e a autopercepção sobre a aparência (10). Assim, a
amostra de 10 estudos originais, realizou-se uma leitura mais aprofundada e
compilação de dados iniciais. Após a classificação temática foi possível dividir os
documentos entre:
Aquelas que realizam um paralelo com o bullying escolar e seus impactos (2);
artigos que analisam a melhora ou não de autoestima e satisfação com a estética no
pós-operatório cirúrgico (5) e, ainda, autores que abordam o tema de uma maneira
generalista (3). Para análise e discussão, por relação ao objetivo de estudo deste
trabalho, foram escolhidos os dois documentos do primeiro grupo, relacionados ao
bullying: “Peer harassment and satisfaction with appearance in children with and
without a facial difference” (Assédio entre colegas e satisfação com a aparência em
crianças com ou sem diferenças faciais), estudo publicado em 2010 por Kristin
Feragen e Anne Borgen e “Frequency and socio-psychological impact of taunting in
school-age patients with cleft lip-palate surgical repair” (Frequência e impacto sócio-
psicológico da provocação em pacientes em idade escolar com correção cirúrgica de
fissura labiopalatina), publicado em 2015 por Lorot-Marchand e colaboradores.
No primeiro artigo, que é Norueguês, Kristin Feragen e Anne Borge entrevistaram
661 pessoas de até 16 anos de idade (434 possuíam fissura visíveis e 227 eram
afetadas por apresentações da anomalia não visíveis). Para mensurar a satisfação
com aparência e o assédio de colegas, utilizou-se alguns questionários: A Escala de
1007
Satisfação com a Aparência, desenvolvida pelo grupo de interesse especial em
Psicologia, da Sociedade de Anomalias Craniofaciais da Grã-Bretanha e Irlanda; o
Perfil de Percepção de Adolescentes, desenvolvido por Harter em 1988 e o
Questionário de experiência da Criança (CEQ, de 1982). Os dois primeiros
instrumentos permitiram que a medição de satisfação estética em crianças e
adolescentes fosse realizada e comparada entre as diferentes faixas de idade,
enquanto o terceiro tornou possível o entendimento sobre a qualidade da experiência
social vivida por estas pessoas.
Após a coleta de dados, a análise estatística mostrou informações interessantes
sobre os adolescentes: Meninas com fendas visíveis apresentaram significativamente
maior insatisfação com aparência, quando comparada a meninas com fendas não
visíveis e a meninos com diferenças faciais visíveis ou não. Ademais, entre os
adolescentes de 16 anos as chances de passar por sofrimento social decorrente de
bullying, em comparação com casos de fissuras esteticamente não afetas, eram
quase 2 vezes mais altas. Neste mesmo grupo, a insatisfação com a aparência estaria
diretamente associada ao assédio sofrido.
As crianças analisadas demonstraram resultados diferentes: Não houve alteração
significativa com relação a insatisfação estética e frequência de bullying e, apenas
uma quantidade de 25 a 41% dos infantes participantes relataram provocações, sendo
uma maior porcentagem de pais e crianças com fendas faciais visíveis.
Sobre a satisfação pessoal direta com a aparência estética: 69% das pessoas que
tinham fissura apenas no palato, sem fenda no lábio, responderam que consideram o
próprio rosto bonito, enquanto esse número é de apenas 36% entre os participantes
que possuíram fendas de lábio ou face (e, portanto, fendas mais visíveis). O grupo
com fissura palatal também relatou menor frequência, na amostra geral, em relação a
provocação dos colegas: apenas 46% dizem ter sofrido bullying em algum momento,
enquanto entre os respondentes acometidos ao nascer por fenda labial ou fenda labial
e palatina, as porcentagens foram de 73 e 77%, respectivamente. Esses dados
demonstram que a alteração estética, acima de tudo, estaria mais fortemente
associada a frequência do assédio escolar.
O trabalho de Feragen e Borge (2010), portanto, não conseguiu confirmar sua
hipótese de que a insatisfação com a aparência e a provocação escolar (bullying) são
mais frequentes em se tratando de crianças, porém demonstrou que a diferença facial
pode ser associada à insatisfação com a aparência, especialmente em meninas
1008
adolescentes. Relacionou ainda a ocorrência da prática de bullying escolar com o nível
de satisfação estética, em se tratando de adolescentes de ambos os gêneros. Assim,
concluiu que a idade poderia ser um fator de risco importante para o tema proposto
no estudo, sugerindo novos estudos longitudinais.
A segunda pesquisa trata-se de uma publicação francesa, elaborada por Lorot -
Marchand et.al., denominada, em português, “Frequência e impacto sociopsicológico
da provocação em pacientes em idade escolar com correção cirúrgica de fissura
labiopalatina”. Ela também objetivou analisar a importância, o impacto e a frequência
da provocação escolar em pessoas com fissuras de lábio e palato. Ela difere da
anterior, porém, pois toda a amostra foi constituída por adolescentes de 12 a 18 anos,
que já passaram por cirurgias reparadoras. Durante uma consulta multidisciplinar, 55
pacientes foram convidados a responder um questionário composto por 3 partes:
Análise global de perfil e histórico médico- cirúrgico; análise de provocações sofridas
e impacto psicológico destas e compreensão socioeconômica do participante.
A média de ocorrência de bullying em idade escolar, na população geral da França
segundo o artigo, é de 25%. No entanto, a média da população participante do recorte
estudado foi de 69%. Vale citar que a maior frequência foi relatada por participantes
que tinham sido acometidos por fenda de lábio e palato associadas (77%), seguido
por aqueles que apenas possuíam a má formação labial (72%) e, por último, pacientes
com fenda palatinas (46%). Tendo em vista que as fendas labiais costumam ter
consequências estéticas mais severas na face, é possível associar a frequência do
bullying sofrido com a aparência destas pessoas. Em geral as provocações também
atingiram seu “pico” de agressividade na adolescência. A vitimização “[...] teve um
forte impacto no bem-estar psicológico dos jovens, já que metade deles se sentiu
‘triste’ sobre isso e mais de um quarto deles relataram ‘estarem marcados para a
vida'”. (LOROT-MARCHAND, A. et.al. 2015)
Os autores de ambos os artigos incluem, portanto, o fator do bullying ou “assédio
escolar” para avaliar o impacto psicológico da existência de fissuras labiais e de
palato. Eles argumentam que “[...] a ocorrência de provocações e assédio entre
colegas é uma poderosa experiência social negativa durante a infância e
adolescência.” E ainda que “[...] crianças que parecem diferentes podem experimentar
mais provocações” (FERAGEN; BORGE, 2010).
1009
Conclusão
Referências
FERAGEN, Kristin B; BORGE, Anne I.H. Peer harassment and satisfaction with
appearance in children with and without a facial difference. Norway: Body Image,
2010.
1010
KUHN, Vivian Dutra et al. Fissuras labiopalatais: Revisão de literatura.
Disciplinarum Scientia, 2012. p. 237 – 242. Disponível em:
https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/disciplinarumS/article/view/1016/960. Acesso
em 20 março 2019.
1011
SILVEIRA, Joao Luiz Gurgel Calvet; WEISE, Carla Mayara. Representações
Sociais das mães de Crianças portadoras de fissuras labiopalatais sobre
aleitamento, [S.L.], [S. Dt.]. Disponível em:
https://www.redalyc.org/html/637/63711746014/ Acesso em 16 março 2019.
VILA, Carlos; DIOGO, Sandra. Bullying. Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes:
Portugal, 2009.
1012
94- A VISÃO PSICANALÍTICA SOBRE POSSESSÃO DEMONÍACA
Resumo: O artigo traz uma discussão sobre a visão com relação à possessão
demoníaca, em suas análises Sigmund Freud a denomina como neurose demoníaca,
em seu texto: Uma neurose demoníaca do século XVII. São apresentados conceitos
psicanalíticos com relação à estrutura psíquica e da personalidade para que
possamos entender de forma mais clara a interpretação de Freud com relação ao caso
de Christoph Haizmann, o pintor que após a morte de seu pai decide realizar um pacto
com o diabo com o intuito de ser libertado de um estado depressivo, o mesmo
acreditava que este pacto pudesse ser finalizado apenas com a ajuda dos padres na
capela de Mariazell, após finalizar o pacto dedicasse a servir aos monges pelo resto
da vida.
(Artigo apresentado para conclusão do curso de Psicologia da Universidade Brasil, sob orientação do
Professor Ms. Fábio Pinheiro Santos)
Introdução
1013
O objetivo é apresentar os principais conceitos psicanalíticos acerca da
estruturação psíquica do sujeito (Id, Ego e Superego) e como estes se relacionam à
conclusão de neurose demoníaca.
1. Conceitos Psicanalíticos
A separação da estrutura psíquica foi entendida inicialmente como consciente,
pré-consciente e o inconsciente. Entre 1920 e 1923, Freud remodela a teoria do
aparelho psíquico e introduz os conceitos de id, ego e superego para descrever a
personalidade e compreender os processos patológicos da vida mental. O id constitui
o reservatório da energia psíquica, é onde se “localizam” as pulsões de vida e a de
morte, tem características inconscientes e é regido pelo instinto e princípio do prazer.
O ego possui as funções de memória, sentimento, percepção e pensamentos
estabelece o equilíbrio entre as exigências do id e as “ordens” do superego, ele é
orientado pelo princípio da realidade e juntamente com o princípio do prazer governam
o funcionamento psíquico.
Segundo Freud (1923-1925 p.49) “É fácil ver que o ego é aquela parte do id
que foi modificada pela influência direta do mundo externo, por intermédio do pcpt.-
Cs.; em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de superfície. Além disso, o
ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e
1014
esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente no id, pelo
princípio de realidade. Para o ego, a percepção desempenha o papel que no id, cabe
ao instinto. O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em
contraste com o id, que contém as paixões”.
O superego origina-se com o complexo de Édipo, a partir da internalização das
proibições, dos limites e da autoridade. O superego refere-se a exigências sociais e
culturais.
A energia dos instintos sexuais é chamada por Freud (1905) de “libido”, ela existe
desde o princípio da vida após o nascimento. O desenvolvimento da sexualidade se
dá em um período complexo e longo, até chegar na vida adulta. As funções de
obtenção de prazer e reprodução do sexo podem estar associadas tanto no homem
quanto da mulher.
1015
Complexo De Édipo E Castração
1016
Trophaeum Mariano-Cellense, seria a narrativa de Leopoldus Braun, o padre da aldeia
de Pottenbrunn, datada de 1º de setembro de 1677:
1017
intercâmbio com o demônio.
Christoph retorna a Mariazell e conta aos padres a razão para qual retornou,
teria de solicitar ao demônio para devolver seu outro compromisso anterior que foi
escrito em tinta. Ele orou de novo e recebeu de volta o pacto, se sentiu inteiramente
livre e ingressou na ordem dos Irmãos Hospitalários.
No manuscrito o compilador não esconde a indagação que foi feita pelo
superior do Mosteiro dos Irmãos Hospitalários em 1714 (em Viena) com relação à
história do pintor, o reverendo Pater Provincialis comunicou que o irmão Crisóstomo
havia sido tentado novamente pelo espírito mau, embora isso só acontecia quando
ele bebia vinho em demasia.
[...] Mas, pela graça de Deus, sempre fora possível repelir essas tentativas. O Irmão
Crisóstomo morrera de febre héctica. ’pacificamente e bem confortado’ no ano de 1700, no
Mosteiro da Ordem, em Neustatt sobre a Moldávia. (Freud, 1923-1925, p.94)
1018
Haizmann projeta no demônio os aspectos que sentia com relação ao seu pai.
Confirmado pela forma que o diabo se apresentou pela primeira vez como sendo um
cidadão honesto de idade avançada, barbas castanhas, vestido com uma capa
vermelha, apoiado com a mão direita em uma bengala e com um cão negro ao lado.
Posteriormente aparece com chifres, garras de águia e assas de morcego.
1019
Considera-se que o papel desempenhado pelo número nove o fato de que o
pacto com o maligno foi por nove anos, o pintor alega ter resistido às tentações do
maligno por nove vezes. Nas fantasias neuróticas o número nove e conhecido como
o número dos meses de gravidez o que pode ser significativo sob outros aspectos
também, a modificação esta de acordo com as exigências da condensação e do
deslocamento.
Segundo Freud (1923), a atitude feminina de um menino para com o pai sofre
repressão, ele compreende que a rivalidade com uma mulher pelo amor do pai tem
como condição a perda de seus próprios órgãos genitais masculinos, ou seja, a
castração. O repudio da atitude feminina é resultado de uma revolta contra a
castração, encontra sua expressão mais forte na fantasia inversa de castrar o pai, de
transformá-lo em mulher. Sendo assim os seios do demônio corresponde a uma
projeção da própria feminilidade sobre o substituto paterno. Ou ainda pode ser
entendido como uma forma de indicação de que os sentimentos da criança pela mãe
foram deslocados para o pai sugerindo intensa fixação na mãe que é responsável por
parte da hostilidade da criança para com o pai. Seios grandes são as características
sexuais positivas da mãe, mesmo numa ocasião em que a característica negativa de
uma mulher seria a falta de um pênis, ainda é desconhecida da criança.
1020
Se a relutância do pintor em aceitar a castração aumentou o anseio por seu
pai, é compreensível que tenha buscado auxílio e salvação na figura materna. Essa
pode ser a razão do pintor declarar que somente a Santa Mãe de deus de Mariazell
poderia salvá-lo do pacto com o demônio e de conseguir a libertação no dia da
natividade da Virgem (08 de setembro).
Discussão
Entende-se que o pai é representado tanto por Deus como pelo Demônio figura
está de projeção de impulsos não aceitos para com o pai como ódio e aspectos
reprimidos da sexualidade. Portanto nos deparamos com uma pessoa que assinou
um compromisso com o diabo, a fim de ser libertado de um estado de depressão.
Na Idade Média vários atos ou simplesmente desejos que hoje são corriqueiros,
eram considerados pecados, assim como na inquisição um simples resfriado, falar
com animais, autismo entre outros, eram sinais de bruxaria, as neuroses de daquela
época ganharam a representação demoníaca como única explicação aceitável.
1021
Conclusão
Referências
Freud, S. (2006). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Ed. Imago, 19.
https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/uma-breve-compreensao-sobre-o-
complexo-de-edipo. Acessado em 17/09/2017 às 22h14.
https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/ampliando-as-visoes-sobre-a-
formacao-da-neurose © Psicologado.com. Acessado em 09/10/2017 às 17h13.
1022
95- DEPENDÊNCIA MATERNA NA RELAÇÃO MÃE-BEBÊ: UM ESTUDO DE
CASO SOBRE ADOÇÃO
Introdução
A adoção é um campo recheado de discussões e reflexões que permeiam
muitos vieses de análises, pois se construíram ao longo da história diversos mitos
72 Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho em Assis-
SP.
73 Professor Pós-Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho em Assis-SP.
1023
sobre tais processos em razão dos seus desdobramentos, como: a constituição
vincular entre pais e filhos; os comportamentos das crianças nas famílias adotivas; os
processos de devolução de crianças que têm se apresentado nas demandas do fórum;
entre outros. Com base nesses elementos, torna-se importante ampliar algumas
dessas discussões, como, por exemplo, os processos de construção da maternagem 74
de mães adotivas e seus vínculos afetivos.
Neste sentido, este trabalho se propõe a discutir as dificuldades do processo
de separação na relação mãe-bebê em um caso de adoção de crianças gêmeas.
74
A maternidade se refere a um laço de sangue entre mãe e filho, ao passo que a maternagem está ligada à
relação afetiva, ao vínculo que se compõe entre mãe e filho e suas relações com o cuidado e o acolhimento
(Gradvohl, Osis, & Makuch, 2014).
1024
angústias, mas se tem a necessidade do filho, ela procura nele, inconscientemente, a
satisfação de suas próprias necessidades” (Villa, 2001, citado por Ladvocat, 2002, p.
35, grifo do autor).
Há uma gama de motivos que impulsiona a busca por filhos adotivos, além da
infertilidade. Outro propósito a destacar é a/o solidariedade/altruísmo, os quais não
são suficientes para o desenvolvimento do vínculo parental, uma vez que as diversas
emoções que são vividas nesta relação permanecem por um longo período de tempo,
o que necessita de condições psíquicas para vivenciá-las. Deve aparecer o desejo de
ter e estar com esse filho, pois a relação não se sustenta apenas em querer o bem
para ele, mas para que esta criança tenha um lugar nesta família (Otuka, Scorsolini-
Comin, & Santos, 2013).
A parentalidade75 é mais ampla e requer outros elementos psíquicos para se
estruturar. A esse respeito, Morelli, Scorsolini-Comin e Santeiro (2015) consideram
que ela está vinculada ao processo de adaptação dos pais com o filho adotivo, nesta
relação surgem conteúdos associados aos processos inconscientes desses pais
adotivos, como as fantasias, os lutos e as idealizações. Percebe-se a necessidade de
construção de um espaço no imaginário desses pais para que esse novo integrante
possa “nascer” com sua chegada a essa família nova, e aos poucos ir se identificando
no ambiente e ampliando o sentimento de pertencimento a este meio.
Nas condições relacionadas à maternagem em mães adotivas, vale destacar,
primeiramente, que as experiências emocionais em mulheres que serão mães, segundo
De Felice (2006), são contornadas pelo modo como a mãe internalizada atuará dentro
delas, trazendo, assim, as suas expressões da maternidade, as quais compõem as
relações mães-filhos diante dos fatores inconscientes e originários do psiquismo
materno. A história de vida da mãe pode impactar o desenvolvimento da condição de
maternar, pois os seus aspectos psíquicos, oriundos de sua história como filha,
precisam ter sido reprimidos e/ou elaborados para que não estraguem as
possibilidades de vivência do novo e do diferente, sendo importante o movimento de
ressignificar os conteúdos passados para que estes não fiquem se atualizando no
desenvolvimento presente e rompendo com as possibilidades de contar uma nova
75
Quanto à homossexualidade e ao lugar de pai e mãe, considerando as funções parentais, é possível
pensar nas figuras parentais, não necessariamente se tratando de diferenças sexuais, desde que esse casal
homossexual não tenha expressões vinculadas à anulação do sexo oposto (Hamad, 2002).
1025
história (Rotenberg, 2018). “No entanto, quando a mãe faz da criança um objeto
exclusivo de seu desejo, ou o bebê se torna um objeto de necessidade materna a
serem satisfeitas, a criança permanece como um ‘lactente prolongado’, atado a uma
mãe infantilizante e ansiógena” (De Felice, 2006, p. 136).
É importante destacar a ambivalência como um aspecto vivido na maternidade,
algo inerente a esse momento, coexistindo experiências de amor e ódio
simultaneamente na relação com seus filhos, desencadeando um sentimento de culpa
materno. Há sentimentos de raiva e ressentimento da mãe em relação ao filho pois,
muitas vezes, existe um conflito de necessidades, os da criança e os da própria mãe,
o que defronta com as exigências e expectativas sociais sobre a maternidade.
Winnicott (1956/2000) traz um conceito importante sobre as condições
necessárias para a função de maternar, a qual ele nomeou como “mãe
suficientemente boa”. Primeiramente, é importante considerar que a “mãe
suficientemente boa” é aquela que irá compreender as demandas do seu bebê, não
apenas as físicas como também as suas necessidades psíquicas. Esta junção
possibilita à mãe a condição de maternagem. Este conceito está ligado àquela mãe
que permite a vivência onipotente do bebê, garantindo esta experiência por diversas
vezes. Brota-se um self verdadeiro a partir do olhar inteiro desta mãe ao bebê.
(Winnicott, 1960/1983).
Esse autor se propôs a verificar as alterações que ocorrem na mulher quando
está gestando um bebê ou logo depois que o teve. Inicialmente, ocorrem basicamente
mudanças fisiológicas, a considerar em primeiro lugar o fato de sustentar o bebê em
seu útero. “De várias formas ela é encorajada por seu próprio corpo a ficar interessada
em si própria. A mãe transfere algo de seu interesse em si própria para o bebê que
está crescendo dentro dela” (Winnicott, 1960/1983, p. 52).
Por meio da identificação com este bebê, pode se desenvolver uma
sensibilidade maior quanto às necessidades dele, denominada de identificação
projetiva, a qual permanece por um determinado tempo após o parto, perdendo aos
poucos seu valor. Winnicott (1956/2000) denominou essa experiência de
“preocupação materna primária”, que se apresenta como algo significativo neste
processo de construção da maternagem, chegando a ser uma doença “saudável” em
que a mãe e o bebê se misturam em prol do desenvolvimento dele, processo
1026
denominado de dependência absoluta76. Em um segundo momento, essa mãe sai
desse processo de adoecimento para o outro estágio do desenvolvimento, ou seja, o
estágio de dependência relativa.
Como a criança supre uma falta materna ao nascer, fruto do narcisismo desta
mãe, é necessária uma atenção para que este bebê possa se tornar um indivíduo, não
sendo carregado pela função que a mãe quer que ele desempenhe; ao mesmo tempo
esse bebê imprime uma identidade nesta mãe. Ambos precisam renunciar ao
investimento narcísico que fazem um no outro, provedor da relação mãe-bebê.
Ressalta-se a necessidade de separação após o quarto mês de vida (Marson, 2008).
A função materna está relacionada à identificação da mãe com o bebê, mas
também com a condição desta enxergá-lo como outro, ter a possibilidade de vivenciar
a presença e a ausência, como também alienação e separação. Diante dos cuidados
necessários da mãe com o bebê, pode-se destacar a importância e a necessidade de
vivência do holding e do handling no favorecimento do desenvolvimento psíquico do
bebê e do vínculo mãe-bebê.
76 Winnicott (1960/1983) explica que o bebê vivencia uma experiência de dependência absoluta,
na qual ele ainda não percebe a mãe como alguém separado dele, em um segundo momento do
desenvolvimento, ele vai se deparando com uma dependência relativa em que o lactente pode se
deparar com a necessidade de cuidados desta mãe e, aos poucos, pode relacionar este fato aos seus
impulsos pessoais até que chegue à independência relativa, na qual o bebê adquire formas para
alcançar o desenvolvimento de cuidados reais, introjetando-os.
