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1º SEMESTRE – 4º ANO
2019-2020
Noções Gerais
➔ Avaliação
o Exame (100%) - perguntas diretas, caso prático e pergunta de desenvolvimento
➔ Bibliografia / Legislação
o Professor Germano Marques da Silva – volumes I e III
o Lições de Direito Processo Penal – Professor Paulo Sousa Mendes
o Direito Processual Penal – Professora Maria João Antunes
Matéria
O direito processual penal como um ramo do direito público: natureza das normas, interesses
em causa, vontade das “partes”, relevância limitada da promoção penal por particulares
O professor Germano Marques da Silva define direito processual penal como o conjunto de
normas jurídicas que disciplinam a aplicação do direito penal aos casos concretos, ou, noutra
fórmula não menos expressiva, o conjunto das normas jurídicas que orientam e disciplinam o
processo penal. Assim, o processo penal será uma sequência de atos juridicamente
preordenados e praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão
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sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respetivas consequências
jurídicas e sua justa aplicação.
Uma primeira caracterização que se pode fazer do direito processual penal português é
apresentá-lo como um ramo do direito público que organiza regras, pressupostos e
procedimentos que se devem saber para debater juridicamente a responsabilidade criminal
de alguém. São regras de direito público porque, na sua maioria, são normas imperativas, isto
é, configuram uma solução e determinam um regime que não é modificável pela vontade das
partes. Não quer dizer que a vontade das partes não seja relevante, mas não o é neste sentido.
As partes têm liberdade de decisão no que toca ao aceitar ou interpor recurso por exemplo, mas
a generalidade das regras do regime limita a liberdade de decisão.
Isto resulta de uma opção político-legislativa: o facto de existir uma decisão do MP e depois
de um juiz de instrução significa que há filtros de entidades judiciárias, entidades públicas, com
um controlo próprio destas instâncias. Assim sendo, um caso só vai a julgamento se tiver uma
certa consistência. Ora, se qualquer pessoa pudesse iniciar uma ação penal, isto converteria o
direito penal num instrumento de conflitualidade individual e iria adulterar a sua natureza,
criando uma situação corrosiva em termos de segurança, banalizando as sanções que seriam
instrumentos de conflito individual e criando possíveis desequilíbrios entre o interesse público
na realização da justiça penal e o poder para promover as ações neste domínio. O poder passaria
a estar do lado dos interesses privados e dependeria dos meios económicos que cada um tem
ao seu alcance como por exemplo a capacidade de contratar um bom advogado, no limite.
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A reter que, por opção politico-legislativa, o exercício da ação penal cabe
predominantemente a entidades publicas: primeiro há um inquérito pelo MP que depois acusa
ou arquiva. Posteriormente o processo ainda é filtrado pelo juiz de instrução que faz um
despacho de pronúncia ou não pronúncia e só no fim é que pode haver julgamento. Apenas nos
crimes particulares é que o processo será promovido por particular, a título excecional.
Outro tema que liga o nosso processo penal ao direito público tem que ver com as decisões
que os sujeitos processuais tomam em termos de aceitação ou não de uma certa prova. Em
alguns países certas provas podem não ser aceites a não ser que os sujeitos processuais estejam
de acordo. Vejamos dois exemplos, o depoimento indireto e o polígrafo.
Em Portugal, não depende da vontade das partes, aceitar ou não certos meios de prova,
condicionando a sua utilização. É o legislador que declara a admissibilidade das provas. Esta
ideia é muto importante porque têm surgido regras, noutras ordenamentos, de admissibilidade
de prova em função de acordo. Ora, quando isso acontece, o processo penal começa a funcionar
de formas diferentes, consoante o caso concreto, o que afeta a idoneidade e igualdade do
processo. No nosso ordenamento vigora a ideia de que a vontade os particulares não pode ser
fonte autónoma de legitimação de algo que é proibido. Isso é importante, pois garante um
quadro de legalidade e igualdade no funcionamento do sistema.
Também o estatuto do tribunal é diferente. O nosso tribunal não é passivo perante as partes
que se disputam, é antes ativo e dirige a instância fazendo as perguntas e requerendo as
diligencias que entender. É um juiz que dirige a audiência e decide em nome da verdade
material, não é um mero arbitro. Há uma matriz muito diferente de legitimação. O nosso é de
uma matriz de direito público, estando a verdade subalternalizada em relação àquilo que é o
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imperativo da lei. Portanto, uma das diferenças tem que ver com a organização do sistema
judicial.
O sistema norte-americano funciona assim por duas razões principais: existem sanções
elevadíssimas como a pena de morte ou a prisão perpétua e condições brutais nas prisões, o
que gera um enorme receio nos arguidos que acabam por aceitar o plea bargaining. Este
mecanismo baseia-se numa lógica utilitarista porque desta forma evitam-se julgamentos e
produzem-se soluções antecipadas. Mas a que custo? É um acordo formado com pouca
liberdade, dependente de bons advogados. É um sistema que cultiva de forma intensa uma certa
injustiça social e penal.
Finalmente, resta falar do papel da polícia. Uma coisa muito curiosa que o sistema anglo-
americano tem é o papel da polícia, que tem poderes de investigação autónomos que entre nós
não existem. Não esquecer que entre nós quem dirige a investigação dos crimes é o MP, que
pode em todo o caso recorrer aos órgãos de polícia. Assim, nesse modelo, há inquéritos policiais
abertos durante muitos anos que vão acumulando provas de forma casuísticas, promovendo um
regime de terror penal dentro do processo: a pessoa aceita a negociação por medo das penas
brutais.
É por tudo isto que o professor Costa Pinto defende que os sistemas anglo-americanos não
são sistemas eficientes e têm uma componente inquisitorial oculta.
O processo penal português pode ser caracterizado por três aspetos fundamentais.
Em primeiro lugar, como já foi referido, as matérias penais são vistas como matérias de
interesse público: a realização da justiça penal é uma incumbência e fim do Estado. A segunda
característica é a legalidade, o que significa que a lei é a fonte de legitimação das posições dos
sujeitos processuais e é a principal matriz de organização e andamento do processo. É a lei e
não a vontade das partes que determina como o processo corre e esta é uma característica
basilar do nosso processo penal.
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momentos preliminares e a fase central é o julgamento, plenamente contraditório. A
responsabilidade criminal só se decide no julgamento. Se olharmos com atenção para a
geografia do nosso CPP, vemos que o legislador arrumou todas as matérias com base nesta ideia
de centralidade da fase de julgamento.
Prevenção, pena e processo – Relação entre o direito processual penal e o direito penal
Em algumas faculdades, a separação entre processo penal e direito penal é total. Por
exemplo, em Espanha, quem dá a cadeira de processo penal não dá a cadeira de direito penal
substantivo e quem dá direito penal substantivo não dá processo penal. O professor Costa Pinto
considera que a solução que temos em Portugal, de ser o mesmo professor em ambas as
matérias, é uma vantagem porque há uma grande relação de precedência e intimidade que as
une.
Separámos os ramos por razões pedagógicas e científicas, mas na verdade o processo penal
é uma mistura das várias coisas e regras do direito processual penal, regras de diminuição de
responsabilidade e teorias de direito penal. Uma das razões da distinção entre direito processual
penal e direito penal substantivo tem a ver com as finalidades. O processo penal visa permitir a
descoberta da verdade material e, desse ponto de vista, não tem incidências substantivas. Por
outro lado, a componente preventiva do sistema estaria basicamente associada às opções
penais. Seriam as sanções e o efeito dissuasor preventivo das sanções que evitariam a prática
de crimes, função do sistema penal.
O professor Costa Pinto considera que esta perspetiva é errada porque as penas não
cumprem a sua finalidade plena só pela vigência da lei penal, pelo que a relação entre processo
e pena deve ser tida como necessária. Por outro lado, as penas têm uma componente simbólica:
organizam do ponto de vista repressivo, o sistema de titela de valores de uma sociedade.
Podemos concluir que o processo pode degradar o efeito preventivo das penas, consoante
os casos que estivermos a ver. Isto significa que perante uma mesma pena, a criminalidade será
diferente consoante condições efetivas, os mecanismos empíricos do caso. Vejamos dois
exemplos: há trinta anos, o crime de fuga ao fisco era muito mais comum, não por estarem
previstas sanções mais leves, mas porque o controlo era muito menos apertado; os radares de
velocidade não aumentam as sanções, mas a possibilidade de sujeitar o facto a um processo
aumenta significativamente a prevenção.
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O professor acredita que a eficácia do sistema não aumenta se aumentarmos as sanções de
10 para 15 anos. Pode haver sim razões para graduar as penas, mas a eficácia do sistema não
depende desse aumento, depende antes das condições efetivas. É preferível ter uma pena que
vai até 12 anos, mas em que há casos que efetivamente chegam a julgamento, do que uma pena
que vai até 25 anos, mas os casos não chegam a julgamento.
Não há aplicação de penas sem processo. Toda a lei penal em vigor é potencialmente
aplicável a um facto. Mesmo que não seja aplicada durante muito tempo, há um potencial de
aplicação. Mas o facto de não ser aplicado, pode degradar a eficácia da norma de sanção. Assim
o processo penal pode degradar ou fortalecer a finalidade preventiva, pelo que é necessário
associar ambas as matérias neste tema.
Tendo em conta o que nos diz o Professor Germano Marques da Silva podemos então
concluir que há uma relação de instrumentalidade necessária entre o direito penal e o
processo penal.
Como já foi referido, o processo penal visa garantir a realização da justiça, que pressupõe a
descoberta da verdade dos factos e o restabelecimento da paz jurídica. Daqui podemos retirar
então que o processo penal pretende também promover a descoberta da verdade dos factos,
mas dentro do processo e de acordo com as regras processuais. Desse ponto de vista há muitas
formas de conhecer essa verdade. Normalmente os jornalistas conhecem a verdade dos factos
antes dos julgamentos. Porém, essa verdade não serve para o processo a não ser como
informação.
O processo terá sempre de seguir as suas regras próprias para descobrir a sua verdade, o
que por vezes gera alguma incompreensão. Assim sendo, há uma contraposição entre a verdade
processual e a verdade factual, que podem ou não coincidir. Isto não significa que o processo
penal esteja a funcionar de forma errada. Se um jornalista tem acesso a informações e descobre
um crime, isso não serve para o processo penal. Pode ser uma mera notícia de um crime. A
verdade processual é a verdade possível e válida dentro do processo e pode não ser totalmente
coincidente com a verdade material.
Não há um processo justo se ignorar a vítima, pelo que outra finalidade do processo penal
é tutelar direitos dos cidadãos. Também a reafirmação da legalidade substantiva vigente é
finalidade do processo penal porque quando é atribuída responsabilidade criminal a um agente,
isso clarifica a legalidade substantiva, reforçando a norma de ilicitude e de sanção. Por fim, outra
finalidade do processo penal é a reposição da paz jurídica ou comunitária violada.
Analisemos agora a relação entre o direito penal substantivo e o direito processual penal
para concluirmos se é uma relação de complementaridade funcional, ideia defendida pelo
professor Figueiredo Dias, ou é antes uma relação de dependência recíproca como defendem
os professores Costa Pinto e Germano Marques da Silva.
O direito penal sem o processo penal apenas pode produzir um efeito de prevenção geral
positiva ou negativa, mas não gera a responsabilidade criminal de ninguém. É preciso sujeitar os
factos a um processo para que possa haver responsabilidade penal. Isto significa que o direito
penal depende do processo penal para efetivar a responsabilidade criminal, o corpo de valores
que defende.
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Porém, o inverso também é verdade. O que se aplica no direito processual penal não é só o
processo penal, mas também o direito penal. Queremos com isto dizer que o corpo
hermenêutico aplicável do direito processual penal é o direito penal substantivo. Daí que o
professor Costa Pinto defenda que esta não é uma relação de mera complementaridade
funcional, mas uma relação de dependência recíproca.
Quando se tem o estatuto de arguido num processo penal beneficia-se de uma garantia
constitucional que é a presunção de inocência prevista no artigo 32º nº2 CRP.
Será esta uma verdadeira presunção? Uma presunção é uma inferência que se faz de um
facto conhecido para afirmar um facto desconhecido. Se vir uma pessoa abanar-se com uma
folha de papel, posso concluir que está com calor. Contudo, a presunção de inocência
constitucionalmente consagrada não é um juízo de inferência, é algo mais forte. Designa-se
como presunção, mas na verdade é um instituto jurídico-político segundo o qual o arguido tem
de ser tratado presumivelmente como inocente.
A Constituição configura um certo estatuto que depois tem de ser ilidido pelo processo
penal através da prova, mas acrescenta que é até ao trânsito em julgado da sentença de
condenação. Isto significa que a única forma constitucionalmente aceite para derrogar
plenamente a presunção de inocência e atribuir responsabilidade criminal é através de uma
sentença judicial de condenação. Isto significa que a presunção de inocência só pode ser
afastada através de uma sentença penal.
Ter em atenção que apesar de a Constituição não referir a questão da prova, todos sabemos
que a única forma de termos uma sentença é através da prova. A mesma também não faz
referência expressa à dúvida razoável traduzida no brocardo latino “in dubio pro reo”, mas esta
também resulta da presunção de inocência.
É também por esta razão que o professor Costa Pinto acredita na já referida ideia de
dependência recíproca. Se isto é assim, então o crime não é apenas um facto típico ilícito culposo
e punível, porque quem comete um facto típico ilícito culposo e punível não tem
responsabilidade criminal. Então temos de acrescentar algo à definição: um crime é um facto
típico ilícito culposo e punível sujeito a um processo penal legal. Se não o for, nada mais é do
que uma declaração proclamatória como a que acontece nos casos práticos de direito penal.
Porém, não quer isto dizer que haja um nivelamento de todas estas condições até porque há
condições substantivas e condições processuais.
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processual penal esta tarefa não é tão simples. O que é a queixa do ofendido? Ou o que é a
prescrição? É um pressuposto substantivo ou é um instituto de outra natureza?
Há vários critérios para fazer esta distinção, mas o professor Costa Pinto prefere aquele
segundo o qual todos os pressupostos substantivos dizem respeito ao facto ou estão em
conexão imediata com os factos. Assim, todos os crimes preveem um facto e todos os seus
elementos são substantivos. Este critério tem como contraponto que todos os elementos
estranhos ou adicionais são processuais se condicionarem o andamento do processo.
A queixa condiciona o processo e é autónoma, é uma vontade exterior ao facto. Deste ponto
de vista, a queixa é um pressuposto processual e não um pressuposto substantivo. Com a
prescrição passa-se algo semelhante. A prescrição opera por declaração, isto é, declara-se que
o processo está prescrito. Aqui o tribunal conhece o facto? Em princípio o que o tribunal conhece
é o tempo que decorreu depois do facto, independentemente do mérito da causa. Assim sendo,
concluímos que é uma condição processual. A prescrição também é uma forma de obrigar o
Estado a prosseguir a justiça penal de forma tempestiva.
Ter em atenção, contudo, que a maior parte da doutrina defende que a prescrição é um
instituto misto porque está ligada às finalidades das sanções, embora o professor Costa Pinto a
considerar um pressuposto processual por não fazer parte do facto.
Assim sendo, todas essas regras, garantias substantivas e garantias processuais, têm uma
equivalência em termos de constitucionalidade. Isto significa que para um processo penal tanto
é importante a questão da retroatividade e da legalidade como o direito de defesa e de recurso.
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O Tribunal Constitucional entendeu que um tipo incriminador com estes traços é
inconstitucional por argumentos substanciais e processuais, sendo os segundos mais relevantes
do que os primeiros. Em primeiro lugar, o tipo incriminador violava a presunção da inocência
porque a partir da discrepância entre património declarado e património encontrado, presumia-
se a ilicitude da pessoa em causa.
E, segundo lugar, este tipo incriminador violava também a garantia do direito ao silêncio.
Construído nestes moldes, este tipo exigiria ao agente revelar a origem patrimonial. Caso
contrário, o cumprimento de uma garantia, remeter-se ao silêncio, realizava o tipo incriminador.
Ideias a reter:
Concordância prática entre interesses conflituantes: exemplo das garantias nas fases
processuais
Por fim, uma última ideia: o nosso código de processo penal baseia-se no princípio de
concordância prática, isto é, baseia-se no princípio fundamental segundo o qual não se afirma
um valor à custa de outro valor, mas tenta-se uma solução compromissória, para realizar um
valor não se hipoteca completamente o outro. O processo penal tem de conseguir um equilíbrio
certo entre, por exemplo, a investigação e a defesa.
Notar também que um mesmo princípio pode ter significados diferentes consoante a fase
processual. O nosso processo penal tem uma natureza contraditória, mas na verdade nem todo
o processo penal é contraditório. Se virmos o nº5 artigo 32º CRP, só se exige o contraditório
para a audiência de julgamento. Assim, uma fase processual tem que ser sujeita ao
contraditório, mas não todo o processo.
A classificação dos crimes entre públicos, semipúblicos e particulares é feita pelo direito
substantivo. Isto significa que, em regra, é o legislador que faz esta classificação segundo as
técnicas legislativas que veremos. O MP tem de ter uma queixa para formalmente iniciar uma
fase processual onde fará a investigação, o que significa que é a queixa que permite promover
o inquérito. Esta classificação dos crimes tem que ver com a legitimidade processual do MP
para promover o processo, ou seja, para abrir o inquérito.
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Nos crimes públicos a legitimidade do MP não está condicionada: tendo a notícia do crime,
abre automaticamente o inquérito. Nos crimes semipúblicos a legitimidade processual do MP
para iniciar o processo está condicionada à apresentação de uma queixa pelo ofendido e,
portanto, mesmo que o MP conheça os factos, precisa dessa queixa para iniciar o processo.
Assim, a classificação processual dos crimes ocorre nestes termos, mas qual é a proporção
no nosso ordenamento jurídico, em termos de previsão legal? A maior parte dos crimes tem
natureza pública. Os crimes particulares são em número reduzido e alguns crimes de pequena
e média gravidade são crimes semipúblicos.
Fundamentos materiais
Porque razão existe esta classificação? Está relacionada com a natureza dos bens jurídicos e
com a livre disposição desses bens, sendo que além do mais é processualmente consequente. O
professor Costa Pinto acredita que, em rigor, são três os critérios para fazer esta classificação
entre crimes públicos, semipúblicos e particulares. Ter em atenção que não são os únicos e que
a doutrina diverge sobre este ponto.
Em primeiro lugar encontramos o critério da gravidade dos crimes, segundo o qual só são
considerados crimes semipúblicos ou particulares, os crimes de baixa e média gravidade.
Quando se tratam de crimes de alta gravidade são sempre classificados como crimes públicos.
O segundo critério destacado tem que ver com aspetos relacionados com a tutela da vítima.
Há bens jurídicos que são tão intensos que o legislador não admite que sejam crimes
semipúblicos ou particulares. Isto porque são crimes de tal modo graves que o legislador
entende que o MP deve abrir inquérito independentemente da vontade do ofendido.
Por fim, em terceiro lugar, é necessário ponderar a situação da vítima. Nos crimes em que
se exige queixa do ofendido, a vítima vai decidir se recorre ou não ao processo penal, valorando
se necessita de tutela jurídica. Nesses casos, há uma disposição dos seus bens jurídicos e o
legislador deixa ao seu critério. Isto está também relacionado com a questão dos custos pessoais
e sociais da vítima, normalmente ligados aos crimes sexuais. Isto justifica-se pelo facto de, ao
iniciar um processo penal e partilhar o que sucedeu, a vítima irá reviver o crime e podemos ter
assim um prolongamento do seu sofrimento. Esta também é umas das razões para estes crimes
serem semipúblicos ou particulares, sendo a sua promoção deixada à avaliação da vítima que
tem possibilidade de escolher.
É no código penal, em cada incriminação, que se faz esta classificação, mas sendo
processualmente consequente e tendo que ver com a legitimidade do processo, porque é que
está no código penal e não no código de processo penal? A reforma do código penal começou a
ser pensada antes da do código de processo penal. E por essa razão, entre outras, a matéria da
queixa e desistência da queixa, que é predominantemente processual, foi antecipada. O código
de processo penal aparece 5 anos depois, mas no fundo esse regime acabou por ficar sempre
no código penal.
Houve na altura uma comissão presidida pelo professor Eduardo Correia que começou por
estudar estas questões, mas era muito complicado mudar a legislação destas temas face à sua
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sensibilidade, complexidade e polémica. Temos de acrescer a tudo isto que não havia liberdade
e o ministro da justiça, o professor Antunes Varela, estava mais preocupado com o novo Código
Civil que acabou por entrar em vigor em 1966. Assim, a reforma acabou por ficar em standby.
Depois de 1974 a primeira grande reforma ao direito penal é feita pela Constituição da
República Portuguesa de 1976 que criou a chamada Constituição Penal. Esta vigora desde aí com
os dois códigos existentes: o Código Penal e o Código de Processo Penal. Na altura, tanto um
como o outro tiveram de ser reinterpretados pela jurisprudência e pela doutrina de modo a
estarem conformes à nova Constituição. Pelo facto de se ter antecipado a reforma do CP à do
CPP, a matéria da queixa e do seu regime tiveram de ficar no CP, visto que não fazia sentido
algum termos um novo CP que se baseava no regime da queixa do antigo CPP, até porque foram
mudadas algumas classificações dos crimes. O código de processo penal aparece 5 anos depois,
mas esse regime acabou por ficar sempre no código penal.
Técnicas legislativas
A classificação dos crimes é feita pelo direito substantivo, mas não aparece da forma que
estamos aqui a referir. Isto é, o código penal não estabelece que um crime é público, particular
ou semipúblico, dá antes pistas através de certas expressões. Quando o legislador declara que
o processo criminal depende de queixa, está a dizer que é necessária a manifestação do
ofendido para que haja processo, logo é um crime semipúblico. É o caso do furto simples, tipo
incriminador do artigo 203º CP. Neste contexto a palavra queixa deve ser entendida como uma
manifestação de vontade do ofendido para que haja processo.
Noutros casos, o legislador declara que é necessária acusação particular, o que significa
uma classificação do crime como crime particular. Apesar de só se reportar ao momento da
acusação, na verdade é necessária também queixa particular e constituição de assistente, além
da acusação particular. O legislador optou por referir apenas a acusação particular porque é o
condicionamento mais intenso ao MP. Um exemplo em que esta técnica legislativa é usada é o
artigo 207º CP.
Em regra, são estas as expressões, embora haja algumas variantes. Vejamos o tipo
incriminador do furto nas formas qualificadas, artigo 204º CP. O crime de furto qualificado é de
natureza pública porque não se faz a referência necessária para que o crime tenha outra
natureza. A técnica legislativa para configurar um crime como público é o legislador nada dizer.
O legislador utiliza dois tipos de técnicas legislativas fazer esta classificação. Pode classificar
um crime através da criação de um número no tipo incriminador que define especialidades
processuais, ou pode criar uma norma autónoma que classifica alguns tipos incriminadores.
Vejamos um exemplo: se lêssemos só o tipo incriminador da difamação, artigo 180º CP, ou o
das injúrias, artigo 181º CP, consideraríamos que eram crimes públicos por não haver um
número com as já referidas expressões, porém o artigo 188º CP estabelece outra natureza.
Por vezes há casos dúbios. Vejamos o caso do crime de abuso de confiança. Para classificar
este crime temos de atentar a várias normas: o artigo 205º nº3, nº4 CP e artigo 207º CP. Esse
crime tem uma modalidade simples e uma qualificada. Quando é simples, o procedimento
depende de queixa, logo é semipúblico, mas pode ser particular nos termos do artigo 207º CP.
Quando é qualificado é crime público. Então, o crime de abuso de confiança na sua versão
simples é um crime semipúblico que em alguns casos se pode converter em particular, enquanto
que na sua forma mais grave é público.
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Tudo isto leva-nos a concluir que o MP, tendo um crime destes entre mãos, tem de avaliar
todos os factos que tem à sua disposição para perceber se pode ou não promover a abertura do
inquérito. Por isso mesmo é que dizemos que esta classificação é processualmente consistente.
Os crimes públicos
Há, contudo, outro aspeto particularmente importante. Nos crimes públicos, além deste
dever de promoção oficiosa, não é admissível desistência. Vejamos um exemplo.
Houve uma rixa num bar que gerou uma agressão de tal modo violenta que a vítima ficou
especialmente maltratada. Esses factos foram qualificados pelo MP como uma tentativa de
homicídio, que é de natureza pública. Isto porque a tentativa terá a mesma natureza que o
crime, a menos que haja menção expressa em contrário. Suponhamos que a família da vítima
entrou em acordo com a família dos autores. Deve o MP continuar com o processo? Sim. Se o
crime for público, os diversos acordos feitos entre sujeitos processuais não têm efeito no
processo. Só se for um crime semipúblico ou particular é que o acordo pode ser visto como
desistência ou recusa. Sendo um crime público, esse acordo entre partes é relevante para
determinar a sanção, mas não constitui um obstáculo processual para o MP prosseguir.
Por outro lado, atender ainda que, no nosso sistema, o MP nunca pode retirar a acusação,
nunca pode desistir. O que pode fazer é chegar ao fim do processo e pedir a absolvição do réu
em vez da sua condenação, mas haverá sempre julgamento. Se é assim, podemos caracterizar
os crimes públicos em função de dois aspetos processuais:
Os crimes semipúblicos
A própria aplicação de uma medida de coação preventiva depende de fortes indícios, pelo
que mais uma vez está-se a ter em conta a tipicidade, bem como a pena do crime em causa.
Podemos então concluir que a tipicidade, enquanto elemento da teoria do crime, condiciona
legalmente várias decisões processuais, desde logo a promoção do processo.
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Há dois grandes pressupostos nos crimes semipúblicos:
• queixa tempestiva
• e legítima
Como se disse, o primeiro pressuposto para se iniciar um processo por um crime semipúblico
é a existência de uma queixa em prazo legal. Este prazo de apresentação da queixa vem
regulado no artigo 115º CP. Em regra, o prazo é de 6 meses a partir do conhecimento dos factos
e dos seus autores pelo titular do direito de queixa, porém, pode ser a contar da data em que
o ofendido perfizer 18 anos quando os seus representantes não tenham exercido o direito de
queixa.
Depois dessa data, isto é, findo o prazo legal de queixa, extingue-se ou caduca o direito de
queixa. Daí que seja fundamental aferir o prazo em que a queixa é apresentada. Quando o prazo
expira, o MP não tem uma queixa tempestiva pelo que não pode iniciar o processo.
➔ O ofendido
O segundo pressuposto é a legitimidade para apresentar queixa, que se delimita em função
de critérios materiais e formais. No artigo 113º nº1 CP, a nossa lei estabelece que que, quando
o procedimento criminal depende de queixa, é o ofendido que tem legitimidade para a
apresentar, salvo disposição em contrário. De acordo com esta norma, ofendido é o titular dos
interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Isto entende-se porque
a queixa é uma manifestação de vontade do ofendido para que haja processo.
Esta definição apela à teoria do bem jurídico: temos de olhar para o tipo incriminador,
perceber qual o bem jurídico que este visa tutelar e só então perceber quem é o titular desse
bem jurídico. Assim, o ofendido é o primeiro titular do direito de queixa para efeitos de
promoção do processo. Contudo, não é o único.
➔ Os familiares
No nº2 a lei dispõe uma série de mecanismos de representação ou de sucessão no direito
de apresentação da queixa para outras pessoas ligadas ao ofendido. O primeiro grupo, previsto
na alínea a), são o cônjuge sobrevivo, os descendentes, ascendentes, adotantes e adotados, e o
segundo grupo, previsto na alínea b), são os irmãos e seus descendentes.
➔ O Ministério Público
Há ainda que referir uma outra situação. No nº5, a lei contempla a hipótese de existir
promoção oficiosa do processo pelo MP mesmo nestes crimes que exigem queixa. Isso surge
para dar resposta aos casos em que, alínea a), o ofendido é menor ou incapaz, não tendo
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discernimento para entender o seu direito de queixa ou, alínea b), o direito de queixa não pode
ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas ao agente do crime. Todavia, este
exercício está sempre condicionado ao interesse do ofendido.
O problema da indivisibilidade
O problema da indivisibilidade é uma questão que se coloca pelo facto de o artigo 114º CP
declarar que a apresentação de queixa contra um dos comparticipantes torna o processo
criminal extensivo aos restantes. Ou seja, mesmo que a vítima apresente queixa contra A, o
processo criminal pode legitimamente correr contra B e C, comparticipantes do primeiro. Isto
significa que a queixa não pode ser segmentada apenas contra um dos comparticipantes, antes
pelo contrário, estende-se normativamente a todos.
Este regime não é pacifico e é objeto de pelo menos duas interpretações diferentes:
• Resulta da referida norma que o queixoso não pode escolher o visado pelo processo,
o que corresponde a um princípio geral de indivisibilidade da queixa. Assim, o
queixoso deve ponderar se quer ou não iniciar o procedimento criminal contra
todos os envolvidos. O professor Germano Marques da Silva defende assim que o
queixoso não pode fazer essa seleção entre arguidos.
Por seu lado, o professor Costa Pinto considera que a lei consagra o princípio da
indivisibilidade apenas para a situação de comparticipação. Desta forma, havendo uma situação
de comparticipação, o queixoso pode escolher se apresenta queixa ou não, mas se apresentar
contra um, será contra todos. Isto significa que não pode sobrepor a sua vontade à lei. Já se for
uma situação de autorias paralelas ou autorias sucessivas sem comparticipação, o professor
considera que estamos fora do alcance do princípio da indivisibilidade e, nesse caso, o queixoso
já poderá escolher quem visa com a queixa. Há outro argumento no regime da queixa que
sustenta esta posição: numa situação de desistência da queixa em que há vários autores, quando
esta é feita contra um é feita contra todos, mas só nas situações de comparticipação.
Concluindo, o queixoso não pode fazer uma seleção de arguidos visados pelo processo,
embora isto só valha para as situações de comparticipação. Esta solução implica uma restrição
face à interpretação do professor Germano Marques da Silva, mas impõe-se por força do
princípio da legalidade, isto porque a classificação dos atos processuais e os seus efeitos
dependem da lei e não da vontade.
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Extinção do direito de queixa
Ao desistir, o queixoso está a por fim ao processo de uma forma quase potestativa. Dizemos
que é uma forma quase potestativa porque a lei condiciona a eficácia da desistência da queixa
à não oposição do arguido, nos termos do artigo 116º nº2. Isto percebe-se porque se houver
desistência, o processo extingue-se, mas não há avaliação de mérito. Ora, o arguido que foi
sujeito a um processo, teve custos pessoais e sociais com ele, pode querer ver a questão ser
resolvida em termos materiais e limpar a sua imagem. Nos termos do artigo 51º nº3 a falta de
declaração do arguido equivale a não oposição. No caso de o arguido se opor à desistência, o
processo prossegue como se o crime fosse público.
O legislador foi particularmente generoso em termos temporais, uma vez que é possível
desistir da queixa a qualquer momento do processo até à publicação da sentença da primeira
instância. Quando o MP recebe uma queixa tempestiva e legítima de um crime semipúblico
conduz a investigação como nos demais casos. Porém, o facto de simplesmente existir uma
causa potencial de extinção do processo que não depende do MP, por vezes desmotiva-o em
relação à investigação já que é possível que este investigue, deduza acusação, o caso vá a
julgamento e depois o ofendido desista, sendo que o MP não pode opor-se à desistência nem
a queixa pode ser renovada como já vimos a propósito do artigo 116º CP.
Isto gera algumas fixões processuais e um risco de política criminal: perante um ofendido
que apesente queixa, mas tenha pouco interesse processual, o MP ficará sempre na dúvida
sobre se o seu trabalho não será em vão, inglório até. Por outro lado, a doutrina aceita e gosta
desta solução, porque tem em conta o princípio da intervenção mínima do direito penal.
O direito de queixa extingue-se também por renúncia expressa ou tácita do seu titular, nos
termos do artigo 116º nº1 CP. Sendo vários os titulares do direito de queixa a renúncia exige o
acordo de todos os titulares dentro da mesma classe ou melhor, que a renúncia seja feita por
todos os titulares da mesma classe, pois o artigo 113º nº3 CP, dispõe que qualquer das pessoas
pertencentes a uma das classes referidas nas alíneas a) e b) do nº2 do mesmo artigo pode
apresentar queixa independentemente das restantes.
Estabelece o artigo 244º que para qualquer cidadão a denúncia é meramente facultativa,
isto é, qualquer pessoa pode transmitir que foi praticado um crime, mas não tem essa obrigação.
Diversamente, prevê o artigo 242º nº2 a denúncia obrigatória para entidades policiais e
funcionários no sentido do artigo 386º CP. Isto significa que estas entidades têm o dever de
fazer a participação dos crimes de que têm conhecimento. Assim, se um funcionário da
faculdade tiver conhecimento da prática de um crime tem dever de o denunciar. Fora destes
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casos, não há dever de denúncia a não ser que a lei expressamente o consagre. Também no
regime bancário os funcionários societários têm deveres de comunicação ao banco de Portugal,
mas mais para controlo dos riscos e não tanto para efeitos sancionatórios.
Outra questão relevante passa por saber se este dever abrange todos os crimes ou se se
restringe aos crimes públicos. O professor Costa Pinto acredita que, por razões de interesse
público e por razões de organização processual, a lei não permite que a entidade policial ou
funcionário publico faça em si a discussão do crime. Assim, a apresentação da denúncia não
substitui a queixa. Então o dever de denúncia está previsto para todos os crimes em razão da
qualidade do agente.
Por outro lado, entraríamos numa certa assimetria no julgamento dos factos porque
enquanto a entidade responsável tem um controlo e organização dos factos e do seu
enquadramento legal, estas entidades policiais e funcionários não têm essa autoridade nem
capacidade. Assim correríamos o risco de factos semelhantes serem alvo de tratamento
diferente por serem ponderados por quem não tem essa capacidade.
O dever de denúncia é para todos os funcionários porque é assim que está configurado e
para todas as entidades policiais. É esta a posição do professor Costa Pinto. Porém, a professora
Tereza Beleza discorda da ideia de que a denúncia não depende da natureza do crime porque
acredita que assim os funcionários estariam a promover processos de crimes semipúblicos ou
particulares que dependem de queixa. O professor entende que não é esta a questão, mas antes
uma questão de competência para conhecer a viabilidade dos processos. Se houver denúncia e
for necessária queixa, então o processo será arquivado, mas isso não impede os funcionários de
denunciarem qualquer crime de que tenham conhecimento.
O que é importante reter é que a natureza do crime não modifica o dever de denúncia e
este não existe em função da natureza do crime, mas de uma qualidade do sujeito em si. Notar
que estes deveres de informação não são deveres de promoção. Denúncia não é queixa.
Os crimes particulares
Já referimos, mas agora analisamos a ideia de que os crimes particulares estão triplamente
condicionados: é necessária uma queixa legítima e tempestiva do ofendido ou do seu
representante, um requerimento de constituição de assistente e uma notificação no final do
inquérito para que o assistente, querendo, deduza acusação.
A queixa do ofendido nos crimes particulares tem os mesmos contornos que vimos nos
crimes semipúblicos. Isto significa que é uma manifestação de vontade do ofendido, feita
tempestivamente e de forma legítima, nos termos do artigo 113º CP. É a queixa que permite ao
MP abrir inquérito. Sem ela, o MP apenas pode tratar a informação do ponto de vista
administrativo, que fica arquivada de acordo com o regime formal das denúncias. Pode no limite
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fazer algum cruzamento de informação na ótica dos professores Costa Pinto e Germano
Marques da Silva.
O requerimento de constituição de assistente vem previsto nos artigos 68º e 246º nº4.
O assistente não depõe como testemunha, depõe como assistente, tem um advogado, e
pode inclusivamente participar na audiência de julgamento. O assistente pode participar na
produção de prova inquirindo as testemunhas e o arguido através do seu mandatário judicial,
pelo que tem a possibilidade de exercer poderes processuais. Se um indivíduo apresenta uma
queixa, mas não se constitui assistente, será ouvido na qualidade de testemunha com a
particularidade de ser o titular dos interesses ofendidos, mas não tem qualquer poder de
interpor recurso, intervir ou participar na audiência.
A lei determina que a constituição de assistente é um ato judicial. Isto significa que mesmo
na fase de inquérito é apresentado o requerimento de constituição de assistente que depois vai
ser sujeito a contraditório e é decidido pelo juiz de instrução e não pelo MP. Este é um sintoma
de que isto é matéria sensível, porque mesmo estando numa fase do processo que é conduzida
pelo MP, é o juiz de instrução que toma esta decisão. Só depois desta decisão é que o ofendido
passa a ser assistente.
A instrução é uma fase facultativa, mas há certos atos do inquérito que são decididos pelo
juiz de instrução, haja ou não esta fase. Este é um exemplo e outro poderá ser a aplicação de
uma medida de coação. O MP não pode tomar este tipo de decisões, porque tem de ser o juiz
de instrução a verificar a legitimidade e outros requisitos formais como a representação, neste
caso o advogado como exige o artigo 70º. Assim, podemos concluir que o assistente se desdobra
em dois: o próprio ofendido e os eu advogado, que participa nas várias sessões em que os
sujeitos processuais estão num plano de equiparação. O juiz de instrução controla ainda o prazo
do requerimento para a constituição de assistente, ou seja, se foi feito de forma tempestiva.
A sua posição processual e atribuições vêm previstas no artigo 69º, sendo que o assistente
tem poderes processuais que o permitem funcionar em dois registos: como colaborador do MP
ou em função dos seus próprios interesses, podendo para este efeito divergir das posições do
MP.
O ofendido tem sempre de se constituir assistente para ter poderes processuais, com a
nuance de que se não o fizer nos crimes particulares, o processo não avança.
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A notificação do assistente para acusar
Notar que nos crimes públicos ou semipúblicos, é o MP que vai decidir se acusa ou se arquiva
o processo no fim do inquérito. Nesses casos, o que o ofendido pode fazer é requerer a abertura
da instrução, mas para isso tem de se ter constituído assistente, caso contrário nada pode fazer
porque, como vimos, só tem poderes processuais enquanto assistente.
O problema da natureza do prazo do artigo 68º nº2 em consequência do artigo 246º nº4
e o entendimento do STJ (ac. 1/2001)
Estabelece o artigo 68º nº2 que o prazo para a constituição de assistente nos crimes
particulares é de 10 dias a contar da advertência referida no artigo 246º nº4, pelo que importa
perceber que menção é esta e o que significa.
Esta norma estabelece que o denunciante pode, na denúncia, declarar que deseja
constituir-se assistente. Porém, tratando-se de um crime particular, essa declaração é
obrigatória. Esta norma obriga a duas coisas sempre que alguém apresente uma queixa a uma
entidade policial ou judiciária. Por um lado, a autoridade judiciária ou o órgão de polícia
criminal a quem a denúncia for feita deve advertir o denunciante da obrigatoriedade de
constituição de assistente e dos procedimentos a observar. Por outro lado, esta norma obriga
a que o denunciante declare a sua intenção de constituição como assistente.
Isto pressupõe uma situação de comunicação entre quem denuncia e quem recebe a
denúncia. Pressupõe que o requerimento não está já a acompanhar a denúncia, porque se
estiver, não faz sentido a advertência, visto já está cumprido este requisito.
Sobre este tema, surgiu a questão de saber o que é que deve acontecer se a queixa for
feita com demonstração de vontade, mas não é cumprido o prazo, o que gerou grande
divergência doutrinária. Por um lado, havia quem defendesse que este é um prazo legal
perentório, que decorria imperativamente e que não fazia sentido o MP ter o processo parado
sem a apresentação do requerimento porque nesses casos é o mesmo que ter o processo aberto
e não poder investigar, não poder dar andamento às diligências pelo facto de o futuro do
processo estar nas mãos do assistente.
Por outro lado, começaram a aparecer soluções imaginativas. Houve quem defendesse que
o prazo era o prazo de direito de queixa, 6 meses. Esta solução é muito peculiar porque uma vez
que o direito à queixa já tinha sido exercido este prazo já tinha parado de ser contado e o nosso
ordenamento não admite a renovação da queixa. Assim existiam duas correntes, sendo que a
doutrina se dividiu entre quem considerava o prazo obrigatório e quem o considerava
meramente indicativo.
Na verdade, havia uma criação fictícia e formal geradora de direito em quem defendia a
segunda corrente. Em primeiro lugar porque são institutos diferentes, em segundo lugar porque
a lei nunca refere que o prazo máximo para apresentar o requerimento de constituição de
assistente é de 6 meses e em terceiro lugar porque ter um processo aberto, mas suspenso
durante este tempo todo causa grande incerteza e inconveniente processual.
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Toda esta divergência fez com que começassem a surgir decisões judiciais contraditórias
entre si. Isto levava a que certos juízes tivessem o entendimento de que o prazo era perentório
e consideravam que a falta de requerimento equivalia à falta de um pressuposto processual, o
que originava o arquivamento, e outros que entendiam que era o prazo do direito à queixa e
este tinha de ser preservado. No fundo tratava-se duma desigualdade no entendimento da lei e
na sua aplicação concreta. Para dar resposta a esta problemática, o STJ veio uniformizar a
jurisprudência através do Ac. 1/2011, por maioria e não por unanimidade, estabelecendo que
o prazo em causa é perentório.
Este AUJ veio então definir que, feita a denúncia, o queixoso tem 10 dias para apresentar
o requerimento de constituição de assistente, a contar da advertência. Passado esse prazo, o
MP arquiva o processo por falta de cumprimento de um requisito processual.
Porém, há ainda outra questão que deve ser levantada. Todo este pensamento está
montado sob o pressuposto de que havendo uma denúncia, existe advertência que faz funcionar
o prazo perentório. Mas e se não existir advertência? É possível que quem recebe a queixa, por
lapso, se esqueça de fazer a advertência ou então que a queixa seja feita por escrito, não
permitindo a advertência.
A esta questão, o professor Costa Pinto responde que o AUJ só tem aplicação para os casos
em que há advertência. Isto porque não é possível associar o prazo de 10 dias como perentório
a uma situação fática em que não haja advertência, sem violação do princípio da legalidade
processual, consagrado no artigo 2º CPP.
Assim concluímos que o acórdão do STJ só se aplica às situações em que tenha havido
advertência, mas continuamos sem saber como se faz nos outros casos. O prazo de 10 dias só
se pode tornar perentório a partir da advertência, sendo que alguém tem de a fazer. Para a
nossa resposta ser diferente, o legislador teria de ter previsto outra solução como um prazo
mais alargado, mas não é esse o caso, já que esta possibilidade não vem prevista.
O professor Costa Pinto prefere uma abordagem mais restritiva desta questão porque não
podemos retirar daqui consequências que, além de não estrem expressamente previstas,
afetam os direitos fundamentais do ofendido. Se o legislador queria que fosse de outra forma
tinha de ser o próprio a tomar essa iniciativa. No seu entender não podem ser a doutrina ou a
jurisprudência a fazer este tipo de opções.
A última nota a realçar é que este prazo de 10 dias é o prazo para apresentação do
requerimento de constituição de assistente e não para a decisão pelo juiz e constituição efetiva.
A partir do momento em que o requerimento é apresentado o potencial assistente deixa de ter
controlo sobre o procedimento de decisão.
A opção pela dedução de acusação tem de ser do assistente e para esse efeito deve conhecer
o processo e tomar a sua decisão. Surge aqui a seguinte dúvida: está o assistente obrigado a
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deduzir acusação se o caso tiver consistência para tal ou trata-se de um mero ónus? Esta questão
prende-se também com as posições do MP e do próprio assistente no processo.
Por outro lado, o nº4 estabelece que o MP tem a possibilidade de deduzir uma acusação
pública depois da acusação do assistente. Contudo, esta é tematicamente vinculada, sendo que
não pode ultrapassar substancialmente a do assistente. Na configuração da lei o parecer não é
facultativo, ao contrário da acusação. O que importa agora perceber é se há alguma vantagem
ou diferença entre o MP acompanhar ou não a acusação do assistente e porque é que o MP
deduz uma acusação pública.
Do ponto de vista legal não se pode tirar nenhuma ilação se porventura o MP não
acompanhar a acusação do assistente. Em regra, o que acontece é que se o fizer funciona como
uma indicação para o MP que está no julgamento, já que fica com uma posição formal assumida
pelo seu colega que fez o inquérito. Aqui há muita flexibilidade e o MP é que decide, em função
de vários critérios flexíveis, se a pessoa que conduziu o inquérito estará no julgamento. Isto
também significa que a estrutura acusatória apenas se aplica a quem decide, ou seja, o juiz e
não ao MP. Quanto à segunda questão, há que dizer que o MP deduz acusação pública quando
pretende reformular a factualidade em consequência da prova produzida ou quando pretende
fazer alterar o enquadramento jurídico dos factos.
Assim sendo, tal como surgiu a questão de saber se o ofendido podia escolher contra quem
apresentava queixa, surgiu também a questão de saber se o assistente tem ou não de acusar
todos os arguidos em função do regime de prova existente. A doutrina dominante atual parece
ser a de que, existindo prova e acusação, o assistente tem de acusar todos os arguidos em
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nome do princípio da indivisibilidade da acusação que resultaria da aplicação aos crimes
particulares da indivisibilidade da queixa.
Contudo, tal como se disse a propósito da queixa, esta não era a visão seguida porque se
entendia que, sendo um crime particular, o assistente tinha liberdade para configurar a acusação
podendo fazer uma escolha que o MP não pode na acusação pública. Assim, se num crime
público existirem quatro arguidos, o MP tem de deduzir acusação contra todos, mas nos crimes
particulares o assistente poderia não deduzir acusação contra todos. Era esta, como vimos, a
posição do professor Figueiredo Dias enquanto que o professor Germano Marques da Silva
defendia a aplicação do princípio da indivisibilidade.
O professor Costa Pinto considera que a solução defendida pelo professor Figueiredo Dias,
de que cabia ao assistente escolher era o que estava em consonância com a natureza dos crimes
particulares, e que a aplicação do princípio da indivisibilidade devia ser mitigada, daí a
introdução da restrição: a acusação só é indivisível nas situações de comparticipação.
Estes são os argumentos que já tínhamos visto também para a queixa. Porém, o professor
Costa Pinto acrescenta um requisito: indícios suficientes. Isto porque se não houver prova, não
há indícios suficientes para deduzir acusação. O artigo 283º nº1 estabelece que havendo indícios
suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o MP deduz acusação no
prazo de 10 dias. Assim sendo, mesmo que haja comparticipação, se não houver prova que
gere indícios suficientes para algum deles, há uma razão legal para não deduzir acusação
contra essa pessoa.
Concluímos assim que se aplica o princípio da indivisibilidade previsto no artigo 114º CP por
remissão do artigo 117º CP, mas apenas aos casos de comparticipação e cumprindo a regra dos
indícios suficientes presente no artigo 283º nºs 1 e 2. Fora estas situações, o assistente tem o
direito de decidir o âmbito subjetivo da acusação, isto é, o assistente decide contra quem vai
ser deduzida a acusação.
Por tudo o exposto, o MP está condicionado de forma implícita e explicita nos crimes
particulares. O condicionamento é explícito nas três exigências que vimos. Em primeiro lugar, o
MP depende queixa do ofendido para abrir a fase de inquérito. Em segundo lugar, o processo só
avança depois da constituição de assistente e, por fim, tem de haver acusação pelo assistente.
Por outro lado, o MP está também implicitamente condicionado porque não pode dispor do
processo sem o acordo do assistente. Isto porque se o crime tiver natureza particular, mesmo
que findo o inquérito o MP entenda que não há indícios suficientes para acusar e levar o
processo a julgamento, não pode arquivá-lo. Terá sempre de ser uma decisão do assistente.
➔ Acusação do MP
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➔ Detenção
Nos crimes particulares, não há lugar a detenção em flagrante delito como estabelece o
artigo 255º nº4. Tendo em conta a pequena gravidade dos factos, a disponibilidade dos bens
jurídicos e as vicissitudes do processo, não se admite privar alguém de liberdade sem se saber
se haverá sequer processo em função das especificidades processuais da natureza destes
crimes. Isto é especialmente importante porque nestes casos apenas há identificação do agente
e não há detenção. É interessante vermos que a detenção, apesar de não ser permitida no
contexto dos crimes particulares, funciona como pressuposto para o processo sumário, nos
termos do artigo 381º.
➔ Forma de processo
O facto de não ser possível a detenção em flagrante delito faz com que não seja possível
seguir a forma de processo sumário. Isto porque, nos termos do artigo 281º, a detenção em
flagrante delito é requisito processual do processo sumário.
➔ Desistência
Tal como nos crimes semipúblicos, também nos crimes particulares é possível a desistência
e, portanto, o ofendido constituído assistente pode desistir nos termos do artigo 116º com os
mesmos limites temporais que já vimos.
No fundo, isto implica custos de litigância em dois aspetos. Por um lado, o assistente tem
de assumir o encargo de impulsionar o processo em alguns momentos e, por outro, tem de
assumir os custos do seu representante. Isto não acontece nos crimes de outra natureza em
que tudo o que tem de fazer é manter-se disponível. Desta forma, nos crimes particulares o
regime é muito mais oneroso.
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Em primeiro lugar, o STJ entendeu que saber quem é ofendido depende da interpretação
do tipo porque o tipo é o suporte legislativo do bem jurídico e é através do bem jurídico que se
determina quem é que a lei quis proteger, isto é, quem é o ofendido. Em segundo lugar, o STJ
reconheceu que tem havido uma mutação do conceito de propriedade e uma massificação do
direito de uso, especialmente com os contratos de renting ou de leasing. Há todo um conjunto
de novas situações que implicam esta cisão entre o direito de propriedade e o direito de uso,
sendo que este tem em si mesmo valor social e económico. Com base nisto, o STJ entendeu que
há uma massificação de novos bens jurídicos que têm dignidade penal como os direitos de
uso.
O que o STJ faz neste acórdão é uma espécie de interpretação atualista do crime de dano
considerando que pode afetar não só o direito de propriedade, mas também os direitos de
fruição e de uso que estão destacados tendo em conta aquela que tem sido a evolução da nossa
sociedade. Dito de forma simplificada, para efeitos de dano, o ofendido tanto pode ser o
proprietário como o titular do direito de uso e fruição.
Ora, no que a esta disciplina importa, queremos destacar que esta interpretação tem
consequências processuais porque alarga o direito de apresentar queixa. Se o dano pode afetar
não só o proprietário, como o usuário, então há mais pessoas suscetíveis de serem titulares do
direito de queixa para efeitos de aplicação do artigo 113º.
O professor Costa Pinto e a doutrina em geral consideram que esta interpretação é contra
legem, o que faz com que seja incorreta por criar direito contra legem. O professor defende que
não é por existirem bens jurídicos que merecem tutela jurídica que se podem estender tipos
incriminadores, até porque não está a ser feita uma análise da necessidade da intervenção do
direito penal. É o legislador que tem de fazer esse alargamento e não a jurisprudência incluindo
direitos novos em leis antigas. Por outro lado o direito comparado também mostra que esta
solução não é correta, porque se o legislador quisesse tutelar estes direitos reais menores por
intermédio do direito penal teria de ter criado novos tipos incriminadores, como aconteceu com
o direito penal brasileiro.
O professor acrescenta ainda que isto gera problemas do ponto de vista de coerência
substantiva ligada à problemática do consentimento. Era pacífico que a auto lesão é um facto
criminalmente atípico, a não ser que o legislador diga de outra forma, o que significa que não
há crime de dano num objeto próprio. Imaginemos que A, proprietário de uma vivenda, celebra
um contrato de arrendamento com B, mas depois torna a casa inabitável dolosamente. Não
podemos dizer que A será criminalmente responsável porque lesou o direito de B ao destruir
total ou parcialmente uma coisa que era sua. Nesses casos, a solução teria sempre de passar
pelo direito civil e não pelo direito penal.
Também o inverso seria descabido. Se alguém aluga um carro e o destrói dolosamente, não
faz sentido considerarmos auto lesão por o utilizador ser titular de direitos que advêm da
locação, o proprietário tem de continuar a ser o ofendido. Quando fazemos a cisão entre a
propriedade e a titularidade das faculdades de uso, a aceitação desta interpretação produz
problemas de consentimento.
Além de esta interpretação ser uma clara violação do princípio da legalidade, também vai
compra o direito comparado. Sempre que o legislador pretendeu alargar o âmbito de um tipo
incriminador, fê-lo através de uma nova lei. É muito diferente ser o legislador a criar ou eliminar
lei penal de acordo com a reserva de lei ou haver criação de direito pelo Supremo Tribunal de
Justiça que não é o nosso sistema e viola o princípio da separação de poderes.
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Por tudo o exposto, o professor Costa Pinto considera toda esta situação inadmissível.
Qualquer pessoa que seja titular destes direitos reais menores poderá invocar este acórdão para
legitimar a sua queixa enquanto ofendido, enquanto que em ações anteriores esta era uma
pretensão que apenas podia ser enquadrada à luz do direito civil. Há ainda outro dado
importante: sendo este um crime semipúblico basta haver queixa para que o processo avance,
o que torna a situação ainda mais chocante.
Caso prático 1. Em 10 de Outubro de 2018, ALVES apresenta por escrito uma queixa-crime
contra CARLOS e contra DANIEL, pela alegada prática por cada um deles, em autoria material,
do crime de difamação (artigo 180º nº 1 CP), em função de factos ocorridos a 30 de setembro
desse mesmo ano. O MP abre inquérito de imediato, mas a 30 de outubro arquiva o processo
por falta de constituição de assistente. Notificado deste arquivamento, ALVES requer, em 3 de
novembro, a reabertura do processo e a constituição de assistente alegando, designadamente,
que quando apresentou a queixa não foi informado de que tinha 10 dias para se constituir
assistente. O ADVOGADO DE CARLOS, por seu turno, entende que já não é possível reabrir o
processo por três razões: (1) caducidade do direito de queixa, (2) inadmissibilidade de repetição
da queixa e (3) impossibilidade de constituição de assistente em tal processo, por tal direito ter
ficado preterido com o decurso do prazo de 10 dias.
