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JACAREZINHO - PR
2021
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JACAREZINHO – 2021
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 05
3. CONCLUSÃO.................................................................................................................... 34
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................ 38
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INTRODUÇÃO
Por mais antiga que seja a concepção que temos de nosso próprio Eu, pouco
conhecemos, de fato, sobre ele. Cabe, pois, perguntar: o que é aquilo que denominamos “Eu”?
Seria ele uma entidade na qual estamos, supostamente, em contato contínuo, isto é, uma
instância na qual se abrigam memórias, crenças e hábitos do sujeito? Ou seria uma conjunção
de características adquiridas pela experiência e pelo ambiente no qual o sujeito está inserido?
Ou, talvez, uma substância metafísica constante e imutável? Caso fiquemos com a primeira
opção, qual seria a característica principal que nos define como pessoa? Algumas características
físicas e mentais são necessárias, acredito, para que determinado ser seja considerado uma
pessoa dotada de identidade pessoal.
Alguns animais podem sentir prazer e dor — assim como, em geral, todos os seres
humanos — e podem talvez ter consciência e memória desses estímulos. Podemos observar em
laboratórios que animais submetidos a eletrochoques procuram evitar determinado objeto que
repita esse estímulo. Sendo assim, não possuímos meios ainda para saber se tais animais
possuem uma consciência e diálogo interno, no entanto, é evidente que nenhum outro animal,
além dos humanos, possui a capacidade de criar um método tão sofisticado de linguagem.
O ser humano é detentor de memórias, consciência e uma aptidão fantástica para criar.
Mas o que, de fato, este ser é? Sua consciência é formada por memórias ou por uma substância
anterior à sua experimentação do mundo? Dentre as várias formas de conceber a identidade
pessoal, chamo aqui a atenção para duas: a da continuidade psicológica e a puramente física.
Tecerei, assim, algumas considerações acerca dessas duas hipóteses como resposta ao problema
da identidade pessoal.1
A hipótese da continuidade psicológica como resposta ao problema da identidade
pessoal pode ser compreendida pela continuidade de memórias ao longo da vida. Nesse caso,
uma pessoa se mantém a mesma por possuir as mesmas memórias que possuía anteriormente.
Ana, exercendo a profissão de médica, é a mesma Ana de quando era estudante de medicina,
pois a primeira possui lembranças de si mesma do período em que estava na faculdade. Mas e
se caso, por algum acidente, Ana esquecesse seu passado, incluindo o tempo que passou na
faculdade? E se pudéssemos transferir as memórias de Ana para o corpo de Beatriz, sua amiga
1
Tais hipóteses foram levantadas por Eric Olson na Stanford Encyclopedia of Philosophy e, a meu ver, apresentam
claramente o problema da identidade pessoal (cf. OLSON, 2019).
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de faculdade, quem seria Ana e quem seria Beatriz, visto que ambas possuem as mesmas
memórias? Estes são alguns dos problemas da hipótese da continuidade psicológica.
Ao contrário da hipótese exposta acima, há uma outra que afirma que a questão da
identidade pessoal é puramente física. Isto é, a identidade de determinada pessoa se dá por conta
de seu organismo como um todo. Mas e se retirássemos o cérebro de Ana e o colocássemos na
Beatriz? O corpo de Ana ficaria em estado vegetativo, e suas memórias, crenças e sentimentos
seriam transferidos para outro corpo. Dessa perspectiva, quem seria Ana? E quem seria Beatriz?
Tal hipótese, portanto, parece não ser a melhor resposta para o problema da identidade pessoal,
visto que não conseguiríamos distinguir as duas garotas.
Há também outra hipótese a se considerar, a qual denominamos de substancialista.
Esta foi a primeira resposta mais conhecida para o problema da identidade pessoal, apresentada
pelo filósofo moderno René Descartes [1596-1650]. Todavia, a primeira abordagem filosófica
do problema da identidade pessoal parece ter surgido com Agostinho [354-430] que, ao que
tudo indica, não se aprofundou neste problema. Foi apenas com Descartes que a reflexão sobre
o Eu foi inserida em um sistema filosófico — o que tornou o problema da identidade pessoal
bastante conhecido e debatido.
Enquanto Descartes, em seu sistema, defende a existência de um Eu como uma
substância abstrata, imaterial e idêntica, surge no mesmo período moderno, John Locke [1632-
1704], um filósofo empirista que propõe a experiência como fundamento da existência de uma
certa identidade pessoal. Segundo Locke, a identidade pessoal surge da memória.2
Outro autor a investigar a natureza da identidade pessoal, em certa medida inspirado
pela concepção empirista de Locke, foi David Hume [1711-1776], um dos grandes nomes do
empirismo britânico — precisamente o autor que nos interessa aqui. Foi ele que levou o
problema da identidade pessoal a um novo patamar, ao se dirigir contra a ideia de substância e,
por extensão, à existência de um Eu substancial. Para Hume, conforme pretendo mostrar no
desenvolvimento deste trabalho, a memória apenas revela a ideia de identidade pessoal, ao
mostrar as relações causais entre as ideias na mente.
De acordo com Hume, o Eu é um feixe de diversas percepções que, por estarem
conjugadas de forma imperceptível na mente, fazem com que acreditemos ser este Eu uma
substância simples, idêntica e imutável. Todavia, para que pudéssemos atribuir sentido à ideia
2
Essas concepções sobre o problema da identidade pessoal, segundo os autores do período moderno, foram
levantadas por Flávio Zimmermann em seu artigo: Os antecessores de Hume no problema da identidade pessoal
(cf. ZIMMERMANN, 2014, p. 103).
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de substância, seria necessária uma impressão anterior a essa suposta substância, da qual, no
entanto, não possuímos impressão alguma. Para esclarecer esse tópico, é preciso recorrer a um
dos mais importantes princípios da filosofia de Hume, a saber: o de que toda ideia é cópia de
uma impressão. Esse é o ponto a partir do qual Hume irá desenvolver toda a sua filosofia,
incluindo-se aí sua teoria acerca da ideia de identidade pessoal. Cabe apresentar como, a partir
da experiência, ocorre o processo de formação e associação entre as ideias, segundo Hume.
