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A EVOLUÇÃO DA NEUROPSICOLOGIA:
DA ANTIGÜIDADE AOS TEMPOS MODERNOS
Resumo
A curiosidade pela investigação do cérebro e sua relação com a cognição parece ter permeado diversos momentos
históricos, desde tempos remotos. Papiros faraônicos indicam que, há 3.000 a.C., os egípcios possuíam grande
conhecimento sobre as funções do cérebro. Ao contrário, os gregos antigos relacionavam a inteligência, as emoções e
os instintos com partes distintas do corpo, como o cérebro, o coração e o fígado. Na idade média, a teoria platônica
da alma tripartida cedeu espaço à teoria ventricular e, posteriormente, ao dualismo cartesiano. Foi somente no século
XIX que, a partir da frenologia, as neurociências assumiram um referencial localizacionista no estudo das relações
entre cérebro e cognição, culminando na identificação de áreas corticais relacionadas com a linguagem por Dax,
Broca e Wernicke. No entanto, a neuropsicologia somente pôde se desenvolver através da utilização do método
patológico-experimental em pacientes cérebro-lesados. Atualmente, a neuropsicologia clínica, através da avaliação
neuropsicológica e da reabilitação cognitiva, tem se beneficiado muito com os avanços da psicometria e das técnicas
de neuroimagem, contribuindo para o conhecimento do cérebro e suas relações com o comportamento.
Palavras-chave: Neurociências, Neuropsicologia, Teoria do Sistema Funcional.
1
Psicólogo e Licenciado em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Psicologia da Infância e Adolescência pela
Universidade Federal do Paraná. Doutorando em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (Linha de
pesquisa: Avaliação Psicológica).
2
Pós-doutor em Neuropsicologia pela Universitè de Montreal, Canadá.
Professor da Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.
3
Psicóloga e Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo.
Endereço para contato: Rua Marechal Deodoro, n.° 1014, ap. 121 – Centro, Curitiba-PR. CEP 80060-010 E-mail:
pliniomarco@yahoo.com.br
átricos. Acreditavam, também, que maus espíritos nos outros primatas era praticamente do mesmo
habitavam o cérebro de pacientes com quadros tamanho, ao contrário do restante do cérebro. Por isso
psiquiátricos. Desta forma, lhes cabia retirá-lo do a alma não poderia residir nos ventrículos. Descartes
corpo insano através de perfurações no crânio. Desde (século XVII), com a pressuposição de que a alma era
a origem pré-histórica, a trepanação vem sendo representada por uma mente unifi cada (em
realizada por diversos povos, observando se, inclusive, contraposição à “alma tripartida” de Pla tão) e
em dias atuais este tipo de interven ção cirúrgica em racional, localizou sua residência na glân dula pineal
algumas tribos (Walsh, 1994). (atual epífise – região posterior do di encéfalo, acima
Investigações entre cérebro e comporta dos colículos superiores do me sencéfalo). Escolheu
mento são descritas, através do papiro de Edwin esta estrutura por ser, segun do ele, a única a não ter
Smith, também no Egito antigo (3.000 anos atrás). correspondência nos dois hemisférios e, por tanto, ser
Devido aos rituais de mumificação realizados, os unificada, como a mente deveria ser (Herrnstein &
egípcios adquiriram grande conhecimento de neu Boring, 1971). Além disso, a escolha da glândula pineal
roanatomia e do funcionamento cerebral. Este fato para co nectar corpo e alma era de acordo com a
proporcionou-lhes evidenciar a existência de rela ções concep ção da época, por encontrar-se próximo aos
entre o cérebro e o comportamento. Dentre os relatos, ven trículos cerebrais. O telencéfalo, segundo Descar
correlações entre amnésia, perda de consciência e tes, teria a função de proteção para a pineal.
