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José Roberto Alves Barbosa

Linguística
Outra introdução

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Linguística: Outra introdução

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José Roberto Alves Barbosa

Linguística
Outra introdução

José Roberto Alves Barbosa

Mossoró • Rio Grande do Norte • Brasil


Março de 2013

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Linguística: Outra introdução

Copyright © 2013 José Roberto Alves Barbosa

Diagramação
Raimundo Luz

Revisão
Adalberto Barbosa Júnior

Capa
César Barros

Impressão
GL Gráfica

B238l Barbosa, José Roberto Alves.

Linguística: outra introdução. / José Roberto Alves


Barbosa, editor Gustavo Luz. -- Mossoró, RN: Queima-Bucha, 2013.

88 p.

ISBN: 978-85-8112-056-0

1. Linguística. 2. Linguagem. 3.Gramática. I.Título.

CDD: 410

Bibliotecária: Marilene Santos de Araújo


CRB-5/1033

Proibida a reprodução total ou parcial,


de qualquer forma ou por qualquer meio.
A violação dos direitos do autor (Lei n. 9.610/98)
é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Editora Queima-Bucha
Rua Jerônimo Rosado, 271 Centro
Mossoró - Rio Grande do Norte
59610-020 / 84 3314 2018

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José Roberto Alves Barbosa

Aos estudantes com os quais tenho dialogado,


dentro e fora da sala de aula.

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Linguística: Outra introdução

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José Roberto Alves Barbosa

As palavras diversamente arranjadas formam um


sentido diferente, e os sentidos, diversamente arranjados,
produzem efeitos diferentes

Blaise Pascal

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Linguística: Outra introdução

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José Roberto Alves Barbosa

SUMÁRIO

Considerações iniciais...............................................................11
1. A origem da fala humana.....................................................13
2. Histórico dos estudos linguísticos.......................................15
3. Paradigmas científicos da linguística..................................18
4. O objeto de estudo da linguística.........................................20
5. A linguagem animal e a língua humana.............................22
6. A teoria saussuriana do signo..............................................25
7. As dicotomias saussurianas..................................................28
8. O Círculo Linguístico de Praga..............................................32
9. A dupla articulação da língua...............................................35
10. Gramática gerativa...............................................................38
11. Representação da gramática gerativa................................41
12. Princípios e parâmetros......................................................44
13. Competência comunicativa................................................47
14. Texto e discurso...................................................................49
15. Teoria dos atos de fala.........................................................52
16. Esquemas e frames..............................................................55
17. Princípio cooperativo e máximas conversacionais.........58
18. Análise da Conversação.......................................................61
19. Linguística sistêmico-funcional.........................................64
20. Tema/rema: organização textual........................................68
21. Coesão e coerência textual.................................................70
22. Gêneros textuais...................................................................73
23. Gramática do Design Visual................................................76
24. Discurso e criticidade..........................................................80
Considerações finais..................................................................83
Referências..................................................................................85

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Linguística: Outra introdução

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José Roberto Alves Barbosa

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Existem vários livros de introdução à Linguística dis-


poníveis nas livrarias do país. Este que o leitor tem em mãos
é mais um que não se propõe ser mais completo do que os
outros. A diferença deste, em relação aos demais esteja, tal-
vez, no fato de ter surgido como resultado das minhas aulas
de Linguística, disciplina que tenho lecionado ao longo destes
últimos anos na Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN).
Quando iniciamos o Curso de Linguística I e II nessa
Instituição de Ensino Superior, optamos, inicialmente, pela
leitura de textos de vários teóricos da área. Alguns deles, no
entanto, demonstraram ser inviáveis para um curso introdu-
tório. Por isso, decidimos preparar um material próprio, ins-
pirado nas contribuições dos manuais existentes, mas, sobre-
tudo, partindo dos textos fundadores da Linguística, ou seja,
diretamente das fontes.
Os próprios alunos, ao longo das conversas em sala
de aula, sugeriram que déssemos o formato de livro àquelas
aulas. Resistimos por algum tempo a essa ideia, mas final-
mente nos rendemos à proposta e tomamos a iniciativa de co-
locar na tela do computador, e agora no papel, o lio que o leito
tem em mãos, o qual temos a expectativa, continuará sendo
útil para as aulas de Linguística nesse contexto universitário.
Não temos a pretensão de apresentar um material
inédito, na verdade, conforme já ressaltamos anteriormente,
o diferencial, nessa outra introdução, é o modo de dizer, e
mais especificamente, os recortes adotados, cujo critério foi a
realidade da sala de aula, com poucas horas disponível para
m curso de Linguística, para alunos que, em sua maioria, ain-
da não tinham ouvido falar da disciplina.
A constituição do material aqui disposto tem tudo a
ver com nossa história. A Linguística a qual nos fundamen-
tamos foi influenciada por vários teóricos, muitos deles de
tendência anglo-americana. Por isso, destacamos, nesta ou-

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Linguística: Outra introdução

tra introdução à Linguística, as contribuições de Chomsky,


Austin, Searle, Hymes, Halliday e Fairclough. Evidentemen-
te não poderíamos deixar de fora os pensadores clássicos da
Linguística Moderna, especialmente Ferdinand de Saussure.
Essas opções teóricas, ainda que não sejam novas,
e essa não é a intenção deste livro, seguem um fio condutor
que visa dar ao estudante de Linguística outra introdução à
disciplina. O leitor que desejar poderá utilizar este livro con-
trapondo a outras introduções, algumas delas teoricamen-
te mais embasadas. Deixamos, através deste, uma modesta
orientação aos estudantes, responsáveis pela transformação
dessas anotações de aula em livro.
Por se trata de um material ainda em construção,
portanto, inacabado, nos colocamos à disposição dos colegas
com vistas à melhoria. Caso esse opúsculo resista ao tempo, e
mereça outras edições, acataremos, na medida do possível, as
sugestões para publicações futuras.

José Roberto A. Barbosa


Fevereiro de 2013

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José Roberto Alves Barbosa

1. A ORIGEM DA FALA HUMANA

E Adão pôs os nomes a todo o gado, e às aves dos céus,


e a todo o animal do campo...
Livro Bíblico do Gênesis 2.20.

Não é fácil determinar historicamente quando o


homem começou a falar. Alguns estudiosos suspeitam que a
língua falada tenha surgido entre 100.000 a 50.000 anos atrás.
Pela própria diferença entre os números anteriormente citados,
é possível deduzir que tal estimativa talvez não passe de uma
suposição. Dispomos de muitos artefatos arqueológicos que
auxiliam a identificação da história da escrita, mas não podemos
dizer o mesmo em relação à origem da fala humana. Algumas
perguntas persistem: quem foi o primeiro homem e a primeira
mulher a falarem? Onde eles habitavam e o que fez com que eles
fossem capazes de emitir os primeiros sons da fala?
A primeira teoria, a mais difundida na sociedade
ocidental, é a da criação divina. Ao lermos o livro bíblico do
Gênesis, identificamos, na narrativa, que Yahweh, quando criou
Adão e Eva, dotou-lhes com a habilidade para a fala e esses
passaram a dar nomes aos seres existentes. A língua dos seres
humanos, de acordo com essa cosmovisão, teria sido a mesma
por um longo tempo, até que, em decorrência da rebeldia
humana ao construir a Torre de Babel, relatada no capítulo 11 do
Gênesis, Elohim, outra terminologia para o Deus dos Hebreus,
teria confundido a língua dos homens, de modo que eles não
mais se entendessem. A competência para a língua, na espécie
humana, seria, então, uma consequência da criação especial de
Yahweh.
Outra visão relacionada à origem da fala humana está
baseada no conceito de sons naturais. Para alguns estudiosos da
linguagem, as palavras primitivas teriam sido formadas a partir
da imitação de sons naturais preexistentes, que teria dado origem
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Linguística: Outra introdução

às onomatopéias. A capacidade humana para falar teria surgido


da adequação física da espécie para produzir sons para os quais
os outros animais não estariam habilitados. Isso porque os seres
humanos têm lábios mais flexíveis, bocas menores, uma língua
mais fina e muscular que facilita a produção e a diversidade de
sons. Além desses aspectos, a laringe, que contem as cordas vocais,
difere consideravelmente da de outros primatas, principalmente
em sua posição mais baixa. Se a teoria evolutiva estiver correta,
poderíamos afirmar que, paradoxalmente, a descida da laringe
no homem resultou na ascensão para a espécie.
Para alguns estudiosos, associados ao inatismo, os seres
humanos, independentemente de terem sido especialmente
criados por Deus com a capacidade para a língua, ou de uma
competência proveniente da evolução da espécie, o fator
determinante é que eles já nascem predispostos à língua. Assim
como é possível à criança andar logo após os primeiros anos de
vida, o mesmo acontece em relação à língua. As crianças teriam
nascido com uma capacidade inata para tal, uma espécie de
dispositivo para a aquisição linguística. A hipótese fundamental
seria a predisposição genética para a língua, algo hereditário. Se
apelarmos para uma metáfora computacional, poderíamos dizer
que o ser humano teria nascido com um programa, e a partir
desse as pessoas seriam capazes de produzir os enunciados nas
diversas línguas.

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José Roberto Alves Barbosa

2. HISTÓRICO DOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS

Hermógenes – Aqui o Crátilo dizia, ó Sócrates, que cada


um dos seres tem um nome correto que lhe pertence por natureza, e
que não é nome aquilo a que alguns chamam nome, acordando em
chamar-lhe assim, e enunciando uma parcela da sua voz, mas que
pertence aos nomes uma certa correção, que é a mesma para todos,
sejam Gregos ou bárbaros.

Crátilo - Platão

A Linguística é uma ciência recente, pelo menos


de acordo com o paradigma que, nessas últimas décadas,
costumou-se denominar de ciência. Os estudos da linguagem,
no entanto, remetem a tempos antigos. No século IV a.
C., por razões religiosas, os hindus tiveram a preocupação
de preservar seus textos sagrados, os Vedas, a fim de que
não sofressem modificações. Nesse mesmo período, os
gramáticos de origem hindu, entre eles Panini, dedicaram-
se à descrição detalhada, produzindo modelos para a análise
linguística.
Posteriormente, os gregos também se envolveram
com o estudo da língua. A principal preocupação dos
gregos se concentrava na relação entre o conceito e palavra
que o designa. Eles queriam saber se havia uma relação
natural entre a palavra e o seu significado. Em Crátilo,
Platão apresenta um diálogo entre Sócrates, Hermógenes
e Crátilo. O debate gira em torno do caráter natural e/ou
convencional da língua. Para Hermógenes, os nomes eram
estabelecidos pelo costume, a convenção entre os homens, de
tal maneira que sua origem é arbitrária, os defensores dessa
posição foram denominados de thései (convencionalistas).
Para Crátilo, cada um dos seres tem um nome correto, isto
é, que lhe pertence por natureza, os adeptos dessa visão
eram conhecidos como physei (naturalistas). Coube a
Sócrates a tarefa de estabelecer, dialeticamente, essa relação,
construindo um raciocínio intermediário.

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Linguística: Outra introdução

Entre os latinos, ainda sob a influência das reflexões


dos gregos, interessava ao filósofo-historiador Marcos
Terêncio Varrão, no Século II a. C., a descrição da gramática
latina. Como os gregos, Varrão estabelece duas dicotomias: o
papel da natureza e da convenção na origem das palavras, e a
questão da analogia e da anomalia na regulação do discurso.
Partindo de Platão, defende que o significado original das
palavras, imposto em concordância com a natureza, fora
obscurecido pelo tempo, e que a etimologia ajudaria a
recuperar o significado original das palavras.
Na Idade Média, os modistas – pequeno grupo de
eruditos em atividade na universidade de Paris entre 1250 e
1320 – pretendiam identificar os “modos de significação” –
a fim de fornecer um arcabouço para descrever o processo
de verbalização. Para esse grupo, o objeto do mundo real,
externo ao entendimento humano, poderia ser apreendido
como um conceito pelo entendimento, e o conceito, por sua
vez, seria dado a conhecer por um signo falado, tornando-
se, dessa maneira, um significado. Um dos principais críticos
do modalismo foi Guilherme de Occam (1285 – 1349). Ele
negou a existência de qualquer conexão intrínseca entre a
palavra e a realidade.
Com a Reforma Protestante surgiu o interesse pela
tradução da Bíblia para as diversas línguas do mundo. Nesse
período, como o latim era a língua oficial da Igreja Católica,
a Vulgata Latina, tradução da Escritura, do hebraico e grego,
realizada por Jerônimo era considerada a versão oficial. Quando
Lutero e os demais reformadores propuseram a divulgação da
Bíblia entre os povos, o resultado foi a tradução dos textos
bíblicos. O próprio Lutero foi um dos primeiros, traduzindo a
Bíblia para a língua alemã. O interesse na divulgação das ideias
cristãs protestantes favoreceu a criação de sociedades bíblicas
com vistas ao estudo e tradução das línguas.
No Século XVII e XVIII ressurgiu o interesse
pelas gramáticas universais. Assim, em 1660, foi publicada

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José Roberto Alves Barbosa

a Gramática Geral e Racional de Port Royal, de Claude


Lancelot e Antoine Arnaud. Essa Gramática tinha por
objetivo demarcar a racionalidade gramatical, isto é, que esta
é imagem do pensamento. Por conseguinte, seus princípios
de análise estabelecidos não deveriam estar relacionados
a uma língua particular, antes serviriam a toda e qualquer
língua. Essa gramática foi a precursora de uma série de
gramáticas gerais, filosóficas e universais que surgiriam
posteriormente. Os autores queriam mostrar a presença
contundente de princípios lógicos na linguagem, distanciados
da arbitrariedade das línguas particulares.
Por outro lado, a busca pelo conhecimento das
línguas particulares, no Século XIX, a partir da influência
de Charles Darwin, serviu de motivação para a tentativa de
identificação da língua-mãe. Através do método histórico-
comparativo surgiram as Gramáticas Comparadas e a
Linguística Histórica. Esses estudos mostraram que as
línguas mudam com o tempo, sem que haja dependência da
vontade humana, de acordo com suas próprias necessidades
e manifestando-se de modo regular. Franz Bopp é o estudioso
mais proeminente dessa época. A publicação de sua obra a
respeito da conjugação do sânscrito é o marco fundador da
Linguística Histórica.
Somente no limiar do século XX, com a publicação
do Curso de Linguística Geral, em 1916, obra póstuma de
Ferdinand de Saussure, produto das suas aulas na Universidade
de Genebra, compilada por seus alunos Charles Bally e Albert
Sechahaye, a Linguística se instituiu como ciência moderna.
O método de investigação dessa ciência, conforme proposto
por Saussure, deveria se basear na observação e descrição dos
fatos da língua. Caberia ao linguista a aproximação desses fatos
por um quadro teórico específico. A Linguística, que outrora
não passava de uma área de conhecimento associada à lógica,
filosofia, retórica, história e/ou crítica literária, passou a ser uma
ciência com um objeto próprio de investigação: a langue (língua
em francês)

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Linguística: Outra introdução

3. PARADIGMAS CIENTÍFICOS DA
LINGUÍSTICA
Há apenas fatos, eu digo: fatos é o que não há; há apenas
interpretações.
Nietzche

A Linguística, depois de Ferdinand de Saussure,


assumiu o status de ciência, ainda que tal condição, para alguns
teóricos, tenha sido alcançada anteriormente, pelos estudos
histórico-comparativistas. Diante desse impasse, talvez seja
apropriado indagar a princípio: o que é ciência? Mas essa não
é uma pergunta que possa ser facilmente respondida, tendo
em vista que a ciência não é uma, mas várias. Por isso que se
costuma falar em ciências humanas, exatas, biológicas, entre
outras. As ciências agem de acordo com os métodos que são
previamente estabelecidos pelos seus pares. Kuhn (1970), um
teórico da história das ciências, destacou que os cientistas
seguem determinados paradigmas, isto é, alguns padrões que
determinam como os “quebra-cabeças” devem ser resolvidos.
Esses paradigmas, de vez em quando, não se coadunam
mais com um determinando posicionamento científico. A
esse acontecimento Kuhn denominou de “crise científica” que
enseja a construção de outra “ciência normal”. Nos tempos de
Saussure, ainda no início do Século XX, o padrão científico
vigente era o positivista. Por conseguinte, qualquer estudo que
quisesse ser reconhecido como tal, deveria se adequar àquele
“paradigma”. Quanto mais imanente fosse a investigação,
mais voltada à estrutura e passível de sistematização, maiores
seriam as chances de obter legitimidade científica. Coerente
com esse padrão, o mestre genebrino propôs uma série de
postulados para a análise da língua. Inicialmente, distinguiu
a língua humana da linguagem geral, a primeira deveria
ser objeto de estudo da Linguística, e a segunda, de uma
ciência mais ampla, denominada, por ele, de Semiologia. A
Linguística, enquanto ciência, deveria, estudar as modalidades
dos sistemas sígnicos, as línguas naturais.

