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DIREITO PROCESSUAL PENAL I

Prof. Nuno Brandão

I. Introdução

Sujeitos processuais vs participantes processuais. Os primeiros são aqueles aos


quais são atribuídos poderes processuais que lhes permitem contribuir de forma constitutiva
para o desenvolvimento do processo como um todo. Os segundos são aqueles cuja
atividade se esgota na prática de singulares atos processuais.
Nesta unidade curricular vamos abordar os sujeitos processuais, a saber: o juiz; o
MP; o assistente; o arguido e o defensor.
A CRP determina, no art. 32º/5, que o processo penal tem estrutura acusatória. Esta
disposição é fundamental para a compreensão do papel e função dos vários sujeitos
processuais que vamos estudar. Em contraposição à estrutura acusatória, existe a estrutura
inquisitória, em que, nomeadamente, o juiz desempenhava o papel de investigar, acusar e
julgar e o arguido é visto como um mero objeto do processo. A estrutura acusatória (modelo
adversarial, na designação anglo-saxónica), caracteriza-se, desde logo, por uma repartição
das funções de investigar e acusar, por um lado, e julgar, por outro. Entre nós, esta
repartição é feita entre o MP e o juiz e traduz-se no princípio de acusação. Esta
característica visa assegurar a imparcialidade e irresponsabilidade do juiz/decisor.
Aliado ao princípio da acusação, liga-se a passividade processual do juiz: ao juiz não
cabe qualquer impulso ou promoção processual.
A construção do processo penal português vai ser determinante para a compreensão
do estatuto processual de cada um dos sujeitos processuais. Para além do juiz e a garantia
(essencial) de independência, assume particular relevância o estatuto do MP que, não
agindo como parte, goza da característica da autonomia e pauta a sua atuação por critérios
de legalidade e objetividade. A característica da autonomia desta magistratura é essencial
no âmbito da estrutura do nosso processo penal, pois, cabendo ao MP o exercício da ação
penal, se a magistratura do MP fosse dependente, o poder político determinaria o que seria
ou não julgado, acabando por ser violada o princípio da separação de poderes.
Tanto a independência do juiz, como a autonomia do MP são fulcrais para o respeito
pelo princípio da acusação e para o modo como está conformado o processo penal. Note-se
que, embora o princípio do acusatório não seja suficiente para caracterizar a estrutura
acusatória, é essencial para que ela exista. Veja-se, a título de exemplo, o processo
contraordenacional que, por concentrar as tarefas de investigação, acusação e decisão
numa única entidade – Administração Pública – é um processo inquisitório.

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Outra característica de um processo penal de estrutura acusatória é a perspetiva do
arguido como um verdadeiro sujeito processual (e não como objeto do processo). Isto
significa que o arguido tem um poder de participar constitutivamente na declaração do
direito do caso, vg. direito de ouvir e ser ouvido ao longo de todo o processo.
Porém, a maior parte dos cidadãos não são juristas, não têm conhecimentos
jurídicos suficientes para se conseguirem defender. Aqui é que entra o defensor. A figura do
defensor também é uma manifestação do que caracteriza a nossa estrutura processual
penal, por força da obrigatoriedade da assistência do defensor em alguns atos processuais,
este sujeito processual assume uma grande relevância.
Por último, temos o assistente, que é o titular dos interesses que a lei quis
especialmente proteger com a incriminação.
Ver Ac. TRP de 25 de fevereiro de 2005.
Um processo consiste numa realização de atos que se vão sucedendo no tempo. No
processo penal temos a fase do inquérito, a fase de instrução (fase facultativa) e a fase do
julgamento. Cada fase processual deve culminar numa decisão, a pratica de cada ato
processual não é feita desinteressadamente, antes visa uma decisão final. A fase de
inquérito culmina numa decisão de acusação ou arquivamento. Nesta fase participa o MP;
os funcionários judiciais (que, quando são do MP, chama-se de técnicos de justiça); os
órgãos de polícia criminal, que coadjuvam o MP; as testemunhas; os peritos; os interpretes.
Todos estes intervenientes, salvo o MP, são participantes processuais. A fase de instrução
culmina numa decisão de pronuncia ou não pronuncia e o julgamento numa decisão de
condenação ou absolvição.

II. Tribunal

1. Princípio da jurisdicionalidade, em especial na fase do inquérito.


O tribunal é um órgão de soberania que, em regra, é composto por juízes de direito.
Dizemos em regra porque, no processo penal, o tribunal pode ser composto também por
leigos, quando seja tribunal de júri.
Os tribunais judiciais têm vários graus: tribunais de comarca; tribunal da relação e o
STJ. Os tribunais de primeira instância decompõem-se em juízos: juízo central criminal e o
juízo local criminal. Dentro de cada um destes juízos, existem vários juízes (no sentido de
juízo e que não se confunde com a pessoa do juiz).
Que funções são atribuídas ao tribunal no âmbito do processo penal?
Em função daquilo que a CRP determina, nomeadamente no art. 202º, os tribunais
judiciais são o órgão do Estado com competência exclusiva para decidir as causas penais.
Vale, entre nós, o princípio da jurisdicionalidade ou da reserva de juiz, nos termos do qual só

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os tribunais judiciais dispõem de competência para decidir causas penais e para impôr
sanções criminais, penas e medidas de segurança. Este princípio está previsto no art. 202º
CRP e 8º e outros do CPP.
Como dissemos, só os tribunais têm legitimidade para decidir e afirmar a
responsabilidade criminal de uma pessoa e, concomitantemente, decidir sobre a aplicação
de sanções criminais. No âmbito deste princípio, na sua primeira dimensão, podemos logo
retirar uma consequência: a inconstitucionalidade de qualquer norma que atribua a um outro
órgão não jurisdicional, p. ex. à Administração Pública, a competência para decidir sobre
questões penais. Já no âmbito da segunda dimensão ou plano do princípio da reserva de
juiz, podemos afirmar que, detendo os tribunais competência reservada para aplicar
sanções penais, estas não podem ser impostas por outros órgãos ou entidades quer se
tratem de sanções formalmente criminais quer materialmente criminais. A este propósito
discutiu-se p. ex. a conformidade constitucional das injunções ou regras de conduta
impostas no âmbito da suspensão provisória do processo. Na medida em que, se estas
injunções fossem vistas materialmente como penas não podiam ser aplicadas pelo MP,
como sucede, nos termos do art. 281º CPP. Há, porém, casos em que a violação da reserva
de juiz é absolutamente gritante, nomeadamente no caso Lava Jato, com a celebração de
acordos no âmbito da delação premiada.
Esta competência primária do tribunal – de decisão de causas penais – é exercida,
num primeiro plano, pelos tribunais de primeira instância e na fase de julgamento.
Porém, a intervenção do tribunal no processo penal pode acontecer antes da fase de
julgamento. E, a este propósito, importa ter em conta duas normas: art. 17º in fine CPP e
32º/4 CRP. Nesta intervenção, o juiz assume um papel de juiz das liberdades.
Nos termos do art. 32º/4 CRP, qualquer ato de natureza jurisdicional é da
competência do juiz de instrução. O que é um ato jurisidicional? É, por norma, um ato que
atinge direitos, liberdades e garantias. Aquilo que decorre da CRP é, precisamente, a
exigência de que os atos que afetem direitos fundamentais deverão contar com a
intervenção de um juiz de instrução, nomeadamente na fase de inquérito.
Porém, esta reserva de juiz constitucionalmente consagrada não é isenta de
controvérsias, como veremos daqui a pouco.
É a própria CRP que determina que os atos que contendam diretamente com
direitos fundamentais não podem ser subtraídos da competência do juiz de instrução. E
deste princípio podemos logo retirar o legislador ordinário não é livre de decidir da
competência (do juiz ou MP) relativamente a estes atos. É, ainda, de enorme importância a
definição legal de autoridade judiciária no art. 1º-b) CPP. A qual radica no facto de, por
vezes e porque o legislador pretende atribuir competência para um certo ato a uma destas
entidades em função de quem dirige a respetiva fase processual, é por referência a esta

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definição que a competência em concreto é definida. Ver, a título de exemplo, os arts. 154º e
174º CPP. A expressão autoridade judiciária é, portanto, polissémica. Porém, há casos em
que o legislador, tendo em conta aquilo que a CRP prescreve e antecipando estarmos
perante uma situação suscetível de ferir ou lesar direitos fundamentais, já não determina a
competência por referência à autoridade judiciária, mas sim individualizando o juiz, p. ex.
177º CPP. Isto porque, estando em causa direitos fundamentais, pretende-se que a decisão
sobre esse ato conte com uma participação de um órgão independente e que dá garantias
de distanciamento e objetividade superiores àquelas que o MP oferece. Note-se, no entanto,
que esta ideia deve compaginar-se com a ideia do acusatório e da passividade do juiz: a
intervenção do juiz, enquanto juiz das liberdades, e porque é ao MP que cabe a direção do
inquérito, está subordinada ao princípio do pedido. Reversamente, o juiz não deverá ser
chamado ao processo quando esteja em causa um ato indiferente a direitos fundamentais.
O CPP prevê catálogos de atos que ora devem ser praticados pelo juiz de instrução
(art. 268º) ora prevê atos a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução (art. 269º). Estes dois
catálogos vão ao encontro da ideia originária do código de que sempre que estivessem em
causa atos que contendessem com direitos fundamentais o juiz deveria, pelo menos,
autorizar intervir a priori1. Esta ideia tem na sua base um entendimento de F IGUEIREDO
DIAS segundo o qual o juiz de instrução seria a entidade exclusivamente competente para
praticar, ordenar ou autorizar atos que contendessem diretamente com direitos
fundamentais dos cidadãos.
Na altura em que o CPP foi elaborado, foi suscitada a fiscalização preventiva da
constitucionalidade sobre a norma que atribuía a competência ao MP para dirigir o inquérito
e a sua conformação com princípio constitucionalmente consagrado da reserva de juiz. Ver
Ac. TC nº 7/ 87. Porém, ainda hoje, a atribuição ao MP da competência para dirigir o
inquérito e o princípio da reserva de juiz entram em conflito. P. ex. a possibilidade do MP
ordenar a detenção fora de flagrante delito, nos termos do art. 257º CPP; o levantamento do
sigilo bancário ordenado pelo MP e a competência do MP para ordenar ou autorizar
apreensões, nos termos do art. 178º CPP. Relativamente a este tipo de atribuições do MP –
de, sem uma prévia intervenção judicial, decidir sobre a prática de certos atos que
contendem diretamente com direitos fundamentais das pessoas – têm-se levantado
questões de (in)constitucionalidade. A este propósito ver os Acs. TC nº 155/2007 (recolha de
saliva para efeitos de determinação de perfis de ADN 2); nº 687/2021 (apreensão de e-mails,
art. 17º Lei do Cibercrime) e nº 121/2021. (pôr as duas correntes e a corrente assumida pelo
TC). No âmbito deste último acórdão, o TC assumiu a posição já anteriormente defendida
por FIGUEIREDO DIAS E NUNO BRANDÃO, nos termos da qual é preciso atentar, por um
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Claro que há casos (excecionais) em que, havendo perigo de demora, a urgência na prática do ato não é
compatível com a espera pela prévia intervenção do juiz.
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Hoje já temos uma lei a regular a matéria, Lei nº 5/2008.

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lado, à questão de saber se o ato, em abstrato e com alguma intensidade, é suscetível de
ferir direitos fundamentais, se sim, o ato deve passar previamente pelas mãos do juiz, o que
leva à inconstitucionalidade, por violação do art. 32º/4 CRP, de normas que atribuam a
respetiva competência ao MP – esta ideia acerca da intensidade ou gravidade da potencial
lesão voltou a ser discutida no ac. TC nº 687/2021. Por outro lado, ainda que o ato
abstratamente considerado não seja lesivo (ou não seja tão lesivo) dos direitos
fundamentais, pode suceder que, no caso concreto, a prática de certo ato acabe por se
intrometer (de forma menos intensa, claro) na esfera daqueles mesmos direitos e, aqui,
defendeu o TC que deve ser admitida a intervenção judicial a posterior e imediatamente –
contrariamente ao que defende MARIA JOÃO ANTUNES, de acordo com a qual essa
intervenção do juiz só poderá ocorrer na fase instrutória ou na fase de julgamento, com
respeito à estrutura acusatória do processo penal e ao estatuto constitucional do MP.
Ainda no âmbito dos arts. 268º e 269º CPP, cumpre sublinhar os problemas
subjacentes à solução normativa vertida naqueles: por um lado, a questão de saber se o ato
deve ou não ser praticado pelo juiz de instrução e, por outro, se aqueles atos, não devendo
ser praticados pelo juiz, deve este intervir a priori. Podemos destacar três grupos de casos:
o primeiro grupo de casos, previsto no art. 268º CPP, engloba aqueles atos que têm de ser
praticados pelo juiz; depois, temos outro tipo de atos em que o juiz não tem de pratica-los,
mas deve autorizá-los previamente, e estes têm manifestação legal no art. 269º CPP; o
terceiro grupo engloba aqueles casos em que o juiz nem pratica o ato nem autoriza ou
ordena o ato; antes, ele tem uma intervenção a posteriori, p. ex. validação da aplicação do
segredo de justiça, da detenção fora de flagrante delito.
Onde tem havido uma grande discussão é em relação aqueles casos em que a lei
não prevê expressamente que o juiz deverá poder intervir a posteriori para controlar a
legalidade de atos processuais da competência do MP. Aqui, há duas correntes: a primeira,
defendida por PAULO PINTO ALBUQUERQUE E MARIA JOÃO ANTUNES, que diz que, se o
legislador não prever de forma expressa a intervenção do juiz a posteriori, então esta não
será admissível, porque contrário ao sistema acusatório, sendo o controlo apenas possível
em fases processuais posteriores. A segunda corrente, defendida por F IGUEIREDO DIAS E
NUNO BRANDÃO, defende que, estando em causa direitos fundamentais, deve ser a CRP o
elemento normativo decisivo, dando-se cumprimento ao princípio da reserva de juiz (bem
como ao direito da tutela judicial efetiva nos termos do art. 20º CRP). e, portanto, deve ser
admitida uma intervenção posterior, mas imediata do juiz de instrução. Esta ideia é
especialmente relevante quando estão em causa provas cuja valoração implica
necessariamente uma compressão de direitos fundamentais. P. ex. gravações entre
particulares, análise da documentação bancária. Foi esta a posição seguida pelo TC no Ac.
TC nº121/2021.

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Em regra, a intervenção do juiz, enquanto juiz das liberdades, será uma intervenção
provocada, a pedido – o que bem se percebe à luz da estrutura acusatória e da passividade
do juiz. Claro que haverá casos em que, face ao tipo de diligência que está em causa, o juiz
poderá ter um acompanhamento prolongado, p. ex. no caso das escutas telefónicas. Mas,
em regra, o juiz só intervém quando o MP ou outro sujeito processual assim o requerer. E,
nesta intervenção, o juiz deve ser isento, imparcial e equidistante. A independência e
imparcialidade manifestam-se em vários sentidos: (1) ideia do terceiro/tercialidade, que é
uma ideia muito afirmada na doutrina italiana, e que se traduz no seguinte: o juiz, sendo um
terceiro, está em condições mais propícias a decidir a questão de forma mais objetiva,
desinteressada; (2) ideia de subjectivização da decisão judicial – combatendo aquilo a que
se chama o “como se promove”. O juiz não deve ser um aliado do MP, o juiz não deve
simplesmente aderir àquilo que é promovido pelo MP. O próprio juiz deve exprimir aquelas
que são as razões que poderão justificar o (in)deferimento daquilo que é pedido. Esta
exigência de fundamentação será tanto mais intensa quanto menor for o contraditório prévio
proporcionado ao visado tem ao seu dispor. Isto faz-se sentir sobretudo naquilo a que se
chama de métodos ocultos de investigação, p. ex. escutas telefónicas, buscas.

2. Princípio da independência judicial


Está previsto no art. 203º CRP e volta a ser afirmado no art. 4º LOSJ. Este princípio
determina uma autonomia, uma ausência de subordinação, dos tribunais perante outros
órgãos do Estado, perante grupos da vida pública, bem como relativamente aos demais
tribunais e juízes. Neste sentido, falamos em independência externa, no primeiro e segundo
casos; e de uma independência interna, no terceiro.
Quer a CRP quer a lei integram um conceito de independência que estabelece uma
vinculação estreita com a obediência à lei e ao direito, a qual assume o seguinte sentido: os
tribunais devem ser independentes, não por razões que se prendem com as pessoas que os
compõem, mas para que estas pessoas possam decidir de acordo com o direito. A
vinculação ao direito é, assim, um elemento constitutivo do próprio princípio da
independência judicial. E o que está aqui essencialmente em causa é a vertente externa:
assegurar a materialização do princípio da separação de poderes (para que a sua atuação e
decisões sejam determinadas por eles próprios de acordo com o direito aplicável e não
materialmente por outras entidades). Deste princípio da independência externa, decorre
para os demais poderes do Estado uma proibição de interferência na condução dos
processos penais. Se, por ventura, tais interferências forem tentadas, o juiz deve manter-se
imune a essas pressões. Esta independência externa tem equivalência na chamada
autonomia do MP – o MP também não está subordinado ao poder político.

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Esta é a manifestação mais clara do princípio da independência em sentido externo.
Mas os próprios tribunais, o corpo judiciário, é administrado pelo CSM 3, que exerce as
funções previstas no art. 217º CRP, dispondo de amplos poderes de administração do
sistema judiciário. E, naturalmente, nesta relação estabelecida este órgão e os vários juízes
de direito, por vezes, existem tentações de interferência do CSM sobre os próprios termos
em que os juízes atuam, sob pena de atuação disciplinar por parte deste conselho. E,
portanto, este relacionamento deve também pautar-se pelo princípio da independência
judicial.
Uma das formas de intromissão passa pela possibilidade de ser o poder político a
pôr e dispôr sobre a nomeação e remoção dos juízes. A partir do momento em que essa
competência passa a ser detida, jurídica ou faticamente, pelo poder politico, gera-se um
problema neste princípio. Isto tem-se passado muito em países como a Hungria e Polónia, o
que tem suscitado a intervenção do TJUE em vários casos, ao abrigo da matéria da
cooperação em matéria penal.
Um segundo plano, relativo à independência, é o plano interno, de acordo com o qual
os tribunais também nas relações entre si são independentes. Isto, porém, não vai ao ponto
de um tribunal não dever obediência a um outro tribunal hierarquicamente superior dentro de
um certo processo. Dentro do processo, o princípio da independência judicial não vale
(neste preciso sentido): os tribunais podem determinar certas ações ao tribunal inferior e
este tem o dever de obedecer. Tirando isto, não há entre os tribunais e entre juízes dever de
obediência. No plano extraprocessual ou entre processos distintos, os tribunais não estão
vinculados aos precedentes fixados por outros tribunais (sejam eles de igual hierarquia ou
superior) e essa ausência de dependência vale até no âmbito dos recursos para fixação de
jurisprudência (art. 437º CPP) – há, aqui, uma ausência de subordinação relativamente às
decisões de outros tribunais.
Esta característica da independência interna (da magistratura judicial) diferencia-se
da magistratura do MP. Na magistratura do MP, falamos em autonomia, no sentido de o MP
ser autónomo externamente, mas, internamente, estamos perante uma magistratura
hierarquizada.

3. Princípio da imparcialidade

3.1. A garantia da imparcialidade

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O mesmo se diga relativamente ao presidente de cada comarca, que também tem funções meramente
administrativas.

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O que está aqui em causa é garantir imparcialidade do juiz: o decisor deve ser
absolutamente imparcial, equidistante, desinteressado. A imparcialidade é uma marca de
água de qualquer sistema judicial.
Quando falamos da imparcialidade do juiz, ao contrário do que sucede, p. ex., com o
princípio do juiz natural ou legal – um princípio que, além de recair sobre o juiz, recai
também sobre o tribunal – centramo-nos na pessoa do juiz (do juiz enquanto pessoa) e as
questões ligadas à imparcialidade relevam essencialmente no sentido de ditar o
afastamento do juiz da causa. Deste modo, todas estas questões só se colocam quando a
causa chega às mãos de um certo juiz.
A forma de assegurar a imparcialidade do juiz passa, em larga medida, pela previsão
de mecanismos que ditam o afastamento do juiz. Porém, não se esgota neles: p. ex., a
própria estrutura acusatória e a exclusividade do juiz são também mecanismos que visam
assegurar a imparcialidade do juiz. É, no entanto, através dos institutos dos impedimentos e
das suspeições que se assegura a imparcialidade em concreto do juiz. E porque está em
causa afastar um concreto juiz, esta questão também contenderá com o principio do juiz
natural.
A matéria da imparcialidade diz respeito à pessoa do juiz.
A imparcialidade manifesta-se no processo penal em vários sentidos: 1) o juiz não
pode ser parte. Um juiz que é parte no conflito, pela própria natureza das coisas, não pode
ser imparcial – não se pode ser juiz em causa própria. Assim, nesta dimensão, a
imparcialidade dita que o juiz não pode ser nem prejudicado nem beneficiado, direta ou
indiretamente, pelo desfecho que a causa tem – exige-se uma ausência de interesses
pessoais ligados ao desfecho da causa. 2) ideia de equidistância, que corresponde à
necessidade de garantir uma plena equidistância/neutralidade em relação a todos os
sujeitos processuais ao longo de todo o processo. Não só deve manter-se equidistante,
como também não deve dar azo a que se possa duvidar dessa mesma equidistância – a
imparcialidade deve manifestar-se não só de um ponto de vista subjetivo, mas também
objetivo. Não deve haver razões para se duvidar da imparcialidade do juiz – justice mustn´t
only be done it must also be seen to be done. 3) necessidade de garantir que o juiz, quando
intervém numa certa causa penal, o faça sem qualquer convicção prévia sobre a
responsabilidade penal do arguido. Não pode haver dúvidas da ausência de
condicionalismos prévios.
Estas diferentes aceções do princípio manifestam-se nas diversas circunstâncias que
determinam o afastamento do juiz, seja em sede de impedimentos seja em sede de
suspeições.
Este princípio é de tal ordem importante para a administração da justiça penal que é
visto indiscutivelmente como princípio constitucional. Não há, porém, nenhuma norma que

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estabeleça de forma expressa este principio, daí que a doutrina e jurisprudência integrem
este principio em várias normas da CRP, a saber arts. 203º e 32º/5. Importância desta
consagração constitucional: (in)constitucionalidade de leis que compadeçam com a
intervenção de juízes que não estão em condições de assegurarem a imparcialidade.
Este principio além de ser uma garantia institucional, não deixa também de ser um
direito fundamental das pessoas que integram o conflito-objeto do processo penal. Há vários
instrumentos internacionais que consagram o direito a um tribunal imparcial. E isto importa,
pois há uma tendência de a máquina judiciária encarar estas questões relacionadas com a
imparcialidade como questões internas, do sistema, a que os particulares são alheios. O que
leva, muitas vezes, à resolução destas questões sem que os demais intervenientes
processuais tomem conhecimento (pelo menos, atempadamente).