Nota: A resolver casos práticos, é muito importante não alterar a matéria de facto, perceber o
problema e fundamentar a solução. O professor irá indicar o enquadramento substantivo.
Pergunta-se…
1. Aprecie todas as pretensões e argumentos, explicando quem tem razão e o que deve
Ministério Público fazer perante o requerimento de ALVES, de 3 de novembro de 2018?
Antes de mais, importa olhar para o crime, a sua natureza e a pena aplicável porque daí
dependem várias questões processuais. Sendo um crime de difamação, previsto no artigo 180º
nº1, é um crime particular que depende de queixa e acusação particular, como previsto no artigo
188º. Isto significa que o A tinha de apresentar uma queixa com declaração de intenção de
constituição de assistente, no prazo de 10 dias apresentar requerimento para constituição de
assistente.
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sensu não tem essa rigidez. O prazo perentório não corre sem advertência. Porém não é
completamente ilegal porque falta um pressuposto processual. Cumprido, o inquérito poderia
ser reaberto. A solução melhor era o MP não fazer o arquivamento e promover a advertência
para assim ficar esclarecido se havia ou não uma situação de inadmissibilidade de processo.
Seria a solução mais eficaz em termos também de economia processual, embora não exista uma
norma que expressamente preveja que o MP deve promover a advertência nestes casos.
Há dois grandes argumentos para se dizer que o MP não pode arquivar o processo. 1. Nº1
artigo 285º, há um procedimento vinculado. 2. O nº2 artigo 285º permite concluir que os juízos
sobre a suficiência de prova não são fundamentos para arquivamento, mas para tomarem parte
do parecer do MP quando notifica o assistente para este decidir se acusa ou não. A primazia
num crime particular cabe ao assistente e não ao MP.
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então de deduzir acusação que terá de ser aceite pelo MP, que pode deduzir acusação pública
e mandar o processo para julgamento.
4. Admita agora que ALVES desiste da queixa contra CARLOS, só que este opõe-se à
desistência. ALVES é então notificado para deduzir acusação, mas informa o processo
que não o pretende fazer. O ADVOGADO de CARLOS considera que, perante a oposição
à desistência deduzida pelo seu cliente, ALVES está obrigado a deduzir acusação para
que em julgamento se apure a verdade dos factos. Quem tem razão e como deve o MP
proceder?
No se estado puro, o modelo inquisitório é o que diríamos ser típico dos estados totalitários,
onde o arguido não é propriamente um sujeito processual, mas o objeto do processo e há uma
concentração na mesma entidade do poder de investigar, acusar e julgar, o que faz com que
não haja uma garantia de imparcialidade. Esta entidade é o juiz, que assume grandes poderes
neste modelo.
Por isso mesmo há um conjunto de provas que acusam a matriz canónica que está na sua
origem, sobretudo a importância que era dada à confissão. Esta era vista como uma libertação
da culpa através da vontade e o arguido libertava-se, ao ponto de se poder utilizar meios
irracionais e violentos como a tortura para extrair uma confissão.
Finalmente, este modelo caracteriza-se pelo facto de permitir decisões que não são nem
condenação nem absolvição, ou seja, uma decisão que permitia que o mesmo fosse encerrado
formalmente e reaberto no futuro. Tudo isto pela busca da verdade incessante. Este modelo
não persistiu, mas marcou profundamente o processo penal ou algumas fases do mesmo.
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O modelo acusatório (“juiz árbitro”)
Este modelo com origem no século XIII pressupõe dois aspetos muito importantes. Em
primeiro lugar, o modelo acusatório prossupõe um tribunal independente, sem interferência
na acusação e, em segundo lugar, pressupõe também um ónus da prova por parte do acusador,
o que significa que não é o arguido que tem de provar a sua defesa, mas é a acusação que tem
de provar a culpa do arguido.
Este representa uma mistura entre os dois modelos que acabamos de estudar. A ideia
fundamental é que o processo inquisitório faz sentido para uma fase de investigação, mas já não
para uma fase de julgamento. Com a Constituição Francesa de 1808 a sociedade aceita um
modelo de processo penal que contém os dois modelos, mas com uma separação fundamental:
quem acusa não julga e quem julga não acusa.
Os diversos processos penais foram muito influenciados por modelo este misto ou
reformado, respeitando sempre esta divisão, ao ponto de ser o modelo predominante na Europa
Ocidental, com a exceção do período das ditaduras fascistas.
Hoje em dia já só há processos penais mistos, sendo que podem haver modelos mistos que
pendam mais para o lado acusatório ou para o lado inquisitório. O fator distintivo, na opinião do
professor Costa Pinto, tem a ver com o posicionamento do tribunal no julgamento. Nos modelos
com maior pendor acusatório temos um tribunal passivo, ao passo que na Europa Ocidental,
que representa os modelos com pendor mais inquisitório, o tribunal tem uma postura ativa.
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Vejamos então como se caracteriza o modelo português. O artigo 32º nº5 CRP exige que o
processo criminal tenha estrutura acusatória, mas não especifica quais as características que
têm de ser respeitadas. Esta questão foi em certo sentido resolvida com a reforma do código de
processo penal que chegou ao Tribunal Constitucional e obteve luz verde do mesmo.
O professor Costa Pinto considera que o nosso modelo é basicamente acusatório, com
princípio de investigação, mas tematicamente vinculada. Assim sendo, temos que perceber em
que é que se traduz esta tripla característica.
Ter uma estrutura acusatória básica significa que há uma separação entre quem acusa e
quem julga. Quem acusa não julga e quem julga não acusa, o que é fundamental para garantir
a imparcialidade sem a qual o processo penal português seria inconstitucional. Desta forma, o
nosso processo penal implica uma separação de fases entre o inquérito e o julgamento, entre
a acusação e o julgamento.
No nº4 também do artigo 32º CRP lemos que toda a instrução é da competência de um juiz,
porém não se refere quem é o titular do inquérito e, portanto, a conjugação da exigência de
uma estrutura acusatória com este preceito suscitou a dúvida de saber quem dirige o inquérito.
Resolveu-se atribuir a instrução do processo na fase da investigação ao MP, sujeitando os atos
que colidam com direitos fundamentais ao controlo do JIC (Juiz de instrução criminal),
conjugando assim ambas as normas constitucionais.
O nosso legislador foi um pouco mais longe para garantir a estrutura acusatória do processo
penal. Para garantir que o tribunal não é influenciado por aquilo que foi a investigação do caso
criou os chamados impedimentos por intervenção no processo que vêm previstos no artigo 40º.
O que se pretende é um juiz de julgamento imparcial. Então, se alguém foi juiz de instrução
criminal no processo, não pode fazer parte do tribunal de julgamento, tem de se declarar
impedido e ser substituído porque teve intervenção num ato em que teve de se pronunciar
nesse processo.
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O tribunal de julgamento tem liberdade para julgar os factos, mas não para conhecer todos
os factos que surgem em julgamento. Assim por exemplo, se a acusação descreve os factos e
enquadra no crime de tráfico de droga, faz uma imputação indiciária e vai-se para julgamento.
Se durante o julgamento se sabe que houve também uma extorsão ou um homicídio, o tribunal
não pode conhecer esta matéria, terá de a reenviar para a instrução, sob pena de a sua sentença
ser nula como previsto no artigo 379º nº1 b). Caso contrário estaria a investigar e a decidir,
violando a separação de fases, segundo a qual quem acusa não julga e quem julga não acusa.
O modelo processual português é misto por várias razões. Não é um modelo acusatório
puro, mas também não é modelo inquisitório e pressupõe a separação entre duas fases
processuais com conteúdo diferente, mas não só. De qualquer modo importa não esquecermos
que estas duas fases estão efetivamente separadas, sendo que a primeira se inicia com a
abertura do inquérito, artigo 262º, enquanto que a segunda, o julgamento, está prevista no
artigo 311º.
Por seu lado, a fase de julgamento tem características opostas, tem características
predominantemente acusatórias, ocorre perante um tribunal independente, há produção
plena de prova, apura-se a verdade dos factos, é uma fase pública e contraditória para que se
determine a responsabilidade criminal. Concluímos assim que o nosso sistema é efetivamente
misto, não apenas por comportar duas fases diferentes, mas também por estas terem
características tendencialmente opostas.
Há ainda outra razão, subjacente a esta, que aponta do nosso modelo ser um modelo misto:
não existem inquéritos policiais autónomos e independentes, nem inquéritos dirigidos pelo JIC.
A titularidade legal do inquérito cabe única e exclusivamente ao MP, sem prejuízo de algumas
intervenções do JIC.
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Concluindo, é um juiz ativo que disciplina toda a audiência e tem poderes autónomos. Nas
palavras do professor Figueiredo Dias, o facto de estes poderes estarem tematicamente
vinculados faz com que sejam também poderes complementares.
Há mais duas razões que a doutrina normalmente não refere, mas o Professo Federico Costa
Pinto considera: a transmissibilidade da prova material e o conhecimento dos autos pelo TJ.
Noutros países, apenas chega a julgamento uma súmula da primeira fase. Há quem entenda
que este acesso integral aos autos pelo tribunal de julgamento significa uma certa derrogação
da estrutura acusatória do processo porque o juiz sabe tudo o que foi feito e declarado na fase
anterior. O professor Costa Pinto acredita que isto tem vantagens e desvantagens. A
desvantagem é que o tribunal pode ser influenciado pelo que se passou nas fases anteriores.
Por outro lado, a grande vantagem é que este modelo transforma o julgamento numa
continuação do processo e dá ao tribunal a possibilidade de preparar melhor as sessões e
descobrir mais facilmente a verdade material, dando-lhe mais condições para exercer
efetivamente o princípio da investigação.
O professor Costa Pinto entende que é preferível o conhecimento total dos autos até porque
o juiz tem sempre de fundamentar a sua decisão. Por outras palavras, o juiz tem sempre uma
liberdade que pode ser influenciada, mas tem de justificar, pelo que os riscos são mitigados.
O tema das denúncias relaciona-se com a matéria da tramitação porque as denúncias são
uma das formas de obtenção da notícia do crime. A denúncia corresponde a um momento
preliminar que antecede a notícia do crime e a promoção do inquérito. As denúncias
acontecem por diversas vicissitudes e há vários debates sobre o tema. O que é ponto assente é
que são fonte de obtenção da notícia do crime, sejam anónimas ou assinadas. Porém, hoje o
tema é muito mais profundo do que isto e discute-se muito, por exemplo, o facto de a lei não
fazer qualquer exigência em termos de formalidade. Há que fazer referência a quatro tópicos
que têm sido muito discutidos.
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Em primeiro lugar, há atualmente na Europa um debate profundo em termos político-
jurídicos sobre o regime de proteção de denunciantes. Uma segunda ideia fundamental é que
alguns processos mediáticos assentam em regimes de delação premiada ou colaboração
premiada, nomeadamente no Brasil em que este tipo de regime legal é muito comum. Neste
país há uma lei de 2013 de combate à criminalidade organizada que prevê um regime de delação
premiada.
Em terceiro lugar, é fundamental ter em conta que em Portugal se tem discutido muito se
as denúncias anónimas são válidas ou não e se afetam a validade do processo penal. Por outras
palavras, importa saber se as denúncias anónimas têm algum vício que afeta a validade do
processo. Esta discussão está hoje muito acesa também porque já houve um contributo
jurisprudencial, sendo que a Relação de Lisboa já considerou que são inválidas as denúncias
anónimas por afetarem a validade do processo.
Finalmente, um último tópico, passa por ter em conta que muitas vezes se misturam muitos
assuntos, designadamente a denúncia e a proteção dos denunciantes com o regime da delação
premiada, mas são temas diferentes. O regime das denúncias não é pacífico, é muito
controvertido e é já um tema de debate histórico. O regime da colaboração premiada tem uma
matriz autónoma e é muito mais recente.
Primeiro importa definir estes conceitos. A delação premiada consiste numa colaboração
em troca de uma contrapartida. Nos EUA há um gabinete só para o whistle blower e há prémios
monetários para quem tomar esta atitude. Também há figuras de colaboração processual de
pessoas envolvidas na prática do crime em que o prémio consiste em situações de atenuação
ou exclusão da responsabilidade. Portanto, a delação premiada pode envolver factos próprios
ou alheios e em que qualquer um dos casos podemos ter necessidade de criar regime de
proteção dos denunciantes que é diferente disto tudo.
Parece que os regimes de proteção de denunciantes estão de acordo com a nossa tradição
jurídica ou há assimetrias? Do ponto de vista cultural, esta ideia está em sintonia com as nossas
tradições? Será que é isenta de juízos éticos a questão de haver delação e delação premiada?
De haver denúncia ou denunciantes? Quando somos crianças é-nos ensinada uma regra que é
exatamente a oposta: fica feio fazer queixinhas. Assim, a nossa tradição é a de que a denúncia
seja considerada censurável, do ponto de vista social, embora atualmente vigore um pouco a
ideia oposta.
Contrariamente, nos EUA há de facto uma tradição de denúncias cívicas relacionadas com o
conhecimento de factos socialmente valiosos, nomeadamente na indústria alimentar, da
cosmética, dos medicamentos, da segurança, da indústria automóvel. Os EUA valorizam a
denúncia por razões cívicas e de interesse público. Os EUA têm uma tradição cultural de
valorização de denúncias e consequentemente têm gabinetes organizados nesse sentido. Ainda
há pouco tempo, as grandes fraudes contabilísticas revelaram-se através de denúncias internas
e o processo atual de impeachment do presidente Trump tem a sua origem numa denúncia
interna de um funcionário da Casa Branca. Face a estes acontecimentos não é de admirar que
haja um debate tão amplo em torno da necessidade de proteger os denunciantes.
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denunciantes e proteção de denunciantes em tempos não muito distantes. Em Itália, por
exemplo, o combate à Máfia foi muito feito através destes meios. Houve quem entendesse que
era a forma de entrar na criminalidade organizada, tendo informadores, e havia quem
entendesse que era uma subversão de um estado de direito.
Que problemas é que podem existir para o processo penal? A possibilidade de existirem
denúncias falsas obriga a um maior controlo da sua veracidade. Se olharmos para o artigo 246º
nº6 compreendemos que se a denúncia for anónima não há obrigatoriedade de abertura de
inquérito. Donde se retira que o nosso sistema admite denúncias anónimas, mas mitiga o dever
de abrir inquérito. Portanto não se pode dizer que a denúncia anónima é proibida, mas se não
houvesse esta proteção seria muito mais fácil manipular o processo penal. Este regime surgiu
em 2007 a propósito do processo Casa Pia.
A denúncia pode ser nominal (ou identificada) ou anónima. Se for feita por alguém que se
identifica, há dever de abrir inquérito se o crime for público, nos termos do artigo 246º. Se não
for público há que notificar o ofendido. A grande vantagem de ser uma denúncia nominal é que
há uma fonte de prova. Se não for assim, só se abre inquérito se houver elementos que
apontem para factos concretos que podem ser apurados ou se a própria denúncia for crime.
Uma denúncia anónima pode ser muito forte ou muito fraca. Será forte se tiver elementos que,
com alguma objetividade, permitam concluir que é plausível verificar se aqueles factos
ocorreram.
Em 2015 foi aprovada uma diretiva que foi transposta pela lei 28/2017 de proteção de
denunciantes no sistema financeiro. Esta diretiva previa a proteção dos denunciantes e dava
aos Estados membros a possibilidade de definir prémios monetários. Assim sendo, os Estados
podiam escolher um regime de denúncias remuneradas, ou seja, dar uma remuneração aos
denunciantes que se consubstancia em prémios monetários. Desta forma compreendemos que
o regime de prémios para os denunciantes existe no direito europeu e só não vigora em
Portugal porque o nosso legislador teve margem neste sentido. Entre nós optou-se por um
regime de proteção jurídica de proibição de retaliação, presunção de retaliação e de considerar
que denunciar é um ato lícito, quando não é uma denúncia falsa.
Já vimos o tema das denúncias, dos denunciantes e da proteção dos denunciantes, mas
falta-nos aprofundar o tema da delação premiada. A delação premiada é a expressão brasileira
para a situação em que o denunciante está envolvido na situação fáctica que denuncia e retira
contrapartidas jurídicas dessa denúncia. Em Itália conseguiu-se, graças a estes elementos,
descobrir organizações e o funcionamento da Máfia. Do ponto de vista jurídico isto foi muito
criticado e as críticas que se fizeram são muito importantes para se perceber os regimes de
delação premiada.
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A primeira crítica que se faz à figura da delação premiada é que altera o modelo de processo
penal que era baseado numa investigação com ónus da prova para a acusação e uma dialética
processual entre a acusação e a defesa que pode inclusive envolver a negociação da
responsabilidade. Em vez de ser de investigação contraditória, passa a ser um modelo da culpa
e da colaboração.
A segunda crítica apontada é que este instituto significa um desinvestimento nas estruturas
de investigação criminal porque a partir do momento em que se conseguem informações desta
forma, a investigação perde força.
Por fim, a terceira crítica que foi feita teve que ver com o princípio da igualdade e isto pode
ser visto em duas vertentes distintas. Por uma lado, quem não tem nada para oferecer, não
pode denunciar, logo não pode beneficiar destes acordos. Por outro lado, há que perceber que,
na realidade, nunca são admitidas as mesmas condições de colaboração a todos. Para que a
negociação da culpa funcione por meio de denúncias contra outros envolvidos, chega-se a uma
certa altura em que o processo negocial encerra.
Finalmente os italianos ainda verificaram outra coisa: quando obtinham informação desta
forma era sempre na fase de inquérito, mas quando chega a fase de julgamento havia que
produzir prova e aí colocava-se o problema de perceber se o arrependido estava disposto a
depor em julgamento e em que condições. Aconteceu que se verificou que se o denunciante se
calasse no julgamento esfumava-se a prova que aparentemente era muito concreta e precisa.
Por outro lado, se a informação prestada fosse falsa ou parcialmente falsa (se, por exemplo,
apontasse para um grupo de pessoas e deixasse de fora outro), significava que a própria
investigação estava a ser manipulada por estas denúncias.
Outro problema era o seguinte: como é que se faz o contraditório contra as declarações de
um denunciante a quem foi garantido o anonimato? Nos anos 80 era praticamente impossível
face ao modelo de interrogatório em salas de audiência. Hoje em dia já é possível através da
distorção da voz e da imagem, mas ainda assim estamos a limitar o contraditório porque não é
possível ver as expressões das pessoas e dá para perceber eventuais hesitações, por exemplo.
Com isto queremos dizer que os regimes de colaboração premiada têm um lastro histórico
problemático por afetar aspetos estruturantes do processo como o princípio do contraditório,
o princípio da igualdade, a forma como se obtém prova, entre outros.
Discussão em Portugal
Entre nós, tem sido debatido o regime da lei brasileira sobre instrumentos de combate à
criminalidade organizada. Esta lei tem um regime de colaboração delatória com exclusão ou
atenuação de responsabilidade feita ou negociada pelo MP, mas com uma filtragem final pelo
juiz. Desta forma, a legislação prossupõe que é feita delação, mas não só, já que esta tem de ser
acompanhada por meios de prova assertivos, como a prova documental, não bastando simples
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declarações do arrependido, para ter acesso a uma exclusão ou atenuação de responsabilidade
que depois é ou não aceite pelo juiz.
Desse ponto de vista, é uma lei com aspetos processuais e com efeitos substantivos porque
é possível alguém, ou uma organização criminal, oferecer elementos ou oferecer a sua
colaboração e ter um contrato com o estado feito pelo MP que, sendo homologado pelo juiz,
lhe dá isenção ou exclusão de responsabilidade.
Este método tem sido usado no Brasil, principalmente nos casos de corrupção. Todavia,
suscita alguns problemas, designadamente porque há uma relativa lacuna quanto ao que
acontece se o juiz não homologar porque se isto acontecer as provas não podem ser usadas,
mas a informação já la está. Outra grande questão passa por saber qual é a fiabilidade da prova
quando quem a fornece tem interesse nela, ainda que a lei tente mitigar isto ao aceitar apenas
as provas que têm valor por si só.
Além destas questões, levanta também problemas de igualdade a que já fizemos referência
porque as ofertas de colaboração não são iguais. As imunidades substantivas não são dadas de
igual forma, são dadas a uns para condenar outros e são dadas com maior peso e contrapartida
a quem mais sabe sobre os factos, sendo que quem mais envolvido está é normalmente quem
mais sabe. Portanto quem mais envolvido está, terá acesso a melhores contrapartidas, o que
viola o princípio da culpa, o princípio da igualdade e principalmente o princípio da
proporcionalidade quer em relação ao facto quer em relação aos demais agentes que têm
intervenção. Daí que o professor Costa Pinto compreenda um certo desespero do Estado em
relação à criminalidade organizada, mas reitere que estes mecanismos não são isentos de
problemas e há história jurídica recente que os evidencia.
O professor Costa Pinto acha que o sistema português devia ser mais paciente e esperar
pelos resultados da experiência da lei brasileira em determinados casos e depois usar esta
informação como elementos de direito comparado úteis. O professor é absolutamente contra a
importação precipitada destes institutos de uns ordenamentos para os outros.
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Aquilo que as formas especiais têm de diferente face ao processo comum é introduzir ou
eliminar momentos ou fases processuais, simplificando alguns e abolindo outros
completamente. A lógica é que se houver condições para o processo correr numa forma especial
será esse o caminho e só se não for possível é que passa para forma comum.
Apesar de os diversos manuais de direito processual penal fazerem referência a duas fases
obrigatórias e uma fase facultativa, o professor Costa Pinto defende que, em rigor, a forma de
processo comum pode ter cinco fases, umas mais formalizadas e orgânicas, outras mais
informais e inorgânicas.
Quando se diz que a forma mais solene de processo, a forma comum, tem duas fases
obrigatórias e uma facultativa, está-se a pensar que há obrigatoriamente inquérito e
julgamento e que entre estas duas, é possível a fase de instrução, que só ocorre se for requerida.
Isto está certo, mas há mais na sua extensão.
Também a notícia do crime pode ser uma fase essencial. Pensemos no caso do flagrante
delito. A pessoa é detida num momento policial, antes de ser aberto qualquer inquérito, mas
aqui já há processo. O artigo 58º nº1 c) prevê que se dá constituição automática de arguido
quando há flagrante delito. Ora, se o suspeito é constituído arguido sem ainda ter sido aberto
inquérito, é porque já temos processo. Isto porque pode haver processo sem arguido (processo
contra incertos), mas não pode haver arguido sem processo. Seria uma contradição impensável
porque o arguido é uma figura processual.
Outra fase que o professor considera é a fase de recurso que é iniciada depois de ser
proferida a decisão de primeira instância e impede o trânsito em julgado da decisão. Ora,
quando é interposto um recurso para o tribunal superior, o processo continua. Se for uma
sentença condenatória, não se efetivam as sanções, o processo fica suspenso. Se é assim, temos
aqui uma fase que vai condicionar todo o processo em termos substantivos e processuais.
Assim, o professor Costa Pinto defende que há três fases opcionais e duas obrigatórias:
Ainda numa visão macro há que destacar que cada fase tem um titular. A fase da notícia do
crime é uma fase predominantemente policial. Por sua vez, o inquérito é do MP que investiga.
Já a instrução é da responsabilidade do juiz de instrução criminal que sujeita a um controlo
jurisdicional a decisão que foi tomada no final da fase de inquérito pronunciando-se ou não
acerca da procedência do caso. O julgamento é do tribunal. Até antes do julgamento o processo
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penal esteve a ser preparado, no julgamento avalia-se a responsabilidade criminal do arguido.
E, por fim, o recurso é do tribunal superior.
Em suma:
➔ Processo sumário
Prevista e regulada entre os artigos 381º e 391º, a forma sumária de processo começa
sempre numa circunstância fático social em que alguém é encontrado a praticar um crime e é
detido em flagrante delito.
É a partir dessa situação que se inicia um processo que não tem inquérito, não tem
instrução e, depois de detido, o arguido é apresentado ou notificado para se apresentar a
julgamento. Neste processo sumário passa-se de uma fase preliminar para uma fase anterior
ao processo em que se prepara o julgamento e depois inicia-se o julgamento.
Numa frase: o processo sumário inicia-se com a detenção em flagrante delito, não tem
inquérito, não tem instrução, tem uma fase de algumas diligências anteriores ao julgamento a
que se segue um julgamento.
Este processo era diferente na versão inicial do código: o arguido era detido e ficava em
detenção até ao máximo de 48 horas, tendo de ser apresentado em julgamento ainda dentro
desse prazo, porque caso contrário teria de ser libertado.
➔ Processo abreviado
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característica curiosa já que o auto de notícia pode substituir o inquérito. Não tem instrução,
tem julgamento simplificado e depois tem os recursos facultativos.
Esta forma especial de processo penal foi criada para oferecer uma alternativa possível aos
casos que não podiam seguir a forma de processo sumária nem sumaríssima. Anteriormente à
sua criação, muitos casos que podiam ser julgados de uma forma mais célere, mas não cumpriam
certos requisitos iam parar ao processo comum. O regime do processo sumário aparece como
fórmula simplificadora desses casos e é, no fundo, uma forma mais singela do processo comum.
➔ Processo sumaríssimo
São os artigos 392º a 398º que regulam a terceira forma especial de processo penal. O
processo sumaríssimo tem como principal traço característico o facto de a acusação do MP ser
acompanhada de uma proposta sancionatória de aplicação de uma pena concreta não
privativa da liberdade.
Ora, nesta forma processual, o MP faz uma coisa que não faz nas outras que é propor uma
pena concreta. O arguido pode aceitar ou deixar passar o prazo sem nada dizer e o juiz profere
a sua decisão final, sendo que pode aceitar, modificar ou recusar. Se o arguido aceitar ou nada
disser sobre essa pena concreta não privativa da liberdade, o juiz estabelece a decisão final
através de um ato de atribuição de responsabilidade simples, homologando aquele acordo
expresso ou tácito que foi feito entre o MP e o arguido.
Nesta forma de processo especial, não há lugar a fase de instrução, o juiz de julgamento vai
homologar aquele acordo expresso ou tácito que foi feito pelo MP e toma a sua decisão sem
audiência de julgamento. O juiz decide por despacho e não é possível o recurso. É uma forma
de processo vocacionada para a pequena criminalidade. A decisão final é condenatória e,
segundo a lei, transita internamente em julgado.
Por tudo o exposto, concluímos que são possíveis em processo penal quatro formas de
processo, uma comum e três especiais. Há algumas ideias que importam destacar.
Em primeiro lugar, evidenciar que todos os processos penais tramitam numa destas formas
de processo: comum, sumária, abreviada ou sumaríssima. Em segundo lugar, notar que as
formas especiais de processo estão previstas para a pequena e média criminalidade e têm
limites sancionatórios que não existem no processo comum.
Outra ideia fundamental a destacar é a prioridade das formas especiais. Isto significa que
sempre que se verificarem os pressupostos de uma forma especial, há uma prioridade na
tramitação nessa forma especial. Simplificando, verificando-se a forma especial de processo, é
essa a ser seguida e só se seguirá a forma comum se não for possível tramitar o processo numa
forma especial. Assim será sempre necessário verificar se estão cumpridos os pressupostos para
uma tramitação especial antes de se seguir a forma comum.
Uma última ideia fundamental é que no processo penal vigora o princípio da legalidade,
portanto não se pode adotar uma forma especial de processo sem ser na forma que está
prevista.
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O artigo 2º exige que os vários requisitos da forma especial de processo sejam interpretados
à luz do princípio da legalidade. Por outro lado, no artigo 119º alínea d) e f), o legislador criou
nulidades para a omissão de algumas fases do processo penal comum, mas também para
quando são indevidamente aplicadas as formas especiais de processo. A existência de casos de
nulidade insanável neste tema demonstra a forte tutela que o legislador procurou consagrar.
O PROCESSO SUMÁRIO
Leituras sobre o processo sumário: O processo sumário tem sido a forma de processo que mais
vicissitudes e transformações sofreu ao longo do tempo. Como veremos, houve duas alterações
muito profundas em 2013 e 2016. Em 2013 houve uma alteração muito significativa de matriz
securitária ao processo sumário que foi contrariada em 2014 com um acórdão do STJ com força
obrigatória geral, sendo que em 2016 se veio reestabelecer a reforma. Por toda esta conjetura,
não nos podemos orientar por textos escritos entre 2013 a 2016. Por outro lado, os textos
anteriores a 2013 têm alguns aspetos consentâneos com a situação após 2016, mas essa última
reforma não repôs integralmente a situação anterior, pelo que o melhor nesta tema é focar a
nossa atenção nos apontamentos da aula e texto legal.
Caracterização geral
Origem e evolução: as reformas de 1998, 2007, 2013 e 2016 (regime atual). O ac. TC 174/2014
Como já vimos, o processo sumário é uma forma de processo extremamente simples que
começa numa situação fático-criminal de flagrante delito, sendo que a pessoa é privada da sua
liberdade enquanto durar a detenção, e depois promove-se um julgamento expedito.
Tem sido também a forma de processo que mais alterações sofreu desde a sua criação, pelo
que podemos dizer que tem tido uma vida muito atribulada. As reformas de 2013 e 2016
trouxeram alterações profundas, nomeadamente em 2013 em que houve uma alteração da
matriz securitária que foi contrariada por um acórdão do TC com força obrigatória geral, sendo
que em 2016 o legislador recuou e repôs parcialmente o regime antigo. Isto também quer dizer
que todos os textos publicados durante esse período estão hoje desatualizados.
➔ CPC 1887
Na versão inicial do código de processo penal, de 1887, tudo isto se passava em 48 horas
que, nos termos do artigo 28º nº1 CRP, é o prazo máximo para uma detenção não controlada
de forma judicial. A versão inicial previa a situação em que alguém estava a cometer um crime
com pena abstrata até 3 anos, ficava detido por autoridades judiciais ou policiais (não podia
ser detido por particulares) e era presente a julgamento no espaço de 48 horas. Assim sendo,
não podia a detenção ser levada a cabo por particulares, apenas por entidades com legitimidade
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para manter a pessoa (PJ, PSP ou MP) e aplicava-se apenas a pequena e média criminalidade
ocasional.
Isto era assim quando o código foi aprovado, mas levou a que se verificassem inúmeros
problemas. O processo sumário era uma forma de processo especial expedita, mas
relativamente excecional por quatro razões. Antes de mais, porque implicava sempre a privação
da liberdade, não havia a possibilidade de a pessoa ser libertada e depois notificada para
comparecer em julgamento. Depois, porque só se aplicava a pequena e média criminalidade,
tendo em conta que a pena abstrata máxima era de 3 anos, e desde que existisse queixa no caso
dos semipúblicos. Outra limitação é que não se podia aplicar a menores de 18 anos ou a
inimputáveis, o que também limitava já que muitos pequenos crimes são praticados por
adolescentes.
Estas razões assim explicadas, com destaque para o limite das 48 horas para o julgamento e
a limitação da idade em 18 anos, foram as razões de política criminal que motivaram as
alterações e reformas que se vieram a verificar. Isto porque se chegou à conclusão de que a
forma sumária era uma forma de processo com requisitos tão apertados que não aguentavam
a expansão da pequena e média criminalidade que se verificaram na década de 90.
➔ Reforma de 1998
A evolução do processo sumário é a história do seu alargamento. Podemos dizer que todas
as reformas, umas mais do que outras, alargaram o campo de aplicação do processo sumário.
A reforma de 2007 passou a prever que a detenção fosse feita por particulares e o regime da
pena relevante foi mitigado. Em 2013 foi alargado o campo de aplicação, reduzindo o processo
sumário em termos de requisitos legais à detenção em flagrante delito com alguns prazos
adicionais e um máximo de 20 dias para preparar a defesa.
➔ Reforma de 2007
Na reforma de 2007, o regime da pena relevante foi mitigado. Isto porque se percebeu que
os paradigmas de criminalidade mudaram muito desde os anos 80 e 90: houve um aumento da
pequena e média criminalidade, sobretudo dos crimes rodoviários (como conduzir sem carta ou
alcoolizado) que aumentaram estatisticamente (também por aumentar o controlo com
operações stop e outras diligências). Também aumentaram pequenos furtos, designadamente
em estabelecimentos comerciais, que potenciaram os processos sumários. É esta a razão pela
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qual em 2007 passa a ser possível detenção pelos particulares, nomeadamente pelos lojistas
ou seguranças dos estabelecimentos comerciais.
Podemos concluir que toda a expansão do campo de aplicação do processo sumário até
2013 (porque aí a lógica já foi diferente) teve que ver com o crescimento da pequena e média
criminalidade, com a criminalidade jovem, com a criminalidade em estabelecimentos comerciais
e em especial com a criminalidade rodoviária, reconhecendo-se que requisitos muito rígidos
tornavam muito difícil a legalidade desta forma especial de processo.
➔ Reforma de 2013
A reforma de 2013 foi diferente porque estávamos no tempo da Troika. Houve um aumento
significativo de alguns tipos de criminalidade e o governo resolveu fazer uma reforma faseada
ao processo penal.
O aspeto fundamental desta primeira fase foi uma reforma do processo sumário em que
este passou a ter como únicos requisitos a detenção legal em flagrante delito e o cumprimento
de algumas garantias de defesa entre o momento de entrega ao MP e o julgamento,
eliminando os demais.
Assim sendo, o processo sumário passou a contemplar tanto a pequena e média como a
grande criminalidade, uma vez que a sua aplicação deixou de depender da medida da pena.
Isto significa que o processo sumário passou a poder ser aplicado a crimes como o homicídio, o
fogo posto, o tráfico de droga, entre outros.
O legislador criou uma fase instrutória que servia também para defesa do arguido. Por um
lado, podiam ser realizadas diligências para instruir o julgamento completando-o com outros
elementos no prazo de 20 dias. Por outro lado, tendo em conta que podiam estar em causa
penas significativas, o arguido passou a ter nessa fase um período de direito de defesa, o que
era algo peculiar uma vez que o arguido nesta fase estava a defender-se sem ter sido acusado.
Isto nunca pode permitir uma utilização cabal do direito de defesa.
Outra imposição era que, se a pena abstrata tivesse um limite superior a 5 anos, então o
MP tinha de redigir uma peça acusatória para levar o caso a julgamento.
Uma das particularidades mais importantes desta reforma do processo sumário em 2013 é
que aumentou significativamente a esfera de competência material do tribunal singular.
Até 2013, o tribunal singular tinha competência para fazer o julgamento de crimes puníveis
até 5 anos. O tribunal singular é que fazia julgamento no processo sumário e tinha a sua
jurisdição limitada a essa pena máxima de 5 anos. Se fosse um crime mais grave em termos de
pena tinha de existir um ato particular de limitação de reenvio para o tribunal singular dizendo
que este não podia aplicar uma pena superior a 5 anos. Isto significa que, mesmo que a lei
previsse uma pena máxima superior, como até 8 anos por exemplo, o tribunal não podia exceder
os 5 anos se recebesse esse caso, porque estava sempre dentro do limite de jurisdição do
tribunal singular.
Ora, o que a reforma de 2013 fez foi alterar a competência do tribunal singular, atribuindo-
lhe competência para fazer o julgamento de qualquer caso em que tivesse havido uma
detenção em flagrante delito.
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Isto significava que se houvesse uma detenção em flagrante delito de um crime de roubo
consumado que tem uma pena aplicável de até 15 anos, esse processo seguia a forma sumária
em tribunal singular que já não estava limitado à sua jurisdição inicial de 5 anos.
Desta forma concluímos que a reforma de 2013 foi uma verdadeira revolução porque, não
só alterou significativamente o processo sumário, como alargou para esse efeito a competência
do tribunal singular. Isto foi propositado para oferecer uma resposta rápida e imediata à
criminalidade que tinha visibilidade, mas era profundamente perigoso sobretudo por três
razões, como diz o professor Costa Pinto.
Em primeiro lugar, esta reforma criou uma dinâmica de sujeição do caso a julgamento que
tinha sido pensada para a pequena e média criminalidade e que estava a ser aplicada à grande
criminalidade. Por outras palavras, eliminar o limite máximo da pena permitiu aplicar a qualquer
crime uma forma de processo especial que tinha sido pensada para enquadrar a pequena e
média criminalidade.
Em segundo lugar, esta reforma fez com que se aplicassem garantias de defesa antes da
acusação, o que significava que o arguido se ia defender antes de os factos e o enquadramento
jurídico serem estabelecidos.
Por fim, esta reforma levou a uma subversão do equilíbrio das competências dos tribunais.
Antes o tribunal singular era apenas competente para julgar a pequena e média criminalidade,
enquanto que o tribunal coletivo conduzia os casos mais graves e com conotações ético sociais
mais graves como homicídios ou violações. A circunstância de estes casos de maior danosidade
social serem da competência do tribunal coletivo oferecia uma garantia adicional por serem três
juízes a valorar a prova. Finalmente, o sistema colocava-se com a possibilidade de solicitar o
tribunal de júri para a criminalidade mais alta.
Desta forma, para atingir uma maior celeridade, alterou-se todo o sistema. Um último fator
crítico é que normalmente os magistrados dos tribunais coletivos são magistrados com muitos
anos de experiência, enquanto que os juízes nos tribunais de singulares são por vezes
magistrados em início de carreira. Assim, um juiz no seu primeiro julgamento podia ter de julgar
crimes de particular complexidade, o que era delicado para o funcionamento e equilíbrio da
máquina judiciária.
O professor Costa Pinto enfatizou a ideia de que esta reforma foi aprovada pelo governo
porque tinha maioria no parlamento, todavia fê-lo contra a doutrina e contra uma parte
significativa da magistratura.
➔ O ac. TC 174/2014
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artigo 381º nº1 (na redação dada pela reforma de 2013) que gerou um problema muito curioso
em termos de aplicação do regime do processo sumário.
Por seu lado, a professora Maria João Antunes, apesar de entender que as alterações ao
regime do processo sumário eram uma má escolha político legislativa, defendeu que não se
podia dizer que não existiam garantias. Em suma, defendeu que as garantias eram
inadequadas, mas não inexistentes e, portanto, não se violava o direito constitucionalmente
consagrado.
Havendo uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, essa norma
deixa de poder ser aplicada pelos tribunais e dá-se a repristinação da norma que tinha sido
revogado pela norma inconstitucional. Então, se o artigo 381º nº1 que tinha o novo regime é
declarado inconstitucional, essa declaração repõe em vigor a norma revogada que era o artigo
381º nº1 na sua versão anterior. Bom, mas a versão anterior do 381º nº1 era apenas uma das
normas alteradas pela reforma de 2013. A norma repristinada era a anterior versão deste artigo,
mas não necessariamente todas as outras normas alteradas na reforma de 2013.
Este situação levou a que a doutrina tivesse de interpretar a partir de 2014 o efeito
repristinatório. Neste contexto, surgiram duas teses que depois vingaram na prática.
Uma das teses defendia que, por razões de clareza, a inconstitucionalidade do artigo 381º
nº1 gera a repristinação de todo o regime anterior do processo sumário. Esta era a solução
mais segura, mas não tem assento legal, uma vez que a norma que prevê os efeitos da
declaração de inconstitucionalidade, o artigo 282º CRP, apenas faz referência à repristinação
das normas que foram revogadas pela norma declarada inconstitucional, e não à totalidade
do regime.
A outra tese que surgiu era a de que como o artigo em que assentava o regime do processo
sumário foi declarado inconstitucional, as normas anexas a esse regime são também
inconstitucionais por arrastamento. Assim, o artigo 381º é reposto na sua forma anterior, mas
arrasta também todas as normas com ele relacionado.
O professor Costa Pinto foi defensor desta segunda tese, todavia acredita que isto devia ter
sido declarado expressamente pelo TC. Como não o foi, os tribunais tiveram de interpretar o
acórdão e avaliar as decisões congruentes com esse acórdão. Assim sendo, entre 2014 e 2016,
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vigorou entre nós um regime do processo sumário que foi interpretado por referência ao
acórdão 174/2014.
Em termos de regime em vigor, passou a haver uma soma de retalhos. Isto porque por um
lado repristinaram-se normas do regime anterior, mas, por outro lado, já rinham surgido normas
novas que, entretanto, se mantinham em vigor. Tomemos como exemplo a norma que previa a
garantia da fase instrutória. O processo sumário foi reconduzido à anterior versão de 2007,
mas com nuance de que mantinha algumas garantias adicionais que eram as garantias de
2013. Este foi um verdadeiro problema de direito constitucional e não de direito penal.
Esta foi uma intervenção legislativa clarificadora, porém deixou ainda algumas normas do
regime de 2013. Em regra, são normas de garantia, mas que alteraram o regime do processo
sumário. Continuou a existir, por exemplo, um prazo de 15 dias para defesa e 20 dias para
realizar a instrução.
Assim sendo, o processo sumário tem hoje uma fase instrutória anterior ao julgamento
que resulta da existência do regime de 2013 que foi substituído pelo de 2016.
Podemos dizer que o processo sumário atual é o resultado (i) do atrevimento do legislador
de 2013 com maus fundamentos político-criminais e de equilíbrio judiciário, (ii) de uma
declaração de inconstitucionalidade que foi muito importante, mas incompleta porque não
esclareceu os seus efeitos, e (iii) de uma intervenção clarificadora de 2016, mas que ainda assim
deixou algumas normas da reforma de 2013, designadamente a fase instrutória pré-judicial que
continua a ser muito peculiar por ser anterior à acusação.
Requisitos legais
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Em termos gerais, o requisito do flagrante delito é pacífico e a detenção legal também. Na
verdade, é uma detenção legal em flagrante delito, mas o professor Costa Pinto autonomiza
estes dois, pelas razões que veremos. Quanto aos prazos para início de audiência, não é pacífico
que estes sejam um requisito, mas o professor defende que sim. A Relação de Lisboa, por
exemplo, entende que não. A professora Tereza Beleza apontou um requisito negativo implícito
e é fundamental para articular o regime de competência do tribunal com o regime do processo
sumário. Como também veremos, este requisito foi eliminado em 2013, restaurado
implicitamente em 2014 e depois expressamente em 2016. Também a pena que está cominada
para o crime pode ou não ser considerada requisito, sendo que o professor Costa Pinto defende
que sim. Por fim, há autores que apresentam o auto de notícia como requisito, mas o professor
defende que não.
Os requisitos legais e a sua fixação são de tal modo importantes que podem afetar a
legalidade da forma de processo adotada e a própria competência do tribunal, mas também
pode ir ao ponto de em alguns casos a ilegalidade resultante da sua adoção quando falham
requisitos poder ser convertida numa nulidade insanável, como está previsto no artigo 119º f),
nulidade esta que se funda numa adoção inadmissível de uma forma especial de processo.
Vejamos então cada um dos requisitos.
Flagrante delito
Estabelece o artigo 381º nº1 que para se aplicar a forma de processo sumária, tem de
existir uma situação de flagrante delito. Pode haver um flagrante delito sem processo sumário,
se o crime não puder ser julgado em processo sumário, e aí terá de seguir a forma comum, mas
não pode haver processo sumário sem haver necessariamente flagrante delito, que consiste em
alguém ser descoberto na prática do crime ou temporalmente perto da prática do crime.
O flagrante delito surge, por vezes, como condição de punibilidade de alguns crimes. Entre
os séculos XIX e XX, só podia ser punido pelo crime de caça quem fosse descoberto na prática
da atividade. Atualmente, para existir uma situação de jogo ilícito, é preciso que alguém seja
encontrado a jogar numa situação de flagrante delito. Nestas situações, o flagrante delito é parte
do tipo incriminador, é algo do direito penal substancial. Para o processo penal, o flagrante
delito funciona como uma exigência processual, um pressuposto exigido pelo artigo 281º e
delimitado pelo artigo 256º.
O artigo 256º prevê um conceito nuclear alargado pelo quase flagrante delito, pela cláusula
de perseguição e pela presunção legal de flagrante delito.
Nos termos do nº1 artigo 256º, temos uma situação de flagrante delito em sentido próprio
ou nuclear quando a pessoa é descoberta no momento em que está a praticar um crime. No
fundo, é antes de consumar o crime ou no momento da execução. Se, por exemplo, alguém
estiver a arrombar a porta de um estabelecimento durante a noite para o assaltar ou se estiver
a mexer na caixa registadora.
Isto atribui duas características fundamentais: atualidade e visibilidade. Estas duas não são
requisitos, são ideias do flagrante delito. O flagrante delito em sentido próprio ou nuclear é
aquele em que as exigências de atualidade e visibilidade são mais intensas.
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➔ Quase flagrante delito
Depois, o nº1 segunda parte, faz referências às situações de quase flagrante delito. Nesse
caso, a pessoa é descoberta no momento imediatamente seguinte à prática do crime. Se, por
exemplo, A mata B, já está o crime consumado, e a pessoa é descoberta nesse momento.
No nº2 o legislador utiliza duas outras técnicas para considerar ainda flagrante delito. Por
um lado, a cláusula de perseguição e, por outro, a presunção legal de flagrante delito.
➔ Cláusula de perseguição
Prevista na primeira parte nº2, a cláusula de perseguição é aplicável aos casos em que
alguém perseguido por qualquer pessoa logo após à prática do crime. Esta é outra extensão do
flagrante delito.
Para que se possa considerar como flagrante delito, a perseguição tem mesmo de ser no
momento imediatamente a seguir à prática do crime, não pode ser meia hora depois. Isto
porque há uma exigência de conexão temporal agravada.
A ideia é que não se inclua aqui os casos em que há suspeitas públicas de que alguém
praticou um crime e é perseguido por isso. Não podem cair na cláusula de flagrante delito
situações de perseguição por clamor do povo que se presta a dúvidas ou manipulações seletivas
que acabam por redundar em perseguições injustas.
Importa então perceber como é que se mantém a ligação entre o momento da prática do
crime a perseguição. O professor Costa Pinto defende que só é possível manter a ligação entre
o crime e a perseguição se quem persegue o agente assistiu à prática do crime. Isto para que
se mantenha a característica da visibilidade.
Todavia, o professor defende uma interpretação atualista que prevê o desfasamento entre
quem vê e quem detém, tendo em conta os sistemas tecnológicos possíveis atualmente.
Esta possibilidade é discutível, mas o professor Costa Pinto entende que ainda está dentro
da ratio do flagrante delito. O que se tem de evitar é a tal ideia de suspeita genérica pelo clamor
do povo. Para ser um caso que caiba nesta cláusula de perseguição, a situação tem de ser tal
que não permita equívocos, tem de haver prova direta sobre a prática do facto. Se a
perseguição for interrompida, deixa de ser flagrante delito.
NOTA: sobre este tema da interrupção da perseguição, importa ver o exame do ano passado.
Finalmente, a segunda parte nº2 prevê a presunção de flagrante delito para os casos em
que o agente é encontrado na posse de objetos ou existam sinais que mostrem claramente
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que acabou de cometer um crime. É uma presunção porque através de uma coisa que se se
sabe, procura-se afirmar algo que não se sabe.
Se alguém subtraiu uma carteira, a posse desse objeto demonstra que praticou o crime. Se
alguém aparece com sangue na roupa, esse sinal permite uma inferência com alguma segurança
de que praticou um crime. Esta presunção não é tão exigente em termos de tempo, podem ter
passado 15 minutos por exemplo, que a presunção de flagrante delito é aplicável na mesma.
A mera posse ou existência de sinais gera a presunção de flagrante delito.
O nº3 exige, para os crimes permanentes ou duradouros, uma evidência de que o crime
ainda está a ser cometido. Não é uma cláusula autónoma de flagrante delito, mas mais uma
regra interpretativa. Fora destas situações não há situação de flagrante delito e, por isso, não
pode haver processo sumário.
Detenção legal
Esta exigência de detenção legal não está prevista assim na lei, nem é defendida pela maioria
da doutrina, mas o professor Costa Pinto defende-a. A detenção tem de se ser numa situação
de flagrante delito, mas também tem de ser uma detenção legal. Por isso é que podemos dizer
que a detenção tem de ser duplamente legal.
Primeiro, o crime tem de admitir a detenção em flagrante delito, porque há crimes que não
a admitem, concretamente os crimes particulares. Por não permitirem a detenção em flagrante
delito, não permitem o processo sumário, por razões de proporcionalidade.
Já se o crime for semipúblico, o legislador exige que a queixa seja apresentada pelo titular
do direito de queixa em momento imediato à detenção. Assim, nestes casos, o legislador encurta
significativamente o prazo para apresentação da queixa porque não faria sentido manter a
detenção não se podendo iniciar o procedimento. O legislador exige no artigo 265º nº3 uma
apresentação de queixa legítima no momento imediato à detenção. Isto tem a ver com o facto
e a detenção ser uma privação da liberdade da pessoa que não pode ser mantida se não se iniciar
o processo. Se um polícia detém um carteirista, pergunta à pessoa lesada se quer apresentar
queixa e essa pessoa responder que primeiro quer ligar ao seu advogado e depois vai ter à
esquadra, essa detenção não pode ser mantida por falta de queixa no momento imediato à
detenção. O que pode haver é lugar à identificação do infrator.
Finalmente, a partir de 2007, a detenção pode ser levada a cabo não só pelas autoridades
judiciais e policiais como pelos particulares, aspeto esclarecido no artigo 381º alínea b). Não
quer isto dizer que a detenção por particulares não era possível antes de 2007. Qualquer pessoa
podia deter outra em flagrante delito. Porém, como a lei continuava a exigir a detenção por
autoridades judiciais e policiais para efeitos de processo sumário, o que acontecia aos casos de
furto ou dano em estabelecimentos comerciais era terem de seguir o processo comum.
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Neste tema, destaca-se o artigo 1º que faz a distinção entre autoridades judiciais e
autoridades judiciárias que é muito importante. Importa olharmos para este artigo para
perceber que o que se exige é que o juiz faça um controlo da detenção e não outro órgão de
polícia.
Para a detenção feita por um particular ser viável tem de haver uma entrega do detido às
autoridades no prazo de 2 horas. Se falhar isto, não pode funcionar como pressuposto
processual de processo sumário. Assim, por exemplo se o particular deter e a polícia demorar 4
horas a chegar, esta detenção que não gera responsabilidade é ilegal e inviabiliza o processo
sumário.
Questão controvertida é a questão dos prazos para início da audiência. Não estamos a falar
do prazo para entrega ao MP, mas do momento em que o juiz abre a audiência de julgamento.
Estes prazos atualmente estão previstos nos artigos 382º nº5, 387º nº2, 396º nº1 alínea b). O
que resulta destas normas é que a audiência tem de se iniciar 20 dias depois da detenção.
É este o prazo para início da audiência, mas a grande questão é se esta exigência é ou não
um requisito do processo sumário. A história ilumina a razão do direito. Quando o processo
sumário foi criado em 1987 constava expressamente que o julgamento tinha de se iniciar em 48
horas, de modo que era evidente que este era requisito fundamental para o processo sumário,
tanto que foi o que motivou as tais reformas de 1998 sobre a questão do fim de semana. O
legislador foi criando regras dizendo que podia ser até ao limite de 10º dia, 15º dia ou até ao
20º dia consoante as alíneas do artigo 387º. Contudo, como o prazo para início de audiência foi
flexibilizado desapareceu do artigo 381º e passou a estar no artigo 387º.
Porém, o professor Costa Pinto defende que o prazo tem o mesmo valor estando no artigo
381º ou no artigo 387º porque está noutra norma que tem o mesmo valor. Na verdade, não há
nenhum prazo superior a 20 dias. Se tivermos uma situação em que o prazo foi ultrapassado, o
que o juiz tem de fazer é declarar-se incompetente e remeter, usando o mecanismo do artigo
390º porque já não é admissível aquela forma de processo, nos termos do artigo 119 f).
Assim, o professor Costa Pinto defende que exceder o prazo gera uma nulidade porque
entende que o flagrante delito não é uma situação mágica que fale por si só e que a razão pela
qual se permite um julgamento rápido é haver uma situação fática que permite uma prova direta
dos factos. A ideia é preservar uma certa frescura da prova, manter uma certa segurança da
prova que se vai perdendo com o decurso do tempo. Em suma, o processo sumário não é
adequado a situações de complexidade probatória e de dúvidas. Então, nesta linha de
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pensamento do professor o prazo é e continua a ser um requisito do processo sumário. Porém,
ter em atenção que esta opinião é doutrina minoritária.
Requisito negativo implícito: o crime não pode ser da competência material do tribunal
coletivo
Assim sendo, um infanticídio, que até tem uma pena baixa (até 5 anos), não pode ser julgado
em processo sumário, porque materialmente está na reserva da competência do tribunal
coletivo. O tribunal coletivo só faz processo comum, não faz processos especiais.
Em 2013, o legislador eliminou este requisito do processo sumário para que pudesse
abranger qualquer crime. Como o regime foi reposto, primeiro através da boa interpretação do
Tribunal Constitucional e depois pela reforma de 2016, este requisito voltou a ser necessário.
Pena legal?
É ou não exigida uma pena legal máxima para um caso ser tratado em processo sumário?
De acordo com a tradição, sim. Em 2007, o processo sumário tinha uma pena máxima de 3 anos.
Até 2012 subiu para 5 anos. Em 2013 foi eliminado o critério da pena que, como vimos, foi depois
reposto. Então, hoje, não pode ter uma pena superior a 5 anos, o que coincide com a
competência do tribunal singular, nos termos do artigo 381º nº1. Este é o critério comum.
Contudo, o legislador acrescentou o nº2 que prevê os casos em que a pena, em abstrato, é
superior a 5 anos, mas no caso concreto o MP estabelece que não será superior a 5 anos. Então
se, por exemplo, se tratar de um furto qualificado, punível até 8 anos, mas, olhando às
circunstâncias do caso concreto, o MP percebe que a pena concreta não será superior a 5 anos,
esse processo pode seguir a forma sumária. Trata-se de um exercício do MP de prognose de que
a gravidade do caso não ultrapassará a competência do tribunal singular que alarga os casos
de aplicação do processo sumário.