1027
Quando se relaciona à adoção é importante considerar a seguinte reflexão de
Queiroz (2018):
Sabemos que o processo de filiação é muito complexo. Ter um filho não se resume ao
fato de procriar, de engravidar. É preciso considerar dois desejos, que não são a
mesma coisa: o de engravidar e o de ter um filho. Eles são distintos. Como nos ensinou
Dolto (1998), toda criança além de ser concebida, deve ser adotada pelos seus pais.
Isso significa dizer que a filiação não é apenas uma questão de corpo ou de filiação
biológica. Cada sociedade tem seu próprio sistema de parentalidade e de filiação, e
trata-se de um sistema de lugares e de posições, de relações ordenadas pela lei (p.
139).
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa77, baseada em um estudo de caso com
uma mãe adotiva, que estava no momento da pesquisa com duas filhas gêmeas de 3
anos e 3 meses, sendo adotadas aos 9 meses de idade. Os instrumentos utilizados
77
Este trabalho é um recorte de uma pesquisa de mestrado, submetida ao Comitê de ética sob o número
de Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 76916617.2.0000.5401 e aprovação mediante o
parecer número 2.546.955.
1028
para compor o estudo de caso foram: o procedimento do Desenho-Estória com Tema
e a entrevista semiestruturada.
Utilizou-se de duas consignas para o desenvolvimento deste procedimento,
sendo a primeira: “Uma mãe cuidando de um bebê” (neste momento a mãe realiza o
desenho, após tal atividade é solicitado que ela conte uma estória do desenho – sendo
possível realizar o inquérito por parte do pesquisador, com o propósito de ampliar as
compreensões – e, por fim, dê um título para a estória.); em seguida, há a solicitação
da segunda consigna: “Você cuidando do bebê que você adotou”, seguindo os
mesmos passos citados na primeira consigna.
Após a realização do procedimento do D-E com Tema foi realizada uma
entrevista semiestruturada a fim de complementar os dados sobre a relação mãe-
bebê. Utilizou-se do método psicanalítico e da narrativa psicanalítica para compor a
descrição e análise dos dados.
Resultados
Apresentação do caso
Sônia78, 50 anos, é casada, ficou na fila de adoção por 4 anos, trabalha com o
marido (53 anos) no próprio negócio. Seu período de trabalho antes da chegada das
filhas era de carga horária completa, com oito horas diárias e, após a adoção, reduziu
sua carga horária para o período da tarde, em virtude da rotina que impôs a todos na
casa em virtude da adoção.
Sônia estava com muito receio de ser identificada, visto que foi orientada
inicialmente a sair de todas as suas redes sociais e de qualquer tipo de exposição em
razão da localidade dos genitores das filhas e do enfretamento quanto à destituição
do poder familiar.
No decorrer da entrevista, houve o desejo de apresentar as crianças para a
pesquisadora, relatando que já havia passado da hora delas acordarem e, a partir de
então, não foi possível construir novos questionamentos, pois as crianças
preencheram todo o espaço, sendo trocadas e alimentadas. Havia uma necessidade
de cumprimento da rotina.
78 Nome fictício.
1029
Uma das crianças tinha dificuldade com a fala, não tendo nenhuma
comunicação verbal, apenas resmungos. Para suprir as necessidades desta filha, a
mãe sugeria alguns desejos da criança, na tentativa de identificá-los.
1030
A seguir, transcreve-se a estória da Figura 1, referente à primeira consigna:
“Uma mãe cuidando de um bebê”.
Título: Corpo a Corpo
Estória: Ah eu acho que as crianças gostam muito de colo, vixe, até então eu estou assim toda dolorida
[risos], e eu acho que o contato corpo a corpo assim mãe e filha é muito importante, uma coisa é você
por no carrinho e ficar chacoalhando a criança, outra coisa é você pegar no colo e dar carinho, eu acho
que é isso, acho que mãe não é mãe a distância, mãe tem que ser mãe presente, e o contato de mãe e
filho corpo a corpo acho que dá muita segurança pra criança e demonstra também que esse contato vai
trazer muito contato pra ela, segurança, equilíbrio, disciplina, alguém que ela possa ter confiança, mesmo
que nos momentos que você tem que corrigir, que você tem que ensinar, mas isso mostra que com o
calor do próprio corpo a criança sinta que ali que tá, que ela pode depositar assim, a vida dela, confiança
que é uma pessoa que está ali não só presente de corpo mas assim, de contato mesmo, de sangue.
(Como que você acha que esse bebezinho está se sentindo?) Amado [risos], feliz, eu até desenhei ele
dormindo sorrindo e, a mãe eu acho que está com tanto sono também que acaba entrando no mesmo
esquema. (Como que você acha que esta mãe está se sentindo, nesse lugar de cuidar dessa criança,
desse bebê?) Ah, ela está se sentindo recompensada, ela vê que a criança está respondendo aquilo que
ela está querendo propor pra ela, está se sentindo feliz também, muito feliz. (Como que você colocaria
um título pra essa estória?) Um título, é... eu colocaria: “corpo a corpo”.
el
ria... sei lá, eu acho que na hora de cuidar... cuidar mesmo, trocar, dar banho, dar comida... até brincar, é uma forma de cuidar
sto de fazer, que é cuidar, eu gosto de ver bem. (Você gosta?) Gosto! E alimentação é uma coisa assim, que pesa bastante,
e de crescimento e a gente percebe quando a gente adotou elas eram bem bochechudas aí vai crescendo e vai emagrecendo,
s assim, bem e quando elas estão comendo é um sinal de que estão bem também, porque você pega as vezes que estão
ah, você quer morrer, porque já está doente e não quer comer. É perigoso, mas elas são tão fortes que mesmo doente elas
Nossa, come que, nossa, todo mundo fala “Sônia e aí?”, aí eu falo “não, só dessa última vez que não quiseram comer porque
na garganta, então comiam e vomitavam” porque dava aquela sensação de tosse... (As duas?) não... foi uma. Pegou uma
cou bastante o pulmão quase pneumonia, mas é assim, uma ficou doente na outra semana a outra fica, e a outra não ficou
ma gripe mais levezinha, melhorou mas de repente deu uma recaída de uma vez, aí que não comia nada mesmo, nossa e eu
que precisa comer, precisa estar bem, e a fome é um sinal que o organismo está bem, então eu acho assim, a parte de
e que mostra que você está cuidando delas e eu faço elas não comerem besteira, de ter uma saúde, ter uma alimentação
ado que eu estou vendo que muitas mães até hoje não tem, dá muita besteiras pros filhos comerem e é uma coisa que todo
nia você não dá isso?” “não” “Você não dá chocolate?” “não” “Não dá refrigerantes?” “não” “Não dá doce?” “não” “O que suas
arroz, feijão, fruta, legumes, carne, peixe, água, suco” e estão fortes né, se você ver o tamanho delas... Alimentação é uma
meu marido, a gente preza assim pra caramba, porque se elas tiverem essa coisa de comer saudavelmente na infância, depois
er problemas, pode até depois mais tarde querer comer as besteiras da vida, mas não estão sendo criadas em cima de lanche
s assim, a gente dificilmente, uma vez ou outra leva pra não falar que não foi, pra não ser uma criança também... né, é tudo
, eu que faço almoço e janta, eu que faço tudo, então a gente cuida muito dessa parte da alimentação delas, e é por isso que
bem e eu acho que é isso.(Como que você acha que essa criança está se sentindo? Essa bebê aí no seu desenho.) Com a
1031
ome (risos) (E essa mãe?) Essa mãe está feliz de estar vendo ela com fome. Pra poder nutrir, pra poder alimentar. (E como
o?) O título? “Cuidar é Saudável”.
Síntese da entrevista
Sônia e o marido buscaram a adoção em razão da infertilidade de ambos e de
tentativas frustradas de tratamentos e fertilizações. A motivação se deu também por
perceberem que estava se aproximando da velhice e o querer ser mãe, pois tanto ela
quanto o marido gostam muito de crianças.
Levou 4 meses para estarem cadastrados no fórum. Esperaram um ano e dois
meses, até que o fórum entrou em contato novamente para verificar o interesse do casal
na adoção e analisar novamente o perfil de interesse. Reavaliaram o perfil que havia no
sistema, no qual estava descrito que seus interesses eram de uma menina com até 4
anos de idade, a qual não era a realidade das crianças que estavam para adoção.
Diante desta situação, Sônia aceitou “abrir” o cadastro, havendo a possibilidade de
adoção de grupo de irmãos, crianças com deficiência etc. Contudo, depois de 15 dias,
os fóruns de diversas cidades começaram a telefonar sobre crianças disponíveis para
adoção em face do novo perfil, porém eram de cidades distantes e precisariam se
deslocar e abdicar do trabalho para período, surgiram duas crianças (gêmeas), na
mesma cidade de Sônia, então a equipe técnica entrou em contato, questionou o
interesse do casal e este aceitou.
Para conhecer melhor o campo da adoção, Sônia, por intermédio de um
movimento religioso, realizou um trabalho em um bairro carente de sua cidade. Nessa
atividade pôde compreender todo o envolvimento do Conselho Tutelar, as retiradas
de crianças de seus lares, os sofrimentos gerados tanto nos pais quanto nas crianças.
O objetivo deste grupo era realizar tentativas de resgatar o ambiente familiar para que
as crianças não fossem retiradas de seus pais.
Com o aceite na adoção das meninas surgiram as dificuldades na adaptação em
relação às rotinas, ao dormir, entre outras. Sônia considera ser uma experiência muito
parecida com o nascimento biológico, pois não há “manual de instrução”. Apresenta
dedicação exclusiva às filhas, dizendo que “tudo gira em torno delas” e nutre a ideia
de que salvou duas vidas, além de sentir muito prazer na maternidade. Sônia não
colocou as filhas na escola, relatando sempre desejar cuidar de seus filhos, além de
não ter “coragem, a criança não sabe nem falar, e eu vou dar pra outra pessoa cuidar
1032
né?”. Sônia leva as filhas no trabalho e lá elas dormem um período significativo, após
acordarem, “volto à função de mãe... sendo tudo maravilhoso”. A adaptação inicial
ocorreu de forma lenta, pois precisaram conhecê-las, e para isso criou uma rotina para
segurança delas e para si mesma, tendo horário para todas as atividades. Sônia trocou
os nomes das filhas, a fim de preservar a identidade de todos.
Discussão
Sônia carrega consigo elementos voltados à persecutoriedade vivida ao longo
dos processos de adoção, desde seu trabalho voluntário até os dias atuais. Ao realizar
o trabalho voluntário, Sônia se identifica com as mães dos bebês que são destituídos
do poder familiar. Neste sentido, ambas experienciavam a “perda” do filho, além de
reparar suas fantasias de roubos, visto que a adoção é possível a partir da destituição
do poder familiar.
O desejo pela maternidade foi sendo apresentado na entrevista e nos desenhos,
porém notou-se certa fusão neste movimento, como observado no primeiro desenho
“corpo a corpo”, no qual se observa mãe e filha desenhadas iguais, sendo a filha uma
miniatura da mãe, ambas embaladas em um sono, conforme também foi visto na
estória: “eu até desenhei ele dormindo sorrindo e, a mãe eu acho que está com tanto
sono também que acaba entrando no mesmo esquema”.
Destaca-se, aqui, o ideal de mãe que é construído no imaginário desta mulher,
dificultando as desconstruções deste lugar, para que possa, com isso, enxergar o
bebê como um “outro”, de forma a compreender as reais necessidades dele. No
segundo desenho, observou-se o modo como aparece a relação mãe-filha,
apresentando aspectos narcísicos desta mãe, voltada para esse lugar do idealizado,
embalada em seus próprios sonhos e desejos, além de permanecer na fusão com a
filha. Contudo, uma mãe voltada a si mesma e uma criança sedenta de fome,
assustada e com certa distância psíquica desta mãe.
É relevante apontar o quanto essa mãe está vinculada aos cuidados físicos de
nutrição, sendo necessário manter as filhas saudáveis, como garantia de cuidados
efetivos e reais, tornando-a boa mãe. Isso faz olhar para esse lugar do desejo, que
por vezes a tem deixado voltada para seus aspectos narcísicos, os quais a distanciam
da promoção de outros tipos de cuidados, como os de ordem mais subjetiva, que
poderão amparar as necessidades psíquicas deste bebê fruto de um abandono.
1033
Sônia vivenciou a experiência de espera para a adoção como um processo
gestacional, com o interesse de tornar o mais próximo possível do natural. Isso
possibilitou experimentar a condição de preocupação materna primária, entretanto,
pôde-se notar que aspectos narcísicos acabaram se sobrepondo em determinados
momentos, impossibilitando a vivência integral deste importante momento do
desenvolvimento, o qual favorece a vinculação mãe-bebê. Neste sentido, encontra-se
uma dificuldade materna em se desprender das crianças para resgatar sua vida e
permitir o desenvolvimento individualizado delas, que vivem integralmente com a mãe,
por meio de uma “dedicação exclusiva” a elas. Isso possibilitou pensar sobre a
dificuldade acentuada da fala de uma das filhas e a permissão para o desenvolvimento
e crescimento delas, o que impulsionaria o desenvolvimento das condições maternas
de Sônia e o enfretamento da realidade da adoção, com as idas à escola, a outros
grupos e em relação às próprias filhas.
Sônia, assim como todas as mães, carrega consigo sentimentos onipotentes, o
que intensifica seu ideal de ego, como o fato de ter salvado duas vidas e a
necessidade constante de as filhas “reconhecerem-na” por meio do sentir-se amada
por elas. Além de um desejo de romper com a história pregressa das filhas, a partir
de uma troca de nomes, o que na fantasia, aproxima de um nascimento por meio de
um parto natural e de um rompimento com a experiência de que suas filhas tiveram
uma mãe biológica.
Considerações finais
Os processos de desenvolvimento emocional são afetados por diversos
conteúdos inconscientes da dupla mãe-bebê. Neste sentido, pensar a adoção, implica
a elaboração dos lutos necessários de serem vividos pelo pretendente a adoção, além
de pensar em uma criança fruto de um abandono, ou de diversos abandonos, os quais
levam essa experiência originária em seu processo de vinculação. Diante disso, há
muitas outras experiências que perpassam a maternidade, como as revivências do
lugar de filha, as quais emergem “buracos psíquicos” muitas vezes desconhecidos e
que resultam nas dificuldades de desenvolvimento saudável das futuras relações com
seus filhos. No caso apresentado, a simbiose/fusão mãe-bebê tem sido um campo
significativo de análise, pois tem apresentado o desenvolvimento de sintomas e de
regressão do desenvolvimento emocional da dupla mãe-bebê, ou seja, é necessário
1034
compreender tais elementos para que se possa promover o continuar a ser dos
indivíduos, a fim de proporcionar um desenvolvimento/crescimento saudável desta
dupla.
Referências
Hamad, N. (2002). A criança adotiva e suas famílias (R. Felgueiras, trad.). Rio de
Janeiro, RJ: Companhia de Freud.
Marson, A. P. (2008, junho). Narcisismo Materno: quando meu bebê não vai para
casa... Revista da SBPH, 11(1), 161-169.
Morelli, A. B., Scorsolini-Comin, F., & Santeiro, T. V. (2015). O “lugar” do filho adotivo
na dinâmica parental: revisão integrativa de literatura. Psicologia Clínica, 27(1), 175-
194. Recuperado de
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
56652015000100010&lng=pt&tlng=pt
1035
Oliveira, P. A. B. A. de, Souto, J. B., & Silva Júnior, E. G. da (2017). Adoção e
Psicanálise: a Escuta do Desejo de Filiação. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(4),
909-922. Recuperado de https://dx.doi.org/10.1590/1982-3703003672016
Otuka, L. K., Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. dos (2013). Adoção tardia por casal
divorciado e com filhos biológicos: novos contextos para a parentalidade. Estudos de
Psicologia (Campinas), 30(1), 89-99. Recuperado de
https://dx.doi.org/10.1590/S0103-166X2013000100010
Queiroz, E. F. (2018). O que quer uma mulher quando adota? In G. K. Levinzon, & A.
D. Lisondo (Orgs.), Adoção: desafios da contemporaneidade (pp. 137-154). São
Paulo, SP: Blucher.
1036
96- VIDEOGAME E SUBJETIVIDADE: SEUS SIGNIFICADOS NA ATUALIDADE
79
Graduada em Psicologia, pela Universidade Paulista, Pós-Graduada em Neurociência e Psicologia
Aplicada, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestranda em Psicologia e Políticas Públicas, na
Universidade Católica de Santos. Email: pamellapinho@outlook.com
80
Pós doutoranda em Psicologia clínica pela PUC-SP, docente na Universidade Católica de Santos. Email:
thalita.nobre@unisantos.br
1037
1 INTRODUÇÃO
Por estar tão presente, muitas pesquisas são realizadas para compreender os
efeitos que tais tecnologias podem ter sobre o ser humano, principalmente sobre
aqueles que se encontram em fase de desenvolvimento.
Uma vez inserido no cotidiano, os efeitos podem ser diversos e, assim como a
maioria dos equipamentos tecnológicos, pode trazer malefícios e benefícios. E,
estando ao alcance de tantas pessoas, se faz necessário compreender os efeitos que
tais equipamentos proporcionam, bem como entender e buscar formas produtivas e
proveitosas de se utilizar estes recursos. Existem diversos artigos que enaltecem a
potencialidade do videogame como alternativa para o melhoramento de diversas
cognições, tais como atenção, memória de trabalho e longo-prazo e cognições
espaciais (GREEN; BAVALIER, 2012; FENG, SPENCE, 2014).
Como destacado anteriormente, o videogame encontra-se inserido no cotidiano
da população, sendo utilizado como fonte de entretenimento. Porém, com o uso do
81
The most essential distinguishing feature of video games is that they are interactive; players cannot passively
surrender to a game’s storyline. Instead, video games are designed for players to actively engage with their
systems and for these systems to, in turn, react to players’ agentive behaviors. […] These games can be played
cooperatively or competitively, alone, with other physically present players, or with thousands of other online
players, and they are played on various devices from consoles (e.g., Nintendo Wii, Playstation) to computers to
cell phones.
1038
aparelho, é possível questionar se há efeitos e quais seriam estes. Portanto,
pesquisas vêm sendo realizadas, investigando os diferentes efeitos e em quais áreas
os mesmos podem ser observados, principalmente na saúde mental, tendo em vista
a amálgama entre mundo “real” e virtual. Este ambiente passa a ser acessível na
medida em que as novas tecnologias são apresentadas e disponibilizadas para a
sociedade. Porém, é necessário ressaltar que o mundo virtual não é menos real
apenas por não ser palpável, afinal, as interações e ações ocorridas nele tem
consequências tão reais quanto fora dele.
Assim sendo, o presente trabalho busca, por meio de revisão bibliográfica,
apontar alguns dos benefícios do vídeo game e sua relação com a sociedade atual e
o contexto em que ela está entreposta.
3 DESENVOLVIMENTO DO TEMA
1039
está mais acessível e imediata, permitindo que o sujeito seja alcançado onde quer que
ele esteja, a qualquer momento, o que levou a mudar a forma como o indivíduo se
comunica e percebe o outro dentro de sua realidade.
Com o crescimento das redes sociais, tornou-se frequente o compartilhamento
de informações. E isto não se dá através, apenas, de palavras, mas por meio de
imagens e vídeos, criando-se uma sociedade virtual que, direcionada pela sensação
de liberdade, exprime desmedidamente suas convicções e essa, por sua vez, é
sustentada por incontáveis novidades e atualizações. Por ser um meio estimulante e
através do anonimato e do espaço virtual, as fantasias podem ser experienciadas com
maior facilidade e aceitação sem necessariamente arcar com as responsabilidades
implicantes em determinadas situações. Afinal, a qualquer momento, quando
desagradado ou contrariado, o sujeito pode desvincular-se do aparelho que está
utilizando, seguindo com sua vida (KALLAS, 2016, p. 56).
Outro ponto a ser considerado é a retribuição que o mundo virtual propicia aos
seus usuários. Uma vez que se queira obter uma informação, poucos cliques ou
gestos tornam realidade aquilo que se deseja saber, trazendo com riqueza de detalhes
informações acerca do que foi pesquisado. Tais recompensas podem se tornar
irresistíveis para algumas pessoas, levando-as a abusar do uso desse mundo virtual.
Segundo Souza e Salgado (2008), é através da brincadeira que a criança
assimila regras e valores que o contexto do sócio-histórico em que está inserido, de
modo a carregar estes aprendizados ao longo de sua existência. Não obstante, por
mais que estes valores sejam ressignificados e modificados conforme o sujeito
experiencia o mundo, tais códigos de conduta e respeito para com a vez e opinião do
outro são apresentados e vivenciados através, também, da brincadeira.
Kallas (2016) torna a apontar como a vida virtual e a vida real mesclam-se, de
modo a levar as pessoas a mergulharem na primeira e transportarem para a segunda,
usando o exemplo do jogo “Second Life”82, onde as pessoas vivem vidas virtuais,
casando-se, comprando bens, trabalhando, entre outros. Ela questiona como a
subjetividade do indivíduo seria afetada, como ela se formaria diante das
transformações psicossociais e sócio-históricas. Cabe ressaltar que o jogo “Second
Life”, lançado em 2003, tinha uma representação diferente. A tecnologia não havia
alcançado a maior parte da população, ter equipamentos como computadores, vídeo
82
“Segunda Vida”, em tradução livre
1040
games e smartphones exigia alto poder aquisitivo, de modo que o jogo, por si só,
representava um outro universo destacado da realidade do jogador, pois havia uma
distância maior entre as interações feitas online e no mundo não virtual. Porém, o jogo
citado anteriormente caiu em desuso, pois o universo virtual não carecia mais de um
jogo em específico, pois se encontra ao alcance de muitos e com maior imersão,
graças à popularização da internet e à maior acessibilidade à celulares, computadores
etc.
