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Processo: 375/19.8T8GRD-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
FACTOS INDICIADORES
ALEGAÇÃO
PROVA
Data do Acordão: 01-06-2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 3 Nº1, 20 Nº1, 23 Nº1, 30 CIRE
Sumário: 1 – A impotência económica em que se traduz a insolvência
corresponde, no caso das pessoas singulares, à impossibilidade de
cumprimento das obrigações vencidas, por ausência de liquidez, e
não à insuficiência patrimonial, correspondente a uma situação
líquida negativa.
2 – Impotência económica de que um credor, quando requerente
da declaração de insolvência, não tem que fazer prova direta,
tendo antes que alegar e provar os factos indiciadores da situação
de insolvência previstos no art. 20.º/1/alíneas a) a g) do CIRE,
factos estes que funcionam como requisito indispensável e
pressuposto da insolvência e que, simultaneamente, constituem
presunções, embora ilidíveis, da insolvência.
3 – Pode haver situação líquida positiva e o requerido estar em
situação de insolvência, se se verificar que a falta de crédito não
lhe permite superar a carência de liquidez para cumprir as suas
obrigações vencidas.
4 – Como, no polo oposto, uma situação líquida negativa não
implica a insolvência do devedor, se o recurso ao crédito lhe
permitir cumprir pontualmente as suas obrigações.
I – Relatório
Banco (…), SA, com sede na Rua (...), intentou ação especial de
insolvência contra C (…) e esposa, G (…), com residência (…),
pedindo que se decrete a insolvência de ambos.
Alegou, em resumo, ser detentor de um crédito sobre os requeridos no
montante global de € 82.530,09, decorrente de um contrato de mútuo
com hipoteca (celebrado em 22 de Setembro de 1999), em que os
requeridos se encontram em incumprimento desde 02/01/2015 (data a
partir da qual não pagaram as prestações mensais que entretanto se
foram vencendo); sendo o único património conhecido aos requeridos
a fração predial dada em hipoteca para garantir tal mútuo.
Mais referiu que os requeridos têm outras dívidas (que identifica),
tendo sido inclusivamente já acionados em várias execuções comuns
e fiscais; pelo que os requeridos – concluiu o requerente – em face do
único bem (a referida fração predial) de que dispõem, da ausência de
quaisquer saldos bancários e/ou crédito bancário, encontram-se
impossibilitados de cumprir o conjunto das suas obrigações vencidas,
preenchendo a sua situação a previsão do art. 3.º/1 e da alínea b) do
n.º 1 do art. 20.º, ambos do CIRE, devendo por isso ser decretada a
insolvência de ambos.
Citados os requeridos, vieram deduzir oposição, em que sustentam
que “a emissão da declaração resolutória do contrato de mútuo
invocado era um pressuposto necessário e obrigatório para tornar
imediatamente exigível toda a dívida e o requerente não deu
cumprimento à disposição contratual (…) que exige uma declaração
de resolução do requerente (…)”[1], razão pela qual, não a tendo
feito, “a obrigação do requerente é inexigível (…) e o mesmo não
está em condições de pedir a insolvência dos oponentes”[2].
Mais invocaram que os “valores presumidamente devidos pelos
oponentes e garantidos pelo imóvel são no montante de € 125.565,81
(€ 82.530,09 + € 24.775,94 + € 15.791,20 + € 2.468,58)”[3],
“montante este que é inferior àquele que requerente e Banco (...)
aceitaram valer o imóvel aqui em causa (€ 158.554,08)”[4], razão
pela qual “o património imobiliário dos opoentes será mais do que
suficiente para solver todas as presumidas dívidas dos opoentes”[5]
E, ainda, quanto ao crédito decorrente do mútuo invocado, dizem que
a quantia exigida não é devida na íntegra, “ou seja, aquilo a que o
requerente terá direito será apenas à restituição do capital das
prestações em dívida e não dos juros que integram essas prestações”.
E concluem que o pedido deve ser julgado improcedente.
Realizou-se audiência de julgamento – no início da qual se proferiu o
despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da
prova – após o que o Exmo. Juiz proferiu sentença em que, a final,
julgou a ação procedente, decretando a insolvência de ambos os
requeridos.
