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Obras Literárias PERÍODO: ARCADISMO

PERÍODO: ARCADISMO ta de fidalguia e o nomeia Secretario do Reino.


Nesse mesmo ano publica a poesia épica “Uruguai”
O arcadismo brasileiro é uma estética do Era colo- (1769), uma obra-prima em que se encontram alguns
dos mais apreciáveis versos da língua portuguesa, que
nial da literatura brasileira. Assim como o lusitano, tem como tema a luta de portugueses e espanhóis con-
o arcadismo brasileiro defende uma poesia mais tra os índios de Sete Povos das Missões do Uruguai, ins-
simples, de imitação da natureza que se opunha ao talados nas missões jesuítas no atual Rio Grande do Sul,
Barroco, estética que lhe é anterior. Consideramos que não queriam aceitar as decisões do Tratado de Ma-
como marco literário a publicação do poema Obras, dri, que delimitava as fronteiras do sul do Brasil.
de Claudio Manuel da Costa, em 1768. Fonte: ebiografia. Disponível em:< https://www.ebiografia.com/basilio_
A reforma educacional pombalina (de Marquês de gama/>. Acesso em 22/05/2018.
Pombal) causa mudanças também no Brasil. Es-
sas mudanças permitiram a divulgação de ideais SOBRE A ESTRUTURA
iluministas no Brasil. Assim os ideais de igualdade,
liberdade e fraternidade pautaram a poesia desse Considerado um poema épico, o Uraguai é composto por:
período." • 1377 Versos decassílabos (dez sílabas poéticas em
fonte: https://www.infoescola.com/literatura/arcadismo-no-brasil/. cada linha);
Acesso em 05/06/2018.
• Versos brancos (sem rima);
• Cinco cantos(capítulos);
O URAGUAI - BASÍLIO DA GAMA • Ausência de estrofação;
SOBRE BASÍLIO DA GAMA • Apesar de não seguir o modelo clássico, é possível per-
ceber proposição, invocação, dedicatória, narrativa e epí-
Basílio da Gama (1741-1795) logo.
foi um poeta brasileiro, autor
do poema épico “Uruguai”, con-
siderado a melhor realização
no gênero épico no Arcadismo
brasileiro. É patrono da cadeira
n.4 da Academia Brasileira de
Letras. José Basílio da Gama
(1741-1795) nasceu no ar-
raial de São José dos Rios da
Morte, hoje Tiradentes, em Mi-
nas Gerais, no dia 08 de abril
de 1741. Ficando órfão muito
cedo, foi educado no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Ja-
neiro. Era noviço e pretendia ingressar na carreira eclesi-
ástica. Primeira capa do livro (1769)
Em 1759, após a expulsão dos padres da Companhia de
Jesus dos domínios portugueses, pelo Marques de Pom- O TEMA
bal, Basílio da Gama viaja para a Itália para completar
seus estudos. Em Roma, construiu uma carreira literária A obra retrata a conturbada execução do Tratado de Ma-
e em 1768 ingressou na Arcádia Romana, assumindo dri, que causou uma guerra travada por portugueses e
o pseudônimo de Termindo Sipílio, uma conquista única espanhóis contra índios e jesuítas pela conquista da Co-
entre os brasileiros da época. lônia de Sete Povos das Missões, na região do Uruguai.
Em 1765, Basílio da Gama escreve “Ode a Dom José I”, O poema, além de contar a expedição liderada pelo en-
rei de Portugal. Em 1767, voltou ao Rio de Janeiro e no tão Governador do Rio de Janeiro às Missões Jesuíticas
ano seguinte foi preso, acusado de ter amizade com os do Sul da América Latina (os Sete Povos do Uruguai), é
jesuítas. De acordo com um decreto recente, qualquer também um grande louvor ao Marquês de Pombal, cuja
pessoa que tivesse mantido comunicação com os jesu- postura era contrária aos jesuítas missionários.
ítas, deveria ficar exilada durante oito anos em Angola, Dedicado ao Ministro da Marinha e irmão de Pombal,
na África. Mendonça Furtado, que trabalhou na demarcação dos
Preso, Basílio da Gama foi levado para Lisboa, mas livra- limites setentrionais entre Brasil e América Espanhola, o
-se da pena ao escrever um poema exaltando o casamen- poema demonstra certa simpatia do autor para com os
to da filha do Marques de Pombal “Epitalâmio às Núpcias indígenas e descreve os jesuítas como os grandes vilões
da Sra. D. Maria Amália” (1769), onde elogia o ministro e e verdadeiros culpados pelo conflito que deixou milhares
ataca os jesuítas. Com isso, muda o rumo do processo e de mortos.
passa a ser favorecido por Pombal, que lhe concede car-
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Período Arcadismo

RESUMO DO ENREDO Canto IV – Balda prepara o casamento de Baldeta com


Lindóia, inclusive com desfile militar, mas a índia não apa-
Antes do canto I há uma epígrafe (título ou frase que ser- rece. Por meio de Tanajura, Caitutu (irmão de Lindóia) vai
ve de tema ou introdução de assunto) retirada da epo- procurá-la no bosque e acaba encontrando-a, entre jas-
péia Eneida, de Virgílio: mins e rosas, encostada em uma pedra e com serpentes
enroladas em seu corpo. Depois de hesitar 3 vezes, Caitu-
At specus, et Caci detecta apparuit ingens tu lança uma flecha e acerta a cobra na cabeça, mas era
Regia et umbrosae penitus patuere cavernae tarde e Lindóia morre como a rainha egípcia (Cleópatra).
Mas a caverna, e o imenso reino de Caco apareceu Quando o malvado Balda descobre que Lindóia morreu,
fica irritado e ordena que não seja velada e que não cho-
descoberto, e o sombrio inferno se abriu por completo rem por ela, pois sem ela seu plano não se concretiza-
ria. Nesse meio tempo, chega um índio avisando que os
Na página seguinte aparece um poema exaltando os fei- exércitos estavam se aproximando. Então Balda bate em
tos e sugerindo que se erguesse uma estátua do Conde retirada, antes, porém, vinga-se da feiticeira Tanajura:
de Oieras, futuro Marquês de Pombal. amarrou-a dentro de uma das casas e ateou fogo em
toda a cidade. O general Gomes Freire de Andrade chega
à Missão e encontra tudo queimado e em ruína, quando
Canto I – O poema inicia com a descrição do campo de se aproxima dos restos da igreja e vê uma pintura no
batalha e com o louvor da vitória do herói que venceu teto.
os selvagens do Uruguai, os quais ousaram afrontar os
justos reis europeus. Então dedica o poema a Francis-
co Xavier de Mendonça Furtado e em seu nome passa a
narrar o acontecimento. No campo das Mercês, o exér-
cito espanhol se une ao português, os oficiais são apre-
sentados e os batalhões desfilam em revista. O general
Gomes Freire de Andrade expõe os motivos da guerra: o
tratado de Madri e a desobediência dos jesuítas.

Canto II – Os exércitos avançam e se encontram com


uma comitiva de índios. O general tenta dialogar diploma-
ticamente com eles e ouve o líder dos indígenas, Cacam-
bo. O argumento
do guerreiro é o de que os brancos eram muito cruéis,
mas as armas podem dar lugar à razão. Além disso su- A Morte De Lindoia,  De José Maria De Medeiros
geriu que se a Espanha queria dar terras a Portugal, que (1849-1925)
desse Buenos Aires ou Corrientes. Finaliza o argumento
dizendo que os brancos têm interesse no que os índios
produzem e que acredita nos padres jesuítas. Canto V – Tal pintura tematizava as conquistas e os pla-
Da mesma maneira, o general Andrade argumenta que nos de expansão dos jesuítas. E então o general entende
apenas quer a paz, mas que não perderá a autoridade. as conspirações e descreve a Companhia de Jesus como
Explica ao guerreiro que os índios são escravizados pelos entidade que submete os índios, províncias e até mesmo
jesuítas e que a causa pela qual lutam não é deles e sim reino aos seus desígnios. Os fugitivos foram capturados,
dos padres, que querem formar um império tirânico no houve a rendição e as juras de fidelidade ao rei.
sul, sem obedecer às leis portuguesas, nem espanholas.
Nesse momento o índio Sepé, que acompanha Cacambo,
grita que a terra sempre foi de seus antepassados e que
ela pertencia aos descendentes dos nativos.
Como os diálogos fracassaram, houve uma provocação
do jovem Baldeta, que foi atacado e ao fugir assustado
deixa cair as rédeas e as flechas, intervém Tatu-Guaçu,
com o peito protegido por uma pele de jacaré que ele
mesmo caçara. Sepé é atingido por um tiro dado pelo
próprio general e morre. Os índios batem em retirada.

Canto III – Andrade vai em direção às missões, mas re-


solve acampar perto do rio Uruguai. Cacambo, que ainda
estava por perto, tem um sonho em que o índio Sepé pe-
dia a ele que vingasse sua morte queimando o acampa-
mento dos soldados. Cacambo resolve agir, ateia fogo à
mata próxima ao acampamento e o incêndio se alastra
rapidamente, então o guerreiro se joga no rio e vai em
direção à Sacramento. O fogo acaba sendo controlado
pelo exército. Ruínas da catedral de São Miguel, um dos sete povos
Ao retornar, Cacambo é recebido pelo padre Balda, que, das Missões fundado por Guarani e jesuítas em 1632.
na verdade, tinha um plano maligno: casar a esposa de
Cacambo – Lindóia – com seu filho Baldeta e, assim, as-
sumir definitivamente a liderança dos índios. O malvado
padre dá ao guerreiro uma bebida envenenada e ele mor-
re, antes mesmo de rever a sua amada.
Lindóia se desespera e é com a ajuda da feiticeira Tana-
jura que entende toda a situação, ficando inconsolável e
desnorteada.

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Período Arcadismo

TESTES
b) em O Contrato Social, Rousseau aborda a origem da
01 (USC) – Por sua temática, O Uraguai, de Basílio da Autoridade;
Gama, pode ser considerado um poema:
c) a burguesia conhece, então, acentuado declínio em
a) épico; seu prestígio;
b) lírico; d) o adiantamento cientifico é uma das marcas desta
c) satírico; época histórica.
d) de escárnio;
06 (VUNESP)
e) de profecia.
“Quem vê girar a serpe da irmã no casto seio,
02 (UM - SP) – Sobre o poema O Uraguai, é correto Pasma, e de ira e temor ao mesmo tempo cheio
afirmar que: Resolve, espera, teme, vacila, gela e cora,
a) o herói do poema é Diogo Álvares, responsável pela Consulta o seu amor e o seu dever ignora.
primeira ação colonizadora na Bahia; Voa a farpada seta da mão, que não se engana;
b) o índio Cacambo, ao saber da morte de sua amada, Mas aí, que já não vives, ó mísera indiana!”
Lindoia, suicida-se;
c) escrito em plena vigência do Barroco, filiou-se à cor- Nestes versos de Silva Alvarenga, poeta árcade e ilus-
rente cultista; trado, faz-se alusão ao episódio de uma obra em que a
d) os jesuítas aparecem como vilões enganadores dos heroína morre. Assinale a alternativa correta em que se
índios; mencionam o nome da heroína (1), o título da obra (2) e
o nome do autor (3):
e) segue a estrutura épica camoniana, com versos de-
cassílabos e estrofes em oitava rima. a) Moema; (2) Caramuru; (3) Santa Rita Durão;
b) Marabá; (2) Marabá; (3) Gonçalves Dias;
03 (UFSM - RS) – poema épico O Uraguai, de Basílio c) Lindoia; (2) O Uraguai; (3) Basílio da Gama;
da Gama, é uma: d) Iracema; (2) Iracema; (3) José de Alencar;
a) composição que narra as lutas dos índios de Sete Po- e) Marília; (2) Marília de Dirceu; (3) Tomás A. Gonzaga.
vos das Missões, no Uruguai, contra o exército espanhol/
português, sediado lá para pôr em prática o Tratado de 07 (ITA) – Dadas as afirmações:
Madri;
b) das obras mais importantes do Arcadismo no Brasil, I) O Uruguai, poema épico que antecipa em várias dire-
pois foi a precursora das Obras Poéticas de Cláudio Ma- ções o Romantismo, é motivado por dois propósitos indis-
nuel da Costa; farçáveis: exaltação da política pombalina e antijesuitismo
c) exaltação à terra brasileira, que o poeta compara ao radical.
paraíso, o que pode ser comprovado nas descrições, II) O (a) autor(a) do poepoema épico Vila Rica, no qual exal-
principalmente do Ceará e da Bahia; ta os bandeirantes e narra a história da atual Ouro Preto,
d) crítica a Diogo Álvares Correia, misto de missionário e desde a sua fundação, cultivou a poesia bucólica, pastoril,
colono português, que comanda um dos maiores exter- na qual menciona a natureza como refúgio.
mínios de índios da história; III) Em Marília de Dirceu, Marília é quase sempre um vo-
e) exaltação à índia Lindoia, que morre após Diogo Álva- cativo; embora tenha a estrutura de um diálogo, a obra é
res decidir-se por Moema, que ajudava os espanhóis na um monólogo - só Gonzaga fala, raciocina; constantemen-
luta contra os índios. te cai em contradição quanto à sua postura de Spastor e
sua real idade de burguês.
04 (UFRS) – Assinale a afirmativa incorreta em rela- Está(ão) correta(s):
ção à obra O Uraguai, de Basílio da Gama. a) Apenas I;
a) O poema narra a expedição de Gomes Freire de Andra- b) Apenas II;
da, Governador do Rio de Janeiro, às missões jesuíticas c) Apenas I e II;
espanholas da banda oriental do rio Uruguai;
d) Apenas I e III;
b) O Uraguai segue os padrões estéticos dos poemas épi-
cos da tradição ocidental, como a Odisseia, a Eneida e Os e) Todas.
Lusíadas;
c) Basílio da Gama expressa uma visão europeia em rela- 08 Em seu poema épico, tenta conciliar a louvação do
ção aos indígenas, acentuando seu caráter bárbaro, inca- Marquês de Pombal e o heroísmo do índio. Afasta-se do
paz de sentimentos nobres e humanitários; modelo de Os Lusíadas e emprega como maravilhoso o
d) Nas figuras de Cacambo e Sepé Tiaraju está represen- fetichismo indígena. São heróis desse poema:
tado o povo autóctone que defende o solo natal; a) Cacambo, Lindóia, Moema;
e) Lindoia, única figura feminina do poema, morre de b) Diogo Álvares Correia, Paraguaçu, Moema;
amor após o desaparecimento de seu amado Cacambo.
c) Diogo Álvares Correia, Paraguaçu, Tanajura;
05 A respeito da época em que surgiu o Arcadismo: d) Cacambo, Lindoia, Gomes Freira de Andrade;
e) n.d.a.
a) os “enciclopedistas” construíram os alicerces filosófi-
cos da Revolução Francesa;

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Período Arcadismo

( ) A guerra, cujas causas são inquiridas por Catâneo,


09 (UFSM) – O momento da refeição sempre foi uma ocupará grande parte do relato, o que confere à obra
ocasião para conversar. Em O Uraguai, de Basílio da seu tom épico, ainda que certas passagens de O Uraguai
Gama, o narrador aproveita o banquete dos oficiais, que também apresentem traços de puro lirismo.
se segue ao desfile das tropas portuguesas, no Canto I, ( ) O poema é todo composto em versos decassílabos
para apresentar as causas da guerra, conforme mostra brancos, predominantemente de ritmo heroico, como se
o excerto a seguir. pode ver claramente no excerto.
[...] ( ) A glorificação do General Gomes Freire de Andrade
Convida o General depois da mostra, no excerto evidencia que ele é o herói do poema, sím-
bolo da civilização europeia que chega aos Sete Povos e
Pago da militar guerreira imagem, que se contrapõe aos indígenas, apresentados no poema
Os seus e os espanhóis; e já recebe como selvagens, sem quaisquer qualidades heroicas.
No pavilhão purpúreo, em largo giro,
A sequência correta é
Os capitães a alegre e rica mesa.
Desterram-se os cuidados, derramando a) F – V – V – F;
Os vinhos europeus nas taças de ouro. b) V – V – F – F;
Ao som da ebúrnea cítara sonora c) V – F – F – V;
Arrebatado de furor divino d) F – F – V – F;
Do seu herói, Matúsio celebrava e) V – F – V – V.
Altas empresas dignas de memória.
[…] 10 (UnB - DF) – Marque a opção que identifica autor,
Levantadas as mesas, entretinham obra e escola a que pertence o seguinte trecho.
O congresso de heróis discursos vários. “Inda conserva o pálido semblante
Ali Catâneo ao General pedia Um não sei quê de magoado e triste,
Que do princípio lhe dissesse as causas Que os corações mais duros enternece.
Da nova guerra e do fatal tumulto. Tanto era bela no seu rosto a morte!”
A partir da leitura do fragmento, bem como da obra a que a) Gonçalves Dias/ I-Juca Pirama/ Romantismo;
pertence, assinale verdadeira (V) ou falsa (F) em cada b) Castro Alves/ vozes d’África/ Romantismo;
afirmativa a seguir.
c) Santa Rita Durão/ Caramuru/ Arcadismo;
( ) Ao introduzir, no Canto I, as causas da guerra, per- d) Basílio da Gama/ O Uraguai/ Arcadismo;
cebe-se a preocupação do narrador em contar a história
respeitando a ordem cronológica dos eventos, o que se e) n.d.a.
dá desde o início do poema.

ANOTAÇÕES

GABARITO
01. a 02. d 03. a 04. c 05. d 06. c 07. d 08. d 09. a 10. d

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Obras Literárias PERÍODO: ROMANTISMO

PERÍODO LITERÁRIO: ROMANTISMO O Romantismo é a primeira escola literária a se de-


senvolver no Brasil após a Independência. No país re-
cém-nascido, há uma necessidade de autoafirmação e,
O que é o Romantismo? Uma escola, uma ten- nesse momento, os românticos cumprem a missão de
dência, uma forma, um fenômeno histórico, um “cantar” o país, sua natureza e sua gente. A emotividade
estado de espírito? Provavelmente tudo isto jun- romântica funde-se à empolgação nacionalista e esse
to e cada item separado. Ele pode apresentar-se será o grande assunto da primeira geração de poetas
como uma dentre uma série de denominações românticos brasileiros: a exaltação à pátria – a criação
como Classicismo, Barroco, maneirismo[...], que de uma identidade nacional a partir da idealização pró-
traduzem as qualidades e estruturas de uma pria dos artistas românticos.
obra de arte. Mas o Romantismo designa tam-
bém uma emergência histórica, um evento só-
cio-cultural. Ele não é apenas uma configuração O NACIONALISMO ROMÂNTICO
estilística [...]. Mas é também uma escola histori-
camente definida, que surgiu num dado momen- O Romantismo é a escola da idealização. Por isso, o ar-
to, em condições concretas e com respostas ca- tista dessa época não está apegado à realidade concre-
racterísticas à situação que se lhe apresentou. ta; tudo é visto sob a ótica da imaginação e da fantasia.
J. Guinsburg Dessa forma, o romântico, ao falar de Brasil, aborda-o
de forma idealizada, ou seja, serão ignoradas as falhas
sociais e o destaque estará todo na exaltação do país.
• Liberdade de criação e de expressão; Como você já percebeu, o nacionalismo romântico fez
• Anticlassicismo; um grande elogio ao país. E dois motivos se destacaram
• Subjetividade; nessa poesia de exaltação: sua natureza e sua gente.
Estudemos rapidamente esses dois temas:
• Emoção – paixão – sonho;
• Supervalorização dos sentimentos; • Nas referências à natureza brasileira, são explo-
rados seus aspectos exóticos e pitorescos para a
• Expressão sentimental; construção de um elogio às belezas naturais da na-
• Nacionalismo; ção;
• Idealização.

ROMANTISMO: POESIA

A poesia do período romântico se desenvolveu em três


gerações disntintas, que, embora tivessem as caracte-
rísticas comuns da idealização da realidade e da expres-
são sentimental, diferenciaram-se por apresentarem
ênfases diferentes, reveladas de acordo com o momen-
to em que estavam inseridas:
• 1ª geração: nacionalista;
• 2ª geração: ultrarromântica; O último tamoio, Rodolfo Amoedo
• 3ª geração: poesia social.
• Indianismo: o índio é o traço nativo da formação do
A 1ª GERAÇÃO DA POESIA ROMÂNTICA povo brasileiro. Nessa época ele foi caracterizado
como um “herói”: corajoso, um guerreiro valente,
e, além disso, leal, honesto e extremamente bom.
Essa idealização indígena é uma forma de exaltação
do brasileiro, pois o índio, enquanto nativo do Brasil,
será tomado como símbolo dos valores naturais do
povo brasileiro.

Atenção!
O indianismo é inspirado no mito do bom selvagem
(Jean-Jacques Rousseau)
Vista do Rio de Janeiro, Hagedorn, M C. Maya
Domínio | Obras Literárias 5
Período Romantismo

O índio brasileiro, caracterizado como o “bom sel- conteúdo;


vagem”, também aparece nos principais poemas • Ele e José de Alencar são os maiores autores do
épicos do período árcade: O Uraguai (Basílio da nacionalismo romântico;
Gama) e O Caramuru (frei Santa Rita Durão) • Foi um poeta popular já em sua época;
• Sua obra abrange as poesias lírica e épica, estudos
ÚLTIMOS CANTOS - GONÇALVES DIAS linguísticos e etnográficos, memórias históricas, pe-
ças de teatro, relatórios científicos e educacionais e
SOBRE GONÇALVES DIAS traduções (muitas dessas obras foram publicadas
postumamente).
“Gonçalves Dias se destaca no medíocre panora-
ma da primeira fase romântica pelas qualidades PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA POESIA DE GOM-
superiores de inspiração e consciência artística. ÇALVES DIAS
Contribui ao lado de José de Alencar para dar à
literatura, no Brasil, uma categoria perdida des-
de os árcades maiores e, ao modo de Cláudio Ma- “Dos escritores românticos, é o mais decoroso
nuel, fornece aos sucessores o molde, o padrão a e elegante, embora não seja menos forte na ex-
que se referem como inspiração e exemplo.” pressão nem menos rico na personalidade.”
Antonio Candido Antonio Candido

• Nacionalismo;
Antônio Gonçalves Dias (1823-64) foi filho de um co-
merciante português e de uma índia mestiça ou cafusa. • Indianismo;
Bacharelou-se em Direito em Portugal, mas ficou conhe- • Traços autobiográficos;
cido pelo trabalho com as letras. Além de poeta, foi pro- • Religiosidade;
fessor e jornalista. Em 1859, chefiou um uma expedição • Nacionalismo saudosista: por muitas vezes, Gon-
científica de etnografia, em missão do governo, atraves- çalves Dias esteve no exterior. Lá, fez poemas líricos
sando o Ceará e o Amazonas. Em 1861 e 62, fez novas nos quais expressou a saudade da pátria, como, por
viagens pelo Norte, pelos rios Madeira e Negro. Na vida exemplo, a famosíssima Canção do Exílio;
sentimental, apesar do prestígio que tinha, não pode ca-
sar-se com o seu grande amor, Ana Amélia Ferreira do • Poesia amorosa marcada pela frustração e pela
Vale, porque a mãe da moça não aceitara o casamento melancolia: na lírica amorosa, o autor cria um Eu -
da filha com um mestiço. poético que exprime a tristeza de uma vida amorosa
infeliz;
• Vocabulário: além do português culto, o poeta tam-
NACIONALISTA bém usa palavras típicas e expressões da língua
tupi;
Maior nome da poesia nacio- • Preferência pelos versos rimados e metrificados;
nalista romântica brasileira, • Virtuosismo formal: seguro das técnicas de versifi-
Gonçalves Dias está mais li- cação, Gonçalves Dias é capaz de usar de diferentes
gado, porém, à poesia india- métricas e ritmos.
nista. Isso se deve ao fato de
ninguém ter conseguido criar
versos tão líricos, belos e mag- “O exame de sua poética revela um consciente
níficos quantos os que o poe- utilizador de seus recursos, tendo-se valido da
ta maranhense dedicou aos métrica, ritmo, imagens, linguagens, como um
costumes, crenças, tradições consumado artífice do verso. Praticou todos os
dos índios brasileiros, por ele metros, variando de tipo dentro do mesmo poe-
considerados como verdadei- ma, ou de obra em obra.”
ros representantes de nossa Afrânio Coutinho & J. Galante de Sousa
cultura nacional. A figura do
indígena ganha tons míticos e épicos dentro da poesia,
capazes de colocar à tona toda a sua harmonia com
a natureza, sua honra, virtude, coragem e sentimentos SOBRE ÚLTIMOS CANTOS
amorosos, mesmo que isso muitas vezes signifique uma
imagem idealizada e exacerbada de sua vida quotidiana. Publicado em 1851, Últimos Cantos é a terceira
É, apesar de todo esforço nacionalista, o resquício da coletânea de poemas publicada por Gonçalves Dias.
visão que os povos da Europa tinham do selvagem da O livro é dividido em três partes: Poesias Americanas,
América, aliada a uma tentativa de conciliação entre a Poesias Diversas e Hinos.
sua imagem e os ideais e honras do cavaleiro medieval
europeu, fartamente cantado no Romantismo.
SELEÇÃO DE POEMAS PARA LEITURA E ESTUDO
Mais do que uma vigorosa exaltação nacionalista, alguns
dos versos que Gonçalves Dias dedicou aos índios ser-
vem e muito para denunciar os três séculos de destrui- O gigante de pedra
ção que os colonizadores impuseram às suas culturas.
I
• É considerado um dos maiores poetas brasileiros Gigante orgulhoso, de fero semblante,
de todos os tempos; Num leito de pedra lá jaz a dormir!
• Revelou-se um poeta com domínio da forma e do Em duro granito repousa o gigante,
6 Domínio | Obras Literárias
Período Romantismo

Que os raios somente puderam fundir. Depois outro sol desponta,


E outra noite também,
Dormido atalaia no serro empinado
Outra lua que aos céus monta,
Devera cuidoso, sanhudo velar;
Outro sol que após lhe vem:
O raio passando o deixou fulminado,
Após um dia outro dia,
E à aurora, que surge, não há de acordar!
Noite após noite sombria,
Co’os braços no peito cruzados nervosos, Após a luz o bulcão,
Mais alto que as nuvens, os céus a encarar, E sempre o duro gigante,
Seu corpo se estende por montes fragosos, Imóvel, mudo, constante
Seus pés sobranceiros se elevam do mar! Na calma e na cerração!
Corre o tempo fugidio,
De lavas ardentes seus membros fundidos Vem das águas a estação,
Avultam imensos: só Deus poderá Após ela o quente estio;
Rebelde lançá-lo dos montes erguidos, E na calma do verão
Curvados ao peso, que sobre lhe ‘stá. Crescem folhas, vingam flores,
E o céu, e as estrelas e os astros fulgentes Entre galas e verdores
São velas, são tochas, são vivos brandões, Sazonam-se frutos mil;
E o branco sudário são névoas algentes, Cobrem-se os prados de relva,
E o crepe, que o cobre, são negros bulcões. Murmura o vento na selva,
Azulam-se os céus de anil!
Da noite, que surge, no manto fagueiro
Quis Deus que se erguesse, de junto a seus pés, Tornam prados a despir-se,
A cruz sempre viva do sol no cruzeiro, Tornam flores a murchar,
Deitada nos braços do eterno Moisés. Tornam de novo a vestir-se,
Tornam depois a secar;
Perfumam-no odores que as flores exalam, E como gota filtrada
Bafejam-no carmes de um hino de amor De uma abóbada escavada
Dos homens, dos brutos, das nuvens que estalam, Sempre, incessante a cair,
Dos ventos que rugem, do mar em furor. Tombam as horas e os dias,
Como fantasmas, sombrias,
E lá na montanha, deitado dormido
Nos abismos do porvir!
Campeia o gigante, — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido, E no féretro de montes
A fronte nas nuvens, os pés sobre o mar! Inconcusso, imóvel, fito,
Escurece os horizontes
II
O gigante de granito.
Banha o sol os horizontes, Com soberba indiferença
Trepa os castelos dos céus, Sente extinta a antiga crença
Aclara serras e fontes, Dos Tamoios, dos Pajés;
Vigia os domínios seus: Nem vê que duras desgraças,
Já descai p’ra o ocidente, Que lutas de novas raças
E em globo de fogo ardente Se lhe atropelam aos pés!
Vai-se no mar esconder;
III
E lá campeia o gigante,
Sem destorcer o semblante, E lá na montanha deitado dormido
Imóvel, mudo, a jazer! Campeia o gigante! — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
Vem a noite após o dia,
A fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!...
Vem o silêncio, o frescor,
E a brisa leve e macia, IV
Que lhe suspira ao redor;
E da noite entre os negrores, Viu primeiro os íncolas
Das estrelas os fulgores Robustos, das florestas,
Brilham na face do mar: Batendo os arcos rígidos,
Brilha a lua cintilante, Traçando homéreas festas,
E sempre mudo o gigante, À luz dos fogos rútilos,
Imóvel, sem acordar! Aos sons do murmuré!

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Período Romantismo

E em Guanabara esplêndida Porém se algum dia fortuna inconstante


As danças dos guerreiros, Puder-nos a crença e a pátria acabar,
E o guau cadente e vário Arroja-te às ondas, o duro gigante,
Dos moços prazenteiros, Inunda estes montes, desloca este mar!
E os cantos da vitória
Leito de folhas verdes
Tangidos no boré.
Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
E das igaras côncavas À voz do meu amor moves teus passos?
A frota aparelhada, Da noite a viração, movendo as folhas,
Vistosa e formosíssima Já nos cimos do bosque rumoreja.
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mas que frágeis, Eu sob a copa da mangueira altiva
Os ventos contrastar: Nosso leito gentil cobri zelosa
E a caça leda e rápida Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.
Por serras, por devesas,
E os cantos da janúbia Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Junto às lenhas acesas, Já solta o bogari mais doce aroma!
Quando o tapuia mísero Como prece de amor, como estas preces,
Seus feitos vai narrar! No silêncio da noite o bosque exala.

E o germe da discórdia Brilha a lua no céu, brilham estrelas,


Crescendo em duras brigas, Correm perfumes no correr da brisa,
Ceifando os brios rústicos A cujo influxo mágico respira-se
Das tribos sempre amigas, Um quebranto de amor, melhor que a vida!
— Tamoi a raça antígua, A flor que desabrocha ao romper d’alva
Feroz Tupinambá. Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Lá vai a gente impróvida, Eu sou aquela flor que espero ainda
Nação vencida, imbele, Doce raio do sol que me dê vida.
Buscando as matas ínvias,
Donde outra tribo a expele; Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Jaz o pajé sem glória, Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Sem glória o maracá. Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!
Depois em naus flamívomas
Um troço ardido e forte, Meus olhos outros olhos nunca viram,
Cobrindo os campos úmidos Não sentiram meus lábios outros lábios,
De fumo, e sangue, e morte, Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
Traz dos reparos hórridos A arazóia na cinta me apertaram.
D’altíssimo pavês:
Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
E do sangrento pélago
Já solta o bogari mais doce aroma
Em míseras ruínas
Também meu coração, como estas flores,
Surgir galhardas, límpidas
Melhor perfume ao pé da noite exala!
As portuguesas quinas,
Murchos os lises cândidos Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
Do impróvido gaulês! À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
V
A brisa da manhã sacuda as folhas!
Mudaram-se os tempos e a face da terra,
Cidades alastram o antigo paul; I – JUCA PIRAMA
Mas inda o gigante, que dorme na serra,
ENREDO
Se abraça ao imenso cruzeiro do sul.

