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A evolução da neuropsicologia: da antigüidade aos tempos modernos

A EVOLUÇÃO DA NEUROPSICOLOGIA:
DA ANTIGÜIDADE AOS TEMPOS MODERNOS

History of neuropsychology: from antiquity to thepresent.

Plínio Marco De Toni1


Egídio José Romanelli2
Caroline Guisantes De Salvo3

Resumo
A curiosidade pela investigação do cérebro e sua relação com a cognição parece ter permeado diversos momentos
históricos, desde tempos remotos. Papiros faraônicos indicam que, há 3.000 a.C., os egípcios possuíam grande
conhecimento sobre as funções do cérebro. Ao contrário, os gregos antigos relacionavam a inteligência, as emoções e
os instintos com partes distintas do corpo, como o cérebro, o coração e o fígado. Na idade média, a teoria platônica
da alma tripartida cedeu espaço à teoria ventricular e, posteriormente, ao dualismo cartesiano. Foi somente no século
XIX que, a partir da frenologia, as neurociências assumiram um referencial localizacionista no estudo das relações
entre cérebro e cognição, culminando na identificação de áreas corticais relacionadas com a linguagem por Dax,
Broca e Wernicke. No entanto, a neuropsicologia somente pôde se desenvolver através da utilização do método
patológico-experimental em pacientes cérebro-lesados. Atualmente, a neuropsicologia clínica, através da avaliação
neuropsicológica e da reabilitação cognitiva, tem se beneficiado muito com os avanços da psicometria e das técnicas
de neuroimagem, contribuindo para o conhecimento do cérebro e suas relações com o comportamento.
Palavras-chave: Neurociências, Neuropsicologia, Teoria do Sistema Funcional.

1
Psicólogo e Licenciado em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Psicologia da Infância e Adolescência pela
Universidade Federal do Paraná. Doutorando em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (Linha de
pesquisa: Avaliação Psicológica).
2
Pós-doutor em Neuropsicologia pela Universitè de Montreal, Canadá.
Professor da Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.
3
Psicóloga e Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo.
Endereço para contato: Rua Marechal Deodoro, n.° 1014, ap. 121 – Centro, Curitiba-PR. CEP 80060-010 E-mail:
pliniomarco@yahoo.com.br

Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 41 p. 47-55, abr./jun. 2005.


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Plínio Marco De Toni; Egídio José Romanelli; Caroline Guisantes De Salvo modificações experimentais. Dentre tais compro
metimentos, os principais quadros neurológicos
Abstract
associados abarcariam síndromes genéticas, lesões
The interest in the operation of the brain seems
to have been present during many moments in isqüêmicas do tipo AVC (acidente vascular cere bral),
history since the early times. Pharaonic papyruses epilepsias, tumores cerebrais, seqüelas por
indicate that 3000 years BC the Egyptians had a neurotóxicos e traumatismo craniano.
vast knowledge about the brain functions. In Um dos principais autores da área define a
contrast, the antiquity greek related the intellect, neuropsicologia como “um ramo novo da ciên cia cujo
emotions and ins tincts whit structures of the objetivo específico e peculiar é a investi gação do papel
body, like brain, heart and liver. In the Middle de sistemas cerebrais individuais em formas complexas
Ages, the plato nic theory of the tripartite soul
de atividade mental” (Luria, 1981, p. 4). Nesta
was replaced by the ventricular theory and,
afterwards, by the Cartesian dualism. It was only perspectiva, conceitos como sis tema funcional e
in the 19th century that, through the phrenology, localização dinâmica de funções são desenvolvidos, e a
neuros ciences assumed a localizationistic cognição passa a ser com preendida como tendo
position on the study of the relation between the correspondência neuroló gica, ao mesmo tempo em
brain and cognition. This led to the identification que é construída soci almente. Nesse sentido,
of cortical areas related with language by Dax, salienta-se o caráter inter disciplinar da
Broca, and Wernicke. However, neuropsycho neuropsicologia, sendo conseqüên cia da fusão de duas
logy could only be developed with the use of the
áreas do conhecimento, iden tificadas pelas
pathological-experimental method for patients
with brain damages. Nowadays, the clinical neurociências e pela psicologia, ten do suporte
neuropsychology, through the neu teórico-prático de diversas outras áreas da ciência,
ropsychological assessment and the cognitive como a neuroanatomia, neurofisiolo gia,
rehabilitation, has received many benefits from psicofarmacologia, neuroetologia e filosofia. Sendo
the psychometric advances and the techni ques of assim...