Na obra “Psicologia de grupo e análise do ego”, Freud (1921) ressalta que a
experiencia subjetiva do sujeito tem como referência o outro, a linguagem e a
determinação simbólica dela. Isto também pode ser vislumbrado na obra Projeto para
uma psicologia científica (1950/1895), onde o autor frisa como, desde o início de sua
vida, o sujeito necessita e é amparado pelo outro. Em complemento a isso, Kallas
explica como a psicanálise percebe, do ponto de vista psicológico, a divisão entre
coletivo e individual
1041
tomada, maior o envolvimento humano para lidar com tais dados e mais importantes
os mesmos se tornam (DA SILVA et al., 2011).
Desta forma, faz-se necessário ponderar sobre a individualidade deste mesmo
sujeito, que se encontra inserido neste contexto social. Afinal, é possível considerar a
mescla que a realidade virtual proporciona para este indivíduo. Dunker reflete sobre o
assunto, utilizando-se de um jogo virtual que exige interação com o mundo real.
1042
com barreiras que antes determinavam como e onde deveriam ocorrer ou destinar o
tempo para cada atividade. A modernidade tornou-se espontânea e imediata, exigindo
que os indivíduos sejam dinâmicos e sem moldes, agindo conforme a situação e
quando ela se apresenta.
1044
mundo com extrema facilidade, principalmente em Massive Multiplayer Online Games
(MMOGs) que em tradução livre, significa jogos online com milhares jogadores
jogando simultaneamente no mesmo ambiente virtual.
Diante dessas mudanças, passou-se a investigar como se dão as interações
sociais através do vídeo game, como elas afetariam seus jogadores e o que os
estimula a procurar o vídeo game. Szell e Thurner enfatizam este último ponto e
comentam sobre as interações sociais.
83
Motivation of players to participate in MMOGs are highly heterogeneous, ranging from
establishing friendships, gain of respect and status within the virtual society, to the fun of destroying the
hard work of other players. Besides economical and social interactions, modern MMOGs also offer a
component of exploration, e.g. players can explore their ‘physical’ environment, such as specific features
of their universe, ‘biological’ details of space-monsters, etc., and share their finding within ‘specialist’
communities.
84
The player’s present internal state in turn affects how social encounters are perceived and interpreted,
and this decision process determines how the video game player will behave
1045
indivíduo e, desta forma, apresentar-se como uma maneira pela qual este pode
descarregar motoramente sua agressividade sem, de fato, ferir alguém, usando
somente seus avatares em jogos de luta, por exemplo. A violência, então, é
extravasada de modo físico através do apertar dos botões do controle, cabendo
somente dentro da tela. Ademais, a atração pelo poder e a necessidade de controle
do sujeito são facilitadores para o uso do vídeo game, pois este proporciona um
universo a parte, onde o jogador manipula e decide o destino de personagens, cidades
e planetas, julgando como lhe aprouver.
Logo, além de possibilitar a exploração de lugares novos, com características
e simbologias únicas, permite que o indivíduo encontre e interaja com outros que
partilham das mesmas preferências, debatendo conceitos, itens e características. Ao
transpor a mesma situação para o mundo não virtual, estas mesmas interações não
seriam tão fáceis, demandando muito mais tempo e esforço. Além disso, quando o
debate deixa de ser prazeroso, tanto o locutor quanto o interlocutor podem
simplesmente “sair” do ambiente virtual em comum ou bloquear o indivíduo que lhe
incomoda. Não é preciso argumentar mais do que a pessoa julga ser necessário.
Nesta nova cultura, onde gerações estão cada vez mais imersas neste âmbito,
questiona-se como estes mesmos indivíduos lidam com a socialização no mundo não
virtual, principalmente quando se é exigido maior traquejo social, principalmente
quando é considerado adulto pela sociedade que o cerca. Juntando todos os aspectos
citados, pretende-se investigar como o vídeo game pode ser um catalisador para a
socialização entre jovens adultos, de modo a levantar dados sobre suas dificuldades
neste âmbito, compreender estas afetam o indivíduo e proporcionar ambiente de
acolhimento e segurança para estas pessoas se expressarem e debaterem.
4 CONCLUSÃO
5 REFERÊNCIAS
Bavelier, D., Green, C. S., Han, D. H., Renshaw, P. F., Merzenich, M. M., & Gentile,
D. A. (2011). Brains on video games. Nature reviews neuroscience, 12(12), 763-768.
Recuperado em 10 outubro, 2019, de
https://www.nature.com/nrn/journal/v12/n12/abs/nrn3135.html
Dos Santos, C. C. & Barros, J. F. (2018) Efeitos do uso das novas tecnologias da
informação e comunicação para o desenvolvimento emocional infantil: uma
compreensão psicanalítica. Recuperado em 16 setembro, 2019, de
http://www.psicologia.pt/artigos/textos/TL0435.pdf
Feng, J. & Spence, I. (2014) How Video Games Benefit Your Brain. Recuperado em
11 outubro, 2019, de
https://www.researchgate.net/profile/Ian_Spence2/publication/251368869_How_Vide
o_Games_Benefit_Your_Brain/links/00b495320b3fa628d8000000.pdf
Freud, S. (1921). Psicologia de grupo e análise do ego. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18, 89-179
1047
Greitemeyer, T., & Mügge, D. O. (2014). Video games do affect social outcomes: A
meta-analytic review of the effects of violent and prosocial video game
play. Personality and social psychology bulletin, 40(5), 578-589. Recuperado em 9
setembro, 2019, de http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0146167213520459
Souza, S. J., Salgado, R. G., & Gonçalves, R. (2008). A criança na idade mídia.
Reflexões sobre cultura lúdica, capitalismo e educação. SARMENTO. M. J; GOUVEA.
MCS (orgs.). Estudos da Infância: educação e práticas sociais. Petrópolis, RJ: Vozes.
Szell, M., & Thurner, S. (2010). Measuring social dynamics in a massive multiplayer
online game. Social networks, 32(4), 313-329. Recuperado em 2 outubro, 2019, de
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0378873310000316
Freud, S. (1895). Projeto para uma psicologia científica. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1, 1950.
1048
97- OS ASPECTOS PSICOLÓGICOS DE IDOSOS COM DOENÇA PULMONAR
OBSTRUTIVA CRÔNICA (DPOC)
85
Estudante de Graduação em Psicologia da USJT
86
Estudante de Graduação em Psicologia da USJT
87
Psicóloga Clínica. Professora Doutora, no Programa de Pós Graduação Strictu Sensu em Ciências do
Envelhecimento e Professora no curso de Psicologia na Universidade São Judas Tadeu-USJT
1049
INTRODUÇÃO
OBJETIVOS
1050
MÉTODO
1051
RESULTADOS E DISCUSSÃO
88
Para manter o sigilo da identidade dos mesmos, optou-se em nomeá-los numericamente.
1052
depressivo de acordo com a Escala de Depressão Geriátrica (GDS-15), atingindo uma
pontuação de oito pontos. Se compararmos o desempenho geral dos idosos da
amostra com estudos encontrados na literatura, pode-se observar que não é raro
concomitante ao quadro de DPOC apresentar-se comorbidades como depressão e
ansiedade, tais patologias podem estar associadas à limitação física enfrentada,
principalmente para realização de atividades básicas de vida diária influenciando em
uma redução na qualidade de vida
1054
participantes, assim como há também a perda de atributos do ego como a
independência, aspecto esse também vivenciado.
No que diz respeito a percepção dos participantes dois destes (P4 e P5)
interpretaram a tarefa de forma atípica, contando histórias diferentes quando
comparado aos temas suscitados pela maioria. Em relação à qualidade das histórias
relatadas houve o predomínio de elementos mais descritivos das pranchas em
contrapartida apenas dois participantes apresentaram sentimentos, pensamentos e
atitudes das personagens. Sobre motivação em relação de interação com o ambiente
e as motivações para solução de problemas, houve predomínio de narrativas com
fatores ausentes e não discerníveis por não ter elementos suficientes na narrativa para
interpretação desta categoria em ambas as pranchas, tal fato pode relacionar-se com
sentimento de impotência frente a doença.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
1057
Ernesto, 12 (2), 13-18. Retirado de:
http://revista.hupe.uerj.br/detalhe_artigo.asp?id=389
Bellak, L., & Abrams, D. M. (1998). Manual for the senior apperception technique.
New York, NY: P.O.
Caram, L. M. O., Ferrari, R., Naves, R. C., Coelho, S. L., Vale, A. S., Tanni, E. S.,
Godoy, I. (2016). Risk factors for cardiovascular disease in patients with COPD:
mild-to-moderate COPD versus severe-to-very severe COPD. Jornal Brasileiro
de Pneumologia, 42(3), 179-184. https://dx.doi.org/10.1590/S1806-
37562015000000121
Farias, G., Martins, R. (2015). Qualidade de vida da pessoa com doença pulmonar
obstrutiva crônica. Millenium, 48(20), 195-209. Retirado de:
https://revistas.rcaap.pt/millenium/article/view/8102
Global initiative for chronic obstructive lung disease (2005). Guia de bolso para
diagnóstico, conduta e prevenção da DPOC. Copyright. GOLD Brasil. Retirado
de: http://www.golddpoc.com.br/arquivos/guia_bolso_gold.pdf
1058
Hopp, S. M., Wollenhaupt, K., Junior, C. S., Flores, B. C., Rossato, C. T. (2019).
Implicações sociais e fisioterauticas no tratamento do paciente DPOC: relato de
experiência. II simpósio da residência multiprofissional em saúde do hospital santa
cruz. Retirado de:
https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/simposiohsc/article/view/19428.
1059
98- ANÁLISE PSICANALÍTICA DO DISCURSO DE ÓDIO PRESENTE NAS REDES
SOCIAIS DIGITAIS
Resumo: Este trabalho teve como objetivo discutir sobre as manifestações psíquicas
presentes na propagação do discurso de ódio nas redes sociais digitais. Assim,
buscou-se compreender o sentido da satisfação das pulsões que regem tais
manifestações e compreender sobre os mecanismos de defesas que estariam
envolvidos neste comportamento. A metodologia empregada neste trabalho foi a de
pesquisa qualitativa de cunho documental. Em um primeiro momento, foi realizada a
pesquisa bibliográfica discutindo sobre o homem na pós-modernidade e sobre a
sociedade em rede. Posteriormente, foi realizado um aprofundamento sobre os
conceitos psicanalíticos para compreender as manifestações psíquicas na
disseminação desse tipo de discurso. Por último, foram reunidos recortes de algumas
postagens de conteúdos considerados violentos que foram publicados nas
plataformas sociais: Twitter, Facebook, Youtube e E-book. As amostras foram
analisadas qualitativamente sob a perspectiva psicanalítica e a partir disso, pode-se
concluir que as pulsões relacionadas ao ódio encontrariam satisfação na realidade
das redes pela via do ataque e destruição do outro como via de defesa para a não
destruição do próprio narcisismo, e mais, obteve-se que haveria, pela destruição do
outro, o alimento narcísico do próprio indivíduo. Também se obteve que, a fim de
resguardar a realidade, mecanismos de defesa foram utilizados nesse modo de
manifestação do discurso.
1060
INTRODUÇÃO
As redes sociais vieram com a intenção de expandir a intercomunicação
online, e isso se deu principalmente com a crescente sofisticação dos dispositivos
móveis com acesso às redes de qualquer lugar e hora.
Os conteúdos publicados na rede são propagados de forma abstrata e
intensificados, dada à capacidade de compartilhamento da rede, e por esta razão,
quando um usuário publica algum conteúdo, ele se torna muito mais abrangente, o
mesmo ocorre com a divulgação de mensagens violentas, que atingem uma
proporção de incentivo à intolerância, expandindo um discurso de ódio. (Santos,
2016). De acordo com Silva et. al. (2011), a internet funciona como um mecanismo de
projeção e assim como em um espelho, nela é refletido também aspectos menos
promissores do ser humano, como os atos ilícitos, a repercussão de mensagens
danosas e a violação de direitos.
Por este motivo, este trabalho objetiva identificar quais manifestações
psíquicas se fazem presentes na disseminação do discurso do ódio nas redes sociais,
bem como identificar as pulsões que regem este comportamento.
Deste modo, a curiosidade pelo tema proposto parte da percepção de toda a
problemática em torno da proliferação desse tipo de discurso nas redes sociais, visto
que, para Santos (2016), “O discurso de ódio é um fenômeno social e midiático que
se tornou um problema de segurança pública para os Estados”. Ou seja, considero
este trabalho de grande importância, pois a internet é um meio rápido de circulação
de conteúdo, e a propagação destes discursos ofensivos pode acarretar danos
significativos para a pessoa/grupo atingido.
Quanto a metodologia, este trabalho está assim organizado: num primeiro
momento apresento alguns levantamentos bibliográficos, conceituando e discutindo
sobre a entrada do homem na pós-modernidade, bem como do entendimento de como
se estabeleceu a comunicação da sociedade pós-moderna após o advento da
tecnologia e das mídias sociais, passando pela explicação do conceito de ciberespaço
e da criação de plataformas que visam expandir a intercomunicação online, as redes
sociais.
Num outro momento, apresento algumas considerações sobre a linha tênue
entre a liberdade de expressão e discurso de ódio, trazendo à tona a discussão sobre
como a propagação de discursos com tais conteúdos, publicados nas redes sociais
digitais, poderão acarretar danos significativos em vítimas de violência desta natureza.
1061
Posteriormente, utilizei alguns constructos teóricos que considero relevantes
para a elaboração deste trabalho, para explicar como se desenvolve a constituição do
sujeito sob a perspectiva da psicanálise e como o sentimento de ódio atua nas
manifestações psíquicas, levando a formação de mecanismos de defesa, que por sua
vez, poderão dirigir o discurso de ódio.
Para finalizar, a metodologia empregada neste trabalho foi a de pesquisa
qualitativa de cunho documental, partindo do recorte de algumas amostras do que foi
considerado manifestação de ódio publicadas no twitter, facebook, youtube e e-
book.89
RESULTADOS
Os resultados encontrados aliados à revisão bibliográfica sugerem que o
ciberespaço vem se tornando cada vez mais palco de exibição do mundo pulsional
dos internautas, uma vez que a consideramos como um mecanismo de projeção, na
qual o indivíduo busca se identificar com determinado grupo, repelindo o outro pelas
pequenas diferenças. Diferenças essas que de forma simultânea se apresenta como
estranha e familiar para este indivíduo.
Este estudo também se esforçou para tentar entender como o indivíduo se
alinha a um grupo, como se constitui a massa psicológica, como esta se organiza e
se mantém. O indivíduo revestido de “poderes” que a massa psicológica lhe veste,
sente-se desresponsabilizado por seus atos. A alma coletiva gerada pela massa leva
este indivíduo a sentir, agir e pensar de forma diferente de como ele sentiria, agiria e
pensaria isoladamente.
O artifício da distância entre agressor e vítima favorece a ação, pois o
anonimato parece dar direito e voz ao que não se poderia realizar pessoalmente.
Os resultados encontrados também deram espaço para a compreensão de
como o discurso de ódio serve como pano de fundo para a exteriorização do mundo
pulsional aglutinado ao mecanismo de defesa que o indivíduo utilizou para disferir o
ódio sob o outro. A partir da análise, foi possível compreender que as manifestações
de ódio são proferidas de forma descontrolada nas redes sociais e que esta
89
O e-book citado refere-se ao livro digital: O discurso de ódio em redes sociais de Marco
Aurelio Moura dos Santos. As postagens extraídas deste e-book para a elaboração deste trabalho são
recortes que o autor retirou também de redes sociais, como por exemplo, facebook e twitter.
1062
agressividade alimenta a não reflexão, que leva a intolerância a diferença do outro e
que por sua vez, gera ainda mais ódio e afastamento. Foi possível verificar que este
movimento se fortalece à medida que o agressor se identifica no grupo por indução
recíproca e reproduz comportamentos que possivelmente não o fariam na “vida real”.
Os mecanismos de defesa encontrados majoritariamente neste trabalho
foram: projeção, racionalização, deslocamento, formação reativa e isolamento. A
análise das amostras desenvolvida neste trabalho possibilitou compreender como
estes mecanismos de defesa atuam, uma vez que eles são considerados como
recursos irrealistas para lidar com a ansiedade que ataca o ego. Foi possível observar
a partir destes recortes que os mecanismos de defesa negam, distorcem e falsificam
a realidade, fazendo com que a pessoa não tenha acesso, conscientemente, de tal
modo de se posicionar, ou seja, eles atuam de maneira inconsciente.
Foi selecionado para este artigo os recortes referentes às postagens de
conteúdos considerados como discurso de ódio, regido por dois tipos de preconceitos:
misoginia e racismo.
O seguinte recorte trata-se de discurso de ódio orientado pela violência de
gênero feminino: misoginia e reflete a tendência da autora em fazer uma distinção
entre pessoas, classificando-as em dois grupos: aquelas ditas “corretas” “do bem”
“inteligentes”, que merecem o amor e respeito e aquelas que são dignas de desprezo
como pessoas “burras”, “vulgares” e etc. É possível verificar neste recorte, a
manifestação do mundo pulsional, predominantemente, a pulsão de morte, uma vez
que esta pulsão visa a desunião, a agressão se sobressai no comentário como fonte
de segregação de pessoas, sendo assim neste caso, o que é repudiado deve ser
excluído, logo é classificado em um grupo com menos valia.
Isso é bastante similar ao complexo de Madona-prostituta, descrito
primeiramente por Freud (1910) na qual o homem direciona a busca de seu objeto
amoroso àquela digna de respeito, pura, sublime, santificada (Madona) e despreza
aquela que se enquadra na categoria de meretriz, abjeta, depravada as quais não se
deve respeito, (prostituta). Este movimento de orientação da pulsão tem como
mecanismo regente o isolamento.
1063
Figura 9
Extraído de: https://www.facebook.com/forafeminismo5/
1064
Figura 23
Extraído de:http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-
sul/noticia/2013/08/comentarios-de estudante-do-rs-contra-negros-revoltam-redes-
sociais.html
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho encontrou dificuldades em seu desenvolvimento, pois o tema
escolhido retrata uma realidade ainda pouco pesquisada. Diante disso, se faz
necessário a produção de mais pesquisas que abordem temas desta natureza, para
1065
que seja possível ampliar a investigação acerca do funcionamento psíquico envolvido
na manifestação do discurso de ódio, devido ao significativo número de denúncias
oficiais recebidas, bem como a conscientização social sobre os efeitos nocivos que
esta prática poderá resultar na vida das vítimas atingidas.
Considerando a problemática tratada neste estudo o Psicólogo tem papel
fundamental na criação de novas práticas que auxiliem na prevenção e no
enfrentamento de situações de exposição ao ódio - tanto de quem agride quanto de
quem é agredido.
Além da psicoterapia na qual tanto o agressor quanto a vítima poderá trazer
conteúdos a serem analisados, cabe ao psicólogo dedicar-se à elaboração de novas
pesquisas que abordem este tema visando ampliar o conhecimento da população
sobre este problema, bem como promover a conscientização sobre o impacto gerado
por manifestações de discurso de ódio direcionado às vítimas; realizar estudos a fim
de servir de embasamento para a implantação de novas legislações que previnam a
proliferação de discurso de ódio nas redes sociais.
O psicólogo também poderá introduzir em instituições como escolas,
empresas e faculdades, estratégias de divulgação de informações que previnam
situações que gerem sofrimento decorrente do discurso de ódio, essas estratégias
poderão ser concretizadas a partir de palestras, roda de conversa, dinâmicas de grupo
com técnicas de psicodrama.
Outra estratégia que o Psicólogo poderá adotar a fim de possibilitar a
prevenção e enfrentamento a episódios de exposição ao ódio, será abrir um espaço
de conversa dentro do próprio ambiente virtual, - como página no facebook, instagram,
canal no youtube – visando estender o campo de divulgação de informações dos
efeitos nocivos que o discurso de ódio acarreta nas vítimas. Poderá também, no
mesmo espaço virtual, formar grupos de apoio de pessoas que se sintam vitimadas
por alguma agressão desta natureza, onde possam encontrar acolhimento, serem
ouvidos e amenizar o sofrimento.
REFERÊNCIAS
Amaral, A., Coimbra, M. (2015). Expressões De Ódio Nos Sites De Redes Sociais: O
Universo Dos Haters No Caso #Eunãomereçoserestuprada. Contemporanea |
Comunicação e Cultura, 13, 294-310. Disponível em:
<https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/14010/9879
>
1066
Brenner, C. (1973). Noções Básicas de Psicanálise: Introdução à Psicologia
Psicanalítica. (2ª ed.) Rio de Janeiro: Imago.
Castells, M., Gerhardt, K. (2000). A sociedade em rede. (6ª ed.) São Paulo (SP):
Editora Paz e Terra.
_________. (1919) O estranho. In: ______. História de uma neurose infantil. (pp. 233-
270) Rio de Janeiro: Imago.
_________. (1930) O mal-estar na civilização. In: ______. O futuro de uma ilusão. (pp.
65-147). Rio de Janeiro: Imago
G1. Justiça condena internauta por posts racistas após eleições em 2014. Disponível
em: <http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2017/02/justica-condena-
internauta-por-posts-racistas-apos-eleicoes-em-2014.html>
1067
Hall, C. S., Lindzey, G., Campbell, J. B. Trad. M. A. V. V. (2000) Teorias da
personalidade. (4ªed.) Porto Alegre: Artmed.
Lyotard, J. (2000) A condição pós-moderna. (6ª ed.) Rio de Janeiro: José Olympio.
Santos, M. A. M. (2016) O discurso de ódio em redes sociais. (Ed. Kindle) São Paulo:
Lura Editorial.
1068
99- RELAÇÃO ENTRE A VIOLÊNCIA SOCIAL E PSICODINÂMICA NAS
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS PROFESSORES
1071
Outro objetivo definido por Dejours nos seus estudos era compreender quais
as estratégias a que o trabalhador recorria para se manter saudável, apesar de
funcionar em uma organização do trabalho com aspectos, de certo modo,
patologizantes (Dejours, 2004).