Nas duras montanhas os membros gelados, O poema nos é apresentado em dez cantos, organizados
Talhados a golpes de ignoto buril, em forma de composição épico-dramática. Os narrado-
Descansa, ó gigante, que encerras os fados, res ( um “eu narrador” e o velho Timbira que a toda ação
Que os términos guardas do vasto Brasil. assistira) enfatizam, na história contada, sentimentos
que elevam a grandeza de caráter do índio: heroísmo,

8 Domínio | Obras Literárias


Período Romantismo

generosidade e honra. No centro da taba se estende um terreiro,


Onde ora se aduna o concílio guerreiro
CANTO I: apresentação e descrição da tribo dos Timbi- Da tribo senhora, das tribos servis:
ras. O guerreiro Tupi é o centro da festa que lhe tirará a Os velhos sentados praticam d’outrora,
vida, já que foi feito prisioneiro. É descrito o rito do corte
de cabelo e da tintura do corpo. E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.
CANTO II: narração da festa canibal. O rito de sacrifício
do herói Tupi que não se consumará. É notada a melan-
colia do jovem guerreiro Tupi. E a ele é perguntado: “Que IV
temes, guerreiro?”
Meu canto de morte,
CANTO III: este canto é breve e narra a apresentação Guerreiros, ouvi:
do guerreiro Tupi, a quem é solicitado que se apresente
e cante os seus feitos. A ele também é permitido que se Sou filho das selvas,
defenda, O Tupi comove. Nas selvas cresci;
CANTO IV: I-Juca Pirama faz seu comovente canto de Guerreiros, descendo
morte. Apresenta-se como guerreiro Tupi, fala de suas Da tribo tupi.
bravuras, das guerras de que participou, fala do pai que
é doente e cego e conta como caiu prisioneiro enquanto Da tribo pujante,
procurava por comida na seiva. Pede aos Timbiras que
o deixem viver para cuidar do seu pai. Que agora anda errante
Por fado inconstante,
CANTO V: narra a reação dos Timbiras depois de ouvi-
rem o canto de morte do guerreiro Tupi. Ele é acusado Guerreiros, nasci;
de covarde. Por isso os Timbiras não querem mais a Sou bravo, sou forte,
sua “carne vil”, que aos fortes enfraquece. Sou filho do Norte;
CANTO VII: o pai de I-Juca Pirama fala aos Timbiras e Meu canto de morte,
pede que o rito se cumpra. Mas o chefe dos Timbiras se Guerreiros, ouvi.
recusa a ouví-lo,alegando que o Tupi é fraco.
CANTO VIII: o pai maldiz o filho e roga-lhe pragas por ter VI
chorado em presença da morte. É o canto mais trágico
e ao mesmo tempo mais lírico do poema. -- Tu prisioneiro, tu?
O pai deseja ao filho as piores ofensas que um nobre              -- Vós o dissestes.
guerreiro possa vir a sofrer: não encontrar amor nas -- Dos índios?
mulheres, não ter onde dormir, um amigo para sepul-       -- Sim.
tá-lo, etc...
             -- De que nação?
CANTO IX: quando o pai do herói ia deixando a taba Tim-                     -- Timbiras.
bira, ouve um grito de guerra do filho guerreiro, que a
todos enfrenta com golpes incessantes. Convence, en- -- E a muçurana funeral rompeste,
tão, os Timbiras de que é corajoso. É afinal reconhecido Dos falsos manitôs quebrastes maça...
pelo pai como seu filho amado e honrado. -- Nada fiz... aqui estou.
CANTO X: o velho Timbira (narrador) reafirma ter sido       -- Nada! --
testemunha do que foi narrado por ele: “Meninos eu vi!”.              Emudecem;
Curto instante depois prossegue o velho:
FRAGMENTOS PARA ESTUDO -- Tu és valente, bem o sei; confessa,
Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo!
I -- Nada fiz; mas souberam da existência
No meio das tabas de amenos verdores, De um pobre velho, que em mim só vivia....
Cercadas de troncos -- cobertos de flores, -- E depois?...
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;       -- Eis-me aqui.
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,              -- Fica essa taba?
Temíveis na guerra, que em densas coortes -- Na direção do sol, quando transmonta.
Assombram das matas a imensa extensão. -- Longe?
      -- Não muito.
São rudos, severos, sedentos de glória,              -- Tens razão: partamos.
Já prélios incitam, já cantam vitória, -- E quereis ir?...
Já meigos atendem à voz do cantor:       -- Na direção do acaso.
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes, VIII
Condão de prodígios, de glória e terror!
“Tu choraste em presença da morte?
[...]
Na presença de estranhos choraste?

Domínio | Obras Literárias 9


Período Romantismo

Não descende o cobarde do forte; — Mimosa, indolente, resvalo no prado,


Pois choraste, meu filho não és! — Como um soluçado suspiro de amor! —
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros, “Eu amo a estatura flexível, ligeira,
Implorando cruéis forasteiros, Qual duma palmeira”,
Seres presa de via Aimorés. Então me respondem; “tu és Marabá:
“Quero antes o colo da ema orgulhosa,
X Que pisa vaidosa,
“Que as flóreas campinas governa, onde está.”
“Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
      Pois não, era um bravo; — Meus loiros cabelos em ondas se anelam,
Valente e brioso, como ele, não vi! — O oiro mais puro não tem seu fulgor;
E à fé que vos digo: parece-me encanto — As brisas nos bosques de os ver se enamoram
      Que quem chorou tanto, — De os ver tão formosos como um beija-flor!
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!”
Mas eles respondem: “Teus longos cabelos,
Assim o Timbira, coberto de glória, “São loiros, são belos,
      Guardava a memória “Mas são anelados; tu és Marabá:
Do moço guerreiro, do velho Tupi. “Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,
E à noite nas tabas, se alguém duvidava “Cabelos compridos,
      Do que ele contava, “Não cor d’oiro fino, nem cor d’anajá,”
Tornava prudente: “Meninos, eu vi!”.
————
MARABÁ
E as doces palavras que eu tinha cá dentro
Eu vivo sozinha, ninguém me procura! A quem nas direi?
Acaso feitura O ramo d’acácia na fronte de um homem
Não sou de Tupá! Jamais cingirei:
Se algum dentre os homens de mim não se esconde:
— “Tu és”, me responde, Jamais um guerreiro da minha arazóia
“Tu és Marabá!” Me desprenderá:
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,
— Meus olhos são garços, são cor das safiras, Que sou Marabá!
— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;
— Imitam as nuvens de um céu anilado, CANÇÃO DO TAMOIO
— As cores imitam das vagas do mar!
I
Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:
“Teus olhos são garços”, Não chores, meu filho;
Responde anojado, “mas és Marabá: Não chores, que a vida
“Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes, É luta renhida:
“Uns olhos fulgentes, Viver é lutar.
“Bem pretos, retintos, não cor d’anajá!” A vida é combate,
Que os fracos abate,
— É alvo meu rosto da alvura dos lírios, Que os fortes, os bravos
— Da cor das areias batidas do mar; Só pode exaltar.
— As aves mais brancas, as conchas mais puras
— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar. II

Se ainda me escuta meus agros delírios: Um dia vivemos!


— “És alva de lírios”, O homem que é forte
Sorrindo responde, “mas és Marabá: Não teme da morte;
“Quero antes um rosto de jambo corado, Só teme fugir;
“Um rosto crestado No arco que entesa
“Do sol do deserto, não flor de cajá.” Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia,
— Meu colo de leve se encurva engraçado, Condor ou tapir.
— Como hástea pendente do cáctus em flor;
10 Domínio | Obras Literárias
Período Romantismo

III Do inimigo falaz!


Na última hora
O forte, o cobarde
Teus feitos memora,
Seus feitos inveja
Tranqüilo nos gestos,
De o ver na peleja
Impávido, audaz.
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos IX
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes, E cai como o tronco
Escutam-lhe a voz! Do raio tocado,
Partido, rojado
IV Por larga extensão;
Domina, se vive; Assim morre o forte!
Se morre, descansa No passo da morte
Dos seus na lembrança, Triunfa, conquista
Na voz do porvir. Mais alto brasão.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte! X
Não fujas da morte,
As armas ensaia,
Que a morte há de vir!
Penetra na vida:
V Pesada ou querida,
Viver é lutar.
E pois que és meu filho, Se o duro combate
Meus brios reveste; Os fracos abate,
Tamoio nasceste, Aos fortes, aos bravos,
Valente serás. Só pode exaltar.
Sê duro guerreiro,
Robusto, fragueiro, A MANGUEIRA
Brasão dos tamoios
Na guerra e na paz. Já viste coisa mais bela
Do que uma bela mangueira,
VI
E a doce fruta amarela,
Teu grito de guerra Sorrindo entre as folhas dela,
Retumbe aos ouvidos E a leve copa altaneira?
D’imigos transidos Já viste coisa mais bela
Por vil comoção; Do que uma bela mangueira?
E tremam d’ouvi-lo
Pior que o sibilo Nos seus alegres verdores
Das setas ligeiras, Se embalança o passarinho;
Pior que o trovão. Todo é graça, todo amores,
Decantando seus ardores
VII À beira do casto ninho:
E a mão nessas tabas, Nos seus alegres verdores
Querendo calados Se embalança o passarinho!
Os filhos criados
Na lei do terror; O cansado viandante
Teu nome lhes diga, A sombra dela acha abrigo;
Que a gente inimiga Traz-lhe a aragem sussurrante,
Talvez não escute Que lhe passa no semblante,
Sem pranto, sem dor! Talvez o adeus d′um amigo;
E o cansado viandante
VIII À sombra dela acha abrigo -
Porém se a fortuna, A sombra que ela derrama
Traindo teus passos, Todas as dores acalma;
Te arroja nos laços Seja dor que o peito inflama,

Domínio | Obras Literárias 11


Período Romantismo

Ou voraz, nociva chama Dize, mãe, dize: tu julgas


Que nos mora dentro d'alma, Que ela se ri para mim!
A sombra que ela derrama
Todas as dores acalma. São seus lábios entreabertos
Semelhantes a romã;
O mancebo namorado Tem ares d'uma princesa,
Para ela se encaminha; E, no entanto ó tão medrosa!...
Bate-lhe o peito açodado Inda mais que minha irmã.
Quando chega o prazo dado, Olha mãe, sabes quem é
Quando ao tronco se avizinha, A bela moça formosa,
E o mancebo namorado Que dentro d'água se vê!»
Para o tronco se encaminha.
— Tem-te, meu filho; não olhes
Sob a copa deleitosa Na funda, lisa corrente:
Mil suspiros se entrelaçam, A imagem que te embeleza
E d'uma hora aventurosa É mais do que uma princesa,
Guarda a prova a casca anosa É menos do que é a gente.
Nas cifras que ali se abraçam:
Sob a copa venturosa — Oh! Quantas mães desgraçadas
Mil suspiros se entrelaçam. Choram seus filhos perdidos!
Meu filho, sabes por quê?
Grata estação dos amores, Foi porque deram ouvidos
Abrigo dos que o não tem, À leve sombra enganosa,
Deixa-me ouvir teus cantores, Que dentro d'água se vê!
Admirar teus verdores;
Presta-me abrigo também, — O seu sorriso é mentira,
Grata estação dos amores, Não é mais que sombra vã;
Abrigo dos que o não tem. Não vale aquilo que eu valho,
Nem o que vale tua irmã:
A MÃE D’ÁGUA É como a nuvem sem corpo
(fragmentos) De quando rompe a manhã.

— É a mãe d'água traidora,


Minha mãe, olha aqui dentro, Que ilude os fáceis meninos,
Olha a bela criatura, Quando eles são pequeninos
Que dentro d'água se vê! E obedientes não são;
São d'ouro os longos cabelos, Olha, filho, não a escutes,
Gentil a doce figura, Filho do meu coração:
Airosa, leve a estatura; O seu sorriso é mentira,
Olha, vê no fundo d'água É terrível tentação. —
Que bela moça não é! [...]
Minha mãe, no fundo d'água
Vê essa mulher tão bela? OLHOS VERDES
O sorrir dos lábios dela,
Inda mais doce que o teu, São uns olhos verdes, verdes,
É como a nuvem rosada Uns olhos de verde-mar,
Que no romper da alvorada Quando o tempo vai bonança;
Passa risonha no céu. Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
Olha, mãe, olha depressa! Que ai de mim!
Inclina a leve cabeça Nem já sei qual fiquei sendo
E nas mãozinhas resume Depois que os vi!
A fina trança mimosa,
E com pente de marfim!... Como duas esmeraldas,
Olha agora que me avista Iguais na forma e na cor,
A bela moça formosa, Têm luz mais branda e mais forte,
Como se fez toda rosa, Diz uma — vida, outra — morte;
Toda candura e jasmim! Uma — loucura, outra — amor.
12 Domínio | Obras Literárias
Período Romantismo

Mas ai de mim! Sempre tenhas, anjinho inocente,


Nem já sei qual fiquei sendo Quem se apresse em teus passos guiar,
Depois que os vi! E uma voz que o teu sono acalente,
E um sorriso no teu acordar.
São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão, Enlevada nos sonhos jocundos
Tão facilmente se inflamam, Voz etérea te venha falar,
Tão meigamente derramam E visão d'outros céus, d'outros mundos,
Fogo e luz do coração Venha amiga tua alma encantar.
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo Leda infância gentil! e quem não te ama?
depois que os vi! Quem tão de pedra o coração não sente
Aos teus encantos meigos mais tranquilo?
São uns olhos verdes, verdes, Quem não sente memórias d'outras eras
Que podem também brilhar; Travarem-lhe da mente ao recordar-se
Não são de um verde embaçado, Aquele gozo puro e suavíssimo
Mas verdes da cor do prado, De vida, que jamais não tem logrado?
Mas verdes da cor do mar. Recordações de um mundo adormecido
Mas ai de mim! Lá lhe estão dentro d'alma esvoaçando,
Nem já sei qual fiquei sendo Como arpejos de música longínqua!
Depois que os vi! E a mente nos seus quadros embebida,
Por mágica ilusão enfeitiçada,
Como se lê num espelho, Como outrora, talvez somente veja
Pude ler nos olhos seus! Na terra — um chão de flores estrelado,
Os olhos mostram a alma, E nos céus — outro chão de flores vivas!
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus; II
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo Afagada e bem vinda e querida
Depois que os vi! Travessuras cismando infantis,
Nos caminhos floridos da vida
Dizei vós, ó meus amigos, Vai mimosa, imprudente e feliz!
Se vos perguntam por mim,
Que eu vivo só da lembrança É sua vida um contínuo festejo,
De uns olhos cor de esperança, Sonhos d′oiro só sabe sonhar,
De uns olhos verdes que vi! Toda ela um afã, um desejo
Que ai de mim! D′outros jogos contente brincar.
Nem já sei qual fiquei sendo
Puro riso o semblante lhe adorna,
Depois que os vi!
Logo pranto começa a verter,
Dizei vós: Triste do bardo! E depois outro riso lhe torna,
Deixou-se de amor finar! E depois outro pranto a correr.
Viu uns olhos verdes, verdes,
Tão perto jaz a fonte da amargura,
uns olhos da cor do mar:
Da fonte do prazer! — porém tão doces
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar! Essas lágrimas são! — tão abundantes,
Dizei-o vós, meus amigos, Tão sem causa e simpáticas gotejam
Que ai de mim! Numa tez de carmim, num rosto belo!
Não pertenço mais à vida Quem as vê, que sorrindo as não enxuga?
Depois que os vi! Mas não todo consumas o tesouro
Único e triste, que ao infeliz sobeja
A INFÂNCIA
Nas horas do sofrer; no tempo amargo,
No qual o rosto pálido se enruga,
Belo raio do sol da existência,
E os olhos secos, áridos chamejam,
Meninice fagueira e gentil,
Será talvez bem grato refrigério
Doce riso de pura inocência
Uma lágrima só, em que arrancada
Sempre adorne teu rosto infantil.

Domínio | Obras Literárias 13


Período Romantismo

A força da aflição dos seios d'alma. É leda a flor que desponta


Mas tu, feliz, sorri, enquanto a vida, Sobre o talo melindroso,
Como um rio entre flores, se desliza E o arrebento viçoso
Macio, puro, recendendo aromas. Crescendo em flóreo tapiz;
É doce o romper da aurora,
III Doce a luz da madrugada,
Doce o luzir da alvorada,
Belo raio do sol da existência, Doce, mimoso e feliz!
Flor da vida, mimosa e gentil,
Fonte pura de meiga inocência, É bela a virgem risonha
Leve gozo da quadra infantil! Com seus músicos acentos,
Com seus virgens pensamentos,
Quem fruir-te outra vez não deseja,
Com seus mimos infantis;
Quando vê sobre a veiga formosa
Como quanto enceta a vida,
A menina travessa e ruidosa,
Que à luz sorri da existência,
Borboleta que alegre doudeja?
Que tem na sua inocência
A menina é uma flor de poesia, Da mocidade o verniz.
Um composto de rosa e jasmim,
Um sorriso que Deus alumia, Vinga a flor a pouco e pouco,
Um amor de gentil serafim! Cada vez mais bem querida,
Tem mais encantos, mais vida,
Folga e ri no começo da existência, Tem mais brilho, mais fulgor:
Borboleta gentil! a flor dos vales, De cada gota de orvalho
Da noite à viração abrindo o calix, Extrai celeste perfume,
O puro orvalho da manhã te guarda; E do sol no raio assume
Inda perfumes dá, que te embriagam, Cada vez mais viva cor.
Inda o sol quando aquece os vivos raios,
Nas asas multicores cintilando, Assim à virgem mimosa,
Com terno amor de pai, em torno esparge Pouco e pouco, noite e dia,
Pó sutil de rubis e de safiras. Mais viva flor de poesia
Folga e ri no começo da existência, Do rosto lhe tinge a cor;
Humano serafim, que esse perfume E um anjo nos meigos sonhos,
São das asas do anjo, que se impregnam Do seu peito na dormência
Dos aromas do céu, quando atear-se, Derrama o odor da inocência,
Roaz fogo de vida começando, Um doce raio de amor!
Quanto havemos de Deus consome e apaga.
Porque tudo, quando nasce,
IV Seja a luz da madrugada,
Seja o romper da alvorada,
Porém tu, afagada e querida, Seja a virgem, seja a flor;
Com requebros donosos, gentis, Tem mais amor, tem mais vida,
Vai contente caminho da vida, Como celeste feitura,
Belo anjinho, mimoso e feliz! Que sai melindrosa e pura
Dentre as mãos do criador.
E do bardo a canção magoada,
Quando a possas um dia escutar,
COMO EU TE AMO
Há de ser como rota grinalda,
Que perfumes deixou de exalar!
Como se ama o silêncio, a luz, o aroma,
E esta mão talvez seja sem vida, O orvalho numa flor, nos céus a estrela,
E este peito talvez sem calor, No largo mar a sombra de uma vela,
E memória apagada e sumida, Que lá na extrema do horizonte assoma;
Talvez seja a do triste cantor!
Como se ama o clarão da branca lua,
MENINA E MOÇA Da noite na mudez os sons da flauta,
Ma bienvenue au jour ma rit dans tous lesyeux!
As canções saudosíssimas do nauta,
Chenier
Quando em mole vai-vem a nau flutua;

14 Domínio | Obras Literárias


Período Romantismo

Como se ama das aves o gemido, Saberás do meu amor;


Da noite as sombras e do dia as cores, A minha canção singela
Um céu com luzes, um jardim com flores, Traiçoeira não revela
Um canto quase em lágrimas sumido; O prêmio santo que anela
O sofrer do trovador!
Como se ama o crepúsculo da aurora,
A mansa viração que o bosque ondeia, Sim, eu te amo; porém nunca
O sussurro da fonte que serpeia, Dos lábios meus saberás,
Uma imagem risonha e sedutora; Que é fundo como a desgraça,
Que o pranto não adelgaça,
Como se ama o calor e a luz querida, Leve, qual sombra que passa,
A harmonia, o frescor, os sons, os ecos, Ou como um sonho fugaz!
O silêncio, as cores, o perfume, a vida,
Aos pais e à pátria e à virtude e a Deus. Aos meus lábios, aos meus olhos
Do silêncio imponho a lei;
Assim eu te amo, assim; mais do que podem Mas lá onde a dor se esquece,
Dizer-te os lábios meus, — mais do que vale Onde a luz nunca falece,
Cantar a voz do trovador cansada: Onde o prazer sempre cresce,
O que é belo, o que é justo, santo e grande Lá saberás se te amei!
Amo em ti. — Por tudo quanto sofro,
Por quanto já sofri, por quanto ainda E então dirás: «Objeto
Me resta de sofrer, por tudo eu te amo. Fui de santo e puro amor,
O que espero, cobiço, almejo, ou temo A sua canção singela,
De ti, só de ti pende: oh! nunca saibas Tudo agora me revela;
Com quanto amor eu te amo, e de que fonte Já sei o prêmio que anela
Tão terna, quanto amarga o vou nutrindo! O sofrer do trovador.
Esta oculta paixão, que mal suspeitas,
Que não vês, não supões, nem te eu revelo, Amou-me como se ama a luz querida,
Só pode no silêncio achar consolo, Como se ama o silêncio, os sons, os céus,
Na dor aumento, intérprete nas lágrimas. Como se ama as cores, o perfume, a vida,
Os pais e a pátria, e a virtude e a Deus!
De mim não saberás como te adoro;
Não te direi jamais, Amo-o agora também como as estrelas,
Se te amo, e como, e a quanto extremo chega Como as harpas divinas, como aos céus,
Esta paixão voraz! Como aos anjos de palmas e capelas,
Que entoam coros místicos a Deus!
Se andas, sou o eco dos teus passos;
Da tua voz, se falas; O QUE MAIS DÓI NA VIDA
O murmúrio saudoso que responde l canot but remember such things were,
Ao suspiro que exalas. And were most dear to me.
Shakespeare
No odor dos teus perfumes te procuro,
Tuas pegadas sigo; O que mais dói na vida não é ver-se
Velo teus dias, te acompanho sempre, Mal pago um benefício,
E não me vês contigo! Nem ouvir dura voz dos que nos devem
Agradecidos votos,
Oculto, ignorado me desvelo Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,
Por ti, que me não vês; Que as devera beijar!
Aliso o teu caminho, esparjo as flores,
Onde pisam teus pés. Não! o que mais dói não é do mundo
A sangrenta calúnia, Nem ver
Mesmo lendo estes versos, que m′inspiras,
como se infama a ação mais nobre,
Não pensa em mim, dirás:
Os motivos mais justos,
Imagina-o, si o podes, que os meus lábios
Nem como se deslustra o melhor feito,
Não te dirão jamais!
A mais alta façanha!
Sim, eu te amo; porém nunca
Não! o que mais dói não é sentir-se

Domínio | Obras Literárias 15


Período Romantismo

As mãos d'um ente amado Amizade e amor! — laço de flores,


Nos espasmos da morte resfriadas, Que prende um breve instante
E os olhos que se turvam O ligeiro batel à curva margem
E os membros que entorpecem pouco e pouco, Da terra hospitaleira;
E um rosto que descora! Com tanto amor se enastra, e tão depressa,
E tão fácil se rompe!
Não! não é ouvir daqueles lábios,
Doces, tristes, compassivas, A mais ligeira ondulação dos mares
Sobre o funéreo leito soluçadas Ao mais ligeiro sopro
As palavras amigas, Da viração — destrançam-se as grinaldas,
Que tanto custa ouvir, que lembram tanto, O baixel se afasta.
Que não se esquecem nunca! Veleja, foge, até que em plaga estranha
Naufragado soçobre!
Não! não são as queixas amargadas
No triunfar da morte, Talvez permite Deus que tão depressa
Que, se se apaga a luz da vida escassa, Estes laços se rompam,
Mais viva a luz rutila; Por que nos pese o mundo, e os seus enganos
Luz da fé que não morre, luz que espanca Mais sem custo deixemos:
As trevas do sepulcro. Sem custo assim a brisa arrasta a planta,
Que jaz solta na terra!
O que dói, mas de dor que não tem cura,
O que aflige, o que mata,
Mas de aflição cruel, de morte dura,
É morrermos em vida
No peito da mulher que idolatramos,
No coração do amigo!

TESTES
Nosso céu tem mais estrelas,
01 (UEL) – Gonçalves Dias se destaca no panorama
da primeira fase romântica pelas suas qualidades supe- Nossas várzeas têm mais flores.
riores de artista. Nele: Nossos bosques têm mais vida,
a) a pátria é retratada de maneira que se tenha um regis- Nossa vida mais amores.
tro fiel da sua fauna e flora, sem interferência da emoção
do poeta, como em “Canção do Exílio”; Em cismar, sozinho, à noite,
b) a persistência de traços do espírito clássico impede Mais prazer encontro eu lá.
o exagero do sentimentalismo, encontrado, por exemplo, Minha terra tem palmeiras,
em Casimiro de Abreu;
Onde canta o sabiá.
c) o indianismo é fiel à verdade da vida indígena, não apre-
sentando a distorção poética observada em outros es-
critores; Minha terra tem primores
d) protótipo do byroniano, convivem lado a lado o humor Que tais não encontro eu cá;
negro e o extremo idealismo; Em cismar — sozinho, à noite —
e) predomina a poesia lírica de recuperação da infância, Mais prazer encontro eu lá.
com acentuado tom saudosista, tão evidente em “Meus Minha terra tem palmeiras,
Oito Anos”.
Onde canta o sabiá.
02
Não permita Deus que eu morra
Canção do exílio
Sem que eu volte para lá;
Minha terra tem palmeiras,
Sem que desfrute os primores
Onde canta o sabiá.
Que não encontro por cá;
As aves que aqui gorjeiam
Sem qu’inda aviste as palmeiras
Não gorjeiam como lá.
Onde canta o sabiá.

16 Domínio | Obras Literárias


Período Romantismo

Ao aproximarmos o poema acima, de Gonçalves Dias, a) culto a valores heroicos como herança da era medie-
presente em Primeiros Cantos, da produção poética de val;
Últimos Cantos, podemos destacar como ponto comum: b) subjetivismo que se revela através da poesia em pri-
a) a crença de Gonçalves Dias no fato de que seus versos meira pessoa;
extinguiriam a miséria humana; c) gosto pelas metáforas;
b) o fato de Gonçalves Dias, poeta ultrarromântico, pos- d) escapismo que faz o romântico criar um mundo pró-
suir obra fortemente marcada pela imaginação fértil e prio e idealizado;
inteligência; e) gosto pelo mistério que se traduz num masoquismo.
c) a exaltação da terra brasileira, fortemente marcada
pela presença do índio, habitante primeiro de nossas ter- 05 (ITA - SP) – O texto reproduz alguns trechos do
ras;
poema Leito de folhas verdes, do escritor romântico Gon-
d) a forte religiosidade, marca central de sua produção çalves Dias, que consta do livro Últimos cantos (1851).
poética, que aqui se evidencia por um endeusamento das Nesse longo poema, o poeta dá voz a uma índia que di-
terras brasileiras; rige um apelo emocionado e sensual ao seu amado, o
e) o nacionalismo, ecoando ruídos de um Brasil recém- índio Jatir, e que permanece na expectativa da chegada
independente de Portugal e repleto de belezas naturais. do homem amado para um encontro sexual. Ao final, o
encontro erótico-amoroso acaba não se concretizando,
“Do tamarindo a flor jaz entreaberta, pois Jatir não chega ao local em que a índia o aguarda.
Já solta o bogari mais doce aroma; Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
Também meu coração, como estas flores, À voz do meu amor moves teus passos?
Melhor perfume ao pé da noite exala!” Da noite a viração, movendo as folhas,
(“Leito de folhas verdes”) Já nos cimos do bosque rumoreja.
[...]
“Ação tão nobre vos honra, Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Nem tão alta cortesia Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vi eu jamais praticada Vai seguindo após ti meu pensamento:
Entre os Tupis - e mas foram Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!
Senhores em gentileza.” [...]
(“I - Juca Pirama”) Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te
03 (PUCCAMP) – Os excertos dos poemas anterior-
chama!
mente indicados, dos ÚLTIMOS CANTOS, exemplificam
esta afirmação sobre a poesia de Gonçalves Dias: [...]
a) A contemplação da natureza leva à expressão de con-
vicções religiosas, assim como os valores cristãos sobre- Sobre esse poema é INCORRETO afirmar que:
põem-se sutilmente à rudeza da vida selvagem; a) Há no poema a presença explícita da natureza como
b) Não se distingue a donzela branca da amante indígena, cenário perfeito para a realização do ato amoroso, o que
tanto quanto não se opõe a bravura do índio à bravura de costuma ser uma marca da poesia romântica;
um cavaleiro medieval; b) A emoção do sujeito lírico feminino é notória pelo tom
c) O amor da índia espelha a força da própria natureza, com que a índia apela ao amado para que ele venha ao
mas código de conduta dos guerreiros indígenas reflete seu encontro; daí a presença dos pontos de exclamação
os valores dos fidalgos medievais; no poema;
d) A sublimação do amor implica a idealização da morte, c) A emoção do sujeito lírico feminino deriva do amor da
assim como o código de conduta dos guerreiros indíge- índia por Jatir, amor que é sentimental e erótico (amor
nas idealiza os valores dos fidalgos medievais; da alma e amor do corpo);
e) O amor da índia espelha a força da própria Natureza, d) O texto é uma versão romântica das cantigas de amigo
tanto quanto se apresentam com naturais e próprios os medievais, nas quais o trovador reproduzia a fala femi-
valores de conduta do guerreiro indígena. nina que manifestava o desejo de encontro com o seu
“amigo” (amado);
04 (UFF - RJ) e) Não se trata de um poema romântico típico, pois o
amor romântico é sempre pautado pelo sentimento pla-
I-Juca-Pirama tônico e pelo ideal do amor irrealizável no plano corpóreo.
“Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste? Marabá
Não descende o cobarde do forte; “Eu vivo sozinha; ninguém me procura!
Pois choraste, meu filho não és!” Acaso feitura
DIAS, G. “Últimos Cantos”. In: REBELO, M. Org. Antologia escolar brasileira. Rio
de Janeiro: MEC/Fename, 1967. p. 276. Não sou de Tupá?
Nos versos do poema acima, vê -se a indignação do ve- Se algum dentre os homens de mim não se esconde
lho índio Tupi, ao saber que o filho pedira aos inimigos Ai- — “Tu és”, me responde,
morés que lhe poupassem a vida. Neles, Gonçalves Dias
apresenta um dos traços mais caros ao Romantismo, “Tu és Marabá!”
que é o
Domínio | Obras Literárias 17
Período Romantismo
Meus olhos são garços, são cor das safiras,
06 (UNIRIO - RJ) – Após leitura, análise e interpreta-
Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar; ção do poema Marabá, algumas afirmações como as se-
Imitam as nuvens de um céu anilado, guintes podem ser feitas, com exceção de uma. Indique-a.
As cores imitam das vagas do mar!
a) O poema se inicia com uma pergunta de ordem religio-
Se algum dos guerreiros não foge a meus passos: sa e termina com uma consideração de aspecto sensual;
— ‘Teus olhos são garços’, b) O poema é um profundo lamento construído com base
Responde anojado, ‘mas és Marabá: na estrutura dialética, apresentando-se argumentação e
contra argumentação;
‘Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
c) Ocorre interlocução registrada em discurso direto,
‘Uns olhos fulgentes, estrutura que enfatiza assim o desprezo preconceituoso
‘Bem pretos, retintos, não cor d’ anajá!’ dado à Marabá;
d) A ocorrência de figuras de linguagem e o emprego da
É alvo meu rosto da alvura dos lírios, primeira pessoa marcam, respectivamente, as funções
Da cor das areias batidas do mar; da linguagem poética e emotiva;
As aves mais brancas, as conchas mais puras e) Marabá é poema representante da primeira fase que
Não têm mais alvura, não têm mais brilhar. cultua o aspecto físico da mulher.

Se ainda me escuta meus agros delírios: 07 (UFSM) – Considere os versos de “Canção do Ta-
— ‘ És alva de lírios’, moio”, de Gonçalves Dias.
Sorrindo responde, ‘mas és Marabá: “Um dia vivemos!
‘Quero antes um rosto de jambo corado, O homem que é forte
‘Um rosto crestado Não teme da morte;
‘Do sol do deserto, não flor de cajá.’ Só teme fugir;
No arco que entesa
Meu colo de leve se encurva engraçado, Tem certa uma presa,
Como hástea pendente do cáctus em flor; Quer seja tapuia,
Mimosa, indolente, resvalo no prado, Condor ou tapir.”
Como um soluçado suspiro de amor! Conforme os versos transcritos,
— ‘Eu amo a estatura flexível, ligeira, a) quem erra o alvo precisa fugir da caça;
Qual duma palmeira’, b) os índios estão em guerra contra os tapuias;
Então me respondem; ‘tu és Marabá: c) a covardia é o único sentimento a ser temido pelos
Quero antes o colo da ema orgulhosa, fortes;
Que pisa vaidosa, d) quem não tem boa pontaria é excluído do grupo de
Que as flóreas campinas governa, onde está.’ guerreiros;
e) o bom índio se conhece pela qualidade do seu arco.
Meus loiros cabelos em ondas se anelam,
08 (UFPR) – Sobre o livro de poesia Últimos Cantos,
O oiro mais puro não tem seu fulgor;
de Gonçalves Dias, considere as seguintes afirmativas:
As brisas nos bosques de os ver se enamoram,
1. A métrica em “I-Juca-Pirama” é variável e tem conexão
De os ver tão formosos como um beija-flor! com a progressão dos fatos narrados, o que permite di-
zer
Mas eles respondem : — Teus longos cabelos, que o ritmo se ajusta às reviravoltas da narrativa.
‘São loiros, são belos, 2. “Leito de folhas verdes” e “Marabá” tematizam a mis-
Mas são anelados; tu és Marabá; cigenação brasileira ao apresentarem dois casais inter-
Quero antes cabelos bem lisos, corridos, raciais.
Cabelos compridos, 3. A “Canção do Tamoyo” apresenta o relato de feitos
Não cor d’oiro fino, nem cor d’anajá.’ heroicos específicos desse povo para exaltar a coragem
humana.
E as doces palavras que eu tinha cá dentro 4. O poema “Hagaar no deserto” recria um episódio bíbli-
co e apresenta uma escrava escolhida por Deus para ser
A quem nas direi? mãe de Ismael, o patriarca do povo árabe.
O ramo d’acácia na fronte de um homem
Assinale a alternativa correta.
Jamais cingirei:
a) Somente as afirmativas 1 e 3 são verdadeiras;
Jamais um guerreiro da minha arazóia b) Somente as afirmativas 2 e 3 são verdadeiras;
Me desprenderá: c) Somente as afirmativas 1 e 4 são verdadeiras;
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, d) Somente as afirmativas 1, 2 e 4 são verdadeiras;
Que sou Marabá!” e) Somente as afirmativas 2, 3 e 4 são verdadeiras.
(Gonçalves Dias)

18 Domínio | Obras Literárias


Período Romantismo

a) O nacionalismo romântico se expressa no antológico


09 (UP) – Sobre o livro Últimos Cantos (1851), de poema “Canção do exílio”, que abre o livro com um tom
Gonçalves Dias, é correto afirmar: laudatório: “Nosso céu tem mais estrelas, / Nossas vár-
a) Trata-se de uma obra póstuma em que o autor anteci- zeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida,
pa as tendências da segunda geração romântica, deno- / Nossa vida mais amores”;
minada de Ultrarromantismo, como atestam os poemas b) O embate entre tribos indígenas, com a consequente
“Sobre o túmulo de um menino” e “O que mais dói na vida”; prisão de um guerreiro, é narrado em “I-Juca-Pirama”,
b) O eu-lírico do poema “Leito de folhas verdes”, uma ín- poema marcado por variedade métrica: “O prisioneiro,
dia, canta as suas núpcias com Jatir, guerreiro timbira, cuja morte anseiam, / Sentado está, / O prisioneiro, que
simbolizando a origem do povo brasileiro; outro sol no ocaso / Jamais verá!”;
c) O poema “Canção de Bug-Jargal” pode ser considera- c) A pureza racial dos indígenas brasileiros é exaltada no
do um modelo da poesia indianista, pois o autor, como poema “Marabá” por meio da descrição da personagem-
era uso na época, aproveitou-se muito de termos e ex- -título: “— Meus olhos são garços, são cor das safiras,
pressões das línguas indígenas; / — Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar; / — Imitam
as nuvens de um céu anilado, / — As cores imitam das
d) A musicalidade do poema “I-Juca-Pirama” está forte- vagas do mar!”;
mente relacionada à construção dos eventos narrados
pelo eu-lírico, que, na última parte, afirma ter tido conhe- d) O aspecto fúnebre das lendas românticas é represen-
cimento da história por meio de um velho índio; tado no poema “O gigante de pedra”, em que se destaca
a monstruosidade do personagem: “Gigante orgulhoso,
e) O poeta romântico rompe com a tradição clássica de fero semblante, / Num leito de pedra lá jaz a dormir!
para fundar uma nova linguagem poética a partir da lín- / Em duro granito repousa o gigante, / Que os raios so-
gua tupi. mente puderam fundir”;
e) O lirismo romântico prefere temas delicados, como as
10 (UFPR) – A respeito dos poemas que compõem o brincadeiras inocentes da criança em “Mãe-d’água”: “Mi-
livro Últimos Cantos (1851), do maranhense Gonçalves nha mãe, olha aqui dentro, / Olha a bela criatura, / Que
Dias, assinale a alternativa correta. dentro d’água se vê! / São d’ouro os longos cabelos, /
Gentil a doce figura, / Airosa leve a estatura; / Olha, vê
no fundo d’água / Que bela moça não é!”.