Inconformados com tal decisão, interpõem os requeridos recurso de
apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que
julgue o pedido de insolvência improcedente.
Terminam a sua alegação com as seguintes conclusões:
“ (…)
1)- Resulta dos documentos juntos aos autos (e com relevância para
as circunstâncias de facto ora em análise) o seguinte:
- “(…) a Execução Sumária (Ag. Execução), 82/17.6T8GRD se
encontra extinta nos termos do disposto no art. 750º do CPC,
encontrando-se os executados na lista pública” (vd. certidão junta ao
processo);
- “(…) o n/ processo nº 83/17.4T8GRD se encontra arquivado, tendo
a execução sido extinta por falta/insuficiência de bens” (vd. certidão
junta ao processo);
2)- Assim sendo, deve o facto apreendido em 14) dos factos provados
ser alterado em função do que se alegado no número anterior;
3)- Tendo presentes os documentos que constam dos autos, e os factos
alegados pelos aqui recorrentes, deve dar-se como provado que:
- sobre o imóvel melhor identificado em 3) dos factos provados
encontra-se registada hipoteca voluntária a favor do Requerente (AP
14 de 1999/08/18 e AVERB. – AP 29 de 2000/01/24) com o montante
máximo assegurado de Esc. 23.902.884$00 (ou seja, € 119.227,08);
- sobre o imóvel melhor identificado em 3) dos factos provados
encontra-se registada hipoteca voluntária a favor do Banco (…), SA -
vd. AP 17 de 2006/06/02- com o montante máximo assegurado de €
39.327,00;
- o Banco (…), SA pertence ao mesmo grupo que o requerente;
4)- O imóvel melhor identificado nestes autos, segundo a avaliação
feita pelo requerente e pelo seu parceiro de grupo - o B (…), SA-,
tinha valor suficiente para permitir o pagamento de, no limite
superior, o montante de € 158.554,08 [ € 119.227,08 + € 39.327,00
];
5)- Somando os valores presumidamente devidos pelos opoentes, e
garantidos pelo imóvel melhor referenciado, obtemos o montante de
€ 125.565,81 [ € 82.530,09 + € 24.775,94 + € 15.791,20 + €
2.468,58];
6)- E, assim sendo, este montante [€ 125.565,81] é inferior aquele
que, Requerente e Banco (...), SA, aceitaram valer o imóvel aqui em
causa… [ € 158.554,08 ];
7)- Por isso que é lícito concluir que o património imobiliário dos
opoentes será (de acordo com a avaliação feita pelo Requerente e
pelo B(…), SA, quando emprestaram dinheiro aos opoentes -que
ascendia a valores superiores aos actuais) mais do que suficiente
para solver todas as presumidas dívidas dos opoentes;
8)- Aliás, vir agora o Requerente dizer que o património imobiliário
dos recorrentes tem um valor inferior ao das suas dívidas (e que, por
isso, não permite o respectivo pagamento) é actuar em claro e
manifesto abuso de direito, na modalidade de “venire contra facto
proprio” (pois se foi o próprio Requerente quem avaliou o imóvel por
um valor superior ao das alegadas e actuais dívidas dos
recorrentes…!!...);
9)- Era absolutamente essencial parta ser decretada a insolvência
dos aqui recorrentes averiguar da composição do seu património e
suficiência do mesmo para garantir o pagamento das respectivas
dívidas;
10)- Ora, se é certo que se apurou a composição do património, tal já
não aconteceu com a sua quantificação, em termos de valor mercado,
a fim de se saber se o mesmo é ou não suficiente para garantir as
alegadas dívidas dos ora peticionantes;
11)- Na verdade, o Tribunal recorrido (pese embora a alegação dos
aqui recorrentes) nem sequer se pronunciou sobre o valor do
património dos recorrentes, antes se limitando a concluir que o
mesmo era insuficiente para o pagamento das imputadas dívidas dos
(agora) insolventes;
12)- Por isso que no processo de insolvência a solvabilidade ou não
do devedor deve aferir-se pelo valor real ou de mercado dos bens
imóveis do devedor (exercício que nem sequer se efectuou nos
presentes autos);
13)- A sentença revidenda violou, entre outras, as normas dos arts. 3º
e 20º do CIRE; (…)”
O requerente respondeu, sustentando, em síntese, que não violou a
sentença recorrida as normas substantivas referidas pelos recorrentes,
pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.
Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
IV – Fundamentação de Direito
O processo de insolvência é um processo de execução universal que
tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista
num plano de insolvência ou, quando tal não se afigure possível, na
liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do
produto obtido pelos credores – cfr. art. 1.º do CIRE.
Como pressuposto objetivo de tal processo apresenta-se e surge pois a
circunstância do devedor estar em situação ou estado de insolvência.
Por ser assim, o CIRE começa por prever uma fase declarativa de
características especiais para a declaração de insolvência, prévia à
fase executiva, que só se iniciará/ocorrerá após se apurar nessa
primeira fase a existência de estado de insolvência; fase declarativa
em que o requerente da insolvência deve começar por deduzir, em
petição própria, o pedido de declaração da situação de insolvência e,
de acordo com as regras gerais, alegar a existência desta e dos factos
que a consubstanciem (art. 23.º/1 do CIRE)
É justamente nesta fase declarativa que se situa o processo/recurso.
O requerente/apelado requereu que os requeridos/apelantes, seus
devedores, sejam declarados em situação de insolvência; pretensão
que, tendo sido julgada procedente, motivou o presente recurso, cujo
tema gira todo ele à volta da situação de insolvência dos
requeridos/apelantes.
E o que é e em que consiste – é a questão central – a “situação de
insolvência”?
É/consiste num estado de impotência económica; estado esse que, no
caso das pessoas singulares e via de regra no caso das pessoas
coletivas, se caracteriza pela impossibilidade do devedor cumprir as
suas obrigações vencidas (cfr. art. 3.º/1 do CIRE); e que, no caso das
pessoas coletivas ou patrimónios autónomos (por cujas dívidas não
haja nenhuma pessoa singular a responder pessoal e ilimitadamente),
também ocorre (mesmo que ainda não haja obrigações vencidas em
incumprimento) quando o seu passivo for manifestamente superior ao
ativo, avaliados um e outro segundo as regras contabilísticas
aplicáveis (cfr. art. 3.º/2 do CIRE).
Assim, sempre que ocorrer a impossibilidade de cumprir as
obrigações vencidas (quer no caso das pessoas singulares quer no
caso das pessoas coletivas) verifica-se a situação de insolvência (art.
3.º/1 do CIRE); e, além disso, quando se trate de pessoas coletivas ou
patrimónios autónomos de responsabilidade limitada (ainda não haja
obrigações vencidas em incumprimento), a existência de um passivo
manifestamente superior ao ativo (de um manifesto deficit
patrimonial), faz acrescer uma outra situação possível de insolvência
(art. 3.º/2 do CIRE).
Mas – é um aspeto que cumpre sublinhar, em face do “equívoco” do
posicionamento recursivo dos requeridos/apelantes – não é
exatamente da impotência/impossibilidade económica do requerido
que um credor (como é o caso) requerente da declaração de
insolvência tem que fazer prova direta.
E como é que – é a questão – se preenche/prova (quando, como é o
caso, o devedor não é o próprio requerente/apresentante) a situação de
insolvência?
Alegando-se/provando-se os factos indiciadores da situação de
insolvência previstos no art. 20.º/1 do CIRE; factos estes que
funcionam como requisito indispensável e pressuposto da insolvência
e que, simultaneamente, constituem presunções, embora ilidíveis, da
insolvência.
Efetivamente, o CIRE – decerto ciente da indiscutível gravidade que
a propositura de um processo de insolvência constitui para o visado –
exige que o requerente da declaração de insolvência alegue e prove a
verificação de algum dos factos enumerados no n.º 1 do artigo 20.º do
CIRE; que são aquilo a que se pode chamar índices significantes da
situação de insolvência, verdadeiros pressupostos da ação de
insolvência.
Em síntese:
A situação de insolvência, definida no art. 3.º do CIRE, deve estar
preenchida e refletida num dos factos enumerados no n.º 1 do art. 20.º
do CIRE; factos estes que são uma condição de recurso à ação e que
asseguram seriedade, verosimilhança e viabilidade ao pedido de
insolvência.