Areosa (2014) ressalta que, numa perspectiva histórica, o trabalho de Dejours
menciona que a clínica do trabalho e a psicopatologia do trabalho dedicaram-se,
quase exclusivamente, aos efeitos negativos do trabalho. Porém, durante a década
de 1980, foram feitos novos contributos para essa discussão, com origem em outras
abordagens disciplinares como é o caso da ergonomia, a psicologia ou a sociologia.
Mendes (2007) acrescenta que uma das metas mais relevantes da
Psicodinâmica do trabalho é a compreensão de como a maioria dos indivíduos
consegue driblar as doenças mentais, apesar da pressão que é exercida pelas
organizações e é partindo dessa análise, sempre dinâmica e com contextos próprios
de trabalho que se observa e se procura estabelecer uma atuação, de forças visíveis
e invisíveis, subjetivas e objetivas, sociais, psíquicas, econômicas que podem
influenciar ou não, esse contexto. Significa, portanto, que os trabalhados conseguem
camuflar os seus problemas, boa parte deles resultantes do contexto do ambiente de
trabalho e da pressão que nele é exercida.
Dejours, Abdoucheli e Jayet (2007) explicam que, antes de qualquer coisa, a
organização do trabalho surge como uma relação social e intersubjetiva e essa
intersubjetividade encontram-se no próprio centro da organização do trabalho. É algo
determinado pelas relações sociais de trabalho já que o homem, enquanto ser
pensante com o foco na sua relação com o trabalho acaba por produzir interpretações
da sua situação e das suas condições, socializando estas últimas em atos
intersubjetivos, reagindo, organizando-se mentalmente, fisicamente e afetivamente,
de acordo com as suas interpretações.
1072
conhecimento sobre a educação e permite revelar os problemas que são enfrentados
tanto pelos professores como pela própria organização do trabalho.
Ensinar com prazer é uma característica geralmente associada ao professor,
por ser algo feito com vocação, com vontade. Segundo Lacroix (2007) é neste fazer
autorrealizador que o professor é visto como um indivíduo ativo, bem desenvolvido
enquanto ser humano e que retira satisfação da sua função. Enquanto ensina, o
professor transmite mais do que conhecimento sobre determinada matéria.
O que é exigido aos professores e aquilo que é oferecido em troca,
salvaguardando as diferentes épocas e momentos culturais, mostra que o papel do
professor e a sua importância para a sociedade, nem sempre foi devidamente
respeitada. Observe-se, por exemplo, o que acontece na educação infantil, onde os
vínculos afetivos são importantes. A figura do professor é, neste caso, o principal
instrumento de trabalho, envolvendo a pessoa na sua totalidade: o intelecto, o afeto,
as habilidades técnicas e científicas. Ao trabalharem com crianças, em especial
aquelas que são de origem mais humilde, o trabalho docente demanda maior
investimento de energia, causando sofrimento no professor pelo fato de nem sempre
poderem corresponder às necessidades das crianças (Moraes; 2005).
É também perceptível que, em termos das práticas educativas, são cada vez
maiores as evidências de sofrimento e de desprazer. No entender de Batista e Codo
(1999) o fato do professor enfrentar as dificuldades que surgem, ver o seu trabalho
reconhecido por outros e a valorização do seu esforço, tem o poder de transformar as
situações de desconforto e sofrimento no trabalho em prazer e dessa forma, o
professor procura utilizar mecanismos saudáveis que possam sobrepujar o sofrimento
e evitarem adoecer.
Camana (2007) menciona a questão do sofrimento dos professores, ao
classificá-lo como um fato socialmente importante, em virtude de afetar um número
considerável de professores e que tem consequências imediatas, como o absentismo,
a diminuição da qualidade pedagógica, a doença física e mental.
Dentre as dificuldades mais evidenciadas na profissão, existem três delas que
são consideradas como as mais importantes: a heterogeneidade das turmas é um
fator que afeta o desempenho do professor; o decorrente enfraquecimento do status
social que é o resultado da péssima imagem que vai sendo criada junto à sociedade;
e o fosso entre os resultados escolares e o esforço que é feito pelos professores. É a
junção destes fatores com outros que potenciam a desestabilização do professor no
1073
exercício da sua profissão e que vão gerando sofrimento, em função da diminuição do
prazer que é retirado do seu trabalho (Camana, 2007).
O fato de os professores serem alvos de críticas constantes enquanto é
discutida a situação da educação, é um reflexo da deterioração das condições de
trabalho. Os professores evidenciam diversos sinais de sofrimento decorrentes da
forma como a profissão se apresenta na atualidade, stress, esgotamento, ansiedade,
depressão, fadiga, são causados pelos fatores que potencializam o sofrimento, como
as relações hierárquicas, jornadas longas e exaustivas, dificuldades em controlar as
turmas, rebaixamento salarial, desvalorização e desqualificação social do seu trabalho
(NEVES, 2006).
Cungi (2006) indica que o aumento das jornadas de trabalho, a utilização e o
surgimento desordenado de novas tecnologias, a constante exigência de adaptação
a um mercado competitivo ao extremo, aliados a uma execução repetitiva de tarefas
e à falta de perspectivas de crescimento profissional, são estressores significativos
que promovem o stress ocupacional, considerado um sério e grave desafio à saúde
do professor.
Um dos problemas de saúde associados à profissão de professor é a
Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional que, segundo a
Psiquiatria, é caracterizada pelo stress crônico, desânimo e desmotivação no trabalho.
Pode traduzir-se a expressão por sensação de estar acabado e os seus reflexos mais
evidentes são o descontrole emocional e a agressividade. É a forma encontrada pelo
organismo para reagir a situações de stress laboral crônico e prolongado.
Segundo França e Ferrari (2012) o stress que é vinculado ao trabalho e
denominado de stress ocupacional, está relacionado com a falta de capacidade do
indivíduo em se adaptar às demandas existentes no seu trabalho e aquelas que ele
próprio percebe.
Por sua vez, Webber e Lima (2011) apresentam uma explicação mais
detalhada da Síndrome de Burnout, indicando que esta síndrome é um conceito
multidimensional e que envolve três componentes, a saber:
1. A exaustão emocional, situação pela qual os trabalhadores sentem não
poder dar mais de si próprios, a nível afetivo. Percebem que a sua energia
esgotou, juntamente com os seus recursos emocionais, em função do
contato diário com situações problemáticas;
2. A despersonalização, que se refere ao desenvolvimento de sentimentos e
1074
de atitudes negativas e com cinismo em direção às pessoas destinatárias
do seu trabalho, o endurecimento afetivo; e
3. A falta de envolvimento pessoal no trabalho, ou seja, uma tendência de
evolução pela negativa, que afeta a habilidade do indivíduo em efetuar o
seu trabalho e o atendimento ou contato com a organização e com as
pessoas usuárias do trabalho.
Além desta síndrome, Webber e Lima (2011) apontam ainda as doenças mais
comuns apresentadas pelos professores. Dentre elas destacam-se:
4 Considerações finais
1076
tudo isto são situações que, pelo acumular, acabam dificultando a vida do professor e
acarretando problemas de saúde.
As mudanças no sistema educacional passam também pelo tratamento que é
dado aos professores e pelo resgatar da imagem e do prestígio antes atribuído a essa
nobre profissão, evitando o perpetuar desta situação que causa prejuízos à profissão
docente, ao indivíduo e que se refletem na qualidade de ensino que é prestada ao
aluno.
5. Referências
Batista, A., & Codo, W. (1999). Crise de identidade e sofrimento. Petrópolis, RJ:
Vozes.
Cungi, C. (2006). Saber administrar o estresse na vida e no trabalho. (2ª ed.). São
Paulo, SP: Larousse do Brasil.
Dotta, L. (2006). Representações sociais do ser professor. São Paulo, SP: Alínea.
1077
França, F., &Ferrari, R. (2012). Estresse ocupacional crônico e o setor de atuação dos
profissionais de enfermagem da rede hospitalar. Revista Gestão e Saúde, 3(1).
Recuperado de: http://periodicos.unb.br/index.php/rgs/article/view/103.
Gatti, B.; & Barreto, E. (2009) Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília,
DF: Unesco.
Lacroix, M. (2007). Eros e Tânatos: uma leitura do ato pedagógico. São Paulo, SP:
Loyola.
Lakatos, E., & Marconi, M. (2003). Fundamentos de Metodologia Cientifica, 4. ed. São
Paulo, SP: Atlas.
Neves, M. (2006). Trabalho docente e saúde mental: a dor e a delícia de ser (estar)
professora. (Doutorado em Ciências da Saúde) – Instituto de Psiquiatria, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Webber, D. & LIMA, L. (2011). Meio ambiente de trabalho do professor: visão crítica
a partir da teoria marxiana. In: Bello, E., Lima, M. & Augustin, S. (Org). I Congresso
Internacional de direito e marxismo. Caxias do Sul, RS: Plenum.
1078
100- O QUE (NÃO) ESCUTAMOS QUANDO ESCUTAMOS OS PAIS
INTRODUÇÃO
Não é novo o emprego da psicanálise ao campo da infância, dando voz e escuta
àqueles que, por muito tempo, tiveram suas especificidades negadas. Dentro deste
92
Graduando do 10º período em Psicologia, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).
Bolsista Fapesp de Iniciação Científica na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
93
Psicanalista. Doutora em Educação (FEUSP). Docente do Departamento de Desenvolvimento Humano
e Reabilitação, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas
(DDHR/FCM/UNICAMP).
1079
campo, muitos foram os autores influenciados pelos pressupostos freudianos,
estendendo a escuta do inconsciente, também, às crianças. Em sua prática, Dolto
(1981) inauguraria uma escuta do pequeno sujeito que incluía sua posição no discurso
parental. Passava-se da análise individual clássica de Melanie Klein, à implicação dos
pais nos sintomas de seus filhos. A tarefa do analista passaria, então, à escuta de
uma rede discursiva que incluía os pais, seus desejos e angústias, bem como, o
próprio manejo da transferência com a família.
Em “A Dinâmica da Transferência”, Freud (1912/2010) nos apresenta o laço
transferencial como um espaço onde os modos primitivos do sujeito e de sua vida
amorosa, ou seja, dos afetos, são revividos. À medida que o paciente vai encontrando
possibilidades de dirigir e projetar suas maneiras de se portar, suas representações
internas e seus “clichês”, com afirma Freud (1912/2010), o próprio analista será
incluso em uma “das ‘séries’ que o doente formou até então” (p.101).
Ao constatar que o fenômeno transferencial era o terreno próprio para uma
análise possível, favorecendo uma (re)atuação da vida pregressa, uma outra
consideração, tão importante quanto, surgiria a fim de se pensar sua dinâmica, a
transferência como “a mais forte resistência” ao tratamento e processo analítico
(FREUD, 1912/2010, p.102). Lançava-se, então, um novo desdobramento das ditas
resistências em análise, apresentadas por Freud no percurso de uma psicanálise. Na
tentativa de responder às suas próprias indagações, o autor desdobrou o conceito da
resistência em seus aspectos positivos e negativos, como inibidoras ou não, da
análise.
Apesar das considerações freudianas sobre o tema, e até mesmo a ênfase
relativa às próprias inibições do analista em análise (MEDEIROS, 2012), é Lacan
(1955, p. 287) quem faria a seguinte afirmação: “Não há outra resistência à análise
senão a do próprio analista”.
O método psicanalítico perseverou em expor a vida sexual e o motor da vida
psíquica, como determinantes da vida cotidiana. Em análise, destaca Medeiros
(2012), tratar-se-ia de ceder lugar ao desejo, onde em outros lugares cotidianos ele
pôde aparecer apenas em suas desvirtuações, ou ainda, em seus fracionamentos.
Nisto, então, consistiria a tarefa do analista, propiciar o aparecimento do desejo,
pois, não tendo nenhum obstáculo “à sua declaração é para lá que o sujeito é dirigido
e canalizado”, já que “o desejo é o que mantém a direção da análise” (MEDEIROS,
2012, p. 50). Entretanto, já antevisto em Freud, e muito bem pontuado em Lacan, “os
1080
fenômenos da transferência e resistência demonstram que o analista está sempre
obstaculizando essa apresentação do desejo. É, afinal, quando ele - o analista - se
faz presente no discurso do paciente, na transferência, que a resistência emerge”.
Calcados nesta compreensão sobre a relação analítica, lançamo-nos à
elaboração de uma indagação surgida em meio a um grupo de supervisão de
atendimentos clínicos, oferecidos em um Programa de Treinamento em Serviço, a
qual também constitui o título do presente trabalho: “O que (não) escutamos quando
escutamos os pais?”.
Objetiva-se, no decorrer deste trabalho, discutir os efeitos discursivos de uma
proposta de dispositivo institucional grupal com pais de crianças com traços autísticos.
MÉTODO
O presente trabalho trata-se de um estudo exploratório, descritivo e qualitativo,
derivado de uma amostra da pesquisa “Sinais de risco e sofrimento psíquico na
primeira infância: identificação e estratégicas de intervenção”, aprovada pelo Comitê
de Ética em Pesquisa da FCM/UNICAMP, com o parecer 1.846.495.
Os dados apresentados referem-se a sessões de um dispositivo institucional
grupal, destinado aos pais dos usuários que são atendidos no Programa de
Treinamento em Serviço para Profissionais da Saúde “Intervenção Precoce em
Crianças de 0 a 3 anos”, realizado no Centro de Estudos, Pesquisa e Reabilitação
“Professor Doutor Gabriel O. S. Porto”, da Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas (CEPRE/FCM/UNICAMP), com periodicidade
quinzenal.
1081
O grupo foi criado a partir de discussões dos casos clínicos, objetivando, a
priori, fornecer escuta e acolhimento aos pais, a partir do método psicanalítico, o qual
privilegia, de acordo com Cazanatto, Martta e Bisol (2016), dar voz ao sujeito singular
e favorecer os furos institucionais.
A priori, a intenção era fornecer um espaço em que os pais pudessem
compartilhar experiências pessoais em relação aos seus filhos. Como bem sabemos,
o grupo, entre suas especificidades, possibilita que haja o encontro de diferentes
posições subjetivas e discursivas, favorecendo que seus integrantes circulem de uma
à outra posição (MERLETTI, 2018).
Esta foi a premissa inicial, um grupo para o compartilhamento de experiências
que pudesse ser construído a partir das próprias demandas parentais. Mantinha-se a
formulação lacaniana, de que a oferta cria a demanda. Não havia nada de
premeditado. Nenhum delineamento. Apenas o desejo de oferecer um lugar de escuta
aos pais. Havia, contudo, apenas uma condição, os encontros deveriam ser
conduzidos por um outro profissional que não atendesse as crianças.
Um dos autores do presente trabalho voluntariou-se a essa empreitada. Apesar
de também participar do referido Programa de Treinamento em Serviço, como
responsável pela filmagem dos atendimentos, seu lugar não era o de analista. A
posição de terceiro o habilitou a coordenar o grupo de pais.
O dispositivo grupal iniciou na semana seguinte a da discussão em torno de
sua criação e foi noticiado pelas psicólogas responsáveis pelos casos,
individualmente, a cada um dos pais, ainda na recepção do centro de atendimento.
Atualmente, o Programa atende sete crianças. Todas vêm aos atendimentos
acompanhadas por seus pais, a maioria apenas pela mãe.
No primeiro encontro do grupo, apenas uma das mães que acompanhava seu
filho não esteve presente. Neste dia, foi exposto aos pais a intenção em criar o
dispositivo: utilizar o horário em que os próprios filhos eram atendidos para ouvi-los,
coconstruir os espaços de compartilhamento, bem como, proporcionar um espaço de
acolhimento. O espaço foi aberto para que aqueles que estivessem ali pudessem se
apresentar, inclusive o próprio coordenador, além de contar como chegaram ao centro
de atendimento e outros assuntos que desejassem.
Todos os pais resumiram a sua experiência relativa à procura por serviços de
saúde que pudessem atender àquilo que chamavam de “atrasos no desenvolvimento”
ou “autismo”, nomeação que, para alguns pais, mostrava-se aterrorizadora.
1082
Ao serem perguntados pelo coordenador do grupo sobre o que pensavam da
proposta e dos encontros, eclodiu um primeiro fio condutor que levaria os profissionais
a (re)pensar o fazer clínico. Um dos pais, em sua resposta, apontou os primeiros sinais
de sua transferência com a terapeuta de seu filho. “Ah, acredito que vai ser um lugar
bom, a gente vai poder falar o que não pode falar lá no atendimento”.
Esta é a fala que iniciaria a discussão, em supervisão, sobre os vínculos entre
as famílias e o Programa. No grupo seguinte, novamente, algo semelhante foi
manifesto. A mãe que não esteve presente no primeiro encontro e que não sabia o
que fora discutido, enquanto se apresentava e falava de seu filho, fez a seguinte
pontuação: “Olha, o Ryan94 veio pra cá porque ele não conseguia comer alimento
sólido, eu não sei o que vocês fazem aqui, mas ele não melhorou”.
A partir destas falas, em supervisão, passamos a discutir o teor das demandas.
A ideia inicial, aparentemente despretensiosa, de um grupo de acolhimento, cederia
lugar para um grupo em que o próprio manejo profissional e arranjos institucionais
fossem denunciados. Os grupos subsequentes seguiram o mesmo movimento inicial
dos pais, entretanto, suas colocações não mais “passariam em branco”.
No terceiro encontro, Valdete, considerada a mãe mais falante, exporia, de
forma mais direta, o que fora apresentado anteriormente pelas demais mães. Ela
relatou que há algumas semanas começou a pensar que gostaria de saber como eram
os atendimentos e acompanhar um pouco mais de perto o que era feito. “Ah, é que eu
trago meu filho aqui, e é como se vocês pegassem ele, levassem ele lá pra dentro
[referindo-se ao centro de atendimento] e eu não sei bem o que acontece”.
Em meio à sua fala, passa a expor, também, suas fantasias em relação aos
atendimentos, “É como se a psicóloga soubesse mais coisas e não quisesse me falar,
sabe”. Passa a dizer diretamente sobre sua transferência com a terapeuta de seu filho,
relatando um episódio em que lhe solicitou um diagnóstico do filho, e, como resposta,
a terapeuta lhe havia perguntado o que mudaria na relação com ele, caso tivesse um
diagnóstico. “Eu entendi o que ela quis dizer, entendi que ela tava perguntado se
mudaria minha forma de amar meu filho por causa do diagnóstico”.
É interessante destacarmos que a fala de Valdete inicia com a seguinte
pontuação: “Eu estava pensando, há algumas semanas”. E então, passa a dizer sobre
seu desejo de poder acompanhar mais de perto os atendimentos. Podemos pensar o
94
Todos os nomes são fictícios.
1083
quanto o lugar de fala, aberto a partir do dispositivo grupal, fez emergir questões que,
por algum motivo (ou vários), não estavam sendo ouvidas. Esse espaço de escuta
possibilitou aos pais manifestar, ainda de forma incipiente, queixas e reivindicações
que antes eram latentes.
Estes são alguns recortes de momentos significativos vivenciados na
experiência deste grupo e que nos leva para uma segunda e última questão:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1086
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, K. O que a teorização lacaniana dos discursos nos ensina sobre o laço
contemporâneo?. Modernos & Contemporâneos - International Journal of
Philosophy, v. 3, n. 5, jan./jun, p. 24-43, 2019.
DOLTO, F. O caso Dominique. Trad. A. Cabral. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
1087
101- O DISCURSO DE ÓDIO: UMA ANÁLISE PSICANALÍTICA
DAS MANIFESTAÇÕES PSÍQUICAS IMPLICADAS NESSA PRÁTICA
INTRODUÇÃO
A internet mostra-se um ambiente promotor de interações sociais, que
aproxima as pessoas em tempo e espaço, promovendo um grande fluxo de troca de
mensagens e informações. Entretanto, a internet também é palco de violência e
intolerância, a exemplo disso, tem-se a disseminação do discurso de ódio.
Especificamente no Brasil, a Safernet que é a organização responsável pelas
denúncias de crimes online, recebeu entre os anos de 2006 e 2017 a seguinte
quantidade de denúncias separadas por categoria: racismo, 5.534 páginas em 2.452
1088
hosts; xenofobia, 870 páginas em 437 hosts; apologia e incitação de crimes contra a
vida, 3.240 páginas em 2.107 hosts; homofobia, 1.100 páginas em 601 hosts;
intolerância religiosa, 886 páginas em 527 hosts; neonazismo, 319 páginas em 233
hosts. Em um ranking mundial das denúncias recebidas pelo site Safernet, o Brasil se
encontra entre os cinco países que mais possuem denúncias online incluindo o total
de páginas duplicadas, páginas distintas, hosts, IPs e páginas removidas
(SAFERNET, S/D)95.
Estes dados mostram comportamentos online movidos pelo ódio e que
sofreram acusação, no entanto, existem ainda, diversas formas de discurso de ódio
difundidas diariamente e que não recebem o mesmo tratamento.
A relevância para a realização deste trabalho, se deu pelo interesse em
entender quais são os aspectos inconscientes do ser humano que poderiam motivar
a manifestação de tais discursos agressivos e fazer uma aproximação do quanto a
psicanálise pode contribuir para a compreensão do comportamento no contexto social.
Para isso, o objetivo geral estabelecido para o trabalho foi identificar quais são
as manifestações psíquicas presentes na disseminação do discurso de ódio nas redes
sociais. Enquanto os objetivos específicos foram: compreender o comportamento do
indivíduo na massa em grupos virtuais; identificar as pulsões que regem o discurso;
identificar os mecanismos de defesa envolvidos na propagação de ódio.
MÉTODO
O método empregado para a realização do trabalho foi o de pesquisa qualitativa
de cunho documental que consiste na busca de dados por meio de documentos que
ainda não receberam um tratamento analítico, podendo ser utilizados documentos "de
primeira mão" que são documentos como cartas pessoais diários, gravações,
fotografias, ofícios etc. (GIL, 2002).