A intenção deste trabalho consiste em apresentar o debate promovido por Hume acerca
da ideia de identidade pessoal. E, principalmente, a compreensão do paradoxo que ela causa,
isto é, se o sujeito é totalmente determinado pela natureza, ou se ele é resultado de suas
percepções internas. Assim sendo, passo agora, no primeiro capítulo, à reconstrução de sua
teoria das ideias, bem como dos diferentes tipos de percepções, qualidades associativas e
faculdades da mente envolvidas na concepção de uma ideia. Tais passos são necessários, na
medida em que a identidade pessoal, segundo Hume, seria apenas uma ideia, e não algo que
existe de fato. Após a exposição do processo de formação de uma ideia, especialmente das
ideias abstratas, passo a apresentar, no segundo capítulo, como se forma a ideia de identidade
pessoal, suas implicações e paradoxos. Ao final, a título de conclusão, teço algumas
considerações acerca desse tema.
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Doravante citada no corpo do texto na abreviatura TNH, seguida do número do livro, parte, seção e parágrafo.
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ideia simples, ele possivelmente terá também uma impressão simples correspondente. O
segundo afirma que se o indivíduo não possui determinada impressão, ele não terá sua ideia
correspondente (cf. GARRETT, 2015, p. 45). Deste modo, o autor propõe a existência de ideias
simples, derivadas de impressões, e, também, de ideias complexas, que são ideias derivadas de
ideias simples (cf. GARRETT, 2015, p. 44). Sendo assim, tal processo mental necessita dar ao
menos três passos: o de apreender uma impressão, o de modificá-la por alguma faculdade da
mente, e o de representá-la de uma forma diferente de como ela foi apreendida. Desta maneira,
uma faculdade responsável por transmutar os objetos das impressões em ideias complexas.
Algumas ideias complexas, dirá Hume, não possuem impressões semelhantes, todavia,
estas são exceções. De acordo com ele, podemos imaginar determinado objeto complexo sem
ao menos ter tido contato com ele (cf. TNH 1.1.1.4). Não obstante, ao contrário das ideias
complexas, que não precisam necessariamente de uma impressão complexa correspondente, as
ideias simples sempre se originam de impressões simples, e não existe exceção a essa regra (cf.
TNH 1.1.1.5). O autor é enfático: “Vemos, assim, que todas as ideias e impressões simples se
assemelham umas às outras. E, como as complexas se formam a partir delas, podemos afirmar
de um modo geral que essas duas espécies de percepções são exatamente correspondentes”
(TNH 1.1.1.6).
Além disso, Hume afirma existir uma conjunção constante entre as impressões e as
ideias, sendo as ideias simples originadas de impressões simples, nunca o contrário. De acordo
com ele, é impossível fazer com que uma pessoa tenha uma ideia de uma impressão não
percepcionada anteriormente. Ou seja, não posso esperar que um indivíduo tenha uma ideia fiel
de maçã se este nunca teve a impressão de uma maçã. Segundo Hume,
Hume nos dá o exemplo do cego de nascença. Este, segundo ele, não pode ter a ideia
de determinado objeto que seu órgão nunca percepcionou, uma vez que as ideias partem sempre
da experiência, isto é, das percepções. Sendo assim, um indivíduo que nasce com alguma
obstrução em suas faculdades jamais teria um traço de sua ideia provindo daquele sentido
obstruído em sua mente (cf. TNH 1.1.1.9). No entanto, há alguns casos que fogem à regra. Por
exemplo, quando a imaginação concebe uma tonalidade da cor azul semelhante a outra
percepcionada. Hume denomina essas ideias, tal como a da cor nunca vista, como ideias
secundárias, pois têm como material ideias simples e primárias.
[...] assim como nossas ideias são imagens de nossas impressões, assim
também podemos formar ideias secundárias, que são imagens das primárias
como se vê no presente raciocínio a seu respeito. Não se trata aqui,
propriamente falando, de uma exceção à regra, mas de uma explicação. As
ideias produzem imagens de si mesmas em novas ideias; mas, como supomos
que as primeiras são derivadas de impressões, continua sendo verdade que
todas as nossas ideias simples procedem, mediata ou imediatamente, de suas
impressões correspondentes (TNH 1.1.1.11).
Apesar de Hume fornecer um exemplo a partir do qual podemos criar uma ideia sem
uma impressão semelhante prévia — o de conseguirmos, por aproximação, chegar a uma
tonalidade de azul nunca percepcionada, este é um caso peculiar e não ameaça o sistema
filosófico humeano acerca da cópia de ideias. Apenas a existência de algumas ideias puramente
intelectuais, como a de Deus, de poder e de vácuo, configurariam uma dificuldade explicativa
para o sistema filosófico de Hume, pois não teriam nenhuma impressão correspondente (cf.
GARRETT, 2015, p. 46). Estas ideias, não obstante, só existem na medida em que são o
resultado de um montante de outras ideias complexas associadas. São ideias fictícias da mente,
pois não possuem uma impressão correspondente da qual derivam. A questão que nos cabe aqui
é: seria a ideia de identidade uma ideia inteligível deste tipo? Veremos mais adiante4.
Além das distinções entre ideias simples e ideias complexas, Hume separa as
impressões em duas: as impressões de sensação e as impressões de reflexão, sendo a primeira
de causas desconhecidas. Já as segundas são objetos de estudo do entendimento. As impressões
referem-se aos sentimentos, enquanto as ideias ao pensamento ou entendimento. Diz Garrett
que essas diferenciações se dão também por conta dos graus de força e vivacidade. Hume, ao
diferenciar as impressões de sensação das impressões de reflexão, nega-se a investigar as causas
4
Ver página 19.
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últimas das impressões de sensação, uma vez que estas dizem respeito à impressão imediata do
objeto e às sensações mais primitivas da natureza humana. Ele se limita apenas a teorizar sobre
as relações de ideias, por acreditar que as causas últimas da natureza humana são objetos de
estudo dos anatomistas e filósofos naturalistas (cf. GARRETT, 2015, pp. 38-42).
Para Hume, há duas faculdades pelas quais repetimos nossas impressões: a memória e
a imaginação. As ideias presentes na memória são mais fortes, quando comparadas às ideias da
imaginação. Pois enquanto a memória está mais presa às impressões, a imaginação não precisa
necessariamente seguir essa regra, visto que possui a liberdade de transformar outras ideias na
mente, que não necessariamente têm por origem uma impressão correspondente (cf. TNH
1.1.3.1-2). Ademais, enquanto a memória se prende mais à ordem e posição dos eventos e
objetos, e possui um maior grau de força e vivacidade, a imaginação age de forma livre,
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servindo-se de um grande acervo de ideias e impressões para criar fantasias e utopias que
ultrapassam os limites da experiência.
