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ÍNDICE

SINOPSE
CAPÍTULO 1

CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3

CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5

CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7

CAPÍTULO 8

CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11

CAPÍTULO 12

CAPÍTULO 13

CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16

CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18

CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20

CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22

CAPÍTULO 23

CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26

CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28

CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30

CAPÍTULO 31

CAPÍTULO 32

CAPÍTULO 33
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS

A HISTÓRIA DE SILVIO E AYLA


OUTRAS OBRAS

CONTATO
 

 
Dafne Capolavoro se tornou uma empresária de sucesso do ramo
gastronômico ao administrar o empreendimento de sua família, mas sente
um desejo profundo por expandir os seus horizontes profissionais. Para
isso, está de olho em um aconchegante e romântico restaurante: O Bernard.
Nicolas Bernard é um chef especializado em culinária francesa,
completamente apaixonado por sua profissão e por seu restaurante, mas está
vendo seu sonho se afundar em dívidas. Ele está desviando das propostas de
compra, feitas através do advogado da família Capolavoro, há meses, mas
não há outra opção para salvar o Bernard: ele precisa de um sócio.
O que o Nicolas não esperava era que sua sócia fosse linda, usasse
um perfume inebriante e se irritasse com facilidade.
Dafne também não contava que o dono do restaurante fosse o
próprio chef, tampouco que teria que manter aquele homem detestável por
perto.
Ao menos ela o achava talentoso. E irritante. E extremamente
gostoso.
Quando as implicâncias dão uma trégua, Dafne e Nicolas se
entregam a um momento quente, mas as consequências não demoram a
aparecer e eles precisarão lidar com elas.
 
 
 
 
 
 
 
 
Para Jéssica.
Um dia você escutou as minhas ideias e
enxergou nelas o potencial para se transformar em histórias.
Obrigada por acreditar em mim e
seguir ao meu lado no caminho das palavras
 
 
 
 
 
 
 
 
Teus sinais me confundem da cabeça aos pés
Mas por dentro eu te devoro
Teu olhar não me diz exato quem tu és
Mesmo assim eu te devoro
 
(Eu te devoro - Djavan)
 
 
 

O dia posterior ao aniversário da minha mãe foi marcado por uma


leve dor de cabeça, afinal havia ingerido mais drinks do que eu conseguia
lembrar e o meu corpo já não era o mesmo de dez anos atrás, agora
qualquer excesso era sentido. Portanto, tudo que eu planejava para as
próximas horas era passar o dia quietinha. Mais especificamente, deitada na
minha cama, sob os meus lençóis de seda, rodeada por travesseiros e antes
que a segunda-feira chegasse já estaria recuperada da leve ressaca. Mas os
meus planos foram interrompidos pela ligação do meu advogado. E se tinha
uma coisa que os anos acumulados haviam me ensinado, era a valiosa lição
de nunca ignorar o contato do seu advogado. Por isso, sentei-me, livrando-
me rapidamente da máscara para dormir e em seguida alcancei o celular
sobre a mesa de cabeceira, atendendo a ligação.
— Eu não te ligaria um dia após a festa de aniversário de ontem, se
não fosse algo do seu extremo interesse — Maciel introduziu assim que a
ligação foi atendida — Sabe o restaurante que você vem namorando há
meses? — Emiti um resmungo em confirmação.
Eu realmente estava em uma situação de flerte com o Bernard, mas
infelizmente não estava sendo correspondida. O proprietário continuava a
recusar as propostas apresentadas pelo meu competente advogado, ainda
que fosse do conhecimento de todos que ele estivesse soterrado em dívidas.
— Presumo que tenha feito uma proposta maior.
— Sim, conforme a nossa última conversa.
— E ele ignorou como das outras vezes… — Completei em um
lamento.
Nunca recebemos uma clara recusa das ofertas. Sempre que o
Maciel apresentou as propostas ele recebeu um breve e educado “agradeço
a oferta”, seguido da evasiva de que entraria em contato em caso de
alteração de pensamento. A única alteração de pensamento que eu
imaginava na atual situação dele era que as dívidas com os fornecedores
evaporassem feito a água esquecida no fogo alto.
— Não — fui surpreendida — dessa vez ele fez um aceno a nossa
proposta e um convite para que a conversa prossiga pessoalmente.
— Ótimo, segunda-feira você fará isso. — Afirmei, feliz com a
notícia.
— Ele sugeriu que a reunião acontecesse hoje.
— Droga, eu lamento te tirar da companhia das crianças no seu
sábado de folga.
— Não se preocupe, elas sabem que faz parte do trabalho do papai
— afirmou sereno — só que ele também solicitou a sua presença.
— A minha? — Em geral era o meu advogado que resolvia questões
contratuais, de locação etc., mas dessa vez abriria uma exceção porque
queria muito o restaurante. O lugar era bem localizado e tinha a estrutura
ideal para colocar as minhas novas ideias em ação.
— Ele quer conhecer a possível nova proprietária do restaurante.
— Ok, você me informa o horário e estarei lá. — Não iria deixar
passar essa oportunidade.
— Somos aguardados dentro de sessenta minutos.
— Sério!?
— Recebi a notícia e também fiquei surpreso com a urgência. Você
geralmente trabalha aos sábados, mas sei que gostaria de aproveitar essa
rara e merecida folga pós-festa. Ainda assim, como sabia que estava
determinada a adquirir esse restaurante, fiquei de te ligar antes de confirmar
a sua presença. Se não puder, posso aparecer sozinho e marcar uma nova
reunião.
— Não — neguei, afastando os lençóis e colocando-me de pé. — Se
eu não comparecer é capaz de ele recuar. Vamos resolver isso de uma vez.
— Nos vemos lá.
— Até.
Encerrei a ligação e literalmente corri para o banheiro. O sorriso
amplo no meu rosto diante do espelho evidenciava a minha satisfação,
afinal tudo era questão de perspectiva. E nesse momento eu preferia encarar
aquela súbita mudança de planos como uma boa nova. O marco do início de
um novo ciclo da minha vida.
Os minutos que seguiram após o banho foram agitados, ainda no
banheiro apostei em uma maquiagem mais natural e que escondesse
quaisquer vestígios da noite anterior. Penteei os fios escuros para trás e fiz
um coque sofisticado. O conjunto rosa clarinho, que poderia ser facilmente
confundido com branco, formado por blazer e calça, vestia o meu corpo.
Além disso, escolhi um salto médio off-white e uma blusa em gola V, da
mesma cor do conjunto de alfaiataria. Encarei a minha imagem no espelho e
gostei do que vi, peguei os óculos escuros, a bolsa e saí de casa.
Às onze e quarenta e oito, doze minutos antes do horário
combinado, estacionei o meu carro em frente ao Bernard e desci para
encontrar o Maciel que já me aguardava. Fomos recepcionados pela jovem
de tranças no mesmo tom de rosa do meu conjunto, além da sua evidente
beleza a mulher era dona de um sorriso contagiante. E ela foi a responsável
por abrir as portas do lugar para nós.
— Bom dia, eu sou Kedma. É um prazer recebê-los, posso oferecer
uma bebida enquanto aguardam? — Disse exibindo o seu lindo sorriso.
— Sim, obrigada. — Antes que ela nos deixasse para providenciar
as bebidas perguntei: — O espaço aberto ainda existe? — Celeste havia me
levado a esse restaurante alguns meses após a sua inauguração, ela assim
como dezenas de mulheres naquela noite queria conhecer o chef francês.
Não chegamos ao conhecer o chef, mas apreciamos a deliciosa comida
servida.
O Bernard tinha dois espaços, o salão principal e um ambiente
externo, esse último era destacado pela presença de uma árvore, cuja
espécie eu desconhecia, que ocupava o centro do lugar. A intersecção da
natureza com a urbanidade de um renomado restaurante era impactante.
— Sim, a senhora deseja esperar por lá?
— Se não for incômodo...
— De forma alguma, imaginei que apreciaria o ar livre e há uma
mesa pronta para vocês.
Kedma nos levou até o local e assim como havia dito havia uma
mesa para quatro pessoas, posicionada sob o grande tronco da árvore
frondosa, apta para nos receber. Ela refez os passos anteriores, dessa vez
sozinha, deixando Maciel e eu contemplando o ambiente ao nosso redor.
— Agora compreendi a sua insistência por esse lugar, é perfeito!
— Consegue imaginar quantas juras de amor essa árvore já escutou?
É o lugar propício para apaixonados, poderíamos reservar esse espaço para
jantares de noivado ou aniversários. — A minha mente começou a divagar
em todas as propostas que eu tinha para esse lugar quando me tornasse a
sua dona.
Alguns minutos depois o delicioso drink de champanhe, apresentado
como French 75, foi servido. A bebida foi entregue acompanhada de uma
breve explicação da sua elaboração: gin tônica, suco de lima-da-pérsia,
xarope de açúcar e champanhe estavam presentes no drink que combinava
perfeitamente com os dias quentes da capital sergipana. Meu paladar foi
facilmente conquistado pelo novo sabor e ainda que eu quisesse repeti-lo, a
consciência de que eu estava na direção de um veículo me impediu de pedir
mais um. Mas ao que tudo indicava, eu não passaria muito tempo sem bebê-
lo.
Maciel e eu acabamos perdendo a noção do tempo conversando,
além do meu advogado eu o considerava um grande amigo. A família dele,
era muito próxima a minha, o seu marido, Alisson, era gerente do River Sea
o hotel que pertencia ao meu irmão. Então, aproveitamos essas brechas do
trabalho para atualizar a nossa vida, ele me contava fascinado sobre as
descobertas e novidades proporcionadas pelos filhos de 5 e 3 anos, Enzo e
Sofia. Quando um prato mais saboroso que o outro nos foi servido, eu já
tinha momentaneamente esquecido o motivo que nos levou até ali, foi o
elogio de Maciel ao almoço que me despertou.
— Você deveria manter o chef, a comida é divina. — Ele disse
entusiasmado.
— Você lê pensamentos? — Sorri. — É exatamente isso que vou
fazer, assim que o restaurante for meu. Aliás, onde está o proprietário? Ele
deveria ter chegado há uma hora — falei espantada ao notar que todo esse
tempo havia passado.
— Nenhum sinal dele — Maciel comentou checando o celular.
— Ao menos, ele teve a delicadeza de nos alimentar. Meu humor
não seria o mesmo com fome. — Maciel sorriu.
— Permita-me apresentar o responsável pelo seu bom-humor,
senhora Capolavoro. — Uma voz máscula e extremamente sensual me
deixou em alerta. Girei o tronco em busca do dono da voz e ele fazia jus a
ela.
Fui dominada pela presença imponente do lindo homem de olhos
azuis claros e sorriso emoldurado por um belíssimo e marcado maxilar. As
sutis rugas no canto dos olhos o deixavam ainda mais belo, pois eram
marcas de um homem experiente. Eu sabia que não deveria explorar os
traços do completo estranho com tamanha curiosidade, mas não consegui
me conter, a minha supervisão chegou ao fim quando percebi a dólmã preta
que abraçava o seu corpo, evidenciando todos os músculos.
— Aprovado?
A pergunta foi acompanhada de um sorrisinho prepotente que me
fez ficar dividida entre fazê-lo desaparecer com os meus lábios ou com os
meus punhos.
 

