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O paradoxo anímico
Assim resumida, a teoria parece bastante coerente e, na prática, tem sido usada com sucesso
como idéia reguladora do processo analítico no consultório dos terapeutas junguianos. No
entanto, olhada de perto, é também uma das áreas mais problemáticas da teoria junguiana, e
não foram poucos os autores que se enredaram em suas complexidades e contradições.
O paradoxo se torna ainda mais complicado diante da constatação banal de que, mesmo sem
ter uma anima, as mulheres afinal de contas têm sentimentos, da mesma forma que,
aparentemente, os homens não precisam de um animus para serem capazes do pensamento
racional. Mas a anima não é uma personificação do eros, o animus não é uma forma
personificada do logos?
Uma possível saída desse impasse seria presumir que todos os seres humanos nasceriam com
ambas as funções mas, ao longo do desenvolvimento da personalidade, na infância, uma delas
se tornaria o núcleo a partir da qual o ego seria construído, ficando a outra relegada ao
inconsciente. Assim, no homem, o animus torna-se o núcleo constituinte do ego, da mesma
forma que a anima seria a base sobre a qual se construiria o ego feminino. A idéia é boa e,
durante muito tempo, achei que ela resolvia o problema. Na verdade, sempre que eu deparava
com uma crítica às noções de anima e animus, eu a brandia quase que de maneira
apotropaica, como um amuleto para exorcizar a crítica, e o simples fato de usá-la desse jeito
deveria ser um sinal suficiente de que alguma coisa não estava certa. Porque a idéia é boa
mas, não, não resolve o problema. O que nos traz à outra questão levantada, o fato de, na
visão junguiana, o sentimento ser sempre feminino e o pensamento, masculino. Além disso,
essa contraposição freqüentemente recobre uma outra, que qualifica o feminino como passivo
e o masculino como ativo. É uma associação tradicional que a psicologia junguiana assumiu
integralmente, como se pode ver neste trecho de Reflexos da Alma, um livro tardio de Marie-
Louise von Franz sobre a projeção (de resto, excelente e leitura obrigatória): “Isso se relaciona
com o fato de que no homem a anima, enquanto fator formador de projeções, gera
principalmente projeções passivas, isto é, empáticas, que ligam o homem aos objetos; o
animus, por sua vez, gera projeções mais ativas, isto é ajuizadoras, que na verdade distanciam
a mulher do mundo dos objetos.”
Sexo e Temperamento. - Talvez essas atribuições soassem naturais na virada do século XIX
para o XX, quando Freud e Jung começaram a desenvolver o que depois seria conhecido como
psicologia profunda (designação coletiva que abrange a psicanálise e a psicologia analítica). Se
bem que, mesmo nessa época, já havia um movimento feminista efervescente, questionando
os estereótipos sexuais da sociedade, e o encontro com o feminismo recém-nascido está nas
próprias origens da psicanálise: sabe-se hoje que a célebre Anna O., a primeira paciente do
que Freud então chamava de talking cure, era a líder feminista alemã Bertha Pappenheim.
Mas, sim, o feminismo era uma tendência psíquica que ainda estava emergindo do
inconsciente coletivo, e sabe-se que integrar essas coisas leva tempo – a integração do
feminismo à consciência coletiva levou nada menos do que todo o século XX, se é que já pode
ser considerada como concluída. Portanto, não vamos criar caso, admitamos que essas
atribuições soavam naturais na virada do século XIX para o XX. E, olhando para trás, tem-se a
nítida impressão de que, pelo menos no ocidente, o sentimento sempre foi visto como
feminino e o pensamento como masculino. Ainda hoje, uma corrente que não tem nada a ver
com Jung, a psicologia evolucionista, tenta mostrar como a psique do homem e a da mulher
foram biologicamente condicionadas pelo processo evolutivo. Logo, além de naturais, essas
atribuições pareceriam universais, presentes “desde que o mundo é mundo”, o que bastaria
para qualificá-las como arquetípicas. Ou não?
À luz dos dados levantados por antropólogos e etnólogos, a resposta é um rotundo não. Um
dos clássicos da antropologia contemporânea, Sexo e Temperamento, de Margareth Mead,
mostra como, nas sociedades das ilhas Tobriand, no Pacífico, os papéis sexuais que a nós
parecem tão naturais que chegam a ser considerados como condicionados pela própria
biologia são inteiramente invertidos – os homens têm um temperamento mais passivo e
emotivo, ao passo que as mulheres são mais ativas e racionais. Claro, um fundamentalista
junguiano sempre poderia dizer que, nessa sociedade, todas as mulheres são possuídas por
seu animus e todos os homens têm uma identificação patológica com a anima, mas essa
explicação implicaria que a nossa atribuição de papéis sexuais é correta e a deles é distorcida,
e isso tem um nome – chama-se etnocentrismo.