neuroimage contributing to the know ledge about
the brain and its relations with behavior. (...) o surgimento recente da neuropsicologia
Keywords: Neuroscience, Neuropsychology, como forma de visão do homem constitui uma
Functional System. revolução científica, principalmente por ado tar
uma visão nova para uma problemática velha, por
expandir os sistemas de proble mas, por obter
Existem contradições a respeito da ori gem êxito onde enfoques alternati vos fracassam e por
do termo neuropsicologia. Segundo Kolb & Whishaw promover fusão de disci plinas anteriormente
(1986), o termo foi cunhado por Hebb em 1949 no separadas. (Riechi, 1996, p.80)
título do livro The Organization of Behavior: a
neuropsychological theory, não sen do, no entando, definido
nem ao menos citado no texto. No entanto, de acordo Evolução das neurociências
com Engelhardt et al. (1995a), o termo neuropsicologia
foi utilizado pela primeira vez em 1913, porém seu A curiosidade pela investigação do cére bro e
desenvolvimen to começou nos anos 40, com os sua relação com a cognição parece ter per meado
trabalhos de Hebb. De qualquer forma, em 1957 o diversos momentos históricos, desde tem pos remotos.
termo designava uma subárea das neurociências, tendo Peças arqueológicas demonstram o interesse pelo
alcançado divulgação científica nos anos 60, com os cérebro já entre povos pré-históri cos, há 10.000 anos.
traba lhos de Lashley. Indícios de neurocirurgia po dem ser encontrados já
De acordo com Lezak (1995), a neuropsi no paleolítico, com o cos tume da trepanação (do
cologia encarrega-se de avaliar o comprometimento grego trepanos = broca), correspondendo a perfurações
neurológico pela via do comportamento. Mais es do crânio por ins trumentos pontiagudos (Broca,
pecificamente, a neuropsicologia pode ser enten dida 1877). A trepana ção se difundiu durante a Idade
como sendo a análise dos distúrbios de com Média, quando cirurgiões da época buscavam a “pedra
portamento que se seguem a alterações da ativida da loucu ra” no cérebro de pacientes com sintomas
psiqui-
de cerebral normal causados por doença, lesão ou

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átricos. Acreditavam, também, que maus espíritos nos outros primatas era praticamente do mesmo
habitavam o cérebro de pacientes com quadros tamanho, ao contrário do restante do cérebro. Por isso
psiquiátricos. Desta forma, lhes cabia retirá-lo do a alma não poderia residir nos ventrículos. Descartes
corpo insano através de perfurações no crânio. Desde (século XVII), com a pressuposição de que a alma era
a origem pré-histórica, a trepanação vem sendo representada por uma mente unifi cada (em
realizada por diversos povos, observando se, inclusive, contraposição à “alma tripartida” de Pla tão) e
em dias atuais este tipo de interven ção cirúrgica em racional, localizou sua residência na glân dula pineal
algumas tribos (Walsh, 1994). (atual epífise – região posterior do di encéfalo, acima
Investigações entre cérebro e comporta dos colículos superiores do me sencéfalo). Escolheu
mento são descritas, através do papiro de Edwin esta estrutura por ser, segun do ele, a única a não ter
Smith, também no Egito antigo (3.000 anos atrás). correspondência nos dois hemisférios e, por tanto, ser
Devido aos rituais de mumificação realizados, os unificada, como a mente deveria ser (Herrnstein &
egípcios adquiriram grande conhecimento de neu Boring, 1971). Além disso, a escolha da glândula pineal
roanatomia e do funcionamento cerebral. Este fato para co nectar corpo e alma era de acordo com a
proporcionou-lhes evidenciar a existência de rela ções concep ção da época, por encontrar-se próximo aos
entre o cérebro e o comportamento. Dentre os relatos, ven trículos cerebrais. O telencéfalo, segundo Descar
correlações entre amnésia, perda de consciência e tes, teria a função de proteção para a pineal.