O Bernard era muito mais do que um restaurante. Era o sonho mais


intenso e sincero de um homem apaixonado pela gastronomia. Depois de
trabalhar em diversos restaurantes finalmente tinha chegado o dia de ter o
meu próprio. O lugar criado do zero, tinha bem mais que a minha assinatura
no menu. Havia um dedo meu em cada parte da construção, lembro
exatamente do dia que o corretor de imóveis me apresentou um antigo
casarão, o imóvel tinha um extenso terreno ao lado ocupado apenas pela
majestosa figueira.
A árvore era impressionante, imensa e magnífica. Devo dizer que
foi amor à primeira vista, os troncos da árvore eram grandes e se
assemelhavam a braços abertos. E antes mesmo de consultar um arquiteto
eu já tinha decidido que uma parte do restaurante seria projetada para que a
figueira fosse o centro das atenções. Almoçar ou jantar sentado embaixo de
sua copa foi algo fácil de imaginar, definitivamente seria extraordinário essa
experiência. Era exatamente o que eu buscava para o meu restaurante
proporcionar uma experiência extraordinária.
Nove meses. O tempo de uma gestação foi o período que levou para
as portas do Bernard abrirem para receber o público. Um filme passou pela
minha cabeça quando pisei os pés no restaurante hoje pela manhã, nele vi as
pessoas que eu mais amava sentada embaixo da figueira celebrando o meu
sucesso. Também visualizei o sorriso da hostess ao anunciar que estávamos
com lotação máxima e uma extensa fila de espera. A sensação de dever
cumprido e felicidade de toda a equipe ao final do dia. Cada uma daquelas
cenas jamais sairia da minha cabeça.
Adiei ao máximo o inevitável, porque não estava pronto para
enfrentar a realidade de ver o meu maior sonho indo para as mãos de outra
pessoa. Acreditei que o meu talento aliado a profissionais competentes
garantiria a prosperidade do Bernard por muitos anos. Mas obviamente eu
estava enganado, pois todos os anos de trabalho, dedicação e abdicação
foram reduzidos a nada quando descobri que o meu contador em conluio
com o meu gerente estavam me roubando.
Eles se aproveitaram da minha confiança e da minha inabilidade em
administração para irem me saqueando aos poucos. Uma nota fiscal
adulterada, uma duplicação de pagamentos do mesmo boleto, atraso no
repasse das taxas empregatícias dos colaboradores e tantas outras coisas que
poderiam ter sido notadas antes se eu não estivesse focado apenas em
cozinhar. Eu podia não ser um bom administrador, mas era um excelente
chef de cozinha, o restaurante vivia lotado e os elogios chegavam
diariamente aos meus ouvidos. Entretanto, todo o dinheiro em caixa
desapareceu do dia para a noite e o que ficou foram as dívidas que estavam
prestes a me soterrar. Alguns centímetros ainda permitiam que o ar
chegasse aos meus pulmões, foi nesse último sopro de esperança e visando
honrar com as minhas obrigações com os colaboradores do restaurante que
eu decidi aceitar a proposta da jovem Capolavoro.
*
Quando o último prato foi servido tive que sair da minha zona de
conforto que era a cozinha e assumir o papel que eu não gostava e
costumava direcionar aos outros: o de gestor. Foi essa minha inabilidade na
gestão do restaurante que me trouxe até o dia de hoje, mas havia chegado o
momento de consertar as coisas e eu o faria, ainda que a sensação de perda
inevitavelmente me atingisse com a proximidade da resolução. Pensei em
retirar a dólmã antes de me juntar aos dois, que já me aguardavam, mas
decidi mantê-la, como o lembrete de que acima de tudo eu era um chef. O
chef que transformou aquele espaço em um próspero restaurante.
Alguns passos depois um homem e a silhueta de um corpo feminino,
sentada de costas para mim, surgiram no meu campo de visão e antes que
eu tivesse oportunidade de me apresentar, a mulher fez um comentário que
gerou identificação.
— Ao menos, ele teve a delicadeza de nos alimentar. Meu humor
não seria o mesmo... — O homem sorriu diante do seu comentário e ela o
acompanhou, movimentando a cabeça, dando-me uma visão do seu perfil e
eu a reconheci de imediato. Dafne Capolavoro, gestora do restaurante que
levava o sobrenome da família e uma das grandes empresárias do ramo
gastronômico.
— Permita-me apresentar o responsável pelo seu bom-humor,
senhora Capolavoro. — A minha voz atraiu a atenção de Dafne que
lentamente se virou em minha direção, os olhos grandes e azuis se fixaram
em meu rosto e me absorveram com uma aguçada curiosidade.
Modéstia à parte eu já estava acostumado com esse tipo de olhar,
principalmente no restaurante, eu costumava atender os pedidos dos clientes
para conhecer o chef e sabia do efeito que causava diante de homens e
mulheres. Embora, isso alimentasse o meu ego, eram os elogios à minha
comida que realmente me deixavam plenamente feliz.
— Aprovado? — A pergunta foi acompanhada pelo meu melhor
sorriso e ela reagiu de uma forma que me surpreendeu, um tom de rosa
tingiu as suas bochechas e foi inevitável não continuar sorrindo.
— Claro — estreitei os olhos — os pratos estavam completamente
saborosos, o menu foi aprovado, não é Maciel? — Ela buscou apoio no
homem.
— Com toda certeza — O homem se colocou de pé e se apresentou,
me estendendo a mão. — Sou André Maciel, advogado da senhora
Capolavoro.
— Eu sou Nicolas, chef e... — Fui interrompido pela mulher.
— E futuro chef do meu restaurante, espero — falou sorridente. —
Não sei se o seu superior comentou, mas pretendo adquirir esse lugar.
— Ah, ele comentou... — Decidi ver até onde ela iria.
— Gostaria de fazer uma proposta para que permanecesse como
chef. Do drink ao prato principal, estava tudo muito harmonizado e
saboroso. Quero muito ter você meu lado nessa nova jornada.
— Receber esse elogio vindo de alguém como você é bastante
lisonjeiro.
— Estou aberta à negociação de valores.
— Esse também é um assunto que me interessa — Dafne me fitou
com atenção — passei as últimas horas analisando a sua mais recente oferta
e tenho uma contraproposta a fazer.
— Desculpa, eu não estou entendendo... — O olhar dela buscou o
advogado.
— Eu explico: sou Nicolas Bernard, chef e proprietário do Bernard.
— Estendi a mão e o bater de cílios longos e pretos sinalizaram o piscar de
olhos frenéticos de alguém que foi pego de surpresa. Ela se recuperou
rapidamente, ficou de pé e sua pequena mão tocou a minha em um
cumprimento firme.
— Dafne Capolavoro, a futura proprietária do Bernard.
— Não recordo de ter aceitado a sua oferta. — Sorri, soltando a sua
mão.
— Há um motivo para a minha presença aqui, presumo. — Não a
respondi de imediato, puxei a cadeira ao seu lado e me acomodei ali.
— Com todo respeito ao grande advogado, prezo por conhecer
pessoalmente um eventual parceiro de negócios.
— Voltei ao patamar de parceira de negócios? — Ergueu a
sobrancelha.
— Isso só depende de você, está aberta a ouvir a minha
contraproposta?
— Com todo respeito senhor Bernard, acredito que não esteja em
posição de fazer exigências.
— Que sutil a sua forma de jogar na minha cara a minha situação
financeira — sorri abertamente.
— Não tive a intenção de constrangê-lo.
— Mas ainda assim não deixou de citar o motivo pelo qual meu
restaurante está à venda. Você é uma boa negociadora, vai direto ao ponto
fraco do seu oponente para ampliar a sua vantagem sobre ele.
— Agora que sabe que está diante de uma estrategista ainda
pretende apresentar a sua contraproposta? — A mulher me desafiou com
um sorriso no belo rosto.
— Sou um bom oponente, Dafne — evidenciei — a sua clara
insistência em adquirir o meu restaurante apenas evidencia o quanto o
Bernard é um produto valoroso, os seus elogios à minha cozinha ainda
estão passeando ao meu redor. Portanto, acho que tenho motivos mais do
que suficientes para negociar com você.
— Se eu soubesse que você era o proprietário não teria rasgado
elogios a sua culinária, acredite.
— Deixaria que a primeira impressão ao meu respeito afetasse a sua
análise técnica de um bom prato? Estou decepcionado... — Eu sorria, ao
contrário da mulher que parecia querer me exterminar apenas com um
olhar.
— Senhor Bernard....
— Nicolas, pode me chamar de Nicolas.
— Nicolas, que seja — deu de ombros — não estou interessada nas
suas observações ao meu respeito. Saí de casa com um claro objetivo em
mente: adquirir o seu restaurante. Se não tem interesse, retiro a minha oferta
e te desejo boa sorte.
— Eu aceito, assim como o convite para seguir como chef do
Bernard. Mas isso está condicionado a minha total autonomia na cozinha,
assim como a manutenção da minha equipe. Atualmente formada por dez
pessoas, leais e extremamente capacitadas para executar as suas tarefas,
ideais para tornar a sua gestão mais tranquila. Também, quero a fatia de
25% do restaurante, o mínimo para não tirar a sua áurea de dona da porra
toda, mas o suficiente para impedir que transforme o lugar em uma cantina
italiana.
Ela abriu a boca diversas vezes enquanto eu falava, mas não chegou
a emitir um som sequer. Quando os ruídos saíram dos lábios carnudos não
foram palavras que eles formaram, mas a emissão de uma risada alta que
preencheu todo o espaço à nossa volta.
Ainda que o meu foco total fosse em fechar negócios com a mulher
que ria descontroladamente à minha frente, não pude deixar de admirar a
sua beleza. Em outra ocasião, adoraria ser o causador da sua risada gostosa,
sentir seus lábios sobre os meus e deixar que seus lindos olhos azuis me
devorassem por inteiro, mas essa definitivamente não era a ocasião e tudo
que eu queria era vencer essa disputa.
— Fazia tempo que eu não ria desse jeito — ela enxugou a única
lágrima que escapou dos seus olhos. — Agora será que podemos voltar a
falar sério?
— Eu falei sério durante todo esse tempo, principalmente a parte da
cantina italiana.
— Está tentando me ofender, Nicolas?
— De modo algum — fui sincero — Apenas quero acentuar que
esse não é o carro chefe do Bernard.
— Qual o problema da cantina italiana? — Questionou, cruzando os
braços.
— Nenhuma, sou um grande amante de massas e pizza. Mas não é a
gastronomia que trabalhamos aqui, aqui prezamos pela alta gastronomia.
— O Capolavoro também preza pela alta gastronomia, não somos
uma cantina da nona.
— Está renegando as origens do restaurante familiar?
— Eu não disse isso...
— Acho que sua mãe ficaria triste em saber do seu desprezo pelas
receitas da nona...
— Escuta aqui seu...
— Por que não voltamos a atenção ao nosso objetivo em comum
que é o restaurante Bernard? — O advogado interferiu — minha cliente já
demonstrou interesse em fechar negócios com o senhor, arrisco dizer que a
oferta dela é maior do que as outras que o senhor deve ter recebido.
— Nicolas, não vou te oferecer uma oferta maior — ela acrescentou.
— Não estou pedindo mais dinheiro, mas sim que faça um acordo
comigo.
— Por que eu faria isso?
— Dafne, posso não ter o seu tino empresarial. Mas de uma coisa eu
sei: O Bernard é um restaurante lucrativo e com potencial de crescimento.
Ou vai negar que esse é o motivo das insistentes propostas nos últimos
meses?
— Isso não significa que eu não possa retirar a minha oferta, há
dezenas de restaurantes esperando apenas alguém como eu para gerir.
— Você tem razão, mas nenhum deles é o Bernard. Retire a sua
oferta e ficará sem o restaurante. Tenho outros empresários tão competentes
quanto você aguardando a minha ligação, talvez eles sejam mais cordiais e
estejam dispostos a negociar — desafiei, torcendo para que ela mordesse a
isca.
Dafne e o advogado se comunicaram apenas com o olhar e torci
para que aquilo significasse um aceno positivo à minha proposta.
— O senhor se incomoda de nos dar alguns minutos a sós para
conversarmos... — O homem disse e eu já estava pronto para levantar da
cadeira quando Dafne interveio.
— Não será preciso — em tom sereno, mas firme ela fez o que
deveria ser a última proposta. — Você fica com 10% do restaurante, mas
todas as ações financeiras, comerciais e de marketing serão exclusivamente
minhas. A sua autonomia na cozinha estará garantida, mas o cardápio
deverá ser aprovado por mim. Quantos a manutenção dos funcionários,
preciso analisar os currículos e conhecê-los antes de tomar uma decisão.
Não dava para negar que a maldita era boa no que fazia.
— 25%! Mais cardápio decidido pela pessoa mais competente do
restaurante, que no caso sou eu — apresentei a minha contraproposta.
— O seu ego deveria ser encapsulado e comercializado.
— Além do meu ego, posso garantir que outras partes minhas
deveriam ser comercializadas — ela revirou os olhos em resposta.
— 15% e os cardápios passarão pela minha análise final.
— 24%, você será consultada em novas inserções do cardápio, mas
a decisão final é exclusivamente minha.
— 16% e o maldito cardápio é seu, porém com a minha supervisão.
— 23% e sem negociações no cardápio.
— 20% e autonomia total da cozinha, do cardápio aos fornecedores.
Agora começávamos a falar a mesma língua.
— 22%, nem eu, nem você.
— 21%, isso sim é um nem eu, nem você.
— Negócio fechado, o Bernard é seu! — Estiquei a mão em sua
direção.
— Que Deus me ajude — suspirou antes de apertar a minha mão
simbolizando o acordo.
 

Era oficial.
O Bernard era majoritariamente meu e eu não poderia estar mais
feliz diante dessa minha conquista solo. Eu nutria muito orgulho pelo
restaurante fundado pela minha família. Administrar o Capolavoro, um
empreendimento de sucesso, foi uma grande prova de confiança que me foi
concedida e acredito que obtive êxito nessa empreitada. Nos últimos anos,
me dediquei por completo para fortalecer a marca, modernizando-a sem
perder as suas origens. E fui vitoriosa nessa tarefa, mas nos últimos meses
senti que precisava de mais. Prestes a completar 33 anos me veio a
necessidade de iniciar novos ciclos e quando a oportunidade apareceu na
minha frente eu a agarrei.
Agora um novo desafio surgia no meu horizonte e eu me sentia
desafiada, confiante de que seria vitoriosa nessa nova etapa da minha vida.
Além do desafio de administrar dois restaurantes, eu ainda tinha a árdua
tarefa de ocupar o mesmo lugar do chef que me parecia ser bem detestável,
me esforçaria para não cair nas suas provocações. Nicolas tinha uma
parcela insignificante do restaurante, que fazia jus a sua também
insignificante e irritante pessoa. Mas nem mesmo a presença do homem
com potencial elevado de me irritar só com o olhar diminuiu a minha
empolgação com a minha nova aquisição.
*
Cheguei cinco minutos adiantada para o meu primeiro contato com
os funcionários e fui surpreendida positivamente com a presença de todos já
no local. O chef também se encontrava no recinto, essa sim uma novidade
considerando nosso último encontro, e me recepcionou com um daqueles
sorrisos que deveria ser a sua marca registrada: o sorriso de desafio. Fiquei
parada, por alguns segundos, no meio do salão sendo encarada por olhares
questionadores. Ajeitei a minha postura e me preparei para iniciar o meu
discurso de apresentação, quando fui atropelada pelo irritante Nicolas.
— Pessoal essa é a senhora Capolavoro. A proprietária majoritária
do Bernard e nossa nova chefe. Vamos bater uma salva de palmas a
responsável por não sermos mais um número na infinita lista de
desempregados deste país. — As palmas foram acompanhadas de risadas.
— Você é bem inconveniente, sabia? — Sussurrei para que só ele
me ouvisse.
— Eu te salvei, você parecia aflita diante dos seus novos
funcionários.
— Eu não estava aflita, apenas estava concentrada na minha
apresentação. Pois, ao contrário de você, costumo pensar antes de abrir a
boca.
— Ok, senhora racional. Dê o seu discurso mecânico que fará todos
dormirem antes que ele termine. — Ele voltou a cadeira que ocupava,
deixando-me sozinha.
— Pelo visto vocês já estão acostumados com as piadas sem graça
do senhor Bernard, mas não se preocupem que em minha gestão esse tipo
de piada será delegada apenas ao nosso ilustre bobo da corte. — Meu olhar
se fixou em Nicolas que sorria.
— Está dizendo que viveremos um reinado de tédio? — Ele
questionou.
— Estou dizendo que cada um exercerá a sua função pela sua
habilidade, eu administro o restaurante, você cozinha e eventualmente nos
diverte, ou pelo menos tenta, com as suas piadocas do tio do pavê.
— Ai, essa foi direto pro meu coração — dramatizou levando a mão
ao peito, os funcionários riram abertamente e eu revirei os olhos em
resposta.
— Não sei o que o senhor Bernard disse ao meu respeito, mas
desconsiderem 90% do que foi dito... — busquei recomeçar a apresentação,
mas ele mais uma vez interferiu.
— Eu só disse coisas maravilhosas da minha salvadora.
— Posso imaginar, agora será que você pode gentilmente me deixar
concluir um raciocínio?