Sem a alegação dum desses factos/circunstâncias, não pode haver
uma intromissão de consequências tão graves na vida do sujeito como
aquelas que decorrem da prossecução de um processo de insolvência.
Porém – justamente por serem índices expressivos da situação de
insolvência – demonstrados tais factos/circunstâncias, fundam e
constituem uma presunção de insolvência, como resulta da
articulação entre os n.º 3 e 4 do art. 30.º do CIRE, segundo os quais,
provada a existência de tais factos-índices, é ao devedor que cabe
provar a inexistência da situação de insolvência, isto é, é ao devedor
que cabe provar a sua solvência (ou seja, no caso do art. 3.º/1 do
CIRE, que dispõe ou tem acessível liquidez suficiente para pagar as
suas dívidas vencidas ou, no caso do art. 3.º/2 do CIRE, que o seu
passivo não é manifestamente superior ao seu ativo).
Como refere Cassiano dos Santos[8] “ (…) o quadro do CIRE é, nesta
parte, absolutamente coerente e razoável. O requerente tem que
alegar a situação de insolvência e que alegar e provar um dos factos
significantes do n.º 1 do art. 20.º. Logrado isto, é razoável pôr a
cargo do devedor/requerido a prova de que, apesar da verdade
daquele facto, contra o que seria provável, não está afinal em
situação de insolvência”
Está pois explicado o que pretendíamos dizer quando referimos que
um credor/requerente da declaração de insolvência não tem que fazer
a prova direta da situação de insolvência do requerido: basta-lhe
alegá-la.
O que já não basta alegar – tem que os alegar e que os provar – são os
chamados índices significantes da situação de insolvência.
Aqui chegados – explicado o modo como a situação de insolvência
tem que, necessariamente, ser preenchida e apresentada (por um
credor) ao tribunal (cumprindo um dos factos índices do art. 20.º/1 do
CIRE) e os ónus probatórios que daí emergem para requerente/credor
e requerido/devedor – aplicando o que vimos de dizer ao recurso sob
apreciação, fácil é concluir, com o devido respeito, que o mesmo é
totalmente infundado.
Vejamos:
A situação de insolvência invocada, sendo os requeridos pessoas
singulares, é (tem que ser) a prevista no art. 3.º/1 do CIRE, isto é, a
impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas por parte dos
requeridos/apelantes.
E o requerente/apelante, ao invocar/provar créditos, já vencidos, dele
e do B(..) (ambos do mesmo Grupo Bancário) sobre os requeridos,
em montante global (com juros e demais acréscimos) superior a €
100.000,00 (só nas duas execuções – que dizem respeito a tais
créditos – referidas em 12 e 13, as quantias exequendas iniciais já
eram de € 74.426,10 e € 28.267,92), invocou e preencheu
claramente o facto índice previsto na alínea b) do art. 20.º/1, do CIRE
(facto índice este – da alínea b) do art. 20.º/1 do CIRE – que fora de
dúvida se liga e articula com a causa de pedir do art. 3.º/1 do CIRE).
Efetivamente, estamos perante obrigações que, pelo seu montante
(mais de € 100.000,00) e pelas circunstâncias que rodeiam os seus
incumprimentos – que vêm de há anos (no caso do crédito do Banco
requerente, os incumprimentos das prestações iniciaram-se há 5 anos)
e foram até alvo de execuções extintas pela razão referida no facto 14
– exprimem a “a impossibilidade dos requeridos satisfazerem
pontualmente a generalidade das suas obrigações”; obrigações –
montantes e circunstâncias do incumprimento – que os
requeridos/apelantes, na alegação recursiva, não contestam, uma vez
que não colocam em crise a decisão de facto que as deu como
provados[9].