3.2. Impedimentos e suspeições


Como é que se salvaguarda a imparcialidade do juiz?
Há institutos que estão especialmente vocacionados para proteger a imparcialidade
do juiz: os impedimentos (arts. 39º e ss. CPP) e as suspeições (arts. 43º e ss. CPP).
Os impedimentos são circunstâncias legalmente previstas de forma detalhada que
ditam necessariamente o afastamento do juiz da causa. O juízo da falta de imparcialidade
opera, nestes casos, de forma automática. É um juízo feito pelo legislador e que dita como
que uma presunção inilidível de falta de imparcialidade. As suspeições, que se dividem em
escusas e recusas, são situações que não estão descritas de forma expressa, mas que se
entroncam numa cláusula geral de suspeição que carece de uma mediação judicial. O
legislador confia ao poder judicial a missão de, em concreto, avaliar se uma certa
circunstância que afeta o juiz é ou não suscetível de gerar uma desconfiança fundada sobre
a sua imparcialidade. A suspeição assume forma de recusa quando é oposta ao juiz por um
sujeito processual (MP, arguido, assistente ou partes civis) e assume a forma de escusa
quando é o próprio juiz a pedir para ser removido do processo.
A consequência de um impedimento ou de uma suspeição é a remoção do juiz do
processo nos termos dos arts. 44º e ss. CPP.
Esta matéria dos impedimentos e suspeições releva no plano do juiz natural, previsto
nos arts. 32º/9 CRP e 39º LOSJ (proibição do desaforamento), no sentido de a remoção de
um juiz, se não for baseada na lei, ofender este principio. Daqui podemos concluir que todo
e qualquer impedimento só é admissível se tiver previsão legal. E é neste sentido que
encontramos os arts. 39º e 40º CPP.
Uma coisa é saber se os impedimentos devem ter base legal (e a resposta é
afirmativa); outra coisa é saber se só devem ser admitidos os impedimentos que constem do
CPP; ou se, além destes, será admissível o recurso subsidiário ao CPC para estender ao

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processo penal impedimentos que este prevê para o juiz cível. Há duas teses: a que
defende a taxatividade dos impedimentos do juiz penal, afirmado que as demais
circunstâncias apenas são suscetíveis de gerar uma suspeição (M ARIA JOÃO ANTUNES); e
a que defende que não é uma lista taxativa e que haverá casos que, não estando cobertos
pelo CPP, mas antes pelo CPC (art. 115º) seria de todo em todo incompreensível, à luz do
princípio da imparcialidade, que não abrangessem o juiz penal (F IGUEIREDO DIAS E NUNO
BRANDÃO).
Vamos agora analisar os vários impedimentos. Podemos agrupá-los em três
categorias: os que assentam em circunstâncias ou relacionamentos pessoais do próprio juiz;
os impedimentos por participação anterior em processo (que contendem com intervenções
ou participações daquele juiz em momentos anteriores daquele mesmo processo); e os
casos em que o próprio juiz servirá como meio de prova.
O primeiro grupo está previsto no art. 39º/1-a); b) e 3 CPP. Estes impedimentos
valem para qualquer fase do processo penal. Deve entender-se que, ainda neste grupo de
casos, deve ser um impedimento do juiz penal a situação prevista no art. 115º/1-d) CPC.
O segundo grupo de situações – e é aqui que se suscitam maiores dificuldades na
prática judiciária – abrange casos em que o juiz tenha intervindo no processo em momento
anterior, seja na veste de juiz (art. 40º CPP), seja noutra veste (arts. 39º/1-c) e d) CPP).
Quanto a este último caso, é por aqui que se garante que não pode haver cumulação de
funções.
Vamos agora focar-nos naqueles impedimentos em que o juiz interveio anteriormente
no processo enquanto juiz. Estes impedimentos estão previstos no art. 40º CPP, o qual já
sofreu inúmeras alterações. Estes impedimentos estão orientados, não para o processo
todo, mas, antes, para a fase do julgamento.
A questão que esta categoria de impedimento visa tratar prende-se com o princípio
da imparcialidade, especialmente, quando declara que um juiz deve entrar na causa sem já
ter formado uma convicção suscetível de decisivamente condicionar o sentido da sua
decisão ou de suscitar dúvidas sobre sua imparcialidade. Em princípio, intervenções
anteriores no processo não implicam o impedimento do juiz para intervir novamente no
processo. Sendo certo que, se o juízo tiver sido de tal ordem que, em concreto, possam
surgir dúvidas sobre a sua equidistância, há sempre a figura das suspeições – esta foi a
lógica adotada na versão originária do CPP. Nos anos 90, esta ideia começou a gerar
dúvidas e instalou-se, nesta matéria, uma grande controvérsia: entre quem defendesse que
bastava a cláusula geral de suspeições e entre quem defendesse que a lei tinha de ir mais
além. O TC foi chamado a pronunciar-se sobre esta matéria. No âmbito desta jurisprudência
constitucional, o art. 40º foi alterado no sentido de impedir de participar no julgamento o juiz

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que no inquérito tivesse aplicado e mantido a prisão preventiva. Em 2007, o art. 40º foi todo
alterado. Hoje, o art. 40º/1 CPP tem a seguinte redação:
Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a
processo em que tiver:
a) Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º;
Porquê estas e não nas demais medidas de coação? A especialidade reside no facto
de, em todas elas, se exigir um juízo no sentido de haver “fortes indícios da prática
de crime”; já relativamente às demais medidas de coação, elas apenas exigem a
existência de indícios. Nessa medida, o legislador pressupõe que, no caso daquelas
medidas, o juiz ficou de tal modo convencido sobre a existência de responsabilidade
penal do arguido que dificilmente não estará condicionado nas fases ulteriores do
processo.
Quando a lei fala em “aplicado”, significa isto mesmo: aplicar. Neste sentido, a
decisão de manter, substituir ou revogar uma daquelas medidas de coação não
impede o juiz de intervir ulteriormente no processo. Qual é a lógica? No momento da
aplicação da medida de coação, o juiz deve formar um juízo de fortes indícios, mas
quando chegamos ao momento do reexame, em princípio, aquele juízo deve dar-se
como feito. Assim, o juiz que proceda ao reexame daquelas medidas só terá de se
debruçar sobre os princípios de aplicação da medida de coação. É uma lógica um
bocado duvidosa…
Na revisão de 2021 do art. 40º foi acrescentado o nº 2, nos termos do qual nenhum
juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos
termos previstos nas alíneas a) ou e) do número anterior. Estendeu, portanto, este
impedimento à fase da instrução (antes, era só à fase de julgamento).
Outra questão que esta alínea coloca: se o juiz, já na fase de julgamento, aplica uma
destas medidas de coação; este juiz fica impedido? Uma leitura à letra deste preceito
implicaria o impedimento deste juiz de julgamento; o que, todavia, não parece fazer
grande sentido e que não é exigido pelo princípio da imparcialidade – o juiz de
julgamento não tem de ele próprio formular um juízo indiciário sobre a culpabilidade
do arguido. Justifica-se aqui uma interpretação restritiva.
b) Presidido a debate instrutório;
O debate instrutório é a única diligência obrigatória na fase de instrução e tem lugar
no encerramento desta fase. Qual é a razão subjacente a este impedimento? Na
decisão instrutória, o juiz de instrução debruça-se sobre o objeto do processo e emite
um juízo sobre a probabilidade da condenação do arguido. Manifesta, no fundo, a
sua ideia/convicção acerca da culpabilidade do arguido.
c) Participado em julgamento anterior;

11
Este preceito visa as situações em que o processo é reenviado para o tribunal cuja
decisão foi objeto de recurso. Nestes casos, deve considerar-se o juiz de julgamento
impedido?
Depende, temos de atentar ao que dispõe o art. 426º-A CPP, que remete para o art.
40º. Para respondermos a esta pergunta, há que ter em conta a lógica destas
normas: garantir a imparcialidade daquele que vai proceder a um novo julgamento.
Haverá casos em que não há razão para duvidar sobre a imparcialidade, mas há
outros em que há razões: temos que ver o tipo de decisões que foram reenviadas.
Existem dois tipos de decisões que podem pôr fim ao processo: ou uma decisão de
forma (obstáculo processual ao prosseguimento do processo) – decisão de
arquivamento – ou uma decisão de mérito (de absolvição ou condenação) – uma
sentença.
Nas primeiras situações, o juiz de julgamento não chega a efetuar um juízo sobre a
culpabilidade do arguido, não há motivo para duvidar da sua imparcialidade. No
segundo caso, temos que distinguir: se se trata de um conjunto claro de vícios
processuais pontuais que afetam a sentença e que justificam um reenvio, mas
apenas para corrigir a sentença ou reabrir pontualmente a audiência, seria uma
contradição nos termos exigir que se volte à estaca zero – nestes casos, não se
aplica o art. 40º/1-c). Já se estivermos perante casos em que o juiz procedeu ao
julgamento, proferiu uma sentença, houve um recurso e a decisão tomada em sede
de recurso implica o regresso à estaca zero, quando assim seja é desejável que este
novo julgamento seja feito por alguém que não tenha tido contacto com o caso, o juiz
do julgamento anterior está impedido.
d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final,
do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea
a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.
É uma reprodução das alíneas anteriores, mas para os recursos daquelas decisões.
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou
a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.
O legislador entendeu que, nestas situações, o juiz forma já uma convicção sobre a
culpabilidade do arguido, rejeitando por isso soluções de diversão. No fundo, com
estas decisões, entendeu o legislador que o juiz sinalizou já um entendimento sobre
a responsabilidade penal do arguido.
Mas esta alínea pode gerar contradições: imagine-se que o juiz aceita, p. ex. a
suspensão provisória do processo, o arguido não cumpre as regras de conduta
impostas, reabrindo-se o inquérito e procedendo-se à acusação. Aquele juiz está

12
impedido? Parece que não, mas neste caso o juiz também formou a convicção sobre
a culpabilidade do arguido.
Ver, quanto ao processo sumário, o Ac. TC Nº 444/2012.

Resta falar do terceiro grupo de impedimentos: o juiz necessita de intervir no


processo enquanto testemunha/meio de prova, art. 39º/3-d) e 40º/3 CPP. O impedimento
previsto no primeiro preceito tem subjacente duas ideias: por um lado, a necessidade de o
juiz não ter uma preconceção sobre a responsabilidade do arguido; mas, também, por
razões relacionadas com a finalidade do processo penal de descoberta da verdade material.
No segundo preceito que referimos, a ideia que está subjacente é: o juiz tomou
conhecimento pessoal dos factos que configurarão objeto do novo processo e, portanto,
poderá estar condicionado relativamente à afirmação da responsabilidade penal do arguido
(vide arts. 359º e 360º CP). A técnica legislativa é pobre: o juiz comunica a suspeita ao MP,
para que este proceda à investigação.
O primeiro caso, previsto no art. 39º/1-d), presta-se a abusos: uma pessoa só é
chamada ao processo enquanto testemunha se e quando for chamada ao processo por
algum dos sujeitos processuais com competência para tal (p .ex. o MP; o arguido/defensor;
tribunal). Para evitar este tipo de instrumentalização, temos o nº 2 do mesmo preceito.
Os arts. 41º e 42º regulam os termos em que o impedimento deve ser
ativado/efetivado. Embora não careça de uma mediação judicial, a verificação da situação
de impedimento tem de ser avaliada e declarada pelo juiz impedido. A decisão do juiz que
se declara impedido é irrecorrível. Já o despacho judicial, proferido no decurso do
requerimento feito por um dos sujeitos processuais que não o juiz, já é passível de recurso.
Vamos agora analisar as suspeições (arts. 43º a 46º CPP).
O art. 43º/1 prevê a designada cláusula geral de suspeição. A suspeição pode
assumir duas formas: recusa e escusa. Ativação da suspeição ocorre quando se verifica
uma situação que seja objetivamente, quanto à pessoa daquele juiz, suscetível de gerar
suspeita, por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua
imparcialidade.
Note-se que a fórmula legal é apertada e tem mesmo de o ser sob pena de violação
do princípio do juiz natural. Além disso, a jurisprudência é muito cautelosa na afirmação da
suspeição sobre um determinado juiz, na medida em que, na realidade, esta afirmação é
suscetível de gerar algum juízo de censura sobre o mesmo. Daí que se perceba que o
critério utilizado seja um critério individual objetivo, com uma noção objetiva de
imparcialidade – bastando, para que esteja preenchido, que haja motivos fundados para
duvidar da imparcialidade.

13
A densificação desta cláusula cabe já à jurisprudência. Podemos dar alguns
exemplos de situações-tipo que se costumam enquadrar nesta cláusula: relação de amizade
ou hostilidade entre o juiz e o arguido4 (bem como com os demais sujeitos da lide, vg.
assistente, partes civis); relações de inimizade com os vários sujeitos processuais (inclusive,
com operadores judiciais), principalmente quando seja um conflito bilateral; decisões do juiz
naquele processo ou em processos conexos. Neste caso, a própria lei, no art. 43º/25, visa
igualmente assegurar que o juiz, quando entra na causa, não está condicionado por
decisões que tenha tomado anteriormente. A relevância desta norma reside (agora, mais) na
situação em que a intervenção do juiz num outro processo (penal ou não penal) tenha
abrangido factos com relevo decisivo para o presente processo, p. ex. situações de
comparticipação em que houve separação de processos. Além das intervenções noutros
processos ou no mesmo processo, mas em fases anteriores, pode o comportamento que o
juiz adote no decurso de uma fase processual ser de tal ordem que gere dúvidas sobre a
sua isenção. Isto, seja dentro do processo seja fora do processo, p. ex. o indeferimento
reiterado a pedidos feitos por um dos sujeitos processuais. Porém, nestes casos, é preciso
ser muito cauteloso a afirmar a suspeição, desde logo, porque esta afirmação terá uma
maior carga de censurabilidade sobre a pessoa do juiz. Ver Ac. STJ de 23/06/2016.
Também a forma como o juiz interage com os sujeitos processuais pode ser fundamento de
suspeição, nomeadamente se trata diferente e arbitrariamente os vários sujeitos
processuais.
Em que termos de efetiva a suspeição? Arts. 44º e ss. CPP. A decisão sobre a
suspeição cabe a um tribunal superior e esta é irrecorrível.
O art. 41º/3 determina que os atos praticados pelo juiz impedido são nulos. Se o juiz,
que está numa situação de impedimento, não a declarar atempadamente, os atos praticados
são nulos, salvo se não puderem ser repetidos e se se verificar que deles não resulta
prejuízo para a justiça da decisão do processo. A nulidade abrange a decisão (sentença ou
acórdão) proferida por um juiz impedido (mesmo que seja um tribunal coletivo).

4. Princípio do juiz natural


Também designado como princípio do juiz legal.
Encontra-se consagrado na CRP, no art. 32º/9, nos termos do qual nenhuma causa
pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior. O cerne deste
princípio reside na exigência de que a designação do tribunal se faça com base na lei, em
regra, em lei anterior. E visa salvaguardar que a designação do tribunal e do juiz se faça de
4
Mas já as relações de amizade entre operadores judiciais (vg. magistrados do MP; polícias) não são suscetíveis
de gerar suspeição.
5
Este preceito perdeu alguma importância em face das alterações feitas ao art. 40º em 2021; com efeito, esta
norma visava sobretudo a intervenção do juiz na fase de instrução.

14
acordo com regras de natureza geral e abstrata, em primeira linha definidas por lei, para
evitar que o tribunal seja escolhido por algum sujeito processual e para evitar a criação de
um tribunal ad hoc. Tudo isto é decisivo para se assegurar a confiança na isenção e na
imparcialidade do decisor. O tribunal ou juiz que possa ser escolhido por alguma das partes
da contenda é natural que suscite dúvidas sobre a sua equidistância. Há um caso
paradigmático entre nós que é o do Tribunal Arbitral do Desporto, que é composto por três
árbitros (dois deles escolhidos pelas partes e o terceiro escolhido pelos dois árbitros),
evidencia que os árbitros escolhidos pelas partes sistematicamente decidem a favor da
parte que o escolheu. Este caso mostra bem a importância da imagem de equidistância que
um tribunal deve transparecer.
Esta exigência de critérios gerais e abstratos, radicados na lei, para a definição do
tribunal competente manifesta-se não só na definição da competência do tribunal, mas
também na definição da competência do concreto juiz da causa. E a definição de todos
estes patamares – quer orgânicos (tribunal e juízo) quer do concreto juiz – deverá ser feito
com base em critérios gerais e abstratos, legalmente previstos, mas também com base em
critérios insuscetíveis de manipulação – isto é, de critérios que permitam que, na prática,
aqueles sejam escolhidos ou a sua escolha possa ser facilmente condicionada por alguém
(como por exemplo, pelo MP). A competência há de basear-se na lei e há de ter um
conteúdo que não seja facilmente manipulável. Ac. TC nº 41/2016 (muito importante nesta
matéria).
Quanto à amplitude deste princípio, ele incide, antes de mais, sobre o tribunal
organicamente competente, e, dentro deste, sobre o juízo competente e, por último, sobre a
designação do concreto juiz que vai decidir a causa. Isto, porque o juiz natural cobre não o
só o próprio tribunal como instituição, mas também (e isto é um dado decisivo) sobre o juiz
enquanto pessoa titular daquele órgão – aqui bem se percebe a razão pela qual um juiz só
poder ser afastado de uma causa com base numa previsão legal. O que sucede, p. ex., no
Porto e que é suscetível de manipular este princípio, é o “conluio interno” entre juízes no
sentido de definir turnos – o que nos mostra que é muitas vezes o próprio sistema judiciário
e a forma como se organiza que acaba por manipular as regras de fixação de competência
(e não tanto o legislador).
Note-se que o princípio do juiz natural é não só uma garantia institucional, mas
também é um direito das pessoas.
O princípio do juiz natural abrange o tribunal organicamente considerado, os juízos
que ele integra, bem como todos os juízes penais (de instrução, de julgamento e de recurso)
e tem, desde logo, uma feição positiva: a designação de um certo tribunal, do juízo que
integra esse tribunal e do juiz que exerce funções nesse juízo deve assentar na lei. Pela
negativa, este princípio proíbe o chamado desaforamento, ou seja, é proibida a

15
subtração/retirada da causa ao tribunal e juiz legalmente competentes (art. 39º LOSJ).
Melhor dizendo: a subtração ou desaforamento só será admissível se baseada (também) em
critérios legais, gerais e abstratos. Esta dimensão negativa também proíbe a criação de
tribunais ad hoc, tribunais especialmente instituídos para uma certa causa ou para um certo
arguido. Proíbe ainda aquilo que se prevê no art. 209º/4 CRP – aqui, proíbe-se tribunais
especializados que se dediquem em exclusivo ao julgamento de certos tipos de crimes. Não
se proíbe que a definição da competência se faça com base em certos tipos de crime, o que
se proíbe é que um certo tribunal só julgue certos tipos de crime.
Este princípio, na sua vertente positiva, impõe que a definição da competência
assente na lei e em normas de caráter geral e abstrato. Essa definição resulta da aplicação
das normas que constam no CPP (arts. 10º e ss.) e, subsidiariamente, no LOSJ e ROFTJ.

5. Competência

5.1. Competência penal e as suas espécies


A partir do art. 10º, o CPP prevê três espécies de competência: material; funcional e
territorial. A competência material visa determinar qual o tribunal que, em primeira instância,
é competente para julgamento das causas penais em função das matérias. A competência
territorial visa definir qual, de entre os diversos tribunais material e funcionalmente
competentes, deverá ser competente em função de critérios de natureza territorial. A
competência funcional diz respeito às diferentes funções que o tribunal pode desempenhar
no processo (intervenção no julgamento das causas penais, na decisão dos recursos das
decisões das causas penais e exercício da função jurisdicional antes da fase de
julgamento). Pode ser uma competência que tenha em conta os diversos graus de jurisdição
ou relativa às fases processuais.
É da conjugação destes critérios que se chegará ao tribunal competente.

5.2. Competência material


A competência material diz respeito ao tribunal de primeira instância, na fase de
julgamento, e esta é fixada em função da matéria objeto do julgamento.
Neste âmbito, temos três espécies de tribunais: tribunal do júri; tribunal coletivo e o
tribunal singular. Estes tribunais funcionam nas chamadas comarcas. Vide arts. 79; 80º e
81º LOSJ. Dentro destes tribunais, temos, ainda, juízos centrais criminais e os juízos locais
criminais: em geral, os tribunais colegiais funcionam nos juízos centrais criminais; os
tribunais singulares tendem a funcionar nos juízos locais criminais.

16
A espécie de tribunal é fixada em função de uma certa matéria e a base relevante
para a matéria-objeto da competência é constituída pela factualidade imputada ao arguido
na acusação ou no despacho de pronúncia.
Assim para cada espécie de competência, importa saber qual é o ponto de
referência: ora ao tipo de crime ora à pena aplicável. Aquilo que constitui o ponto de partida
neste caso é a peça processual que é objeto da cognição do tribunal e esta ou consta do
despacho de acusação ou do despacho de pronuncia – estas peças contêm a imputação
que é objeto de julgamento. É tendo em conta esses factos e o respetivo valor jurídico que
deve ser definida a competência material do tribunal.
Onde há bastante controvérsia é nas fases anteriores do processo e quanto à
questão de saber se, no âmbito da competência material, o juiz que recebe o processo está
vinculado à qualificação jurídica dos factos descritos perfilhada na acusação ou na
pronúncia. Há quem entenda que o tribunal está vinculado e há quem entenda que o tribunal
não está vinculado (NUNO BRANDÃO6).
A determinação do tribunal materialmente competente está regulada nos arts. 13º a
16º CPP. Destes preceitos, podemos ver que o legislador adota diferentes modelos de
determinação da competência. Temos dois modelos: o modelo da determinação abstrata da
competência e o modelo da determinação concreta da competência.
Em geral, o legislador adota o modelo da determinação abstrata da competência.
Neste modelo, a competência é fixada tendo em conta a imputação que é dirigida ao arguido
em função ou do tipo de crime que é imputado ou da pena abstrata aplicável, do limite
máximo da pena abstratamente aplicável. Quando o critério seja o da pena abstratamente
aplicável vale o art. 15º CPP, p. ex. se houver circunstâncias agravantes suscetíveis de
elevar a pena aplicável, essas circunstâncias devem ser tidas em conta para efeitos de
determinação do tribunal competente em razão da matéria. E se se trata de circunstâncias
que atenuam a pena? Elas devem ser tidas em conta para estes efeitos? A resposta é
depende: se forem circunstâncias que impliquem necessariamente a atenuação da pena, se
a atenuação for imperativa, a resposta é afirmativa; mas pode haver casos em que a
atenuação é facultativa (p. ex. no caso de se tratar de omissão, art. 10º CP), aí, a resposta é
negativa.
O método da determinação concreta da competência, previsto no art. 16º/3, vale para
as situações em que a competência é determinada em função da pena que previsivelmente
pode ser aplicada. Isto é, naqueles casos em que o MP aponta como pena que
concretamente pode vir a ser aplicada uma pena que não excede certa medida. Deste
modo, é em função da pena máxima que o MP considera vir a ser aplicada que é

6
Ver artigo de NUNO BRANDÃO, publicado na Catolica Law Review, “Alteração da qualificação jurídica dos factos
no saneamento do processo”.

17
determinada a competência do tribunal. Uma questão que se coloca a este propósito é a de
saber se o legislador é inteiramente livre na repartição das matérias objeto de julgamento
pelas diferentes espécies dos tribunais ou se há alguma vinculação constitucional a que
deve estar sujeito. Note-se que, quanto mais grave deve ser a punição, mais cuidado
devemos ter, maiores exigências devemos fazer quanto à qualidade do tribunal que deve
intervir. Tendencialmente os tribunais colegiais oferecem mais segurança/mais garantias de
acerto do que os tribunais singulares. O que está particularmente em causa é o erro
judiciário: a composição do tribunal deve ser uma tal que impedem o erro judiciário.
Por outro lado, há razões pragmáticas que justificam que causas relativas à pequena
e média criminalidade não reclamem a intervenção de um tribunal colegial.
Assim, parece consensual que, relativamente aos crimes mais gravosos, há uma
tendência, fundada na maior segurança que este confere, de atribuir competência em razão
da matéria a um tribunal colegial, em detrimento de um tribunal singular. Coerentemente,
relativamente a pequena criminalidade, tende a ser competente o tribunal singular.
Por isso, crimes puníveis com pena igual ou inferior a 5 anos são, em regra, da
competência do tribunal singular; os crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos
são tipicamente julgados por um tribunal coletivo.
Uma questão que se coloca no plano politico-criminal e constitucional resulta alguma
diretriz que vincule o legislador ordinário de atribuir para certas causas a competência a
certos tribunais, p. ex. tem o legislador ordinário liberdade para atribuir competência a um
tribunal singular para julgar um crime de homicídio? Será que é conforme à CRP? A questão
pôs-se em 2013, com a alteração ao regime do processo sumário. Há uma norma
constitucional que o legislador tem necessariamente de tomar em consideração: art. 207º,
que se refere ao tribunal de júri. Daqui resulta que, tratando-se de crimes gerais, deve ser
admitida a intervenção do tribunal de júri. Outra coisa é saber se da CRP resulta, como
obrigação de funcionamento do tribunal coletivo, para a criminalidade grave. Ver art. 16º/1-a)
CPP. Não é claro que normas como esta sejam inconstitucionais. De todo o modo, o TC
declarou a inconstitucionalidade do conjunto de normas atribuíam competência ao tribunal
singular para julgar, na forma sumária, crimes cuja pena máxima seja superior a 5 anos –
aqui, a inconstitucionalidade abrange não só a competência atribuída ao tribunal singular,
mas também ao facto de se tratar de um processo mais simplificado na sua forma.