Como se vê, uma ideia provinda da imaginação, embora possa ser uma ideia de grande
impacto, não possui a mesma força que as ideias da memória, que estão sempre relacionadas
diretamente com as impressões do sujeito (cf. GARRETT, 2015, p. 87). Sendo assim, a
memória é uma faculdade que antecede a imaginação, visto que é na memória que se encontram
as ideias mais fortes e fiéis das impressões dos objetos. A imaginação apenas se serve das
percepções presentes na memória para realizar a associação de ideias, de modo a conceber
novas ideias. Nesse sentido, as ideias presentes na imaginação resultam das ideias e impressões
presentes na memória. Logo, a imaginação necessita articular alguns princípios para que o
processo de associação seja possível.
Conforme Hume nos mostra, há três princípios de associação entre as ideias, são eles:
semelhança, contiguidade e causa e efeito. Entretanto, tais princípios não são, necessariamente,
uma forma predefinida da mente de associar as ideias. De acordo com ele, o indivíduo apenas
percebe a semelhança dos objetos, a contiguidade entre os objetos que se sucedem ou
antecedem, e a ordem causal na qual os objetos estão inseridos, isto é, de dado objeto como
causa e outro dado objeto como sendo efeito do primeiro. Diz Hume que o sujeito, ao entrar em
contato com esses princípios presentes na relação entre os objetos seria levado à associação de
ideias conforme a semelhança, contiguidade ou causalidade. 5
5
Numa primeira leitura de Hume, concebi os princípios associativos como parte de uma estrutura cognitiva da
mente humana. Todavia, tal concepção estaria em desacordo com a teoria de Hume, segundo a qual, ele não tem
a intenção de investigar as qualidades originais da natureza humana, uma investigação que seria da competência
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Esse princípio de união entre as ideias não deve ser considerado uma conexão
inseparável — pois isso já foi excluído da imaginação —; tampouco devemos
concluir que, sem ele, a mente não poderia juntar duas ideias, pois nada é mais
livre que essa faculdade. Devemos vê-lo apenas como uma força suave, que
comumente prevalece, e que é a causa pela qual, entre outras coisas, as línguas
se correspondem de modo tão estreito umas às outras: pois a natureza de
alguma forma aponta a cada um de nós as ideias simples mais apropriadas
para serem unidas em uma ideia complexa. As qualidades que dão origem a
tal associação, e que levam a mente, dessa maneira, de uma ideia a outra, são
três, a saber: SEMELHANÇA, CONTIGUIDADE no tempo ou no espaço, e
CAUSA e EFEITO (TNH 1.1.4.1).
de um anatomista (cf. 1.1.4.6). Portanto, para a compreensão desta questão, recorri a uma leitura de Deleuze acerca
da filosofia humeana. Deleuze concebe os princípios associativos de Hume como impressões de reflexão e, assim,
existentes na mente humana somente após a percepção destes princípios na relação entre os objetos. Segundo ele:
“A constância e a uniformidade estão somente na maneira pela qual as ideias são associadas na imaginação. Em
seus três princípios (contiguidade, semelhança e causalidade), a associação ultrapassa a imaginação, é algo distinto
desta. A associação afeta a imaginação. Encontra nesta, seu termo e seu objeto, não sua origem. A associação é
uma qualidade que une as ideias, não uma qualidade das próprias ideias” (DELEUZE, 2001, p. 6).
6
Ver página 32.
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No original: “Furthermore, Hume appeals to association in the course of explaining many more features of the
mind’s operations, including the formation of complex ideas at single times; the formation of natural sequences of
ideas (temporally complex ‘trains of thought’, as one might say) over time; and even personal identity [3.1, 7.6]”
(GARRETT, 2015, p. 50).
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Ideias abstratas são noções gerais que a mente utiliza para a representação de uma dada
ideia e, também, para a associação de ideias. Segundo Hume, para que seja possível a abstração
de determinada ideia, é necessário que ignoremos algumas características do objeto, para
vincularmos a impressão e a ideia que temos dele a um termo geral, tal como a ideia de cachorro.
Nesse caso, ignoramos todas as particularidades das raças de cachorros para vincularmos
determinado cachorro ao termo geral cachorro (cf. GARRETT, 2015, p. 53).
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Desta maneira, se uma senhora diz que seu neto é uma criança bondosa e feliz, mesmo
que não conheçamos o neto desta senhora, podemos formar uma ideia relativa dele ao
lembramo-nos de algumas impressões de uma criança, tal como pouca altura e ausência de
pelos. Também conseguimos assimilar o comportamento dela lembrando de como é uma pessoa
considerada bondosa. Temos, portanto, uma noção geral de bondade que provavelmente inclui
ajudar a avó em afazeres domésticos e tratar bem os animais. Conseguimos, também, conceber
seu comportamento feliz a partir das impressões que temos de uma criança que não se isola e
que brinca com outras crianças.
TNH 1.1.7.5). Por conta disso, a abstração e generalização acerca de um objeto é algo possível
e comum, pois, ao mesmo tempo que a mente possui dificuldade de lembrar as qualidades e
graus dos objetos, a abstração se torna uma ferramenta útil para associação de ideias. Ora, se
tivéssemos que conceber cada grau de qualidade do objeto, como vimos, a mente se
sobrecarregaria tentando conceber cada aspecto, grau e qualidade particular de dado objeto e,
assim, não conseguiria abstraí-lo, de maneira a torná-lo uma ideia geral. Deste modo, quando
nos remetem a um objeto abstrato, a mente percorre o caminho mais fácil e nos aponta apenas
um objeto em particular. Sobre o processo de abstração dos particulares, Hume assinala:
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Partilhando de semelhante posição acerca das ideias particulares, Rousseau afirma que estas são predecessoras
de quaisquer ideias abstratas, que por sua vez só existem no plano discursivo. Dentre essas podemos incluir as
ideias de mente, individuação, moral, belo etc., ou seja, ideias gerais que existem somente no discurso. Diz
Rousseau: “Toda ideia geral é puramente intelectual e, por pouco que a imaginação nela se imiscua, a ideia logo
se torna particular. Tentai traçar-vos a imagem de uma árvore em geral e jamais conseguireis; mesmo que não o
queirais, será preciso vê-la pequena ou grande, pouco densa ou copada, clara ou escura, e, se dependesse de vós
nela não ver senão o que se encontra em todas as árvores, essa imagem já não se pareceria com uma árvore. Os
seres puramente abstratos são assim vistos ou só se concebem pelo discurso” (ROUSSEAU, 1973, p. 255).
