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ANDRÉ DANTAS
Na projeção, a anima sempre assume uma forma feminina, com determinadas características.
Esta constatação empírica não significa no entanto que o arquétipo em si seja constituído da
mesma forma. A sizígia masculino-feminino é apenas um dos possíveis pares de opostos, mas
na prática um dos mais importantes e freqüentes. Ela tem muitas relações com outros pares (de
opostos) que não apresentam diferenças sexuais, podendo pois ser colocados numa categoria
sexual apenas de modo forçado6.
DIALÉTICA NA SIZÍGIA
RETORNO DO SI-MESMO
A psicologia arquetípica iniciou sua jornada exercendo uma pesada crítica ao foco dos
junguianos tradicionais sobre o si-mesmo. Mas no momento em que ela reflete sobre sua
concentração sobre a anima ele retorna enriquecido pela negação que sofreu. O si-mesmo
como a unidade dos opostos não é mais um arquétipo separado dos outros, uma entidade que
impulsiona a individuação a partir de fora. Ele é a singularidade mais íntima de toda e
qualquer coisa, aquilo que algo é em si-mesmo.
O si-mesmo é uma unidade, consistindo porém de duas, isto é, de opostos, caso contrário não
seria uma totalidade. (...) Apesar da natureza conservadora, os arquétipos não são estáticos,
mas estão num constante fluxo dramático. Por isso o si-mesmo como mônada ou unidade
contínua estaria morto. Mas ele vive na medida em que se divide e se une de novo. Não há
energia sem opostos21.
A anima revelou-se como sendo em si-mesma a outra face do espírito, uma projeção
sua e vice-versa. Eles são os reflexos invertido um do outro. A alma é em si-mesma a negação
do espírito, que por sua vez é a negação da alma. Eles se determinam negando um ao outro. A
alma é o que é, por negar o que o espírito é, sendo o não-espírito, assim como o espírito é a
não-alma. A alma é então a não-não-alma e o espírito o não-não-espírito. Ao reencontrar-se
no outro cada um retorna a si-mesmo enriquecido pela jornada negativa que sofreu, tornado-
se aquilo que eles já eram ao reconhecerem-se como sendo neles mesmos o seu outro. A
natureza de cada um é contra naturam, opondo-se a si-mesma e efetivando-se numa
dissolução no outro que coagula aquilo que cada um é. Ambos negam duplamente a si-
mesmos no outro, e por isso se afirmam através do outro. Se um não fosse o que fosse o outro
não seria o que é. Assim como uma luz só torna-se visível ao ser refletida por uma superfície
que lhe serve de obstáculo, a alma só torna-se consciente de si ao ser refletida no espírito, e é
por sofrer a negação da alma que o espírito determina-se.
Determinatio est negatio (Espinosa). Sem negação não há si-mesmo, visto que ele é a
determinação mais íntima de toda e qualquer coisa. Se for permitida a negação desenvolver-se
até o final ela nega a si-mesma tornando-se aquilo que une a partir da própria separação. Sem
negação haveria apenas um aglomerado amorfo e indiferenciado, mas graças ao poder do
negativo, uma coisa deixa de ser um algo qualquer para ser algo singularmente específico. Tal
processo poderia ser chamado de indivi-doação22, visto que cada um é mais individualmente
si-mesmo ao doar-se para o seu outro.
Individoação, a realização do si-mesmo, não se restringe ao personalismo
egóico, sendo um devir universal através do qual qualquer ser singulariza-se. Enquanto
oposição o si-mesmo é um universal idêntico ao seu conceito, uma identidade/diferenciante.