5.2.1. Competência do tribunal do júri (art. 13º e DL nº 387-A/ 87)


O tribunal de júri é um tribunal misto: composto por juízes de direito e por leigos, art.
1º daquele DL. A ideia aqui é fazer participar o povo na realização da justiça. O princípio
democrático e a ideia de participação do povo nos assuntos da comunidade fazem-se sentir
aqui, no nosso ordenamento jurídico. À democratização corresponde a um alargamento dos

18
casos em que é utilizado o tribunal do júri; inversamente, em sociedades mais autoritárias,
há um encurtamento da utilização desta espécie de tribunais.
Mas entre nós ainda há uma relutância enorme em requerer ao tribunal do júri, por
uma série de questões.
Que funções é que são desempenhadas pelo tribunal do júri, designadamente pelos
jurados?
No sistema anglo-saxónico, há uma divisão de funções entre o juiz e o júri: o primeiro
assegura o regular funcionamento da audiência e decide sobre a questão da determinação
da pena; o segundo cabe decidir autonomamente a questão da culpabilidade – este é o
sistema tradicional do júri. No nosso sistema – sistema do escabinato –, o tribunal do júri
todos têm poder decisório sobre a questão da culpabilidade e a questão da determinação da
pena. Este sistema tem vantagens e desvantagens: por um lado, tratando-se de um tribunal
misto há um claro ascendente dos juízes profissionais sobre os jurados e, portanto, estes
tendem a subordinar-se àqueles. Leva a que os juízes profissionais tenham um poder de
facto que suplanta o dos jurados. Mas tem a vantagem, que é o reverso da moeda, de a
intervenção dos juízes de direito assegurarem, de certo modo, o acerto jurídico das
decisões.
Em que casos é que intervém o tribunal do júri? Há normas que intervêm pela
positiva e outras que intervêm na negativa. Intervém na positiva, no sentido de atribuir
competência, o art. 13º/1 e 2 CPP. O que interessa para aferir a competência do tribunal do
júri é a moldura penal do crime de que o arguido for acusado. No caso de concurso de
crimes, o tribunal de júri só pode julgar esses crimes se, tendo sido requerida a sua
intervenção, algum dos crimes em concurso for punível com pena de prisão superior a 8
anos – quando houver a designada conexão processual, prevista nos arts. 24º e 25º CPP.
Naqueles casos em que até haveria base legal para a intervenção do tribunal do júri, mas
em que haja alguma oposição legal a essa intervenção, o tribunal do júri não pode funcionar,
p .ex. o art. 187º LOSJ (criminalidade altamente perigosa) – esta é uma norma que intervém
negativamente na definição da competência. Também não é admitida a intervenção do júri
em julgamento de crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos, art. 40º Lei nº
34/87.
Quando é que o tribunal de júri é competente?
É preciso que esteja em causa crime para o qual a sua intervenção é requerida. Mas
não basta isso: é imprescindível que haja um requerimento de algum sujeito processual no
sentido da sua intervenção, art. 13º/1 e 2 CPP. E não há um poder de oposição a esta
intervenção – o requerimento é irretratável, art. 13º/5 CPP. Na prática, onde tem havido
maior discussão na doutrina e jurisprudência é na possibilidade de a decisão do tribunal do
júri, quanto à matéria de facto, ser alterada por um tribunal superior. Essa possibilidade

19
suscita dúvidas de constitucionalidade em face, nomeadamente, do art. 207º. Há quem
defenda a inconstitucionalidade, nomeadamente MARIA JOÃO ANTUNES; NUNO BRANDÃO;
ANA PAIS E SÓNIA FIDALGO7. E subscrita pelo STJ. O TC decidiu, porém, pela sua não-
inconstitucionalidade, Ac. TC 417/2018.
O tribunal de júri funciona no juízo central criminal.

5.2.2. Competência do tribunal coletivo


O tribunal coletivo está previsto no art. 133º da LOSJ e é composto por três juízes de
direito. este tribunal que deverá intervir no julgamento da criminalidade grave,
nomeadamente nos casos previstos no art. 14º CPP.
No art. 14º/1, alínea a), a competência é definida em função do tipo de crime e
podemos dizer que se trata de uma competência própria do tribunal coletivo. Na alínea b), a
competência é definida em função da pena aplicável.
Nas situações de concurso de crimes, quando o arguido responde por dois ou mais
crimes, se, em relação a algum deles for aplicável pena de prisão superior a 5 anos, será
competente o tribunal coletivo. Mas pode acontecer que nenhum dos crimes individualmente
considerados seja punível com uma pena de prisão superior a 5 anos, havendo uma
conexão processual, se a pena única (nos termos do art. 77º CP) poder exceder os 5 anos.
Mesmo neste caso, por força da parte final do art. 14º/2-b), é competente o tribunal coletivo
– “mesmo quando, no caso de concurso de infrações, seja inferior o limite máximo
correspondente a cada crime”. Veremos que este é um campo propício ao funcionamento do
art. 16º/3 CPP.
Note-se que, para efeitos do art. 14º/2-b), o que conta é o concurso do art. 77º CP.
pode acontecer que tenhamos o julgamento em separado dos vários crimes em concurso.
Já se se tratar de um conhecimento superveniente do concurso, o tribunal competente para
definir a pena conjunta será o que é competente nos termos gerais, vide art. 471º CPP.

5.2.3. Competência do tribunal singular (art. 16º CPP)


Este tribunal é composto por um único juiz de direito e funciona em regra no juízo
local criminal. E tem subjacente a ideia de concentrar neste tribunal o grosso da
criminalidade, pois tem um funcionamento mais simples, mais ágil do que o tribunal coletivo.
Aqui, encontramos diferentes métodos de determinação da competência. Na alínea
a), utiliza-se o método da determinação abstrata de competência em função do tipo de
crime. E a razão pela qual aparentemente a competência pertence ao tribunal singular é a
ideia de que na prova destes crimes intervirão sobretudo agentes do Estados, funcionários,
e estes merecem uma credibilidade acrescida e, portanto, há à partida menos margem de
7
Ver artigo escritos por estes AA..

20
erro judiciário. Se houver concurso de algum tipo destes crimes, continua a ser competente
o tribunal singular. Já não assim naqueles casos em que o concurso integre crimes de outra
natureza, aí já será competente o tribunal coletivo. Na alínea b), temos consagrado o
método da determinação abstrata da competência em função da pena abstratamente
aplicável. No nº 3, temos o método da determinação concreta da competência. Está em
causa aliviar o trabalho dos tribunais coletivos. Em regra, se o crime for punível com pena
de prisão superior a 5 anos, o tribunal coletivo será competente, mas este juízo é feito a
priori e em abstrato pelo legislador, mas pode acontecer que, tendo em conta os critérios de
determinação da pena, as circunstâncias envolventes não sejam de tal ordem acentuadas
que o crime não tenha a gravidade típica daquele crime. Tratam-se, no fundo, de situações
que à partida seriam da competência do tribunal coletivo, em função da pena aplicável, mas
que, em concreto, não será de esperar que se venha a aplicar uma pena de prisão superior
a 5 anos. Mas, nestes casos, não pode o tribunal singular aplicar uma pena superior a 5
anos – há aqui uma limitação à pena que concretamente pode ser aplicada. Isto, por razões
de ordem prática.
Para que isto seja admissível, é necessário que se verifiquem certas condições: 1) é
preciso estarmos perante casos em que a atribuição de competência ao tribunal coletivo se
baseia na pena abstrata aplicável, ou seja, se baseia nos casos previstos no art. 14º/2-b)).
Daí que, em casos de competência própria do tribunal coletivo (art. 14º/2-a)), não se pode
aplicar o art. 16º/3. 2) é ainda necessário que o MP faça uma avaliação em concreto,
devidamente fundamentada, conjugando os factos indiciados com os critérios de
determinação da pena – para isso, são necessários meios de prova – que permita concluir
que, naquela situação, o crime ou o concurso de crimes não deve ser punível com pena de
prisão superior a 5 anos; se isso acontecer, fundamentando devidamente a sua posição,
então o processo passará a ser da competência do tribunal singular.
Como é que as coisas se processam quando o MP faz uso do art. 16º/3 CPP? O MP,
quando remete o processo para julgamento, remete para o tribunal singular. E, quando o
processo chega as mãos do tribunal singular, deve verificar se dispõe ou não de
competência para o julgar: aqui, seria com base no art. 16º/3. Se estiverem reunidas as
condições supra mencionadas, o tribunal singular deve reconhecer-se competente. Caso
contrário, deve8 declarar-se incompetente e remeter o caso para o tribunal coletivo (se a
declaração de incompetência se dever à falta de fundamentação por parte do MP, há, aqui,
uma atribuição de competência arbitrária e violadora do princípio do juiz natural).
Mesmo que os requisitos estejam preenchidos, pode surgir o problema de eventual
discordância em relação ao juízo manifestado pelo MP. Quem é que poderá divergir? O
assistente, o superior hierárquico do MP e o tribunal singular. A doutrina maioritária defende
8
Tem o poder-dever, e pode exercê-lo oficiosamente ou a requerimento do assistente ou do arguido.

21
que a lei não admite (na medida em que não prevê) que o tribunal singular entre na análise
do juízo formulado pelo MP e, portanto, o tribunal não tem margem para sindicar
intrinsecamente o bom fundamento do juízo emitido pelo MP. É o MP que exerce o poder
punitivo do Estado. Também poderia admitir-se (e há quem admita) que o superior
hierárquico poderia exercer esse controlo, mas a verdade é que isso integrar-se-ia no
chamado poder de supervisão e esse poder só é admitido nos casos em que a lei
processual prevê e a lei não prevê nenhum caso deste género.
Este regime foi muito controvertido. Aquando da entrada em vigor do CPP, houve
tribunais que recusaram a aplicação desta disposição com fundamento na
inconstitucionalidade, por violar o princípio da reserva de juiz e o princípio do juiz natural. O
TC pronunciou-se no sentido da sua não inconstitucionalidade, por um lado, porque apenas
influi na pena aplicável e não aplicada, por outro, porque ainda assim consagra um critério
suficientemente geral e abstrato cuja concretização cabe a uma entidade que se pauta pela
legalidade e por critérios de objetividade.
Uma outra norma que atribui competência ao tribunal singular é o nº1 do art. 16º, que
estabelece uma competência residual. Aqui, visa-se evitar um eventual vazio na atribuição
de competência. Esta norma é aquela que cobre a aplicação dos crimes puníveis
exclusivamente com pena de multa.
Pode acontecer que o arguido acusado tenha determinadas qualidades, tenha um
certo estatuto especial, ao qual a lei atribua um foro também ele especial – os chamados
casos de foro especial. Designadamente crimes cometidos por titulares de órgãos de
soberania ou outros cargos públicos. A matéria está prevista no art. 11º/4 e 11/3 CPP.
O art. 11º/3-a) abrange os casos de acusações dirigidas contra titulares de altos
cargos políticos. Estes casos são da competência do STJ. A atribuição da competência ao
STJ tem subjacente o seguinte: é de toda a conveniência que o julgamento destes casos
não caiba a um tribunal qualquer, mas antes ao STJ, por força da dignidade institucional do
próprio cargo e também para evitar o risco de perseguições indevidas, assegurando que o
julgamento é feito por quem se encontra numa posição menos sujeita a pressões.
O foro especial do STJ só subsiste enquanto o acusado se mantem no exercício do
cargo ou, pelo contrário, subsiste mesmo após o findar o exercício daquelas funções? A
jurisprudência maioritária e COSTA ANDRADE tende para a primeira opção, uma vez que
cessadas as funções, não há razão para haver este foro especial. Parece ser esta a posição
que vai ficar.
Também tem foro especial os magistrados (judiciais e do MP), nos termos do art.
11º/4, a ideia é esta: em principio, um magistrado não deve ser julgado por um seu par, deve
ser julgado por quem está acima na hierarquia dos tribunais. E é neste sentido que, se
houver comparticipantes que não dispõem do foro especial ou cometeram crimes que estão

22
em conexão com crimes cometidos pessoas com foro especial, aquelas pessoas são
igualmente abrangidas pelo foro especial.
A LOSJ determina que as secções funcionem com um conjunto plural de membros, o
que significa que estes magistrados nunca podem ser julgados por um tribunal singular.

5.3. Competência funcional


Tem que ver com o facto de termos diversos graus de jurisdição e várias fases
processuais – competência funcional por graus.
No âmbito da competência funcional por graus, temos que: o julgamento em primeira
instância cabe ao tribunal de comarca (nos juízos centrais ou locais criminais), em segunda
instância cabe ao tribunal da relação – que conhece matéria de facto e de direito – e, em
terceira instância, ao STJ – que só conhece matéria de direito. Depois, temos uma
competência por fases: tribunal de instrução e tribunal de julgamento.
Estas classificações são importantes quando estudarmos a competência territorial.

5.4. Competência territorial


Quanto à competência territorial propriamente dita, encontra-se regulada a partir do
art. 19º CPP. E estas normas valem, em primeira linha, para o funcionamento do tribunal em
primeira instância, elas pressupõem a conjugação com as normas da competência material.
Estas normas visam assegurar a intervenção, em 1º instância, do tribunal que tenha
uma conexão territorial mais próxima com o crime que foi cometido, pois é aí que
normalmente se fazem sentir com maior intensidade as exigências de prevenção (mas
também tem em conta a maior facilidade de recolha de prova). Daí que o critério base seja o
do locus delitii, previsto no art. 19º/1 CPP. O que releva para apurar a competência territorial
é o local onde a consumação foi produzida. E há uma necessidade de articulação entre a
factualidade imputada e a natureza, conteúdo do tipo de ilícito que lhe corresponde. Tal
como na competência material, o ponto de referência é a matéria factual descrita na
acusação ou na pronuncia, tendo em conta a respetiva qualificação jurídica. de maneira que
importa saber que crime é que está em causa e verificar onde é que, de acordo com a
acusação ou pronuncia, ocorreu a factualidade que preenche a consumação do facto. E aqui
é necessário distinguir entre os crimes de mera atividade e os crimes de resultado. Nos
primeiros, a consumação dá-se onde o agente atua; nos segundos, quando a ação típica e o
resultado típico ocorram em lugares distintos, é o lugar onde o resultado típico ocorre o local
relevante para fixar a competência territorial. Há casos onde não é muito fácil, não é claro
onde é que ocorreu a consumação – casos que são territorialmente difusos. Para esses
casos, há a necessidade de prever regras especiais, por exemplo Lei da imprensa.

23
Uma outra norma importante é art. 19º/2 CPP. Esta norma vale para os homicídios e
estabelece um desvio à regra geral: aqui o que conta para fixação da competência é o local
onde a ação ou omissão tiveram lugar. Isto tem que ver com o facto de, num grande número
casos, o local mais próximo ser não o da consumação (a morte) mas sim o da ação ou
omissão.
O art. 19º/3 prevê um critério especial para os crimes habituais e duradouros. O
preceito dirige-se àqueles atos que se vão prolongando no tempo e, nessas situações, como
pode haver a realização típica nesses vários lugares, o que conta para fixar a competência é
o lugar onde se tiver realizado o último ato. O art. 19º/4 prevê especialmente o caso da
tentativa, prescrevendo que o que conta é o local do último ato de execução.
O art. 21º é um artigo muito importante nesta matéria: muitas vezes não se consegue
apurar em que local se dá a consumação e então será no sitio onde houve a noticia do
crime o local relevante para fixação da competência do tribunal. Mas isto também vale para
as situações em que omite na acusação ou na pronuncia o local onde se deu a
consumação. Este critério também é o critério preferencial quando não se sabe bem onde é
que as coisas aconteceram.
O art. 23º trata dos processos respeitantes a magistrados, não quando o magistrado
é arguido, mas crimes em que o magistrado é ofendido. Esta norma visa prevenir suspeitas,
para proteger a imparcialidade do juiz.
Estas normas não se aplicam diretamente do ponto de vista da competência
funcional para a definição do juiz de instrução territorialmente competente nas fases
anteriores ao processo. E, todavia, é a elas que se recorrem para definir a competência do
juiz de instrução na fase de inquérito. O que se determina é a competência do MP no art.
264º CPP. E esta norma vem sendo interpretada em conjugação com as normas do arts. 19º
e ss., embora elas não se apliquem diretamente, existe uma prática de apelar por analogia a
essas normas para densificar quer a competência do MP quer depois também a
competência territorial do juiz de instrução. Isto é percetível, na medida em que o princípio
do juiz natural também se aplica ao juiz de instrução, ou seja, não pode a definição do juiz
de instrução ficar em branco. Aqui, põem-se problemas complicados: qual o juízo de
instrução territorialmente competente para intervir na prática de atos jurisdicionais durante o
inquérito? Tem-se entendido que se deve apelar às normas de competência territorial
previstas nos arts. 19º e ss. e às normas que constam na LOSJ (arts. 119º, 120º e 121º).
Isto vale quer para o inquérito quer para a instrução. Mas qual é a base de incidência destas
normas relativas à competência territorial? Que matéria é relevante para definir a
competência territorial do tribunal de instrução? Uma coisa é segura: não pode ser critério
de atribuição de competência o local onde a investigação decorra. Há uma tentação natural
de o titular do inquérito remeter para o juízo de instrução da sua localidade os pedidos de

24
realização de atos jurisdicionais. Porque, desde logo, não tem base legal e, mesmo que
tivesse, seria um critério que tornaria o critério de fixação de competência territorial
altamente manipulável. O critério deve ser o do objeto do processo: tal como o é para fixar a
competência do tribunal de julgamento. É onde os factos tiveram lugar. Mesmo que o MP
não atenda a esse local para fixar a sua própria competência, o juízo de instrução, que seja
chamado a praticar algum ato jurisdicional, deve verificar que indícios existem no processo
quanto ao local onde o crime se consumou. Esta questão tem sido discutida sobretudo a
propósito do TCIC. Isto porque, para a definição da competência deste tribunal, temos de
atentar não só às normas do CPP, mas, principalmente, às normas da LOSJ (arts. 119º e
120º) – é um tribunal de competência territorial alargada.
Recapitulando o que estávamos a ver na aula passada:
A lei prevê a criação e funcionamento de tribunais de instrução criminal, no art. 83º
LOSJ. No art. 119º a lei refere-se aos juízos de instrução criminal e prevê as respetivas
competências, designadamente para a atividade jurisdicional nas fases preliminares. Cada
juízo intervém nos processos na área da sua competência. A par destes, o legislador criou
um tribunal de competência territorial alargada – TCIC –, arts. 83º, 116º e 120º LOSJ.
Em suma, temos uma pluralidade de juízos de instrução em cada comarca e cada
qual tem competência na respetiva área localizada, depois temos um tribunal de
competência territorial alarga – TCIC – que tem competência nacional.
Como é que sabemos que juízo de instrução deve intervir? Importa saber duas
coisas: que normas relativas à definição da competência territorial e funcional serão de ter
em conta? Art. 264º CPP que estabelece, para o inquérito, a competência do MP. Face a
este vazio normativo, a doutrina e jurisprudência apelam analogicamente aos art. 19º e ss.
para definição da competência territorial do juízo de instrução. A essas normas acrescem e
prevalecem as normas da LOSJ (normas especiais) relativas ao TCIC. A outra vertente
contende com a questão de saber o que é que se deve ter em conta em termos factuais
para determinar o juízo de instrução territorialmente competente. Temos três hipóteses: 1)
será competente o juízo de instrução do mesmo local onde a investigação está a ser
realizada pelo MP; 2) depois de fixada a competência num certo juízo de instrução, será
esse juízo, ao abrigo do art. 38º LOSJ, a ter competência para os demais atos jurisdicionais
a serem praticados no inquérito; 3) o que conta é o objeto do processo independentemente
do local do departamento do MP onde o caso esteja a ser investigado e independentemente
de intervenções jurisdicionais anteriores. A posição que vem sendo dominante quer na
doutrina quer na jurisprudência (nomeadamente no STJ), pese embora continue a haver
divergências, é a terceira – é a que tem em conta o objeto do processo.
Os primeiros critérios são rejeitados, porque tornam a definição do tribunal vulnerável
a manipulações do MP. A ser assim, o princípio do juiz natural não estaria a ser

25
verdadeiramente cumprido. Daí que, para devido cumprimento daquele princípio, o que deve
ser tida em conta é a factualidade-objeto da investigação e as regras de competência
definitórias da competência (arts. 19º e ss. CPP e 120º LOSJ).
O TCIC é um tribunal que foi originariamente criado em funcionamento paralelo ao
DCIAP, o qual tinha originariamente competência para investigar criminalidade económica
organizada – lógica de centralização. Este tribunal começou a por ser dotado apenas por um
juízo, só a partir de 2014 é que foi criado o segundo juízo. Apesar da lógica subjacente à
criação daquele tribunal, o TCIC tem recebido um largo número de casos de enorme
dimensão e muito mediáticos. Tratando-se de um tribunal composto por dois juízos e dado
tipo de casos mediáticos que trata, tornou-se um tribunal muito pessoalizado. E, tudo isto,
levou a que o legislador tivesse decidido mudar o figurino do TCIC, alargando o número de
juízos que o integram: continuamos a ter um TCIC, mas, na prática, o que aconteceu foi
uma fusão o juízo de instrução criminal de Lisboa com o TCIC. Funciona, agora, com nove
juízos e tem uma bifurcação: intervém nos crimes cometidos no município de Lisboa (art.
120º/2-a) LOSJ) e depois tem aquela competência para aqueles crimes catálogo, previstos
no art. 120º/1 LOSJ, que tem ainda como pressuposto que a atividade criminosa (- não o
lugar da consumação) tenha uma certa dispersão territorial – que ocorra em comarcas
pertencentes a diferentes tribunais da Relação. Quando estamos perante esta atividade
catálogo, mas em que a atividade ocorre em comarcas que pertencem ao mesmo tribunal da
Relação, vale o art. 120º/3 LOSJ.
Até agora, vimos a questão da competência do juízo de instrução na fase de
inquérito, mas a questão volta a colocar-se quanto à fase da instrução. Aqui, os critérios
legais voltam a ser aqueles enunciados, mas por força do disposto art. 288º/2 CPP. Onde se
coloca novamente uma questão e houve uma divergência doutrinal tem que ver com saber o
que é que constitui a base da incidência normativa da atribuição de competência. Aqui,
temos duas teses: uma que apelava ao art. 38º LOSJ; outra que apelava ao objeto do
processo definido na acusação ou no despacho de pronúncia. Nesta matéria, ver Ac. TC nº
31/2016: entendeu que violaria o principio do juiz natural a interpretação que apelasse à
aplicação do art. 38º LOSJ e, portanto, que fixasse a competência logo ao inicio,
independentemente das vicissitudes do processo. Essa mesma ideia veio a ser reiterada no
Ac. UJ nº 2/2017: é irrelevante a competência anterior para fixar a competência do juízo de
instrução na fase de instrução. Deste modo, o art. 38º LOSJ não se aplica ao processo
penal.

5.5. Conexão de processos e competência por conexão


Vamos agora tratar da competência por conexão, que aparece regulada a partir do
art. 24º CPP.

