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artigo

A gestão descentralizada e
participativa das políticas públicas no Brasil

The management descentralized and


particiting of public politics in Brazil

Roberto Rocha

Resumo Abstract
Este artigo analisa o novo formato da This research analyzes the new format of
gestão das políticas públicas, constituin- management of public politics, taking
do-se parte do processo de redesenho ins- part of the institutional rearrangement
titucional implementado no país na déca- implemented in this country since the
da de 1990. Este novo formato, legitima- 90s. This new format, legitimated by the
do pela Constituição Federal de 1988, Federal Constitution of 1988, instituted
instituiu a descentralização e a participa- decentralization and participation as cen-
ção como eixos centrais do processo de tral axes of the democratizing process of
democratização da gestão pública brasi- brazilian public management in the fede-
leira, nas três esferas de governo: federal, ral, state, and municipal spheres. In this
estadual e municipal. Nesta perspectiva, perspective the Management Councils be-
os Conselhos Gestores se tornam o novo come the new locus of political articula-
locus de articulação política em busca da tion searching for the definition and for-
definição e formulação de políticas públi- mulation of public politics, through the
cas, através da interação entre os atores interaction of the many actors present in
inseridos nesses espaços. these spaces.

Palavras chave Keywords


Gestão Pública. Políticas Públicas. Public Management. Public Politics.
Descentralização. Participação. Decentralization. Participation.

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1. INTRODUÇÃO modelo de gestão absorve em sua estrutura
vários segmentos da sociedade, passa a se
O contexto político e social brasileiro, constituir o novo locus de articulação polí-
desde as últimas décadas do século pas-sa- tica na defesa pela democratização da ges-
do, tem sido marcado pelo processo de rede- tão das políticas públicas, através dos quais
finição do papel do Estado, a partir da uni- sujeitos diversos interagem no processo de
versalização dos direitos de cidadania, des- deliberação, gestão e controle social das po-
centralização e gestão democrática das po- líticas públicas, nas diversas áreas sociais.
líticas públicas. Trata-se, assim, de um no- Convém, então, levantar os seguintes
vo formato institucional, legitimado pela questionamentos: Como consolidar um no-
Constituição Federal de 1988, integrante do vo formato na gestão pública que tenha co-
processo de implementação da gestão des- mo eixo basilar a democratização e a parti-
centralizada e participativa, que ocorreu no cipação social na implementação das políti-
Brasil nos anos de 1990, nas esferas muni- cas públicas? Em que medida o cenário atu-
cipal, estadual e federal. al possibilita de fato a consolidação da ges-
A Constituição Federal, ao assegurar, tão pública descentralizada e participativa?
dentre os seus princípios e diretrizes, “a par- A participação da sociedade civil está mesmo
ticipação da população por meio de orga- delineando novas tendências na gestão das
nizações representativas, na formulação das políticas públicas? Tais questões indicam a
políticas e no controle das ações em todos necessidade da discussão sobre a gestão par-
os níveis” (Art. 204), institui, no âmbito das ticipativa na sociedade brasileira, o que sig-
políticas públicas, a participação social co- nifica compreender até onde se pode falar
mo eixo fundamental na gestão e no con- em constituição de novas formas de gestão
trole das ações do governo. Após a sua pro- das políticas públicas no Brasil, como resul-
mulgação, o grande desafio passou a ser a tados dos encontros e desencontros na rela-
regulamentação dos preceitos constitucio- ção entre Estado e Sociedade Civil.
nais a fim de se efetivar a “tão sonhada”
participação popular. Iniciou-se, desde en- 2 O PROCESSO DE REDEFINIÇÃO INSTITU-
tão, uma intensa mobilização e articulação CIONAL DA GESTÃO PÚBLICA BRASILEIRA
dos diversos segmentos sociais organiza-
dos, no sentido de se estabelecerem os me- A década de 1980 foi marcada, no Bra-
canismos jurídicos legais necessários à ges- sil, por profundas mudanças sociais, po-
tão descentralizada das políticas públicas. líticas e institucionais, reflexos do inten-
Nesse novo formato institucional, sur- so processo de busca pela democratização
gem os Conselhos Gestores1 como um no- da gestão pública brasileira. Nesse cenário,
vo padrão de interação entre governo e so- começam a ser travados fortes embates en-
ciedade, exigindo-se dos cidadãos uma atu- tre o poder estatal, movimentos sociais e
ação efetiva, por meio de processos inte- organizações da sociedade civil, desenca-
rativos, no âmbito da gestão pública. Esse deando-se uma trajetória de lutas pela am-

1. Deve-se compreendê-los como “canais de participação que estimulam representantes da população e


membros do poder público estatal em práticas que dizem respeito à gestão de bens públicos” (GOHN,
2001, p. 7).