Contra isto – para ilidir a presunção decorrente do preenchimento do
facto índice previsto na alínea b) do art. 20.º/1, do CIRE e assim
impedir as suas declarações de insolvência – os requeridos/apelantes
invocam que, tendo-lhes o Banco requerente e o B(…) (ambos do
mesmo Grupo Bancário) efetuado 2 mútuos ambos com hipoteca
(sobre a fração que constitui o único imóvel conhecido aos
requeridos/apelantes) e garantindo/assegurando as 2 hipotecas (e os
respetivos registos) o montante global máximo de € 158.554,08 [€
119.227,08 + € 39.327,00], isso significa que tal fração “(…)
segundo a avaliação feita pelo requerente e pelo seu parceiro de
grupo - o B(…), SA - tinha valor suficiente para permitir o
pagamento de, no limite superior, o montante de € 158.554,08”[10],
pelo que, ainda segundo os requeridos apelantes, “somando os
valores presumidamente devidos pelos opoentes (…), obtemos o
montante de € 125.565,81 [ € 82.530,09 + € 24.775,94 + €
15.791,20 + € 2.468,58] e, assim sendo, este montante [€
125.565,81] é inferior àquele que requerente e Banco (...) aceitaram
valer o imóvel aqui em causa, (…) sendo lícito concluir que o
património imobiliário dos opoentes será (…) mais do que suficiente
para solver todas as presumidas dívidas dos opoentes”[11].
Mais, continuando a seguir o raciocínio dos requeridos/apelantes,
“(…) era absolutamente essencial para ser decretada a insolvência
averiguar da composição do seu património e suficiência do mesmo
para garantir o pagamento das respetivas dívidas (…), sendo certo
que não se apurou da quantificação do seu património, em termos de
valor mercado, a fim de se saber se o mesmo é ou não suficiente para
garantir as alegadas dívidas dos ora peticionantes, (…) sendo que,
“no processo de insolvência, a solvabilidade ou não do devedor deve
aferir-se pelo valor real ou de mercado dos bens imóveis do devedor
(exercício que nem sequer se efetuou nos presentes autos)”[12]
Temos pois que o fulcro da apelação dos requeridos/apelantes se
baseia em não se ter averiguado o valor real dos seus ativos, a fim de
saber se o mesmo é ou não suficiente para fazer face ao valor dos seus
passivos, pelo que, assim sendo, segundo os requeridos/apelantes, não
está feita a prova das suas situações de insolvência.
Sucede, como já se explicou, que não é assim que as “coisas” se
colocam: demonstrado um facto índice (v. g., como é o caso, da
alínea b) do art. 20.º/1 do CIRE), tal prova – mais rigorosamente, a
prova da inexistência da situação de insolvência – cabia-lhe a eles
requeridos/apelantes, isto é, não basta dizer/invocar que a prova da
insolvência não está feita (uma vez que o que tem que ficar provado,
positivamente, é a sua solvência); ademais, e mais relevantemente, tal
prova – “da inexistência de insolvência” de que fala o art. 30.º/3/parte
final do CIRE – não se faz, nas pessoas singulares, com a prova de
deterem um ativo superior ao passivo, mas sim, como já se
mencionou, com a prova de que detêm ou têm acesso a liquidez
suficiente para pagar as suas dívidas vencidas.
A situação de insolvência – enfatiza-se mais uma vez – traduz-se na
impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas[13] (o n.º 2 do art.
3.º, respeitante apenas às pessoas coletivas, consagra uma situação
especial e, na prática, “residual” de insolvência[14]).
E para infirmar tal “impossibilidade” (presuntivamente indiciada com
o preenchimento do facto índice previsto na alínea b) do art. 20.º/1 do
CIRE) nada foi provado ou, mais exatamente, sequer
alegado/invocado, uma vez que em momento algum os
requeridos/apelantes invocam ter liquidez (ou acesso a ela) para
cumprir/satisfazer as suas obrigações, o que significa, na prática
(estando provado, como é o caso, o facto índice referido na alínea b)
do art. 20.º/1 do CIRE), a confissão do pedido.
É que a insolvência – não será redundante voltar a repeti-lo, em face
da posição dos requeridos na alegação recursiva – não se subsume ou
corresponde, no caso das pessoas singulares, à situação de alguém
que tem um ativo líquido negativo (um passivo superior ao ativo).
A insolvência é desencadeada pela existência duma situação de
impossibilidade de cumprir as obrigações assumidas,
“desencadeamento” que se justifica pela importância do cumprimento
atempado, que tem em vista evitar os prejuízos que a quebra de
compromissos produz nos interesses do tráfico e dos concretos
credores, ou seja, as regras do CIRE e o conceito de insolvência
visam evitar o agravamento de situações que podem prejudicar
gravemente os credores, procurando sanear da vida económica
aqueles que não cumprem.