lesões cerebrais localizadas foram feitas, bem como Contudo, só podemos afirmar que houve um
correlatos entre hemiplegia e comprometimento desenvolvimento maior no estudo das relações entre
cerebral (García-Albea, 1999; Walsh, 1994). cérebro e comportamento a partir de Franz J. Gall, no
Na antiga Grécia, no entanto, as funções do início do século XIX, com a criação da cranioscopia
cérebro não eram tão conhecidas como no Egito. (depois renomeada, por Spurzheim, para frenologia;
Dentre os gregos, a “morada da alma no corpo” gerou frenos em grego = mente). Sua concepção era a
discussões que, atualmente, identifica-se por duas existência de uma correspondên cia direta entre
hipóteses distintas. A teoria de que o cérebro serviria protuberâncias e depressões do crânio e do cérebro.
ao funcionamento cognitivo teve origem com Conseqüentemente, em um indivíduo com boa
Empédocles (430 a.C.) e foi defendida, den tre outros, memória, a evidência de uma protuberância em
por Hipócrates (376 a.C.). Por outro lado, filósofos determinada região do crânio (por exemplo, sobre os
como Aristóteles defendiam a teo ria de que o coração olhos) seria fato compro batório de que a função
(quente e ativo) seria a sede da razão, confinando ao mental em questão estaria localizada naquela região do
cérebro a função de refri geração do sangue (por ser cérebro. Desta for ma, com Gall “nasce a corrente
frio e inerte). Filósofos como Platão (347 a.C.), através localizacionista, segundo a qual as ditas funções seriam
da teoria da “alma tripartida”, defendiam a idéia de que clara e definidamente localizáveis nas circunvoluções
o cérebro seria responsável pela razão (por se do córtex cerebral” (Fontanari, 1989, p. 45). De acor
encontrar mais perto do céu), o coração pelas emoções do com os criadores da frenologia (Gall & Spur zheim,
e vonta des e o baixo ventre pelo instinto e desejo 1812, p. 366),
(Kolb & Whishaw, 1986).
Aproximadamente no século X (Idade como... pode-se duvidar ainda que cada par te do
Média), a teoria platônica da “alma tripartida” foi cérebro tem funções diferentes a pre encher, e
substituída pela concepção de que a alma era se diada que por conseguinte, o cérebro do homem e dos
nos ventrículos cerebrais e, mais especifica mente, pelo animais deve ser composto de tantos órgãos
particulares de tal forma que o homem ou o
líquido encéfalo-raquidiano. Esta teo ria, defendida por
animal tem faculdades morais ou intelectuais,
Galeno, fundamentava-se na idéia de que os músculos interesses, predisposições in dustriais, distintas?