Essa é a sua expressão mais pura e abstrata, mas enquanto universal ele não possui nada fora
de si, incluindo a si-mesmo, e por isso opõe-se ao seu próprio conceito multiplicando-se em
um número infinito de singularidades. Ele faz isso sem sair de si, ou melhor, ele penetra cada
vez mais em si ao sair de si. Por sua essência ser oposição ele se interioriza exteriorizando-se
e se unifica multiplicando-se. Ele é uma unificação/multiplicante e aprofunda-se na sua
essência conceitual única na medida em que aparece de forma múltipla. Essa é a sizígia
expressa na linguagem conceitual abstrata do logos, que por ser dialético, é o outro de si-
mesmo, uma abstração que personifica-se em um sem número de imagens. O logos é em si-
mesmo o seu outro, psique, e vice-versa. Fazer psicologia exige realmente pensar as imagens,
dissolvê-las no movimento lógico do conceito, que se deixado livre para seguir a sua essência
adquire uma concretude sensorial. A psicologia como sizígia não dissocia monoteísmo de
politeísmo, sendo um monoteísmo de conceito (demanda do espírito) e um politeísmo de
imagens (demanda da alma). Não é a simples soma de um com o outro, mas a negação de um
através do outro que simultaneamente conserva um no outro. A psicologia despersonifica as
imagens pensando-as ao mesmo tempo em que personifica o pensamento imaginando-o, e ela
só é psico-lógica se existe como a realização desse movimento urobórico onde cada oposto
devora e cria a si-mesmo no outro.
PRINCÍPIO DA COERÊNCIA
O princípio que rege a dialética não é o princípio da não-contradição que rege a lógica
analítico-formal, mas o princípio da coerência, que nega-conserva o princípio da não-
contradição. O princípio da coerência conserva a importância da contradição para razão, mas
nega que ela seja aquilo que a impossibilita, pois razão é movida pela contradição, sendo o
que ela é em-si-mesma. O princípio da coerência é a identidade-diferenciada de dois outros
princípios.
O primeiro é o princípio da identidade, tão básico e fundamental que quase nunca nos
damos conta que o estamos utilizando. Ele diz que A é A, e está sendo sempre pressuposto
como verdadeiro. O princípio da identidade se divide em três subprincípios23.
Identidade simples: Quando se diz A ou qualquer outra coisa, está se dizendo uma
identidade simples. O A se destaca do seu pano de fundo e aponta para algo de determinado.
Mas apesar de apontar e dizer algo determinado não há ainda uma predicação completa visto
que sujeito e predicado não foram distinguidos um do outro24.
Identidade Interativa: O primeiro A se repete tornando-se A e A, podendo se repetir de
novo e de novo tornando-se A, A, A. Enquanto a repetição é interativa é repetição do mesmo,
não surgindo nada de novo. Mas identidade interativa é a primeira e mais básica forma de
multiplicidade, e apesar de ser ainda uma multiplicidade do mesmo, é a partir dela que se
inicia o movimento25.
Identidade reflexa: Começa quando se diz que A é igual a A. Aqui a identidade chega
à plenitude, sendo agora possível formular a primeira predicação onde o sujeito é o primeiro
A e o predicado o segundo A. Assim surge a tautologia, A = A, a mãe de todas as predicações
ulteriores26.
O segundo princípio é o princípio da diferença, que começa quando se acrescenta à
série de A, A, A, algo que não é apenas a repetição de A. Diferença é tudo que não é A. Essa
diferença ainda é indeterminada, abstrata, determinando-se quando o não-A se torna B, C, D e
assim por diante27.
Quando estes dois princípios se encontram três coisas podem acontecer. Um do dois
permanece enquanto o outro desaparece. Os dois desaparecem e nada resta. Na terceira opção
entra em cena o princípio da coerência, que funciona por meio de uma contradição concreta.
Dizer A e não-A anula o dito, nada sobra, a razão silencia e o caos irracional prolifera. Em
uma contemporaneidade dominada pela razão instrumental tecno-científica, o irracionalismo
caótico é por demais sedutor e se dissemina como formação reativa. Um é o outro-si-mesmo
do outro28. Mas se esse não-A assume a forma determinada de um B ou C é preciso se deixar
permear pelo conflito entre os dois e refletir se o que na aparência é regido por Marte, na
essência o é por Vênus. O que na razão analítica é excludente, na razão dialética é includente.