O critério de delimitação do termo “discurso de ódio” considerou o que se
enquadra na manifestação de preconceito, julgamento, ironia, desigualdade e
inferioridade. Para detectar estes fatores, foi utilizado o paradigma indiciário, uma
metodologia derivada de historiadores proposta por Carlo Ginzburg que é
caracterizada por “um método de conhecimento cuja força está na observação do
pormenor que pode ser revelado, mais do que apenas uma dedução sobre algum
95
SAFERNET, Indicadores da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos. Disponível
em: http://indicadores.safernet.org.br/index.html Acesso em: 10 set. 2018.
1089
aspecto investigativo” (Gomes, 2017, p.34). Portanto, o paradigma indiciário
empregado aqui, visou buscar comentários que contivessem vestígios de que o autor
não estava promovendo uma reflexão e sim um ataque.
Figueiredo e Minerbo (2006) propõem que a pesquisa em psicanálise consiste
na produção de conhecimentos em que a própria psicanálise pode assumir diversas
formas, tanto como objeto de estudo assim como pode contribuir com o uso dos seus
conceitos para investigar e compreender diversos fenômenos sociais ou subjetivos.
Desta forma, os conceitos em psicanálise foram usados na análise das amostras a fim
de interpretar o fenômeno do discurso de ódio no meio social virtual.
Procedimentos
Foram escolhidas três postagens96, dispostas em cinco amostras com
comentários contendo discurso de ódio publicados por usuários na página de notícias
e mídia “O Antagonista” do Facebook compreendendo o período de um dia do mês de
novembro em 2018. Posteriormente, estes recortes foram analisados qualitativamente
sob uma perspectiva psicanalítica.
Os públicos-alvo desta pesquisa são indivíduos que possuem uma conta cadastrada
no Facebook, cuja idade atenda os critérios para criação de um perfil nesta rede social
sendo, portanto, maiores de 14 anos, alfabetizados, com escolaridade variada e de
ambos os sexos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O Antagonista é uma página para contato no Facebook proveniente de um site
de notícias e mídia fomentada por jornalistas, que recebe o mesmo nome. A criação
da página foi dada em 1 de janeiro de 2015 e atingiu a marca de 650 mil seguidores
no ano de 201797.
Os resultados encontrados pela análise das três amostras demonstram que o
sujeito manifesta no ambiente virtual os seus aspectos psíquicos inconscientes, sendo
estes a pulsão de morte, o narcisismo e os mecanismos de defesa, tais como
projeção, negação e racionalização.
96
O Antagonista. Disponível em: https://www.facebook.com/pg/oantagonista/posts/
97
O Antagonista. Disponível em: https://www.facebook.com/pg/oantagonista/about/?ref=page_internal
1090
A pulsão de morte é observada em todos os comentários selecionados, pois é
o instinto que sustenta o discurso de ódio. Este impulso agressivo encontra um meio
de ser satisfeito tanto quando o autor expressa a sua raiva e direciona o seu
comentário ofensivo a alguém, quanto em mensagens que visam a desunião.
Estes aspectos podem ser observados no primeiro trecho selecionado de um
comentário que diz “Preocupado com os direitos humanos dos humanos direitos, não
direito dos manos”. Em resposta a uma publicação intitulada: “Hoje Bolsonaro posa
de preocupado com os Direitos Humanos.” O autor promove a desunião ao separar
as pessoas em dois grupos, as pessoas que são “humanos direitos” e os “manos”,
atribuindo menos valia ao segundo grupo.
O narcisismo aparece nos trechos recortados, de forma não declarada, mas se
faz presente no momento em que difama o outro colocando-o em posição inferior, de
forma que o sujeito se reafirma ao adquirir uma posição mais favorável em seu ponto
de vista, assumindo o lado da razão. É próprio do narcisismo não aceitar o diferente
e o tentar repelir atribuindo-lhe características negativas. Como pode ser observado
no comentário: “E toda vez que ela fala, lembro que precisamos urgente de mais
manicômios” em resposta à publicação: “Gleisi98 : Toda vez que vejo entrevista de
Moro lembro do filme O Advogado do Diabo.”
Neste sentido, pensa-se que alguns mecanismos da própria rede social possam
contribuir para que este narcisismo se torne mais enfático, pois com o sistema de
filtros online os usuários passam a ficar cada vez mais próximos de conteúdos e
pessoas semelhantes a si, que é justamente o que se faz ao alimentar o narcisismo.
Estar longe de informações e pessoas distintas, evita que o sujeito tenha que lidar
com o que lhe traz aversão, assim ele pode se tornar cada vez mais intolerante com
os demais. Em contrapartida, a internet favorece a globalização que torna possível a
aproximação de diferentes raças e culturas, o que faz dela um meio de comunicação
com grande diversidade podendo gerar esses embates, quando a diferença esbarra
nos limites do narcisismo.
Quanto aos mecanismos de defesa, foram identificados quatro deles, que
atuam de forma relacionada. A projeção permite ao indivíduo transferir seus aspectos
negativos ao objeto, sendo que estes aspectos não são reconhecidos ou aceitos por
98
Gleisi Hoffmann é senadora do estado do Paraná e presidente do Partido dos Trabalhadores.
1091
si mesmo, pois ele utiliza para isso, o mecanismo de negação. Esta relação entre
negação e projeção está intimamente associada ao narcisismo, pois permite ao sujeito
justificar a sua aversão ao apontar no outro, seus aspectos negativos. A
racionalização, por outro lado, possibilita que estes dois mecanismos citados se
expressem por meio de mensagens de cunho moral ou lógico que expliquem suas
aversões.
O comportamento do usuário dentro do grupo na rede social também foi
verificado e foi percebido que, assim como nas massas, o sujeito online tende a ter
sua crítica rebaixada para deixar fluir o pensamento do grupo. Com isso, repercute
ideias por meio da repetição de ideologias. É importante ressaltar que a
indiferenciação da massa também é uma característica do sujeito pós-moderno, que
tenta afirmar a sua identidade por meio dos valores sociais, valores estes que visam
a individualidade e o apreço pela imagem. E que levam os aspectos antes
pertencentes à vida privada para a vida pública e, posteriormente se estende às redes
sociais, gerando um conflito devido à dificuldade em delimitar e diferenciar o que é
privado e liberdade de expressão de público e discurso de ódio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve o objetivo de verificar quais são as manifestações psíquicas
que permeiam a disseminação do discurso de ódio nas redes sociais, analisando o
comportamento de grupo, as pulsões que regem o discurso e os possíveis
mecanismos de defesa atuantes na propagação de ódio.
O objetivo foi cumprido por meio da pesquisa documental desenvolvida, que
visou fazer o recorte de publicações de discurso de ódio online pela página escolhida.
Estes recortes foram analisados por uma abordagem psicanalítica que verificou a
presença da manifestação do mundo pulsional nas mensagens, assim como a
expressão do narcisismo e o uso de mecanismos de defesa como a negação,
projeção, racionalização e o deslocamento. Corroborando com a hipótese do trabalho.
O comportamento em massa também foi acurado e foi percebida a repercussão
de um pensamento massificado pautado em discurso ideológico individualista
construído socialmente.
Estes resultados encontrados, aliados à revisão de literatura, podem
demonstrar que a internet aparece como um meio favorável para a propagação deste
discurso. Em razão da impressão de impunidade proporcionada pela dificuldade em
1092
delimitar o público e privado neste espaço, e pelo modo como lidamos culturalmente
com o discurso de ódio. Além de ser uma plataforma que favorece a aproximação por
meio de troca de mensagens virtuais, mas ainda mantém a distância física entre os
indivíduos. Por esta razão, o sujeito que propaga o ódio, demonstra por meio do
discurso, aspectos inconscientes da sua vida psíquica, que poderiam estar inibidos
em outros meios de convívio social.
Diante disso, se faz necessário que mais pesquisas sejam feitas a fim de
ampliar os conhecimentos acerca do funcionamento psíquico que envolve esta
prática, pois configura-se como um tema atual, devido a sua proporção de deflagração
e denúncias oficiais recebidas, bem como a sua associação ao momento político
nacional. É importante haver a contribuição de informações que possam sensibilizar
a população quanto a naturalização do discurso de ódio e promover uma reflexão
crítica a respeito deste comportamento e suas consequências psíquicas e sociais.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Fellipe. Mudanças estruturais na era digital: a plataforma do
facebook e as diferentes interações com os jovens. Artefactum - Revista de estudos
em Linguagens e Tecnologia, 2014. Disponível em:
<http://artefactum.rafrom.com.br/index.php/artefactum/article/view/434/326> Acesso
em: 23 mar. 2018
1093
CHARLES, Sébastien. O individualismo paradoxal: introdução ao pensamento de
Gilles Lipovetsky. In LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os tempos
hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.
FREITAS, Riva Sobrado de; CASTRO, Matheus Felipe de. Liberdade de expressão e
discurso do ódio: um exame sobre as possíveis limitações à liberdade de expressão.
Sequência (Florianópolis) no.66 Florianópolis jul. 2013. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-
70552013000100014&lng=pt&nrm=iso> Acesso em: 10 set. 2018.
FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. ESB, vol. 18, Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund, O eu e o id. (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, S. (1938) Esboço de psicanálise. ESB, vol. 23, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GIL, ANTONIO CARLOS. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Editora
Atlas.A. 4ºEd. 2002.
GOULART, Elias E. O docente nas mídias sociais in. GOULART, Elias E. Mídias
sociais: Uma contribuição de Análise. [online] Porto Alegre: ediPURCS, 2014.
Disponível em: <http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Pdf/978-85-397-0630-3.pdf>
Acesso em: 10 set. 2018.
1094
GONÇALVES, Elizabeth Moraes; SILVA Marcelo da. A amplitude do diálogo nas
redes sociais digitais: sentidos em construção. In GOULART, Elias E. Mídias
sociais: Uma contribuição de Análise. [online] Porto Alegre: ediPURCS, 2014.
Disponível em: <http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Pdf/978-85-397-0630-3.pdf>
Acesso em: 10 set. 2018.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. 2. ed. São Paulo (SP): Ed. 34, 2000.
1095
odios-na-internet-e-a-prevencao-e-a-educacao-defende-mpf> Acesso em: 06 set.
2018.
SANTOS, Marco Aurelio Moura dos. O discurso de ódio em redes sociais. Lura
Editorial: São Paulo, 2016. Edição Kindle.
1096
<http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/viewFile/1936/pdf_144>
Acesso em: 15 set. 2017.
SILVA, Rosane Leal da; NICHEL, Andressa; MARTINS, Anna Clara Lehmann;
BORCHARDT, Carlise Kolbe. Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência
brasileira. Rev. direito GV vol.7 no.2 São Paulo jul./dez. 2011. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-
24322011000200004&lng=pt&nrm=iso> Acesso em: 06 set. 2018.
1097
102- ÁLCOOL: PRAZER OU PROIBIÇÃO? UMA ANÁLISE DAS
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE FUTUROS ENFERMEIROS
99
Aluna do 5º ano de graduação em Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
100
Aluna do 5º ano de graduação em Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
101
Doutora em Ciências/Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, docente no curso de
Psicologia da Universidade São Judas Tadeu.
1098
Introdução
Para muitos estudantes, a experiência do ingresso e permanência no ambiente
universitário denota um marco importante na sua constituição enquanto sujeito. Em
um período marcado por diversos desafios, tais como a perda de referências que
geram desamparo, desenvolvimento de autonomia, vivência de novas experiências e
aumento de responsabilidades (Teixeira, Dias, Wottrich & Oliveira, 2008), há também
o aumento da vulnerabilidade para a experimentação de substâncias psicoativas por
estes universitários (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas [SENAD], 2010).
O autor Dalgalarrondo (2008) compreende substância psicoativa como
“qualquer substância química que, quando ingerida, modifica uma ou várias funções
do SNC, produzindo efeitos psíquicos e comportamentais” (p. 344), citando dentre os
exemplos, as bebidas alcoólicas.
As variáveis que configuram as motivações para o consumo de substâncias
pelos universitários, como o álcool, podem ser diversas. No estudo de Zeferino,
Hamilton, Brands, Wright, Cumsille, & Khenti. (2015), por exemplo, os autores
verificaram que o consumo de drogas lícitas (álcool e tabaco) esteve associado à
influência de amigos que faziam uso de algum tipo de droga. Além disso, neste mesmo
estudo, os universitários que não se encontravam em algum tipo de relacionamento
amoroso demonstraram maior vulnerabilidade para o consumo dessas duas
substâncias (Zeferino et al., 2015).
Sobre as razões que determinam o consumo de substâncias, numa visão
psicanalítica, Alencar (2016), em sua tese sobre drogas e pulsão na modernidade,
afirma que “não se trata da droga, mas do sujeito e das associações que este produz
acerca da droga, da vida familiar, dos amores etc.” (p. 46). O autor cita a compreensão
do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi sobre essa temática, afirmando que para ele
o consumo de drogas não seria a causa de problemas, mas sim consequências de
conflitos psíquicos, sendo o uso de substâncias um modo de busca para solucioná-
los (Alencar, 2016). À vista disso, pensando nos possíveis desencadeadores do
consumo de álcool, é necessário que se conheça o mais amplamente possível o
contexto no qual o universitário está inserido, bem como as suas representações
sociais acerca dos sentidos subjetivos atribuídos ao consumo.
Para Lefèvre e Lefèvre (2003), uma das formas de se compreender as
representações sociais “consiste em entendê-las como a expressão do que pensa ou
acha determinada população sobre determinado tema” (p. 30). Entre as
1099
representações acerca do álcool, observa-se um exemplo familiar, compartilhado
culturalmente no país ao longo dos anos: os discursos presentes em letras de músicas
do gênero sertanejo, especialmente o “sertanejo universitário” na atualidade. Na
dissertação de Lioto (2012), a autora, analisando letras de canções deste gênero
musical que citam o álcool, observa semelhanças nos discursos das canções, as quais
atribuem à bebida a capacidade de solucionar ou amenizar problemas e de trazer
alegria.
Além dos discursos retratados pelas letras do sertanejo, há outro conteúdo
difundido ao longo dos anos, capaz de exemplificar e representar o modo como o
consumo do álcool é percebido: o contexto apresentado nas propagandas das marcas
de cerveja. Em uma análise de 18 comerciais de cerveja, realizada por Oliveira,
Romera e Marcellino (2011), os autores identificaram alguns padrões nesse tipo de
publicidade, entre eles: a unanimidade da presença de pessoas jovens, reunidas em
situações de lazer distintas que incluíam o consumo de bebida alcoólica, tais como
em bares, eventos festivos (exemplo: carnaval) e praias; exposição da sensualidade
feminina, incluindo a presença de cantores ou personalidades conhecidas pela mídia.
A associação entre cerveja, futebol e carnaval na publicidade é também apontada por
Pinsky e Jundi (2008).
Objetivos e Justificativa
Posto que o consumo de álcool é mais recorrente entre os universitários do que
na população geral (SENAD, 2010), e que vários estudos como o de Zeferino et al.
(2015) levantam que esta é uma das substâncias mais consumidas entre os
universitários, desperta-se o interesse e a necessidade de compreender mais
profundamente quais são as percepções de estudantes da área da saúde,
especialmente dos futuros enfermeiros, sobre o fenômeno do consumo. Diante disso,
o objetivo geral desta produção científica foi de investigar e caracterizar as
representações sociais que universitários dos últimos semestres de graduação em
Enfermagem, de uma instituição privada de ensino superior na cidade de São Paulo-
SP, possuíam acerca do consumo de álcool.
Método
A fim de atingir os objetivos propostos, optou-se por utilizar o desenho de
estudo denominado como qualiquantitativo pelos autores Lefevre e Lefevre (2010).
1100
Sendo uma pesquisa que tem como enfoque apreender as representações sociais de
um determinado grupo, ou seja, o que pensa um grupo de indivíduos acerca de um
determinado tema, os autores da proposta metodológica explicam que a opinião
coletiva é composta simultaneamente por uma dimensão qualitativa e outra
quantitativa, não havendo oposição entre elas, pelo fato de expressarem partes
distintas de um mesmo fenômeno (Lefevre & Lefevre, 2010).
De acordo com os autores, a dimensão qualitativa refere-se ao fato de que cada
opinião é uma qualidade, que será apreendida por meio de uma questão aberta, onde
o sujeito expressará livremente um depoimento, ideia ou opinião, que posteriormente
deverão ser descritas, ou seja, qualificadas (Lefevre & Lefevre, 2010). Após o
processo de descrição das qualidades, é então possível quantificá-las, processo este
que permite a percepção da adesão de uma determinada opinião entre os sujeitos
pertencentes àquele grupo, bem como o grau de compartilhamento destas opiniões
(Lefevre & Lefevre, 2010). Para Lefevre e Lefevre (2010), não há como quantificar o
que não foi, a princípio, qualificado, e é por essa razão que o método recebe o nome
de qualiquantitativo, ao invés de “quantiqualitativo”.
Participaram da amostra 28 estudantes universitários dos dois últimos
semestres de graduação em Enfermagem de uma universidade privada da cidade de
São Paulo-SP. Optou-se por incluir na amostra estudantes de ambos os gêneros,
maiores de 18 anos, devidamente matriculados no oitavo e nonos semestres,
excluindo os pertencentes a períodos anteriores.
Como instrumentos, utilizou-se: a) um questionário de caracterização da
amostra elaborado pelas autoras; b) apresentação escrita de uma história,
exemplificando um contexto de consumo de álcool e outras substâncias lícitas, sendo
esta: “Um grupo de estudantes universitários costuma se reunir à noite para irem a
bares próximos à faculdade. Lá, alguns bebem álcool, outros fumam cigarro, e alguns
compartilham o narguilé”. Em seguida, o universitário era convidado a responder à
duas questões-caso, sendo a primeira: “Por que você acha que os universitários fazem
o uso destas substâncias?”, para posterior análise do Discurso do Sujeito Coletivo -
DSC. Importante enfatizar que neste artigo estão dispostos apenas um recorte de um
estudo mais extenso que abrangeu outros objetivos e outras substâncias lícitas,
focando aqui nos dados obtidos apenas em relação às razões que motivam o consumo
de álcool, elegendo categorias de respostas específicas para fins de discussão.
1101
Após a autorização da coordenação do curso de Enfermagem e posterior
aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade selecionada
(CAAE nº 13473219.5.0000.0089), a coleta efetuou-se no mês de junho, no dia e
horário combinados previamente. Os instrumentos foram entregues em envelopes
lacrados, individualmente, a cada aluno que voluntariamente se propôs a participar da
pesquisa. Os estudantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
em duas vias, e em seguida responderam individualmente aos dois instrumentos, e
ao término foram recolhidos pelas pesquisadoras.
Os dados foram analisados a partir da metodologia do Discurso do Sujeito
Coletivo (DSC), sendo articulados à luz da teoria psicodinâmica. O DSC consiste em
uma técnica qualiquantitativa de pesquisa empírica proposta por Fernando Lèfevre e
Ana Maria Cavalcanti Lèfevre da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo (USP), que vem sendo desenvolvida desde o final da década de 1990 para
pesquisas de representação social, entre outros tipos, que tenham materiais verbais
como base (Lefevre & Lefevre, 2010).
Enquanto recurso metodológico que permite generalizações, o DSC possibilita
apresentar as distintas categorias de pensamento existentes entre os sujeitos de um
grupo acerca de um determinado assunto ou tema, por meio da qualificação desses
depoimentos ou discursos, além de permitir identificar semelhanças e diferenças
nestes modos de pensar, verificando também o grau de compartilhamento de uma
opinião entre os indivíduos que compõem essa coletividade, sendo esta a dimensão
quantitativa do DSC (Lefevre & Lefevre, 2010).
Resultados
Participaram da pesquisa o total de 28 estudantes universitários, com
predominância pelo gênero feminino (82,14%; n=23), de idades entre 21 a 44 anos
(M=24,96; DP=5,2), todos alunos dos dois últimos semestres de graduação em
Enfermagem de uma universidade privada de São Paulo - SP, sendo 71,43% (n=20)
alunos do nono semestre e 28,57% (n=8) do oitavo. Pouco mais da metade da amostra
(53,57%, n=15) foi composta por sujeitos que se declararam brancos e 42,86% (n=12)
por pardos. Quanto ao estado civil dos participantes, 50% (n=14) eram solteiros e
35,71% (n=10) estavam namorando.
Em relação ao consumo de álcool, a maioria dos universitários (75%, n=21)
afirma consumir bebidas alcoólicas atualmente, sendo que os tipos mais citados foram
1102
a cerveja e o vinho, seguidos por bebidas destiladas, tais como a vodca, uísque,
tequila, entre outras.
A seguir serão exibidos um recorte dos dados qualiquantitativos, sendo a
dimensão qualitativa exposta através dos Discursos do Sujeito Coletivo, e a dimensão
quantitativa sob a forma de gráfico (Figura 1), ambos construídos a partir das
categorias de respostas acerca dos possíveis motivos que levam ao consumo de
bebidas alcoólicas, de acordo com os universitários de Enfermagem.
Na sequência, as categorias mais mencionadas dentre os participantes foram:
A - Socialização e influência do meio (60,71%; n=17); B - Válvula de escape (46,43%;
n=13); C - Prazer (25%; n=7); D - Moda (17,86%; n=5); E- Dependência (14,29%;
n=4); F - Experimentação (7,14%; n=2); G - Desconsideração dos riscos (3,57%; n=1).
Para fins de posterior discussão, neste estudo a ênfase dada será para as três
primeiras.
20 17
Participantes (n)
13
15
10 7
5
4
5 2 1
0
A B C D E F G
Categorias
1103
DSC categoria B - Válvula de escape:
"Eu acredito que o uso funciona como uma forma de fuga da rotina cansativa e pesada
que os universitários possuem. O dia a dia de estudos acadêmicos, conciliado com
trabalho e vida pessoal, geram sentimentos de cobrança, estresse, cansaço físico e
mental. Então, eu acho que esses sujeitos bebem, na maioria das vezes, porque
precisam de uma válvula de escape, de modo a aliviar toda essa pressão, para
desestressar, relaxar e distrair a cabeça. Além disso, também é uma forma de criar
uma 'realidade' desejada para, de certo modo, fugir dos problemas".