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o que causa a ilusão ao sujeito detentor dela de estar contemplando um universal quando
falamos, por exemplo, sobre o bem e o mal. Não obstante, essas ideias abstratas, são apenas um
amontado de percepções de prazer e dor obtidas pelo sujeito (cf. TNH 1.1.7.10).
Nesse sentido, o hábito é responsável por despertar a memória do indivíduo, assim
como quando uma pessoa esquece um discurso, mas ao ouvir uma palavra que remeta a este
discurso, consegue, com isso, lembrá-lo (cf. TNH 1.1.7.13). O hábito, segundo esse sistema
filosófico, possui como função resgatar ideias semelhantes quando dizemos o termo geral do
qual elas participam. Assim sendo, o hábito é responsável por permitir um certo entendimento
da realidade, na medida em que o sujeito, ao ter contato com a experiência, consegue
compreendê-la pela repetição de certos eventos cotidianos (cf. MONTEIRO, 2009, p. 182).
Além disso, diz Hume, que a fantasia percorre a mente buscando a melhor ideia, ou as melhores
ideias, para associar com outras, o que proporciona a concepção de ideias abstratas e de um
melhor entendimento da experiência.
Nada é mais admirável que a rapidez com que a imaginação sugere suas ideias,
apresentando-as no instante mesmo em que elas se tornam necessárias ou
úteis. A fantasia percorre o universo de um extremo ao outro, reunindo as
ideias que dizem respeito a um determinado assunto. É como se a totalidade
do mundo intelectual das ideias fosse a um só tempo exposta à nossa visão, e
simplesmente escolhêssemos as mais adequadas a nosso propósito (TNH
1.1.7.15).
Segundo Hume, assim como outras ideias abstratas que partem de ideias particulares,
o tempo e o espaço são um amontoado de ideias particulares que formam no indivíduo regras
gerais a partir delas, criando assim ideias abstratas. Primeiro percebemos o objeto em si, após
experimentar alguma qualidade desse objeto como contiguidade no tempo ou no espaço,
formamos uma ideia da qualidade dessa percepção.
Desta forma, a noção de tempo, segundo Hume, não é uma maneira pela qual o
indivíduo é obrigado a percepcionar o objeto, como se fosse uma disposição natural do sujeito.
As noções de espacialidade e temporalidade só existem após a percepção da interação dos
objetos entre si ou com o próprio sujeito. Portanto, a ideia de temporalidade e espacialidade não
está imediatamente disposta nos objetos, ela só existe como uma relação entre eles.
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2. 1. A IDEIA DE SUBSTÂNCIA
Segundo Hume, assim como as ideias de tempo e espaço são constituídas após as
percepções, a ideia de identidade pessoal também segue o mesmo padrão. Dirá ele que algumas
percepções, embora sejam derivadas de percepções de objetos com extensão, não estão em lugar
algum. Ora, se não podemos conceber o que chamamos de Eu, tal como concebemos uma obra
de arte, como algo com extensão, devemos admitir que existem objetos que não possuem
espacialidade na mente, isto é, não há um objeto concreto que preceda tais percepções. Por
consequência, a alma, tradicionalmente concebida como uma entidade ou substância
imaterial, partiria de percepções inteligíveis que surgem como efeito de percepções tangíveis.
E por estarem de tal forma conjugadas e contempladas de maneira constante, é habitual que
defendam a existência de uma substância simples e indivisível (cf. TNH 1.4.5.10).
De acordo com Hume, os autores que acreditavam na presença de uma substância
imaterial, indivisível, constante e idêntica aceitavam tão passivamente a sua existência que nem
ao menos questionavam se tal instância existia ou não. A ideia de um Eu, diz Hume, foi
comumente aceita como verdadeira, na medida em que teríamos um acesso contínuo a essa
instância da mente (cf. TNH 1.4.6.1). A questão que nos coube fazer e responder é: o Eu é uma
entidade existente, se não é o que ele seria? Uma ficção da mente?
Hume afirma não existir uma identidade constante do Eu ao passar das percepções.
Cada percepção, segundo ele, é um espetáculo no teatro da mente, e a cada momento o Eu é
afetado por determinada percepção obtida pela sua mente. Isto é, o Eu não é uma instância
independente de suas percepções, e sim o resultado de uma ligeira continuidade de tais
percepções. Nesse sentido, a simplicidade e a identidade constante de um suposto Eu são
fictícias, tal como nos mostra a seguinte passagem:
Na visão de Hume, assim como não possuímos nenhuma ideia constante, não
possuímos, igualmente, qualquer ideia de identidade pessoal imutável. Como toda ideia é cópia
de uma impressão, de acordo com sua teoria, deveríamos possuir uma impressão imutável
correspondente, da qual, porém, não temos nenhuma. A ideia de identidade pessoal seria, pois,
apenas uma relação de impressões e ideias — relação esta que mantemos ao longo do tempo,
uma simplicidade de tal ideia. Ou seja, uma simplicidade, mesmo que fictícia, da ideia de
identidade pessoal (cf. GARRETT, 1981, p. 338).
chamados de espelho, isto é, deixar apenas a característica de um objeto que reflete uma
imagem e ignorar os diversos modelos e formatos de espelho que existem.
Hume aponta que a observação de objetos distintos de maneira quase, ou inteiramente,
imperceptível, porém relacionados de maneira constante, faz com que a mente possua a ilusão
de estar contemplando apenas um objeto simples e imutável. Todavia, a mente está em contato
com vários objetos relacionados. Assinala Hume:
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Nietzsche parece deixar-se influenciar pela mesma linha de pensamento acerca da identidade dos objetos e da
igualação dos distintos, pela linguagem, em seu livro Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, dirá ele que:
“Todo conceito surge pela igualação do não-igual. Tão certo como uma folha nunca é totalmente igual a uma outra,
é certo ainda que o conceito de folha é formado por meio de uma arbitrária abstração dessas diferenças individuais,
por um esquecer-se do diferençável, despertando então a representação, como se na natureza, além das folhas,
houvesse algo que fosse ‘folha’, tal como uma forma primordial de acordo com a qual todas as folhas fossem
tecidas, desenhadas, contornadas, coloridas, encrespadas e pintadas, mas por mãos ineptas, de sorte que nenhum
exemplar resultasse correto e confiável como cópia autêntica da forma primordial” (NIETZSCHE, 2007, p. 35-
36).