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pliação democrática, que visava assegurar mas inovadoras de interação entre gover-
a participação da sociedade nos processos no e sociedade, através de canais e estraté-
decisórios da gestão e controle dos recur- gias de participação social, como se dá com
sos públicos. os Conselhos Gestores. É, aliás, a instituição
Esse processo de mudanças é fruto do dessas novas formas de interação que sina-
contexto de luta e mobilização dos mais di- liza a emergência de novos padrões de go-
versos segmentos sociais e entidades da so- verno, baseados na gestão democrática, cen-
ciedade civil, organizados, a partir da déca- trada em três eixos fundamentais, como “a
da de 1970, em prol da conquista de melho- maior responsabilidade dos governos em re-
res condições de vida e da necessidade de lação às políticas sociais e às demandas dos
democratização do Estado. Com a abertu- seus cidadãos; o reconhecimento dos direi-
ra política brasileira, ocorrida nos anos de tos sociais; e a abertura de espaços públicos
1980, que inicia o processo de ruptura com para a ampla participação cívica da socieda-
o poder autoritário e centralizado do regi- de” (SANTOS JÚNIOR, 2001, p. 228).
me militar (vigente até então), intensifica- Na década de 1990, assiste-se a um pro-
se esse ideário participacionista, em que os cesso de regulamentação da gestão descen-
mais diversos setores organizados da socie- tralizada das políticas públicas em diversas
dade buscavam construir formas e encon- áreas sociais (saúde, educação, assistência
trar instrumentos capazes de influenciar as social, etc), com a inserção da participação
administrações públicas no país. da sociedade civil, via Conselhos Gestores,
Na Constituição Federal de 1988 en- na sua formulação e controle. Nesse senti-
contram-se claros sinais da luta pela de- do, tais Conselhos passam a ser considera-
mocratização da gestão pública, quando dos canais de participação mais expressivos
nela se garantiu, por exemplo, o princípio da emergência de um outro regime de ação
da gestão descentralizada e participativa. pública na esfera local2, caracterizados pela
Nos artigos 204 e 227, a Carta Constitu- abertura de novos padrões de interação en-
cional assegura a participação da popula- tre governo e sociedade na gestão de políti-
ção, por meio de organizações representa- cas públicas (SANTOS JÚNIOR, 2001).
tivas, no processo de formulação e contro- Os Conselhos Gestores se constituem,
le das políticas públicas em todos os níveis assim, o novo formato institucional pre-
da gestão administrativa (municipal, esta- visto nos artigos da Constituição Federal
dual e federal). de 1988, que estabelecem a participação
A Constituição de 1988 apresenta, com em diversas áreas sociais: na saúde, como
efeito, uma nova configuração da gestão das “participação da comunidade” (art. 198, in-
políticas públicas, instituindo novos meca- ciso II); na assistência social, como “par-
nismos nos processos de tomada de decisões, ticipação da população”, por meio de or-
o que faz emergir um regime de ação públi- ganizações representativas, na formulação
ca descentralizada, no qual são criadas for- das políticas sociais e controle em todos os

2. Martins (1999), em Sociologia da história lenta, examinando o processo de estruturação da sociedade


brasileira, refere-se à permanente interpenetração do público e do privado na trama do tecido social e re-
vela como são erigidas as relações de poderes que vão constituindo as bases do Estado patrimonialista.

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níveis de governo (art. 204, inciso II); e na culação clientelista entre governos estadu-
educação, como “gestão democrática do en- ais e municipais e o federal, baseada na tro-
sino público” (art. 206, inciso VI). ca de favores em que, muitas vezes, as ins-
Assiste-se, então, ao surgimento de novas tâncias locais se transformavam em agen-
iniciativas de gestão democrática das políticas ciadores de recursos federais para o municí-
públicas, com a introdução de reformas insti- pio ou estado, procurando garantir a imple-
tucionais que visam ao fortalecimento da au- mentação de determinada política pública
tonomia dos municípios e ao estabelecimento para sua clientela. Embora estes mecanis-
de novos formatos de organização do poder mos se tenham intensificado durante a No-
local, vinculados à criação de parcerias entre va República, já se faziam sentir nos anos
o poder público e setores organizados da so- de 1970 na vigência do regime autoritário
ciedade civil. Convém, por isso, analisar esse (DRAIBE, 1992).
processo de redefinição da gestão pública bra- Nesse contexto, era característica central
sileira, com a institucionalização dos Conse- da gestão pública a exclusão da sociedade
lhos Gestores, associados a dois mecanismos civil do processo de formulação das políti-
que lhes constituem condição sine qua non: cas públicas, da implementação dos progra-
a descentralização e a participação, tendo em mas e do controle da ação governamental.
vista os impactos que incidirem diretamente O processo decisório relativo a políticas e
na configuração desse novo formato da ges- programas envolvia a presença significati-
tão das políticas públicas. va de três elementos que sedimentavam, no
A agenda da reforma institucional, que país, a relação entre Estado e Sociedade, so-
então se definiu, teve como eixos centrais a bretudo a partir da década de 1980: o clien-
democratização dos processos decisórios e a telismo, o corporativismo e o burocratismo
eqüidade dos resultados na gestão das polí- (DINIZ, 1996).
ticas públicas. Tratava-se, nesse momento, Dessa forma, as políticas públicas eram
de implementar mudanças não apenas no marcadas pela fragmentação institucional,
regime político, mas também na gestão das desarticulação que ocorria num mesmo ní-
políticas públicas, procurando-se superar as vel de governo e entre diferentes esferas.
características autoritárias e paternalistas Tal desenho institucional dificultava a ta-
do padrão brasileiro de intervenção estatal refa de coordenação, com implicações pa-
na área social. ra a eficiência e a efetividade das políticas
Vale ressaltar que a gestão pública, no públicas na sociedade. Sem mencionar que
contexto brasileiro, até o início dos anos de o crescimento do aparato estatal se deu de-
1980, caracterizava-se pela centralização sordenadamente, sem o visgo de uma coor-
decisória e financeira na esfera federal, ca- denação efetiva.
bendo aos estados e municípios, quando en- Nos anos de 1990, impulsiona-se o pro-
volvidos em uma política específica, o papel cesso de descentralização político-admi-
de executores das políticas formuladas cen- nistrativa e a municipalização das políticas
tralmente. Por outro lado, à medida que os públicas, o que levou à transformação e ao
recursos eram centralmente controlados e fortalecimento das instituições democráti-
as esferas locais de poder se expunham di- cas no país. Trata-se de um processo que
retamente às necessidades e demandas dos tem ensejado mudanças na organização
cidadãos, tendia a estabelecer-se uma arti- e funcionamento dos governos locais, in-