lesões cerebrais localizadas foram feitas, bem como Contudo, só podemos afirmar que houve um
correlatos entre hemiplegia e comprometimento desenvolvimento maior no estudo das relações entre
cerebral (García-Albea, 1999; Walsh, 1994). cérebro e comportamento a partir de Franz J. Gall, no
Na antiga Grécia, no entanto, as funções do início do século XIX, com a criação da cranioscopia
cérebro não eram tão conhecidas como no Egito. (depois renomeada, por Spurzheim, para frenologia;
Dentre os gregos, a “morada da alma no corpo” gerou frenos em grego = mente). Sua concepção era a
discussões que, atualmente, identifica-se por duas existência de uma correspondên cia direta entre
hipóteses distintas. A teoria de que o cérebro serviria protuberâncias e depressões do crânio e do cérebro.
ao funcionamento cognitivo teve origem com Conseqüentemente, em um indivíduo com boa
Empédocles (430 a.C.) e foi defendida, den tre outros, memória, a evidência de uma protuberância em
por Hipócrates (376 a.C.). Por outro lado, filósofos determinada região do crânio (por exemplo, sobre os
como Aristóteles defendiam a teo ria de que o coração olhos) seria fato compro batório de que a função
(quente e ativo) seria a sede da razão, confinando ao mental em questão estaria localizada naquela região do
cérebro a função de refri geração do sangue (por ser cérebro. Desta for ma, com Gall “nasce a corrente
frio e inerte). Filósofos como Platão (347 a.C.), através localizacionista, segundo a qual as ditas funções seriam
da teoria da “alma tripartida”, defendiam a idéia de que clara e definidamente localizáveis nas circunvoluções
o cérebro seria responsável pela razão (por se do córtex cerebral” (Fontanari, 1989, p. 45). De acor
encontrar mais perto do céu), o coração pelas emoções do com os criadores da frenologia (Gall & Spur zheim,
e vonta des e o baixo ventre pelo instinto e desejo 1812, p. 366),
(Kolb & Whishaw, 1986).
Aproximadamente no século X (Idade como... pode-se duvidar ainda que cada par te do
Média), a teoria platônica da “alma tripartida” foi cérebro tem funções diferentes a pre encher, e
substituída pela concepção de que a alma era se diada que por conseguinte, o cérebro do homem e dos
nos ventrículos cerebrais e, mais especifica mente, pelo animais deve ser composto de tantos órgãos
particulares de tal forma que o homem ou o
líquido encéfalo-raquidiano. Esta teo ria, defendida por
animal tem faculdades morais ou intelectuais,
Galeno, fundamentava-se na idéia de que os músculos interesses, predisposições in dustriais, distintas?
moviam-se quando o líqüor percorria espaços distintos
do cérebro. Adep tos da teoria ventricular foram A corrente frenológica baseou sua argu
Albertus Magnus (séc. XV) e Leonardo da Vinci. No mentação em inúmeras observações empíricas,
século XVI, Vesalius derrubou a teoria ventricular com comparando crânios de deficientes mentais e ilus tres
o argu mento de que o espaço ventricular nos homens homens (Gall & Spurzheim, 1813). No entan
e
Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 41 p. 47-55, abr./jun. 2005.