Em caso algum o tribunal singular pode ultrapassar os 5 anos e, se vir que o caso concreto
tem uma gravidade superior, pode declarar-se incompetente e remetê-lo para o tribunal
coletivo.
Em suma, as penas legais não são um requisito definitivo porque no processo sumário é
admissível a promoção do processo com base na gravidade concreta do facto, nos termos do
nº2 artigo 381º. Não quer dizer que as penas legais não sejam um requisito. O que se quer dizer
é que há crimes com penas legais superiores a 5 anos que podem ser julgados em processos
sumário, desde que o MP use o mecanismo de determinação concreta da competência. Assim,
a pena legal é um requisito, mas pode ser ultrapassado nestas situações.
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Autos de notícia?
Finalmente importa perceber se os autos de notícia são requisito legal do processo sumário.
O auto de notícia é o documento lavrado por uma autoridade policial ou judiciária que
documenta um crime que foi presenciado por quem lavra o auto, previsto no artigo 243º. Se a
entidade vir o arrombamento da porta de um carro e um assalto, pode e deve lavrar um auto
de notícia. Porém, este não é um requisito legal.
Todos estes fatores permitem um julgamento expedito relativamente próximo da data dos
factos, num tempo útil, que em regra se inicia a 20 dias de distância dos factos. Em regra, uma
sessão de julgamento basta para estes casos de pequena e média criminalidade.
O PROCESSO ABREVIADO
A forma sumária de processo acaba por ter uma certa prioridade face às outras. Isto porque
começa com uma detenção em flagrante delito anterior a qualquer aspeto processual. Havendo
uma detenção em flagrante delito, vai-se perceber se estão preenchidos os outros requisitos
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desta forma, caso contrário é remetido para algum dos outros processos especiais ou para o
processo comum.
Até 1998 não existia processo abreviado. Só podia ser sumário, sumaríssimo e se não fosse
possível nenhum destes, seguia-se para processo comum. Não havia nenhuma forma
intermédia. Para evitar esta situação em que crimes de pequena gravidade seguem a forma
mais solene, criou-se a forma de processo abreviado que é a mais flexível.
Isto é uma novidade porque até 2007 o processo abreviado, além de ter um inquérito e um
julgamento simplificados, tinha a possibilidade de haver entre um e outro um debate instrutório
que não era uma fase de instrução completa. Isto permitia um controlo judicial da decisão final
do inquérito mesmo antes da audiência de julgamento. Porém, o legislador de 2007 cortou esta
fase da instrução entre inquérito e julgamento. Todos estes processos transitam diretamente
para julgamento.
A sua existência estatística tem vindo a crescer sendo que, por exemplo, entre 2010 e 2011
foram registados cercar de 6 000. Isto é muito importante porque significa que o legislador tem
aqui uma forma expedita de justiça penal, que organiza perfeitamente as garantias de defesa,
mas sem a densidade estrutural da forma comum. Foi muito relevante eliminar o debate
instrutório em termos de celeridade.
Requisitos
Estabelece a primeira parte do nº1 artigo 391º A é possível aplicar o processo abreviado a
crimes com pena até 5 anos, o que corresponde à competência do tribunal singular.
Todavia, o nº2 prevê que também é possível aplicar o mecanismo de avaliação concreta da
pena para que sejam julgados em processo abreviado crimes puníveis com pena de prisão de
limite máximo superior a cinco anos, à semelhança do que vimos no processo sumário.
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Saber se há “provas simples e evidentes” depende do caso concreto, mas o legislador
resolveu fazer uma padronização de situações que podem corresponder a situações de provas
simples e evidentes. Assim, nas alíneas no nº3 encontramos:
• Alínea a) o agente foi detido em flagrante delito, mas não se aplica forma sumário;
• Alínea b) a prova é essencialmente documental e pode ser recolhida no prazo
previsto para a dedução de acusação;
• Alínea c) a prova assenta em testemunhos uniformes dos factos.
A prova simples e evidente pressupõe que não suscita particulares dúvidas, não vai gerar
um contraditório significativo, é aquela que é consistente e autoexplicativa, embora o
legislador não exija qualquer graduação quanto a essa evidência. Uma particularidade relativa à
alínea c) é o facto de se exigir implicitamente pelo menos duas testemunhas, o que não é muito
comum tendo em conta que a prova testemunhal não está condicionada pelo número. Não
obstante, o que temos de retirar daqui é que havendo várias testemunhas presenciais que
tenham uma versão uniforme faz com que o legislador considere que é uma prova simples e
evidente, o suficiente para que o processo seja promovido nesta forma.
O que é curioso é que esta cláusula, que criou estes três padrões, era exemplificativa em
1998, o que gerou muitos problemas. Passou a ser fechada desde 2003, o que significa que,
atualmente, entende-se que estes são os três únicos casos que admitem prova abreviado do
processo.
Há quem entenda que o legislador não pode fechar tanto os requisitos do processo
abreviado e que há outros casos de provas simples e evidentes. Porém, o professor Costa Pinto
concorda com a decisão do legislador porque preservou uma certa igualdade no caso concreto.
Isto porque se este conceito fosse exemplificativo isto queria dizer que os diversos tribunais
podiam ter soluções muitos diferentes entre si. Uns consideravam que uma testemunha muito
segura era suficiente e outros não, por exemplo, o que gerava uma grande discrepância quanto
à forma do processo. E por isso, estabelecer estas três situações em que pode haver processo
sumário com exclusão de outras foi a melhor solução, é a forma de garantir uma certa
previsibilidade e também igualdade na adoção de formas especiais de processo ao longo de
todo o país.
Esta foi uma decisão acertada também porque não faria sentido o legislador vir cominar
nulidade insanável para a adoção de uma forma especial de processo quando há falta de
requisitos e depois existirem requisitos variáveis. O professor Costa Pinto acrescenta que se
surgirem outras formas relevantes que não caibam nas alíneas, então deve fazer-se uma
reforma legislativa aumentando esta cláusula, mas reitera que não se justifica uma avaliação
casuística.
Finalmente, dá-nos uma outra razão. A partir de 2007, quando o legislador adota uma forma
abreviada não há instrução. Isto quer dizer que o MP ao promover esta forma abreviada de
processo, elimina a possibilidade de o arguido requerer instrução. Ora, um efeito tão
significativo como este deve ser contido aos casos que a lei expressamente prevê e é fulcral que
esta seja clara e concisa nesse sentido.
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Auto de notícia ou inquérito abreviado
Ainda do nº1 artigo 391º A retiramos que pode não haver inquérito. As formas de processo
que admitem a preterição do inquérito são relativamente excecionais, são a forma sumária e
forma abreviada. No caso do processo abreviado pode não haver lugar a inquérito por várias
razões.
O auto de notícia que regista os atos relevantes presenciados por uma entidade policial e
identifica os meios de prova tem um conteúdo muito semelhante àquele que é o final do
inquérito. Então, o auto de notícia dá início ao conjunto de materiais que documentam a prática
do crime e, por isso, o legislador permite substituir o inquérito pelo auto de notícia. Isto
significa que quando o MP recebe o auto de notícia ou ele próprio o lavra, pode usá-lo para
deduzir acusação para julgamento em processo abreviado.
Isto quando o auto de notícia é suficientemente claro e consistente quanto aos factos e
quanto às provas que refere. Se o auto de notícia for insuficiente, o MP abre inquérito e
investiga. A lei deixa esta avaliação à apreciação do MP que procurará saber se tem material
suficiente para deduzir acusação ou se precisa de fazer inquérito. Optando por abrir inquérito,
é possível um inquérito abreviado. Isto representa um grande fator de celeridade para o
andamento do processo. Já tínhamos visto que nos processo abreviados o auto de notícia pode
substituir a acusação, ao passo que aqui pode substituir o inquérito.
Notar que a escolha pelo uso do auto de notícia é um risco judicial que o MP assume porque,
nesse caso, não investiga. Ambas as soluções são fatores de uma grande celeridade.
Outro fator de celeridade da forma abreviada é o prazo para acusação. Segundo o artigo
391ºB nº2, o MP tem 90 dias para deduzir acusação a partir da notícia do crime ou da
apresentação da queixa.
Porque é que isto é assim? A lógica da lei é a de preservar a qualidade da prova que funciona
como requisito. Isto porque se esta prova consistir em declarações pessoais é fácil que haja uma
degradação de memória ou degradação da sua consistência. O professor Costa Pinto acredita
que esta é uma garantia legal de um dos requisitos de processo sumário: a ideia é que as provas
simples e evidentes continuem simples e evidentes.
Também aqui surge a discussão sobre se este prazo é ou não um requisito do processo
abreviado, à semelhança do que vimos sobre o processo sumário. Este requisito não surge no
artigo 391ºA, surge no artigo nº2 391ºB. Novamente se repete que o facto de constar duma
norma diferente não altera a natureza jurídica e imperatividade da norma. O legislador repartiu
o regime do processo abreviado por várias normas, o que é certo é que foi muito categórico
quanto a este prazo que está associado a um requisito probatório (provas simples e evidentes)
porque se pretende evitar alguma degradação subsequente.
Não faz sentido o legislador permitir que se ultrapasse esse prazo de 90 dias e isto agrava-
se pelo facto de duas das três situações de provas simples e evidentes serem pessoais. Assim,
o prazo de 90 dias parece essencial para se cumprir tanto a ratio como os próprios requisitos do
processo abreviado. Finalmente há outro argumento, este com valor empírico: se admitíssemos
uma acusação numa data posterior a 90 dias, ficaríamos sem saber o que acontecia ao prazo.
No limite deixaria de existir e o MP poderia deduzir acusação em qualquer momento. Além de
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prevenir a degradação da prova, este prazo também atua como agente uniformizador da adoção
desta forma de processo em todo o país.
Por tudo isto, o professor Costa Pinto conclui que existem boas e sérias razões para entender
que este prazo é perentório. Isto significa que passados 90 dias não pode ser adotada a forma
abreviada do processo, devendo o processo ser remetido para a forma comum. Se mesmo assim
o processo prosseguir na forma abreviada, temos um vício insanável nos termos do artigo 119º.
Além de todo o exposto, este prazo é também um fator de celeridade desta forma de processo.
Resta apenas atentar para o facto de que existia um outro requisito que foi eliminado. Além
do prazo para a acusação, havia um segundo prazo, um prazo para o julgamento também de 90
dias. Este último foi eliminado porque era casuístico, já que alguns processos exigem muito mais
tempo de outros.
Pode-se receber um processo de uma forma sumária que não vingou e promover o processo
na forma abreviada. Ou também pode resultar da forma sumaríssima se o arguido não
concordar com a pena não privativa da liberdade que lhe foi proposta.
A forma abreviada do processo depende de uma avaliação que o MP faz dos requisitos que
estivemos a analisar. Quando o MP adota a forma abreviada do processo está a fazer uma
opção processual que retira ao arguido o direito de requerer a abertura da instrução, havendo
uma limitação ao seu direito de defesa. O arguido vai a julgamento sem poder requerer que
um juiz de instrução avalie o caso antes de julgamento.
Até agora esta forma abreviada de processo não foi declarada inconstitucional e tendo em
conta as razões que motivaram a declaração de inconstitucionalidade da forma sumária
(gravidade do crime e da pena), neste momento o professor Costa Pinto acha que não é possível
que seja declarada inconstitucional por limitar os direitos de defesa.
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O PROCESSO SUMARÍSSIMO
O processo sumaríssimo vem previsto no artigo 392º e seguintes. Trata-se de uma forma e
processo completamente diferente, mesmo tendo como ponto de comparação as outras formas
especiais. Foi criado na reforma de 1987 e introduz mecanismos únicos, pelo que importa
estudar cada um deles com pormenor.
Caracterização estrutural
O segundo aspeto curioso é que se forma aqui uma relação triangular entre o MP, o juiz e
o arguido com vista a dar uma resposta simples e rápida ao caso concreto. O juiz profere uma
decisão condenatória com os factos e a sanção que foi aceite. Isto significa que não há instrução,
pode ou não haver inquérito e não há audiência de julgamento.
Esta forma de processo é muito importante para a modificação dos valores do processo
penal português: tem na sua base as ideias de oportunidade processual e consenso. Esta forma
visava promover uma solução do caso por consenso, conseguindo que o caso não tivesse a
litigância habitual de conflitualidade que está subjacente ao processo penal. Por outro lado, é
uma forma de o legislador se aproximar das ideias de oportunidade semelhante ao processo
anglo-americano, mas sem chegar às ideias de negociação da culpa. Este processo não é de
transação, não é de negociação da culpa, até porque a margem de manobra do MP surge na
escolha da forma de processo e na proposta sancionatória concreta.
O MP escolhe uma sanção concreta que é controlada pelo juiz, não negoceia a sanção com
o arguido ou com os seus advogados. O que o MP faz é ouvir o arguido para apurar a viabilidade
do processo na forma sumaríssima, mas não há negociação. Isto é particularmente importante
porque por vezes pensa-se que o nosso processo sumaríssimo corresponde à ideia anglo-
americana de plea barganing, mas isso não é verdade. Até porque o juiz pode modificar a
proposta apresentada pelo MP sem ouvir o arguido, e depois este aceita ou recusa, mas não
a negoceia. Assim, esta forma de processo é não contraditória porque não há troca de
argumentos sobre este tema.
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Outra diferença significativa é que na versão inicial existia uma pequena audiência de
julgamento em que o tribunal comunicava a decisão ao arguido que estava presente, mas este
requisito foi eliminado. Concluindo, é um processo célere que promove um consenso tácito do
arguido. É razoavelmente fictício falar num consenso expresso, porque basta que o arguido não
se oponha. Ainda assim esta forma de processo é muito importante e não deve ser
desvalorizada, visto que promove a relação triangular que já vimos e possibilita uma solução
expedita e que é do interesse de todos.
O aspeto mais importante para o professor Costa Pinto é a resolução do conflito através de
uma via não litigante. É no fundo, conseguir por fim à litigância processual, o que tem muito
valor para o sistema judicial e para o arguido também. Normalmente estes processos são
situações em que o arguido não tem grande interesse em contestar o caso. Ou porque os factos
são particularmente evidentes contra si ou porque a litigância processual lhe traz custos sociais
pessoais, profissionais e económicos que não lhe valem a pena assumir.
Requisitos
É claro que esta forma sumaríssima do processo só se aplica a casos de pequena e média
criminalidade, pelo que os requisitos expressam esta situação.
O processo sumaríssimo só se aplica a casos em que a pena legal não é superior os 5 anos,
nos termos do nº1 artigo 392º. Assim, a gravidade da pena legal tem de caber na competência
dos tribunais singulares.
Importa realçar que não é possível o critério da gravidade concreta da pena, o que foi uma
opção legislativa. Portanto, os crimes de forma isolada ou em concurso que sigam a forma
sumaríssima do processo não podem ultrapassar a pena legal de 5 anos e não há lugar à
avaliação do caso concreto pelo MP. É possível o concurso, desde que não se ultrapasse esse
limite.
Iniciativa: arguido ou MP
O professor Costa Pinto defende que a opção pelo processo sumaríssimo não é uma
decisão obrigatória, mas há autores como o professor Paulo Pinto de Albuquerque que
defendem que, uma vez cumpridos os requisitos do processo sumaríssimo, é imperativa a sua
aplicação. Está aqui em causa saber se o MP tem alguma margem de manobra nesta decisão.
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que tenha uma descrição de factos e enquadramento de direito para respeitar a estrutura
acusatória e para delimitar o caso num tipo legal, fazendo uma proposta de pena não privativa
da liberdade.
Interessa então saber o que é uma pena não privativa da liberdade. Tem-se entendido que
são penas não privativas da liberdade pessoal, como por exemplo a pena de multa ou a
admoestação. Também se tem entendido de forma pacífica que cabe aqui a cassação da carta
de condução e a própria proibição de condução, porque não é uma pena totalmente privativa
da liberdade, apenas parcial. O que não é consensual é a prestação de trabalho a favor da
comunidade. A doutrina tem seguido um entendimento negativo, mas o professor Costa Pinto
não vê problemas em dizer que cabe aqui já que depende sempre da aceitação pelo arguido.
Resta saber quando é que o Tribunal pode modificar a proposta sancionatória. No nº3 artigo
397º lemos que é nulo o despacho que aplique pena diferente da proposta ou fixada nos
termos do disposto no nº2 artigo 394º e no nº 2 artigo 395º. Esta norma foi incluída na reforma
de 2013 porque havia problemas quando o juiz queria modificar a pena quando proferia o
despacho condenatório. Isto só não violava a relação do MP, como era na verdade uma decisão
surpresa, além de criar grandes incertezas na jurisprudência.
Características especiais
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sancionatória que consta ou se tem apenas a possibilidade de se pronunciar, positiva ou
negativamente, sim ou não, quanto à admissibilidade da forma sumaríssima.
Há quem defenda uma leitura strictu sensu, no sentido em que o assistente apenas pode
dizer se concorda ou não com a aplicação da forma sumaríssima de processo. Porém, o professor
Costa Pinto tem outro entendimento por duas razões.
Em primeiro lugar, o professor aponta para o facto de o nº2 artigo 392º referir literalmente
o “requerimento”, mas o requerimento feito no número anterior. Ora, o nº1 não refere um
qualquer requerimento, mas um requerimento que inclui a proposta sancionatória.
A segunda razão tem que ver com a própria natureza dos crimes particulares. Havendo um
crime particular, a promoção do processo é marcada pela intervenção do assistente. Se se
entender pelo processo sumaríssimo, o processo deixa de estar nas mãos do assistente, para
estar nas do MP, do arguido e do juiz. Assim, por razões de hermenêutica e de respeito pelas
características dos crimes particulares, devemos entender que o assistente poder pronunciar-
se sobre o requerimento do MP inclui pronunciar-se sobre a proposta sancionatória.
Quanto às características deste processo, podemos constatar que há umas mais pacíficas e
outras mais discutíveis. Em primeiro lugar, é uma forma especial de processo facultativa. Esta
forma especial nasce para permitir que, de acordo com o caso concreto, o MP decida se se segue
ou não para o processo sumaríssimo. A lógica de legalidade e obrigatoriedade que existe na
promoção do processo penal é algo que faz sentido para a acusação, mas não para a apreciação
do caso concreto. Claramente, a ideia de adequação da forma de processo e da proposta de
medida sancionatória não privativa da liberdade são deixadas nas mãos do MP que classifica
se há ou não condições para existir um processo sumaríssimo. Pode inclusivamente existir
requerimento do arguido nesse sentido, mas o MP pode sempre optar pela não aplicação desta
forma sumaríssima do processo.
Questão que é controvertida aqui neste ponto é o problema de saber se porventura esta
limitação aqui prevista implica que a adoção do processo sumaríssimo limite ou elimine a
possibilidade de desistência. Se levarmos o nº1 artigo 393º à letra, não é possível a desistência.
Todavia, o professor Costa Pinto considera que essa interpretação é um pouco excessiva e
apresenta razões para que se faça outra interpretação.
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O professor Costa Pinto considera que esta interpretação é excessiva. A razão pela qual se
entende que o ofendido não pode desistir da queixa tem que ver com o facto de esta decisão
não admitir recurso, transita logo em julgado, não havendo espaço para desistir. Este aspeto o
professor considera correto. Agora, acha que quando o interprete conclui que essa norma
impede a desistência da queixa representada, está na verdade a colocar no artigo um regime
muito mais extenso e profundo do que o que está previsto. Repare-se que numa situação como
esta, o assistente tem ainda uma margem temporal até à decisão.
Ora, porque razão é que, tratando-se de um crime semipúblico ou particular, não pode o
assistente desistir? Essa seria uma limitação muito significativa, já que seria um retirar de grande
poder ao assistente pelo MP. Não se prever a intervenção de partes civis é uma norma do início
do código de processo penal enquanto que a matéria da queixa e da desistência está no código
penal. Assim, com a mera interpretação de um artigo do código do processo penal estar-se-ia
a limitar a aplicação de normas do código penal.
Finalmente, há que ter em conta que nos crimes particulares a lei ainda obriga a que o MP
obtenha a concordância do assistente, mas se se tratar de crime semipúblico não porque não
condiciona a tramitação do processo. Isto quer dizer que podemos ter um ofendido que se
constitui assistente por um crime semipúblico, mas que perde todo a possibilidade de intervir
ao ponto de não ter a possibilidade de desistir, mesmo que queira perdoar o arguido.
Acresce ainda um último elemento substantivo ligado à ratio do sistema penal e ao facto
desta forma especial de processo ser a última ratio.
Tudo ponderado, o professor Costa Pinto defende que o que resulta do regime legal não a
proibição de desistência, o que resulta é que esta está temporalmente limitada. Isto porque a
desistência normalmente é possível até à publicação da sentença, mas nos crimes semipúblicos
só é possível desistir da queixa apresentada até ao momento anterior ao do trânsito em
julgado da sentença.
Nota: aulas mais tarde foi pedido ao professor para recapitular o argumento da ratio do sistema
penal relacionado com a interpretação do artigo 393º quanto à possibilidade ou não de
desistência. Reproduzimos agora a resposta a essa questão por considerarmos que toda esta
interpretação do artigo 393º carecia de melhor explicação:
A maior parte da doutrina defende que o facto de não haver partes civis de acordo com o
artigo 393º significa que não há possibilidade de desistência o que significa que se o processo
segue a forma de processo sumaríssimo, o assistente não pode desistir, apesar de no artigo 113º
e seguintes CP se prever a queixa e a desistência. Há vários argumentos em sentido contrário a
esta corrente doutrinária.
Em primeiro lugar, há um argumento histórico. A norma que afasta as partes civis está
pensada para afastar questões civis, não sendo possível atribuir indemnizações de
responsabilidade civil. Não se admitia a parte civil, o que significava que o pedido cível tinha de
ser feito em separado. Então a origem histórica era para não se colocar questões de reparação
cível. Portanto a origem da norma é esta e não a de excluir a desistência.
O segundo aspeto relevante é que nada resulta do regime do processo sumaríssimo que se
pretende excluir a desistência. Inclusivamente a evolução histórica deste regime foi a de passar
a admitir a reparação do lesado em certas situações. Ou seja, foi criado um regime especial.
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O terceiro aspeto tem que ver com o regime substantivo da queixa e da desistência de
queixa que está enquadrado no código penal. Aqui é que entra o argumento da última ratio. O
sistema penal permite o recuo da acusação sancionatória. Há uma série de mecanismos que
permitem em certos casos e pressupostos que a ação penal recue ou seja inutilizada
supervenientemente. Portanto a figura da queixa e da desistência da queixa são manifestações
do princípio da intervenção mínima.
O último argumento é que fazer essa interpretação do artigo 393º é colocar na norma algo
que não está lá, é inutilizar um regime que é do código penal e é afastar o princípio de
intervenção mínima. Por tudo isto, o professor Costa Pinto defende a interpretação segundo a
qual há possibilidade de desistência de queixa, apenas está limitada temporalmente porque a
decisão transita em julgado imediatamente quando é adotada a forma sumaríssima. Se o
ofendido desistir da queixa entre o momento em que se iniciou a forma sumaríssima e o
momento em que é proferido o despacho sancionatório, então é possível.
O PROCESSO COMUM
• GMS
• Fascículos do Professor Costa Pinto
• Paulo Sousa Mendes
• Código anotado Paulo Pinto Albuquerque (mas não está atualizado)
Desde 1998 temos três formas especiais e uma forma comum de processo penal. O processo
comum pode caracterizar-se como uma forma subsidiária de processo porque só se aplica
quando não é possível aplicar uma forma especial de processo, acentuando-se assim a lógica
de prevalência das formas especiais postulada no código.
A forma de processo comum tem mais fases, uma tramitação mais extensa do poto de vista
jurídico-processual, mais complexa e mais demorada. Porém, o professor Costa Pinto entende
que a duração do caso depende mais da sua complexidade concreta e não tanto da forma
processual seguida, portanto não é linear. O professor enfatizou ainda a ideia de há processos
comuns que demoram apenas alguns meses e processos sumários que se arrastam no tempo. A
prova é sempre um elemento crucial em processo penal, sendo decisiva no que à celeridade
concerne.
momento
fase de fase de fase de fase de
preliminar do
inquérito instrução julgamento recurso
inquérito
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O momento preliminar do inquérito
Caracterização
O professor Costa pinto defende que este momento preliminar corresponde a um momento
em que existe efetivamente processo e por isso tem de ser considerado como fase processual.
Um exemplo claríssimo disso mesmo é a detenção em flagrante delito no processo sumário que
evidencia que esta é já uma fase de carácter processual.
É nesta fase que pode surgir uma denúncia (artigos 242º a 244º), uma queixa (artigo 113º
CP), um auto de notícia (artigo 243º), uma detenção (artigos 254º a 261º), aplicação de
medidas cautelares e de polícia (artigos 248º a 252ºA), constituição de arguido (artigo 58º) e
pode ainda haver obtenção de informações (artigo 250º nº8). Vejamos cada um.
A denúncia
Prevista entre os artigos 242º a 244º, a obtenção de uma denúncia obriga ao seu
tratamento administrativo antes da abertura de inquérito, não obstante ter natureza
processual. Isto porque é necessário cruzar informações e registar a denúncia, que
verdadeiramente não corresponde ao inquérito aberto, mas a uma certificação para apurar se
há ou não notícia do crime e de que crime se trata.
A queixa
A queixa vem prevista no artigo 113º CP. A apresentação de uma queixa, oral ou escrita,
começa numa fase não processual, e quando é conhecida passa a ser processual.
O auto de notícia
Podemos também ter a situação em que é lavrado um auto de notícia que, previsto no
artigo 243º, é um registo documental de um crime que foi presenciado, das suas circunstâncias
e de quem foram os agentes. É de tal forma importante que pode ser usado como acusação no
processo sumário, tal como vimos.
Detenção
A detenção, regulada entre os artigos 254º a 261º, é tratada como uma medida cautelar e
não como uma medida de coação, tem efeitos privativos da liberdade e tem efeitos processuais
muito relevantes, nomeadamente o facto de poder por em causa a legalidade do processo.
Nos termos dos artigos 248º a 252ºA, é possível a aplicação de medidas cautelares e de
polícia. Podem ser feitas revistas ou apreensões relevantes para obter informações. Em alguns
casos são atividades policiais de conservação de provas.
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Constituição de arguido
Ainda nesta fase preliminar pode haver constituição de arguido por diversas razões,
designadamente haver detenção em flagrante delito, ou surgir um auto de notícia que é
comunicado. A constituição de arguido vem prevista e regulada no artigo 58º.
Obtenção de informações
Pode haver uma obtenção e tratamento de informações que pode levar à constituição de
arguido a pedido. Isto quando a polícia obtém informações do próprio suspeito ou de outras
pessoas nos termos do artigo 250º nº8.
Apesar de existir aqui uma atividade muito relevante antes da abertura de inquérito, a nossa
lei quis rejeitar a possibilidade de a polícia ter legalmente inquéritos criminais autónomos a
correr sem conhecimento do MP por prazos superiores a 10 dias. O nosso legislador quis rejeitar
esta figura ao contrário do que acontece na Inglaterra, EUA, Nova Zelândia ou Austrália. Trata-
se no fundo de uma decisão de política criminal. Não obstante, chegou a ser aprovado em 1975
um diploma que admitia inquéritos policiais autónomos, mas o CPP de 1997 veio arrumar a
questão de uma vez por todas.
Assim, é o MP que dirige os inquéritos e vigora entre nós uma regra de inadmissibilidade
de inquéritos policiais autónomos. A investigação faz-se no inquérito, dirigida pelo MP, com a
coadjuvação dos órgãos de polícia criminal que podem receber delegação de competências no
âmbito de uma colaboração mais ou menos ativa, mas sempre sob a égide do MP.
O inquérito
Para analisarmos a fase do inquérito devemos articular os artigos 262º e seguintes com a
lei 49/2008, que é a Lei De Organização e Investigação Criminal (LOIC) que veio pormenorizar
e clarificar alguns regimes do CPP e veio inclusivamente reorganizar os órgãos de polícia criminal
para efeitos do inquérito criminal.
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Um aspeto muito importante é o princípio da legalidade de obrigatoriedade de abertura
de inquérito consagrada no nº2 que obriga à abertura do inquérito sempre que há notícia do
crime, isto é, sempre que há informação sobre factos criminalmente relevantes. Por outras
palavras, são factos que numa operação de subsunção indiciária podem ser provisoriamente
enquadrados num tipo legal de crime.
Vigora assim, no nosso sistema um princípio de legalidade estrita, o que significa que,
havendo notícia do crime, não existe margem autónoma de decisão para o MP não agir. O que
pode acontecer é existir constrangimentos processuais, caso seja um crime semipúblico ou
particular que tem as especificidades processuais próprias que vimos. Esta orientação
contrapõe-se a princípio da oportunidade, que comporta em si uma margem de apreciação na
abertura do inquérito por razões de conveniência. Isto foi integralmente rejeitado entre nós,
mas também é verdade que o legislador teve de assumir os custos da legalidade, sendo evidente
que é muito oneroso para as nossas entidades terem de abrir inquérito sempre que há notícia
do crime.
Outro princípio aqui patente é o princípio da igualdade perante a lei que começa logo a
cumprir-se na decisão de abrir ou não o processo. Ao estabelecer a obrigação de promoção do
processo, o legislador está a densificar um valor do Estado de Direito, dando assim resposta ao
princípio da igualdade.
Adiante-se que o legislador escolheu um princípio de legalidade estrita, mas temperado por
momentos de oportunidade. Então, temos um sistema de legalidade estrita no momento de
abertura da instrução, mas depois há alturas de decisão, que analisaremos mais adiante.
Para já, o que importa deixar bem assente é que o dever de promoção depende da notícia
do crime, nos termos do artigo 262º nº2. Como também já vimos, essa notícia do crime é a
informação, não provada, mas indiciária, de factos criminalmente relevantes que se pode obter
por denúncia, por queixa ou até por uma informação lida nos jornais. Pode ser acompanhada ou
não de prova, mas a notícia do crime é uma informação que permite identificar factos que são
eventualmente subsumíveis a um tipo incriminador.
Nos termos do nº1, é no inquérito que se investiga a existência do crime e se faz a recolha
de provas, pelo que estas são questões distintas da questão da obrigatoriedade de promoção
do inquérito. Isto significa que qualquer prova que seja anexada à notícia do crime conta no
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fundo como mera informação que pode auxiliar a investigação. O TC já se pronunciou sobre esta
temática, sobretudo no âmbito de ações de vigilância para obtenção de informações. Declarou
que estas apenas são permitidas dentro do inquérito, ou seja, quando já há notícia do crime.
O inquérito entre nós é uma fase da titularidade do MP que toma decisões quanto à sua
abertura e também quanto ao seu encerramento. Porém o MP não é a única entidade que
participa no inquérito. Estabelece o artigo 263º que a direção do inquérito cabe ao MP,
assistido pelos órgãos de polícia criminal (OPC).
Assim, o nosso modelo, que é confirmado pela LOIC (lei 49/2008), é um modelo em que a
titularidade da fase de instrução é do MP que dirige funcionalmente a investigação criminal,
mas essa investigação pode ser executada pelas entidades policiais. Importa deixar aqui bem
vincada a ideia de que o nosso legislador não atribui a titularidade do inquérito à polícia nem ao
JIC (juiz de instrução criminal), mas ao MP.
Essa direção funcional significa que entre o MP e os OPC há uma relação de supremacia
sem hierarquia. Ou seja, os OPC mantêm a sua hierarquia própria, mas veem a sua atuação
subordinada ao MP. Pode existir delegação de competências, mas o MP mantém a todo tempo
a possibilidade de exercer sobre o inquérito poderes que estão descritos no artigo 2º LOIC. O
MP pode, a todo o tempo, dirigir, determinar e avocar os próprios inquéritos que estão
delegados nos OPC
Contudo, esta direção funcional tem limites que são a autonomia técnica e tática dos OPC
que decidem o como e o quando das diligências. Se for preciso uma vigilância, por exemplo, os
meios técnicos e táticos dessa diligência vão ser definidos pelos OPC. Isto é um limite legal à
direção funcional do MP que pode dizer para se fazer uma certa diligência, mas não pode dizer
como exatamente é que ela será executada.
Isto quanto aos OPC e ao MP. Resta olharmos para o papel do juiz de instrução criminal. O
JIC tem as suas competências previstas nos artigos 268º e 269º, e, não obstante ter
competências específicas nesta fase, não é o seu titular. Apesar de o JIC ter de praticar, ordenar
ou autorizar certos atos fundamentais que são até por vezes condição de legalidade, não dirige
o inquérito. Estas normas têm um elenco bastante relevante deste tipo de atos fundamentais,
como a autorização de escutas ou a aplicação de medidas de coação. Este juiz de instrução
criminal não é o juiz de julgamento, mas tem uma intervenção garantística para preservar o
respeito pela legalidade e direitos fundamentais.
Esta foi a fórmula que o legislador encontrou para equilibrar as coisas, tendo em conta que
o artigo 32º CRP exige que toda a instrução é da competência de um juiz, neste caso o JIC, bem
como todos os atos que possam restringir de alguma forma direitos fundamentais. Esta é, assim,
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uma solução que salvaguarda o equilíbrio entre legalidade, pretensões de investigação criminal
e direitos fundamentais.
Alguns autores, nomeadamente da escola de Coimbra, entendem que esses prazos são
perentórios e que, uma vez decorridos, deve terminar o inquérito sob pena de invalidade
daquilo que for posteriormente processado.
Num entendimento diferente, diz-nos o professor Costa Pinto que, por razões de legalidade,
esses prazos são meramente ordenadores e o que pode acontecer com o decurso do prazo é
a intervenção de um superior hierárquico e um pedido de aceleração previsto nos artigo 108º
e seguintes. Vejamos então as razões de legalidade apontadas pelo professor.
Em primeiro lugar, foi esse o enquadramento histórico em que surgiu este regime de prazos
do artigo 276º. Quer isto dizer que os elementos históricos permitem dizer que legislador não
quis associar uma consequência ao decurso do prazo, caso contrário tê-lo-ia feito
expressamente, determinando o enceramento do inquérito. Portanto, de acordo com a origem
histórica e o regime criado, os prazos não são perentórios.
Porque é que o professor Costa Pinto considera correto que não o tenha feito? A
investigação é uma caixa de surpresas, não se sabe o que se vai encontrar nem a complexidade
do caso. Criar um regime de prazos perentórios seria de uma enorme violência perante a
realidade porque os casos são muito diferentes entre si. Assim, o legislador quis deixar o
controlo do prazo ao superior hierárquico do MP que determina qual é o prazo de continuação
da investigação. E, portanto, o legislador não acolheu, e bem, um regime de prazos perentórios.
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quebra-se o segredo interno, mas mantém-se o segredo externo, sendo que o inquérito
continua válido e em segredo de justiça externo.
Portanto, em termos de argumentação legal esta norma veio corroborar a ideia de que os
prazos são meramente orientadores já que emanam delas dois argumentos: quando o legislador
quis associar uma consequência específica ao decurso do prazo, declarou-o expressamente; o
legislador admite que mesmo nesses casos o processo continua e em segredo de justiça externo,
sendo assim não há nenhuma invalidade.
Por tudo isto, o professor Costa Pinto não acredita que sejam prazos que determinam a
invalidade do inquérito ou a inadmissibilidade das provas. Em suma, o inquérito efetivamente
tem prazos, mas não são perentórios. E mais do que isso, só o legislador é que podia fazer com
que fossem. Como não o disse, não o são. Neste momento, a jurisprudência maioritária diz-nos
que são prazos meramente ordenadores ou disciplinadores, não são perentórios. O professor
acredita que esta tendência se vai manter nestes termos apesar da modificação da composição
do tribunal constitucional porque há argumentos de legalidade muito fortes.
Quanto aos argumentos usados pela escola de Coimbra, estes são basicamente dois. Por um
lado, apresentam o argumento da legalidade isolada, que é a interpretação literal da norma que
contém os prazos e, por outro lado, fazem uma ponderação de direito fundamentais, sendo que
o inquérito só pode sacrificar direitos de forma proporcional e os prazos seriam o medidor dessa
proporcionalidade.
Isto quanto à leitura e interpretação do artigo 276º. Questão diferente é sobre se essa foi
ou não a melhor opção e se deve ou não ser mantida. Aqui já há divergências em termos
subjetivos. Todavia, o professor Costa Pinto defende que, tudo ponderado, olhando a todos
estes argumentos, o nosso legislador fez a melhor opção e esta continua bem.
Dentro deste tema do inquérito importa focar nas soluções de oportunidade processual que
marcam a tramitação do processo comum, tendo em conta o enquadramento: sistema marcado
pela legalidade processual. É um sistema de legalidade no sentido em que a tramitação se
desenrola nos termos da lei, (artigo 2º) e há uma promoção obrigatória (artigo 262º). Então
quando falamos em legalidade estamos a falar nestas duas vertentes.
Isto significa que, quanto a este segundo segmento, o nosso sistema afasta-se do sistema
anglo-americano onde vigora o princípio da oportunidade. Entre nós, se se verificarem os
pressupostos processuais, o MP tem o dever de promover o processo. É claro que isto tem
custos elevados, mas tem um grande valor de cumprimento de igualdade perante a lei por não
se entrar em questões de conveniência ou oportunidade perante a notícia do crime. Portanto,
deste ponto de vista, só os crimes semipúblicos e os crimes particulares é que implicam alguma
limitação ao dever de promoção do MP. Este sistema de legalidade estrita sobre a forma de
obrigatoriedade na promoção de processo tem sido criticado por expandir o sistema penal e por
implicar uma conceção algo ilusória sobre a própria legalidade porque é claro que o nosso
sistema não tem capacidade para tramitar todos os processos da mesma forma.
Uma possível solução seria a aplicação do princípio da oportunidade, mas não tem sido esta
a opção do nosso legislador. O nosso legislador optou por não fugir ao artigo 262º. Na opinião
do professor Costa Pinto, manter o princípio de legalidade no sentido de promoção do processo
é adequado. Contudo, o quadro legal não seria completo se não víssemos que, também desde
o início do processo, o legislador criou algumas soluções processuais de oportunidade mitigada,
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através de mecanismos que expressam alguma oportunidade, sem verdadeiramente excecionar
o dever de promoção.
Isto significa que quando o MP abre um inquérito e investiga um caso, não está perante uma
dicotomia entre acusar ou arquivar porque estas não são as únicas opções. Na verdade, o
legislador consagrou no nosso código aquilo a que podemos chamar de quatro soluções de
“oportunidade processual” ou “oportunidade vinculada” a cargo do MP e uma a cargo do
assistente nos crimes particulares. Estas soluções são:
Por outro lado, também é comum ver-se o processo sumaríssimo como uma manifestação
de oportunidade. Porém, é uma solução de oportunidade diferente das que veremos agora com
mais atenção. No caso do processo sumaríssimo o que está em causa é a oportunidade em
relação à escolha do processo que se vai seguir, é oportunidade quanto à forma de tramitar o
processo, mas vai existir na mesma uma decisão de imputação de responsabilidade e uma
imputação condenatória, que não acontece nas outras soluções de oportunidade.
Assim sendo, estes dois mecanismos são diferentes dos que vamos ver que correspondem
a ideias de oportunidade. São formas de tramitação alternativas àquele que seria o
desenvolvimento natural do inquérito (deduzir acusação). Em vez de o MP escolher entre acusar
e arquivar, a lei oferece três alternativas que estão nas mãos do MP enquanto titular do
inquérito, podendo ou não exigir a intervenção de outro sujeito processual. Vejamos.
➔ A mediação penal
A mediação penal tem uma lei própria, a Lei nº 21/2007, que basicamente corresponde ao
seguinte: se o crime tiver uma natureza particular ou semipública, isto é, se o procedimento
depender de queixa, o MP pode proceder ao reenvio do processo para mediação com
suspensão de processo penal até ser resolvido o processo de mediação que é, em regra, de
três meses.
A mediação penal permite obter um acordo fora do processo, mas articulado com o
processo com uma limitação de dupla natureza: aplica-se aos crimes particulares e
semipúblicos com exceção dos que são excluídos pela lei como os crimes de natureza sexual.
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Este acordo implica uma série de medidas concretas e é enviado ao MP que vai homologá-
lo como acordo de desistência do processo criminal. Contudo, dita o artigo 5º Lei nº 21/2007
que, se o acordo não for cumprido, é possível renovar a queixa no prazo de um mês. Findo um
mês, caduca o direito de renovação da queixa.
O acordo obtido nos termos legais impõe-se ao MP, que pode fazer um controlo da sua
legalidade, mas não o pode recusar caso seja regular. Importa realçar que para tal acontecer o
acordo tem de cumprir todos os requisitos do artigo 6º Lei nº21/2007. Lógico que, tratando-se
de uma mediação, o acordo também tem de ser aceite pelas partes.
Surgiu assim em 2007 uma solução alternativa para o tratamento da pequena e média
criminalidade que determina a suspensão do processo provisoriamente e resulta num acordo
que carece de homologação do MP que valerá como desistência. A homologação equivale a
desistência e, portanto, não há atribuição de responsabilidade criminal.
Estes casos ainda são pouco significativos, mas ao contrário dos juízes céticos, o professor
Costa Pinto acredita que é importante termos um regime de mediação penal intraprocessual,
que não é feita autonomamente fora do processo com valor meramente cível. Eventualmente,
se existir um acordo extraprocessual nos crimes particulares e semipúblicos, esse poderá ser
tratado como uma renúncia, mas é algo diferente.
O professor Costa Pinto acredita que a mediação penal pode apaziguar a conflitualidade
social, aproximar os sujeitos e tem espaço para crescer. Nota que, para já, faz sentido ser
restritiva, mas é possível que esta solução se vá estendendo progressivamente, já que esta é
uma experiência positiva. No fundo, é um processo de jurisdição voluntária, desformalizado,
mas articulado com o processo penal.
A figura da dispensa de pena é uma figura de recuo da pena, mas com responsabilidade
criminal. É uma alternativa à pena mínima e às penas alternativas, mas tem um campo de
aplicação limitado. Os casos mais significativos da legislação especial têm que ver com os crimes
tributários, mas o legislador entendeu que devia limitar a dispensa de pena nestes casos porque
estava a gerar efeitos perversos em relação a esta criminalidade em específico. Há uma grande
flutuação legislativa quanto à utilização desta figura.
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dispensa de pena, o MP pode promover o arquivamento no fim do inquérito
antecipadamente.
Com isto altera-se a natureza da decisão. Isto porque se for o juiz a atribuir dispensa de
pena, profere uma decisão condenatória, enquanto que se for o MP a promover o
arquivamento nestes termos, o juiz não profere uma decisão condenatória, mas uma decisão
de arquivamento.
Dá-se aqui uma hipótese ao MP de, perante baixa criminalidade, oferecer uma oportunidade
ao arguido de não ser sujeito ao processo e não ir a julgamento. É um mecanismo de diversão
processual com alguns efeitos substantivos, mas que não tem propriamente efeitos
condenatórios.
Finalmente, a suspensão provisória do processo, prevista nos artigos 281º e 282º, é muito
importante porque o seu campo de aplicação legal e concreta é muito maior do que as restantes
figuras que estivemos a ver. Corresponde a uma situação em que é paralisada a normal
tramitação do processo sujeitando o arguido temporariamente a um regime de prova e, se
este o cumprir, o processo é arquivado no final de período de suspensão. Durante o tempo em
que o processo está suspenso, o arguido tem de cumprir certas injunções, como o dever de
reparar o ofendido ou não frequentar certos lugares, por exemplo. Se não cumprir, o processo
é reiniciado.
Quanto ao âmbito desta solução de oportunidade, o artigo 281º estabelece que se aplica
aos crimes puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos. Enquadrando a pequena e
média criminalidade, a suspensão provisória do processo tem um campo de aplicação muito
vasto. O legislador pretendeu enquadrar as situações de criminalidade ocasional pouco graves
em que se consegue obter uma composição dos interesses violados. Isto pressupõe que o
arguido não cometeu anteriormente outro crime da mesma natureza do que aquele que está a
ser processado. Portanto, simplificando, é para criminalidade ocasional ou primária, de
pequena e média gravidade, com acordo de todos os sujeitos processuais (JIC, arguido e
assistente, se o houver).
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Estas soluções pressupõem um processo aberto, são intraprocessuais, o que significa que o
legislador não aceitou soluções de carácter extraprocessual. Mesmo a mediação resulta do
encaminhamento processual. Não é uma oportunidade no sentido anglo-americano, é sempre
vinculada aos pressupostos legais.
As soluções de oportunidade são temperadas pelo acordo dos sujeitos processuais, não são
decididas pelo MP sozinho, o que significa que são controláveis pelos restantes sujeitos
processuais e o MP não atua de forma isolada. No fundo, todas estas soluções de oportunidade
vinculada são regimes jurisdicionalizados, no âmbito do processo.
O segredo de justiça
• GMS vol. II
• Textos FCP sobre o segredo de Justiça publicado na revista CEJ 2008 (moodle)
• Anotações PPA ao CPP e CP
O regime do segredo de justiça é um regime de reserva jurídica sobre o conteúdo dos atos
processuais. Os atos processuais não são livremente acessíveis e normalmente isto está ligado
a proibições de divulgação. De uma forma simples implica duas limitações: proibição de
conhecimento fora de um certo círculo reservado e proibição de divulgação.
O segredo de justiça tem uma finalidade essencial que lhe está associada: proteger a
investigação criminal. Isto porque se porventura for possível aceder à investigação enquanto a
esta está em curso pode haver uma frustração dos atos de investigação por diversas vias, em
especial aqueles que beneficiam de serem secretos, como é o caso das escutas telefónicas. Se o
alvo da investigação souber de antemão que o seu telemóvel está sob escuta, esta não vai servir
para nada. De igual modo podem ser frustradas diligências importantes como buscas, inquirição
de testemunhas ou outras mais complexas. Praticamente todos os ordenamentos jurídicos
sublinham o facto de o segredo de justiça estar associado à investigação criminal e à sua
proteção, mas não é só isto que está em causa como veremos.
➔ Bases legais
As bases legais do regime do segredo de justiça são o artigo 20º nº3 CRP, artigos 86º e 89º
e artigo 371º CP. Vejamos a relevância de cada uma destas normas.
Desde a revisão constitucional dos anos 80 que o segredo de justiça surge no artigo 20º nº3
CRP, segundo o qual “a lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça”. Esta
norma não se refere especificamente ao processo penal, é uma exigência do legislador
constitucional que se crie um regime adequado a proteger o segredo de justiça. Do ponto de
vista constitucional, o segredo de justiça é uma garantia de direitos fundamentais.
Já no código de processo penal, temos uma regulação muito densa e pormenorizada entre
os artigos 86º e 89º que resulta da versão atual da revisão de 2007 corrigida em 2010.
Aprofundaremos este regime detalhado mais adiante.
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Por fim, consta do código penal um tipo incriminador que prevê a tipicidade e a pena
aplicável à violação do segredo de justiça no artigo 371º CP. Havendo segredo de justiça num
processo, seja ele criminal, disciplinar ou contraordenacional, a sua violação corresponde à
prática de um crime. Antecipamos que apenas se pune a violação dolosa e não a negligente.
O professor Costa Pinto afirma ser um defensor do segredo de justiça. Entende que se
justifica no âmbito do processo penal e concorda com a existência de uma incriminação para os
casos de violação do instituto. É importante dizer isto porque há quem defenda que esta figura
devia ser eliminada. Em parte, foi esta ideia “algo peregrina” que esteve por trás da reforma de
2007. Em sentido contrário, o professor entende que o segredo de justiça é fundamental para
a investigação, para o arguido e para proteger algumas pessoas ligadas ao processo. Em
nenhum Estado de Direito é possível fazer uma investigação à criminalidade organizada se não
houver segredo de justiça. O professor vai mais longe e afirma que não existiria uma verdadeira
investigação criminal se não existisse o segredo de justiça.
O segredo de justiça visa proteger a investigação criminal, isto é, visa proteger as condições
em que se vai averiguar quem praticou os factos e as respetivas provas. Só por isso o segredo
de justiça tem uma dimensão pública significativa. Normalmente a investigação começa com
alguns factos conhecidos e com várias hipóteses de investigação que vão sendo levantadas
consoante o material que os investigadores vão recolhendo. Isto é uma tarefa morosa que
implica tomar decisões sobre que tipo de provas e estratégias vão ser utilizadas, o que é uma
realidade muito complexa. Novamente o professor Costa Pinto reitera que não há processo
penal que viva sem regime de segredo de justiça que permita que a investigação decorra sem
os sobressaltos e as pressões dos diversos envolvidos.
Por isso, há que dizer que é uma figura de dimensão de direito público. Só se consegue
exercer a ação penal de forma consequente, se existirem condições para investigar e uma dessas
condições é o tempo e a serenidade para conduzir as investigações.
Numa segunda dimensão, que é reforçada pela inserção sistemática da figura do segredo de
justiça na CRP, é a garantia de direitos fundamentais. De que serve a CRP consagrar a presunção
de inocência se a pessoa for tratada como culpada? Se há fase processual em que o processo
tem de evoluir de forma consistente é a fase do inquérito. A presunção de inocência vigora
durante todo o processo e numa fase inicial tem a sua dimensão máxima, sendo que a pessoa é
tratada como inocente enquanto é investigada de forma legal, de modo a determinar se há base
para a prossecução do processo ou não.
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Depois há uma terceira dimensão ligada à primeira. Podem haver vários meios de prova,
incluindo pessoas, que podem ficar especialmente expostas se a investigação for pública logo
no início do processo. Até as condições de existência e qualidade de provas e testemunhas,
designadamente testemunhas peritos e eventuais informadores podem ser postas em causa.
Portanto, o regime de segredo de justiça é plurissignificativo, isto é, visa garantir um conjunto
considerável de interesses públicos e privados.
Desta perspetiva, compreendemos que é com alguma ligeireza que algumas pessoas
defendem que não devia existir segredo de justiça. O facto de haver violações é uma razão para
reforçar o cumprimento da lei e não uma razão para eliminar o instituto. Isto seria um erro
porque seria criar uma debilidade extraordinária para o processo e para as pessoas no processo.
Uma distinção importante é entre segredo de justiça interno e segredo de justiça externo. É
importante conhecer estes dois conceitos porque estão subjacentes à lei portuguesa.
Por sua vez, quando há segredo externo, pode conhecer-se o processo porque não há uma
proibição de acesso, mas há proibição de divulgação. Assim, havendo segredo externo, o
processo não pode ser divulgado para o exterior.
Do ponto de vista processual, o conteúdo do segredo de justiça está previsto no artigo 86º
nº8 e implica, designadamente, a proibição de conhecimento, proibição de assistência e a
proibição de divulgação.
Se, por exemplo, uma pessoa ouve coisas através de uma porta entreaberta sem querer,
conhecendo conteúdo que não devia conhecer, não está a incorrer em qualquer infração penal
no momento em que conhece as informações, estando, no entanto, a incorrer numa infração
processual. Neste caso ficará vinculada ao regime do segredo externo, ou seja, estará sujeita a
uma proibição de divulgar as informações que obteve naquele caso concreto.
Assim sendo, podemos dizer que a tutela penal é parcialmente autónoma da tutela
processual, é mais restrita. Por outro lado, a tutela penal depende do regime adjetivo, no
sentido em que, cessando o segredo de justiça, não se pode aplicar o tipo penal.
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Em suma, dois aspetos fundamentais sobre a tutela penal em relação à tutela processual:
• A tutela penal está dependente de vigorar para aquele ato processual em concreto
o segredo de justiça.
➔ A publicidade do processo
A lei define o que é a publicidade do processo no artigo 86º nº6. Segundo esta norma, a
publicidade do processo implica a possibilidade de o público em geral assistir a ao debate
instrutório e aos atos processuais na fase de julgamento, a possibilidade de narrar os atos
pelos meios de comunicação social e ainda a possibilidade de obter acesso ou cópia dos autos.
Em 1987, o código de processo penal acolheu um regime de segredo de justiça que era
imperativo, decorria da lei e vigorava para o inquérito e para a instrução. Só cessava com o fim
da instrução e com o envio do caso para julgamento. Isto era coerente do ponto de vista
axiológico, isto é, por um lado, vigorava nas fases preliminares em que o segredo é fundamental
para o desenvolvimento da investigação e, por outro, obedecia ao imperativo constitucional,
artigo 206º CRP, de publicidade da audiência de julgamento.
Vigorava sem prazos, sem grande possibilidade de controlo e o próprio regime limitava os
próprios titulares do processo em algumas coisas. Era um regime extenso e rígido: se fosse
necessário transferir elementos de um processo para o outro, obrigava a que se garantisse o
segredo de justiça; transferir elementos entre vários processos penais era permitido, mas de um
processo penal para um processo cível era praticamente impossível; prestar informações
públicas sobre um processo quase nunca era permitido, entre outros.
Ter acesso ao processo para a pessoa se poder defender, podia ser particularmente
complexo. Se, por exemplo, fosse aplicada uma medida de coação, a pessoa até tinha direito ao
recurso, mas não tinha acesso ao conteúdo que fundamentava a medida. Podia mesmo demorar
algum tempo e se o assistente quisesse saber o conteúdo da investigação não podia. O próprio
arguido não podia inclusivamente contrariar as notícias da comunicação social, visto que havia
muitas fugas de informação, mas este não podia depois ter acesso aos autos e acabava por sair
altamente prejudicado.
É verdade que se tratava de um regime congruente com a CRP, mas era demasiado rígido e
simplista. Havia ainda outra questão: desde o início do processo até à decisão instrutória, o
número de pessoas com acesso ao processo aumentava consideravelmente. Desta forma, as
fugas de informação eram potenciadas com o decorrer do processo porque a partir do momento
em que fossem ouvidas testemunhas ou notificadas acusações, por exemplo, estas pessoas
passavam a ter contacto com o processo e passavam a conhecer a sua existência. Isto piorava
no caso de haver instrução, o que frustrava completamente os fins do regime.