moviam-se quando o líqüor percorria espaços distintos
do cérebro. Adep tos da teoria ventricular foram A corrente frenológica baseou sua argu
Albertus Magnus (séc. XV) e Leonardo da Vinci. No mentação em inúmeras observações empíricas,
século XVI, Vesalius derrubou a teoria ventricular com comparando crânios de deficientes mentais e ilus tres
o argu mento de que o espaço ventricular nos homens homens (Gall & Spurzheim, 1813). No entan
e
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Plínio Marco De Toni; Egídio José Romanelli; Caroline Guisantes De Salvo desempenhada pela região cortical do lobo frontal do
to, falhou em supor a correspondência direta entre cérebro. Em 1936, Max Dax, apoi
cérebro e crânio. A falta de conceitos operacionais das
funções mentais estudadas (fé, auto-estima, ado em observações clínicas (ao contrário de Gall),
moralidade), juntamente com a concepção revolu defendeu a tese de que as funções da linguagem eram
cionária para a época de que funções mentais esta riam desempenhadas melhor pelo hemisfério es querdo do
localizadas em regiões distintas do cérebro, cérebro (Springer & Deutsch, 1998). No entanto, a
funcionando independentemente (27 áreas ao todo, de comunidade científica da época desva lorizou seus
acordo com Milner et al., 1998), foram razões para o achados. Assim permaneceu até as descobertas do
descrédito quase imediato da frenologia (de vido ao francês Paul Broca que, acompa nhando por 30 anos
dualismo cartesiano e sua teoria da mente unificada um paciente com perturba ções da linguagem
que faziam parte do zeitgeist da época). Apesar disto, expressiva (Broca, 1861a), con cluiu que lesões na
Gall, como neuroanatomista, diferen ciou substância região do terceiro giro frontal do hemisfério esquerdo
cinzenta de substância branca, des cobriu a decussação do cérebro acarretavam um quadro de perda da
das pirâmides e as ligações entre áreas do neocórtex e linguagem falada que ele designou como afemia, termo
do tronco e diencéfalo, afirmando que os hemisférios substituído posteri ormente por afasia. Segundo ele,
cerebrais eram inter ligados por comissuras,
principalmente o corpo ca loso (Kolb & Whishaw, há os casos de onde a faculdade da língua geral
1986). Além disso, revoluci onou as neurociências, persiste inalterada, de onde o aparelho auditivo é
com uma posição não-dua lista e a tentativa de intacto, de onde todos os múscu los, com
exceção daqueles da voz e daqueles da
localizar no cérebro áreas es pecíficas para os
articulação, obedecem a vontade, no en tanto de
comportamentos. onde uma lesão cerebral abole a lín gua
Os estudos de Gall sobre a localização das articulada. Este abolição do discurso... constitui
funções cognitivas em áreas específicas do cérebro, um sintoma assim singular que me parece útil o
com correspondência craniana, foram imediatamente designar com um nome especi al. Eu dar-lhe-ei,
questionadas por Flourens. Numa das tentativas de conseqüentemente, o nome de aphemia (a - privar;
desmascarar a frenologia, Flou rens solicitou a Gall jhmi - eu falo, eu pro nuncio). (Broca, 1861b, p.
que realizasse um mapeamento frenológico do crânio 332)
de Laplace (cientista con temporâneo a eles). No
Desta forma, Broca consolidou a idéia de
entanto, no lugar do crâ nio de Laplace, Flourens lhe
dominância cerebral, corrente na época. Wernicke, ao
entregou o crânio de um sujeito com deficiência
descobrir outra área cerebral relacionada dire tamente
mental. O mapeamen to frenológico realizado indicou
com a linguagem, em 1873, abriu espaço para
características de genialidade!!! A partir disto, Flourens,
pesquisas clínicas não-localizacionistas (ao contrário de
através de experimentos com animais, relacionou o
Broca). Descreveu a síndrome de des conexão,
cerebelo com a motricidade, o bulbo com a respiração
relacionado com o fascículo arqueado, área de ligação
e o cérebro com a inteligência e a percepção (Kolb &
entre áreas da linguagem do lobo temporal e o frontal,
Whishaw, 1986; Bear et al., 2002). Deste modo,
conhecido como afasia de condução. Ele foi um dos
Flourens chamou a atenção para a propriedade de
pioneiros na concepção de que o cérebro funcionava
plasticidade do tecido nervoso. No entanto, devi do à
conectando várias partes do sistema por meio de feixe
inspiração cartesiana da época, sustentou que o
de fibras.