O que em uma paralisa a ação da razão para outra é o combustível do seu movimento. Na
dialética a contradição existe, não é impossível, e é através dela que a razão re-flexiona em-si-
mesma se reencontrando no interior do próprio real.
O princípio da coerência é a unidade dos dois princípios que aparentemente se
excluem. Identidade é aquilo que não é diferença e diferença é aquilo que não é identidade. O
ser de um é o não ser do outro, e por isso o conceito de identidade é a negação do conceito de
diferença e o conceito de diferença é a negação do conceito de identidade. Os dois só são
coerentes consigo por incluírem na sua afirmação a negação do outro. A identidade do
princípio da identidade consigo mesmo só se dá a partir da diferença com o princípio da
diferença, assim como a identidade do princípio da diferença consigo mesmo só ocorre a
partir da diferença com o princípio da identidade. Identidade contém a diferença em-si e a
diferença contém a identidade em-si. Esse é o princípio da coerência, identidade da identidade
e da diferença, que é a sizígia expressa na linguagem conceitual do animus e cujas
manifestações concretas são o objeto de estudo da psico-logia.
DIALÉTICA E HISTÓRIA
A dialética não é relação no sentido de uma estrutura estática, mas no sentido de uma
circulação contínua entre os opostos. Esse devir não é temporalmente extensivo, vindo do
passado ao presente em direção ao futuro, mas é aprofundamento total e completo no presente
que é efeito e causa do passado e do futuro. O tempo psicológico não é linear, extensivo, pois
não flui apenas num sentido, do passado para o presente e deste para o futuro, mas também
flui do futuro para o presente e deste para o passado. Futuro, presente e passado se co-
determinam e a psicologia lida com um passado que é presente e um presente que é passado, e
com um futuro que é presente e um presente que é futuro, ou seja, com um presente absoluto,
unidade autocontrária de passado e futuro.
O presente não apenas determina e é determinado pelo passado, mas também
determina e é determinado pelo futuro. Por ser a identidade-diferenciada do passado e futuro,
porta em si as sementes da sua própria negação, de um futuro ainda incerto que pressiona para
nascer. O presente é o momento imanentemente negativo que desvanece assim que germina,
tornando-se desde já passado e sendo sempre um futuro que estar por vir. Ele é uma flor que
negou-conservou o botão de onde nasceu e carrega as sementes do fruto que a sucederá, sendo
assim uma trans-imanência, uma imanência que por conter o negativo em-si é devir que
transcende a si-mesma.
Estamos total e completamente enraizados no presente sendo impossível observar
com neutralidade o passado que é a fonte do próprio presente onde nos enraizamos. Olhamos
para o passado a partir do que vivemos no presente e na medida em que alteramos o presente
olhamos para o passado de forma diferente e descobrimos nele as causas para essa nova forma
de ser presente. É o presente retornando infinitamente a si-mesmo.
A psicoterapia, enquanto processo de reconstrução da história do paciente, é
arqueologia do passado que transforma o modo de abordá-lo ao alterar o presente que é
causado por este passado, e que por isso causa um novo olhar para o passado que é a causa
desse novo presente. Presente e passado são causa e efeito um do outro, e nada existe na causa
que não esteja no efeito, assim como não há nada no efeito que não esteja na causa. O que é
efeito é uma causa com efeito próprio e o que é primeiro causa é em-si-mesma, efeito e tem
uma causa adicional própria. Causa e efeito contém um ao outro sendo inseparáveis. Ao
produzir um efeito, a causa torna-se causa sendo por isso causa de si-mesma, logo efeito de si-
mesma. O efeito é causa porque somente sua ocorrência faz com que a causa seja uma causa,
pois o que define uma causa é a sua capacidade de gerar efeito, logo a causa é efeito porque se
faz causa pelo seu efeito. Quando a reciprocidade entre causa e efeito é desfeita o resultado é
a má infinitude, a regressão infinita onde qualquer causa é efeito não do seu próprio efeito,
mas de alguma outra causa e qualquer efeito é causa não da sua própria causa, mas de algum
outro efeito. Explicar qualquer evento em si-mesmo torna-se impossível, pois seus
antecedentes causais regridem infinitamente29.