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cada objeto como um objeto distinto de outro, deveríamos, também, conceber todas as
particularidades de dado objeto. Entretanto, seria motivo de sobrecarga da mente conceber todas
as características de um determinado objeto, e poucos casos fogem a essa regra (cf. 1.1.7.7).
Por esse motivo, a mente sempre busca a simplificação conceitual dos objetos, e até dos
próprios indivíduos. Isso significa que não há simplicidade intrínseca alguma aos objetos,
segundo Hume. Um objeto é uma coisa dotada de complexidade, assim como o homem o é em
maior medida. É um instinto de adaptação, a meu ver, o costume de atribuir ao máximo uma
ideia substancial simples tanto aos objetos quanto aos próprios indivíduos. A mente abstrai por
pura necessidade. A imaginação transforma dados objetos em participantes de uma categoria
ao vincular as impressões desses objetos às impressões de objetos semelhantes, e às ideias que
os englobam. Se isso não ocorresse e tivéssemos que conceber cada propriedade do objeto, a
mente se sobrecarregaria de tal forma que não conseguiríamos formar novas ideias complexas
a partir dos objetos. Isso ocorreria, pois a mente estaria ocupada demais tentando compreender
cada aspecto particular do objeto e, quando menos esperasse, tal aspecto em particular seria
substituído por outro.
Portanto, a concepção de uma identidade simples se dá na maioria das vezes em virtude
de algumas características constantes nos objetos. Segundo Hume, cremos na existência de uma
entidade que conecta as partes que se alteram em determinado objeto para que seja possível
que, mesmo suas partes sendo alteradas, sua essência continue a mesma.
[...] suponhamos diante de nós uma massa de matéria, cujas partes são
contíguas e conectadas. É claro que iremos atribuir uma perfeita identidade a
essa massa, contanto que todas as suas partes continuem ininterrupta e
invariavelmente as mesmas, apesar de qualquer movimento ou mudança de
lugar que possamos observar no todo ou em alguma de suas partes (TNH
1.4.6.8).
Quando adicionamos uma fração de matéria em outra dada matéria, a primeira matéria
se torna suscetível à perda de sua possível identidade perfeita e constante, não sendo
considerada mais a mesma. Hume propõe que nenhum objeto é invariável e ininterrupto.
Mudanças, nem que sejam mínimas, acontecem neste objeto e, neste caso, ele perde toda sua
possível identidade inalterável que a mente humana insiste em lhe impor. A incapacidade da
mente de ver essas pequenas mudanças, é o que faz com que tenhamos um juízo imperfeito
acerca da identidade. De acordo com este autor, uma passagem rápida que relaciona os objetos
nos causa a impressão de estar contemplando somente um objeto (cf. TNH 1.4.6.8).
Hume observa, porém, que devemos levar em conta a proporção de um objeto para
emitirmos um juízo de mudança de identidade. “A adição ou a subtração de uma montanha não
seriam suficientes para produzir uma diversidade em um planeta, mas a alteração de apenas
algumas polegadas poderia destruir a identidade de alguns corpos” (TNH 1.4.6.9). De
semelhante forma, um indivíduo pode alterar uma certa quantia de percepções por conta de uma
única percepção relevante. A percepção de um indivíduo sendo atingido por uma bola
provavelmente não alteraria uma certa quantia relevante de suas percepções, quando
compreendemos a totalidade do seu ser. Todavia, a experiência de um trauma poderia
desequilibrar a totalidade de percepções daquele sujeito, fazendo com que sua conduta e
comportamento sejam totalmente alheios aos seus entes.
A mudança lenta e constante de um indivíduo poderia não ser notada pelos seus
próximos, não obstante, uma mudança brusca comportamental seria facilmente percebida. De
maneira semelhante, os objetos que se transformam de forma gradual e insensível, segundo
Hume, são os que mais causam essa confusão de identidade, pois no momento que o indivíduo
contempla a gradual alteração do objeto, faz-se o juízo de identidade imutável dele, sem levar
em conta as transformações que o objeto já sofreu. O motivo de tal confusão é que a percepção
das alterações nesses objetos são quase, ou inteiramente, imperceptíveis ao olhar humano.
Hume aponta que a percepção ininterrupta dos objetos faz com que atribuímos a eles uma
existência contínua, conforme a passagem que se segue:
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É claro que a razão disso só pode ser o fato de que a mente, ao acompanhar as
mudanças sucessivas do corpo, sente uma facilidade em passar da
consideração de sua condição em um momento para a observação de sua
condição em outro momento; por isso, em nenhum instante em particular,
percebe uma interrupção em suas ações. É em decorrência dessa percepção
contínua que a mente atribui ao objeto uma existência contínua e uma
identidade (TNH 1.4.6.10).
A conclusão a que Hume chega é, portanto, que a identidade que atribuímos às plantas,
aos animais, aos objetos e à mente humana é uma ficção criada por nossa mente. A simplicidade
que as pessoas inserem na concepção dos objetos não existe propriamente (cf. TNH 1.4.6.15).
É uma ferramenta da mente para categorizar os objetos e obter, de certa forma, um
conhecimento objetivo da realidade, tal como buscamos com a ciência.
Toda ideia é cópia de impressão. Como já mencionado, essa é uma máxima da filosofia
de Hume. Portanto, se o Eu existe, de onde deriva essa ideia? De acordo com Hume, para que
fosse possível a existência real de um Eu substancial, seria necessário haver uma impressão
constante e invariável dele ao longo da vida do indivíduo. Entretanto, Hume afirmara que não
há nenhuma impressão constante e invariável — as impressões (paixões, sensações, dor e
prazer) não são constantes, quer dizer, não são sentidas de forma simultânea a outras
impressões. Se fosse possível a existência de um Eu, a impressão dele teria que ser constante e
imutável, mas, para Hume, ele é resultado de diversas percepções, e não uma única impressão
intrínseca e imutável do ser.
Toda ideia real deve sempre ser originada de uma impressão. Mas o eu ou
pessoa não é uma impressão, e sim aquilo a que nossas diversas impressões e
ideias supostamente se referem. Se alguma impressão dá origem à ideia de eu,
essa impressão tem de continuar invariavelmente a mesma, ao longo de todo
o curso de nossas vidas — pois é dessa maneira que o eu supostamente existe.
