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Resumo
O objetivo deste artigo é analisar a situação atual dos programas de formação acadêmico-
-profissional de professores no Brasil frente à chamada hegemonia da educação empresa-
rial e mercantil. Serão apresentados dados que mostram a expansão do ensino superior no
país, especialmente via iniciativa privada, e como isto afeta os cursos de licenciatura. Além
disso, observa-se uma forte tendência da formação docente no nosso país: realizada por
instituições privadas que visam lucro, as chamadas “universidades-empresas”, em cursos
noturnos e crescentemente a distância. Por fim, o artigo defende a necessidade urgente de
algumas inversões na atual política de formação de professores para que esse cenário mude
radicalmente.
Palavras-chave: Formação de professores, Licenciaturas, Privatização.
Abstract
The goal of this paper is to analyze the current situation of teacher education programs
in Brazil against the so-called hegemony of corporate and market education. Data sho-
wing the expansion of higher education in the country, especially via private initiative, will
be presented and how it affects these programs. In addition, there is a strong tendency
for teacher education in Brazil: made by private for-profit institutions, called “university-
-enterprise”, in evening courses, and increasingly at distance. Finally, the paper argues the
urgent need for some reversals in the current teacher education policy for this scenario to
change radically in Brazil.
Keywords: Teacher education, Teacher education programs, Privatization, Brazil.
Introdução
O propósito deste artigo é discutir os desafios atuais da formação de professores
para a educação básica no Brasil em um contexto de hegemonia da chamada educa-
ção mercantil e empresarial.
Quando publiquei o meu livro “Formação de professores: pesquisas, represen-
tações e poder”, em 2000, baseado em uma investigação acadêmica que eu havia
concluído em 1996, eu imaginava que nós havíamos chegado ao “fundo do poço”,
1 Este texto subsidiou a aula inaugural do autor no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar), no dia 18 de março de 2015. Antes disso, versões anteriores deste mesmo texto subsidia-
ram a palestra do autor na Universidade do Minho, em Braga, Portugal, no dia 8 de setembro de 2014, bem como a
participação dele durante a mesa de encerramento do IX SIMPOED – Simpósio de Formação e Profissão Docente,
em Ouro Preto, Minas Gerais, no dia 29 de maio de 2013.
2 Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor
em Educação pela University of Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos. E-mail: juliodiniz@ufmg.br
3 Ao comparar a taxa bruta de matrículas no ensino superior no Brasil, que é de 20, com a de outros países – tais
como, Finlândia (87), EUA (82), Austrália (72), Argentina (61), Chile (43) e Colômbia (27) – percebe-se facilmente o
desafio que o nosso país tem pela frente.
4 Para uma discussão sobre a privatização do ensino superior no Chile, sugiro a leitura do livro de María Olivia
Mönckeberg (MÖNCKEBERG, 2005). Para uma análise sobre os efeitos das ideias neoliberais e das políticas de
mercado na educação estadunidense em geral e, mais especificamente, na formação de professores, recomendo a
leitura do livro do Professor Kenneth Zeichner, recentemente publicado no Brasil (ZEICHNER, 2013).
5 Em 2011, as matrículas em cursos de graduação noturnos em instituições privadas somavam 3,04 milhões, ou seja,
73,2% do total de matrículas nessas instituições (BRASIL. INEP, 2013).
6 Segundo dados do Censo da Educação Superior, em 2011, verifica-se que 58,9% do conjunto de IES, em que a
maioria absoluta é privada, possuem até 1.000 matrículas e que as IES com mais de 5.000 matrículas representam
menos de 12% do total geral de IES (BRASIL. INEP, 2013).
7 Segundo Oliveira (2009), com o “temor da internacionalização do mercado interno”, o MEC propôs “limitar a par-
ticipação estrangeira a 30% do capital total das escolas” (p. 752). Para o autor, essa proposta é inócua, uma vez
que as instituições educacionais brasileiras podem lançar ações na bolsa de valores, como, aliás, já acontece, e a
legislação brasileira não proíbe que capitais internacionais invistam na bolsa e tampouco impõe limites para que
estes comprem ações nesse fundo de investimento.