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corporadas de forma diferenciada segun- segmentos da população na esfera do aten-
do as diretrizes adotadas e o grau de ins- dimento estatal.
titucionalização dos canais de gestão de- Draibe (1992), analisando a emergên-
mocrática e dos instrumentos redistributi- cia dessa nova agenda política, mostra que,
vos da renda e riqueza produzidas nas ci- embora se mantenha a meta da garantia de
dades brasileiras (ARRETCHE, 2000). As- direitos sociais para todos, há uma redefi-
sim, do final dos anos de 1980 aos anos nição da forma de os assegurar, assumindo
de 1990 as propostas de mudanças polí- lugar central o envolvimento de novos ato-
ticas se foram redefinindo, sendo enfati- res na própria prestação dos serviços. Pa-
zada a necessidade de estabelecimento de ra a autora,
prioridades de ação, a busca de novas for- a questão é como ampliar a responsabili-
mas de articulação com a sociedade civil e dade estatal na área social sem necessaria-
com o mercado, envolvendo a participa- mente arcarmos com os recorrentes proble-
ção de ONG’s, comunidade organizada e mas de gigantismo, burocratismo, autono-
setor privado na provisão de serviços pú- mizações indevidas, ausências de controles.
blicos e a introdução de novas formas de E isso numa época em que a sensibilidade
gestão nas organizações estatais, de forma social e da opinião pública para tais ques-
a dotá-las de maior agilidade e efetivida- tões aumentou enormemente; em que, por
de, superando a rigidez derivada da buro- outro lado, os discursos e as posturas libe-
cratização estatal e da hierarquização ex- rais privatizantes vêm ganhando amplo es-
cessiva dos processos decisórios. paço e em que, finalmente, foram alteradas
As propostas enfatizadas, nesse mo- e ampliadas as possibilidades de envolvi-
mento, foram a descentralização e a parti- mento de formas organizadas da socieda-
cipação dos cidadãos na formulação e im- de na própria operação dos serviços sociais,
plementação das políticas públicas. Co- apontando para modos distintos de orga-
mo mostra Draibe (1992), procurava-se, do nização e equilíbrio entre o Estado, o setor
ponto de vista da orientação substantiva privado lucrativo e o setor privado não-lu-
das políticas sociais, caminhar sob o impul- crativo na produção e distribuição de bens
so das forças democratizantes, para um Es- e serviços sociais (DRAIBE, 1992, p. 68).
tado do Bem-Estar do tipo institucional-re-
distributivista, caracterizado pela concep- No estilo de gestão pública implemen-
ção universalista de direitos sociais, uma tada no Brasil, a partir dos anos de 1990,
vez que o sistema de proteção social im- em que se destacam as experiências de
plantado no país caracterizava-se pelos tra- gestão participativa em inúmeras cidades
ços corporativistas – aos quais se agrega- brasileiras, evidencia-se a participação da
vam outras formas de segmentação da po- sociedade como uma dimensão vital no
pulação – e pela exclusão de amplos con- processo de construção da cidadania. Pa-
tingentes populacionais do acesso à cida- ra Dagnino (1994), está implícita, nessa
dania. Nesta perspectiva, a descentraliza- concepção, a idéia de “cidadania amplia-
ção e a participação eram vistas como in- da”, que possibilita o acesso dos cidadãos
gredientes fundamentais desta reorientação ao processo de gestão das políticas públi-
das políticas sociais, voltada para a garan- cas em nossa sociedade. Certamente é nes-
tia da eqüidade e para a inclusão de novos se contexto de mudanças que surgem si-

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nais da emergência de uma nova cultura vindicam a participação social, a democra-
política, vinculada à dimensão dos direi- cia participativa, o controle social sobre o
tos sociais inscritos na Constituição Fede- Estado e a realização de parcerias entre o
ral de 1988 e à pluralidade de atores so- Estado e a sociedade civil. Trata-se de um
ciais com presença na cena pública brasi- cenário de mudanças, característico da pró-
leira nas três esferas de governo. pria conjuntura política brasileira, que pos-
Nesse sentido, a participação da soci- sibilitou requalificar a temática da partici-
edade civil na gestão da coisa pública ga- pação no que diz respeito ao aprofunda-
nha novos contornos e dimensões, com a mento da democracia, à construção de um
inclusão de vários atores sociais no proces- novo paradigma às ações coletivas, basea-
so de deliberação pública. Trata-se de uma do na categoria da cidadania e ao estabele-
tendência que se contrapõe à forma centra- cimento de novos espaços de discussão, for-
lizada e autoritária que, por mais de duas mulação e decisão. No entanto, temas como
décadas, prevalecera na estrutura política participação, democracia, controle social e
brasileira. A partir desse marco, temas co- parceria não são conceitos com igual signi-
mo descentralização e reordenamento ins- ficado para todos os atores sociais, de sorte
titucional seriam recorrentes e vitais para a que essa generalização e disputa de signifi-
revalorização da participação política e do cados colocam a necessidade de refazer ini-
poder local. cialmente alguns percursos históricos que
Por esse enfoque, neste estudo analisa- construíram conceitos e práticas de partici-
do, o pressuposto é o de que a gestão públi- pação política no Brasil.
ca democrática possibilita o acesso dos ci- Pode-se, inicialmente, dizer que a par-
dadãos aos processos decisórios no âmbito ticipação democrática nas decisões e ações
da sociedade política. Isso, expressa Raiche- públicas tem sido duramente conquistada
lis (2000, p. 42), “permite a participação da pela sociedade civil por lidar com um Es-
sociedade civil organizada na formulação e tado tradicionalmente privatista, que sem-
na revisão das regras que conduzem as ne- pre manteve relações simbióticas e corpora-
gociações e arbitragem sobre os interesses tivas com grupos privilegiados. Trata-se, no
em jogo, além do acompanhamento da im- Brasil, de um Estado com uma história de
plementação das decisões”. mistura promíscua entre o público e o pri-
vado3, marcada pela exclusão de conquistas
3. A PARTICIPAÇÃO SOCIAL COMO PROCESSO sociais e democráticas coletivamente cons-
DE DEMOCRATIZAÇÃO DA GESTÃO PÚBLICA truídas, apesar de os segmentos sociais defi-
nirem persistentemente seu lugar como ato-
Com a nova institucionalidade, os anos res nessa história, bem como de suas pos-
de 1990 serão marcados, no Brasil, por uma sibilidades de participar da fixação de seus
generalização do discurso da participação. rumos. Nesta perspectiva, as mobilizações e
Os mais diversos atores sociais, tanto no movimentos sociais que se construíram no
âmbito da sociedade quanto do Estado, rei- contexto sócio-político brasileiro o fizeram

3. Alguns autores, como Benevides (1991), Dagnino (1994) e Teles (1994), procuram demonstrar que a
cidadania é um processo de construção, conquista e reconstrução de direitos, que não “se vinculam a