— Estou sendo acusado de manterrupting [i]no seu primeiro dia de


trabalho?
— Não, mas talvez de inconveniente e um pouquinho sem noção.
— Ok, ficarei em silêncio ouvindo os decretos reais — fez sinal de
um zíper na boca e eu tive vontade de estrangulá-lo.
— Ótimo! — Voltei a atenção aos funcionários que assistiam com
interesse essa interação desastrosa. E antes que eles formassem a falsa ideia
de que eu não estava aberta ao diálogo, tratei de esclarecer: — ao contrário
do senhor Bernard, todos vocês são livres para me interromper ou me
perguntar algo. Eu me chamo Dafne Capolavoro e estou muito animada em
ser um novo membro do Bernard, antes da minha chegada vocês já faziam
parte desse lugar, portanto meu papel aqui é caminhar ao lado de vocês na
manutenção desse ambiente próspero. Assim, gostaria de conhecer mais um
pouco de vocês, quero que um a um me conte da sua trajetória aqui e qual a
função que exerce.
A primeira a se voluntariar foi Kedma, ela tinha 25 anos e essa era
sua primeira experiência no ramo gastronômico. Antes trabalhava como
recepcionista de uma faculdade particular e no Bernard exercia a função de
hostess, eventualmente exercendo o papel de garçonete devido ao número
reduzido de funcionários. Após ela, seguiu a apresentação dos garçons,
auxiliares de limpeza, auxiliares de cozinha, o subchefe da cozinha e me
preparei para o último membro da equipe: Chef Nicolas Bernard.
— Enviarei o meu currículo completo para o seu e-mail ao fim da
inquisição. Gostaria apenas de salientar que nos últimos dez anos atuei
como chef do Bernard, a minha especialização é em culinária francesa, feita
em Paris e isso se reflete nos meus pratos. Mas engana-se quem pensa que
eu busco levar o Brasil até a França, o efeito é justamente o contrário,
trouxe um pedaço da França para Sergipe e a junção de elementos
brasileiros com franceses formam um menu capaz de agradar todos os
paladares, como a senhora já teve a oportunidade de experimentar.
— Você tem uma cópia do cardápio para que eu possa dar uma
olhada? — Ele me lançou um olhar gélido e foi assim que eu descobri o seu
ponto fraco.
O cardápio foi entregue rapidamente pelas mãos da ágil Kedma, sob
o olhar atento do Nicolas corri os olhos pelo menu do restaurante. A
primeira coisa que me chamou a atenção foi a qualidade do material em que
a peça foi produzida. Do material utilizado ao design, não tinha nada que eu
pudesse apontar uma mudança, assim como os pratos ali descritos. Meu
único questionamento era quanto ao número reduzido do menu, no
Capolavoro tinha o dobro de opções, estava prestes a perguntar o motivo
quando o detestável chef abriu a boca.
— Esqueceu seus óculos de leitura? — A voz dele atravessou a
minha pele, e assim como uma panela colocada sob o fogo alto, aqueci
rapidamente sendo tomada pela raiva que só ele era capaz de me despertar.
— Será que posso dar uma palavrinha com você a sós? — Falei no
controle das minhas emoções.
— Claro — sorriu — pessoal, vamos começar o trabalho, abrimos
daqui a três horas. Os funcionários obedeceram ao seu comando e
desapareceram do salão em poucos segundos.
— Qual é o seu problema? — Questionei, já sem consegui disfarçar
a irritação.
— Era grana, mas graças a você ele já foi resolvido. — Disse,
debochado.
— Mas você parece não lembrar disso. Eu sou a razão para as portas
do seu restaurante não estarem fechadas.
— Devo me curvar diante da rainha salvadora todos os dias? Vai
adicionar isso ao seu decreto oficial?
— Se eu fosse mesmo uma rainha, homens como você iriam direto
para a guilhotina no meu reinado.
— Homens como eu: atraentes, irresistíveis e bons de cama?
— Arrogantes, babacas e superestimados.
— Conseguiu pensar tudo isso a meu respeito me conhecendo há
apenas dois dias? — O sorriso foi aumentando gradativamente à medida
que ele falava, assim como a minha vontade de fechar as minhas mãos ao
redor do seu pescoço. — Andei povoando os seus pensamentos, Dafne?
— Você não é relevante a esse ponto, querido. Mas respondendo a
sua primeira pergunta, apenas listei os adjetivos passíveis de serem ditos em
voz alta.
Uma risada alta e cadenciada preencheu o ambiente.
— Sabe quais adjetivos eu destinaria a você?
— Lamento, mas não tenho o menor interesse em saber.
— Irritadinha, passional e controladora.
Não demonstrei nenhuma reação a sua fala, ainda que eu quisesse
rebater que eu não era a irritadinha que me acusava. Era dele esse poder de
me irritar com um simples olhar.
— Está surpresa por não recorrer a adjetivos que não remetem a sua
beleza?
— Gostaria de elogiar a minha beleza? — Arqueei a sobrancelha.
— Não, é desnecessário quando você tem espelho em casa e sabe
muito bem o efeito que causa nos homens.
— Até em homens como você?
— Eu prefiro as mais dóceis, é verdade. Mas se você levar essa
impetuosidade para a cama, as coisas podem ficar bem interessantes...
— O que eu levo para a cama não deveria ser da sua conta.
— E não é — deu de ombros — lamento te desapontar, mas você
não faz o meu tipo.
— Como se você fizesse o meu — desdenhei sorrindo.
— Ótimo.
— Sim, é ótimo.
Nicolas ficou de pé e lentamente começou a se aproximar. Ele parou
alguns passos à minha frente, seu olhar seguiu do meu para a minha boca e
paralisada vi ele inclinar o corpo para frente como se fosse me beijar. E eu
nada fiz para impedir, continuei estática, perdida na intensidade do seu
olhar. Mas os seus lábios não encontraram os meus, o seu gesto culminou
em uma reverência, Nicolas se curvou como um súdito.
— Com licença rainha, tenho uma cozinha para comandar.
Nicolas se afastou e eu segui tentando acalmar as batidas erráticas
do meu coração. Ele acelerou movido pela raiva.
*
Não vi Nicolas pelas horas que se seguiram, ainda assim a sensação
de inquietação que a presença dele me causava ainda persistia. Como era
possível alguém ser tão irritante como aquele chef de cozinha? Ele me
lembrava o garoto chato da escola que implicava com a minha caneta de
glitter pink, na verdade ele era bem semelhante ao pirralho de dez anos, o
que era inconcebível a um homem de 40 anos (sim, eu tinha conferido sua
idade). Dizem que a idade deixa as pessoas mais sábias, mas quem disse
isso não conheceu o Nicolas. De todo modo, a lembrança dele foi jogada
para escanteio à medida que eu acompanhava os funcionários em ação,
assisti os garçons organizarem as mesas, acompanhei a distância Kedma
confirmar as reservas e atender o telefone, vi a limpeza do salão ser
realizada com o mais exímio empenho. Faltando meia hora para o salão ser
aberto me aproximei de Kedma que já estava no seu posto, para saber a
expectativa para a noite.
— Como estamos? — Perguntei para a hostess sorridente.
— Estamos com lotação máxima e uma fila de espera, isso não
acontecia há algum tempo. Aposto que isso tem o dedo da senhora, acertei?
— Digamos que eu fiz algumas ligações... — Sorri.
— O chef vai ficar muito feliz, ele ama ver o restaurante dele cheio.
Quer dizer, antigo restaurante dele, né?
— O que importa é que hoje é dia de casa cheia. Como posso
ajudar?
— A senhora é a patroa aqui, não tem uma função.
— Com o Nicolas era assim?
— Pelo contrário — sorriu em lembrança a algum acontecimento.
— Além de comandar a cozinha ele é mão para toda obra. Nos últimos
meses com as dificuldades do restaurante, virou um faz tudo, se dividiu
entre a cozinha e a pia, ajudou na limpeza do salão e fez a vez de motorista
para os funcionários que não tem veículo próprio. Ele faz tudo por esse
restaurante, o amor dele pelo lugar é contagiante. Passamos por momentos
difíceis, reduzimos a carga horária funcionando só a noite, estamos
trabalhando com uma equipe reduzida, mas seguimos nos dedicando o
máximo por esse lugar. O Bernard é como uma família pra todos nós.
— E eu como nova integrante dessa família, quero contribuir.
— Mas o que alguém como a senhora faria? — Os olhos escuros
como a noite me fitaram demonstrando a sua descrença em como eu
poderia ajudar. Talvez os meus scarpins pretos ao fim da noite fizessem eu
me arrepender da oferta de ajuda, mas eu sabia recepcionar pessoas, fiz isso
no Capolavoro diversas vezes e até poderia lavar pratos. Para essa última
tarefa eu só pediria um avental para não deixar quaisquer resquícios de
gordura sujar a minha linda camisa de seda.
— Não tenho a mesma habilidade para carregar a bandeja dos
garçons, mas garanto que posso servir um prato sem derramar no cliente —
sorri — em que posso ajudar, Kedma?
Dessa vez, ela não relutou em me dizer o que fazer.
Como estávamos em lotação máxima, ela seria necessária para
servir às mesas, enquanto eu assumiria o papel de hostess. Ela me explicou
o sistema de reservas e me passou as informações essenciais para aquele
dia. Quando as portas foram abertas eu estava animada para ver a magia
acontecer diante dos meus olhos.
Em poucos minutos o som das conversas, o tilintar dos talheres nos
pratos, os passos rápidos dos garçons e os outros sons do local criaram a
sinfonia que eu tanto amava. O ambiente do restaurante era mais do que
agradável para mim que desde nova ouvia as rodas da engrenagem em
movimento que era uma cozinha e, do pedido cantado ao chef, ao som da
cebola picada depositada no óleo quente, tudo me encantava. A minha falta
de talento na culinária, me guiou para outro caminho: a administração.
Enquanto o chef era maestro da cozinha, eu me considerava a regente dos
bastidores. Aprendi cedo que o sucesso de um restaurante não se fazia
apenas com boa comida, era preciso uma boa gestão.
O chef e o administrador devem andar juntos, pelo bem maior do
restaurante. E apesar das nossas divergências, Nicolas e eu caminhávamos
juntos naquele momento. Os múltiplos elogios a sua comida que ouvi só
não foram maiores que os pedidos para agradecer pessoalmente ao mesmo.
Perdi as contas de quantas mulheres solicitaram a presença do chef no salão
e, para a evidente decepção delas, os pedidos não puderam ser atendidos
devido à alta demanda da cozinha. Mas elas partiram dizendo que voltaria
para conhecê-lo, o que eu não duvidava que fosse mesmo acontecer.
Quando a última mesa foi encerrada, no fim da noite, encarei
aqueles homens e mulheres que durante mais de cinco horas se dedicaram
integralmente para oferecer o melhor atendimento aos clientes. Todos eles
traziam no rosto um enorme sorriso, o mesmo sorriso era visto no rosto de
Nicolas quando parabenizou a equipe, eu também sorria pela noite fabulosa.
Aquilo exigia uma comemoração e como se adivinhasse o meu pensamento,
Nicolas abriu um champanhe e nos serviu. Com as taças em mãos, ele fez
um gesto indicativo com a cabeça que eu fosse em frente e fizesse o brinde
da noite.
— Um brinde ao Bernard. — Vibrei.
— Um brinde a nós! — Nicolas piscou para mim e ergueu a taça.
Quando a bebida passeou pela minha boca ela tinha um sabor
diferente, era o gosto da vitória nos meus lábios.
 