ANOTAÇÕES

GABARITO
01. b 02. e 03. c 04. a 05. e 06. e 07. c 08. c 09. d 10. b

Domínio | Obras Literárias 19


Obras Literárias PERÍODO: PRÉ-MODERNISMO

PERÍODO: PRÉ-MODERNISMO
“A biografia de Lima Barreto explica o húmus
“Creio que se pode chamar Pré-modernista (no ideológico da sua obra: a origem humilde, a cor,
sentido forte de premonição dos temas vivos em a vida penosa de jornalista pobre e pobre ama-
22) tudo que, nas primeiras décadas do século nuense, aliadas à viva consciência da própria si-
XX, problematiza nossa realidade social e cultu- tuação social, motivaram aquele seu socialismo
ral.” maximalista, tão emotivo nas raízes quanto pene-
trante nas análises. ”
Alfredo Bosi
Alfredo Bosi
Considera-se “Pré-Modernismo” um período de transi- Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) nas-
ção entre os estilos literários do fim do séc. XIX, que ceu numa família pobre. Por meio da ajuda do padrinho
ainda serão muito influentes no início do século seguin- importante, consegue concluir os estudos ginasiais. Es-
te, e o Modernismo, cujo início se dá em 1922, com a forçado e inteligente, chegou ao nível superior, iniciando
Semana de Arte Moderna. o curso de engenharia, que não chegou a concluir por
Por ser entendido como um período de transição, o Pré- ter que trabalhar para sustentar a família após o enlou-
-Modernismo não é uma escola literária propriamente quecimento do pai.
dita, pois não forma um estilo definido. Trata-se de um Sem a proteção do padrinho, e, principalmente, sofren-
momento em que se observa a convivência de estilos do discriminações por ser pobre e mulato, teve que tra-
mais tradicionais (ligados ao séc. XIX) com as primeiras balhar em cargos modestos, longe do reconhecimento
manifestações modernistas que começam a surgir no profissional que sua capacidade merecia. Perturbado,
Brasil, especialmente na década de 1910. sofreu crises de depressão e de alcoolismo, que o leva-
Dessa maneira, os autores que produziram especial- ram ao internamento por duas vezes.
mente nessa época (1901-1922) apresentam estilos Após ingressar no serviço público, com o cargo de es-
diferentes. Uns, como Euclides da Cunha, possuem uma crevente, passou a colabrorar em jornais e escrever
escrita mais próxima da linguagem tradicional; outros, seus primeiros textos literários. Lima Barreto foi um
como Lima Barreto e Monteiro Lobato, defendem uma “excluído” e é nessa condição observou criticamente a
literatura em que prevaleça a linguagem mais próxima sociedade urbana do início do séc. XX.
da coloquialidade, ou seja, com um vocabulário mais
afinado com as propostas que serão levantadas pelos
autores modernistas. O ESTILO DE LIMA BARRETO
Há um fator que pode ser um ponto comum na maioria
dos autores pré-modernistas: a visão crítica da realida- “Como ficcionista, Lima Barreto especializou-se
de nacional. Eles, em maioria, traçarão um painel de de- na pintura dos humildes, a gente do povo, a clas-
núncia social, especialmente sobre as condições precá- se dos funcionários espezinhados, os mestiços,
rias do interior do Brasil. os suburbanos, e sempre o faz com ternura e
• A retratação de um Brasil afastado dos grandes um senso de fraternidade que o situam entre os
centros: pobre, doente e ignorado; maiores ficcionistas de veia popular e social.”
• A busca de uma nova interpretação social do atraso Afrânio Coutinho & J. Galante de Sousa
e da miséria do interior do Brasil.
A escrita de Lima Barreto corre em direção contrária
CLARA DOS ANJOS - LIMA BARRETO ao estilo vigente na época, chamado pejorativamente de
SOBRE LIMA BARRETO
academicismo. No início do século XX, mais que a pro-
fundidade de conteúdo, importante mesmo era aparen-
tar ser culto, e muitos escritores e oradores faziam isso
por meio de uma linguagem rebuscada.
Lima Barreto foi um crítico contundente dessa forma
de escrita e, assim, adotou em sua escrita um estilo
próximo da coloquialidade, influenciada pelo jornalismo,
o que faz de seus romances uma espécie de crônica da
vida social da época.
Além da escrita despojada, sem rebuscamentos, esse
autor também empregou à sua narrativa a ironia, fazen-
do da sátira uma forma de construir a crítica da socie-
dade em que viveu.

20 Domínio | Obras Literárias


Período: Pré-Modernismo
OS TEMAS DE LIMA BARRETO permissiva e preconceituosa. Sempre pagava a multa
para tirá-lo da cadeia. Porém, seu pai era um homem
“A sua obra é constituída desses ingredientes: sério, empregado público dotado de enorme sentimen-
uma constituição pessoal neurótica, os ressen- tos morais que lhe guiavam a conduta familiar. Cassi
timentos, os desregramentos, a dipsomania, os engravidou uma negra que trabalhava em sua casa, seu
recalques contra a sociedade de que se acredi- primeiro crime. A mãe dela, Nair, suicidou-se com lisol –
tava desdenhado, o instinto revolucionário e de desinfetante e antisséptico, que contém cresóis e sabão
reforma social.” de potassa preparado com óleo de linhaça.
Afrânio Coutinho & J. Galante de Sousa Desde criança, Cassi era mimado e protegido pela mãe.
Foi expulso do colégio Salesiano. O livro não explica o
real motivo, mas, pela vergonha do pai, é possível imagi-
• A mediocridade cultural da elite; nar que houve algum envolvimento sexual. Após isso, foi
• Crítica ao academicismo e o rebuscamento vazios ser aprendiz de tipógrafo, demitido após um mês por ter
usados somente para demonstrar erudição; embolsado dinheiro de uma cobrança.
• A luta contra os preconceitos racial e social; Marramaque é o padrinho de Clara. Ele, quando jovem,
resolveu instruir-se e também fazer versos. Isso se deu
• A corrupção e o abuso de poder no meio político; após ler “Primaveras” de Casimiro de Abreu. Seu pa-
• As relações humanas sustentadas pelo interesse; trão, Seu Mendonça, incentivou-o a ir ao Rio de Janeiro,
• Ironia ao falso patriotismo (nacionalismo ufanista). onde se empregou como ajudante de farmácia, local de
encontro das pessoas graves e sisudas da vizinhança.
Lá conheceu o Sr. José Brito, segundo oficial e poeta
SOBRE CLARA DOS ANJOS parnasiano. Este o levou a trabalhar na papelaria-livraria
da rua da Quitanda.
Embora concluída em Também há um relato da sedução de uma gaúcha casa-
1922, sua publicação de da com um marinheiro por Cassi. O violeiro foi preso e é
deu de forma póstuma, em daí que se explica a amizade com Lafões.
1948. Tata-se de um ro- À noite, jogando solo, Clara indaga ao padrinho quem é
mance cuja protagonista, Cassi. É véspera de aniversário e, então, Jaoquim con-
homônima ao título do livro, sente que Cassi venha tocar violão no aniversário da fi-
é uma moça negra e pobre lha.
do subúrbio do Rio de Janei-
ro. Dia no aniversário de Clara. Todos esperam pela atra-
ção musical. Após demorar bastante, Cassi chega à
Nessa obra, Lima Barreto, Festa. Já repara na belaza de Clara, que, cheia de ex-
além de traçar um panora- pectativa e curiosidade, não disfarça o fascínio pelo mú-
ma crítico da vida suburba- sico. Ele, ciente do fascínio de Clara, começa a tocar e
na abandonada pelo poder cantar. Embora músico medíocre, ele fazia muitos trejei-
público, denuncia a forma tos, poses ao violão, cantava de forma a intensificar as
como meninas negras e po- expressões de mágoa. Clara chega à conclusão de que
bres são vítimas sexuais de ele estava assim por ter se encantado por ela.
malandros, que logo em seguida as abandonam. Essas
moças, graças à condição humilde e pobre, não conse- Marramaque, advinhando as intenções do Malvado, de-
guem amparo judicial para reivindicar seus direitos, e, clama um soneto que ironiza Cassi. Eis o último terceto:
grávidas, precisam enfrentar sozinhas a condenação
preconceituosa da sociedade quanto às mães solteiras. “Que queres? Eu próprio embirro
Clara dos Anjos é obra crítica, de denúncia social sobre Com este amor por que morro,
a pobre vida suburbana; de denúncia moral sobre a con- Mas é que sou muito burro”. (p.67)
dição difícil dessas pobres moças enganadas por apro-
veitadores. Embora escrita na década de 1920, é uma
obra totalmente alinhada com as temáticas de gênero Cassi fica irado e deseja a vingança. Após a festa, Clara
e de cor, tão discutidas recentemente. escuta o pai e Dona Engracia numa conversa que a de-
sagrada. Ele, que não gostou do jeito malandro de Cassi,
RESUMO DO ENREDO declarou que este nunca mais entraria novamanente na
casa. Clara chora de desgosto. Já se percebe que está
No subúrbio carioca, mora Joaquim dos Anjos. Negro, apaixonada pelo malandro.
carteiro. Em sua casa vive, além de Joaquim, Engrácia, Clara, indignada com a rejeição dos pais quanto a Cas-
sua esposa, e Clara, a filha. Com profissão fixa, sua famí- si, passa a questionar a forma como é tratada pelos
lia vive bem, apesar de ter luxo. A casa recebe amigos, pais, pois via todas as moças saírem com seus pais,
como Marramaque e Lafões. Eles discutiam sobre vá- com suas amigas, então, por que é que ela não podia?
rias coisas, dentre elas, a tomada do poder por Floria- Porque sua mãe era extremamente carola e domina-
no Peixoto e o voto de cabresto. Clara chegava sempre dora, tinha medo de que a menina caísse nas mãos de
como café para interromper as discussões com a sua pessoas ruins.
graça. Era aniversário da mulata e Lafões queria home-
nageá-la proporcionando uma noite de música. Sua su- No boteco do Seu Nascimento, Alípio conversava com
gestão era chamar um músico - Cassi Jones. Menezes sobre Cassi. Dizia que o protetor do marginal
era um tal Capitão Barcelos, chefe político.
Trata-se de um malandro conhecido do subúrbio. Con-
tava perto de dez defloramentos e a sedução de mui- A dificuldade da situação deixa Cassi ainda mais com
to maior número de mulheres casadas. A principal ra- vontade de se encontrar com Clara. Então, ele começa
zão do comportamento de Cassi era a mãe do rapaz: a armar planos para se encontrar com ela. Para isso,
precisa se livrar de quem atrapalha seus planos: dona
Domínio | Obras Literárias 21
Período: Pré-Modernismo
Margarida, Marramaque e os pais de Clara. Para re- sonrada e vexada uma dama ingênua: cometeu o crime
solver o impasse, Cassi vai até a casa de Lafões para do artigo 222 do CP (já revogado) – crime contra mu-
sondar a família de Joaquim dos Anjos. A essa altura, lher honesta.
corria no subúrbio um dossiê contra Cassi Jones, figura A moça pensa em Dona Margarida para recorrer ao
que se tornou conhecida em todo o morro. aborto. Tinha medo de morrer e tinha remorsos de as-
Cassi fecha com Arnaldo um acordo, provavelmente sassinar assim, friamente, um inocente. Mas... era pre-
uma agressão física contra Marramaque. De início, Ar- ciso. A vizinha não aceita a ação antiética e leva Clara a
naldo deveria vigiar o boteco de Seu Inácio a fim de ob- se confessar para a mãe. Resolvem então declararem-
ter informações relevantes sobre Cassi. -se a Joaquim dos Anjos. O plano era conversar com a
Arnaldo traz más notícias para Cassi, que se sente opri- mãe de Cassi - senhora preconceituosa, conservadora e
mido e vê a sua intenção de deflorar Clara malograr. Até dotada de um enorme complexo de superioridade, o que
mesmo Lafões fizera corpo mole em vez de ajudá-lo. se revela quando esta debocha das pretensões de uma
negra casar-se com seu filho.
Sua última tentativa era tentar convencer Menezes a
ser seu amigo. O violeiro simula querer versos de Leo- Nisso entra o pai de Cassi e Clara se humilha pedindo
nardo Flores, paga adiantado a Menezes para interce- ajuda. O discurso se torna sensível ao ser proferido por
der por ele justamente por saber dos problemas finan- um homem bom que sofre por ter um filho desajustado.
ceiros do velho dentista. Diz a moça que não pode fazer nada, mas, ajudaria cui-
dar da criança. Diz isso com muito custo e aos sons dos
Menezes mora com a irmã viúva e com o sobrinho, sus- impropérios de sua esposa preconceituosa. Nervoso,
tenta a casa e está no limite de sua situação financei- enfarta e morre. A narrativa transcorre para o último
ra. Fica indeciso, mas acaba cedendo dinheiro à irmã diálogo, no qual se vê que Clara finalmente entende sua
e produz ele mesmo os versos, uma vez que o próprio condição social.
Flores o execrou por considerar poesia algo não comer-
cializável.
“- Mamãe, mamãe!
A moça, já seduzida por Cassi Jones, não entende por
que tantos falam mal dele. A oposição da família é cons- - Que é minha filha?
tante. O pai chega a pensar na garrucha de dois canos, “ – Nós não somos nada nesta vida”.
presente de um inglês, seu primeiro patrão.
Ao receber a trova de Menezes, Cassi Jones faz corpo
mole e pergunta se o dentista não conhece um com- ASPECTOS FORMAIS DA OBRA
positor de maior tomo. O dentista disse que Joaquim
dos Anjos seria mais indicado. Tem-se, então, a ideia de • Gênero:
aproximação do vilão à residência da moça ingênua. Me- • Foco narrativo:
nezes, oprimido por sua condição (extremamente endi- • Tempo:
vidado e mantenedor da irmã e do sobrinho), torna-se
um fantoche do violeiro e tornou-se o carteiro pessoal • Espaço:
de Cassi e Clara. Para ela, o rapaz era um modelo de • Estrutura narrativa:
cavalheirismo e de lealdade. • Linguagem:
Marramaque, ao saber da aproximação de Cassi à casa
de Joaquim, afirma que nunca mais poria os pés na PERSONAGENS PRINCIPAIS
casa do amigo. Essa oposição irritou Cassi, que simples-
mente premeditava a morte do velho Marramaque. Con-
tratou alguns malandros para surrarem Marramaque, • Clara dos Anjos: menina negra suburbana, criada
que faleceu após os golpes. com muito recato e carinho pelos pais. Tanto ex-
cesso de zelo fez dela uma moça ingênua, perfeita
Clara, relendo as cartas de seu amado, lembrou as para ser seduzida por um malandro como Cassi, por
ameaças que Cassi fizera ao padrinho em suas cartas. quem se apaixona. Embora protagonista do roman-
Atribuía seu amado como suspeito do crime, mas tenta- ce, ela é apenas mais uma mulher explorada sexual-
va se desvencilhar dessa ideia. De qualquer forma, sen- mente, que, por ser pobre e negra, não possui con-
tia-se mal pela ideia de ser uma possível pivô do crime. dições de punir o malandro.
Arnaldo tinha medo de todos os fregueses que entra- • Cassi Jones: mimado e protegido pela mãe, tornou-
vam no botequim; desconfiava de todos e, quando bebia, -se um malandro sem ocupação séria. Até seus 30
chorava copiosamente, afirmando ser um homem bom. anos, jamais chegara a ter emprego fixo. Sujeito me-
O violeiro decide então fugir do subúrbio. Estava no cen- díocre e insignificante. Músico mediano. Seduzia mo-
tro do Rio de Janeiro e queria o Mato Grosso. No entan- ças suburbanas, mentindo paixão e promentendo
to, uma negra, primeira vítima e funcionária de sua mãe, casamento. Embora houvesse praticado isso com
o abordou: várias moças, nunca precisou se responsabilizar
Cassi levou algumas pancadas das mulheres que esta- por seus atos, pois sua mãe sempre dava jeito de
vam na roda e, ao se ver livre, levemente pensou sobre mantê-lo impune.
como seria ruim se aquela cena se desse em seu redu- • Joaquim dos Anjos: típico chefe de família. Traba-
to: o subúrbio. lhando como carteiro, podia manter sua família de
Simultaneamente à surra de Cassi, Clara fitava o céu, forma digna, embora modesta. Sua diversão era a
que possuía algumas manchas. Em sua casa, o jogo de música.
solo acabara, após a morte de Marramaque; Lafões foi • Dona Engrácia: esposa de Joaquim. Mostra-se uma
transferido para os mananciais; a casa do carteiro esta- dona de casa dedicada. Porém, bastante sedentá-
va quase deserta, tudo parecia malogrado. O único que ria e inerte. Assim, mantinha a filha sempre ligada a
aparecia ainda era Menezes, enlouquecido. casa, sob educação rígida, o que deixou Clara inex-
Clara estava grávida. O rapaz mais uma vez deixou de- periente e ingênua quanto às pessoas mal-intencio-
nadas.
22 Domínio | Obras Literárias
Período: Pré-Modernismo
• Dona Salustiana Baeta de Azevedo: mulher com
mania de grandeza, que inventa para si uma origem Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas,
importante, mentindo ser descendente de um Lorde nas coroas dos morros, que as árvores e os
Jones, consul da Inglaterra em Santa Catarina. Ela bambuais escondem aos olhos dos transeuntes.
faz desse “Jones” um nome para o filho. Ela mimou Nelas, há quase sempre uma bica para todos os
o filho, Cassi, na infância e passa a protegê-lo das habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda
punições que deveria sofrer por abusar de moças essa população, pobríssima, vive sob a ameaça
pobres. constante da varíola e, quando ela dá para aque-
• Manuel Borges de Azevedo: o pai de Cassi reconhe- las bandas, é um verdadeiro flagelo. Afastando-
ce que fora relapso na educação de Cassi, o que -nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto
permitiu que a mãe o estragasse. Sente-se envergo- das ruas muda. Não há mais gradis de ferros,
nhado das atitudes do filho, mas não chega a tomar nem casas com tendências aristocráticas: há o
grandes atitudes. Apenas o expulsa de casa, embo- barracão, a choça e uma ou outra casa que tal.
ra o filho seja recebido pela mãe na ausência dele. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto,
encontram-se, por vezes, “correres” de pequenas
• Marramaque: portador de necessidades especiais, casas, de duas janelas e porta ao centro, forman-
padrinho de Clara. Frequentador de pequenas rodas do o que chama- mos “avenida”. As ruas distan-
de boêmios, chega a compor versos e conhece al- tes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros
guns poetas. Por conhecer a fama de Cassi Jones, de grama e de capim, que são aproveitados pelas
opõe-se radicalmente à presença deste na casa de famílias para coradouro. De manhã até à noite,
Clara. Por isso, é morto numa emboscada plenejada ficam povoadas de toda a espécie de pequenos
por Cassi. animais domésticos: galinhas, patos, marrecos,
• Eduardo Lafões: amigo de Joaquim. Religiosamente cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os
ia aos domingos à casa doamigo para jogar o solo. cães, que, com todos aqueles, fraternizam.[...]
Era um homem simplório, que só tinha agudeza de Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas
sentidos para o dinheiro. Vivendo sempre em círcu- é que vive uma grande parte da população da ci-
los limitados, habituado a ver o valor dos homens dade, a cuja existência o governo fecha os olhos,
nas roupas e no parentesco, ele não podia conceber embora lhe cobre atrozes impostos, empregados
que torvo indivíduo era o tal Cassi, tanto que chegou em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do
a levá-lo à casa de Joaquim. Rio de Janeiro.
• Menezes: é o “dentista” da família. Alcoólatra e com
situação financeira difícil, é usado por Cassi como
intermediário dos bilhetes e cartas de Cassi para
Clara. Não há água ou onde há, é ainda nos lugarejos do
• Arnaldo: contratado por Cassi para vigiar as atitu- distrito federal que o governo caridosamente su-
des de Marramaque. Faz parte do grupo que surrou pre em algumas bicas públicas; não há esgotos;
e o matou. não há médicos, não há farmácias.
• Ataliba do Timbó: jogador de futebol, também faz
parte do grupo de vadios que anda com Cassi. O PAINEL INTELECTUAL
• Dona Margarida Weber Pestana: viúva, mãe de
Ezequiel, descendente de Alemão; ela, russa. Casou Próprio da obra de Lima Barreto, há no romance uma
no Brasil com tipógrafo que falecera dois anos após visão crítica da vida literária e intelectual desse início
o casamento. Era dona de uma pensão, mulher co- de séc. XX. Num momento cultural carioca chamado de
rajosa, que, junto com Clara e Engrácia, vai à casa Belle Époque, havia uma espécie de apogeu da erudição,
de Salustiana tomar satisfações pelas atitudes de o que gerou um modismo literário marcado pelo rebus-
Cassi. camento. Nessa época, importante era “parecer” culto,
mostrando isso por meio de uma linguagem empolada,
No romance, há também diversos outros perso- muitas vezes incompreensível. Predominava, portanto,
nagens que compõem a sociedade suburbana nesse meio, uma cultura de aparência, criticada demais
carioca: intelectuais de araque, vadios, religiosos, por Lima Barreto. Mesmo distante do centro da capital,
cartomantes. o subúrbio também possui seus intelectuais de aparên-
cia, como o “doutor” Praxedes, ridicularizado pelo nar-
rador.
ESPAÇO: O SUBÚRBIO [...] O cavalheiro digno de nota era um preto baixo,
Mais que a história protagonizada por Clara e Cassi Jo- um tanto corcunda, com o ombro direito levanta-
nes, Lima Barreto traçou no romance um painel social do, uma enorme cabeça, uma testa proeminente
do subúrbio carioca do início do séc. XX. Bem ao seu e abaulada, a face estreitante até acabar num
gosto, o autor mirou sua narrativa aos excluídos sociais, queixo formando, queixo e face, um V monstruo-
representados em diversos tipos: alcoólatras, deficien- so, na parte anterior da cabeça; e, na posterior,
tes físicos, pobres, malandros, jogadores, músicos, ne- no occipital desmedido, acaba o seu perfil mons-
gros e mulheres “desonradas” por serem adúlteras ou truoso. Chamava-se Praxedes Maria dos Santos;
mães solteiras. mas gostava de ser tratado por doutor Praxedes.
Numa espécie de mundo à parte do Rio de Janeiro turís- A monstruosidade de sua cabeça o pusera a per-
tico e “oficial”, a narrativa mostra uma parte da cidade der. Por tê-la assim, julgou-se uma inteligência,
que vive à revelia, abandonada pelo Estado. um grande advogado, e pôs a freqüentar cartó-
rios, servindo de testemunha, quando era preci-
so, indo comprar estampilhas, etc., etc.

Domínio | Obras Literárias 23


Período: Pré-Modernismo

Com o tempo, tomou algumas luzes e atirou-se Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta
a tratar de papéis de casamento e organizou anos, branco, sardento, insignificante, de rosto
uma biblioteca particular de manuais jurídicos, e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como
de índices de legislação, etc., etc. Vestia-se sem- consumado “modinhoso”, além de o ser também
pre de fraque, botinas de verniz ou gaspeadas, por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis,
e não dispensava a pasta indicadora de homens não tinha as melenas do virtuose do violão, nem
de leis, Quando foi moda ser de rolo, ele a usou outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se se-
assim; quando veio a moda de ser em saco, como riamente, segundo as modas da Rua do Ouvidor;
a trazem agora os advogados, ele comprou uma mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos,
luxuosa de marroquim com fechos de prata. as suas roupas chamavam a atenção dos outros,
que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoa-
díssimo “Brandão”, das margens da Central, que
Nesse ambiente de cultura de aparência, escritores de lhe talhava as roupas. A única pelintragem, ade-
verdade não têm destaque, nem conseguem viver da quada ao seu mister, que apresentava, consistia
arte da escrita. O caso de Leonardo Flores é um exem- em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido
plo: poeta autêntico, com livros pulicados, mas foi o que no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao
menos ganhou dinheiro com seus versos. meio - a famosa “pastinha”. Não usava topete,
nem bigode. O calçado era conforme a moda,
mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um
Aparecia, também, em certas ocasiões, o Leo- elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as
nardo Flores, poeta, um verdadeiro poeta, que damas com o seu irresistível violão.
tivera o seu momento de celebridade no Brasil
inteiro e cuja influência havia sido grande na gera-
ção de poetas que se lhe seguiram. Naquela épo- Como se pode perceber, Cassi não possui nada de espe-
ca, porém, devido ao álcool e desgostos íntimos, cial, nem fisicamente, nem quanto ao talento artístico.
nos quais predominava a loucura irremediável de Ele é personagem que representa um tipo de malandro
um irmão, não era mais que uma triste ruína de como tantos outros espalhados pelos subúrbios.
homem, amnésico, semi-imbecilizado, a ponto de
não poder seguir o fio da mais simples conversa.
Havia publicado cerca de dez volumes, dez suces- Cassi é o tipo mais completo de vagabundo do-
sos, com os quais todos ganharam dinheiro, me- méstico que se pode imaginar. É um tipo de bra-
nos ele, tanto assim que, muito pobremente, ele, sileiro.
mulher e filhos agora viviam com o produto de
uma mesquinha aposentadoria sua, do governo Sem ocupação séria, vadiava como músico medíocre.
federal. Com a fama de músico, seduzia moças pobres e negras
e as abandonava após elas engravidarem.

CASSI JONES: UM MALANDRO “Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia


detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer,
Um dos principais personagens do romance é um des- empregava todo o arsenal de amor antigo, que
ses malandros suburbanos: Cassi. Resultado de uma impressiona tanto a fraqueza de coração das po-
criação frouxa dada pela mãe e da passividade do pai, bres moças, nas quais a pobreza, a estreiteza de
que, para não contrariar a esposa, evitava se introme- inteligência e a reduzida instrução concentram a
ter na forma como mimava o filho, Cassi se tornou um esperança de felicidade no amor correspondido”.
completo irresponsável. Tudo acontecia sob a proteção
de uma mãe, que, com mania de grandeza, via no filho
um ser superior naquele subúrbio.
[...] “apresentado por Lafões, aos donos da casa,
e à filha, ninguém lhe notou o olhar guloso de
Cassi Jones de Azevedo era filho legítimo de Ma- grosseiro sibarita sexual que deitou para os seios
nuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de empinados de Clara”.
Azevedo. O Jones é que ninguém sabia onde ele
o fora buscar, mas usava-o, desde os vinte e um
anos, talvez, conforme explicavam alguns, por
achar bonito o apelido inglês. O certo, porém, não CLARA: UMA VÍTIMA
era isso. A mãe, nas suas crises de vaidade, di-
zia-se descendente de um fantástico Lord Jones, Enquanto Cassi é consequência de uma educação
que fora cônsul da Inglaterra, em Santa Catarina; permissiva, Clara é fruto de uma situação contrária:
e o filho julgou de bom gosto britanizar a firma apesar de negra e suburbana, sua condição de vida é
com o nome do seu problemático e fidalgo avô. razoavelmente melhor que a das demais de condição
semelhante. Ela é filha de um pai que possui colocação
fixa, embora modesta. Por isso, nunca chegou a passar
O narrador sempre destaca Cassi Jones como um sujei- necessidades de sobrevivência, graças ao trabalho de
to totalmente medíocre: Carteiro de Joaquim. Além disso, Engrácia, a mãe, dá
à Clara uma educação rígida, com fortes princípios de
moral e comportamtento.

24 Domínio | Obras Literárias


Período: Pré-Modernismo
UMA QUESTÃO (DE GÊNERO): A IMPUNIDADE
[Engrácia] Não saía quase. Era regra que só o fi-
zesse duas vezes por ano: no dia 15 de agosto, Como se pode ver no romance, Clara foi apenas mais
em que subia o outeiro da Glória, a fim de deixar uma vítima entre tantas moças abusadas por Cassi.
uma espórtula à Nossa Senhora de sua íntima
devoção; e, no dia de Nossa Senhora da Concei-
ção, em que se confessava. Levava sempre a fi- Era bem misterioso esse seu violão; era bem um
lha e não a largava de a vigiar. Tinha um enorme elixir ou talismã de amor. Fosse ele ou fosse o vio-
temor que sua filha errasse, se perdesse... A não lão, fossem ambos conjuntamente, o certo é que,
ser com ela, Clara, muito a contragosto da mãe, no seu ativo, o Senhor Cassi Jones, de tão pouca
saía de casa para ir ao cinema, no Méier e En- idade, relativamente, contava perto de dez deflo-
genho de Dentro, e outras vezes - poucas - para ramentos e a sedução de muito maior número de
fazer compras nas lojas de fazendas, de sapatos senhoras casadas.
e outras congêneres, acreditadas nos subúrbios.
Todas essas proezas eram quase sempre segui-
Essa reclusão e, mais do que isso, a constante vi- das de escândalo, nos jornais, nas delegacias,
gilância com que sua mãe seguia os seus passos, nas pretorias; mas ele, pela boca dos seus ad-
longe de fazê-la fugir aos perigos a que estava vogados, injuriando as suas vitimas, empregando
exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua os mais ignóbeis meios da prova de sua inocên-
condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosi- cia, no ato incriminado, conseguia livrar-se do ca-
dade em descobrir a razão do procedimento de samento forçado ou de alguns anos na correção.
sua mãe.

Nesse caso, o narrador compõe em Clara uma caracte- Naturalmente, um dos pricipais fatores que mantinham
rização oposta à de Cassi. Este é um mimado sem prin- malandros como ele praticando tais atos é a impunida-
cípios; aquela, uma moça humilde e bem-criada. Porém, de. Isso garantia a Cassi a liberdade para contunuar fa-
é importante, para o estudo do romance, notar que o zendo vítimas entre as moças pobres. Mas, não havia
narrador faz crítica a essas duas formas radicalmente alguma lei, alguma proteção estatal para essa vítimas?
opostas de educação: se a de Cassi fez dele um ma-
landro irresponsável, a maneira como Clara fora criada Embora a Lei da época prevesse “contra a segurança
deixou-a ingênua demais. Por ficar demais “presa” em da honra e honestidade das famílias e do ultraje público
casa, ela não conheceu as artimanhas de pessoas mal- ao pudor” (Código Penal de 1890), é claro que meninas
-intencionadas espalhadas pelo mundo. como Clara, negra e pobre, não tinham condições de
fazer valer seus direitos. Cabiam a elas enfrentar sozi-
nhas as consquências físicas (a gravidez) e, principal-
A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a supersti- mente, a condenação moral: o conhecido preconceito
ção dos processos mecânicos, daí o seu proce- contra as mães solteiras. Algumas buscavam o aborto
der monástico em relação à Clara. Enganava-se como solução; outras nem tinham recursos para isso.
com a eficiência dela; porque, reclusa, sem con- Para a maioria dessas suburbanas, o máximo que po-
vivência, sem relações, a filha não podia adquirir diam fazer era um escândalo, que poderia servir ape-
uma pequena experiência da vida e notícia das nas como desabafo, mas nada que realmente punisse
abjeções de que está cheia, como também a sua o malandro. Esse foi o caso de primeira moça abusada
pequenina alma de mulher, por demais comprimi- por Cassi.
da, havia de se extravasar em sonhos, em sonhos
de amor, de um amor extra-real, com estranhas
reações físicas e psíquicas. – Você sabe onde tá teu fio? Tá na detenção, fi-
que você sabendo. Se meteu com ladrão, é pivete.
Eis aí o que ocê feiz, seu marvado, homi mardi-
Assim, Clara acaba se tornando ingênua demais, sem çoado. Pior do que ocê só aquela galinha da an-
capacidade de desconfiar, de se proteger. Logo, ela é a gola da sua mãe, seu sem vergonha.
presa perfeita para um aproveitador como Cassi.
Clara fez algo parecido ao ir à casa dos pais de Cassi,
A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretan- acompanhada da mãe e de Margarida. Porém, ao invés
to, de um poder reduzido de pensar, que não lhe de receber um amparo da família do malfeitor, espe-
permitia meditar um instante sobre o seu desti- rança que ainda alimentara, recebeu, na verdade, ainda
no, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. mais humilhações da parte de Salustiana.