Mas não há qualquer impressão constante e invariável. Dor e prazer, tristeza e
alegria, paixões e sensações sucedem-se umas às outras, e nunca existem todas
ao mesmo tempo. Portanto, a ideia de eu não pode ser derivada de nenhuma
dessas impressões, ou de nenhuma outra. Consequentemente, não existe tal
ideia (TNH. 1.4.6.2).
25
10
Enquanto Descartes e Locke assumem a existência de qualidades não sensíveis da mente para a unificação de
ideias, Hume afirma que todas as percepções são realidades separadas pelo princípio da separabilidade, e podem
ser unidas pelo princípio da concebilidade, tal como a ideia de identidade pessoal (cf. GARRETT, 2015, p. 82).
26
A imaginação, neste caso, possui uma certa liberdade de combinar e recombinar ideias,
com isso surge o princípio de concebilidade. Na visão de Garrett, tal princípio consiste em
afirmar que, se podemos conceber determinada ideia de forma clara, esta ideia não é absurda
ou irreal, pelo menos do ponto de vista metafísico (cf. GARRETT, 2015, p. 48). Assim como a
ideia de Eu, pois, se podemos concebê-la mentalmente, segundo esse princípio, a sua existência
seria possível (cf. TNH 1.4.6.35), ainda que num plano metafísico ou meramente mental.
Ademais, para Hume, como vimos, todas as percepções são distintas e só podem ser
sentidas separadamente. Não é necessária a existência de uma ideia constante e imutável para
sustentá-las, pois a mente não existe separadamente de suas percepções, e sim é formada por
elas.
De minha parte, quando penetro mais intimamente naquilo que denomino meu
eu, sempre deparo com uma ou outra percepção particular, de calor ou frio,
luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer. Nunca apreendo a mim mesmo,
em momento algum, sem uma percepção, e nunca consigo observar nada que
não seja uma percepção. Quando minhas percepções são suprimidas por algum
tempo, como ocorre no sono profundo, durante todo esse tempo fico insensível
a mim mesmo, e pode-se dizer verdadeiramente que não existo (TNH 1.4.6.3).
Segue-se daí que se o indivíduo não é uma substância simples e constante, o que ele
seria então? Na visão de Hume, um aglomerado de certas percepções que, ao interagirem entre
si, formam uma ideia posterior de identidade. O Eu, portanto, não existiria como uma instância
anterior às percepções, e sim como resultado de suas interações em conjunto. Daí a famosa
passagem: “[..] os demais homens não são senão um feixe ou uma coleção de diferentes
percepções, que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, e estão em perpétuo
fluxo e movimento (TNH 1.4.6.4)”. A ideia de identidade pessoal surge, pois, da conjunção de
suas próprias percepções, ou, nas palavras de Hume: oneself ou si mesmo. Termo pelo qual,
assim como outras ideias abstratas, é vinculado em si a percepções passadas e à disposição de
buscar memórias passadas pelo costume. De certa forma, tais memórias estão ligadas pelas
relações de semelhança e causalidade e sugerem a ideia, mesmo que fictícia, de um Eu
substancial e simples.
Garrett observa que, para Hume, “acreditar ou estar consciente de uma identidade
pessoal é simplesmente conceber a ideia de si mesmo de forma vívida” (GARRETT, 2015, p.
27
341)11. De acordo com o princípio de concebilidade, qualquer ideia que é concebível pela mente
existe, ainda que apenas nela, ou mesmo metafisicamente. A ideia de identidade pessoal pode,
portanto, ser considerada existente, ainda que fictícia. O ponto de Hume é buscar sua origem.
Como ela surge? É explicar as operações de nossas faculdades mentais implicadas na concepção
dessa ideia que deve ser o ponto, pelo qual é possível, assim, o entendimento dessa concepção
de Eu.
Penso que um dos pontos mais paradoxais na filosofia de Hume é que, apesar da
experiência ser determinante para a concepção daquilo que chamamos de um ser humano, dada
a observação das relações naturais entre os objetos — semelhança, contiguidade e causalidade
— os indivíduos possuem, também, a capacidade de conceber um acervo gigante de ideias que
11
No original: “To believe or to be aware of one’s personal identity is simply to have this idea of oneself in a
lively way” (GARRETT, 2015, p. 341).
28
não possuem vínculo direto com a realidade, dentre as quais, as ideias de bem, mal, Deus e
identidade. Tais ideias, apesar de possuírem um referencial empírico, tal como o bem nos
proporciona a sensação de prazer, não possuem um objeto específico do qual derivam. Dessa
forma, essas ideias, apesar de serem frutos da experiência, a ultrapassam.12
Há em Hume uma natureza que determina o sujeito, na medida em que este apreende
os princípios naturais (semelhança, contiguidade e causalidade), a partir da relação dos objetos
dispostos na natureza. Entretanto, o próprio indivíduo também possui o poder de conceber a si
mesmo a partir da associação de ideias. Enquanto a natureza determinante dos indivíduos
poderia ser apontada como as impressões de sensação com as quais ele possui contato, a
concepção de ideias que jamais foram observadas na experiência se dá por conta das impressões
de reflexão. Como vimos, segundo Hume, a mente é dotada de certa liberdade para criar novas
ideias nunca antes percepcionadas. Todavia, a liberdade da mente seria concebida, a meu ver,
apenas como a ausência de conhecimento de certas causas, ou seja, causas desconhecidas. Mas
Hume já havia dito não possuir o intuito de explicar as causas últimas da natureza humana. Ele
apenas indica a existência de certos espíritos animais 13 (cf. TNH 1.3.10.9). As causas livres na
mente seriam justamente os espíritos animais e a fantasia. Em consequência disso, Hume abre
o caminho para sua própria confusão posterior acerca dos princípios de separabilidade e de
concebilidade, não somente por não ser possível perceber percepções distintas como
necessárias umas às outras, mas também pela possibilidade da concepção de ideias que não
possuem um vínculo causal ou de semelhança entre si.