Estava concentrada nos gráficos analíticos do último trimestre do


Capolavoro quando a batida suave na porta indicou a chegada de alguém,
ergui os olhos da tela do computador no mesmo segundo que a porta foi
aberta.
— Dafne, o seu convidado acabou de chegar. — Branca, a gerente e
funcionária mais antiga do Capolavoro informou sorrindo.
— Obrigada, Branca. — Agradeci a mulher que me encarava como
se quisesse dizer algo mais. — Mais alguma coisa?
— A sua mãe também está no recinto.
Ai não, assim que ela me visse em companhia de Nicolas iria criar
várias teorias a nosso respeito. Quando na verdade a única teoria era que a
nossa relação era puramente comercial, ele não me suportava e eu o achava
extremamente irritante.
— Ela está sozinha?
— Não, veio com algumas amigas.
— Vou cumprimentá-las rapidamente e seguir para minha reunião
com o Nicolas. Você poderia pedir que servissem alguma bebida a ele, por
favor.
— A Déia já fez isso, mas tudo que ele pediu foi água.
— Ok.
Deixei a minha sala com o meu moleskine e caneta em mãos e
cruzei o pequeno espaço até o salão do restaurante. De imediato, encontrei
minha mãe acompanhada de suas três melhores amigas e, sentado no
extremo oposto delas, Nicolas. A atenção dele estava toda voltada para o
aparelho de celular em suas mãos e eu aproveitei para observá-lo, os fios
estavam molhados, como se ele tivesse acabado de sair do banho, e
levemente desalinhados penteados para trás. Vestia uma camisa social de
um azul clarinho, os dois primeiros botões abertos deixavam a pele clara
exposta e foi inevitável notar que não havia pelos na região. O que fez a
minha mente divagar se aquela era única região do seu corpo sem pelos.
— Dafne, querida — a voz da minha mãe afastou os meus
pensamentos estranhos, mas eu não fui a única. Nicolas ergueu a cabeça e
seus olhos encontraram os meus, bem fixos no seu peitoral. Ele meneou a
cabeça em um cumprimento e sorriu. E toda a irritação natural que eu sentia
por aquele homem se apossou do meu corpo. O ignorei por completo e
segui para cumprimentar a minha mãe.
— Mãe, que bom vê-la aqui. —  Cumprimentei beijando o seu rosto.
— Meninas, é uma honra recebê-las — falei, me dirigindo as outras que
sorriram em resposta.
— Meu amor, junte-se a nós nesse almoço.
— Eu adoraria mãe, mas tenho uma reunião de negócios agora e...
— Você não deveria marcar reunião na hora do almoço — não
escapei do puxão de orelha dela.
— Eu decidi unir o útil ao agradável, dessa vez — justifiquei — a
reunião acontecerá aqui, assim não perderei a refeição. Se me dão licença,
preciso ir.
— É o bonitão de olhos azuis? — A pergunta feita pela minha mãe
fez com que todas as outras mulheres virassem a cabeça em direção a
Nicolas.
— Ele é realmente muito bonito — Suzi concordou sorrindo.
— Dafne, não dê sopa com um homão desses. Vai ocupar o lugar ao
seu lado antes que outra faça isso — Margarida comentou dando um leve
toque nas minhas costas, empurrando-me em direção a Nicolas.
— Nós temos apenas uma parceria de negócios — esclareci diante
dos olhares inquisidores.
— Parceiros de negócios também pode construir uma parceria mais
íntima. — Suzi contra-argumentou.
— O que não é do meu interesse — cortei. — Tenham um excelente
almoço. Nos falamos depois, mãe.
— Sim, vou querer saber como foi o seu dia de trabalho,
principalmente o seu almoço — sorriu.
Deixei a mesa delas em direção a que Nicolas ocupava, sentindo
vários pares de olhos cravados nas minhas costas, eu tinha certeza de que
elas acompanhariam com atenção a minha interação com ele.
— Desculpe por te fazer esperar — falei, sentando-me na cadeira a
sua frente. — Também quero acabar rápido com isso tanto quanto você.
— Quem disse que estou com pressa?
— Os dois botões da sua camisa — apontei — deve ter se arrumado
tão rapidamente que não notou que os deixou abertos.
Nicolas riu em resposta, a risada máscula serpenteou ao meu redor e
se eu não o achasse tão impertinente teria gostado do som produzido.
— Estão roubando o seu foco? Eu posso resolver isso rapidamente...
— Levou os dedos aos botões como se eu decidisse se ele deveria fechar ou
não.
— Você me causar distração? — Foi a minha vez de sorrir — é
preciso muito mais do que isso para que eu perca o meu foco.
— Mais um botão aberto, talvez? — Os dedos habilmente abriram
mais uma casa, expondo mais pele. A visão do seu peito nu, de perto, me
tirou o foco por míseros segundos.
— Abotoe a camisa, agora! — Ordenei, afetada.
— Acho que isso responde a minha pergunta... — Ele me destinou
mais um daqueles malditos sorrisos enquanto voltava a fechar o último
botão aberto.
— O único motivo pelo qual pedi para que fechasse o botão, é que
esse não é o ambiente adequado para isso — argumentei.
— Em outro lugar, me deixaria abrir quantos botões eu quisesse?
— Faça isso na sua cozinha e terei o enorme prazer de virar a panela
de molho quente sobre você — ele me fitou sorrindo e eu desviei o olhar
para o meu caderno, fingindo consultar as pautas da reunião. Quando voltei
a erguer a cabeça ele ainda me olhava intensamente. — Algum problema?
— Você tem certeza de que não quer pôr seus óculos de leitura? Eu
não vou rir de você, se é esse o problema.
— De onde veio essa fixação de que eu preciso de óculos?
— Você costuma passar tempo demais olhando para qualquer coisa
escrita. Primeiro, cogitei que você não seria alfabetizada, mas a sua família
não faria isso com você. Então, fui para a alternativa mais razoável, você
usa óculos e não quer assumi-los na minha frente.
— Talvez, eu só não queira passar muito tempo olhando para sua
cara.
— Se for mesmo isso, essa é uma prova definitiva de que óculos de
grau são necessários.
— Será que, por quinze minutos, você pode interpretar o papel de
uma pessoa razoável?
— Seu tempo está correndo — disse sorrindo, foi inevitável não
revirar os olhos.
— Observei o Bernard nessas duas semanas e tive algumas ideias
que podem agregar ainda mais valor ao restaurante — ele não me
interrompeu, então continuei a falar. — Kedma me contou que antes vocês
funcionavam no almoço, acho que poderíamos retornar a abrir nesse
horário. Na verdade, o que pensei foi testar uma ideia que deu certo aqui no
Capolavoro, servir pratos executivos a um preço mais acessível. Acredito
que comida de qualidade deve ser para todos e cabe a nós propiciar isso.
Portanto, pensei que de segunda a sexta, existisse um menu de pratos
executivos, com direito a entrada, prato principal e sobremesa. Ainda há a
opção do combo com acréscimo de uma taça de vinho.
Nicolas me ouvia com total atenção e apesar do estranhamento por
essa atitude, gostei de ver que ele ao menos ouvia o que eu tinha a dizer,
antes de se manifestar e ser do contra.
— Esse tipo de ação atrai um público que por vezes não está
acostumado a frequentar um restaurante do porte do Bernard, mas vê nessa
oportunidade uma chance de experimentar novos sabores. Gostaria de testar
isso, o que acha?
— Pratos executivos?
— Sim, mas com a assinatura do chef. A ideia é que o cardápio seja
dinâmico, a cada dia um prato novo, fica completamente ao seu critério a
elaboração do menu.
— Não temos funcionários suficientes... — Ele parecia
envergonhado ao assumir isso.
— Também pensei nisso, você ainda tem o contato dos seus antigos
funcionários? — Ele balançou a cabeça em afirmação. — Diga que estamos
contratando.
— Você que deveria fazer isso, é a nova patroa.
— Acho que eles ficarão felizes em receber do seu antigo patrão, o
convite para retornar a família Bernard — sorri.
— Dafne...
Aguardei em expectativa pelo que ele diria, mas ele não disse mais
nada além do meu nome.
— Tópico almoço executivo, resolvido. Vamos para o próximo: o
ambiente externo.
— O que tem o ambiente externo? — Perguntou na defensiva.
— Ele é perfeito, já pensei em várias maneiras de explorá-lo.
— Você tem muitas ideias... — A frase não soou como uma crítica,
mas sim uma constatação.
— Antes de eu te apresentar mais uma grande ideia, vamos pedir
algo para comer. Não quero ser acusada de ser uma péssima anfitriã —
busquei um garçom com o olhar e logo o seu Aldemir se juntou a nós,
entregando-nos o cardápio. Dispensei o meu com o aceno e fiz o meu
pedido: — Um risoto de rúcula e muçarela, por favor.
— E o senhor?
— Qual a sugestão da casa?
— Capeletti de muçarela ao molho de gorgonzola, redução de
balsâmico com mel e farofa de nozes.
— Vou aceitar a sugestão, obrigado.
O garçom se foi, levando os nossos pedidos para a cozinha.
— Sobre o espaço ao ar livre, ele poderia ser realizado para
recepção de convidados. Pensei em oferecermos um menu para datas
comemorativas: noivados, aniversários...
— Não tenho o mínimo interesse em me tornar cozinheiro de buffet
de festinha.
— Mas essa não é a intenção. Você precisa reconhecer que o salão
onde está a árvore é perfeito para jantares super-românticos, noivado…
— A figueira realmente dar um charme ao lugar, mas por que as
pessoas escolheriam aquele lugar para a recepção do seu noivado?
— Porque a comida é excelente, o atendimento é qualificado e o
espaço é perfeito para algo mais intimista.
— O Bernard é um restaurante, não gostaria que isso fosse
esquecido.
— E não será, tem a minha palavra.
— Vou pensar em um menu, testar algumas receitas... — o sorriso
no meu rosto se ampliou. — Pode tirar esse sorrisinho de satisfação, que eu
ainda não concordei com essa ideia maluca.
— Mas está bem próximo de concordar, eu vi quando seus olhos
brilharam quando falou em testar receitas...
— Talvez, ele tenha brilhado por outros motivos...
— Perdão em interrompê-los, mas eu já estou de saída e queria me
despedir da minha filha — minha mãe sorria.
— A senhora não precisa se desculpar. — Nicolas falou esbanjando
simpatia. Uma simpatia que jamais foi destinada a mim.
— Eu sou a Dinamares Gusmão, e você é?
— Nicolas Bernard, é um prazer conhecê-la.
Ele ficou de pé ao cumprimentá-la com um aperto de mão e vi a
aprovação no olhar da minha mãe ao seu gesto.
— Você é o dono do Bernard?
— Antigo dono, agora a Dafne é a sócia majoritária.
— Ouvi falar muito bem da sua cozinha.
— A senhora precisa tirar a prova pessoalmente.
— Eu estava aguardando que a minha filha fizesse o convite.
— Estou apenas a duas semanas na administração, mas eu iria
convidá-la em breve.
— O que achou da Dafne, Nicolas?
Eu queria que um buraco se abrisse em meus pés e eu fosse sugada
para dentro dele. Mas como isso era impossível de acontecer, decidi acabar
de uma vez com os constrangimentos de uma mãe casamenteira.
— A senhora não estava de saída, mãe? As suas amigas devem estar
te esperando.
— Nossa conversa ficará para outra ocasião, meu querido.
— As portas do Bernard, estão abertas para recebê-la — sorriu
abertamente.
— Dafne, meu amor, aguardo uma ligação sua informando o dia que
seu pai e eu conheceremos o seu novo restaurante.
— Não se preocupe, informarei em breve a data de reserva. Dê um
beijo no papai por mim.
— Até breve, Nicolas.
— Até.
Após a despedida da minha mãe eu demorei a voltar a encarar
Nicolas, eu sentia o meu rosto arder com as nadas sutis perguntas, mais
alguns minutos e ela perguntaria ao Nicolas se ele tinha planos de casar e
ter filhos.
— Por que não me deixou responder à pergunta da sua mãe? — A
sua voz atravessou a minha pele como a brisa da manhã.
— Preferi que ela mantivesse uma boa impressão de você.
— As mães sempre me amam, mas não mais que as filhas. — Sorriu
— E só para você saber, eu teria respondido que você não é a rainha má da
história.
— Quanta gentileza da sua parte.
Nossa conversa voltou ao único assunto que nós tínhamos em
comum: o restaurante.
 