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Em 1998, o segredo de justiça mantém-se até ao final do inquérito, mas só se mantém na
instrução se for requerido pelo arguido. O professor Costa Pinto acredita que esta foi uma
solução inteligente porque mantinha o segredo numa fase em que ainda não se sabia se o
arguido seria sujeito a julgamento que visava proteger a dimensão social ou profissional do
mesmo. Esta foi a primeira quebra entre o segredo interno e o segredo externo porque ou
processo deixava de estar em segredo na fase de instrução, ou então continuava a existir
segredo, mas um segredo que se traduzia, na verdade, apenas em segredo externo porque os
intervenientes tinham acesso ao processo a partir da acusação. Assim sendo, a solução
legislativa de 1998 fez recuar o regime do segredo de justiça, mas foi sem dúvida uma melhoria.
Ainda assim continuavam a existir violações significativas quer na fase de inquérito quer
na fase de instrução e essas violações (divulgações ilegítimas de informação) correspondiam, na
verdade, a uma dinâmica muito significativa e a uma postura diferente da comunicação social
perante o processo penal. A comunicação social desde os anos 90 tinha percebido a importância
de antecipar notícias no seio de processos mediáticos e é nesse contexto que se dá um grande
debate na sociedade académica que envolve advogados, académicos e políticos. Isto também
foi reflexo de um aumento da intervenção penal.
Alguns diziam que o segredo de justiça era perverso porque não tinha nenhum controlo,
no sentido em que se o MP nada fizesse no processo também não se saberia porque não havia
acesso a esse mesmo processo. Criou-se a ideia de que o segredo de justiça tinha um lado de
encobrir a inércia dos órgãos competentes. Chegou mesmo a afirmar-se que o MP e os OPC
eram os únicos interessados na manutenção desse instituto porque conseguiam gerir as
investigações, perpetuando-as sem ter de prestar contas sobre o que faziam, ou não faziam, que
era o principal problema.
O governo entregou a reforma de processo penal a uma unidade de missão que analisou as
diversas opções e propôs um conjunto de soluções que depois foram ao parlamento e foram
significativamente alteradas pelo hemiciclo.
O professor Costa Pinto acredita que isto ignorava os diferentes valores em conflito e as
diversas formas de regular a matéria. Enfatizou ainda a ideia de que o legislador parlamentar
chegou a ir além do que a própria CRP que limitava a publicidade à audiência processual. Este
alargamento pelo parlamento era um absurdo. Era um absurdo porque aquilo que era
publicidade do processo estava no artigo 86º nº6 e isto foi aprovado sem intervenção de um
penalista e com a enunciação de que “o processo penal português mudou de paradigma”:
passou a ser um processo transparente.
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Ora, nas palavras do professor Costa Pinto, ninguém, em especial os Deputados, mas
também o MP e os OPC, tinha noção do que é que isto significava. Assim, qualquer pessoa podia
assistir ao inquérito. Quer isto dizer que qualquer pessoa podia entrar nas instalações do MP
ou da polícia judiciária e mais, tinha o direito de assistir a qualquer ato que estivesse a ser
praticado, inclusivamente a inquirição de testemunhas. Literalmente era isto que significava.
Segundo o professor, o legislador declarou, mas, no auge na sua ignorância, não mediu o que
tinha declarado.
Em 2010, de uma forma muito discreta, o legislador fez vários ajustamentos. Entre eles, o
nº5 artigo 276º e a alínea a) nº6 artigo 86º. No fundo, veio restringir aquilo que declarou
anteriormente. Veio corrigir aquilo que foi um erro nunca assumido de se ter criado um regime
completamente ignorante daquilo que era o processo penal. O processo penal precisa do
segredo de justiça para proteger a investigação e o próprio arguido.
Assim sendo, a primeira alteração do regime adotado em 2007 é que a sujeição do processo
a segredo de justiça deixa de ser obrigatória, passa a ser facultativa.
O legislador passou a tratar a matéria do segredo de justiça como uma matéria sujeita a
controlo jurisdicional, isto é, que justificava a intervenção do JIC. Além disso, o JIC passou a ter
também o poder de diminuir os diferendos que existam entre o levantamento do segredo e
sujeição a segredo, designadamente entre o arguido e o MP.
Concluímos desta forma que se passou de um extremo para o outro: antes não havia
qualquer controlo e em 2007 passou a haver controlo jurisdicional e temporal.
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o Balanço e críticas sobre o regime adotado em 2007
Resta-nos agora avaliar o regime de 2007. O professor Costa Pinto defende que algumas
soluções funcionaram bem, mais do que até se esperava e outras nem por isso.
O professor acredita que um aspeto que funcionou bem foi a conversão do regime de
segredo de justiça em facultativo. Isto acabou por se relevar útil por deixar de existir em todos
os casos, para passar a vigorar apenas quando é necessário. Assim, a sujeição do processo a
segredo de justiça passar a ser facultativa e permite uma melhor gestão dos recursos.
Depois há outros aspetos mais delicados ou que geraram problemas que estão
documentados na jurisprudência. O primeiro é que o legislador adotou várias soluções
diferentes para o controlo do segredo de justiça. O legislador podia apenas ter motivado a
intervenção do JIC ou criado um regime de prazos, mas usou tudo ao mesmo tempo. Bastava,
designadamente para preservar os direitos fundamentais, fazer funcionar o JIC quando alguém
sentisse os seus direitos afetados.
A própria intervenção do JIC é algo peculiar porque o inquérito não é da sua titularidade
nem da sua condução, mas quando se fala na a sujeição a segredo é ele, enquanto corpo
estranho ao processo, que decide. O JIC é um corpo estranho ao inquérito, não tem sequer
informação concreta sobre o inquérito ou sobre a sua estratégia. Assim sendo, não é difícil
compreender que a única coisa que o JIC consegue controlar com alguma segurança é se o
pedido tem ou não alguma fundamentação, mas quanto ao conteúdo ou bondade dessa
fundamentação já não tem como avaliar e a prática judiciária tem demonstrado isso mesmo.
Se tiver fundamentação, o JIC não tem capacidade critica, portanto só avalia se tem
fundamentação ou não, no sentido em que está lá ou não.
O professor Costa Pinto acredita que se justificava perfeitamente uma intervenção do JIC
em todos os casos que mexam com direitos fundamentais, mas fazê-lo intervir assim desta
forma em todas as situações é algo estranho, exagerado, e algo que os próprios magistrados não
queriam e criticavam.
Crítica diferente que o professor faz é que é um erro considerar que todo o processo é
público quando o processo penal tem uma natureza mista: tem uma fase de inquérito escrita
secreta e depois uma fase púbica de julgamento. O processo tem uma estrutura e natureza
mistas em que as fases preliminares se destinam a preparar o caso e depois é o julgamento.
Outro problema foi a criação de um regime de prazos para quebra do segredo interno sem
adesão à realidade. Os prazos do artigo 276º criaram-se para disciplinar o MP, sendo em regra
de 6 meses. Decorrido o prazo, quebra-se o segredo (artigo 89º nº6), o que é absurdo. Se a
investigação está a demorar mais, provavelmente é porque a complexidade do caso assim o
determina. E, portanto, a solução que foi criada não respeita a complexidade e a diversidade
dos diversos casos, antes cria um tratamento igual e indiferente.
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parcial, o segredo de justiça. Isto porque o material recolhido durante a investigação vai ser
utilizado para fundamentar a medida e o arguido tem de conhecer a fundamentação para
exercer o seu direito de defesa de forma cabal. Neste sentido, vemos que o legislador criou aqui
uma solução que permite a transmissão da informação sem provocar a aniquilação total do
segredo de justiça. Poderia ter sido encontrada uma solução semelhante a esta, em vez de se
optar pelo fim do segredo quando decorrido o prazo. Podia o JIC, por exemplo, decidir que certas
informações permaneceriam sempre em segredo e que o decorrer do prazo apenas afetaria uma
parte da investigação.
Uma última crítica é a dependência dos intervenientes. Este regime converteu uma
questão que em parte é de direito público (a proteção da investigação criminal), num problema
de partes. Da forma como está configurado o regime, o segredo de justiça depende dos sujeitos
processuais, que têm de o requerer, e depois as divergências são resolvidas pelo JIC. Na opinião
do professor Costa Pinto, foi criado um momento de contraditório numa fase que não é nem
tem de ser contraditória, tendo em conta os interesses que aqui são ponderados (interesses
maioritariamente públicos). O MP devia ter autonomia para dirimir estas questões e o que
deveria acontecer era o legislador decretar o segredo de justiça para o inquérito, com a
possibilidade de este ser levantado a todo o tempo, ou então deixar como está, mas que a
promoção do segredo dependesse do MP. Acresce que esta questão de ser necessário um
requerimento pode implicar uma morosidade muito superior dos processos.
Por estas razões, é um regime estranho com estas duas grandes problemáticas:
Nesse acórdão, o Tribunal Constitucional decidiu que a solução do nº6 artigo 89º implicava
uma violação do artigo 20º nº3 CRP porque a lei não ponderava uma solução adequada, tendo
em conta que desprotegia o processo. Este entendimento significava que a lei não estava a
garantir os valores subjacentes ao segredo de justiça. Isso foi fundamental para o legislador
perceber que havia aqui um problema grave que depois mereceu as correções de 2010.
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➔ O sistema de prazos e a sua prorrogação: a solução do Ac. STJ nº 5/2010 (int. do 89º
nº6 CPP)
Entretanto, surgiu um caso no STJ em que foi posta em causa a interpretação do artigo 89.º
nº6. Essencialmente, este artigo parecia motivar dois entendimentos distintos, sendo a questão
colocada ao Supremo para que este determinasse qual era a interpretação correta face à letra
da lei.
Dispõe o artigo 89º nº6 o seguinte: “Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o
assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em
segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público,
que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser
prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas
i) a m) do artigo 1.º, e por um prazo objetivamente indispensável à conclusão da investigação.”
Temos, pois, quebra do segredo interno, salvo se o JIC determinar, a requerimento do MP,
que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de 6 meses. Era claro que os prazos
do artigo 276º quebravam automaticamente o segredo interno, a não ser que o MP
apresentasse requerimento para que ele continuasse por mais 3 meses, o qual pode ser
prorrogado por uma só vez quando estiver em causa a criminalidade que se referem as alíneas
i) a m) e por um prazo objetivamente indispensável à conclusão da investigação.
Ou seja, quando fosse criminalidade organizada podia haver mais uma prorrogação para
além da primeira de 3 meses que se estabelecia ali. Em suma, o decurso do prazo quebrava o
segredo de justiça, podendo nestes termos haver uma prorrogação, a requerimento do MP, por
3 meses e nos casos de criminalidade organizada podia haver uma prorrogação desse prazo. O
problema que se colocava era o de saber qual o prazo da segunda prorrogação.
Portanto, temos uma primeira prorrogação e depois, em certos casos, pode haver uma
segunda prorrogação pelo tempo objetivamente essencial à investigação. Essa segunda
prorrogação é por quanto tempo? É por mais 3 meses ou é pelo tempo objetivamente
indispensável à conclusão das investigações? Foi esta a pergunta que chegou ao STJ.
Literalmente, a fixação de prazos e a forma como o nº 6 está redigido dá a entender que há
uma primeira prorrogação excecional de 3 meses, e a lei refere-se a esta a dizer que pode o
prazo ser prorrogado uma segunda vez por tempo objetivamente indispensável à concretização
da investigação. Uma interpretação possível é que uma segunda prorrogação tem um limite
máximo de 3 meses, mas o Supremo teve outro entendimento: na criminalidade organizada
não há prazo para a segunda prorrogação. Então, o STJ veio fixar uma interpretação de acordo
com a qual a primeira prorrogação tem um prazo de 3 meses, mas, se estiver em causa
criminalidade organizada, a segunda prorrogação é, como se diz na parte final, por um prazo
razoável objetivamente indispensável à conclusão da investigação - leia-se, até 3 meses ou
superior a 3 meses. Ou seja, o supremo entendeu que podia ser um prazo com duração superior
a 3 meses nestas circunstâncias específicas.
É claro que a lei não vai neste sentido, ou seja, fazendo uma interpretação literal, a segunda
prorrogação devia ser de mais 3 meses, no máximo. Que fez o Supremo? Escreveu direito por
linhas tortas. Na verdade, criou direito, porque não é essa a solução legal. Desta forma, o STJ
veio através deste acórdão, também de forma controvertida, tentar mitigar os problemas
criados com a reforma de 2007 (e depois 2010), o que significa que o resultado foi curioso: na
criminalidade organizada, terminado o segredo de justiça, pode ser criado um prazo
objetivamente indispensável à conclusão da investigação, permitindo, no fundo, não haver
prazo, havendo, então prorrogação excecional de uma prorrogação já ela excecional.
Para o professor Costa Pinto, não era isto que se retirava da lei e foi uma forma de o STJ se
antecipar ao legislador, numa tentativa de mitigar os problemas criados pela reforma de 2007.
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É por isso que depois não há mais casos de declaração de inconstitucionalidade; na verdade, o
MP passou a ter possibilidade de determinar que o prazo é X, Y ou Z consoante a necessidade
concreta da investigação.
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incriminador não depende disso. Reafirma-se a natureza comum do crime. Portanto, verdade
seja dita, o legislador de 2007 clarificou e, concorde-se ou não, veio incluir claramente o
jornalista na esfera do crime de violação do segredo de justiça.
o Facto histórico e segredo processual
Não será esta uma violação da liberdade de imprensa? O professor Costa Pinto entende que
não. No fundo, a imprensa não pode revelar o teor/conteúdo de um ato processual sujeito a
segredo de justiça. Isto significa que a imprensa não pode usar o processo penal como fonte de
informações se o mesmo estiver em segredo de justiça. Mas pode fazer a sua investigação
jornalística autónoma. Assim, o jornalista está limitado pelo regime de segredo quanto à matéria
que está a ser tratada no processo, mas não está limitado se fizer a sua investigação à margem
do processo. Pode investigar o facto histórico, pois ele não está sujeito a segredo de justiça (o
que está é o conteúdo do processo).
Imagine-se que aconteceu um homicídio. O MP abre inquérito e sujeita o processo a segredo
de justiça. A imprensa não está impedida de investigar o homicídio, pode fazê-lo e usar as suas
fontes para tal desde que estas não sejam processuais. Pode construir a sua versão dos factos,
descobrir a verdade e revelá-la. Nada disto é crime. O que não pode fazer é usar o processo
como fonte de informação. Não pode pedir a informação a um advogado, por exemplo. Pode
pedi-la ao MP, mas não pode usar a informação revelada, até porque, em princípio, não pode
ser revelada informação sujeita a segredo. Assim, o que funciona como limitação à liberdade de
imprensa, no fundo, é a relevância criminal do facto. Proíbe-se apenas que se utilizem os
processos como fonte de informação.
Desta forma, o regime do segredo de justiça do artigo 371º CP, mesmo aplicado aos
jornalistas nestes moldes, nunca colide com a liberdade de imprensa. Fundamentalmente
porque abrange o regime processual e não o facto histórico e não o facto histórico, em primeiro
lugar, e depois porque a própria liberdade de imprensa tem limites constitucionais previstos
pelo artigo 37º CRP. Neste preceito pode ler-se que os factos que violam o regime penal vigente
são considerados pela constituição como um limite constitucional à liberdade de imprensa.
Aliás, já assistimos a vários casos em que isso se passou de forma correta. Por exemplo,
quando morreram os estudantes na Costa da Caparica numa cerimónia académica (Meco), o MP
não abriu logo inquérito; decorreu um período de umas semanas. Se não abriu, a imprensa podia
livremente falar com quem entendesse, e assim fez. Foi ao local, fez reconstituições, ouviu
pessoas e fez ainda outras diligências investigatórias. Devemos, por isso, concluir que liberdade
de imprensa estava a ser exercida de forma correta porque ainda não havia processo, não
havendo.
Por fim, mesmo que já tivesse sido aberto o inquérito, a imprensa podia continuar a falar
com as pessoas para recolher informações, apenas não podia revelar informações do processo.
Assim, ocorreu algo curioso: a imprensa descobriu que uma vizinha tinha presenciado quase
toda a atividade exercida. Essa pessoa nunca tinha sido ouvida, não tinha prestado declarações
perante o MP. Isto foi perfeitamente legitimo, ao contrário do que algumas pessoas disseram
na altura. A pessoa não era testemunha, não tinha sido chamada ao processo. Neste caso, a
imprensa podia perfeitamente ouvir a pessoa e relatar os conteúdos retirados do seu
depoimento. Era legítimo, por uma razão muito elementar: a pessoa não tinha qualquer estatuto
processual, e o que estava a relatar era o facto histórico. Não havia uma mediação do segredo
processual sobre o facto histórico na forma como a pessoa o tinha tratado. Portanto, a liberdade
de imprensa não é posta em causa pelo regime de segredo de justiça.
Se a pessoa passar a ser testemunha deixa de poder prestar declarações? Há quem entenda
que, depois de a testemunha ser constituída como tal no processo, deixa de poder dar
entrevistas. Para o professor Costa Pinto, o estatuto de testemunha não implica esse aspeto,
nem estão os jornalistas impedidos de questionar testemunhas. O que acontece é que essa
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pessoa cria uma situação fáctica de risco, podendo estar a revelar informação do processo. Aí,
quer um quer outro estão na esfera do artigo 371º CP. Por isso, não existe uma proibição de
entrevistar testemunhas, mas o professor considera que é um grande risco para a testemunha
ir falar porque poderá acabar por criar uma situação de violação do regime do segredo de justiça
e ser penalizada por isso.
O professor Costa Pinto considera que este regime é preferível ao que vigora em Inglaterra,
em que o juiz pode decretar um embargo noticioso durante um certo período de tempo, no qual
não pode haver divulgação de qualquer notícia relacionada com o caso concreto. Entre nós, isso
poderia, no limite, ser considerado inconstitucional por atentar contra a liberdade de imprensa.
Em Portugal, exige-se simplesmente que a investigação seja jornalística e não vá depender
do processo para obtenção de informação relevante. Aliás, esta última situação não é jornalismo
e é um mau exercício de uma atividade profissional (não há propriamente uma investigação
jornalística) e coloca em causa o próprio percurso do processo e a estratégia processual adotada.
Se empreendermos esta separação, ficamos com um campo de atuação dos jornalistas que
corresponde à sua liberdade de investigação dos factos, interrogação das fontes e possibilidade
de descoberta de conteúdo. E podem os jornalistas fazê-lo de forma livre, desde que não usem
o processo.
Veio, porém, a ser acrescentado em 2007 um outro aspeto mais relevante: a proibição de
reprodução de escutas telefónicas. As escutas telefónicas são um manancial de informação
relevante para os jornalistas, mas a constituição só admite a sua utilização dentro do processo.
Quando o conteúdo se reveste de uma particular perigosidade e penetra na vida íntima das
pessoas, conseguimos entender perfeitamente esta opção do legislador. Contudo, o que fazem
os jornalistas às vezes? Como esta é uma fonte muito interessante, constroem peças com base
nas escutas e na sua reprodução (na televisão, rádio, etc.). Ora, isto corresponde a um crime. A
reprodução das escutas está prevista como crime e em 2007 foi acrescentada a reprodução de
conteúdos também.
No entender do professor, este é um dos pontos, a par do regime do segredo de justiça, que
serão absolutamente vitais para definir os limites da liberdade de imprensa em Portugal e a
razoabilidade da intervenção do poder público. Na maior parte dos casos, acaba por não se
aplicar o regime do artigo 88º nº4, porque esse material está sujeito a segredo de justiça, e
estando nessa situação é aplicável o artigo 371º CP. A reprodução de inquéritos ou do conteúdo
de escutas telefónicos, quando o processo está sujeito a segredo, tem esta consequência. E há
ainda um concurso aparente, em relação de subsidiariedade. Como é que o n.º 4 tem
autonomia? Quando não há segredo de justiça, o regime é o do consentimento das pessoas
visadas.
Porque é que este caso se tornou tão grande? Nalguns processos que têm manifesto
interesse público, designadamente de corrupção, a lei permite que qualquer pessoa se constitua
assistente. Alguns órgãos de comunicação social constituíram-se assistentes no processo (artigo
68º), pelo que obtiveram material informativo precoce, e depois utilizavam esse material nas
suas publicações para divulgar informações do processo em reportagens televisivas. Isto
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corresponde a uma adulteração completa da figura do assistente, da própria liberdade de
imprensa e do regime do artigo 88º. Nesta parte, o CPP trata da desobediência.
Está em causa uma questão fulcral, e, em certo sentido, documenta o que foi anteriormente
afirmado: a imprensa não pode usar o processo como fonte de informação quando aquele está
sujeito a segredo de justiça. É um instituto valioso para a investigação criminal, para proteger o
arguido e certas pessoas com intervenção no processo. Não pode, pois, reger-se pelos interesses
comerciais da imprensa na divulgação dos factos para obtenção de quotas de mercado. Porque,
na realidade, é isso que está em causa, e não a liberdade de imprensa. Essa liberdade devia gerar
alguma paciência e permitir fazer com que os jornalistas fossem investigar factos históricos.
Acontece é que é mais fácil obter alguma informação, seja por razões económicas ou não, junto
de alguém que está junto do processo em vez de se fazer investigação histórica.
Nos casos em que pessoas ligadas à comunicação social se constituem assistentes no
processo para conseguir antecipadamente obter e tratar a informação em termos jornalísticos
é uma adulteração completa do regime do CPP. O que surpreende o professor Costa Pinto é não
ter visto a reação jurídica que se impunha com a violação do artigo 88º nº3. Há divulgação de
escutas telefónicas, e, por outro lado, há divulgação de atos processuais separados, como os
interrogatórios. É absolutamente inadmissível, e surge até um poder da imprensa de
conformação das informações em função dos segmentos que decidem passar para nas peças
jornalísticas. Não há 4 horas de interrogatório que passam nos media, e sim segmentos em que
as pessoas falam, no máximo, 3 minutos. Portanto, também por essa razão está a sugar-se
informação do processo que se converte em informação a ser tratada pelos jornalistas, com
critérios de seleção exclusivamente seus. E isto em função de quê? Do suposto interesse público,
mas que está associado também à obtenção de quotas de mercado. Uma coisa é indissociável
da outra.
A comunicação social tem, é verdade, razões muito sérias para se preocupar com a liberdade
de imprensa, designadamente pelo peso que o mercado tem junto dos jornalistas. Todavia, no
que diz respeito ao segredo de justiça, não há efetivamente um problema: o jornalista pode
investigar o caso, obter informação e divulgá-la. Por isso, no entender do professor Costa Pinto,
e para usar uma expressão de Ronald Dworkin, neste caso “a lei não pode ser levada a sério”. A
liberdade de imprensa é absolutamente fundamental para o Estado de Direito, mas a legalidade
do processo e da justiça penal também.
Esta não pode ser convertida num produto mercantilizado ao serviço das questões de
estratégia da comunicação social ou dos interesses económicos nem deste grupo, nem de
setores políticos ligados a estes grupos. O professor já assistiu a pessoas completamente
arrasadas por notícias saídas dos processos e seletivamente divulgadas nos anos 90, e não gosta
de viver num Estado de Direito em que a imprensa serve para isto. É algo que não pode ser. A
liberdade de imprensa, se se quer que seja dignificada, tem de surgir em relação à verdade
histórica. Constituindo-se o jornalista assistente, o processo pode ficar livremente
acompanhável e obterem-se certidões; e a imprensa tem uma legitimidade para aceder ao
processo ao abrigo da lei da imprensa, desde que não esteja em segredo de justiça, isto é, uma
pessoa pode chegar ao processo, invocar a qualidade de jornalista e obter a certidão desse
conteúdo de elementos do processo. Isto é um direito que qualquer jornalista tem, e os
advogados também. Ora, têm meios para inclusivamente, esperando pelo momento em que já
não há segredo, aceder ao processo e trabalhar o material para ajudar a descobrir a verdade
histórica.
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Fora disso, estamos a banalizar a liberdade imprensa e a converter o processo penal, por via
de certas estratégias, em meios de arremesso para a destruição de pessoas. O Estado de Direito
e os direitos fundamentais merecem mais do que isso.
O encerramento do inquérito: arquivamento ou acusação
Como vimos, o inquérito é a fase essencial de investigação que se destina a apurar os factos
criminalmente relevantes e permite a incriminação a título indiciário. Se não tiver uma das
formas típicas que vimos que estão à disposição do MP, como a mediação ou a suspensão
provisória do processo, e se não estivermos perante um crime particular, o inquérito termina
com um arquivamento ou com uma acusação.
Essa decisão é notificada aos interessados e tem força quase equivalente ao caso julgado.
O arquivamento nestes termos é um ato administrativo, não é jurisdicional, pelo que não cabe
falar em relação a ele em força de caso julgado, mas podemos estabelecer um ponto de
comparação entre os dois regimes, tendo em conta o seu efeito preclusivo. Contudo, o
legislador permite uma reabertura muito condicionada do inquérito arquivado, o que permite
concluir que o arquivamento do inquérito é em regra definitivo, mas não o será nos casos do
artigo 279º. Isto é: o inquérito apenas pode ser reaberto nos casos em que surjam novos
elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo MP no despacho de
arquivamento. Ter em atenção que não se trata aqui de uma reapreciação da prova já existente,
mas antes provas novas.
O MP não pode propor negociações, não pode negociar a culpa do arguido, não pode
negociar a acusação. A única margem que tem é na apreciação da prova que tem um regime
pormenorizado no artigo 283º. O nº1 estabelece que o MP tem o dever de deduzir acusação se
durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes. A única margem é a própria
interpretação dos elementos de prova de que dispõe, contudo isto não corresponde ao
princípio da oportunidade, mas é antes uma margem de interpretação e análise do material
recolhido. Importa perceber então como é que se densifica essa conceito.
Esta definição exige vários elementos. Primeiro, exige indícios, ou seja, elementos de
carácter probatório que permitam inferir a responsabilidade. Depois, tem de ser possível
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identificar o arguido a quem se imputa o crime. Há ainda um terceiro elemento, os indícios têm
de ser suficientes por si só. Quer isto dizer que o MP tem de avaliar a eventual a possibilidade
de responsabilizar o arguido com base naqueles elementos e não com base em elementos que
possam vir a ser produzidos no futuro.
Por um lado, o que a teoria da probabilidade dominante, assente no nº2 artigo 283º, exige
um juízo de prognose em que, com base naqueles elementos, a probabilidade de condenação
é superior à probabilidade de absolvição.
Por outro lado, a professora Fernanda Palma considera que que esse entendimento não está
correto e que o nº2 artigo 283º tem de ser conjugado com a presunção de inocência. Nesta
perspetiva, o MP só terá o dever de acusar se a probabilidade de condenar for muito superior
à probabilidade de absolvição.
A primeira razão é um argumento histórico. A ideia de que a acusação devia ser promovida
por mais do que indícios suficientes, era uma ideia dos anos 60 promovida pelo professor
Castanheira Neves. Contudo esta perspetiva que existia na doutrina, não veio a ser acolhida na
legislação. O legislador conhecia a doutrina, mas consagrou, para não existirem dúvidas, uma
perspetiva diferente daquela que era defendida pelo professor Castanheira Neves. E mais do
que isto, tanto exigiu os indícios suficientes com os definiu. Então, do ponto de vista da evolução
histórica, temos que o legislador, conhecendo esta doutrina, optou por não a seguir. E mais do
que isto. O legislador tomou essa opção em 1987, ou seja, já numa situação em que estava em
vigor a CRP de 76 que já consagrava o princípio da presunção de inocência.
As medidas menos graves apenas exigem que haja o estatuto de arguido, como o termo de
identidade e residência. Outras medidas exigem que o crime imputado ao arguido tenha uma
certa pena. Ora, assim está-se a exigir uma prova mínima quanto à imputação. É o caso da
caução, prevista no artigo 197º, ou da apresentação periódica, prevista no artigo 198º. Depois
temos as medidas mais graves como a prisão preventiva que exigem fortes indícios da prática
de um crime doloso. Reparemos que aqui o legislador usou uma formulou mais exigente e deixa
menor margem de dúvida: é mais categórico falar em fortes indícios do que indícios suficientes.
Ora, entende-se que numa altura em que o efeito da medida é privar o arguido da liberdade,
então aí há uma graduação mais intensa do juízo de prova.
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Quer isto dizer no fundo que, do ponto de vista sistemático, se o legislador quisesse seguir
a teoria dos fortes indícios, usava a expressão “fortes indícios” e não “indícios suficientes”, já
que tinha à sua disposição conceitos que usou noutras partes do código. Conceitos diferentes
não podem ter o mesmo conteúdo.
Por fim, temos a definição legal do nº2. Assim sendo, por estas três razões, histórica,
sistemática e literal, concluímos que vigora a teoria da probabilidade dominante, segundo a qual
a acusação se basta com indícios suficientes, no sentido de ser predominante a probabilidade
de condenação face à probabilidade de absolvição.
Desde 2007, esta intervenção hierárquica só pode ser requerida depois de decorrido o prazo
para abertura da instrução sem que esta tenha sido solicitada. Desta forma, o pedido de
intervenção hierárquica é um mecanismo subsidiário face ao RAI.
O artigo 287º trata da matéria do requerimento para abertura de instrução (RAI). Havendo
uma decisão de arquivamento por parte do MP, o assistente pode requerer a abertura de
instrução no prazo de 20 dias, relativamente aos factos pelos quais o MP não deduziu
acusação, nos termos da alínea b) nº1.
Portanto, o assistente tem duas formas de reagir, mas não pode requerer as duas coisas ao
mesmo tempo. Notar a lei não contempla a hipótese de estas reações ao arquivamento virem
do arguido. Assim, o ordenamento português não confere ao arguido o direito de continuar com
o processo quando o MP opta pelo arquivamento.
Nos termos do nº1 artigo 287º, o requerimento de abertura de instrução pode ser
apresentado pelo assistente ou pelo arguido no prazo de 20 dias. Havendo um RAI, inicia-se
uma nova fase processual que tem conteúdo específico próprio que é da titularidade do JIC.
O assistente tem outra forma de reação, pode deduzir uma acusação particular, prevista no
artigo 284º. Isto significa que o assistente aqui não vai requerer uma outra fase processual, o
que vai fazer é deduzir uma peça acusatória paralela à do MP em que vai colocar as suas
perspetivas. Há, contudo, um limite entre uma e outra. O assistente pode deduzir acusação
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particular pelos mesmos factos que estão na acusação do MP, por outros que não impliquem
uma alteração substancial, ou pelos mesmos factos, mas com outro enquadramento jurídico.
Se por exemplo o MP deduz acusação por homicídio simples, o assistente pode considerar que,
perante os mesmo factos, é homicídio qualificado e deduzir, por isso, uma acusação particular
paralela à do MP.
A maioria doutrinária defende que o arguido pode apresentar um RAI com qualquer
argumentação, seja a alteração de factos substancial ou não.
Isto significa que se o assistente quiser apenas alterar a qualificação jurídica tem de
deduzir a acusação particular porque a lei pressupõe que ele tem um poder de iniciar uma nova
fase processual apenas se quiser fazer mais, introduzir novos factos. As duas acusações vão
coexistir no processo e delimitam os temas, os assuntos e os factos que são provados.
A instrução
Prevista nos artigos 286º e seguintes, a instrução é uma fase processual facultativa cujo
conteúdo essencial é fazer uma apreciação judicial da decisão que resultou da instrução.
Havendo um RAI, o caso é levado a um JIC que vai apreciar se há razões para a acusação ou para
o arquivamento. Importa ter em conta que esta fase apenas pode existir no processo comum,
sendo que o artigo 286º nº3 exclui expressamente a possibilidade de haver instrução nos
processos especiais.
Esta fase processual tem uma estrutura com três momentos distintos: atos instrutórios
(290º a 296º), debate instrutório (297º ss.) e decisão final (307º a 310º). A fase de instrução é
ainda parte do processo penal preliminar o que significa que o julgamento se iniciará numa fase
subsequente a esta se houver pronúncia. É uma fase facultativa que depende da apresentação
de um RAI e só dois sujeitos podem apresentá-lo, o arguido em caso de acusação, ou o assistente
em caso de arquivamento ou acusação, nos termos do artigo 287º nº1. O requerente pode
solicitar junção de novos elementos de prova ou a realização de novas diligências, nos termos
do nº2.
O JIC não pode iniciar por si só a fase de instrução, depende de um requerimento de abertura
de instrução que tem de ser apresentado no prazo de 20 dias a contar na notificação da
acusação ou do arquivamento, como se pode ler no nº1 do artigo 287º. O RAI tem um significado
diferente consoante seja apresentado pelo arguido ou pelo assistente. Do ponto de vista
material, o RAI apresentado pelo arguido, é no fundo uma contestação à acusação.
Imaginemos que o arguido é acusado de homicídio por ter atirado dois tiros, mas ele considera
que não foi devidamente salvaguardado que agiu em legítima defesa. A opção que tem é
apresentar um RAI. Por sua vez, o RAI apresentado pelo assistente, em termos de conteúdo, é
uma acusação ou uma nova prova.
A não ser que o RAI seja recusado, há a instrução em sentido material que passa por inquirir
as testemunhas e praticar as diligências com vista à apreciação da decisão que encerro o
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inquérito. O nº3 artigo 287º mantém a versão de 1987 e tem uma formulação que sugere que
uma vez apresentado, o requerimento só pode ser recusado em três situações:
extemporaneidade, incompetência do juiz que a recebe ou inadmissibilidade legal da
instrução. Os primeiros dois são muito claros, mas o terceiro tem motivado densificações
jurisprudenciais muito diversificadas.
O facto de a ler exigir um juízo de legalidade permite encontrar algumas situações mais
categóricas e outras particularmente interessantes. As primeiras são quando i) o requerido não
tem legitimidade, quando ii) a instrução é requerida contra incertos – porque sem determinar
a quem é feito o juízo de imputação não é possível a abertura de instrução – ou quando iii) é o
assistente a apresentar o RAI num crime particular – porque nestes crimes só o arguido pode
requerer abertura de instrução, porque o assistente já teve possibilidade de acusar.
Finalmente, a nossa jurisprudência tem desenvolvido mais duas situações que são
particularmente interessantes. A primeira tem que ver com a instrução que é requerida contra
uma pessoa que não foi investigada no inquérito. A jurisprudência portuguesa e a escola de
Coimbra, nomeadamente professor Figueiredo Dias, têm defendido que não é possível
acrescentar novo arguido. Isto porque significaria que passava para a instrução sem inquérito, e
também porque estar-se-ia a fazer da instrução o inquérito que não houve. Ora, se a lei exige o
inquérito, a inexistência de inquérito quanto a uma das pessoas não permite que haja
alargamento subjetivo na instrução. Não é possível o alargamento subjetivo contra pessoas
que não foram investigadas.
A segunda situação, esta mais discutível, é quando os factos invocados no RAI não foram
sequer investigados no inquérito. Alguns comentadores defendem que não se pode pedir a
abertura da instrução se os factos não foram objeto de investigação. O professor Costa Pinto
defende que isto fará sentido, mas apenas para os factos que não estão conexos aos factos que
foram investigados, isto é, para os factos que não se relacionem. Os factos conexos podem sim
ser invocados. No fundo, o professor defende que é possível alegar novos factos que são
conexos e que não foram incluídos por deficiência do inquérito.
Uma questão que se coloca em relação aos atos de instrução e que é particularmente
importante consiste em saber se esses atos de instrução são ou não sujeitos a um regime de
contraditório. Isto é, se quando são realizados têm de estar presentes todos os sujeitos
processuais e se podem ou não participar nessa diligência. A solução da lei é a que está no artigo
289º nº2, segundo o qual a participação nos atos instrutórios é uma participação limitada ao
sujeito processual que promoveu a prática do ato. Por outras palavras, só participam nos atos
instrutórios os sujeitos processuais que fizeram o requerimento desse mesmo ato.
Ora, isto é algo discutível porque depois dos atos de instrução há um debate instrutório
que é um debate contraditório que conta com a presença de todos, mesmo aqueles que não
puderam participar na totalidade da prova que vai ser analisada. Há perguntas que seriam
fundamentais nos atos de instrução, e o facto de uns participarem e outros não, deixa-os em
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posições diferentes na discussão, têm a sua capacidade no debate limitada. O legislador supôs
que os casos podiam ser mais simples e que o contraditório se podia fazer no debate, por isso
separou estes momentos no seio da fase de instrução, prevendo o contraditório pleno no
debate instrutório e limitando a participação dos sujeitos processuais na produção de prova.
Isto gera várias soluções jurisprudenciais. Há quem entenda que tem de ser cumprida
literalmente a letra dessa norma e há quem entenda que isto deve ser lido em concordância
com o princípio do contraditório.
Feito o debate instrutório, o juiz profere uma decisão instrutória que é um juízo sobre a
existência ou não existência de indícios para o caso ir a julgamento. Nesse momento, o JIC
pode ter eliminando alguma prova por a ter considerado ilegal, pode ter acrescentado outra
prova que surgiu nesta fase ou pode fazer uma interpretação diferente dos factos do caso. A
decisão instrutória ou é uma pronúncia ou é uma não pronúncia.
No fim da fase instrutória, o juiz por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos
ou profere despacho de não pronúncia, nos termos do artigo 308º. Em tempos, o professor
Souto Moura admitiu uma terceira possibilidade de decisão que seria sobre nulidades e
invalidades mencionadas no nº3. Porém, o professor Costa Pinto considera que isso não é
correto porque se houver uma nulidade insanável, o JIC profere um despacho de não pronúncia,
não uma decisão diferente.
Finalmente há que saber se for produzido um despacho de não pronúncia qual é o seu
significado material. O despacho de pronúncia é sempre recorrível, o caso não se encerra logo.
Se há recurso que confirma a não pronúncia ou não é usado o recurso, pode ou não ser
aberto o caso numa situação futura? O professor Germano Marques da Silva já defendeu que
sim, porque esta decisão do final da instrução tem mais afinidades com a decisão do final do
inquérito de arquivamento do que com a decisão de julgamento. Todavia, o professor Costa
Pinto discorda por várias razões. No seu entender, quando é proferido um despacho de não
pronúncia que não foi alvo de recurso ou que foi confirmado, tem valor de decisão transitada
em julgado. Isto porque, antes de mais, apesar de não corresponder a um julgamento, também
não é semelhante ao arquivamento porque este resulta de uma decisão do MP, ao passo que a
decisão adotada no final da instrução é tomada por um juiz, neste caso o JIC. Uma segunda razão
tem a ver com o facto de esta decisão ter de ser confirmada pelo juiz da Relação. Em terceiro
lugar, o professor apresenta uma razão de legalidade fundamental: a lei prevê a reabertura do
inquérito nos termos do artigo 279º, mas não prevê a reabertura da instrução. Esta omissão é
clara e intencional, caso contrário teria criado uma norma semelhante. Voltaremos a este tema
da recorribilidade.
Quando um caso vai a julgamento, a estrutura acusatória exige que a acusação limite o que
vai a julgamento, isto é, o conjunto dos factos e o âmbito dos crimes. Se não existir instrução,
os poderes de cognição do juiz de julgamento incidem sobre o conteúdo factual da acusação.
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Isto significa que o juiz de julgamento está tematicamente vinculado, ou seja, aprofunda o
caso, mas sempre dentro do objeto que vem da acusação. O tribunal de julgamento não pode
julgar factos que descubra de forma autónoma em sede de julgamento. Não pode haver
alterações substanciais porque em regra não são admissíveis. Em regra, o objeto do processo é
o objeto da acusação.
Então é dentro do complexo factual e histórico que vem da acusação que o tribunal vai lugar.
Não obstante, quando existe instrução é possível alterar o objeto. É possível que o assistente
apresente um RAI ao abrigo do artigo 287º, descrevendo os factos que não estão na acusação,
e enquadrando-os perante o homicídio na forma tentada. Ora, aqui o RAI integra legitimamente
no processo todos estes factos que não estavam na acusação, e que não podiam ser
conhecidos no processo se o assistente não os levasse.
Assim sendo, havendo um RAI, tribunal pode conhecer os factos da acusação mais os que
constam do requerimento e pronuncia-se sobre a matéria. O tribunal reconhece legitimamente
estes factos porque O RAI alarga o âmbito material do caso.
Depois, em julgamento, terá de se fazer prova e o tribunal vai decidir sobre os três crimes,
mantendo o exemplo anterior. O que interessa aqui reter é que uma das funções da instrução
é a de alargar o objeto do processo de forma substancial para além daquilo que é a acusação
ou ao arquivamento no final do inquérito. Isto é fundamental porque o tribunal de julgamento
está tematicamente vinculado àquilo que for o conteúdo da acusação e se houver, àquilo que
seja o conteúdo da pronúncia.
Outra questão muito técnica tem que ver com saber se a decisão de pronúncia ou não
pronuncia é recorrível. A norma fundamental sobre esta matéria é o artigo 310º donde resulta
pelo menos três regras diferentes:
Em segundo lugar, se existir um despacho de pronúncia que tenha sido proferido quando
antes tivermos um arquivamento ele é recorrível, mas se houver um despacho que confirme a
acusação ele já não é recorrível, o que significa que essa decisão transita para julgamento. Então,
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o despacho de pronúncia só admite o recurso se contrariar a acusação ou se for de sentido
diverso do arquivamento.
Como vimos, quando há um arquivamento, o arguido não tem direito a requerer a abertura
da instrução porque o artigo 287º só lho permite perante uma acusação. Assim, numa situação
de arquivamento, quem apresentou o RAI teve de ser o assistente. Se, perante essa situação,
existir uma pronúncia, ou seja, se o tribunal der razão ao assistente, o arguido pode recorrer.
Diferentemente, se houver uma situação de acusação seguida de pronúncia, em que a acusação
é confirmada pelo despacho de pronúncia então não há possibilidade de recorrer. A doutrina
designa erradamente, segundo o professor Costa Pinto, de “dupla conforme”.
Esta fase acrescenta sempre algum tempo significativo ao processo porque normalmente
são requeridas diligências instrutórias, depois é feito o debate instrutório e só depois é que é
proferida a decisão. Consoante a complexidade do caso, pode demorar meses ou anos. Ainda
mais se houver recurso para o tribunal superior. O facto de se requerer a abertura da instrução
acrescenta tempo e alguma litigância em torno de questões controvertidas.
O nº3 artigo 286º estabelece que não há lugar a instrução nas formas de processo
especiais. Esta limitação aliada ao alargamento do campo de aplicação dos processos especiais
leva a uma diminuição do campo de aplicação da fase de instrução. A própria jurisprudência
tem entendido de forma muito significativa que quando é adotada uma forma especial de
processo elimina-se a fase de instrução. É um dos casos de inadmissibilidade legal da instrução.
O legislador tentou limitar a instrução ou torná-la desinteressante para o arguido. Antes era
vista como uma fase destinada a aumentar a probabilidade de prescrição. Porém, ao declarar
que em caso de confirmação da acusação o despacho de pronúncia é irrecorrível, o legislador
torna a instrução desinteressante para o arguido.
Para o arguido tem sempre um meio de defesa. Na fase de instrução, o arguido pode ter
interesse em fazer com que o processo demore mais tempo e com que se questione mais provas.
Contudo há um reverso da medalha. Embora, juridicamente, o tribunal de julgamento não esteja
vinculado ao conteúdo da decisão instrutória, a não ser nos factos, o arguido pode ir a
julgamento com uma posição bastante mais debilitada se requerer a abertura de instrução.
Ele desperdiça argumentos, acaba por ver confirmadas medidas de coação e em alguns casos
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arrisca-se a ir a julgamento com factos mais aprofundados e com um juízo de confirmação da
legalidade das provas, ficando ainda pior do que estava. Daí que alguns advogados defendam
que a instrução nem sempre é benéfica para os interesses do arguido.
Os factos estão na acusação, ele não quer fazer uma alteração substancial factual, quer
antes alterar o enquadramento jurídico para a factualidade. O que deve fazer é uma acusação
particular subordinada, nos termos do artigo 284º. Se apresentar um requerimento de abertura
de instrução este poderá ser recusado por inadmissibilidade. A correta interpretação da lei diz-
nos que se ele pode requerer um ato mais simples, pela via da acusação particular, não deve
requerer uma nova fase processual. Duma forma mais categórica podemos dizer o seguinte:
uma das situações que se pode integrar na cláusula de inadmissibilidade da instrução é o facto
de o RAI do assistente não trazer alteração factual, mas apenas de enquadramento jurídico.
Esta é a posição do professor Costa Pinto. Isto resulta duma interpretação sistemática dos
artigos 287º e 284º seguida pela doutrina maioritária. A concretização da cláusula de
inadmissibilidade abrange várias situações que podem ser discutidas. Este entendimento de que
o assistente não pode apresentar um RAI só agora é que se está a consolidar, daí que se diga
que “poderá ser recusado” e não que será recusado categoricamente.
Caso prático 2. Imaginemos agora que o MP faz a investigação, deduz acusação por tentativa de
homicídio simples, mas não consta da acusação que o arguido estava a organizar o homicídio há
cerca de um mês. Pode legalmente o assistente deduzir acusação nos termos do 284º?
Nesse caso o assistente já pretende acrescentar factos novos que geram um agravamento
da pena que é uma variáveis quantitativas da alteração substancial de factos, nos termos do
artigo 1º alínea f). Se a alteração é substancial, o assistente não pode usar o artigo 284º, aliás
se o fizer, o juiz no saneamento pode rejeitar a acusação particular na parte em que excede os
limites da acusação do MP, nos termos do artigo 311º nº2 alínea b), se não tiver havido
instrução. Se quer levar factos a julgamento que impliquem uma alteração substancial, tem de
os levar a instrução pelo que deve apresentar um RAI, artigo 287º.
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Pergunta: Pode haver instrução nos crimes particulares? Pode haver instrução nos crimes
particulares desde que seja requerido pelo arguido.
O julgamento
Atos preliminares
➔ Saneamento
Em processo penal temos um momento específico para fazer o saneamento do processo
que consiste numa apreciação preliminar do caso para resolver algumas questões básicas que
podem obstar ao julgamento. Se se tratar de um tribunal coletivo, o responsável pelo
saneamento é sempre o juiz presidente. No fundo, o saneamento do processo corresponde à
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possibilidade de o juiz ter uma intervenção na dinâmica do processo, conhecendo algumas
questões autónomas e limitando o âmbito do próprio caso que vai a julgamento.
O artigo 311º atribui alguns poderes ao juiz para fazer esse saneamento no processo que
correspondem a uma forma de organizar a tramitação subsequente, evitando algumas
ilegalidades. No momento do saneamento do processo, o tribunal de julgamento pode conhecer
de nulidades e questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa,
de que possa desde logo conhecer, nos termos do nº1, e pode, se não tiver havido lugar à
instrução, rejeitar as acusações que correspondam a variações substanciais dos factos ou que
sejam manifestamente infundadas, como estabelece o nº2. O conceito “manifestamente
infundadas” é densificado pelo nº3: quando não contenha a identificação do arguido; quando
não contenha a narração dos factos; se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas
que a fundamentam; se os factos não constituírem crime.
O juiz tem mais poder se o processo se não tiver tido instrução, como se pode ler no nº2.
Se houver instrução é pela pronúncia que se orienta e não pode entrar nessa questão.
Não havendo instrução, uma dos poderes mais importantes é o de não aceitar a acusação
do MP na parte em que represente uma alteração substancial de factos, ou o mesmo da
acusação do assistente se for crime particular, previsto na alínea b) nº2. Se alguma dessas
acusações violar o objeto do processo, então o tribunal do julgamento pode fazer um
saneamento eliminando essa factualidade que dá origem a uma alteração substancial.
Como nos diz o professor Germano Marques da Sila, o despacho proferido ao abrigo do
artigo 311º nº2 b) tem então o fim de controlar a legalidade da acusação subsidiária, em razão
da legitimidade para deduzir acusação, dado não ter havido lugar à instrução.
➔ Data audiência
Resolvidas as questões tratadas no momento do saneamento do processo, o tribunal de
julgamento marca a data de audiência, nos termos do artigo 312º, notifica os diversos sujeitos
processuais e é possível o arguido apresentar uma contestação e o rol de testemunhas.
A contestação é uma reação à acusação. É uma linha de defesa apresentada por escrito,
que vai, também, identificar o rol de testemunhas que vão produzir prova em audiência de
julgamento.
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O rol de testemunhas oferece ao arguido algum poder porque quem o apresenta passa a
ter o poder de as inquirir ou de as eliminar. Se o arguido entende que há testemunhas muito
importantes que estão na acusação, mais vale colocar aqui porque o lado da acusação pode
prescindir delas e nesse caso ele não poderia dizer nada.
Por um lado, nos termos do artigo 339º nº4, as questões que constam da contestação do
arguido passam a fazer parte do âmbito da causa. Por outro lado, se for suscitada uma questão
jurídica que não seja resolvida pelo tribunal de julgamento, isso gera uma nulidade prevista na
alínea c) nº 1 artigo 379º.
A audiência de julgamento
Decorrido este primeiro momento dos atos preliminares em que se prepara o julgamento,
realiza-se a audiência do julgamento que é a discussão pública do caso com produção de prova,
perante o tribunal que vai decidir do mérito do caso. O regime é extenso e consta dos artigos
321º a 364º.
➔ A publicidade da audiência
O processo é público, o que se traduz numa abertura obrigatória da sessão ao público em
geral. Cumprindo a regra constitucional de que as audiências são públicas, estabelece o nº1
artigo 321º que a audiência de julgamento é pública, sob pena de nulidade insanável.
Porém, a publicidade da audiência não é um princípio absoluto. O nº2 prevê que se aplica
o disposto no artigo 87º que por sua vez estabelece que o juiz pode decidir restringir o acesso
do público em geral à audiência, devendo esta decisão ser fundamentada. Deve fundar-se em
factos ou circunstâncias que façam presumir que a publicidade causaria um dano grave à
dignidade das pessoas ou ao normal decurso do processo. Assim, pode o juiz decidir que decorre
com exclusão ou limitação da publicidade a inquirição de uma vítima particularmente
vulnerável, por exemplo.
Uma das questões que se têm colocado passa por saber se as restrições que têm que ver
com a própria dimensão da sala da audiência de julgamento põem ou não em causa o princípio
da publicidade. Uma sala com capacidade para 40 pessoas não permite a assistência de 140
pessoas. Isto coloca-se quanto à organização da assistência, o que, por vezes dá origem a
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situações interessantes, como a repartição da assistência entre os meios de comunicação social.
O professor Costa Pinto reitera que a publicidade da audiência não é um princípio absoluto e
estas restrições do caso concreto não geram qualquer nulidade, sendo que se tratam apenas de
uma adaptação do princípio às condições físicas da sala de audiências.
➔ Contraditório
O processo penal português mitiga o princípio do contraditório nas fases preliminares e
consagra-o plenamente na audiência. Dita o artigo 327º nº1 que as questões incidentais
sobrevindas no decurso da audiência são decididas pelo tribunal depois de ouvidos os sujeitos
processuais que nelas forem interessados.
A direção judicial significa que temos um juiz que dirige e disciplina toda a produção de
prova. Por outras palavras, é um tribunal ativo que tem a seu cargo à direção efetiva do
processo, nos termos do artigo 322º.
A investigação oficiosa significa que o juiz tem poderes autónomos para desencadear
investigações oficiosas que se lhe afigurem necessárias à descoberta da verdade e à boa
decisão da causa, tal como se lê no artigo 340º.
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Essa investigação oficiosa está limitada ao objeto do processo, mas dentro do objeto do
processo, o único limite é a lei. Este princípio da verdade material que confere estes poderes
autónomos de investigação material é uma marca característica do nosso modelo de justiça
penal. Isto é particularmente importante porque o nosso sistema tem este regime que significa
que enquanto o tribunal puder esclarecer a verdade dos factos, através destes elementos, não
pode invocar ter uma dúvida razoável ao abrigo do in dubio pro reo. Por outras palavras, a
invocação do in dubio pro reo pressupõe o esgotamento de todos os poderes conferidos pelo
artigo 340º. O STJ já se pronunciou neste sentido e declarou que é motivo de anulação da
decisão. Se houver contradição entre duas testemunhas, primeiro tem de se esclarecer, e só se
a dúvida for subsistente mesmo com esses poderes é que o tribunal pode invocar a dúvida
razoável.
➔ Imediação probatória
Toda esta dinâmica se passa perante o tribunal e mais do que isto, passa-se em audiência
de julgamento perante todos os sujeitos processuais. O princípio da imediação probatória exige
que o caso seja analisado debatido e julgado em sala de audiência perante o tribunal e todos
os participantes, sujeitos processuais e assistência.
Neste sentido, estabelece o artigo 355º nº1 que não valem em julgamento quaisquer provas
que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência. O nº2 ressalva, claro, os atos
processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas.
Isto significa que o contacto direto com as provas é uma matriz relevante do julgamento
que não existe no inquérito. Isto porque pode acontecer que o MP abra o inquérito, delegue a
investigação na PJ que apresenta um relatório sobre as provas recolhias e que vai servir de base
à acusação. Assim, na fase de inquérito, o MP decide sem contacto direto com os meios de prova
já que quem contactou com os documentos e com as testemunhas foram os órgãos de polícia
criminal.
Isto é assim para o tribunal formar a sua própria convicção dos factos em audiência de
julgamento com publicidade, com contraditório e participação ativa dos vários sujeitos
processuais. As provas têm de ser produzidas (prova pessoal, feita por declarações de alguém)
ou examinadas (prova material) em audiência de julgamento. Por esta razão é que as
testemunhas são ouvidas duas vezes, uma vez no inquérito e outra no julgamento, para garantir
a publicidade, o contraditório e a investigação do tribunal num contexto de imediação.