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José Roberto Alves Barbosa

Fora do contexto acadêmico as pessoas costumam


apresentar posicionamentos equivocados a respeito do que
é a Linguística. Há uma crença comum que a Linguística
tem a ver com o conhecimento da Gramática Normativa.
Muito pelo contrário, o ponto de vista da Linguística, em
relação à língua, é diferente daquele defendido por alguns
professores de gramática. Esses últimos, baseados nos livros
disponibilizados no mercado, repassam regras previamente
estabelecidas, tentam inculcar modelos corretos para a fala e
a escrita. A abordagem da Linguística não é normativa, antes
descritiva. O estudo científico da língua busca descrever a
língua como ela é, não determinar como ela deve ou deveria
ser. O linguista evita fazer julgamento de valor, dizer que uma
regra gramatical é certa e/ou errada.
Outro equívoco relacionado à definição do que seja
a Linguística, é o de pensar que esta se ocupa exclusivamente
com o ensino e aprendizado de línguas. Não podemos negar
que, de fato, essa ciência, ao longo de sua história, trouxe
contribuições significativas para a aquisição de línguas, tanto
de Língua Materna (LM) quanto de Segunda Língua (L2). O
surgimento posterior da Linguística Aplicada possibilitou
a utilização das teorias linguísticas, que, associadas às
abordagens da Psicologia, da Educação, Sociologia e
Filosofia da Linguagem, favoreceu uma série de reflexões e
aplicações práticas ao ensino e aprendizagem de línguas.
Mudanças consideráveis aconteceram nesses últimos anos no
processo educacional de ensino de línguas decorrentes das
contribuições dos estudos linguísticos.
A opção pelo ensino produtivo da língua, menos
centrado nas regras descontextualizadas da gramática
normativa e voltado para o domínio produtivo da escrita e
leitura de textos, é resultado de tais reflexões. Muitas delas
advieram das contribuições de algumas das principais áreas
da Linguística, que envolve língua e uso (Pragmática), língua e
mente (Psicolinguística), língua e sociedade (Sociolinguística)
e língua e poder (Análise do Discurso).

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Linguística: Outra introdução

4. O OBJETO DE ESTUDO DA LINGUÍSTICA

Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista,


diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto.
Ferdinand de Saussure

Um objeto de estudo diz respeito ao modo como


determinada ciência olha para aquilo que pretende descrever
ou explicar. A Linguística, como toda ciência, tem seu objeto de
investigação. Mas se assumirmos que a Linguística são várias,
podemos também afirmar que múltiplos são seus objetos.
Para efeito de delimitação, destacaremos, a princípio, dois
olhares distintos, o Estruturalista, de Ferdinand de Saussure, e
o Gerativista, de Noam Chomsky. Esses dois posicionamentos,
ainda que bastante questionados em determinados círculos
acadêmicos, são os paradigmas que alicerçaram, e de certo modo
fundamentam muitas pesquisas nos estudos da linguagem.

Para Saussure, em seu Curso de Linguística Geral (CLG),


a linguagem é algo mais amplo, ele a define como “heteróclita e
multifacetada”, abrangendo vários domínios, e que “não se deixa
classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se
sabe como inferir sua unidade” (1969, p. 17). Em virtude da sua
amplidão, o linguista de Genebra propôs uma delimitação para os
estudos da Linguística, a essa ele chamou de langue – termo francês
para língua. Essa seria uma parte da linguagem como um todo, e
diferentemente daquela, passível de classificação. Para Saussure,
a langue “é um produto social da faculdade da linguagem e um
conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social
para permitir o exercício da faculdade nos indivíduos” (p. 17).

Saussure distingue langue de parole, ressaltando que essa


última é “sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor”
(p. 21). Seguindo o seu princípio unificador, e em busca de uma
coerência metodológica, desconsidera a parole como objeto de
estudo da Linguística e faz opção pela langue. Assim, o interesse da

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José Roberto Alves Barbosa

Linguística não deveria ser a linguagem e muito menos a parole, mas


a langue “considerada em si mesma, e por si mesma”. Essa asserção
saussuriana favoreceu o surgimento de um paradigma científico em
relação aos estudos da língua denominado de Estruturalismo. Para
seus seguidores, a língua é fundamentalmente uma estrutura, isto
é, um sistema constituído por uma rede de elementos, em que cada
elemento tem um valor funcional específico.

Em oposição, e de certo modo, em continuidade, Noam


Chomsky propôs, em meados do século XX, um objeto distinto
para a pesquisa linguística. Em seu livro Syntatic Structures
(1957, p. 13), delimita, assim, esse objeto “Doravante considerarei
uma língua como um conjunto (finito ou infinito) de sentenças,
cada uma finita em comprimento e construída a partir de
um conjunto finito de elementos”. A lógica da Linguística é
nitidamente visível na definição de Chomsky, no processo de
explicação do seu objeto. Diferentemente do que propunha
Saussure, e seus seguidores, caberia ao linguista descrever as
línguas naturais com vistas a determinar as sequências universais
da língua, comuns a toda e qualquer língua.

Chomsky baseia seus postulados na premissa de que o ser


humano, diferentemente dos seres de qualquer outra espécie, tem
uma especificidade inata para a língua. A partir dessa, propôs outra
dicotomia, com alguma relação entre a langue e a parole de Saussure,
denominada de competência e desempenho. A competência
é o objeto de estudo da Linguística e corresponde à porção do
conhecimento do sistema linguístico do falante que lhe permite
produzir o conjunto de sentenças de sua língua. O desempenho
pressupõe a competência e corresponde ao comportamento
linguístico, e decorre de fatores sociais, crenças, atitudes emocionais
do falante, pressupostos dos interlocutores, entre outros. O propósito
de estudo da língua, seguindo o paradigma chomskiano, possibilitou
o surgimento de outra escola no âmbito dos estudos linguísticos, o
Gerativismo, resultante da percepção dessa capacidade inata dos
falantes para produzirem enunciados jamais ouvidos antes.

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Linguística: Outra introdução

5. A LINGUAGEM ANIMAL E A LÍNGUA


HUMANA

- Pois bem – explicou o gato -, um cachorro rosna quando


está com raiva e balança a cauda quando está contente compreende?
Enquanto eu rosno quando estou satisfeito e balanço a cauda quando
estou com raiva, está entendendo? Portanto eu sou louco?
Aventuras de Alice de Lewis Carroll

Em 1959, Karl von Frisch desenvolveu um estudo


clássico a respeito do sistema de comunicação entre as abelhas.
Ele constatou que a abelha-obreira, após identificar uma fonte
de alimento, regressa à colméia para transmitir a informação
às outras abelhas. Isso se dá através de dois tipos de dança, uma
circular, trançando círculos horizontais da direita para a esquerda
e vice-versa, e outra em forma de oito, em que a abelha contrai
o abdômen, seguindo em linha reta, e, em seguida, fazendo uma
volta completa à esquerda, de novo correndo em linha reta e
fazendo um giro para a direita, e assim por diante. A dança em
forma de oito depende da distância na qual se encontra o alimento
e indica precisamente o total de metros da fonte do alimento.

Antes disso, em 1930, dois cientistas, Luella e Winhrop


Kellogg, tentaram comprovar que um chimpanzé, chamada Gua,
seria capaz de compreender aproximadamente cem palavras,
ainda que não fosse capaz de reproduzi-las. Na década de 1940,
um casal de cientistas, Catherine e Keith Hayes, tentaram, em
sua casa, fazer com que um chimpanzé, por nome Viki, pudesse

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José Roberto Alves Barbosa

produzir enunciados em inglês, mas a tentativa não obteve


sucesso. De vez em quando, algum cientista tenta produzir
algum sistema que seja capaz de comprovar a capacidade dos
animais para a língua. Os estudos têm mostrado que os primatas
não humanos não dispõem de um sistema vocálico fisicamente
estruturado para a articulação dos sons usados na fala. Esses
animais, assim como as abelhas, podem comunicar, mas não do
mesmo modo que os seres humanos.

Na década de 1970, Herbert Terrace, juntamente com


Laura Ann Petitto, Richard Sanders e Tom Bever, tentou repetir
uma experiência realizada com um chimpanzé macho. Para
tanto, ele deu ao animal o nome de Nim Chimpsky – uma alusão
irônica a Noam Chomsky – e usaram sinais a fim de categorizar
a linguagem do animal. Após o entusiasmo inicial, verificaram
que Chimpsky somente imitava, e não era capaz de produzir
frases, mas apenas enunciados desestruturados de três palavras.
O estudo comprovou ainda que os chimpanzés podem aprender
algum vocabulário, mas incapazes de fazerem rearranjos
linguísticos, através da combinação de itens gramaticais.

A língua humana tem algumas propriedades que a


distingue da linguagem animal. Dentre elas, destacamos: o
deslocamento, a arbitrariedade, a produtividade, a transmissão
cultural e a dualidade.

1) Deslocamento - tem a ver com a possibilidade que se


tem, pela língua, de falar a respeito de coisas e eventos que não
se encontram presentes no contexto imediato. Essa propriedade
diz respeito à função dêitica da língua, isto é, à capacidade de
apontar para as coisas e eventos (como fazemos com os dedos,
por exemplo) através da língua. Referimo-nos a uma festa
que aconteceu ontem (temporal) em um determinado lugar
(espacial), sem necessariamente mostrar no contexto imediato.

2) Arbitrariedade - diz respeito à ausência de uma


relação natural ou “icônica” entre o sinal linguístico e o objeto
descrito no mundo. Não existe, por assim dizer, uma conexão

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Linguística: Outra introdução

natural entre uma forma linguística e seu significado. Quando


olhamos para um lápis e o denominamos como tal, não vemos
uma relação necessária entre o objeto que serve para escrever e
o nome “lápis”.

3) Produtividade - é uma das propriedades que distingue


com maior especificidade a língua humana da linguagem dos
animais. O ser humano tem a capacidade inata para produzir
um número infinito de enunciados, alguns deles jamais ouvidos
anteriormente. Os sistemas de comunicação das outras criaturas
não apresentam esse tipo de flexibilidade. A referenciação dos
animais é limitada, por isso, ela costuma ser denominada de
referência fixa.

4) Transmissão cultural - essa característica diz respeito


à possibilidade que os seres humanos têm de passar a cultura
de geração a geração por meio da língua. Os animais nascem
com um conjunto de sinais específicos os quais são reproduzidos
instintivamente. Os seres humanos, diferentemente desses,
se forem isolados na infância, não poderão desenvolver uma
linguagem instintiva.

5) Dualidade - a língua está organizada em dois níveis


e/ou camadas simultâneas. Essa propriedade está relacionada
à dualidade, isto é, a possibilidade de articular duplamente a
língua. Num determinado nível os sons distintos, e em outro,
os significados distintos. Essa dualidade é fundamental para a
propriedade econômica da língua. Isso porque através de um
conjunto limitados de sons podemos produzir um número
amplo de palavras.

Ao refletirmos a respeito dessas propriedades,


concluímos que os animais podem ter algum sistema de
comunicação, alguma linguagem, mas não a língua com as
propriedades peculiares da espécie humana.

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José Roberto Alves Barbosa

6. A TEORIA SAUSSURIANA DO SIGNO

Um signo é uma coisa que, além da espécie ingerida pelos


sentidos, faz vir ao pensamento, por si mesma, qualquer outra coisa.
Agostinho de Hipona.

A atividade linguística é sígnica, isso porque as


palavras criam conceitos, e esses, por sua vez, constroem a
realidade. Ao partir dessa premissa, Saussure ([1916] 1969, p.
130) assume que

Psicologicamente, a abstração feita de sua


expressão por meio das palavras, nosso
pensamento não passa de uma massa amorfa
e indistinta. Filósofos e linguistas sempre
concordaram em reconhecer que, sem o
recurso dos signos, seríamos incapazes
de distinguir duas ideias de modo claro e
constante. Tomado em si, o pensamento
é como uma nebulosa onde nada está
necessariamente delimitado. Não existem
ideias preestabelecidas, e nada é distinto antes
do aparecimento da língua.

De acordo com essa concepção saussuriana as


palavras formam um sistema autônomo que independe do que
elas nomeiam. Isso significa que cada língua pode categorizar
o mundo de forma distinta. Essa categorização se dá através
de signos, os quais, a partir desse paradigma, definem-se em
relação aos outros, através de suas diferenças. Por exemplo:
a palavra portuguesa professor se refere tanto ao professor
do ensino fundamental quanto ao professor universitário.
Na língua inglesa, existem duas palavras distintas para tal:
teacher, para o professor das séries iniciais, e professor, para
o professor-pesquisador universitário. Percebemos, nessa
distinção, a noção de valor do signo linguístico, já que um é
posto na sua relação com o outro.

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Linguística: Outra introdução

Para Saussure, um signo é sempre interpretável


por outro signo, e isso acontece no interior do mesmo
sistema pelos sinônimos, pelas paráfrases e pelas definições.
A dificuldade de tradução de uma língua para outra
revela essa particularidade. Não existem, por assim dizer,
palavras sinonímicas de uma língua para outra, a não ser
funcionalmente, na possibilidade de comunicação. Na
verdade, nem mesmo na mesma língua se pode falar em
sinônimos perfeitos, basta citar, por exemplo, o verbo morrer
cujo significado, em alguns dicionários, é falecer. No entanto,
diríamos que alguém morreu ou faleceu, mas dificilmente
que um cachorro faleceu.

Isso acontece porque o signo não é a realidade, por


isso não podemos incorrer no equívoco de pensar que o signo
linguístico une um nome a uma coisa. Essa relação é de um
conceito – significado, a uma imagem acústica – significante.
O significado não é a coisa propriamente dita, mas a sua
representação. Por esse motivo Saussure afirma que o signo
é a união de um conceito com uma imagem acústica. A
imagem acústica /kaza/ ou /haƱs/, por exemplo, não reclama
uma casa particular, mas a idéia geral de casa, que tem valor
classificatório. Sendo assim, o signo é uma entidade de dupla
face, uma reclama a outra, de modo que não existe significante
(imagem acústica) sem significado (conceito).