Discussão
Observando a predominância pelo feminino obtida na amostra dos
universitários de Enfermagem do presente estudo, destacando que aqui optou-se por
incluir ambos os gêneros, é um dado que fortalece os resultados obtidos por
Mendonça, Jesus e Lima (2018) e por Sawicki, Barbosa, Fram e Belasco (2018), que
em seus estudos também identificaram predominância pelo feminino entre
universitários da área da saúde, incluindo Enfermagem. De acordo com a literatura,
estes resultados ilustram um cenário social já antigo, em que as mulheres adquirem
predominância na profissão de Enfermagem, conforme apontado por Amorim (2009).
Para a autora, mesmo que a tarefa do cuidar compreenda homens e mulheres, o modo
como a divisão do trabalho se deu ao longo dos anos culminou para a concepção
social de que funções que demandem sensibilidade, carinho e afeto fossem tidas
como femininas, estando a atuação em Enfermagem desde sempre associada com
conceitos relacionados à submissão e devoção (Amorim, 2009).
Nota-se que a maioria dos universitários participantes relataram consumir
bebidas alcoólicas no período atual da pesquisa (75%, n=21). Isso se assemelha ao
dado obtido nas amostras de Gomes et al. (2019) e Pinheiro et al. (2017), em que o
uso atual de álcool entre acadêmicos de Medicina foi um pouco mais elevado,
correspondendo a 81,95% e 81,2%, respectivamente. Verifica-se que na amostra de
1104
universitários de Enfermagem de Sawicki et al. (2018), a porcentagem do uso atual
de álcool foi de 76,7%, resultado que se aproxima mais do observado pelo presente
estudo.
Ao recuperar o objetivo central desta pesquisa, a fim de investigar as razões
que motivam o consumo específico de bebidas alcoólicas, sob a percepção de
universitários de Enfermagem, verifica-se que a categoria que obteve maior grau de
compartilhamento aborda o aspecto de “socialização e influência do meio” (n=17). O
DSC da categoria A aponta para os significados do consumo de álcool enquanto
facilitador no estabelecimento de vínculos e na inserção ao ambiente universitário.
Neste contexto social, nota-se a importância atribuída ao sentimento de pertencimento
e à não exclusão pelos demais sujeitos semelhantes, fatores que parecem ilustrar a
influência que o meio exerce perante o consumo. Semelhante à isso, o estudo de
Zeferino et al. (2015) verificou associação entre o consumo de drogas lícitas e a
influência de amigos que usavam algum tipo de substância. Outro dado complementar
à influência do meio é observado na amostra de Rosa e Nascimento (2015), no qual
o bar demonstrou ser o principal lugar para o consumo de álcool, seguido por baladas,
festas e shows.
Salienta-se aqui a estreita relação entre os DSCs das categorias “B - Válvula
de escape” (n=13) e “C - Prazer” (n=7). Ao passo em que o primeiro ilustra o consumo
associado ao alívio de sentimentos penosos que permeiam a rotina do universitário, o
segundo assume o potencial que o álcool possui em propiciar sensações de prazer,
mesmo que momentâneas, que concomitantemente, também atuam na diminuição do
sofrimento do sujeito. Essa conexão entre prazer e válvula de escape retoma o que
Freud (1930[1929]/1974) nomeou como o propósito de vida dos seres humanos,
dizendo que estes “querem ser felizes e assim permanecer” (p. 94). Para o autor, esta
premissa envolve tanto a ausência de sofrimento, quanto a vivência de “intensos
sentimentos de prazer” (Freud, 1930[1929]/1974), p. 94).
Por interessante coincidência, essa relação “prazer e alívio de sofrimento” no
contexto de consumo de bebidas alcoólicas se faz presente também nas várias letras
de sertanejo universitário que mencionavam o álcool, analisadas por Lioto (2012), bem
como no conteúdo das propagandas de cerveja estudadas por Oliveira et al. (2011).
Entretanto, não se pode desconsiderar que, como o termo “droga” dificilmente é
vinculado ao álcool, há maior aceitação quanto à associação das bebidas alcoólicas
1105
à contextos de diversão e felicidade presentes nos veículos publicitários (Mendonça
et al., 2018).
Dentre as diversas formas existentes de se aliviar o sofrimento, Freud (1930
[1929]/1974) irá mencionar a intoxicação química como a maneira mais eficiente,
apesar de ser também a mais grosseira. No caso do álcool, considerando que trata-
se de uma droga “depressora” (SENAD, 2014), ou seja, afeta o cérebro e torna seu
funcionamento mais lento, diminuindo algumas capacidades cognitivas, pode existir a
percepção errônea de que ao beber, ao menos momentaneamente, o sofrimento do
sujeito possa ser diminuído ou esquecido, sensação esta capaz de ser percebida pelo
usuário como prazer e alívio de sofrimento, algo que é bastante expresso nas letras
do sertanejo universitário analisadas por Lioto (2012).
Assim, verifica-se forte associação entre as principais representações sociais
dos universitários de Enfermagem obtidas pelo presente estudo, com a ênfase dada
pelos veículos de comunicação quanto aos aspectos agradáveis e prazerosos do
consumo, seja por via de músicas ou em campanhas publicitárias em eventos festivos,
por exemplo, evidenciando muito pouco os prejuízos à saúde do usuário e de
terceiros, como no caso de acidentes de trânsito.
Considerações Finais
Conforme apontam os resultados parciais apresentados neste estudo, que já
eram esperados com base na literatura, houve predominância na amostra por
universitários consumidores atuais de bebidas alcoólicas. Havendo preferência pela
cerveja, verificou-se neste estudo o quanto este produto é envolto de valorização
social, não só pela publicidade que ressalta os prazeres advindos do consumo, como
também pelos discursos apresentados nas letras do sertanejo universitário, colocando
o álcool numa posição de cura de desilusões amorosas e fonte de momentos de
alegria.
É importante salientar as limitações deste estudo, considerando as
características amostrais e temporais, dentre elas a difícil comparação entre as
representações sociais por gênero, ou entre sujeitos consumidores e não
consumidores.
Recuperando o objetivo central e apoiado nas descobertas desta pesquisa, que
aqui se atenta apenas para a questão das bebidas alcoólicas, observa-se o quanto a
dimensão do prazer permeia o contexto do consumo de substâncias psicoativas. Visto
1106
isso, pensando na criação de políticas públicas que buscam a redução do uso, estas
não devem desconsiderar o aspecto prazeroso envolvido, tampouco basear-se na
proibição do uso. Ademais, outra problemática que merece maior investigação, que
também não foi o enfoque do estudo, refere-se à quais seriam as etapas anteriores
ao quadro de dependência e como se configura a linha tênue entre o consumo social
e o consumo tido como problemático.
Referências
Lefèvre, F., & Lefèvre, A. M. C. (2003). Discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque
em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul, RS: EDUCS.
1107
Marconi, M. A., & Lakatos, E. M. (2016). Fundamentos de metodologia científica (7a
ed.). São Paulo: Atlas.
Oliveira, M., Romera, L. A., & Marcellino, N. C. (2011). Lazer e juventude: análise das
propagandas de cerveja veiculadas pela televisão. Revista da Educação
Física/UEM, 22(4), 535-546. Recuperado de
http://www.scielo.br/pdf/refuem/v22n4/a05.pdf
Teixeira, M. A. P., Dias, A. C. G., Wottrich, S. H., & Oliveira, A. M. (2008). Adaptação
à universidade em jovens calouros. Revista Semestral da Associação Brasileira de
Psicologia Escolar e Educacional, 12(1), 185-202. Recuperado de
http://www.scielo.br/pdf/pee/v12n1/v12n1a13.pdf
Zeferino, M. T., Hamilton, H., Brands, B., Wright, M. G. M., Cumsille, F., & Khenti, A.
(2015). Consumo de drogas entre estudantes universitários: família, espiritualidade
e entretenimento moderando a influência dos pares. Texto Contexto - Enfermagem,
24(Esp), 125-135. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/tce/v24nspe/0104-0707-
tce-24-spe-00125.pdf.
1108
103- A PERCEPÇÃO DA IMAGEM CORPORAL EM PACIENTES PÓS
BARIÁTRICOS
102 Graduanda do 5º ano de Psicologia pela Universidade São Judas Tadeu, USJT/SP, Brasil. Email:
psicologia.usjt.aline@gmail.com
103 Graduanda do 5º ano de Psicologia pela Universidade São Judas Tadeu, USJT/SP, Brasil. Email:
karyne.santiago@hotmail.com
104 Doutora do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu. E-mail:
danutamedeiros@yahoo.com.br
1109
INTRODUÇÃO
A imagem corporal, estudada por Schilder (1923, citado por Schakarowski &
Oliveira, 2014), diz respeito às representações inconscientes e conscientes que um
indivíduo possui sobre seu próprio corpo no espaço, e que envolve aspectos físicos,
emocionais e sociais. Com base nesse pensamento, podemos pensar nas relações
dos indivíduos com a sua autoimagem na atualidade, visto que em nossa sociedade
pode-se observar uma crescente busca pelo “corpo perfeito”, onde o padrão estético
ideal é considerado como sendo um corpo magro e sem curvas.
Mesmo com esse padrão, segundo os dados da Organização Mundial da
Saúde (OMS, 2018), no ano de 2016, mais de 1,9 bilhões de pessoas maiores de 18
anos estavam com sobrepeso, dentre eles, 650 milhões eram obesos, sendo que
essas porcentagens vêm aumentando com o passar dos anos. Devido a esse
crescimento alarmante e consequências no Brasil, o Ministério da Saúde (1999) afirma
que a obesidade se tornou objeto de políticas públicas, sendo ele próprio, através do
Sistema Único de Saúde (SUS), o autor das ações, que a partir de 1990 definiu
diretrizes para realizar trabalhos ligados a áreas de alimentação e nutrição da
população, o que inclui a prevenção e o tratamento da obesidade.
No entanto, a ineficácia dos tratamentos nutricionais, dos medicamentos
antiobesidade e da indicação de exercícios físicos regulares, fez com que novas
formas de tratamento surgissem, a fim de atender às necessidades desta população
(Truzzi, 2008). Assim, uma das formas de combate a obesidade é a Cirurgia Bariátrica,
que, segundo Segal e Fandiño (2002), é indicada para indivíduos que possuem um
Índice de Massa Corporal classificado com obesidade moderada (grau II), e
apresentam ao menos duas comorbidades como, por exemplo, hipertensão arterial e
apneia do sono, além de indivíduos com obesidade mórbida (grau III).
Mas a procura pela cirurgia bariátrica nem sempre está pautada nas indicações
médicas, e sim pela busca do corpo idealizado. Fagundes, Caregnato e Silveira (2016)
expõem que a procura pelo procedimento ocorre por motivos estéticos, sendo visto
como uma forma de não se sentir diferente ou inferior aos outros e de recomeçar uma
nova vida. Essa ideia corrobora com o que Berg (2008) afirma sobre a dificuldade que
alguns indivíduos, considerados obesos, têm em lidar com o próprio corpo que não
corresponde aos padrões sociais. Além disso, a cirurgia bariátrica parece surgir como
um último recurso, que oferece uma melhora mágica, atuando inicialmente no
imaginário através de uma promessa de modificação do olhar sobre si mesmo e o
1110
olhar das demais pessoas, para somente assim, o sujeito passar a existir de forma
completa (Machado, 2017).
No entanto, não se pode descartar a ideia de que a representação mental que
um indivíduo elabora sobre sua autoimagem não está pautado apenas nos padrões
sociais. Marchesini e Antunes (2017) explicam que a imagem corporal implica na
autopercepção do indivíduo sobre o próprio corpo e sobre as atitudes relacionadas a
esse corpo. Além disso, a perda de peso nem sempre irá garantir o aumento da
autoestima, já que muitos pacientes bariátricos, mesmo após perder uma grande
quantidade de peso se mostram insatisfeitos com sua imagem corporal (Faln, 2012,
citado por Marchesini & Antunes, 2017). Essa insatisfação pode estar relacionada com
o pensamento proposto por Benedetti (2003), sobre a necessidade de existir um
consenso entre as mudanças ocorridas e adaptação à nova realidade, caso contrário
o emagrecimento representará apenas um corpo que perdeu peso.
OBJETIVOS
O objetivo foi compreender a percepção da imagem corporal de indivíduos
submetidos à cirurgia bariátrica sobre si mesmo. Especificamente, buscou-se analisar
se a percepção que esses pacientes possuem sobre sua autoimagem é a mesma de
quando ainda não haviam sido submetidos a cirurgia bariátrica.
MÉTODO
O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa de campo qualitativa,
que é uma abordagem que não se atém aos dados numéricos, mas sim, a
investigação e o aprofundamento da compreensão e explicação de um determinado
grupo e as dinâmicas das relações sociais, se atentando com aspectos da realidade
que não podem ser expressos quantitativamente (Gerhardt & Silveira, 2009).
A pesquisa foi encaminhada e aprovada pelo Comitê de Ética da
Universidade105. A coleta de dados foi realizada no mês de junho de 2019, por meio
de encontros individuais, com data, horário e local escolhidos pelos participantes. Foi
apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), garantindo o
sigilo e o anonimato dos voluntários. Além disso, foi informado sobre o uso de um
gravador com o objetivo de captar na íntegra a produção verbal produzida.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dos 6 participantes, três eram mulheres e três eram homens, cinco eram
casados, e as idades variaram entre 34 e 50 anos. O tempo de realização de cirurgia
foi entre 3 e 13 anos, além de outros dados expostos na tabela a seguir.
Participantes (P) P1 P2 P3 P4 P5 P6
Sexo M F F F M M
Idade 38 50 44 41 42 34
1112
Peso Eliminado 61kg 42kg 24kg 37kg 40kg 55,6kg
Figura 1 Produção gráfico-verbal “Desenhe uma pessoa que você considera acima do peso” de P3
1113
A espera de um milagre
Era uma vez (risos) uma pessoa acima do peso, frustrada, triste e que era ponto de
referência (risos). Ah...desde ponto de referência, tinha dificuldades de subir no ônibus,
uma queda gerava quatro quedas. Era bem difícil, sei lá (risos). É isso!
1114
Contudo, todos os participantes disseram não se arrepender de terem realizado
o procedimento cirúrgico, visto que ele contribuiu para mudanças positivas em
diversos aspectos. Por exemplo, quando questionados, os entrevistados ressaltaram
mudanças na autoestima, já que passaram a perceber a sua autoimagem de maneira
mais positiva, bem como, melhorias na saúde e bem-estar, como dito por P2:
"Qualidade de vida em todos os sentidos, na questão pessoal, de saúde, autoestima,
é… Eu comigo mesma, as cobranças que eu fazia. A questão da vaidade, tudo! Pra
mim mudou tudo". Essas mudanças também surgiram nas produções gráfico-verbais
“Desenhe uma pessoa que você considera com o peso ideal”, onde alguns desenhos
tinham fisionomia alegre (P2, P3, P5 e P6) e as histórias continham discursos sobre
bem-estar e qualidade de vida. O P1, por exemplo, diz: “vida mais longa, é… Vida
melhor, saúde melhor, satisfação bem melhor”, e P3 afirma, “autoestima, vaidade,
preocupada mais com a aparência, mais disposta, mais entusiasmada com as coisas
da vida”.
Essas mudanças positivas à perda de peso podem estar diretamente
relacionadas com a percepção negativa que os participantes apresentaram sobre a
obesidade, já que três deles (P2, P3 e P4) ressaltaram algumas características
desfavoráveis e dissertaram sobre como uma pessoa obesa se sente, atribuindo
conotações negativas a figura do desenho realizado sob a orientação “Desenhe uma
pessoa que você considera acima do peso”, como no caso da história de P4.
Figura 2 Produção gráfico-verbal “Desenhe uma pessoa que você considera acima do peso” de P4
1115
O introspectivo
Tímido… Inseguro… E introspectivo. Ele… Ele vive se escondendo apesar da
inteligência dele. Ele não consegue socializar, devido ao peso, então ele vive se
escondendo apesar da grande capacidade… E não é pelo que os outros enxergam,
mas é como ele se enxerga! Então ele acaba tendo poucos momentos felizes nesse
sentido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ineficácia dos métodos menos invasivos de emagrecimento não oferece ao
indivíduo obeso a imagem corporal idealizada por ele, assim a cirurgia bariátrica pode
ser entendida como uma solução mágica para resolução dos problemas de excesso
de peso. Essa compreensão pode estar ligada à falta de acompanhamento psicológico
acentuado, visto que a busca cirúrgica não se dá apenas por problemas físicos de
saúde, mas também por conflitos internos relacionados à autoimagem.
Conclui-se que há uma satisfação dos pacientes pós bariátricos em relação ao
peso e a uma melhora na percepção de sua autoimagem, visto que antes não se
sentiam pertencentes aos padrões sociais. No entanto, pode ser observado também
1116
uma rejeição a imagem corporal atual, o que demonstra a grande importância atribuída
a um peso idealizado, como se somente a partir do ideal alcançado, fossem aceitos,
e a partir disso fosse possível uma autoaceitação.
Em virtude de a pesquisa ter sido composta por uma amostra pequena,
recomendamos que sejam realizados novos estudos com essa temática, para ampliar
as produções científicas, visando auxiliar pacientes.
REFERÊNCIAS
Benedetti, C. (2003) De obeso a magro: a trajetória psicológica. São Paulo, SP: Vetor.
Magdaleno Jr, R., Chaim, E. A., & Turato, E. R. (2009). Características psicológicas
de pacientes submetidos à cirurgia bariátrica. Revista de Psiquiatria do Rio Grande
do Sul, 31(1). Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/rprs/v31n1/v31n1a13
1117
Medeiros, D. (2014). Tabagismo e futuros profissionais da saúde: uma análise das
representações sociais no Brasil e na Espanha (Tese de doutorado, Faculdade de
Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP). Recuperado de
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6135/tde-05032015-125106/pt-br.php
Moreno, C. A. S., Silva, A. M., Bartholomeu, D., & Montiel, J. M. (2011). Caracterização
das mudanças psicológicas ocasionadas em indivíduos submetidos à cirurgia
bariátrica. Encontro: Revista de Psicologia 14(20). Recuperado de
https://revista.pgsskroton.com.br/index.php/renc/article/view/2508/2402
Segal, A., & Fandiño, J. (2002). Indicações e contra-indicações para realização das
operações bariátricas Bariatric surgery indications and contraindications. Revista
Brasileira de Psiquiatria, 24(3). Recuperado de
http://www.scielo.br/pdf/%0D/rbp/v24s3/13976.pdf
1118
Truzzi, G. P. S. (2008). Após a Cirurgia Bariátrica: Ampliando a compreensão à luz da
Psicanálise (Trabalho de Conclusão de Curso, Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, SP). Recuperado de
https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/18624/2/Giovana%20Parizzi%20Serra
%20Truzzi.pdf
1119
104- A VIOLÊNCIA DO CUIDADO EXCESSIVO
Introdução
Relato da Experiência
106
Nome fictício.
107
Nome fictício.
1122
criando um ambiente que beirava a uma presença permanente e total da mãe com
Marcelo.
Sobre o paciente em si: Marcelo é um rapaz tímido, quase não fazia contato
visual comigo, buscava sempre algo para mexer com as mãos enquanto relatava algo
em sessão; parecia haver nele um desconforto de estar ali, de se abrir a si mesmo e
a mim. Notava-se, entretanto, que ao ouvir o que o analista dizia, fixava os olhos nos
olhos do analista, sem nem ao menos piscar. Este comportamento em análise chamou
minha atenção por ser atípico à minha experiência com pessoas introvertidas.
Com paciência, Marcelo foi se abrindo mais, perguntando mais sobre situações
da vida que assolam adolescentes: amor, sexo, amigos etc. O vínculo não foi de todo
demorado para se estabelecer, mas precisou de diversas atenções ao ambiente
acolhedor que construímos. Mais seguro em sua análise, Marcelo percebia que seu
desejo de morte estava cada vez mais ligado à sua agonia impensável e conseguia
compreender ao menos sobre o que ela era ao contrário do antigo “vazio sem sentido”
(sic).
O problema que Marcelo mais trazia era sua falta de prazer e vontade em
estudar. Em sua fantasia ele morreria com dezoito anos; então, todo momento dentro
de uma sala de aula era inútil e tirava tempo de seus prazeres – o qual era limitado a
um computador e a muitas horas livres de responsabilidades. Muitos dos problemas
relatados pela(s) mãe(s) eram de ele manipular situações ou criar adversidades e/ou
doenças para faltar nas aulas. Marcelo chegou a repetir um ano letivo por faltas,
alegando que não gostava de ninguém da escola (e que a culpa era da mãe por tê-lo
colocado lá).
O processo analítico se desenvolvia devagar, mas exponencialmente forte. A(s)
mãe(s) ouviam as intervenções e elaboravam aparentemente de modo satisfatório;
até que um dia, Marcelo, sabendo como manipular a insegurança de sua(s) mãe(s),
disse que não iria mais às aulas na escola na qual estava matriculado, mas se a mãe
o trocasse de escola ele estudaria. Sem pestanejar, Andressa entrou no processo de
transferência para outra escola.
Marcelo vinha às sessões após a aula no fim da tarde, enquanto estudava na
escola anterior, mas nesta escola nova aquele horário da sessão não era mais
possível; entretanto, já sabido por toda família, o analista não possuía mais nenhum
horário disponível dentro dos horários possíveis para Marcelo comparecer sem faltar
às aulas. Por indisponibilidade de horários, foi encerrado o processo e encaminhado
1123
o caso a outro analista, mas a mãe negou a sessão de devolutiva e de fechamento,
tão como a continuidade da análise com outro profissional, alegando que ela havia
feito o que era necessário para o filho; e que a responsabilidade da não permanência
na análise partia do analista, não dela nem do analisando.
O processo de análise de Marcelo se deu em apenas três meses.
Discussão
1124
contra si ou contra as normas da mãe, sempre com o intuito de trazer novamente a
ele o cuidado, carinho e atenção que caracterizava sua prisão de dependência.