12
Trata-se, segundo Ferrell, de uma metapsicologia ou, dito de outro modo, de um empirismo transcendental o
que Hume faz, pois, apesar das percepções presentes da mente serem derivadas da experiência, elas só se tornam
um sistema consciente e inteligente a partir das ideias concebidas com a ajuda dos princípios associativos. Ferrell
assinala: “Um empirismo que Freud e Hume parecem dividir admite a contradição que o sujeito é; este é uma
coleção circunstancial dos dados [da experiência], mas é também a transcendência desses dados, o que faz com
que essa coleção [de percepções do Eu] se torne uma coisa sistemática. Os princípios de associação são
necessariamente transcendentes, e não podem representar a experiência das ideias. Eles representam a experiência
da relação percebida entre as ideias que, no entanto, ocorrem como uma espécie de experiência no sujeito”
(FERRELL, 2003, p. 271). No original: ”An empiricism that Freud and Hume seem to share allows for the
contradiction that is the subject; that it is a circumstantial collection of the given, but that it is also the transcendence
of the given, in that which makes of the collection something systematic. The principles of association are
necessarily transcendent, and cannot represent experience of ideas. They represent experience of the relations
perceived between ideas, of the relations perceived between ideas, which nevertheless occur as a kind of
experience in the subject” (FERRELL, 2003, p. 271).
13
Apesar de Hume não explicar com exatidão o que ele compreende por espíritos animais, estes poderiam ser
concebidos como uma disposição mais primitiva da mente (cf. TNH 1.3.8. NOTA). Tais espíritos animais seriam
uma espécie de estrutura cognitiva que o autor se nega a investigar com maior precisão, pois trata-se de objeto de
estudo dos anatomistas e filósofos naturalistas. Garrett denomina essa estrutura cognitiva de background structures
(cf. GARRETT, 2015, p. 84).
29
Entre a produção destas ideias, já vimos algumas que não possuem um vínculo direto
com a realidade. Podemos denominar essas ideias de ininteligíveis, dentre as quais: Deus e
identidade pessoal. A identidade, por si só, aquela que atribuímos a objetos semelhantes —
cachorro, gato, árvore — podem ser abstraídas pela semelhança entre as impressões de tais
objetos. O problema consiste, pois, nessas outras ideias que são majoritariamente abstratas, na
medida em que não encontram impressões correspondentes na experiência.
Don Garrett cita o exemplo das ideias de tempo e espaço que, assim como a ideia de
identidade pessoal, surgem por efeito de outras percepções. Segundo Hume, não há uma ideia
distinta das percepções acerca das ideias de espaço e tempo, o que para seus críticos
configuraria a violação de que toda ideia é cópia de uma impressão. Argumentos defensores de
que as ideias de espaço, tempo e identidade não possuem impressões das quais derivam
diretamente, o que constituiria um erro de Hume, ignoram a teoria do autor acerca da formação
de ideias complexas (cf. GARRETT, 2015, p. 341). Pois algumas ideias não possuem mesmo
uma impressão correspondente direta. Tempo e espaço, neste caso, seriam apenas ideias gerais
que abrigam as percepções particulares semelhantes de temporalidade e espacialidade (cf.
GARRETT, 2015, p. 342), assim como a ideia de identidade pessoal que, mesmo ininteligível,
abriga um todo de percepções que nos levam a crer que estamos em contato com uma substância
una.
Garrett aponta que nem todos os aspectos de determinada percepção são separados e
distintos na mente. Segundo ele, uma impressão que possua simplicidade em si não é uma
impressão simples, pois é composta de outras partes além de sua simplicidade (cf. GARRETT,
2015, p. 342). Essa simplicidade poderia ser uma qualidade que a percepção possui, assim como
as percepções de tempo e espaço, que embora sejam compostas de vários objetos, possuem a
simplicidade da temporalidade e da espacialidade percebida na relação dos objetos. Ademais,
o princípio da precedência, isto é, de que toda ideia é precedida por uma impressão, não requer
que todas as impressões que precedem uma ideia abstrata sejam separadas e distintas. Para que
uma ideia abstrata seja formada basta que suas impressões anteriores sejam impressões de
qualidades, das quais as ideias de espaço e tempo são dotadas (cf. GARRETT, 2015, p. 342).
Impressões de qualidade, nesse sentido, são impressões formadas a partir das percepções, tal
como as qualidades de tempo e espaço notadas pela percepção de uma bola de tênis vindo em
minha direção.
30
É evidente que a identidade que atribuímos à mente humana, por mais perfeita
que possamos imaginá-la, não é capaz de fundir as diversas percepções
diferentes em uma só, fazendo-as perder os caracteres distintivos e diferenciais
que lhes são essenciais. Continua sendo verdade que cada percepção distinta
que entra na composição da mente é uma existência distinta, e é diferente,
distinguível e separável de todas as demais percepções, contemporâneas ou
sucessivas. Mas, apesar dessa distinção e separabilidade, supomos que todo o
curso de percepções está unido pela identidade. Por isso, é natural que surja
uma questão acerca dessa relação de identidade: ela é algo que realmente
vincula nossas diversas percepções, ou apenas associa suas ideias na
imaginação? (TNH 1.4.6.16).
14
No original: “Every impression one has is, in this sense, an impression of oneself” (GARRETT, 2015, p. 342).
31
Pois daí se segue evidentemente, que a identidade não é alguma coisa que
pertença realmente a essas diferentes percepções e que as una umas às outras; é
apenas uma qualidade que lhes atribuímos quando refletimos sobre elas, em
virtude da união de suas ideias na imaginação (TNH 1.4.6.16).
Hume afirma que a identidade é apenas uma qualidade que atribuímos por meio da
reflexão sobre as ideias provindas das impressões presentes na imaginação. A identidade,
segundo Hume, depende de uma ou mais qualidades para ser produzida (cf. TNH 1.4.6.16). Diz
ele que as qualidades que fazem com que a mente exerça esse progresso ininterrupto e contínuo
que comumente denominamos identidade são duas: causalidade e semelhança. “E aqui é
evidente que devemos nos limitar à semelhança e à causalidade, deixando de lado a
contiguidade, que tem pouca ou nenhuma influência neste caso” (TNH 1.4.6.17).
A semelhança é responsável pelo surgimento da ideia de identidade pessoal, na medida
em que as percepções semelhantes, ao serem resgatadas pela memória, nos induz a acreditar
estar contemplando um único objeto. Assim, a memória, ao armazenar percepções de objetos
percepcionados no passado, faz com que estas entrem em uma cadeia de igualdade no
pensamento. Portanto, as percepções individuais de certo indivíduo, unidas pela semelhança,
fazem-no crer ser apenas uma substância una.
A causalidade seria, pois, um elemento importante para que assentíssemos a uma ideia
de identidade pessoal simples. A mente perceberia uma capacidade de encadeamento entre as
percepções — o que nos faria crer se tratar de uma substância simples no controle de percepções
experienciadas. A percepção da causalidade entre as percepções da mente, se não é a maior, é
uma das maiores enganadoras da mente quanto à crença sobre estar em contato com uma
substância simples, tal como supostamente a alma seria. A mente humana descobre relações
causais quanto a comportamentos de fenômenos e pessoas — habilidade que não encontramos
de semelhante forma em outros seres.