Outra noção relacionada ao conceito de signo


linguístico em Saussure é a de valor. A máxima recorrente no
CLG e a de que na langue só existem diferenças. Ele determina
ainda que o signo é justamente aquilo que outro não é. Esse
valor provém da reciprocidade entre as peças na língua. Além
de apontar o valor como uma das peculiaridades do signo
linguístico, Saussure ressaltou duas das suas características
essenciais: a arbitrariedade e a linearidade. Para ele o signo
é arbitrário, isto é, cultural, sendo imotivado. Resgatando
a concepção dos theseistas – convencionalistas - gregos,
apresentada no Crátilo de Platão, Saussure argumenta que
não existe uma relação necessária entre o som e o sentido, que

26
José Roberto Alves Barbosa

não existe uma união natural entre o significante e aquilo que


ele significa. Nada há na palavra /’kaza/ ou /haƱs/ que lembre
casa, ela poderia muito bem ser denominada de /zaka/, em
português, ou de /zaka/, em inglês. Essa propriedade do signo
linguístico diz respeito à convencionalização, à existência de
um acordo coletivo.

Outra propriedade do signo linguístico é a


linearidade, o que faz com que esse se desenvolva ao longo
do tempo linear, um após o outro, numa sucessão que pode
ser também espacial. Por causa dessa particularidade do
signo é improvável que alguém seja capaz de produzir mais
de um elemento linguístico simultaneamente, seja um som,
uma palavra, uma frase ou um texto, esses sempre virão um
após o outro. Para a produção de /’kaza/ ou /haƱs/, é preciso,
sucessivamente, que os sons /k/, /a/, /z/, /a/, e /h/, /a/, /Ʊ/,
/s/, sejam postos um após o outro. Para Saussure (1969),
essa característica do signo está restrita à parte imaterial do
signo, isto é, ao significante. Isso porque “os significantes
acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos
se apresentam um após outro; formam uma cadeia” (p. 84).

27
Linguística: Outra introdução

7. AS DICOTOMIAS SAUSSURIANAS
Pater noster, qui es in caelis, sanctificetur nomen
tuum, adveniat regum tuum, fiat voluntas tua sicut in caelo et in
terra. Panem nostrum supersubstantialem da nobis hodie; et dimitte
nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus debitoribus nostris, et ne
nos inducas in tentationem, sed libera nos a Malo

Oração do Senhor.

Em seu Curso de Linguística Geral (1969, p. 15),


Ferdinand de Saussure, ao delimitar o objeto de seu estudo,
discorre a respeito da palavra nu, e sua correspondência latina
nudum, analisando a língua em suas mudanças históricas. Ele
mostra, através da comparação entre as duas palavras, que é
possível estabelecer uma correlação histórica no francês. Em
português, poderíamos fazer o mesmo, para tanto partiremos
da oração do Pater Noster em latim. Houve um tempo em
que era assim que se rezava nas igrejas até que se optou pelo
vernáculo.

O objetivo dessa análise é a explicitação de alguns


conceitos saussurianos, apresentados na forma de dicotomias.
A palavra dicotomia, no grego, quer dizer “divisão em partes
iguais”. De acordo com a proposta saussuriana para os estudos
linguísticos, uma dicotomia se trata de um conceito inter-
relacionado a outro. As dicotomias comumente denominadas
de saussurianas são: diacronia/sincronia, língua/fala e
sintagma/paradigma. O mestre genebrino, por meio dessas
dicotomias, faz uma contraposição com base em cada uma
das duas partes da língua, a fim de estabelecer a metodologia
para o estudo científico da langue.

Diacronia e Sincronia são formas distintas de abordar


o estudo da língua. A diacronia – que vem da composição
do grego dia – através – e chronos – tempo, diz respeito à
dimensão temporal da língua. Na perspectiva diacrônica
estudamos as mudanças que a língua sofreu ao longo de
um determinado período de tempo. A proposta dos estudos

28
José Roberto Alves Barbosa

realizados pela Linguística Histórica é a de traçar o grau


de parentesco nos diferentes níveis da língua – fonológico,
morfológico, lexical e sintático. A palavra latina Pater, por
exemplo, vem do grego πατήр, que, por sua vez, veio do
sânscrito Pitar. No português – pai, em espanhol – padre, em
francês – père, e em italiano – padre. O latim, desse modo,
seria a língua-mãe dessas que seriam as línguas-filhas.

A sincronia diz respeito à ausência de elementos


temporais numa descrição linguística. Essa palavra é uma
composição do grego syn – juntamente e chronos – tempo,
cujo significado é “ao mesmo tempo”. Em uma proposta
sincrônica para a análise linguística, a atenção é posta num
dado momento do tempo. Isso não quer dizer que se trata
apenas de uma descrição da língua no tempo presente.
O estudo do português do tempo de Luis de Camões
é considerado um estudo sincrônico. Para Saussure, a
Linguística deve se preocupar com a descrição sincrônica
da língua. Ele argumenta que esta, e não a diacronia tem
princípios de regularidades. Para explicar esse paradigma,
ilustra com o jogo de xadrez, justificando que, numa partida,
o fundamental é identificar a disposição das peças e as regras
do jogo num determinado momento, não interessando o
percurso que as peças percorram até chegar à condição atual.

Na dicotomia langue (língua) / parole (fala), Saussure


reforça que o objeto de estudo da Linguística é a língua
e não a fala. Ele define esse objeto como um sistema de
elementos que forma um todo. A língua, nessa perspectiva,
é um conjunto de elementos organizados sistematicamente,
um em função dos outros. A proposta de Saussure, com essa
delimitação, é separar os fatos da língua dos fatos da fala. Os
primeiros dizem respeito à estrutura do sistema linguístico
e os segundos ao uso desse sistema. A pertinência dessa
dicotomia, para Saussure, está na possibilidade de estudar
os fatos da língua (langue) separadamente dos fatos da fala
(parole). Fazendo alusão à oração do Pai Nosso, é possível que
existam variações no português para pronunciar as palavras

29
Linguística: Outra introdução

da oração. Mesmo assim, essas diferenças não costumam


afetar o sistema fônico da língua. O fato de alguém pronunciar
[dia] ou [dӡia] não afeta o sistema fônico da língua.

Para Saussure, há algumas relações dentro do sistema


linguístico que são estabelecidas em dois eixos distintos – da
combinação (sintagmático – do grego sintagma, que quer
dizer coisa posta em ordem) e o da seleção (paradigmático –
do grego paradigma que quer dizer modelo). Os elementos
estão relacionados em presença ou ausência um do outro.
Assim, em Pai Nosso que estás no céu, os elementos < Pai
– Nosso – que – estás – no – céu > encontram-se em uma
sequência de combinação, vindo um após o outro em
presença, obedecendo às regras do sistema. Numa relação
seletiva, ao invés de Pai, seria possível substituir a palavra por
Mãe, minha por meu, tua; que estás no céu – por estás na
terra, entre outras opções.

p
a
r
a
d
i
g
m
á
t
i
c
o
sintagmático

Eixos Paradigmático (seleção) e Sintagmático


(combinação)

30
José Roberto Alves Barbosa

É preciso destacar que essas relações ocorrem em


diversos níveis da análise linguística: fonológica: /pai/ - /vai/;
morfológica: am – a - ria – s / beb – e – ria – s; lexical: Pai,
Mãe, Deus, Filho; e sintática; Pai Nosso que estás no céu / mãe
querida que está na terra. Para entender melhor essa relação,
façamos uma analogia com as peças de roupas disponíveis num
guarda roupa. A que alguém está vestido: calça, camisa, meias
e sapatos, seria a combinação (sintagmática), enquanto que as
roupas que se encontram no guarda roupa, e que poderiam
ser usadas, mas não foram, é a seleção (paradigmática). Ou
comparando com uma partida de futebol, os jogadores em
campo seriam elementos sintagmáticos. Os paradigmáticos
aqueles que se encontram no banco de reserva, à disposição
do técnico.

31
Linguística: Outra introdução

8. O CÍRCULO LINGUÍSTICO DE PRAGA


O mistério da ideia incorporada à matéria fônica, o
mistério da palavra, do símbolo linguístico, do Logos, um mistério
que pede para ser elucidado.

Roman Jakobson

O Círculo Linguístico de Praga ou Escola de Praga


era composto por um grupo de linguistas e críticos literários
que atuaram entre os anos de 1928 a 1939. Seus proponentes
desenvolveram métodos de análise literária de cunho
estrutural. Entre os membros desse grupo estavam alguns
pensadores russos tais como Roman Jakobson, Nicolai
Trubetzkoy e Sergei Karcevsky. O primeiro presidente do
Círculo foi o linguista Vilém Mathesius que comandou os
trabalhos do grupo até a sua morte em 1945.

Os estudos do Círculo romperam com a posição


estrutural clássica de Ferdinand de Saussure. Eles defendiam
que os métodos de estudo das funções da língua deveriam ser
aplicadas tanto sincronicamente quanto diacronicamente. A
funcionalidade dos elementos linguísticos e a importância de
sua função social passaram a ser abordados enquanto aspectos
essenciais para o programa de pesquisa. O resultado inicial
das reflexões desse grupo foi publicado em um congresso
realizado em Praga em 1929. Aos primeiros volumes dessa
publicação foi dado o título de Travaux du Cercle Linguistique
de Prague [Trabalhos do Círculo Linguístico de Praga].

Nesses trabalhos essa escola ressaltou a função dos


elementos internos da língua, o contraste desses elementos
entre si e o sistema que formulava tais elementos. Os
pesquisadores desenvolveram a análise de traços linguísticos
distintivos, principalmente na fonologia, mostrando como
cada som é composto por um grupo de características
acústicas e articulatórias em que os sons são diferenciados por
pelos menos um traço distintivo. O paradigma funcionalista
linguístico da Escola de Praga pode ser descrito como uma

32
José Roberto Alves Barbosa

proposta de abordagem que considera cada componente de


uma língua - o fonema, o morfema, a palavra ou a sentença -
a fim de cumprir uma função comunicativa particular.

Eles consideravam a língua como um sistema de


subsistemas em que cada parte está interligada a um campo
mais amplo. Assim sendo, a língua nunca se encontra em
estado de equilíbrio, por isso, a ocorrência de múltiplos
desvios. São justamente esses desvios que fazem com que
a língua se desenvolva e funcione como um sistema vivo.
Em consonância com esse pensamento Trubetzkoy (1964)
argumentou que um sistema fonológico não é apenas uma
soma mecânica de fonemas isolados, mas um todo orgânico
em que os fonemas são membros da estrutura e submissos às
suas leis.

O Círculo também demonstrou forte preocupação


com a análise das funções da linguagem e isso incluía tanto
a função como o ato de comunicação como a língua em
sociedade. Por esse motivo tais linguistas são denominados
de funcionalistas, justamente por atentarem não apenas
às formas, como faziam os estruturalistas, mas também às
funções desempenhadas pelas estruturas linguísticas. Com
essa preocupação, Jakobson mostrou que os elementos de um
sistema e suas mudanças não são apenas compatíveis, antes
contêm laços indissolúveis. Esses laços foram demonstrados
com bastante propriedade pelos Círculo nos estudos fonético-
fonológicos.

Nesse campo específico de atuação, a Escola


contribuiu com uma teoria rigorosa e com procedimentos
para a análise. A fonologia, conforme descrita pelos
fundadores do Círculo, deveria descrever cientificamente
uma língua a fim de compreender as características do seu
repertório, e, ao mesmo tempo, identificar suas diferenças
significativas. Através da fonologia comparada seria possível
a formulação de leis gerais que regem as correlações dentro
do quadro de um determinado sistema fonológico. A história

33
Linguística: Outra introdução

fonética, nessa perspectiva, se transformaria na história


da evolução do sistema fonológico. Os estudos fonológicos
deveriam identificar as características particulares do sistema
em termos da língua em suas diferenças significativas para
distinguir os tipos de diferenças e formular leis que regulassem
as relações dessas correlações.

Trubetzkoy contribuiu significativamente para


a construção da teoria da fonética e da fonologia. Ele é
responsável pelo nascimento da fonologia funcional e por
fazer a distinção entre fonética – a ciência que estuda os
sons da fala humana - e fonologia – a ciência que estuda
os sistemas de sons das línguas. Defendia a necessidade de
adotar critérios para diferenciar fonemas e sons. Para tanto
recorreu à dicotomia saussuriana langue/parole, definindo o
fonema como um conjunto de traços distintivos no sistema
linguístico (langue) e os sons enquanto manifestações
individuais da fala humana (parole).

As contribuições do Círculo Linguístico de Praga


para os estudos linguísticos é reconhecida por vários teóricos.
Algumas das reflexões formuladas por essa Escola foram
retomadas posteriormente por movimentos que, com as
devidas adaptações, se apropriaram de seus conceitos para
um redimensionamento dos estudos linguísticos. Os estudos
recentes da comunicação, e o enfoque na relação entre língua
e sociedade devem bastante às discussões do CLP. Isso porque,
a fim de desvendar o mistério da palavra, e na tentativa de
elucidar os enigmas do signo linguístico, desbravaram,
com a mesma maestria, o solo íngreme da linguística e os
emaranhados labirintos da teoria literária.

34
José Roberto Alves Barbosa

9. A DUPLA ARTICULAÇÃO DA LÍNGUA


O segundo projeto era representado por um plano de
abolir completamente todas as palavras, fossem elas quais fossem
[...]. Em vista disso, propôs-se que, sendo as palavras apenas
nomes para as coisas, seria mais conveniente que todos os homens
trouxessem consigo as coisas de que precisassem falar ao discorrer
sobre determinado assunto [...] ... muitos eruditos e sábios aderiram
ao novo plano de expressarem por meio de coisas; cujo único
inconveniente residia em que, se um homem tivesse que falar
sobre longos assuntos e de várias espécies, ver-se-ia obrigado, em
proporção, a carregar nas costas um grande fardo de coisas, a menos
de poder pagar um ou dois criados robustos para acompanha-lo [...].
Outra vantagem oferecida pela invenção consiste em que ela serviria
de língua universal, compreendida em todas as nações civilizadas,
cujos utensílios e objetos são geralmente da mesma espécie, ou tão
parecidos que o seu emprego pode ser facilmente percebido.

As viagens de Gulliver, Jonathan Swift (1735).

A teoria da dupla articulação da linguagem é


uma contribuição do pensamento funcionalista de André
Martinet. Essa linha de pensamento situa-se no paradigma
estruturalista europeu, em uma abordagem funcional,
prosseguimento dos estudos linguísticos de Praga. A partir
dos trabalhos de Trubetskoy, Martinet desenvolveu uma série
de pesquisas sobre o indo-europeu e a fonologia, a partir da
qual propõe um enfoque sobre a diversidade das línguas,
levando em conta suas diferenças. Para Martinet, a língua é
definida como um “instrumento de comunicação duplamente
articulado e de manifestação vocal” (1991, p. 20).

Essa proposição o situa num paradigma funcional


da Linguística. Martinet (1989) define o termo funcional,
demonstrando sua identificação com o Círculo Linguístico
de Praga:

35
Linguística: Outra introdução

[...] em seu sentido mais corrente implica que


os enunciados linguageiros são analisados em
referência à maneira como eles contribuem
para o processo de comunicação. A escolha do
ponto de vista funcional deriva da convicção
de que toda pesquisa científica se fundamenta
no estabelecimento de uma pertinência e
que é essa pertinência comunicativa que
melhor permite compreender a natureza e
a dinâmica da linguagem. Todos os traços
linguageiros serão, então, prioritariamente,
apreendidos e classificados em referência ao
papel que desempenham na comunicação da
informação (p. 53).

Para Martinet (1989), a pertinência comunicativa


constitui-se em outro ponto de vista, distinto daquele de
Saussure, em relação ao objeto de estudo da Linguística. Ele
argumenta que
[...] cada ciência é caracterizada menos pela
escolha dos objetos que pela escolha de
certas características desses objetos. Cada
ciência se fundamenta em uma pertinência.
Na linguística funcional, estimamos que a
pertinência é a pertinência comunicativa (p.
37).

