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A PRIMORDIALIDADE DA SENSIBILIDADE MEDIANTE A FORMA

NA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM KANT E SONTAG

Lucas Costa Zednik


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RESUMO

A presente incursão teórica tem por objetivo a produção de um diálogo entre as


perspectivas da experiência estética para Immanuel Kant, presente na Crítica da
faculdade de julgar, e para Susan Sontag, formulada no texto Contra a interpretação,
frente a outros entendimentos do que é essa experiência.

INTRODUÇÃO

“Os únicos objetos que parecem destituídos de fins são os objetos estéticos, por
um lado, e os homens, por outro. Deles não podemos perguntar com que finalidade? Para
que servem? Pois não servem para nada. Mas a ausência de fim da arte, tem o ‘fim’ de
fazer com que os homens se sintam em casa no mundo”.

Hannah Arendt

É recorrente, na prática dialogal concernente a arte, em específico na comunicação


acerca das experiências estéticas que nos apetecem, um desprendimento da superfície
sensível da obra face a análise das entrelinhas da narrativa, das inquietações políticas e
do contexto histórico que a acompanham, de tal sorte que a forma tem valor subsidiário.

O abandono da aparência da obra de arte e dos efeitos desta na sensibilidade


subjetiva, do sentimento de prazer, para debater as interpretações ou a função social da
obra é o que produziu a inquietação necessária à produção deste artigo.

A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E ARTE, E O VALOR DESTA

O filósofo Alain Badiou apresenta três esquemas historicamente reconhecíveis que


entrelaçam a arte e a filosofia de formas específicas, enquanto observa aquela como
objeto desta. O esquema didático dita que a arte é incapaz de verdade, ou que esta, em
sua totalidade, lhe é exterior. Este é o pensamento platônico, da arte enquanto cópia de
uma cópia, “o encanto de uma aparência de verdade”, e pode, esse encanto, sob
vigilância da filosofia, ser o fornecedor de uma aparência sedutora a uma verdade
produzida de fora. Disso se aduz que, ou a arte deve ser banida, ou tratada de maneira
estritamente instrumental, ou seja, a norma da arte deve ser a educação, e a essência
boa da arte confirma-se em seus efeitos públicos.

A tese do esquema romântico é de que somente a arte é capaz de realizar a


verdade, a qual a filosofia pode somente indicar. “é a própria arte que educa, porque
ensina o poder de infinidade contido na coesão supliciada de uma forma. A arte entrega-
nos a esterilidade subjetiva do conceito. A arte é o absoluto como sujeito, é a
encarnação”.

Desses extremos, surge a pacificação aristotélica, o esquema clássico, o qual


sustenta que a essência da arte é mesmo mimética, porém não é grave, dado que o
destino da arte não é a verdade. Arte não é conhecimento, mas carthasis, “deposição das
paixões numa transferência sobre a aparência”. A arte tem, dessa forma, função
terapêutica. Destas duas teses, infere-se que, primeiro, o critério da arte é agradar, pois
agradar é a efetividade da carthasis, e, segundo, “O ‘’agradar’’ prende-se apenas àquilo
que, de uma verdade, retém a disposição de uma identificação”.

INTERPRETAÇÃO OU A PERSISTÊNCIA DO CONTEÚDO

Para além da discussão da inestética, os esquemas ilustrados por Badiou nos


revelam que o pensamento sobre a arte não torna discussão a necessidade de um valor
inerente a ela, a possibilidade da inutilidade da arte. A consideração comum acerca da
arte torna ela um objeto que deve exprimir uma utilidade intelectível ao sujeito em um
espectro de possibilidades. É nesse ponto que discordam Kant e Sontag. Para esta, a
consciência sobre a arte e a crítica desta perpetuaram-se dentro da moldura formada pela
teoria grega da arte como mimese ou representação. “É em função dessa teoria que a
arte enquanto tal — acima e além de determinadas obras de arte — se torna problemática
e deve ser defendida”. Tal defesa gera no homem a concepção segundo a qual o que
entendemos como forma (componente da obra que dialoga diretamente com a
sensibilidade subjetiva, por exemplo a mise-en-scène, no caso do cinema), estrutura
meramente acessória, é algo distinto do que entendemos como conteúdo (componente da
obra que dialoga diretamente com a intelectualidade, a razão), matéria essencial da obra
de arte.

Mesmo nos tempos modernos, em que a concepção de arte como representação


de uma realidade exterior abriu espaço à sua concepção como autoafirmação do artista, o
conteúdo sedimentou-se primordial e a força centrípeta que puxa a experiência estética
(evento de contato entre interlocutor e obra) em direção a ele tornou a fuga uma missão
hercúlia, como ressalta a pensadora:

“Nenhum de nós poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria, quando a arte não
precisava de justificativa, quando ninguém perguntava o que uma obra de arte dizia porque sabia (ou
pensava que sabia) o que ela realizava. A partir desse momento até o fim da consciência estamos
comprometidos com a tarefa de compreender a arte”.

Interpretar, para a autora, é empobrecer nosso mundo ao edificar um mundo de


“significados”, proporcionado na contemporaneidade pelas doutrinas marxistas e
freudianas, os quais Badiou, coincidentemente, balizou como representantes dos
esquemas didático e clássico, respectivamente, no século XX. Susan afirma que
“Segundo Marx e Freud, estes acontecimentos parecem inteligíveis. Na realidade, nada
significam sem uma interpretação. Compreender é interpretar. E interpretar é reafirmar o
fenômeno, de fato, descobrir um equivalente adequado”. A interpretação, a busca pelo
conteúdo, é um caminho de domação da arte, de se esquivar daquilo que está em
frontalidade com o espectador, de esvaecer as sensibilidades.