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como formas de participação política, que redefinição e da gestão da sociedade, cul-
se diferenciam segundo as questões reivin- minou com o próprio reconhecimento, na
dicadas, definidas pelas condições concre- Constituição Federal de 1988, denominada
tas de cada época, pela experiência históri- de Constituição Cidadã.
ca e política dos atores protagonistas e pela Na década de 1990, merecem destaque,
maior ou menor abertura dos governantes devido à pressão e construção coletiva de
ao diálogo e à negociação. espaços de gestão, as áreas que envolvem
Nos anos de 1980, o processo de mobili- políticas de defesa dos direitos da criança
zação social se intensifica e ganha visibili- e de assistência social. Através das novas
dade ao tentar aglutinar esforços para o es- leis criadas, como o Estatuto da Criança e
tabelecimento da nova ordem democrática do Adolescente (ECA) e a Lei Orgânica da
no país. Elegem como tema central a am- Assistência Social (LOAS), essas políticas,
pliação da participação política para os di- marcadas tradicionalmente pelo paternalis-
ferentes segmentos sociais organizados em mo e clientelismo, são redefinidas e alcan-
torno de demandas pontuais, mas acenan- çam formalmente um caráter universal e
do para o conjunto da sociedade. No campo democrático, submetidas ao controle social,
popular, proliferaram movimentos, asso- exercido por movimentos, entidades profis-
ciações e federações de moradores, conse- sionais e outros representantes da socieda-
lhos populares, fóruns e plenárias que pu- de civil. Ademais, intensifica-se a discus-
nham como utopia a participação na gestão são da relação entre Estado e Sociedade Ci-
pública (SILVA, 1997). vil, com o enfoque, num regime democrá-
Há, assim, na década de 1980, uma fa- tico, centrando-se nas questões dos novos
se de emergência dos “novos movimen- direitos sociais e seus instrumentos cons-
tos sociais”, que se organizam como espa- titucionais. Em outros termos, a participa-
ços de ação reivindicativa e recusam rela- ção da sociedade civil na gestão das políti-
ções subordinadas, de tutela ou de coopta- cas públicas ganhou grande relevância com
ção, com o Estado, partidos ou outras insti- a criação e ampliação de canais proposi-
tuições. Esses novos sujeitos buscam cons- tivos e deliberativos, como os fóruns e os
truir uma cultura participativa e autônoma, conselhos gestores, de modo que temas co-
multiplicando-se por todo o país e consti- mo “participação comunitária e participa-
tuindo uma vasta teia de organizações po- ção popular cedem lugar a duas novas de-
pulares que se mobilizam em torno da con- nominações: participação cidadã e partici-
quista, garantia e ampliação de direitos, al- pação social” (GOHN, 2001, p. 56).
cançando a agenda para a luta contra as Na participação cidadã, segundo Gohn
mais diversas discriminações (DAGNINO, (idem, p. 57), a categoria central deixa de ser
1994). A emergência dos chamados novos a comunidade ou o povo e passa a ser a so-
movimentos sociais, que se pautou pela lu- ciedade. O conceito de participação cidadã
ta, segundo Arendt (1991), do “direito a ter está baseado na universalização dos direitos
direitos”, e do direito de participar da sua sociais, na ampliação da cidadania e numa

uma estratégia das classes dominantes e do Estado para a incorporação política progressiva dos setores
excluídos, com vista a uma maior integração social, ou como condição jurídica e política, indispensá-
vel à instalação do capitalismo” (DAGNINO, 1994, p. 109).

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nova compreensão sobre o papel e o caráter tas da democracia com participação co-
do Estado, remetendo à definição das priori- munitária nos anos 80, quando a idéia da
dades nas políticas públicas, a partir de um participação vinculava-se à apropriação
debate também público. Assim, a participa- simples de espaços físicos. Trata-se agora
ção passa a ser concebida como intervenção de mudar a ótica do olhar, do pensar e do
social periódica e planejada, posto que se dá fazer; alterar os valores e os referenciais
ao longo de todo o processo de formulação e que balizam o planejamento e o exercício
implementação de políticas públicas. A ca- das práticas democráticas.
racterística principal deste tipo de participa-
ção é a tendência à institucionalização, en- Como se vê, esse processo de mudan-
tendida como inclusão no arcabouço jurídi- ça no cenário político brasileiro, que resul-
co-institucional do Estado, a partir da cria- tou na criação do modelo de gestão públi-
ção e implementação de novas estruturas de ca descentralizada e participativa, não foi
representações, compostas por pessoas elei- construído nem espontânea e nem pacifi-
tas diretamente pela sociedade civil e por re- camente. É que já havia uma herança an-
presentantes do poder público. terior, feita de experiências acumuladas de
O sentido da participação social está, por participação (nos anos de 1980), advindas
sua vez, fundado na idéia do desenvolvi- do campo democrático, em particular as de-
mento de uma “cultura cívica”4, que pres- senvolvidas pelos movimentos sociais e su-
supõe comunidades atuantes, compostas de as organizações. Em segundo lugar, foi ne-
organizações autônomas da sociedade civil, cessária a vontade dos diversos segmentos
imbuídas de espírito público, com relações políticos para que se avançasse na criação
sociais igualitárias e estruturas fincadas na de novos espaços públicos, os quais, con-
confiança e na colaboração, articuladas em soante Teixeira (2001, p. 46), “são uma di-
redes horizontais. mensão aberta, plural, permeável e autôno-
Ora, à medida que organismos da socie- ma, composta de arenas de interação social
dade civil ganham visibilidade e legitimida- e baixa institucionalização”.
de a partir da definição de instrumentos de- Nesse contexto, a participação da ges-
mocráticos de participação política que, ao tão dos interesses coletivos passa a signifi-
se efetivarem, apontam simultaneamente os car também participar do governo da socie-
limites da democracia representativa e a ne- dade, disputar espaços de definição e gestão
cessidade de se aprofundar os processos de das políticas públicas, questionar o monopó-
participação social e política, tal dinâmica lio do Estado como gestor da coisa pública,
introduz novas mudanças, como expressa construir espaços públicos, afirmando a im-
Gohn (2002, p. 7), portância do controle social sobre o Estado,
a dimensão e o significado desta mudança pela gestão participativa, a co-gestão, e a in-
são enormes porque não se trata apenas terface entre o Estado e a sociedade (DAGNI-
de ‘introduzir o povo’ em práticas de ges- NO, 1994). Por isso que participação signifi-
tão pública, como preconizava as propos- ca, segundo Teixeira (2001, p. 27),

4. A cultura cívica articula-se à idéia de deveres e responsabilidades, à propensão ao comportamento


solidário, principalmente para com aqueles que se encontram excluídos do exercício dos direitos, e do
direito a ter direitos (PUTNAM, 1996).