A ênfase de Martinet é posta, assim, sobre a função


mais englobante, acentuando a troca verbal entre os atores da
comunicação, e não apenas sobre um elemento do processo
comunicativo. Para tanto, distingue dois tipos de pertinência:
a pertinência distintiva (dos fonemas), e a significativa (dos
monemas). Por meio dessa distinção, Martinet estabelece a
dupla articulação da linguagem como uma das características
das línguas humanas. Para ele, “cada uma das unidades
que resultam de uma primeira articulação está, portanto,
articulada, por sua vez, a unidades de um outro tipo” (1991,
p. 13).

36
José Roberto Alves Barbosa

A primeira articulação possibilita a combinação,


entre si, das unidades mínimas significativas, a fim de
ordenar “a experiência comum a todos os membros de uma
comunidade linguística” (1991, p. 14). Ao mesmo tempo,
a infinita possibilidade de combinação dá a cada locutor a
capacidade de produzir enunciados singulares. As unidades
da primeira articulação possuem um significado e uma
forma vocal, são signos com duas faces, um significante e
um significado (monemas). O monema tanto pode ser um
segmento linguístico distinto quanto uma diferença formal.

Para ele, a primeira articulação somente é possível


porque os monemas são constituídos de unidades sucessivas
menores, não detentoras de significado: os fonemas, sendo
esses os elementos da segunda articulação. A diferença
primordial entre eles é que a lista de monemas de uma língua é
aberta, já que toda língua se encontra em constante evolução,
os fonemas é fechada e constitui um sistema. Por essa razão,
o monema livro é constituído de cinco unidades da segunda
articulação /΄livru/. A dupla articulação da língua favorece a
quantidade de possibilidades linguísticas, considerando que
o sistema fônico, bastante econômico, pode formar várias
monemas (ou morfemas).

37
Linguística: Outra introdução

10. GRAMÁTICA GERATIVA


O cérebro - é pesado como Deus - se na balança - os pões - serão
iguais - ou quase - tal e qual - a sílaba e o som

Emily Dickinson

O Gerativismo é uma corrente dos estudos linguísticos


que surgiu no final da década de 1950, nos Estados Unidos, a
partir dos trabalhos do linguista Noam Chomsky. O ano de
1957 é considerado o marco inicial da Linguística Gerativa, em
virtude da publicação do livro Syntact Structures [Estruturas
Sintáticas] desse estudioso que trouxe contribuições bastante
significativas para a percepção das teorias linguísticas. Esse
modelo teórico formal, inspirado na matemática, propõe não
apenas a descrever, mas a explicar abstratamente o que é e
como funciona a língua humana. Para tanto, Chomsky (1975,
p. 84) pressupõe
um falante-ouvinte ideal, situado numa
comunidade linguística completamente
homogênea, que conhece a sua língua
perfeitamente, e que, ao aplicar o seu
conhecimento da língua numa performance
efetiva, não é afetado por condições
gramaticalmente irrelevante, tais como
limitações de memória, distrações, desvios
de atenção e de interesse, e erros (casuais ou
característicos).

Para situar melhor a teoria gerativista, é preciso


destacar, que essa surgiu em reação ao modelo behaviorista,
o qual se propunha a descrever os fatos da língua. Para este
modelo, o comportamento humano deveria ser estudado,
especificamente, em termos de processamento físico. A
proposta behaviorista seria descrever como um evento externo
– um estímulo – causava uma mudança no comportamento
de um indivíduo – uma resposta. Esse movimento influenciou
várias áreas da ciência, dentre elas, a Psicologia, a Educação e
também a Linguística. Um dos nomes mais representativos da
38
José Roberto Alves Barbosa

Linguística Estrutural Behaviorista foi o linguista americano


Leonard Bloomfield.

Para ele, a língua era interpretada como um


condicionamento social, uma resposta que o organismo
humano produzia mediante os estímulos que recebia da
interação social. Por isso, a partir da repetição constante e
mecânica, seria possível transformar a língua num hábito,
caracterizando, assim, o comportamento linguístico
do falante. No contexto dessas discussões teóricas, em
1959, Noam Chomsky criticou o livro Verbal Behaviour
[Comportamento Verbal], escrito pelo behaviorista B. F.
Skinner. Essa crítica radical resultou no declínio dessa teoria
na academia e na consolidação de uma escola de investigação
na Linguística denominada Gerativismo.

O Gerativismo, por outro lado, argumentou em


prol da existência de uma Gramática Gerativa, isto é, um
conjunto de regras finitas ou infinitas que possibilita a
criação infinita de frases. Chomsky (1957), na constituição
desse paradigma linguístico, assume: “Considerarei a língua
como um conjunto (finito ou infinito) de sentenças” (p. 13).
Assim, se as frases de uma língua podem ser comparadas a
um conjunto, argumenta que existe um conjunto de regras
que possibilita a produção dessas sentenças. Para Chomsky
(1957), que se inscreve num paradigma racionalista dos
estudos linguísticos, essa capacidade humana para criar
frases é resultante de um componente inato, uma capacidade
genética, interna ao organismo humano.

Essa disposição inata, inerente à espécie humana,


existe por causa de uma Faculdade da Linguagem. Ela está
relacionada à Competência Linguística, à capacidade natural
e inconsciente para produzir frases. Por sua vez, não existe
em qualquer outro ser vivo e separa os seres humanos dos
primatas superiores e do resto do mundo natural. Essa
competência (Língua-I), para Chomsky (1957), deve ser
diferenciada da Performance (Língua-E) – que envolve o

39
Linguística: Outra introdução

uso concreto da língua e diversos tipos de habilidades que


não são linguísticas, tais como atenção, memória, emoção,
nível de estresse, conhecimento de mundo, etc. Para ele, a
Linguística deve explicar a Competência, não a Performance
(ou Desempenho). Partindo desse pressuposto, Chomsky
(1980) argumentou que o objetivo da Linguística Gerativa
será construir um modelo teórico capaz de explicar a natureza
e o funcionamento dessa faculdade, um dos aspectos mais
importantes da mente humana.

40
José Roberto Alves Barbosa

11. REPRESENTAÇÃO DA GRAMÁTICA


GERATIVA
Não devemos nos surpreender se cada legislador das palavras utiliza
as mesmas sílabas, mas como todos os ferreiros não usam o mesmo
ferro, mesmo quando fazem o mesmo instrumento para o mesmo
fim. Desde que eles produzam a mesma forma, o instrumento é
igualmente bom, seja aqui ou entre os bárbaros

Teeteto, Platão

Por se tratar de uma Gramática nos moldes da lógica


matemática, os estudiosos do Gerativismo utilizam uma série de
símbolos para representar as estruturas sintáticas. Tais símbolos
apontam para algumas categorias, entre elas destacamos:
a Sentença (S), o Sintagma Nominal (SN), o Nome (N), o
Determinante (Det), entre outros. Outros símbolos são utilizados
nas representações das descrições sintáticas. O primeiro deles
é a seta →. Esse símbolo é interpretado como “consiste de” e é
utilizado na regra SN → Det N. Trata-se de uma forma abreviada
de dizer que um sintagma nominal consiste de um determinante
e um nome, como no sintagma: O príncipe.

SN → Det N

O segundo símbolo é o par de parentes ( ) que é


utilizado para representar o caráter opcional do elemento que
se encontra dentro deles. No sintagma nominal: O pequeno
príncipe, o elemento pequeno é um adjetivo, portanto, um
constituinte opcional do sintagma. Como se pode ver na
anotação abaixo, os parênteses ( ) indicam que o adjetivo é
opcional.

SN → Det (Adj) N

Outro símbolo utilizado nas anotações da Gramática


Gerativa é o par de chaves { }. Eles indicam que apenas um
entre os elementos deve ser selecionado. Assim, o sintagma
nominal exemplificado – o príncipe – Det N – pode consistir
também de um pronome ou nome próprio.
41
Linguística: Outra introdução

SN → Det N
SN → Pro
SN → NP

Ou, recorrendo às chaves:

SN → {Det N}
SN → {Pro}
SN → {NP}
Ou, de outro modo:

SN → {Det N, Pro, NP}

De modo geral, os símbolos apresentados significam,


respectivamente: S – Sentença, N – Nome, V – Verbo, Det –
Determinante, SN – Sintagma Nominal, SV – Sintagma Verbal,
Adj – Adjetivo, Pro – Pronome, NP – Nome Próprio, Adv –
Advérbio, Prep – Preposição, SP – Sintagma Preposicional,
* - sentença agramatical, → - consiste de, ( ) – constituinte
opcional, { } – apenas um dos elementos constituintes deve
ser selecionado. A apresentação desses símbolos pode ser feita
também através de diagrama arbóreo, conforme mostrado a
seguir, em relação à sentença O príncipe viu a raposa.

42
José Roberto Alves Barbosa

Os estudos gerativistas também compreendem que


os falantes têm intuições a respeito das estruturas sintáticas
que produzem. Essa percepção tem a ver com a noção de
erro, comumente compreendido como um desvio linguístico
estabelecido pela norma. Mas para a Gramática Gerativa
existem dois tipos de erros, um que está ligado à competência
(error em inglês) e o outro, ao desempenho (mistake em
inglês), esses de maior interesse da Psicolinguística. No
primeiro tipo estão as estruturas que não são atestadas
porque, de fato, não existem. Essas são sequências que fogem
à gramaticalidade, ou seja, são agramaticais, sendo marcadas
com um asterisco:

O pequeno príncipe viu a raposa

* Viu o pequeno príncipe raposa

43
Linguística: Outra introdução

12. PRINCÍPIOS E PARÂMETROS


É fácil conceber que uma máquina seja feita de tal modo
que profira palavras, e até que profira algumas a propósito das
ações corporais que farão algumas mudanças em seus órgãos: como
quando a tocamos em algum lugar, ela pergunte o que queremos
lhe dizer; se a tocamos em outro lugar, ela pergunte o que queremos
lhe dizer; se a tocamos em outro lugar ela grite que a machucamos,
e coisas semelhantes; mas não que ela as arranje em sua presença,
assim como os homens mais broncos podem fazer

Discurso do Método, de René Descartes.

A hipótese da Gramática Universal de Chomsky


(1995) é a da existência de um algoritmo, ou seja, um sistema
gerativo binário, um conjunto de instruções semelhantes
àquelas inscritas num programa de computador que
possibilita o desenvolvimento da gramática de uma língua. A
fim de descrever a natureza e o funcionamento da Gramática
Universal, os gerativistas formularam uma teoria denominada
de princípios e parâmetros. Essas pesquisas foram realizadas
a partir do desenvolvimento do Programa Minimalista (PM)
nos anos 1990 e privilegiaram a sintaxe.

A opção pela sintaxe é justificada devido à existência


universal dos aspectos da sentença, tais como sujeito,
predicados e complementos. Essa prerrogativa sempre foi
considerada no âmbito dos estudos linguísticos. A sintaxe,
enquanto módulo autônomo, pode ser estudada em virtude
de suas regras próprias, não dependendo dos outros módulos
(lexical, fonológico, morfológico e semântico). Com base
nesse pressuposto, o Programa Minimalista faz a diferença
entre “princípios” e “parâmetros”.

Os princípios gramaticais são propriedades que


são válidas para todas as línguas naturais, ao passo que os
parâmetros são as possibilidades limitadas de variação entre
as línguas. Analisemos as sentenças a seguir: (1) Pedro disse
que ele vai viajar; e (2) Ele disse que Pedro vai viajar. Em (1) o

44
José Roberto Alves Barbosa

pronome “ele” tanto pode se referir a “Pedro” quanto a outro


homem citado anteriormente. Em (2) o pronome “ele” não
pode se referir a “Pedro” e necessariamente faz referência a
outra pessoa. Em ambos os casos o pronome “ele” se refere
a elemento citado anteriormente no texto – trata-se de um
pronome anafórico. O princípio da Gramática Universal,
portanto, é: “uma anáfora deve suceder o seu referente e
jamais o contrário”.

Por isso em (1) o pronome “ele” pode ser tanto “Pedro”


quanto outra pessoa já que ambos os termos antecedem os
pronomes. Mas em (2) “Pedro” não pode ser o referente de
“ele”, pois o pronome antecede o nome. A tradução de (1) e
(2) para outra língua terá sempre o mesmo efeito, portanto,
esse é um princípio da Gramática Universal, já que isso
ocorre em todas as línguas naturais. Vejamos a tradução
dessas sentenças para o inglês:

(1) Peter said that he is going to travel.

(2) He said that Peter is going to travel.

Os parâmetros, diferentemente dos princípios,


pressupõem a possibilidade de variação das sentenças entre
as línguas naturais. Em (1) traduzida para o inglês não seria
possível a extração do sujeito da oração subordinada: (1)
Peter said that Ǿ is going to travel. Isso porque em inglês o
sujeito nulo não é permitido, fazendo com que a sentença
seja agramatical em inglês, ainda que não em português: (1)
Pedro disse que Ǿ vai viajar. Por isso, em português é comum
a existência de sentenças do tipo: “está chovendo”, algo que
seria agramatical no inglês “Ǿ is raining”.

O sujeito nulo é uma propriedade do português bem


como de outras línguas tais como o espanhol e o italiano,
ainda que não seja comum a todas as línguas naturais. Por
esse motivo, quando traduzimos sentenças do tipo “chove”
para o inglês [ - sujeito nulo], precisamos preencher o
Sintagma Nominal (SN), diferentemente do português [ +
45
Linguística: Outra introdução

sujeito preenchido]. O sujeito nas sentenças é um princípio


da Gramática Universal, mas a possibilidade de deixá-lo nulo
é um parâmetro.

Uma analogia para compreender a diferença entre


princípios e parâmetros é o ato de dirigir em um dos lados
da estrada. O princípio é que dirigimos em apenas um dos
lados, o parâmetro é a opção de fazê-lo do lado direito
ou esquerdo. Outro exemplo é o fato de as línguas serem
estruturadas em sintagmas: nominal, verbal, preposicional.
Em tais casos, o princípio é o núcleo do parâmetro: nome,
verbo ou preposição. Mas a posição desses núcleos dentro do
sintagma pode varias, sendo, portanto, um parâmetro.

O objetivo da Gramática Gerativa, dentro do escopo


do Programa Minimalista, é observar comparativamente
as línguas naturais e analisar seus fenômenos sintáticos, a
fim de identificar os princípios e parâmetros que regem a
competência linguística no intuito de explicar a faculdade
da linguagem. Essa distinção entre princípios e parâmetros
é determinante para o processo de aquisição da Primeira
Língua (L1) pelas crianças.

46
José Roberto Alves Barbosa

13. COMPETÊNCIA COMUNICATIVA


Uma língua é sobretudo um produto social e cultural e como
tal deve ser entendida... É peculiarmente importante que os linguístas,
que são frequentemente acusados – e justamente acusados – de falhar em
olhar mais além dos padrões da sua matéria de estudo tornem-se mais
conscientes do que a sua ciência pode significar para a interpretação da
conduta humana em geral.

Edward Sapir

A noção de competência comunicativa, conforme


defendida por Hymes (1972), concebe a proposta gerativista
de Chomsky (1965), mas o critica, já que a este interessava
apenas a gramaticalidade, isto é, a capacidade inata para
produzir frases. Para Hymes (1972), tal competência somente
se concretiza em sua contraparte, o desempenho. Hymes
(1972) defende a necessidade de enfocar o aspecto que carece
à teoria gerativista, a ausência de fatores socioculturais e a
relação que se pretende estabelecer entre desempenho e
imperfeição. A crítica central de Hymes (1972) a esse modelo
diz respeito ao princípio da Linguística Moderna que enfocou
demasiadamente a estrutura em detrimento do uso da língua.