A fim de fugir desse vício hermenêutico e tratar a obra pelo que é, é preciso
retomar a atenção à forma, à transparência. Urge um passo em direção à erótica da arte.

IMPORTÂNCIA DA FORMA

Kant, em uma de suas passagens pela Crítica da faculdade de julgar, define o belo
como “Beleza é a forma da conformidade a fins de um objeto, na medida em que ela é
percebida sem representações de um fim”. É na sensibilidade dessa conformidade a fins
que o prazer é gerado. Nesse sentido, o juízo de gosto puro, para o filósofo, é a
representação de uma conformidade a fins sem fins na forma, longe de adornos que
fundem essa conformidade sobre o sentimento de prazer. A representação da arte não
pode levar à formulação de conceitos (determinados) para que adjetivem-na bela, dado
que o juízo reflexivo é um livre jogo entre as faculdades do entendimento e da
imaginação, logo, o belo não se pode, em nenhuma hipótese, ser atribuído como
qualidade de uma representação do objeto em função do conteúdo da obra, este que
ultrapassa as funções contemplativas do juízo reflexivo, somando conceitos determinados
à representação. Embora, para Kant, os adornos, como as cores, as molduras, os timbres
dos instrumentos, sejam um vício no juízo sobre o belo por atiçarem nosso ânimo para
com a obra de arte, a relevância da forma é ideia compartilhada por Kant e Sontag.

A distinção entre o belo e o não belo, que carece na obra de Sontag dado que
limita seu escopo às possibilidades de relação da arte com o espectador, para Kant,
remete diretamente à representação e a complacência sem interesse que
determinantemente o funde. Se, em uma determinada anteposição de sujeito e obra, não
há essa complacência, não há de se considerar esta bela. Kant, posteriormente, ainda
indica:

“Se a arte, conformemente ao conhecimento de um objeto possível, simplesmente executa as ações


requeridas para torná-lo efetivo, ela é arte mecânica; se, porém, ela tem por intenção imediata o sentimento
de prazer, ela se chama arte estética. Esta é ou arte agradável ou arte bela; ela é arte agradável se o seu
fim é que o prazer acompanhe as representações enquanto simples sensações; ela é arte bela se o seu fim
é que o prazer as acompanhe enquanto modos de conhecimento”.

Por esse prisma, qualquer que seja a categoria a qual a obra filie-se, a experiência
estética conduz-se inequivocamente por meio da forma.

O BELO TEM SENTIDO NA COEXISTÊNCIA ENTRE HOMEM E MUNDO

Ademais, a experiência estética em análise não tem sua conclusão no proveito


subjetivo, o juízo de gosto que, para Kant, é universal, “imputa o assentimento a qualquer
em; e quem declara algo belo quer que qualquer um deva aprovar o objeto em apreço e
igualmente declará-lo belo”.

Para o professor Luiz Camillo Osório de Almeida, o sentimento da comunicação e


do co-pertencimento é o que dá especifidade à experiência estética na “Terceira Crítica”.
É na necessidade intersubjetiva de requerer o assentimento de belo derivado de um
objeto que finda se a experiência, a qual deve religar o homem ao mundo tanto quando
homem ao homem.

Sontag propõe, na sua relação erótica com a arte, uma retomada do mundo, a
maximização da experiência sensível com este “O mundo, nosso mundo, já está
suficientemente exaurido, empobrecido. Chega de imitações, até que voltemos a
experimentar de maneira mais imediata aquele que temos”. Kant, por sua vez, defende
que um homem moralmente elevado possui a capacidade de ver o belo na natureza,
portanto, deve fruir desse homem, não só uma apreciação pela natureza, como também
uma vontade de preservação do mundo.

A experiência estética, portanto, exerce um papel fundamental na construção,


manutenção e aprimoramento da sociedade humana, na nossa percepção e praxis do
mundo e do outro.

CONCLUSÃO

O valor da arte, portanto, reside não na sua utilidade, mas sim na sua inutilidade. É
a partir da falta de fins explícitos e determinados que a arte ganha valor.

Embora, para Sontag, a “forma” designe a aparência do objeto artístico ao passo


que Kant a entende como modo de representação dentro do sujeito, aquela se conclui, na
experiência, similar a esta. Não obstante, existe também uma lacuna explícita no diálogo
entre os textos que convém à nossa análise, que é a discussão acerca do belo.

Superado deste descompasso primal, o desbocar das correntes estéticas destes


pensadores em uma prática do mundo e do homem é nítida, de tal sorte que esta passa,
necessariamente, tanto pela ideia de forma, quanto pela sensibilidade humana, pelo
prazer.

É necessário, nesse sentido, recuperar coletivamente a experiência estética


inclinada a forma, deixar a arte falar por si.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KANT, Immanuel; ROHDEN, Valerio; MARQUES, António. Critica da faculdade do
juizo.3.ed. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2012.
SONTAG, S. Contra a interpretação. [s.l.] Companhia das Letras, 2020.
DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Lisboa: Edições 70, 2009.
PRADILLA, Ileana; REIS, Paulo. Kant: crítica e estética na modernidade. São
Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 1999.

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