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‘fazer parte’, ‘tomar parte’, ‘ser parte’ de um condição necessária à democratização da
ato ou processo, de uma atividade pública, gestão pública. Como, porém, se explica o
de ações coletivas. Referir ‘a parte’ implica fato de apenas um limitado número de pes-
pensar o todo, a sociedade, o Estado, a re- soas participarem das decisões importantes
lação das partes entre si e destas com o to- na sociedade? Que fatores condicionam o
do e, como este não é homogêneo, diferen- exercício da participação? E o que fazer pa-
ciam-se os interesses, aspirações, valores e ra sanar as restrições à participação dos ci-
recursos de poder. dadãos na gestão da coisa pública?
Tais questionamentos estão relaciona-
A participação na esfera pública é im- dos à própria estrutura de poder, caracte-
portante pelo conteúdo pedagógico, princi- rística da sociedade brasileira, que concen-
palmente para a construção de uma ética tra as decisões nas mãos de uma elite mi-
social que contribua significantemente para noritária, dificultando o acesso da popula-
o reordenamento da gestão pública e propi- ção ao processo de tomada de decisões. Um
cie a passagem de uma cultura de favores outro fator, que afeta a participação social
a uma cultura de direitos. Nesta perspecti- e política, é a divisão existente entre a es-
va, é pressuposto do presente estudo que a fera estatal e a civil, pois tradicionalmen-
participação é o processo mediante o qual te supõe-se que o poder estatal é o promo-
os membros de uma sociedade têm parte na tor do desenvolvimento social, e a socieda-
produção, na gestão e no usufruto dos bens de civil meramente a beneficiária. Esta di-
públicos. Trata-se, então, de compreender cotomia tem, no modelo de democracia vi-
a participação como um processo de con- gente no Brasil, marcado os encontros e de-
quista, como um caminho para a constru- sencontros nas relações entre Estado e So-
ção da cidadania5, pois, na verdade, a parti- ciedade (BENEVIDES, 1991).
cipação dos cidadãos no processo de gestão Dessa forma, numa sociedade marca-
dos bens públicos de uma sociedade rompe da pela experiência da relação de mando
com o modelo de centralização do poder, e obediência, exclusão e privilégio, mais
característico dos regimes autoritários. do que nunca se torna indispensável a lu-
A participação promove e desenvolve ta pela participação política, em todos os
as próprias qualidades que lhes são neces- níveis e esferas, como condição sine qua
sárias, já que, conforme Pateman (1992, p. non para a construção da cidadania no pa-
61), “quanto mais os cidadãos participam ís. Aliás, autores como Benevides (1991),
melhor capacitados eles se tornam para fa- Hirst (1992) e Habermas (1997) têm reava-
zê-lo”. Ou seja, a participação dos cidadãos liado o conceito e a prática da democracia
na vida pública torna-lhes aptos para in- representativa e proposto que seja anali-
tervir nos processos de discussão e delibe- sada considerando os critérios de igualda-
ração de seus interesses, sendo, então, uma de social e participação política dos cida-

5. Alguns autores, como Teles (1994), Dagnino (1994), Benevides (1991) e Bobbio (1992), procuram de-
monstrar que a cidadania é um processo de construção, conquista e reconstrução de direitos, que não
“se vincula a uma estratégia das classes dominantes e do Estado para a incorporação política progres-
siva dos setores excluídos, com vista a uma maior integração social, ou como condição jurídica e polí-
tica, indispensável à instalação do capitalismo” (DAGNINO, 1994, p. 109).

A gestão descentralizada e participativa das políticas públicas no Brasil 49


dãos. É que o surgimento de novos atores acesso, inclusão e pertencimento ao siste-
sociais, a limitação da representação polí- ma político e alcance o direito de partici-
tica ao processo eleitoral e a importância pação na definição desse sistema. Cidada-
de uma participação mais direta deram ori- nia que, consoante Silva (1997), institua ci-
gem, por exemplo, às reflexões sobre a de- dadãos com direitos e deveres e, sobretudo,
mocracia participativa e deliberativa, as- co-partícipes da gestão pública e co-gesto-
sentada na idéia da transformação do ci- res de responsabilidades sociais, principal-
dadão num ator político e consciente, que mente no âmbito da esfera local.
supera o papel de mero expectador e pen- Na construção desse processo de demo-
sa comunitariamente pela constituição de cratização da esfera pública local parece fun-
espaços públicos, como fóruns, conselhos, damental a participação ativa dos cidadãos,
orçamento participativo, etc. uma cooperação social intensa e a integra-
Esses autores vêem o sistema político re- ção das políticas públicas. É o que consta-
presentativo, vigente hoje na grande maio- tam os resultados de algumas pesquisas, que
ria das sociedades contemporâneas, como têm analisado as experiências exitosas nesse
inibidor da participação dos cidadãos na campo em algumas cidades brasileiras como
esfera da administração pública. Por isso, Porto Alegre, Santos, Recife e Fortaleza. Para
propõem a criação e implementação de me- Guimarães Neto e Araújo (998, p. 56),
canismos institucionais que lhes garantam os espaços locais têm, assim, ganhado cres-
o acesso aos processos de decisão, uma vez cente relevância. As cidades passam a ser
que o modelo democrático vigente se mos- concebidas como atores políticos relevan-
tra deficiente para atingir um nível satisfa- tes, capazes de assumir a centralidade das
tório de participação na relação entre Esta- ações de intervenções nas diferentes esferas
do e sociedade civil. da vida social e de atuar como elo [...] entre
Assim, a experiência da gestão partici- a sociedade civil, a iniciativa privada e as
pativa sugere novos temas na agenda pú- diferentes instâncias do Estado.
blica, imprime a conquista de novos direi-
tos e o reconhecimento de novos sujeitos, A presença desses novos agentes na es-
sinalizando a construção de uma nova ci- fera local, que aos poucos emergiram do
dadania e de uma outra cultura política. seu “casulo” nos movimentos sociais, é uma
Como expressa Dagnino (2002, p. 10), marca da cena política brasileira contem-
a redefinição da noção de cidadania, empre- porânea, constituindo-se um contra-ponto
endida pelos movimentos sociais e por outros à retração do Estado, motivada pela inca-
setores na década de 1980, aponta na direção pacidade fiscal de responder às demandas
de uma sociedade mais igualitária em todos da população. Essa revitalização do espaço
os seus níveis, baseada no reconhecimento local, permeado por experiências de gestão
dos seus membros como sujeitos portadores democrática, possibilitou que novos ato-
de direitos, inclusive aquele de participar efe- res passassem a ter condições de competir e
tivamente na gestão da sociedade. testar modelos alternativos de poder, em si-
tuações que dificilmente existiriam nos ní-
Está implícita nesta concepção a idéia veis centralizados da política nacional.
de uma cidadania ampliada, que transcen- Santos Júnior (2001, p. 94) analisa a
da, segundo a autora, a reivindicação do maneira como as mudanças nas institui-