A chegada de Dafne não apenas impediu que o meu maior sonho


fosse extinto como devolveu esperanças aos funcionários. Era visível a
felicidade deles com a manutenção do restaurante, assim como era notório o
respeito e o carinho que eles tinham pela nova gestora. Ela comandava o
Bernard com o olhar atento e sorriso no rosto, se importava com o lugar e
com os funcionários. Flagrei diversas vezes ela conversando, querendo
saber sobre seus filhos, buscando conhecer mais sobre eles. Isso sem falar
nas suas ideias, Dafne parecia ter diversas delas povoando a sua cabeça, o
seu olhar analítico agregado a sua capacidade de pensar além da caixinha
resultaram em boas contribuições. E ainda que eu resistisse às mudanças no
primeiro momento, era preciso dar o braço a torcer e reconhecer que elas
agregariam ainda mais ao restaurante.
Ela ainda não sabia, mas passei os últimos dias criando receitas,
testando novos sabores e até um menu para a sua ideia de noivado no
restaurante eu tinha rabiscado na agenda. Planejava contar assim que ela
aparecesse o que deveria acontecer por volta das dezessete horas, esse era o
horário em que as portas de vidro automáticas se abriam e ela entrava
espalhando o seu perfume por todo ambiente. Um perfume que eu já
conhecia e apreciava, mas para provocá-la costumava dizer que intoxicava
o ambiente e, portanto, a sua presença estava permanentemente proibida na
cozinha enquanto usasse. Ela sempre respondia a minha provocação
dizendo que esse era o principal motivo para continuar a usá-lo, pois ele
agia como um escudo entre nós.
Provocar Dafne tinha entrado na minha lista de afazeres diários que
eu exercia com um imenso prazer. Eu tinha mapeado as suas reações diante
das minhas provocações, o olhar que ela me lançava quando queria que eu
calasse a boca imediatamente, assim como o tom leve de rosa que assumia
as suas bochechas quando era flagrada me olhando. Essa implicância que
ditava a nossa relação me satisfazia, como uma mania que você não
consegue abandonar, eu aguardava o dia seguinte para que pudéssemos
recomeçar a brincar de gato e rato.
— Tem alguma coisa queimando! — O alerta na cozinha me trouxe
de volta ao mundo real. Abri a tampa do forno e constatei que o meu magret
tinha se transformado em carvão.
— Droga! — Esbravejei, descartando a comida na lixeira.
— Tava com a cabeça longe, chef... — O meu braço direito na
cozinha provocou sorrindo.
— Fui vítima do que eu sempre prego.
— Deixe as mulheres fora do seu pensamento enquanto cozinha —
Kleber completou sorrindo.
Afastei os pensamentos da minha fonte diária de distração e peguei
outra assadeira para repetir o processo. Coloquei três peitos de pato para
selar antes de colocá-los de volta ao forno, dessa vez não haveria distração.
O que de fato não ocorreu, enquanto o pato assava, passei para a segunda
etapa que era o molho de laranja que acompanharia o magret. Numa panela,
a fogo médio, derreti a manteiga com o açúcar, adicionando cebolas
cortadas em pequenos cubos. Depois que a cebola levemente dourou,
introduzi o suco de três laranjas e as especiarias (canela e anis). Diminuí o
fogo e deixei o molho reduzir.
A próxima etapa foi preparar o tempero das batatas rústicas, em um
bowl acrescentei azeite de oliva, alho em pó, páprica defumada, pimenta-
do-reino, misturei os ingredientes até que todos fossem incorporados, após
isso peguei as batatas cortadas em formato de meia lua e coloquei dentro do
bowl, misturando com as mãos as batatas ao tempero. Batatas temperadas,
era hora de levar ao forno e esperar a magia acontecer. Magret ao molho de
laranja com batatas rústicas era um prato simples e saboroso, trazia consigo
o requinte do pato como elemento. Uma escolha perfeita para
comemorações, por isso era a minha sugestão de prato principal para o tal
menu festivo da Dafne.
Me servi um pouco do molho e senti que ainda faltava alguma
coisa...
— Experimenta! — passei uma colher para o Kleber.
— Talvez uma pitada de pimenta branca moída trouxesse mais o
agridoce.
— Boa, estava pensando em colocar um pouco de amido de milho
para encorpar o molho...
— Ai vai ficar perfeito! — Sorri satisfeito, acrescentei a pimenta
branca e o amido e com o fuê passei a mexer o molho vigorosamente, a
intenção era que ele ficasse lisinho.
— Chef, tem uma ligação para você. — Kedma anunciou no balcão
de pedidos.
— Não posso parar aqui, diga que retorno em outro momento —
respondi com os olhos fixos no molho.
— É a Ingrid!
O meu sinal de alerta foi acionado e nem seu quisesse poderia seguir
cozinhando.
— Kleber, assume aqui! — Falei, já me livrando do dólmã.
— Sim, chef.
— Vê se não vai empelotar o molho. Preste atenção: batata e pato
no forno! — Dei a última instrução e saí da cozinha. Peguei o telefone sem
fio das mãos de Kedma e respirei fundo antes de falar.
— O que aconteceu com ele?
— Ele está bem — uma onda de alívio percorreu o meu corpo — eu
que estou complicada. Não vou conseguir retornar para Aracaju a tempo de
pegar o Vicente na escola. Liguei para os seus pais, mas eles estão no sítio.
— Eu o pego na escola.
— Não precisa, já liguei para a mãe do Enzo e pedi que deixasse ele
aí. Assim, facilitaria as coisas para você.
— Obrigado.
— As minhas consultas em Salvador estão atrasadas e para
completar o mundo está caindo na cidade, não para de chover desde que
cheguei. Acho que não conseguirei chegar em Aracaju hoje.
— Não se preocupe. Por que não passa a noite em um hotel? Melhor
do que arriscar pegar a BR a noite e chovendo.
— Eu deveria ter me organizado e pensado em um plano B... Sei
que hoje não é o seu dia de ficar com ele e você está no trabalho...
— Não sou o pai dele apenas aos finais de semana — recordei —
Pode ficar sossegada e nada de cogitar pegar estrada a noite.
— Sim, chef! — Ri em resposta — ele vai dar saltos de felicidade
quando eu avisar que hoje dormirá com você.
— Ser o pai perfeito tem dessas... — Perturbei.
— Preciso desligar, ainda tenho mais cinco pacientes para atender,
beijo meu querido.
— Beijo. — Encerrei a ligação e voltei para a cozinha antes que o
magret virasse carvão mais uma vez.
*
Pedi a Kedma que ficasse de olho na chegada do meu filho e assim
que isso acontecesse me avisasse imediatamente. E assim que ele chegou,
às 17:58, mesmo a cozinha estando a todo vapor, o restaurante abriria
dentro de alguns minutos, eu larguei tudo para recepcionar o meu filho.
— Pai! — Ele sorriu fazendo o meu coração bater mais rápido.
Eu vivia para colocar aquele sorriso no rosto dele.
— Vem cá, dá um abraço no seu pai! — Puxei ele para perto, os
braços se fecharam ao redor da minha cintura e os meus dedos bagunçaram
os seus fios loiros. — Está com fome? — Perguntei ao cessar o abraço e ele
balançou a cabeça em afirmação. — O que você quer comer?
— O que o chef me indica para essa noite?
— Magret ao molho de laranja e batata rústica, é uma receita que
seu pai está construindo.
— Então, serei sua cobaia? — Arqueou a sobrancelha.
— Você terá a honra de comer esse prato antes de todos.
— Cobaia! — Repetiu e eu ri alto.
— E aí topa ser a minha cobaia?
— Eu posso ser sincero?
— Sempre, filho.
— E se eu achar muito ruim, não precisarei comer até o final?
— Esqueça esse lance de cobaia, vou fazer um frango à parmegiana
que você tanto gosta.
— Agora eu quero experimentar esse magro alguma coisa com
batata — sorri. — E se eu não gostar aí você faz parmegiana com fritas.
— Combinado.
— Pai, onde eu vou ficar enquanto você trabalha? Posso ficar na
cozinha vendo você trabalhar? — Perguntou esperançoso.
— Infelizmente não, a cozinha é bastante movimentada e não quero
que acidentalmente nenhum molho quente vire sobre você. — Ele assentiu
— você vai ocupar uma mesa como um cliente.
— Eu posso escolher a mesa?
— Claro, você é o meu convidado de honra. — O sorriso dele se
ampliou, fiz um sinal para que Kedma se aproximasse. — Por favor,
acompanhe nosso ilustre convidado até a mesa que ele escolher e garanta
que todos os pedidos dele sejam atendidos durante essa noite.
— Senhor Vicente, por favor queira me acompanhar. — Ele riu em
resposta.
— A Dafne está na sala dela? — Indaguei antes que Kedma
acompanhasse o meu filho.
— Ela ainda não chegou, quer que eu avise quando chegar?
— Não é necessário.
Refiz os meus passos até a cozinha para preparar o prato do meu
filho
— Aqui está o seu peito de pato com batata rústica e suco de limão
para acompanhar, senhor Vicente. — Apresentei o prato antes de depositá-
lo a sua frente.
— Pato? Aquele nome chique era pra pato com batatinha? — Ele
me olhou em descrença e foi inevitável não sorrir.
— Estou ansioso pelas suas observações.
— E vai ficar aí me encarando? — Questionou. — O cliente precisa
ficar livre para poder ser sincero.
— Você tem toda a razão, peça que me chamem quando você tiver
uma opinião sobre o prato.
Ele assentiu e antes que eu me afastasse da mesa, fui chamado.
— Pai?
— Oi, filho.
— Posso pedir sobremesa?
— Já sei: petit gateau com uma bola extra de sorvete de creme.
Acertei? — Ele balançou a cabeça várias vezes em afirmação. — Vou
preparar a sobremesa — falei para um Vicente que levava uma grande
garfada de comida à boca. E pela expressão no seu rosto eu poderia apostar
que tinha gostado.
De volta à cozinha, antes que a sobremesa fosse preparada, fiz uma
pausa para observar os pedidos. O restaurante já estava funcionando e as
comandas já se acumulavam sobre a bancada. Uma nova foi entregue nesse
momento e li em voz alta o novo pedido: 3 tartare, 1 robalo e 1 sopa de
cebola.
— Ok, chef. — Jaime respondeu, assumindo o preparo desses
alimentos.
— Como estamos, Kleber? — Perguntei ao meu sous chef. O papel
do sous chef ou subchefe em português era assumir a cozinha na ausência
do chef, isso incluía cozinhar e supervisionar a equipe de cozinha.
— Tudo em andamento, chef. Estou com a praça de frutos do mar e
a Deise junto com o Jaime com a das aves e carnes.
Andei pela cozinha supervisionando os múltiplos processos em
andamento, experimentei o cuscuz marroquino, conferi o ponto do robalo e
as demais cocções que exigiam total atenção.
— Se o mignon for ao ponto ele está no exato momento para retirar
do fogo.
— É bem assado, chef. — Assenti para Kleber que voltou a ocupar
seu lugar à beira do fogão.
— O que tem nessa panela de pressão, Deise?
— Músculo. Vai ser vinte minutos na pressão e depois completo o
resto do cozimento com as verduras junto.
— Usa o caldo desse primeiro cozimento como base do molho.
— Sim, chef — Deise anuiu e se encaminhou para a entrega dos
pedidos. — Mesa 20! — Anunciou colocando os pratos sob a bancada para
serem retirados pelo garçom, me aproximei para observá-lo e aprovei o que
vi. A máxima de que primeiro comíamos com os olhos e depois com a boca
era real, desde a escolha da louça ao modo como o alimento era disposto no
prato, tudo fazia parte da experiência gastronômica.
Tudo em ordem, me encaminhei para o espaço da bancada livre para
montar o petit gateau. Ao contrário de muitos restaurantes por aí, a nossa
massa não era industrializada, esse era mais um dos muitos dos nossos
processos que primavam pelos ingredientes naturais. Depois que o pequeno
bolinho de chocolate aqueceu, depositei em uma louça branca e polvilhei
açúcar de confeiteiro por cima, atendendo ao pedido do meu exigente
cliente finalizei acrescentando duas bolas de sorvete de creme.
Mais uma vez, eu mesmo resolvi servi-lo, estava curioso para saber
o que tinha achado do magret. Assim que cheguei ao espaço livre não
encontrei Vicente sentado à mesa, meus olhos percorreram o salão e não o
encontrei em lugar algum. Meu primeiro ímpeto foi começar a chamar pelo
seu nome para que ele aparecesse, mas eu busquei controlar a sensação de
desespero que começava a nascer dentro de mim.
— Deixei o Vicente sentado na mesa 32, você sabe para onde ele
foi? — Abordei o primeiro funcionário que passou por mim.
— Desculpe, não vi.
O sorvete começava a derreter, assim como sentia o meu coração se
desfazer em pavor. Ele não teria saído do restaurante sem me avisar, ele
sabia que isso me deixaria aflito.
Abandonei o petit gateau diante da mesa vazia e segui em busca de
respostas.
— Kedma, o Vicente saiu do restaurante? — Interceptei Kedma sem
me importar com os clientes que ali estavam.
— Tenham uma excelente noite... — Ela sorriu para o casal e se
voltou para mim — Não, ele estava na mesa que ele escolheu vinte minutos
atrás.
— Estava, não há nenhum sinal dele. — Passei as mãos pelos
cabelos em total estado de desespero.
— Talvez ele tenha ido ao banheiro...
— E levou junto a mochila?
— Nicolas, seu filho não saiu do restaurante. Eu saí do meu posto
uma única vez e isso não durou nem três minutos.
— Tempo suficiente para uma criança sair sem ser notada.
— Vamos encontrá-lo! Por que você não confere nos banheiros
masculinos enquanto eu consulto as câmeras externas?
Talvez ele estivesse no banheiro e eu que tinha criado tempestade
em um copo d’água. Desnorteado, acabei não prestando atenção por onde
andava e esbarrei em alguém. Por reflexo, segurei o corpo com o qual
trombei, na intenção de minimizar o choque. Baixei os olhos e encontrei os
de Dafne presos aos meus.
— Você não olha para onde anda? Poderia ter me derrubado. —
Dafne perguntou, se afastando do meu toque.
— Eu segurei você.
— Com mais força que o necessário, aliás!
— Tenha certeza de que essa não foi a minha intenção — tentei
passar por ela, para seguir a caça a Vicente, mas ela não se moveu.
— Eu estava mesmo indo atrás de você.
— Não estou com tempo para mais uma das suas ideias
mirabolantes — passei por ela, tocando nossos ombros e segui a passos
apressados até o banheiro.
— As minhas ideias não são mirabolantes, você que é alguém sem
imaginação e grosseiro — escutei a sua voz atrás de mim. — Sabia que não
é de bom tom deixar alguém falando sozinho?
Entrei no banheiro masculino, sendo acompanhado por Dafne.
— Por mais que eu adore esse nosso joguinho, agora não estou com
cabeça para isso — empurrei uma porta atrás da outra e nenhum sinal dele.
— Esse é o banheiro masculino, não é? — O homem que havia
acabado de entrar no espaço, paralisou e perguntou olhando fixamente para
ela.
— Desculpe essa senhora, ela está desnorteada. — Segurei seus
ombros e a guiei para fora do banheiro.
— Você pode parar de pôr suas mãos em mim?
— E você pode parar de me seguir feito um carrapato?
— Você acha mesmo que eu gostaria de ficar seguindo você pelos
banheiros masculinos?
— Sim, e acho além. Acho que você está querendo me pegar, mas
será que podemos marcar para amanhã nesse mesmo horário?
— Você é um babaca! — Deu um passo para trás aumentando a
nossa distância.
— Você já me disse isso outras vezes e continua me seguindo.
— A única razão para eu estar aqui, ao seu lado, é para avisar que
seu filho se encontra na minha sala, seu estúpido!
E nesse momento o meu mundo voltou ao eixo.
 