Esses dados, é verdade, ainda não eram conhecidos na época em que Jung formulou o
conceito da contraparte sexual inconsciente. Mas hoje eles são conhecidos, e os psicólogos
junguianos não têm nenhuma desculpa para ignorá-los. Além disso, de qualquer forma,
mesmo na época de Jung, e no próprio material que ele usou para elaborar seu pensamento,
existem elementos suficientes para mostrar que a distribuição anima/sentimento/feminino-
animus/pensamento/masculino é uma simplificação que precisa ser revista. Por exemplo, Jung
dedicou um seminário inteiro à psicologia da Kundalini Yoga. Acontece que, dentro do
tantrismo (do qual a Kundalini Yoga é o aspecto prático), a energia feminina, chamada de
shakti, é considerada como ativa, ao passo que a energia masculina, Shiva, é passiva –
exatamente o oposto do pensamento ocidental.
A anima racional e o animus passional. - Além disso, considere-se o nome alternativo que os
junguianos dão à função sentimento – eros. Esse nome foi tomado de empréstimo à mitologia
grega, na qual Eros é um deus que aparece sob um duplo aspecto, ora como uma das
divindades primordiais do universo, ora como um filho de Afrodite. Mas, em ambos os casos,
Eros é caracterizado como masculino (ou, pelo menos, no caso da divindade primordial, como
andrógino). Reciprocamente, o logos ou função racional recebia, na mitologia grega, uma
personificação feminina – ninguém menos que Palas Atena. Essa identificação é tão forte que,
até hoje, a Razão é personificada com os atributos de Atena: foi dessa forma que ela apareceu
no início do poema de Parmênides, que muitos consideram o texto inaugural da filosofia no
ocidente, e em pleno século XVIII, durante a Revolução Francesa, os revolucionários
entronizaram uma atriz vestida como a deusa para simbolizar a vitória da Razão sobre os
deuses tradicionais da religião.
O sentimento, pois, pode ser masculino, da mesma forma que o pensamento pode ser
feminino. Existem representações arquetípicas para ambas as coisas. Atena deve ser
considerada como símbolo (entre outras coisas) de uma orientação racional da anima, e Eros,
bem como Dionísio, podem ser interpretados como um animus passional. Afinal, se levarmos
em conta a íntima relação de Dionísio com o universo feminino, é quase impossível não vê-lo
como uma forma do animus e, no entanto, quem seria capaz de, por qualquer lado que se
considere, situar Dionísio – com seus êxtases místicos, sua embriaguez e sua loucura – do lado
da racionalidade?
Isso não é tudo, porém. Sentimento e pensamento são apenas duas das quatro funções
psíquicas identificadas por Jung. As outras são a intuição e a sensação. Por que só as duas
primeiras devem ser vinculadas aos arquétipos da anima e do animus? A anima como musa
inspiradora não é uma demonstração eloqüente de que esse arquétipo também pode estar
ligado à intuição – e, de fato, não costumam os junguianos associar as inspirações súbitas que
brotam do inconsciente à atividade da anima? E na própria descrição que Jung e von Franz
fazem da anima como aquela que atrai o homem em direção ao mundo exterior, não
encontramos uma evidência de que ela possui também um aspecto sensorial? De outra parte,
encontramos a intuição e a sensação ligadas inextrincavelmente ao animus em seu aspecto de
puer – e Peter Pan é um exemplo marcante disso, ao mesmo tempo agindo por impulso e
sempre em busca de sensações extremas.
Encontramos um problema análogo na análise que Marie-Louise von Franz faz das visões de
Perpétua de Cartago, mártir cristã do início de nossa era: “Esses daimons, ou melhor, esse
daimon (pois os dois são idênticos”, diz Von Franz, “é antes uma figura arquetípica constelada
no inconsciente coletivo de todo o mundo da época, inclusive o não-cristão, um espírito de
renovação religiosa, cuja característica principal era aparecer diretamente ao indivíduo isolado
como espírito-guia. Ele será encontrado também como uma figura interior nos homens, na
Passio Perpetuae, ao contrário, ele deve ser entendido inequivocamente como a figura do
animus – espírito mediador.” Numa nota de rodapé, referindo-se às Metamorfoses de Apuleio
(cuja análise é o centro desse capítulo), a autora complementa: “Do mesmo modo que Ísis
atua como anima em Apuleio, embora ela possa ser entendida também em outras passagens
como ‘Ísis das mulheres’.”