O ato de Andressa em superproteger o filho, acabou por ser violento, pois o
que seria uma forma de abstê-lo dos pesares e dores do mundo, acabou por impedi-
lo destas dores e experiências, criando outras internas que acabaram por quererem
ser externalizadas, como exemplo fatídico as suas tentativas de suicídio com o
medicamento que, em tese, seria para sua “cura”. Andressa entrou em um processo
natural de preocupação materna primária (Winnicott, 1956/2000), mas não se afastou
naturalmente com o passar do desenvolvimento de Marcelo, mantendo esta
preocupação excessiva e absoluta, que prejudicou seu amadurecimento e manteve a
unidade do relacionamento.
Colocar Marcelo em uma bolha, impeditiva e de proteção excessiva, acabou
por retirá-lo do mundo ao invés de inseri-lo com o cuidado suficientemente bom de
proteção.
Os atos de manipulação de Marcelo, como o de mudar de escola em um
impulso destrutivo a sua análise e à própria mãe, tão como a veemência em que a
mãe de pronto cede à manipulação e compactua com a destrutividade, mais uma vez
retoma a dupla dependência de Marcelo e a manutenção ilusória da mãe de que ele
ainda compõe com ela um ser único e de cuidado extremo. Segundo Forlenza Neto
(2008), para deixar o jogo ilusório da mãe, haveria de ser dado espaço em análise
para a apercepção criativa de Marcelo, um espaço de construção em seu núcleo, em
que criaria o seio em sua onipotência ilusória, a fim de trabalhar este seio no espaço
potencial do setting, criando em si suas possibilidades, e por fim dar prosseguimento
às fases e ao próprio amadurecimento; este trabalho infelizmente não foi possível
devido à ruptura da análise.
Conclui-se que o cuidado é de ordem da necessidade, não do controle. Assim
como o bebê de forma inata cria o dois-em-um, a mãe também o faz, mas parte dos
dois esta separação com o processo natural do amadurecimento; por ordens da mãe,
este processo se estagnou, mas por dupla dependência cristalizada do filho, se
manteve como manipulação ambígua.
Apesar de o cuidado ser necessário, ele deve ser suficientemente bom, nem a
mais, nem a menos.
1125
Referências
1126
105- FATORES MOTIVACIONAIS PARA O AUMENTO DO CONSUMO DE
ÁLCOOL POR MULHERES
Resumo: O estudo trata-se de uma revisão bibliográfica acerca dos aspectos gerais
que justifiquem o aumento do consumo alcoólico por mulheres. Os resultados
mostram que existem diversos fatores relacionados: genéticos, fisiológicos,
psicológicos e socioculturais. O organismo feminino é mais frágil em relação aos
homens quanto à tolerância alcoólica. Exigências sociais dos papéis da mulher,
sobrecarga de responsabilidades, isolamento social, solidão e divórcio contribuem
para o consumo alcoólico por mulheres e estas são estigmatizadas o que impede a
busca por tratamento em caso de consumo excessivo caracterizado como doença.
Conclui-se que o consumo de álcool por mulheres está associado à complexidade e
particularidades individuais e de contexto sociocultural. Faz-se necessário a
realização de estudos que investiguem estas características para que seja possível
direcionar atenção e cuidado às mulheres alcoolistas.
Introdução
1127
Para os filósofos iluministas, quanto mais capazes formos de compreender
racionalmente o mundo e a nós mesmos, mais chance temos de torná-lo estável e
ordenado. Porém, o mundo atual, em vez de estar sob o comando da humanidade,
parece um mundo em descontrole. A vida se tornou insegura com novos riscos e
incertezas que afetam a todos, independentes do local onde se vive.
Em 2000, o Brasil foi considerado o terceiro maior consumidor de vinho do
mundo (Mello, Breda e Barrias, 2001 citado por Santos, 2008). Resgatando o processo
histórico e o contexto sociocultural que poderiam ter influência sobre o alcoolismo
feminino, Blume (1986 citado por Cesar, 2006) revela que o aumento do consumo de
bebida alcoólica por mulheres disparou a partir da Segunda Guerra Mundial.
É neste cenário de dúvidas e incertezas que se contextualiza e se desenvolve
o alcoolismo associado à mulher.
Objetivo
Resultados
1128
diagnóstico, o que levou a Organização Mundial da Saúde a enquadrar o alcoolismo
como uma doença, procede à sua transcrição:
A maioria das pessoas não encara o álcool como uma droga capaz de alterar
o funcionamento psíquico e capaz de provocar dependência. O indivíduo consome
demasiadamente e não leva em consideração quando os efeitos da substância já não
são mais os mesmos, isso envolve o fenômeno que é definido como tolerância. Afirma
Weiten (2010, p.157), “tolerância é a progressiva diminuição na resposta de uma
pessoa a uma droga como resultado do uso continuado.” A tolerância leva a pessoa
aumentar o número de doses para conseguir o efeito desejado. Algumas drogas
produzem tolerância de maneira mais acelerada que as outras. No caso do álcool a
tolerância desenvolve-se lentamente.
Afirmam os autores (Cesar, 2006; Santos, 2008) que, do ponto de vista
metabólico, as mulheres são menos tolerantes ao álcool que os homens porque há
uma menor quantidade de enzimas metabolizadoras de álcool existente no organismo
feminino, causando assim uma intoxicação com o uso de metade da quantidade de
álcool usada pelo homem.
Segundo Pinheiro (2006, p.06), “quantidades equivalentes de álcool afetam
homens e mulheres diferentemente, devido às diferenças em peso e composição
corporal.” Isso se deve pelo fato de a mulher apresentar na sua composição corpórea
menos água e maior quantidade de tecido gorduroso.
Do ponto de vista fisiológico, a mulher sofre mais conseqüências clínicas, mais
risco de mortalidade decorrente do uso de álcool que o homem, mesmo com menor
tempo de consumo. Também apresenta maior percentagem para desenvolver
doenças hepáticas como a hepatite alcoólica que quase sempre progride para cirrose
(Cesar, 2006; Santos, 2008).
1129
O alcoolismo feminino pode provocar também miocardiopatia, lesão cerebral
problemas ginecológicos e obstétricos como: infertilidade, abortos espontâneos e
histerectomias. Pode provocar anomalias congênitas na prole, causar a síndrome fetal
alcoólica que compreende anormalidades físicas, seqüelas mentais e
comportamentais (Nóbrega e Oliveira, 2005).
Conforme alguns autores (Assis e Castro, 2010; Santos, 2008) o alcoolismo
feminino está relacionado com uma história familiar de abuso de álcool. É importante
também ressaltar que o alcoolismo sofre importante influência de fatores genéticos
que regulam o metabolismo do álcool quanto de genes que afetam traços de
personalidade (CISA, 2011). Mas o alcoolismo feminino não deve ser explicado
somente com base nos fatores genéticos e fisiológicos.
Dentre as causas psicológicas foi possível averiguar a crença que a bebida
afasta os problemas, diminui a ansiedade e a timidez. A depressão, transtornos
psicológicos e problemas afetivos como o isolamento, solidão, abandono e divórcio
também contribuem para o consumo abusivo por parte das mulheres.
Os aspectos socioculturais também foram motivos de estudos nos artigos
pesquisados. Segundo Mourad Lejoyeux (1997 citado por Santos, 2008), a evolução
do estatuto da mulher na sociedade, o seu acesso a postos de responsabilidade são
a origem de novas modalidades de alcoolização suscitadas ou favorecidas pelas
mudanças profissionais. Com a aceitação do consumo social de álcool por mulheres,
elas passaram a utilizá-lo como suposto facilitador de relações sociais e aumento de
performances profissionais.
Apesar do alcoolismo ser encarado como uma síndrome nos dias de hoje, na
qual esses fatores – fisiológicos, genéticos e psicológicos – preponderam, deve-se
levar em consideração também a influência do meio e as características de
personalidade, fatores estes que também favorecem a predisposição da dependência
(Grinfeld, 2004).
A visão da sociedade frente ao alcoolismo feminino é bastante agressiva: o
consumo alcoólico por mulher é considerado imoral, tendo comportamento
inadequado e sofre a estigmatização acabando por recorrer ao tratamento com menos
frequência do que os homens, o que lhes acarreta mais comprometimentos ao longo
do uso da substância psicoativa (Campos e Reis, 2010).
1130
Discussão
Pôde-se a partir deste estudo identificar múltiplos fatores que podem influenciar
no aumento do consumo de álcool por mulheres, sendo eles: genéticos, fisiológicos,
psicológicos e socioculturais.
O álcool é uma substância psicoativa de risco que pode levar a dependência.
Ainda hoje, é um elemento socialmente aceito e solicitado para as mais inusitadas
situações sociais e esta mesma sociedade tem um forte preconceito contra as
mulheres alcoolistas.
A cobrança da sociedade à mulher, como cumprir os seus postos de
responsabilidade tem a sobrecarregado ocasionando crises psicológicas, dando
espaço a sentimentos como tristeza, desgosto, ansiedade, medo, vergonha, culpa,
angústia e, com isso, fazendo com que a mulher procure apoio no álcool. Problemas
familiares e genéticos também podem estar relacionados ao consumo excessivo
alcoólico.
Qualquer um pode estar vulnerável à disposição do alcoolismo, mas a
dependência e consequência às mulheres podem surgir mais rápido do que nos
homens devido às suas características fisiológicas. Sendo que nelas a doença pode
ser mais grave, pois o metabolismo é mais frágil em relação aos homens.
O preconceito às mulheres perante a sociedade é maior devido a uma cultura
discriminatória, competitiva, machista e estigmatizante, onde a cobrança diante de
papéis a cumprir e a condenação de posturas inaceitáveis socialmente provoca
sentimento de culpa que as impedem de procurar tratamento.
Em nossa sociedade, ainda que contemporânea, existem reflexos de um
preconceito cultivado ao longo das gerações. A exigência social de que a mulher deve
estar sempre em ótima forma para realizar, sem nenhum deslize, seus deveres
familiares, sociais e profissionais, demonstra que não somente há um equívoco
evidente quando pensamos ser justos com o tratamento desta no cotidiano, mas
também semeia a hipocrisia de que a mulher, ao contrário do homem, não deve se
portar como uma alcoolista e muito menos ser tal. Uma vez que o repúdio à mulher
que bebe sempre foi uma ação inerente ao homem.
O consumo excessivo de bebida alcoólica é uma doença e para tanto há de se
ter tratamentos especializados para os potenciais pacientes, sendo que a mulher
1131
alcoolista não foge desse cenário. Portanto, a conscientização é necessária para que
se possa ajudar, ao invés de complicar a situação de quem precisa de cuidados.
Os resultados mostram que as mulheres ainda continuam enfrentando
obstáculos dentro de uma cultura discriminatória, de uma construção sociocultural
tradicional, acentuada pelas transformações sociais e alterações enfrentadas a partir
do século XX. Contudo é notável a busca pela extinção da discriminação e do
preconceito, que tende e deve a cada ano que passa repercutir em um final próspero
para que não haja mais o afastamento da mulher alcoolista, mas sim a aproximação
da mesma junto da sociedade perante um bem maior, em doutrina a aquela
superstição do homem que já devia ter mudado há muito tempo, mas que ao contrário
fora mantido: o julgamento pelas indiferenças, pelas oportunidades e circunstâncias
de cada indivíduo.
Essa situação levanta a questão de fazer ciência e produzir conhecimento
sobre o feminino em uma discussão sobre gênero. A segregação social e política que
historicamente foi imposta às mulheres gerou como consequência sua invisibilidade
enquanto sujeito, consequentemente, enquanto sujeito da ciência. O alcoolismo
feminino trilha caminhos próprios para seu desenvolvimento, sendo urgente seu
reconhecimento e formas diferenciadas de atenção à mulher.
Referências
1132
Grinfeld, H. Efeitos genéticos e ambientais na descendência de alcoolistas: novo
enfoque utilizando modelo de filhos de gêmeos. Revista Einstein, v.2, n.1, p.80,
2004.
1133
106- CONSULTAS TERAPÊUTICAS COM PAIS E FILHOS: A EXPERIÊNCIA
COMPARTILHADA DO BRINCAR
Introdução
1134
com as próprias pernas e vão embora com as pernas deles, e me parece que isso tem
relação com irem embora da análise e nos esquecerem, e viverem a vida que faz
sentido para cada um deles.
Entendo que essa proposição de Winnicott se sustenta na sua concepção de
ser humano: “um ser humano é uma amostra-no-tempo da natureza humana” (1990,
p. 29).
Concordo com Winnicott. Os seres humanos mostram-nos o que são e o que
não são em cada um dos momentos de suas vidas e por isso entendo que os
fenômenos humanos, quaisquer que eles sejam, não podem ser apreendidos e
descritos como se fossem representações absolutas e totais, pois são uma
manifestação temporal (em um dado momento) do processo de amadurecimento
emocional de um ser humano.
Entendo que essa maneira de pensar o fenômeno humano também transforma
o modo como compreendemos o sintoma psicológico que, a meu ver, passa a ser
visto não como ausência de saúde, mas como um fenômeno humano que indica uma
perturbação no processo de amadurecimento pessoal que necessita ser comunicada
e compreendida para ser integrada, por meio da experiência, ao modo de ser do
indivíduo.
O sintoma psicológico da criança, trazida à consulta em psicanálise por seus
pais, pode ser compreendido, então, como a comunicação de algo que se passa com
ela em um dado momento do seu processo de amadurecimento emocional, o que
implica na necessidade de um espaço e tempo para que isso seja integrado ao seu
modo de ser, desde que haja um ambiente favorável como apoio e suporte.
Considerando com Winnicott que as diversas tarefas que a tendência inata ao
amadurecimento emocional impõe ao ser humano, ao longo da vida, precisam ser
sustentadas por um ambiente facilitador que forneça cuidados para a expressão e a
experiência do que está naturalmente sendo vivido, incluí os pais nas Consultas
Terapêuticas das crianças em atendimento psicanalítico.
A minha compreensão psicanalítica do sintoma psicológico da criança e a
minha concepção de que os pais precisam resgatar a possibilidade de ser “um
ambiente desejável médio” (Winnicott, 1984, p. 13), em consonância com a minha
experiência clínica, me fizeram incluir os pais nas consultas terapêuticas e
desenvolver um meio de intervenção em psicanálise que denominei de Consultas
1135
Terapêuticas com pais e filhos, que foi objeto de estudo de minha Tese de Doutorado
defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em 2015.
Objetivo
1136
acolher a angústia de seus filhos, e por isso demandam a ação de um especialista –
o psicanalista – para, por um lado, manter a concepção ilusória de que não estão
implicados no processo de construção do sintoma da criança, e por outro, para
descobrir uma forma diferente de agir na relação com a criança, na medida em que
buscam compreender o lugar deles na vida de seus filhos.
Winnicott propõe uma forma de trabalho clínico psicanalítico em que haja a
reconstituição da esperança e da confiança da criança no ambiente e em si própria, e
isso faz todo o sentido quando pensamos que a criança na contemporaneidade é
incumbida de fazer-se a si mesma. Digo isso me baseando em uma concepção sócio-
histórica que estuda a sociedade contemporânea e que tem discutido a materialização
do ser humano e de seus fenômenos, instituindo-lhe a responsabilidade de fazer-se a
si mesmo, o que tem isentado os seus membros na construção do desenvolvimento
emocional de seus pares. Poderíamos pensar em uma vivência de abandono, de
orfandade tanto para os pais como para os filhos.
A proposta das Consultas Terapêuticas com Pais e Filhos põe em movimento
um encontro entre esses pares por meio da experiência do brincar, em um ambiente
especializado, no qual a criança conta como ela está no mundo, e os pais são
convidados a resgatar a sua compreensão empática quanto às necessidades da
criança, ou seja, a retomarem a sua capacidade de abrigar em si mesmos esse
momento emocional da criança. O analista está lá para favorecer esse ambiente para
ambos, apreendendo que a comunicação significativa da criança advém de sua
confiança de que o que está sendo comunicado será compreendido. Esta postura do
analista permite que a criança comunique a sua angústia baseando-se no vínculo de
confiança e de renovação da esperança de que ela está sendo escutada e
compreendida. E o que precisa ser compreendido? Precisa-se compreender que a
criança está apresentando seu modo de ser e viver em um dado momento e que ela
necessita resgatar confiança no suporte dos pais para reencontrar os recursos
indispensáveis à continuidade do seu desenvolvimento emocional.
A experiência criativa proposta na situação de Consultas Terapêuticas com pais
e filhos se estabelece na medida em que a criança e seus pais encontram um
ambiente suficientemente bom, isto é, um ambiente que se adapta às suas
necessidades e que por isso se torna digno de confiança. Estando confiantes no
ambiente, o espaço potencial pode ser resgatado e logo podemos observar o brincar
espontâneo e a comunicação da motivação da angústia. A intervenção, portanto, é
1137
bem simples: fornecer um ambiente confiável para os pais e para a criança, o que
permite o estabelecimento do brincar conjunto. É aí que acontece a escuta clínica: na
experiência compartilhada do brincar, em que o “indivíduo pode reunir-se e existir
como unidade, não como defesa contra a ansiedade, mas como expressão do EU
SOU, eu estou vivo, eu sou eu mesmo” (Winnicott, 1975, p. 83).
Relato da Experiência
1138
qual seria, assim como compreender o motivo que impulsionava aqueles pais a
perceberem sua filha como alguém que dava tanto trabalho aos adultos. Lúcia
participou de três consultas terapêuticas com outras crianças da mesma faixa etária.
Em todos esses atendimentos, a criança mostrou-se desinibida, atenta, falante e
criativa. Contudo, havia em alguns momentos, uma agitação exacerbada
desconectada de uma produção criativa e espontânea, acompanhada de um
incremento de atitudes agressivas por parte dela, que parecia indicar a emergência
de uma angústia. Ela surgia quando a menina não se sentia confiante em ser
reconhecida como si mesma, quando por alguma razão, não se sentia ouvida e vista
como distinta das outras crianças. Era como se ela perdesse a confiança de ser
reconhecida como si mesma e precisasse agir de modo agressivo como uma oposição
à ameaça de perda da sua identidade. Mostrava-se, ao mesmo tempo, preocupada
com os efeitos dessa ação, e o seu brincar se tornava inibido como se esperasse uma
reação de não aceitação e de intolerância do ambiente ao seu impulso destrutivo.
Compreendemos que ela estava apresentando uma necessidade de acolhimento e
suporte à excitação advinda de impulsos destrutivos – espontâneos e repletos de
vivacidade – que talvez não tenham sido tolerados pelos pais e por isso não puderam
ter sido experimentados em sua totalidade por ela, gerando um estado de angústia
primitiva na qual ela perdia de vista o brincar. Decidiu-se, então, convidar os pais a
participar de Consultas Terapêuticas com sua filha.
Na primeira Consulta Terapêutica com Lúcia e seus pais, a menina convidou
seus pais e a mim para brincar e isso ocorreu de maneira franca e genuína entre Lúcia
e sua mãe. O pai manteve-se mais como um observador, apesar de ser convidado por
Lúcia a brincar conosco. Em um dado momento da consulta, Lúcia se tornou mais
agitada e passou a desenhar correntes, laços com nós muito apertados, dizendo que
queria fazer algo que pudesse ser usado pelo pai e pela mãe, mas que não encontrava
o que servisse para os dois. Eu disse que nem sempre uma coisa servia para dois e
que ela podia fazer algo que ela sentisse que serviria para o pai diferente do que ela
sentia que serviria para a mãe. Ela então desenhou e pintou uma pulseira para a mãe
e um anel para o pai, que reagiu com contentamento, pela primeira vez, ao receber
esse presente de sua filha, o que a deixou bastante alegre e levou-a imediatamente a
desenhar e recortar mais pulseiras, tiaras, anéis, lenços, carteiras e outros “objetos”
que pudessem ser usados pelo pai e pela mãe. O pai expressou, então, sua surpresa
ao perceber que sua filha era uma pessoa criativa, que se mantinha atenta e
1139
concentrada no que estava realizando, assim como manifestava alegria ao ser bem
recebida em suas expressões afetivas, podendo estar mais identificado
empaticamente com a sua filha. Nesse momento, percebemos que o pai pôde colocar-
se no lugar da filha, assim como ela havia se colocado no lugar dele, mesmo que
ambos permanecessem sendo si mesmos, o que permitiu o começo de um novo
relacionamento. Isso indicou a existência de uma aproximação afetiva entre eles,
apesar do aparente distanciamento.
As Consultas Terapêuticas entre Lúcia e seus pais permitiram, então,
apresentá-la como uma criança que não só observava o mundo, mas que interagia
ativamente com ele, o que exigia dos seus pais um modo de relação também ativo e
participativo com ela. Nas palavras dela: “Agora vocês já sabem que eu sou uma
artista, não é mesmo, papai?” (sic). Logo depois que Lúcia disse isso, o pai me revelou
que ele se irritava com a filha porque ela se parecia com seu irmão, que também era
tão criativo quanto sua filha e por isso, segundo ele, bem mais amado por sua mãe, e
que isso o agredia. Entendemos, então, um dos motivos pelo qual o pai se opunha de
forma hostil à Lúcia e não podia se identificar empaticamente com ela, levando-o a
tratá-la como fazendo parte de sua realidade subjetiva. Foi possível também
apresentar aos pais a compreensão de que a agitação de Lúcia era uma manifestação
de sua angústia diante da distância afetiva do pai e da sua não identificação empática
à necessidade dela de ser si mesma. O estado de excitação exacerbado era
movimento em direção a ser reencontrada e reconhecida pelo pai como uma pessoa
distinta e única. A partir dessa compreensão foi proposta uma segunda Consulta
Terapêutica com Lúcia e seus pais, na qual pudemos observar, por meio do brincar
mútuo, que eles estavam se relacionando de maneira genuína e espontânea, e que
isso indicava que os pais e a filha haviam recuperado a capacidade de dar
continuidade à vida emocional da relação familiar. Os pais estavam devolvidos à Lúcia
e agora eles podiam se conhecer e se relacionar. Houve, então, o encerramento do
atendimento psicológico de Lúcia e seus pais no Serviço Escola.