funcionamento da mente dependia do total da massa
Ao contrário dos posicionamentos locali
cerebral e não da localização específica, como pregava
zacionista e unitarista que dividiam o estudo das
Gall. De acordo com Flourens (1824, p. 241), “todas
funções cerebrais no século XIX, H. Jackson enfa
as sensações, percepções e vonta des ocupam o
tizou que o sistema nervoso era subdividido por
mesmo lugar no cérebro”.
hierarquia funcional, sendo que cada parte do mesmo
Dentre as funções cognitivas, o estudo dos
correspondia a determinado nível de fun cionamento.
mecanismos cerebrais da linguagem foi marco decisivo
A partir da medula, passando pelos gânglios basais até
para o desenvolvimento da neuropsico logia. A
o córtex cerebral, cada uma destas camadas
corrente frenológica supunha que a lin guagem era
corresponderia a um nível evoluti vamente superior de
atividade cognitiva (Vendrell, 1998). Salientou, superiores (como a linguagem) era
também, que cada uma das fun ções mentais

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sendo responsáveis pelos diferen tes aspectos do
desempenhada por todo o cérebro, sendo que cada conjunto (Riechi, 1996).
área do mesmo contribuiria, no conjunto, com uma Em anos recentes, observou-se o desen
determinada parcela para o ideal funcionamento volvimento em duas linhas de pesquisa comple
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cognitivo. Jackson firmou, assim, as bases para o
desenvolvimento posterior da teoria do sistema mentares: as técnicas de imagem e eletroencefalo
funcional por Vigotsky e Luria. gráficas (EEG, tomografia computadorizada, resso
Como se pode observar analisando a his nância magnética e PET scan); a psicometria esta
tória da neuropsicologia durante o século XIX, esta tística, com testes de inteligência e desempenho
ciência se desenvolveu principalmente a partir dos cognitivo. Como numa simbiose, o crescente en
estudos com pacientes cérebro-lesados. No entan to, tendimento entre as neurociências e as ciências do
foi somente a partir das grandes guerras mun diais que, comportamento vem contribuir com as pesquisas que
com o estudo de soldados mutilados, um imenso buscam evidenciar os mecanismos do cérebro e sua
número de casos clínicos serviram de base para o relação com o funcionamento cognitivo.
desenvolvimento da neuropsicologia (Luria, 1992).
Este lapso de tempo entre os estu dos de H. Jackson
(séc. XIX) e o desenvolvimento das neurociências Métodos de investigação em neurop
(1920) justifica-se por diversos fatores: a sustentação sicologia
das posições unitarista e lo calizacionista durante o
início do século XX; o gran de desenvolvimento da
Durante toda a história das neurociênci as, a
psicanálise e o interesse causado por ela; a
investigação do funcionamento cerebral e sua
preocupação da psicologia em estudos na área da
correlação com o comportamento foram analisa das de
psicofísica; a origem epistemo lógica da psicologia,
diversas formas. No entanto, observa-se que seu maior
oriunda da filosofia; a falta de interesse por parte da
desenvolvimento se deu a partir da aná lise de
psicologia dos achados biológicos (Kolb & Whishaw,
pacientes cérebro-lesados. Estuda-se a fun ção por
1986).
meio da disfunção, o normal pelo patoló gico. Desta
A partir de 1920, talvez uma das princi pais
forma, considera-se o método patoló
contribuições científicas para o conhecimen to das
gico-experimental (Luria, 1979) como sendo o eixo
relações entre cérebro e comportamento se deu por
metodológico principal da neuropsicologia.