O devedor é insolvente logo que se torna incapaz, por ausência de
liquidez suficiente, de pagar as suas dívidas no momento em que estas
se vencem; incapacidade que não tem que ser nem abranger todas as
obrigações assumidas pelo devedor e vencidas, uma vez que o que
releva para a insolvência é “a insusceptibilidade de satisfazer
obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do
devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento,
evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer
a generalidade dos seus compromissos”[15]
A insolvência (no caso das pessoas singulares, sempre) corresponde à
impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações vencidas,
por ausência de liquidez, e não à insuficiência patrimonial,
correspondente a uma situação líquida negativa, ou seja, pode haver
situação líquida positiva e haver insolvência, se se verificar que a
falta de crédito não permitem ao devedor superar a sua carência de
liquidez para cumprir as suas obrigações vencidas, assim como, no
polo oposto, uma situação líquida negativa não implicará a
insolvência do devedor se o recurso ao crédito lhe permitir cumprir
pontualmente as suas obrigações[16].
Assim, sendo indiscutível (os requeridos/apelantes não o contestam
sequer, repete-se) o integral preenchimento da alínea b) do art. 20.º/1
do CIRE, tal é, só por si, suficiente para julgar improcedente o
recurso e confirmar a sentença recorrida, uma vez que tudo o que se
invoca nas conclusões 3.ª e ss., tendo em vista impedir o
funcionamento da presunção decorrente do preenchimento da alínea
b) do art. 20.º/1 do CIRE, é juridicamente irrelevante.
Em síntese, a prova da “inexistência da situação de insolvência” (de
que fala o art. 30.º/3/in fine), a cargo dos aqui requeridos/apelantes,
não se faz provando que o ativo é superior ao passivo, mas sim
provando-se que se tem acesso a crédito ou se detém liquidez
suficientes para cumprir as obrigações vencidas.
De nada valendo vir dizer-se, agora, que, sem se avaliar a fração, não
se pode concluir ser o seu valor inferior ao passivo e/ou que o tribunal
devia ter ordenado a sua avaliação para poder concluir que a referida
fração é insuficiente para o pagamento das dívidas.
Para além dos requeridos/apelantes nada terem verdadeiramente
alegado na oposição sobre o valor da fração – antes se limitando,
assim como na alegação recursiva, a efetuar raciocínios a partir do
valor máximo assegurado nos registos das duas hipotecas sobre tal
fração – o que é importante e determinante, e se enfatiza, é que nada
disto é/seria juridicamente relevante, uma vez, sendo a insolvência a
impossibilidade de cumprir obrigações vencidas, a “inexistência da
situação de insolvência” (de que fala o art. 30.º/3/in fine) é
exatamente o contrário, ou seja, a possibilidade, por se ter aceso a
crédito ou liquidez, de cumprir as obrigações vencidas (ou seja, não
tem a ver, no caso da situação de insolvência definida no art. 3.º/1 do
CIRE, com o estabelecimento duma qualquer relação de
superioridade ou inferioridade entre o ativo e o passivo).
Enfim, o ónus da alegação e prova da “inexistência de situação de
insolvência” tem a ver com outros factos, não estando em causa saber
– daí que não tenhamos sequer entrado nessa discussão – se os
requeridos/apelantes têm uma situação patrimonial manifestamente
deficitária ou não; por outras palavras, embora as “contas” (entre
ativo e passivo) não possam ser feitas do modo equacionado pelos
requeridos/apelantes – não se pode, a partir do valor máximo
assegurado pelas hipotecas, dar como assente ser esse o valor da
fração – o que é decisivo, em termos de ratio decidendi, é que o
montante e as circunstâncias dos incumprimentos dos
requeridos/apelantes revelam a impotência destes satisfazerem os
seus compromissos vencidos e exprimem e significam só por si, não
tendo eles alegado que dispõem de quaisquer meios de liquidez[17],
as suas inexoráveis situações de insolvência[18].
*
*
V – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e
consequentemente confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela massa insolvente.
*
Coimbra, 01/06/2020
Barateiro Martins ( Relator)
Arlindo Oliveira
Emídio Santos