26
Tanto no caso de pluralidade de agentes como no caso da pluralidade criminosa,
pode acontecer que os diversos casos sejam processados conjuntamente e, se assim for,
que consequências é que isso traz para a matéria da competência.
Aqui, temos dois conceitos distintos: a conexão, que corresponde à junção de dois
ou mais diferentes processos; e a competência em função da conexão. Há casos em que a
conexão não tem qualquer efeito sobre a competência. Mas há outros que afeta e é nesses
casos, em que há um desvio da competência em virtude da conexão, que se fala da
competência por conexão.
Assim, em primeiro lugar, é necessário verificar em que casos é devida a conexão e,
quando ela seja devida e realizada, é que se vai avaliar os possíveis efeitos da conexão
sobre a matéria da competência.
A matéria da conexão está definida nos arts. 24º a 26º; 29º a 31º CPP e a
competência por conexão consta dos arts. 27º e 28º CPP.
A matéria da conexão tem um caráter transversal às várias fases do processo.
Aquelas normas, embora estejam localizadas no âmbito da competência, transcendem esta
matéria. Esta matéria contende com a questão de saber se se pode ou não proceder à
junção de processos e, portanto, valem para uma questão muito relevante: em que processo
é que se deve proceder ao processamento de certa matéria com relevo criminal. E a
premissa de que o legislador parte é a de que a cada crime deve corresponder o seu próprio
processo. A regra não é a da conexão, mas sim a do processo autónomo de cada crime: só
se pode proceder à conexão, em princípio, nos casos em que a lei prevê.
São, nomeadamente, razões de economia processual, de racionalidade do exercício
da justiça e unidade de julgados (evitar decisões contraditórias) que ditam a necessidade ou
a conveniência de se juntarem processos. Mas, para que se possa fazer a conexão, é
necessário que haja uma base legal para o efeito. Se não houver base lega, não se pode. E
esta posição de fundo vale para todas as fases processuais. Vale, desde logo, para o
inquérito: um dos grandes problemas da justiça portuguesa são os megaprocessos, os quais
resultam, a mais das vezes, de uma errada utilização/entendimento do regime conexão de
processos.
Qual é a base legal? Arts. 24º e 25º CPP. Temos aqui diversos tipos de conexão:
pessoal ou subjetiva, em que o polo agregador é a pessoa do agente; de natureza objetiva
ou material, em que se conexionam processos em virtude da materialidade do caso. No
caso da alínea a) do art. 24º/1, temos os casos designados de concurso ideal; na alínea b),
temos uma pluralidade criminosa, realizada através de várias ações, havendo uma
interligação entre os crimes, nomeadamente uma relação ou ligação de causa/efeito – há
uma ligação material. no art. 25º temos um outro caso de conexão subjetiva, mas em que os
crimes não têm nada a ver uns com os outros. A lógica subjacente é a seguinte: do facto de

27
alguém cometer uma pluralidade de crimes, não resulta, necessariamente, que ele tenha
objeto de um processamento conjunto, independentemente da ligação material. E, nessa
medida, nos casos em que não há nenhuma interconexão material entre os casos, não
cabem em nenhum dos preceitos relativos à conexão. A conexão que existe no art. 25º é
territorial.
Voltando ao art. 24º: na alínea c), temos um caso de unidade criminosa, um só crime
cometido por uma pluralidade de pessoas.; na alínea d), é a mesma lógica da alínea b), mas
em casos de comparticipação; na alínea e), temos uma reciprocidade conjunta (não uma
comparticipação); na alínea f), foi introduzida recentemente, colmatou-se uma lacuna
relativa à responsabilidade da pessoa coletiva.
O art. 24º/2 só permite a conexão em processos que se encontre no inquérito,
instrução e julgamento e desde que se encontrem na mesma fase processual. Daqui resulta
que não se podem conexionar processos que já se encontrem na fase de recurso e, mesmo
em relação àqueles, que se encontrem em fases processuais anteriores, não se admite a
conexão, por razões de economia processual, mas que se encontrem em fases distintas. Na
linha do combate aos megaprocessos, veio o nº 3: trata de casos em que temos dois ou
mais processos que se encontrem na mesma fase processual e que ainda não se decidiu se
se vai fazer a conexão; nestes casos, a conexão não se operará quando seja previsível que
origine o incumprimento dos prazos de duração máxima da instrução ou o retardamento
excessivo desta fase processual ou da audiência de julgamento.
O art. 26º proíbe a conexão quando uns dos processos seja da competência de
tribunais de família e menores. Este preceito estabelece uma limitação à aplicação do art.
24º, nomeadamente à sua alínea a).
São razões de economia processual e de coerência e unidade da decisão judicial
que justificam a conexão processual. Se pode haver vantagens na conexão, também pode
dar-se o caso de a conexão gerar prejuízo para interesses do Estado ou de sujeitos
processuais; daí o art. 30º, que prevê a possibilidade de serem separados, após terem sido
conexionados. Boa parte destes casos carecem de um juízo do próprio tribunal e há, aqui,
um dado importante: ligação entre a matéria do art. 30º e a previsão do art. 31º-b): se temos
uma pluralidade de processos que se encontre conexionados e se se separarem o tribunal
originariamente competente (tribunal que decidiu da separação) continua a ser competente
para aquele caso – prorrogação de competência. Esta prorrogação visa dissuadir os
tribunais de separar os processos, mas tem um efeito inverso, a dos tribunais serem
relutantes a decretar a separação de processos. Esta prorrogação só tem lugar quando a
desligação dos processos é feita mediante a aplicação do art. 30º. Assim, quando acontecer
que o tribunal se aperceba que se depara ali com um cenário de conexão processual

28
indevidamente realizado, não se aplica o art. 30º e, não se aplicando o art. 30º, o tribunal
não mantem a competência, após a separação.
Agora vamos ver a competência por conexão: dos casos em que, da conexão,
resultam regras de competência distintas, isto quer do ponto de vista da competência
material quer da competência territorial.
O art. 27º fala de tribunais de diferente espécie – tribunal do júri, tribunal coletivo e
tribunal singular. Em termos de espécie (da mais para menos elevada), temos: tribunal de
júri, tribunal coletivo e, por último, tribunal singular. Em termos de hierarquia, isto é, em
casos de foro especial, temos: STJ, tribunal da Relação e tribunal de comarca.
No art. 28º, prevê-se a competência territorial determinada pela conexão. Em regra,
havendo uma pluralidade de crimes em que há conexão, prevalece o tribunal territorialmente
competente para o crime mais grave.
Na competência por conexão, temos um desvio de competência e o art. 31º-a) visa
ressalvar aqueles casos em que, por algum motivo, caia a imputação do crime que
determinou a competência por conexão. Nestas situações, ainda que o agente não venha a
responder por aquele crime, nem por isso o tribunal perde competência para continuar a
apreciar e julgar os mesmos crimes – a ideia, aqui, é quem pode o mais pode o menos. É
outro caso de prorrogação da competência por conexão.
Esta ideia da prorrogação da competência é aplicável àqueles casos em que o
tribunal altera a qualificação jurídica dos factos e passa de um crime mais grave9 para um
crime menos grave, seja por força de uma alteração dos factos seja tão-só em virtude de
uma interpretação jurídica diferente daquela feita pelo MP. A lógica da prorrogação da
competência mantém-se.

5.6. Verificação da incompetência


O tribunal recebe o processo, não vai atrás dele. E quem lhe entrega o processo
deve ter em conta as regras da competência do tribunal.
Quando o MP deduz acusação ou quando o juiz de instrução emite o despacho de
pronuncia, remete o processo para o tribunal que lhes parece competente. Em regra, o
tribunal recebe o processo porque lhe é enviado. Quando o tribunal recebe o processo deve,
antes de mais, seja em que momento for, verificar se dispõe de competência para intervir
naquele caso (na fase de julgamento, isto faz-se no saneamento do processo, art. 311º). O
tribunal, aqui, tem plena autonomia para aplicar o direito que incide sobre a matéria da
competência – competência da competência.

9
Mas já não quando passa para um crime menos grave: aqui, o tribunal deve, no saneamento do processo,
proceder à alteração da qualificação jurídica e declarar-se incompetente.

29
O tribunal atua, aqui tal como em geral, com independência. E pode acontecer que o
tribunal discorde da qualificação jurídica que é adota pelo MP na acusação. O tribunal não
está vinculado à qualificação jurídica dos factos, nomeadamente para efeitos de
determinação da competência, que foi adotada pelo MP ou pelo juiz de instrução. Nestes
casos, deve alterar a qualificação jurídica e declarar a sua incompetência.
Das duas uma: ou tribunal conclui que dispõe de competência (material, funcional e
territorial) e, portanto, declara-se competente; ou conclui que não dispõe de competência
(material, funcional ou territorial) e, aqui, deve declarar-se incompetente. A lei distingue
entre os diversos tipos de competência: a competência material e funcional é mais relevante
– tendo em vista os direitos do arguido – do que a competência territorial e, portanto, o
legislador é menos exigente quanto à incompetência territorial: art. 32º/2 CPP.
A incompetência pode ser declarada oficiosamente ou a requerimento de algum
sujeito processual, art. 32º/1 CPP.
Da decisão que declara a incompetência, deve o tribunal fazer o que está previsto no
art. 33º/1: remeter o processo para o tribunal competente. Daquela decisão, não cabe
recurso, há um meio processual especifico, próprio para averiguar eventuais dissidências no
que toca à competência. A via é a do conflito de competência. Se, pelo contrário, for
suscitada a incompetência do tribunal e este não se declarar incompetente, dessa decisão,
pode ser interposto recurso. Recurso que só sobe a final.
Pode acontecer que, no processo, tenha intervindo e praticado atos processuais o
tribunal incompetente e, quando assim seja, vale o disposto no art. 119º-e), que estabelece
a nulidade insanável. O legislador entendeu que, neste caso, está em causa a ofensa a um
principio fundamental – princípio do juiz natural – e, nessa medida, os atos praticados pelo
tribunal incompetente padecem de uma nulidade insanável. Isto, sem prejuízo do disposto
no art. 32º/2.
Uma vez declarada a incompetência, diz o art. 33º/1 e 2, que o processo é remetido
para o tribunal competente e este ativa a nulidade insanável prevista no art. 119º-e),
ordenando a repetição dos atos necessários para conhecer da causa. O tribunal pode,
todavia, manter alguns atos: os atos que teria praticado se perante ele tivesse corrido o
processo.

5.7. Conflitos de competência


Caso em que há mais do que um tribunal que se declara competente ou,
inversamente, casos em quem dois ou mais tribunais negam serem competentes para certo
processo – isto é o que se designa de conflito de competência: positivo, no primeiro caso;
negativo, no segundo.

30
Nestes casos, caberá a um tribunal decidir o respetivo conflito. O tribunal competente
para decidir deste conflito é o tribunal da Relação, nos casos previstos no art. 12º/2-a) e o
STJ, nos casos previstos no art. 11º/4-e).

III. Ministério Público

1. Estatuto constitucional e legal


O MP é uma autoridade judiciária, nos termos do art. 1º-b) CPP, e encontra-se
referenciada na CRP, nos arts. 219º e 220º. Nesta matéria, releva também o EMP.
O MP é concebido como um órgão da administração da justiça, que tem uma
estrutura hierarquizada em pirâmide e que tem no seu topo o PGR.
A magistratura do MP foi instituída, no contexto do processo penal, para
desempenhar funções de exercício da ação penal, para representar o interesse punitivo do
Estado e para promover o processo penal. No art. 219º CRP indicam-se as funções do MP,
com relevo direto para o processo penal: a de participar na execução da politica criminal e a
de exercer a ação penal orientado pelo principio da legalidade. O nº 2 do mesmo preceito
reporta-se ao MP órgão: quando se fala de autonomia é de autonomia do órgão MP.
Quando a CRP se pretende referir aos membros do MP, fá-lo no nº4 do art. 219º. Temos,
então, que o MP é um órgão autónomo e os seus magistrados – magistrados, porque
exercem poderes de autoridade – são hierarquicamente subordinados.
O EMP, a partir do art. 12º, indica quais são os órgãos do MP e quem é magistrado
do MP. No art. 12º determina-se que são órgãos do MP: a Procuradoria-Geral da República,
que é encabeçada pelo procurador geral da república 10; as procuradorias-gerais regionais; e
as procuradorias da República de comarca e as procuradorias da República administrativas
e fiscais. Isto, em termos orgânicos. O art. 13º indica, por ordem decrescente de relevância
hierárquica, os vários magistrados do MP.
O magistrado máximo do MP é o procurador geral da república, cuja designação
(nomeação), nos termos do art. 133º-m) CRP, é feita pelo PR, sob proposta do Governo. É
também ao PR, sob proposta do Governo, que cumpre a exoneração daquele magistrado.
Temos aqui uma legitimidade material: são órgãos de soberania de natureza política que
designam o procurador geral da república. O seu mandato é de seis anos nos termos art.
220º CRP.
Esta ideia de legitimação material deve ligar-se às características fundamentais do
MP, nomeadamente à ideia de autonomia externa do MP, que implica uma independência
do MP perante outros poderes do Estado, nomeadamente perante o poder executivo. Daí
que, uma vez designado o procurador geral da república, cessa a ligação do MP ao PR e ao
10
Atualmente, Lucília Gago.

31
Governo. E é justamente esta ideia de autonomia que vem sendo invocada pelo atual
Governo e PR para não renovar mandatos do PGR11. A CRP não diz se o seu mandato é ou
não prorrogável. Independentemente da questão da admissibilidade da renovação do
mandato, a posição assumida pelo atua poder executivo e PR foi a de que era desejável que
o procurador geral da república exerça só um mandato, em prol da autonomia do MP.
A magistratura do MP desempenha, no processo penal, funções de enorme
importância e cabe-lhe, antes de mais, a função de promoção do processo penal e, por isso,
vemos o art. 48º CPP. A isto, liga-se a atribuição da direção do inquérito ao MP. A sua
institucionalização é fundamental para garantir a natureza acusatória do processo penal. O
MP foi criado e desenvolveu-se neste contexto de promoção numa matriz acusatória, de
forma a assegurar que temos um outro órgão estadual – distinto do tribunal – que exerce a
ação penal. E estas funções, por seu turno, justificam uma certa modelação do MP: há, aqui,
uma relação de recíproca influência entre a forma como o MP está desenhado e as funções
que ele deve desempenhar. Esta conceção do MP enquanto magistratura autónoma e
hierarquizada não é nada que esteja inscrito na natureza das coisas, mas sim de decisões
politicas de fundo. As quais, por sua vez, têm muito que ver com o próprio processo penal e
com o papel que o MP desempenha no processo penal: não há um processo penal de
estrutura acusatória em sentido próprio sem um MP autónomo.
Um dos princípios fundamentais que caracteriza o MP é justamente o princípio da
autonomia, art. 219º/2 CRP. É no EMP que, depois, encontramos uma caracterização da
autonomia (art. 3º/1 e 2) – é a sujeição a critérios de legalidade e de objetividade (jurídica)
que caracteriza a autonomia do MP. Essa mesma ideia é reiterada pelo art. 53º CPP. Neste
preceito é ainda referido que compete ao MP colaborar com o tribunal na descoberta da
verdade e na realização da justiça e isto tem que ver com a caracterização deste órgão
como órgão de administração da justiça. E deve fazê-lo tendo como princípio retor a
legalidade.
O princípio da autonomia, na sua vertente de objetividade e legalidade, também tem
uma influencia determinante no modo como o MP exerce as suas funções no processo
penal. O MP não age no processo como uma parte – não prossegue interesses pessoais ou
funcionais próprios. Esta ideia de que o MP não é parte é muito difícil de concretizar na
prática, mas passa, nomeadamente, por uma preocupação com a realização da justiça, seja
qual for o desfecho da lide – para o Estado interessa tanto a condenação dos culpados
como a absolvição dos inocentes. E é nessa medida que dizemos que o nosso processo
penal é um processo de sujeitos processuais. Esta ideia de que o MP age como um sujeito e
não como uma parte depois manifesta-se em vários sentidos, designadamente no sentido

11
No caso da antiga procuradora geral da república Joana Marques Vidal. Note-se que já houve procuradores
gerais de república que viram o seu mandato prorrogado.

32
de o MP deve procurar todos os elementos de prova que permitam esclarecer cabalmente
os factos objeto do processo, sejam eles de natureza incriminatória sejam eles de natureza
absolutória. Por isso se fala aqui que o MP atua a charge e a decharge – o que se quer
enfatizar é que o MP não atua de forma persecutória. Esta ideia é expressamente
referenciada no art. 104º/4 EMP. Isto vale quer na fase de inquérito quer nas fases
processuais ulteriores, quanto à ponderação e posição a tomar em relação às provas
produzidas no processo. Assim, serão ilegais e, portanto, não deverão ser seguidas,
quaisquer ordens ou instruções dirigidas ao magistrado do MP que vão de encontro a este
mandamento.
Uma outra manifestação de que o nosso processo penal não é um processo de
partes é a legitimidade processual para interpor recurso no exclusivo interesse do arguido,
art. 401º/1-a) CPP. Àquela exigência (de legalidade e de estrita objetividade) liga-se uma
exigência de lealdade/honestidade: que se traduz no facto de este não dever adotar
comportamentos processuais contraditórios com aqueles que anteriormente assumiu. O MP
é um órgão uno e indivisível (característica da unidade e indivisibilidade): quando algum
magistrado do MP assume uma posição processual, não o faz em nome próprio, fá-lo em
nome do MP e, nesse sentido, os outros magistrados do MP que, por ventura, entrem
depois no processo não podem desconsiderar aquilo que foi outrora assumido por outro
magistrado do MP no mesmo processo – não podem dar o dito como não dito. Daqui não
resulta a possibilidade de o MP, ao longo do processo, mudar de posição, nomeadamente
quando as provas levam a uma reconsideração daquilo que antes foi assumido. O que não é
admissível é: perante o mesmo quadro de circunstâncias, o MP contradizer-se, sob pena de
se violar o princípio da legalidade.
Em julgamento, o MP convenceu-se de que o arguido deve ser absolvido e, na
audiência de julgamento, alega que o arguido deve ser absolvido. Depois do MP assumir
essa posição e depois do tribunal concordar com ela, o MP interpõe recurso a pedir a
condenação do arguido: isso seria um venire contra factum proprio. Esta é uma questão que
suscitou alguma controvérsia e o STJ veio, no Ac. nº 2/2011, adotar a posição sufragada por
FIGUEIREDO DIAS. Esta problemática é muito frequente porque, na prática, existe uma
divisão de funções entre os magistrados do MP: o procurador que está no julgamento é
diferente do procurador que dirige a investigação. A esta problemática junta-se a
circunstância de os magistrados do MP, na fase de julgamento, pese embora concordem
com a absolvição, não se pronunciarem nesse sentido, para não obstar a que, na fase de
recurso, um outro magistrado do MP interponha recurso sem carecer de legitimidade
processual.
O princípio da autonomia manifesta-se nestas exigências de legalidade e de
objetividade e significa também a ausência de subordinação a outros poderes do Estado e

33
esta caracterização é expressamente consagrada pelo art. 3º/1 EMP. Em matéria de
autonomia, temos de distinguir a vertente externa da vertente interna: o MP tem autonomia
externa, mas não há nada de equivalente à independia judicial interna no âmbito do MP. Os
magistrados do MP não são independentes entre si, a relação entre eles é de hierarquia/ de
supra/infra ordenação. E, por isso, é que no MP falamos de autonomia e não de
independência.
O grande problema, quanto à autonomia, prende-se com a possibilidade da
magistratura do MP e os seus magistrados se encontrarem vinculados ao poder executivo: o
governo pode mandar no MP? Aqui há dois modelos: modelo de dependência, em que
existe alguma subordinação do MP ao poder executivo e político e temos uma solução de
independência em que a magistratura do MP está à margem do poder político e não está
subordinada ao poder executivo. No nosso ordenamento jurídico vigora o segundo modelo.
O que se visa salvaguardar com estes modelos é o princípio da separação de poderes: visa-
se impedir que, de facto, quem exerça a ação penal seja o poder politico-executivo. Visa-se,
no fundo, evitar a instrumentalização do processo penal para fins políticos. Note-se que esta
autonomia externa do MP vai contender diretamente com a independência dos juízes: os
juízes só julgam aquilo que lhes é apresentado pelo MP. O princípio da autonomia externa
traduz-se num dever de abstenção política na condução dos processos.
Pode haver, porém, mais formas de condicionar a atividade do MP, vg. definição dos
meios à disposição do MP e dos OPC para o exercício das respetivas funções. Assim, p.
ex., a dependência financeira do MP face ao ministério da justiça torna o MP vulnerável
numa perspetiva mais macro. Este é um problema real do nosso MP.
A questão da autonomia externa do MP é uma questão tratada internacionalmente e
tendência tem sido a do reforço dessa autonomia, que é patente na criação da procuradoria
europeia (cuja atividade é vocacionada para os crimes contra os interesses financeiros da
UE) e na discussão que tem havido relativo ao mandato de detenção europeu,
designadamente a de saber se este pode ser emitido por um MP que tenha algum tipo
vinculação ao poder executivo. A exigência de autonomia externa é regulada na diretiva
sobre o mandato de detenção europeu.
Tradicionalmente, a questão da autonomia externa do MP é colocada em face ao
poder político, porém, partir do momento em que se adota um sistema acusatório, também
decorre a necessidade de aquela autonomia se projetar no confronto com o poder judicial.
Num sistema deste tipo, dúvidas não pode haver de que um juiz não pode direta ou
indiretamente influir no exercício da ação penal. Daí que o juiz não tenha nenhum poder de
comando sobre os magistrados do MP, p. ex. não pode dar ordens ao MP e deve abster-se
de tecer considerações sobre a forma como o MP desenvolve a sua atividade investigatória.

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A exigência de autonomia projeta-se também numa exigência de imparcialidade: os
magistrados do MP devem ser isentos e não pode haver dúvidas sobre a sua capacidade
para o exercício da sua atividade de forma isenta, imparcial e neutral. Daí que o art. 54º/1
CPP alargue o regime dos impedimentos, escusas e recusas aos magistrados do MP.
Também, em certos casos, não é admissível a intervenção do magistrado do MP quando
tenha tido uma intervenção prévia no processo numa qualidade distinta da de magistrado do
MP.
Qual a extensão da aplicação do regime dos impedimentos? Há que distinguir dois
tipos de casos. Quando se trate de impedimentos por participação anterior em processo
numa qualidade distinta da de procurador do MP, os impedimentos previstos no art. 39º,
aplicam-se. Coisa diferente vale para as situações em que um certo procurador interveio
anteriormente no processo enquanto tal. Aqui, o procurador do MP não está impedido, os
impedimentos previstos no art. 40º não se aplicam aos magistrados do MP, pois a razão a
eles subjacente – o poder decisório e a não existência de preconceções relativa à
responsabilidade do arguido – não se coloca aqui, sendo até desejável uma continuidade do
magistrado no processo.
Uma outra característica que se liga ao principio da autonomia contende com o seu
modelo de organização e funcionamento. É de todo o interesse, em prol da autonomia do
MP, que o MP se organize de forma hierárquica. O princípio da hierarquia tem previsão
constitucional no art. 219º. A subordinação hierárquica constitui uma marca fundamental do
princípio da autonomia do MP e constitui ainda um ponto diferenciador relativo ao princípio
da independência judicial. Essa diferença é justificável e desejável em virtude das diferentes
funções exercidas por cada magistratura.
A hierarquia projeta-se em várias direções: no poder de direção/de comando; no
poder de supervisão; e no poder disciplinar. E cada um destes poderes tem previsão e
densificação no EMP e, por seu turno, tem relevância na forma como o MP intervém no
processo penal. O poder principal é o de direção.
O poder de direção consiste na possibilidade juridicamente reconhecida de o superior
hierárquico determinar os termos de atuação dos estratos inferiores de hierárquica ou de um
seu subordinado. E, dentro do poder de direção, podemos ter um poder de direção geral e
específico: em geral, quando se trata da possibilidade, prevista desde logo no art. 3º EMP,
de a hierarquia emitir comandos de caráter geral para um conjunto alargado e abstrato de
casos, através de diretivas e instruções – traduz-se na definição de linhas de ação de forma
geral e abstrata –, de modo a dar uniformidade às linhas de atuação do MP; em específico,
quando incide sobre a conduta processual que o MP deverá adotar especificamente num
certo processo penal. Este poder de direção concreto, que se manifesta em ordens, que são
distintas de diretivas, está previsto no art. 3º/2 EMP. A questão que se vem colocando é se

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este poder de direção concreto também vale no processo penal, em especial na condução
do inquérito? Aqui, a doutrina e a própria magistratura do MP estão divididas. O problema
ganhou ainda mais relevo com o caso de Tancos: note-se que a existência do dever de
obediência pressupõe que a matéria-objeto integra o poder de direção. Existe ou não este
poder de direção concreto em sede de inquérito? Há quem repudie a existência deste poder,
alegando que, por esta via, estaria aberta a possibilidade de o poder político interferir na
condução das investigações criminais. A posição largamente dominante na doutrina aponta
num sentido distinto: aquilo que é conatural ao poder de direção é o poder de dar ordens e,
se o cerne da função é o exercício da ação penal, não seria consentâneo com o principio da
hierarquia, constitucionalmente consagrado, negar a existência deste poder de direção
concreto. Esta visão foi assumida num parecer pela Procuradoria Geral da República e
acolhida pelo CSMP e pela procuradora geral da república.
O poder de direção está previsto no art. 3º e os seus limites estão previstos no art.
100º/3 do EMP. Os agentes do MP como magistrados tem um duplo significado: por um
lado, estes agentes desempenham poderes de autoridade; por outro lado, estes agentes
encontram-se apenas subordinados à lei e ao direito. a vinculação ao princípio da legalidade
e a consideração do MP como órgão de administração da justiça implica uma estrita
sujeição a critérios da legalidade. Assim, estes magistrados não têm um dever de
obediência a ordens ou instruções ilegais, art. 100º/3 EMP. No âmbito da administração em
geral, os funcionários estão sujeitos ao dever de obediência às designadas ordens ilegais; o
MP não tem esse dever. Além disso, os magistrados do MP podem recusar ordens, diretivas
e instruções com fundamento na grave violação da sua consciência jurídica. Mas, neste
caso, pode o magistrado ser substituído. Assim, o poder de direção tem o limite da
legalidade e quando estejam em causa questões de consciência
O poder de supervisão consiste na prorrogativa de revogar, substituir ou alterar
decisões já tomadas por um subordinado. No processo penal, é um poder limitado: só
naqueles casos em que a própria lei processual penal admite uma intervenção hierárquica é
que este deve ser admitido, art. 87º EMP. Há um conjunto de normas (arts. 59º 61, 72º, 75º
e 87º EMP) que dão competência para intervir hierarquicamente no âmbito do processo
penal e tem-se entendido que esta intervenção hierárquica abrange somente o poder de
supervisão e não o poder de direção. Só em casos contados é que o CPP refere
expressamente essa intervenção hierárquica, isto porque se considera que, uma vez
tomada uma decisão pelo MP, decisões rescisórias podem acabar por perturbar a atuação
dos demais sujeitos processuais. Este caráter residual da intervenção hierárquica, através
de um poder de supervisão, não é consensual na doutrina.