Mesmo conhecendo a fama de malandro de Cassi, ela Ao ouvir a pergunta de Dona Salustiana, [Clara]
se apaixona por esse músico branco, que a ilude com não se pôde conter e respondeu como fora de si:
promessas e falsas demonstrações de carinho.
— Que se case comigo.
Dona Salustiana ficou lívida; a intervenção da mu-
[...] tinha às vezes vontade de dizer ao seu padri- latinha a exasperou. Olhou-a cheia de malvadez e
nho: ‘padrinho, esse Cassi deve ser muito rico, indignação, demorando o olhar propositadamen-
porque compra a polícia, a justiça, para não ser te. Por fim, expectorou:
preso. Olhe: se ele fosse condenado pela metade — Que é que você diz, sua negra?
dos crimes que o senhor lhe atribui, estaria já na
cadeia por mais de trinta anos’.

Domínio | Obras Literárias 25


Período: Pré-Modernismo
Foi necessária essa humilhação para que Clara perce-
besse como de fato a sociedade enxergava uma moça Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vin-
da sua condição: negra, pobre, suburbana e, agora, “de- do. Dona Margarida relatou a entrevista, por en-
sonrada”. tre o choro e os soluços da filha e da mãe.
Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira
em que se sentara e abraçou muito fortemente
Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela do- sua mãe, dizendo, com um grande acento de de-
lorosa cena que tinha presenciado e no vexame sespero:
que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da
sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofen- - Mamãe, mamãe!
dida irremediavelmente nos seus melindres de - Que é minha filha?
solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, – Nós não somos nada nesta vida.
para se convencer de que ela não era uma moça
como as outras; era muito menos no conceito de
todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coi- Ao utilizar o plural na ultima fala, percebe-se um dos te-
tado!... mas da obra: a condição da mulher no início do século
XX. Trata-se de um excelente apelo de constatação da
situação feminina frente ao machismo e ao oportunis-
No último parágrafo, a conclusão do romance: Clara mo da época; frente ao culto à virgindade; frente à ideia
compreende a situação, não apenas a dela, mas a de étnica; frente à situação de ser mãe solteira e frente a
toda a sua classe. pobreza.

TESTES
rado. A mãe veio a descobrir-lhe a falta, que se denuncia-
01 (FUVEST) va pelo estado do seu ventre. Correu ao Senhor Manuel,
que não estava.
A obra de Lima Barreto:
Falou a Dona Salustiana e esta, empertigando-se toda,
a) Reflete a sociedade rural do século XIX, podendo ser disse secamente:
considerada precursora do romance regionalista moder- — Minha senhora, eu não posso fazer nada. Meu filho é
no; maior.
b) Tem cunho social, embora esteja presa aos cânones — Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que é, e
estéticos e ideológicos românticos, e influenciou forte- de filhas, talvez obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de
mente os romancistas da primeira geração modernista; mim e da minha, minha senhora.
c) É considerada pré-modernista, uma vez que reflete a E pôs-se a chorar e a soluçar.
vida urbana paulista antes da década de 1920;
Dona Salustiana respondeu amuada, sem demonstrar o
d) Gira em torno da influência do imigrante estrangeiro mínimo enternecimento por aquela dor inqualificável:
na formação da nacionalidade brasileira, refletindo uma
grande consciência crítica dessa problemática; — Não posso fazer nada, no caso, minha senhora. Já lhe
disse. A senhora recorra à justiça, à polícia, se quiser. É
e) É pré-modernista, refletindo forte sentimento nacional o único remédio.
e grande consciência crítica de problemas brasileiros.
A mãe de Nair acalmou-se um pouco e observou:
02 (UFLA - MG, adaptada) – O enredo da obra Clara — Era o que eu queria evitar. Será uma vergonha para
dos Anjos, de Lima Barreto, retoma uma das constantes mim e para a senhora e família.
da ficção que predomina entre o período da implantação — Nós nada temos com o que Cassi faz. Se fosse nossa
do naturalismo e do modernismo, que é a questão: filha…
a) da desilusão amorosa, reafirmando a triste realidade Não acabou a indireta injuriosa; levantou-se e estendeu a
daqueles que não “enxergavam” a diferença de classes; mão à desolada mãe, como que a despedindo.
b) da solidão, retratando-a por meio de romances confli- A viúva saiu cabisbaixa; e, dali, foi à audiência do delegado
tuosos e reprimidos; distrital e expôs tudo. O delegado disse-lhe:
c) da especulação metafísica a respeito da natureza do — Apesar de estar ainda não há seis meses neste dis-
homem; trito, sei bem quem é esse patife de Cassi. O meu maior
d) da injustiça contra os oprimidos, revelando o jogo de desejo era embrulhá-lo num bom e sólido processo; mas
mentira e poder a que as pessoas estão sujeitas; não posso, no seu caso. A senhora não é miserável, pos-
sui as suas pensões de montepio e meio soldo; e eu só
e) do preconceito racial e social, vivenciado pelos negros posso tomar a iniciativa do processo quando a vítima é
e mestiços. filha de pais miseráveis, sem recursos.
— Mas, não há remédio, doutor?
03 Leia o trecho abaixo e, sobre ele, assinale a alterna-
— Só a senhora constituindo advogado.
tiva correta:
— Ah! Meu Deus! Onde vou buscar dinheiro para isso?
Enfim, a pequena Nair, inexperiente, em plena crise de Minha filha, desgraçada, meu Deus!
confusos sentimentos, sem ninguém que lhe pudesse
orientar, acreditou nas lábias de Cassi e deu o passo er- (Lima Barreto, Clara dos Anjos, cap. II.)

26 Domínio | Obras Literárias


Período: Pré-Modernismo
a) A justiça era bastante rigorosa na perseguição de se- çadoras nuvens pairavam baixo, ainda mais carregando
dutores como Cassi Jones, o que se pode observar pela de treva a atmosfera e ofuscando os lampiões, cuja luz
fala do delegado; oscilava sob o açoite de um vento constante e cortante.
b) O sentimento de superioridade e a insensibilidade de Não se via, como é costume dizer-se, um palmo diante
Cassi para com os outros provém do exemplo materno; do nariz.
c) Nair é uma exceção ao perfil das vítimas de Cassi Considerando o fragmento contextualizado da obra, está
Jones: moças órfãs, negras ou mulatas, e pobres, sem correto o que se afirma na alternativa:
orientação; a) descrição da paisagem constitui um prenúncio do trá-
d) O delegado, encarna a insensibilidade da polícia para gico destino de Marramaque;
com os pobres, pois não demonstra “o mínimo enterneci- b) O relacionamento de Marramaque — na condição de
mento por aquela dor inqualificável”; poeta — com os frequentadores da venda é conflituoso,
e) D. Salustiana, ao recomendar à mãe de Nair que vá à por ele não ter a aprovação pública de seus versos;
polícia, demonstra não acobertar os atos vis e crimino- c) O narrador, quando se refere a Marramaque como
sos do filho. “pobre contínuo”, deprecia-o socialmente;
d) O narrador conduz a narrativa, mantendo um distan-
04 Ainda em relação ao trecho anterior, a sua lingua- ciamento crítico, evitando, assim, um ponto de vista sub-
gem, assinale a alternativa incorreta: jetivo e parcial;
a) O estilo coloquial do autor se evidencia na pouca dife- e) O padrinho de Clara e seu núcleo familiar comprovam,
rença entre o registro de linguagem do narrador e o das na obra, a degradação social dos moradores do subúrbio.
falas das personagens;
b) O autor apresenta um estilo direto, frequente em sua 07 (UFCG - PB, adaptada) – Com relação às persona-
obra, influenciada pela escrita jornalística; gens femininas do romance Clara dos Anjos, é INCORRE-
c) O autor é prolixo nas descrições do espaço (casa de TO afirmar que:
Salustiana e delegacia) e do estado de ânimo das perso- a) Dona Margarida é a única personagem feminina forte,
nagens (Nair e sua mãe); atuante em todas as situações: um contraponto às de-
d) A “indireta injuriosa” consiste em Salustiana sugerir, mais personagens femininas do livro;
em sua fala, que suas filhas não incorreriam na mesma b) Clara é descrita pelo narrador como uma jovem so-
falha moral de Nair — portanto, a culpa era desta e de nhadora e ingênua, que precisava de mãos fortes que a
sua mãe, que não a educara; modelassem e fixassem;
e) As expressões “passo errado” e “falta” são eufemis- c) Engrácia, mãe de Clara, era uma mulher frágil, passiva,
mos para se referir às relações sexuais pré-matrimoniais incapaz de tomar iniciativa em qualquer emergência;
entre Nair e Cassi. d) Clara, ao retornar humilhada da casa de Cassi, come-
ça a tomar consciência de sua situação de classe e de
05 Ao final do capítulo I, Joaquim joga cartas com seus raça;
amigos Lafões e Marramaque, que são apresentados. e) diferentemente da mãe, Clara é uma jovem perspicaz,
Logo mais, no capítulo III, a história de ambos é descrita atenta, sobretudo, aos ardis dos jovens que dela se apro-
detalhadamente. Em relação a esses personagens, pode- ximam.
se afirmar que:
a) Marramaque e Lafões são exemplos de um tipo muito 08 Com base na caracterização do personagem Joa-
comum na obra de Lima Barreto: o suburbano orgulhoso, quim dos Anjos, assinale a alternativa correta:
que, sendo funcionário público, considera-se superior;
a) Joaquim dos Anjos era um homem muito severo e
b) Lafões configura-se como um homem consciente, inte- desconfiado, motivo pelo qual nutre um ciúme doentio da
ressado em política e desconfiado de todos os planos e mulher e da filha;
promessas apresentados pelos homens públicos;
b) Apesar de sua instrução rudimentar, Joaquim é mui-
c) Marramaque gostava muito de ouvir e dançar modi- to inteligente e perspicaz ao analisar o discernimento de
nhas, e é ele quem propõe levar Cassi Jones para tocar Clara em relação à vida;
no aniversário de Clara;
c) O retrato positivo de Joaquim dos Anjos contrasta com
d) Marramaque era funcionário público, mas outrora so- o retrato negativo de seus chefes estrangeiros, “homens
nhara em ser poeta, chegando a frequentar, na juventu- louros, rubicundos” (cap. VIII);
de, a boemia literária do Rio de Janeiro;
d) O estilo de crônica que Lima Barreto adota neste livro
e) Eram os fiéis companheiros de Joaquim dos Anjos, em- privilegia o descritivismo pormenorizado dos locais em
bora Lafões não tivesse um emprego público e instrução detrimento da descrição psicológica dos personagens —
acadêmica, como os demais. como é o caso de Joaquim dos Anjos, cuja índole não nos
é revelada;
06 (UNEB - BA, adaptada) – Leia o excerto a seguir, e) Joaquim dos Anjos era um homem correto e acredi-
retirado de Clara dos Anjos: tava que todos o fossem, motivo pelo qual não crê firme-
Assim, sem outra preocupação, naquela tarde tempes- mente, num primeiro momento, na má índole e ousadia
tuosa, conversaram na venda, enquanto Marramaque de Cassi.
estivera e mesmo depois da sua saída. É óbvio que ne-
nhuma das pessoas que lá estavam poderia adivinhar 09 Considere o trecho abaixo, retirado de Clara dos
o que lhe ia acontecer pelo caminho. Chuviscava teimo- Anjos e analise as proposições na sequência:
samente, mas não havia o que se chama uma chuva
torrencial, quando o pobre contínuo se despediu. É ver- Chegou à repartição, assinou o ponto, cumprimentou os
dade que a noite estava pavorosa de escuridão, e amea- colegas e chefes; e, à hora certa, tomou a correspon-
dência a distribuir e lá correu para escritórios, casas de
Domínio | Obras Literárias 27
Período: Pré-Modernismo
comércio, entregando cartas e pacotes.
10 (UFCG - PB) – Com relação à importância do espa-
Vinha tudo isto com nomes arrevesados: franceses, in- ço, em Clara dos Anjos, considere como verdadeiras (V)
gleses, alemães, italianos, etc.; mas, como eram sem- ou falsas (F) as afirmações abaixo.
pre os mesmos, acabara decorando-os e pronunciando-
os mais ou menos corretamente. Gostava de lidar com ( ) As descrições tornam-se cansativas e sem função
aqueles homens louros, rubicundos, robustos, de olhos estética no contexto da obra.
cor do mar, entre os quais ele não distinguia os che- ( ) As descrições de partes do subúrbio tornam-se ins-
fes e os subalternos. Quando havia brasileiros, no meio trumento de denúncia das condições de vida dos mais
deles, logo adivinhava que não eram chefes. Almoçava pobres.
frugalmente e até às cinco executava o serviço, isto é, ( ) Embora a descrição seja de espaços urbanos do
as várias distribuições de correspondência. início do século XX, ela permanece atual, tendo em vis-
I. O trecho apresenta a relação entre desigualdade social ta a permanência de muitas das situações de exclusão
e etnia, no Brasil, quando contrapõe a diferença entre apresentadas.
chefes estrangeiros e subalternos brasileiros. ( ) O narrador, ao chamar a atenção para alguns es-
II. A descrição da exploração de que Joaquim é vítima paços, esquece de aproximá-los da realidade dos perso-
em seu trabalho é um dos aspectos da exploração racial nagens.
abordada no romance. Assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:
III. Em outros momentos do romance, podemos propor
uma contraposição entre D. Margarida, que se adaptara a) F, V, V, F;
ao Brasil “sem perder nada da tenacidade, do esprit de
suite, da decidida coragem da sua origem”, e a passivida- b) V, F, V, V;
de de Joaquim e sua família: nessa comparação, entreve- c) V, F, F, V;
em-se influências das teorias deterministas na formação d) F, V, V, V;
do caráter de uma pessoa, que se molda pelo ambiente e) V, F, V, F.
em que viveu.
Agora, assinale a opção que contém apenas afirmações
corretas:
a) I e II;
b) III;
c) I, II e III;
d) II e III;
e) I e III.

ANOTAÇÕES

GABARITO
01. e 02. e 03. b 04. c 05. d 06. a 07. e 08. e 09. e 10. a

28 Domínio | Obras Literárias


Obras Literárias PERÍODO: 3ª FASE MODERNISTA

João Cabral de Melo Neto pertence à 3ª fase modernis- tes pelo caminho, decepciona-se com o sonho da cidade
ta, também conhecida como “Geração de 45”. A partir grande, do mar.
de rupturas principalmente estéticas com a primeira e a Decide-se por saltar fora da ponte e da vida atirando-se
segunda fases modernistas, é conhecida também como no rio Capibaribe. Enquanto se prepara para morrer e
“Fase Pós-Moderna”. conversa com seu José, uma mulher anuncia que o fi-
Trata-se de uma geração preocupada, no caso de Guima- lho deste saltou dentro da vida, ou seja: nasceu. Severino
rães Rosa e João Cabral, com a palavra e a forma, além assiste ao auto de Natal (encenação comemorativa do
da temática do moderno regionalismo. nascimento).
É o segundo movimento, o da vida. O autor não coloca
MORTE E VIDA SEVERINA - JOÃO CABRAL DE MELO a euforia da ressurreição da vida dos autos tradicionais;
NETO ao contrário, o otimismo que aí ocorre é de confiança no
homem, em sua capacidade de resolver os problemas
SOBRE JOÃO CABRAL DE MELO NETO
sociais.
Por fim, seu José, mestre carpina, tenta convencer Seve-
Nascido em Recife, em 1920, João rino a não se atirar no rio, para fora da vida.
Cabral de Melo Neto era proveniente
de tradicionais famílias pernambuca-
nas e paraibanas. Viveu a infância em RESUMO E ANÁLISE
meio aos engenhos de seus avós. Es-
tudou em Recife, no Colégio dos Ir- Morte e Vida Severina, Auto de Natal Pernambucano,
mãos Maristas. Exerceu funções de um sujeito coletivo e passivo a gente sem nome que
consulares em Barcelona, Sevilha, baixou com o rio até o Recife. Patronímico dos mais fre-
Marselha, Madri, Genebra, Berna, quentes no Nordeste, o nome do personagem desse
Honduras e Portugal. Auto, Severino, passa de substantivo próprio a comum.
São severinos todos os retirantes que a seca escorraça
Uma das características fundamen- do sertão e que o latifúndio escorraça da terra. A palavra
tais de sua poesia é a linguagem concisa, seca e princi- perde, então, seu caráter de substantivo, e o ser que ela
palmente a criação de imagens visuais. designa a sua substância: “severino” adjetivo qualifica a
João Cabral salienta-se por seu constante combate ao existência negada. Essa mudança de categoria gramati-
sentimentalismo e à poesia irracional. Parte para uma cal, que corresponde a uma mudança de categoria na
análise do significado da poesia, tentando fazer com que existência social.
ele saia da posição em que sempre se mantém. é o enge- Pode-se, consequentemente, voltar ao nome em sua
nheiro da poesia e da linguagem. Sonha com a realização substantividade, mas já como gênero abstrato a severini-
do verso nítido e preciso. dade de uma situação humana de carência, que designa
Concisão e precisão são, na verdade, os traços domi- igualmente todo aquele que dela participa. Um e muitos,
nantes da poesia de João Cabral. Sua obra, entretanto, o personagem do Auto, que se chama Severino e que,
segue dois caminhos que ele próprio classifica como as como o rio, vem do sertão para desaguar nos mangues
duas águas. De um lado, os poemas concisos, a busca do Recife, abrange todos os outros incontáveis severinos.
da perfeição de vocabulário, a poesia metalinguística.
De outro, a poesia de participação. São os versos que
realizam uma análise social, retratam as condições do O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
homem nordestino. Sem nenhuma concessão ao senti- — O meu nome é Severino,
mentalismo, retrata e analisa todo o sofrimento da vida não tenho outro de pia.
subumana do homem de sua terra.
(...)
A OBRA
Morte e Vida Severina, o texto mais popular de João Ca- Somos muitos Severinos
bral, é um auto de Natal do Folclore pernambucano e, iguais em tudo na vida:
também, da tradição ibérica. Sua linha narrativa segue na mesma cabeça grande
dois movimentos que aparecem no título: morte e vida.
No primeiro, temos, o trajeto de Severino, o retirante que que a custo é que se equilibra,
vem do Sertão para o Litoral, em face da opressão econô- no mesmo ventre crescido
mico-social, seguindo a trilha do Rio Capibaribe. sobre as mesmas pernas finas,
Quando atinge o Recife, depois de encontrar muitas mor- e iguais também porque o sangue
Domínio | Obras Literárias 29
Período: 3ª Fase Modernista
que usamos tem pouca tinta. — Até que não foi morrida,
E se somos Severinos irmão das almas,
iguais em tudo na vida, esta foi morte matada,
morremos de morte igual, numa emboscada.
mesma morte severina: (...)
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,de emboscada antes dos vin- E o que havia ele feito,
te, irmãos das almas,
de fome um pouco por dia e o que havia ele feito
(...) contra a tal pássara?
— Ter uns hectares de terra,
Mas, para que me conheçam irmão das almas,
melhor Vossas Senhorias de pedra e areia lavada
e melhor possam seguir que cultivava.
a história de minha vida, (...)
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra. O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR PORQUE
SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O VERÃO
O texto tem marcante ambivalência de estrutura: nar-
rativo, quanto ao encadeamento e ao caráter episódico
das cenas que o compõem, e dramático, quanto ao ca- — Antes de sair de casa
ráter geral da ação que se desenrola através dessas aprendi a ladainha
cenas. Cabe ao personagem a iniciativa de começar o
relato de sua história, cujo desenvolvimento, apresen- das vilas que vou passar
tado em quadros sucessivos, precedidos de entrechos na minha longa descida.
narrativos que descrevem antecipadamente um aconte- (...)
cimento ou situação, produzem-se sob diversas formas:
monólogos, diálogos, lamentos e elogios.
sei que há simples arruados,
É fácil perceber a composição mista do drama, que se
perfaz em dois movimentos simétricos, nos limites da sei que há vilas pequeninas,
oposição entre Morte e Vida compreendida pelo próprio todas formando um rosário
título do Auto: o da viagem de Severino até o Recife, pe- cujas contas fossem vilas,
sado e sombrio, que corresponde à morte; o do auto (...)
natalino, leve e alegre, que corresponde à vida.
ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUN- Pensei que seguindo o rio
TO NUMA REDE, AOS GRITOS DE: “Ó IRMÃOS DAS AL- eu jamais me perderia:
MAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUE MATEI
NÃO!” ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
— A quem estais carregando, Mas como segui-lo agora
irmãos das almas, que interrompeu a descida?
embrulhado nessa rede? Vejo que o Capibaribe,
dizei que eu saiba. como os rios lá de cima,
— A um defunto de nada, é tão pobre que nem sempre
irmão das almas, pode cumprir sua sina
que há muitas horas viaja e no verão também corta,
à sua morada. com pernas que não caminham.
— E sabeis quem era ele, (...)
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTAN-
DO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM
ou se chamava? HOMEM, DO LADO DE FORA, VAI PARODIANDO AS PA-
— Severino Lavrador, LAVRAS DOS CANTADORES
irmão das almas,
(...) — Finado Severino,
quando passares em Jordão
E foi morrida essa morte, e os demônios te atalharem
irmãos das almas, perguntando o que é que levas...
essa foi morte morrida — Dize que levas cera,
ou foi matada? capuz e cordão

30 Domínio | Obras Literárias


Período: 3ª Fase Modernista
mais a Virgem da Conceição. Deseja mesmo saber
— Finado Severino, o que eu fazia por lá?
etc... comer quando havia o quê
— Dize que levas somente e, havendo ou não, trabalhar.
coisas de não: — Essa vida por aqui
fome, sede, privação. é coisa familiar;
— Finado Severino, mas diga-me, retirante,
etc... sabe benditos rezar?
(...) sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTER- (...)
ROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABA-
LHO ALI ONDE SE ENCONTRA
Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
— Desde que estou retirando
trabalhávamos a meias,
só a morte vejo ativa,
que a freguesia bem dá.
só a morte deparei
(...)
e às vezes até festiva;
só morte tem encontrado
Vou explicar rapidamente,
quem pensava encontrar vida,
logo compreenderá:
e o pouco que não foi morte
como aqui a morte é tanta,
foi de vida severina
vivo de a morte ajudar.
(aquela vida que é menos
vivida que defendida, Outros elementos, como os étnicos, e folclóricos (exce-
e é ainda mais severina lências, rezadeiras, velórios, enterramentos) alargam o
quadro da existência social, trazendo no sentimento de
para o homem que retira). vingança, na violência generalizada, na conformação à
(...) morte, uma realidade mais rica, mais intensa e extensa
em motivações épico- dramáticas, sem que o episódio
seja meramente decorativo.
Vejo uma mulher na janela,
ali, que, se não é rica,
O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ
parece remediada PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM
ou dona de sua vida: — Bem me diziam que a terra
vou saber se de trabalho se faz mais branda e macia
poderá me dar notícia. quanto mais do litoral
a viagem se aproxima.
DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA, QUE DEPOIS DESCO- (...)
BRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ

Os rios que correm aqui


— Muito bom dia, senhora,
têm a água vitalícia.
que nessa janela está;
Cacimbas por todo lado;
sabe dizer se é possível
cavando o chão, água mina.
algum trabalho encontrar?
Vejo agora que é verdade
— Trabalho aqui nunca falta
o que pensei ser mentira.
a quem sabe trabalhar;
(...)
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
Por onde andará a gente
— Pois fui sempre lavrador,
que tantas canas cultiva?
lavrador de terra má;
Feriando: que nesta terra
(...)
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
Conheço todas as roças
todas as horas do dia,
que nesta chã podem dar:
os dias todos do mês,
o algodão, a mamona,
os meses todos da vida.
a pita, o milho, o caroá.
Decerto a gente daqui
(...)
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
Domínio | Obras Literárias 31
Período: 3ª Fase Modernista
vida em morte, severina; foi defender minha vida
e aquele cemitério ali, da tal velhice que chega
branco na verde colina, antes de se inteirar trinta;
decerto pouco funciona se na serra vivi vinte,
e poucas covas aninha. se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
Em Morte e Vida Severina particulariza-se mais o fenô-
meno da grande propriedade territorial, sendo o latifún- foi estendê-la um pouco ainda.
dio expressamente referido como dado material próxi- (...)
mo, fonte de tensões dramáticas que a existência dos
indivíduos interioriza.
o rio não corta em poços
como ele faz na Caatinga:
ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO
E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O vive a fugir dos remansos
LEVARAM AO CEMITÉRIO a que a paisagem o convida,
com medo de se deter,
— Essa cova em que estás, grande que seja a fadiga.
com palmos medida, Sim, o melhor é apressar
é a conta menor o fim desta ladainha,
que tiraste em vida. fim do rosário de nomes
— É de bom tamanho, que a linha do rio enfia;
nem largo nem fundo, é chegar logo ao Recife,
é a parte que te cabe derradeira ave-maria
deste latifúndio. do rosário, derradeira
— Não é cova grande, invocação da ladainha,
é cova medida, Recife, onde o rio some
é a terra que querias e esta minha viagem se fina.
ver dividida.
— É uma cova grande CHEGANDO AO RECIFE, O RETIRANTE SENTA-SE PARA
para teu pouco defunto, DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E
OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS CO-
mas estarás mais ancho VEIROS
que estavas no mundo. — O dia de hoje está difícil;
— É uma cova grande não sei onde vamos parar.
para teu defunto parco, Deviam dar um aumento,
porém mais que no mundo ao menos aos deste setor de cá.
te sentirás largo. As avenidas do centro são melhores,
— É uma cova grande mas são para os protegidos:
para tua carne pouca, há sempre menos trabalho
mas a terra dada e gorjetas pelo serviço;
não se abre a boca. e é mais numeroso o pessoal
(...) (toma mais tempo enterrar os ricos).
Espécie de fado do retirante, que procura vida e encon- (...)
tra morte. A penúria, a pobreza e o sofrimento, que é
a morte em vida, banalizado como papo do dia a dia. A
esperança, renovada a cada passo, da morte em meio — É que o colega ainda não viu
à miséria. Afirmação da vida que o sofrimento expressa. o movimento: não é o que vê.
Provação do sofrimento transformado em capacidade Fique-se por aí um momento
de luta. São as gradações temáticas do Auto de Natal e não tardarão a aparecer
Pernambucano, que a ideia de severinidade na vida e na
morte compõe. os defuntos que ainda hoje
vão chegar (ou partir, não sei).
O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS PASSOS PARA Podemos subir ainda mais nessa escala temática, até
CHEGAR LOGO AO RECIFE alcançarmos o nível da possibilidade trágica, em que o
ser severino pareceria confundir-se com a vítima de um
— Nunca esperei muita coisa, destino cego e fatal, produto de forças adversas e in-
controláveis.
digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei

32 Domínio | Obras Literárias


Período: 3ª Fase Modernista
O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CA- UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM,
PIBARIBE ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ
— Compadre José, compadre,
— Nunca esperei muita coisa, que na relva estais deitado:
é preciso que eu repita. conversais e não sabeis
Sabia que no rosário que vosso filho é chegado?
de cidades e de vilas, Estais aí conversando
e mesmo aqui no Recife em vossa prosa entretida:
ao acabar minha descida, não sabeis que vosso filho
não seria diferente saltou para dentro da vida?
a vida de cada dia: Saltou para dentro da vida
(...) ao dar seu primeiro grito;
e estais aí conversando;
E chegando, aprendo que, pois sabei que ele é nascido.
nessa viagem que eu fazia,
A partir de então, Severino se retira da ação de que
sem saber desde o Sertão, participa, e passa a presenciar uma outra comemora-
meu próprio enterro eu seguia. ção natalina representada para ele e apresentada ao
Só que devo ter chegado espectador como um auto de Natal dentro do auto pro-
priamente dito, que suprime neste o ritmo da tragédia,
adiantado de uns dias; substituindo-o pelo da comédia.
o enterro espera na porta: O pastoril, como ato de comemoração religiosa, é tam-
o morto ainda está com vida. bém um gesto de consagração da sociedade. Uma mu-
lher do povo substitui o anjo da Anunciação. Os vizinhos,
(...) com seus elogios, tomam o lugar dos anjos que guar-
Seis monólogos de Severino garantem ao curso descon- dam e adoram o menino e, com os seus presentes, o
tínuo da ação desenvolvimento ascendente, que atinge dos reis magos. O mocambo é o presépio do Menino-
o clímax da tragédia quando o personagem, desespe- -Deus e, seu José equivale a São José.
rançado, decide suicidar-se nas águas do Capibaribe.
Esse clímax se aprofunda com o diálogo de Severino e APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO HOMEM
seu José, habitante dos mangues, e se interrompe brus- VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS ETC.
camente com a interferência de uma mulher, que vem
anunciar o nascimento de um menino. — Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor.
APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS Foi por ele que a maré
MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO esta noite não baixou.
RIO (...)
— Seu José, mestre carpina, — E este rio de água cega,
que habita este lamaçal, ou baça, de comer terra,
sabe me dizer se o rio que jamais espelha o céu,
a esta altura dá vau? hoje enfeitou-se de estrelas.
sabe me dizer se é funda
esta água grossa e carnal? COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESEN-
— Severino, retirante, TES PARA O RECÉM-NASCIDO
jamais o cruzei a nado;
— Minha pobreza tal é
quando a maré está cheia
que não trago presente grande:
vejo passar muitos barcos,
trago para a mãe caranguejos
barcaças, alvarengas,
pescados por esses mangues;
muitas de grande calado.
(...)
(...)
— Minha pobreza tal é
— Seu José, mestre carpina,
que coisa não posso ofertar:
que diferença faria
somente o leite que tenho
se em vez de continuar
para meu filho amamentar;
tomasse a melhor saída:
(...)
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?
— Minha pobreza tal é
que não tenho presente melhor:

Domínio | Obras Literárias 33


Período: 3ª Fase Modernista
trago papel de jornal — De sua formosura
para lhe servir de cobertor; já venho dizer:
cobrindo-se assim de letras é um menino magro,
vai um dia ser doutor. de muito peso não é,
(...) (...)
FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO
COM OS VIZINHOS — De sua formosura
— Atenção peço, senhores, deixai-me que diga:
para esta breve leitura: é uma criança pálida,
somos ciganas do Egito, é uma criança franzina,
lemos a sorte futura. mas tem a marca de homem,
Vou dizer todas as coisas marca de humana oficina.
que desde já posso ver
na vida desse menino (...)
acabado de nascer: Quando termina o auto dentro do Auto, seu José reata
com Severino o diálogo interrompido. À filosofia do de-
aprenderá a engatinhar sespero e do suicídio vivida pelo retirante, seu José res-
por aí, com aratus, ponde com a necessidade de afirmação da vida, figura
aprenderá a caminhar didática extraída da alegoria natalina.
na lama, com goiamuns, Aprende-se com tal desfecho, que a condição severina
não é permanente, que a severinidade constitui uma
e a correr o ensinarão identificação determinada de fora para dentro.
os anfíbios caranguejos, A implosão da vida severina poderá transformar-se em
pelo que será anfíbio explosão.
como a gente daqui mesmo.
(...) O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE
FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA
— Atenção peço, senhores, — Severino, retirante,
também para minha leitura: deixe agora que lhe diga:
também venho dos Egitos, eu não sei bem a resposta
vou completar a figura. da pergunta que fazia,
Outras coisas que estou vendo se não vale mais saltar
é necessário que eu diga: fora da ponte e da vida;
não ficará a pescar nem conheço essa resposta,
de jereré toda a vida. se quer mesmo que lhe diga;
Minha amiga se esqueceu é difícil defender,
de dizer todas as linhas; só com palavras, a vida,
(...) ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
Não o vejo dentro dos mangues, mas se responder não pude
vejo-o dentro de uma fábrica: à pergunta que fazia,
se está negro não é lama, ela, a vida, a respondeu
é graxa de sua máquina, com sua presença viva.
coisa mais limpa que a lama E não há melhor resposta
do pescador de maré que o espetáculo da vida:
que vemos aqui, vestido vê-la desfiar seu fio,
de lama da cara ao pé. que também se chama vida,
E mais: para que não pensem ver a fábrica que ela mesma,
que em sua vida tudo é triste, teimosamente, se fabrica,
vejo coisa que o trabalho vê-la brotar como há pouco
talvez até lhe conquiste: em nova vida explodida;
que é mudar-se destes mangues mesmo quando é assim pequena
daqui do Capibaribe a explosão, como a ocorrida;
para um mocambo melhor mesmo quando é uma explosão
nos mangues do Beberibe. como a de há pouco, franzina;
FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM mesmo quando é a explosão
COM PRESENTES ETC. de uma vida severina.

34 Domínio | Obras Literárias


Período: 3ª Fase Modernista

IMPORTANTE!
A análise do poema em questão precisa começar, necessariamente, pelo título. Ao escolher a ordem
“Morte e Vida”, o autor nos apresenta a ideia de que a Vida acaba por negar a Morte, prevalecendo
ao final. É fulcral, também, perceber “Severina” simultaneamente como substantivo e adjetivo, nesse
último caso, qualificando a morte e a vida do sertanejo.
Além disso, embora seja dono de uma poesia técnica, concisa, enxuta, racional e anti-lírica, neste
poema João Cabral demonstra certo sentimentalismo ao deslindar uma enorme crítica social aos
problemas do povo nordestino, dando continuidade à tradição dos prosadores da fase anterior do
Modernismo (a Geração de 30), como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e Jorge Amado. A po-
breza, a penúria, a seca, as doenças, as emboscadas e a questão fundiária estão entre os principais
assuntos debatidos pela obra.
Formalmente, o poema recupera o cunho medieval ao nos apresentar o auto, subgênero de cunho
medieval e que, por definição, exibe uma proposta pedagógica ou lição de moral. A fuga de Severino
do Sertão rumo ao Litoral, é exposta em 18 partes - das quais 12 tratam da morte e 6, da vida - com
versos escritos em redondilhas maiores, ou seja, com 7 sílabas poéticas.
Por fim, vale ressaltar que se encontram, em Morte e Vida Severina, o gênero épico, que narra a
trajetória do herói retirante, e também a encenação do gênero drama.