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Se um depoimento for feito por escrito pode ser refletido e expresso de uma forma mais
cuidada, evidencia um certo conteúdo mas não se percebe a fluência do discurso, se a pessoa
hesita, se cora, se pestaneja, fatores que em audiência de julgamento são condições para a
descoberta da verdade, num sentido de veracidade e credibilidade daquele testemunho.
Isto não significa que não haja documentação da audiência. Esta está prevista nos artigos
362º, 364º e 366º. As declarações são registadas em sistemas áudios, mas um aspeto não
substitui o outro. A regra é a de que os sujeitos processuais e toda a prova seja debatida
oralmente, perante o tribunal e os demais sujeitos processuais, podendo o tribunal investigar
sujeitando toda a produção de prova ao contraditório num ambiente de publicidade.
O artigo 271º permite, em certos casos, um registo de declarações para memória futura
que é um registo de declarações em fases preliminares para ser ouvido mais tarde. Isto será
aplicável se, por exemplo, houver uma pessoa que está em condições para depor, mas tem uma
doença terminal ou é uma vítima particularmente vulnerável.
A leitura de autos de fases anteriores vem regulada nos artigos 355º e 356º. A regra que
resulta do princípio da imediação é uma proibição de leitura de autos. Em regra, os autos que
correspondem a um registo escrito de declarações obtidas noutras fases, não podem ser usados
novamente do julgamento para se respeitarem as regras axiológicas da fase do julgamento.
Perante esta situação, o legislador de 2013 criou um conjunto de situações em que a leitura
em audiência de autos é permitida no artigo 356º. Então, passou a ser possível a leitura
posterior de autos em certas condições:
Essas declarações valem como prova, não valem como confissão. O artigo 344º permite
que, havendo uma confissão, se prescinda de mais prova. Assim compreendemos que o
legislador quis limitar o recurso a esses autos estabelecendo que tem de existir mais prova e a
investigação não se pode basear só nessas declarações.
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A sentença penal
➔ Segredo de deliberação
A lei também regula de uma forma curiosa o próprio processo deliberativo. Implica várias
opiniões consoante seja singular ou coletivo. No artigo 367º, a lei estabelece que o processo
está sujeito a segredo de deliberação, o que significa que os participantes no ato de deliberação
e votação não podem revelar nada do que se tiver passado nesses momentos. O nº2 dita que,
em caso de violação do segredo de deliberação, se aplique a sanção prevista para a violação do
segredo de justiça que consta do artigo 371º CP.
Apesar de o segredo de deliberação implicar não poderem exprimir a sua opinião sobre a
deliberação tomada, a lei contempla um outro aspeto importante no artigo 372º, que é a
possibilidade de um juiz lavrar um voto em sentido contrário quanto a uma determina questão.
No fundo, a sentença penal é composta por uma fundamentação comum, uma fundamentação
maioritária e os possíveis votos de vencido.
Todos os sujeitos processuais têm acesso a isso, o que é um aspeto importante para garantir
o contraditório e o direito de recurso. O próprio tribunal de recurso tem acesso, fundamental
para percebe que a questão é controvertida.
➔ Culpabilidade e sanção
Nas várias alíneas do nº2 artigo 368º encontramos elementos que estudamos em teoria do
crime. É necessário comprovar a realização do tipo de crime, se o arguido o praticou, se atuou
com culpa e se se verifica alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa.
Assim, o artigo 368º contém uma projeção processual das categorias dogmáticas da teoria
do crime, mas não pela mesma ordem em que estudamos porque primeiro discutem-se os
elementos positivos da responsabilidade e só depois os que a podem excluir.
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➔ Requisitos da sentença
Outro aspeto curioso é o facto de a lei autonomizar requisitos da sentença no artigo 374º.
Em particular, o nº2 é importantíssimo porque obriga que faça parte da sentença uma
fundamentação tipificada legalmente sobre o conteúdo da decisão. Tem de existir uma lista de
factos provados e uma lista de factos não provados e tem de existir especificação da prova, o
que significa que tem haver uma análise crítica da prova que explicite quais os factos que estão
provados e em resultado de que meios de prova. Então, exige-se fundamentação em termos de
factos, de direito e em termos probatórios.
Isto é muito exigente e só se exige para a sentença e não para outras peças como a renúncia
ou a acusação. O Estado de Direito em matéria do direito penal reside neste nº2, no sentido em
que tem de ficar plenamente demonstrada a culpabilidade para que uma pessoa seja
responsabilizada pelo Estado. Isto de uma forma particularmente importante porque se for
violado esta exigência, o artigo 379º comina essa violação com a nulidade da sentença.
Portanto, os requisitos formais e materiais da sentença penal têm a tutela forte das nulidades.
➔ Tipologias de sentenças
➔ Leitura pública
Finalmente, a lei obriga, sob pena de nulidade, à leitura pública da sentença ou de uma
sumula, para se cumprir o princípio da publicidade. Esta exigência de leitura pública consta do
nº2 artigo 373º. Mesmo quando é lida por sumula, a comunicação social tem direito de acesso
ao processo. Não podem reproduzir a peça processual, mas podem relatar o conteúdo da
sentença. Como vimos, por vezes a data de leitura é adiada devido à complexidade do caso.
A fase de recurso
Entre nós, os recursos são quase todos facultativos. Em regra, o recurso é uma continuação
da fase do julgamento facultativa em que um dos sujeitos processuais pediu uma reapreciação
da decisão. Contudo, em 2007, o legislador criou a obrigatoriedade de recurso para o MP em
casos de fixação de jurisprudência, nos termos do artigo 446º.
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Modalidades
➔ Recursos ordinários
Embora seja uma decisão do tribunal superior, apresenta-se o recurso junto do tribunal
recorrido. O recurso é interposto junto do tribunal que proferiu a decisão porque é aí que está
o processo, sendo que este tribunal aceita ou não o recurso e faz subir os autos.
➔ Recursos extraordinários
Prazos
Desde 2007, os prazos de recurso são de 30 dias, nos termos do artigo 411º. Então, o
cumprimento do prazo é um dos pressupostos para o recurso.
Recorribilidade
A outra regra é que a irrecorribilidade tem de ser declarada expressamente pela lei. Isso
pode acontecer duas vias: ou o ato é irrecorrível por força da norma geral do artigo 400º que
contém um elenco, ou através de uma norma especial que estabelece que certa decisão não é
passível de recurso, como é o caso do artigo 397º nº2.
Por um lado, nos termos da alínea a) nº1, o MP tem legitimidade alargada para recorrer
em qualquer circunstância, seja no sentido de manter a pretensão sancionatório seja no sentido
favorável ao arguido. Então, o nosso MP pode pedir condenação mais grave, condenação mais
leve ou mesmo a absolvição do arguido. Não é uma parte do processo, é um sujeito processual
e a legitimidade alargada em sede de recursos acaba por confirmar este estatuto característico
do MP português que se orienta por critérios de objetividade e verdade material.
Por outro lado, os outros sujeitos processuais têm uma legitimidade condicionada porque
só podem recorrer das decisões proferidas contra si, nos termos das alíneas b) e c). No fundo é
um critério de legitimidade material que passa por saber se os interesses do sujeito processual
foram ou não postos em causa com a decisão. A concretização desse critério material já deu
origem a algumas divergências interpretativas.
Em particular, como os recursos são facultativos, pode acontecer que o MP não recorra de
uma decisão e a questão que se coloca é se o assistente nesse caso pode recorrer sozinho. O STJ
tem assumido uma posição diferente consoante o caso seja de decisão de absolvição ou de
condenação. Em caso de absolvição, aceita o recurso isolado do assistente porque os seus
interesses são postos em causa, mas se for um caso de divergência quanto à pena aplicada já
não aceita o recurso. É uma situação que tem merecido a crítica da doutrina que considera que
é uma interpretação restritiva do direito ao recurso. O professor Paulo Pinto de Albuquerque
chega a dizer que é inconstitucional porque viola os direitos de participação do artigo 37º.
Recurso da decisão do Tribunal Singular, Tribunal Coletivo e Tribunal de Júri (427, 432)
Os recursos têm sempre um efeito devolutivo. A questão é que pode ser meramente
devolutivo ou suspensivo. Se for meramente devolutivo, a questão é avaliada no tribunal
O efeito suspensivo da decisão é um efeito mais comum. O processo vai subir para o
tribunal de recurso, mas paralisam-se os efeitos da decisão condenatória. Isto significa que esta
não produz efeitos até ser apreciado o recurso. O nosso sistema jurídico contém um efeito
suspensivo das decisões condenatórias em todos os momentos do recurso que impeçam o
trânsito em julgado. Considera-se que seria incompatível com a presunção de inocência
executar uma decisão condenatória antes de esgotados todos os recursos possíveis. Só
esgotados os recursos é que se passa para a fase de execução.
NOTA: a matéria de recursos não vem no exame. Importa saber é que há uma fase de recurso
facultativa a seguir à fase de julgamento.
Temos primeiro de analisar os tipos incriminadores em causa no código penal. Isto para
conhecermos a sua natureza, moldura penal e se se incluem ou não na reserva do tribunal
coletivo. Ao fazer este esquema devemos também fazer um esquema de requisitos. Mesmo que
do ponto de vista do resultado esteja certo, é necessário identificar as diversas formas de
processo, os seus requisitos, podendo remeter de uns para os outros e só depois concluir com a
solução. Devemos fazer essa demonstração de conhecimento completa.
Finalmente, por onde começar? Sendo o processo comum subsidiária, temos de começar
pelas formas especiais. Entre estas, temos de começar pelo processo sumário pela sua
particularidade de começar no momento anterior às fases processuais, pela detenção em
flagrante delito que é requisito essencial. Entre o processo sumaríssimo e o processo abreviado,
devemos ver primeiro o sumaríssimo até porque é possível transitarmos deste para o abreviado.
Por vezes surgem situações em que é possível julgar o caso por processo especial, mas devemos
considerar que essa forma não é adequada, especialmente para os casos de rixas em que alguém
morre.
Em situações em que já vários crimes que estão realizados, pelo que temos uma potencial
situação de concurso, devemos analisá-los isoladamente porque podem ter diversas naturezas,
diferentes penas e diferentes reservas de competência. Em princípio são julgados em conjunto,
mas depois pode haver alguma particularidade que gere a divisão. A soma das penas legais é um
limite máximo das penas para que sejam tomadas as decisões processuais. Quer o processo
sumário quer o processo abreviado permitem que se tenha em consideração o mecanismo da
pena concreta.
Caso prático 1. À saída de um complicado jogo de futebol, António insulta Carlos e atira-lhe uma
pedra de calçada à cabeça, mas não lhe acerta, praticando dessa forma o crime de injúrias (artigo
181º CP) e de tentativa de ofensas à integridade física (artigos 143º, 22º e 23º CP). Os factos
acontecem na presença de um guarda da PSP que, perante a queixa e o pedido de intervenção
feito por Carlos, pede a António a sua identificação. António recusa identificar-se e ameaça o
guarda da PSP, cometendo dessa forma o crime de resistência (artigo 347º nº 1 CP).
O crime de injúrias, previsto do artigo 181º CP, é um crime particular porque a promoção de
processo depende de acusação particular nos termos do artigo 188º, e tem uma moldura penal
de até três meses de prisão ou multa. O crime de tentativa de ofensas à integridade física, cujo
tipo resulta da conjugação dos artigos 143º, 22º e 23º CP, é um crime público. Por último, o
crime de resistência, previsto no artigo 347º nº1 é um crime pública com pena até 3 anos.
O outro requisito para a detenção em flagrante delito é que o crime seja punível com prisão.
No caso da tentativa de ofensa à integridade física, não é um crime porque a tentativa não é
punível. Significa que não admitem medidas de carácter de processual como as que estão em
causa. Por sua vez, o crime de injúrias é um crime particular, pelo não há lugar à detenção em
flagrante delito, mas à identificação do infrator, nos termos do artigo 255º nº4. Por fim, o crime
de resistência é um crime público pelo que admite detenção em flagrante delito.
As modalidades de identificação estão previstas no artigo 250º. Sobre este regime há uma
coisa muito curiosa que é a de saber que a medida de identificação com medida de privação
temporária da liberdade com condução à esquadra policial se é ou não uma medida de processo
penal. Aconteceu que houve pessoas que foram levadas em detenção para identificação e
pediram um advogado, mas foi-lhe dito que era um ato meramente administrativo pelo que não
tinham este direito.
b) Em que forma de processo poderá António ser julgado pelos crimes referidos?
Quanto ao crime de resistência, previsto no artigo 347º nº1 CP, vamos ver os requisitos do
processo sumário. Existe flagrante delito por aplicação do artigo 256º nº1 segunda parte em
conjugação com o 381º nº1; o crime foi presenciado por um guarda; a detenção foi feita por
uma autoridade judicial e o crime admite detenção; a pena do crime não é, abstratamente,
superior a cinco anos; isto leva a que o requisito negativo implícito esteja cumprido. Neste caso,
o crime é da reserva do tribunal singular por ser um crime contra a autoridade pública, nos
termos do artigo 16º nº2 a), como veremos quando virmos a competência. Verificados os
requisitos, este crime admite julgamento na forma sumária de processo.
Temos agora de ver o segundo crime porque se admitir a mesma forma de processo podem
tramitar juntos. Quanto ao crime de injúrias previsto no artigo 181º CP, sendo particular não é
possível a detenção em flagrante delito, pelo que não é possível o processo sumário. Assim
temos uma situação em que um dos crimes admite a forma sumária de processo e o outro não.
Como é que procedemos? 1. A lei não regula explicitamente o problema de alguns crimes que
foram praticados admitirem uma forma de processo e outros não. 2. Não há uma hierarquia,
mas há uma certa prioridade da forma sumária face às restantes. A lei prevê as formas de se
julgar concurso de crimes em processos especiais, mas não prevê o problema. Contudo, há uma
norma o 52 para os casos de o MP promover uns em detrimento de outros. Este problema é
semelhante. É possível o MP prosseguir com o processo sumário para o crime de resistência
enquanto que o crime do 181 seguirá um processo autónomo. Havia aqui uma fragmentação
Caso prático 2. Através da câmara de videovigilância instalada numa passagem de peões sobre
a autoestrada A5 (Lisboa-Cascais), a GNR viu dois jovens (António e Bruno) a lançar garrafas
sobre os carros que passavam. Um dos condutores atingidos (Vaz) despistou-se e morreu no
acidente. Os guardas perseguiram de imediato os jovens, mas estes esconderam-se na oficina
de um amigo e a GNR perdeu-lhes o rasto. Duas horas depois, um cliente da oficina ouviu a
notícia na rádio e ligou para o posto da GNR, revelando onde os jovens estavam escondidos. A
GNR deslocou-se ao local e deteve os jovens no interior da oficina. Pelos factos descritos,
António e Bruno cometeram os crimes de lançamento de projétil contra veículo (artigo 293º CP)
e homicídio por negligência grosseira (artigo 137º nº 2 CP). Os dois jovens resistiram com
violência à detenção na oficina, tendo cometido ainda o crime de resistência (artigo 347º nº 1
CP).
Começando pela análise dos crimes em causa, verificamos que o crime de lançamento de
projétil contra veículo, previsto no crime 293º, é um crime público com uma pena de prisão até
um ano ou pena de multa, o crime de homicídio por negligência grosseira previsto no artigo
137º nº2 é igualmente um crime público com uma pena de prisão até 5 anos, e por fim, o crime
de resistência que também é um crime público com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Temos de olhar para a reserva de competência do tribunal coletivo, artigo 14º nº2 alínea a),
aplica-se aos crimes dolosos ou agravamento pelo resultado. Embora do ponto de vista jurídico,
a solução seja semelhante, aplicar em concurso o 293 e o 137º nº2 significa aplicar tipos
autónomos e não um agravamento. Assim, nenhum destes dois está na reserva do tribunal
coletivo. Quanto ao crime de resistência, está na reserva no tribunal singular prevista no artigo
16º nº2 alínea a). Saber isto à partida já permite antever uma certa solução: os três tipos em
concurso não podem ir a tribunal coletivo porque há que respeitar a reserva de tribunal singular
deste último, o que significa que ou vão todos juntos para o tribunal singular ou há uma
fragmentação. Isto independentemente da forma do processo.
Importa agora verificar os pressupostos das formas especiais de processo, começando pelo
processo sumário. Em rigor, há que haver uma situação em flagrante delito e uma detenção
legal. Os guardas assistiram à prática do crime de lançamento de projéteis por videovigilância,
o que corresponde ao flagrante delito em sentido nuclear, cabendo na primeira parte do nº1
artigo 256º. Aqui estamos a fazer uma interpretação declarativa lata abrangendo a
videovigilância como forma de assistir em direto ao crime. Assim, são vistos a executar o crime
do 293º, quanto ao homicídio pode ser discutível, mas vamos admitir que também se viu o
acidente. Há perseguição logo após funcionando o nº2 em consonância com º nº1. Do ponto de
vista da ratio há atualidade e visibilidade. Isto porque a perseguição mantém a visibilidade e
Temos de segmentar aqui os tipos e dizer que não há detenção em flagrante delito quando
ao 293º e ao 137º nº2, mas há quanto ao 347º porque o crime ocorre na presença dos guardas.
Isto já nos permite separar porque podemos continuar com a análise dos requisitos, mas já
tendo a noção de que os primeiros dois crimes não podem ser julgados em processo sumário
por falta deste requisito.
Passemos agora ao requisito da pena legal. Isoladamente todos os crimes têm uma pena
legal inferior ou igual a cinco anos. Havendo três crimes em concurso verdadeiro, a pena máxima
aplicável corresponde à soma dos limites máximos, sendo de 11 anos. Ultrapassada a pena
máxima de cinco anos que corresponde à competência do tribunal singular, não é possível
recorrer a formas de processo especiais e aplica-se a forma de processo comum, a menos que o
MP considere que a pena ao caso concreto não excederá esse limite e aí é possível o processo
abreviado, ao abrigo do artigo 391º A nº2.
Por fim, temos o requisito negativo implícito, bastava remeter para a análise que já fizemos.
Analisados os vários requisitos, basta que um falhe para já não ser possível seguir a forma de
processo sumário. Isto quanto aos crimes do 293º e do 137º nº2, todavia seria possível
promover o processo sumário quanto ao crime de resistência 347º. Este vai ser enviado ao MP
junto do tribunal de julgamento que vai seguir a tramitação sumária.
Quanto aos outros dois crimes, lançamento de projétil e homicídio negligente, teríamos de
analisar as outras formas de processo especiais. O legislador só prevê expressamente o regime
de ponderação concreta da gravidade do caso para o processo sumário e abreviado, não o
contemplou para o processo sumaríssimo, pelo que não pode ser julgado em concurso este caso
porque a sua pena legal ou abstrata máxima é de 10 anos. A não ser que os crimes fossem
segmentados em dois processos sumaríssimos, não era possível a forma sumaríssima, porém
não é viável pensar que isto aconteceria até porque este crimes estão ligados entre si.
Assim temos de ver os outros requisitos do processo abreviado. Primeiro, a pena não ser
superior a 5 anos, aí temos a tal faculdade de o MP considerar em concreto uma pena não
superior a esse limite no caso concreto. Portanto, seria possível. Depois, seriam necessárias
provas simples e evidentes 391º A, o que parece existir já que existe prova documental através
do registo de vídeo (vamos admitir que se estende ao acidente), e há também uma prova
testemunhal pelos guardas que assistiram. Depois temos o requisito negativo implícito que
também já analisamos.
Assim seria possível promover o processo abreviado para os crimes do 293º e 137º nº2 em
concurso. Porem há que fazer um juízo de adequação porque havendo uma morte pode não ser
adequado por tornar o caso mais complexo, até porque em processo abreviado o arguido perde
a possibilidade de pedir a abertura da instrução. Cabia ao MP fazer este juízo antes de enviar
para o processo comum ou processo abreviado.
Porém, em concurso, teriam uma pena legal e abstrata de 5 anos 3 meses, o que afasta o
processo sumaríssimo. Isto porque quanto às restantes formas de processo especiais, sumário
e o abreviado, admite-se a ponderação concreta do caso que preveja uma pena até 5 anos em
concurso. Assim, consoante a gravidade concreta do caso poderá levar a que o tribunal
competente seja o tribunal coletivo em processo comum, ou o tribunal singular, em processo
sumário ou abreviado.
Quanto à forma de processo aplicável, temos de analisar os vários requisitos das formas
especiais de processo, começando pelo processo sumário. Existe uma situação de flagrante
delito na modalidade de crime que acabou de se cometer, 256º nº1 segunda parte. A polícia
deteve no local, não chegou a haver perseguição, temos uma situação em rigor que pode ser
semelhante à perseguição porque quem indica viu acontecer, é uma situação de quase flagrante
delito. Quanto às presunções, não temos elementos fáticos para dizer que têm sinais ou objetos
que permitem fazer essa inferência. Isto tendo em conta que eles estavam no local, mas pararam
quando ouviram as sirenes a chegar.
A fonte do direito processual penal é a lei. Mas, apesar de correta, esta afirmação é
profundamente incompleta. Em processo penal vigora o princípio da legalidade e existe reserva
formal do parlamento, mas outros mecanismos que existem não são de todo de desconsiderar.
Efetivamente a lei é a fonte de direito, ou seja, resultam da lei soluções jurídicas, soluções
vinculativas para os destinatários da norma. Logo aí há uma particularidade, há dois tipos de
normas: a lei ordinária e a constituição penal lato sensu. Como a CRP antecipou a vigência do
CPP, na verdade a CRP antecipou uma série de soluções configuradoras do direito processual
penal. Portanto, uma das particularidades deste ramo do direito é o facto de a legislação
ordinária ser uma densificação da CRP.
Em segundo lugar, é evidente que a doutrina e a jurisprudência não são fonte de direito,
no sentido em que delas não resultam soluções jurídicas que se imponham ao sujeito processual,
contudo cada uma delas têm o seu peso significativo.
Por seu lado, a jurisprudência não é fonte de direito porque existe entre nós uma
independência muito significativa dos tribunais em termos horizontais e verticais em relação
inclusivamente aos seus próprios precedentes, o que significa que não tem de seguir o que
seguiu em casos anteriores. Deste ponto de vista, podemos dizer que a jurisprudência não é
fonte de direito porque dela não emergem soluções jurídicas imperativas aos sujeitos
processuais. Mesmo existindo uma fixação de jurisprudência é possível divergir desde que se
fundamente a divergência. Mesmo neste domínio o legislador não criou uma força vinculativa
ou imperativa.
Outro caso que se pode ter em conta são as declarações de inconstitucionalidade que
podem ter dois alcances distintos. Pode ser para o caso concreto e será vinculativa nesse caso
concreto. Se houve recurso do TR para o TC e a norma foi declarada inconstitucional, o TR tem
de acolher essa decisão, mas fora disso não tem. Ou seja, as decisões dos diversos tribunais não
têm de seguir a decisão do TC proferida num caso concreto, exceto se o TC declarar com força
obrigatória geral nos termos do artigo 282º CRP.
Portanto, o que retiramos deste enquadramento formal é que a jurisprudência não é fonte
de direito, embora existam alguns mecanismos de fixação de jurisprudência. Mas o sistema não
pode ser visto assim. Quem não conhecer a jurisprudência penal não conhece verdadeiramente
o sistema penal português. A jurisprudência tem uma grande eficácia argumentativa e
persuasiva. Ou seja, os tribunais não estão obrigados a seguir as orientações uns dos outros,
mas argumentam com as decisões uns dos outros no sentido em que dizem que certa decisão é
a correta por já ter sido confirmado nos caso x e y. Mesmo a jurisprudência dos tribunais
Talvez se possa dizer que o sistema em direito processual penal só se conheça com a
conjugação de todos estes elementos e é particularmente importante o conhecimento da
jurisprudência e da tendência dos tribunais superiores e Tribunal constitucional, bem como as
linhas de argumentação doutrinárias acolhidas ou rejeitadas. No fundo, não são fonte de direito
porque delas não resultam soluções imperativas, mas são um desenvolvimento criador de
direito dentro do quadro da lei.
Ao contrário da restante doutrina, o professor Costa Pinto julga que há particularidades que
devem ser tidas em conta. As técnicas normativas são as mesmas, mas a realidade e as opções
legislativas exigem alguns cuidados interpretativos. Neste sentido, há quatro pontos relevantes.
É certo que estes elementos não dão origem a diferentes formas de interpretação, mas
chamam à atenção o intérprete para o facto de existirem mais referentes do que aqueles que
de uma forma simplista se utilizam.
Um primeiro aspeto é que muitas normas de direito processo penal concretizam regimes e
valores constitucionais o que se traduz no facto de que através da interpretação de direito
processual penal estamos a densificar a CRP. Isto significa que os referentes hermenêuticos não
são apenas a norma texto, mas também as normas constitucionais que orientam a norma de
direito processual penal.
O segundo aspeto a ter em conta tem que ver com o facto de o direito processual penal ser
por excelência um direito conflitual. Há uma pretensão assumida pelo MP ou pelo assistente
Portanto quando estamos a interpretar uma norma podemos estar a beneficiar o arguido
em detrimento do ofendido ou o contrário. O facto de o direito processual penal ter uma matriz
conflitual e corresponder a uma relação jurídica do estatuto de sujeitos processuais diferentes
não legitima dizer que certa interpretação é preferível por beneficiar um dos sujeitos
processuais quando a lógica da lei é o equilíbrio. Entra também neste ponto a questão da gestão
da boa realização da justiça penal.
Um terceiro aspeto importante tem que ver com aquilo a que corresponde a um princípio
subjacente a todo o processo penal. O legislador procurou tentar adotar um modelo de
concordância prática entre interesses conflituantes, procurando situações de equilíbrio em
vez de um modelo regra-exceção segundo o qual se prefere um interesse em detrimento doutro.
Num sistema em que vigora este modelo, não pode o intérprete alterar essa matriz. Não se
pode subverter, por exemplo, o facto de na fase de inquérito se privilegiar a investigação e na
fase de julgamento de privilegiar o contraditório.
O último tópico neste tema, e que é o mais importante para o professor Costa Pinto, é que
um dos princípios do direito processual penal é ser possível prever como é que se vai desenrolar
o processo. Através da regulação legal das fases e do processo, oferece-se uma certa
previsibilidade do desenvolvimento do processo penal. Por outras palavras, tornam-se
previsíveis as decisões no âmbito do próprio processo e há um esforço importante em tornar
previsível a aplicação da lei processual penal.
Ora quando se faz certas interpretações cria-se certas soluções completamente novas que
geram surpresas para os sujeitos processuais. A partir do momento em que o Supremo decidiu
que o assistente não podia recorrer sozinho da pena aplicada, tomou uma decisão surpresa
porque restringe os direitos do ofendido, e frustra a sua pretensão no âmbito do processo. O
professor defende que esta decisão é ilegítima por estas razões. Não se pode eliminar direitos
do assistente por interpretações restritivas do texto legal.
Em direito processual penal é possível integrar lacunas recorrendo à analogia, o que aliás
está expressamente previsto no artigo 4º que primeiro estabelece a possibilidade e depois
apresenta a metodologia: nos casos omissos, a primeira coisa a fazer é aplicar por analogia
disposições do próprio CPP; quando isso não for possível, observam-se as normas do processo
civil que se harmonizem com o processo penal; na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do
processo penal. Sobre esta norma há algumas considerações a fazer.
A ordem dessa metodologia é discutida pela doutrina. O professor Costa Pinto entende
que a hierarquia aparente desta norma não é correta. Na verdade, podemos dizer que o método
de utilização da analogia deveria ser distinto desse enunciado. De facto, faz sentido que se
recorra as normas do código de processo penal que se possam integrar por analogia desde que
haja um lugar paralelo, mas não faz sentido recorrer a normas do processo civil e adaptar essas
O código de processo penal não regula, por exemplo, a litigância de má fé. Porém, não
devemos procurar regular essa questão. Em primeiro lugar, são casos diferentes face ao código
de processo civil. Em segundo, o legislador estabeleceu outro tipo de sanções processuais que
correspondem a uma regulação própria. Por fim, porque criar um regime de litigância de má fé
significaria gerar um limite ao direito de defesa que na CRP não tem essa limitação da má fé. O
legislador quis regular a matéria sem depender do regime da litigância de má fé. A conclusão é
que nesta matéria existe uma omissão que não é uma lacuna, mas uma decisão legislativa.
Vejamos o caso dos regimes ou soluções fechadas que são situações que não admitem
lacunas. Os sistemas fechados, que tem no fundo um código binário, são imunes a lacunas.
Não havendo lacuna, não há analogias. Seguem-se dois exemplos.
No fundo, o que se retira do artigo 4º é que só é possível identificar uma lacuna e aplicar
analogia em omissões legislativas que gerem casos carentes de solução que o sistema não
oferece diretamente. Nos sistemas fechados assentes no sistema binário, não há efetivamente
espaço para lacunas. Só há uma lacuna quando a omissão existe primeiro e contraria os objetivos
do legislador, o que significa que nas soluções fechadas assentes num código binário em que há
uma solução regra e uma solução especial, quando não se aplica a especial segue-se a solução
regra, não havendo lacuna nunca.
A realidade é distinta, já que pode acontecer que um processo em curso seja atravessado
por uma alteração à lei processual penal. A opção do legislador foi a de criar uma regra de
aplicação imediata da lei nova, prevista no nº1 artigo 5º. Porém, faz algumas ressalvas no nº2.
O legislador depois no nº2 equilibra as coisas dizendo que há limites pelo que a lei nova não
se aplica aos processos iniciados anteriormente. No fundo, se for evitável o sacrifício do direito
do arguido então mantém-se a lei antiga para aquele caso.
Notar ainda que o artigo 5º pode ser preterido pela adoção do direito transitório. É possível
existir uma outra norma que estabeleça que a lei de alteração tenha normas de direito
transitório. Nesse caso, é esse direito transitório que se aplica e não a regra geral.
O caso mais discutido neste tema da vigência temporal da lei processual penal é o da
alteração da natureza do crime. É possível a conversão de um crime público em crime
semipúblico ou vice-versa e é tema de uma enorme discussão e importa imensas posições.
Ao arrepio da diversa doutrina, o professor Costa Pinto afasta o critério de ser mais ou
menos favorável ao arguido e apresenta, no seu ver, a solução mais simples, consoante seja de
crime público para semipúblico ou vice-versa e dependendo de o processo já ter ou não iniciado.
Conjugando o artigo 5º com a natureza do caso, se o MP ainda não abriu o inquérito quando
a lei surge, isto é, se o processo ainda não se iniciou, então todos os casos que surgirem seguem
o novo regime. A única duvida é sobre a contagem do prazo para apresentação da queixa, mas
o professor Costa Pinto defende que se conta desde a data da lei nova.
o Processo já se iniciou
O professor Costa Pinto defende que sim, o processo já aberto passa a admitir desistência,
por duas razões. Por um lado, por uma razão de igualdade face a outros processos que possam
ser iniciados entretanto. Por outro lado, para haver uma certa congruência entre o regime da
desistência e o regime da queixa.
Se o processo não se iniciou, então o MP tem legitimidade para iniciar o processo a partir
da data da lei nova. Pode usar factos anteriores para abrir inquérito com base na lei nova, tem
legitimidade para o efeito, exceto se já tiver decorrido integralmente o prazo de caducidade
porque aí já se consolidou uma solução em que ficou precludido o direito de queixa. Não pode
o MP desrespeitar integralmente uma solução que resultou da aplicação da lei antiga.
o Processo já se iniciou
Em síntese,
Processo não se
segue o novo regime
público iniciou
para
semipúblico processo iniciou bem. Não falta
processo já se
nenhum pressuposto. Porém,
iniciou
passa a admitir a desistência.
alteração da
natureza do crime segue o novo regime: o MP tem
Processo não se legitimidade para iniciar o
iniciou processo, desde que dentro do
semipúblico prazo de caducidade da queixa
para
público processo segue porque iniciou-se
processo já se
corretamente. Deve ser admitida
iniciou
a desistência do ofendido
Por vezes, esses princípios ganham acolhimento na lei fundamental: Constituição Penal.
Estando consagrados na CRP ganham uma outra dimensão e força. Entre nós isto ganha especial
importância porque a CRP antecedeu os CP e CPP, o que significa que a CRP cristalizou uma série
de regras ou fez opções de direito publico em matéria de direito penal que vieram determinar e
influenciar a própria compreensão do direito legislado. A grande primeira reforma do direito
processual penal foi feita por via constitucional.
Ainda na caracterização dos princípios, importa dizer que são diferentes das regras na
medida em que as regras têm um código binário, ou se cumprem ou não se cumprem, enquanto
que os princípios são exigências de organização, o que significa que podem ser realizados e
densificados com graus diferentes e níveis diferentes de profundidade. Por exemplo, o
princípio do contraditório é mais limitado na fase de instrução e é pleno no julgamento.
Podemos ter processos de estrutura acusatória, com alcances diferentes. Em Itália, o juiz
tem uma sumula. Entre nós o princípio do acusatório é diferente porque o nosso juiz tem a
possibilidade fática e jurídica de conhecer integralmente os autos o que lhe dá uma maior
capacidade de conduzir o julgamento. Ambos os países são de estrutura acusatória, mas
densificam este princípio de forma diferente.
Os princípios têm origem, natureza e funções diferentes. Há uma ideia de diversidade entre
as garantias constitucionais, os direitos fundamentais e as regras de organização. Vamos ver
alguns exemplos.
De acordo com o princípio do juiz natural, o tribunal penal que vai fazer o julgamento não
pode ser escolhido individualmente, mas em função das regras de competência que estão
predefinida, o que significa que à partida não sabemos quem são os juízes que vão julgar um
caso concreto, porque não se permite a escolha. Esta regra é tão importante que está na CRP.
E depois surge no CPP, mas não é igual. As regras de competência territorial são uma forma de
concretizar o princípio do juiz natural.
Isto significa que há fontes diversas para os vários princípios. Não esquecer que temos
também instrumentos de direito internacional como a Convenção Europeia dos Direitos do
Homem (CEDH), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) ou a Carta dos
Direitos Fundamentais da UE. Estes instrumentos não são mais completos do que a nossa CRP
que é um texto muitíssimo avançado que introduzia mais garantias para o processo penal que
são muito mais preconizadas e pormenorizadas. No entanto há um particular peso destes
instrumentos porque vigoram na ordem interna por força do artigo 8º CRP, embora tenham
natureza convencional.
A Constituição penal
Vejamos então os princípios que constam da Constituição penal. No artigo 25º CRP
encontramos uma afirmação da integridade moral e física das pessoas. Apesar de não parecer
ter grande ligação ao direito processual penal, este princípio permite dizer que o Estado de
Direito se funda na pessoa humana, o que tem muita importância para o processo penal,
designadamente do que toca ao tema das provas proibidas do artigo 126º.
No artigo 29º CRP temos vários números dedicado à aplicação da lei criminal, cuja
densificação é processual. Depois, no artigo 30º CRP estão os limites das penas e das medidas
de segurança. O tema do habeas corpus vem tratado no artigo 31º CRP, e entre nós é reativo e
não primitivo como o do sistema brasileiro.
As garantias do processo criminal estão consagradas nos vários números do artigo 32º CRP.
As garantias do processo criminal que vêm em várias normas pelos números do artigo 32º
CRP. Outra norma fundamental é o artigo 34º CRP, sobre a inviolabilidade do domicílio, da
correspondência e das telecomunicações. Muitas regras de DPP são limitadas a partir daqui
como atos intrusivos, nomeadamente as buscas ou a interferência na correspondência.
Além destas normas que constam dos direitos, liberdades e garantias, também são muito
importantes as regras da competência legislativa, especialmente a reserva de competência
legislativa presente no artigo 165º nº1 alínea d) CRP.
Quanto aos princípios gerais dos tribunais, podemos destacar o artigo 203º CRP donde
consta o princípio da independência dos tribunais. Por fim, as funções e estatuto do MP estão
previstas no artigo 219º CRP.
Por outro lado, têm uma função harmonizadora, no sentido em que permitem a ponderação
e articulação dos vários valores, ao contrário da lógica binária das regras. Como já foi
evidenciado, os princípios permitem a harmonização de princípios que impliquem interesses
opostos. O nosso sistema não vê a realização da justiça penal como um valor que se sobreponha
aos direitos de defesa, mas uma harmonização num certo equilíbrio.
Finalmente, quando existem lacunas que careçam de ser integradas, os princípios são uma
das fontes. Então, são ainda uma fonte de critérios para a integração de lacunas, como resulta
do artigo 4º que remete expressamente para os princípios gerais do processo penal.
Temos, por exemplo, o princípio contraditório que é limitado nas fases preliminares e no
processo sumaríssimo, mas pleno no julgamento. Não é garantido de forma igual em todo o
processos penal, mas consoante a fase de processo em que se está. O mesmo se diz quanto às
soluções que existem de certas decisões serem irrecorríveis. Portanto os princípios não têm
sempre a mesma densidade, alcance e projeção.
Por outro lado, os princípios têm ainda uma sedimentação histórica e por vezes têm
também matrizes de evolução. O mesmo princípio com a mesma designação pode ter
conteúdos diferentes consoante a evolução constante. Vejamos dois casos paradigmáticos.
O direito ao silêncio e a garantia legal contra a autoincriminação resultam dos artigos 61º
nº1 alínea d), 343º nº1 e 345º nº1. Um primeiro aspeto interessante é que a CRP não consagra
o direito ao silêncio e outro é que a garantia legal da não autoincriminação também não está na
Na origem, este direito traduzia-se no direito a não se declarar culpado. Era um estatuto
próprio que depois estabilizou processualmente como o direito a não responder a perguntas.
Este corresponde ao núcleo fundamental histórico do direito ao silêncio e da garantia contra a
autoincriminação. Porém, os legisladores rapidamente perceberam que se não criassem uma
garantia adicional, o próprio silêncio seria valorado contra quem dele fizesse uso. Perante esta
verificação, procedeu-se a um alargamento, passando a incluir o direito a que o silêncio não
seja valorado desfavoravelmente. A proibição da valoração do silêncio vem no artigo 343º nº1.
Numa outra evolução, já posterior à vigência do código, em 2007, entendeu-se que esta
garantia construída e prevista só para o arguido, também devia ser estendida às testemunhas,
o que veio a ser consagrado no artigo 132º nº2. Porque a testemunha tinha o dever de
responder, pode agora avaliar a situação e excecionar esse dever de responder se porventura a
reposta puder gerar a sua responsabilidade criminal.
Hoje podemos dizer que o direito ao silêncio assiste ao arguido, mas também à testemunha
se, na sua avaliação, a resposta puder ter conteúdos incriminatórios. Depois coloca-se a questão
de saber se esse direito é apenas para não responder a perguntas ou se também se se aplica a
diligências de obtenção de prova material. Revelar um código-chave ou uma password para
aceder a um computador não são em si mesmas respostas incriminatórias, o conteúdo é que
pode ser, mas em si mesmo a resposta não o é. Se a polícia pedir a password a alguém para
desencriptar um ficheiro, a pessoa é obrigada a responder? A lei do cibercrime tratou esta
matéria com o direito ao silêncio, sendo que este foi alargado explicitamente a esta colaboração.
Ainda neste contexto surge a dúvida sobre se também se aplica à participação em diligências
de prova. Se houver, por exemplo, uma acareação para confrontar dois depoimentos
contraditórios, ao abrigo do artigo 146º, ou uma reconstituição do facto, prevista no artigo
150º, pode recusar-se a particular na diligência? Responder negativamente a essa questão,
admitindo que sozinho há direito ao silêncio, mas numa diligência de prova que será uma
colaboração contra si próprio não, seria subverter o regime do direito ao silêncio. O professor
Costa Pinto defende que tem de participar nas diligências, mas mantém o direito ao silêncio. Ou
seja, tem de participar na diligência e tem de participar na reconstituição do facto, mas não
tem de assumir respostas ou comportamentos que o incriminem.
O princípio non bis in idem, isto é, a proibição do duplo julgamento pelo mesmo crime,
consagrada no artigo 29º nº5 CRP, tem como origem as garantias das obrigações no direito
romano e resulta historicamente da proibição de exigir duas vezes o pagamento ao credor. Na
idade média, esta mesma ideia passou para o foro reservado da igreja, no sentido em que se o
clero fosse julgado pelos tribunais da igreja, não podia ser julgado pelo Estado. Era a chamada
garantia do privilégio do foro (eclesiástico).
Há, contudo, alguns problemas atuais. Um primeiro problema é a dupla punição e poderes
punitivos de diferentes Estados. Isto se, por exemplo, houver um crime de tráfico de droga que
passa por três jurisdições tendo todas elas competência para julgar. Outro problema é a
cumulação de responsabilidades de natureza distinta. Isto se uma pessoa comete uma ação
que é ao mesmo tempo geradora de responsabilidade civil, disciplinar e também penal. Os novos
ordenamentos jurídicos estão, por via da desconcentração de competências, a ser confrontados
com este problema de saber até onde se estende a proibição do duplo julgamento. O problema
já chegou ao TC português.
A manter que a aplicação dos princípios no processo tem diferentes formas e diferentes
fases. Alguns princípios podem ter um alcance diferente. Como se disse, o princípio do
contraditório é limitado nas fases preliminares, o princípio da imediação não existe na instrução,
só no julgamento. Sobre o princípio do juiz natural discute-se se é apenas para o julgamento, ou
se abrange também o JIC e o MP. O professor Costa Pinto defende que esse princípio existe para
o juiz do julgamento e não é aplicável aos magistrados do MP que não fazem um julgamento.
Porque é que se pode escolher o MP que vai fazer o inquérito, mas não o juiz do julgamento?
Tem que ver com a estrutura mista. No fundo, no inquérito apuram-se os factos, não se julga,
pelo que é possível escolher o mais competente para apurar os factos. Diversamente, o juiz de
julgamento tem uma atividades jurisdicional. As diferentes magistraturas, as diferentes funções
no processo podem levar a diferente configuração do princípio de juiz natural.
Vamos estudar a organização dos vários princípios fundamentais do processo penal com
base naquilo que é defendido pelo professor Figueiredo Dias. Contudo, a doutrina tem criado
um conjunto de princípios que encontramos no manual do professor Germano Marques da Silva
e no texto do professor Costa Pinto que não surge na organização do processo de Figueiredo
Dias.
O primeiro grupo que vamos estudar são os princípios relativos à estrutura e organização
do processo, depois veremos os princípios relativos à promoção processual, a que se seguirão
os princípios relativos à prossecução processual, os princípios relativos a prova e, por fim, os
princípios relativos à forma. São esses cinco grupos que esgotam praticamente os vários
princípios fundamentais do processo penal.
Em primeiro lugar, a estrutura acusatória do processo penal, prevista no artigo 32º nº5 CRP,
implica a separação de funções entre quem acusa e quem julga. Assim, a acusação é do MP e o
julgamento é de um tribunal. Quem acusa não julga e quem julga não acusa.
Em segundo lugar, este regime é garantido pelo regime dos impedimentos. A essência da
estrutura acusatória é preservar a imparcialidade do julgador que não deve estar envolvido na
descoberta dos factos e na organização das provas. O regime dos impedimentos consegue
garantir essa imparcialidade pelo que deve ser visto como uma parte importante da estrutura
acusatória do processo, designadamente os artigos 39º e seguintes que criam certos obstáculos
legais à função jurisdicional.
Por tudo isto, podemos agora concluir que um princípio tão elementar e simples de formular
como este da estrutura acusatória do processo penal é, na verdade, um princípio com densidade
Em primeiro lugar, gera uma distribuição formal do ónus da prova. Quer isto dizer que a
presunção de inocência obriga a que quem promova o processo tenha um ónus de provar a
acusação, isto é, o MP tem de ter elementos para provar a culpabilidade do arguido.
Em segundo lugar, a partir do momento em que a CRP declara que o arguido se presume
inocente, significa que o arguido não tem de provar a sua inocência no processo. Pode tentar
fazê-lo como estratégia de defesa, mas a lei não exige que o arguido demonstre a sua inocência,
exige antes que quem o acusa prove a sua responsabilidade.
➔ Judicialidade
De uma forma simples, o princípio da judicialidade dita que quando o ato processual colide
diretamente com direitos liberdades e garantias fundamentais tem de ter controlo judicial e
resulta dos artigos 27º nº1 CRP, 29º nº1 CRP e 32º nº1 CRP.
O princípio do juiz natural ou juiz legal está constitucionalmente consagrado no artigo 32º
nº9 CRP, donde se retira que não existe a possibilidade de retirar um caso do tribunal cuja
competência esteja determinada por lei. Isto significa que, por um lado, é a lei a determinar a
competência e que, por outro, é proibido o desaforamento por outro ato que não seja legal.
Então, é a lei e não outra fonte de outra natureza a determinar a competência dos tribunais e
aquilo que for atribuído pela lei não pode depois ser alterado.
Este princípio vale para o julgamento penal e a questão que se coloca é se também se aplica
a outros casos em que tenha intervenção sujeitos processuais, designadamente se também se
aplica à instrução e à intervenção do tribunal em atos fundamentais como a autorização de
escutas telefónicas ou o primeiro interrogatório judicial.
Segundo a letra da lei, o artigo 32º nº9 CRP não se aplica ao MP nem aos OPC, o que significa
que estes podem ser determinados ou afetos ao caso de acordo com as competências exercidas
pela sua hierarquia. Discutiu-se se pode ou não haver uma indicação de competência para o juiz
de instrução criminal na fase de instrução. O professor Costa Pinto defende que a garantia do
juiz legal visa proteger a competência do tribunal. Deste ponto de vista, não esta limitada ao
tribunal de julgamento, isto é, está pensada para o tribunal de julgamento, mas a letra e o
espírito é a preservação das competências do tribunal, pelo que se deve aplicar quer ao
tribunal de julgamento quer ao julgamento de instrução. Nunca pode ser um ato administrativo
ou político a afetar um certo juiz a um certo caso.
Uma questão a que vamos voltar: o mecanismo do artigo 16º nº3 que permite que um caso
seja remetido do tribunal coletivo para o tribunal singular viola o princípio do juiz natural?
Para já importa reter que a lei é um critério geral e abstrato que funciona como garantia da
imparcialidade do tribunal. O princípio do juiz natural aplica-se claramente ao tribunal de
julgamento e, na melhor interpretação, aplica-se ainda ao tribunal na fase de instrução e não se
aplica ao MP nem aos OPC.
Existe um patamar mínimo, no sentido em que só se aplica em crimes graves em que o júri
não esteja excluído. Isto significa que para haver intervenção do tribunal de júri tem de existir
um crime com uma certa gravidade e esse crime não pode ser do catálogo que proíbe a
intervenção do júri, como o terrorismo ou a criminalidade organizada. Isto porque
historicamente se sabe que o júri é vulnerável a ameaças da criminalidade organizada e isso iria
comprometer, ou pelo menos gerar a dúvida, sobre a imparcialidade do júri, e o Estado
português não quis sujeitar o processo penal a essa dúvida.
Este regime da CRP é concretizado tornando o júri facultativo. Nos termos do artigo 13º, só
há intervenção do júri se for requerida pelo MP, pelo assistente ou pelo arguido. Resulta da
CRP um conjunto de condições e isso limitou o legislador ordinário que só teve margem de
manobra na concretização dos tipos de crime (pena superior a 8 anos de prisão) e no
funcionamento do tribunal de júri, o resto é da CRP.
O processo penal não pode ignorar a vítima. Em Portugal, a vítima sempre teve a garantia
de poder participar no processo penal, embora o princípio da participação da vítima só tenha
sido consagrado constitucionalmente mais recentemente no artigo 32º nº7 CRP, onde se lê que
o ofendido tem o direito de intervir no processo.
Esta é uma garantia afirmada na CRP e desenvolvida pelo legislador no CPP. Temos uma
malha normativa relacionada com a vítima e com o ofendido que lhe garante vários momentos
e posições de intervenção processual. A mais importante é a posição de assistente consagrada
no artigo 68º, corresponde à materialização processual do princípio da participação da vítima
no processo, conformando a instância de acordo com a sua perspetiva.
A legalidade enquanto princípio relativo à promoção processual está consagrada nos artigos
203º CRP e 219º CRP e nos artigos 2º e 262º. É a lei que determina como é que se organiza o
processo e que é obrigatório promover o processo. Quando falamos de legalidade falamos de
duas coisas. Por um lado, é a lei que prevê o desenvolvimento do processo quanto às fases,
atos processuais e quantos aos requisitos dessas fases e atos. Por outro lado, também é a lei
que exige a obrigatoriedade de promoção do processo que garante a igualdade perante a lei.
Quando hoje assistimos a várias críticas que dizem que é irrealista ou que é absurdo
promover todos os crimes, o professor Costa Pinto acredita que a discussão está demasiado
simplificada porque o que está por trás disto é que todos os cidadãos sejam tratados por um
crivo de igualdade. As decisões de promoção dos processos não podem assentar em
considerações de adequação, necessidade ou de consequências.
Mesmo as solução de alguma oportunidade que já analisamos estão previstas na lei. O nosso
legislador não tem excecionado demasiado o dever de promoção, apenas permite uma certa
flexibilização do processo dentro da lei e que é garantido dentro do quadro legal. Porque se
assim não for, e forem sendo criados mecanismos de oportunidade e de negociação da culpa, é
possível que quem tenha alguma coisa para oferecer por ter uma carreira criminosa tenha mais
sorte na via criminal do que quem não tem. É uma injustiça planeada pelo sistema anglo-
americano. O nosso sistema assenta num princípio de legalidade com dever de promoção,
sendo que as exceções se fazem dentro do processo e com controlo judicial.
Então, por um lado há a preocupação em garantir a igualdade das pessoas visadas pelos
processos e, por outro lado, a previsibilidade da evolução do processo, isto é, a possibilidade
de se contar à partida com aquele que será o desenvolvimento dos atos processuais a praticar,
enquanto desenvolvimento do princípio da confiança. Depois há uma oportunidade interior ao
processo e regulada pelo processo. Temos uma legalidade estrita temperada por oportunidade
que são mecanismos intraprocessuais, que permite controlar as decisões que têm de ficar
formalmente registadas.
O princípio da oficialidade significa que temos uma entidade oficial que se encarrega de
promover o processo penal, com exceção dos crimes particulares. É uma opção congruente com
a natureza pública do processo penal. Não cabe aos particulares o ónus de promover os
Em regra, temos uma entidade pública, o MP, encarregue de dirigir o inquérito com apoio
de outras entidades públicas, os OPC. Essa entidade pública corresponde a uma magistratura
de carreira que realiza a justiça penal com acolhimento constitucional no artigo 219º CRP. Isto
quer dizer que quer na abertura, acompanhamento quer na decisão final do inquérito, a
titularidade é do MP. É claro que é apoiado pela delegação de competências aos OPC, mas todas
as decisões fundamentais são do MP. Esta matéria é densificada no CPC, artigo 48º e seguintes.
Em processo penal não temos detetives privados com competências criminais, nem há a
possibilidade de particulares levarem um caso a julgamento por si só, como acontece na matéria
cível. Esta é uma opção de direito público. No fundo, existe uma entidade pública a decidir se o
caso vai ou não a julgamento. Este ponto hoje é discutível e entre nós não é pacífico a questão
de saber se a titularidade do inquérito deve estar com o MP. O professor Costa Pinto defende
que é uma boa opção até porque o controlo judiciário é garantido em certas circunstâncias.
➔ Acusação
O princípio da acusação, até por confusão semântica, por vezes confunde-se com a estrutura
acusatória. A estrutura acusatória é uma forma de organizar o processo, enquanto que o
princípio da acusação é uma exigência segundo a qual não há julgamento se não houver
acusação prévia. Então tem de haver imputação indiciária dos factos numa acusação antes do
julgamento, nos termos do artigo 283º (acusação pelo MP) ou, nos termos do artigo 285º
(acusação pelo assistente nos crimes particulares).
➔ Vinculação temática
O nº5 artigo 29º CRP está formulado para “o mesmo crime”, o que significa que não
podemos retirar daqui uma proibição de pluralidade de processos pelos mesmos factos. O TC
pronunciou-se sobre esta questão e declarou que o processo disciplinar tem total autonomia
com o processo criminal. O primeiro visa garantir aspetos fundamentais de exercício de uma
atividade profissional, enquanto que o segundo tem que ver com responsabilidade por violação
de bens jurídicos, sendo que ambos são juridicamente autónomos e cumuláveis.
Temos aqui um ponto importante de análise para afirmar que a pluralidade de processos
de diferente natureza ou da competência de entidades diferentes, por si só, não é um
problema de repetição do julgado, coberto pela norma constitucional. É uma realidade
diferente em que existe uma pluralidade de processos para proteger interesses diferentes e por
isso, defende o professor Costa Pinto, que esta proibição da CRP está pensada apenas para
proibir a repetição do julgamento em matéria penal.
Um caso que já foi julgado impede novo julgamento pelo mesmo facto. E se dúvidas
existissem, a CRP vem garantir. Isto é mais importante porque não temos um regime de caso
julgado no CPP, temos é esta norma fundamental que garante o caso julgado.
Não se pode repetir um inquérito ou uma nova instrução se os mesmos já tiverem sido alvo
de julgamento por três razões. Em primeiro lugar, o inquérito ou a instrução não valem por si
só. Em segundo lugar, o MP no inquérito e o JIC na instrução estão vinculados à legalidade. Por
fim, uma terceira razão, essa promoção seria inútil porque se estaria a avançar com um
processo que não pode ser julgado.
São estas razões que levam o professor Damião da Cunha a retirar do artigo 29º nº5 CRP
uma regra hermenêutica para o MP: está proibida a promoção de um inquérito ou dedução
acusação pelo mesmo crime. O trânsito em julgado produz um efeito preclusivo do caso julgado
com aqueles factos e com aquele enquadramento.