2. Funções e poderes processuais

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A CRP atribui ao MP a função de promoção do processo, confiando-lhe o exercício
da ação penal. Essa função está igualmente prevista no art. 48º CPP, que consagra o
princípio da oficialidade. Esta função de promoção do processo penal tem caráter legal e
uma base constitucional. E daqui decorrem várias consequências, designadamente a
decisão sobre a abertura da investigação criminal, a decisão sobre a realização da
instigação criminal e a decisão de acusar ou arquivar sejam da exclusiva competência do
MP, arts. 262º e 263º CPP. Um problema de fundo é a cada vez maior diluição de fronteiras
entre o que é a investigação criminal e a politica de segurança e da informação secreta.
Teoricamente, o processo penal serve para processar factos passados e a prevenção
criminal serve para evitar perturbações na ordem pública, designadamente evitar a prática
de crimes. A distinção afigura-se, em abstrato, fácil. Porém, o que vem acontecendo é uma
cada vez maior dificuldade de separação entre os planos e uma propensão de vários órgãos
para desenvolver investigações à margem do processo criminal e do MP. A par da
criminalidade económica e branqueamento de capitais, uma outra vertente em que as
fronteiras estão diluídas é a do terrorismo. Esta diluição faz com que certo tipo de
investigações fique à margem do processo penal e das garantias que visa assegurar. Isto,
depois, implica uma outra coisa: sempre que há noticia de um crime, há lugar à abertura do
inquérito (vg. arts. 243º/3; 245º) e é ao MP que compete decidir a abertura do processo
penal. Esta atribuição não é à toa: é em face do estatuto constitucional e legal do MP, sob
pena da abertura do inquérito ficar deixada ao arbítrio de entidades que não dão as
garantias que o MP dá. Assim, uma lei que preveja que uma entidade que não o MP seja
competente para a abertura do inquérito é inconstitucional, por violação do art. 219º CRP.
Ver Ac. TC nº 105/2004.
Uma vez aberto o inquérito, a direção da investigação cabe ao MP, arts. 53º e 263º
CPP. É ao MP que cabe definir as linhas essenciais relativas à estratégia da investigação
criminal. Assim, aquilo que diga respeito à investigação criminal é, antes demais, da
competência do MP. Pode haver a necessidade de, no inquérito, se realizarem atos que
afetem DLG, e, nesse caso, é necessária a intervenção do juiz de instrução. Quando não
estejam em causa este tipo de atos, o juiz de instrução não tem competência para intervir.
Pode acontecer que o MP necessite de contar com a colaboração de outros órgãos,
nomeadamente de OPC e, quando assim seja, põe-se a questão de saber em que termos
deve ocorrer essa intervenção?

3. Relação com os órgãos de polícia criminal


No âmbito do inquérito, o MP conta com a colaboração dos OPC. Porque é que isso
acontece? Por um lado, por causa da falta de meios (nomeadamente, de recursos

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humanos), por outro lado, por haver necessidades específicas de competências de
investigação que os OPC possuem e os magistrados do MP não.
Quando os OPC são chamados ao processo, desempenham funções de
investigação criminal. Além destas, sabemos que as OPC desempenham funções de
prevenção de crimes. Mas, no âmbito do processo penal, os OPC desempenham funções
de investigação de um acontecimento passado, vai exercer uma função judiciária.
Não são todas as polícias, não é qualquer entidade policial que detém a qualidade de
OPC, o art. 1º-c) CPC. Entre nós, temos três OPC de competência genérica, que se
encontram enunciados na Lei nº 49/2008; depois, temos OPC de competência especifica, p.
ex. SEF; AT; SS; PM, estas não são necessariamente policiais.
Como é que num processo penal o MP chama para a investigação criminal um certo
OPC? Isso faz-se nos termos do art. 270º CPP, através de um ato de delegação. Essa
delegação de competência pode ser feita em concreto para um certo processo ad hoc, mas
também pode assumir natureza genérica, nos termos do nº 4 daquele preceito – através da
emissão por parte da PGR de um despacho genérico de delegação de competências. A
questão que se põe é: a partir dali, em que termos se processa a relação entre o MP e os
OPC?
Antes de responder àquela questão, vamos resolver outra: em que termos é que o
MP define o OPC que o irá coadjuvar num dado processo criminal? O MP deve ter em
atenção LOIC, nomeadamente as atribuições de competência que aí se preveem,
principalmente no seu art. 7º. Esta norma diz respeito à investigação criminal e densifica o
art. 270º quanto aos termos em que pode ser efetuada a delegação de competência. Na
prática judiciária portuguesa, esta lei é letra morta. Quando há uma desconformidade entre
aquilo que se faz no processo e aquilo que a lei prevê, existe uma irregularidade/invalidade.
Pese embora, existam acórdãos da Relação que digam o contrário, defendendo que se trata
de matéria administrativa e que, portanto, está no âmbito da discricionariedade do MP.
Sendo delegada a competência num certo OPC, ele poderá e deverá desenvolver os
atos de investigação criminal sob a direção do MP. Esta colaboração que o MP poderá
receber do OPC não pode implicar uma pura e simples demissão do MP do papel de direção
que lhe cabe. A relação que se estabelece entre o MP e os OPC é, nos termos do art. 56º
CPP, uma relação de dependência funcional – isto é, no que diz respeito à realização da
investigação, o OPC encontra-se numa relação de subordinação relativamente ao MP.
Dependência funcional, porque diz respeito ao exercício daquela função da realização de
investigação criminal e só para aquela e, no mais – definição da organização, alocação dos
meios, quanto ao exercício da ação disciplinar – está à margem daquela relação. O poder
do MP sobre os OPC é um poder muito limitado. Isto pode levar a incongruências na prática.

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Sendo concluída a investigação, é ao MP que, de forma exclusiva, cabe a decisão
sobre o encerramento do inquérito. Significa isto que o MP, quando analisa as provas com
vista a decidir se há ou não indícios suficientes da prática de crime e de quem foi o seu
agente, fá-lo de forma completamente autónoma, não deve obediência a ninguém externo
ao MP. E, por isso, não pode, p. ex., um juiz ordenar ao MP que acuse.
Passando o caso para as fases subsequentes, o MP passa a ter um papel
substancialmente distinto no processo: enquanto que, no inquérito, é o titular do processo; a
partir do momento em que o inquérito finda, deixa de ser o titular do processo e passa a
intervir numa qualidade diferente – sustenta efetivamente a acusação na instrução e no
julgamento, art. 53º/2-d) CPP. Cabe, assim, procurar mostrar, com a produção de prova, a
procedência da imputação dirigida ao acusado e deve fazê-lo sempre tendo em conta as
características de isenção e objetividade – e, portanto, não deve a todo custo fazer com que
a acusação valha.
Na fase de recurso, o MP além de ter legitimidade para recorrer, seja no interesse da
acusação seja no interesse do arguido, quando seja interposto recurso por um outro sujeito
processual, é igualmente chamado a responder ao recurso – é possível que mesmo em
recursos interpostos pelo MP a posição assumida pelo MP não coincida com a do colega
que interveio a montante, isto põe em causa a unidade e indivisibilidade desta magistratura.
O MP também intervém na fase de execução da pena: promoção da execução da pena,
arts. 53º/2-e) e 469º CPP.

IV. Assistente

1. Introdução
O assistente é um sujeito processual e, por isso, é titular de um conjunto amplo de
direitos processuais que lhe permitem influir constitutivamente na decisão final. O seu
estatuto processual está previsto nos arts. 68º e ss. CPP.
Quando a lei fala em assistente, é no sentido de assistente do MP: quando o
assistente intervém no processo, atua como colaborador do MP e a sua atividade é
subordinada à atividade deste, art. 69º/1 CPP.
É através da figura do assistente que os particulares, designadamente as vítimas da
prática de um crime, têm oportunidade de participar ativamente no processo penal. O
assistente é, por excelência, o ofendido pela prática do crime.
Por ser, em regra, o ofendido pela prática do crime, os assistentes têm, no processo
penal, um interesse muito próprio – atente-se que essa participação direta e ativa do
ofendido só será viável se ele se constituir assistente.

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A categoria do assistente tem uma tradição longa entre nós e a forma de
compreender a configuração atual da figura do assistente passa também por compreender a
evolução que esta figura teve ao longo dos tempos no processo penal, que remonta à época
das ordenações. P. ex. a formulação de ofendido nos termos do art. 68º/1-a) remonta a
BELEZA DOS SANTOS.
Como dissemos, a figura do assistente convoca interesses antinómicos,
conflituantes, que têm de ser tidos em conta na definição do estatuto e do conteúdo da
respetiva atividade processual: por um lado, temos o facto de o processo penal ser um
processo público, da competência do Estado e cuja iniciativa lhe compete, e, nessa medida,
aos particulares são dados poderes de intervenção processual bastante limitados,
precisamente, em função da publicização do processual e de um tendencial afastamento da
matriz civilizacional/privada do processo penal – este interesse leva, assim, a uma grande
relutância em conceder poderes processuais fortes às vitimas; por outro lado, ao lado do
designado movimento vitimológico – que aponta do dedo ao Estado, afirmando que, ao
publicizar o processo penal, acabou por furtar o conflito à vitima – temos o interesse dos
ofendidos em participar ativa e constitutivamente no respetivo processo.
Apesar de tudo, o nosso processo penal permite satisfazer em boa medida as
reivindicações daquele movimento sem desconsiderar a natureza pública do processo.
Dissemos que é através da figura do assistente que o ofendido terá oportunidade de
participar ativamente na marcha do processo. Mas, mesmo quanto ao conteúdo do estatuto
deste sujeito, é preciso ter igualmente em conta aquele conflito de interesses: de um lado, a
natureza pública do processo e a função do direito penal de tutela de bens jurídicos, de
outro o interesse do ofendido em participar no processo. Em suma, toda a análise do
estatuto do assistente vai sempre ter subjacente este conflito de interesses.
A figura do assistente está ligada, essencialmente, à figura do ofendido. Em regra,
quem pode constituir-se assistente é o ofendido e ofendido é o titular dos interesses que a
lei quis especialmente proteger com a incriminação, art. 68º/1-a) CPP. Porém, pode não
haver coincidência entre estes dois sujeitos: há casos em que um sujeito pode constituir-se
como assistente e não é ofendido e há casos em que o sujeito é ofendido e não pode
constituir-se como assistente. Numa outra perspetiva, um e mesmo sujeito pode,
simultaneamente, assumir várias vestes processuais: a de ofendido; a de assistente; a de
vitima; e, ainda, a de lesado.
A vitima é um conceito criminológico, previsto no art. 67º-A CPP, e que não se
confunde com o conceito de ofendido: podemos ter ofendidos que não são vítimas e vítimas
que não são ofendidos. O que releva para efeitos de constituição de assistente é o conceito
de ofendido. Dados os escassos poderes processuais da vitima, a generalidade da doutrina
classifica este interveniente como mero participante processual.

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Em regra, a constituição de assistente não é obrigatória: o assistente é um sujeito
processual eventual – podemos ter um processo penal sem assistente. Isto, porque: nos
crimes públicos e semipúblicos12, a constituição de assistente não é condição de promoção
do processo penal. Quando dizemos que o assistente é um sujeito processual com caráter
eventual, queremos, no fundo, salientar que a constituição de assistente é um ato voluntário
do próprio, feito mediante requerimento. Mas, reforça-se, é só pela via da constituição do
assistente que o ofendido pode exercer aquele leque de poderes processuais que a lei
confere de modo a influenciar ativamente o decurso do processo.

2. Requisitos para a constituição de um sujeito como assistente.


Para que um sujeito se possa constituir como assistente, é necessário que estejam
verificados quatro requisitos cumulativamente: 1) a legitimidade processual; 2) a
tempestividade do pedido de constituição como assistente, isto é, é preciso respeitar o prazo
para formular o pedido; 3) a constituição de advogado; 4) e o pagamento da taxa de justiça
(1 UC).
Não é só ao tribunal que interessa conhecer bem estes pressupostos: o MP também
deve tê-los em conta, designadamente para exercer o contraditório; o defensor e arguido,
em virtude das iniciativas processuais que o assistente pode adotar e que conformam
ativamente o processo: requerimento de abertura de instrução; requerimentos de produção
de prova e a própria atividade probatória.

2.1. Legitimidade processual


A matéria da legitimidade processual está regulada no art. 68º CPP. A parte inicial do
nº1 é uma norma remissiva: há numerosos diplomas legais que preveem atribuições
específicas a certas pessoas da legitimidade para serem assistentes. Nas alíneas a), b), c) e
d) do nº1, a constituição de assistente funda-se imediata ou mediatamente na figura do
ofendido. Na alínea d), temos a chamada intervenção popular, um conceito de assistente
desvinculado do conceito de ofendido.
Constituição de assistente nos termos do art. 68º/1-a). Esta alínea visa a
constituição de assistente nos crimes públicos. Assim, nos crimes públicos, a legitimidade
para constituir-se assistente dá-se a quem é ofendido e será ofendido o titular dos
interesses que a lei quis especialmente proteger. A lei adotou um conceito restrito ou típico
de ofendido, defendido por BELEZA DOS SANTOS, e que se opõem a um conceito amplo,
que abrange também aqueles sujeitos que sofreram danos patrimoniais bem como aqueles
cujos interesses a lei quis tão-só mediatamente proteger.

12
O mesmo já não sucede nos crimes particulares: é necessária a constituição de assistente para que o
processo penal possa ser promovido.

41
Falamos em conceito (restrito ou) típico, porque se liga ao tipo incriminador que está
em causa, estabelecendo uma ligação estreita entre quem pode ser assistente e a função
do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídicos. É em função do interesse visado
especificamente pela incriminação que a lei vai delimitar quem pode constituir-se como
assistente. Assim, pode constituir-se como assistente quem for titular do bem jurídico. Não
é, portanto, qualquer interesse que releva: terá de ser o interesse que a incriminação
pretende proteger direta e imediatamente (e não reflexa ou mediatamente) – daí a
expressão legal “especialmente”, que tem um intuito restritivo.
Como é que o juiz determina que um sujeito pode constituir-se como assistente?
É, desde logo, preciso que o sujeito tenha legitimidade para tal. Para averiguarmos
da legitimidade, é necessário, desde logo, ter em conta o objeto do processo, isto é, a
matéria factual que está em causa: é tendo em conta a factualidade que o juiz vai qualificá-
la juridicamente, isto é, saber que crimes é que estão a ser imputados ao arguido, de modo
a identificar, depois, qual é o interesse que aquele crime visa proteger. Definido o interesse,
o bem jurídico, posto em causa com a prática do crime, é necessário averiguar se o sujeito
em causa é ou não o titular direto e imediato desse interesse, desse bem jurídico.
Se há casos em que este processo para saber se uma pessoa tem legitimidade para
se constituir como assistente se afigura fácil ou intuitivo, há outros em que é muito duvidoso.
Essa dificuldade é maior ou menor consoante os bens jurídicos em causa: há incriminações
que visam a proteção de interesses individuais e outras que visam interesses supra
individuais.
Nos bens jurídicos individuais, aqueles que são suscetíveis de serem divisíveis e
atribuíveis a uma certa pessoa, tende-se a distinguir entre os bens jurídicos pessoais, que
dizem respeito à esfera da pessoa, e bens jurídicos de caráter patrimonial. Quando se fala
em bens jurídicos pessoais, a coisa é simples: é ofendido a concreta pessoa diretamente
afetada/visada pela conduta típica. Já nos bens jurídicos individuais de caráter patrimonial, a
questão torna-se mais complexa e vem dividindo a doutrina e jurisprudência: dadas as
diversas feições de direitos que podem existir sobre os mesmos bens, podemos ter (várias)
pessoas que são prejudicadas pela conduta típica em diversas aceções. Em particular, no
âmbito dos direitos reais e obrigacionais, podemos ter uma pluralidade de pessoas afetadas
pela mesma conduta típica. E a questão é: que concretos interesses é que podem dar azo à
constituição como assistente? Foi sobretudo para estas situações que o conceito restrito de
ofendido foi consagrado, para limitar/restringir o leque de pessoas que se deve considerar
como ofendido. Nos crimes patrimoniais, este conceito restrito repercute-se em vários
sentidos: nos crimes contra a propriedade, ofendido é apenas o proprietário, pois é este o
titular do interesse que a lei quis especialmente proteger com a incriminação; já o locatário é
um titular de um interesse mediato. A jurisprudência do STJ tem dado um alcance mais

42
amplo, em virtude de uma conceção mais ampla de bem jurídico: no caso dos crimes contra
a propriedade, afirmam que o bem jurídico protegido é constituído simultaneamente pela
propriedade e pelo gozo da coisa, sendo ofendido não só o proprietário, mas também o
mero possuidor e detentor. É uma construção que suscita muitas reservas doutrinais,
nomeadamente por parte de COSTA ANDRADE13. Também se tem entendido que, quando
uma sociedade (ou, em geral, uma pessoa coletiva) sofre a prática de um crime patrimonial,
é ela própria e não também os seus sócios que deverá qualificar-se como ofendido. A
questão tem-se posto sobretudo nos crimes de infidelidade patrimonial e de abuso de
confiança.
Onde se torna mais problemático são os casos em que o interesse protegido pela
incriminação tem um caráter supra individual. Aqui também podemos distinguir: quando a
incriminação visa proteger interesses supra individuais e individuais, basta que haja
interesses individuais para, por essa via, se reconhecer legitimidade para a constituição
como assistente, p. ex. no crime de denuncia caluniosa, o caluniado. Mas pode haver
situações em que o bem jurídico seja exclusivamente supra individual, coletivo. Podemos
avançar já que, daqui, não resulta necessariamente a impossibilidade de haver legitimidade
para se constituir assistente por determinado sujeito que in casu tenha sido afetado pela
prática de um crime que vise proteger bens coletivos e que, por isso, esteja interessado na
proteção do bem jurídico-coletivo – a este sujeito designa-se de portador do bem jurídico. A
ideia acabada de tecer foi impulsionada por F IGUEIREDO DIAS E ANABELA MIRANDA
RODRIGUES, que vieram contrariar a tese até então dominante, segundo a qual se o bem
jurídico for coletivo, como o titular é toda a comunidade, não há hipótese de haver ofendido.
Aqueles AA. vierem defender que não se pode ignorar que, com o CP de 87, é só ou
maioritariamente através do ofendido que os particulares podem ativamente participar no
processo e, se fecharmos esta porta, fica excluída a participação dos particulares no
processo penal quando estejam em causa este tipo de crimes. Assim, mesmo nestes
crimes, pode haver algum particular que, naquela situação, encabece o interesse coletivo
que a lei quis proteger e, nesse caso, surge como o portador concreto daquele interesse
(interesse próprio desta pessoa é coincidente com o interesse coletivo). Este alargamento
do conceito de ofendido, quando estejam em causa bens supra individuais, tem sido seguido
na jurisprudência, designadamente no AUJ nº1/2003.
Constituição de assistente nos termos da alínea c) e d). A alínea d) deve ser
entendida juntamente com os arts. 13º e 17º CP. Na prática, a alínea a) vale para os crimes
púbicos e a alínea d) vale para os crimes semipúblicos e particulares, mas não há uma
diferença substancial nem normativa entre estas alíneas.

13
Ver anotação do AA. na RLJ.

43
Na alínea c) e d), temos uma ordem de sucessão para a constituição como
assistente. Não parece que haja motivo para distinguir, embora haja autores que distingam,
entre crimes públicos, de um lado, e semipúblicos e particulares, do outro.
Constituição de assistente nos termos da alínea e). Na alínea e) temos um caso
diferente: até agora vimos situações em que a legitimidade está ligada à qualidade de
ofendido, neste caso encontramos a atribuição de legitimidade em termos diferentes, na
medida em que prescreve um conceito de assistente desvinculado do conceito de ofendido.
Esta norma, na versão originária do CPP, tinha um alcance muito mais curto:
abrangia apenas para crimes de corrupção e peculato. A constituição de assistente
desvinculada da figura do assistente tem subjacente uma ideia muito antiga, que remonta às
Ordenações, de ação popular: estando em causa certos crimes praticados por funcionário, a
sua promoção processual devia caber não ao Estado, mas aos particulares e essa
possibilidade de processamento era concedida a qualquer do povo e designava-se de ação
penal popular. Esta ideia teve na sua base o facto de, se processamento deste tipo de
crimes ficasse nas mãos do Estado, podia nunca seguir em frente.
Foi isto que o CPP de 87 levou para a alínea e). Para tornar escrutinável e
transparente a ação do MP, quando estivessem em causa crimes contra o Estado,
normalmente cometidos por funcionário, alargar-se-ia o conceito de assistente. Sendo lógica
originária, a partir de 87, fomos assistimos a um alargamento sucessivo dos crimes que
permitem que qualquer pessoa se constitua assistente. Na medida em que a ação penal é
publica, não faz muito sentido em falar hoje de ação penal popular, mas a base deste
alargamento contende com as características do escrutínio e transparência que presidiam
àquela ação. É por esta via que se consegue viabilizar claramente a possibilidade de
abertura de instrução neste tipo de crimes e esta é a mais valia deste instituto. Porém, a
constituição como assistente ao abrigo da alínea e) tem sido usada e abusada para outros
fins extra processuais (menos merecedores): a possibilidade de constituição como
assistente nestes termos tem levado a que, em processos mediáticos, entrem no processo
pessoas que não estão interessadas em colaborar com a administração da justiça, mas,
antes, estão interessadas noutro tipo de fins – p. ex., no caso dos jornalistas, para terem
acesso mais rápido ao conteúdo do processo –, subvertendo o espírito legislativo para a
intervenção do assistente. Claro que deveria haver forma de pôr termo a estas condutas
abusivas e, na doutrina e jurisprudência, já começam a ensaiar mecanismos, como o abuso
de direito, para excluir do processo assistentes que abusem daquele direito. O instituto do
abuso de direito foi utilizado pelo juiz Ivo Rosa na Operação Marquês.

2.2. Tempestividade do requerimento para a constituição como assistente.

44
O requisito da tempestividade do requerimento para a constituição como assistente
está previsto no art. 68º/3 CPP.
A lei prevê varias janelas temporais dentro das quais o requerimento é considerado
tempestivo. A primeira janela é durante o inquérito: a qualquer momento se admite o
requerimento. Uma vez encerrado o inquérito, abrem-se duas janelas: se houver uma
acusação do MP e o ofendido nada quiser acrescentar, pode requerer a constituição no
prazo estabelecido para a dedução da acusação subordinada, que são dez dias a partir da
notificação ao ofendido da acusação pública; se houver interesse em requerer a instrução
(seja porque o MP arquivou seja porque o MP acusou, mas o assistente quer ampliar o
respetivo objeto), pode requerer a constituição no prazo disponível para requerer a abertura
da instrução, que são vinte dias. Se não for requerida a constituição de assistente em
nenhuma destas janelas e houver lugar a instrução, pode o ofendido requerer até cinco dias
antes da data marcada para o debate instrutório a sua constituição como assistente. Este
prazo foi estabelecido de modo a que o arguido possa saber com relativa antecedência
quem é que vai participar ativamente, o que assume relevo, p. ex., na suspensão provisória
do processo. Do ponto de vista do ofendido, a apresentação de requerimento nesta fase
pode ser, precisamente, para ou não dar o seu consentimento à suspensão provisória do
processo ou também para recorrer da decisão instrutória (400º/1-b) CPP) – é que a janela
que está prevista na alínea c), introduzida em 2015, só vale para a sentença, não para o
despacho de não pronuncia14. Transitado o caso para julgamento sem o interessado se
constituir como assistente, pode ainda constituir-se como tal até cinco dias antes da
audiência de julgamento. Se se tratar de processo sumário pode ser até ao início da
audiência nos termos do art. 388º. Depois de iniciada a audiência de julgamento, só se irá
abrir uma nova janela temporal quando for proferida a sentença, aí, o interessado poderá
constituir-se assistente no prazo de interposição do recurso (30 dias). Esta solução tem sido
muito criticada pela doutrina: o assistente é alguém que intervém no processo como
colaborador do MP e a intervenção do assistente só na fase de recurso é uma intervenção
como que à margem dessa colaboração com o MP e que não se coaduna com o estatuto
processual do assistente.

3. Procedimento para a constituição como assistente


Qual é o procedimento para a constituição como assistente?
Esta questão é decidida no âmbito de um incidente processual. Inicia-se com um
pedido feito pelo interessado e dirigido ao juiz nos termos do art. 68º/3, através do qual pede
para ser assistente no processo. Nesse requerimento, o interessado deve enunciar a
matéria factual, ainda que de forma sintética, em relação a qual se pretende constituir
14
Apesar de haver quem defenda que esta norma se deve estender ao despacho de não pronúncia.