Penfield. Durante as neurocirurgias com pacientes
com epilepsia refratária, Penfield utiliza va-se de A investigação do indivíduo normal permite
estimulação elétrica diretamente em regi ões corticais e apenas uma descrição muito superficial da
observava as reações no paciente desperto. A partir constituição dos processos psíquicos bem como
desta técnica de investigação, Penfield pôde mapear do papel que desempenham as diver sas áreas do
diversas funções cognitivas e percepto-motoras e cérebro na conduta humana. Estes podem ser
correlacioná-las a áreas cir cunscritas do cérebro. mais bem entendidos a partir da análise exaustiva
A partir de Jackson, muitos autores com do modo como uma deter minada atividade
psíquica se perturba. (An tunha, 1993, p.13)
idéias sistêmicas foram surgindo. Luria (1981), evi
denciando o que denominou de “crise da psicolo gia”
Sustentados pela análise de pacientes cé
(localizacionismo X unitarismo), desenvolveu a teoria
rebro-lesados, os métodos da análise sindrômica e
do sistema funcional. Segundo ele, as fun ções
dupla dissociação de funções seriam técnicas deri
cognitivas formam sistemas funcionais com plexos que
vadas, porém fundamentais a uma abordagem ci
necessitam da ação combinada de todo o córtex
entífica dos mecanismos cerebrais da cognição.
cerebral, embora a sua base esteja situada em grupos
Por Análise Sindrômica entende-se a “des
de células dispersas que atuariam con juntamente.
crição do complexo completo de sintomas (...) que se
Assim, funções mentais superiores dependeriam do
manifestam em lesões cerebrais locais” (Luria, 1981, p.
cérebro como um todo, mas com partes distintas
23). Desta forma, um mesmo sintoma apa rentemente lesão cerebral especificamente localizada. Por isso, de
pode aparecer como decorrência de lesões em diversas forma al guma deve-se supor que a manifestação de
localidades do cérebro, da mesma forma que diversos um sintoma decorrente de uma lesão cerebral local
sintomas podem apa recer como conseqüência de uma

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Plínio Marco De Toni; Egídio José Romanelli; Caroline Guisantes De Salvo responsáveis diversos. Assim, a primeira função
seja indício de que a função perdida esteja locali zada poderia ser prejudicada por uma lesão de lobo
naquela região comprometida. Toda função cognitiva é temporal superior esquerdo, já que a leitura de palavras
desenvolvida por um sistema funcio nal complexo, não familiarizadas requer a análise de seus conteúdos
onde diversas áreas cerebrais atu am de forma a acústicos. Em contrapartida, a segunda função não
promover tal função. Lesões em diversos pontos do seria prejudicada pelo comprometimen
sistema funcional podem acar retar a perda da função
por motivos diversos, não significando, desta forma, to, pois palavras familiarizadas transformam-se em
que a função perdida esteja encerrada na área ideogramas ópticos, não requerendo mais a análi se de
acometida pela lesão. conteúdo acústico. Altera-se, assim, o siste ma
O método de Análise Sindrômica age na funcional responsável pela função e, conse
tentativa de descrever a estrutura interna de pro cessos qüentemente, as estruturas cerebrais responsáveis pelo
psicológicos superiores, agrupando numa mesma processo. O método da dissociação dupla de funções
“categoria” processos aparentemente mui to distintos. veio averiguar o mesmo a respeito dos mecanismos de
Desta forma, aproxima as funções de orientação memória: determinadas lesões poderiam incapacitar o
espacial, compreensão de estruturas lógico-gramaticais funcionamento da memó ria de curto-prazo e, não
e operações de cálculo, todas elas impossibilitadas pelo obstante, deixar intacta a memória de longo-prazo, ou
comprometimento das áreas terciárias do lobo vice-versa (Repov_, 2001). Um dos casos clássicos que
têmporo-parieto-occipital esquerdo, responsável pela apóiam a disso ciação dupla da memória foi descrito
orientação espacial, característica fundamental de tais por Scoville & Milner (1957), conhecido com H.M.