Discussão
1140
momento do processo de maturação de cada uma das crianças e a sua interface com
o ambiente imediato. Dito de outra forma, a presença dos pais nas Consultas
Terapêuticas de seus filhos foi promovida pela analista quando havia indicativos da
capacidade da criança em ter esperança em um encontro humano que viesse em seu
auxílio, e quando os pais poderiam fazer um bom uso do progresso alcançado por ela
após a finalização das consultas. Além disso, o manejo e o suporte desenvolvidos
pela analista foram fundamentais para favorecer o momento da comunicação
significativa da criança e para sensibilizar e mobilizar novamente os pais em direção
à identificação empática com a criança, a fim de que proporcionassem o suporte e
apoio necessários para a continuidade do amadurecimento emocional.
Faz-se importante mencionar o aspecto preventivo dessa modalidade de
intervenção terapêutica, na medida em que promove a conscientização dos pais sobre
sua participação na constituição do sintoma da criança, além de auxiliar a criança a
elaborar sua angústia antes da estruturação de modos patológicos de resolução do
conflito. Além disso, por estarem sendo realizadas em uma instituição, o Serviço
Escola, as Consultas Terapêuticas com pais e filhos têm abarcado um número maior
de crianças e seus pais em um tempo breve de atendimento clínico psicanalítico,
promovendo as funções sociais dessa instituição: atender as necessidades da
população que a procura e formar profissionais capacitados a enfrentar as demandas
atuais da realidade sociocultural. A participação dos estagiários nas Consultas
Terapêuticas com pais e filhos permite a aprendizagem de outra modalidade de
intervenção aos futuros profissionais da psicologia, o que, a meu ver, garante uma
experiência clínica diferenciada e apropriada à prevenção e promoção de saúde da
criança e de seus pais, apontando para a sua relevância social.
A originalidade desse trabalho clínico psicanalítico está na constituição de uma
experiência compartilhada do brincar com os pais nas Consultas Terapêuticas com
seus filhos, o que tem permitido o acesso dos pais ao brincar tornando mais facilitado
o contato entre eles e a criança. Essa experiência compartilhada do brincar, mediada
pela condição de “cuidar-curar” da analista, atualiza as próprias condições favoráveis
dos pais de cuidar do filho.
Sempre esperamos que os pacientes nos esqueçam e vão embora, disse
Winnicott, para viver a vida que faz sentido para cada um deles. O nosso ponto de
partida é o nosso ponto de chegada.
1141
Referências
Safra, G. (2005) Curando com histórias: A inclusão dos pais na consulta terapêutica
da criança. São Paulo: Edições Sobornost.
1142
107- VIVÊNCIAS EMOCIONAIS DE CUIDADORES FORMAIS DE IDOSOS
PORTADORES DE DEMÊNCIA
INTRODUÇÃO
As questões sobre envelhecimento humano vêm ganhando cada vez mais
espaço no cenário mundial e tem se tornado um dos fenômenos mais estudados na
atualidade. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018
1143
a população foi estimada em 208,5 milhões de habitantes, sendo que 28 milhões são
de idosos. Isto gerou um Índice de Envelhecimento (IE) de 63 idosos para cada 100
jovens, promovendo, assim, uma significativa mudança demográfica (IBGE, 2018).
O envelhecimento é um processo natural que começa na idade adulta, por
volta dos 30 anos, apresentando um declínio gradual das funções físicas e cognitivas
do indivíduo que são consideradas normais, ainda que vivenciadas como
desagradáveis por grande parte dos idosos (Berger, 2013). O processo de
envelhecimento transforma o organismo reduzindo suas capacidades funcionais e
psicológicas, dependendo do contexto biopsicossocial em que este indivíduo estiver
inserido (Neri, 2013; Costa, Castro, & Acioli, 2015).
As síndromes demenciais são as doenças mentais que mais acometem os
idosos atualmente e é definida como uma condição na qual ocorre decréscimo
cognitivo comparado a um nível prévio do indivíduo (Parmera & Nitrini, 2015). Existem
diversos tipos de demências, dentre as quais podemos destacar a Doença de
Alzheimer (DA), Demência Vascular, Demência Frontotemporal e Demência com
corpos de Lewi (Araújo & Nicoli, 2010), que são mais prevalentes no Brasil.
Em face à vivência de uma velhice fragilizada, faz-se necessário prover um
ambiente de cuidados e considerando as estimativas de crescimento populacional, a
figura do cuidador começa a ganhar notoriedade e espaço. De acordo com Marigliano
(2016), em virtude da mudança demográfica no Brasil a sociedade começa a perceber
o processo de envelhecimento sob uma nova perspectiva, oferecendo a partir de então
um novo olhar para o trato do idoso.
O cuidador formal é a pessoa com ou sem formação específica para o
exercício da função, remunerada, que atua vinculado à uma instituição de cuidados,
como por exemplo Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), Centros Dia
ou Hospitais Dia, ou no domicílio do idoso cuidado. Segundo Bifulco e Levites (2018),
é fundamental a busca de informações antes de tornar-se um cuidador, tendo em vista
que o conhecimento tem importância crucial neste processo. No Brasil ainda não há
formação oficial para cuidadores, apenas cursos particulares de curta duração.
Em um estudo focado na comparação do bem estar psicológico de
cuidadores de idosos com e sem demência, Barbosa, Cruz, Figueiredo, Marques e
Sousa (2011) identificaram que o cuidado de idosos demenciados implica em uma
série de dificuldades, especialmente no que tange a comunicação com o idoso e os
distúrbios comportamentais inerentes à doença, como a agitação e a agressividade.
1144
Desta forma, é de suma importância investimentos em estudos sobre as vivências
emocionais dos cuidadores formais com finalidade de analisar a perspectiva desta
área e promover conhecimentos e reflexões acerca do respectivo tema.
OBJETIVOS
O objetivo geral desse estudo foi investigar e analisar as vivências emocionais
de cuidadores formais de idosos demenciados. Especificamente objetivou-se verificar
principais motivações para escolha da profissão, analisar através dos relatos os
principais impactos que o cuidado do idoso demenciado produz na saúde física e
emocional do cuidador e comparar vivências emocionais entre cuidadores que atuam
em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) e no domicílio do idoso.
JUSTIFICATIVA
Considerando o aumento da população idosa no Brasil, cresce a procura por
cuidadores. Nesta profissão os profissionais podem sentir-se sobrecarregados tanto
física como emocionalmente. Portanto, realizar estudos que aprofundem essa
temática torna-se relevante para o campo científico, a fim de promover além do
conhecimento do tema, o oferecimento da escuta aos participantes.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa de campo, de caráter descritivo, abordagem
qualitativa, que foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São
Judas Tadeu (CEP) através do CAAE 12511119.3.0000.0089 e aprovado sob o
número 3.317.443. A amostra foi composta por 10 cuidadores formais de idosos
portadores de qualquer tipo de demência, sendo proporcionalmente divididos entre os
que atuam em domicílio ou Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), de
ambos os sexos, com idade entre 21 e 59 anos e que exerciam a atividade há pelo
menos 6 meses.
Em seus respectivos locais de trabalho os participantes leram e assinaram o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Na sequência foram aplicados um
questionário sociodemográfico, o Procedimento Desenho-Estória com Tema (Aiello-
Vaisberg, 1995) e uma entrevista semidirigida. Para a análise das entrevistas
semidirigidas e das estórias relativas aos desenhos, foi utilizada a Análise de Conteúdo
de Bardin (2011), técnica que procura condensar o volume amplo das informações que
1145
estão compreendidas, ressaltando categorias conceituais. Com relação à produção dos
Desenhos-Estória foi levado em conta todo o conjunto da produção e os principais temas
apresentados. Todos os resultados foram discutidos sob a luz da teoria sobre o tema.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Apesar da pesquisa prever a participação de cuidadores de ambos os sexos, a
amostra é predominantemente feminina (80%). Segundo Marigliano (2016), esta é uma
característica marcante encontrada nas pesquisas voltadas a cuidadores de idosos.
Em relação à faixa etária, assim como em outros estudos (Marigliano, 2016;
Paes, Cots, & Ramalho, 2017) a idade dos participantes varia entre 25 e 57 anos, sendo
que a média de idade dos cuidadores é de 42 anos. É interessante destacar que se
observarmos separadamente os dois grupos pesquisados, percebe-se que os
cuidadores domiciliares são mais jovens e têm em média 37 anos, ao passo que os que
atuam em ILPI são em média 10 anos mais velhos. Sobre este aspecto, Vieira, Gomes,
Fialho, Silva, Freitas e Moreira (2011) ressaltam que o fator idade restringe o tempo de
atuação do profissional.
No que tange à escolaridade, 80% dos participantes possuem alguma formação
voltada para a área da saúde. Pensando na formação deste profissional, Silva, Machado,
Ferreira e Rodrigues (2015) indicam que não há muitos cursos voltados para esta
atividade e dentre os existentes, não há uma matriz curricular específica e bem definida.
Observou-se dentre a população pesquisada que os profissionais melhor
remunerados atuam em ILPI, cuja média é de 2,8 salários versus 2,2 salários dentre
os domiciliares. Esta diferença para os cuidadores domiciliares pode estar pautada
na falta de clareza na comparação sobre os limites da função deste profissional e da
empregada doméstica, uma vez que, para esta segunda, não há exigências no que
tange a escolaridade e formação técnica (Marigliano, 2016; Couto, 2012).
No que se refere à jornada de trabalho, a carga horária é de 12 horas/dia
para 90% dos profissionais pesquisados. A regulamentação da atividade de cuidador
de idosos está em tramitação através do Projeto de Lei nº 4702/2012, mas já integra
o rol de profissões descrita na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO).
Para a análise de conteúdo das entrevistas semidirigidas, as respostas
obtidas foram agrupadas nas seguintes categorias temáticas: motivações para se
tornar um cuidador; características de cuidadores de idosos com demência; diferenças
nos cuidados de idosos com demência; impactos da função na saúde física e mental.
1146
Na categoria temática “Motivações para se tornar um cuidador” buscou-se
compreender os motivos que levaram os participantes a escolherem essa profissão.
Observou-se que a maioria dos participantes iniciaram suas carreiras a partir da
experiência de cuidado de um familiar, conforme identificado no estudo de Almeida,
Leite e Hildebrandt (2009) que ressaltam que os cuidadores estão na própria família.
Outra unidade identificada foi o interesse e o gostar de idosos, observada igualmente
entre os cuidadores domiciliares e institucionais. Nesse aspecto, a empatia aliada aos
conhecimentos técnicos soma para uma melhor qualidade de trabalho (Marigliano,
2016; Marigliano & Gil, 2018). Também foi encontrada a unidade necessidade
financeira como principal motivação para exercer a função de cuidador de idosos,
além da unidade experiência para cuidar dos pais que, segundo Sena e Gonçalves
(2008), ainda existe no Brasil a ideia de que o cuidado de um familiar doente deve ser
feito pela própria família.
A categoria temática “Características de cuidadores de idosos com
demência” revelou aspectos importantes sobre a percepção dos cuidadores. Dentre
os participantes notou-se relevância significativa para a unidade sentimentos positivos
no cuidado de idosos, igualmente representados nos dois cenários (domiciliar e ILPI).
Conforme estudo publicado por Gutierrez et al. (2017), este aspecto é muito singular
à medida que o cuidado pode ser visto positivamente através de diferentes prismas.
Outra unidade representativa é a valorização da conversa com o idoso, que
novamente foi observada nos dois grupos e demonstram que essa interação de
cuidado contribui para que o papel do cuidador seja mais gratificante, percebendo sua
valorização pela importância e necessidade das ações que executa (Couto, Castro, &
Caldas, 2016). Também foi observada a unidade de significado “Paciência/calma para
lidar com a agressividade dos idosos” que, segundo Camilo (2015), o autocontrole do
cuidador frente à agressividade do idoso está diretamente relacionada à autonomia
deste profissional quanto ao manejo do idoso demenciado. Uma unidade relevante é
a “Importância de manter a rotina”, posto que é necessário e valioso a manutenção do
hábito para o idoso, favorecendo a interação com o cuidador (Oliveira, Marcolino, &
Andrade, 2011). Houve também a menção sobre a unidade de significado
“Importância do apego à família do idoso” e sobre isso, Gil et al. (2018) explicam que
a contratação de um cuidador formal representa para a família uma redução
significativa da sensação de sobrecarga, além de proporcionar melhor qualidade de
vida para este idoso dependente.
1147
Na terceira categoria temática buscou-se compreender as “Diferenças no
cuidado dos idosos com demência”, na qual foram encontrados três aspectos
significativos. Dos participantes entrevistados, metade relatou que o “Cuidado com
idoso demenciado é mais difícil” do que com um idoso que possui doenças físicas.
Esta maior dificuldade foi encontrada nos estudos realizados por Pinto e Barham
(2014), que mostrou que cuidadores que atuam com este perfil de idosos tinham
percepções de sobrecargas mais intensas quando comparado ao cuidado de idosos
lúcidos. Outra importante unidade encontrada foi “Cuidar de idosos com questões
físicas é mais difícil”, que corrobora com o estudo publicado por Anjos, Boery, &
Pereira (2014), que observaram que a maior dificuldade do cuidador de idosos diz
respeito a atividades que exigem maior esforço físico.
A categoria temática “Impactos da função na saúde física e mental” tinha
como objetivo compreender se existiam e quais seriam os impactos na saúde do
cuidador, e nesse sentido, a grande maioria dos entrevistados compreendem que há
“Impacto na Saúde Física” e que estes impactos precisam ser considerados à medida
que tais problemas podem ser adquiridos com a frequência do trabalho (Anjos et al.,
2015; Gutierrez, et al., 2017; Marigliano, 2016). Uma unidade significativa identificada
foi a dos “Impactos positivos”, que expressa mudanças benéficas nas vidas dos
cuidadores de idosos, como explica Marigliano (2016), cujo estudo revelou que 40%
dos cuidadores mencionaram ter percebido mudanças positivas em suas vidas, visto
que o exercício da função proporciona um olhar mais humanizado para a figura do
idoso. Outra consideração importante foi percebida na unidade de significado
“Impactos na saúde mental”, onde se enquadram os aspectos psicológicos prejudiciais
frente a atividade de cuidar. Estudos publicados por Costa et al. (2015) abordam que
as alterações psicossociais são as mais sentidas pelo cuidador formal, que além da
sobrecarga emocional, podem apresentar prejuízos no autocuidado do próprio
cuidador. Também foi identificada a unidade de significado “Não sente impacto” que,
de acordo com Marigliano (2016), uma das causas de ausência de impacto pode estar
relacionada a saúde do idoso, bem como às melhores condições de trabalho.
A análise do Procedimento Desenho-Estória com Tema foi realizada
utilizando o conjunto do desenho com a estória. A grande maioria dos participantes
relataram histórias autorreferentes e fizeram desenhos expondo sua própria rotina
com o(s) idoso(s), suas dificuldades e seus sentimentos. Assim, é importante destacar
que a técnica projetiva empregada apresentou uma função mediadora no contato
1148
entre pesquisado e pesquisador, favorecendo a expressão de conteúdos emocionais
e evidenciando uma necessidade de escuta (Barros, Gil, & Tardivo, 2010). Os
principais temas encontrados na produção desenho-estória com tema foram:
“Dificuldades enfrentadas no trabalho com o idoso demenciado”; “Demonstração de
afeto ao idoso”; “Aspectos Infantis”; “Estratégias no cuidado com o idoso demenciado”.
A maioria dos participantes relatou sobre as “dificuldades enfrentadas no
trabalho com o idoso demenciado”, que de acordo com Novelli et.al. (2010) é muito difícil
lidar com os comportamentos e com os aspectos psicológicos dos idosos, independente
da fase da demência. A maior parte desses participantes são cuidadores domiciliares,
indicando que eles se sentem mais sozinhos, com grandes responsabilidades e sem
nenhum tipo de apoio, segundo Sena (2006).
Na temática “Demonstração de afeto ao idoso”, idoso e cuidador aparecem de
mãos dadas nos desenhos e relatam a necessidade de apoio e cuidado ao idoso. De
acordo com Marigliano (2016), os sentimentos servem como base de sustentação para
auxiliar nos problemas enfrentados.
No que diz respeito às “Estratégias no cuidado com idoso demenciado”, foi
identificado que, segundo Barbosa (2011), a compreensão é adquirida ao longo do
tempo pelas experiências e conversa com outros colegas da área. Em decorrência
disto, conseguem incorporar diferentes estratégias para o manejo dos idosos demenciados.
Por fim, na temática “Infantilização da velhice”, observou-se traços parecidos com
“mãe e filho” nos desenhos e relatos utilizando o diminutivo. De acordo com Marigliano
(2016), existe uma dificuldade em lidar com questões relacionadas ao envelhecimento e
por isso não mostram a velhice, produzindo desenhos com aspectos infantis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos dez anos notou-se crescimento significativo da expectativa de
vida e como reflexo deste cenário, houve crescimento no número de idosos portadores
de algum tipo de demência e dependentes de cuidados, que por sua vez repercutiu em
uma necessidade cada vez maior de contratação profissionais para auxiliar no cuidado
deste idoso fragilizado. Compreende-se que o objetivo proposto para esta pesquisa foi
atingido, à medida que foi possível perceber como o profissional percebe a relação com
o idoso cuidado, bem como os impactos de suas vivências. O instrumento utilizado para
1149
entender o imaginário coletivo sobre a temática foi adequado, pois possibilitou verificar
aspectos além dos que foram encontrados nas entrevistas.
Há vários fatores que podem despertar o desejo de tornar-se um cuidador
de idosos, mas para os participantes deste estudo, a motivação está relacionada
principalmente às vivências que tiveram em família e aos cuidados prestados para
estes parentes. Foi identificado que tanto em relação aos cuidadores de ILPI quanto
os domiciliares, há um predomínio da expressão de sentimentos positivos voltados
aos idosos, bem como a valorização da conversa e da manutenção de estados de
calma e paciência. Quanto às questões de cuidados específicos, verificou-se que de
modo geral esse cuidado é considerado mais difícil se levarmos em conta idosos com
outras patologias físicas.
A análise realizada através da técnica projetiva empregada trouxe
contribuições importantes para esse estudo, que corroboram com a análise efetuada
através dos demais instrumentos e permitiram um maior aprofundamento e
complementação dos dados obtidos por meio das entrevistas. Ao constatarmos um
predomínio de relatos autorreferentes, podemos considerar que esses sinalizam para
a necessidade de escuta dessa população. É necessário ressaltar a importância de
outros estudos em relação ao tema em questão, sugerindo-se, para trabalhos futuros, a
exploração do trabalho de cuidador em outros contextos e/ou com outros instrumentos.
REFERÊNCIAS
Anjos, K. F., Boery, R. N. S. O., & Pereira, R. (2014). Qualidade de vida de cuidadores
familiares de idosos dependentes no domicílio. Revista Texto & Contexto
Enfermagem, 23(3), 600-608. doi: 10.1590/0104-07072014002230013
Anjos, K. F., Boery, R. N. S. O., Pereira, R., Pedreira, L. C. Vilela, A. B. A., Santos, V.
C., & Rosa, D. O. S. (2015). Associação entre apoio social e qualidade de vida de
cuidadores familiares de idosos dependentes. Revista Ciência e Saúde Coletiva,
20(5), 1321-1330. doi: 10.1590/1413-81232015205.14192014
1150
Araújo, C. L. O., & Nicoli, J. S. (2010). Uma revisão bibliográfica das principais demências
que acometem a população brasileira. Revista Kairós Gerontologia, 13(1), 231-244.
Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/kairos/article/view/4872
Barbosa, A. L., Cruz, J., Figueiredo, D., Marques, A., & Sousa, L. (2011). Cuidar de
idosos com demência em instituições: competências, dificuldades e necessidades
percepcionadas pelos cuidadores formais. Revista Psicologia, Saúde & Doenças,
12(1), 119-129.
Costa, S. R. D., Castro, E. A. B., & Acioli, S. (2015). Apoio de enfermagem ao autocuidado
do cuidador familiar. Revista Enfermagem UERJ, 23(2), 197-202. doi:
10.12957/reuerj.2015.16494
Couto, A. M., Castro, E. A. B., & Caldas, C. P. (2016). Vivências de ser cuidador
familiar de idosos dependentes no ambiente domiciliar. Revista da Rede de
Enfermagem do Nordeste, 17(1), 76-85. doi: 10.15253/2175-6783.2016000100011
1151
Gil, C. A., Witter, C., Camilo, A. B. R., & Marigliano, R. X. (2018). Envelhecimento e
Demanda por Cuidado: Rede Informal e Formal de Apoio. Em: Socci, V.; Witter, C.
(Org). Psigerontologia: uma análise multidisciplinar. Campinas. SP: Alinea
Novelli, M. M. P. C., Nitrini, R., & Caramelli, P. (2010). Cuidadores de idosos com
demência: perfil sociodemográfico e impacto diário. Revista de Terapia
=Ocupacional da Universidade de São Paulo, 21(2), 139-147. doi:
10.11606/issn.2238-6149.v21i2p139-147
Pinto, F. N. F. R., & Barham E. J. (2014). Bem estar psicológico: comparação entre
cuidadores de idosos com e sem demência. Revista Psicologia, saúde e doenças,
1152
15(3), 635-655. doi: 10.15309/14psd150307
Sena, R. R., Silva, K. L., Rates H. F., Vivas K. L., Queiroz, C. M., & Barreto F. O. (2006).
O cotidiano da cuidadora no domicílio: desafios de um fazer solitário. Revista
Cogitare Enfermagem, 11(2), 124-132. Recuperado de
https://www.redalyc.org/pdf/4836/483648987005.pdf
Vieira, C. P. B., Gomes, E. B., Fialho, A. V. M., Silva, L. F., Freitas, M. C., & Moreira,
T. M. M. (2011). Concepções de cuidado por cuidadores formais de pessoas idosas
institucionalizadas. Revista Mineira de Enfermagem, 15(3), 348-355. Recuperado
de http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/44#
1153