50 Revista Pós Ciências Sociais vol. 6, nº11, 2009


ções governativas locais interferem na afir- 4. OS CONSELHOS GESTORES DE
mação do sistema de governança democrá- POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO
tica das cidades brasileiras, entendendo-se BRASILEIRO E PIAUIENSE
por governança “novos padrões de intera-
ção entre governo e sociedade, baseada em O novo desenho institucional que esta-
arranjos institucionais que coordenam e re- belece a descentralização e a participação
gulam a relação entre governo e os atores como eixos centrais do processo de demo-
sociais em um sistema político democráti- cratização da gestão pública brasileira for-
co”. Parece pertinente que o envolvimen- jou os Conselhos Gestores como instâncias
to dos cidadãos na gestão pública incide di- de mediação entre governo e sociedade ci-
retamente sobre as possibilidades e os pa- vil nos processos decisórios das políticas
drões de interação entre o governo e a so- públicas, nas três esferas administrativas.
ciedade, de forma que a participação social A Constituição de 1988 inaugura essa no-
é condição indispensável tanto para a for- va institucionalidade na relação entre Es-
mulação de demandas quanto para a pró- tado e Sociedade Civil, ao abrir preceden-
pria interação política entre a sociedade e tes para a criação dos Conselhos Gestores
as instituições governamentais. como mecanismos formais de participação,
As novas experiências de gestão pública deliberação e controle social6 das políticas
democrática na realidade brasileira, como públicas. Preconiza, aliás, a Constituição, o
os Conselhos Gestores, tentam, assim, ab- caráter deliberativo7 e paritário8 dos Conse-
sorver a noção da esfera local como espaço lhos Gestores, formados por representantes
de mediação de interesses e de gestão polí- da sociedade civil e do poder público, to-
tico-administrativa descentralizada e parti- mando-os como novos atores da cena pú-
cipativa das políticas públicas. Mas estarão blica brasileira.
mesmo tais Conselhos se constituindo co- A Constituição de 1998 avançou ao criar
mo arranjos institucionais que possibilitam mecanismos de participação nas três esferas
a participação social no campo da gestão de poder, de modo a dar ao Estado brasilei-
das políticas públicas? ro um caráter democrático, oferecendo pos-

6. Em seu sentido etimológico, controle significa ato ou poder de controlar; fiscalização exercida sobre
atividades de pessoas, órgãos, para que não se desviem das normas preestabelescidas (FERREIRA, 2000).
O controle pode ser exercido e materializado pelos membros da sociedade, o que implica o controle so-
cial não só do ponto de vista do Estado sobre a sociedade, mas também da sociedade sobre o Estado.
7. O caráter deliberativo dos Conselhos compreende a participação da sociedade civil na definição de
agendas públicas que representam interesses coletivos, a formação de políticas, o controle público so-
bre as ações e decisões governamentais, a discussão de projetos relacionados ao interesse público, em
que se estabelecem alianças, explicitam conflitos, atuam como espaços que permitem a negociação, a
pactuação e a construção de consensos (CUNHA, 2002).
8. A paridade nos conselhos gestores deve ser entendida não apenas do ponto de vista quantitativo, mas,
principalmente, quanto ao aspecto qualitativo.

A gestão descentralizada e participativa das políticas públicas no Brasil 51


sibilidades para que ele, uma vez permeado tência desses novos arranjos institucionais
por espaços públicos e coletivos de gestão, nos 27 estados da federação, sendo que,
deliberação e controle, possa tornar públi- em 1998 já havia cerca de 2.908 Conselhos
ca a gestão do que é público. Na verdade, o (53,7%), num total de 5.417 municípios
Estado de Direito moderno reconhece a ne- brasileiros, enquanto que, no ano 2000, es-
cessidade de se defender a sociedade contra timava-se em aproximadamente 4.000 na
os eventuais excessos de funcionamento da área da saúde, 3.146 na assistência social e
máquina estatal, através da divisão de fun- 3.081 na infância e adolescência. Sublinhe-
ções entre os poderes e de mecanismos recí- se que esse processo de criação dos Conse-
procos de controle, sendo a grande novida- lhos Gestores foi marcado por fortes con-
de, nos anos de 1990, a idéia de ampliação flitos entre a expectativa da implementação
da participação da sociedade como agente de de políticas públicas que concretizassem os
controle. Nesse caso, o processo de partici- direitos sociais conquistados e assegurados
pação deixa de ser restrito aos setores sociais em lei e as restrições políticas, econômicas e
excluídos pelo sistema e espraia-se pelas re- culturais postas no caminho.
lações entre o Estado e o conjunto de indi- É claro que a simples existência des-
víduos e grupos sociais, cuja diversidade de ses mecanismos institucionais não signifi-
interesses e projetos integra a cidadania, de- ca que os mesmos estejam exercendo o seu
vendo ocorrer, com igual legitimidade, a dis- papel de forma efetiva e contribuindo para
puta por espaços e atendimentos do poder a consolidação do novo formato da gestão
estatal (GOHN, 2001). descentralizada e participativa das políticas
Instituídos em âmbito federal, os Con- públicas. Com efeito, a análise das experi-
selhos Gestores passaram a ser obrigatórios ências dos Conselhos Gestores na realidade
em todos os níveis de governo, a par da exi- brasileira vem sendo desenvolvida por al-
gência do repasse de recursos da esfera fe- guns estudiosos (ANDRADE, 2002; DAGNI-
deral para os estados e municípios. Prolife- NO, 2002, GOHN, 2002, et al), sob a ótica do
raram-se, então, no país, na forma de ar- processo de democratização da gestão pú-
ranjos institucionais, podendo ser temáti- blica no país, tentando-se compreender co-
cos, porque ligados a políticas sociais espe- mo se tem configurado essas esferas insti-
cíficas (saúde, assistência social, criança e tucionais como possibilidades de ampliação
adolescente, etc) ou deliberativos, porque da gestão das políticas públicas e a demo-
suas atribuições não se restringem à formu- cratização dos processos decisórios.
lação de sugestões ou encaminhamento de Dagnino (2002) reconhece os mecanis-
demandas, mas abrangem, sobretudo, a de- mos institucionais de participação como es-
cisão das políticas públicas. Em comum têm forços de controle social do Estado, visan-
a composição paritária entre governo e so- do à maior transparência e publicização das
ciedade, pois se constituem por represen- políticas públicas, e vê uma atuação efetiva,
tantes da sociedade civil e da esfera gover- na sua formulação, de setores da sociedade
namental, e a autonomia em relação ao go- civil desprovidos de outras formas de aces-
verno, apesar da vinculação a órgãos públi- so a espaços de decisão. Ademais, estudos
cos (GOHN, 2001; TATAGIBA, 2002). analisam os pressupostos da relação entre
Estudos, como os de Raichelis (1998, Estado e sociedade, na medida em que apre-
2000), por exemplo, constataram a exis- sentam os diferentes níveis ou padrões de-