➔ Investigação
Consagrado no artigo 340º, princípio da investigação está entre nós claramente formulado
para a fase do julgamento e, basicamente, estabelece que dentro do que é apresentado pela
acusação, o tribunal tem um poder-dever de investigar o caso. O caso não é de partes, mas é
orientado para a realização da justiça penal. O tribunal tem um estatuto ativo funcionalmente
vinculado à descoberta da verdade. Assim sendo, temos um processo de estrutura acusatória
completada com um princípio da investigação e de vinculação temática.
➔ Contraditório
Então quando falamos em contraditório podemos estar a falar disto tudo. Em audiência de
julgamento o contraditório revela-se na sua plenitude: as pessoas acompanham o julgamento,
têm conhecimento dos factos e enquadramento, participam na decisão e podem recorrer.
Nas outras fases, por opção legislativa por um processo misto, isto não é assim. Tem
características diferentes nas fases preliminares. A fase de inquérito não é contraditória e a
fase de instrução tem um contraditório limitado. Este contraditório limitado significa que a
É por isso que o processo tem de passar pela fase de julgamento para participarem todos os
sujeitos processuais num quadro de pleno contraditório. Esta afirmação de que as fases
preliminares não são contraditórias é verdadeira, mas há certos atos que são contraditórios. Isto
não é uma contradição, é uma nuance do regime para harmonizar os interesses conflituantes.
Em princípio, o inquérito não é contraditório, mas pontualmente em certos atos poderá haver
lugar a contraditório. Se houver aplicação de uma medida de coação há direito ao contraditório
por força do artigo 194º. Se for aplicada a medida de coação existe o contraditório pleno para
garantir os interesses entre a fase marcadamente inquisitória e os direitos de defesa do arguido.
Desde 2007, o artigo 194º passou a criar condições do exercício do contraditório, segundo
o qual o arguido tem todos os direitos: ser ouvido (direito a audiência prévia), ter acesso às
informações, participar na diligência numa sessão em que são apresentados os elementos
(participa tentado influenciar o processo decisório, ele não é apenas ouvido, ele pode emitir
opiniões sobre vários aspetos relevantes, significa poder acompanhar toda a diligência e não
apenas ser ouvido antes de ser tomada a decisão) e depois pode impugná-la. Não podem ser
usados para fundamentar, elementos que não sejam dados ao arguido. Então temos uma fase
não contraditória, mas que podem envolver atos que exigem um contraditório pleno.
A reter:
➔ Concentração
O princípio da suficiência não está acolhido com esta designação, mas vem no artigo 7º,
segundo o qual o tribunal penal tem competências amplas em termos materiais e conhece
qualquer questão que seja relevante para a decisão da causa. Os tribunais penais podem
conhecer questões penais e também de outra natureza, o contrário não sucede. O professor
Cavaleiro Ferreira enquadra este princípio na competência, o que revela uma supremacia da
jurisdição penal face aos restantes.
O que é uma questão prejudicial que pode afetar a decisão do tribunal e que pode motivar
uma suspensão da instância para a devolução a um tribunal não penal? Tem três características.
Em primeiro lugar é uma questão com antecedência lógico-material, o que significa que tem de
ser resolvida pelo tribunal antes de resolver a questão de fundo que tem de analisar, neste caso
a questão penal. Não é uma simples questão processual prévia como a competência, tem de ser
questão material. Em segundo lugar, tem autonomia, isto é, é uma questão que só por si podia
ser tratada num processo autónomo. Por fim, é uma questão de resolução necessária, no
sentido em que só se pode trabalhar o tipo incriminador em causa se esta questão estiver
resolvida.
O tribunal tem uma competência material ampla, mas também pode suspender e devolver
a questão a outro tribunal. Porque o regime é de devolução facultativa e o tribunal tem
competência material ampla, estão ao serviço do princípio da concentração. Resta-nos perceber
o âmbito de aplicação do artigo 7º. O professor Costa Pinto considera uma trilogia de questões.
O primeiro tipo de questões são questões penais que surgem num processo não penal. Isto
se, por exemplo, se num processo de natureza cível surge um problema de falsificação de
assinaturas ou de abuso de confiança. Ora, estas questões não estão no âmbito do artigo 7º,
são uma questão para o processo não penal, quanto muito serão uma fonte de notícia do crime
para abertura de um processo penal, mas não cabem nesta norma.
O segundo tipo de questões são questões penais que surgem num processo penal. Se, por
exemplo, o tribunal tiver de primeiro perceber se há ou não um dever de garante, esta questão
tem antecedência lógico-material e tem autonomia, mas não está no âmbito do artigo 7º por
causa da letra do preceito que faz referência expressa a “questão não penal”. Não cabendo nesta
norma, o tribunal não pode fazer devoluções, o que significa que tem de se pronunciar se tiver
competência para isso e se tiver um processo que em termos de vinculação temática o permita.
Notar que só pode haver devolução para um processo distinto de natureza diferente se
esse processo existir. Quer isto dizer que não se pode devolver a questão para que seja
promovido um processo civil porque este depende do impulso da parte processual. Então, o
problema da devolução só se coloca se existir um processo concomitante de outra natureza.
Concluímos assim que o artigo 7º tem duas partes. Uma que é que é intensamente aplicada:
o princípio da competência material ampla que favorece a concentração e que se traduz na
regra segundo a qual o tribunal penal tem competência para conhecer questões de natureza
não penal. A outra parte da norma é a devolução facultativa para um processo diferente que é
muito menos aplicada, desde logo porque prossupõe que esteja outro processo em curso para
onde se possa enviar a questão não penal controvertida.
Uma questão que se levanta é se o tribunal penal fica vinculado à decisão do tribunal para
quem devolveu a questão não penal. O professor Germano Marques da Silva afirma que sim,
porém não há nada na lei confirma isso. Diferentemente, o professor Costa Pinto defende que
o tribunal tem de decidir no quadro da prova existente e, portanto, não fica vinculado a nada.
Vejamos um exemplo. Imagine-se que há uma presunção de filiação por filhos nascidos na
constância do matrimónio. Esta é uma presunção que pode ser ilidida, tendo em conta que uma
prova por presunção não tem de ser necessariamente aceite pelo processo penal. Pode suscitar
a dúvida razoável ou dúvidas quanto ao processo metodológico, por exemplo. Na ótica do
professor Costa Pinto, e aqui é que está a divergência com o professor Germano Marques da
Silva, mesmo que tenha devolvido a questão não penal, quando recebe a resposta, o tribunal
penal deve verificar se a respos foi obtida mediante regras de prova compatíveis com o
processo penal. Isto por uma razão muito simples: se o tribunal penal tivesse conhecido a
questão no processo penal, teria de conhecer com a s regras de prova que vigoram neste tipo
de processo.
Há, então, três argumentos para concluirmos que a decisão do tribunal não penal não é
vinculativa para o tribunal penal que enviou a questão ao abrigo do mecanismo do artigo 7º. O
primeiro argumento, já mencionado é que não está na lei que é vinculativa.
Em segundo lugar, é razoável interpretar a receção da questão como uma decisão não
vinculativa porque carece de ser compatibilizada com o princípio da legalidade e com as regras
de prova de processo penal. Isto significa que as regras de prova usadas no outro processo,
como as presunções legais, podem ser incompatíveis com as regras de prova do processo penal.
Havendo devolução tem de se harmonizar essas regras.
Por fim, uma terceira razão apontada é o facto de que se for desenvolvida no processo
penal tem necessariamente de ser resolvida de acordo com o processo penal. Quer isto dizer
que se o tribunal penal decidir uma questão de outra natureza ao abrigo da concentração
material, vai seguir as regras de prova do processo penal.
Antes de abordarmos os princípios relativos à prova, uma afirmação essencial sobre a prova.
A prova é a demonstração da verdade dos factos e pressupõe sempre uma atividade
processual que tenta aproximar aquilo que se passa no processo da verdade histórica. O
objetivo é que a verdade de que consegue demonstrar através dos meios de prova se aproxime
do que aconteceu na realidade, mas será sempre uma verdade reconstruída. A prova é essencial
porque os factos não nascem no processo autonomamente. Neste sentido, importa olharmos
para os artigos 124º e seguintes.
Temos sempre três realidades: aquilo que se demonstra (factum probandum), o meio de
prova através do qual se demonstra e a convicção sobre a prova existente. Por exemplo, aquilo
que se demonstra é o factum probandum, estão dois livros em cima da mesa, como se
demonstra pode ser através de uma testemunha, e a valoração da prova é concluir que estavam
dois livros em cima da mesa.
➔ Liberdade de prova
O princípio da liberdade de prova significa que qualquer meio de prova legal é adequado a
provar a verdade material. Este princípio está consagrado no artigo 125º que estabelece que
são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
Um outro aspeto fundamental é que entre nós não existe hierarquia da prova. Isto significa
que os meios de prova valem todos os mesmo, não há uma mais valiosa. As declarações do
arguido não valem mais nem menos do que as declarações da testemunha, por exemplo.
De igual modo, a liberdade de prova também é favorecida pelo facto de, entre nós, a prova
poder ser direta ou indireta. A prova direta mostra diretamente o factum probandum,
enquanto que a prova indireta mostra um facto do qual se pode inferir outro. O que é
importante é que no nosso sistema, ambas têm o mesmo valor, isto é, tanto a prova direta como
a prova indireta valem o mesmo. A única diferença é quanto à fundamentação: a prova indireta
exige demonstrar a fundamentação que permite a inferência, isto é, exige a demonstração do
raciocínio que permitiu chegar do facto conhecido ao desconhecido. As presunções de flagrante
delito são no fundo prova indireta normativizada.
➔ Legalidade da prova
➔ Imediação
O princípio da imediação, previsto no artigo 355º, exige contacto direto com os meios de
prova, o que significa que a prova tem de ser produzida ou analisada em julgamento, como já
vimos. Importa reiterar que esta exigência é para a fase de julgamento e não vale para o
inquérito nem para a instrução. Em julgamento, uma testemunha tem de ser ouvida perante
todos em contexto de audiência de julgamento. Numa fase de inquérito, a testemunha pode ser
ouvida no gabinete da polícia. No âmbito da inquérito é possível o MP usar as declarações de
uma testemunha que não teve me contacto consigo, mas com um órgão de polícia criminal.
Exige-se este contacto direto com as provas na audiência de julgamento por duas razões,
uma mais visível do que a outra. Em primeiro lugar, para que se possa exercer o contraditório.
Por outras palavras, é preciso ter a prova em julgamento para que a sua produção e análise se
faça perante todos e todos possam exercer o contraditório. Em segundo lugar, numa razão
menos visível, para que o tribunal forme a sua própria convicção e não dependa das convicções
sobre a prova que foram usadas nas fases anteriores, do MP ao acusar ou do JIC ao pronunciar,
por respeito à estrutura acusatória do processo penal. É a convicção do tribunal sobre os factos
que tem de estar plasmada na sentença como exige o artigo 374º nº2.
A prova aprecia-se de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, isto é, de acordo
com a convicção que a prova produz no julgador em termos de lhe dar alguma certeza ou
suscitar algumas dúvidas. Este princípio vem previsto no artigo 127º onde se lê que a prova é
apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Antes tínhamos a prova a tarifada no sentido em que cada meio de prova tinha um valor
prefixado anterior ao julgamento. Num modelo acusatório, tem de resultar de um contraditório
sobre a prova de forma a que o juiz forme a usa própria convicção sobre os factos. Ora no nosso
modelo rejeitou-se o modelo da prova tarifada e agora exige-se que o juiz crie a sua convicção
de acordo com regras da experiência comum que implicam uma perspetiva de maior ou menor
plausibilidade. Estas regras da experiência comum são todo o conhecimento sobre o mundo, a
vida e as pessoas que permitem dizer que “é razoável que isto se passe assim”. Podemos dizer
com alguma segurança que se uma pessoa vai a correr, pode estar atrasada, pode querer
apanhar um autocarro ou pode estar a fugir de alguém. Quando um arguido da operação
Importar clarificar que o princípio da livre apreciação da prova não é uma remissão para a
arbitrariedade. O nº2 artigo 379º consagra um dever de fundamentação. O juízo de prova exige
a identificação da prova de onde se retira uma conclusão e exige que se fundamente essa
conclusão. A plausibilidade, a coerência, a congruência entre os factos é muito relevante para a
demonstração do juízo de prova.
Foi isto que o MP fez quando deduziu acusação na operação Marquês e é isto que o juiz de
instrução está a fazer prova a prova, facto a facto, para perceber se é o juízo de acusação ou o
juízo da defesa que tem razão. Aquilo que vai ser feito ao nível da prova indiciária e do controlo
de legalidade é um juízo de livre apreciação da prova formal dos autos e, neste caso, enriquecida
por uma versão alternativa da defesa que permite explicar os factos que tem de ser avaliada.
O tribunal tem poderes de investigação autónomos para descobrir a verdade material, que
surgem como instrumentos importantes para atingir um dos mais importantes desígnios do
processo penal: aproximar ao máximo a verdade do processo da verdade material. Estes
poderes de investigação surgem ao longo de todo o processo (inquérito, instrução e audiência
de julgamento). Isto ao contrário do que acontece com outros princípios, contraditório e
imediação, por exemplo, que apenas surgem em certas e determinadas fases processuais.
No artigo 340º lemos que o tribunal tem o poder-dever de ordenar a produção de todos
os meios de prova que se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da
causa.
O princípio in dubio pro reo dita que, em caso de dúvida razoável, pertinente e irresolúvel,
a decisão deve ser favorável ao arguido. Este princípio não está consagrado expressamente, na
CRP nem no CPP, mas é uma decorrência da presunção de inocência (artigo 32º nº2 CRP).
O princípio in dubio pro reo é, termos técnicos, uma regra de decisão perante a dúvida, não
é uma regra de apreciação da prova. É uma regra residual da decisão perante a dúvida, isto é,
se o tribunal chegar a uma dúvida, tem de decidir de acordo com o significado da dúvida e não
de acordo com os indícios. Porque o arguido se presume inocente, a prova tem de ser
suficientemente consistente para ilidir a presunção. Portanto não pode ser uma prova com
dúvidas.
O professor Costa Pinto defende que podem haver dúvidas no inquérito e na instrução. Pode
haver acusação ou pronúncia sem conhecer a história completa, com algumas dúvidas, porque
só se exige prova indiciária. Já no julgamento, tem de se saber a história completa. Só se pode
invocar a dúvida razoável, pertinente e irresolúvel na fase do julgamento. Então tem de ser
A ideia central a reter é que o princípio in dubio por reo não é uma regra de apreciação da
prova, mas de decisão perante a dúvida. A dúvida funciona como critério subsidiário de
decisão: em caso de dúvida razoável pertinente e irresolúvel, o tribunal deve decidir
favoravelmente ao arguido. Depois de esgotados os meios de prova e os poderes de
investigação, o tribunal decide legitimamente de acordo com a dúvida, é isso que é congruente
com o princípio da presunção da inocência.
Esta construção dos princípios relativos à prova, em alguns aspetos podia ser diferente, mas
alterava o modelo de processo penal português. De igual modo pode discutir-se se deve ou não
ter esta regra subsidiária no in dubio pro reo, mas a sua eliminação provocaria uma alteração
fundamental no nosso sistema. Há grandes discussões em vários temas, como no tribunal de
júri, porque o terrorismo é um crime de enorme violência.
Depois, outra grande questão é a evolução tecnológica que tem traduzido desafios
fundamentais à prova e à forma como funciona a prova. Atualmente qualquer pessoa tem
possibilidade de gravar os acontecimentos, o que pode gerar problemas de a lei acompanhar ou
não as tecnologias. Quando surgiram os telemóveis foi um desenvolvimento enorme porque
não era possível fazer escutas de chamadas telefónicas. Há duas grandes formas de reagir a essa
evolução tecnológica: ou o legislador cria cláusulas abertas para integrar a tecnologia futura, ou
o legislador cristaliza em cada momento aquilo que é a prova admissível no âmbito do processo
penal. Como em Portugal vigora a liberdade de prova dentro da legalidade, em relação a certos
meios, discute-se se eles, existindo, são ou não prova legal.
Um exemplo disso atual é o sinal de GPS. Os tribunais portugueses têm considerado que
esta prova não está prevista na lei e tinha que estar, pelo que é prova ilegal. Diversamente há
quem entenda que, dentro do princípio liberdade de prova, esse tipo de elementos entra no
processo. O professor Costa Pinto considera que a lei penal não pode passar cheques em branco
para o futuro e que é possível o legislador acompanhar de forma relativa e, através do processo
legislativo, adaptar à evolução tecnológica.
Como nos diz o professor Germano Marques da Silva, este princípio tem uma justificação
eminentemente política, manifestando-se, na sua formulação atual, como uma conquista do
pensamento político liberal. A publicidade do processo foi reivindicada pelo pensamento liberal
como instrumento de garantia contra as manipulações da justiça de gabinete, característica da
época do absolutismo, como meio de controlo da justiça pelo povo, primeiro, e como
instrumento de fortalecimento da confiança do povo nos tribunais, depois.
O princípio da publicidade, consagrado nos artigos 206º CRP, 86º e 321º, visa garantir que
a justiça penal é transparente quando se realiza, compreensível a todos os que queiram
assistir e controlável por qualquer cidadão, a não ser que exista alguma restrição ponderada
no caso concreto. Tem que ver com aquilo que é a justiça penal do Estado de direito
democrático: não é secreta, é transparente, realiza-se aos olhos de todos. Notar que só existindo
oralidade é que este princípio da publicidade pode ter dimensão efetiva.
O princípio da imediação (artigo 355º nº1) que já analisamos exige o contacto direto com
os meios de prova que significa que a prova é produzida ou examinada em audiência de
julgamento e, desse ponto de vista, está também ao serviço de outros princípios como o
princípio da publicidade, a livre apreciação da prova ou a estrutura acusatória, mas a nossa lei
apenas prevê o princípio da imediação para a fase do julgamento.
O tribunal forma a sua própria convicção, não está dependente do que vem de trás. Isto é
algo estruturante, mas válido apenas para a fase de julgamento. No inquérito, quem decide
pode não ter contacto com uma parte da prova que pode ser produzida perante a polícia e não
perante o MP, sendo que este tem acesso a um relatório. O mesmo se diz para a fase de
instrução porque o JIC pode delegar diligências de prova. Há mesmo quem diga que não há uma
verdadeira estrutura acusatória, nem independência do tribunal de julgamento ou separação de
funções se não houver imediação. O tribunal tem contacto direto com as provas e não apenas
com a convicção que resultou das fases anteriores, o que lhe dá uma grande legitimidade
decisória e autonomia do julgamento.
➔ Representação especializada
Por outras palavras, tem de existir um advogado que é mandatário do arguido e um que é
mandatário do assistente em todas as fases processuais. O processo contraordenacional não é
assim, não tem esta exigência, porque nas fases administrativas não é preciso, mas em processo
penal é fundamental.
Depois há princípios que não têm consagração constitucional, mas que deles depende a
própria imagem da realização da justiça penal, fundamentais para avaliação crítica, como:
• Inteligência e lucidez
• Competência (jurídica, política e legislativa)
• Boa formação
• Delicadeza
• Bom senso
• Tempo – não há justiça penal na hora. Exige tempo para ser realizada.
• Texto do JFD – “sobre os sujeitos processuais” Jornadas sobre o CPP CEJ (1988), p. 3 e
seguintes (foi o suporte para o código)
• GMS – DPP I (2017) p.157 e seguintes
• MJA – DPP (2013) p.29 e seguintes (acrescenta a perspetiva do TC sobre este tema)
• Cuidado a ter ao ler textos escritos entre 2013 e 2016 (alterações ao processo sumário)
• FCP – textos disponíveis no moodle
• Moodle – esquema da distribuição da competência material; versões atualizadas da
LOSJ; novo estatuto do MP que foi aprovado em agosto.
Esta matéria tem duas partes. A primeira é a compreensão orgânica de como funciona a
justiça penal a partir dos sujeitos processuais através dos seus estatuto. Existe uma base legal,
com um conjunto de regras fundamentais sobre os vários sujeitos processuais. Isto significa que
não é uma mera construção doutrinária, é o próprio código que regula os vários intervenientes
enquanto sujeitos processuais com um estatuto e direitos específicos. A segunda parte é a
compreensão dos pontos mais complexos: a competência do tribunal, a relação do MP com os
OPC, os direitos do arguido e a forma como este se relaciona com o seu defensor.
Referentes legais
As partes civis têm uma intervenção limitada no processo, limitada à pretensão cível. As
partes civis são o lesado e a pessoa com responsabilidade civil.
O lesado, previsto no artigo 74º, é a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime e
deduz um pedido de indemnização civil, ainda que não se tenha constituído ou não possa vir a
constituir-se assistente. O pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com
responsabilidade meramente civil, previstas no artigo 73º, que podem ser demandadas não
pela parte criminal, mas pela reparação dos danos civis.
Por exemplo, se alguém foi objeto de um crime de agressão à integridade física, teve
despesas hospitalares e pede uma indemnização, essa parte da indemnização é questão conexa,
mas autonomizada em relação à questão penal. Se um adolescente de 14 anos é titular do bem
jurídico “integridade física” que é objeto que uma agressão, claramente que é o lesado, mas
como é menor não se pode constituir assistente. Os assistentes serão os seus pais que podem
ter tido despesas autónomas e assumir a posição de lesado nessa parte que não se confunde
com o estatuto de assistente. De igual modo, há intervenientes que podem ter uma
responsabilidade meramente civil como é o caso de uma seguradora.
Então pode existir uma parte ativa e uma parte passiva que não são sujeitos processuais
por não terem poder de conformação, e é este o critério usado pelo professor Figueiredo Dias.
Importante também notar que os órgãos de política criminal não são sujeitos processuais.
São absolutamente decisivos porque realizam, na prática, a investigação criminal, mas não são
sujeitos processuais. O código não lhes atribui a titularidade de nenhuma fase processual, são
intervenientes adjuvantes quer ao tribunal quer ao MP.
Fazem a investigação criminal, mas depois não são eles a tomar as decisões em função dessa
investigação. O nosso código de processo penal não criou momentos da titularidade dos órgãos
de polícia criminal e essa foi uma opção tomada deliberadamente.
O Tribunal Penal
O tribunal penal tem algumas características fundamentais que importa referir, desde logo
as configuradas constitucionalmente. Nos termos do artigo 211º CRP, só os tribunais judiciais
têm competência em matéria penal. As questões penais são da exclusiva competência dos
tribunais judiciais, o que quer dizer que os tribunais administrativos, os tribunais laborais, não
têm competências de natureza penal.
Além do mais, a lei associa às matérias da competência a tutela forte das nulidades. Esta é
uma questão de tal forma importante que a lei processual pune a sua violação com nulidade,
nos termos do artigo 119º e). Para o professor Costa Pinto, estudar esta matéria é, no fundo,
estudar a legalidade.
Regras constitucionais
Alguns aspetos dos tribunais penais são tratados, desde logo, ao nível da CRP. Vejamos
então algumas regras constitucionais. Em primeiro lugar, destaca-se o facto de existir um regime
de separação de poderes em que os tribunais são sujeitos à lei e são órgãos de soberania.
Em segundo lugar, resulta dos artigos 203º CRP e 216º CRP que os juízes têm um estatuto
definido constitucionalmente de independência, inamovibilidade e irresponsabilidade. Estes
três valores fundamentais visam garantir a imparcialidade e a autonomia dos tribunais.
Em terceiro lugar, a nossa constituição na configuração atual, proíbe que existam tribunais
específicos com competência exclusiva para julgar certas categorias de crimes, nos termos do
artigo 209º CRP. Assim sendo, não é possível existirem tribunais para julgar apenas crimes de
corrupção, por exemplo. Claro que isto tem uma evolução histórica porque havia tribunais
plenários da criminalidade política, mas é certo que ficou esta proibição genérica na CRP. Pode
haver e há especialização do MP ao nível dai investigação, mas não dos tribunais.
Referir ainda que quando a nossa CRP consagra no nº9 artigo 32º CRP o princípio do juiz
natural ou juiz legal, visa garantir a imparcialidade do tribunal. O tribunal penal não pode ser
escolhido de uma forma ad hoc, tem de ser determinado através de critérios legais de
competência, e não há possibilidade de desaforamento do tribunal com competência legal.
Finalmente, o legislador constitucional consagra no artigo 32º nº4 CRP a reserva de juiz em
matéria que diga respeito a atos que colidam com direitos fundamentais. É por isso que nas
fases processuais em que a titularidade não é do juiz, com acontece no inquérito, se exige a
intervenção do juiz criminal para decidir um certo ato processual que colida com direitos
fundamentais. Quando assim não é, a legislação em causa é inconstitucional.
O nosso sistema judiciário está repartido por todo o país. Ao nível das diversas comarcas,
existe uma competência geográfica delimitada pelo território. Os tribunais superiores também
se organizam por um critério territorial. São cinco Tribunais da Relação: Lisboa, Guimarães,
Porto, Coimbra e Évora. O CPP faz também apelo a alguns critérios que vamos referir e em
função deles faz uma distribuição da competência material. Então, os dois grandes critérios
fundamentais de competência são em função do território e em função da matéria.
Em primeiro lugar, convém ter presente que aquilo a que estamos a tratar, e que é regulado
pelos artigos 13º e seguintes, é a competência do tribunal para fazer o julgamento, mas o
Outro aspeto importante para perceber a organização da competência tem que ver com a
estrutura do tribunal. O tribunal penal pode funcionar com uma composição diferente:
tribunal singular (artigo 16º), tribunal coletivo (artigo 14º) ou tribunal de júri (artigo 13º). Estas
três modalidades de composição do tribunal são particularmente importantes na economia do
código porque o tribunal realiza a competência em função da composição.
Do ponto de vista estatístico, temos cerca de meio milhão de julgamento penais por ano. A
maior parte em tribunal singular. O tribunal de júri é muito raro, só cerca de 10 casos por ano.
Existe essa possibilidade, mas entre nós não é comum.
Modalidades de competência
➔ A competência funcional
A competência funcional tem que ver com a função específica de um certo tribunal e
resulta dos artigos 17º, 18º e 288º. Um bom exemplo é o do artigo 18º sobre o tribunal de
execução de penas, que remete a sua regulação para lei especial. Nas palavras do professor
Germano Marques da Silva, a competência funcional delimita a jurisdição dos diferentes
tribunais materialmente competentes dentro do mesmo processo e segundo as suas fases ou
degraus e para a prática de determinados atos dentro de cada fase ou grau de jurisdição.
➔ A competência territorial
A regra fundamental em matéria de competência é a que consta do nº1 artigo 19º, onde se
lê que é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a
consumação. A consumação do crime neste sentido é fundamentalmente um conceito formal,
e significa a verificação integral de todos os elementos do tipo incriminador. Assim, de acordo
com este critério, o local onde o agente tiver sido suprido um objeto com intenção de
À partida, o local em que tiver morrido uma pessoa, será o lugar onde será julgado o crime
de homicídio, mas em 2007 o legislador criou uma exceção no nº2 deste artigo. Estabeleceu
que, tratando-se de crime que compreenda como elemento do tipo a morte de uma pessoa, o
critério é o do local onde a conduta foi praticada, a ação ou omissão que praticou a morte, e
não o local da consumação. Assim, vale o local da ação e não o local da morte.
O que temos nos outros números são regras especiais para certo tipo de crimes ou para
certas formas de execução dos tipos de crime. No nº3 lemos que nos chamados crimes
duradouros e nos crimes habituais, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o
último ato ou tiver cessado a consumação.
É o caso do sequestro em que a pessoa é detida num certo momento e, enquanto for
mantida nessa situação, a pessoa está sequestrada e o crime está a verificar-se. O que significa
que temos dois momentos de consumação: a agressão do bem jurídico e a ilicitude que se
prolonga no tempo por decisão do agente. Outro exemplo é o crime de furto de uso de veículo,
previsto no artigo 208º CP. Apesar de o crime de furto ser instantâneo, porque ocorre no
momento com o ato de subtração do objeto, o crime de furto de uso de veículo é duradouro
porque o facto se prolonga no tempo e no espaço.
Estes dois momentos de consumação são relevantes para vários temas como a aplicação da
lei no tempo por exemplo e para efeitos da legítima defesa também. Ao nível processual, os
crimes duradouros ou permanentes têm esta particularidade de a consumação se prolongar no
tempo, mas também pode prolongar-se no espaço o que coloca questões de territorialidade. O
critério da lei é o local em que cessou o período de consumação. No fundo, o legislador utiliza
o critério do local em que tiver cessado a consumação. Se a pessoa foi sequestrada em Lisboa,
mas fugiu em Coimbra, é esse segundo local a área do tribunal competente.
No nº4 é utilizado o mesmo critério para determinar a competência para julgar os atos
preparatório puníveis ou a tentativa. Se o crime não tiver chegado a consumar-se, é
competente para dele conhecer o tribunal em cuja área se tiver praticado o último ato de
execução ou o último ato de preparação. Assim, se foi tentada a extorsão por uma chamada
telefónica de Cascais para Lisboa, o último ato será o que determina a competência.
O artigo 20º trata da competência territorial para os crimes ocorridos a bordo de navios ou
aeronaves e estabelece o critério do local onde está ou para onde se dirige o veículo.
➔ A competência material
O nosso código estabelece a competência material com base em vários critérios que
constam dos artigos 13º, 14º e 16º. Nestas densas normas, a competência material distribui-
se entre o tribunal singular, o tribunal coletivo e o tribunal de júri.
O que está subjacente a esta distribuição material de competência são duas considerações,
uma mais visível que outra. O que é visível é que os crimes mais graves são atribuídos ao
tribunal coletivo e, eventualmente, ao tribunal de júri. Por outro lado, e é este aspeto que não
está tão visível no nosso código, o tribunal coletivo tem, em regra, magistrados mais
experientes. O tribunal coletivo é composto por magistrados que já têm dez, quinze ou até vinte
anos de experiência de julgamento do que os magistrados dos tribunais singulares.
Importa então perceber como é que o código organiza esta distribuição material de
competência. Tem duas grandes normas que estabelecem a competência do tribunal coletivo e
do tribunal singular, e uma outra que estabelece a competência do tribunal de júri. Estas normas
são muito complexas porque têm muitas regras com exceções. Vejamos quais são os critérios.
Porém, este critério sofre várias alterações porque, além do critério quantitativo, o
legislador aplica também critérios qualitativos, segundo os quais, certas matérias ou certos
crimes são atribuídos a um certo tribunal. Quando o legislador utiliza um critério relacionado
com a natureza do crime dizemos que é um critério qualitativo. Por exemplo, os crimes de
Há crimes de homicídio em que a pena abstrata máxima não ultrapassa os cinco anos, como
é o caso do homicídio privilegiado (artigo 133º CP) ou do infanticídio (artigo 136º CP). Olhando
apenas para o critério quantitativo, diríamos que a competência material era do tribunal
singular. Já se olhássemos para o critério qualitativo, chegaríamos à conclusão de que o tribunal
competente seria o coletivo. Importa então perceber como é que se articulam as várias regras.
Há duas regras hermenêuticas simples para estes casos: a prevalência dos critérios qualitativos
e a prevalência das reservas de competência.
Para preservar as regras legais de distribuição material de competência, têm que ser
respeitadas as reservas legais de competência. Como vimos a propósito da história e evolução
do processo sumário, o legislador entendeu eliminar a reserva do tribunal coletivo em 2013,
mas recuperou-a em 2016. Estas reservas têm de ser respeitadas, não se pode proceder a um
desaforamento de um tribunal para outro, o que seria uma nulidade insanável (artigo 119º e)).
Dentro da competência do tribunal coletivo, coluna do meio, temos alguns crimes que, por
estarem previstos na CRP como proibidos no tribunal do júri, acabam por ser da reserva do
tribunal coletivo, e não pode em relação a eles existir requerimento para júri. Isto significa que,
nos crimes de terrorismo e criminalidade altamente organizada, se for formado tribunal de júri,
há uma incompetência material que viola a Constituição.
Depois há uma reserva legal do tribunal coletivo em função da natureza de certos crimes tal
como está previsto no artigo 14º nº2. Cria-se uma reserva legal do tribunal coletivo perante o
tribunal singular quanto aos crimes dolosos ou agravados pelo resultado e quando a morte faz
parte do tipo. Ou seja, é atribuída competência ao tribunal coletivo e estes casos não podem ser
objeto de um reenvio para o tribunal singular. Isto abrange todos os homicídios dolosos
independentemente da medida da pena porque a morte faz parte do tipo e é doloso,
conjugando os dois elementos. Porém, não é uma reserva perante o tribunal do júri. Assim, se
a pena for superior a 8 anos pode haver um requerimento para o tribunal de júri. Este regime
significa ainda que não pode nestes casos ser aplicado o mecanismo do artigo 16º nº3.
O mecanismo do artigo 16º nº3 permite o reenvio para tribunal singular de crimes que,
apesar de a pena abstrata ser superior a cinco anos, o MP considera que a pena concreta será
inferior a cinco anos de prisão. Ou seja, uma situação que por via da medida da pena abstrata
seria da competência do tribunal coletivo pode ser reenviada para o tribunal singular se o MP
considerar que a pena concreta deve ser inferior a cinco anos. Portanto, nesses casos, a
competência originária é do tribunal coletivo, mas há possibilidade de reenvio para o singular.
Se tivermos um crime de homicídio doloso que a morte faz parte do tipo, com pena de prisão
entre 8 a 16 anos, não vamos usar o critério quantitativo, mas o critério qualitativo do artigo
14º nº2 que faz com que não se possa ativar o artigo 16º nº3. Diferentemente, se forem dois
crimes de ofensas simples à integridade física, com 6 anos de pena máxima, a competência seria
do coletivo por aplicação do critério quantitativo pelo que seria possível fazer uso do mecanismo
de reenvio para o tribunal singular.
Se o tipo incriminador for doloso, tiver a morte como elemento do tipo, mas a pena for
inferior a 5 anos, o que acontece? Se usarmos o critério da medida da pena temos competência
do singular, mas se formos pela natureza do crime vamos para o tribunal coletivo.
Alguma doutrina entendia que o tribunal regra era o singular e que este tinha competência
em função da medida da pena e sendo regra geral acabava por prevalecer. Isto significava que
todos os homicídios privilegiados com pena até 5 anos seriam julgados pelo singular e não
estavam na reserva do coletivo. Todavia, hoje é pacifico que a reserva do tribunal coletivo não
é condicionada pela medida da pena. Ou seja, qualquer crime doloso com morte como elemento
do tipo é da reserva do coletivo, independentemente do critério quantitativo.
Notar que falamos dos homicídios privilegiados a título de exemplo, mas inclui-se aqui
também os crimes agravados pelo resultado, quando o resultado é a morte enquanto agravante
Concluímos deste modo que a tentativa de homicídio está na reserva do tribunal coletivo
porque é um tipo dependente, o dolo de morte é o mesmo e a norma não exige expressamente
a verificação da morte. Dentro da jurisprudência foi-se confirmando esta solução e hoje é um
aspeto pacífico, mas pode deixar de o ser no contexto de um caso concreto, uma vez que a
tentativa não vem expressamente referida nestas normas sobre a competência.
Sobre as cláusulas de suicídio, a questão que se coloca consiste em saber se, quando a
morte está prevista o tipo incriminador como uma agravante, mas pelo suicídio da vítima, esses
casos são da reserva do coletivo ou não. Isto porque pode acontecer que, na sequência de uma
violação ou um sequestro, a vítima se suicide. O professor Costa Pinto faz uma interpretação
extensiva e considera que devemos incluir na reserva do tribunal coletivo todos os crimes que
tenham um resultado agravante em que surja a morte de uma pessoa.
Isto por duas razões. Por um lado, porque o suicídio se imputa enquanto desvalor do
resultado ao facto doloso. Isto significa que se tivermos um sequestro que é sucedido de
suicídio da vítima, esse resultado é-lhe imputado nem que seja a título de negligência. Por outro
lado, há também um argumento literal porque a referência legal é a uma morte que faça parte
do tipo, não especifica se é auto ou hétero provocada. Isto significa que para estar dentro da
amplitude literal possível do artigo 14º nº2 alínea a) basta que haja morte de uma pessoa que
seja imputável ao facto típico.
Sobre os crimes de aborto, previstos nos artigos 140ºCP a 142ºCP, discute-se se são da
reserva do tribunal coletivo por caberem no artigo 14º nº2 alínea a) ou se, não sendo, se opera
o critério quantitativo. Na prática, os crimes de aborto têm sido julgados de acordo com o
critério quantitativo. Isto significa que se se tratar de um aborto enquadrado com pena máxima
inferior a cinco anos será da competência do tribunal singular, enquanto que se for um aborto
enquadrado com pena máxima superior a cinco anos já será da competência do coletivo, mas
com possibilidade de reenvio para o singular ao abrigo do mecanismo do artigo 16º nº3.
O professor Costa Pinto defende que, pela sua gravidade ético-social, devem os crimes de
aborto ser da competência do tribunal coletivo. Qualquer agressão que tenha por objeto a mãe
e o feto, ambos merecem tutela. O professor defende que a vida humana é sempre a mesma e
As implicações de seguir esta linha de raciocínio seriam inserir todos os crimes de aborto no
artigo 14º nº2 a) e, por conseguinte, considerá-los como incluídos na reserva do tribunal
coletivo. Ao considerar esta inclusão, aplicamos o critério qualitativo e, portanto, afasta-se a
possibilidade de usar o mecanismo de reenvio para o tribunal singular. Porém, a prática
judiciária não vai neste sentido, pondera apenas que o aborto não é homicídio, logo não cabe
nesta norma. Assim, a prática judiciária afasta esta inclusão na reserva e, portanto, será a
medida da pena, o critério quantitativo, a determinar o tribunal competente, havendo
possibilidade de aplicar o mecanismo de reenvio do artigo 16º nº3.
Por outro lado, o tribunal singular tem também uma reserva no artigo 16º nº2 alínea a) que
são os crimes contra a autoridade pública. Esta reserva deve-se a uma razão de eficácia e de
celeridade. Como o singular é o tribunal com maior cobertura no país, é um tribunal com menos
dificuldades de agenda ou de funcionamento que o coletivo e como tem competência para julgar
os processos especiais, o legislador entendeu que os crimes contra a autoridade pública,
independentemente da medida da pena, são da competência exclusiva do singular. Isto
significa que, havendo um crime contra a autoridade pública, não pode ser julgado por um
coletivo nem pode haver requerimento para júri. Este foi o argumento usado na reforma de
2013 para alargar esta reserva a todos os casos de detenção em flagrante delito que, como
vimos, foi depois foi eliminado.
Há mais três situações distintas em que pode haver intervenção do tribunal singular. Uma
delas corresponde aos casos que são enviados para um tribunal singular por uso do mecanismo
de reenvio do artigo 16º nº3. Nesses casos, o tribunal singular tem uma competência específica
que resulta de o MP utilizar o mecanismo para promover o julgamento em tribunal singular.
Se o MP não disser nada, a acusação pelo concurso dos crimes de furto (artigo 203ºCP) e de
dano (artigo 212ºCP), segue para o tribunal coletivo porque a pena máxima de cada um destes
crimes é de três anos, existindo um cúmulo jurídico que, em termos abstratos, ultrapassa a
competência do tribunal singular que é de cinco anos. Porém, o MP pode entender que a
gravidade concreta do caso está dentro do limite de cinco anos da competência do tribunal
singular e para isso faz um requerimento de reenvio ao abrigo do artigo 16º nº3.
O objetivo é libertar os tribunais coletivos. Este desaforamento tem que ver com razões da
boa gestão da máquina judiciária, em que intervém uma avaliação do MP. Não obstante, esta
possibilidade de reenvio nesta norma suscitou várias questões.
A primeira questão que se colocava passava por saber se era possível aplicar este
mecanismo a qualquer caso da competência abstrata do tribunal coletivo. Para resolver esta
dúvida, o artigo 16º nº3 veio a ser alterado limitando o seu campo de aplicação aos casos do
artigo 14º nº2 alínea b). Assim, só é possível usar o mecanismo de reenvio quando se aplica o
critério quantitativo e nunca pode ser derrogada a reserva material do tribunal coletivo.
A segunda questão era sobre a possibilidade de o tribunal singular aplicar uma pena superior
a cinco anos a um caso que recebesse através do mecanismo de reenvio. O nº4 veio esclarecer
que essa possibilidade está vedada ao estabelece expressamente que o tribunal singular não
pode aplicar pena de prisão superior a cinco anos. O professor Costa Pinto considera que nem
era necessária esta disposição porque o simples facto de o tribunal singular receber um caso
via artigo 16º nº3 não altera o limite da sua jurisdição. Em todo o caso, agora está clarificado.
Ora, na sequência desta questão surge outra muito importante: o que é que acontece se,
mais tarde, os cinco anos de pena máxima se revelarem insuficientes por se descobrir prova
indiciária de uma conduta mais grave do que a inicialmente considerada? O professor Costa
Pinto defende que se o julgamento revelar que, uma vez produzida toda a prova, o caso é mais
grave do que parecia, temos um caso de incompetência superveniente, devendo o caso ser
reenvidado para o coletivo. A doutrina maioritária não assume esta posição, nomeadamente o
professor Germano Marques da Silva. Este assunto ainda não está encerrado.
A doutrina dominante defende que recebido o processo ao abrigo do artigo 16º nº3 o
tribunal singular não pode declarar-se incompetente. O professor acredita que é preferível o
tribunal poder declarar-se incompetente nestes casos e que dizer que o tribunal não se pode
declarar incompetente depois de já ter sido declarada a sua competência não é um argumento
válido porque o artigo 32º permite a declaração de incompetência material a todo o momento.
É esta norma que o permite concluir que o tribunal singular pode declarar-se incompetente por
facto superveniente apesar de ter recebido o caso ao abrigo do artigo 16º nº3.
Alguma doutrina defende que o artigo 16º nº3 seria inconstitucional. E sê-lo-ia por várias
razões, designadamente por força do princípio da legalidade das penas, do princípio da
independência das magistraturas e do princípio do juiz natural. Todavia, o Tribunal
Constitucional já analisou a questão e declarou a não inconstitucionalidade do artigo 16º nº3.
Para a professora Fernanda Palma está em causa o princípio da legalidade das penas porque
é o MP que retira ilações quanto à pena aplicável, quando é ao legislador que cabe prever as
penas e ao tribunal de julgamento aplicá-las. A professora defende que não cabe ao MP decidir
isto. O professor Costa Pinto responde que não esse argumento não é exato porque não é uma
decisão ad hoc, é uma decisão prevista por lei, isto é, foi o próprio legislador que criou o artigo
16 nº3 e portanto, a ponderação feita pelo MP não é uma decisão puramente administrativa
que permite um julgamento de forma diferente, mas uma opção legalmente enquadrada.
Resta olhar para o princípio do juiz legal ou juiz natural. Segundo este princípio, é a lei a
determinar a competência do tribunal e este não pode ser concretamente escolhido. Ora, é o
legislador que permite a opção pelo julgamento em tribunal singular e, além disso, o MP não
escolhe o tribunal em concreto, o que faz é enviar o caso para o tribunal singular e não para o
juiz x ou y e, portanto, não se viola o princípio do juiz natural.
Estes não são verdadeiros problemas de inconstitucionalidade, porém há outros temas que
podem suscitar verdadeiros problemas. Vejamos.
Em primeiro lugar, tem se questionado uma possível limitação ao princípio in dubio pro
reo. O professor Costa Pinto defende que se o mecanismo do artigo 16º nº3 for corretamente
aplicado, não implica uma limitação ao in dubio pro reo nem sequer sobre a presunção de
inocência. Ao receber o processo, o tribunal não se pronuncia sobre a gravidade do caso, mas
sim sobre a possibilidade de fazer o julgamento e para isso apenas verifica os elementos do
artigo 16º nº3. Só haveria essa limitação se, no despacho sobre a competência, o tribunal se
pronunciasse sobre o mérito da causa.
Em segundo lugar, discute-se que o facto de existir este desaforamento implica ou não uma
violação das garantias do arguido. Isto porque não é a mesma coisa ser julgado pelo tribunal
coletivo ou pelo tribunal lugar. Não se pode dizer que o tribunal singular não tenha garantias,
mas o que é verdade é que no singular a prova não é apreciada por três juízes e não é possível
um voto contra. Nesse sentido, o arguido perde a garantia de o caso ser apreciado por três
juízes, mas na verdade, por outro lado, o arguido passa a ter uma garantia adicional que
resulta de não se poder ultrapassar a jurisdição do tribunal singular. Se o crime em causa tiver
uma moldura penal entre dois a oito anos, o arguido tem a garantia de que ao ser julgado pelo
tribunal singular, não pode ser julgado em mais de cinco anos por força do artigo 16º nº4.
Contrariamente, numa linha doutrinária minoritária, o professor Costa Pinto defende que
há razões de independência da magistratura e tutela do ofendido para permitir essa oposição.
Assim, deve o arguido ter a possibilidade de se opor ao uso desse mecanismo se isso implicar
uma diminuição das suas garantias. Por outro lado, deve o assistente ter oportunidade de se
opor ao mecanismo se este uso for contra a sua pretensão. Não obstante, o entendimento geral
é o de que não é possível reagir e que o mecanismo é da exclusiva competência do MP.
Isto gera dois problemas distintos. Um é o de saber se, não sendo usado o mecanismo de
reenvio pelo MP, pode o JIC fazer uso dele. O professor Costa Pinto responde que o JIC não pode
usar o mecanismo do artigo 16º nº3 porque a lei não prevê essa possibilidade. Outro problema
passa por saber se, havendo abertura de instrução, é possível ou não continuar a usar o
requerimento que foi apresentado anteriormente. O professor entende que o artigo 16º nº3
contém um mecanismo que é um ato do titular do inquérito que já terminou, assim sendo, foi
um ato que não teve sequência porque não foi seguido de julgamento, mas de fase de instrução.
o Conteúdo
Esta situação não se confunde com o concurso de crimes. Por isso, é um erro dizer que há
situação de competência por conexão quando há concurso de crimes. A competência por
conexão pressupõe sempre uma pluralidade de processos em que um exerce uma força atrativa
ao outro ou outros. Quando, por exemplo, o MP deduz acusação, identificando três situações
criminalmente relevantes, imputando três crimes, há uma situação de potencial concurso, mas
não há nada que tenha que ver com competência de conexão porque já está tudo no mesmo
processo. A competência por conexão prossupõe assim uma agregação de processos.
O terceiro pressuposto é um fator de conexão, o que significa que se exige que haja uma
relação entre os processos. As situações de conexão vêm previstas nas alíneas nº1 artigo 24º e
artigo 25º. Normalmente estes fatores de conexão são objetivos (entre os crimes) ou subjetivos
(entre os agentes). É o fator de conexão que vai permitir agregar os processos. Por fim, o quarto
pressuposto é a tramitação concomitante, ou seja, os processos têm de estar na mesma fase
processual para que se possam juntar, nos termos do nº2 artigo 24º.
Estes são estes os quatro pressupostos. Há mais uma característica que não é um
pressuposto, mas um efeito, que é o alargamento da competência de um tribunal com
derrogação da dos outros. Se, por exemplo, um homicida em série praticar vários crimes de
acordo com o mesmo padrão ao longo do país. Em cada lugar que ocorreu o crime, há um
processo. Poderá acontecer que estes processos sejam agregados num só tribunal que, em
princípio, será o tribunal com maior competência.
o Finalidades
Finalmente, uma quinta razão, esta de carácter substantivo é que, ponderando tudo junto,
consegue-se entender melhor os aspetos do concurso da própria determinação da pena única.
As penas não são somadas de forma aritmética porque em concurso há o cúmulo jurídico
mitigado. Se os processos estiverem dispersos, na prática vamos ter uma espécie de cumulo
aritmético por via judicial. A dispersão de processos dificulta, por isso, a aplicação do cúmulo
jurídico mitigado e se for tudo junto para efeitos de julgamento, a decisão final faz ela própria o
cumulo jurídico mitigado. Ora, também por razões de direito substantivo é aconselhável que
haja a competência por conexão.
Vejamos um exemplo para consolidar esta parte relativa ao cúmulo jurídico. O artigo 77º
CP, sob a epígrafe “regras da punição do concurso” é que trata desta matéria. Imaginemos um
arguido que cometeu três crimes com as seguintes penas: crime A, 5 anos, crime B, 4 anos e
crime C, 5 anos. Um regime de cúmulo material (ou aritmético) seria somar estes valores, o que
Este mecanismo serve para que se relacione a culpa do arguido e, em segundo lugar, porque
as penas têm efeitos cumulados. Quer isto dizer que os efeitos da pena não são aritméticos e
aumentam quanto maior for o período de isolamento do agente. Quando uma pessoa cumpre
uma pena de 9 anos, não está a cumprir 3 + 3 + 3, porque há uma quebra de laços com o mundo
exterior, maior isolamento, entre outros fatores que fazem com que o sofrimento do agente vá
aumentando consoante o passar do tempo. Assim, os segundos 3 anos serão muito mais
penosos do que os primeiros 3, daí que tenha havido uma opção pela pena única. Assim, pelo
facto de o limite máximo desta moldura penal ser a soma das penas concretamenbte aplicáveis,
o agente vai, na maiorias das vezes, beneficiar de uma pena menor àquela que seria aplicada no
caso de não haver esta regra do artigo 77º CP.
Assim, a conexão de processos tem regras imperativas, enquanto que a junção de processos
pode ser pela mera conveniência jurídica. A conexão implica que se juntem processos, mas
nem toda a junção de processos é conexão. A conexão não pode gerar perturbações
processuais, o que significa que nos casos em que isso aconteça, as razões substantivas vão ser
preteridas, mas depois quando for para determinar a pena única pede-se a junção de processos
para esse feito. Assim, a junção de processos pode surgir se falhar algum dos requisitos da
conexão, por exemplo.
No nº2 artigo 24º lemos que os processos só fazem operar as regras de competência de
conexão quando se encontram simultaneamente na mesma fase. Porém, a jurisprudência tem
feito uma interpretação restritiva a este nº2 artigo 24º que consiste em dizer que não basta que
os processos estejam simultaneamente na mesma fase, é necessário que estejam em
momentos compatíveis da mesma fase.
O artigo 119º alínea e) prevê uma nulidade insanável do processo por violação das regras
de competência, o que demonstra que o legislador leva muito a sério a determinação e a regras
de competências. No entanto temos depois algumas exceções no artigo 32º e 33º que limitam
A regra geral da violação das regras de competência é que esta gera uma nulidade
insanável, ao abrigo da alínea e) artigo 119º.
Por fim, há limitações que resulta do princípio da economia e aproveitamento dos atos
processuais. O artigo 33º nº3 prevê que as medidas de coação ou de garantia patrimonial
ordenadas pelo tribunal declarado incompetente conservam eficácia, mas devem ser convalidas
ou infirmadas pelo tribunal competente. Em regra, as medidas de coação estão imunizadas em
relação à declaração de nulidade por incompetência do tribunal que as decretou. São
reavaliadas e revalidadas pelo tribunal competente, não obstante manterem a sua eficácia por
razões preventivas, o que é uma exceção muito significativa.
• GMS
• P. Sousa Mendes
• MJA
Nota: os diversos autores apresentam perspetivas diferentes sobre este tema, pelo que é
aconselhável usar vários manuais, já que não são completamente equivalentes.
Entre nós, o MP é uma entidade com competência muito alargada e com estatuto
específico no âmbito do processo penal. O MP tem a seu cargo a representação do Estado,
representação dos menores em todos os processos, funções de fiscalização, consulta, funções
específicas do âmbito do processo penal ligadas ao exercício da ação penal e ainda funções
específicas em relação aos trabalhadores, em processos de natureza laboral.
No âmbito do processo penal, o MP tem funções que resultam desde logo da Constituição,
no artigo 219º CRP. Contudo, o MP exerce a ação penal de acordo com princípios estruturantes
do seu estatuto orgânico segundo critérios de legalidade, objetividade e imparcialidade. Há
quem entenda que isto é uma descaracterização do MP. Na verdade, a posição do Ministério
Público no âmbito do processo penal português é de exercício da ação penal de acordo com
critérios de legalidade e imparcialidade. O Ministério Público não decide o caso, mas tem
critérios legais objetivos para decidir como é que promove o caso.
Esse princípio da hierarquia faz com que toda a estrutura do MP na organização judiciária
portuguesa seja uma estrutura em pirâmide, sendo que cada magistrado do Ministério Público
tem sempre algum magistrado acima de si, com exceção do Procurador-Geral da República, que
é o topo da hierarquia. Portanto, temos, por todo o país, o Procurador-Geral da República, o
vice-PGR, procuradores-gerais adjuntos com funções distritais, procuradores da República e
depois temos o início da carreira dos magistrados do Ministério Público. Assim sendo, o MP
organiza-se de acordo com um sistema hierárquico em que há dever de obediência ao superior
hierárquico, mas contido dentro da hierarquia.
Não obstante, nos termos do estatuto, este dever de obediência pode cessar por razões de
consciência e ilegalidade, em algumas situações, designadamente os artigos 97º e 100º da Lei
68/2019. Os subalternos podem pedir a confirmação das ordens, o que é uma forma de
documentar objetivamente a ordem e o dever de obediência à ordem.
Entre nós, os magistrados do Ministério Público não são uma parte apreciadora. Em primeiro
lugar, têm autonomia, embora integrada dentro da organização hierárquica. Isto significa que
os magistrados do MP não recebem indicações ou instruções fora da sua hierarquia. Em segundo
lugar, rege nesta matéria o princípio da responsabilidade, segundo o qual os magistrados
podem ser responsabilizados pelos atos que praticam. Em terceiro lugar, têm um critério de
objetividade, isto é, visam apurar a verdade dos factos mesmo em sede de inquérito, tendo, em
quarto lugar, de assumir uma postura de imparcialidade.