TESTES
mo nordestino que predominou na década de 30, do qual
01 (UFPR) – Leia o poema de João Cabral de Melo também são exemplos obras como “Vidas Secas”, de
Neto reproduzido abaixo. Graciliano Ramos, e “O Quinze”, de Rachel de Queiroz;
Cemitério Pernambucano 08) No poema acima, a morte das pessoas enterradas
num cemitério pobre se parece muito com a vida que
(São Lourenço da Mata) elas haviam levado (“Foi feito para os mortos/ que afoga
É cemitério marinho o canavial”). Relação semelhante entre vida e morte se
estabelece em “Morte e Vida Severina.”;
mas marinho de outro mar.
16) Apesar de “Morte e Vida Severina” ser um poema
Foi aberto para os mortos longo, formalmente bastante diferente deste “Cemitério
que afoga o canavial. Pernambucano (São Lourenço da Mata)”, eles têm em
comum uma elaborada e contundente crítica social.
As covas no chão parecem
as ondas de qualquer mar, 02 (UFPR) – Assinale as alternativas corretas a res-
mesmo as de cana, lá fora, peito de “Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo
lambendo os muros de cal. Neto.
01) Ao contrário de Jesus Cristo que, ao nascer, recebeu
Pois que os carneiros de terra incenso, ouro e mirra, presentes valiosos, o filho de Seve-
parecem ondas de mar, rino recebe presentes insignificantes, destituídos de valor
não levam nomes: uma onda simbólico no contexto do poema;
onde se viu batizar? 02) A conversa entre Severino e seu José, o mestre car-
pina, revela o otimismo ingênuo do segundo, pois ele ten-
Também marinho: porque ta convencer o retirante de que a felicidade é um bem
as caídas cruzes que há natural, independentemente das dificuldades, bastando
são menos cruzes que mastros estar vivo para ser feliz;
quando a meio naufragar. 04) “É tão belo como um sim/ numa sala negativa” são
(MELO NETO, João Cabral de. “Obras Completas.” Rio de Janeiro: Nova Agui- versos que, somados à cena final, permitem compreen-
lar, 1994, p.157.) der o poema como uma afirmação da vida possível em
meio a uma atmosfera desesperançada, preenchida por
Assinale a(s) alternativa(s) que contém(êm) afirmação “coisas de não”;
correta a respeito da comparação entre este poema e 08) Duas ciganas visitam o recém-nascido e, embora
“Morte e Vida Severina.” uma delas preveja para a criança uma vida igual à que
seus pais tiveram, e a outra enxergue uma mudança de
01) “Morte e Vida Severina”, seja por seu caráter narra- destino, ambas anunciam um futuro cheio de dificuldades
tivo, seja pelo fato de ser um “auto de natal”, aproxima-se para o menino;
mais da poesia popular nordestina do que o poema aci- 16) No início do texto, Severino fracassa ao tentar indivi-
ma, embora este seja escrito em versos de sete sílabas, dualizar-se em relação a outros Severinos; dessa manei-
típicos da literatura popular; ra, estabelece-se o sentido da palavra “severina”, adjetivo
02) No poema acima percebe-se um tom desesperança- criado a partir do nome próprio que designa a dificuldade
do, resultado da vitória da morte sobre a vida, que tam- da vida no Nordeste, partilhada por todos os pobres;
bém se encontra em “Morte e Vida Severina.”; 32) Os momentos de alegria do retirante estão relacio-
04) Os dois poemas são representativos do regionalis-
Domínio | Obras Literárias 35
Período: 3ª Fase Modernista
nados a sua esperança de que existam lugares onde a
luta pela sobrevivência seja menos árdua do que no lugar 05 (UEL)
de onde ele emigrou.
“Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.
03 (PUCPR) – Trecho do poema “Morte e vida severi-
na”, de João Cabral de Melo Neto: Cacimbas por todo lado;
Cavando o chão, água mina.
“O que me fez retirar Vejo agora que é verdade
não foi a grande cobiça; O que pensei ser mentira
o que apenas busquei Quem sabe se nesta terra
foi defender minha vida
da tal velhice que chega Não plantarei minha sina?
antes de se inteirar trinta; Não tenho medo de terra
se na serra vivi vinte, (cavei pedra toda a vida),
se alcancei lá tal medida, e para quem buscou a braço
o que pensei retirando, contra a piçarra da Caatinga
foi estendê-la um pouco ainda. será fácil amansar
Mas não senti diferença esta aqui, tão feminina”
entre o Agreste e a Caatinga, (MELO NETO, João Cabral de. “Morte e vida Severina e outros poemas para
vozes”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 41.)
e entre a Caatinga e aqui a Mata piçarra: material semidecomposto da mistura de fragmentos de rocha, areia
a diferença é a mais mínima. e concreções ferruginosas.

Está apenas em que a terra Em relação ao trecho acima, de “Morte e Vida Severina”,
é por aqui mais macia; considere as afirmativas.
está apenas no pavio, I. Esses versos referem-se ao momento em que Severino
ou melhor na lamparina: chega à zona da mata e encontra a terra mais macia.
Isso nos é revelado num estilo suave e melodioso, em que
pois é igual o querosene a sonoridade das palavras expressa o entusiasmo do re-
que em toda parte ilumina, tirante.
e quer nesta terra gorda II. “Rios”, “cacimbas”, “água vitalícia” e “água mina” são ex-
quer na serra de caliça, pressões que remetem a um pensamento positivo sobre
a vida arde sempre com a região por onde passa o retirante Severino. Isso mostra
a sua alegria por ter encontrado um lugar onde ele viverá
a mesma chama mortiça.” com toda a sua família até a morte.
Aponte a alternativa que contém os versos que expres- III. Nesse trecho Severino encontra o que procura: água
sam a síntese da ideia principal do poema “Morte e vida e, conseqüentemente, vida. Isso está retratado nos ver-
severina”: sos “Não tenho medo de terra/ (cavei pedra toda a vida)”.
a) “O que me fez retirar não foi a grande cobiça;” IV. A expressão “tão feminina” do último verso é uma me-
táfora de terra macia, fácil de trabalhar, e se opõe à ex-
b) “entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e pressão “piçarra da Caatinga”, que significa terra dura,
aqui a Mata;” pedregosa.
c) “Está apenas em que a terra é por aqui mais macia;” V. Os versos “Os rios que correm aqui/ têm a água vita-
d) “e quer nesta terra gorda quer na serra de caliça;” lícia” significam que os rios nunca morrem. Essa consta-
e) “a vida arde sempre com a mesma chama mortiça.” tação refere-se à região da Caatinga, onde Severino vive
sua saga.
04 (PUCPR) – Sobre “Morte e vida severina”, de João Assinale a alternativa correta.
Cabral de Melo Neto, é incorreto afirmar:
a) Apenas as afirmativas I, III e V são corretas;
a) O nascimento de uma criança, no final do poema, re- b) Apenas as afirmativas I e IV são corretas;
lativiza a ideia de que, no Nordeste, a morte sempre se c) Apenas as afirmativas I, II e V são corretas;
sobrepõe à vida;
d) Apenas as afirmativas I, II e IV são corretas;
b) Escrito na década de 50, o poema tem sido adaptado
frequentemente para o teatro e a televisão, o que contri- e) Apenas as afirmativas IV e V são corretas.
buiu grandemente para sua popularização;
c) Trata-se de um poema dramático que tem como subtí- 06 (UEL) – No poema Morte e Vida Severina, podem-
tulo “Auto de Natal pernambucano”; se reconhecer as seguintes características da poesia de
d) O contraste entre vida e morte ganha contornos para- João Cabral de Melo Neto:
doxais quando, chegando ao Recife, Severino, em vez de a) sátira aos coronéis do Nordeste e versos inflamados;
se encantar com o rio que “não seca, vai toda vida”, pensa
em suicidar-se em suas águas; b) experimentalismo concretista e temática urbana;
e) No poema, o único espaço social em que ricos e po- c) memorialismo nostálgico e estilo oral;
bres se igualam é o cemitério. d) personagens da seca e linguagem disciplinada;
e) descrição de paisagens e intenso subjetivismo.

36 Domínio | Obras Literárias


Período: 3ª Fase Modernista
b) a visão do mar aberto, quando Severino finalmente
07 (UFPE) chega ao Recife, representa para o retirante a primeira
afirmação da vida contra a morte;
“Severino retirante,
c) o caráter de afirmação da vida, apesar de toda a misé-
Deixe agora que lhe diga: ria, comprova-se pela ausência da idéia de suicídio;
Eu não sei bem a resposta d) as falas finais do retirante, após o nascimento de seu
Da pergunta que fazia filho, configuram o momento afirmativo, por excelência,
Se não vale mais saltar do poema;
Fora da ponte e da vida: e) a viagem do retirante, que atravessa ambientes me-
Nem conheço essa resposta, nos e mais hostis, mostra-lhe que a miséria é a mesma,
apesar dessas variações do meio físico.
Se quer mesmo que lhe diga;
Ainda mais quando ela é 10 (UPE) – João Cabral de Melo Neto, autor pernam-
Esta que vê, severina; bucano, celebrizou-se com um Auto de Natal, que trata
Mas se responder não pude de uma das questões mais sérias da sociedade brasilei-
à pergunta que fazia, ra, a qual está bem representada na charge abaixo. Re-
Ela, a vida, a respondeu lacione a imagem com o fragmento do texto de Morte e
Vida Severina.
Com sua presença viva.”
(João Cabral de Melo Neto: “Morte e vida severina”)

Sobre o poema de João Cabral, assinale a alternativa IN-


CORRETA.
a) Escrito em versos, é um auto de Natal nordestino e
tem como personagem principal, Severino, um favelado
recifense, que quer saltar “fora da ponte e da vida”;
b) Os versos transcritos representam a voz de outro per-
sonagem (seu José, o mestre Carpina), que dá a Severino
alguma esperança;
c) “A vida a respondeu com sua presença viva” é alusão
ao filho recém-nascido de seu José;
d) A expressão SEVERINA (formada por derivação impró-
pria) significa aqui, anônimo, igual aos demais, e realça a – Essa cova em que estás,
linguagem despojada do texto; com palmos medida,
e) A poesia de Cabral é engajada com o seu meio, embo- é a cota menor
ra contida, chegando a demonstrar desprezo pela confis- que tiraste em vida.
são sentimental.
– É de bom tamanho,
08 (FUVEST) – É correto afirmar que no poema dra-
mático “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo
nem largo nem fundo,
Neto, é a parte que te cabe
a) a sucessão de frustrações vividas por Severino faz dele
neste latifúndio.
um exemplo típico de herói moderno, cuja tragicidade se
expressa na rejeição à cultura a que pertence; – Não é cova grande.
b) a cena inicial e a final dialogam de modo a indicar que, é cova medida,
no retorno à terra de origem, o retirante estará munido é a terra que querias
das convicções religiosas que adquiriu com o mestre car-
pina; ver dividida. – É uma cova grande
c) o destino que as ciganas prevêem para o recém-nas- para teu pouco defunto,
cido é o mesmo que Severino já cumprira ao longo de mas estarás mais ancho
sua vida, marcada pela seca, pela falta de trabalho e pela que estavas no mundo.
retirada;
d) o poeta buscou exprimir um aspecto da vida nordesti- – É uma cova grande
na no estilo dos autos medievais, valendo-se da retórica e
da moralidade religiosa que os caracterizavam; para teu defunto parco,
e) o “auto de natal” acaba por definir-se não exatamente porém mais que no mundo
num sentido religioso, mas enquanto reconhecimento da te sentirás largo.
força afirmativa e renovadora que está na própria natu-
reza. – É uma cova grande
para tua carne pouca,
09 (FUVEST) – É correto afirmar que, em “Morte e
mas a terra dada
Vida Severina”,
não se abre a boca.
a) a alternância das falas de ricos e de pobres, em con-
traste, imprime à dinâmica geral do poema o ritmo da João Cabral de Melo Neto
luta de classes;
Domínio | Obras Literárias 37
Período: 3ª Fase Modernista
Analise as afirmativas a seguir e coloque V nas Verdadeiras e F nas Falsas.
( ) O poema não tem nenhuma relação com a charge, pois não se pode relacionar dois tipos de linguagem com-
pletamente diferentes: verbal e visual. Além disso, na charge, a mensagem imagética e linguística apresenta uma
crítica ferrenha à desigualdade social, enquanto o poema nega o valor da Reforma Agrária, uma vez que defende o
monopólio da terra.
( ) O poema de João Cabral de Melo Neto desenvolve a temática da desigualdade social à semelhança da charge,
que também aborda a mesma questão. Ambos tomam como ponto de partida a posse da terra. Há, entre as duas
mensagens, uma única preocupação que é a aquisição de bens materiais.
( ) A charge apresenta, tanto quanto o fragmento do texto de João Cabral, uma crítica à condição do lavrador, que,
durante toda vida, trabalha a terra, mas só tem direito a ela quando morre. Na imagem, o lavrador vivo traz a placa
SEM TERRA, enquanto no poema, tal qual na charge, só adquire o direito à terra após a morte, que representa “a
terra que queria ver dividida.”
( ) Diferentemente do texto escrito, a imagem revela um novo tipo de transmissão de mensagem em que se en-
contra eliminada a linguagem verbal, ocorrendo exclusivamente um discurso imagético. Nele o homem e a terra se
confundem por ocasião da morte, que iguala todos os seres humanos, e isso fica explícito na antítese sem terra/
com terra.
( ) As duas mensagens tematizam a questão da posse da terra, apresentando um discurso crítico, que enfatiza o
fato de o lavrador não ter direito à terra, razão pela qual é designado como “sem terra”. Essa expressão atualmente
identifica os participantes do movimento social, que lutam pelo reconhecimento do camponês que continua sem obter
o tão desejado torrão.
Assinale a alternativa que contém a sequência CORRETA.
a) F - F - V - F - V;
b) F - F - F - F - V;
c) V - V - V - V - V;
d) F - F - F - V - V;
e) V - V - V - F - F.

ANOTAÇÕES

GABARITO
01. 25 (01,08,16) 02. 60 (04,08,16,32) 03. e 04. e 05. e 06. d 07. a 08. e 09. e 10. a

38 Domínio | Obras Literárias


Obras Literárias
PERÍODO: LITERATURA CONTEMPORÂNEA
(Prosa)

PERÍODO: LITERATURA CONTEMPORÂNEA (PROSA) A OBRA


A literatura da atualidade, talvez por se tratar de obras Nove Noites é uma narrativa construí-
muito recentes, ainda não é definida com caracteristi- da de modo a misturar romance-repor-
cas seguras que possam dar e ela uma classificação tagem e romance-policial. Sua escrita
definitiva. Por isso, não é possível caracterizar a atual se articula em torno de uma obsessão
produção como se ela formasse um estilo, uma escola investigativa, tentando verificar e averi-
literária com princípios seguidos por uma geração de guar fatos ocultos, na busca incessante
escritores, como ocorreu em outras épocas. da verdade. O texto é intrigante e sus-
Além disso, percebe-se, nesses últimos tempos, uma cita a inquietação e a desconfiança per-
heterogeneidade de temas e estilos; o que há, às vezes, manente de seus narradores e leitores.
é uma afinidade temática entre alguns autores. Entre os O foco principal está na investigação de
vários temas explorados pela narrativa contemporânea, um fato real: o suicídio, em 2 de agosto de 1939, do an-
é possível destacar alguns como exemplo: tropólogo americano Buell Quain, que viveu no Brasil em
meio aos índios Krahôs. Ainda encarado como tabu pela
• Violência e submundo urbano; antropologia brasileira, o caso foi logo esquecido, até
• Ficção-histórica; por não ter sido amplamente difundido para o público.
Ao tomar conhecimento da trágica história desse pro-
• Narrativa intimista; missor pesquisador, a partir de um artigo de jornal, o
• Realismo-mágico; narrador principal do romance decide investigar as ra-
• Romance-reportagem. zões do suicídio, sessenta e dois anos depois do ocorri-
do.
Por ser contemporâneo, dono de uma prosa pós-mo- De forma altamente pós-moderna, Bernardo Carvalho
derna, fragmentária e com certas inovações narrativas, utiliza como recursos literários, ao longo de seu texto,
Bernardo Carvalho é classificado como Literatura Con- fotos e personagens reais da década de 30, mesclando-
temporânea. -as a pessoas imaginárias, localizadas em espaços geo-
gráficos famosos como Nova York, Rio de Janeiro e São
NOVE NOITES - BERNARDO CARVALHO Paulo, junto de outros desconhecidos de grande parte
SOBRE BERNARDO CARVALHO dos leitores, como o Xingu e o interior de estados como
Mato Grosso e Tocantins.
Nascido em 1960, no Rio de Janei- Assim, entrelaçando história e ficção, em relatos mais
ro, Bernardo Carvalho é um escri- ou menos documentados, numa visão parcial, a literatu-
tor contemporâneo ainda vivo, que ra adentra o duvidoso terreno do incerto. Diferente do
é também tradutor e atuou como que “foi”, apresenta- nos o território do que “poderia ter
jornalista no Brasil, em Paris e sido”.
Nova York. Ao final, para que não se levante dúvida alguma a res-
Estreou na literatura em 1993 peito do exposto em Nove Noites, o próprio autor, nos
com a coletânea de contos Aber- “Agradecimentos”, deixa evidente o caráter ficcional da
ração e, desde então, já recebeu obra e exime os colaboradores de qualquer “responsa-
importantes condecorações literá- bilidade pelo conteúdo ou pelo resultado final da obra”.
rias - como o Prêmio Jabuti, com seus romances Mon-
gólia e Reprodução - e o incensado Prêmio Portugal RESUMO E ANÁLISE
Telecom de Literatura Brasileira, com o romance Nove De estrutura complexa, Nove Noites se apresenta com
Noites. a alternância de duas narrativas, diferenciadas, inclusi-
Um dos melhores autores brasileiros da virada do sécu- ve de forma gráfica. A primeira delas (escrita em itálico)
lo, é dono de uma obra complexa e encorpada, na qual, é conduzida por um narrador-personagem, um enge-
em geral, seus personagens estão numa constante pas- nheiro-sertanejo, morador da cidade de Carolina, con-
sagem, fora do seu comum, em sofrimento e, acima de temporâneo e amigo do antropólogo americano Buell
tudo, permanentemente em fuga de si mesmos. Para- Quain. A escrita desse narrador pode ser caracterizada
noia, confusão mental e desencontros de toda ordem como uma espécie de carta-testamento, endereçada a
marcam seu estilo. Trata-se de um autor que raramen- um antigo “amante-amigo” de Quain, cuja chegada é es-
te abre concessões a seus personagens, com histórias perada. Essa narrativa epistolar é na maioria das vezes
muito bem delimitadas e amarradas. introduzida pela frase “Isto é para quando você vier”. As-
sim, ao final do primeiro fragmento em itálico, surge, no
leitor, imediatamente, a dúvida a respeito de quem seria
e quando viria esse “você” citado pela carta.
Domínio | Obras Literárias 39
Literatura Contemporânea
Embora seja apresentada intercaladamente com uma A mesma amizade que o sertanejo dedicou aos índios
narrativa de 62 anos depois, cronologicamente, a carta- também dedicou a Quain, pois tanto os índios quanto
-testamento representa a primeira metade da narrativa, ele estavam sós e desamparados. O narrador chegou
e foi escrita pelo narrador-sertanejo logo após a morte a ocupar as funções de encarregado do posto indígena
do antropólogo, quando relembra as “nove noites” em Manoel da Nóbrega, cargo em defesa dos índios con-
que passou com Buell Quain. São nove noites compre- quistado com a ajuda do Dr. Buell, graças às cartas de
endidas dentro de um intervalo de cinco meses, desde o recomendação que enviou ao Rio de Janeiro - cargo do
dia em que os dois se conheceram até a última viagem qual foi destituído três anos depois da tragédia.
do americano à aldeia Krahô. Altamente alusiva e sinu- No dia 9 de agosto de 1939, no final da tarde, uma co-
osa, remete a fatos não conhecidos em sua totalidade mitiva de vinte índios entrou na cidade, trazendo a triste
ou simplesmente imaginados pelo narrador, que afirma: notícia e a bagagem pessoal do Dr. Buell. O narrador,
“O que agora lhe conto é a combinação do que ele me muito emotivo, conferiu os objetos do etnólogo. Entre
contou e da minha imaginação ao longo de nove noites”. roupas, sapatos, livros de músicas e uma Bíblia, havia
Assim, o olhar ou a imaginação do narrador-epistolar um envelope com fotografias, com retratos dos negros
gera um efeito de cumplicidade entre esse sertanejo e o do Pacífico Sul e dos Trumai do alto Xingu. Porém, não
destinatário ausente e desconhecido, além de apresen- havia nenhuma foto de família. Com medo que pudes-
tar a intimidade do antropólogo. sem ser incriminados, os nativos levaram todos os per-
A outra narrativa - que se apresenta de forma intercala- tences do etnólogo para a casa do narrador. Todavia,
da e intermitente - é conduzida pelo trabalho de pesqui- após traduzir do inglês uma das cartas deixada por
sa e investigação empreendido por um narrador-repór- Buell, o professor Pessoa acalmou os índios e garantiu
ter disposto a descobrir a verdade sobre o suicídio de a todos que eles não possuíam nenhuma responsabili-
Buell Quain. A busca e a apresentação de pistas como dade na trágica ocorrência.
cartas perdidas, fotos e depoimentos de contemporâne- O narrador também relata que uma única carta havia
os têm a intenção de conduzi-lo a um desfecho. O nar- sido guardada por ele, pois o destinatário não era nin-
rador-jornalista chega a visitar o Xingu, imiscuindo-se guém da família de Dr. Buell, nem outro antropólogo ou
aos índios em busca de informações sobre o convívio do missionário. Ele jurou que ninguém além do destinatário
antropólogo com os índios Krahô. Também manda car- (“você” oculto) colocaria os olhos nela. Dessa forma,
tas a possíveis parentes americanos do suicida e viaja com a ajuda do professor Pessoa, o narrador escreveu
para os Estados Unidos em busca de algum elo com a e enviou um bilhete cifrado ao destinatário oculto, “você”.
história passada. O narrador-personagem nos informa que Buell Quain
emitira correspondências para o destinatário oculto
Como não existe um desfecho para o suicídio de Quain, (“você”) e esperava com muita ansiedade uma respos-
o narrador-jornalista toma a temerosa decisão de trans- ta. Segundo os índios, Quain, depois de receber a últi-
formar todo o material levantado e pesquisado numa ma correspondência, foi tomado por um profundo aba-
ficção timento e queimou algumas cartas e, chorando muito,
escreveu as que deixou, antes de se suicidar no meio da
O NARRADOR-SERTANEJO noite. Quain alegou ter recebido más notícias de casa e
Inicalmente, o engenheiro-sertanejo Manoel Perna nos comunicou aos índios a sua decisão de não mais ficar
informa que o antropólogo americano Buell Quain, seu na aldeia.
amigo, morrera na noite de 2 de agosto de 1939, aos Para os índios, Quain não falou sobre nenhuma doença,
vinte e sete anos. Trata-se de suicídio, uma morte mar- pois não queria assustá-los. Já para os brancos, relatou
cada por uma violência assustadora, pois o antropólogo uma doença contagiosa, pedindo- lhes que desinfetas-
se cortou e se enforcou, sem explicações aparentes. sem as cartas antes de lê-las.
Diante do horror e do sangue, os dois índios que o acom- Nas nove noites que passou na companhia do narrador
panhavam na sua última jornada de volta da aldeia para personagem, o etnólogo falou sobre uma ilha no Pacífi-
Carolina fugiram apavorados. Buell Quain deixou sete co, onde os índios são negros, e do tempo que passou
cartas, para pessoas dos Estados Unidos, Rio de Janei- entre esses índios e de uma aldeia, chamada Nakoroka,
ro e Mato Grosso. Além de duas para a cidade de Ca- onde cada um decidia o que queria ser, escolhendo, in-
rolina, uma para o capitão, delegado de polícia Ângelo clusive, sua própria família. Como o narrador apresen-
Sampaio, e outra para o narrador. Porém, são textos tava dificuldades para vislumbrar as descrições, Quain
que nada explicam. mostrou-lhe uma fotografia e um desenho ou retratos
Em relatos posteriores, redigidos com a ajuda do pró- de dois negros muito fortes, que posaram para ele com
prio narrador, a fim de evitar um inquérito sobre a mor- o torso nu.
te/suicídio, Quain foi chamado de infeliz e tresloucado. Quain queria, num primeiro momento, estudar zoologia,
Era visto, também, como incrédulo e desconfiado. interessando-se, depois, pela antropologia. Em março
O dia da chegada ilustre etnólogo à cidade (chama- de 1931, na comemoração do final de semestre, o et-
da posteriormente de morta nas cartas), em maio de nólogo e um grupo de amigos beberam muito e foram
1939, foi um momento extraordinário e rapidamente ao cinema. Na tela, assistiram a uma história de amor
esquecido por todos, menos pelo narrador. Fotografado no Pacífico Sul, proibida pelas leis de uma sociedade
ao lado dos índios e do piloto, de acordo com o narra- de nativos. A partir desse episódio, Quain trancou sua
dor, o antropólogo apresentava-se com uma elegância matrícula da faculdade e embarcou num cargueiro para
imprópria para o lugar e a ocasião. O narrador- perso- Xangai, disposto a encontrar a ilha encantada do filme.
nagem, humilde sertanejo, amigo dos índios, quando foi Entre agosto e novembro de 1938, após alguns meses
apresentado ao etnólogo, nem foi notado. Algum tempo entre os Trumai, Buell Quain foi chamado de volta ao
depois, os dois tornaram-se aliados e, no período ante- Rio, seguindo para Cuiabá a Simões Lopes, no Mato
rior à tragédia, o narrador já via nos olhos de Buell o Grosso. O antropólogo americano tinha pavor de ser
desespero que tentava dissimular e nem sempre conse- confundido com as culturas que observava. Tentava
guia. O silêncio do sertanejo era a prova de sua amizade manter-se afastado e, num círculo vicioso, voltava a ser
que ia conquistando Quain. observador.

40 Domínio | Obras Literárias


Literatura Contemporânea

Na visão do antropólogo, os Trumai vivenciavam um pro- sua curiosidade pelo caso do etnólogo suicida. Com as
cesso coletivo de autodestruição, pois, mesmo estando primeiras pistas indicadas por essa mulher, o narrador
em vias de extinção, continuavam fazendo abortos e ma- começa a investigar a biografia e o suicídio do america-
tando recém-nascidos. Neste ponto, o narrador reflete no de 1939.
sobre a identificação que o etnógrafo apresentava com Quando se matou, tentava voltar a pé da aldeia de Cabe-
os Trumai. E também nos nos relata a inquietação exis- ceira Grossa para Carolina, na fronteira do Maranhão
tencial de Buell Quain, achando que estava sendo perse- com o que na época ainda fazia parte de Goiás e hoje
guido ou vigiado onde quer que estivesse. pertence ao estado do Tocantins. Nas últimas horas
Quain vivia em busca de si mesmo ou se escondendo. que precederam o suicídio, escreveu, chorando, pelo
Buscava um ponto de vista que não estivesse no campo menos sete cartas:
de sua própria visão, vivendo como um estrangeiro para
si mesmo. Buell Quain sempre teve fascínio pelas ilhas, • a sua orientadora, Ruth Benedict, da Universidade Co-
pelos universos isolados. Quando voltou a Carolina, no lumbia, em Nova York;
final de maio, falou ao narrador sobre uma ilha que co- • a dona Heloísa Alberto Torres, diretora do Museu Na-
nheceu adulto. Falou sobre uma casa com vários quar- cional, no Rio de Janeiro;
tos ocupados por amigos. • a Manoel Perna, um engenheiro de Carolina que se
Certa vez, quando chegou de um passeio solitário foi tornara amigo de Quain;
surpreendido por um desconhecido que sacou uma má- • ao delegado de polícia da cidade, Ângelo Sampaio.
quina fotográfica e registrou a sua imagem. Quain con-
fessou ao narrador que viera ao Brasil com a missão de Outras cartas que o narrador não teve aceso foram en-
contrariar a imagem revelada naquele retrato. “Havia dereçadas:
sido traído pelo intruso e sua câmera. Não podia admi-
tir que aquela fosse a sua imagem mais verdadeira: a • ao pai, Dr. Eric P. Quain, médico, recém-divorciado;
expressão de espanto diante do desconhecido.” O des- • ao missionário americano instalado em Taunay, em
conhecido fotógrafo tornou-se amigo de Quain e, um dia Mato Grosso;
antes de o etnólogo embarcar para a selva da América • ao cunhado Charles C. Kaiser, marido de Marion, irmã
do Sul, ele foi até seu apartamento disposto a fotogra- de Quain.
fá-lo novamente.
Este é o momento em que o leitor sabe que esse des- As cartas que narrador teve acesso retratavam a tenta-
conhecido é o destinatário oculto das cartas de Buell. tiva do etnólogo de constituir seu testamento e instruir
O narrador nos relata que Buell Quain sentiu-se traído sobre a disposição de seus bens, além de isentar os
pelo homem desconhecido. Insinua-se que o antropólo- índios de qualquer culpa relacionada ao suicídio.
go possuía um envolvimento sexual com uma mulher e
o fotógrafo também se envolveu com essa pessoa. O Quando chegou ao Brasil, em fevereiro de 1938, às vés-
antropólogo e o fotógrafo eram amantes e a presença peras do carnaval, no Rio de Janeiro, Quain foi morar
da mulher surgia como uma ameaça ao relacionamen- numa pensão da Lapa, reduto de vícios, malandragem e
to dos dois. Diante disso, Quain resolveu partir para o prostituição. Seu objetivo era estudar os já conhecidos
Brasil e o desconhecido (destinatário) foi a sua casa na e aculturados Karajá. Mudou de planos ao conhecer um
cidade, determinado a fazer os retratos que ficariam desafio maior: a realidade dos inacessíveis índios tru-
como a única lembrança do amante. mai, do rio Coliseu, no alto Xingu, que estavam em vias
de extinção. Porém, sua expedição solitária aos Trumai
Em momentos de maior distração e melancolia, Quain ao longo de 1938 e sua pesquisa de campo foram in-
falava muito sobre uma mulher, sem deixar claro se era terrompidas devido a algumas indisposições com os
a sua própria esposa ou a mulher que propiciara o seu órgãos Governamentais do Estado Novo de Getúlio Var-
desentendimento com o fotógrafo. Porém, o etnólogo gas, o que originou seu retorno ao Rio de Janeiro, em
havia dito ao narrador que não era casado. Quain tinha fevereiro de 1939.
uma imaginação muito fértil e sempre que desejava re-
velar alguma coisa importante apelava para a sua cria- Seu retomo à capital coincidiu com a chegada de dois
tividade. colegas no Brasil: Charles Wagley (que vinha estudar
os Tapirapé), Ruth Landes (jovem antropóloga que já
Buell tinha uma cicatriz na barriga e dizia aos índios que estava no país com o objetivo de estudar os negros e
era uma consequência de uma doença antiga, uma do- o candomblé da Bahia), ambos, junto de Quain, alunos
ença que estava voltando e se resolvia na febre. Uma da orientadora Ruth Benedict, uma das principais repre-
certa vez, Quain declarou que seu pai era médico-cirur- sentantes da corrente antropológica que ficou conheci-
gião e o narrador, em uma conclusão própria, entendeu da por associar Cultura e Personalidade.
que o amigo tivesse sido operado na infância pelo pró-
prio pai. Quain, além de muito viajado e estudioso (passou pela
Europa, Oriente Médio, Rússia, Xangai, Fiji), também se
O narrador chega à conclusão de que as nove noites interessou por literatura e música. Nasceu em 31 de
que passara com Quain fora uma grande confissão ou maio de 1912, filho de Eric P. Quain (41 anos) e Fannie
a preparação para a própria morte do etnólogo. Segun- Dunn Quain (38 anos), ambos médicos, e irmão mais
do ele, Quain talvez tenha se matado para inocentar os novo de Marion. Seus pais se separaram pouco antes
índios, pois a sua presença na aldeia já os incriminava. do suicídio de Quain. O pai, inconformado, queria que a
morte do filho fosse investigada, mas o processo não foi
O NARRADOR-JORNALISTA adiante, devido à constatação do suicídio. A mãe, com
o auxílio de Ruth Benedict e do fundo deixado pelo filho,
Ao ler, no ano de 2001, um artigo de jornal que relatava empenhou-se na publicação das notas que ele tomara
a história de um outro antropólogo, que também havia em Fiji, outro relato sobre os dez meses passados en-
morrido entre os índios do Brasil, e citava, por analo- tre os indígenas de Vanua Levu. Ela também estudou
gia, o caso de Buell Quain, este narrador procurou a linguística para preparar os manuscritos que o filho ha-
antropóloga que havia escrito o artigo e demonstrou via elaborado sobre a língua dos Krahô. Era uma mulher