funções (Luria, 1981). Após extra ção bilateral de partes do hipocampo,
Segundo Teuber (1959), a dissociação dupla desenvol veu-se um quadro de amnésia anterógrada,
de funções “(...) requer que o sintoma A apareça com fican do o paciente impossibilitado de adquirir novas
lesões de uma estrutura, porém não com lesões em memórias. No entanto, o funcionamento mnêmico
outra, e que o sintoma B apareça com lesões da para eventos passados permaneceu intacto. Em
segunda estrutura, mas não com a primeira” (apud contrapartida, os casos de amnésia retrógrada ex põe o
Walsh, 1994, p. 24). paciente à situação inversa: enquanto que a capacidade
O método da dissociação dupla de fun ções de adquirir novas memórias é preser vada,
permite ao neuropsicólogo dizer se os meca nismos desenvolve-se um quadro de impossibilida de para
responsáveis por dois processos cogniti vos divergem recordar eventos passados. Pela análise destes casos,
enquanto localização cerebral ou não. De acordo com verificou-se que os mecanismos ce rebrais responsáveis
Luria (1981, p. 25), pelo processamento destas duas formas de
armazenamento mnêmico diver gem quanto à
uma cuidadosa análise neuropsicológica da localização (Eysenck & Keane, 1994).
síndrome e observações da “dupla dissocia ção”
que aparece em lesões cerebrais locais podem
oferecer uma contribuição importan te à análise
Teoria do sistema funcional
estrutural dos próprios processos psicológicos e
podem identificar os fatores envolvidos em um
grupo de processos men tais mas não em outros. Segundo Walsh (1994, p. 23), nas neuro
ciências o termo função assume dois significados
Desta forma, pesquisas com dissociação principais, dependentes do contexto inserido e das
dupla (Luria, 1981) mostraram que a leitura de uma características do sistema: “pode descrever a fun ção
palavra não familiarizada e a leitura de uma pala vra de células ou órgãos particulares... ou, por outro lado, é
familiarizada possuem mecanismos cerebrais usado para descrever processos com plexos que
envolvem a participação integrada de um numero de
tecidos e órgãos”. As neurociênci as do século XIX, a encerrada numa área específica do cérebro.
partir dos achados da frenolo gia de Gall & Spurzheim Com o desenvolvimento da neuropsicolo gia
(1812; 1813), bem como dos achados de Broca soviética, pesquisas (Luria, 1992) evidenciaram um
(1861a), assumiram o pri meiro conceito de função, novo modelo para as relações cérebro-compor
numa posição localiza cionista, afirmando que cada tamento: a da organização cerebral vertical dos pro
aspecto da cognição e da percepto-motricidade está

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zonas estreitas do córtex ou em agrupa mentos
celulares isolados, mas devem ser or ganizadas
cessos cognitivos, idéia proposta inicialmente por H. em sistemas de zonas funcionando em concerto,
Jackson no final do século XIX. Promoveram, desta desempenhando cada uma des sas zonas o seu
forma, a construção da teoria do sistema fun cional, papel em um sistema funcio nal complexo (...)
termo originalmente proposto por Anokin. Não
obstante, o modelo de sistema funcional tor nou-se a A teoria do sistema funcional traz conse
pedra angular da neuropsicologia. qüências diretas sobre a neuropsicologia aplicada,
Luria (1981, p. 13) descreve um sistema A evolução da neuropsicologia: da antigüidade aos tempos modernos
funcional através das características mencionadas
em especial em relação à avaliação neuropsicoló gica e
abaixo:
à reabilitação cognitiva. Assumir este mode lo é
A presença de uma tarefa constante (invariá vel),
comprometer-se com uma análise rigorosa dos
desempenhada por mecanismos diver sos
(variáveis), que levam o processo a um resultado sintomas observados, já que,
constante (invariável), é um dos aspectos básicos
que caracterizam a opera ção de qualquer (...) enquanto é verdade que um comprome
“sistema funcional”. O se gundo aspecto timento em qualquer parte do sistema funci onal
característico é a composição complexa do pode tornar disfuncional um processo
“sistema funcional”, que sem pre inclui uma série psicológico, é também verdade que um com
de impulsos aferentes (ajustadores) e eferentes prometimento em diversas partes de um sis tema
(efetuadores). implicará em características diferentes na
síndrome resultante. (Walsh, 1994, p. 23)
Ao contrário das posições localizacionis tas e
unitaristas que vigoraram no século XIX, a De acordo com Engelhardt et al. (1995b, p.