Essa tendência acabou por retirar de foco um dos


aspectos essenciais à comunicação humana: o contexto. Hymes
(1972) lembra que toda resposta linguística ocorre dentro de um
determinado contexto, é nele que o indivíduo obtém controle a
respeito da dependência dos julgamentos de valor, bem como
das capacidades sobre o próprio contexto. Assim sendo, as regras
linguísticas não podem ser reduzidas a um conjunto de regras
finitas e/ou infinitas capazes de gerar um número infinito de
frases. Existem outras regras, e essas associadas ao uso, sem as
quais as regras gramaticais seriam impraticáveis. Assim, para
reconhecer a gramaticalidade de uma determinada frase, é
preciso verificar sua adequação quanto ao uso.

Hymes (1972) justifica que a competência gramatical é


apenas um entre outros aspectos da competência comunicativa.

47
Linguística: Outra introdução

Para a construção de uma teoria apropriada dos usos da


língua, e de seus usuários, esse autor defende o interesse pelos
demais elementos, os quais seriam: se (e em que grau) algo é
formalmente possível; se (e em que grau) algo é factível em
virtude dos meios disponíveis de implementação; se (e em que
grau) algo é apropriado (adequado, feliz, bem sucedido) em
relação ao contexto em que é utilizado e avaliado; e se (e em que
grau) algo acontece na realidade, se efetua verdadeiramente, e
o que isso acarreta. Isso é importante porque uma frase pode
ser gramaticalmente correta, mas estilisticamente truncada,
socialmente diplomática e de uso pouco frequente.

Hymes (1972) explica cada um desses aspectos do


seguinte modo: 1) para que algo seja formalmente possível, é
preciso que seja viável dentro do escopo da gramaticalidade;
2) deve ser factível, e nesse ponto, o fator psicolinguístico é
preponderante, levando em conta a existência da limitação da
memória e adequação quanto aos mecanismos de percepção; 3)
a adequação ao contexto também é fundamental, considerando
a apropriação contextual, pois todo julgamento se dá dentro de
algum contexto específico; e 4) o fato de algo dito ser ou não
bem sucedido não pode ser ignorado. Uma frase pode muito
bem ser possível, factível, apropriada, e mesmo assim, não
conduzir a um desempenho efetivo.

A proposta do estudo da competência comunicativa,


a partir de Hymes (1972), atenta tanto para a dimensão
linguística quanto para a social. Esse paradigma integrativo
da língua, percebida em uso, favoreceu uma série de
aplicações discursivas nos estudos da linguagem. Essa teoria
se ajustou a alguns contextos educacionais, principalmente
aqueles relacionados ao ensino de Segundas Línguas (L2),
diminuindo a influência do estruturalismo e behaviorismo
nas metodologias de ensino de L2. Por conseguinte, ao invés
de tentar consolidar hábitos linguísticos, através do estímulo,
resposta e repetição, a ênfase passou para a competência do
falante, não apenas para produzir frases, mas para usá-las
adequadamente nos diversos contextos comunicativos.

48
José Roberto Alves Barbosa

14. TEXTO E DISCURSO


Não se pode entrar no rio duas vezes

Heráclito

Os estudos dos textos e do discurso, nesses últimos


anos, passaram a ter espaço significativo no âmbito da
Linguística. A mudança em direção a esse paradigma
advém das contribuições da Pragmática. Por isso, a fim de
contextualizarmos as análises textuais, discutiremos os
fundamentos dessa abordagem linguístico-filosófica. Para
Brown (2010), a Pragmática pode ser definida como o estudo
do que os falantes querem significar ou do significado do
falante. Para esse autor, a Pragmática lida com o estudo do
significado “invisível”, isto é, sobre como os indivíduos são
capazes de reconhecer o que é significado, mesmo quando
algo não é explicitamente escrito ou falado.

A palavra-chave nos estudos da Pragmática é contexto.


Não por acaso, para alguns linguistas, essa disciplina poderia ser
denominada de “contêxtica”. Outra noção bastante significativa
nos estudos pragmáticos, ou contextuais, é a de “intenção”, haja
vista que se busca, na associação da forma linguística com o
contexto, a identificação das intenções do falante e/ou escritor.
Observamos, assim, que essa tendência de investigação
linguística representa uma ruptura na tradição, considerando
que, diferentemente de Saussure, cuja preocupação central era
a língua, e de Chomsky, com a competência linguística, o foco
da pragmática está no uso, na parole ou no desempenho, que
foram desconsiderados pelos linguistas formalistas.

A instauração do discurso como objeto de estudo da


Linguística é atribuída a Benveniste (1974), ao reconhecer a
regularidade da parole. Para ele a língua deve ser diferenciada
do seu “exercício”. Isso porque cada uma dessas instâncias tem
estatutos distintos. O exercício da linguagem não é simplesmente
uma virtualidade, como é a língua, mas sua realização. Assim, o
que permite a passagem do virtual ao realizado é a enunciação.
49
Linguística: Outra introdução

Esta, por conseguinte, é a “colocação em funcionamento da


língua por um ato individual de utilização” (1974, p. 80).

Esse funcionamento da língua, como enunciação,


comporta uma intencionalidade. Para tanto, leva-se em
consideração tanto o contexto quanto o co-texto. O primeiro
é visto como o ambiente físico no qual uma palavra ou
expressão linguística é utilizada. O co-texto, por sua vez,
relaciona-se a todos os aspectos linguísticos dentro do texto.
A título de exemplificação, vejamos os textos a seguir:

(1) SILÊNCIO
(2) PROIBIDO FUMAR
(3) NÃO PISE NA GRAMA

Observemos que os textos supracitados estão


escrito em português, não em inglês ou espanhol. O texto
(1) é constituído de uma palavra, o segundo de duas e o
terceiro de quatro. No último caso podemos ressaltar que
existe uma combinação de palavras a fim de constituir outra
unidade. O contexto é constituído pelos aspectos físicos que
possibilitam a construção do sentido das frases. No ambiente
reservado de um hospital, no qual doentes estão em processo
de tratamento, os textos (1) “Silêncio” e/ou (2) “Proibido
fumar” são adequados. Em (3) “Não pise na grama”, talvez
já não caiba naquele contexto, e seja mais apropriado para
uma “praça”. O co-texto, no exemplo (3), é constituído pelas
palavras tomadas uma em relação às outras, na totalidade e
dentro de cada um dos textos.

Tomando por base os pressupostos pragmáticos,


atentemos para uma entre as muitas definições de texto. De
acordo com Widdowson (2007), um texto – falado ou escrito
- pode ser compreendido em sua comparação com a sentença.
Isso porque esta não passa de uma construção abstrata,
independente do contexto. O texto, por sua vez, é o uso real
da língua, identificado como uma parte da língua na medida
em que é possível reconhecer um propósito comunicativo. Se

50
José Roberto Alves Barbosa

procurarmos o significado da palavra “silêncio” no dicionário,


a denotação não é a mesma que sua referência no contexto.
Em todos os exemplos anteriormente citados (1), (2) e (3), a
intenção é a de proibição. Sejam simples ou complexos, fato
é que todos os textos são usos da língua que são produzidos
com a intenção de se referirem a algo com algum propósito.

Podemos identificar se uma dimensão linguística


é um texto por causa da possibilidade de reconhecimento
da sua intenção comunicativa. A identificação de um texto,
entretanto, não está condicionada à percepção do seu sentido.
É possível que alguém saiba que algo seja um texto, mas não
seja capaz de compreender o que está sendo referido. O
processo de construção de sentidos envolve fatores diversos
na interação social. O propósito dos falantes/escritores, e
mesmo dos ouvintes/leitores, não pode ser desconsiderado.

Não podemos esquecer que as pessoas produzem


textos com fins diversos, para obter uma resposta, para
expressar ideias e crenças, para explicar alguma coisa, para
coagir as pessoas a fazer o que pensam ser a verdade. A
Pragmática, de tendência britânica, sob a influência de Austin
(1962) e Searle (1969), refere-se às intenções comunicativas
como “discurso”, tendo em vista que este subjaz aos textos e
motiva a sua produção, bem como sua compreensão.

A interpretação do texto, enquanto discurso, depende


do ouvinte e/ou leitor, considerando que o texto, isoladamente,
não contém significado, ele apenas media os discursos, ainda que
seja constitutivo desses. Os textos servem para mediar alguma
convergência, os horizontes de encontro, entre os discursos. Por
esse motivo ninguém pode garantir que determinado texto será
compreendido tal qual foi falado ou escrito. Mesmo tomando as
precauções necessárias ao processo de textualização, haverá sempre
a possibilidade de a interpretação ser feita de outro modo. Por esse
motivo, a palavra discurso, no âmbito dos estudos linguístico-
pragmáticos, é usada para referir-se tanto ao que o produtor textual
quer significar quanto ao que o texto significa para o leitor/ouvinte.

51
Linguística: Outra introdução

15. TEORIA DOS ATOS DE FALA


A linguagem se parece com um explosivo, visto que a junção de um
elemento mínimo pode produzir efeitos terríveis.

Bertrand Russell

A teoria dos Atos de Fala foi desenvolvida pela


Linguística a partir da Filosofia da Linguagem Britânica, cujos
principais expoentes foram J. L. Austin e J. Searle. O primeiro
enfatizou os enunciados performativos, e o segundo, os atos
locucionários, ilocuionários e perlocucionários. Os atos de fala
vão além das análises semânticas (sentido desconstextualizado
das palavras) e sintáticas (estrutura/sentido das frases). Os atos
de fala enfatizam o que é possível fazer através das palavras,
isto é, por meio da língua. A língua não apenas tem a ver com
o que é verdadeiro ou falso, mas com o que é ou não realizável.

Através da língua é possível, por exemplo, prometer,


ordenar, saudar, advertir, convidar, parabenizar etc. A partir desse
princípio, os atos de fala são analisados em três níveis distintos:
locucionário, ilocucionário e perlocucionário. Um ato locucionário
de um enunciado diz respeito ao próprio enunciado, seu significado
específico. Um ato ilocucionário tem a ver com a ‘força ilocucionária
do enunciado, isto é, o significado pretendido enquanto ação verbal
socialmente válida. O ato perlocucionário é o efeito do enunciado,
e está relacionado à possibilidade de fazer com que alguém realize
algo que tenha sido ou não pretendido (AUSTIN, 1962).

Dentre essas noções, a de ato ilocucionário é a mais


importante para a teoria dos atos de fala. De acordo com Austin
(1962), a ideia de um ato ilocucionário concebe a seguinte
premissa: “ao dizermos alguma coisa, fazemos alguma coisa”.
Por exemplo, quando um juiz, pastor ou sacerdote diz:

(1) Eu vos declaro marido e mulher

Alguns atos de fala ilocucionários foram denominados


por Austin (1962) de performativos:

52
José Roberto Alves Barbosa

(2) Eu nomeio Carlos o novo presidente

(3) Eu o sentencio a dez anos de prisão

(4) Prometo devolver.

Em tais casos a ação que a sentença descreve (nomear,


sentenciar e prometer) é desempenhada pela própria sentença.
A partir dessa categorização, Searle (1975) apresentou a
seguinte classificação para os atos de fala ilocucionários:

1) Assertivos – atos de fala que comprometem o


falante em relação à verdade expressa na proposição. Ex.
recitar o Credo.

2) Diretivos – atos de fala que fazem com que o ouvinte


desempenhe uma ação particular. Ex. pedidos, ordens, conselhos.

3) Comissivos – atos de fala que comprometem o


falante para uma ação futura. Ex. promessas e votos.

4) Expressivos – atos de fala que expressam as


emoções e atitudes do falante em relação à proposição. Ex.
felicitações, condolências, desculpas, agradecimentos.

5) Declarativos - – atos de fala que modificam


a realidade de acordo com a proposição da declaração:
batismos, casamentos, julgamentos.

Mas é preciso atentar também para os atos de fala


indiretos, aqueles que são utilizados para rejeitar propostas
ou fazer pedidos. Vejamos o convite a seguir:

(5) Você gostaria de tomar um sorvete?

O ouvinte pode responder:

(6) Tenho uma consulta marcada.

Este fez uso de um ato de fala indireto para rejeitar

53
Linguística: Outra introdução

a proposta. Dizemos que se trata de indiretividade porque


a declaração: “Tenho uma consulta marcada” não implica
diretamente em rejeição. Os atos de fala funcionam a partir
de estruturas linguísticas distintas:

(7) Você toma sorvete? (interrogativa – convite)

(8) Tome o sorvete (imperativo – ordem, pedido)

(10) Você tomou o sorvete (declarativo – declaração).

Os atos de fala indiretos são uma maneira de


demonstrar polidez, a fim de que o falante não tenha a sua
face ameaçada (BROWN e LEVINSON, 1987). Os falantes
e ouvintes têm faces positivas e negativas, a primeira está
relacionada ao pertencimento, e a segunda à independência.
Por isso, ao invés de dizermos:

(11) Passe o sal

Preferimos

(12) Você pode passar o sal?

Por meio desse ato de fala indireto não queremos


saber se o ouvinte tem a habilidade de passar o sal. Essa
pergunta é uma maneira de utilizar uma estrutura linguística
interrogativa para desempenhar a função de pedir. Isso
também acontece com declarações. Ao dizer

(13) A janela está aberta.

O falante não está apenas fazendo uma constatação, mas se trata


de um enunciado cuja função é a de pedir que alguém feche a janela. Ao
invés de recorrer a um imperativo, o falante, a fim de resguardar a face, e
de demonstrar polidez, faz uso de uma forma declarativa para fazer um
pedido. Os atos de fala, sejam eles diretos ou indiretos, demandam, dos
ouvintes, a competência não apenas para interpretar o que é dito, mas
também o que se quer dizer através da língua.

54
José Roberto Alves Barbosa

16. ESQUEMAS E FRAMES


As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo.

Ludwig Wittgenstein

Um esquema é um construto que parte de um


conhecimento familiar. O funcionamento do esquema foi
inicialmente explicado por Barlett (1932). Esse autor aplicou
um teste a um grupo de estudantes britânicos, solicitando que
esses explicassem uma narrativa indígena norte-americana
intitulada The war of the ghosts [A guerra dos fantasmas] e
que a escrevessem posteriormente de memória. Ele observou
que os estudantes adaptaram os eventos às suas realidades,
distanciando-os da representação original. Essa diferença
ocorreu porque a realidade cultural da narrativa era diferente
daquela dos alunos que leram o texto.

Isso diz respeito ao conhecimento esquemático e


explica porque acontecem os desentendimentos culturais.
Como as pressuposições esquemáticas resultam do
conhecimento partilhado por uma determinada cultura,
Barlett (1932) destacou que essas são construtos culturais. O
processo de construção de sentidos, através do conhecimento
esquemático, se aplica à interpretação de todos os textos.
Será improvável que alguém possa atuar na construção do
sentido de um texto a não ser que parta de conhecimentos
preconcebidos. A máxima é a seguinte: todo dado novo está
relacionado ao que foi dito anteriormente.

Essa premissa, no entanto, depende de uma gradação,


isto é, algumas vezes é relativamente fácil acomodar a
informação nova a um esquema existente, outras vezes é
relativamente difícil. Alguma acomodação, porém, sempre
será efetivada. Vejamos o seguinte exemplo:

(1) O presidente americano visitou o país.

A língua, na interpretação do texto, é fundamental

55
Linguística: Outra introdução

a fim de desencadear uma série de estados familiares, um


conhecimento esquemático a respeito do que se espera
adiante. O texto anterior trata da visita de um presidente,
indicando, assim, um frame de referência, e, ao mesmo
tempo, projeta a atenção do leitor para o que virá adiante.

(2) Ele ficou encantando com as belezas naturais.