— Boa noite, senhora Capolavoro. — A sempre simpática Kedma


me cumprimentou assim que passei pelas portas automáticas do Bernard.
— Boa noite — sorri — achei que já tínhamos passado por essa fase
de chamar pelo meu sobrenome.
— Tem razão, Dafne.
— Assim, está bem melhor. Como estamos?
— 50% de reservas, fora as entradas espontâneas.
— Ótimo. Estarei na minha sala, se precisar de alguma coisa não
hesite em me procurar.
— A senho... — se corrigiu. — Você quer pedir alguma coisa para
jantar?
— No momento não, obrigada.
No percurso até a minha sala cumprimentei os garçons que
encontrei pelo caminho e lancei um olhar para a cozinha. Por curiosidade,
aquele era o único ambiente que eu ainda não tinha visto em atividade. O
lugar era o santuário do detestável chef e por mais que eu gostasse de
afrontá-lo, decidi respeitar, afinal tínhamos um acordo, eu não me metia na
cozinha dele e ele não se metia na minha administração. Alguns passos
depois entrei na sala, a luz estava acesa assim como o ar-condicionado já
estava em funcionamento, agradeci mentalmente a Kedma pela gentileza.
Fechei a porta atrás de mim e antes que um novo passo fosse dado em
direção a cadeira executiva ela girou e uma criança surgiu sentada nela. O
susto fez com que um gritinho de pavor escapasse dos meus lábios e
assustasse o menino que me encarava com os olhos azuis arregalados.
— Você me deu um susto! — Falei ainda me recuperando.
— Você também! — Ele respondeu me olhando em desconfiança.
— O que você está fazendo aqui, na minha sala?
— Sua sala? — Franziu o cenho — Essa sala é do meu pai.
— Seu pai?
— Sim, o dono do restaurante.
Eu sabia que aquele rosto era familiar.
O garoto era uma cópia mais jovem do Nicolas.
A revelação de que ele tinha um filho me deixou em silêncio por
alguns segundos. Não me recordo de ele falar sobre uma criança, se bem
que nenhuma das nossas conversas seguiram para assuntos pessoais.
— Você é filho do Nicolas? — Perguntei para confirmar.
— Sim, e você é?
— Dafne. — Fiquei em dúvida se diria ou não que o restaurante
agora pertencia a mim, mas acabei optando por não dizer. Todavia, o
próprio garoto trouxe a informação silenciada à tona.
— Ah, a sócia...
—  Sim, o seu pai falou sobre mim?
— Apenas que tinha feito sociedade com uma mulher que tinha o
nome da personagem patricinha do Scooby-Doo.
— Ah, ele falou isso ao meu respeito? — Ele balançou a cabeça em
afirmação.
— Esperava que seu cabelo fosse ruivo, mas é bonito assim
também.
— Obrigada.
Ele se levantou da cadeira em um pulo, andou apenas de meias até
os tênis deixados ao lado do pequeno sofá-cama e se agachou para calçá-
los. Observei que ele usava fardamento, o que indicava que tinha vindo
direto da escola para o restaurante.
— Aonde você vai? — Perguntei quando ele segurou a alça da
mochila de rodinhas que não tinha notado quando entrei.
— Essa sala agora é da senhora, me desculpe por entrar sem
permissão.
— Não precisa se desculpar. Se você quiser, não precisa ir embora,
apenas porque eu cheguei.
— Não?
— Não, podemos dividir esse espaço. — Ele pareceu aprovar a
ideia, pois a mão soltou a mochila — Já que vamos passar a noite aqui
juntos, acho que eu posso saber seu nome, o que acha?
— Vicente.
— É um nome bonito.
— Na minha escola dizem que é nome de velho, mas eu gosto —
deu de ombros — acho que eu tenho cara de Vicente.
— Eu também acho que tem cara de Vicente — Ele sorriu. — Fique
à vontade Vicente, finja que não estou aqui.
— Posso tirar o tênis?
— Se você não tiver chulé, pode sim — Ele riu em resposta, a típica
risada infantil que dominava o ambiente.
— Eu juro que não vou atrapalhar a senhora.
— A cada senhora que você usa nasce três fios brancos no meu
cabelo — falei sorrindo — Sei que é demonstração de respeito, mas pode
me chamar de você, tudo bem? — Ele assentiu.
Antes de ocupar o sofá, Vicente se livrou dos sapatos novamente,
colocando-os em um canto da parede, seguiu de meias até a mochila recém-
abandonada e a arrastou até os sapatos. Depois que deixou seus itens
organizados, se sentou no sofá, elevando as pernas até o estofado. Observei
quando se moveu em busca da melhor posição e quando pareceu encontrá-
la, pegou o smartphone do bolso da calça e dedicou toda a sua atenção pelos
próximos minutos.
Ele cumpriu a sua promessa em não me atrapalhar, mas eu que não
consegui me concentrar nas minhas tarefas. Estava dispersa com a recém-
descoberta, o irritante do Nicolas tinha um filho. Um menino que deveria
ter entre sete e oito anos, com características físicas parecidas, mas
personalidade diferente. Vicente era um doce de criança e educado muito
diferente do pai que tinha o dom de me chatear. Meus pensamentos
divagaram até se concentrarem no fato de que se havia um filho, muito
provavelmente deveria existir uma companheira, esposa possivelmente.
Não havia nenhum sinal de aliança na sua mão, mas eu sabia que era hábito
de muitos cozinheiros não usar anéis, isso justificaria a ausência da marca.
Era estranho pensar nele com esposa e filho, não parecia se encaixar com o
seu perfil.
A primeira vez que o vi eu fiquei completamente hipnotizada pelo
belo exemplar masculino na minha frente, tanto que praticamente babei na
frente dele. Mas isso foi antes dele abrir a boca e o encanto se quebrar,
Nicolas era um homem bonito e sabia disso, o que o colocava na pior
categoria de homens da face da Terra. O tipo que sabe o poder que tem
sobre as mulheres e abusam disso para conquistar o que querem. O episódio
dele no Capolavoro abrindo mais um botão da sua camisa ainda estava fixo
na minha retina. Além do mais, ele tinha um ar de arrogância e pitadas de
prepotência que o deixava com uma áurea de macho dominador, não era o
meu tipo de homem. Eu preferia os que concordavam comigo e me
despertavam vontade de beijar ao invés de esganar. O que definitivamente
não era o caso do Nicolas. Não tínhamos nada em comum além da paixão
pelo restaurante. Mas nem isso era capaz de estabelecer um laço entre nós.
Éramos água e óleo, incompatíveis.
— Oiiii, você está me ouvindo? — Vicente perguntou balançando a
mão na minha frente.
— Estava pensando no trabalho — menti.
— Agora que eu lembrei que meu pai ficou de me levar um petit
gateau, mas eu vim pra cá. Será que você pode avisar que estou aqui? Ele
me proibiu de chegar perto da cozinha, disse que era perigoso.
Vicente e eu tínhamos mais coisas em comum do que seu pai e eu.
— Não se preocupe, voltarei com seu petit gateau.
— Obrigado, Dafne.
Antes que eu chegasse até a cozinha fui praticamente atropelada por
um corpo grande em movimento, o choque dos nossos corpos fez com que
eu desequilibrasse dos saltos e se não fosse o braço que envolveu o meu
corpo, puxando-o para si, eu teria caído feito um saco de batatas no meio do
salão. Atordoada, ergui a cabeça e encontrei um par de olhos azuis intensos
me fitando. O meu corpo estava colado ao dele ou seria o inverso? Não
tinha importância naquele momento, pois tudo que importava eram as
sensações provocadas por esse contato. Uma pequena chama, em segundos,
se transformou em um fogaréu, aquecendo o meu corpo enviando uma
corrente elétrica diretamente para o meio das minhas pernas.
Dafne, você precisa dar para esse cara o quanto antes!
O pensamento me assustou e eu praticamente empurrei Nicolas,
interrompendo abruptamente o nosso contato.
— Você não olha para onde anda?  Poderia ter me derrubado. —
Indaguei brava com ele, comigo, com as sensações provocadas.
— Eu segurei você.
— Com mais força que o necessário, aliás! — Eu ainda podia sentir
a pressão do seu braço ao redor do meu corpo.
— Tenha certeza de que essa não foi a minha intenção — Disse, e
inclinou o corpo para o lado para continuar andando feito um carro
desgovernado.
— Eu estava mesmo indo atrás de você — comentei, sem dar
passagem para que ele andasse.
— Não estou com tempo para mais uma das suas ideias
mirabolantes — ele desviou, esbarrando levemente o ombro em mim.
— As minhas ideias não são mirabolantes, você que é alguém sem
imaginação e grosseiro — Segui-o de perto. Detestava que me deixassem
falando sozinha. — Sabia que não é de bom tom deixar alguém falando
sozinho?
Nicolas não respondeu o que era completamente estranho na nossa
relação. Apenas seguiu em passos decididos até a porta do banheiro
masculino e entrou. Antes que eu pudesse processar o que estava fazendo,
me vi dentro do banheiro masculino junto com ele.
— Por mais que eu adore esse nosso joguinho, agora não estou com
cabeça para isso.  — As portas da cabine, uma após a outra, foram
empurradas arrancando dele uma reação de descontentamento.
— Esse é o banheiro masculino, não é? — Olhei em direção a voz e
encontrei o olhar confuso e surpreso do homem parado na porta. É óbvio
que a minha presença ali era o motivo de confusão. Nicolas me irritava
tanto que até entrar no banheiro masculino eu entrava por sua causa.
— Desculpe essa senhora, ela está desnorteada. — As duas mãos
grandes de Nicolas se colocaram sobre os meus ombros, guiando-me para
fora do banheiro. Meu corpo reagiu pela segunda vez ao seu toque, os
pelinhos dos meus braços se eriçaram, e um leve arrepio percorreu a minha
coluna.
Que porra está acontecendo com você, Dafne?
— Você pode parar de pôr suas mãos em mim? — Cruzei um braço
sobre o outro, agradecendo o fato de estar usando camisa de manga longa.
— E você pode parar de me seguir feito um carrapato?
— Você acha mesmo que eu gostaria de ficar seguindo você pelos
banheiros masculinos?
— Sim, e acho além. Acho que você está querendo me pegar, mas
será que podemos marcar para amanhã nesse mesmo horário?
— Você é um babaca! — Dei um passo para trás aumentando a
nossa distância.
— Você já me disse isso outras vezes e continua me seguindo.
— A única razão para eu estar aqui, ao seu lado, é para avisar que o
seu filho se encontra na minha sala, seu estúpido — quase berrei, perdendo
o controle.
— Por que você não disse isso antes? Eu estava aflito atrás dele.
— Pelo mesmo motivo pelo qual você não me informou que uma
criança estaria ali. Você imagina o susto que levei quando entrei, ciente de
que não tinha ninguém ali dentro, e a cadeira se moveu revelando uma
criança?
A cena em que eu levava um susto do seu filho deve ter sido
recriada em sua mente porque ele começou a gargalhar, diante dos clientes
que nos encaravam com curiosidade. Quando o ataque de riso cessou,
seguimos juntos até a sala, fiz questão de manter uma distância segura entre
nós.
Vi o semblante de Nicolas se modificar ao olhar para o filho, ele
fitava o menino com admiração e amor, e a recíproca era verdadeira. Assim
que viu o pai, Vicente abriu o maior sorriso.
— Pai, cadê o meu petit gateau? — Ele perguntou caminhando em
direção ao pai.
— Nesse momento deve ter virado uma piscina doce, o sorvete já
era. Você me deu um baita susto, cara — Nicolas o puxou para um abraço, o
corpo dele grande fez Vicente parecer pequenino.
— Ai, pai você está me esmagando — foi o Vicente, mas poderia ter
sido o Silvio falando com nosso pai quando criança, a familiaridade das
cenas me fez sorri.
— Por que não avisou a Kedma ou a qualquer garçom que você
estava aqui?
— Eles pareciam ocupados, não quis atrapalhar — justificou —
então, lembrei da sua sala, que agora não é mais sua, né? — O olhar dele
seguiu até mim. — Pai, eu já pedi desculpas por invadir a sala dela.
— E eu já disse que elas são desnecessárias — sorri — você pode
ficar aqui pelo tempo que quiser.
— O que vai ser um tempo muito grande, né pai? O restaurante
fecha bem tarde.
— Então, vamos fazer companhia um para o outro porque eu
também vou embora na hora que o restaurante fecha.
Nicolas me lançou um olhar diferente de todos que um dia recebi
dele, ele estava agradecido por eu permitir que o filho dele ficasse ali.
— E depois você também vai dormir na casa do seu pai? — Vicente
perguntou.
— Não, eu moro sozinha.
— E não sente falta da sua família?
— Todos os dias.
— Eu também sinto falta de ver o meu pai todos os dias —
confessou — mas a gente se fala sempre e estamos sempre conectados pelo
coração.
— Sempre, meu amor — o chef estava emocionado? Aquilo era
novidade.
— Posso dar a minha avaliação da carne de pato agora?
— Você já fez a sua análise do magret? — Nicolas indagou
sorrindo.
— Sim, e minhas considerações é que achei o gosto do pato igual ao
do frango — sorriu — e como eu gosto de frango, achei bem gostoso. A
batata não era molinha, era meio durinha e isso foi diferente, achei que
fosse batata cozida molenga. Eu acho que o prato está pronto para ser
colocado no cardápio — e assim ele concluiu a sua análise.
Acompanhei a sua rigorosa análise com um sorriso no rosto.
— Dafne, eu pretendia ouvir a sua opinião, mas depois dessa
avaliação crítica do Vicente seus comentários são totalmente dispensáveis.
— Você tem toda razão, eu só tenho uma sugestão: eu também
quero comer esse pato acompanhado de batata não molenga.
— Eu posso resolver isso — piscou para mim — volto em breve
com o seu magret e o seu petit gateau.
Nicolas mal tinha passado pela porta quando Vicente me descreveu
em detalhes o prato maravilhoso que o seu pai tinha construído. Ouvi o
garoto contar todo animado sobre como o pai era o melhor chef do mundo e
concordei quando me perguntou se eu também considerava.
Alguns minutos depois, nossos pratos foram entregues e eu mesma
constatei que a análise de Vicente estava corretíssima, o molho de laranja
com o pato formava uma combinação leve e extremamente saborosa na
boca, e quando se acrescentava a batata era uma explosão de sabores
harmônicos. Meu acompanhante também teceu elogios a sua sobremesa,
devorando-a rapidinho. As horas seguiram e o cansaço atingiu Vicente que
adormeceu no sofá, eu também estava cansada, estava fora de casa desde às
nove da manhã, mas não iria embora e deixaria o menino sozinho.
— Filho, vamos? — A voz de Nicolas diminuiu quando notou o
filho adormecido. Ele se aproximou e depositou um beijo na cabeça do
menino, antes de se inclinar para pegá-lo no colo. — Vem cara, vamos para
casa.
Vicente resmungou algo de olhos fechados e depois silenciou
aninhado ao peito do pai. Ele caminhou em direção a saída, parou na porta e
se voltou em minha direção.
— Obrigado. — Falou e saiu antes da minha resposta.
Desliguei o computador, peguei a minha bolsa e me preparei para
fazer o mesmo caminho que Nicolas acabou de fazer quando notei que ele
havia deixado para trás o tênis e a mochila. Juntei rapidamente os itens e
apressei os passos, o encontrei dentro do carro, prestes a sair, me aproximei
e vi que Vicente dormia profundamente no banco de trás. Os vidros do
carona foram baixados para que eu pudesse falar.
— Você esqueceu isso — ergui os itens.
— Obrigado, mais uma vez — ele esticou os braços para pegar a
mochila e o tênis, acomodando-os no banco da frente.
— Por nada. — Dei as costas para ele e segui até o meu carro
localizado do outro lado do estacionamento. O espaço estava vazio e
silencioso, por isso fiz os passos apressados, quando entrei no veículo
percebi que Nicolas permanecia parado no mesmo lugar.
Dirigi até nossos carros se encontrarem na saída, lado a lado, ele
abaixou os vidros e eu repeti o gesto.
— Até amanhã, Dafne.
— Até, Nicolas.
Pisei no acelerador e me afastei com a mesma velocidade que eu
fugia das emoções dessa noite.
 