45
assistente e fundamentar legal e factualmente a circunstância que o habilita a intervir no
processo como assistente.
Uma vez apresentado o requerimento, há lugar ao contraditório: o juiz deve ordenar
a notificação do MP e do arguido (se houver arguido constituído) nos termos do art. 68º/4
para se pronunciarem sobre o requerimento. Findo o período do contraditório, o juiz tomará
uma decisão: se for na fase de inquérito, a decisão é da competência do juiz de instrução;
se for na fase de instrução, o juiz competente é o juiz de instrução; se for requerido antes da
audiência de julgamento ou no prazo previsto na alínea c), a competência é do juiz de
julgamento. A decisão pode ser uma de duas: ou é indeferido ou é deferido. Neste caso,
profere o despacho de constituição de assistente e, desta decisão de deferimento, pode
haver interposição de recurso nos termos do art. 399º CPP. Da decisão de não admissão de
constituição de assistente, o requerente pode igualmente requerer recurso, o qual sobe de
imediato nos termos do art. 407º/2-g) CPP. Se se tratar de um caso em que não foi possível
obter o contraditório do arguido, porque ainda não foi constituído, pode interpor recurso
dessa decisão quando for constituído arguido.
Uma questão que se coloca com frequência na prática: esta decisão de constituição
de assistente forma caso julgado (formal)? Esta constituição de assistente só se manterá
enquanto subsistirem as circunstâncias com base nas quais aquele sujeito foi admitido a
intervir no processo enquanto assistente – é um caso julgado sujeito a uma condição rebus
sic stantibus. Se, por ventura, deixarem de subsistir aquelas circunstâncias – aquela
factualidade que conferia ao assistente a possibilidade de intervir no processo enquanto tal
–, perde-se essa qualidade processual.

4. Estatuto processual
O assistente ao longo do processo tem poderes de intervenção processual bastante
amplos e que levam à sua qualificação como sujeito processual.
Apesar da atividade do assistente ser subordinada à do MP, o assistente ainda goza
de alguma autonomia, nomeadamente no requerimento para abertura da instrução. E, ainda
ao longo do processo, pode o assistente adotar linhas diferentes daquelas preconizadas
pelo MP. A posição é de subordinação, mas com bastante autonomia vide parte final do art.
69º/1 CPP.
O assistente só tem direito a intervir nas matérias estritamente relacionadas com os
factos com base nos quais foi constituído como assistente: é em relação à matéria factual
que se liga ao assistente que este pode exercer os respetivos poderes processuais.
A intervenção do assistente releva ainda para efeitos de prova: não é indiferente o
ofendido estar no processo como ofendido ou estar no processo como assistente. No
primeiro caso, o ofendido é tratado como testemunha e é-lhe consequentemente aplicável o

46
regime da prova testemunhal (art. 348º CPP), designadamente é chamado a depor quando
as demais testemunhas forem, tem de prestar juramento e pode ser inquirido pelo MP e pelo
defensor. No segundo caso, é ouvido logo a seguir ao arguido e antes das testemunhas,
não presta juramento, apesar de ter o dever de responder com verdade (art. 359º versus art.
360º CP) e em audiência de julgamento é inquirido pelo próprio tribunal nos termos do art.
346º/1 CPP e não o MP.
Nas diversas fases processuais, que papel é que cabe ao assistente? A resposta
a esta pergunta está sintetizada no art. 69º CPP.
Uma das coisas que o assistente pode fazer durante o inquérito, é prestar auxilio
durante o inquérito, nomeadamente trazendo ao processo elementos de prova. E também
pode, na qualidade do assistente, requerer a produção de prova/diligências probatórias. Isto
mesmo está previsto na alínea a) do nº2. Claro que, para ter este tipo de contributo, será
útil ao assistente conhecer o conteúdo do inquérito. E quando é que o assistente pode
aceder ao processo? Quando o processo se tornar público – o inquérito é, em regra, público,
arts. 86º/6 e 89º CPP. Encontrando-se o processo em segredo de justiça, art. 86º/2 e 3, o
MP pode opor-se ao acesso do mesmo por parte do assistente.
Encerrado o inquérito, o assistente tem um papel fundamental: é aqui que se mostra
a natureza do assistente enquanto sujeito do processo penal, podendo, inclusive, tomar
posições processuais que colidem com posições do MP, vg. abertura da instrução. O
assistente tem, aqui, uma posição impar: sendo proferido o despacho de arquivamento, a
única forma de suscitar uma controlo judicial-externo é através da iniciativa do assistente –
conferindo-lhe alguma autonomia em face ao MP. Esta atribuição do assistente é
fundamental, porém, como vimos nem sempre é liquido que um interessado disponha de
legitimidade para ser assistente e só dispõe de legitimidade para requerer a abertura da
instrução quem se tenha (e tenha legitimidade para) constituído assistente. Neste sentido,
se alguém se constitui indevidamente assistente e requer a abertura da instrução pode (e
deve) ver esse requerimento indeferido por não ter legitimidade.
Quando o assistente requer a instrução, deve obedecer ao preceituado no art. 285º
e, por remissão, no art. 283º. Quando o MP arquiva, não há factos imputados ao arguido,
logo, quando o assistente requer a abertura da instrução, além de explicar as razões pelas
quais o MP decidiu mal, deve fazer a acusação que não foi feita ao arguido – este
requerimento de instrução será, nestes casos, uma espécie de recurso, mas também,
materialmente, uma espécie de acusação, daí a exigência de o requerimento obedecer ao
preceituado no art. 283º/3º CPP.
Nos casos em que o MP acusa, é ou não admissível o requerimento para abertura da
instrução pelo assistente? Pode haver casos em que, do ponto de vista do assistente, a
acusação pública ficou aquém do devido. E, neste caso, temos de distinguir entre factos que

47
importam uma alteração substancial da acusação e os que factos que não envolvem esta
alteração: no primeiro caso, só em sede de requerimento de abertura da instrução é que
estes podem ser integrados no objeto do processo e, por tanto, considerados no processo e
pelo tribunal – é o requerimento de abertura da instrução o momento processual próprio
para o alargamento do objeto do processo –; no segundo caso (e naqueles em que ao
assistente pretende simplesmente aderir à acusação do MP), o meio adequado é o previsto
no art. 284º CPP e é nessa acusação que o assistente pode requerer a produção de outras
provas.
Isto que dissemos vale para os crimes públicos e semipúblicos. Já no caso dos
crimes particulares – que configuram uma exceção ao princípio da oficialidade – é ao
assistente a quem compete a dedução da acusação, independentemente da
posição/parecer do MP. Isto está previsto no art. 285º CPP. De todo o modo, não é ou não
deve ser indiferente o conteúdo do processo: o assistente deve ter em conta aquilo que
consta do processo e o seu advogado deve abster-se de acusar quando é claro que, dos
elementos de prova que constam do processo, houve um crime ou de quem foi o seu
agente. Nestes casos, o assistente deve abster-se de acusar. O parecer do MP não será de
todo em todo indiferente também no que toca à recorribilidade do despacho de
pronúncia/não pronúncia que venha a ser proferido no final da instrução, art. 310º CPP.
Ainda em relação ao momento do encerramento do inquérito, é importante a
qualidade do assistente quando eventualmente se coloca a questão de ser aplicada a
suspensão provisória do processo, pois a sua aplicação pressupõe a concordância do
assistente (se o houver).
A instrução pode ser requerida pelo assistente, mas também pode ser requerida pelo
arguido, art. 287º/1 CPP. Aberta a instrução, nos termos do art. 289º/2, o assistente e o seu
advogado têm direito a assistir aos atos de instrução. Na parte probatória dos atos de
instrução, a assistente pode estar presente e o seu advogado pode requerer ao tribunal que
sejam feitas perguntas às testemunhas ou arguido. Quanto à intervenção do assistente no
debate instrutório, vide arts. 297º e ss. CPP
Também no julgamento, o advogado do assistente (e o próprio assistente) pode estar
presente e participar no julgamento – esta presença e participação é obrigatória no caso dos
crimes particulares. Sucede, na maior parte das vezes, que a intervenção no julgamento do
advogado do assistente ser muito importante: requerer produção de prova, exercer o
contraditório, entre outras intervenções.
Pode, ainda, o assistente interpor recurso: o assistente tem legitimidade e interesse
em agir para recorrer, arts. 69º/2-c) e 401º/1-b) CPP. Esta legitimidade estende-se ao
recurso da decisão instrutória, ainda que o assistente não tenha acompanhado a acusação

48
pública do MP – foi o que decidiu o STJ, num acórdão de uniformização de jurisprudência nº
().
Que decisões em relação às quais se reconhece indiscutivelmente o interesse em
agir do assistente? 1) aquelas que envolvem a ilibação do arguido, seja por força de um
despacho de não pronúncia seja por força de uma decisão absolutória. 2) quando é
imputado ao arguido um crime distinto daquele que o assistente entende que deve ser
imputado ao arguido. Onde tem havido muita controvérsia é em relação às situações em
que o assistente pretende reagir, não contra o teor da imputação, mas sim contra a pena
concretamente aplicada (quanto à espécie ou medida da pena aplicada). Terá o assistente
interesse em agir nestes casos? A jurisprudência maioritária 15 entende que, em princípio, o
assistente não pode interpor recurso, porque não tem interesse em agir, quando este se
limita a impugnar a espécie ou a medida da pena aplicada, para que o recurso seja
admissível tem de demonstrar um interesse próprio/particular/individual. Isto, porque se
entende que estas matérias contendem já e principalmente com o ius puniendi, com o
interesse público do Estado. Há, porém, autores, como CLÁUDIA SANTOS, que entende que
o assistente ainda tem interesse em agir nestes casos.
Nos termos do art. 70º, é obrigatória a assistência de advogado. Esta obrigatoriedade
funda-se: na necessidade de assegurar uma assistência técnica, isto é, que aquela se faça
em consonância com aquilo que a lei prescreve; para evitar intervenções processuais sem
nexo; para assegurar que a intervenção processual se faz em consonância com o interesse
público que o processo penal prossegue; e para salvaguardar uma boa administração da
justiça, evitando uma instrumentalização do processo penal. Esta última fundamentação é
bem patente no facto de não se permitir, nomeadamente no Ac. UJ nº 15/2016, a
autorrepresentação do assistente (ainda que tenha formação técnica-jurídica para tanto).
Também em relação ao defensor, se tem discutido se o arguido que é advogado ou jurista
pode exercer uma autodefesa/autorrepresentação – quanto a esta, a resposta não é tão
óbvia é, aliás, muito discutível.
Havendo comunhão de interesses, não se justifica uma pluralidade de advogados de
assistentes e, por isso, a lei consagra aqui um princípio da unidade no art. 70º/1, 2º parte
CPP. quando é que pode haver uma pluralidade de advogados? Quando os assistentes
sejam ofendidos de crimes distintos ou quando haja conflitos de interesses entre os diversos
assistentes.

V. Arguido

1. Conceito e terminologia
15
Há um assento do STJ nesta matéria.

49
O arguido é a figura central do processo penal.
A lei não prevê uma definição do arguido, mas podemos dizer que arguido é, grosso
modo, a pessoa contra quem o processo corre e a quem foi atribuída essa qualidade, seja
por decisão de alguma autoridade judiciária ou de um OPC seja por força da lei.
Em princípio, só suspeitos é que poderão ser arguidos, a definição de suspeito está
prevista no art. 1º-e).
Entre nós, decidiu-se recorrer à figura do arguido para distinguir, sobretudo, das
testemunhas. A atribuição daquela qualidade visa beneficiar esse sujeito: dotando-o de um
conjunto de direitos e garantias que lhe permita defender-se cabalmente no processo. Visa,
de um outro lado, prosseguir interesses do Estado, através da imposição de certos deveres
processuais, p. ex. para aplicar medidas de coação.
O arguido é um sujeito processual e esta consideração do arguido é uma condição
essencial para que se possa falar de uma estrutura acusatória do processo penal e de um
Estado de Direito. O facto de alguém ser visado por um processo penal, não faz dele um
cidadão de segunda: continua a ser um cidadão titular de interesses, direitos e deveres. E
isto é fundamental para assegurar a imparidade do e no processo penal, para assegurar um
level playing field. E é sob esta perspetiva que a posição do arguido deve ser encarada não
só pelo legislador, mas, também, por todos os órgãos do Estado que intervêm no processo.

2. Aquisição da qualidade de arguido


Em termos de aquisição da qualidade do arguido, vamos ver em que casos é que
alguém passa a ser arguido num processo. A matéria está regulada nos arts. 57º a 59º.
Temos diversas formas de atribuição da qualidade de arguido:
1. Atribuição automática, por força da lei, da qualidade de arguido, art. 57º/1;
2. A aquisição da qualidade de arguido processa-se através de uma decisão de uma
autoridade judiciária ou OPC, arts. 58º;
3. Constituição de arguido a requerimento do próprio suspeito, art. 59º/2.
A propósito do art. 58º, há um conjunto de circunstâncias a que a lei liga a
constituição de arguido: deixamos de ter um simples suspeito para ter um verdadeiro
arguido. E, por isso mesmo, não há de ser por qualquer forma que se atribui a qualidade de
arguido, bem como deve estar regulada na lei num duplo sentido: não pode haver a
constituição de arguido se não nos casos previstos na lei; mas, reversamente, quando seja
verifique uma certa circunstância à qual a lei ligue a constituição como arguido, há uma
obrigatoriedade de constituição de arguido. Note-se que, cada vez mais, a aquisição da
qualidade de arguido não é algo que seja socialmente inócuo e, além disso, a aquisição
daquela qualidade envolve a sujeição a deveres processuais. Ver Ac. TRG 4/04/2022. Não
havendo base legal, não pode haver lugar à constituição de arguido, mas sempre que se

50
verifique uma circunstância em relação à qual a lei ligue à constituição de arguido, há um
dever de constituir essa pessoa como arguido, pois esta constituição visa efetivar o direito
de defesa daquele suspeito.
Deste modo, a constituição de alguém como arguido não é uma matéria onde haja
(ou deva haver) qualquer tipo de discricionariedade, já a definição do momento em que a
situação se verifique, essa sim, pode estar nas mãos de quem investiga – essa sim pode ser
objeto de alguma discricionariedade. É na definição do timing que pode haver alguma
discricionariedade
As situações de constituição obrigatória previstas no art. 58º visam salvaguardar
aquelas situações em que, não havendo ainda acusação, existe já um contacto direto do
suspeito com o processo. Pese embora, uma vez verificadas as circunstâncias previstas no
preceito, a pessoa em relação à qual elas se verificam impõem a sua constituição como
arguido de imediato. Mas, a montante, isto é, na definição do quando elas se verificam, pode
haver lugar a alguma margem de oportunidade, designadamente pelo MP.
Embora aquilo que nos apareça em primeiro lugar, quanto à constituição de uma
pessoa como arguido, seja a constituição de arguido por força da lei nos termos do art. 57º,
não é esse o meio mais normal/recorrente. Quando é que é previsível que uma pessoa
venha a ser constituída como arguida? Ver art. 272º/1 CPP, nos termos do qual se o MP, no
decurso da investigação, formar um juízo de suspeita fundada em relação a determinada
pessoa, há de, em algum momento, durante o inquérito, e, portanto, antes da dedução da
acusação, chamá-la ao processo para ser interrogada, sob pena de nulidade do inquérito
(por insuficiência destes, por não se ter praticado um ato legalmente obrigatório, art. 120º/2-
d) CPP) – esta foi a posição assumida pelo STJ quanto à consequência da falta de
interrogatório obrigatório previsto no art. 272º/1. O que se visa assegurar é o exercício do
contraditório por parte de sujeito, doravante arguido. Por força da lei, não pode o MP
encerrar o inquérito com uma acusação sem que interrogue o suspeito na qualidade de
arguido, salvo não sendo possível notificar. Quando o MP chama e ouve o suspeito,
desencadeia-se a circunstância prevista no art. 58º/1-a) que determina a obrigatoriedade da
constituição da pessoa como arguido. Daqui decorre que a situação do art. 57º CPP tem um
caráter residual, só acaba por ocorrer quando não se verifique nenhuma das situações
previstas no art. 58º/1, sendo que a situação prevista na alínea a) tem caráter obrigatório.
O regime preferencial é o da constituição de arguido por decisão da autoridade
judiciária ou do OPC (e não ope legis nem a constituição a pedido) em cumprimento de um
dever legal.
Casos de constituição de arguido por decisão da autoridade judiciária ou OPC,
arts. 58º e 59º/1 CPP. Tratam-se de situações de interação pessoal do suspeito com a
investigação e tem em conta o risco de que, nessa interação, o suspeito colabore

51
inconsciente e involuntariamente com aquela autoridade, prejudicando-se sem ter noção –
visa, no fundo, tutelar o direito à não autoincriminação, o direito ao silêncio. Ao constituir o
suspeito como arguido, ele passa a ser informado do conjunto dos direitos e deveres
processuais de que passa a ser titular, nomeadamente (e principalmente) do direito ao
silêncio. E é a tutela deste direito que está em causa neste grupo de casos de constituição
de arguido. Esta intenção é bem patente também no art. 58º/6 ao estabelecer que a omissão
ou violação das formalidades da constituição de uma pessoa como arguido são objeto de
uma proibição de valoração da prova. E, por isso mesmo, que a constituição como arguido
deve ser imediata (à verificação daquela circunstância) e em cumprimento com preceituado
nos arts. 58º/2 e ss. e 61º/1-c) CPP. E é nesta dinâmica do interrogatório que estas
informações devem ser devidamente comunicadas. Desta forma, consegue assegurar-se a
liberdade de declaração do arguido e é tendo em vista a salvaguarda do seu direito ao
silêncio que este regime é feito.
O cumprimento daquela obrigação tem em vista sobretudo proteger interesses
processuais do visado. Mas, a partir do momento em que se dá cumprimento ao dever legal,
fica claro que a investigação está a ser processada contra aquela pessoa. Esta constituição
de arguido permite, de certo modo, dar a conhecer o cumprimento do dever de investigar,
por força do princípio da legalidade na promoção processual, que impende sobre o MP.
Note-se que isto não é de somenos, pois, por vezes, o MP juntamente com os OPC, em
casos de comparticipação, seleciona os alvos da investigação para obter uma espécie de
delação premiada – que não é permitida no nosso sistema processual. Portanto, este regime
legal contribui ainda para o cumprimento do dever de investigar que recai sobre o MP
aquando da aquisição da noticia do crime.
Esta alínea a) do art. 58º/1 tem subjacente um ambiente formal de interrogatório.
Mas, pode dar-se o caso, de as indagações que nele têm lugar se processem, ao invés,
num ambiente muito mais informal, distendido, por forma a recolher informações sobre a
suspeita que o MP e os OPC formaram (p. ex. quando os OPC vão ter com o suspeito).
Nestas situações, vale ainda aquele preceito? Ac.STJ de 22/04/2004. Para respondermos a
esta pergunta, recorremos ao designado pela doutrina alemã a um critério subjetivo-
objetivo: aquelas ações investigatórias de averiguação são feitas com o intuito de apurar se
certa pessoa teve participação no crime? Essa intenção de averiguação materializa-se em
atos de investigação? Este critério vale para aquela pessoa que está em condições de ser
constituída arguida nos termos do art. 58º/1-a), mas também para aquelas pessoas que
sejam suspeitos.
Desta perspetiva, só é proibida a valoração da prova que seja obtida com intuito
preordenado de recolher informações daquele suspeito, já se a informação é recolhida

52
espontaneamente ou sobre uma pessoa relativamente à qual ainda não havia qualquer
suspeita, já não estamos perante um caso de proibição de valoração de prova.
Ainda no plano da informalidade, temos as designadas “conversas informais”,
aquelas informações que são recolhidas pela polícia de alguém que já é arguido e que são,
depois, carreadas para o processo, através de um escrito. Isto acontece muitas vezes
quando há detenções e assumia grande relevo para a aplicação de medidas de coação.
Quanto a estas, têm entendido os tribunais serem insuscetíveis de valoração probatória.
Ainda a propósito do art. 58º/1-a), a expressão legal de suspeita fundada: aquilo que
constitui condição para a obrigatoriedade da constituição de arguido é que a suspeita seja
fundada, consistente, que permita antever como provável uma futura acusação. Pode,
todavia, acontecer que, quando o sujeito vá prestar declarações, a suspeita não seja
fundada, e, mesmo assim, o MP entende oportuno chamar o sujeito ao processo a fim de o
ouvir, não deverá ouvi-lo na qualidade de arguido. Então em que qualidade é que o ouve?
Muitas vezes, é ouvido como testemunha, com todos os deveres a este interveniente
inerentes. Mas este parece um enquadramento equivocado: do que estamos
verdadeiramente a falar é de um suspeito nos termos art. 1-e) CPP. Assim, deve, naquele
caso, o sujeito ser ouvido na qualidade de suspeito e deve ser informado de que está a
prestar declarações nessa qualidade, sob pena de proibição de valoração da mesma nos
termos do art. 126º/2-a) CPP. E, nessa qualidade de suspeito, beneficia de alguns direitos
processuais, designadamente o direito ao silêncio? Uma boa parte dos práticos e da
doutrina, entende que não; outra parte da doutrina, entende que, ao abrigo do direito à não
autoincriminação, o suspeito pode ainda exercer o direito ao silêncio. Note-se que, havendo
uma margem de subjetividade grande na definição de suspeita fundada, pode este regime
acabar por ser deturpado. Quando isto aconteça, as declarações prestadas não podem valer
como prova, por força do art. 58º/6.
Além da situação que estivemos a ver, a prevista na alínea a) do art. 58º/1 CPP, a lei
prevê outras, nomeadamente a prevista no art. 59º/1 – que é parecida com aquela. Nos
termos do art. 59º/1, é obrigatória a constituição de arguido quando, estando em curso uma
diligência de inquirição, se forme no espirito da entidade que preside à respetiva diligência
uma suspeita fundada de crime acerca do inquirido. Aqui, também temos subjacente a ideia
da não autoincriminação.
Uma vez verificada uma situação deste género, a entidade que presidia à inquirição,
suspende-a imediatamente e procede à constituição do inquirido como arguido. Tendo sido
constituído arguido, o sujeito pode remeter-se ao silêncio e que aquilo que antes (da
constituição de arguido) disse não pode ser valorado, há uma proibição de valoração desta
inquirição.