No nosso sistema, o Ministério Público tem competência penais específicas, algumas delas
exclusivas como a direção do inquérito, e que são fundamentais para a realização da justiça
penal, fazendo-o de acordo com critérios de legalidade e de imparcialidade. O nosso MP tanto
realiza as suas funções acusando como pedindo a absolvição. Realiza as suas funções se, depois
de produzir a prova, pedir a condenação ou pedir a absolvição. A nossa magistratura do MP não
corresponde a uma parte acusadora: tem funções de titularidade do inquérito e de sustentação
da acusação no julgamento, mas tem liberdade para, de acordo com os factos e a lei, fazer a
promoção do processo de acordo com a sua consciência. Isto é típico das magistraturas.
Há quem entenda que isto gera uma crise de identidade, vendo o Ministério Público, no
nosso sistema, como uma parte acusadora que consegue uma coisa completamente distinta. O
professor Costa Pinto não considera que haja aqui uma crise de entidade ou uma parte
acusadora. Entre nós, o MP é intencionalmente uma magistratura de carreira de acordo com
poderes de legalidade, e isto favorece a descoberta da verdade material, porque dá uma
liberdade muito significativa aos magistrados do Ministério Público para a realização da justiça
penal e para a sua humanização. Aquilo que seja a promoção do caso é feita de acordo com
razões de legalidade e pelo estatuto de magistrado. Por isso é que é possível o magistrado do
MP pedir a absolvição dos arguidos.
Neste contexto importa notar que um pedido de absolvição só é possível em função das
vicissitudes do caso concreto e da produção de prova em julgamento. Ora, se, por exemplo, não
foi feita prova ou se já decorreu o prazo para a prescrição, um magistrado do Ministério Público
que se orienta de acordo com o seu estatuto por critérios de legalidade não pode fazer outra
coisa senão pedir a absolvição. O MP não pode pedir a condenação em todos os casos em todo
o custo, tem de tomar a decisão em função daquilo que seja uma situação concreta do
julgamento concreto em que participou. Não se pode decidir, em abstrato, que o Ministério
Público peça a absolvição ou a condenação, porque isso depende do caso concreto e das suas
vicissitudes jurídicas. Se se concluiu que a lei tem uma lacuna e que o facto não é típico, é
evidente que não pode deixar de pedir a absolvição. Se se chegou à conclusão de que a prova
não é suficiente, têm de operar as regras do in dubio pro reo. Não é possível determinar isto
genericamente, só é possível dizer que, se estiverem provados todos os factos e se não estirem
problemas jurídicos, deve ser pedida a condenação.
O Ministério Público, fazendo juz à sua história deve pugnar pela justiça do caso concreto,
e essa justiça do caso concreto exige que tome a decisão mais adequada ao caso que tiver em
mão. Isso pode significar que pede a condenação ou pede a absolvição da responsabilidade ou
que pede, inclusivamente, interposição de recurso para obter uma decisão mais favorável se,
por exemplo, a pena for excessiva, se houver uma condenação num caso em que não houve
prova e devem ser acionadas as regras do in dubio pro reo ou se for feita uma condenação com
provas proibidas. A ideia de objetividade e imparcialidade prevalece sobre a posição que toma.
Há quem entenda que o legislador português fez uma má opção, porque a estrutura do
Ministério Público é menos garantística do que a magistratura judicial, e, portanto, os
inquéritos criminais respeitariam as garantias fundamentais de uma forma mais profunda se a
competência fosse atribuída a um juiz de instrução e não ao Ministério Público.
O professor Costa Pinto responde a esta crítica que, se fosse um JIC o titular do inquérito,
isto é, a fazer a investigação criminal, ele teria esse encargo legal e teria de haver uma outra
entidade, um outro JIC, a fazer o controlo do cumprimento das garantias. E, portanto, no
entender do professor, a opção do nosso legislador é muito equilibrada e acertada. Por um lado,
não atribui a investigação criminal às policias e, por outro, cria a possibilidade de haver controlo
do juiz de instrução criminal em vários atos no âmbito do próprio inquérito. Desse ponto de
vista, a solução do legislador é aquela que permite um maior aprofundamento das garantias.
É claro que esta direção funcional tem de ser articulada com a autonomia dos próprios
órgãos de polícia criminal, que significa o reconhecimento legal da autonomia técnica e tática
dos OPC. A forma, o modo e o tempo de fazer as coisas cabem aos OPC decidir, mas há uma
relação de direção funcional que é uma relação de supremacia sem hierarquia.
Não há hierarquia entre o Ministério Público e as polícias, mas há uma direção funcional.
Significa isto, nos termos do artigo 2º LOIC, Lei 48/2008, que o MP pode determinar a realização
de certas diligências, pode dar indicação preferencial quanto à obtenção de certos meios de
Pode, por exemplo, enviar um processo para investigação, mas depois entender que, para
ouvir certas testemunhas ou arguidos, é preferível que seja devolvido ao Ministério Público. Isso
é possível, está previsto na lei de organização de investigação criminal, e não colide com a
autonomia técnica e tática dos OPC. A direção do inquérito, e em particular a sua estratégia
jurídica, cabe ao Ministério Público, que não é uma polícia de investigação pelo que necessita
sempre dos órgãos de polícia criminal.
Nos termos do artigo 1º, os órgãos de polícia criminal são entidades com uma estrutura ou
natureza policial a quem cabe a prática de atos previstos no código. É a lei que qualifica as
entidades como órgãos de polícia criminal, não é a prática do ato. Uma entidade administrativa
pode colaborar numa investigação criminal, mas não se converte em órgão de polícia criminal
por isso. Continua a ser uma entidade administrativa, a colaborar no processo criminal,
considerados coadjuvantes ou de assistência. Nos termos dessa norma, os OPC mantêm sempre
uma estrutura policial.
Nós temos uma Lei de Organização de Investigação Criminal (LOIC) que, entre outras coisas,
visou estabelecer dois parâmetros importantes. Por um lado, a relação entre Ministério Público,
titular do inquérito, e os órgãos de polícia, que executam as diversas diligências com maior ou
menor autonomia. Por outro lado, a repartição de competências entre os órgãos de polícia
criminal, estabelecendo, designadamente, uma competência reservada à polícia judiciária em
certos casos e competência genérica aos outros.
Ora, a classificação como órgão de polícia criminal é feita pela lei diretamente ou por
equiparação. Assim há uma dupla técnica legislativa: ou o legislador declara que uma certa
entidade é um órgão de polícia criminal ou declara que se equipara a órgão de polícia criminal,
o que significa que de acordo com a sua natureza não é, mas tem os poderes e o estatuto de um
órgão de polícia criminal.
É importante sublinhar, neste contexto, que as entidades reguladores não são órgãos de
polícia criminal, mesmo que tenham algumas competências paracriminais ou que se articulem,
designadamente o Banco de Portugal, CMVM, a Autoridade de Seguros, a Autoridade da
Concorrência, o que aliás seria incompatível com a sua natureza.
Considerações finais
Porque o Ministério Público corresponde a uma magistratura de carreira e porque não foi
aceite entre nós o sistema dos inquéritos policiais é que muitos atos do Ministério Público são
atos que transcendem as funções tradicionais do Ministério Público num processo de partes. Ele
pode, por exemplo, promover a suspensão provisória do processo e promover o seu
arquivamento, o que significa promover uma decisão no âmbito do inquérito. Pode homologar
a desistência da queixa, o que impede a sua renovação. Pode utilizar o mecanismo do processo
O nosso Ministério Público é uma magistratura de carreira que contribui para a realização
da justiça penal. Por isso, tem alguns poderes parajurisdicionais, em que, de forma não isolada,
promove soluções para o caso concreto, como a suspensão provisória do processo, a forma
sumaríssima ou a homologação da desistência da queixa. São decisões que vão acabar por
determinar o caso concreto e que em certo sentido correspondem a decisões do caso. Mas
porquê? Nós não temos um Ministério Público como uma pura e simples parte acusadora. As
funções históricas do MP são muito mais amplas e a autonomia do Ministério Público a partir
do momento em que corresponde a uma magistratura de carreira tem outra dignidade
institucional que não tem noutros países. Por exemplo, nalguns países os magistrados do
Ministério Público são recrutados entre juristas licenciados em direito, não são magistraturas de
carreira equivalente à que existe entre nós.
O professor Costa Pinto acredita que isto é uma grande vantagem do sistema penal
português. Já viu casos de julgamento em que a liberdade que o Ministério Público tem para
pedir a condenação ou a absolvição é fundamental para o magistrado promover uma decisão
para o caso concreto. Ele não decide o caso, mas isso permite que atue de acordo com a
consciência e de acordo com a verdade do julgamento. O professor viu uma vez um julgamento
grande em que se questionava a responsabilidade penal de alguns médicos. A magistrada do
Ministério Público entendia que havia médicos que não deviam ser condenados, porque tinham
cumprido todos os procedimentos exigíveis para o controlo dos riscos. Isto foi possível, e
verificou-se depois do julgamento. Agora imaginemos o que era obrigar a pessoa a pedir a
condenação contra a sua consciência. Era fazer do magistrado um funcionário obediente e não
um verdadeiro magistrado. Por isso, o professor não considera que seja um problema de crise
de entidade o Ministério Público que tem este estatuto orientado pela legalidade e pela verdade
material, acredita que é uma característica benéfica do sistema penal português.
Em segundo lugar, os assistentes são sujeitos do processo, por contraste com as partes
civis que são apenas parte do pedido cível que pode acompanhar o processo pena. O assistente
é um sujeito processual, ao contrário das partes civis, ativas e passivas, que não têm o mesmo
estatuto nem os mesmos poderes.
Vamos começar por concretizar e densificar as figuras de assistente, ofendido e lesado à luz
daquilo que está no CPP. O CPP tem uma parte específica dedicada ao assistente nos artigos 68º
e seguintes mas, se verificarmos, surge no artigo 67º A uma figura diferente, a vítima.
Feita esta salvaguarda, importa perceber como é que estes conceitos se relacionam.
O lesado é a pessoa que sofre as consequências civis relacionadas com o crime. Sofre danos
patrimoniais ou morais relacionados com a prática do crime. Nos termos do artigo 74º, o lesado
pode fazer um pedido de indemnização que, em regra, acompanha o processo penal em curso.
Desse ponto de vista, vigora no nosso sistema o princípio da adesão como regra. O lesado é, no
fundo, uma parte do pedido de natureza cível que acompanha o processo.
Imaginemos que uma pessoa adulta é vítima de ofensas à integridade física. Nesse caso, a
mesma pessoa é titular do bem jurídico, o que significa que é o ofendido, e pode, em função
disso, constituir-se assistente. Essa pessoa, uma vez que sofreu danos, pode também pedir uma
indemnização. Assim os vários conceitos coincidem na mesma pessoa.
O conceito de ofendido está estabelecido na lei, no artigo 68º nº1. No fundo, esta norma
pressupõe a possibilidade de se identificar o bem jurídico e a sua titularidade numa pessoa
concreta. A jurisprudência relativiza um pouco o conceito legal de ofendido e, com base nisto,
nega por vezes a legitimidade de certa pessoa para se constituir assistente por entender que a
lei não quis, naquele caso, proteger interesses individuais de pessoas concretas, mas antes
interesses gerais.
Simplesmente, ao longo dos tempos, quer a doutrina, quer o legislador, quer a própria
jurisprudência foram introduzindo inflexões a este conceito. O professor Paulo Sousa Mendes
entendeu que o conceito restrito de ofendido, tal como era sustentado pela jurisprudência,
implicava uma violação do próprio conceito de ofendido. Quando se diz “considerando-se o
interesse que predominantemente a lei quis proteger”, estaria a relativizar-se e a hierarquizar-
se os interesses quando a lei não o faz.
Por seu turno, a doutrina sempre defendeu um conceito amplo de ofendido. Isto é, o que
importava era determinar qual era o bem jurídico e se esse bem jurídico tinha alguma relação
com uma esfera jurídica concreta. Este conceito de ofendido respeita a letra da lei, a sua
intencionalidade e o objetivo de garantir que a vítima tenha uma posição ativa no processo
como sujeito processual. Então, o que é fundamental para determinar se alguém é ou não
ofendido, é a operação hermenêutica de determinação do bem jurídico.
Mas a doutrina, com o professor Figueiredo Dias à cabeça, sempre identificou também bens
jurídicos de caráter misto, com dimensão individual e supraindividual. Vejamos três exemplos.
Outro exemplo são os interesses protegidos pelo segredo de justiça. O crime de violação
do segredo de justiça tem evoluído com o paradigma de um crime em que o bem jurídico era
supraindividual. Mas a reforma de 2007 baralhou isto. Ao configurar a sujeição do processo a
segredo em função da legitimidade do próprio ofendido, independentemente de ele se
constituir assistente, o próprio legislador veio demonstrar que uma pessoa em concreto podia
ter interesse no regime do segredo de justiça, o que significa que, uma vez violado o segredo de
justiça era também violado o interesse de uma pessoa concreta pelo facto ilícito. No fundo, não
podemos dizer que o crime de violação de justiça protege apenas o interesse supraindividual de
boa realização da justiça, quando a própria lei veio permitir que o segredo de justiça exista por
iniciativa de um particular, designadamente um ofendido ou assistente.
Isto veio a permitir afirmar que o bem jurídico em causa tinha uma natureza compósita, na
medida em que tem uma dimensão supraindividual, mas também tem uma repercussão jurídica
na esfera jurídica de um particular. O resultado disto consiste em dizer que, quando há violação
do segredo de justiça com relevância criminal, as pessoas interessadas na preservação do
segredo de justiça podem ser também os particulares: o arguido (pode requerer a sujeição do
processo a segredo) ou o ofendido (também pode requerer a sujeição do processo a segredo).
Assim, se interpretarmos a lei não apenas na perspetiva de um bem jurídico supraindividual,
mas articularmos a lei substantiva com a lei processual, vemos que há interesses legítimos
associados ao segredo de justiça, que são interesses individuais e não apenas supraindividuais.
De acordo com a doutrina maioritária, o conceito é amplo e tem a ver com a titularidade do
bem jurídico ou com a cotitularidade do bem jurídico que tem uma dimensão individual e
supraindividual. São exemplos de bens jurídicos com uma dimensão pública e uma dimensão
individual a tutela da veracidade dos documentos num crime de falsificação de documentos, os
interesses protegidos pelo segredo de justiça num crime de violação do segredo de justiça, os
interesses dos investidores ou das empresas num crime de violação de mercado ou, num crime
de perturbação de culto, os interesses das pessoas cujo culto concretamente foi perturbado.
Isto significa que a teoria do bem jurídico tem uma dimensão processual muito significativa.
Estudamo-la do ponto de vista substantivo para verificar os tipos incriminadores, mas é em
função do bem jurídico, da sua natureza e da sua associação a uma esfera jurídica que pode ser
definida a posição do assistente.
O assistente tem uma figura ambivalente. A própria lei no artigo 69º apresenta o assistente
como colaborador do MP, mas logo a seguir apresenta uma exceção (“exceto os casos em que
a lei disponha de outro modo”). O assistente assume uma posição processual ativa de
representação dos seus interesses associados ao processo criminal, o que significa que tanto
pode colaborar com o MP como pode praticar atos opostos ao do MP como a possibilidade de
interposição de recurso, de requerer abertura de instrução ou deduzir acusação, quer nos crimes
particulares, como nos crimes semipúblicos ou públicos.
Portanto, o MP assume uma posição de defesa dos interesses do Estado, mas o assistente
tem poderes autónomos que lhe permitem discordar e promover fases processuais para
contrariar aquilo que o Ministério Público decidiu. Daí que o professor Costa Pinto considere
que o assistente é uma figura híbrida. Os assistentes são colaboradores do Ministério Público,
a quem subordinam a sua intervenção processual, mas na verdade, em alguns casos têm
poderes autónomos de conduta da autoridade do Ministério Público.
Por outro lado, aquilo que a lei declara no artigo 69º, é uma prática mediada através de um
advogado. Isto significa que a condução concreta do processo muitas vezes é feita
autonomamente pelo advogado que representa o assistente, de uma forma autónoma e
diferente daquilo que é o Ministério Público. Em audiência de julgamento, isto significa que
estamos no tribunal e temos o MP, arguidos, advogados de defesa e temos, na bancada dos
advogados, o representante do assistente. O representante do assistente vai, por exemplo, fazer
as inquirições, os requerimentos e vai alegar no final. Tem toda uma atividade processual que
pode ser coincidente ou não com a do Ministério Público porque tem autonomia.
Isto significa que, na prática, o artigo 69º também é ultrapassado pelo próprio mandato
que o advogado que representa o assistente tem. Esse advogado acaba por exercer
autonomamente poderes de intervenção processual. Portanto, a figura do assistente é
importantíssima para o processo penal português, porque é um sujeito processual que
Na verdade, o artigo 69º tem uma caracterização híbrida da figura do assistente que o
professor Costa Pinto entende que não é suficientemente característica. Por outro lado, quando
a lei processual penal oferece ao ofendido a possibilidade de participar ativamente no processo,
está no fundo a dizer que o ofendido não vai participar apenas no objeto que são as provas, mas
vai ter alguém que represente os seus interesses no processo ao longo do processo para poder
tomar decisões autónomas. Se o ofendido não se constituir assistente, vai ser inquirido como
testemunha. E se, diversamente, se constituir como assistente, vai poder ser representado
durante todo o processo. Isto significa que a capacidade de influenciar o processo é muito
maior para o ofendido que se constituiu assistente.
Em primeiro lugar, pode haver uma lei especial que declare que certas pessoas ou
entidades se podem constituir como assistentes no processo. Existindo lei especial, ela
prevalece. Em crimes com conotação xenófila ou racista, as associações de defesa de imigrantes
podem constituir-se como assistente no processo.
Por fim, na alínea e) nº1, encontramos um critério genérico de legitimidade alargada, que
permite que qualquer pessoa se constitua como assistente em certos crimes. Falamos de
crimes contra a paz e a humanidade, crime de tráfico de influência, favorecimento pessoal
praticado por funcionário, denegação de justiça, entre outros. O legislador entendeu que,
apesar de estes crimes terem uma natureza pública e envolverem um bem jurídico público, não
estando por isso associados a uma titularidade concreta, são crimes que dizem respeito a todas
as pessoas que vivem em sociedade.
O legislador foi muito generoso neste critério e neste momento há, no meio judicial
académico português, uma questão controvertida sobre se, tendo a lei esta amplitude tão
significativa, se podem os jornalistas constituir-se como assistentes e utilizar o estatuto de
assistente para obter informações que depois divulgam enquanto jornalistas.
A jurisprudência aqui tem-se dividido. Há quem entenda que não é possível porque isso
constitui abuso de direito (desvincular-se-ia o estatuto de assistente para esse efeito), e há quem
não distinga, considerando que se se permite a constituição de assistente por qualquer pessoa,
também se permite que o jornalista obtenha essa informação para o exercício da sua posição.
Na linha da primeira posição, o professor Costa Pinto defende que a figura do assistente,
enquanto sujeito processual ativo, não pode ser adulterada por outras funções ou finalidades.
Desta forma, mesmo que seja discutível e controvertida a questão de saber se os jornalistas
se podem constituir assistentes, há duas certezas. Por um lado, se existir segredo de justiça, ele
tem de ser respeitado por qualquer pessoa que tenha acesso a essa informação. Por outro
lado, caso a diligência não seja pública, há limitações quanto à possibilidade de presenciar ou
acompanhar essa diligência, o que significa que se a diligência não for pública, há limitações à
publicidade mesmo que não exista segredo de justiça.
Em suma, a figura do assistente hoje também é discutida em função desta sua posição de
estatutos e funções relacionadas com a configuração da figura material do assistente com a
associação às figuras jornalísticas de algumas pessoas.
A jurisprudência portuguesa tem tido aquilo a que o professor Costa Pinto chama de uma
verdadeira atuação ambivalente. No início, a jurisprudência portuguesa defendeu um conceito
restritivo de ofendido, e aos poucos, em certos casos, foi alargando concretamente a
possibilidade de alguém se constituir assistente.
Um dos casos mais curiosos que o professor viu foi a propósito do crime de desobediência.
O crime de desobediência, tradicionalmente, não admitia a constituição de assistente, porque o
bem jurídico é público. Não tem a ver com a autoridade da pessoa concreta que dá uma ordem
que é desobedecida. Entendia-se que não havia lugar à constituição de assistente. Mas a
jurisprudência teve um caso muito curioso que foi o seguinte: nas ações cíveis de embargos de
obra, a violação dos embargos é considerada crime de desobediência, e aquilo que se
questionou foi se a pessoa que tinha requerido um embargo da obra do vizinho tinha ou não
legitimidade para constituição de assistente. O vizinho requereu um embargo da obra do outro
vizinho, e o vizinho que estava a fazer a obra desobedeceu, incorrendo num crime de
desobediência. O que se pergunta é se o primeiro vizinho, iniciada a ação, tem ou não
capacidade para se constituir assistente. O STJ, no acórdão 1/2003, veio reconhecer essa
legitimidade. No fundo, já há pelo menos um caso em que, no crime de desobediência, se
identificou alguém em concreto que tinha legitimidade para constituição de assistente, que teve
a ver com a violação do dever de não continuar a obra.
Isto é demonstrativo de uma ideia fundamental: os bens jurídicos, mesmo que sejam
públicos, podem ter uma dimensão individual. Portanto, nós não podemos pura e
simplesmente dizer que um bem jurídico, por ser público, exclui a constituição de assistente. Na
verdade, temos sempre que verificar, em particular de acordo com os sucessivos casos em que
o STJ foi reconhecendo a possibilidade de constituição como assistente (designadamente na
falsificação de documentos, violação do segredo de justiça ou no próprio crime se
desobediência), e de reconhecer que a hermenêutica correta de determinar o conceito de
ofendido é identificar se o bem jurídico tem ou não alguma dimensão em esferas jurídicas
concretas, se visa ou não proteger esferas jurídicas de pessoas concretas. Se tiver essa
finalidade, então essa pessoa pode constituir-se assistente no processo.
Olhando para o artigo 68º nº2 vemos que no caso dos crimes particulares, o requerimento
tem lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no nº4 do artigo 246º, ou seja,
a advertência feita pelos OPC de que a constituição de assistente é obrigatória para que o
processo siga a sua tramitação normal nestes casos.
Já o nº3 contém três alíneas. A alínea a) contém a regra geral referida dos 5 dias. A primeira
parte da alínea b), que remete para o artigo 284º, trata dos casos em que o ofendido não se
constituiu assistente, mas agora pretende deduzir acusação particular ao lado da do MP. Tendo
em conta que só o pode fazer se tiver o estatuto de assistente, a lei determina que beneficia do
prazo do artigo 284º, ou seja, até 10 dias após a notificação da acusação do MP. A segunda
parte desta alínea remete para o artigo 287º nº1 b) a propósito do requerimento para a abertura
de instrução. Assim, no caso de o ofendido querer requerer a abertura da instrução, e uma vez
que tem de se constituir assistente para o fazer, pode utilizar o prazo de 20 dias a contar da
notificação da acusação do MP ou do arquivamento para requerer a sua constituição como
assistente.
Por fim temos a alínea c), que nos indica que o prazo para dedução do requerimento de
constituição de assistente pode ser ainda o prazo para interposição do recurso da sentença.
Depois disso, segue-se a decisão. Também nesta norma se estabelece que, depois do
contraditório, o juiz decide por despacho. É uma decisão judicial. Este aspeto é importante. A
decisão é sempre do juiz, seja na fase de inquérito seja em fases posteriores. No inquérito, não
é o MP que decide a constituição de assistente. A investidura de alguém como sujeito
processual é sempre feita por juiz, neste caso o juiz de instrução. O MP é ouvido ao abrigo do
contraditório, mas quem decide é o juiz. Acrescentar ainda que a decisão de constituição de
assistente é uma decisão recorrível.
O assistente leva para o processo penal o conhecimento associado aos poderes processuais
relacionados com crimes que por vezes ocorrem em circuito reservado, tendo, por isso, na sua
posse, informações que de outra forma não chegariam ao processo. Isso pode acontecer no
interesse do arguido (por exemplo: crimes de maus tratos, crimes de violência doméstica, crimes
que impliquem algum conluio entre as pessoas, crimes de violação). Para além de a pessoa ser
ouvida e ser fonte de prova como assistente, tem um advogado que acompanha o processo e
que promove o processo autonomamente.
Ora, isto significa que a figura do assistente permite levar a dimensão da vítima, em várias
perspetivas, para o processo penal. Permite também levar o conhecimento de circuitos
reservados para o processo penal, não apenas numa lógica de subordinação às regras de
produção de prova, pois é também um participante ativo com poderes autónomos para
requerer fases processuais, interpor recursos e participar ativamente no contraditório. Isto
significa que a figura do assistente traz toda uma outra dinâmica de realização da justiça penal.
➔ Tendências jurisprudenciais
O que a jurisprudência tem feito ao longo dos anos é “restringir o conceito restrito” de
ofendido, ou seja, acrescentar casos em que há legitimidade para constituição de assistente.
Tem ampliado o conceito, mas no fundo tem limitado a sua posição. A jurisprudência começou
por defender uma posição muito restritiva, e depois teve de fazer restrições a essa restrição,
que são no fundo uma ampliação. Uma restrição a uma restrição é uma ampliação.
É importante ter a noção de que a figura do assistente não existe em todos os modelos de
processo penal. O processo penal como o português, que tem uma dimensão claramente
pública, tem conseguido, desde o início, integrar a dimensão da perspetiva particular
associando-a a poderes processuais específicos.
• GMS;
• P. Sousa Mendes;
• PP Albuquerque – anotações.
Para concluir a matéria dos sujeitos processuais, resta-nos debruçar sobre a matéria do
arguido e o seu defensor. É uma matéria fundamental porque o arguido está no centro do
processo penal. Sem ele, o processo não se desenvolve para além da acusação.
Por outro lado, há uma certa ambivalência histórica. Nos processos de natureza inquisitória,
o arguido é considerado um objeto do processo, enquanto que nos processos de natureza
acusatória, uma parte do processo. E nos processos como o nosso, é tratado de uma forma
diferenciada. Podemos dizer que, nas fases preliminares, designadamente o inquérito, e, em
grande parte dos casos, o arguido é tratado como objeto processual, no sentido em que é
visado pelos vários atos processuais, mas ainda assim, é-o com um estatuto de sujeito
processual. Todos esses direitos ganham a sua plenitude na fase de audiência de julgamento.
Num processo misto como o nosso, os direitos do arguido não são exatamente os mesmos na
fase de inquérito e no julgamento. São diferentes consoante as fases processuais e as próprias
matérias em causa.
Esta ambivalência tem a ver com a erosão e mutação que os tempos trouxeram ao
estatuto de arguido. Para o CPP, o estatuto de arguido é algo de vantajoso, no sentido de que
investe uma certa pessoa numa posição processual que lhe dá algum poder para controlar o
processo na medida dos seus interesses. Quando se vê o regime de constituição de arguido,
vemos simultaneamente o regime de uma pessoa que é visada pelo processo, mas também de
alguém que tem o estatuto de sujeito processual.
Para o processo penal português, assim, o estatuto do arguido é algo valioso. Claro que é
desagradável ser-se constituído arguido, mas a lógica do código é constituir um estatuto
processual para ter garantias de defesa sem as quais o processo penal não é legítimo.
O processo penal legítimo, do Estado de direito, integrado na CRP, tem todas garantias de
defesa. Por mais deturpados e falsos que sejam os discursos comunitários, nós juristas não
devemos perder o fio extraordinário de conquista histórica dos direitos fundamentais e das
garantias de defesa. Não há garantias a mais no processo penal. Claro que o processo penal tem
a morosidade própria de ser construído numa dialética acusação-defesa, mas não queiramos
viver num Estado sem garantias de defesa.
Curiosamente o CPP não define o conceito de arguido. Porém, define o de suspeito no artigo
1º alínea e): “toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara
para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar”. Retiramos desta
disposição que o suspeito é alguém em relação ao qual existe uma prova indiciária, algum
elemento que permite dizer que está ou vai estar envolvido na prática de um crime. Ora, o
arguido é mais do que isso. O arguido é um suspeito formalizado.
O código não define o conceito de arguido, mas define o estatuto das pessoas constituídas
arguidas, ao estabelecer as formalidades, os fatores, os direitos e os deveres. Temos então esta
particularidade: o código define o que é suspeito, mas o regime legal que traça nos artigos 57º
e seguintes é o regime do arguido. Para acentuar o antagonismo, o CPP não tem um regime de
suspeito, o que tem mesmo é este regime do arguido.
Ainda assim, passando por algumas normas legais encontramos a referência ao suspeito. O
suspeito pode estar detido na qualidade de suspeito até ao limite de 6h numa esquadra legal
para identificação, nos termos do artigo 250º nº6. O suspeito pode ser objeto de medidas
cautelares, previstas nos artigos 249º e seguintes. E, por mais antagónico que seja, como vamos
aprofundar, o suspeito tem o direito a ser constituído arguido, na lógica do código, para poder
exercer os direitos do arguido, designadamente os direitos previstos no artigo 61º.
O professor Paulo Pinto de Albuquerque refere na anotação ao artigo 57º que o suspeito é
um sujeito processual fundamentalmente porque lhe quer reconhecer a garantia contra a
autoincriminação, isto é, o direito a não responder a perguntas. Mas o professor Costa Pinto
responde que, na verdade, não precisa de o fazer. Para o suspeito ter de responder a perguntas,
tem de ser testemunha. E se for constituído testemunha, o suspeito tem todos os direitos
inerentes à prova testemunhal, entre os quais o direito a não responder a perguntas quando das
mesmas possa resultar responsabilidade penal (artigo 132º nº2). Portanto, ou o suspeito é
testemunha e está sujeito ao dever de responder (mas tem uma garantia contra a
autoincriminação), ou não tem essa qualidade de testemunha e não é obrigado a responder.
Por outro lado, se quiser exercer plenamente os direitos do arguido, o suspeito pode
requerer a constituição como arguido, como veremos. Mas o que importa aqui reiterar é que
não é necessário constituir o suspeito como sujeito processual para salvaguardar a garantia
contra a autoincriminação. Até porque isso geraria um problema.
Na verdade, o suspeito não tem um estatuto processual definido no código que permita
dizer que tem direitos de intervenção no processo ou que o possa controlar. O suspeito não
pode opor-se à suspensão provisória do processo, não pode requerer abertura de instrução, não
pode (se não for arguido) tomar decisões em matéria de segredo de justiça, não pode ser visado
por medidas de coação (é preciso haver constituição de arguido). A ideia do professor Paulo
Pinto de Albuquerque de converter o suspeito em arguido significa uma perturbação
sistémica, pois a lei não prevê um estatuto do suspeito e prevê um estatuto do arguido. É
claramente contra legem querer atribuir os direitos do arguido a alguém que não é. O suspeito
tem algumas garantias que resultam da lei e do estatuto de testemunha e se quiser o estatuto
de arguido tem de o requerer.
Aliás, desse ponto de vista, a nossa lei prevê essa possibilidade de o suspeito requerer a sua
constituição como arguido no artigo 59º, inclusivamente como um direito potestativo.
As pessoas acharam isto peculiar porque viam a conversão do casal como arguidos como
uma espécie de confissão. Mas não é disso que se trata. Na lógica do Código, a conversão do
suspeito em arguido é a maneira de este ficar protegido e exercer uma série de direitos
processuais. Por isso, o estatuto de arguido é algo ambivalente.
Assim, é um direito potestativo, no sentido em que, uma vez exercido, não pode ser
questionado pelo interlocutor do suspeito que requer a constituição de arguido. É potestativo
neste sentido e produz os seus efeitos pelo simples requerimento de constituição de arguido.
Outro aspeto importante para o nosso sistema é que o arguido não pode ser alguém
inimputável em razão da idade, mas pode ser inimputável em razão de anomalia psíquica. A
inimputabilidade em razão da idade não permite que a pessoa seja sujeito passivo de um
processo, pois coloca-a fora da esfera de jurisdição penal. Porém a inimputabilidade por razões
de anomalia psíquica não tem essa limitação. Assim, o arguido é alguém com capacidade mínima
etária que, nos termos do artigo 19º CP, tem de ter pelo menos 16 anos, mas pode ser alguém
inimputável em razão do seu estado psíquico.
Isto porque o nosso sistema é de dupla via, no sentido em que o mesmo sistema do facto
punível e o mesmo processo penal é usado para aplicar penas a imputáveis, atribuindo-lhes
responsabilidade criminal, e é usado para aplicar medidas de segurança a inimputáveis.
Todavia, há quem questione. A professora Maria João Antunes considera que os inimputáveis
por anomalia psíquica deveriam sair do sistema penal, mas o professor Figueiredo Dias entende
que, com exceção da culpa, as garantias do sistema do facto punível e a exigência de que seja
um facto tipicamente ilícito e punível são aplicáveis aos inimputáveis.
No fundo, a primeira exclusão do círculo de potenciais arguidos são as pessoas com menos
de 16 anos porque são inimputáveis em razão da idade.
Por esta razão, os diplomatas, ao abrigo dos artigos 31º, 32º e 37º Convenção de Viena
(1968) e, entre nós, os Deputados, ao abrigo do artigo 157º CRP, não podem ser livremente
constituídos como arguidos. Para os diplomatas serem constituídos arguidos é necessária uma
quebra da imunidade diplomática e, no caso dos Deputados, é necessária autorização da AR.
Isto por uma razão simultaneamente penal e extrapenal:
• Razão penal – é também do interesse do direito público não ser instrumentalizado como
arma de combate político.
Atenda-se ao artigo 157º nº2 CRP que estabelece que os Deputados não podem ser ouvidos
nem como declarantes, nem como arguidos. Nem podem ser ouvidos como testemunhas.
Repare-se que se poderia perturbar uma votação convocando alguém como testemunha num
processo e esta norma evita isso. No fundo, o que se quer dizer é que temos efetivamente um
regime de direito constitucional que articula o interesse na justiça penal com os compromissos
de atividade parlamentar ou canais do poder diplomático.
Existência de arguido é requisito da acusação e o arguido tem de ser ouvido antes de ser
deduzida acusação (272.º, 1)
O estatuto de arguido é absolutamente fundamental, não para se abrir inquérito, mas para
ser deduzida acusação. O artigo 283º claramente pressupõe, ou mesmo exige, que se identifique
a pessoa a quem os factos são imputados. Dos nº1 e 2 retiramos que a existência de arguido é
requisito da acusação. Pode haver um inquérito aberto contra incertos, mas não acusação
contra incertos, até porque o nº3 comina a falta de identificação do arguido com nulidade.
Aliás, se quisermos, podemos inclusivamente concretizar de uma forma mais exata o regime
legal. O arguido não só tem de estar identificado na acusação, como, desde 1998, tem de ser
ouvido antes de ser deduzida acusação. Há uma norma algo perdida no código nesse sentido
No fundo, a progressão do estatuto do suspeito no processo faz com que, cumprido o regime
legal, ele seja ouvido antes de ser deduzida acusação (artigo 272º nº1) e depois seja
concretamente identificado (artigo 283º nº1).
No caso de não ser cumprida essa exigência de audição, qual é a cominação aplicável?
Aplicando o artigo 118º nº2, a falta de audição do arguido antes de ser deduzida acusação é
uma irregularidade. Isto porque não está prevista a nulidade. De resto, a própria lei diz-nos que
a constituição do arguido pode ocorrer com a acusação, no artigo 57º. É uma norma que sobrou
do regime anterior a 1998. Assim, não há a força cominatória da nulidade do artigo 283º.
A ideia é esta: não deve ser possível alguém ser surpreendido com uma acusação sem ter
sido ouvido. E o código, desde 1998, estabelece isso no artigo 272º nº1 se a pessoa não tiver
sido ainda constituída arguida, deveria verdadeiramente ser ouvida ainda antes de deduzida a
acusação. Esta exigência é particularmente intensa e congruente com o facto de o MP, entre
nós, não ser uma parte, mas um sujeito processual, assumido por uma magistratura de carreira
e orientada por critérios de verdade material. Não pode haver uma verdade parcial, assumida
na acusação, que resulte apenas de uma leitura própria dos meios de prova.
Notar que a identificação do arguido no artigo 283º é ope legis. Por vezes não há segurança
ou certeza absoluta quanto aos elementos de identificação, designadamente quando se tratam
de cidadãos estrangeiros ou existam documentos falsificados. Portanto, o que o código
claramente exige é uma pessoa concreta identificada na medida do possível. Essa flexibilidade
não é quanto ao arguido, e sim quanto aos elementos de identificação. Se a pessoa os não tiver,
ou a identificação for assumida por mera declaração verbal, o que acontece? Se a pessoa for
estrangeira, e não houver documentos, tudo resulta das suas declarações. Não se pode dizer
que é verdadeira, mas é a identificação possível. Tem é de haver alguma identificação.
O professor Costa Pinto usa a expressão defesa pessoal para o conteúdo dos atos de defesa
e defesa técnica para o patrocínio de um advogado.
➔ Defesa Pessoal
• artigo 61º nº1 alínea b) – direito a ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz;
• artigo 98º – direito de apresentar exposições e memorandos. Apesar de ser um direito
algo perdido no capítulo dos atos processuais, é muito importante porque o arguido
pode, a qualquer momento, juntar elementos ao processo, realizando uma exposição.
• artigo 343º nº1 – direito a prestar declarações a qualquer momento.
• artigo 361º – direito a prestar as últimas declarações.
➔ Defesa técnica
Por outro lado, nos termos do artigo 61º nº1 alínea f) e do artigo 62º, o arguido tem o
direito a ser assistido pelo defensor e é acompanhado obrigatoriamente nalguns casos
especificados na lei, que constam do artigo 64º. Portanto a defesa técnica abrange o direito a
ter defensor quando assim entenda e, nalguns casos, é obrigatório tê-lo.
O artigo 63º nº2 permite a prevalência da defesa pessoal sobre a defesa técnica. Isto é,
permite que o arguido retire eficácia ao ato praticado ou realizado em seu nome pelo defensor,
desde que o faça por declaração expressa antes da decisão relativa àquele ato.
Assim sendo, o nosso CPP prevê a defesa pessoal, prevê a defesa técnica (nalguns casos
obrigatória) e prevê residualmente a hipótese de a defesa pessoal prevalecer sobre a técnica.
Se, por exemplo, o advogado do arguido apresenta uma peça processual da qual ele discorda, o
arguido pode retirar-lhe eficácia, desde que o faça expressamente antes da decisão em causa.
Há depois um problema de subsistência do patrocínio do advogado, mas isso já é outra questão.
O problema da autorrepresentação
Ora, uma parte da doutrina entende que a norma do CPP que prevê a obrigatoriedade de
assistência por advogado em alguns casos é inconstitucional. Isto porque o artigo 8º CRP faz
vigorar o direito internacional na nossa ordem interna, designadamente a CEDH. O CPP estaria
a limitar ou excluir o problema da autorrepresentação em processo penal: alguém ser o único
advogado de si próprio no processo em curso.
Porém, o professor Costa Pinto tem uma opinião diferente. Aquilo que o CPP não permite
é que a pessoa seja exclusivamente o único defensor de si próprio. Na verdade, o código não
exclui a autorrepresentação, o que exclui é a possibilidade de o processo avançar sem existir
defesa técnica. O nosso código garante por várias vias mecanismos de defesa pessoal, em que
o arguido, por ato próprio, se pode defender e ainda garante a possibilidade de retirar eficácia
ao ato praticado pelo defensor obrigatório. Se assim é, podemos dizer que o CPP garante, de
forma muito congruente, o regime da autorrepresentação.
Assim, o arguido pode representar-se a si próprio, tem é que, além disso, ter um advogado
que se assuma como seu defensor no processo. Depois articula a sua estratégia com o advogado,
mas isso não limita a intervenção da defesa pessoal, ao abrigo das várias normas que dão poder
ao arguido de ter uma intervenção em sua defesa, ou da forma que entender, pois o arguido
pode confessar os factos. O facto de o poder fazer, e a qualquer momento, garante esse
princípio fundamental da autorrepresentação. O poder de retirar eficácia ao ato do advogado
também representa, desse ponto de vista, um princípio fundamental de prevalência da defesa
Por tudo isto, o professor Costa Pinto entende que não há qualquer inconstitucionalidade
ou incompatibilidade do regime do CPP com o direito internacional e que este até é um regime
bastante equilibrado, que inclui:
Como vimos, o professor Costa Pinto considera que a solução do código é a melhor para
garantir os direitos de defesa num Estado de Direito. Outro aspeto importante tem a ver com o
momento e a forma de constituição de arguido. Para isso vamos distinguir entre os factos ou
causas legais que dão origem à constituição de arguido (artigos 57º a 59º) e as formalidades a
respeitar nessa constituição (artigo 58º nº 2, 3 e 4).
Quanto às causas legais, há sete causas legais de constituição de arguido que vamos ver:
O artigo 57º nº1 estabelece que assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem
for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal. Assim, em primeiro lugar, a
dedução de acusação contra certa pessoa constitui-a como arguido. Em segundo lugar, esta
norma equipara o requerimento de abertura de instrução à acusação, pois, na verdade, em
termos de conteúdo, descreve factos que são relevantes para a prática de um crime e imputa-
os a alguém. O RAI, quando apresentado pelo assistente, constitui alguém como arguido ope
legis, isto é, tem efeito legal automático de um ato processual.
A prática judiciária segue esta norma no primeiro caso, mas não no segundo. Nem sempre
o requerimento de abertura de instrução, em especial quando traz arguidos novos, dá origem à
constituição de arguido, mas deveria dar, nomeadamente sujeição a termo de identidade e
residência. Porém, a prática judiciária cria uma certa dilação temporal e às vezes não dá
cumprimento. Em todo o caso, do ponto de vista legal, temos aqui um efeito ope legis.
O artigo 58º nº1 alínea a) dita que é obrigatória a constituição de arguido se, correndo
inquérito contra pessoa em relação à qual haja suspeita fundada da prática do crime, esta
prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal.
Aqui faz sentido o sabor dos tempos. Esta norma tem a redação que lhe foi dada em 2007.
Antes de 2007, quando alguém era chamada a depor, tinha de ser constituído como arguido e
ficava com esse estatuto durante todo o processo, até ser arquivado. O que se verificou? No
processo Casa Pia, houve imensas denúncias anónimas contra várias figuras. E a lei, por razões
garantísticas, obrigava a constituição como arguido de todas essas pessoas, e assim havia a
possibilidade de alguém do exterior manipular tudo, fazendo denúncias anónimas. No mínimo
a pessoa ficava com termo de identidade e residência, não se podia ausentar livremente do país,
entre outras limitações. Isto significava que podia socialmente e politicamente desenvolver-se
uma suspeita contra essa pessoa e limitações efetivas que resultavam, no mínimo, do termo de
identidade e residência.
Assim, a atual redação desta norma visou flexibilizar a constituição de arguido por prestação
de declarações. Nem toda a pessoa chamada a prestar declarações tem de ser constituída
arguida, só quando existir uma suspeita fundada contra si. Sem essa suspeita fundada da prática
de crime, não há dever legal de constituição de arguido.
➔ Detenção
Outra causa legal de constituição de arguido é a sua detenção que vem prevista e regulada
nos artigos 254º a 261º. De acordo com o artigo 58º nº1 alínea c), a detenção de um suspeito
dá origem à sua constituição automática como arguido.
Nos termos do artigo 58º nº1 alínea d), também a comunicação do auto de notícia pode ser
uma causa legal de constituição como arguido, desde que seja minimamente fundado.
O artigo 59º tem duas normas importantes para garantir a constituição de arguido.
O nº1 prevê a possibilidade de, durante uma inquirição, alguém mudar de estatuto. Esta
passagem é possível durante a própria prestação de declarações. Se, durante qualquer
inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido,
a entidade que procede ao ato tem de suspender a inquirição e fazer a constituição de arguido.
Assim, é perfeitamente possível uma pessoa ser chamada numa qualidade e sair de lá como
arguido, sendo que o acervo de direitos e deveres passa a ser diferente.
O regime legal prevê, no fundo, o dever de quem está a fazer a inquirição mudar a situação
da pessoa e isso resulta do conteúdo da própria diligência. O professor Costa Pinto assistiu a um
caso em que uma pessoa foi chamada como testemunha, mas a partir das suas declarações
percebeu-se que afinal era cúmplice. Aí o agente da PJ parou a inquirição e disse: “amigo, tenho
de o constituir arguido”.
Nos termos do nº2, é possível alguém requerer a constituição como arguido a seu pedido
quando estiver a ser feita uma diligência destinada a comprovar uma inquirição que
compromete a própria pessoa. No fundo, se a diligência estiver a adensar suspeitas concretas,
que permitam um juízo sobre a própria pessoa, esta pode pedir para ser constituída arguido.
A lógica é: “ah, se estou a ser tratado como suspeito quero constituição de arguido”.
No caso das testemunhas, não têm de o fazer, porque estas já têm o direito a não responder
e não precisam de ser constituídas arguidas para esse efeito. Aí, o artigo 132º nº2 garante a
possibilidade de uma testemunha não responder às perguntas que impliquem suspeitas
concretas da prática do facto que possam gerar responsabilidade criminal.
Se a pessoa não tiver esse estatuto de testemunha não o pode invocar, o que pode fazer é
requerer a sua constituição de arguido. Este direito de constituição de arguido a pedido
corresponde a um direito potestativo processual. Podem apenas ver-se as condições concretas
da sua verificação: diligências destinadas a comprovar uma imputação que pessoalmente afeta
a pessoa. Se não a afetar pessoalmente, o exercício do direito a ser constituído arguido é
ilegítimo, estando fora dos pressupostos processuais. Notar que a razão é haver uma suspeita
concreta contra a pessoa e entra aqui o exemplo que vimos sobre o casal McCann.
A partir de 2007, o legislador criou uma proibição de prova autónoma e passou a utilizar
uma expressão típica das provas proibidas: “não podem ser utilizadas como prova”. De acordo
com a história do preceito, a omissão ou violação das formalidades implica que as declarações
prestadas pela pessoa visada não possam ser utilizadas como prova, nem contra o arguido nem
contra outras pessoas.
Assim, com essa alteração, o legislador converteu uma ineficácia simples da prova numa
verdadeira proibição de prova (artigo 58º nº5). Este regime legal é uma forma de garantir o
respeito pelo regime da constituição de arguido. O facto de existir uma prova proibida associada
ao regime de constituição de arguido significa que, no fundo, é inútil para quem está a conduzir
uma diligência tentar manipular o estatuto do arguido.
Resulta dos artigos 60º e 61º que o estatuto do arguido é um acervo de direitos e de
deveres. É uma realidade compósita e heterogénea que abrange quer vários direitos, quer um
conjunto significativo de deveres. É importante dizê-lo porque, por vezes, levantavam-se
algumas dúvidas sobre o comportamento do arguido em relação a alguns direitos, mas elas só
existem, na verdade, se não tivermos em conta o acervo de direitos e deveres do arguido. Há
realidades tratadas não como direitos, e sim como deveres.
Imaginemos que uma autoridade judicial vai apreender um objeto na posse do arguido. Esta
é uma diligência de prova que corresponde a uma apreensão, cujo regime legal
(designadamente, os artigos 172º e 178º) implica uma situação de sujeição do arguido.
Ora, resulta do artigo 61º nº3 alínea d), que o arguido tem um dever de sujeição a medidas
de coação e diligências de prova. Ou seja, em matéria de diligências dessa natureza, não se
pode invocar por exemplo a garantia contra a autoincriminação, pois o arguido não está numa
situação de poder recusar a entrega de certo objeto. A apreensão é um ato de autoridade, cujo
desrespeito é tido como facto típico que preenche o tipo legal do crime de desobediência
previsto no artigo 172º nº2 CP. Isto por se tratar de uma diligência de prova, e, ao abrigo dela,
o arguido estar numa situação de sujeição.
Em primeiro lugar, o direito ao silêncio está previsto como o direito a não responder a
perguntas feitas por qualquer entidade sobre factos imputados e o conteúdo de declarações.
Ou seja, tal como está previsto no artigo 61º nº 1 alínea d), o direito ao silêncio tem uma
estrutura declarativa, tem a ver com a possibilidade de não responder a perguntas. Tal como
está configurado, isto já nos permite dizer que o direito ao silêncio está previsto não com
conteúdo material, mas com conteúdo declarativo.
Em segundo lugar, outro aspeto duvidoso é a questão de saber se o direito ao silêncio pode
ou não ser exercido de forma legítima em relação a informação essencial para a promoção das
investigações. Isto tem a ver com sistemas informáticos ou de telecomunicações, em que, por
vezes, é necessário obter-se informação sobre passwords ou chaves de desencriptação de certa
informação, como elemento fundamental para a investigação.
No artigo 14º Lei do Cibercrime, o legislador resolveu (de forma duvidosa, para o professor
Costa Pinto), considerar que o arguido, nesses casos, não tinha o dever de revelar as passwords
nem as chaves de encriptação. Portanto, podia ser discutível se era ou não um objeto, mas o
legislador decidiu aplicar o direito ao silêncio a estes casos. Claro que, em si, as chaves e
passwords não são incriminatórias, o que o poderá ser é a revelação de um facto que permita
aceder a factos incriminatórios. Em todo caso, o legislador resolveu estender o direito ao
silêncio a informação relevante para aceder aos sistemas informáticos e de telecomunicações.
Significa que, sempre que o legislador pretende alargar o direito ao silêncio em relação a
situações dúbias, (ou porque incriminatórias, ou porque constituem objetos materiais que em
si mesmos não se traduzem na respeita a perguntas), tem de o fazer expressamente, senão
prevalece a configuração do direito ao silêncio com conteúdo declarativo.
Importa perceber então qual é o conteúdo do direito ao silêncio. De acordo com a nossa lei,
artigos 61º nº 1 alínea d), 343º e 345º o direito ao silêncio comporta os seguintes aspetos:
Alguma jurisprudência entende que o direito ao silêncio tem de ser exercido em bloco: ou
se responde, ou não se responde em bloco. Ora, não é isso que está na lei. O que está na lei é o
direito a não responder a perguntas, é um direito perante cada pergunta.
Por outro lado, o direito ao silêncio não tem explicitamente consagração constitucional, mas
resulta de uma garantia de defesa, prevista no artigo 32º CRP. Se o arguido, para se defender,
entende que deve responder a umas perguntas e não a outras, ou que pode selecionar, ou que
para efeitos da sua defesa pode responder a uns sujeitos processuais e não aos outros, está no
seu direito. Uma interpretação restritiva do direito ao silêncio é inconstitucional, porque
implica derrogação do artigo 32º CRP. Assim, o quarto aspeto do direito ao silêncio que vimos
é o direito a selecionar aquilo a que quer ou não responder.
Esta questão colocou-se de forma intensa no processo Casa Pia. No processo Casa Pia, o
tribunal entendeu que, quando o arguido exerce o direito ao silêncio, isso impedia os sujeitos
processuais de fazerem as perguntas que seriam dirigidas a esse arguido. O professor Costa
Pinto entende que o tribunal seguiu fundamentalmente um critério prático, mas, como dizem
alguns advogados, as perguntas valem por si independentemente de serem respondidas.
Para o professor Costa Pinto, a questão deve ter uma regulação expressa. Em particular,
devia ser possível, os advogados dos coarguidos fazerem as perguntas independentemente de
o arguido a quem as mesmas se dirigem responderem ou não. Se isso não for feito, isto é, se
essa possibilidade é negada, então, em certo sentido está a ser negada a possibilidade e
dimensão do direito de defesa. Para um arguido, responder ou não é um direito, mas para
outro, ser feita a pergunta pode ser uma fonte fundamental para uma dúvida razoável a ser tida
em conta, designadamente na investigação dos factos. Não é nada pacífico dizer-se que o
advogado de um coarguido não pode fazer perguntas.
No direito inglês, as duas coisas até são dissociadas de acordo com o tipo de criminalidade.
A criminalidade organizada muito grave ou o terrorismo não garantem o direito ao silêncio, mas
garantem o privilégio contra a autoincriminação. Ou seja, obrigam-se as pessoas a revelar, mas
os factos não são usados contra si. Os factos são usados para responsabilizar outras pessoas ou
obter informação relevante, mas não contra si. Assim, é possível recusar o direito ao silêncio e
garantir o privilégio contra a autoincriminação.
A nossa lei modelou uma parte de forma invisível e outra de forma visível. Quanto à
modelação de forma invisível, temos que o legislador, ao estabelecer o privilégio contra a
autoincriminação, inverteu o ónus da prova e fez com que não fosse exigida a colaboração do
arguido no processo. Quando os arguidos, por razões mediáticas ou sociais, dizem que vão
colaborar com a realização da justiça, estão a fazer uma manifestação de boa vontade, mas não
é exigido que colaborem. Ao consagrar o privilégio contra a autoincriminação, inverte-se o
ónus da prova e este passa a correr pela acusação que tem de provar os factos, enquanto que
os arguidos não têm o dever de colaborar para a descoberta dos factos.
Portanto, a nossa CRP não consagra expressamente o direito ao silêncio, nem a garantia
contra a autoincriminação, mas estes resultam da presunção de inocência e das garantias de
defesa. Se o arguido se presume inocente e isso significa que a acusação tem de provar a sua
responsabilidade, e são asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido, isto só pode
significar também que ele não tem de colaborar com a acusação.
É claro que alguns autores insistem que sim, porque é algo tão evidente do ponto de vista
das garantias que tem de lá estar. Mas há exemplos históricos de constituições que o referem
expressamente, portanto se calhar não se pode dizer explicitamente que está lá. Há um certo
lapso legislativo e, a ser para consagrar, o legislador terá de discutir exatamente qual o conteúdo
que quer atribuir à a garantia contra a autoincriminação, porque é profundamente discutível.
O professor Costa Pinto entende que devia estar expressamente consagrado, mas só
depois de um debate esclarecido numa revisão constitucional e não por interpretação
hermenêutica iluminada de alguém quando lá não está nada. O legislador terá de o fazer
explicitamente. Enquanto assim não for, retira-se da presunção de inocência e das garantias de
defesa, sendo que tudo o que implicar exigência de colaboração ou um comportamento ativo
por parte do arguido, de forma a inutilizar a alguma dessas garantias, é inconstitucional.