Sécca e Leal (2009) explicitam a lógica empresarial que está por detrás desse
grande interesse da iniciativa privada no Brasil pela educação a distância: “a EaD
é capaz de proporcionar redução de custos e aumento de capilaridade para as IES,
por permitir atingir um número maior de estudantes por docente via a utilização
de recursos tecnológicos” (p. 145). Ou seja, a garantia de lucros ainda maiores para
os “empresários da educação” aumenta bastante por meio de investimentos na EaD.
Os dados recém-divulgados pelo INEP revelam que o “típico aluno” da educação
a distância é do sexo feminino, cursa licenciatura e frequenta uma instituição
privada (BRASIL. INEP, 2013). Continuaremos a discutir a seguir o “mercado” (sic)
da EaD no Brasil com foco sobre os programas de formação de professores para a
educação básica nessa modalidade de ensino.
tais cursos não são “apenas de licenciatura” (o que, obviamente, pode parecer pejo-
rativo) e que, com a conclusão desses programas e os respectivos diplomas, podem
atuar em outras áreas profissionais que não “apenas o ensino”. A função do setor
de “captação” é justamente, de posse desse material, convencer o “aluno-cliente” a
fazer/“comprar” tais cursos. Trabalham com a lógica do “aluno-cliente”, segundo a
qual, “busca-se o menor investimento com o maior retorno” possível. Dizem “ven-
der sonhos”. Mas, na verdade, parecem “vender ilusões”.
Possibilidades
Se quisermos realmente levar a sério o discurso sobre a melhoria da qualidade
em educação, precisamos urgentemente de políticas, programas e ações que in-
vertam a atual situação (e as atuais tendências) evidenciada(s) para a formação de
professores no Brasil (ver DINIZ-PEREIRA, 2013). As principais inversões que eu
considero imprescindíveis em relação às tendências observadas sobre a preparação
dos profissionais do magistério, em nosso país, estão resumidas no quadro a seguir:
De: Para:
Formação em nível médio Formação em nível superior
Instituições privadas Instituições PÚBLICAS
Instituições universitárias (ensino, pesquisa e
Instituições não-universitárias
extensão)
Cursos à distância Cursos presenciais
Cursos noturnos Cursos diurnos (em tempo integral*)
Cursos de curta duração (incluindo a
Cursos de, no mínimo, 3.200 horas
“formação expressinha”)
Cursos de Licenciatura com entradas separadas
Apêndices dos cursos de Bacharelado
(identidades e terminalidades próprias)
Uma “dispersão” institucional Papel central das Faculdades e Centros de Educação
Formação básica nos objetos específicos Formação básica em conhecimentos pedagógicos
de ensino (“base comum nacional”)
Sólida base teórica (em conhecimentos pedagógi-
Formação “apostilada” cos, incluindo sobre os sujeitos da educação, sobre
os objetos específicos de ensino...)
Forte articulação teoria e prática (pressupõe uma
Formação distante da realidade concreta forte articulação das universidades com os sistemas
de ensino)
*Com a garantia de bolsas de estudo para todos aqueles que não podem arcar com os custos de um ensino
integral, mesmo este sendo totalmente gratuito.
A guisa de conclusão
Em seu livro, a professora Ivanise Monfredini e demais colegas decidiram usar a
“metáfora do deserto” para representar a dura realidade dos nossos cursos de licen-
ciatura. Como denunciam as autoras, hoje, a maior parte da formação de professo-
res no Brasil se realiza em um “ambiente hostil” em que “os interesses financeiros
sobressaem aos pedagógicos”.
Utilizando-se da mesma metáfora, como sabemos, a escassez de água faz com
que a vida seja bem mais difícil no deserto. Nas atuais condições em que a maior
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