O processo de construção de um frame apropriado


de referência é tão comum que nos acostumamos
naturalmente a ele. Por isso, supomos que o significado já
esteja no próprio texto e que não depende de algum tipo
de inferência esquemática. Mas não é difícil demonstrar
o quanto a interpretação depende dos esquemas. Vejamos
outro exemplo:

(3) A manga não está boa

No dicionário, a palavra ‘manga’ traz vários significados.


No Aurélio destacamos os seguintes: 1) parte do vestuário onde
se enfia o braço; 2) filtro afunilado, para líquidos; 3) qualquer
peça de forma tubular que reveste ou protege outra peça; 4)
parte do eixo dum veículo que se encontra dentro da caixa de
graxa e recebe todo o peso do carro; 5) o fruto da mangueira;
e 6) pastagem cercada onde se guarda o gado. A indagação é:
qual desses significados dicionarizados é apropriado em um
determinado texto? A resposta é que não é possível saber a
menos que seja incluído um frame de referência a fim de que
possamos antecipar o que virá adiante. Podemos, por exemplo,
modificar o texto dizendo:

(4) A manga madura não está boa

Agora, em virtude do acréscimo do termo ‘madura’,


tenderemos a interpretar ‘manga’ como o fruto da mangueira.
Podemos antecipar o que virá depois do que foi anteriormente dito.

(5) A manga madura não está boa. Ela deveria ter ficado na
geladeira.

56
José Roberto Alves Barbosa

Para que haja interpretação, é preciso que um frame


de referência seja identificado. Será improvável interpretar o
texto acima, a menos que conheçamos as palavras ‘manga’,
‘boa’ e ‘geladeira’, ou seja, que tais esquemas sejam ativados. Os
esquemas podem ser definidos como representações mentais
do que é familiar ou costumeiro. Mas é importante salientar
que isso tudo é relativo, pois o que é familiar para um grupo
de pessoas pode muito bem não o ser para outro porque
os costumes variam de comunidade para comunidade. Os
esquemas são maneiras distintas que usamos para ordenar o
mundo, são versões diferenciadas da realidade.

Os esquemas servem para fornecer um modelo para


a compreensão. Sem eles, nos perderíamos no processo de
construção do sentido de qualquer texto. Mas os esquemas têm
suas desvantagens, pois nos impõem padrões preconcebidos
sobre como são as pessoas e as coisas, impedindo-nos de
reconhecer conceitos alternativos da realidade. O ouvinte/
leitor corre o risco de, ao ativar um determinado esquema,
interpretar tudo o que segue em referência a ele, considerando
pressuposições que o texto não sustenta. Uma projeção
esquemática em particular pode ir além dos sinais textuais
o que permite o engajamento num esquema distinto, isso
porque os sentidos não estão restritos ao texto, seguem além
dele.

57
Linguística: Outra introdução

17. PRINCÍPIO COOPERATIVO E MÁXIMAS


CONVERSACIONAIS
Sabe, caro Watson, não é difícil fazer uma série de
inferencias, cada qual dependendo da sua antecedente e cada
qual simples em si mesma. Feito isso, se a gente derrubar as
inferências centrais e apresentar à audiência um ponto de partida
e a conclusão, pode produzir um efeito assustador, embora
possivelmente falso.

Sherlock Holmes, em Os dançarinos de Arthur Conan Doyle

Grice (1975) explicitou, com base na Pragmática,


que em uma conversação ordinária os falantes e ouvintes
partilham o princípio cooperativo. A partir desse, o filósofo
britânico estipulou quatro máximas a fim de explicar a
relação entre enunciados e o que é compreendido a partir
deles. As máximas griceanas estão fundamentadas no
seguinte princípio: faça com que sua conversa contribua de
modo desejado, no estado em que ocorre, pelo propósito
aceito ou direção da troca de fala na qual está envolvido. Para
ele, os falantes e ouvintes devem falar cooperativamente e
mutuamente a fim de se fazerem compreendidos.

O princípio cooperativo descreve a eficiência da


comunicação na conversação em situações sociais comuns,
resultantes das quatro máximas: Qualidade, Quantidade,
Relevância e Modo. Sobre a Máxima da Qualidade diz: seja
sincero, diga somente o que você acredita ser verdadeiro e
apenas diga o que você pode provar. A respeito da Máxima
da Quantidade ressalta: contribua na conversação com as
informações requeridas para os propósitos correntes na
troca, não torne sua contribuição mais informativa do que
demandada. Quanto a Máxima da Relevância, faça com que
sua contribuição seja relevante para a interação e indique
quando ela não for. A última Máxima, de Modo, recomenda:
evite prolixidade desnecessária, ambiguidade, seja breve e
ordenado.

58
José Roberto Alves Barbosa

Em relação ao princípio cooperativo, Grice


(1975) destaca ainda que o falante geralmente observa
esses princípios, bem como o ouvinte. Isso porque existe a
possibilidade de implicaturas, isto é, de que os significados que
não sejam explicitamente transmitidos no que é dito possam
ser inferidos. Um exemplo disso é quando Ana diz que Paulo
não está presente e Carla responde que Paulo está doente. A
implicatura é que Paulo não está presente porque está doente.
Esse é, no mínimo, o motivo possível da ausência de Paulo. A
partir dessa teoria griceana, o termo implicatura passou a ser
recorrente tanto na linguística quanto na pragmática.

Para esse filósofo, implicatura, grosso modo, diz


respeito ao que é sugerido a partir de um enunciado ainda que
o expressado possa somente ser implicado pelo enunciado.
Vejamos outro exemplo a partir da declaração:

(1) Sara deu a luz e se casou.

Pelo enunciado infere-se que o bebê nasceu antes


do casamento. Mas isso somente é estritamente verdadeiro
se Sara deu a luz e depois se casou. Mas se adicionarmos a
qualificação:

(2) Sara deu a luz e se casou, não necessariamente nessa


ordem.

ao enunciado, a implicatura é cancelada, ainda que o


significado original da sentença não seja modificado.

A implicatura conversacional, por conseguinte,


independe do princípio cooperativo e de suas máximas. Uma
declaração como:

(3) Francisco está feliz, mas está pobre.

implica que felicidade e pobreza são incompatíveis, pois


“apesar da pobreza”, “Francisco está feliz”. Pela interpretação
convencional do mundo a forma “mas” sempre cria uma

59
Linguística: Outra introdução

implicatura de contraste. De modo que “Francisco está feliz,


mas pobre” necessariamente implicará que, por incrível que
pareça, Francisco está feliz ainda que esteja ou seja pobre.

Além do conceito de implicatura, Grice (1975)


destaca também o de “acarretamento” e de “escalonamento”.
O primeiro diz respeito à conclusão lógica que se chega a
partir de um enunciado. Se alguém diz:

(4) O presidente foi assassinado.

acarreta-se que “O presidente está morto”. O segundo está


relacionado a certas informações que são comunicadas
através das escolhas de uma palavra que expressa um valor
em escala. Isto é particularmente óbvio nas expressões de
quantidade tais como: tudo e alguns / sempre, frequentemente,
raramente. Na produção de um enunciado, o falante seleciona
a palavra a partir de uma escala que é ou mais informativa
(quantidade) ou confiável (qualidade). Isso quer dizer que
quando uma forma na escala é escolhida, as outras, por sua
vez, são implicadas.

A seguinte piada ilustrará o princípio cooperativo


e as máximas conversacionais: uma jovem está passeando
enquanto é acompanhada por um cachorro. Um jovem
se aproxima e pergunta: “Seu cachorro morde?”. A moça
responde: “Não”. Quando o jovem chega mais perto da moça
é mordido pelo animal. Perplexo indaga: “mas você não disse
que seu cachorro não mordia?”. Ela respondeu: “esse sim, mas
este não é o meu”. Pergunta: O rapaz e a moça envolvidos
no diálogo levaram em conta o princípio cooperativo? Que
implicações foram feitas pelo rapaz e pela moça nessa piada?
Quais máximas conversacionais foram desrespeitadas?
Evidentemente, as respostas a essas perguntas dependem de
certas implicaturas.

60
José Roberto Alves Barbosa

18. ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO


As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso
entender.

Fernando Pessoa

A Análise da Conversão (AC) surgiu na década de


60 com o objetivo de descrever as estruturas da conversação
e seus mecanismos organizadores. Sob a influência da
Etnometodologia, fundada por Garfinkel, defendia que os
aspectos da interação social seriam passíveis de investigação
e convencionalização. Gumperz (1982) defendia que a AC
deveria se preocupar não apenas com os conhecimentos
linguísticos da conversação, mas também com os
paralinguísticos e socioculturais, por conseguinte, essa
abordagem põe o foco não só na descrição, mas também na
interpretação das interações.
Marchuschi (1998) destaca que, a rigor, a AC se
propõe a responder às seguintes perguntas: como é que as
pessoas se entendem ao conversar? Como sabem que estão
se entendendo? Como sabem que estão agindo coordenada
e cooperativamente? Como usam seus conhecimentos
linguísticos e outros para criar condições adequadas à
compreensão mútua? Como criam, desenvolvem e resolvem
conflitos interacionais? Na tentativa de responder a essas
perguntas, a AC se fundamenta metodologicamente na
indução, partindo de dados empíricos, coletados em situações
reais.
Para esses dados, a AC considera tantos os aspectos
verbais quanto os paralinguísticos. Por isso, os dados dessa
última categoria precisam ser descritos na transcrição da
conversa. Para tanto, o analista recorre a uma simbologia
própria, reconhecida por aqueles que fazem esse tipo de
estudo. Trata-se de um sistema ortográfico, com base na
escrita padrão. Esse sistema não é fechado, os analistas da

61
Linguística: Outra introdução

conversação fazem suas adaptações. Eis a representação de


algumas palavras pronunciadas: né, pra, prum, comé, tava,
qué, sô, vô, e de truncamentos, tais como: compr (= comprou),
vam di (= vamos dizer) etc.
Destacamos, a seguir, algumas recomendações da
AC, sugeridas por Marchuschi (1998), para a transcrição de
dados: Ele orienta a indicação dos falantes com siglas (iniciais
do nome ou letras do alfabeto), a não cortar as palavras na
passagem de uma linha para outra e a de evitar maiúsculas
em início de turno. Entre os símbolos elencados, destacamos:
Falas simultâneas [[;
Sobreposição de vozes [,
Sobreposições localizadas [ ],
Pausas e silêncios (+) para cada 0.5 segundos e para as pausas
além de 1.8 segundos indica-se o tempo entre parênteses
(1.8);
Dúvidas e suposições, marcadas com parênteses ( ) com o
comentário no interior,
Truncamentos bruscos /
Ênfase ou acento forte é marcado por meio de MAÍSCULA;
Alongamento da vogal, com dois pontos :: que podem ser
repetidos;
Comentários do analista entre parênteses duplo (( ));
Silabação usa-se hífens - - - - - -;
Sinais de entonação ” (aspas duplas) para uma subida rápida,
’ (aspa simples) para uma subida leve e , (aspa simples abaixo
da linha) para descida leve ou brusca;
Repetições através da reduplicação da letra;
Pausa preenchida, hesitação ou sinais de atenção através
das expressões eh, ah, oh, ih:: entre outras, e indicação de
transcrição parcial ... ou /.../.

Uma das categorias fundamentais à AC é a noção


de turno, isso porque as práticas comunicativas são regidas
por regras que regulamentam a alternâncias das falas. A
62
José Roberto Alves Barbosa

conversa envolve pelo menos dois interlocutores que falam


alternadamente. O falante, por sua vez, tem o direito de
manter o turno até o momento em que o entrega ao próximo
falante. Os turnos são negociados, tanto de forma explícita: ex.
“deixe-me falar” quanto implícita, através de sobreposições,
aumento da intensidade vocal, ou outros recursos.
As interrupções também ocorrem, ainda que sejam
evitadas, já que demonstram falta de polidez. A intromissão
também não é bem vista, sendo considerada uma subversão
às regras da conversação, e assumidas como prática ilegítima.
Esses fundamentos nos levam a argumentar que existe uma
gramática da conversação, regida por fatores contextuais
diversos, entre eles: o cenário, o tipo de interação, a sequência,
as trocas e as intervenções de turnos.
Os estudos etnometodológicos fundamentaram
as pesquisas inicias na AC, mas, nesses últimos anos, esse
campo de investigação se expandiu. Os enfoques psicológicos
e psiquiátricos, representados pela Escola de Palo Alto, se
preocupam com a ordem das conversas a fim de tratar, entre
outros casos, das disfunções da relação conjugal e crianças
esquizofrênicas.
A etnografia da comunicação, inspirada nos trabalhos
de Hymes (1972) e Gumperz (1982), se interessa pelo aspecto
etnossociológico da conversa, atentando para a competência
comunicativa dos falantes. O paradigma filosófico, a partir
da noção de atos de fala de Austin e Searle, influenciado por
Wittgenstein e Grice, analisa as conversações com o intuito
de mostrar que “dizer é fazer”.

63
Linguística: Outra introdução

19. LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

A língua é uma cidade para cuja construção cada ente humano


contribuiu com uma pedra.

Ralph Waldo Emerson
A Linguística Sistêmico-Funcional diz respeito a
uma teoria geral do funcionamento da linguagem humana,
concebida a partir de uma abordagem descritiva, baseada
tanto na forma quanto no uso linguístico. Halliday (1970)
desenvolveu, juntamente com colegas da Universidade de
Sydney e de Macquarie na Austrália, uma discussão a respeito
da natureza da língua. Para esses, a língua está intimamente
relacionada às necessidades que lhe impomos, com funções
específicas e comuns a todas as culturas.

Ao rejeitar as descrições meramente formais, Halliday


(1970) opta pelo uso enquanto fator determinante para a
categorização linguística. Sendo assim, a proposta do seu
paradigma é analisar, simultaneamente, tanto o sistema da
língua quanto suas funções, a partir do princípio fundamental
de que a forma particular assumida pelo sistema gramatical
de uma língua está intimamente relacionada às necessidades
sociais e pessoais que a língua é chamada a desempenhar. Isso
porque a língua se organiza em torno de redes relativamente
independentes de escolhas e essas correspondem a funções
básicas da linguagem.

Para Halliday e Matthiessen (2004), a funcionalidade


é intrínseca à linguagem. Isso porque “toda a arquitetura da
linguagem se organiza em linhas funcionais. A língua é como
é por causa das funções em que se desenvolveu na espécie
humana” (p. 31). O termo ‘metafunção’ foi adotado para
sugerir que função é um componente nuclear na totalidade
da teoria. Por meio das metafunções é possível verificar
descritivamente como as línguas naturais se estruturam, se
organizam, fundamentadas nesses princípios funcionais,
considerando que “todo o texto – isto é, tudo o que é dito ou

64
José Roberto Alves Barbosa

escrito – acontece em algum contexto de uso” (HALLIDAY,


1994, p. 13).

Essas funções, de acordo com o modelo de Halliday


(1970), são: a ideacional, interpessoal e textual. A língua serve
para expressarmos conteúdos, para dar conta das nossas
experiências no mundo; para estabelecermos e mantermos
relações sociais uns com os outros, para desempenharmos
papeis sociais comunicativos (falantes/ouvintes); e por fim,
para estabelecermos relações entre partes de uma mesma
instância de uso da fala, entre essas partes e a situação
particular de uso da língua, tornando-as entre outras
possibilidades, situacionalmente relevantes.

Dito de outro modo, vemos a língua como tendo valor:


1) ideacional – a língua tem metafunção representacional,
uma vez que a usamos para codificar nossas experiências do
mundo, ou seja, ela faculta-nos imagens da realidade (física
ou mental); 2) interpessoal – a língua serve para codificar
interação e para mostrar quão defensáveis achamos as
nossas posições, os nossos enunciados. Ajuda-nos a codificar
significados de atitudes, interação e relações sociais; e 3)
textual – a língua serve para organizar os nossos significados
ideacionais e interpessoais num todo linear e coerente.