Com todo o respeito devido à Marie-Louise von Franz – uma das mais sagazes intérpretes do
pensamento junguiano, cujas obras são a melhor porta de entrada para a psicologia analítica –
não existe nada de inequívoco nessa passagem. Como os espíritos vistos por Perpétua de
Cartago podem ser, ao mesmo tempo, um arquétipo constelado em todo o mundo antigo, que
aparece tanto para homens quanto para mulheres, e uma figura do animus, um arquétipo que
só existe na psicologia feminina? Como Ísis pode ser um arquétipo relevante para homens e
mulheres e, simultaneamente, um arquétipo que só faz parte da estrutura psicológica
masculina? Como a aparição de Coré pode ser significativa para os iniciados do sexo masculino
e do sexo feminino, se ela é uma figura da anima e a anima é exclusiva dos homens?
A única resposta possível, como já foi sugerido por James Hillman, um dos mais importantes
psicólogos pós-junguianos, é que a anima não é exclusiva dos homens e, conseqüentemente,
que o animus tampouco é um arquétipo que só existe na psicologia feminina.
Psyche e noûs. - Essa alternativa radical pode parecer chocante aos junguianos tradicionalistas,
que seguem o mestre by the book, mas está de acordo com as fontes originais nas quais Jung
se inspirou ao batizar seus conceitos. Anima é a tradição latina do grego psyche e animus
(também chamado de intellectus) é o equivalente em latim do grego noûs. Esses conceitos têm
uma longa história no pensamento grego – já estão presentes, por exemplo, em Homero e
fazem parte das representações que a cultura grega criou para dar conta da vida interior dos
seres humanos. Finalmente, a partir dos pensadores pré-socráticos, eles foram sistematizados
pela filosofia e ocupam uma posição de destaque em Platão, Aristóteles, nos estóicos e
neoplatônicos, sendo que os últimos foram uma influência determinante no gnosticismo, que
Jung considerava como um precursor direto de sua própria psicologia. Obviamente, de
Homero aos gnósticos, esses conceitos não permaneceram estáticos. Pelo contrário, passaram
por uma série de evoluções e transformações, de modo que a psyche de Homero não é a
mesma de Aristóteles, assim como o noûs platônico não é o pré-socrático. Mas um traço
permaneceu constante através de todo esse percurso – e, como esses elementos também
podem ser encontrados com outros nomes em tradições tão variadas quanto o xamanismo e a
ioga, talvez seja um traço realmente arquetípico, a saber: psyche, noûs e soma – ou animus,
anima e corpo – são universalmente considerados os três constituintes elementares da
natureza humana, independente do sexo. Em lugar algum há qualquer indício de que a psyche
seja um componente exclusivo do homem ou que o noûs pertença apenas às mulheres. As
mulheres são dotadas de psyches e os homens também possuem noûs.
Muito bem, então o homem tem um animus e a mulher tem uma anima. Nesse caso, como é
que eles nunca apareceram no material que surge nos consultórios clínicos? Por que a mulher
não sonha com sua anima, por que o homem não tem sonhos nos quais seu animus lhe
aparece? Muito simplesmente porque ninguém nunca procurou por eles. A identificação da
anima como sentimento feminino interior do homem é tão forte que não ocorre a ninguém a
possibilidade de encontrá-lo na psique das mulheres, e vice-versa. Os aspectos negativos do
animus masculino se confundem com a sombra, seus aspectos positivos misturam-se às
imagens do Si-mesmo – e a mesma coisa acontece, obviamente, com a anima feminina. Se
uma mulher sonha com um espírito-guia – como ocorreu com Perpétua de Cartago – o
psicólogo interpretará essa imagem como uma figura do animus. Entretanto, se um homem
tiver exatamente o mesmo sonho, esse espírito-guia será identificado ao Si-mesmo. Mas se o
espírito-guia é uma figura arquetípica, seu significado será o mesmo, quer o sonhador seja um
homem, quer seja uma mulher. Servir de guia pelos meandros do inconsciente não é uma
função do Si-mesmo, é o papel da anima e do animus. Na alma dos homens e das mulheres.