Domínio | Obras Literárias 41


Literatura Contemporânea
aflita e solitária que morreu aos setenta e seis anos. Strauss para desabafar quando achou que tinha con-
Dois meses antes de se matar, o antropólogo mencio- traído sífilis em uma aventura casual com uma moça
nou em suas cartas durante o Carnaval do Rio de Janeiro. O francês o incen-
tiva a se tratar.
“questões familiares”,que o obrigariam interromper o
trabalho com os índios e voltar aos Estados Unidos. No Quando esteve com os temidos Trumai, o etnólogo
Brasil, Quain e o os outros antropólogos americanos achou-os chatos, sujos e entediados, ao contrário dos
eram amparados por Heloísa Alberto Torres, principal nativos musculosos com que convivera em Fiji e que,
responsável pelo acordo entre a Universidade Columbia para ele, se transformaram em modelo de reserva e
e o Museu Nacional. Em uma correspondência ende- dignidade. Ao chegar na aldeia, mal falava a língua e não
reçada a dona Heloísa, Buell afirmou que estava mor- entendia as relações de parentescos e a organização
rendo de uma doença contagiosa e pedia que a carta social da aldeia. Os índios roubaram todas as suas rou-
fosse desinfetada quando recebida. O etnólogo pedia-lhe pas, importante forma de proteção contra os mosqui-
desculpas por não conseguir terminar sua pesquisa e tos, e ele teve de improvisar “trajes sumários” com um
cuidados com relação aos índios Krahô. mosqueteiro. Na aldeia, a violência física não era permi-
tida. Porém, por duas vezes, Quain quase desencadeou
No entanto, embora tenha falado dessa doença, os ín- uma comoção social ao bater na mão de um menino
dios João e Ismael - que acompanharam Quain em sua que lhe roubava farinha e ao pisar sem querer no pé do
saída da aldeia no dia 31 de julho - contaram a Manoel outro.
Perna, o engenheiro de Carolina e único amigo do et-
nólogo na cidade, que o Buell não mostrava nenhum De volta a Cuiabá, o antropólogo sofreu um ataque de
sintoma de doença física e que sua prostração mani- malária. Em sua convivência com os Trumai, o antropó-
festava-se desde recebera a última correspondência de logo relata: “Toda morte é assassínio. Ninguém espera
casa. Por saber disso, numa das cartas que mandou passar da próxima estação das chuvas. Não é raro ha-
para dona Heloísa, o engenheiro-sertanejo afirma que o ver ataques imaginários. Os homens se juntam aterro-
suicídio estaria vinculado às questões familiares, quan- rizados no centro da aldeia – o lugar mais exposto de
do Quain mostrou- se muito contrariado com as notícias todos – e esperam ser alvejados por flechas que virão
recebidas. da mata escura.”
Em puro exercício de imaginação, o narrador-investiga-
dor desconfia que a morte de Quain tenha sido passio- A BIOGRAFIA DO NARRADOR-JORNALISTA
nal, relacionada a outra pessoa desconhecida. O narra- A partir do capítulo 11, o narrador-jornalista passa a
dor descobre que, no Rio, o etnólogo teve um flerte com relatar suas experiências na selva durante a infância,
Maria Júlia Pourchet, embora se apresentasse como bem como a história e, mais ao final do livro, a morte de
“casado”, mesmo não havendo nenhum indício ou refe- seu próprio pai.
rência a mulher alguma em nenhum outro documento No final dos anos 1960, o narrador - ainda uma crian-
ou correspondência anterior ou posterior à sua morte. ça - viaja com o pai fazendeiro pelo alto Xingu. Nessas
Um dos entrevistados pelo narrador-jornalista é o pro- viagens, o menino aterroriza- se com os voos precários,
fessor Luiz de Castro Faria, uma das últimas pessoas com as aventuras e as promiscuidades do pai e com o
vivas que conheceram Quain em sua passagem pelo contato com os índios. É nesta altura do livro que vamos
Brasil. Ele retratou a frieza dos americanos diante da o pai apresentar o filho como bisneto por parte de mãe
morte de Buell, assim como as “excentricidades” do do grande defensor dos indígenas Marechal Cândido
colega americano, principalmente, seus conflitos com Rondon - o que não fica comprovado com certeza du-
o dinheiro, já que ele não gostava de parecer rico. De rante a narrativa.
acordo com Castro Faria, ninguém podia esperar que Os pais do narrador eram separados e tinham chegado
um antropólogo moço e já consagrado fosse se suici- a um acordo sobre a sua guarda e o seu sustento na
dar no Brasil. Porém, diz também que talvez o suicídio justiça. Por isso, o menino viajava tanto com o pai. Em
não tenha tido nenhuma repercussão nacional e não paralelo, o narrador lembra que Buell Quain também
foi surpreendente e nem traumatizante para as pesso- havia acompanhado o pai em viagens de negócios e a
as locais, exceto para os índios. Diante das investidas partir daí não parou mais de viajar.
do narrador para saber se Quain era ou não casado,
o professor Castro Faria afirmou que talvez o etnólogo Em Mato Grosso e Goiás, o pai do narrador articulava
não fosse, pois, do contrário, teria levado uma mulher a compra de dois latifúndios no sertão, por meio de tí-
consigo para as aldeias, já que certas áreas da cultura tulos definitivos do governo, na tentativa de implantar
indígena não estavam abertas aos homens. um projeto agropecuário que vigorou a partir de 1970,
durante o governo militar. Tais lembranças e recorda-
Após a morte de Buell Qauin, quase toda a correspon- ções se iniciam em agosto de 2001, quando foi levado
dência entre dona Heloísa, Manoel Perna, Ruth Bene- por um antropólogo até os índios Krahô, pouco depois
dict, a mãe e a irmã tratava do dinheiro deixado pelo de ter lido pela primeira vez sobre o suicídio de Quain no
morto. A orientadora de Buell, Ruth Benedict, foi acusa- artigo de jornal.
da de ter mandado Quain para o Brasil com a perspec-
tiva de herdar sues bens, como se previsse a morte do Buscando informações sobre os Krahô, o narrador en-
aluno e tivesse o conhecimento prévio da decisão dele controu um casal de antropólogos que, tendo estudado
de doar seu dinheiro para um fundo de pesquisa por ela e vivido entre eles por mais de dois anos, decidiu criar
administrado. uma organização independente de assistência aos ín-
dios, com subsídios nacionais e internacionais. Ao saber
Outro personagem real que aparece no livro é o famo- que haveria uma assembleia indígena nos próximos dias,
so antropólogo francês Lévi-Strauss, autor do grande o narrador parte para a Carolina com o objetivo de con-
clássico da antropologia “Tristes Trópicos”. Buell afirma versar com o velho Diniz, o único Krahô ainda vivo que
ter sido influenciado pelo contato que teve com ele ao conhecera Quain. Como o velho não vivia na aldeia em
produzir o relatório sobre os índios Krahô. Quain e Lé- que o narrador seria levado, a oportunidade seria única
vi-Strauss passaram noites conversando em Cuiabá, o para entrevistá-lo. O objetivo do jornalista era descobrir
que explica o fato de o jovem americano ter procurado a respeito do local em que o etnólogo fora enterrado.
42 Domínio | Obras Literárias
Literatura Contemporânea

O velho Diniz conta que os índios chamavam Buell Quain onde viera o velho (uma sociedade criada por missioná-
de “Cãmtwyon”. Alguns índios disseram ao narrador que rios americanos), para ler trechos de livros a ele.
“Twyon” quer dizer “lesma, o caracol e seu rastro”. O an- Uma vez, quando o narrador estava com o pai, resolveu
tropólogo, estudioso dos Krahôs, já havia afirmado que observar o leito do americano e perguntou em inglês se
“cãm” era “o presente, o aqui e o agora”, mas a combi- ele necessitava de alguma coisa. Num processo convul-
nação das duas palavras não apresentava um sentido. sivo, o velho apertou a mão do narrador e, alucinada-
Segundo Raimunda, a filha mais velha de Manoel Perna, mente, começou a pronunciar: “Bill Cohen, Bill Cohen”.
que vivia em Miracema do Tocantins, a razão do suicídio Após a morte do pai, o narrador ficou três anos fora e
de Quain estaria vinculada à descoberta de que a mu- depois voltou para São Paulo. Ao ler, em 2001, o nome
lher o teria traído com o cunhado. Entre as cartas que o de Buell Quain num artigo de jornal, fazendo as devidas
etnólogo deixou ao se matar, havia uma para o marido correções ortográficas, ele descobre quem suposta-
da irmã e nenhuma para a própria Marion, e nem para mente o velho americano havia esperado por tanto tem-
mãe. Por conta própria, o narrador também desconfia po.
que Quain teve uma relação ambígua com a irmã.
A partir daí, o narrador, se locomovendo até o asilo de
Na aldeia, o narrador-jornalista ficou hospedado na casa onde viera o velho, empreendendo entrevistas e sonda-
de um Krahô chamado José Maria Teinõ. Na convivên- gens, chega até Rodrigo, o jovem que lia para o america-
cia com os Krahô sente-se amplamente constrangido, no, por meio de quem descobre que o internado se cha-
tímido e amedrontado diante dos costumes dos índios. mava Andrew Parsons, era fotógrafo, tinha vindo para o
Diante de uma convivência problemática com os hábi- Brasil por volta de 1940 e tinha deixado um único filho
tos familiares e alimentares, com as pinturas corporais nos Estados Unidos.
e com os rituais de iniciação dos Krahôs, o narrador
chega à seguinte conclusão: “Se para mim, com todo o Ao tentar desvendar o vínculo do fotógrafo com Buell
terror, foi difícil não me afeiçoar a eles em apenas três Quain ou encontrar familiares do antropólogo, o narra-
dias, fico pensando no que deve ter sentido Quain ao dor mandou centenas de cartas a americanos. Porém,
logo de quase cinco meses sozinho entre os Krahô.” suas correspondências não obtiveram êxito, já que os
americanos vivenciavam uma época de pânico, logo
Mais uma vez comparando-se a Quain, o narrador, como após a derrubada das duas torres do World Trade Cen-
o antopólogo, não gostava da ideia de se tornar nativo, ter e as remessas de antraz em cartas anônimas envia-
e também resistiu à cultura e aos rituais indígenas. “Ju- das pelo correio.
rei que não me esqueceria deles. E os abandonei, como
todos o brancos.” Disposto a transformar suas pesquisas e investigações
em algo ficcional, um romance, caso não conseguisse o
Manoel Perna, o outro narrador, engenheiro de Carolina que queria, o narrador vai para Nova York, na tentativa
e ex- encarregado do posto indígena Manoel da Nóbre- de encontrar o filho do velho americano que dividiu o
ga, morreu em 1946, afogado no rio Tocantins, duran- quarto com seu pai.
te uma tempestade, quando tentava salvar a neta. Se-
gundo seus dois filhos mais velhos, não deixou nenhum Já em Nova York, o narrador consegue contato com
papel ou testamento sobre o amigo Buell Quain. Foi foi Schlomo Parsons, o filho do fotógrafo, que conta a histó-
enterrado e esquecido como o etnólogo e não tendo dei- ria da sua vida e apresenta diversas fotos do Brasil nos
xado nenhum testamento, o narrador imaginou a oitava anos 1950 e 1960. Nada, no entanto, que provasse
carta. qualquer ligação entre Quain e o fotógrafo.
Ironicamente, voltando para o Brasil, no avião, o narra-
Nas últimas páginas da obra, o narrador relata mais dor viaja ao lado de um rapaz que lia um livro. Quando
uma parte da vida e a morte de seu pai. O tempo é o iní- sobrevoavam a região em que Quain havia se matado, o
cio dos anos 90, quando o velho foi afetado por uma do- rapaz, entusiasmado, disse que era a sua primeira vez
ença raríssima e fatal, a síndrome de Creutzfeld-Jakob, e na América do Sul e que vinha estudar os índios do Bra-
seu cérebro estava se tomando uma esponja. Por esse sil. Ao que o narrador-jornalista encerra o livro com a
tempo, o narrador vivia em Paris e voltou ao Brasil para, seguinte frase: “Virei para o outro lado, e contrariando
juntamente com sua irmã, tomar conta do pai que tinha a minha natureza, tentei dormir, nem que se fosse só
mais de sessenta anos. O progenitor sempre tivera uma para calar os mortos.”
vida desregrada e boêmia, com muitas mulheres e gas-
tos. Chegou até mesmo a morar nos Estados Unidos IMPORTANTE!
com uma amante, uma funcionária cubana que cuidava É impossível não ligar este livro a outras duas obras
de sua conta bancária. Diante das aventuras ilícitas do da lista do vestibular da UFPR 2018/2019 que
marido, a cubana pediu o divórcio e ficou com todos os também abordam o indígena: O Uraguai e Últimos
bens americanos. O homem voltou para o Brasil, e, so- Cantos. É uma forma direta de demonstrar a reali-
zinho no Rio, passou a beber e tomar antidepressivos e dade atual do indígena. Sem nada de heroismo, com
calmantes ao mesmo tempo. pessoas vivendo isoladamente e muito dependen-
Foi quando conheceu uma vizinha libanesa e passou a tes da civilização branca. A ligação dos indígenas
viver uma relação tumultuada que abalou sua saúde. Os com o álcool, o interesse deles em tirar dinheiro
filhos, com a ajuda de um médico e advogados, tiraram dos visitantes, bem como conseguir benesses da
o pai do convívio com a libanesa e o internaram em São civilização que não estão presentes em seu status
Paulo. Instalado em uma semi-UTI, o pai dividia o quarto original, demonstram que, embora alguns rituais e
com um outro doente que estava à morte. Três meses constumes sejam mantidos, hoje, a cultura indígena
depois da internação, com a falência progressiva das brasileira está praticamente esfacelada.
funções e dos órgãos, o pai morreu. Além disso, trata-se de uma ficção produzida a par-
No entanto, a narrativa parece dar mais ênfase ao outro tir de um fato real concreto (o suicídio do antropó-
paciente, companheiro de quarto do pai, um americano logo americano Buell Quain), Nove Noites é uma
sozinho e que só recebia visitas de um rapaz, contrata- narrativa que preenche os vazios de uma realidade
do pela instituição de caridade que mantinha o asilo de dada.

Domínio | Obras Literárias 43


Literatura Contemporânea

As vozes articuladoras dos relatos, a todo momen- No início da narrativa, o leitor encontra uma adver-
to, encontram verdades precárias, fragmentadas, tência de que toda verdade é relativa e incompleta,
errantes e, assim, por meio de tanta incerteza, é estando, portanto, perdida em uma infinidade de
construída uma outra realidade, apoiada na ficção. contradições e possibilidades. Da mesma forma, a
Para um dos dois narradores - o jornalista -, a verda- arquitetura literária de Nove Noites é marcada por
de sobre a morte de Buell Quain é precária, mesmo essa verdade movediça, considerando que cartas,
“lidando com papéis de arquivos, livros e anotações fotos, relatos e histórias reunidos são variados e
de gente que não existia”. Desde o princípio, há a fragmentários. Mais do que isso, as provas docu-
consciência de que todo o material pesquisado é mentais, quando chegam ao poder dos dois narra-
insuficiente na tentativa de decifrar o porquê do sui- dores, encontram-se submetidas ao conhecimento,
cídio do antropólogo americano. Assim, frente à im- ao “saber” e olhar de outro dono, um outro proprie-
possibilidade de compreensão, a criação do roman- tário.
ce aproxima-se da morte de Buell Quain e, mesmo Nove Noites não é uma escrita fixa, e em seu pro-
que de forma fictícia, constrói uma possível saída cesso de constante mutação, possibilita diversas
para um enigma ainda não resolvido. mobilidades de interpretação. Não há um relato
Sustentada por depoimentos e personalidades único. Existem pelo menos duas histórias fragmen-
reais, a publicação do romance, como definido na tadas, que passam a se dialogar em determinada
própria obra, corria o risco de cair no ridículo ou altura. O relato é fortemente instável quando retor-
“risível”, caso surgisse algum parente do antropólo- na ao passado. Mesmo supostamente organizado e
go com “a solução de toda a história, o motivo real objetivo, a plenitude e a neutralidade se perdem, a
do suicídio”. Porém, talvez nem o suicídio e nem o partir da visão que se queira estabelecer do presen-
livro apresentam uma razão, já que, um mês depois te, por meio da ótica de um outro.
do suicídio de Quain, sua irmã envia uma carta à A memória textual individual vinculada à memória
professora do irmão, Ruth Benedict, relatando: “O textual coletiva, estabelecem uma interlocução com
fato de que nenhum de nós provavelmente jamais o estilo de um sujeito que se apropria de vozes, ecos
conhecerá os fatos torna ainda mais difícil nos de- passados dentro de sua metaficção. “O que lhe con-
sembaraçarmos deles”. to é uma combinação do que ele me contou e do
que eu imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o
que nunca poderei lhe contar ou escrever.”

TESTES

01 (UFMG) – Todos os seguintes trechos, de Nove dos Krahô é inevitável para o surgimento de uma nova
ordem, neoliberal e globalizada;
noites, de Bernardo Carvalho, são construídos com o
recurso da citação, EXCETO b) Na passagem, fica nítido o desconforto do narrador
em relação ao Xingu e o seu desconhecimento relativo
a) Ele gritou com eles até se calar de repente, como se à situação dos indígenas, o que reproduz a ignorância
tivesse despertado aturdido de um sono profundo; generalizada em torno das necessidades dessas popu-
b) Segundo os Trumai, o sol criou todas as tribos, à ex- lações;
ceção dos Suyá, descendentes das cobras; c) O excerto tem o seu sentido complementado por ou-
c) Ele sorriu de novo e respondeu orgulhoso e entusias- tra passagem do romance, na qual o narrador afirma
mado: “Vou estudar os índios do Brasil”; que os Krahô são “os órfãos da civilização. Estão aban-
donados”;
d) Não sabia, eu já disse, que naquela última correspon-
dência vinha a sua sentença de morte. d) Na passagem, a afirmação de que o Xingu é a “última
e única condição” dos Krahô é uma revelação com clara
conotação trágica;
02 (UFSM) – Observe o fragmento a seguir, extraído
e) A passagem assinala o estranhamento do narrador-
do romance Nove noites, de Bernardo Carvalho. personagem em relação aos Krahô, estranhamento
O Xingu, em todo o caso, ficou guardado na minha me- reforçado em outras situações, como, por exemplo,
mória como a imagem do inferno. Não entendia o que quando o personagem resiste a participar dos rituais
dera na cabeça dos índios para se instalarem lá, [...]. da tribo.
Não pensei mais no assunto até o antropologo que por
fim me levou aos Krahô, em agosto de 2001, me escla- 03 (UFU) – Considerando a obra “Nove noites” e a
recer: “Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? Porque introdução a seguir, assinale a alternativa correta.
foram sendo empurrados, encurralados, foram fugindo
até se estabelecerem no lugar mais inóspito e inacessí- “Isto é para quando você vier. É preciso estar
vel, o mais terrível para a sua sobrevivência, e ao mes- preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa
mo tempo sua última e única condição. O Xingu foi o que terra em que a verdade e a mentira não têm mais os
lhes restou”. sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios.
Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça.
Fonte: CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Le- E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergun-
tras, 2006. p.64-65. ta.”
A partir do exposto, assinale a alternativa INCORRETA. Bernardo Carvalho. “Nove noites”.
a) No fragmento, fica implícita a ideia de que o sacrifício a) O fragmento acima refere-se a carta que Buell Quain

44 Domínio | Obras Literárias


Literatura Contemporânea

escrevera antes de cometer o suicídio e que fora deixa- humor e pela ironia, particularmente nos episódios em
da para Manoel Perna, seu grande amigo, como forma que rememora a sua infância com o pai aventureiro e
de atestar a inocência dos índios; naqueles passados junto ao Krahô;
b) A narrativa é constituída por relatos verídicos, incluin- d) A narrativa estrutura-se, basicamente, em torno de
do cientistas verdadeiros como Lévi-Strauss (antropo- frases simples e objetivas, sem artificialismos: à lingua-
logo) e as respostas às indagações sobre a morte de gem é dado um tratamento informal, ausente, portanto,
Buell Quain encontravam- se em poder dos índios Krahô; de experimentações e preciosismos.
c) Na busca de dados sobre Buell Quain, o narrador vol-
ta ao Xingu para ouvir o que os índios lembravam de 07 Assinale a alternativa que apresenta um comentá-
Quain, conseguindo, durante o tempo que lá permane- rio INCORRETO sobre a narrativa de Bernardo Carvalho:
ceu, o testemunho dos índios envolvidos no mistério do
suicídio; a) Em Nove noites, as ameaças de uma guerra prestes
a acontecer, o arbítrio do governo de Vargas e, final-
d) O autor Bernardo Carvalho constrói uma obra dife- mente, a intranquilidade dos tempos em que a narrativa
rente e complexa, em que mistura realidade e ficção, é construída dão um tom de medo e opressão a circular
apresentando um enigma em torno de um suicídio cujas o relato;
causas serão investigadas. Porém, a verdade permane-
cerá ambígua. b) Na construção desse relato ficcional de histórias re-
ais, aparece toda uma série de reflexões sobre temores
e culpas, sobre os mistérios da vida e da morte, sobre
04 (UFSM) – O romance Nove Noites (2002), de Ber- as razões que tornam o viver muito perigoso;
nardo Carvalho, apresenta um narrador em primeira c) No decorrer da narrativa, feita a partir de dois pontos
pessoa que é uma espécie de investigador - o seu objeti- de vista, os fragmentos de um e de outro relato vão se
vo inicial é o de desvendar o mistério em torno da morte configurando e se ajustando até que, ao final, uma espé-
do antropólogo Buell Quain. Em determinado momento, cie de quebra-cabeça é completado pelo leitor;
em relação à leitura, o narrador revela: “Cada um lê os
poemas como pode e neles entende o que quer, aplica o d) A narrativa, sinuosa e repleta de ambiguidades, pro-
sentido dos versos a sua própria experiência acumulada põe múltiplos graus de compreensão, oferecendo ao lei-
até o momento em que os lê”. tor várias camadas de leitura, convidando-o a completar
o texto com o seu próprio repertório.
A visão do narrador-personagem relativa ao ato de ler
assemelha-se à própria investigação por ele empreendi- 08 Sobre o enredo de Nove noites, todas as alternati-
da. No romance, essa busca
vas estão corretas, EXCETO:
a) é conduzida de forma precisa e obstinada, o que é a) O antropólogo se cortou e se enforcou, sem explica-
decisivo para a resolução do caso; ções aparentes. Diante do horror e do sangue, os dois
b) realiza-se de modo obsessivo e os resultados finais do índios que o acompanhavam na sua última jornada de
caso se mostram, portanto, tendenciosos; volta da aldeia para Carolina fugiram apavorados;
c) revela-se um capricho, já que o personagem, inclusi- b) Na bagagem pessoal de Quain, o narrador encontrou
ve, abandona a investigação no meio da narrativa; roupas, sapatos, livros de música e uma Bíblia. Havia,
d) está ligada às experiências particulares e a jornada também, um envelope com fotografias, com retratos
do personagem acaba por ser mais gratificante do que dos negros do Pacífico Sul e dos Trumais do alto Xingu;
o caso em si; c) Quain, antes do suicídio, alegou ter recebido más no-
e) é realizada de forma intuitiva e os seus resultados tícias de casa e comunicou aos índios a sua decisão de
finais são, portanto, questionáveis. não mais ficar na aldeia;
d) Quain, em momentos de maior distração e melanco-
05 Em todas as alternativas, há elementos relevantes lia, falava muito sobre a sua mulher e seus filhos.
na narrativa de Nove noites, EXCETO em:
09 Todas as alternativas apresentam uma relação
a) Conflitos conjugais; corretamente estabelecida entre as personagens de
b) Repressão política; Nove Noites e suas características principais, EXCETO:
c) Questionamento existencial; a) Manoel Perna – o silêncio do sertanejo era a prova de
d) Diversidades culturais sua amizade que ia conquistando Quain;
b) Ruth Landes – jovem geógrafa que estava no Brasil
06 Assinale a alternativa que apresenta um comentá- com o objetivo de estudar os rios e florestas da região
norte;
rio INADEQUADO sobre Nove Noites:
c) Professor Pessoa – traduziu uma das cartas, em in-
a) A narrativa apresenta-se como um misto de roman- glês, deixada por Buel e acalmou os índios, garantindo
ce-reportagem e de romance policial, selada pela ob- que eles não tinham nenhuma responsabilidade na tra-
sessão investigativa e pelo suspense do andamento das gédia;
descobertas, que é, em parte, sustentado pelo minucio-
so balizamento das datas e das circunstâncias da inves- d) Buell Quain – achava que estava sendo perseguido ou
tigação; vigiado onde quer que estivesse e era marcado por uma
inquietação existencial.
b) O romance é muitas vezes marcado pela ótica intros-
pectiva: o narrador revela o protagonista em meio às
suas fragilidades, aos seus dramas interiores, vivencian- 10 Há momentos, em Nove noites, em que o narrador
do situações limite, de abandono, de profunda angústia (Autor) tece comentários sobre o tipo ou o gênero de
e depressão, com intensa carga sentimentalista; sua própria narrativa, como exemplificam todas as pas-
sagens abaixo, EXCETO:
c) O relato do jornalista, embora caracterizado pela
circunspeccão, apresenta momentos marcados pelo a) “Tentei lhe explicar que pretendia escrever um livro e

Domínio | Obras Literárias 45


Literatura Contemporânea
mais uma vez o que era um romance, o que era um livro de ficção (e mostrava o que tinha nas mãos), que seria
tudo historinha, sem nenhuma consequência na realidade.”
b) “As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tentava dizer que, para os brancos que não acredita-
vam em deuses, a ficção servia de mitologia, era o equivalente aos mitos dos índios, e antes mesmo de terminar a
frase, já não sabia se o idiota era ele ou eu.”
c) “Duas vezes entrevistei Lévi-Strauss em Paris, muito antes de me passar pela cabeça que um dia viria a me
interessar pela vida e pela morte de um antropólogo americano que ele conhecera em sua breve passagem por
Cuiabá, em 1938.”
d) “Tomei o avião para Nova York com pelo menos uma certeza: a de que, não encontrando mais nada, poderia por
fim começar a escrever o romance. No estado de curiosidade mórbida em que eu tinha me enfiado, acreditava que
a figura do filho do fotógrafo podia por fim me desencantar.”

ANOTAÇÕES

GABARITO
01. a 02. a 03. d 04. e 05. a 06. b 07. c 08. d 09. b 10. c

46 Domínio | Obras Literárias


Obras Literárias
RELATO DE UM CERTO ORIENTE • Texturas, aromas, vozes, objetos, músicas: a narrativa
SOBRE MILTON HATOUM é extremamente sinestésica.
• A memória, a reconstituição de lembranças é o tema
do romance;
“A vida começa verdadeiramente com a memória.”
(Milton Hatoum) • São histórias que versam sobre possibilidades e dificul-
dades do trabalho com a memória;
• Tensões e sentimentos e sentidos diferentes das per-
Milton Hatoum nasceu em 1952, em sonagens em relação ao mundo, num ritmo de recorrên-
Manaus (Amazonas), onde passou cias, de retorno à cidade cercada pelo rio e pela floresta
a infância e uma parte da juventude. amazônica, onde há muito tempo chegou uma família de
Em 1967 mudou- se para Brasília, imigrantes libaneses.
onde estudou no Colégio de Aplicação
da UnB. Morou durante a década de
1970 em São Paulo, onde se diplo- RESUMO DO ENREDO
mou em arquitetura na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP, tra- Uma mulher retorna à cidade natal, no estado do Ama-
balhou como jornalista cultural e foi zonas, depois de 20 anos longe. Não há indicação de seu
professor universitário de História da nome e, então, o primeiro capítulo vai sendo formado por
Arquitetura. Em 1980 viajou como bolsista para a Espa- uma série de lembranças que são ativadas quando a per-
nha, onde morou em Madri e Barcelona. Depois passou sonagem vê, novamente, a casa, os móveis e os objetos,
três anos em Paris, onde estudou literatura comparada que remetem à cultura árabe. No entanto é um desenho
na Sorbonne (Paris III). Autor de quatro romances pre- de criança que perturba tal mulher a ponto de sua me-
miados, sua obra foi traduzida em doze línguas e publica- mória viajar pelo tempo em busca do autor daquele dese-
da em catorze países. nho que apresentava uma figura franzina remando uma
canoa.
Em 1989, seu primeiro romance Relato de um certo
Oriente, publicado pela editora Companhia das Letras, Na sequência, o leitor entende que ela está escrevendo
ganhou o prêmio Jabuti de melhor romance. Em 2000 uma carta para seu irmão biológico que está em Barcelo-
publicou o romance Dois irmãos(prêmio Jabuti – 3º lu- na e que ambos foram adotados por Emilie, a matriarca
gar na categoria romance/ indicado para o prêmio IM- da família. A intenção dela é escrever um relato sobre
PAC-DUBLIN), eleito o melhor romance brasileiro no perí- essa visita e sobre a família, por isso trazia consigo um
odo 1990-2005 em pesquisa feita pelos jornais Correio gravador e um caderno de anotações.
Braziliense e O Estado de Minas. Em 2001, foi um dos No decorrer do capítulo são apresentados outros perso-
finalistas do Prêmio Multicultural do Estadão, por conta nagens: os filhos legítimos de Emilie - Hakim e Samara – e
da publicação do em Dois Irmãos. Em 2005, seu tercei- os dois menores que são descritos como demoníacos e
ro romance, Cinzas do Norte, obteve o Prêmio Portugal com língua de fogo. Também é citado o marido de Emi-
Telecom, Grande Prêmio da Crítica/APCA-2005, Prêmio lie, mas assim como os filhos mais novos, não se sabe o
Jabuti/2006 de Melhor romance, Prêmio Livro do Ano nome. Aos poucos, o leitor toma conhecimento da morte
da CBL, Prêmio BRAVO! de literatura. Em 2008, recebeu de uma criança, trata-se da filha de Samara Délia, Soraya
do Ministério da Cultura a Ordem do mérito cultural. Em Ângela, que era surda e muda e morreu ainda pequena
2010, a tradução inglesa de Cinzas do Norte (Ashes of em um acidente.
the Amazon, Bloomsbury,2008) foi indicada para o prê- Essa primeira parte é construída a partir de informações
mio IMPAC-DUBLIN. vagas e bastante misteriosas. Vale lembrar que é um re-
Disponível em: http://www.miltonhatoum.com.br/biografia/a-historia-do-au- lato e, por isso, a memória vai se construindo aos poucos.
tor Acesso em 24/05/2018. O primeiro capítulo se encerra com a notícia da morte de
Emilie e com a narradora indo atrás do seu irmão mais
SOBRE A ESTRUTURA velho, Hakim, para pesquisar o passado. A partir disso,
os próximos capítulos trarão relatos de outros persona-
• 08 capítulos; gens, outras vozes que se misturam à voz da narradora
• Forma oral de narrar, em que uma história completa em busca de um passado. O livro então, é visto como uma
outra; longa carta a seu irmão, contando sobre esse reencon-
• Narrativa de encaixe: pequenos relatos vão se unindo tro com o passado de ambos, suas descobertas e suas
para que o leitor entenda uma narrativa maior; percepções sobre o retorno a Manaus.
• Narradora sem nome que tentar recuperar seu passa- Toda a narrativa volta-se para a morte de Emilie e é a par-
do; tir de pistas sobre seu passado, por meio do relatos que
ouve, que a narradora tenta compreender e interpretar

Domínio | Obras Literárias 47


Literatura Contemporânea
vida de sua mãe. Hakim, o mais velho, conta que a convi- anotação sua das – quase – exatas palavras contadas
vência entre Emilie e seu marido não era sempre pacífi- pelo amigo:
ca, a começar pela religião: ela católica e ele muçulmano. “Às cinco e meia tudo ainda era silencioso naquele mun-
O irmão mais velho da narradora passa, então, a contar do invisível; em poucos minutos a claridade surgiu como
como a mãe deles veio do Líbano para Manaus e sobre o uma súbita revelação, mesclada aos diversos matizes
desejo dela em ser freira, o que não ocorreu poque Emir do vermelho, tal um tapete estendido no horizonte, de
(irmão de Emilie) prometeu cometer suicídio caso ela op- onde brotavam miríades de asas faiscantes: lâminas de
tasse pelo convento. Já em Manaus, ela se casou e teve pérolas e rubis, durante esse breve intervalo de tênue
o seu primeiro filho – Hakim – que cresceu em um lar luminosidade, vi uma árvore imensa expandir suas ra-
com duas línguas, duas religiões e muitos conflitos. Ele ízes e copa na direção das nuvens e das águas, e me
então passa a se sentir como o elo entre esses dois mun- senti reconfortado ao imaginar ser aquela árvore a ár-
dos, visto que foi o único da família que aprendeu árabe. vore do sétimo céu.”
No entanto a escolha dele foi a ruptura, pois, assim que (HATOUM, 2006, p. 72-3)
pode, saiu de casa e foi morar no sul.
Vale destacar que a narração, neste momento, passa
Nessa altura do livro, a voz que ouvimos é a de Hakim. É por Dorner, que transmitiu a Hakim, que por sua vez
ele que relembra fotos antigas, remexe em objetos guar- transmitiu à narradora, a qual, finalmente, conta em car-
dados e ouve os amigos da família: Hindié da Conceição ta a seu irmão, carta esta que está sendo lida por nós...
e Gustav Dorner. Este último, que era fotógrafo, será a os leitores.
próxima voz a ser ouvida. Dorner é que revelará a causa
da morte do irmão de Emilie, já que teria se encontrado O fotógrafo também hipotetiza a causa do suicídio. Base-
com Emir no dia em que ele cometeu suicídio e tirou a últi- ado nas cartas que Emilie guardava, Emir havia se apai-
ma foto dele, com uma orquídea na mão. Dorner também xonado por uma moça em Marselha, isso porque o navio
narra a chegada do pai de Hakim ao Brasil na segunda que os trazia de Beirute para o Brasil fez uma escala nes-
década do século XX, não só oralmente mas mostra uma