 
Desde a aquisição do Bernard não fiz nada da minha vida além de
trabalhar. Administrar dois restaurantes tomava todo o meu dia e sugava a
minha disposição para fazer qualquer coisa nos horários vagos. Na verdade,
os últimos dozes meses da minha vida tinham sido dedicados
exclusivamente ao trabalho e para ser sincera não tinha do que reclamar,
amava trabalhar na Capolavoro, ver que as minhas contribuições tinham
resultado em mudanças positivas no restaurante familiar era compensador.
É claro que tinham os amigos dizendo que eu estava ausente demais e as
cobranças familiares para a aparição em festas e almoços. Enquanto a
minha vida profissional recebia toda a minha atenção, a pessoal era deixada
em segundo plano. Disposta a mudar isso, resolvi retornar a academia, era
uma forma de exercitar o meu corpo e encontrar as amigas também.
Apesar da matrícula mensal ser descontada todos os meses da minha
conta, eu não conseguia recordar a última vez que pisei no local, mas assim
que cruzei as portas de vidro avistei os rostos conhecidos. E já de cara eles
me deram a certeza de que havia feito a escolha certa. A catraca foi liberada
alguns segundos após o reconhecimento digital e eu segui sorridente ao
encontro das minhas amigas. Celeste, Diana e Sara conversavam
animadamente próximo à esteira e foram surpreendidas com a minha
chegada.
— As vadias vêm para a academia para deixar o bumbum durinho
ou fofocar?
— Os dois! — Celeste sorriu.
— Menina, bem que dizem que quem é vivo sempre aparece. —
Diana me abraçou.
— Por isso o clima fechou, Dafne na academia é um milagre —
Sara acrescentou sorrindo.
— Podem confessar que estavam morrendo de saudades minhas. A
academia não é a mesma sem mim, nenhum lugar é, eu sei — perturbei,
sorrindo.
— Amor, sem você nesse lugar significa mais olhares dos novinhos
para nós, principalmente para mim — Celeste se gabou.
— Você é uma vadia sem coração! — Comentei sorrindo.
— Uma vadia que você ama — não era uma mentira.
— Vamos ficar de bate papo aqui e perder a aula de Fit Dance? Por
que você não vem com a gente, Dafne? — Sara fez o convite.
— É Dafne, você vai amar! — Diana me incentivou.
— Desde quando vocês fazem Fit Dance? — Questionei surpresa.
— Desde quando um gostoso com G maiúsculo nos convidou para a
aula experimental. — Celeste afirmou.
— Desde então estamos apaixonadas pela aula.
— Anhan, sei — sorri.
— Vamos que eu quero ficar na primeira fila. — Celeste anunciou
colocando o corpo em movimento. — E aí, você vem ou vai arregar com
medo de ser ofuscada pelo meu talento? — Ela me provocou olhando por
cima do ombro.
— Eu sempre fui a melhor dançarina de nós duas.
— Vamos ver se você também tem a melhor resistência, aposto que
vai precisar de oxigênio ao fim da aula.
— E dessa vez não é exagero da Celeste — Sara sorriu, passou o
braço pelo meu e me guiou até a sala.
O gostoso com G maiúsculo não foi uma figura de linguagem de
Celeste, o professor era realmente um grande gostoso. e em apenas alguns
segundos na sua presença eu estava hipnotizada pelo dono de olhos cor de
amêndoa, sorriso contagiante e mais de um metro e oitenta de pura
definição muscular.
— Fecha a boca, antes que a baba escorra! — Celeste falou
baixinho, mas o suficiente para que as outras escutassem e rissem.
— Ele é muito gostoso! — Sussurrei, voltando o corpo em direção a
elas.
— Boa noite — a voz masculina fez com que eu erguesse a cabeça
para poder olhar nos seus olhos — você é nova aqui, não esqueceria desses
olhos. Acertei?
— Sim, as minhas amigas me convidaram.
— Sabe como é, o que é bom a gente compartilha. — Fuzilei
Celeste com o olhar que sorriu.
— Seja bem-vinda...
— Dafne.
— Prazer Dafne, eu sou o Neto. O seu professor.
— Obrigada — Neto sorriu e senti as minhas bochechas
esquentarem.
Obrigada? Quem diz obrigada após ser apresentada a um grande
gostoso?
O professor se afastou, caminhando para a frente da sala espelhada e
ligou a pequena caixa de som em volume ambiente. O gesto dele fez com
que as pessoas se posicionassem no centro da sala formando uma linha reta,
umas quatros filas foram criadas
— Você corou, vadia! — Celeste apontou para o meu rosto. —
Agora eu preciso de você ao meu lado na primeira fila para eu acompanhar
todas as suas reações durante a aula. — Ela segurou a minha mão, me
puxou entre as outras pessoas e forçou a nossa entrada entre as três
mulheres enfileiradas.
— Acho melhor eu ficar lá atrás, eu não conheço as novas
coreografias.
— De jeito nenhum! — Celeste me manteve no lugar.
— Você pega rápido a coreografia. — Sara que estava na fila atrás
de nós me incentivou. E antes que eu conseguisse escapar a voz do Neto
soou através da caixa de som.
— Prontas para galopar? — Palminhas e gritinhos ecoaram em
resposta. E a magia aconteceu nos primeiros acordes da canção que ouvi
uma única vez vagando pelo TikTok.
Neto instruiu os passos da coreografia enquanto os executava e eu
fiquei dividida entre ser uma mera espectadora ou acompanhar os seus
passos. Ao final, acabei fazendo um pouco dos dois, em poucos minutos eu
estava entregue ao ritmo brega-funk da canção. errei alguns passos, mas me
diverti ao lado das minhas amigas. Quando o refrão chegou entendi a
referência do professor.
— Vamos mais uma vez ao refrão: Cruza e descruza, desliza pelo
ombrinho, termina com corpo fazendo movimento de ondinha. Agora joga a
bunda para trás e o quadril para frente, as mãos encaixando no corpo: um,
dois, três. — Ele executou todos os movimentos e retomou a música.
 
Eu tô querendo relembrar
A tua sentada no meu colo devagar
Descendo e subindo, depois tu galopa
Eu sei que tu gosta, eu sei que tu gosta
 
— Eu quero mais energia nessa galopada! — Ele incentivou
enquanto executamos os passos — Isso, tá lindo demais!
A música Galopa, de Pedro Sampaio, terminou e antes que eu
pudesse recuperar o fôlego uma nova música começou em seguida não
deixando ninguém parado. Quando a aula chegou ao fim era um poço de
suor e a pessoa mais feliz daquela noite.
— E aí Dafne, aprovado?
— Olhe só para meu corpo — apontei para a minha camiseta
encharcada — acho que isso é um sim, né? — Sorri.
— Até a próxima aula — Neto piscou para mim.
Assim que passamos pela porta da sala os comentários a respeito do
professor não demoraram para surgir.
— Olha eu não sei vocês, mas nem guindaste! — Celeste
arrancando uma risada de todas nós.
— Acabei de encontrar um motivo para me exercitar todos os dias
— afirmei sorrindo.
— Quem não pensou em substituir a esteira por uma galopada hoje,
hein? Aposto que as calorias gastas são as mesmas. — Sara comentou a
minha resposta.
— Fora que será bem mais prazeroso. — Diana acrescentou quando
cruzamos a porta do banheiro.
— Nossa e põe prazeroso nisso — Celeste se abanou antes de entrar
na cabine do banheiro.
Diana ocupou a cabine ao seu lado, enquanto Sara e eu nos
arrumamos diante do espelho gigante. Meus fios presos em um rabo de
cavalo estavam levemente bagunçados e bochechas rosadas devido ao
exercício físico.
— Celeste, a única casada aqui é você, não deveria estar com esse
fogo todo — comentei, tirando o elástico do cabelo, deixando os fios
caírem sobre meus ombros.
— Amor, não tem sexo no mundo que apague o meu fogo —
Celeste saiu da cabine e caminhou até a pia para higienizar as mãos — e
olhe que meu marido me come todos dos dias. 
— Porra, todos os dias? — Sara indagou surpresa.
— Você não? — Arqueou a sobrancelha — Está namorando há dois
meses, deveria estar trepando em qualquer lugar, a qualquer hora. Tem algo
errado aí...
— Não tem nada errado, mulher. Amo meu namorado, mas não é o
sexo que pauta a nossa relação.
— Mas o sexo é uma grande parte de uma relação — contra-
argumentou.
— Ok, mas não precisa trepar todo dia como garantia de que o
relacionamento está bom.
— Também acho — Diana concordou — namoro há três anos e nem
no começo a minha frequência sexual era tão intensa assim.
— Dafne, você é a solteira do grupo, joga na cara delas a sua vida
sexual. — Celeste insinuou me encarando fixamente.
— Eu concordo com as meninas, sexo não é tudo. — Respondi
querendo pôr um fim ao início de uma discussão. Se eu bem conhecia as
minhas amigas, em pouco tempo a coisa escalonaria para uma briga para
ver quem tinha mais razão.
— Quando foi a última vez que você transou? — Celeste cruzou os
braços e me encarou fixamente.
— Agora virou fiscal de foda? — Arqueei a sobrancelha.
— Tem tanto tempo assim? — Instigou.
Ignorei Celeste e entrei na cabine, fechando a porta atrás de mim.
Baixei a legging e a calcinha e me posicionei sobre a privada, mas sem
sentar no assento. Antes mesmo das primeiras gotículas de xixi atingirem a
água do vaso sanitário, ela voltou a falar e eu ainda era alvo do seu
interesse.
— A última vez que vi você com alguém tem tanto tempo que não
consigo lembrar, mas achei que pelo menos você estivesse fodendo por aí,
sem compromisso.
— E quem disse que eu não estou? — Joguei.
Levei a mão ao papel higiênico, enrolei uma quantidade na minha
mão e me sequei.
— A sua postura defensiva! — Rebateu assim que a porta se abriu.
Meus passos seguiram até a pia e ela se colocou ao meu lado, me olhando
através do espelho.
— Talvez ela só não goste de falar de sexo com a gente — Diana
respondeu por mim.
— Celeste acha que todo mundo gosta de falar de sexo — Sara
acrescentou.
— Somos pessoas adultas qual o problema de falar de sexo? Eu
hein. E eu não recordo desse pudor todo quando nós pegamos o irmão da
Dafne. Pelo contrário, lembro que a senhora mesmo dona Sara foi bem
minuciosa em como o Silvio comeu a sua bunda e te levou ao maior
orgasmo.
E mais uma vez Silvio se tornava assunto entre as minhas amigas.
Era do meu conhecimento que meu irmão ficou com todas as minhas
amigas, mas eu nunca tive curiosidade de saber os detalhes. Era nojento.
Antes que eu pudesse me despedir dizendo que não queria saber da
performance sexual do meu irmão, Sara e Celeste começaram a discutir.
— Revelei os detalhes da minha intimidade com você, isso não
deveria ser explanado em público — o olhar que Sara destinou a Celeste
parecia capaz de atravessá-la ao meio.
— Não estou contando em praça pública, estamos entre amigas —
Celeste deu de ombros.
— Estamos mesmo entre amigas? — Sara rebateu.
— Ah qual é, por que todo esse drama? É por causa da Dafne?
Aposto que ela já ouviu coisas bem mais sacanas relacionadas ao seu
irmão... — Sorriu.
— É por causa de mim! — Sara discordou visivelmente irritada e
constrangida — não importa, eu já estou indo. Dafne foi muito bom te ver,
nos vemos na próxima aula?
— Também amei te ver, te encontro na próxima aula — Falei
abraçando minha amiga — Não liga para a Celeste, ela é sem noção às
vezes. — Comentei em um tom mais baixo em seu ouvido.
— Eu ouvi, Dafne! — A voz estridente de Celeste se espalhou no
banheiro.
— Era para ouvir mesmo. — Sorri.
— Eu vou com você Sarinha, meninas até a próxima aula — Diana
acompanhou.
— Até, beijos. — Me despedi das outras e estava prestes a fazer o
mesmo com Celeste. Ainda iria passar em casa, para um banho rápido,
antes de seguir para o Bernard.
— Ai quanta frescura... — Celeste resmungou.
— Você também não consegue manter sua boca fechada.
— Eu não falei nenhuma inverdade, ela realmente ficou
enlouquecida pelo seu irmão.
— Assim como todas vocês.
— Se seu irmão piscar pra mim, eu largo o meu marido
imediatamente.
— Isso não vai acontecer, esquece! — Sentenciei — ele está feliz e
extremamente apaixonado pela Alya.
— Também estou aberta a convites para ménage. Qualquer coisa
para repetir a dose. — Sorriu. — Falando em repetir a dose... Fale a
verdade, como está essa vida de solteira? Não engulo essa de que não está
pegando ninguém.
— A vida de solteira está ótima.
— Quem é o contatinho da vez?
— Bernard, meu novo restaurante. Por falar nele, preciso ir ou vou
me atrasar.
— Por um segundo achei que o Bernard era um grande gostoso — a
visão do dono do sobrenome me fez sorrir — mas é um restaurante. Mais
um?
— Sim, inclusive foi você que me apresentou.
— Isso não tem importância agora. Que horas você trepa, Dafne? —
A pergunta chamou a atenção de um pequeno grupo reunido em frente a
academia.
— Fale baixo! — A puxei pelo braço e saí apressada até o
estacionamento.
— Dafne, diz para mim que tem espaço na sua vida para um gostoso
entre a administração dos restaurantes?
— Celeste, estou concentrada no trabalho nesse momento.
— Por quê? — Questionou — Você não precisa trabalhar tanto
assim.
— Não tenho vocação para exercer a função de herdeira. — Celeste,
assim como algumas pessoas do meu círculo social, não trabalhava. A sua
família era dona de um grupo de comunicação sergipano.
— Até porque grana para isso a sua família tem. Não teve ninguém
depois do falecido — Falecido era como minhas amigas chamavam o meu
ex.
Ele não estava morto, uma pena.
— Claro que tiveram outros, não virei celibatária após nosso
término. A questão é que aproveitei esses últimos meses para me dedicar
exclusivamente ao trabalho e não tenho do que reclamar se quer saber.
Estou vivendo a melhor fase da minha vida.
— Já sei como mudar isso — animada, ela bateu várias palminhas
enquanto falava.
— Você não ouviu nada que eu disse — acusei.
— Um velho conhecido do meu marido está de volta a Aracaju e
eles estão há um tempão combinando de se ver. Vou chamar ele para jantar
no seu novo restaurante e apresento vocês.
— Não, não vou conhecer alguém no meu local de trabalho —
discordei prontamente.
— Então, vai se ausentar do restaurante para encontrar um boy em
outro lugar? — Arqueou a sobrancelha. — Pois é, por isso vamos manter o
jantar no Bernard. Ai tô tão animada para essa noite.
— Você vai convidar as outras meninas, não é? Para não ficar com
cara de date, afinal é meu local de trabalho.
— Ah, com certeza.
— Vou te mandar por mensagem o link para a reserva do
restaurante.
— Ele é o seu tipo, Dafne.
— É? O que você sabe sobre ele?
— O Douglas disse que ele morou em vários países, é culto, mas o
que verdadeiramente importa está no Instagram dele. Ele tem várias fotos
sem camisa, mostrando o abdômen trincado e aquela entradinha para o
parque de diversões bem definida. Você vai sair da seca em alto nível,
vadia!
Gargalhei em resposta.
A noite começou reencontrando as minhas amigas, me encaminhei
para uma aula de Fit Dance e terminou com um jantar marcado com um boy
misterioso, que segundo a minha melhor amiga era o meu tipo.
Definitivamente eu estava vivendo o melhor momento da minha
vida.
 