Por isso é preciso compreender a noção de texto de


Halliday (1978, p. 122), que o define como
uma forma linguística de interação social.
É uma progressão contínua de significados
[...] Os significados são as seleções feitas pelo
falante das opções que constituem o potencial
de significado; o texto é a atualização desse
potencial de significado, o processo de escolha
semântica.

O texto, de acordo com esse paradigma, é uma


instanciação do sistema, de modo que sistema e língua não
são fenômenos separados, mas apenas o mesmo fenômeno

65
Linguística: Outra introdução

visto de ângulos diferentes, o da potencialidade e o da


instanciação. Conforme explicam Halliday e Matthiessen
(2004), o texto é um instrumento para o conhecimento
do sistema, uma espécie de janela para este, tornando-se,
assim, uma unidade de análise para a Linguística Sistêmico-
Funcional. A potencialidade textual se dá, por conseguinte,
por meio das escolhas do falante. Halliday (1978) destaca que
a análise da língua em uso ocorre através do olhar não apenas
sobre o que o falante/escritor disse, mas na sua relação com o
que poderia ter sido dito.

Ele fala de um “envolvimento a ser definido


paradigmaticamente: usar a língua para fazer escolhas no
envolvimento de outras escolhas” (p. 52). Essas escolhas
dependem do contexto, concebido como o ambiente
imediato que determinado texto está sendo produzido. Isso
explica o motivo de certos textos serem ditos ou escritos em
ocasiões particulares, e ao mesmo tempo, a causa de outros
não poderem. Isso acontece porque a partir do momento
em que o falante lê e ouve, ele faz previsões acerca do que
será reproduzido em seguida, influenciado pelo contexto da
interação, operacionalizando as metafunções da linguagem: o
que é dito (ideacional), de quem para quem (interpessoal), e
de que modo (textual).

Halliday e Matthiessen (2004) descrevem os


parâmetros para uma descrição dessas metafunções no
contexto do enunciado. Para esse tipo de análise, em uma
perspectiva experiencial, os autores destacam as seguintes
categorias: Ator (Actor), Processo (Process) e Meta
(Goal). Em relação à perspectiva interpessoal, enfocam o
Sujeito (Subject), Finito (Finite), Predicador (Predicator),
Complemento (Complement), e Adjunto (Adjunct). No
tocante à análise textual, consideram o Tema (Theme) e Rema
(Rheme).

Cumpre dizer, porém, que a categorização ideacional


é feita de acordo com o processo sendo representado, não

66
José Roberto Alves Barbosa

sendo exaustivamente mostrada aqui. No entanto, apontamos,


a seguir, exemplos de categorização gramatical, a partir do
modelo da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF):

Análise a partir de uma perspectiva experiencial


(metafunção ideacional)

Did Daniel bring his car?


Ator Processo Meta

Was the car brought by Daniel?


Meta Processo Ator

Análise a partir de uma perspectiva interpessoal


(metafunção interacional)

Did Daniel bring his car?


Finito Sujeito Predicador Complemento

Was the car brought by Daniel?


Finito Sujeito Predicador Adjunto

Análise a partir de uma perspectiva textual (organizacional)

Did Daniel bring his car?


Tema Rema

Was his car brought by Daniel?


Tema Rema

67
Linguística: Outra introdução

20. TEMA/REMA: ORGANIZAÇÃO TEXTUAL


No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
 
Evangelho segundo João.

Existem maneiras diferentes de formularmos uma


proposição a fim de fazer referência a um estado de coisas. Em
qualquer língua, existem modos diferentes de textualização.
A oração No princípio era o Verbo, por exemplo, pode ser dita,
em português, de outra maneira: O Verbo era no princípio.
Em termos de estrutura textual, a primeira parte da oração,
que é posicionada como sujeito da sentença, é denominada
de Tema, e o restante do enunciado, de Rema. Essa teoria foi
inicialmente desenvolvida pelos linguistas da Escola de Praga
e posteriormente redimensionada por Halliday (1994).

Para esse autor, o Tema é o elemento que serve como


ponto de partida da mensagem, é o que localiza e orienta a oração
em seu contexto. Rema seria o desenvolvimento do Tema, isto é,
o que sobra dele. Para esse modelo, a estrutura Tema/Rema pode
ser continuada no texto. Assim, A sentença No princípio (T) era
o Verbo (R) pode ser invertida para O Verbo (T) era no princípio
(R), de modo que o Tema pode passar a ser Rema.

A utilização da voz ativa e passiva, contudo, é apenas


uma dentre outras possibilidades de destacar a relação Tema/
Rema. Na sentença (1), a tematização pode ser feita por meio
da mudança sequencial dos constituintes do enunciado sem
afetar sua estrutura, como ocorre em (2) e (3):

(1) O que o professor fez (T1) foi reprovar os alunos.


(2) O professor (T) reprovou os alunos antes do tempo (R).
(3) Antes do tempo (T1), o professor (T2) reprovou os alunos (R).

Tema e Rema, nas diversas línguas, possibilitam a


convencionalização dos modos de expressão proposicional.
Cabe aos usuários da língua fazerem uso dessas diferentes
possibilidades. Eles podem ser identificados como
68
José Roberto Alves Barbosa

características da produção textual que demonstram a intenção


comunicativa em relação à escolha de uma ou outra palavra, de
uma ou outra sequência oracional. O Tema costuma confirmar
um conhecimento partilhado e apontar para uma informação
nova provida pelo Rema. Aquele sinaliza para um determinado
tópico a respeito do qual se deseja falar. Este, por sua vez, diz
respeito ao comentário sobre o referido tópico.

Na construção das ligações textuais, a relação Tema/Rema


é uma forma geral de organização informacional e transporta
a referência de uma proposição para outra. Essas ligações, no
entanto, dependem da identificação de outras conexões menores
e mais específicas que servem para estabelecer a continuidade
textual. No processo da comunicação, o que é dito anteriormente,
seja na fala ou na escrita, é fundamental para a compreensão do
que virá depois. Atentemos para o enunciado a seguir:

(4) A presidenta fez sua primeira viagem ao Japão. Dilma


defendeu o livre comércio entre os países. Ela criticou a política
protecionista americana.

No texto anterior, a utilização do pronome atua como


um elemento pró-forma, isto é, uma forma linguística que
fundamenta outra expressão no texto através da manutenção
de determinados traços semânticos. Esse tipo de conexão
interna ao texto, de natureza cotextual, é conhecido como
anáfora. Assim, as expressões presidenta – Dilma – Ela são
elementos anafóricos. Mas é preciso destacar que uma conexão
anafórica apropriada depende da inferência do que faz mais
sentido num determinado contexto. Por esse motivo costuma-
se recomendar a utilização moderada dessas pró-formas, a
fim de evitar confusão no processo de referenciação textual,
resultando em ambiguidades, tal como as do texto (5) a seguir:

(5) Amanhã eles irão à praia com os colegas da faculdade. Eles não
sabem se irão se divertir. Mesmo assim, concordaram em ir. Eles
disseram na televisão que vai chover. Mas eles não querem desistir do
passeio. Eles estão sem dinheiro, mas vão tentar dar um jeito nisso.

69
Linguística: Outra introdução

21. COESÃO E COERÊNCIA TEXTUAL


“Embora soneto, vivo meu porém. No encontro do todavia,
sou mas. Contudo, encho-me de ainda. Na espera do quando, desando
ou desbundo. Viver é apesar. Amar é a despeito. Ser é não obstante.
Destarte, sou outrossim. Ilusão, sem embargo. Malgrado senão”.

Paulo Alberto M. M. de Barros, 1986

Através da identificação de conexões linguisticamente


marcadas, tais como a relação entre um pronome e um
sintagma nominal, é possível reconhecer a coesão do texto. Os
elementos coesivos, contudo, não se restringem aos pronomes
pessoais. As relações de um sintagma nominal antecedente
podem ser recuperadas por meio de pró-formas que consistem
de substantivos gerais ou de significados inclusivos:

(1) Fomos para Portugal ano passado. Aquele é um país


muito bonito. Adoramos o lugar.

Conforme observamos no texto acima, as pró-formas


coesivas variam na quantidade de informações recuperados
a partir do antecedente. O substantivo geral “lugar” é mais
amplo que o substantivo particular “país”. Os sintagmas verbais
também operam no texto com as mesmas características:

(2) Paulo: Fomos para Portugal ano passado.


Carlos: Nós também.
Paulo: Achamos que era um lugar bonito.
Carlos: Nós não.

Na conversa acima, os falantes discutem a respeito de


um “lugar”. Paulo diz ter ido para Portugal e Carlos diz que
também foi. O verbo “ir” se encontra em elipse no diálogo.
Isso acontece também com o verbo “achar”. Esse recurso
mostra que os elementos coesivos podem ser mais ou menos
explicitados no texto. Tanto os nomes quanto os verbos
servem, assim, como elementos coesivos do texto. Eles atuam
a fim de conectar partes dentro de um texto.

70
José Roberto Alves Barbosa

Essas pró-formas coesivas podem ter função


anafórica – atuam retrospectivamente a fim de recuperar
características de expressões antecedentes em um texto,
quanto catafórica – operam prospectivamente a fim de
preceder uma menção textual a ser explicitada:

(3) Quando a presidenta viajou para os Estados Unidos,


ela (←) deixou algumas recomendações aos seus
ministros. (anáfora)
(4) Quando ela (→) viajou para os Estados Unidos, a
presidenta deixou algumas recomendações aos seus
ministros. (catáfora)

O princípio linguístico-pragmático do menor esforço


rege a utilização desses elementos anafóricos e catafóricos. De
modo que eles somente funcionam mediante a identificação
e interpretação do elemento antecedente ou precedente. Isso
acontece porque somente utilizamos as formas linguísticas
que são extremamente necessárias à comunicação. A
dificuldade consiste na possibilidade de regular o grau de
explicitude cotextual através da escolha das pró-formas.
Os elementos coesivos apenas auxiliam a
compreensão e funcionam quando os leitores (ou ouvintes)
constroem significados a partir do sentido contextual, isto é,
eles dependem da coerência. Isso quer dizer que é a coerência
– a interpretação do texto para que esse faça sentido, e não a
coesão – as pró-formas interligadas nas relações cotextuais
- que determinam a textualidade, conforme defendiam
inicialmente Halliday e Hasan (1976).

O texto a seguir mostra como a existência da coesão


não é determinante para a coerência textual:

(5) Sofia não estuda nesta escola.


Ela não sabe qual é a escola mais antiga da cidade.
Esta escola tem um jardim.
A escola não tem laboratório de línguas.

71
Linguística: Outra introdução

Por outro lado, um texto sem elementos coesivos


pode muito bem ser coerente:

(6) Lucas estuda Inglês.


Sofia vai todas as tardes trabalhar no Instituto.
Lúcia obteve 16 pontos no teste de Matemática.
Todos os meus filhos são estudiosos.

Em suma, o sentido de um texto não é dado a priori. É


no contexto que o leitor/ouvinte constrói a coerência textual.
A interpretação de um texto coerente sempre dependerá da
possibilidade de relacioná-lo externamente às realidades
contextuais, aos esquemas ideacionais e interpessoais com os
quais os leitores/ouvintes estejam familiarizados no mundo
sociocultural no qual estão inseridos.

72
José Roberto Alves Barbosa

22. GÊNEROS TEXTUAIS


Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere
dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de
adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e
todos têm prazer em imitar.

Arte Poética, Aristóteles.

Existem diversas abordagens de estudo dos gêneros textuais.


Uma das mais conhecidas é a do teórico russo Mikhail Bakhtin,
pensador geralmente associado aos estudos literários. Num ensaio
de 1979, originalmente publicado em russo, Bakhtin postula que os
gêneros do discurso são “tipos relativamente estáveis de enunciados”
(1992, p. 279). Após definir gêneros discursivos, Bakhtin também os
categoriza em dois tipos secundários e primários:
Os gêneros secundários do discurso – o
romance, o teatro, o discurso científico,
o discurso ideológico etc. – aparecem em
circunstâncias de uma comunicação cultural
mais complexa e relativamente mais evoluída,
principalmente escrita: artística, científica,
sociopolítica. Durante o processo de sua
formação, esses gêneros secundários absorvem
e transmutam os gêneros primários (simples)
de todas as espécies, que se constituíram em
circunstâncias de uma comunicação verbal
espontânea (1992, p. 281).

Tal distinção amplia, primeiramente, o conceito de


gênero, pois inclui não apenas o que tradicionalmente se
considerava como produção literária, mas também os gêneros
do cotidiano. Ao redimensionar o estudo do gênero para além do
escopo literário, Bakhtin (1992) antecipou as tendências atuais
nas pesquisas linguísticas de análise dos gêneros não-literários.
Uma dessas perspectivas recentes partiu das análises de textos
produzidos para fins acadêmicos e profissionais, realizadas por
Swales (1990). Para ele, é o propósito comunicativo que molda
o gênero, determinando sua estrutura interna e impondo limites
quanto às possibilidades de ocorrências linguísticas e retóricas.
73
Linguística: Outra introdução

A fim de construir sua definição de gênero, Swales


(1990) partiu do enfoque de diferentes disciplinas: estudos
folclóricos, literários, linguísticos e retóricos. Para ele
Um gênero compreende uma classe de eventos
comunicativos, cujos membros compartilham
os mesmos propósitos comunicativos. Tais
propósitos são reconhecidos pelos membros
especialistas da comunidade discursiva de
origem e, portanto, constituem o conjunto de
razões (rationale) para o gênero. Essas razões
moldam a estrutura esquemática do discurso
e influenciam e impõem limites à escolha de
conteúdo e de estilo. (1990, p. 58)

Essa conceituação destaca o propósito comunicativo


enquanto traço definidor do gênero, sendo esse compartilhado
pelos membros da comunidade na qual o gênero é praticado.
Os demais traços, como as convenções, o estilo, o canal, o
vocabulário e a terminologia específicos, embora importantes,
não exercem a mesma influência sobre a natureza e a construção
do gênero. Isso porque esse, por sua vez, atua como veículo
comunicativo para a realização de determinados fins.

Os elementos elencados por Swales (1990) para


a investigação dos gêneros são: 1) classe – o gênero é uma
classe de eventos comunicativos, constituído do discurso,
dos participantes, da função do discurso e do ambiente onde
o discurso é produzido; 2) o propósito comunicativo – os
gêneros têm a função de realizar um objetivo ou objetivos;
3) prototipicidade – um texto será classificado como gênero
se possuir os traços especificados na definição do gênero; e
4) logicidade – o gênero tem uma lógica própria, existem
convenções esperadas e manifestadas no gênero.

Em relação ao segundo elemento, o propósito


comunicativo, Askehave e Swales (2001) rediscutem sua
centralidade na constituição do gênero. Desde o início da
década de 80, o propósito comunicativo havia sido usado
como um dos principais critérios para a conceituação

74
José Roberto Alves Barbosa

e categorização dos gêneros. Dada a sua complexidade,


a concepção de propósito comunicativo acabou sendo
redimensionada. Isso porque existem gêneros que têm o
mesmo propósito e que são diferentes em termos de aspectos
formais, de organização textual, assim como há textos
idênticos ou quase idênticos com propósitos comunicativos
bem diversos.

A lista de supermercado, por exemplo, serve para


demonstrar esse aspecto do propósito comunicativo do
gênero. O propósito aqui parece muito evidente: apenas
lembrar o que é preciso comprar. No entanto, há quem faça
uma lista para saber o que não comprar por autodisciplina,
para conter seus impulsos consumistas. Ao contrário do que
se acreditava a princípio, é provável que um mesmo gênero
tenha propósitos comunicativos distintos. Ao mesmo tempo,
isso não significa dizer que a concepção de propósito tenha
perdido sua importância, e que se possa limitar a análise
apenas às características formais dos gêneros.