A dialética é assim uma forma sofisticada de tautologia, uma lógica ourobórica,
autopoiética, onde o movimento de partida, a causa em que se apoia, e o movimento de
chegada, o efeito posterior, retornam infinitamente um sobre o outro, interiorizando um ao
outro no conceito (sizígia) que é o alfa e o ômega de todo o movimento, porque ele é esse
movimento que interioriza a si-mesmo.
Esse devir é histórico e por isso não chegamos à antítese de uma tese através de uma
manipulação lógico-semântica a priori. No tempo intensivo o passado é presente e precisa ser
levado em consideração. É a partir da ação da história na linguagem e da linguagem na
história que os opostos se engendram. Por ser uma lógica urobórica a circularidade dialética é
absoluta e por isso o fechamento do círculo é também sua abertura às contingências históricas.
Isso implica que uma tese nem sempre possui apenas uma antítese, e uma mesma tese e uma
mesma antítese podem estar unidas de forma diferente dependendo do contexto histórico em
que são abordadas30. Aqui a história do psicólogo penetra com toda força, pois a dialética
como uma lógica da totalidade necessita incluir a história do psicólogo. O contexto total é a
unidade autocontraditória da história de vida do estudioso e da vida histórica do seu objeto de
estudo, e só se determina completamente a partir do momento em que se torna objeto de
conhecimento. Como cada estudioso é atingido de forma diferente pela história, o contexto se
determina de forma diferente dependendo do estudioso que o penetra, e o conhecimento que
nasce dessa penetração é absoluto, pois o contexto conhece a si mesmo através do estudioso
que o pensa a partir de dentro.
Não basta simplesmente colocar o “não” na frente de um predicado para engendrar
uma verdadeira contradição. Se na lógica analítica basta pôr o não em uma proposição
afirmativa para construir uma proposição negativa, o mesmo não ocorre na dialética, que é
fiel a contingência histórica ao não deduzir a priori uma lista de pólos contrários com suas
respectivas sínteses. Dizer que o contrário de A é não-A é por demais indeterminado. Uma
coisa é A ou é não-A e assim conjunto A e não-A inclui tudo que existe de forma
indeterminada31. Afirmar por exemplo que a psicologia é uma disciplina subjetiva e não-
subjetiva é jogá-la na indeterminação, afinal tudo que não é subjetivo estaria incluído na
psicologia, podendo ser ela uma disciplina matemática, geológica, anatômica, enfim qualquer
coisa. Ao penetrarmos na história da psicologia veremos que a subjetividade e a objetividade
estão em luta, uma se afirmando sobre a outra, e assim atingiremos uma verdadeira oposição,
onde cada pólo é rico em conteúdos que se negam mutuamente. Aí teremos a chama
necessária para a dialética, visto que cada pólo determina-se porque os seus conteúdos negam
os conteúdos do pólo rival, e por isso precisa dele para poder se afirmar. Na contradição entre
a subjetividade e a objetividade há uma dialética concreta em ação.
Esta unidade que inclui a diferença é a mysterium coniunctionis, a separação e síntese
dos compostos que tanto fascinou os alquimistas e Jung depois deles. Esta unidade negativa
não é visível ao primeiro olhar. Apenas através da intensidade reflexiva da oposição que
constitui a prima matéria, é que ela é revelada-criada. No começo ela é apenas uma onda
indeterminada de possibilidades, mas que se coagula numa experiência particular no momento
que o estudioso abre todo o seu ser para receber o seu outro. Como o ser total do estudioso
está envolvido no processo de conhecer, o conceito contém a identidade negativa do estudioso
e do seu outro, sendo assim um conceito subjetivo-objetivo.