A memória, entretanto, é tão importante quanto a causalidade para a concepção de
identidade pessoal, visto que a mente só conseguiria relacionar as percepções da mente depois
de tê-las dispostas nessa faculdade. A memória é, portanto, fonte da identidade pessoal. Nela
33
habita todas as percepções e ideias. Somente por meio dela podemos produzir a relação de causa
e efeito e, consequentemente, um pensamento reflexivo, ou, em outras palavras, impressões de
reflexão.
3. CONCLUSÃO
associativos são uma maneira pela qual a mente é dotada naturalmente a associar ideias, ou
estes existem de forma independente na realidade?
Em minha primeira leitura do autor, compreendi esses princípios como constitutivos
da estrutura da mente, algo que não me parecia coerente com a postura cética e a conduta
empirista de Hume. Todavia, em uma segunda leitura, compreendi que os princípios
associativos são apenas observações da relação entre os objetos dispostos na realidade. Este foi
um dos pontos mais centrais deste trabalho, na medida em que, ao tratar destes princípios como
observações das relações entre os objetos, creio ter eliminado um problema quanto à posição
de Hume de que seu trabalho não consiste em investigar as causas primeiras da natureza
humana. Ora, não faria sentido nem seria ele tolo de dizer que os princípios de associação de
ideias são princípios naturais da constituição e mente humanas, anteriores a qualquer tipo de
experiência.
Em Hume, as percepções materiais precedem as mentais. Todavia, as ideias abstratas
existem e, mesmo que apenas na mente, exercem suas funções na experiência. Entretanto, estas
ideias abstratas só existem por conta da atividade mental humana e, principalmente, da fantasia
que, por sua vez, possui o poder de separar, transpor, juntar e transformar as ideias mais
distantes possíveis da realidade. Os objetos e eventos particulares já sabemos de onde partem,
isto é, das pequenas cenas da natureza que, em seus ínfimos detalhes, não possuímos a
capacidade de enxergar precisamente. Pois como poderíamos conceber cada aspecto de um
objeto sem, com isso, exaurir todo nosso pensamento? A abstração dos particulares, desta
maneira, é tão útil quanto o hábito para tornar possível uma certa compreensão da realidade.
Passada a explicação da formação das ideias abstratas, propus-me a entender como se
formam nossas ideias de tempo e de espaço. Estas, dirá Hume, são formadas a partir da
percepção de temporalidade e espacialidade presente nas relações entre os objetos. Tais ideias
não possuem um objeto como impressão correspondente, e sim uma qualidade da percepção,
isto é, uma qualidade de temporalidade e espacialidade. Portanto, estas ideias não estão em
lugar algum na mente, assim como nossas ideias de substância e identidade pessoal não
possuem nenhum objeto ou impressão correspondente.
Hume afirma que não temos nenhuma impressão constante. As percepções se seguem
umas às outras e afetam a mente como num palco de teatro, onde elas são passadas
individualmente. Nenhuma impressão se mantém a mesma durante a vida, dirá o autor. De
semelhante forma, os objetos também não se mantêm o mesmo continuamente. Estes sofrem
36
constantes mutações, geralmente imperceptíveis ao olhar humano. Por isso, é comum que as
pessoas atribuam uma identidade perfeita e constante a dados objetos, bem como um termo
geral quando encontram dois objetos semelhantes. A reconstrução da concepção de Hume sobre
a identidade dos objetos, presente na seção de Identidade Pessoal, foi necessária na medida em
que o próprio autor afirma que sua concepção de identidade dos objetos se assemelha à sua
concepção de identidade pessoal.
Conforme espero ter mostrado, em Hume, a mente não possui uma identidade simples,
e sim uma conjunção de diversas percepções que, ao interagirem com os princípios associativos
de ideias, a partir de nossas faculdades da memória e da imaginação, formam a nossa ideia de
Eu. Essa ideia, todavia, é uma ideia fictícia, fruto da fantasia, que almeja criar uma ideia
constante de nossa identidade pessoal. Esta constância e simplicidade, por sua vez, só existiriam
em um mundo mental ou metafísico. Portanto, não há essa identidade como algo independente,
tais como os objetos dispostos na realidade. A capacidade de conceber uma ideia de identidade
simples é possível por conta do princípio da concebilidade, tal como apresentei anteriormente.
Há, no entanto, um problema que o próprio Hume nota em seu sistema filosófico.
Segundo ele, o princípio de separabilidade é incompatível, em certa medida, com o princípio
de concebilidade, pois ele propõe que toda percepção da mente é uma existência distinta e
independente, e o princípio de concebilidade afirma que a mente não percebe nenhuma conexão
real entre as diferentes percepções. Diante disso, Hume se vê preso em um labirinto, e chega
mesmo a propor que a mente talvez seja uma substância que experiencia as percepções,
duvidando de sua tese anterior, segundo a qual a mente se constitui de uma conjunção de nossas
percepções. Esse ponto acaba por se configurar em uma dificuldade para Hume, na medida em
que a mente é incapaz de enxergar uma conexão real entre suas distintas percepções. Ao mesmo
tempo que essa conclusão atribui uma capacidade muito grande à fantasia de conceber qualquer
tipo de ideia, nega que podemos encontrar conexões reais entre distintas percepções. Nesse
sentido, seria o sujeito resultado do acidente, da natureza ou de si próprio? Não seria mais fácil,
pois, admitir a existência de uma substância simples que desempenharia semelhante papel? Tais
questionamentos parecem pairar sobre a mente de Hume no Apêndice.
O paradoxo da filosofia de Hume é que o sujeito é produto da natureza e, ao mesmo
tempo, de si mesmo, por meio da faculdade da imaginação. Nesse sentido, o autor é um
determinista, porém, ele defende a liberdade da imaginação que, por sua vez, escapa ao seu
próprio determinismo. Isso ocorreria em virtude de a natureza humana ser plástica e se alterar
37
com as condições exteriores, bem como com as percepções interiores. Estas últimas, em certa
medida, ultrapassam o objeto, junta-o com outros e cria novas ideias. Portanto, a representação
mental faz com que o indivíduo seja dotado do poder de criação, que faz com que o objeto real,
isto é, a experiência, seja também um quadro para imprimir os desenhos da fantasia.
38
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