Essas reformulações teóricas nos ajudam a perceber


que os estudos de gênero não podem circunscrever-se às
classificações estáveis e definitivas, nem fechar a discussão
em torno de critérios definidores. Um gênero textual não
é um conjunto de regras rígidas para a formação de textos.
Portanto, textos, gêneros e práticas sociais são susceptíveis às
mudanças que acontecem a todo o momento. Por essa razão,
o conceito de gênero textual é dinâmico, não estático, e esse é
o motivo pelo qual professores e alunos precisam atentar para
a fluidez das práticas sociais e dos textos que tornam esses
gêneros possíveis.

75
Linguística: Outra introdução

23. GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL


A imagem define e demarca as fronteiras da minha ação. A
imagem não induz minha ação, mas estabelece suas condições e
possibilidades.

Jacques Ellul

Vivemos em um mundo rodeado por imagens,


e nesse contexto, a Gramática Visual elaborada por Kress
e van Leewen (2006) contribui significativamente para a
identificação e sistematização das estruturas imagísticas. A
proposta desses teóricos é descrever as imagens partindo
do pressuposto de que os seus elementos internos são
combinados entre si para comunicar um “todo coerente” para
expressarem significados distintos. A análise das estruturas
visuais pode incluir pessoas, lugares ou objetos na forma de
participantes representados que podem estar organizadas em
diferentes níveis de complexidade.

A teoria da Gramática Visual foi adaptada pelos


autores a partir das metafunções de Halliday (1994). As
metafunções visuais são: representacionais (ideacionais),
interativas (interpessoais) e composicionais (textuais).
A metafunção representacional diz respeito à relação
estabelecida entre os participantes internos de uma
composição de imagem. Isso porque a imagem é realizada
por elementos denominados vetores, os quais correspondem
à categoria de ação na linguagem verbal (processos).

Os participantes podem ser categorizados em dois


tipos: 1) participantes interativos – aqueles que falam, ouvem
ou escrevem e leem, produzem imagens ou as visualizam; ou
2) participantes representados, aqueles que são o sujeito da
comunicação, ou seja, pessoas, lugares ou coisas representadas
na ou pela fala, ou escrita, ou imagem, os participantes sobre
os quais falamos ou escrevemos ou produzimos imagens.
As representações narrativas, por sua vez, são classificadas
pelas circunstâncias, ou pelo contexto no qual o participante

76
José Roberto Alves Barbosa

está inserido e seus complementos, tais como artefatos,


ferramentas e as figuras secundárias que complementam os
significados das imagens. As circunstâncias de uma imagem
podem ser categorizadas em: circunstância de locação;
circunstância de meio; e circunstâncias de acompanhamento.

Os processos conceituais, por sua vez, representam


os participantes de maneira estática, já que esses não possuem
ações expressas por vetores. Os processos conceituais, na
linguagem verbal, se referem aos processos relacionais e
existenciais, uma vez que, conforme explicita Kress e Van
Leeuwen (2006, p. 114) “representam o mundo em seu
estado mais ou menos permanente de afazeres e verdades”. As
estruturas conceituais simbólicas estabelecem a identidade
do participante visual através de atributos proeminentes tais
como tamanho, escolha das cores, dos posicionamentos, dos
usos da iluminação.

No que tange à metafunção interativa, Kress e Van


Leeuwen (2006) indicam que aspectos como contato, distância
social, perspectiva e modalidade têm papel fundamental na
identificação da relação entre leitor/observador da imagem
e a imagem propriamente dita. O contato é representado
quando o participante olha diretamente nos olhos do
leitor/observador, estabelecendo um contato de demanda,
convidando o leitor /observador para participar da interação,
olhando-o de forma sedutora, agressiva ou imperativa. Mas
se o participante não olha diretamente nos olhos do leitor/
observador, ocorre um contato de oferta.

Para a análise interacional, uma categoria relevante


é a Distância Social. Quando os participantes são retratados
em close-up ou plano fechado, cada detalhe de seu rosto
e de sua expressão facial é captado, auxiliando, assim, a
identificação de traços da sua personalidade. Esse plano
abrange o enquadramento, que vai da cabeça até os ombros
do participante representado. Diferentemente de quando
o participante é apresentado em long-shot ou plano aberto,

77
Linguística: Outra introdução

que contribui para representar os participantes de uma dada


composição visual de forma distanciada, mostrando todo o
corpo. Há ainda um plano intermediário, que é o medium
shot ou plano médio que representa o participante até a
cintura ou o joelho, indicando que a sua relação com o leitor
é do tipo social.

Em relação ao ponto de vista ou perspectiva, Kress e


Van Leeuwen (2006) consideram os ângulos frontais, oblíquos
e verticais. A utilização do ângulo frontal está associada
à atitude de um envolvimento entre o leitor/observador e
o participante. O ângulo oblíquo conduz a um sentido de
desligamento ao apresentar o participante em perfil, deixando
subentendido que a representação não pertence ao nosso
mundo. O ângulo vertical e suas variantes (alto, baixo ou
de nível ocular) apontam para as diversas relações de poder
representadas entre o participante e o leitor/observador.

A modalidade ou valor de realidade é representado


por meio da modalidade naturalista ou sensorial. A
modalidade naturalista se concretiza através da congruência
que existe entre o objeto de uma imagem e aquilo que se
percebe pelo olho naturalmente. Assim, quanto maior for
a correspondência entre a imagem e o real, maior será a
modalidade da imagem. Kress e Van Leeuwen (2006) ressaltam
ainda que as imagens naturalistas geralmente possuem: 1)
alta saturação de cores, no lugar de preto e branco; 2) cores
diversificadas, ao invés de cores monocromáticas; e 3) cores
moduladas.

Em relação à metafunção composicional, cabe a


essa integrar os elementos visuais das outras metafunções
a fim de constituir um todo coerente. Para tanto, envolve o
valor da informação, que se refere à disposição dos elementos
dentro da composição visual, disponibilizados nas seguintes
dicotomias da zona pictográfica: esquerda/direita; topo/
base; centro/margem. Para Kress e Van Leeuwen (2006), o
lado direito da imagem geralmente contem a informação-

78
José Roberto Alves Barbosa

chave, para qual o leitor/observador preste maior atenção,


já que nela se apresenta o elemento novo. No lado esquerdo
se encontra o elemento dado, previamente conhecido pelo
leitor/observador, com o qual tem alguma familiaridade.

O posicionamento no topo e na base da imagem


apresenta traços distintos. A colocação de tais elementos
na parte superior expressa a informação ideal, a essência
idealizada e generalizada, a promessa do produto, o que
evoca os sentidos emotivos no intuito de expressar o que o
produto pode ser e não o que ele é. Ao elemento na base da
imagem, por oposição, cabe a solicitação das informações a
respeito do produto. Quando o posicionamento se encontra
na parte central e marginal há uma predominância de certos
elementos na imagem ou a ausência dela, isso acontece nos
casos de elementos subordinados a uma imagem central,
colocados em posição hierárquica inferior em relação à
informação nuclear.

Outro elemento composicional é a saliência que


se refere à ênfase dada aos elementos visuais a fim de torná-
los mais preponderantes do que outros. A disposição de um
elemento em primeiro plano ou em plano de fundo, seu
tamanho, contrastes de cores podem reforçar ou diminuir o
grau de saliência, na medida em que criam uma identificação
do participante principal representado na imagem.

79
Linguística: Outra introdução

24. DISCURSO E CRITICIDADE


Não é possível pensar em linguagem sem ideologia e sem poder.

Paulo Freire

O paradigma crítico em relação ao texto está


atrelado a uma tendência recente nas pesquisas linguísticas.
As influências iniciais remetem à sociolinguística e à
etnografia da fala. Os estudos discursivos propriamente
ditos, na tradição britânica, estão associados à Pragmática,
especialmente à teoria dos atos de fala. Sua vertente crítica
fundamentou-se nas contribuições da Linguística Crítica,
que deu origem a Análise do Discurso Crítica (ADC), cujo
principal proponente é Fairclough (1989), ao identificar a
relação necessária nos estudos sociais entre língua e poder.

Em seus estudos Fairclough (1989) atrela as


dimensões sociais às análises textuais. Para tanto, parte das
contribuições de vários teóricos, dentre eles Bourdieu e
Foucault, e para abarcar os aspectos linguísticos, volta-se para
a Gramática Sistêmico-Funcional, de Halliday. Fairclough
(2001, p. 99,100) justifica o papel que o texto tem na ADC:
A prática discursiva manifesta-se em forma
linguística, na forma do que referirei como
‘textos’, usando ‘texto’ no sentido amplo de
Halliday, linguagem falada e escrita (Halliday,
1978). A prática social (política, ideológica,
etc.) é uma dimensão do evento discursivo,
da mesma forma que o texto [...] A análise
de um discurso particular como exemplo
de prática discursiva focaliza os processo de
produção, distribuição e consumo textual.
[...] A prática social como alguma coisa que
as pessoas produzem ativamente e entendem
com base em procedimentos de senso comum
partilhados (...) as práticas dos membros
são moldadas, de forma inconsciente, por
estruturas sociais, relações de poder e pela

80
José Roberto Alves Barbosa

natureza da prática social em que estão


envolvidos, cujos delimitadores vão sempre
além da produção de sentidos.

Fairclough (2001) destaca ainda que o procedimento


que trata da análise textual pode ser denominado de ‘descrição’,
e as partes que tratam da análise da prática discursiva e
da análise da prática social da qual o discurso faz parte de
‘interpretação’. Na análise da prática social dois conceitos são
fundamentais: 1) ideologia – baseada em Thompson (1995),
é inerentemente negativo, tendo em vista que essa se encontra
a serviço do estabelecimento e da sustentação das relações de
poder (dominação); e 2) hegemonia – baseado em Gramsci
(1988) – percebida como domínio exercido pelo poder de um
grupo sobre os demais, baseado no consenso.

Fairclough (2003) amplia os postulados teóricos


da ADC ao propor uma articulação entre três aspectos:
gêneros, discurso e estilo. Os gêneros constituem “o aspecto
especificamente discursivo de maneiras de ação e interação
no decorrer dos eventos sociais” (p. 65). Eles funcionam
como mecanismo articulatório que controlam o que pode ser
dito a fim de regular o discurso. O discurso é a representação
dos atores sociais nos textos através de posicionamentos
ideológicos em relação a eles e suas atividades. O estilo
identifica os atores sociais nos textos através dos pressupostos,
modalidades (objetivas e subjetivas), as metáforas
(conceituais, orientacionais e ontológicas).

A integração desses três significados: acional


(gêneros), representacional (discursivo) e estilístico
(identificacional) é dialética. Eles somente podem ser
subdivididos para efeito explicativo. Os discursos são
realizados em gêneros e consolidados através de estilos.
As ações e identidades, por sua vez, são discursivamente
representadas. A fim de orientar as análises discursivas em
uma perspectiva crítica, Fairclough (2003) sugere as seguintes
perguntas: 1) gênero – o texto está situado em que cadeia

81
Linguística: Outra introdução

de gênero? Existe uma mesclagem de gêneros? Quais são as


características dos gêneros apresentados? 2) discurso – quais
traços caracterizam o discurso (relações semânticas entre
as palavras, colocações, metáforas, pressuposições, traços
gramaticais); e 3) estilo – como os autores se envolvem em
relação à verdade (modalidades epístêmicas), obrigações e
necessidades (modalidades deônticas).

Como as práticas sociais se materializam em textos,


Fairclough (2003) argumenta que esses são elementos dos
eventos sociais, que causam efeito, mudanças. Ele justifica que os
textos provocam alterações em nossos conhecimentos (podemos
aprender coisas com eles, em nossas crenças, em nossas atitudes,
em nossos valores). Os textos também causam efeitos de longa
duração – considerando que a experiência prolongada com
um determinado gênero de texto, como os da publicidade,
contribui para moldar as identidades das pessoas, nos casos dos
textos comerciais, assumindo o papel social de “consumidores”.
Os textos também podem iniciar guerras ou contribuir para
transformações na educação, ou nas relações industriais.

A ADC, consoante ao exposto por Fairclough


(2001), tem empreendido várias pesquisas com vistas à
mudança social, com destaque para as seguintes áreas: 1)
burocracia – tendência de controle das pessoas – tecnologias
discursivas – tipos de discursos que envolvem a aplicação do
conhecimento científico com fins de controle burocrático;
2) pedagogia – crítica dos processos educacionais a fim
de desenvolver uma percepção para a mudança social; 3)
política – análise do discurso político de esquerda e direita
em suas operações estatais nas negociações de âmbito local
e internacional; e 4) propaganda e consumismo – essa é uma
propriedade do capitalismo moderno que envolve um desvio
do foco ideológico da produção econômica para o consumo
econômico, empreendendo mudanças nas vidas das pessoas.

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José Roberto Alves Barbosa

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Linguística segue seu percurso na constituição


das ciências, dialogando com as mais diversas áreas do
conhecimento humano. As intersecções são várias, bem
como os cruzamentos, com seus encontros e desencontros. As
rotas seguem por dois históricos trajetos epistemológicos na
história das ciências que sempre atraíram os pesquisadores:
racionalistas e empiristas.

Desde tempos remotos essas vias prosseguem, e


certamente continuarão, indo em direção ao horizonte, na
tentativa de dar explicações, algumas delas além do infinito.
Há linguísticas que se identificam com a lógica, ficam
absortos diante das categorias. Outros querem ir para além
do aparente, negam-se a restringir seus estudos ao observável.

O estudante da Linguística precisa estar atento a


esses movimentos, ter cuidado com a dialética das palavras,
não se deixar seduzir por todos os encantos, para não
se tornar presa dos modismos. Isso porque na estrutura
superficial todos eles passarão, deixarão para traz os rastros e
dissabores, principalmente se apostarmos todas as fichas em
um determinado paradigma.

É preciso permanecer atento às tendências acadêmicas


é uma questão de sobrevivência, mas fazer o que se gosta
também não pode ser descartado. Por isso, recomendamos
o encontro de um meio termo, sem ingenuidades, ciente das
disputas e interesses que perpassam e controlam o poder
acadêmico. Manter-se aberto em relação ao novo, mas sem
negar os princípios, buscando fundamentação no antigo.

Conhecer um pouco da história de uma ciência


auxilia não apenas no amadurecimento do iniciante em um
determinado paradigma. Isso resultará também em um olhar
mais crítico, uma percepção das rotas pelas quais uma ciência
normal se institui. Esperamos que, com esta outra concisa
introdução à Linguística, o iniciante possa ter adentrado
83
Linguística: Outra introdução

às suas veredas, algumas delas sinuosas, e se descubra em


caminhos que possam levá-lo mais além.

Essas poucas, e talvez significativas páginas, tiveram


a intenção de desafiar o iniciante nos estudos linguísticos
a prosseguir em seu trajeto. Não tivemos a pretensão de
apresentar aqui um mapa, com todos os seus detalhes e
legendas, mas apenas um roteiro de viagem, com todas as
suas limitações. Há um longo caminho a ser trilhado, prepare
a bagagem, pois os desafios são muitos.

Mas valerá a pena, principalmente se tivermos


coragem diante das opções que se apresentam. Nos momentos
difíceis, encontraremos inspiração nas palavras do poeta
americano Robert Frost:

Direi isso suspirando


Em algum lugar, daqui muito e muito tempo
Dois caminhos se separam em um bosque e eu …
Eu escolhi o menos percorrido
E isso fez toda diferença.

84
José Roberto Alves Barbosa

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