TESTES
ta cidade e ele queria ter ficado. No entanto foi Emilie que se a manhã – como uma intrusa que silencia as vozes
contou à família e chamou a polícia para forçá-lo a embar- calorosas da noite – dispersasse o ambiente festivo, ar-
car novamente. Depois disso a relação deles nunca mais refecendo os gestos dos mais exaltados, chamando-os
foi a mesma. ao ofício
Somente no último capítulo, o leitor fica sabendo um pou- [10] que se inicia com a aurora. Mas, em algumas reu-
co mais sobre a vida da narradora. É por meio da carta niões de sextas-feiras, o prenúncio da manhã não os dis-
que ela comenta o tempo em que ficou internada numa persava. Eu acordava com berros dilacerantes, gemidos
clínica de repouso. Foi nessa época que tentava redigir terríveis, ruídos de trote e uma algazarra de alimárias
um texto de caráter desordenado que mais lembrava a que assistiam à agonia dos carneiros que possuíam no-
escrita e a linguagem da loucura orientada por uma voz mes e eram alimentados pelas mãos de Emilie.
que nunca pronunciou o seu nome (provavelmente sua HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das
mãe biológica). Letras, 2008, pp. 50 e 51.
Dessa maneira, fica mais fácil entender o retorno dela a Assinale a alternativa incorreta em relação à obra Relato de um certo Orien-
Manaus. Trata-se de uma busca por si mesma, por sua te, Milton Hatoum, e ao Texto 4.
identidade, mas a busca é confusa e tem rumos incer- a) Em relação ao tempo, tem-se a predominância do tem-
tos. Assim, novamente o desenho da folha de papel que po psicológico, pois a obra é narrada por meio das lem-
encontrou logo na chegada parece mais compreensível branças de uma narradora que busca se encontrar;
agora: talvez fosse ela remando completamente perdida
em um movimento para lugar nenhum. E mesmo no final b) Na narrativa, um dos momentos de tensão e uma das
da narrativa o leitor fica sem saber quem são seus pais, o lembranças mais dolorosas é o relato da morte prematu-
destino de Samara Délia e o pai de sua filha. Só é possível ra de Soraya Ângela, filha de Samara Délia;
imaginar. Assim ela conclui a carta ao irmão: como al- c) Em “dispersasse o ambiente festivo, arrefecendo os
guém que pertence e não pertence àquela família, àquela gestos dos mais exaltados, chamando-os ao ofício que se
casa, àquela cidade. Como alguém que está informada e inicia com a aurora” (linhas 8 a 10) os vocábulos destaca-
ao mesmo tempo perdida no meio de tudo o que narra. dos são, na morfologia, sequencialmente: artigo definido,
artigo definido, pronome oblíquo e artigo definido;
01 (UDESC) d) O romance é uma narrativa que traz à tona as lem-
branças familiares da época em que Emilie e seus filhos
[1] O nome de Emir quase nunca era mencionado nas viveram em Trípoli, no Oriente;
horas das refeições ou nas conversas animadas por ba-
foradas de narguilé, goles de áraque e lances de gamão. e) Em “como uma intrusa que silencia as vozes caloro-
Os filhos de Emilie éramos proibidos de participar dessas sas da noite” (linha 8) as palavras destacadas podem ser
reuniões que varavam a noite e terminavam no pátio da substituídas por assim como e a qual, respectivamente,
fonte, aclarado por uma luz azulada. Era um momento sem alteração de sentido do texto I.
em que
[5] os assuntos, já peneirados, esgotados e fartos de se- 02 Leia o fragmento do livro:
rem repetidos, davam lugar a confidências e lamúrias, “Desde pequeno convivi com um idioma na escola e nas
abafadas às vezes pela linguagem dos pássaros, e entre- ruas da cidade, e com um outro na Parisiense. E às vezes
meadas por exclamações e vozes que pronunciavam o tinha a impressão de viver vidas distintas.”
nome de Deus. Era como
48 Domínio | Obras Literárias
Literatura Contemporânea

Essa percepção é do seguinte personagem: tor que vem descobrindo os prazeres do reconheci-
mento profissional. Em agosto passado, recebeu pelo
a) Emilie; romance Cinzas do Norte (Cia. das Letras), lançado
b) Hakim; em 2005, o Jabuti de melhor romance, o mais impor-
c) Samara Délia; tante prêmio literário do Brasil. Não foi a primeira vez.
d) Marido de Emilie; Seu romance de estréia, Relato de um Certo Orien-
te, publicado em 1989, foi agraciado com a estatue-
e) Pai de Emilie. ta em 1990. Já seu livro seguinte, Dois Irmãos, de
2000, obteve o terceiro lugar na premiação de 2001.
03 Com a leitura é possível sentir o odor do gato mara- Da infância no Norte, ele guarda muitas memórias e his-
cajá e o cheiro do aguardente e do jasmim branco. Ima- tórias da família, de origem árabe. “Um bom livro é uma
ginamos o prazer de saborear as sementes de jerimum, forma de conhecimento, de nós mesmos e dos outros”,
o pão e o zátar, o tabule e a esfiha com picadinho de car- diz o autor, que trabalha em uma novela sobre o mito da
neiro. Essa “exuberância” da região amazônica aparece, Amazônia para uma editora escocesa.
sobretudo no uso das figuras de linguagem: Simone Goldberg. Revista TAM, ano 3, n.º 33, nov./2006, p. 24 (com adap-
tações).
a) Metáforas e sinestesias; Em relação às informações do texto, assinale a opção in-
b) Assonância e aliteração; correta.
c) Ironia e personificação; a) Milton Hatoum formou-se em arquitetura, mas tornou-
d) Hipérboles e metáforas; se escritor.
e) Eufemismos e ironias. b) O escritor recebeu três vezes o primeiro lugar do prê-
mio literário Jabuti.
04 Assinale a alternativa que melhor caracteriza a nar- c) A família do escritor tem origem árabe.
radora do romance. d) Atualmente, Milton Hatoum trabalha em uma novela
a) Uma mulher de meia idade rancorosa e infeliz que ten- sobre o mito da Amazônia.
ta encontrar no passado as respostas para as suas frus-
trações amorosas; 08 Texto 1 (para as questões 8-9-10)
b) Uma jovem de vinte anos que retorna a Manaus depois
de ter passado alguns anos em São Paulo. Como passou Ela falava de um som grave e harmônico que parecia vir
por uma clínica de recuperação, sua intenção de voltar de algum lugar situado entre o céu e a terra para em
ao lar é o de recuperar sua sanidade e viver com a família. seguida expandir-se na atmosfera como o calor da cari-
dade que emana do Eterno e de seu Verbo. E comparava
c) Uma mulher que depois de vinte anos retorna à casa a sucessão de sons às mil vozes secretas das badaladas
dos pais e descobre que é uma filha adotiva. A narração de um sino que acalmam as noites de agonia e desper-
é em torno da busca da mãe biológica e da identidade tam os fiéis para conduzi-los ao pé do altar, onde o ar-
desta mulher que se sente perdida e sem direção. rependimento, a inocência e a infelicidade são evocados
d) uma mulher que, após longos anos de ausência, decide através do silêncio e da meditação. Talvez por isso Emilie
voltar à sua cidade natal para rever a matriarca da famí- parava de viver cada vez que o eco quase imperceptível
lia de imigrantes libaneses, Emilie, e relatar suas impres- das badaladas da igreja dos Remédios pairava e desman-
sões ao irmão mais novo que mora em Barcelona. chava-se como uma nuvem sobre o pátio onde ela polia
os anjos de pedra após extrair-lhes o limo e os carunchos
05 Sempre calado, administrando a Parisiense, loja da acumulados na temporada de chuvas torrenciais. Ela in-
família. Entre ele e a esposa há a tensão religiosa, afinal terrompia as atividades, deixava de dar ordens a Anastá-
ele é islâmico e ela católica, mas este conflito torna-se cia e passava a contemplar o céu, pensando encontrar
leve na forma como é narrado. Trata-se do personagem: entre as nuvens aplastadas contra o fundo azulado e bri-
a) Hakim; lhante a caixa negra com uma tampa de cristal, os nú-
meros dourados em algarismos romanos, os ponteiros
b) Dorner; superpostos e o pêndulo metálico.
c) Pai de Emilie; Isso foi tudo o que Hindié me contou a respeito do relógio
d) Marido de Emile; e da permanência de minha mãe no convento de Ebrin,
há mais de meio século. Sem largar o cabo do narguilé,
e) Emir. abanando-se com um leque descomunal feito de fios tran-
çados e enfeitados com penas de pássaros, ela só para-
06 A narradora do romance não é nominada no texto va de matraquear para tomar fôlego e enxugar o suor do
e ela adota uma postura narrativa muito intrigante: são rosto com a ponta da saia, sem se importunar em mos-
várias vozes que se misturam a sua. A melhor definição trar a folhagem de panos transparentes que separava a
para esta narradora é: pele do algodão florido da túnica que nunca tirava.
a) Narradora onisciente; HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008, pp.30 e 31.
b) Narradora em terceira pessoa;
Assinale a alternativa incorreta em relação à obra Relato
c) Narradora em primeira pessoa; de um certo Oriente, Milton Hatoum, e ao Texto 1.
d) Narradora observadora;
a. ( ) A palavra “ela’ (linha 8) é o referente de “Emilie”
e) Narradora ouvinte. (linha 6).
b. ( ) No período “às mil vozes secretas das badaladas”
07 (TJ 2006) – Milton Hatoum nasceu em Manaus, (linhas 3 e 4), em relação à figura de linguagem, há hi-
em 1952. Formou-se em arquitetura na década de pérbole.
70 pela Universidade de São Paulo, mas é como escri- c. ( ) No período “desmanchava-se como uma nuvem

Domínio | Obras Literárias 49


Literatura Contemporânea
sobre o pátio” (linha 8) a palavra destacada é o elemento b. ( ) Somente as afirmativas I, III e V são verdadeiras.
que estabelece a ideia de comparação. c. ( ) Somente as afirmativas I, II e V são verdadeiras.
d. ( ) No período “E comparava a sucessão de sons às d. ( ) Somente as afirmativas III e IV são verdadeiras.
mil vozes secretas das badaladas de um sino” (linhas 3 e
4) o sinal gráfico da crase é facultativo, como ocorre no e. ( ) Somente as afirmativas I, IV e V são verdadeiras.
período “deixava de dar ordens a Anastácia” (linha 10).
e. ( ) Da leitura do período “Ela falava de um som grave 10 Assinale a alternativa incorreta em relação à obra
e harmônico que parecia vir de algum lugar situado entre Relato de um certo Oriente, Milton Hatoum, e ao Texto 1.
o céu e a terra” (linhas 1 e 2), infere-se a ideia de sono-
ridade. a. ( ) Da leitura do período “Ela falava de um som grave e
harmônico que parecia vir de algum lugar situado entre o
céu e a terra para em seguida expandir-se na atmosfera
09 Analise as proposições em relação à obra Relato de como o calor da caridade que emana do Eterno e de seu
um certo Oriente, Milton Hatoum, e ao Texto 1. Verbo” (linhas 1, 2 e 3), depreende-se um matiz religioso,
I. Da leitura do primeiro parágrafo, infere-se que, sutil- acentuado pelo uso das letras maiúsculas em substanti-
mente, há uma referência à “hora do anjo” – momento vos comuns no meio do período.
de introspecção para Emilie. b. ( ) Da leitura do período “Talvez por isso Emilie para-
II. Em “abanando-se com um leque descomunal feito de va de viver cada vez que o eco quase imperceptível das
fios trançados e enfeitados com penas de pássaros” (li- badaladas da igreja dos Remédios pairava e desmancha-
nhas 16 e 17), em relação à colocação pronominal ocor- va-se como uma nuvem sobre o pátio onde ela polia os
re ênclise, como também no período “sem se importunar anjos de pedra após extrair-lhes o limo e os carunchos
em mostrar a folhagem de panos transparentes” (linhas acumulados na temporada de chuvas torrenciais” (linhas
18 e 19). 6 a 10), depreende-se que Emilie retomava suas memó-
III. Na oração “ela polia os anjos de pedra” (linhas 8 e 9), rias em relação ao convento de Ebrin.
se a expressão destacada for substituída pelo adjetivo pé- c. ( ) Em “extrair-lhes o limo e os carunchos acumulados
treos, mantém-se o sentido e a coerência no texto. na temporada de chuvas torrenciais” (linhas 9 e 10) o
IV. Na oração “que acalmam as noites de agonia” (linha pronome destacado pode ser substituído pelo pronome
4), quanto à transitividade o verbo é transitivo direto e los, sem que ocorra prejuízo gramatical e de sentido no
indireto, pois tem como complementos as noites – objeto texto.
direto e de agonia – objeto indireto d. ( ) Da leitura do segundo parágrafo, infere-se que a
V. Da leitura do período “que parecia vir de algum lugar descrição da personagem Hindié vem reforçar a influên-
situado entre o céu e a terra” (linhas 1 e 2), infere-se a cia da cultura oriental na obra.
ideia de distanciamento. e. ( ) A palavra “onde” (linha 8), morfologicamente, equi-
vale a um pronome relativo, pois refere-se ao pátio, logo
Assinale a alternativa correta. pode ser substituído pela expressão em que, sem que
haja prejuízo na coerência e coesão.
a. ( ) Somente as afirmativas II e III são verdadeiras.

ANOTAÇÕES

GABARITO
01. d 02. b 03. a 04. d 05. d 06. e 07. b 08. d 09. b 10. c

50 Domínio | Obras Literárias


Obras Literárias PERÍODO: NATURALISMO

PERÍODO: NATURALISMO filho. Amâncio agarrava-se-lhe à saias, fora de si, sufo-


cado de soluços.”
Trata-se de um estilo que se manifestou na literatura, no da escola:
teatro e nas artes plásticas. Os romances naturalistas
são reconhecidos como “romances de tese”, pois defen- “O mestre, um tal Antônio Pires, homem grosseiro, bru-
dem algumas teorias da época, como o determinismo to, de cabelo duro e olhos de touro, batia nas crianças
e o evolucionismo. Nesse viés, temas como a miséria, por gosto, por um hábito do ofício. Na aula só falava a
a violência, crimes, patologias humanas, sexualidade, berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos
adultério, dentre outros, permeiam os enredos com o grossas, a voz áspera, a catadura selvagem ; e quando
objetivo de demostrar traços da personalidade humana metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior.
formados a partir da influência do meio, da raça e do (...)
momento. Os pais ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros
do Brasil, atrofiados pelo hábito de lidar com escravos,
entendiam que aquele animal era o único professor ca-
Aluisio de Azevedo é o autor que me- paz de “endireitar os filhos”.
lhor representa esse estilo no Brasil.
O autor representou em seus roman- dos exemplos dos mais velhos:
ces ( O cortiço, O mulato e Casa de “Convenceram-no de que só devemos praticar aquilo
pensão) um retrato da realidade bra- que os outros já praticaram. Opunham-lhe sempre o
sileira do século XIX mediante as re- exemplo das pessoas mais velhas ;exigiam que ele pro-
lações e o comportamento dos per- cedesse com o mesmo discernimento de que dispu-
sonagens. nham seus pais. E os rebentões da individualidade, e o
que pudesse haver de original no seu caráter e na sua
inteligência , tudo se foi mirrando e falecendo, como os
CASA DE PENSÃO renovos de uma planta, que regassem diariamente com
água morna. À mesa devia ter a sisudez de um homem.
ESTRUTURA DA OBRA Se lhe apetecia rir, cantar, conversar, gritavam-lhe logo :
O autor opta por um estilo cientificista marcado pela tese “Tenha modo, menino! Esteja quieto ! comporte-se!”
determinista – homem como produto do meio. Nesse das leituras que fazia:
sentido, toda a vida do protagonista é narrada a partir
da influência da educação que recebeu (dos pais e da es- “Seu espírito, excessivamente romântico, como o de
cola), das leituras que fez, das amizades e das mulheres todo maranhense nessas condições, pedia uma gran-
com quem se envolveu. de cidade, velha, cheia ruas tenebrosas, cheia de mis-
térios, de hotéis, de casas de jogo, de lugares suspeitos
Escrito em terceira pessoa, o narrador onisciente e e de mulheres caprichosas :fidalgas encantadoras e li-
distanciado consegue captar com muitos detalhes a tra- bertinas, capazes de tudo, por um momento de gozo.
jetória desse personagem que segue para um fim trági- E Amâncio sentia necessidade de dar começo àquela
co. Esse caráter documental do livro deixa a narrativa existência que encontrara nas páginas de mil roman-
bastante lenta, pois tenta contextualizar todos os per- ces. Todo ele reclamava amores perigosos, segredos
sonagens dentro da tese determinista, o que encerra a de alcova e loucuras de paixão. Entretanto, o seu tipo
necessidade de levantar a infância e os traumas de cada franzino, meio imberbe, meio ingênuo, dizia justamente
um. o contrário. Ninguém, contemplando aquele insignifi-
No que se refere a Amâncio, observe como o narrador cante rosto moreno, um tanto chupado, aqueles pômu-
analisa a formação do caráter do rapaz a partir: los salientes, aqueles olhos negros, de uma vivacidade
quase infantil, aquela boca estreita, guarnecida de bons
dentes, claros e alinhados, ninguém acreditaria que ali
da sua educação: estivesse um sonhador , um sensual um louco. “
“Amâncio fora muito mal-educado pelo pai, português (...)
antigo e austero, desses que confundem o respeito com Às vezes entrava em casa ao amanhecer. Não podia
o terror. Em pequeno levou muita bordoada ; tinha um dormir logo ;vinha excitado, sacudido pelas impressões
medo horroroso de Vasconcelos; fugia dele como de um e pela bebedeira da noite. Atirava-se à rede, com uma
inimigo, e ficava todo frio e a tremer quando lhe ouvia a vertigem impotente de conceber poesias byronianas,
voz ou lhe sentia os passos. Se acaso algumas vezes se escrever coisas no gênero de Álvares de Azevedo, can-
mostrava dócil e amoroso, era sempre por conveniên- tar orgias, extravagâncias, delírios.
cia : habituou-se a fingir desde esse tempo. Sua mãe, D.
Ângela, uma santa de cabelos brancos e rosto de moça,
não raro se voltava contra o marido e apadrinhava o
Domínio | Obras Literárias 51
Naturalismo
das amizades: circunstâncias. Era rico ! só com o que lhe tocava por
“- Também, que diabo, ficamos nós fazendo aqui? lem- parte materna, podia passar o resto da vida sem se fa-
brou o Paiva, quando se viu a sós com o amigo. - Paga tigar !...Por que, pois, sofrer aquelas apoquentações do
isso e vamo-nos embora. Queres tu ir até lá a casa ?... estudo ? Por que razão havia de ficar preso aos livros,
- Mas eu já estou a tanto tempo na rua ...considerou entre quatro paredes, quando dispunha de todos os ele-
Amâncio. - E o que tem isso ?!...Deves contas de ti a mentos para estar lá fora , em liberdade, a se divertir
alguém ?!Ora essa ! - É que o Campos pode reparar !... e a gozar ?!... Mais uma idéia sustinha-lhe o vôo do pen-
- Pois que repare! Manda plantar batatas ao tal de Cam- samento ;o vulto angélico de sua mãe vinha colocar-se
pos! Tu não és nenhum caixeiro dele...Eu, no teu caso, defronte dele, abrindo os braços, como se o quisesse
nem ficava ali mais um dia !Que necessidade tens agora proteger de um abismo. Ah! quanto empenho não fazia
de passar às sopas de um negociante, e sujeitares-te a a pobre velha em vê-lo formado às direitas, numa facul-
regulamentos comerciais ? É de mau gosto estar hos- dade do Brasil ! ... Vê-lo doutor !...”
pedado em casa de negócio! Olha! Se quiseres, muda-te A partir desse momento, o narrador retorna à infância de
lá para a república. Sempre é outra coisa morar com Amâncio para retratar como o protagonista desenvolveu
rapazes! Aprende-se! “ um comportamento tão dissimulado. Um pai repressivo,
um professor opressor e abusivo, a conivência da avó –
tudo isso aliado à leitura de Byron e Álvares de Azevedo e
O autor defende a posição de que diante dessa força de- sempre sendo acobertado pela mãe, que o via como uma
terminista não havia chance de Amâncio ser diferente do alma doce e gentil, quando na verdade era “um sonhador
que era. Dessa maneira, observe a descrição do caráter sensual e louco”.
do jovem:
É claro que Amâncio detestou a faculdade de Medicina,
“E Amâncio, com medo da bordoada, fazia-se grave, e achava tudo muito chato e enauseante. Fez alguns ami-
cada vez ia-se tornando mais hipócrita e reservado. Sa- gos: Paiva Rocha, João Coqueiro e Salustiano Simões.
bia afetar seriedade, quando tinha vontade de rir; sabia Paiva era conterrâneo seu do Maranhão e mostra-se
mostrar-se alegre, quando estava triste; calar-se, ten- muito amigo, mas só se interessa pelo dinheiro, que aliás
do alguma recriminação a fazer; e , na igreja, ao lado pede emprestado algumas vezes do ótimo amigo. Amân-
da família, sabia fingir que rezava e sabia agüentar por cio chega a conhecer a República em que morava o Pai-
mais de uma hora a máscara de um devoto. Como o va, mas não gostou e então recebe um convite de João
pai o queria inocente e dócil, ele afetava grande toleima, Coqueiro para morar na pensão que administrava com
fazia-se muito ingênuo, muito admirado das cosas mais sua esposa Mme Brizard.
simples. - É uma menina!...dizia a mãe ,convicta - Aman- À essa altura Amâncio percebeu que a única coisa que o
cinho tem já dez anos e conserva a candura de um anjo prendia à casa de Campos era Dona Hortência, esposa
! Vasconcelos nunca o puxava para junto de si, nem con- do comerciante, a qual ele cobiçava como amante. Mas
versava com ele, nem o interrogava ;e, quando a infeliz como ela era uma mulher honesta e muito virtuosa o
criança, justamente na idade em que a inteligência se conquistador não nutriu muitas esperanças e passou a
desabotoa, ávida de fecundação, fazia qualquer pergun- morar na pensão de João Coqueiro.
ta, respondiam-lhe com um berro : “ Não seja bisbilho-
teiro, menino!” Amâncio emudecia e abaixava os olhos, João tinha sido de uma família rica, mas o pai acabou
mas, logo que o perdiam de vista, ia escutar e espreitar falindo e tornou-se inda mais grosseiro e violento:
pelas portas. Com semelhante esterco, não podia desa- “Tiveram o primeiro filho - Janjão. Criancinha feia, des-
brochar e melhor no seu temperamento o leite escravo, sangrada, cheia de asma. Até aos cinco anos parecia
que lhe deu a mamar uma preta da casa. “ idiota; passava os dias a babar-se debaixo da mesa de
jantar, ao pé de um moleque encarregado de vigiá-lo. A
ENREDO mão desfazia-se em mil cuidadozinhos com a criança;
era esta o seu enlevo, a sua vida. Mas o pai não estava
Os capítulos iniciais dão conta da chegada de Amâncio ao por isso: - temia que o rapaz lhe saísse um maricas. De-
Rio de Janeiro. O rapaz entregou algumas cartas a pedido sejava-o - forte, decidido!”
do pai (que vivia no Maranhão) e acaba, a convite, hospe-
dando-se na casa do discreto comerciante Campos, que (...)
respeitava muito o pai do estudante. Casado com Dona “Ele queria lá filhos devotos! Era só o que lhe faltava! Era
Maria Hortênsia, Campos era um homem bem-sucedido só! Aquele menino parecia o seu castigo! Parecia a sua
e disciplinado, o que não agradou Amâncio, já que queria maldição!”
experimentar a vida boêmia da capital. Campos também Com a morte do pai, a mãe viúva resolve abrir uma pen-
estranhou a demora do estudante em realizar a matrícu- são para sustentar a família e assim João passa a tra-
la no curso de Medicina e, discretamente, pressionava balhar para ajudar – era quase um pai para sua irmã
seu hóspede a fazê-lo. Amélia. Mas a mãe também morre e ele fecha a pensão,
Amâncio não tinha o perfil de um pretendente ao ofício abandona os estudos e arruma outro emprego. Nisso,
de médico, tanto que deixa bem claro o seu objetivo ao Madame Brizard, amiga íntima da mãe de João Coquei-
escolher tal curso: ro, sensibilizada pela má sorte dos dois jovens, convida-os
“-Mas ,neste caso, a questão muda muito de figura !di- para morar em sua casa. Viúva de 50 anos, com 2 filhos (
zia-lhe em resposta uma voz que vinha de dentro de seu Nini –que sofria dos nervos- e César – ainda garoto), Bri-
próprio raciocínio Não se trata aqui de fazer um “médi- zard apaixona-se por João e faz uma proposta de casa-
co”, trata-se de fazer um “doutor”, seja ele do que bem mento ao jovem. Assim ele poderia voltar a estudar e eles
quiser !Não se trata de ganhar uma “profissão”, trata-se reabririam a pensão, sob os cuidados dela. Casaram-se,
de obter um “título”. Tu não precisas de meios de vida, apesar das censuras, olhares de desaprovação e chaco-
precisas é de uma posição na sociedade.” tas que recebiam.
(...) Desde que conheceu Amâncio, João Coqueiro pensou
que o amigo seria um bom partido para a irmã Amélia.
“Ora, Medicina, Medicina servia para algum moço po- E assim começa a empreita de casar Amélia. Madame
bre que precisasse viver da clínica; ele não estava nessa Brizard concordou com o plano e começou a tratar bem
52 Domínio | Obras Literárias
Naturalismo

o novo hóspede, assim como a salientar as qualidades tar fugindo do casamento.


de Amélia, que daria uma excelente esposa. No entanto, O caso toma conta das manchetes dos jornais, as opini-
a tarefa não era fácil. Havia outra mulher na pensão que ões se dividiam, mas Amâncio acaba sendo absolvido e
também via em Amâncio a possibilidade de enriquecer. a opinião pública apoiou a decisão. João Coqueiro pas-
Tratava-se de Lúcia, uma mulher que vivia na pensão com sa a ser motivo de chacota por ter “prostituído” a irmã,
Pereira (seu marido), professora de piano, bonita e sen- além disso estava endividado com as custas do processo
sual. e sem o dinheiro de Amâncio estavam completamente
Lúcia passa a flertar com Amâncio, que fica louco de de- falidos. Ele pensa em cometer suicídio mas não tem co-
sejo, mas ela faz um jogo de sedução, chega a beijá-lo ragem e acaba culpando Amâncio por sua desgraça. Vai
ardentemente, mas não se entrega. Suspeitando das in- até o hotel em que o rapaz estava hospedado e invade o
tenções de Lúcia, João Coqueiro ameaça de despejá-la, seu quarto, ele estava acompanhado de uma prostituta
pois estava com os aluguéis atrasados. Amâncio fica do- – o que deixou João ainda mais transtornado – e então
ente e Amélia passa a cuidar dele. A partir daí trava-se atirou e matou Amâncio Vasconcelos. João Coqueiro foi
uma luta entre as duas para ver quem conquista antes para a cadeia.
o rapaz. Lúcia chega a revelar os planos da família, que Foi uma grande comoção pública, muitas pessoas que-
o querem casado com Amélia apenas por que era rico riam ver o corpo de Amâncio no necrotério. O funeral foi
e queixa-se de não deixarem-na aproximar-se dele. Lú- acompanhado por uma multidão, muitos discursos, no-
cia também visita o enfermo na madrugada e depois de tícias nos jornais. Foi então que a mãe de Amâncio che-
beijos tórridos consegue dinheiro com ele para pagar os gou ao Rio para ver o filho – sem saber que ele já estava
aluguéis atrasados. Amâncio tenta algo além dos beijos, morto. Ela estranhou muito ao ver nas vitrines das lojas
mas Lúcia afirma que só se entregará completamente se alguns objetos com o nome do filho. Foi quando percebeu
tiver a garantia do casamento. uma ilustração que mostrava o corpo de seu filho ama-
João Coqueiro acaba com os planos de Lúcia ao contar do lavado em sangue no necrotério e então entendeu o
para Amâncio que ela não era casada com o Pereira, era que havia ocorrido. Não suportou ver aquilo, gritou de-
apenas uma aproveitadora e se fazia de difícil para valer sesperada e caiu de bruços na calçada sem poder rever
mais. Amâncio fica decepcionado e João aproveita para Amâncio.
expulsar Lúcia da pensão em nome da moral e dos bons
costumes. A partir disso Amélia começa a investir na O ASSASSINATO DE JOÃO CAPISTRANO DA CUNHA
conquista de Amâncio, principalmente porque ele pensa Em janeiro de 1876, a cidade do Rio de Janeiro foi asso-
em sair da pensão – por recomendação médica. Muito lada pela notícia de um crime envolvendo dois amigos. A
insinuante e insistente Amélia consegue o que desejava. história, que tomou ares de novela ao dividir opiniões, sus-
Os encontros às escondidas dos dois são excitantes para citar debates e causar comoção, ficou conhecida como
Amâncio, mas logo ele perde o interesse e não pensa Questão Capistrano, devido ao sobrenome de um dos jo-
em casar com a moça. Chega a notícia da morte do pai vens envolvidos na tragédia.
de Amâncio e Amélia não se intimida em pedir dinheiro,
sabendo da herança, pois a pensão vai mal (apenas 6 João Capistrano da Cunha era um jovem estudante oriun-
hóspedes) e insiste que ele compre uma casa. Depois de do do Paraná que foi ao Rio de Janeiro para estudar. Aca-
negar várias vezes ele acaba cedendo – por causa da bou se hospedando na pensão de Dona Júlia Clara Perei-
saúde - e nesta nova casa tudo fica muito chato. É quando ra, viúva que dava aulas de piano para sustentar os filhos
reacende em Amâncio a paixão por Hortência, que che- Antônio Alexandre Pereira – colega de João Capistrano e
gou a flertar com o rapaz (apesar de ser tão séria.. ?). Júlia Pereira – o pivô da tragédia. O fato é que o rapaz se
Ele escreve uma carta a mulher de Campos, mas essa envolve com a moça, o casamento é exigido e João acaba
carta é lida por Amélia e João e desesperados começam saindo da pensão sem honrar a irmã do amigo. Antônio
a pressionar pelo casamento – que não saía). Alexandre registra queixa na polícia em virtude de sua
irmã ter sido deflorada e inicia-se um processo. Defendi-
Amâncio recebe um telegrama da sua mãe pedindo para do por três advogados, incluindo o Dr Saldanha Marinho,
que ele a visite. Amélia insiste em ir junto – na verdade o rapaz foi absolvido. Frustrado e envergonhado, Antônio
com medo de que ela não volte mais. Paiva aconselha Alexandre assassina João Capistrano e também vai pre-
Amâncio para que vá escondido, mas João descobre e so, sendo, também, absolvido posteriormente por ter agi-
procura um advogado, já que desconfia que é um plano do em defesa da honra da irmã.
de fuga e que sua irmã ficará desonrada. No dia do em-
barque Amâncio é preso por ter deflorado a moça e es-

TESTES
Casa de Pensão (fragmento) desejava! mas não bebendo pela garrafa e dormindo pelo
Às oito horas, quando entrou em casa tinha já chão de águas-furtadas! − Que diabo! − não podia ser tão
resolvido não ficar ali nem mais um dia. − 1Era fazer as difícil conciliar as duas coisas! ...
malas e bater quanto antes a bela plumagem! Pensando deste modo, subiu ao quarto. 5Sobre
Mas também, se por um lado não lhe convinha a cômoda estava uma carta que lhe era dirigida; abriu-a
ficar em companhia do Campos; por outro, a ideia de se logo:
meter na república do Paiva não o seduzia absolutamen-
te. 2Aquela miséria e aquela desordem lhe causavam re- ”Querido Amâncio.
6
pugnância. 3Queria liberdade, a boêmia, a pândega − sim
senhor! tudo isso, porém, com um certo ar, com uma Desculpe tratá-lo com esta liberdade; como,
7

certa distinção aristocrática. Não admitia uma cama porém, já sou seu amigo, não encontro jeito de lhe falar
sem travesseiros, um almoço sem talheres e uma alcova doutro modo. Ontem, quando combinamos no Hotel dos
sem espelhos. 4Desejava a bela crápula, − por Deus que Príncipes a sua visita para domingo, 8não me passava