53
Outro caso de constituição obrigatória de arguido é o previsto no art. 58º/1-b): não
podem ser aplicadas medidas de coação nem medidas de garantia patrimonial a sujeito que
não tenha sido constituído arguido. Para quê? Por um lado, para que lhe seja dada uma
ampla oportunidade de defesa e para que possa beneficiar do estatuto processual do
arguido. Outra razão é a que só deste modo é que se pode verdadeiramente impor o
cumprimento daquelas medidas, art. 61º/1-d). Pode, no entanto, haver um interesse por
parte do MP e dos OPC em que, no caso do arresto (que estabelece o designado vínculo de
indisponibilidade), se consiga um certo efeito surpresa; ora, para estes casos, temos o art.
192º/3,4 e 5 CPP, que exceciona a constituição obrigatória do arguido, verificadas que
estejam certas condições.
Também é obrigatória a constituição de arguido nos casos em que o suspeito for
detido dentro e fora de flagrante delito (arts. 254º e ss.). A detenção fora de flagrante delito é
ordenada quando, já estando a investigação em curso, há um interesse em interrogar o
suspeito e, em relação a ele, verificam-se algum dos riscos previstos no art. 257º CPP.
Nestes casos, começamos com uma decisão de detenção (em regra, tomada pelo MP),
seguida de um mandado de detenção – que é a forma de formalizar a comunicação e ordem
de detenção –, o qual é executado pelos OPC. E será aquando da detenção do sujeito que
se deve proceder à respetiva constituição de arguido. A detenção fora de flagrante delito
está ligada a intenção de aplicação de uma medida de coação.
Esta obrigatoriedade de constituição de arguido vale não só para as situações fora
de flagrante delito, mas também para as situações de em flagrante delito. Aqui, importa
acentuar que a própria detenção, nestes casos e em regra, não é um ato que caiba na livre
disponibilidade da autoridade judiciária ou do OPC. Qual é a consequência de se efetivar
uma detenção em flagrante delito? Desde logo, o detido deve ser constituído arguido; sendo
constituído arguido, não pode ser imediatamente interrogado por um OPC, quem o pode
interrogar, nos termos do art. 254º/1-a), é o MP. E, nessa audição, é obrigatória a
assistência do defensor, art. 64º/1-a) e b). Se o OPC, numa situação de flagrante delito, não
deter, temos uma fraude à lei, que gera uma proibição de prova.
Uma outra situação, mas com muito pouca relevância prática, é a da alínea d) do art.
58º/1.
Por último, vamos ver a situação da constituição de arguido a pedido nos termos
do art. 59º/2. Tem-se em vista, sobretudo, os casos em que há uma interação entre
investigadores e um suspeito e que, por algum motivo, não é dado cumprimento ao dever de
constituição de arguido ou, não havendo esse dever, há um interesse por parte do suspeito
(ainda que a suspeita não seja fundada) em ser constituído arguido, designadamente para
beneficiar do estatuto próprio do arguido. Assim, este modo de constituição de uma pessoa
como arguido visa evitar manipulações do cumprimento do dever legal de constituição de

54
arguido e possibilitar ao requerente, em certas condições, de, por sua iniciativa, passar a
beneficiar dos direitos e deveres que compõem o estatuto do arguido.
Quando é que isto pode acontecer? É necessário que se verifiquem duas condições:
1) que seja apresentado um pedido por parte do suspeito, isto é, que seja manifestado
interesse por parte do suspeito nesse sentido; 2) e que, sobre essa pessoa, recaia uma
suspeita (embora não seja necessariamente fundada) e que estejam em curso diligências
que pessoalmente a afetem. Estes requisitos têm de se verificar cumulativamente (e quase
de forma concomitante) para que possamos dizer que há um dever por parte das
autoridades em constituir o requerente como arguido.
O art. 86º/14 visa aqueles casos em que alguém foi alvo de uma diligência e em que
a autoridade judiciaria que a presidiu esclareceu publicamente existir uma suspeita sobre o
alvo daquela diligência. Nestes casos, o sujeito, alvo da diligência, pode pedir a constituição
como arguido sem que se verifiquem aquelas condições.
Casos em que a constituição como arguido faz-se ope legis, nos termos do art.
57º/1. Em que casos é que isto acontece? É que vimos que existe um dever de chamar ao
processo o suspeito, constitui-lo arguido e interroga-lo na qualidade de arguido, nos termos
do art. 272º; de maneira em que, em regra, não se chega ao final do inquérito, com uma
acusação, sem que o acusado seja arguido. Só não há este dever quando não for possível
notificar o suspeito. Só nos casos em que o MP não consegue chamar o suspeito ao
processo é que assume relevância a constituição de arguido ope legis. Por isso é que o
regime do art. 57º/1, a partir de 1998, passou a ter um caráter residual, só tendo lugar
quando não for possível notificar o suspeito para ser interrogado como arguido. A segunda
hipótese prevista no art. 57º/1 aplica-se aos casos em que o processo correu contra certa
pessoa, mas essa pessoa não chegou a ser constituída arguida no processo e o MP
arquivou o processo. A constituição como arguido dá-se se e quando o assistente requerer a
abertura da instrução. Esta constituição serve para que se possa defender logo na fase de
instrução. Para que a qualidade se adquira efetivamente é preciso que o inquérito tenha
corrido contra aquela pessoa e a instrução seja admitida. Se o inquérito não tiver corrido
contra essa pessoa, a constituição como arguido não é possível, porque não é admitida a
abertura da instrução contra pessoa contra a qual não tenha corrido inquérito. A forma
própria de abrir uma investigação contra determinada pessoa é com a abertura do inquérito
e não com a instrução. Isto tem na base o princípio da acusação.
No art. 58º prevê-se ainda os termos em que se processa a constituição de um
sujeito como arguido.
Como é que se processa esta constituição (art. 58º CPP)?
É à autoridade judiciária ou ao OPC que cabe a constituição como arguido, nº 2 e 3.
Porque é que se estende a competência aos OPC? Para acautelar a efetiva atribuição da

55
qualidade de arguido, isto é, para assegurar que o sujeito passe a ser arguido logo que se
verifique a circunstancia que determina a respetiva constituição. De modo, no fundo, a evitar
o perigo de demora na atribuição daquele conjunto de direitos e deveres processuais
previstos no art. 61º CPP. Se a constituição for feita (e decidida) por um OPC, fica sujeita à
validação do MP – esta constituição tem, assim, um caráter precário (nº 4). E, nestes casos,
podem acontecer três coisas, o MP pode: validar; não validar; ou nada dizer/fazer. A inércia
do MP equivale a não validar.
A constituição de arguido é um ato pessoal e comunicacional, isto é, que deve ser
dirigido ao próprio suspeito. Ato através do qual lhe devem ser comunicados, oral ou por
escrito, os respetivos direitos e deveres. Sendo um ato pessoal, a pessoa visada não pode
ser representada por advogados. No processo, embora em regra a comunicação seja oral, é
de todo o interesse que a comunicação seja reduzida a escrito: para que fique devidamente
comprovado o dever de constituir alguém como arguido; além disso, a constituição como
arguido tem algumas implicações, designadamente a prevista no art. 121º/1-a) CP (relativa à
interrupção16 da prescrição do procedimento criminal). E a forma de documentar a
constituição de arguido normalmente é feita no documento que se designa por termo de
constituição de arguido, assinado pela entidade que constitui e pelo arguido. O sujeito que
for constituído arguido fica ainda sujeito à prestação de termo de identidade e residência nos
termos do art. 196º CPP – há quem defenda17 que este ato de constituição de arguido,
porque acompanhado pelo TIR, eventualmente ofensivo de direitos fundamentais 18, deva
poder ser objeto de um controlo a posteriori mas imediato por parte do juiz de instrução.

3. Estatuto processual do arguido


A configuração dos direitos processuais do arguido é essencial para que ele possa
ser considerado um verdadeiro sujeito processual. E, neste ponto de vista, vem-se
defendendo que este estatuto processual integra três linhas fundamentais: direito de defesa;
direito à presunção de inocência; e o direito pelo respeito pela sua decisão de vontade, que
se manifesta, essencialmente, no direito à não autoincriminação.

3.1. Direito de defesa


O direito de defesa está reconhecido no art. 32º/1 CRP. Neste sentido, fala-se na
plenitude do direito de defesa e no seu caráter aberto.

16
Na interrupção, o prazo de prescrição volta ao momento inicial, volta a zero, art. 119º/1 CP.
17
A favor, NUNO BRANDÃO E FIGUEIREDO DIAS; contra, PAULO PINTO ALBUQUERQUE E MARIA JOÃO ANTUNES E Ac.
TC nº 121/2021.
18
Na medida em que, por força do dever de comunicação previsto no art. 196º/5-b), podemos ficar a saber
muito da vida pessoal de uma pessoa que foi constituída arguida.

56
Há aqui um dado importante: o direito de defesa não é sempre o mesmo ao longo do
processo, ele vai variando e tende a ser mais restrito/circunscrito nas fases preliminares do
processo, vg. direito ao contraditório. Isto percebe-se se atentarmos às várias finalidades do
processo e à sua necessária harmonização, na medida em que elas surgem como
antinómicas ou antitéticas. Para aqui, ainda entra a ideia da compensação das situações
processuais: à extensão e conteúdo do direito de defesa não pode ser indiferente o
desfecho que para o arguido pode advir de uma certa fase processual. Ou seja, no fim de
cada fase processual, é tomada uma certa decisão e decisão em questão pode ter
consequências diferentes para a esfera processual do arguido: no inquérito e na instrução,
no pior dos casos, o arguido é submetido a julgamento; no julgamento, na pior das
hipóteses, o arguido é condenado numa pena ou medida de segurança. Deste modo, as
consequências são muito mais drásticas nas fases finais do que nas fases preliminares e,
por isso, o conteúdo e extensão do direito de defesa do arguido não têm de ser tão fortes
nestas fases comparativamente com aquelas, dado impacto de cada uma delas na esfera do
arguido – daí, a geometria variável do direito de defesa do arguido.
Assim, o direito de defesa não se manifesta da mesma forma ao longo de todo o
processo.
O direito de defesa está expressamente consagrado no art. 32º/1 CRP, mas existem
outros preceitos constitucionais que são também manifestações daquele direito: art. 32º/3 e
519. Também no CPP temos manifestações daquele direito, desde logo, no art. 61º/1.
O direito de defesa integra, desde logo, o direito à audiência, o que pressupõe que
esteja previa e cabalmente informado dos factos que lhe são informados, art. 61º/1-b) e c).
Uma outra dimensão fundamental do direito de defesa é o direito à prova, que perpassa
todo o processo, desde o inquérito ao julgamento. O direito à prova consiste em poder
carrear para o processo provas e a requerer a produção de prova, art. 61º/1-g) CPP.
Esta categoria do direito de defesa é, como dissemos, uma categoria aberta, mas
que é integrada por uma dimensão essencial: o direito ao (exercício do) contraditório, que
vai ao encontro do seu estatuto de sujeito processual e ao direito de que deve dispor de
contribuir de forma constitutiva na declaração do direito do caso. O direito de exercer o
contraditório pode assumir várias formas e este contraditório vai variando também ao longo
do processo, crescendo à medida que o processo avança. Na fase de inquérito, o
contraditório é muito limitado. Já vimos que, para se exercer cabalmente o contraditório, é
preciso que se disponha de informação: desde logo, para que o arguido possa contraditar, é
preciso que saiba que está a ser alvo de um processo e, portanto, a primeira questão que se
coloca é esta: deve ter ou tem o arguido oportunidade de exercer alguma defesa no
inquérito? Deve e tem nos termos do art. 272º/1 CPP: não pode a investigação ser
19
Consagra o direito ao contraditório.

57
encerrada com uma acusação sem que antes tenha sido ouvida a pessoa por ela visada,
sob pena de nulidade nos termos do art 120º/2-d) 20. A lei, no fundo, quer que o investigado
disponha já logo na fase de inquérito de uma oportunidade de defesa e, para isso, é preciso
que ele saiba que está a ser investigado e que seja constituído arguido. Ou seja, para que
lhe seja dada uma verdadeira oportunidade de defesa, é preciso que o visado seja chamado
ao inquérito, constituído arguido e, nesse ato, deve ser informado do conteúdo da suspeita,
em cumprimento do arts. 61º/1-c) e 141º/4-d) CPP. Isto, permite, desde logo, ao arguido
decidir se presta ou não declarações; bem como, dá-lhe tempo, nomeadamente, para
consultar o processo (se o inquérito for público, art. 86º/1 e 6 e, mesmo estando em segredo
de justiça, nos casos previstos no art. 89º, pode ser-lhe lícito o acesso ao processo),
inclusive às provas, ficando com uma ideia bastante precisa da matéria incriminadora e
pode já começar a preparar a sua defesa no inquérito, p. ex. pedindo a produção de certos
meios de prova.
Uma questão que se tem discutido é esta: imaginemos que um suspeito é chamado
ao inquérito e foi ouvido numa qualidade que não a do arguido, por o MP ainda não ter
formado uma convicção em relação a ele, e só mais tarde é que formou aquela convicção.
Pode o MP não chamar mais o visado ao processo e acusá-lo? Não, se a suspeita se
adensa ao ponto de o querer acusá-lo, terá, antes, o MP de o chamar a interrogatório nos
termos do art. 271º/1.
Ainda neste âmbito, uma outra questão que se coloca é a seguinte: é a de saber se,
tendo alguém sido constituído arguido em cumprimento dos arts. 58º/1-a) e 272º, existe ou
não o dever de, caso sejam apurados factos com os quais o arguido não tenha sido
confrontado no interrogatório por lhe serem supervenientes, chamar o arguido ao processo
para o informar dos mesmos? Ac. TC 72/2012. Não é preciso estar a relatar factos com o
mesmo detalhe com que são relatados na acusação, todavia deve ser informado daquilo
que é o essencial/nuclear da factualidade que lhe está ou lhe vai ser imputada na acusação.
Estávamos a ver o direito ao contraditório nas diversas fases processuais,
designadamente na fase de inquérito, que é a fase mais melindrosa no que toca ao
exercício deste direito. Nas outras fases processuais, a amplitude do contraditório aumenta,
ainda que, na fase de instrução, o exercício do contraditório não seja pleno. Já na fase de
julgamento, o art. 32º/5 aponta já para um contraditório pleno. Esta contrariedade, na fase
de julgamento é, depois, concretizada no art. 327º CPP.
Durante o julgamento podem suscitar-se questões processuais de diversa ordem e,
relativamente àquelas que relevam para a decisão sobre o mérito da causa, a sua decisão
deve ser precedida do contraditório dos vários sujeitos processuais, nomeadamente do

20
Ac. STJ nº1/2006.

58
arguido e do MP. O mesmo vale para os meios de prova: o arguido tem o direito de
contraditar os meios de prova trazidos ao processo pelo MP e pelo assistente.
Também na fase de recurso, vale o princípio do contraditório. E este manifesta-se,
designadamente, quando seja interposto recurso contra o arguido, ele deve ter oportunidade
de responder a esse recurso, art. 413º CPP.

3.2. Direito à presunção de inocência


Está consagrado no art. 32º/2 CRP e traduz-se num direito fundamental e
característico de um Estado de Direito.
Esta exigência de presunção de inocência vale, desde logo, no confronto entre o
arguido e o Estado no processo penal, isto é, quando o processo penal é direcionado contra
uma certa pessoa, o Estado deve tratá-la não partindo de uma ressunção de culpa, mas
partindo de uma presunção de inocência e este tratamento deve manifestar-se claramente
no processo, mas também fora dele (isto é, noutras dimensões da relação Estado-cidadão).
Uma questão que foi colocada no TC (Ac. 194/2017) relativa a esta matéria foi a da
(in)constitucionalidade de uma eventual suspensão de um agente policial contra o qual haja
sido dirigido uma acusação, corroborada por um despacho de pronúncia – o TC conclui pela
não inconstitucionalidade desta lei.
Para além dos Estado, os particulares também estarão obrigados a tratar, considerar
e a referir-se ao arguido não como ele fosse culpado, mas sim como se fosse inocente?
Será que os cidadãos em geral têm o dever de respeitar a presunção de inocência? Aqui,
vale sobretudo a ideia de que os direitos fundamentais valem, em regra e salvo disposição
legal que preveja expressamente esse dever, entre o Estado e os cidadãos e não entre os
cidadãos. De todo o modo, há que atender a normas especiais que vinculam àquele dever,
nomeadamente, no caso dos jornalistas.
O princípio da presunção de inocência manifesta-se, essencialmente, em duas
direções: 1) numa vertente do tratamento do arguido, no sentido de que o Estado deve tratar
o arguido, mão como culpado, mas sim como inocente, p. ex. não pode o Estado apresentá-
lo pubicamente em condições que aparente uma culpabilidade penal (p. ex. em trajes
prisionais ou algemado), neste âmbito, ver diretiva 343/2016, art. 5º. Ainda nesta vertente,
ela releva sobretudo em matéria de aplicação de medidas de coação. Estas só devem ser
aplicadas quando se afigurem necessárias em face de exigências do processo penal,
apesar de ser indispensável que sobre a pessoa visada recaia uma suspeita fundada. As
medidas de coação não podem ser usadas como uma forma de antecipar a punição do
agente, sob pena de se subverter do regime constitucional e legal das medidas de coação.
Além de não poderem servir como forma antecipada de sancionamento, as medidas de
coação também não podem ser aplicadas para satisfazerem finalidades próprias das penas.

59
Ainda nesta vertente, é por força do princípio da presunção de inocência que as penas
criminais só podem iniciar a sua execução depois de transitado em julgado (isto é, quando a
decisão já não for passível de recurso ordinário ou reclamação, incluindo-se aqui, o recurso
para o TC) a sentença condenatória. Neste sentido, também releva o princípio da culpa –
não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa –, que
vale não apenas para a aplicação da pena, como também para a sua execução. Ver Acs.
STJ 27/12/2019 e 14/10/2021. 2) E a segunda é uma dimensão relativa à prova, deste
princípio, decorrem diversas consequências no plano probatório: proibição, sob pena de
inconstitucionalidade, do estabelecimento de normas presuntivas, isto é, que determinem a
presunção da verificação de algum elemento típico; quanto à valoração da prova, no sentido
de só se pode dar um facto como provado quando o tribunal fica para além da dúvida
razoável – ou seja, para o tribunal dar um facto como provado ou não provado, não bastam
indícios da respetiva verificação, é necessária uma convicção inabalável da verificação ou
não verificação do facto; princípio do in dubio pro reo, de acordo com o qual uma dúvida
sobre um facto relevante para afirmação da sua responsabilidade penal, deve ser valorado a
seu favor. Este princípio vale quanto aos factos (e não quanto à qualificação jurídica dos
factos). Na maior parte dos casos, é muito difícil fazer a sindicância do respeito por este
princípio, pois, para tanto, é desde logo necessário que o tribunal mostre que ficou num
estado de dúvida. Mas ver o Ac. STJ 22/02/2017.

3.3. Respeito pela decisão de vontade


Prende-se com a consideração do arguido como verdadeiro sujeito processual e
como alguém que deve poder, no processo penal, ser “dono de si”. O arguido, não é por ser
arguido, que não pode decidir de forma livre aquela que é a sua vontade e a sua intervenção
no processo.
Esta vertente liga-se ao direito à não autoincriminação, que é um dos direitos
fundamentais do arguido. O (também) princípio da proibição da autoincriminação 21 não
proíbe que o arguido se autoincrimine: o arguido pode, desde que o faça de forma livre e
consciente, autoincriminar-se. O que o principio proíbe é que o arguido seja força a
autoincriminar-se. Trata-se de um princípio que é conatural à estrutura acusatória e que se
opõe ao sistema inquisitório, que vê na confissão o meio de prova por excelência.
Este princípio tem o seu campo de aplicação na matéria da prova e nos possíveis
contributos probatórios que advenham do arguido, tem como seu núcleo essencial a
prestação de declarações do arguido e integra, no seu cerne, o direito ao silêncio. Mas o
arguido pode ser fonte de prova de outras formas que não a prestação de declarações, daí
que se questione que outras formas estarão abrangidas pelo principio da proibição da não
21
Nemo tenetur se ipsum accusare

60
autoincriminação. E uma outra questão essencial, prévia àquela, que se coloca e que releva
para a extensão e conteúdo do princípio é a relativa à sua fundamentação: a nossa CRP
não contempla este direito à não autoincriminação, mas tem sido consensual, na doutrina e
jurisprudência, a tese de que este direito tem valor/natureza constitucional, designadamente
de direito fundamental. E, então, o que é que justifica este direito? Há duas correntes: uma
corrente substantiva, que assenta o princípio em direitos substantivos; outra, de ordem
processual, que radica em direitos de ordem processual e não é indiferente assumir uma ou
outra. A primeira corrente, defendida por COSTA ANDRADE, liga o princípio da proibição da
autoincriminação ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade, à integridade
pessoal e à livre autodeterminação, no sentido de que, se obrigássemos os arguidos a
autoincriminarem-se, estaríamos a instrumentalizar a vontade do arguido. Qual é a
consequência essencial desta tese? É que, quem vê as coisas desta forma, tende a
absolutizar este princípio, sem margem para concordância prática com outros interesses e,
a partir deste momento e apesar de lhe conferir muita força, tende a ser percecionado, do
ponto de vista do seu conteúdo, mais restrito. Mais restrito, porque, dada a força absoluta e
consequente conflitualidade com outros interesses juridicamente relevantes, tende a
abranger menos situações, a ter um conteúdo quase que mínimo ou muito restrito. Uma
prova que pode ficar comprometida com uma compreensão absoluta deste princípio é
aquela conseguida pelas ações encobertas. A outra corrente (maioritária), de caráter
processual, que vê o princípio como de cariz processual, um princípio do processo e para o
processo, e que se funda no princípio da presunção de inocência, no direito de defesa do
arguido e na própria estrutura acusatória do processo penal. Daqui decorre uma abertura
natural do princípio a soluções de natureza prática, afastando uma conceção absoluta do
princípio, passando para uma sua relativização, admitindo-se casos de restrição do
princípio. P. ex. possibilidade de valoração, em processo penal, de documentos obtidos
numa inspeção tributária. Esta posição vem sendo acolhida pelo TC, que diz
expressamente, no Ac. TC 340/2013, o direito não tem caráter absoluto, podendo ser
legalmente restringido em determinadas circunstâncias. Foi a propósito da prova
documental e no âmbito das contraordenações que este princípio ganhou relevo em
Portugal: os particulares estão sujeitos a deveres de colaboração, designadamente com as
autoridades tributárias, e o não cumprimento culmina em sanções designadamente penais e
contraordenacionais. Estes deveres de colaboração têm lugar no seio administrativo e o
problema emerge quando, aquando do cumprimento desse dever de colaboração, o
particular entrega os respetivos documentos e aquelas entidades administrativas
fiscalizadoras descobrem, com a consulta desses documentos, a prática de uma
contraordenação ou, mesmo, de um crime. Pode esta prova documental ser
emprestada/transferida para o processo penal? Ora, aqui vemos a relevância da adoção de

61
uma tese mais ou menos restritiva ou absoluta: aquela primeira tese, não admitiria o
empréstimo de uma prova assim obtida; a segunda tese, de caráter processual e relativo,
admitiria ou, ao menos, podia admitir, desde que estejam verificados certos requisitos (vg.
previsão legal, obediência ao princípio da proporcionalidade e desde que não contenda ou
afete o núcleo essencial do direito).
Vamos agora atentar ao conteúdo do princípio da proibição da autoincriminação. É
composto, no seu núcleo, pelo direito ao silêncio. Mas o princípio tem mais abrangência.
O conteúdo do princípio há de ser perspetivado, de um lado, sob o prisma do (tipo)
contributo probatório que pode provir do arguido, isto é, que tipo de provas que têm o
arguido como fonte estão abrangidas; mas também há de ser perspetivado do lado do
Estado, no sentido de saber que tipo de comportamento do Estado é que está abrangida
pela proibição fundada neste princípio.
Sob aquele primeiro prisma, o critério que tem sido mais adotado é o critério da
atividade, nos termos do qual só entra no domínio de aplicação do princípio aquele
contributo probatório cuja obtenção envolva o Estado impor ao arguido que faça qualquer
coisa, uma atividade, um comportamento positivo por parte deste, p. ex. obriga-lo a falar, a
entregar documentos, a redigir um texto para comparar caligrafias. Mas já não está
abrangida por este critério o tipo de provas que são obtidas através do arguido, mas em que
não se obriga o arguido a fazer nada, apenas se impõe ao arguido o dever de tolerar ou
suportar a respetiva intromissão, p. ex. recolha de material biológico do arguido. Note-se, no
entanto, que, o facto de um procedimento probatório não estar coberto pelo princípio da
proibição da não autoincriminação, não significa que não possam estar outros princípios ou
direitos fundamentais do arguido que se afigurem como obstáculo à aquisição de certos
meios de obtenção da prova. Um meio de obtenção da prova que tem sido problemático é o
chamado Método P300.
Do lado do Estado, o princípio proíbe ações que envolvam o emprego de violência ou
tortura. Também estão abrangidas as ações que envolvam um emprego de coerção e quem
diz coerção exercida diretamente por parte de uma autoridade judiciária ou OPC, também
diz a coerção que é imposta pela própria lei, p. ex. quando a lei pune criminalmente o facto
de uma pessoa não soprar ao balão – neste caso, a questão é a de saber se se trata de
uma restrição daquele princípio legítima. Enquanto que estas duas formas entram numa
compreensão clássica do princípio, o engano, isto é, as provas obtidas mediante indução
em erro, já são mais controvertidas. A tese mais clássica, entendia que não estavam
abrangidas por este princípio; a doutrina mais recente, tem entendido que o princípio
abrange este modo de obter prova, pois, nestes casos, o visado pela prova não atua de
forma livre e consciente.