Esse processo não é restrito à subjetividade privada do homem, sendo virtualmente
presente em qualquer parte do real. Apenas a sensibilidade reflexiva do estudioso dirá se ele
está ou não diante de um processo dialético. Qualquer processo só é dialético se incluir a
subjetividade do estudioso, pois necessita dele para ser o que é. “O que a natureza deixou
incompleta, a arte aperfeiçoa”. Esse dito alquímico transparece que a natureza só é natureza
para o homem, visto que ninguém mais tem um conceito de natureza. Mas por ser natureza
apenas para o homem, ele é em sua própria natureza contra naturam.
Sem a oposição entre observador e observado não há a tensão necessária para a
dialética porque ela é a conservação-negativa dessa oposição. Supor um real em-si
incognoscível para o homem é para a dialética um nonsense, visto que o real só é real para o
homem e ninguém mais. É através do processo humano de conhecer o real que o real conhece
a si-mesmo, pois o real só é para o homem e por isso o inclui. O homem só conhece a si-
mesmo conhecendo o real de que faz parte, pois só é homem enquanto parte desse real.
Um pouco antes de começar a redigir os Tipos Psicológicos, Jung teve um sonho que
modificou o modo como planejava concretizar a obra. Sua intenção inicial era escrever o livro
de forma clara, lógica e apurada ao estilo de O Discurso do Método de Descartes.Entretanto,
ele fracassava ao tentar fazê-lo porque o estilo cartesiano não parecia adequado à imensa
riqueza do material que tinha nas mãos.
Quando se defrontou com essa dificuldade, ele sonhou com um enorme barco fora do porto,
carregado de maravilhosas mercadorias para a humanidade; o barco devia ser trazido para o
porto e as mercadorias distribuídas ao povo. Ligado a esse enorme barco estava um cavalo
árabe branco, muito elegante, bonito e delicado. Era um animal arisco e supunha-se que era ele
quem ia puxar o barco até o porto. Mas o cavalo era absolutamente incapaz de fazê-lo. Nesse
momento um enorme gigante de cabelos e barbas vermelhos atravessou a multidão empurrando
todo mundo. Ele pegou um machado, matou o cavalo branco e pegando a corda puxou o barco
até o porto, num único élan. Assim Jung percebeu que teria de escrever sob o fogo emocional
do que sentia e não se apegar a esse elegante cavalo branco. Daí ele foi levado por um
tremendo impulso de trabalho ou emoção e escreveu o livro praticamente de uma só vez,
levantando toda manhã às três horas da madrugada32.
A atitude cartesiana de Jung era personificada pelo cavalo árabe branco que por si só
era incapaz de levar o barco da sua obra adiante. O sonho compensou essa atitude através de
uma outra forma de consciência personificada pelo gigante ruivo cuja matança do cavalo
representa o sacrifício do intelecto necessário quando se lida com os produtos do
inconsciente. As duas figuras personificam duas formas de consciência, uma emocionalmente
bruta e a outra mentalmente refinada. O aparecimento de uma significava a morte da outra, e
o sonho poderia ser descrito como um movimento enantiodrômico onde o excesso de lógica
cartesiana transforma-se no seu oposto. Mas a lógica cartesiana, matriz do sujeito moderno, é
personificada no sonho por um animal, enquanto a emoção bruta é personificada por uma
figura humana. O animal possui uma bela e delicada brancura espiritual, enquanto o gigante
possui uma brutalidade rubra e animalesca. As imagens negam uma à outra ao mesmo tempo
em que partilham uma identidade profunda. Cada uma nega, mas é em sua própria negação a
afirmação da identidade com a outra negada.
O fruto do sonho é a obra na qual Jung envolveu-se mais extensamente com a tradição
histórica do logos. Quando as chamas emocionais incendiaram o seu pensamento ele pôde
assumir a forma implicitamente dialética que conhecemos hoje. O pensamento junguiano não
exclui unilateralmente as emoções como o faz a lógica tradicional, mas a conserva em sua
própria negação, pois a diferença entre eles é interna a ambos. Essa é a lógica implícita em
seus Tipos Psicológicos.