52 Revista Pós Ciências Sociais vol. 6, nº11, 2009


mocratizantes da sociedade brasileira, res- fiscalização, controle e participação da so-
saltando as contradições e os diferentes re- ciedade civil no processo de produção das
sultados, de acordo com as variadas es-fe- políticas públicas (TATAGIBA, 2002, p. 79).
ras de poder e a correlação das forças polí-
ticas, econômicas ou sociais. Essa realidade leva a compreender que
Nos Conselhos Gestores, Estado e soci- o processo de conquista dos direitos deve ir
edade estão representados paritariamente, além dos mecanismos formais constituídos
mas não estão livres de manipulações e di- e definidos como fundamento do processo
vergências, caracterizados que são pela ló- de materialização dos direitos regulamen-
gica da defesa dos interesses particularistas. tados nas leis orgânicas de políticas públi-
Esse clima de tensão é mais perceptível no cas. Num estudo acerca da experiência do
plano local, onde os atores sociais se rela- Conselho Estadual da Criança e do Adoles-
cionam mais diretamente e reconfiguram cente no Piauí, Ferreira (1997, p. 172), por
as formas e culturas políticas tradicionais, exemplo, enfatiza que
carregadas de práticas clientelísticas e pa- é preciso que essa luta pela participação,
trimonialistas (GOHN, 2002). como um mecanismo de controle de ações
Ocorre que a dinâmica de funcionamen- que proporcionem a materialidade do di-
to dos Conselhos Gestores, a sua organiza- reito, não se esgote com a criação de do-
ção interna e a instituição de suas relações cumentos jurídicos ou de institutos demo-
dependem, além das condições sócio-his- cráticos que não conseguem alterar práticas
tóricas, da ação interativa entre os sujeitos conservadoras.
que o compõem, estando a efetividade de
seu desempenho vinculada à correlação de Essas dificuldades chamam a atenção
forças presentes no processo de ação e in- para a insuficiência da lei na condução
teração entre os sujeitos representantes dos de processos de mudança, principalmen-
diversos segmentos da sociedade. Segundo te quando as práticas a serem transforma-
Tatagiba (2002), a dinâmica interna desses das são ditadas por interesses localizados
fóruns de deliberação é marcada por rela- no interior das estruturas de dominação da
ções verticalizadas, com forte viés autoritá- sociedade. É certo que a convivência entre
rio, uma vez que há resistências das estru- novas e velhas práticas políticas compro-
turas governamentais em aceitar o padrão mete a implementação do projeto de de-
partilhado de gestão, fazendo-o aparecer mocratização da gestão pública, com a re-
como um mecanismo dificultador do pro- produção de modelos que inibem os avan-
cesso decisório. Como bem salienta a auto- ços na construção do novo, mas essa no-
ra, em estudo acerca das experiências dos va cultura política se contrapõe à tradição
Conselhos Gestores no Brasil, autoritária, que desconhece as esferas pú-
os encontros entre Estado/sociedade nos blicas, e as práticas clientelistas ou corpo-
Conselhos têm sido afetados negativamen- rativas de grupos patrimonialistas, oligár-
te por uma grande recusa do Estado em par- quicos ou modernos/privatistas, que de-
tilhar o poder de decisão. Os governos têm fendem interesses pouco coletivos. Essa
resistido – de forma mais ou menos acentu- nova cultura política é gerada por proces-
ada, dependendo da natureza do governo e sos nos quais os diferentes interesses são
do seu projeto político – às novas formas de reconhecidos, representados e negociados,