Domínio | Obras Literárias 53


Naturalismo
pela cabeça que hoje era dia santo e que fazíamos me-
lhor em aproveitá-lo; por conseguinte, se o amigo não 02 (UFPB) – O personagem Amâncio “começou a ves-
tem algum compromisso, venha passar a tarde conos- tir-se de mau humor” (ref.12), uma vez que
co, que nos dará com isso grande prazer. Minha família, a) rejeitava o ambiente da casa do Campos e não vislum-
depois que lhe falei a seu respeito, está impaciente para brava uma solução para seus problemas.
conhecê-lo e desde já fica à sua espera.”
b) não conseguia organizar sua vida naquele ambiente
nem admitia mudar-se da casa do Campos.
Assinava “João Coqueiro” e havia o seguinte pos- c) era incompreendido pelas pessoas com quem convivia
t-scriptum: 9”Se não puder vir, previna-mo por duas pa- e não admitia fazer novas amizades.
lavrinhas; mas venha. Resende n ... “
d) desconhecia quando a família do Campos iria voltar do
Amâncio hesitou em se devia ir ou não. O Coquei- Jardim Botânico e preocupava-se com o atraso dessas
ro, com a sua figurinha de tísico, o seu rosto chupado pessoas.
e quase verde, os seus olhos pequenos e penetrantes,
de uma mobilidade de olho de pássaro, com a sua boca e) não entendia as explicações do impertinente galegui-
fria, deslabiada, o seu nariz agudo, o seu todo seco egoís- nho e nem via motivos para deixar a casa do Campos.
ta, desenganado da vida, não era das coisas que mais o
atraíssem. No entanto, bem podia ser que ali estivesse o 03 (UFPB) – No fragmento “– Esta gente onde está?
que ele procurava, − um cômodo limpo, confortável, um perguntou, indicando o andar de cima a um caxeiro que
pouquinho de luxo, e plena liberdade. Talvez aceitasse o lhe apareceu no corredor, com a sua calça dominguei-
convite. ra, cor de alecrim, o charuto ao canto da boca.” (ref.10),
− 10Esta gente onde está? perguntou, indicando ocorremsequências textuais
o andar de cima a um caixeiro que lhe apareceu no cor- a) narrativas e descritivas.
redor, com a sua calça domingueira, cor de alecrim, o
charuto ao canto da boca. b) dissertativas e narrativas.
− 11Foram passear ao Jardim Botânico, respon- c) argumentativas e descritivas.
deu aquele, descendo as escadas. d) injutivas e argumentativas.
− Todos? ainda interrogou Amâncio. e) dissertativas e injutivas.
− Sim, disse o outro entre os dentes, sem voltar
o rosto. E saiu. 04 (UFPB) – No fragmento “– Era fazer as malas e ba-
− Está resolvido! pensou o estudante. − Vou à ter quanto antes a bela plumagem!” (ref.1), o narrador
casa do Coqueiro. Ao menos estarei entretido durante fazuso do discurso indireto livre. Julgue as afirmativas a
esse tempo! seguir em que ocorre essa mesma forma dediscurso:
E voltando ao quarto: ( ) “ Aquela miséria e aquela desordem lhe causavam
− Não! É que tudo ali em casa do Campos já lhe repugnância.”(ref.2)
cheirava mal!... Olhassem para o ar impertinente com ( ) “Queria liberdade, a boêmia, a pândega — sim se-
que aquele galeguinho lhe havia falado! ... E tudo mais era nhor! tudo isso, porém, com um certo ar, com uma cer-
pelo mesmo teor. − Uma súcia d’asnos! ta distinção aristocrática.” (ref.3)
12
Começou a vestir-se de mau humor, arremes- ( ) “ Desejava a bela crápula, — por Deus que desejava!
sando a roupa, atirando com as gavetas. O jarro vazio mas não bebendo pela garrafa e dormindo pelo chão de
causou-lhe febre, sentiu venetas de arrojá-lo pela janela; águas-furtadas!” (ref.4)
ao tomar uma toalha do cabide, porque ela se não des- ( ) “Sobre a cômoda estava uma carta que lhe era
prendesse logo, deu-lhe tal empuxão que a fez em tiras. dirigida; [...] ” (ref.5)
− Um horror! resmungava, a vestir-se furioso, ( ) “— Foram passear ao jardim Botânico, respondeu
sem saber de quê. aquele, descendo as escadas.” (ref.11)
− Um horror!
E, quando passou pela porta da rua, teve ímpetos
de esbordoar o caixeiro, que nesse dia estava de plantão. 05 (UFPB) – O personagem Amâncio, após a leitura da
carta, decide aceitar o convite de João Coqueiro porque
AZEVEDO, Aluísio. Casa de Pensão. São Paulo: Ática, 2009, p.59-60.
a) era muito amigo da pessoa que lhe enviara a carta.
01 (UFPB) – Considerando os elementos constitutivos b) desentendeu-se com o caixeiro que, naquele dia, esta-
va de plantão.
desse fragmento do romance Casa de Pensão, julgue os
itens a seguir: c) ficou comovido com as palavras amáveis do amigo.
d) tinha convicção de encontrar um lugar agradável na
( ) O narrador se apresenta de forma onisciente, conhe- casa de João Coqueiro.
cedor até dos pensamentos dos personagens.
e) queria, “naquele dia santo”, não lembrar dos proble-
( ) O personagem Amâncio apresenta-se como narra- mas da casa do Campos.
dor da trama, relatando experiências vividas na corte.
( ) A caracterização do personagem Coqueiro enqua- 06 (UFPB) – Considerando a carta escrita por João
dra-se nos princípios da estética naturalista.
Coqueiro para Amâncio, é correto afirmar:
( ) O narrador refere-se frequentemente aos espaços
relacionados aos fatos. a) O emissor da carta, no fragmento “Se não puder vir,
( ) O narrador omite completamente informações so- previna-mo por duas palavrinhas; mas venha.”(ref.9), as-
bre o tempo em que os fatos ocorrem. sume uma postura autoritária,ao expressar uma ordem.
b) O emissor, ao escrever “Desculpe tratá-lo com esta

54 Domínio | Obras Literárias


Naturalismo

liberdade.” (ref.7), deseja manter umdistanciamento do


receptor da carta. 09 (UFG) – No livro “Casa de Pensão”, de Aluísio Azeve-
do, o eixo principal da intriga é a relação Amâncio-Amélia
c) A principal finalidade da carta é fazer um convite a que:
Amâncio, para passar a tarde do domingo no Hotel dos
Príncipes. ( ) revela a mulher, ainda em conformidade com os
princípios românticos, idealizando o sentimento de amor,
d) O uso do vocativo “Querido Amâncio” (ref.6) revela que contrariando, assim, os interesses daqueles que a ro-
o emissor deseja construir uma relação de intimidade deiam.
com esse destinatário.
( ) permite a análise de uma coletividade que se coloca
e) O uso da expressão “[...] não me passava pela cabeça em torno de interesses exclusivamente materiais.
[...]” (ref.8) sugere uma atitude ríspidade João Coqueiro.
( ) desencadeia o destino trágico da personagem-pro-
tagonista, determinando o seu processo de degradação
07 (UFPB) – Leia: iminente.
“Começou a vestir-se de mau humor, arremessando a ( ) possibilita a descrição de suas personalidades, reve-
roupa, atirando com as gavetas. O jarro vazio causou-lhe lando suas fraquezas, taras e patologias, como é próprio
febre, sentiu venetas de arrojá-lo pela janela; ao tomar da tendência naturalista.
uma toalha do cabide, porque ela se não desprendesse
logo, deu-lhe tal empuxão que a fez em tiras.” (ref.12)
10 (ENEM) – Viam-se de cima as casas acavaladas
Considerando a organização semântico-sintática desse umas pelas outras, formando ruas, contornando praças.
fragmento, julgue os itens a seguir: As chaminés principiavam a fumar, deslizavam as carro-
( ) Os processos de coordenação e de subordinação cinhas multicores dos padeiros; as vacas de leite cami-
estão presentes na organização desse fragmento. nhavam como seu passo vagaroso, parando à porta dos
( ) As orações “arremessando a roupa, atirando com fregueses, tilintando o chocalho; os quiosques vendiam
as gavetas” referem-se à expressão “vestir-se de mau café a homens de jaqueta e chapéu desabado; cruzavam-
humor”, indicando circunstância de causa. -se na rua os libertinos retardios com os operários que
se levantavam para a obrigação; ouvia-se o ruído estalado
( ) A oração “ao tomar uma toalha do cabide” expressa dos carros de água, o rodar monótono dos bondes.
uma ideia de tempo em relação às orações “deu-lhe tal
empuxão que a fez em tiras.” (AZEVEDO, Aluísio de. Casa de Pensão. São Paulo: Martins, 1973)

( ) O conectivo “que” introduz uma oração de valor


explicativo. O trecho, retirado de romance escrito em 1884, descre-
( ) O conectivo “porque” pode ser substituído pelo co- ve o cotidiano de uma cidade, no seguinte contexto:
nectivo “como”, mantendo-se o mesmo sentido do perí- a) a convivência entre elementos de uma economia agrá-
odo. ria e os de uma economia industrial indicam o início da
industrialização no Brasil, no século XIX.
08 (UFPB) – No texto, o personagem Amâncio vivencia b) desde o século XVIII, a principal atividade da economia
um conflito em relação à sua situação de moradia. Esse brasileira era industrial, como se observa no cotidiano
conflito decorre do fato de Amâncio descrito.
a) pretender sair da casa do Campos, por se tratar de c) apesar de a industrialização Ter-se iniciado no século
um lugar sujo e sem nenhum conforto. XIX, ela continuou a ser uma atividade pouco desenvolvi-
da no Brasil.
b) mostrar-se dividido entre o desejo de liberdade e a fal-
ta de organização da república do Paiva. d) apesar da industrialização, muitos operários levanta-
vam cedo, porque iam diariamente para o campo desen-
c) sentir-se completamente fascinado pela república do volver atividades rurais.
Paiva, tendo em vista que, antes de tudo, queria a liber-
dade. e) a vida urbana, caracterizada pelo cotidiano apresenta-
do no texto, ignora a industrialização existente na época.
d) hesitar em mudar-se para a casa de João Coqueiro,
porque lá encontraria apenas um pouquinho de luxo.
e) sentir-se desolado na casa do Campos, porque, como
aristocrata, precisava de um lugar luxuoso para viver.

ANOTAÇÕES

GABARITO
01. V,F,V,V,F 02. a 03. a 04. V,V,V,F,F 05. e 06. d 07. V,F,V,F,V 08. b 09. F,V,V,V 10. a

Domínio | Obras Literárias 55


Obras Literárias
PERÍODO: TERCEIRA FASE MODERNISTA

PERÍODO: TERCEIRA FASE MODERNISTA graças à lábia de seu cabo eleitoral. No final, reconcilia-se
com Maria Rita, no fim do conto, por ordem do Major que
Também chamada de “geração de 45” caracteriza-se ordenou aos jagunços:
pelo experimentalismo linguístico e por temas que apro- “-Mandem os espanhóis tomarem rumo! Se miar, mete
fundarão o regionalismo da fase anterior. Os autores a lenha! Se resistir, berrem fogo!”
possuem características bem variadas, o que dificulta
uma generalização desta fase, basta citar João Cabral Principais personagens: Lalino Salãthiel, Maria Rita, Ra-
de Melo Neto e Clarice Lispector, contemporâneos de miro e Major Anacleto.
Guimarães Rosa.
2 – DUELO
Turíbio foi pescar e voltou antes do previsto. Resultado:
Rosa criou uma linguagem carregada flagra sua mulher, Silivana, na cama com o ex-militar Cas-
de regionalismos, que representa o ser- siano Gomes. Como estava só com uma faquinha, resol-
tanejo das vilas interioranas de Minas veu vingar-se depois. Ao procurar vingar sua honra, Turí-
Gerais. A marca do autor são os neolo- bio mentiu para a mulher que ia caçar pacas e fez uma
gismos: a invenção palavras. tocais na casa de Cassiano. Confunde-se e acaba matan-
do o irmão de Cassiano Gomes. Com um tiro na nuca.
Turíbio foge para o sertão e é perseguido pelo ex-militar.
Cassiano, sofrendo do coração, é obrigado a interromper
sua busca no lugarejo do Mosquito. Ali, torna-se amigo de
SAGARANA Timpim Vinte-e-Um, homem simples que recebe o auxílio
financeiro de Cassiano para comprar remédio para sua
Primeiro livro publicado de Guimarães Rosa (1946). São família. Em troca, Cassiano, pouco antes de morrer, pede
nove contos, nos quais o universo do sertão, com seus va- a Timpim que vingue seu irmão. Turíbio volta para casa e
queiros e jagunços, criam temas e tipos humanos descri- é surpreendido por Vinte-e-um, que o executa para vingar
tos em estilo muito peculiar que o escritor aprofundaria seu benfeitor.
em textos posteriores.
O título do livro é composto da palavra “Saga”, termo de Principais personagens: Turíbio Todo, Cassiano Gomes,
origem germânica, quer dizer “canto heróico” e é utilizado Silvana e Vinte-e-um.
para definir narrativas históricas ou lendárias; e “rana”,
termo de origem indígena, significa “espécie de” ou “se- 3 – O BURRINHO PEDRÊS
melhante a”. Por isso a explicação mais plausível para o O fazendeiro Major Saulo determina que seus homens
título é que ele apresenta o conteúdo do livro: textos se- levem uma grande quantidade de bois para comerciali-
melhantes a sagas de personagens heroicos. zação em uma cidade distante. Para cumprir a tarefa,
Em relação ao foco narrativo, com exceção dos contos convoca seus vaqueiros mais experientes, montados em
“Minha Gente” e “São Marcos” – que são narrados em cavalos jovens e fortes. Acompanha a condução o burri-
primeira pessoa –, os demais possuem narradores em nho Sete-de-Ouros, velho e fraco chamado Sete-de-Ouros.
terceira pessoa. Predomina o tempo psicológico de viés É um burrinho decrépito que já fora bom e útil para seus
linear. Quanto ao espaço de “Sagarana”, é quase sempre vários donos. Na travessia do Córrego da Fome, todos
Minas Gerais. Mais especificamente, o interior do estado, os cavalos e vaqueiros morrem, exceto dois: Francolim e
com ênfase para o nome dos povoados e vilarejos dos Badu; este montado e aquele agarrado ao rabo do Burri-
contos. Os estados de Goiás e do Rio de Janeiro são men- nho Sete-de-Ouros, o único animal a escapar da corrente-
cionados no livro, mas têm pouca relevância na narrativa. za, já que tinha experiência para poupar forças e deixar-
se levar pelas águas ao invés de tentar lutar contra elas,
1 - A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO como fizeram os outros.
Lalino Salãthiel é um típico malandro que vive faltando ao Principais personagens: Sete-de- Ouros (burrinho pe-
trabalho na mina para aproveitar a vida. É admirado pe- drês), Major Saulo, Francolim e Badu.
los colegas por contar histórias. Abandona o serviço na
estrada de ferro e vai para o Rio de Janeiro, largando 4 – SARAPALHA
sua mulher, Maria Rita. Na verdade ele percebe que o
espanhol Ramiro está interessado em sua mulher, então Sarapalha é uma vila às margens do rio Pará, onde mo-
pede dinheiro emprestado para viajar, deixando assim ram os primos Ribeiro e Argemiro isolados, com seu
o caminho livre para o espanhol. No retorno, encontra cachorro Jiló, nesse interior de Minas Gerais. Os outros
Ritinha casada com o espanhol Ramiro. Sem reaver a moradores fugiram com medo da malária que assolava
mulher, Lalino consegue um trabalho política e torna-se a comunidade. Os primos ficaram sofrendo com febre e
cabo eleitoral do Major Anacleto, o qual ganhou a eleição tremedeiras. Para Ribeiro, a dor maior vem do fato de ter
sido abandonado pela esposa Maria Luísa, que fugiu com

56 Domínio | Obras Literárias


Terceira Fase Modernista

outro homem. Durante as intermináveis conversas que miro, rapaz pretendido por ela. O narrador, aficionado do
mantêm para tentar distrair da doença, Argemiro, perce- jogo de xadrez, se vê vítima de uma jogadora perspicaz
bendo a iminência da morte e desejando ter a consciên- nas estratégias amorosas. Ela consegue fazer com que
cia tranquila, confessa o interesse pela esposa do primo, Armanda se interesse pelo narrador, deixando Ramiro li-
sem jamais faltar com o respeito ao parente. Ribeiro rea- vre para ela. O final feliz é composto pelo duplo casamen-
ge à confissão de forma agressiva e expulsa Argemiro de to: Maria Irma casa-se com Ramiro Gouveia e Santana
suas terras, sem nenhuma complacência, pois sentia-se com Armanda.
dececionado e traído.
Principais personagens: Emílio (narrador), Maria Irma,
Principais personagens: Primo Ribeiro e Primo Argemi- Ramiro Gouveia e Armanda.
ro.
8 – SÃO MARCOS
5 – CORPO FECHADO João Mangolô era um preto velho que morava no Calan-
No lugarejo da Laginha vive Manuel Fulô, falastrão que go Frito e tinha fama de bruxo. Izé, o narrador, faz pouco
se faz de valente e que tem duas paixões: sua noiva Das caso das crendices populares, não perdendo a oportuni-
Dores e uma mulinha de estimação, a Beija-Fulô, cobiça- dade de passar diante da casa de Mangolô para zombar
da por Antonico das Pedras, que tem fama de feiticeir e de seus feitos. Por zombaria, Izé recitou a oração de São
uma sela cobiçada por Manuel. Enquanto o protagonis- Marcos para Aurísio Manquitola e é duramente repreen-
ta se gaba de pretensas valentias, o verdadeiro valentão dido por banalizar uma prece tão poderosa.
Targino aparece e anuncia que dormirá com a noiva de Durante um passeio, vê-se repentinamente cego. Izé pas-
Manuel antes do casamento. Para impedir essa ofensa, sa a se orientar por cheiros e ruídos. Perdido e deses-
Manuel teria que enfrentar o valentão. O narrador, médi- perado, recita a oração de São Marcos. Guiando-se pela
co local e amigo de Manuel Fulô, não encontra meio de audição e pelo olfato, descobre o caminho certo: a casa
ajudá-lo. Manuel recebe a visita do feiticeiro, que promete de João Mangolô. Lá, irado, tenta estrangular o feiticeiro,
fechar-lhe o corpo em troca da mula. No duelo com Targi- mas recupera a visão no momento em que o negro re-
no, Manuel escapa por milagre dos tiros que lhe são diri- tira a venda dos olhos de um boneco. Izé se despede de
gidos e fere mortalmente o rival com uma pequena faca. Mangolô e parte, agora um pouco mais crédulo.
Depois desse feito, torna-se o novo valentão do lugar. Por
fim o narrador foi padrinho do tal valentão. Principais personagens: José, ou Izé (narrador), Aurísio
Manquitola e João Mangolô.
Principais personagens: Manuel Fulô, feiticeiro Antonico
das PedrasÁguas e Targino. 9 – A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA
6 – CONVERSA DE BOIS
Augusto Esteves Matraga é um fazendeiro de com-
portamento violento. Gasta dinheiro com jogos e pros-
Um carro de bois, que leva uma carga de rapadura e um titutas, maltrata a esposa Dionóra, despreza a filha
defunto, atravessa o sertão de Minas. Vai à frente Tião- e enfrenta seus opositores com a ajuda dos capan-
zinho, o guia, chorando a morte do pai, ali transportado. gas que o acompanham. Certo dia, Quim Recadeiro
Tiãozinho, que se tornara dependente de Agenor Soro- dá-lhe dois recados que alterarão sua vida: perde-
nho, o condutor, angustiava- se com este por dois moti- ra os capangas para seu inimigo, o Major Consilva,
vos: ele maltratava os bois e havia desfrutado os amores e a mulher e a filha, que fugiram com Ovídio Moura.
de sua mãe durante a doença do pai, que vivia entreva- Augusto Estêves vai sozinho à propriedade do ma-
do e nada podia fazer contra os amores que a esposa jor para tomar satisfação com seus ex-capangas. O
mantinha com o condutor de carros de boi. Pelo cami- Major Consilva ordena que Nhô Augusto seja marca-
nho, Agenor prenuncia a vida que o menino teria dali por do a ferro e depois morto. Ele é espancado à exaus-
diante, agora sob suas ordens, na condição de padrasto. tão; depois os homens esquentam o ferro usado para
A crueldade que Agenor demonstra para com o meni- marcar o gado do major e queimam o seu glúteo.
no, manifesta-se também no trato com os bois de carga. Augusto, desesperado, salta de um despenhadeiro.
Paralelamente, o boi Brilhante conta aos outros a história No entanto, é encontrado por um casal de negros que
do boi Rodapião, que morrera por ter aprendido a pensar cuida dele.  
como os homens. Há uma indignação entre os animais
em relação aos maus-tratos que os humanos lhes infli- Durante a convalescença, Augusto reflete sobre sua vida
gem. Agenor, para exibir a Tiãozinho seus talentos como e se penitencia dos pecados cometidos, decide que sua
carreiro, obriga, de forma cruel, os bois a superar a ladei- vida de facínora chegara ao fim. Recuperado, foge com
ra onde a carroça de João Bala havia tombado. Superado os pretos para a única propriedade que lhe restara, no
o obstáculo, os bois aproveitam-se do cochilo de Agenor Tombador, lugar distante, passando a servir o casal de
e derrubam-no, passando com as rodas sobre ele. Sem negros, trabalhando arduamente. Certo dia, aparece no
desconfiar de nada, Tiãozinho se desespera, enquanto os lugar o cangaceiro Joãozinho Bem-Bem, que simpatiza
bois lançam berros triunfais. com Augusto e o convida a participar de seu bando. Au-
gusto recusa. Tempos depois, sente irresistível desejo de
Principais personagens: Tiãozinho, Agenor Soronho e o partir. Segue sem rumo, até reencontrar o bando de can-
boi Brilhante. gaceiros no lugarejo do Rala-Coco. Pressentindo a chega-
da da “sua hora e vez”, encontra-se por acaso com João-
7 – MINHA GENTE zinho Bem-Bem, que está prestes a executar uma família,
O narrador é um inspetor escolar chamado Santana que, como forma de vingança. Nhô Augusto pede a Joãozinho
de férias, visita a fazenda de seu Tio Emílio no interior de Bem-Bem que não cumpra a execução. O jagunço encara
Minas, o qual rejuvenecera ao entrar para a política.. Lá, essa atitude de Nhô Augusto como uma afronta e os dois
reencontra a prima Maria Irma, namorada de infância, e travam o duelo final, no qual ambos morrem.
tenta retomar a aventura amorosa, mas não é corres-
pondido.. A moça consegue fazer com que a atenção do
primo seja atraída para a amiga Armanda, noiva de Ra-

Domínio | Obras Literárias 57


Terceira Fase Modernista

TESTES
exemplo, o provérbio citado, funcionam, em alguns auto-
01 (FUVEST) – E grita a piranha cor de palha, irritadís- res, como pista para se entender o sentido das ações
sima: ficcionais. No excerto acima, as ideias de beleza e neces-
– Tenho dentes de navalha, e com um pulo de ida‐e‐volta sidade são contrapostas com vistas à produção de um
resolvo a questão!... sentido de ordem moral.
– Exagero... – diz a arraia – eu durmo na areia, de ferrão Considerando-se a jornada heroica de Augusto Matraga,
a prumo, e sempre há um descuidoso que vem se espe- é correto afirmar que a narrativa
tar.
– Pois, amigas, – murmura o gimnoto*, mole, carregan- a) contradiz o sentido moral do provérbio, uma vez que
do a bateria – nem quero pensar no assunto: se eu soltar o protagonista não é fiel ao seu propósito de mudar os
três pensamentos elétricos, bate‐poço, poço em volta, hábitos antigos.
até vocês duas boiarão mortas... b) confirma o sentido moral do provérbio, uma vez que o
*peixe elétrico. protagonista realiza uma série de ações para corrigir seu
caráter e reordenar eticamente sua vida.
Esse texto, extraído de Sagarana, de Guimarães Rosa,
c) ratifica o sentido moral do provérbio, uma vez que o
a) antecipa o destino funesto do ex‐militar Cassiano Go- protagonista é seduzido pelos encantos da natureza e pe-
mes e do marido traído Turíbio Todo, em “Duelo”, ao qual los prazeres da bebida e do fumo.
serve como epígrafe. d) refuta o sentido moral do provérbio, uma vez que o
b) assemelha‐se ao caráter existencial da disputa entre protagonista não consegue agir sem as motivações da
Brilhante, Dansador e Rodapião na novela “Conversa de beleza física e do afeto femininos.
Bois”.
c) reúne as três figurações do protagonista da novela “A 04 (PUCSP) – A obra Sagarana,de João Guimarães
hora e vez de Augusto Matraga”, assim denominados: Au- Rosa, foi publicada em 1946. Dela é correto afirmar que
gusto Estêves, Nhô Augusto e Augusto Matraga.
d) representa o misticismo e a atmosfera de feitiçaria a) se intitula Sagarana porque reúne novelas que se de-
que envolve o preto velho João Mangalô e sua desavença senvolvem à maneira de gestas guerreiras e lendas e
com o narrador‐personagem José, em “São Marcos”. apresentam um tema comum que abarca a vida simples
dos sertanejos da região baiana do São Francisco.
e) constitui uma das cantigas de “O burrinho Pedrês”, em
que a sagacidade da boiada se sobressai à ignorância do b) compõe-se de nove novelas, entre as quais se sobres-
burrinho. sai “Corpo Fechado”, história de valentões e espertos, de
violência e de mágica, protagonizada por Manuel Fulô.
c) estrutura-se em doze narrativas, de sentido moral e
02 (Fac. Albert Einstein) – Mas... Houve um pequeno embasadas na tradição mineira, entre as quais se desta-
engano, um cam “Questões de família”, história meio autobiográfica,
contratempo de última hora, que veio e “Uma história de amor”, expressivo drama passional.
pôr dois bons sujeitos, pacatíssimos e d) apresenta narrativas apenas de teor místico religioso
pacíficos, num jogo dos demônios, numa como a que se engendra em “A hora e a vez de Augusto
Matraga”, cujo estilo destoa do conjunto das outras que
comprida complicação. compõem o livro.
O trecho acima faz parte do conto “Duelo”, uma das nar-
rativas de Sagarana, de João Guimarães Rosa. Essa 05 (Fac. Albert Einstein) – As ancas balançam, e as
narrativa, como um todo, apresenta vagas de
a) duas histórias de vingança que se entrelaçam, ou seja, dorsos, das vacas e touros, batendo
um marido buscando o amante da esposa e um homem com as caudas, mugindo no meio,
buscando o assassino do irmão. na massa embolada, com atritos de
b) uma trama protagonizada por uma mulher de olhos couros, estralos de guampas, estrondos
bonitos, sempre grandes, de cabra tonta, que se envolve
com um pistoleiro que acaba sendo morto por ela. e baques, e o berro queixoso do gado
c) as peripécias vividas por um capiau que se torna o junqueira, de chifres imensos, com
agente de um crime contra seu compadre e amigo, Cas- muita tristeza, saudade dos campos,
siano Gomes, por desavenças de traição amorosa. querência dos pastos de lá do sertão ...
d) cenas de adultério praticadas por dona Silivânia, no “Um boi preto, um boi pintado,
mais doce, dado e descuidoso dos idílios fraudulentos,
com o amante Turíbio Todo, o que provoca tragédia entre Cada um tem sua cor.
seus pretendentes. Cada coração um jeito
De mostrar o seu amor.”
03 (UNICAMP) – “Sapo não pula por boniteza, mas po- Boi bem bravo, bate baixo, bota baba,
rém por percisão.” boi berrando ...
(“Provérbio capiau” citado em epígrafe no conto “A hora Dança doido, dá de duro, dá de dentro,
e a vez de Augusto Matraga”, em João Guimarães Rosa, dá direito ... Vai,
Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 287.)
Vem, volta, vem na vara, vai não volta,
Elementos textuais que antecedem a narrativa como, por
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Terceira Fase Modernista

vai varando ... ca na cabeça delirante de Primo Ribeiro.


“Todo passarinh’ do mato b) enfoca a solidão, o abandono e a decadência de duas
Tem seu pio diferente. personagens acometidas de maleita e que passam os
dias em diálogo sobre suas condições físicas e sentimen-
Cantiga de amor doído tais.
Não carece ter rompante ...” c) gera um conflito entre dois primos, quando um deles
revela ter gostado muito de Luísa, mulher do outro, que o
O trecho acima integra o conto O Burrinho Pedrês, da abandonara por um boiadeiro.
obra Sagarana, escrita por João Guimarães Rosa. Dele é d) usa predominantemente discurso indireto livre, que faz
correto afirmar que aflorar o pensamento íntimo da personagem e despreza
a) descreve o movimento agitado dos bois por meio de o diálogo objetivo e direto por sua incapacidade de inter-
uma linguagem construída apenas pelo emprego abusivo locução.
de frases nominais e de gerúndios.
b) apresenta um jogo entre a forma poética e a prosaica 08 (PUCSP) – Do conto “A Volta do Marido Pródigo”,
e, em ambos os gêneros, é possível constatar a presença que integra a obra Sagarana, de João Guimarães Rosa,
de ritmo marcado pelo uso de redondilhas. não é correto afirmar que
c) há presença significativa de figuras sonoras como as a) há, no protagonista, uma espécie de heroísmo gaiato,
aliterações que emprestam ao texto ritmo duro e pesa- correlacionado às espertezas das histórias de sapos uti-
do, impedindo a musicalidade e o lirismo próprios da arte lizadas na narrativa.
popular. b) a personagem principal é Lalino Salãtiel, mulatinho
d) há uma mistura de textos narrativos e textos poéticos descarado, malandro, enganador, mas simpático. Sabe
que quebra a sequência do conto e oferece ao leitor um como poucos contar uma boa história e age na vida como
texto de duvidosa qualidade estética. se estivesse em contínua representação.
c) traz no nome uma alusão bíblica que se concretiza nas
06 (Fac. Albert Einstein) – “De repente, na altura, a ações de abandonar a família, gastar o pouco que tem
manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo com bandalheiras, retornar para casa fragilizado e ser
guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais de novo aceito.
outro. E ainda outro, mais baixo, com as maitacas verdi- d) mostra total alheamento quanto a situações políticas
nhas, grulhantes, gralhantes, incapazes de acertarem as e de disputas de poder, uma vez que os personagens,
vozes na disciplina de um coro. (...) O sol ia subindo, por que atuam na história, são gente do povo e operários da
cima do voo verde das aves itinerantes. Do outro lado da construção de estradas.
cerca, passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres
eram bonitas. Todo anjo do céu devia de ser mulher.”
09 (ENEM) – Apuram o passo, por entre campinas ri-
cas, onde pastam ou ruminam outros mil e mais bois.
O trecho acima integra a obra Sagarana, de Guimarães Mas os vaqueiros não esmorecem nos eias e cantigas,
Rosa. Indique, nas alternativas abaixo, o nome do conto porque a boiada ainda tem passagens inquietantes: alar-
que contém o referido trecho. ga-se e recomprime-se, sem motivo, e mesmo dentro da
a) “A hora e vez de Augusto Matraga”, que narra a vio- multidão movediça há giros estranhos, que não os deslo-
lência como instrumento de redenção, materializada na camentos normais do gado em marcha — quando sem-
morte de Joãozinho Bem-Bem e do jagunço protagonista. pre alguns disputam a colocação na vanguarda, outros
procuram o centro, e muitos se deixam levar, empurra-
b) “Corpo Fechado”, história de valentões e de espertos, dos, sobrenadando quase, com os mais fracos rolando
de violência e de mágica, protagonizado por Manuel Fulô. para os lados e os mais pesados tardando para trás, no
c) “São Marcos”, que relata a desavença entre o narra- coice da procissão.
dor e um feiticeiro que o deixa cego por força de uma
bruxaria.
– Eh, boi lá!... Eh-ê-ê-eh, boi!... Tou! Tou! Tou...
d) “Minha Gente”, em que se relata a situação vivida por
um moço da cidade que vai passar uma temporada no
campo e vive amores desencontrados. As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e tou-
ros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa
07 (PUCSP) – O sol cresce, amadurece. Mas eles es- embolada, com atritos de couros, estralos e guampas,
estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junquei-
tão esperando é a febre, mais o tremor. Primo Ribeiro ra, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos
parece um defunto – sarro de amarelo na cara chupada, campos, querência dos pastos de lá do sertão...
olhos sujos, desbrilhados, e as mãos pendulando, com-
pondo o equilíbrio, sempre a escorar dos lados a bambe-
za do corpo. Mãos moles, sem firmeza, que deixam cair “Um boi preto, um boi pintado,
tudo quanto ele queira pegar. Baba, baba, cospe, cospe,
vai fincando o queixo no peito; e trouxe cá para fora a cada um tem sua cor.
caixinha de remédio, a cornicha de pó e mais o cobertor.
Cada coração um jeito
O trecho acima integra o conto Sarapalha e faz parte da
obra Sagarana de João Guimarães Rosa. Dessa narrati-
va como um todo, é errado afirmar que de mostrar seu amor”.
a) apresenta duas narrativas, uma em tempo presente e
outra, em tempo passado, a qual assume dimensão míti- Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dan-

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Terceira Fase Modernista

ça doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito...


10 (ENEM) – A sombra do cedro vem se encostar no
Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando... cocho. PrimoRibeiro levantou os ombros; começa a tre-
ROSA J. G. O burrinho pedrês. Sagarana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. mer. Com muitoatraso. Mas ele tem no baço duas col-
meias de bichinhosmaldosos, que não se misturam, sol-
Próximo do homem e do sertão mineiros, Guimarães tando enxames nosangue em dias alternados. E assim
Rosa criou um estilo que ressignifica esses elementos. nunca precisa depassar um dia sem tremer.
O fragmento expressa a peculiaridade desse estilo nar- ROSA, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
rativo, pois O texto de João Guimarães Rosa descreve as manifes-
a) demonstra a preocupação do narrador com a veros- tações das crises paroxísticas da malária em seu perso-
similhança. nagem. Essas se caracterizam por febre alta, calafrios,
sudorese intensa e tremores, com intervalos de 48 h ou
b) revela aspectos de confluência entre as vozes e os 72 h, dependendo da espécie de Plasmodium.
sons da natureza.
c) recorre à personificação dos animais como principal Essas crises periódicas ocorrem em razão da
recurso estilístico. a) lise das hemácias, liberando merozoítos e substâncias
d) produz um efeito de legitimidade atrelada à reprodu- denominadas hemozoínas.
ção da linguagem regional. b) invasão das hemácias por merozoítos com maturação
e) expressa o fluir do rebanho e dos peões por meio de até a forma esquizonte.
recursos sonoros e lexicais. c) reprodução assexuada dos esporozoítos no fígado do
indivíduo infectado.
d) liberação de merozoítos dos hepatócitos para a cor-
rente sanguínea.
e) formação de gametócitos dentro das hemácias.

ANOTAÇÕES

GABARITO
01. a 02. a 03. b 04. b 05. b 06. a 07. d 08. d 09. e 10. a

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