A função pensamento difere da função sensação de forma externa, indiferente, pois
elas não se definem mutuamente. Contudo, se penetrarmos na interioridade da função
pensamento a fim de determiná-la, de estabelecer sua identidade para descobrir de que modo
ela funciona, o que se encontra é uma outra forma de consciência negada. Esse estilo de
consciência chamada da função sentimento lida com os conteúdos psíquicos a partir do seu
valor afetivo enquanto a função pensamento estabelece conexões a partir de conceitos. Uma
complementa a outra ao mesmo tempo em que na sua mais íntima identidade a contradiz. A
função pensamento pode atuar a vontade com a função sensação e a função intuição, mas
quando se trata da função sentimento as faíscas se acendem, pois ela nega o seu
funcionamento. A identidade de cada uma se faz a partir da negação da outra, e exatamente
por isso precisa da outra para ser o que é, pois é precisamente a identidade da função
sentimento que ao ser negada torna possível a função pensamento, e vice-versa. A lógica é a
mesma na relação entre a função intuição e a função sensação33.
O conceito de inconsciente compensatório de Jung é o maior exemplo de como sua
psicologia era, implicitamente, dialética. O inconsciente compensa a consciência, sendo em
si-mesmo o outro interno a ela. O que para consciência é A, para o inconsciente é B, um
conteúdo que nega de forma determinada o conteúdo A. O inconsciente funciona como o
mundo invertido da consciência. Se uma pessoa é conscientemente introvertida encontrará o
inconsciente fora de si, nos outros externos. Se for conscientemente extrovertida o
inconsciente se manifestará através de elementos internos à sua personalidade. Como
ninguém é só um o tempo inteiro, o inconsciente é ora externo, ora interno. O próprio
conceito de inconsciente coletivo é a inversão do conceito de consciência coletiva. Em um
predomina o intelecto pragmático, no outro a imaginação lúdica, um é lógico-racional, o outro
é imaginativo-mítico, um se ocupa do progresso científico do presente para o futuro, o outro é
inundado por fantasias míticas que remontam a um passado primevo, um só acredita naquilo
que vê e pode conhecer, o outro é uma estrutura vazia e incognoscível. Nenhum é por si só a
verdade, mas só é na relação com o outro que o nega e por negá-lo o conserva. No fim de sua
vida pensando em sua obra como um todo Jung afirmou que ela enfatizava tudo aquilo que
havia sido relegado para as margens pela consciência coletiva.
Na opinião de Jung, seu trabalho proporcionava o que faltava no Ocidente. Em outras ocasiões,
ele se expressou com mais veemência a respeito de como fora recebido. Em 1958, disse para
Aniela Jaffé que a falta de receptividade demonstrada para seu trabalho não era surpresa, pois
sua obra era uma compensação. Tinha dito coisas que ninguém queria ouvir. Diante disso,
considerava maravilhoso o tanto de sucesso que seu trabalho tinha conseguido obter, e que não
poderia ter esperado mais34.
O velho Heráclito, que era realmente um grande sábio, descobriu a mais fantástica de todas as
leis da psicologia: a função reguladora dos contrários. Deu-lhe o nome de enantiodromia
(correr em direção contrária), advertindo que um dia tudo reverte em seu contrário35.
Neste local estático abstraído de ambos os pólos, ele escapou da dissolução dialética
não pagando o preço exigido pela enantiodromia, continuando a pensar os opostos
externamente. Mas a enantiodromia diz que quando algo torna-se absolutamente idêntico a si-
mesmo, afirmando-se em sua máxima intensidade, nega-se tornando-se o seu oposto. Em
termos lógicos isso revela que algo é absolutamente si-mesmo a partir do seu outro. A
absoluticidade de algo é a sua relativização não por um outro qualquer, mas pelo outro que
algo é. O absoluto é relação, identidade da sua identidade consigo mesmo e da sua diferença.