neuropsicologia entende que toda e qualquer fun ção 151), a plasticidade cerebral é conseqüência da
cognitiva é, em essência, um sistema funcional mobilidade de estruturas característica do sistema
complexo, cuja característica principal é a interação e o funcional: “um sistema funcional se caracteriza pela...
funcionamento em concerto de diversas zonas mobilidade/plasticidade de suas partes com ponentes
cerebrais. Processos psicológicos como percepção, – a tarefa original e o resultado final permanecem
memória, imagem corporal ou atenção podem ser inalterados, porém a maneira como esta tarefa é
considerados produtos finais do processamento de realizada pode variar”. Na medida em que áreas
diversas áreas cerebrais que, trabalhando em con certo, específicas do sistema funcional são comprometidas
proporcionariam a função requerida, sendo que cada ou de alguma forma impossibilita das, outras áreas
zona cerebral individual contribuiria com um fator possibilitariam a reestruturação da função perdida,
específico ao processo. Delimitar áreas específicas do modificando-se os mecanismos relacionados àquela
cérebro como sendo responsáveis por funções função sem, no entanto, alte rar o objetivo final do
cognitivas específicas seria um erro (posição processo. Segundo Sohl berg & Mateer (1989), em
localizacionista). Da mesma forma, outra atitude termos de reabilitação cognitiva este modelo mostra-se
errônea seria admitir que as formas comple xas de como alternativa viável ao restabelecimento de uma
atividade mental estariam relacionadas ao função cogniti va comprometida ou incapacitada por
funcionamento de todo o cérebro (posição unitaris ta). situações diversas. Da mesma forma, Antunha (1993,
De acordo com Luria (1981, p. 16), p. 14) salienta as relações entre o sistema funcional luri
ano e as atividades de reabilitação, afirmando a
(...) as funções mentais, como sistemas funci possibilidade de “restaurar funções mentais dani
onais complexos, não podem ser localizadas em ficadas através da reestruturação de sistemas fun
cionais”. dinâmica, como um sistema integrado,
Superando o dualismo localizacionista X permanece atual e pode ser visualizado em
unitarista, o modelo de sistema funcional demons modelos modernos de organização cerebral. Por
exemplo, modelos correntes de organi zação
trou-se frutífero tanto na neuropsicologia clínica quan
cerebral que utilizam inteligência artifi cial têm
to no desenvolvimento de pesquisas relacionadas. De em suas bases a noção de sistemas funcionais
acordo com Sohlberg & Mateer (1989, p. 12), integrados.

a noção de que o cérebro é organizado de forma

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Considerações finais
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Atualmente os recursos da neuropsicolo gia
Paris, & E. Leroux.
são requisitados por psicólogos, psiquiatras,
educadores, neurologistas e neurocirurgiões, bem Engelhardt, E., Rozenthal, M, & Lacks, J. (1995a).
como por profissionais das demais áreas que li dam Neuropsicologia: introdução. Revista Brasileira de
com sujeitos portadores de queixas cogniti vas. Neurologia, 31, (1), 34-41.
Deve-se salientar que os domínios da neurop sicologia
Engelhardt, E., Rozenthal, M, & Lacks, J. (1995b).
vão além do diagnóstico, invadindo os campos da
Neuropsicologia: história. Revista Brasileira de
terapêutica. Seus programas de reabili tação servem
Neurologia, 31, (2), 107-113.
tanto a pacientes com comprometi mento neurológico,
quadros psiquiátricos e com dificuldades de
aprendizagem. Nascendo como ciência interdisciplinar, Eysenck, M. W., & Keane, M. T. (1994). Psicolo gia
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