62
Vimos o problema de um ponto de vista objetivo. Do lado subjetivo, tem a doutrina
dominante entendido que não só o arguido está por ela abrangida é dele titular, mas
também o suspeito, isto, porque, se pretende evitar manobras dilatórias que subvertam este
principio, designadamente, retardando a constituição do suspeito como arguido para
contornar aquele princípio.
E este direito à não autoincriminação pode ser invocado mesmo quando a prova
tenha sido obtida num momento em que o visado não era ainda arguido ou suspeito, mas
passou, entretanto, a ser. Aquele caso da autoridade tributária é paradigmático aqui.
Note-se que, o facto de dizermos que o princípio é aplicável a determinado meio de
obtenção da prova não significa necessariamente que a prova obtida é proibida ou a sua
valoração é proibida, pois, como dissemos, o princípio comporta restrições.
Vamos agora atentar à dimensão essencial deste princípio: o direito ao silêncio. Este
direito é um direito fundamental e que se encontra concretizado em vários preceitos legais:
arts. 61º/1-d); 343º/1 CPP. Daqui resulta que o arguido tem uma liberdade negativa de
declaração no sentido de que pode pura e simplesmente recusar-se a depor sobre os factos
que lhe são imputados. E, como direito que é, sendo exercido, dele não podem extrair-se
consequências negativas para o arguido. O silêncio do arguido é visto como um nullum
jurídico, algo insuscetível de apreciação. Também não podem extrair-se consequências (do
silêncio) para a graduação da pena, seja direta ou indiretamente, com fundamento na
ausência de arrependimento. Não há norma legal nenhuma que imponha ao arguido que
preste declarações relativas à matéria factual imputada, este direito é absoluto. É, todavia,
questionável se não haverá uma certa restrição ao direito ao silêncio na parte em que o
arguido está obrigado a responder com verdade às perguntas sobre a sua identidade. É que
a identidade do arguido pode ser um dado importante ou a ter em conta para preencher um
certo tipo de crime, isto é, em certos casos não é indiferente a identidade do arguido. E, por
isso, se pergunta se este dever de responder com verdade a estas perguntas não configura
uma limitação ao direito ao silêncio.
Até agora, temos visto o direito ao silêncio como um silêncio absoluto, pleno, mas
pode haver casos em que o arguido queira prestar declarações, seja em que fase
processual for, e nesses casos, pode acontecer que o arguido se remeta ao silêncio quanto
a certas perguntas ou quanto a certo ponto – o chamado silêncio parcial. E o que se
questiona é se este silêncio parcial podem ou não ser valorado. A menos que haja uma
norma que assegure que o silêncio parcial não pode ser valorado, a tendência é a de admitir
a valoração do mesmo. Mas a nossa lei toma parte no problema: art. 345º CPP, que
estabelece uma proibição de valoração do silêncio parcial. Claro que um arguido, se não
pode ser juridicamente desfavorecido por se remeter ao silêncio, pode acabar por sê-lo

63
faticamente, p. ex. se se remete ao silêncio e, portanto, não dá conta ao tribunal de um facto
que seria uma circunstância atenuante.
O direito ao silêncio cobre as declarações que podem ser prestadas em
interrogatório, mas também cobre outros tipos de intervenções processuais que envolvam a
prestação de declarações do arguido, p. ex. o arguido não é obrigado a participar na
reconstituição do facto; o arguido não é obrigado a facultar a palavra-passe do seu
telemóvel.
Uma outra componente do princípio é aquela que consiste na entrega de
documentos. Entre nós, tem-se entendido que o ato de entrega de um documento estará
abrangido pelo princípio da proibição da autoincriminação se esta entrega for imposta ao
arguido. Se é o próprio arguido, por sua iniciativa, entrega documentos ao MP, não está em
causa o princípio da proibição da autoincriminação. Assim, em princípio, não se pode impor
ao arguido o dever de entregar documentos que se encontram em seu poder. E não há
norma legal nenhuma que confira às autoridades judiciárias ou OPC o poder de impor ao
arguido a entrega de um documento. A forma própria de obtenção de documentos será, em
regra, através de buscas e não através do arguido. Mas nada impede uma autoridade
judiciária ou OPC de questionar o arguido sobre a sua disponibilidade para entregar
determinado documento.
Voltando atrás, não há uma base legal para que se imponha ao arguido um dever de
entrega de documentos e, nessa medida, não pode essa imposição ter lugar. A questão foi
analisada pelo TC no Ac. nº 298/2019, neste caso, já estava em curso um processo crime e
a AT decide, à margem do processo, requisitar documentação (incriminadora), abusando
daquele dever de colaboração, e transfere-a para o processo penal. A diferença
relativamente ao caso que vimos supra é, neste caso que estamos a falar, já havia uma
suspeita fundada sobre o sujeito, no caso supra, ainda não havia processo e,
consequentemente, não havia suspeita sobre ninguém – aqui, estamos num plano de
beneficio indireto.
Um último ponto é aquele que diz respeito ao problema dos autógrafos: tem-se
discutido na doutrina o problema relativo à possibilidade de, no âmbito de um processo
penal, quando se torne necessário fazer uma perícia à caligrafia do arguido, impor-se ao
arguido o dever de redigir pelo próprio punho um texto a fim de se fazer essa perícia. A
questão já foi objeto de um AUJ e, na linha daquele critério da atividade, parece que deve
ser proibida a imposição de tal colaboração. Mas aquele AUJ entende, não obstante, que
esta questão pode encontrar-se abrangida pelos arts. 61º/6-d) e 172º/1 – sujeição a exame
– e que, portanto, será lícita a imposição desta colaboração por parte do arguido, sob pena
de cometer um crime de desobediência. É que, a partir do momento em que afirmamos que
há dever de colaboração, também decorrem consequências para o seu incumprimento,

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designadamente no plano penal. Para NUNO BRANDÃO, esta base legal em que o STJ
apoia a sua decisão é muito lata, além disso, podem haver outras formas de conseguir a
assinatura ou a letra do arguido sem que tenha de lhe ser imposto a escrita de um texto e,
neste caso, é desnecessário impor aquela colaboração. Ademais, está aqui em causa um
direito fundamental do arguido e que, portanto, por força do art. 32º/4 CRP, é uma matéria
da competência exclusiva do juiz – nunca poderia competir ao MP a imposição daquele
dever de colaboração.

4. Deveres processuais do arguido


Vamos, agora, atentar aos deveres do arguido, que estão previstos, no essencial, no
art. 61º/6 CPP.
A primeira exigência prevista na lei é a da comparência do arguido perante as
autoridades judiciárias e OPC. Isto pode ser útil para vários efeitos, vg. para ser sujeito a
interrogatório, a diligências de prova. De modo que, quando chamado, o arguido deve
comparecer, sob pena de ser detido nos termos do art. 116º/1 e 2 CPP. Ao que acresce um
eventual sancionamento em multa processual. Além disso, se o arguido tiver sido sujeito à
medida de coação caução, pode perder essa caução prestada, art. 208º CPP. Este dever de
comparência serve tanto interesses públicos como interesses do arguido.
O segundo dever consiste em responder com verdade às perguntas feitas por
entidade competente acerca da sua identidade. Em relação a estas questões, porque há um
interesse público contra a pessoa certa, o arguido está obrigado a responder e a responder
com verdade. Se não responder, for avisado das consequências e voltar a recusar-se a
responder, pode incorrer num crime de desobediência. Se responder falsamente, incorre
num crime previsto e punível no art. 359º/2 CP. Se apresentar um documento de
identificação alheio, incorre na prática do crime pp. no art. 361º(?) CP.
Até 2013, a lei impunha um dever de responder com verdade acerca dos seus
antecedentes criminais.
Um outro dever é o da prestação de termo de identidade e residência. O TIR está
previsto no art. 196º CPP e o que se impõe, aqui, ao arguido é que mantenha o processo
atualizado sobre a sua identificação e sobre a sua residência para efeito de notificações. O
arguido não tem de indicar necessariamente a morada do sitio onde reside, pode indicar o
seu domicilio profissional. O que está aqui em causa é facilitar as notificações, vide art.
113º/3 CPP – que estabelece um presunção de notificação e daí o nº 3 do art. 196º. Isto tem
sido levado a um ponto tal em que os tribunais, quando a carta lhes é devolvida, eles
consideram que ela foi entregue e que a notificação está feita. Isto tem levado a
problematizar o comportamento do Estado português nomeadamente no que toca aos
direitos e garantias dos arguidos.

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Desta exigência de informação ao processo – principalmente, o dever de informação
quando se vai ausentar por mais de 5 dias ou quando muda de residência – não resulta
qualquer restrição na sua liberdade de residência nem na sua liberdade ambulatória. O
arguido tem apenas de informar acerca do seu paradeiro. Porém, pode já implicar uma
violação da intimidade da vida privada. E, nesse sentido e porque é uma implicância da
constituição de uma pessoa como arguido, é um dos elementos que se poderá ter em conta
como justificação para que a constituição de arguido possa, quanto à sua legalidade, ser
sujeita ao escrutínio judicial.
Sendo-se arguido, fica-se obrigado ao cumprimento do regime de execução das MC
e MGP que lhe sejam impostas.
Além disso, enquanto arguido, pode ficar sujeito a diligências de prova: o próprio
arguido pode ser objeto de prova. Isto, claro, suscita problemas muito delicados: interesses
da investigação (realização da justiça e descoberta da verdade material) versus direitos
fundamentais do arguido (integridade física e pessoal e dignidade pessoal).

VI. Defensor

1. Função e posição jurídica do defensor em processo penal


O defensor é o advogado do arguido, é um profissional forense.
O direito ao defensor é um direito fundamental do arguido, é um direito subjetivo, e é
um direito que releva sobretudo para e no exercício do direito de defesa. Daí que a própria
CRP, no art. 32º/3, consagre esse direito ao defensor. Na parte final do preceito
constitucional note-se que a CRP já fala em advogado: assim, em certos casos o defensor
tem de ser advogado.
O direito ao defensor está previsto numa série de diplomas nacionais e
internacionais.
A intervenção do defensor em processo penal é essencial para a defesa do arguido,
por variadas ordens de razões. Desde logo, para assegurar uma defesa técnica. No
processo penal, estão em causa a imputação de factos suscetíveis de conduzirem a uma
condenação e, portanto, para o exercício da defesa, é crucial uma articulação, desde logo
no direito penal substantivo, entre a matéria de facto e a matéria de direito e o defensor é
quem está numa posição privilegiada para fazer essa articulação. Além disso, é também o
defensor que está na melhor posição para delimitar, para fazer uma triagem da factualidade
relevante à luz (sobretudo) do direito penal substantivo. A necessidade de um saber jurídico
integrado é importantíssima para a defesa do arguido. além disso, é preciso ainda saber
chegar ao processo a posição da defesa de modo processualmente adequado: muitas
vezes, as pessoas não juristas desconhecem os seus direitos e deveres e modo como

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devem ser exercidos – e também aqui se vê a importância de uma defesa por parte de um
profissional forense. A essencialidade da intervenção do defensor também é manifesta no
direito ao silêncio: a presença do advogado viabiliza o direito ao silêncio sem comprometer o
direito de defesa do arguido. Tudo isto transforma o direito ao defensor num direito
fundamental, num direito subjetivo face ao Estado e como parte integrante do direito de
defesa do arguido.
Há também um interesse público próprio da realização da justiça penal (interesse
comunitário) em que o arguido seja assistido por um defensor. Para que haja realização da
justiça é preciso que os culpados sejam condenados e os inocentes absolvidos. O papel da
função do defensor é relevante para diminuir o risco de condenação penal de pessoas
inocentes e é nisto que reside o interesse público. E a própria eficiência da justiça penal tem
tudo a ganhar com um processo penal em que os arguidos sejam assistidos por advogados
– são pessoas que conhecem as legis artis do processo, contribuindo para a sua fluidez.
E é por isto, porque também há um interesse público em que a defesa do arguido
seja assegurada por um advogado, que se pode justificar a obrigatoriedade da assistência
do defensor. E obrigatória mesmo sem ou contra a vontade do arguido. O defensor não é
um mero mandatário do arguido, é mais do que isso: o defensor no processo penal é um
autentico órgão autónomo de administração da justiça. Ver arts. 208º CRP e 12º/1 LOSJ.
Esta consideração do advogado como órgão de administração de justiça leva a
que o advogado, no exercício das suas funções, deva comportar-se também em prol da
realização da justiça (não deve exercer as suas funções contra direito). Nessa medida, o
advogado deve abster-se de advogar contra direito (vg não deve instruir o arguido para
mentir; não deve falsificar provas) e deve orientar-se pelo código deontológico.

2. Admissibilidade e obrigatoriedade da assistência por defensor


Uma questão muito relevante é a de saber em que casos em que a assistência do
defensor é admissível ou, mais do que isso, é obrigatória. Sempre que alguém é arguido
num processo, o art. 61º CPP prevê que o arguido tem direito a constituir advogado e goza
do direito a ser assistido por defensor e com ele a comunicar. Além disso, a CRP, no art.
20º/2, estabelece que todos têm direito a fazer-se acompanhar por advogado perante
qualquer autoridade. O arguido, sempre que assim o entender, tem o direito a fazer-se
assistir por defensor para qualquer ato processual para o qual seja convocado. Há uma
admissibilidade plena de defensor.
O segundo problema é o da obrigatoriedade de assistência de defensor. Para que
atos é obrigatória a assistência de defensor? Isto, claro, sob pena de invalidade do ato
processual. O art. 64º refere-se aos casos de obrigatoriedade de assistência.

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Porque que é que é obrigatória a assistência por defensor em certos atos
processuais? Uma ideia de Estado de Direito justifica que se prevejam mecanismos de
assistência obrigatória de defensor. É sobretudo para proteger arguidos mais desfavoráveis
que se deve impor este dever de assistência de defensor. Claro que, depois, há outros
interesses que se prendem com realização da justiça que podem justificar aquela
obrigatoriedade, ainda que contra ou sem a vontade do arguido.
Os casos em que é obrigatória a assistência de arguido são os que estão previstos
no art. 64º. Desde logo, nos interrogatórios de arguido preso ou detido, em que avulta,
sobretudo, o interesse na proteção da pessoa do arguido, que, detido, se encontra numa
situação particularmente débil. Também é obrigatória nos interrogatórios feitos por
autoridade judiciária, esta obrigatoriedade também contribui para viabilizar uma posterior
utilização das declarações prestadas pelo arguido – aqui, ressalta também o interesse
público na obrigatoriedade de assistência. Aqui, o legislador pretende assegurar que a
decisão de falar do arguido, que posteriormente poderá ser meio de prova, seja tomada por
este com a assistência do defensor. O que o arguido disser com a presença do defensor
nestes interrogatórios viabiliza a utilização futura das respetivas declarações, ainda que
esteja ausente na audiência de julgamento, nos termos do art. 357º CPP. Assim, do art.
64º/1-a) e b) resulta que: se o arguido prestar declarações perante o MP ou juiz, é
obrigatória a assistência por defensor; se as declarações forem prestadas perante um OPC,
não é obrigatória a assistência de defensor, a menos que o arguido se encontre privado da
liberdade (com a advertência mencionada no art. 144º/4). Quando o arguido presta
declarações perante um OPC, não pode haver a leitura ou a reprodução as respetivas
declarações sem que o arguido assim o consinta. Também é obrigatória a assistência de
defensor no debate instrutório e na audiência de julgamento (ainda que o a audiência de
julgamento seja realizada sem a sua presença). Temos ainda outros casos de arguidos
especialmente vulneráveis em que é obrigatória a assistência de defensor em todos os atos
processuais: alínea d) do art. 64º. Também é obrigatória a assistência nos recursos e nas
declarações para memória futura previstas nos art. 271º e 294º CPP.
Quando seja obrigatória a assistência de defensor e esta (obrigatoriedade) não seja
cumprida, qual é a consequência? Nulidade insanável nos termos do art. 119º-c) (ato
legalmente obrigatório) CPP. E, justamente por isto, assume tanta importância a definição
do alcance desta obrigatoriedade.
Há, este propósito, uma questão muito sensível: alguém que é arguido e está em
condições de exercer uma defesa técnica pode ser defensor em causa própria? Temos de
distinguir entre aqueles casos em que a assistência do defensor é apenas admissível
daqueles outros em que é obrigatória. Se não houver obrigatoriedade de assistência do
defensor, o próprio arguido pode ser ele mesmo a praticar atos processuais de um defensor,

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seja ou não jurista, vide art. 98º/1 CPP. Pode ser o próprio arguido a requerer instrução? É
uma questão controversa, mas, como se trata de um ato em que a assistência do defensor é
admissível mas não obrigatória, parece que pode. O problema levante-se naqueles casos
em que há obrigatoriedade de assistência do defensor. Aqui, a prática judiciária portuguesa
é de pura e simples proibição da autorrepresentação (autodefesa), nem mesmo quando não
haja duvidas sobre a aptidão técnico-jurídica do arguido para se defender. Quais são os
argumentos aduzidos pela nossa jurisprudência? O argumento da falta de preparação
técnica não vale, porque esta posição é transversal a todo arguido, seja ou não jurista. Os
tribunais vêm invocando os seguintes argumentos: 1) a autodefesa, em certos casos, pode
revelar-se disfuncional, não ser compaginável com certas exigências processuais e pode ser
um fator de perturbação do normal e bom andamento do processo, p. ex. seria estranho
que, em julgamento, o arguido enquanto defensor de si mesmo se interrogasse a si mesmo,
ou o defensor-arguido não pudesse estar presente perante um depoimento, porque,
enquanto arguido tinha sido afastado daquele depoimento; 2) é de toda a conveniência que
a defesa seja assegurada por alguém que, por não estar envolvido no litígio-objeto do
processo, esteja em condições de intervir naquela causa de forma mais distanciada; o
arguido, fonte da circunstancia em que se encontra, está sempre condicionado pelas suas
emoções. O distanciamento e objetividade que o defensor-advogado tem favorece uma ao
defesa. Claro que há, neste argumento, muito paternalismo por parte do Estado. De maneira
que esta posição da jurisprudência tem sido desafiada, principalmente, à luz do art. 6º/3-c)
CEDH, que prevê o direito de se defender a si próprio. Estas posições dos nossos tribunais
foram já várias vezes questionadas por C ORREIA DE MATOS, que apresentou queixa contra
ao Estado Português ao TEDH22.
De todo o modo, a existência deste direito (a defender-se a si próprio) não deve ser
ignorada na interpretação da lei nacional, nestes casos, deve distinguir-se entre as
situações em que o arguido não dispõe de condições para oferecer uma diferença técnica –
aqui, o interesse público dita que não se deve admitir a autodefesa – daqueles em que o
arguido, porque formado em direito, disponha de competências técnico-jurídicas para se
defender de forma cabal no processo. Numa interpretação conforme à CEDH, devemos
admitir a autodefesa, nestes segundos casos, ainda que estejamos perante um dos atos do
art. 64º CPP, quando não haja nenhuma disfuncionalidade que cumpra prevenir, p. ex.
interposição de recurso, mas já não audiência de julgamento.

3. A assunção da defesa
Os termos em que o arguido passa a ter defensor está regulado, desde logo, na
CRP, no art. 32º/3 e no art. 61º/1-e) do CPP. Deste último preceito, resulta que o arguido
22
O Estado Português não foi condenado.

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pode constituir voluntariamente um defensor ou pode o defensor ser nomeado por indicação
da ordem dos avogados – neste caso, falamos em advogado oficioso.
Estes dois modos por que se constitui defensor articulam-se de forma paralela
àquela que vimos para os casos em que a assistência por defensor é apenas admissível
versus os casos em que é obrigatória. Deste modo, quando o defensor é simplesmente
admissível, tende a ser a sua entrada no processo ocorre por intermédio do arguido; já a
defesa oficiosa, tende a acontecer nos casos em que há uma obrigatoriedade de assistência
por defensor e o arguido não escolhe um ou se apresenta sem um.
A defesa oficiosa pode ainda ter lugar quando o arguido ou porque não conhece
nenhum advogado ou porque não tem capacidade económico-financeira para constituir um,
solicita a respetiva defesa ao MP.
Daqui decorre que pode bem acontecer que, se o arguido não constitua advogado, o
inquérito decorra sem que tenha constituído advogado. O que não pode acontecer é o
processo avançar para fases ulteriores sem que o arguido tenha constituído advogado, ver
nº 3 do art. 64º CPP.
Se for nomeado ao arguido defensor oficioso e o arguido passa posteriormente uma
procuração a um advogado, é esta última que prevalece. Isto decorre art. 62º e 64º/4 in fine
CPP.
Quem é que pode assumir as funções de defensor? Nos termos do art. 1º/10 da Lei
nº 49/2004, só pode ser defensor quem for advogado. Só os juristas com inscrição ativa na
OA é que podem assumir estas funções, o que se percebe dada a necessidade de
assegurar uma formação técnica subjacente à figura do defensor. Além disso, o advogado
está vinculado a um estatuto próprio que lhe impõe deveres deontológicos que asseguram a
efetividade do direito de defesa. Um não-jurista ou um jurista-não advogado não podem ser
defensores em processo penal.
Em geral, quando estamos perante a constituição de advogado, o arguido pode, de
entre aqueles advogados que se encontrem regularmente inscritos na OA, escolher
livremente o advogado – isto é, não pode haver nenhum condicionamento por parte do
Estado nesta escolha. Já não será assim quando lhe seja nomeado advogado (advogado
oficioso), o sistema de acesso ao direito não prevê/não admite escolha do advogado. Isto
visa assegurar uma repartição equilibrada e equitativa de processos entre os advogados
que integram o sistema de acesso ao direito e evitar que haja influências externas por parte
de magistrados ou funcionários judiciais na nomeação de advogados, sob pena de os
advogados atuarem não no interesse dos seus arguidos, mas sim nos interesses das
autoridades judiciárias ou OPC.
Ainda quanto à nomeação oficiosa, se o arguido tiver meios para suportar os
honorários de um advogado, pode sempre dizer-se que o arguido tem a alternativa

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constituindo ele próprio advogado – aqui, não há propriamente uma restrição à escolha do
defensor. Mas já haverá essa restrição, quando o arguido não tem capacidade económica
para constituir um advogado.
Dentro dos casos em que há condicionantes à constituição de advogado ou à
nomeação de defensor, além daquela restrição supra, temos mais dois: quando o advogado
é, no processo em causa, também ele arguido; e quando, havendo vários arguidos, a
assistência por um só defensor de todos os arguidos contrarie a função da defesa (art. 65º
CPP).

4. O exercício da função de defesa


Em que termos é que a defesa se exerce? Nos termos do art. 63º CPP.
Aquilo que se prevê na nossa lei vai ao encontro daquilo que é a praxis e que
consiste no seguinte: o grosso da defesa do arguido é, em geral, levado a cabo pelo
defensor.
Em geral, o defensor intervém no processo no interesse da defesa e, para tanto,
deve ser independente. Neste sentido, a autonomia do advogado deve ser respeitada por
todos os intervenientes do processo penal. Além da independência em relação ao Estado, o
advogado também deve ser independente em relação ao arguido – e é esta nota de
independência que faz do defensor um verdadeiro órgão de administração da justiça.
Vamos, agora, ver as diversas funções que podem ser desempenhadas pelo
defensor: aconselhamento jurídico; assistência/acompanhamento presencial/presença do
defensor nos vários atos processuais, art. 20º/2 parte final CRP e art. 61º/1-f) CPP;
apresentar ou fazer chegar provas ao processo. Em relação a intervenções que o arguido
tenha no processo, o exercício da defesa é polivalente, faz-se de várias maneiras, desde
logo, através da apresentação de peças processuais escritas e a interposição de recurso.
Há, porém, atos que a lei reserva pessoalmente ao arguido, que são indelegáveis,
que não podem ser praticados pelo defensor. Ver art. 63º/1 parte final. Como exemplo,
temos: as declarações de arguido como meio de prova, arts. 140º/2 e 138º/1 CPP; aceitação
de uma suspensão provisória do processo.
Quando o defensor apresenta peças no processo, ele atua em representação do
arguido, mas há casos em que esta representação se estende às comunicações feitas por
parte das autoridades judiciárias e OPC, p. ex. na fase de recurso, as notificações são
tipicamente feitas aos advogados e são tidas como feitas aos arguidos.
Uma dimensão crucial para que tudo isto possa efetivar-se é poder haver
comunicação entre defensor e arguido. Esta comunicação é conditio sine qua non para que
o defensor possa atuar nos interesses do arguido, para que possa atuar como órgão de
administração da justiça. Isto, tanto do ponto de vista da informação que possa ser prestada

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pelo arguido ao defensor como também do ponto de vista da informação que o defensor
possa dar ao arguido, mormente na definição daquilo que importa levar/carrear ao processo.
O direito à comunicação entre o advogado e o arguido está previsto no art. 61º/1-f)
CPP – é uma manifestação essencial do direito ao defensor. Mesmo um arguido que está
privado da liberdade não pode ser privado de comunicar com o defensor (em privado). Este
direito não é restringível em caso algum, ver, a este propósito, o art. 143º/4 CPP. Esta
exigência foi objeto de pronúncia do TC (Ac. 7/87). Há outros países, caso do Reino Unido e
Turquia, admitem limitações àquelas comunicações em casos de terrorismo.
Temos ainda a Diretiva 2013/48/UE que prevê, no art. 3º, o acesso ao advogado sem
demora injustificada e prevê situações a partir das quais é obrigatório o acesso a um
advogado.
Para que arguido e defensor possam comunicar transparentemente, têm de ter
garantia de que aquilo que disseram é confidencial, por isso, o art. 61º fala “em privado”. Ou
seja, o Estado não deve procurar intrometer-se e tomar conhecimento daquilo que é o
conteúdo das comunicações feitas entre um arguido e seu defensor. O sigilo da
comunicação é essencial para o exercício do direito de defesa do arguido, mormente do
direito a ser assistido por advogado ou defensor. Este sigilo da comunicação existe quer na
altura da comunicação quer posteriormente, p. ex. não pode o advogado-defensor ser
arrolado testemunha para ser questionado sobre aquilo que o arguido lhe disse. Isto, em
geral, decorreria também do art. 135º/1, por causa do segredo profissional existente entre o
advogado e o seu cliente, porém, como vemos no nº 3, este segredo profissional pode ser
quebrado. Note-se que, para o advogado-defensor, para o advogado de arguido em
processo penal, este nº 3 não vale.
Para que o advogado-defensor possa exercer efetivamente a defesa, precisa de
tempo. Aqui, temos de ter em conta o art. 167º/2 CPP. Esta necessidade de tempo refere-se
tanto ao estado do processo, como à comunicação do arguido e ainda à preparação da
defesa. Isto é relevante, porque, em particular na defesa oficiosa, muitas vezes não é dado
tempo aos advogados oficiosos para se “porem a par” do processo. Se o arguido pretender
conferenciar com o advogado e se não lhe for dada essa oportunidade, vale aqui uma
proibição de valoração em relação àquilo que for dito.
A situação de indefesa se, por vezes, é imputável às autoridades judiciárias; noutras,
é imputável aos próprios advogados, principalmente advogados oficiosos. E, nestas últimas
situações, pergunta-se se não poderá o defensor ser substituído, isto, tendo em conta
aquele estatuto de independência dos advogados-defensores em processo penal. Neste
caso, poderá e deverá o Estado providenciar a respetiva substituição nos termos do art. 67º
CPP, dando uma nova oportunidade de defesa ao arguido.

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