Algo é si-mesmo um outro-em-si , estando mais intimamente dentro de si ao exteriorizar-se
como um outro numa exterior-intimidade.
A enantiodromia exige que a consciência não se abstraia, mas seja ela mesma esse
movimento onde a intimidade absoluta nega-conserva-se como exterioridade absoluta, como
uma extimidade. É isso que os chineses tentavam expressar por meio do Tao. O problema é
que enquanto o diagrama Yin-Yang for uma imagem, um conteúdo da consciência, ele ainda
será estático. A consciência precisa se dissolver nele deixando-o permeá-la, tornando-se una
com ele em seu próprio movimento. Quando isso acontece cada pólo se revela-cria como
indivisível por doar-se ao seu outro, visto que sua indivisibilidade é em-si a sua doação,
individoação.
Jung afirmava que a psique era o terceiro excluído por conciliar a oposição entre esse
in intellectu e esse in re através da sua principal atividade, a fantasia37. Quando ele afirma
que a psique cria realidade todo dia e que o nome dessa realidade é fantasia, não precisamos
entender que primeiro existe uma realidade concreta, que contém um ser humano, que contém
uma psique em seu interior subjetivo, e que entre uma de suas inúmeras atividades está a de
transformar fantasia em realidade. Essa abstração extensiva não consegue captar a inter-
relação entre fantasia e realidade. Quando a razão abstrata afirma que algo é fantasia, significa
que não é realidade, que é uma criação subjetiva. Quando afirma a realidade de algo, nega que
esse algo seja uma fantasia, que pertença à esfera subjetiva do homem. Realidade e fantasia
são categorias reflexivas, negam uma à outra de forma absoluta, pois negam a outra
colocando-a como externa a si. Como são em si-mesmas essa negação da outra, também
negam a identidade abstrata de cada uma consigo mesma. Essa dupla negação é o que torna
fantasia e realidade a negação absoluta uma da outra, e por isso a afirmação absoluta uma da
outra. Psicologia é a consciência da realidade interna à fantasia e da fantasia interna a
qualquer realidade.
SIZÍGIA EM AÇÃO
A história recente foi testemunha de uma sizígia cuja tensão pôs o mundo inteiro de
sobreaviso diante da ameaça de total e completa destruição nuclear. De um lado os Estados
Unidos, autointitulado campeão da liberdade individual, mas cego para sua sombra
coletivista, para os movimentos massificantes da cultura pop fabricados por multinacionais
que manipulam tão eficientemente os gostos e opiniões pessoais ao ponto de fazerem os
indivíduos acreditarem que compram seus produtos de acordo com sua livre e espontânea
vontade. Do outro lado estava a União Soviética, autointitulada representante do socialismo
comunista, que para poder funcionar esmagava a liberdade individual ao mesmo tempo em
que cultuava certos indivíduos escolhidos pelo Partido para representarem a alma coletiva,
cujos exemplos mais significativos foram Lênin e Stalin. Ao redor da aura fornecida por eles
circulava uma elite que lutava pela abolição da propriedade individual, mas gozava dos
privilégios exclusivos daqueles que possuíam grande poder político. Cada metade do par
atuava a sombra da outra metade, sua extimidade. O resultado foram décadas de guerra fria e
paranóia nuclear.
Um outro exemplo da sizígia provém de uma paciente que procurou atendimento
queixando-se de de que ria em excesso. Tal queixa me surpreendeu já que geralmente as
pessoas procuram atendimento psicológico por excesso de tristeza e não por rirem à toa. Sua
queixa era de que seu riso se dava de uma forma descontrolada e nas situações mais
constrangedoras. Uma vez presenciou uma senhora cair na rua e enquanto alguns pedestres
tentavam ajudá-la, a paciente não conseguia parar de rir, mesmo que por dentro sentisse que
devia ajudar a senhora e não constrangê-la ainda mais. Quando estava na igreja ria das
pessoas que ao subirem no altar erravam a leitura de trechos da Bíblia devido ao nervosismo,
constrangendo-as ainda mais e a si mesma por não conseguir se controlar ao ponto de ter que
sair da igreja para não atrapalhar a cerimônia. Nas situações mais improváveis ela caia na
gargalhada mesmo que usasse todas as suas forças para se conter.