A gestão descentralizada e participativa das políticas públicas no Brasil 53


via mediações sociais, políticas e culturais. embates ocorridos estão associados direta-
Aliás, no estudo de Andrade (2002, p. 22) mente à dificuldade em se romper com o
acerca das experiências de Conselhos Ges- modelo político-administrativo centraliza-
tores no Estado do Rio Grande do Norte, do, até então em vigor no país, que con-
são apontados alguns elementos que di- centra nas esferas federal (principalmente)
ficultaram a efetivação desse modelo de e estadual as decisões e os recursos na ges-
gestão democrática, participativa e delibe- tão das políticas públicas. Essa realidade é
rativa no país. fruto de uma forte cultura política prati-
Na dinâmica atual do modelo de gestão cada pelos governantes, que impõe resis-
compartilhada está comprometida a dimen- tências ao compartilhamento dos proces-
são democrática dos processos participati- sos decisórios de gestão.
vos. A deliberação, apesar de ser mais de- Em Teresina, o processo de implantação
mocrática do que nos formatos anteriores, desse novo formato institucional da gestão
porque submetida a um maior número de descentralizada e participativa deu-se tam-
pessoas, é uma deliberação democrática do bém na década de 1990, atendendo à exi-
ponto de vista da democracia formal. gência das legislações específicas das diver-
sas políticas sociais (criança e adolescência,
Percebe-se, assim, que esse modelo de saúde e assistência social), que prevê a par-
gestão participativa e descentralizada no ticipação dos segmentos representativos da
Brasil tem enfrentado grandes dificulda- sociedade e da esfera de governo na ges-
des, uma vez que a tradição centralizado- tão pública municipal através dos Conse-
ra e autoritária que sempre marcou o Esta- lhos Gestores. Assim, os Conselhos Gestores
do brasileiro impingiu, nas agências gover- no contexto teresinense surgem marcados
namentais, um padrão de gestão completa- por uma duplicidade de interesses, ou seja,
mente independente da sociedade e atrela- tanto estimulado por uma necessidade legal
do ora aos ditames da burocracia, ora aos como pela mobilização e luta da sociedade
interesses dos detentores do poder. Em face em busca de responder aos seus anseios.
disso, é fundamental reafirmar a importân- Esse processo de implementação dos
cia dos Conselhos Gestores como um espaço Conselhos Gestores em Teresina contou
essencialmente político de surgimento, cla- com a participação significativa de seg-
rificação e visibilidade dos cidadãos organi- mentos representativos da sociedade civil e
zados, interagindo com representantes dos do poder público municipal que, de forma
poderes constituídos. conjunta, buscavam a concretização desse
Esse processo de criação dos Conselhos novo reordenamento institucional para as
Gestores não se efetivou facilmente, tam- políticas públicas na realidade local. Segun-
bém, no contexto piauiense, pois, confor- do fontes documentais, principalmente atas
me registros documentais e estudos realiza- e relatórios, o primeiro Conselho a ser ins-
dos, foram necessários diversos encontros, tituído em Teresina foi o Conselho Munici-
marcados por embates e conflitos, envol- pal dos Direitos da Criança e do Adolescen-
vendo segmentos representativos da socie- te (CMDCAT), criado em 1991, seguido pelo
dade civil, gestores estaduais e municipais, Conselho Municipal de Saúde (CMS), cria-
Ministério Público, Câmara de Vereadores, do em 1992, e, posteriormente, o Conselho
entre outros. Destaque-se que os diversos Municipal de Assistência Social de Teresina

54 Revista Pós Ciências Sociais vol. 6, nº11, 2009


(CMAS/TE), legalmente instituído pela Lei participação da sociedade civil como um
2.456, de 18 de janeiro de 1996. elemento dos processos decisórios nas três
Embora instituídos através de proje- esferas de governo (municipal, estadual e
tos de lei de iniciativa do poder público, federal) e introduziu-se uma série de me-
a criação desses Conselhos deu-se, funda- canismos permitindo que representações de
mentalmente, em decorrência de um inten- segmentos sociais tivessem acesso à gestão
so processo de mobilização social, que con- pública e tomassem parte nos referidos pro-
tou com a participação direta de diversos cessos, sinalizando o fato de que a parti-
segmentos sociais organizados, ligados às cipação social deve exercer uma influência
diversas áreas sociais, reunidos em vários significativa na formulação e implementa-
momentos para discutir a sua necessidade e ção de políticas públicas.
importância na gestão pública municipal. Nesta perspectiva, a gestão participativa
A institucionalização dos Conselhos pressupõe um Estado democrático, que tem
Gestores na realidade piauiense garante a seus eixos fundamentais nos direitos de ci-
participação da sociedade civil, através de dadania, sintetizados na igualdade dos ci-
seus segmentos organizados, no processo dadãos e na soberania popular. Daí que a
de formulação, deliberação e controle de construção de uma gestão democrática se-
políticas públicas. Contudo, apesar de as- ja a busca de um modelo em que Estado e
segurada legalmente, essa participação não Sociedade se confirmem como partes cons-
se reflete apenas em uma simples incorpo- titutivas do processo de definição de polí-
ração dos atores no espaço do Conselho. ticas públicas. Em se tratando da experi-
Na verdade, o papel atribuído aos Conse- ência de novas formas de participação no
lhos Gestores é o de ser um espaço de diá- contexto brasileiro, os Conselhos Gestores
logo, negociação e entendimento que qua- constitui em exemplo nesse sentido.
lifica as políticas públicas como atribuição Contudo, o simples fato de existir, na
do poder público e da sociedade. Constituição Federal e nas diversas legis-
Dessa forma, é imprescindível que os re- lações, a exigência da implementação da
presentantes da sociedade civil tenham cla- descentralização e municipalização das po-
reza de que representam no Conselho o in- líticas públicas e a institucionalização dos
teresse coletivo e não propostas pessoais ou Conselhos Gestores no processo de delibe-
das próprias entidades. Para tanto, é preciso ração e controle social, não é condição su-
conhecer a realidade local, as prioridades ficiente para a garantia da democratiza-
da população, o arcabouço jurídico-institu- ção da gestão pública. É necessário que es-
cional, a rede de serviços do município e se mecanismo constitucional seja acompa-
ter capacidade de mobilização e articulação nhado de uma mudança na cultura política
política. Tudo isso qualifica a participação brasileira, capaz de redefinir e alterar as re-
e as possibilidades de se intervir eficazmen- lações entre Estado e sociedade.
te no processo de tomada de decisões.

5. CONCLUSÃO

Conforme exposto neste estudo, a Cons-


tituição Federal de 1988 regulamentou a

A gestão descentralizada e participativa das políticas públicas no Brasil 55


Nota sobre o autor ______. As políticas sociais e o neoliberalis-
mo. Revista USP. n. 17, 1993.
Roberto Rocha é professor de Sociologia da
Universidade Federal do Piauí - UFPI. FERNANDES, César Rubem. Privado, porém
público: o terceiro setor na América Latina.
Rio de Janeiro. DUMARÁ, 1999, p. 19-125.
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RECEBIDO EM: 19/05/09


APROVADO EM: 27/08/09

A gestão descentralizada e participativa das políticas públicas no Brasil 57

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