O problema principal coloca-se ao nível do direito tributário. Isto tem suscitado imensos
problemas porque há, designadamente, deveres de colaboração da parte dos contribuintes
relativamente à administração tributária. Há tutela sancionatória contraordenacional, e coloca-
se a questão de saber se essa informação pode depois ser usada nos processos criminais.
Durante muito tempo, o Tribunal Constitucional entendeu que não havia problemas, mas
numa interpretação do Professor Pedro Machete, com voto do Professor Costa Andrade, foi
dito o seguinte: um processo tributário em curso (de natureza criminal) não pode exigir os
deveres de colaboração porque isso significa uma violação do direito ao silêncio que vale no
processo por via do direito criminal. É este o núcleo essencial. No fundo, os deveres de
colaboração cessam na pendência do processo criminal, sempre que o seu conteúdo implique
elementos contra o contribuinte, designadamente os crimes de fraude fiscal ou de abuso de
confiança.
O professor Costa Andrade veio fazer uma formulação mais ampla, dizendo que não é
apenas durante a pendência que deveres de colaboração que tenham sido cumpridos antes do
processo criminal também não podem dar origem a elementos valoráveis no processo
criminal, pois isso violaria a garantia contra autoincriminação. Assim, no domínio do direito
tributário, temos a questão de saber se os deveres para com a AT cessam ou são mitigados
quando há crime, ou se a lógica das garantias de defesa implica que, mesmo que haja deveres,
haja uma proibição de valoração, como defende Manuel da Costa Andrade. Isso está resolvido
apenas de forma persuasiva, pois há apenas um acórdão do Tribunal Constitucional que versou
sobre esta matéria.
Isto foi debatido quanto a vários aspetos – designadamente, à recolha de material biológico
para efeitos de identificação de marcadores de ADN – como a questão de saber se a realização
de uma zaragatoa local, em que se retira um pouco de células do interior da boca, para
identificação de marcadores de ADN é ou não uma diligência que pode ser acompanhada do
exercício de poderes de autoridade e se a arguido está numa situação de sujeição. Houve uma
Na prova por reconhecimento de pessoas (artigo 147º), não há particular problema, basta
estar numa linha, mas o caso de reconstituição de facto (artigo 150º) pode haver interações de
carácter oral. Por outro lado, na prova por acareação (artigo 146º), há um confronto de opiniões
e depoimentos por parte de intervenientes diversos e aí pode estar em causa um conteúdo
declarativo.
Apesar do dever de sujeição a estas diligências de prova, o arguido tem o direito ao silêncio
e há uma proibição de valoração desse silêncio, o que significa que não se podem tirar
conclusões de o arguido ter ficado em silêncio numa certa situação.
É importante também precisar que o facto de o tribunal não poder valorar o silêncio do
arguido, não o impede de valor os outros meios de prova que motivaram o silêncio do arguido.
Imagine-se que um dos arguidos pede a junção de uma carta, um meio de prova documental, e
são pedidas opiniões aos outros arguidos, sendo que um deles invoca o direito ao silêncio pelo
que não tem de responder a nada sobre o conteúdo daquela carta. O tribunal está proibido de
valorar esse silêncio, mas pode valorar as outras declarações e pode valorar o meio de prova. O
O defensor do arguido é alguém que garante uma defesa técnica em todo o processo e
garante uma certa perspetiva estratégica não condicionada pelo facto de a pessoa poder ser
responsabilizada. A razão pela qual a nossa lei exige um defensor do arguido que garanta uma
defesa técnica é para permitir uma análise mais lúcida, menos emotiva, mas descomprometida,
tecnicamente mais rigorosa, não afetada pela sujeição ao processo por parte do arguido.
O defensor do arguido vem regulado nos artigos 62º e seguintes. O artigo 63º nº1
estabelece que o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela
reservar pessoalmente a este. Assim, os direitos de intervenção processual do defensor são,
no fundo, todos os que assistem ao arguido. Isto significa que temos de interpretar as
expressões legais que se referem ao arguido nos termos que está disposto nesta norma: os
direitos que o arguido tem são também os direitos que o defensor pode exercer. Isto quer dizer
que tudo o que dissemos quanto ao estatuto do arguido se aplica, com alguns limites, ao
defensor mutatis mutandis (expressão latina que significa “mudando o que tem de ser mudado”,
e pode ser grosso modo entendida como “com as devidas adaptações”).
Importa então perceber que limites são esses. Há situações em que não faz sentido
confundir o defensor e o arguido. Há diligências e atos processuais que visam o arguido e não
o seu defensor. Por exemplo, se é pedido ao arguido que participe numa reconstituição de facto
enquanto meio de prova, esse dever é do arguido e não do defensor. Sempre que há sujeição a
um meio de prova ou medida de coação isso dirige-se pessoalmente ao arguido. O defensor
pode acompanhar, mas não se encontra nessa situação de sujeição. Há um estatuto diferenciado
nessa relação ao arguido.
Por outro lado, temos a cláusula de exceção na parte final do artigo 63º nº1 “salvo os que
ela reservar pessoalmente a este”. Por exemplo as últimas declarações do arguido no final da
audiência (artigo 361º) não podem ser feitas pelo defensor, tem de ser o arguido. O objetivo é
dar-lhe a última palavra.
Se o defensor tem uma estratégia para as declarações do arguido, pode fazê-lo de duas
formas: falar com ele antes da comunicação ou interromper o depoimento e dar-lhe indicações,
mas não se pode substituir ao arguido, não pode fazer sínteses ou súmulas nem corrigir o que o
arguido disse.
Nos termos do artigo 61º nº1 alíneas e) e f), o arguido tem o direito a constituir advogado
ou solicitar a nomeação de um defensor e tem também direito a ser assistido por esse defensor
em todos os atos processuais em que participar e, quando detido, comunicar, mesmo em
privado, com ele. Por sua vez, o artigo 62º estabelece que essa constituição de defensor pode
ser feita a qualquer altura do processo e que o arguido pode constituir mais do que um defensor.
Esta relação entre defensor e arguido merece tutela do nosso sistema, nomeadamente,
através de limites legais às apreensões e publicações de correspondência entre os dois e limites
legais às escutas que abranjam as conversas entre ambos.
O mesmo se passa quanto às escutas telefónicas, previstas no artigo 187º. Nos termos no
nº5, é proibida a interceção e a gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o
seu defensor. Isto significa que é proibido fazer uma escuta telefónica a uma comunicação
entre o arguido e o seu defensor e, mais se acrescenta, também é proibido registar como prova
uma conversa entre o arguido e o seu defensor que surja ocasionalmente numa escuta
telefónica.
O que se coloca sob escuta não é uma conversa ou uma pessoa, tecnicamente é um telefone
que é colocado sob escuta, o que significa que a escuta pode intercetar conversas relevantes ou
irrelevantes porque ficam registadas todas as comunicações. As formalidades das operações de
escutas telefónicas estão previstas no artigo 188º. De 15 em 15 dias a polícia leva o material da
escuta ao MP (nº3) que tem dois dias para sujeitar o resultado à intervenção do JIC (nº4).
Há dois momentos chave aqui. O primeiro é eleger o telefone alvo e depois, quando o
material recolhido é entregue ao MP, cabe a este assinalar as passagens relevantes para o
processo. Isto porque o conteúdo da escuta não passa integralmente para o processo, mas
apenas o que é selecionado neste processo e assim se transforma o meio de obtenção de prova
num meio de prova que entra no processo. Claro que o juiz tem acompanha todo este processo
e a sua autorização é fundamental. Só no fim disto tudo é que a escuta pode ser utilizada no
processo.
Ora, tendo-se colocado o telemóvel do arguido sob escuta, podem intercetar-se conversas
com o seu defensor. A proibição do artigo 187º nº5 funciona nos dois momentos. Por um lado,
é inicialmente uma proibição de interceção e depois é uma proibição de usar como meio de
prova o resultado dessa comunicação intercetada.
Todavia, estas proibições têm limites. Na segunda parte nº5 artigo 187º e na segunda parte
nº2 artigo 179º lê-se “salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objeto
ou elemento de crime”. Isto significa que se, porventura, o próprio conteúdo da conversa entre
o arguido e o seu defensor tiver a ver com o envolvimento do defensor na prática do crime
passa a ser possível utilizar essa conversa porque ela, em certo sentido, transcende o mandato
de defesa: é um envolvimento de natureza criminal na prática do crime (exemplo, o defensor é
instigador). Esta é uma exceção à proibição de apreensão de material comunicativo e escutas
telefónicas entre arguido e defensor. Temos, pois, uma proibição e uma exceção à proibição.
Outro tema são as buscas e apreensões em escritórios de advogados. O artigo 177º nº5
estabelece que são possíveis as buscas em escritórios de advogados. O artigo 180º sobre as
apreensões em escritórios de advogados remete para a norma das buscas. Assim concluímos
que é possível haver buscas e apreensões em escritórios de advogados, porém há limites.
Este tema do defensor do arguido é muito importante porque é um sujeito processual com
autonomia perante o próprio arguido, dentro de mandato que tem. Assim, o próprio defensor
pode ir ao processos praticar atos que determinam a sua tramitação, exercendo direitos do
arguido como o de interpor recurso, de requerer a abertura da instrução ou de pedir a anulação
de um ato. Significa que uma parte da dinâmica processual que justifica a figura do sujeito
processual como alguém que pode conformar a tramitação do processo com os poderes que
tem, tem o seu campo paradigmático no defensor do arguido.
O seu estatuto é limitado em função dos direitos do arguido, mas tem alguma autonomia
dentro da função de patrocínio. Pode exercer esses direitos, praticando atos que ache
convenientes à defesa do arguido. Não esquecer, contudo, que se sujeita a que o arguido retire
a eficácia ao ato praticado, nos termos do artigo 63º nº3, mas isso raramente acontece.
NOTA: Os autores têm perspetivas muito pessoais sobre algumas dessas matérias, pelo que é
preciso apreender primeiro o esquema.
Noções introdutórias
Imaginemos que A apresenta um queixa criminal dizendo que X disparou três tiros contra si
e que o atirador tinha intenção de a matar. Temos uma notícia de infração. O inquérito será
aberto a partir do enquadramento indiciário que, neste caso, seria do artigo 131º CP mais 22º
CP, que corresponde a uma tentativa de homicídio. Imaginemos que o autor do disparos diz que
efetivamente disparou os três tiros, mas não para matar, só para assustar. Ora, assim sendo,
não havia dolo, portanto esta situação não pode ser enquadrada como tentativa de homicídio
e, eventualmente, se o X autor dos factos quisesse assustar a vítima, seria um crime de ameaça
previsto no artigo 153º CP.
Vejamos o que temos aqui. Antes de mais temos uma base factual: os três tiros disparados
por X em direção a A; os tiros não acertaram na vítima; a vítima sentiu que era vítima da tentativa
de homicídio, mas X afasta essa ideia dizendo que era só para assustar. Então, temos aqui uma
notícia do crime que apresenta certos factos, mas que vão ter de ser enquadrados ao longo do
processo. Isto significa que o MP vai ter de investigar no contexto em que é dúbio se houve
tentativa de homicídio e é dúbio se houve apenas uma ameaça ou uma defesa meramente
nominal ou unilateral. Então o MP investiga e enquadra. Suponhamos que o MP conclui que o X
apenas queria assustar, faz uma acusação pelo artigo 153º CP.
Face a isto, o que o arguido pode fazer é requerer a abertura de instrução. Ao fazê-lo terá
de apresentar os factos e há um que se manifesta decisivo. Não se contesta se foram disparados
os três tiros, mas se há dolo. Abrindo instrução, imagine-se que o tribunal entende que existiu
uma tentativa de homicídio (artigo 131º CP) e que faz a pronuncia para o caso ir a julgamento.
O caso vai a julgamento com esses elementos e o tribunal chega à conclusão que existiam várias
circunstâncias agravantes como, vamos supor, premeditação.
Queremos com isto evidenciar duas ideias. Em primeiro lugar, é perfeitamente normal
existirem variações de factos ao longo do processo. Em segundo lugar, devemos reter que
aquilo que se considera provado que permite a invocação de certos tipos incriminadores
depende da prova sobre esses factos e do tipo incriminador aplicável. A factualidade objetiva
parece ser a mesma, mas altera-se a factualidade subjetiva ao apurar melhor a história. Isto é,
os factos vão variando. A temática do objeto do processo é até que ponto é que essa variação é
Imaginemos que não houve instrução e tudo aquilo que foi apurado nessa fase é relevado
factualmente na audiência julgamento. Queremos então perceber como deve proceder o juiz
que recebe o caso de ameaças, mas no julgamento percebe que se trata de algo bastante mais
grave, uma tentativa de homicídio ainda para mais com agravantes. Ora, se o caso estava
enquadrado como crime de ameaças, teria ido para o tribunal singular. Assim, há pelo menos
um aspeto que já sabemos: há uma incompetência porque o tribunal singular não tem
competência para julgar tentativas de homicídio.
Os factos podem alterar-se, variando o dolo e variando a prova sobre o dolo e sobre os
factos e, portanto, é possível inclusivamente admitir um espetro de possibilidades do ponto de
vista fático e jurídico. No recente caso do bebé que foi deixado no ecoponto dos plásticos, em
função dos factos, podemos estar a falar de diversos enquadramento jurídicos substantivos,
designadamente tentativa de homicídio (131º CP + 22º CP), tentativa de homicídio qualificado
(132º CP + 22º CP), tentativa de infanticídio (136º CP + 22º CP), exposição ou abandono (138º
CP). No fundo, no inquérito são apurados os factos e o processo vai evoluir consoante esse
apuramento e os enquadramentos jurídicos que não são estáticos e podem mudar de forma
absoluta.
Valores envolvidos
Portanto, pelo menos a partir de certo momento, o próprio direito de defesa do arguido
pressupõe estabilizado o acervo dos factos que lhe são imputáveis. Normalmente, esse
momento é o da acusação. Quando é deduzida a acusação, têm de estar indicados os factos,
com um certo enquadramento, nos termos do artigo 283º nº3 alínea b), e o arguido defende-
se perante essa acusação.
Imaginemos que, no tal exemplo em que o X dispara três tiros contra o A, o arguido X chega
ser julgado pelo crime de ameaças e depois vai para o Facebook dizer “ahahah, enganei-os
todos! Falhei, mas para a próxima não falho 😊”. Aí teríamos uma versão diferente da história
e levanta-se o problema: é possível um novo processo? Esse processo já foi julgado ou não?
Pode haver novo julgamento perante estas declarações?
Quem diz caso julgado diz também litispendência, porque podiam estar concomitantes dois
processos (o de ameaças e o de tentativa de homicídio) e ainda “ne bis in idem” que, na sua
versão constitucional, estabelece que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime,
o que que pressupõe que há uma situação que já foi julgada. A CRP diz crime, não diz factos, o
que significa que são os factos e o enquadramento.
Onde queremos chegar é que há figuras fundamentais do direito processual penal que
pressupõem que se clarifique quando o objeto do processo está definido, quando pode haver
variações e ainda o que é que já foi julgado e o que é que está a ser eventualmente repetido.
Vejamos outro exemplo. Uma pessoa deu um par de estalos a outra e foi julgada por ofensas à
integridade física. Porém, isso aconteceu publicamente, portanto há uma dimensão ofensiva da
honra associada ao par de estalos que gera ou segunda queixa. A questão que surge é se pode
haver um novo processo por crime contra a honra com base nos mesmos factos. Isto pressupõe
saber o que é que foi julgado no mesmo processo e como é que se apura a repetição de julgados.
Figuras tão importantes e fundamentais como estas pressupõem que se identifique o objeto
do processo e o que é que está a ser repetido, mas o código não trata disso porque não tem
Princípios fundamentais
O professor Castanheira Neves formula essa exigência da seguinte forma: deve existir uma
identidade entre o acusado, o conhecido e o decidido. Quer isto dizer que entre a acusação,
aquilo que o tribunal conhece e a decisão deve encontrar-se uma situação de permanência em
termos de conteúdo. O que o tribunal decide deve corresponder ao acusado e àquilo que
conhece, o que reforça a ideia de que a acusação cristaliza o objeto do processo. Ou melhor
dizendo, o primeiro momento em que se define o objeto do processo é, em regra, a acusação
e aquilo que o tribunal conhece, conhece dentro dos limites da acusação.
Imagine-se que há uma acusação pelo crime de introdução em casa alheia (190º CP) e furto
qualificado (204º CP) que ocorreu em abril, mas o juiz conhece um outro assalto semelhante em
janeiro. Segundo o princípio da identidade do objeto do processo, essa segunda situação não
pode ser conhecida nem decidida porque não consta do acusado.
Princípio da estabilidade
O princípio da estabilidade dita que o objeto do processo deve manter-se estável a partir
de certo momento. Mais uma vez se diz que esse momento é, normalmente, o da acusação, e
essa estabilidade garante a congruência entre o acusado, o conhecido e o decidido.
Simplesmente essa estabilidade não é aritmética, nem total, nem absoluta.
Por um lado, a própria natureza do julgamento pode fazer com que surjam factos não
anteriormente revelados. Não há contraditório antes do julgamento, portanto a própria
natureza desta fase pode fazer com que se revelem factos que não eram antes conhecidos. Por
outro lado, num sistema como o nosso, em que o tribunal tem poderes autónomos de
investigação, é mais fácil acontecerem variações que põem em causa a estabilidade.
Pode haver várias verdades a vir ao de cima numa fase de julgamento contraditória cujo
titular tem o poder-dever de investigar a verdade material. Como tal, num sistema que tem um
princípio de investigação, complementar à estrutura acusatória, a estabilidade do objeto
processual pode ser afetada.
Princípio da indivisibilidade
Neste tema importa realçar que a questão do concurso de crimes é posterior a tudo isto.
O acervo de factos não é divisível, gere ou não gere concursos. O concurso é sempre resultado
de um objeto de processo que já se delimitou.
Princípio da consumpção
De acordo com o princípio da consumpção, aquilo que o tribunal decide abrange tudo o
que foi conhecido e tudo o que estava numa unidade histórica com o que foi conhecido e que,
não tendo sido, devia ter sido conhecido.
Imaginemos que durante um ano há um trabalhador que, ao fechar as contas, tira 10 euros
da caixa registadora todos os meses. É uma situação de abuso de confiança (artigo 205º CP), em
que em cada mês ele tira uma pequena quantia que é relativamente insignificante. Imagine-se
que é descoberto e é apresentada uma queixa de abuso e confiança por se ter apropriado
ilegitimamente de 120 euros entre janeiro e dezembro de 2019. Isto é tratado como um crime
continuado, isto é, em vez de serem imputados 12 crimes de apropriação de 10 euros em cada
mês, a fragmentação de ações é tratada como uma única realização típica. Aplicar o princípio da
consumpção significa que os factos entre janeiro e dezembro já estão tratados, isto é, aquilo
que é conhecido já foi tratado, não se pode tratar autonomamente 3 meses (princípio da
indivisibilidade). Portanto, a decisão por abuso de confiança de 120 euros abrange os 120 euros
e as várias frações que foram retiradas em cada um dos meses. Isto é, aquilo que o tribunal
abrange tudo o que foi conhecido. Seria violador do caso julgado pretender autonomamente
um processo só com os valores de 3 meses já decididos.
Porém, o princípio da consumpção estabelece ainda que aquilo que o tribunal decide
abrange também tudo o que devia ter sido conhecido. Imagine-se que, afinal, nos meses de
abril, maio e junho, como houve maior movimento, em vez de tirar 10 euros, o funcionário tirou
20, o que significa mais 30 euros no fim do ano. Ora, o tribunal não contemplou esses 30 euros
na sua decisão. Quid juris? Diz o princípio da consumpção que, se o caso foi mal investigado e
por isso a decisão não abrangeu meses em que foram retiradas quantias maiores, estes valores
estão consumidos pelo objeto do processo do crime continuado de janeiro e dezembro.
Esta é uma proteção do caso julgado contra aquilo que efetivamente foi conhecido
proibindo que se conheça aquilo que por deficiência de investigação ou de acusação devia ter
sido conhecido e não foi. No fundo, o princípio da consumpção visa maximizar a investigação e
garantir a segurança jurídica alargando o caso julgado àquilo que não foi conhecido, mas devia
ter sido conhecido. Isto permite não se duplicarem ou triplicarem processos. Daí que o MP tenha
alguma resistência a deduzir acusação porque sabe que uma vez acusado não pode corrigir.
Notar que isto vale para todos os crimes. Vimos um exemplo de crime duradouro porque é
mais fácil de explicar, mas vejamos outro sem ser duradouro. Imagine-se que uma pessoa tenta
matar outra colocando uma bomba no carro desta. Quando a pessoa vítima entra no carro,
esquece-se de qualquer coisa, sai e, portanto, a bomba explode, destrói o carro e não mata a
pessoa por esse acaso. Do ponto de vista factual temos uma tentativa de homicídio qualificado
Segundo o modelo rígido, o que está acusado é o que pode ser conhecido. Aplicando-se
um modelo rígido, não poderiam existir variações algumas depois da acusação. Este modelo, em
que o acusado é o conhecido, aumenta a segurança jurídica, mas acaba por sacrificar alguma
coisa da verdade material.
Já o modelo flexível, estabelece que uma vez deduzida acusação, ela pode ser completada
em julgamento com os factos que forem surgindo. Isto aumentaria a adesão à verdade material
e sacrificaria a segurança do arguido porque, assim sendo, poderia ser acusado por uma coisa e
vir a ser condenado por outra.
Referentes legais e doutrinários: artigo 1º alínea f), artigo 303º, 309º, 358º, 359º e 379º
O CPP não exige essa identidade como a doutrina, mas que a partir de uma peça
fundamental – a acusação – se afiram as variações do objeto na fase do inquérito, visto que se
trabalha a partir da acusação. A matéria surge tratada no artigo 303º a partir da instrução com
Por outro lado, na matéria de julgamento, é usada a mesma técnica jurídica. Não diz que
tem de ser idêntica a decisão e a acusação, mas que há limites decisórios se há uma alteração
de factos não substancial, artigo 358º, uma alteração de factos substancial, artigo 359º, ou uma
mera alteração de qualificação jurídica, artigo 358º nº3. Por fim, o CPP culmina com a nulidade,
artigo 379º. Não se diz que a pronúncia tem de ser igual à acusação, o que acontece é que se
usa o conceito de alteração substancial de factos como uma alteração “intolerável” que em
princípio não pode ser aceite.
A técnica jurídica nos diversos ordenamentos jurídicos da europa para esta matéria é
diferente. A nossa lei não trata como sendo um problema de identidade do objeto como se faz
na teoria. Para aplicar a lei, esse problema concretiza-se através do conceito operativo de
alteração de factos substancial ou não substancial e por isso os referendos fundamentais são
estes. Podíamos falar noutras normas, como o artigo 284º da acusação particular que estabelece
a vinculação temática, o artigo 286º do requerimento da instrução, e também no artigo 311º
que usa a alteração substancial para a recusa parcial da acusação.
No artigo 1º alínea f) lemos que a alteração substancial de factos é aquela que tiver por
efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das
sanções aplicável. Ora, esta definição é incompleta.
Assim, para aplicarmos corretamente este conceito nas várias normas que o referem temos
primeiro de saber o que é uma “alteração de factos” e depois quando é que é “substancial” e
quando é “não substancial”. A última retiramos por exclusão de partes: se não for substancial
será não substancial. Porém, continuamos sem saber o que é uma alteração de factos.
Alteração de factos
E, portanto, cabe à doutrina determinar quando é que há uma alteração de factos. Este
aspeto é muito relevante porque leva à aplicação do artigos 358º nº1 se for não substancial ou
do artigo 359º se for substancial.
A doutrina tem então campo aberto para formular critérios para preencher este conceito.
O professor Costa Pinto fez o seu próprio critério: (i) Variação do complexo fático que existe no
processo (e não outros factos distintos ou outro acontecimento histórico social), (ii) Critério da
necessidade de contraditório: novos factos, modificação de factos ou supressão de factos –
necessidade audição dos interessados.
A primeira observação do professor é que uma variação de factos é uma variação da base
factual que pode dar origem a uma alteração substancial ou não substancial, mas é uma
modificação de factos que já estão no processo. Se, porventura, não for uma variação do que
lá está, mas uma adição de factos novos que não alteram aquela história, mas acrescentam outra
história, aí já não é uma alteração de factos.
Pensemos aqui no exemplo que já vimos sobre o caso em que se julga o crime de furto em
abril. O assalto da casa em janeiro que surgiu no julgamento do caso do assalto de abril é uma
outra história, um outro complexo fático e não uma variação do primeiro. Então, numa situação
como esta, temos factos completamente novos que não podem ser conhecidos pelo tribunal
porque nem sequer são uma modificação dos factos que estão no processo.
Vejamos o segundo requisito apresentado pelo professor. Quando é que existe uma
modificação que deve ser conhecida como alteração de factos, independentemente de depois
se concluir se é substancial ou não? O que é que existe de comum entre os artigos 358º e 359º?
Quando existe uma alteração de factos pode ser substancial ou não. Sendo assim, o que
podemos verificar é que a qualificação como substancial ou não substancial é uma qualificação
que se faz sobre uma realidade que já existe. O conceito comum destas duas normas é a
alteração de factos. O padrão mínimo é que, se existir uma alteração de factos, motivam o
contraditório. E quando é que motivam o contraditório? Quando no fundo são acrescentados
outros factos ao que lá estão, são alterados ou são suprimidos os que lá estão.
Isto porque, no fundo, o sujeito processual que pode ser afetado com essa alteração não
o conhecia. O arguido é acusado, vai a julgamento. Conhece o conteúdo da acusação e pode
pronunciar-se sobre ela apresentando uma contestação e, portanto, conhece o conteúdo
factual. Então, para haver alteração de factos tem de haver modificação do conteúdo factual
que faça funcionar no mínimo o contraditório, alterando-se um facto.
No fundo, exige-se contraditório quando aparece algo que não estava na acusação ou
quando houve uma modificação, isto é, dizia-se uma coisa de uma maneira, mas passou a dizer
se de outra maneira. Isto porque o arguido se pronunciou sobre uma coisa e está a ser julgado
de forma diferente. Se no mínimo tem de existir contraditório e isso é comum ao artigo 358º e
ao artigo 355º, então é esse o critério: corresponder a qualquer variação factual que motiva o
contraditório, e motivará o contraditório quando seja um novo facto, uma modificação ou
uma supressão de factos. Uma alteração de factos é esta e, no mínimo, motiva o contraditório.
Então é este o segundo requisito para ser uma alteração de factos.
Vimos que o conceito de alteração substancial de facto tem uma estrutura bipartida, vimos
o que é a alteração de factos, resta-nos então perceber a sua qualificação como substancial.
Para isso, o nosso código utiliza dois critérios, um mais simples e um mais complexo.
Porém, a lei não nos diz o que é um “crime diverso”, pelo que a doutrina se tem ocupado
de identificar este conceito. A professora Teresa Beleza tem como critério a agressão típica a
outro bem jurídico. O professor Costa Pinto defende que nos devemos orientar por este critério
do bem jurídico porque é o mais seguro, claro, e está minimamente de acordo com o princípio
da fragmentariedade do direito penal, preferível a qualquer outro critério. Então, o que a
professora Tereza Beleza nos diz é que o crime não é diverso quando for uma agressão ao
mesmo bem jurídico. A professora apresentou o conceito de alteração de factos substancial
como tendo uma dimensão naturalística (ser uma alteração de factos) e uma dimensão
normativa (a sua qualificação como substantiva).
Temos estado a falar da alteração do objeto do processo por referência a dois momentos: a
acusação e a pronúncia. Podemos partir de dois princípios fundamentais para responder em que
momento do processo é que se fixa o objeto do processo.
Contudo, como nota e bem o Doutor Souto Moura, antes da acusação há situações em que
se identifica um conjunto de factos imputáveis ao agente dos quais se retiram consequências
jurídicas e esses factos ficam cristalizados gerando um efeito semelhante ao do caso julgado.
Em que situações é que isso acontece?
Antes da acusação pode existir fixação de um objeto do processo num desses quatro casos
distintos. Existe um efeito preclusivo semelhante ao caso julgado.
Aqui temos a primeira flexibilização do sistema. O que resulta do artigo 303º é uma
proibição de conhecimento das alterações substanciais. O tribunal de instrução criminal que
conheça uma alteração substancial de factos está a produzir uma pronúncia nula.
O nº2 artigo 309º estabelece que esta nulidade tem de ser arguida no prazo de 8 dias a
contar da notificação da pronúncia. Esta é uma nulidade mista dependente de arguição e
dependente do prazo. Isto significa que se não for arguida dentro do prazo, a invalidade fica
sanada com o decurso do prazo. Portanto, nesta fase, é um sistema tendencialmente rígido: é
proibido conhecer na pronúncia factos que impliquem uma alteração substancial em relação à
acusação e ao RAI, isso gera uma invalidade parcial ou total, mas essa nulidade depende de ser
arguida e do prazo. Passado o prazo, a invalidade fica sanada e a alteração fica legitimada pelo
decurso do prazo e vai a julgamento já não como uma alteração substancial, mas como uma
variação tacitamente consentida no objeto do processo.
Imagine-se que por exemplo, o MP acusa por homilio privilegiado (133º nº1 CP). O assistente
no RAI diz que é homicídio simples (131º CP). É produzida prova e um juiz completamente
delirante diz que há homicídio qualificado (132º CP). Esta pronúncia, na parte que factualmente
exceda o conteúdo da acusação e do requerimento de abertura de instrução, é uma pronúncia
nula, porque estaria a exceder o conteúdo máximo da imputação, que era o conteúdo que
estava no RAI. Contudo, se não for arguida dentro do prazo de oito dias, vai a julgamento mesmo
assim porque a invalidade está sanada pelo decurso do prazo. Como tal, o tribunal de
julgamento pode conhecer um crime de homicídio qualificado nesta situação.
Quer isto dizer que o juiz de julgamento pode controlar o princípio da vinculação temática
em matéria das acusações. Pode controlar a acusação do assistente (tematicamente vinculada
à do MP, por força do artigo 284º) e a do Ministério Público (tematicamente vinculada, nos
crimes particulares, à do assistente, nos termos do artigo 285º). Contudo, este poder é
condicionado. Primeiro, o juiz não pode alterar positivamente o objeto do processo no
saneamento, isto é, não pode acrescentar factos novos, e, segundo, só pode exercer esse poder
se não tiver havido instrução. Se não existir instrução, o juiz pode controlar as duas acusações.
Se tiver havido instrução, o juiz perde esse poder e prevalece a decisão instrutória.
Importa ainda olhar para o julgamento e sentença. Antes de mais temos de saber qual é o
referente para o juiz de julgamento em termos de vinculação temática. Temos de saber qual é
o referente para a sentença para sabermos se houve ou não alteração substancial e isso
depende de ter ou não havido instrução:
Neste ponto é importante perceber que, apesar disso, nem sempre a agravação de
responsabilidade em recurso é ilegítima. O critério que está previsto na nossa lei é o do artigo
409º que consagra a proibição de reformatio in peju que significa que o tribunal de recurso não
pode, em alguns casos, atribuir uma pena mais grave do que foi atribuído em primeira
instância. Contudo, esta proibição não é absoluta, porque o tribunal superior só está
condicionado em duas situações:
Notar, todavia, que este não é problema de objeto do processo, mas de vinculação temática
do tribunal de recurso ao tribunal da primeira instância, mas essa limitação decisória tem razões
próprias relacionadas com as garantias de defesa e não é um problema do objeto do processo.
Então, (i) O tribunal de recurso também está limitado pelo regime das alterações
substanciais, (ii) pode haver limitações decisórias que resultam da reformatrio in peju mas isso
não se confunde com o objeto do processo, e (iii) essas limitações só existem nos casos previstos
pelo artigo 409º.
O que não é uma alteração substancial de factos? Vejamos agora as situações que não são
alterações de factos, no sentido dos artigos 358º e 359º. Não corresponde a uma alteração
substancial de factos:
A falta de prova de factos favoráveis pode gerar uma situação em que não se imputa um
crime menos grave, mas um mais grave. Os factos estão lá, mas não estão provados.
Imaginemos que é feita uma acusação pelo crime de homicídio privilegiado tentado com
emoção violenta e a compreensibilidade dessa emoção (133º CP + 22º CP). No julgamento
prova-se que houve tentativa de homicídio, mas não se prova a emoção violenta. Ora, no
contexto do homicídio privilegiado tentado, essa emoção era um facto favorável porque
diminuía a culpa do arguido. Se não se prova, deixamos de ter uma situação enquadrável no
A falta de prova de um facto favorável não dá origem a alteração de prova. Os factos estão
lá, foram conhecidos, simplesmente não se consideram provados. O que temos na verdade é
uma alteração da qualificação jurídica, mas não é uma alteração de factos. A falta de prova do
facto favorável tem como consequência a aplicação do crime mais grave, mas não é uma
alteração de factos, porque não se alteraram nem se suprimiram factos.
Outra situação que não é alteração de factos é o regime dos factos completamente novos,
ou seja, factos que surgem e são estranhos à unidade histórico-social dos acontecimentos
levados para o processo. Estes factos completamente novos não são alterações do objeto do
processo, são novos objetos do processo.
Recuperemos o exemplo dos dois assaltos. Imagine-se que o arguido é acusado de assaltar
uma vivenda em abril de 2018, mas depois, em julgamento, prova-se que o mesmo arguido tinha
assaltado na mesma rua outra vivenda em janeiro de 2018. Temos aqui uma facto
completamente novo. Este segundo facto, assalto em janeiro de 2018, é uma variação factual
que não é uma variação do facto inicial. Não é a variação do crime da acusação, é um outro
crime, com outro objeto, noutra casa, noutra altura, é uma unidade histórico-social
completamente autónoma e distinta da outra.
O regime aplicável a estes factos completamente novos não é o que consta do artigos 358º
nem do artigo 359º porque estas normas estão pensadas para a variação da alteração dos factos
que são levados a julgamento. Se estes factos completamente novos fossem conhecidos seria
uma violação da estrutura acusatória. O regime aplicável é, no fundo, o de não permitir que
perturbem o processo onde surgem e enviá-los como notícia do crime de um novo inquérito.
Então, os factos completamente novos não podem ser apropriados pelo processo em que
surgem. O que acontece é que se extrai certidão e o MP dá origem a um processo autónomo.
A alteração da qualificação jurídica é uma situação em que não se alteram os factos, mas
aplicam-se aos mesmos factos um diferente enquadramento jurídico.
No fundo, das duas umas, ou é uma alteração de factos ou não. Se for alteração de factos
pode ser tratada no âmbito do artigo 359º ou do artigo 358º, mas pode não ser alteração de
factos por duas razões: ou é um facto completamente novo que dá origem a novo processo ou,
não sendo um facto completamente novo, há uma alteração da qualificação jurídica e aplica-se
o artigo 358º nº3 que remete para o nº1 sobre a alteração não substancial dos factos.
substancial (359º)
alteração de factos
não substancial (358º)
?
factos completamente novos dá origem a novo processo
Contudo, se repararmos, no artigo 303º, temos várias situações, sendo que a alteração
substancial de factos é só uma delas. Segundo o princípio da legalidade, o artigo 309º só comina
com a nulidade a alteração substancial de factos que aconteça na pronúncia. Se for uma mera
alteração da qualificação jurídica é uma mera irregularidade, nos termos no artigo 118º. Isto
porque só há nulidade se a lei declarar expressamente, coisa que não acontece.
Por fim, se a alteração da qualificação jurídica ocorrer no julgamento, temos, desde 1998,
um regime específico no artigo 358º nº3 que, ao remeter para o nº1, nos diz que, no fundo, à
alteração qualificação jurídica se aplica o regime da alteração não substancial de factos, o que
significa que, havendo uma alteração da qualificação jurídica, o tribunal concede à defesa o
tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Surge aqui um problema que tem que ver com o desvalor do ato processual se, porventura,
não for dado tempo à defesa para fazer a preparação. Aqui há que introduzir alguns dados
históricos. Se repararmos, o artigo 379º nº1 alínea b) prevê a hipótese de condenação por factos
diversos. O que aconteceu historicamente que faz com que tenhamos um problema jurídico?
Até 1998, não existia o nº 3 artigo 358º, só existia o nº1 e nº2. A doutrina discutia se a
alteração da qualificação jurídica era ou não livre, ou se tinha algum condicionamento. A norma
estava prevista para factos diversos, que depois seriam uma alteração substancial ou não
substancial de factos. Quando a norma do artigo 359º nº1 alínea b) refere factos diversos é
porque foi construída para uma situação em que não existia o nº3. Concluindo, se a norma
refere factos diversos, não contempla a situação da mera alteração da qualificação jurídica. Isto
porque nesta não há factos diversos, os factos são os mesmos com outro enquadramento. O
artigo 379º foi feito antes, quando não existia o nº3 artigo 358º, pelo que, literalmente, não
comporta a alteração da qualificação jurídica.
Porque é que o legislador incluiu a qualificação jurídica aqui? O código foi feito em 1987. A
doutrina, nessa altura, entendia que existiam limitações à decisão do tribunal em matéria de
factos, mas não em matéria jurídica. Isto porque esta é uma matéria técnica e entedia-se que o
arguido se defendia dos factos e não do seu enquadramento técnico. A doutrina moderna não
aceitou isto e veio dizer que o arguido tanto se defende dos factos como do enquadramento
jurídico e que o contraditório pode abranger também questões de direito. Não é correto fazer
um leitura diferente porque condiciona a decisão sobre a atribuição de responsabilidade e não
é compatível com o contraditório.
Destas três correntes, o acórdão de 1997 do TC deu razão a Tereza Pizarro Beleza: não está
previsto, mas tem de ser tratado como matéria sujeita a contraditório. E depois acrescentou-se:
a matéria não é alteração de factos, mas está sujeita ao mesmo regime. Pode alterar-se a
qualificação jurídica, mas tem de se dar oportunidade à defesa para se pronunciar. Se o fizer,
altera livre e legalmente a qualificação jurídica. Se não, viola o contraditório e incorre numa
nulidade.
Assim, para o professor Costa Pinto temos de fazer uma interpretação atualista do artigo
379º nº1 alínea b). A Constituição estabelece que o processo penal respeita todas as garantias
de defesa, não distinguindo entre a matéria de facto e a de direito. Por outro lado, o
contraditório faz-se em relação a questão de factos e questões de direito. Por isso a solução do
artigo 359º nº3 é correta. Ou seja, a alteração da qualificação jurídica não é completamente
livre, tem de ser sujeita a contraditório. Caso contrário, há nulidade por violação do artigo 358º
e por violação do artigo 379º nº1 alínea b), seguindo a sua interpretação extensiva atualista.
• Competência do tribunal
• Admissibilidade das medidas de coação
• Admissibilidade de certos meios de prova
• Exigência de pressupostos processuais (queixa, prazos de prescrição)
Se muda a qualificação jurídica, pode passar-se para um crime com pena mais grave, o que
pode mudar a competência do tribunal.
Também pode mudar o regime das medidas de coação porque estas medidas dependem
do crime que for imputado e, portanto, se se muda a qualificação jurídica dos factos pode
deixar de existir o crime que era imputado e que justificava a medida de coação. Isso acontece
Vejamos ainda a posição do professor Germano Marques da Silva que defende que a
alteração da qualificação jurídica é particularmente significativa e que gera limitações à
competência decisória do tribunal do julgamento. Porquê? Dantes referia o professor Germano
Marques da Silva que a alteração de qualificação jurídica implicaria sempre uma alteração dos
factos. Agora refere, de forma distinta, que a alteração da qualificação jurídica implica
alterações da competência do tribunal, possível recurso ao júri e possibilidade de confissão e,
por isso, sempre que o tribunal altera a qualificação jurídica, fica limitado pela pena do crime
anteriormente imputado. Esta leitura é semelhante ao que vimo para o artigo 16º nº3 sobre o
mecanismo de reenvio dos processos do tribunal coletivo para o tribunal singular.
Imaginemos que existe uma tentativa de homicídio privilegiado (133º CP + 22º CP), e depois
o tribunal na fase de julgamento considerar que é uma tentativa de homicídio simples (131º CP
+ 22º CP). Então, para o professor Germano Marques da Silva, o facto de uma série de
pressupostos processuais se terem desencadeado com base nesse crime limita a competência
decisória do tribunal de julgamento, no sentido em que este não poderia decidir para além da
pena do homicídio privilegiado. Poderia imputar na forma simples, mas estaria limitado pelo
enquadramento anterior que levou o arguido a julgamento.
Este é um argumento interessante que reforça as garantias de defesa, mas que não tem
qualquer base legal. Claramente, na nossa lei, esta limitação aos poderes decisórios do tribunal
teria de estar explicita, como está, por exemplo, na proibição de reformatio in pejus ou no artigo
16º nº3. Quando o legislador pretende uma limitação destas à competência decisório, tem de
o fazer expressamente, por ser uma alteração muito significativa no âmbito da competência
decisória do tribunal que é um órgão de soberania. Não se pode, pois, reconhecer este efeito
atribuído pelo professor Germano Marques da Silva ao crime imputado. Uma alteração da
qualificação jurídica pode sim levar à aplicação de uma pena mais grave do que o crime
inicialmente imputado. A única exigência é que se respeite o contraditório.
Ocorrendo uma alteração, há dois tipos de problemas. Por um lado, há o problema de saber
o que acontece aos novos factos. Por outro lado, há o problema de saber o que acontece ao
processo em que os factos surgem. Em certo sentido, repare-se que os pontos 14 e 15 do
sumério que vamos tratar agora (regime das variações do objeto do processo e quando é que
novos factos são autonomizáveis, respetivamente) dizem respeito ao que acontece às alterações
e o ponto 16 do mesmo (efeitos das alterações substanciais de facto) é sobre o que acontece ao
processo. Nunca se começa por analisar uma variação do objeto do processo pelo efeito, temos
primeiro de apurar se há uma alteração de factos. Primeiro, porque há vicissitudes associadas
e, depois, porque temos de saber qual o regime a aplicar. No fundo é preciso saber o que
acontece ao novo facto, e que vai ser questionado agora e, se não existir uma alteração de
factos, então o regime será outro.
A primeira ponderação é saber qual o regime aplicável, isto é, é saber se se trata de uma
alteração do artigo 358º ou do artigo 359º, identificando se é uma alteração substancial ou
não, o que se verifica pelo efeito da alteração: se der origem a uma pena mais grave ou a um
crime diverso, é substancial; se não, é não substancial, por exclusão de partes. Então o primeiro
aspeto é saber se há alteração de factos e a haver, se é substancial ou não. Este aspeto é
fundamental porque os regimes dos artigos 358º e 359º são distintos.
Quando há uma alteração não substancial de factos, ou seja, quando não se gera uma pena
mais grave nem é um crime mais grave, entramos no regime do artigo 358º.
Nos termos do nº1 artigo 358º, havendo uma alteração não substancial dos factos, o
tribunal tem de respeitar o contraditório, isto é, dar um prazo à defesa para se pronunciar sobre
a alteração. Se for cumprida essa exigência, legitima-se a alteração, independentemente do que
a defesa diga. Mesmo que a defesa discorde, se oponha ou não diga nada deixando passar o
prazo sem se pronunciar, a alteração é lícita. De forma sintética, cumprida a exigência de dar
um prazo para preparação da defesa, o processo incorpora legalmente os novos factos que
consubstanciam uma alteração não substancial dos factos.
➔ Se não for respeitado o contraditório a alteração é ilícita e não pode ser conhecida
Uma terceira situação diferente é se os factos forem apresentados pelo arguido, e podem-
no ser durante a contestação ou durante a própria audiência do julgamento. Os factos
apresentados pelo arguido entram automática e licitamente no objeto do processo, não sendo
necessário contraditório.
Ou seja, a lei exige que seja dado contraditório quando o arguido não conhece o facto. Há
aqui um aspeto do regime que o torna algo incompleto, mas é o que está na lei. A norma só
refere o contraditório do arguido, não fala do contraditório do MP ou do assistente, caso este
exista, o que quer dizer que não se pode exigir que seja dado prazo ao MP ou ao assistente
enquanto condição legal do conhecimento. Só se respeita contraditório quanto ao arguido e
não se respeita um contraditório subjetivamente amplo. Não há qualquer nulidade, nem sequer
há irregularidade, se não for dado ao MP ou a assistente para se pronunciar.
Se a alteração for substancial, isto é, gera uma pena mais grave ou um crime mais grave, o
regime aplicável é o do artigo 359º.
Nos nº3 e nº4 artigo 359º está previsto o chamado caso julgado de consenso. Se existir uma
alteração de facto substancial no processo, é possível reformular substancialmente o objeto do
processo se houver um acordo entre todos os sujeitos processuais, tribunal, MP, assistente,
arguido e defensor do arguido.
Porém, essa faculdade tem o limite de isso não determinar a incompetência do tribunal.
Se o caso estiver num tribunal singular, e a consideração da alteração substancial de factos
alterar para passar a ser da competência do tribunal coletivo, deixa de ser possível o acordo.
Em todo o caso, um acordo entre todos os sujeitos processuais é algo muito difícil de
conseguir. É muito pouco provável que o arguido e o seu defensor aceitem alargar o objeto do
processo substancialmente.
Situação diferente é se os novos factos que geram uma alteração substancial tiverem
autonomia. Os nº1 e nº2 artigo 359º estabelecem o regime geral que se deve seguir nestes
casos: perante novos factos autonomizáveis que alterem substancialmente o objeto do
processo, o tribunal não os pode conhecer, extrai certidão e será instaurado novo inquérito.
A comunicação da alteração substancial de factos ao MP vale como denúncia para ele proceda
pelos novos factos se eles forem autonomizáveis, nos termos do artigo 303º nº4. A questão que
se coloca aqui é a de saber quando é que os factos são ou não autónomos. Trataremos depois.
Se os novos factos não tiverem autonomia, isto é, não puderem ser enviados para outro
processo, então há uma dúvida na doutrina e na lei sobre o que é que lhes acontece.
O artigo 359º nº1 estabelece que não podem ser tomados em conta para efeito de
condenação no processo em curso. Na interpretação do professor Paulo Pinto de Albuquerque,
os factos ficam esquecidos, não são considerados, ficam preteridos. Porém, o professor Costa
Pinto discorda desta interpretação.
Por seu lado, o professor Costa Pinto defende que podem ser conhecidos para efeito de
determinação da sanção, e esclarece que a interpretação do professor Paulo Pinto de
Albuquerque está associada à reforma de 2007 do nº1 artigo 359º que acrescentou a expressão
“nem implica extinção da instância”. Isto foi importante, porque havia quem entendesse que no
caso de alteração substancial de factos, o melhor era terminar o processo e iniciar um novo com
que contemplasse todo o complexo factual: os já existentes e os novos. Tal não seria admissível
porque quando começa o julgamento só podemos ter duas decisões, sendo elas uma
condenação ou uma absolvição, pelo que a suspensão da instância ou outras decisões formais
do mesmo género não existem no processo penal. Quer isto dizer que os factos ou ficam ou
saem, mas em qualquer das situações o processo prossegue.
Pelo exposto, não deve ser aceite esta interpretação que vai no sentido de preterir os factos
novos sem autonomia, pelo facto de a sua contemplação ter de provocar uma suspensão da
instância, hipótese que foi excluída pela reforma de 2007. Assim, a interpretação do professor
Paulo Pinto de Albuquerque não tem apoio em termos históricos, mas há mais argumentos.
Em segundo lugar, essa leitura não tem apoio na letra da lei. Não significa uma proibição
de conhecimento como critério de determinação da pena. Um terceiro argumento é que o artigo
71º nº2 CP tem um sistema aberto de atenuantes e agravantes, pelo que qualquer
circunstância de facto pode ser tida em conta para determinação da pena. Não faz qualquer
sentido o direito substancial penal ser mais rígido que o direito substantivo.
Assim, a solução correta, quando há alteração substancial de factos sem autonomia é que
não são alterações substanciais do objeto, mas meras alterações de factos para ponderação
da medida da pena. Isto é, vai-se usar esse facto para determinar a pena concreta. As variações
de factos de determinação da pena concreta nunca foram tratadas como alteração do objeto do
processo porque o sistema de agravantes e atenuantes é um sistema aberto. Esta solução é a
correta porque gera uma maior congruência entre o direito penal e o direito processual penal e
respeita a evolução histórica do preceito.
Vejamos exemplos das duas situações. Imaginemos que, num crime de homicídio, surge
uma premeditação ou um motivo fútil. Estes factos não são autónomos porque não têm
tipicidade. Diferente será o caso em que é imputado ao arguido um crime de furto simples, mas
comprova-se em julgamento que é um furto agravado pela introdução em casa alheia. Este facto
Por outro lado, o professor Costa Pinto também considera que os factos não têm autonomia
se implicarem uma alteração do objeto que está em curso. Ou seja, o segundo requisito para
que o facto tenha de autonomia é ser capaz de sair do processo sem perturbar ou alterar o
objeto do processo. Se o alterar, é porque está intrinsecamente ligado e não é autónomo.
No fundo, tem que ter autonomia própria perante a lei e autonomia perante o objeto que
já existe. Verificados estes dois requisitos, o objeto do processo é cindível.
Uma consideração extra é que um regime tendencialmente rígido obriga a que seja
cumprido o princípio da acusação: não há julgamento sem acusação prévia. Uma vez feita a
acusação, o MP não pode nem a retirar nem a modificar substancialmente. Não há uma
desistência do MP como há para os crimes particulares e semipúblicos. Isto é uma forma de
maximizar o princípio da acusação. Qual é o lado mais perverso do sistema? Por vezes o MP
acusa por excesso, para permitir variações para baixo. Isto é, o MP raramente acusa pelo
homicídio privilegiado, acusa antes pelo homicídio simples e, se for caso disso, depois altera-se
para baixo, o contrário é que não acontece.
Quais os efeitos das alterações substanciais de factos sobre o processo em curso é uma
questão que está simplificada desde 2007. Houve várias interpretações que ficaram
ultrapassadas pela evolução da lei. A questão tem que ver com o problema de saber que efeito
é que uma alteração substancial de factos tem sobre o processo. Já sabemos que saem os factos,
mas importa saber o que acontece ao processo.
Havia quem entendesse que o processo se suspendia, ficava a aguardar nova acusação com
tudo, havia quem entendesse que essa mesma solução se aplicava à audiência de julgamento
que ficava suspensa a aguardar a reformulação do objeto que vinha doutro processo, e havia
ainda quem entendesse que isso só se podia aplicar na instrução e não no julgamento.
Em 2007, o legislador veio acabar com essa incerteza que não fundamentava a confiança na
evolução do processo. Notar duas coisas. Em primeiro lugar, a questão sobre os efeitos no
processo só se coloca para as alteração substanciais não autonomizáveis porque as
autonomizáveis saem do processo e o legislador estabelece que não há extinção da instância.
Em segundo lugar, os efeitos variam consoante a fase processual.
No inquérito não há problema de existir uma variação factual que corresponda a alteração
factual substancial que teriam essa designação noutra fase e nessa fase não o têm.
Na instrução, o problema já tem uma certa complexidade. Vamos ver antes como se
colocava antes da reforma de 2007.
Imagine-se que há uma acusação pelo crime de homicídio simples (131º CP) e durante a
instrução começam a revelar-se factos que apontam para o homicídio qualificado (132º nº2 CP),
que causariam agravante. Não houve constituição de assistente e os factos começaram a surgir
na instrução. Como esta é um fase preliminar, havia quem entendesse que o processo pelo
homicídio simples se suspendia, havia um novo processo pelo homicídio qualificado com novo
inquérito e nova acusação mais complexa, juntavam-se os dois processos e seguiam para o
A doutrina admite, contudo, outra situação, que é aplicar o artigo 359º nº3 por analogia. O
pensamento é o seguinte: se os sujeitos processuais podem acordar a reformulação do objeto
do processo na fase do julgamento, então, por maioria de razão, também o podem fazer na
fase da instrução. Na verdade, ainda há um outro argumento para justificar esta interpretação
analógica. Se o juiz de instrução conhecer uma alteração substancial de factos que não podia
conhecer, isso gera uma nulidade da pronúncia que tem de ser arguida em oito dias, nos termos
do artigo 309º. Depois desse prazo, a nulidade já não pode ser arguida e portanto, sana-se por
decurso do prazo.
Então, a inércia dos sujeitos processuais pode levar à reformulação do processo. Isto quer
dizer que há uma convalidação da pronúncia que conheceu de forma ilícita uma alteração
substancial de factos não autonomizáveis e que, por inércia dos sujeitos processuais, passa a
ser inatacável. Esse é um argumento para dizer que é possível o acordo porque se os sujeitos
processuais nada fizerem, reformula-se o processo. A ideia é: se é possível por inércia, então
também é possível por acordo que, no fundo, será uma renúncia ao direito.
No julgamento ainda é mais simples: Ou há acordo, caso julgado consenso, nos termos do
nº3 artigo 359º; ou então são conhecidos para determinação da medida da pena, na opinião
do professor Costa Pinto, ou são preteridos, na leitura do Paulo Pinto de Albuquerque.
Então:
• Na instrução: o artigo 303º nº3 (após 2007) afasta todas as teses de suspensão da
instância; o processo pode absorver as alterações substanciais de factos não
autonomizáveis por acordo dos sujeitos processuais (artigo 359º nº3 por analogia) ou
por inércia destes (não arguirem nulidade no prazo de 8 dias, 309º nº2 a contrario sensu)
➔ Resolver os problemas concretos e o que se pergunta, não basta uma exposição abstrata
de matéria. Tem de haver uma resolução fundamentada ao problema concreto e não
um despejar de tudo o que sabemos sobre o tema.