Ela também se queixava de que sua memória era péssima. Era comum ela sair de casa
para resolver algo importante e esquecer o que era no meio do caminho. Ela contou que
tentava controlar sua risada lembrando de certas cenas tristes da sua vida, apesar de ter
esquecido a maioria. Mas uma que sempre recorria para se conter era a morte do pai ocorrida
na sua infância. Ela guarda poucas imagens dele na memória, mas lembra que ele traia sua
mãe constantemente e que por causa disso eles brigavam muito. Ele morreu assassinado por
uma das suas amantes. Apesar das esparsas lembranças ela recordou de algumas cenas da
infância, das brigas que tinha com a mãe, que ela sentia como bastante controladora, e que se
enfurecia porque ela a desafiava constantemente. Às vezes as brigas acabavam em surras
violentas onde sua mãe agarrava sua cabeça e batia contra a parede.
O que o riso compulsivo ocultava era a tragicidade que atravessava sua vida. As
gargalhadas descontroladas e as falhas de memória eram sintomas que serviam de cura para
sua infância dolorosa. Ao servir de barreira esse sintoma presentifica em sua própria forma de
ser aquilo que tenta ausentificar, pois seu riso era permeado por uma agressividade que não
hesitava em humilhar as pessoas de quem ria, como seus dentes expostos ameaçassem
mastigar a dignidade delas. O que o sintoma revelava em seu próprio ocultar era o seu outro
interno, e o trabalho psicológico desenvolveu-se na busca da re-união desses opostos sem
desrespeitar a diferença que marca cada um. Era importante que ela levasse a sério os
aspectos trágicos da sua vida, respeitando sua importância, e ao mesmo tempo não os levasse
a sério demais, sabendo rir mesmo das piores situações, permitindo-se esquecer a tristeza o
suficiente para recomeçar a vida sem que o ressentimento a paralisasse. O sintoma é em si-
mesmo sua própria cura, e reconhecê-lo significa iniciar a consciência no mistério
tragicômico da vida, onde a gravidade do sério Mercúrius Senex anda de mãos dadas com a
leveza cômica do Mercúrius Puer.
Trata-se de um ritmo normal em reações humanas, ilustrado, por exemplo, no teatro clássico
grego, onde três tragédias são seguidas por uma comédia. Ninguém podia ir para casa depois
de ter visto Édipo Rei e duas outras peças no mesmo tom; tinha de haver no final uma das
comédias de Aristófanes, para que todos os espectadores rissem a bandeiras despregadas. Ou
existe o mecanismo típico em que, no momento mais solene de um funeral, uma pessoa vê
subitamente algo burlesco e tem uma reação nervosa que a faz querer rir. É o clímax de
excitação que se converte no desejo de rir; ninguém pode suportar por muito tempo uma
condição trágica exagerada, de modo que, ocasionalmente, sente-se compelida a levá-la para o
lado da troça. Isso também explica a Missa Jocosa da Idade Média. Durante 364 dias por ano, a
Missa e a Hóstia são recebidas com a maior seriedade e, um dia por ano, a liturgia era
simplesmente um motivo de chistes. Ou, no ritual dos índios norte-americanos, onde existe um
palhaço que pertence ao clã Thunderbird, que escarnece das cerimônias mais sagradas, fazendo
comentários obscenos e chistes a respeito delas38.
***
andre.mercurio@hotmail.com
NOTAS
* Este texto é parte do livro PSICOLOGIA DIALÉTICA: UMA CRÍTICA INTERNA À PSICOLOGIA
JUNGUIANA, escrito pelo autor e disponível em http://clubedeautores.com.br/book/3630--
Psicologia_Dialetica