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Plínio Marco De Toni; Egídio José Romanelli; Caroline Guisantes De Salvo desempenhada pela região cortical do lobo frontal do
to, falhou em supor a correspondência direta entre cérebro. Em 1936, Max Dax, apoi
cérebro e crânio. A falta de conceitos operacionais das
funções mentais estudadas (fé, auto-estima, ado em observações clínicas (ao contrário de Gall),
moralidade), juntamente com a concepção revolu defendeu a tese de que as funções da linguagem eram
cionária para a época de que funções mentais esta riam desempenhadas melhor pelo hemisfério es querdo do
localizadas em regiões distintas do cérebro, cérebro (Springer & Deutsch, 1998). No entanto, a
funcionando independentemente (27 áreas ao todo, de comunidade científica da época desva lorizou seus
acordo com Milner et al., 1998), foram razões para o achados. Assim permaneceu até as descobertas do
descrédito quase imediato da frenologia (de vido ao francês Paul Broca que, acompa nhando por 30 anos
dualismo cartesiano e sua teoria da mente unificada um paciente com perturba ções da linguagem
que faziam parte do zeitgeist da época). Apesar disto, expressiva (Broca, 1861a), con cluiu que lesões na
Gall, como neuroanatomista, diferen ciou substância região do terceiro giro frontal do hemisfério esquerdo
cinzenta de substância branca, des cobriu a decussação do cérebro acarretavam um quadro de perda da
das pirâmides e as ligações entre áreas do neocórtex e linguagem falada que ele designou como afemia, termo
do tronco e diencéfalo, afirmando que os hemisférios substituído posteri ormente por afasia. Segundo ele,
cerebrais eram inter ligados por comissuras,
principalmente o corpo ca loso (Kolb & Whishaw, há os casos de onde a faculdade da língua geral
1986). Além disso, revoluci onou as neurociências, persiste inalterada, de onde o aparelho auditivo é
com uma posição não-dua lista e a tentativa de intacto, de onde todos os múscu los, com
exceção daqueles da voz e daqueles da
localizar no cérebro áreas es pecíficas para os
articulação, obedecem a vontade, no en tanto de
comportamentos. onde uma lesão cerebral abole a lín gua
Os estudos de Gall sobre a localização das articulada. Este abolição do discurso... constitui
funções cognitivas em áreas específicas do cérebro, um sintoma assim singular que me parece útil o
com correspondência craniana, foram imediatamente designar com um nome especi al. Eu dar-lhe-ei,
questionadas por Flourens. Numa das tentativas de conseqüentemente, o nome de aphemia (a - privar;
desmascarar a frenologia, Flou rens solicitou a Gall jhmi - eu falo, eu pro nuncio). (Broca, 1861b, p.
que realizasse um mapeamento frenológico do crânio 332)
de Laplace (cientista con temporâneo a eles). No
Desta forma, Broca consolidou a idéia de
entanto, no lugar do crâ nio de Laplace, Flourens lhe
dominância cerebral, corrente na época. Wernicke, ao
entregou o crânio de um sujeito com deficiência
descobrir outra área cerebral relacionada dire tamente
mental. O mapeamen to frenológico realizado indicou
com a linguagem, em 1873, abriu espaço para
características de genialidade!!! A partir disto, Flourens,
pesquisas clínicas não-localizacionistas (ao contrário de
através de experimentos com animais, relacionou o
Broca). Descreveu a síndrome de des conexão,
cerebelo com a motricidade, o bulbo com a respiração
relacionado com o fascículo arqueado, área de ligação
e o cérebro com a inteligência e a percepção (Kolb &
entre áreas da linguagem do lobo temporal e o frontal,
Whishaw, 1986; Bear et al., 2002). Deste modo,
conhecido como afasia de condução. Ele foi um dos
Flourens chamou a atenção para a propriedade de
pioneiros na concepção de que o cérebro funcionava
plasticidade do tecido nervoso. No entanto, devi do à
conectando várias partes do sistema por meio de feixe
inspiração cartesiana da época, sustentou que o
de fibras.
funcionamento da mente dependia do total da massa
Ao contrário dos posicionamentos locali
cerebral e não da localização específica, como pregava
zacionista e unitarista que dividiam o estudo das
Gall. De acordo com Flourens (1824, p. 241), “todas
funções cerebrais no século XIX, H. Jackson enfa
as sensações, percepções e vonta des ocupam o
tizou que o sistema nervoso era subdividido por
mesmo lugar no cérebro”.
hierarquia funcional, sendo que cada parte do mesmo
Dentre as funções cognitivas, o estudo dos
correspondia a determinado nível de fun cionamento.
mecanismos cerebrais da linguagem foi marco decisivo
A partir da medula, passando pelos gânglios basais até
para o desenvolvimento da neuropsico logia. A
o córtex cerebral, cada uma destas camadas
corrente frenológica supunha que a lin guagem era
corresponderia a um nível evoluti vamente superior de
atividade cognitiva (Vendrell, 1998). Salientou, superiores (como a linguagem) era
também, que cada uma das fun ções mentais