No dia do jantar com Celeste, saí mais cedo do Capolavoro para me


arrumar com calma. Estava feliz em estar em companhia das minhas
amigas, mais uma vez, comer bem e jogar conversa fora como fizemos
tantas outras vezes. Saí do banho enrolada no roupão, caminhei até o
pequeno closet anexado ao meu quarto e encarei as roupas em dúvida sobre
o que vestir.  Fugiria dos decotes, roupas curtas ou qualquer coisa mais
insinuante, corri os dedos através dos vestidos e parei no verde escuro.
Segurei no cabide e o retirei do meio dos outros, o modelo transpassado de
manga curta bufante, bainha de babado e corte assimétrico ia até o meio da
perna. O tecido abraçou o meu corpo como uma segunda pele, dei uma
voltinha fazendo a saia balançar e sorri diante da minha imagem no espelho.
Já tinha em mente o salto utilizado para compor o look, assim como os
acessórios. Minutos depois, munida da minha bolsa e celular, desci para
entrar no carro de aplicativo que me levaria até o restaurante.
O movimento no restaurante era alto, havia sido assim durante a
semana, devido às novas contratações que tínhamos feito. Kedma agora
exercia a sua função exclusivamente e foi ela quem recepcionou os meus
convidados, guiando-os até a mesa que eu já aguardava. Cheguei quinze
minutos antes do horário combinado e resolvi beber uma taça de vinho para
me ajudar a relaxar. A verdade era que fazia muito tempo que eu não saía
para encontrar alguém e essa expectativa me fez ficar um pouquinho
nervosa, mas nada que pudesse ser notado por terceiros. Celeste estava
absolutamente maravilhosa em um vestido escarlate delineado ao corpo
com fenda lateral, mas foi o homem que a acompanhava que chamou a
minha atenção. Ele parecia ter saído da capa de revista Men’s Health para o
mundo real, a camisa social preta parecia não comportar todos os seus
músculos, o antebraço forçava o tecido e me peguei imaginando se até o
fim do jantar o tecido não se rasgaria com a pressão dos seus músculos.
— Tenham um bom jantar — a voz de Kedma serviu para me
despertar.
— Fabrício, essa é a minha grande amiga e também uma grande
gostosa, Dafne — ela me apresentou e ele sorriu mostrando todos os seus
dentes brancos e alinhados.
— Sutileza não é mesmo o seu forte, não é Celeste? — Resmunguei
para a minha amiga me colocando de pé para cumprimentar o homem que
me olhava como se eu fosse uma sobremesa. Meu corpo esquentou em
resposta.
— Celeste, você mentiu para mim — ele falou me olhando
fixamente — sua amiga é ainda mais linda do que você comentou. É
literalmente um prazer conhecê-la, Dafne.
Fabrício deu um passo em minha direção, tocou o meu braço e
beijou o meu rosto, pairando alguns centímetros dos meus lábios.
— O prazer é todo meu.
— Vamos pedir o jantar porque já tem gente querendo pular para a
sobremesa — o comentário dispensável do marido de Celeste foi seguido
por uma risadinha, acompanhada por Fabrício que também ria, mas mudou
rapidamente a expressão diante da minha cara.
— Não vamos esperar as meninas chegarem?
— Elas não poderão vir — Celeste respondeu sem me encarar, o que
confirmou as minhas suspeitas de que esse jantar não passou da armação de
Celeste para me juntar com o amigo do seu marido. Se duvidar, as meninas
sequer tinham sido convidadas.
— E por que não me disseram nada? — Questionei.
— Você que não deve ter lido no grupo. Mas o que importa é que
nós estamos aqui, o Fabrício está aqui — lançou um olhar para ele — e
teremos uma noite perfeita.
Assenti, sentindo que a noite poderia ser perfeita, de fato.
Apresentações feitas, ocupamos as cadeiras, Fabrício se sentou do
meu lado esquerdo.
— Essa noite perfeita, pede um brinde! — Fabrício afirmou,
acenando com a cabeça para o garçom que se aproximou. — Um
espumante, o melhor que você tiver na casa.
— Mais alguma coisa, senhor? — A negativa veio com um leve
balançar de cabeça — com licença.
— Eu tinha esquecido o quanto esse lugar é lindo — Celeste elogiou
admirando o ambiente externo ao seu redor.
— Todas as vezes que piso aqui parece que é a primeira vez que
vejo esse lugar. Não canso de admirar — confessei.
O espumante chegou em seguida e depois que as nossas taças foram
cheias um brinde foi puxado pelo Fabrício. Brindamos aos encontros e
reencontros da vida. A conversa girou em torno de viagens, Fabrício
compartilhava com detalhes todos os lugares que conheceu e eu me vi ali
como espectadora em tempo real do seu diário de viagem. Secamos a
garrafa rapidamente e antes que uma segunda fosse pedida, sugeri que
pedíssemos o jantar, não queria terminar a noite alcoolizada.
— O chef é francês? — Fabrício perguntou analisando o cardápio.
Os pedidos já tinham sido realizados, mas ele mantinha os olhos fixos ali.
— Brasileiro, mas ele é especializado, além de um grande entusiasta
da culinária francesa — afirmei sorrindo, lembrando de como Nicolas
defendia a gastronomia francesa.
— Há uma grande diferença entre ser um entusiasta e um legítimo
chef francês. Não concorda? — Sorriu, erguendo os olhos do cardápio.
— Acredito que o segredo de um bom prato está nas mãos do
profissional que o executa. E o chef Bernard tem qualificação e experiência
profissional a altura de qualquer chef nascido na França. E isso não são
palavras de uma grande admiradora do seu trabalho, a sua qualificação no
Le Cordon Bleu atesta o que eu digo.
— Estou ainda mais ansioso para conferir o que as mãos desse
cozinheiro são capazes de fazer.
— Ei, essa é uma frase que eu poderia dizer — Celeste protestou
sorrindo — mas os meus motivos não são relacionados à comida. É
brincadeira, amor — se inclinou para dar um beijo estalado no marido —
será que hoje terei a honra de conhecer o chef?
— Talvez ele esteja ocupado, a casa está cheia.
— Aposto que ele tem um tempinho para vir até a mesa da dona do
restaurante — argumentou.
— Talvez... — Levei a taça de água a boca e mentalizei para que
Nicolas permanecesse ocupado demais pelas próximas horas.
A nossa refeição chegou e não me surpreendeu os diversos elogios
que seguiram a degustação dos pratos. Era inquestionável o talento do chef,
todas as noites os garçons, a hostess ou qualquer outro funcionário que
circulasse pelo salão captariam a aprovação das pessoas diante da comida
saboreada.
— Já tive a oportunidade de comer o legítimo cassoulet francês e
não vi nenhuma diferença para o que comi hoje. Estava muito saboroso —
Fabrício afirmou e eu não contive o meu sorriso de felicidade. Os méritos
eram todos do Nicolas, mas eu carreguei uma pontinha de orgulho quando
meus convidados elogiaram.
— Eu fico muito feliz em saber que servimos um cassoulet tão bom
quanto o francês
— Precisamos destinar esses elogios a quem verdadeiramente lhe
cabe — ele prosseguiu e acenou para o garçom — diga ao chef que a
presença dele é requisitada na nossa mesa.
O tom dele me incomodou pela segunda vez nessa noite, aliado a
isso o jeito que ele se dirigia aos garçons sem pedir por favor ou dizer um
simples obrigado após ser servido, foram coisas que me chamaram atenção.
Infelizmente isso era comum nos restaurantes, mas era algo que eu não
conseguia deixar de observar e recriminar mentalmente sempre que
acontecia em minha presença.
— Meus convidados gostariam de elogiar o chef pela excelente
refeição, por favor — acrescentei.
— Vou comunicá-lo, com licença.
— Obrigada.
— Você é a dona, Dafne. deveria exigir que ele viesse até aqui — o
comentário de Celeste só aumentou o meu desconforto.
— O chef não é o meu subalterno, Celeste. Além do mais, quando
me sento nessa mesa sou uma cliente igual aos outros e, assim como eles,
estou sujeita a disponibilidade do chef e, diga-se de passagem, a função dele
é preparar os pratos e não atender todos os pedidos caprichosos de
comparecimento em mesas — desabafei.
— Hoje é o seu dia de sorte, Dafne — o meu nome foi pronunciado
como um trovão em meio a tempestade — senhores, senhoras é um prazer
atendê-los.
— Fiz diversos elogios a sua comida que poderiam facilmente
serem transferidos para a sua beleza — Celeste o inspecionou e Nicolas
sorriu em resposta.
— Eu e minha esposa apreciamos muito a experiência gastronômica
que você nos proporcionou. Voltaremos mais vezes.
— Obrigado, será um enorme prazer recebê-los novamente.
Celeste balbuciou um gostoso enquanto o marido e Nicolas
conversavam.
Assim que a interação entre eles finalizou, precisei me conter para
não mostrar o meu desprezo diante do Fabrício se dirigindo ao Nicolas em
francês.
— Je suis impressionné d'avoir mangé un cassoulet parfait à
Sergipe. Je dois vous féliciter pour cette réalisation — finalizou com um ar
de soberbo e dessa vez não consegui disfarçar, revirei os olhos sem me
importar se ele perceberia.
Assisti em total estado de contemplação os lábios de Nicolas se
moverem enquanto ele respondia ao outro usando a mesma língua. Ouvindo
seu sotaque perfeito quase fui transportada para Paris, imaginando-me
diante da torre com um chef gostoso que me dedicava a sua total atenção.
— Talvez você precise conhecer mais os restaurantes sergipanos,
temos chefs capazes de reproduzir em alta qualidade pratos de qualquer
lugar do mundo. De qualquer forma, recebo o seu elogio — traduziu e
Celeste riu agradecendo, pois não entendia francês.
— Ui — o outro homem sorriu e eu lembrei onde estava e que
aquele era apenas o irritante Nicolas. — Dafne não exagerou quando rasgou
elogios a você. Após saborear a sua comida ficou evidente que não se
tratava de elogios de uma grande admiradora.
— Dafne, uma grande admiradora minha? — Nicolas ergueu a
sobrancelha.
— Ele exagerou, apenas fui justa com você — amenizei.
— Se a Dafne não quer essa alcunha de grande admiradora, não se
preocupe, pois você está diante de uma nova admiradora, chef — Celeste
comentou e Nicolas nos apresentou mais um dos seus sorrisos sedutores.
— Obrigado por não ter vergonha em admitir que admira o meu
trabalho — me alfinetou.
— Está carente de elogios, chef Bernard? — Provoquei.
— Dos seus talvez. A última vez que me elogiou foi ontem à
noite…— Insinuou.
— Tá porra! — Celeste balbuciou de forma estridente e foi o que
faltava para eu borbulhar de raiva.
— Que merda é essa que você está insinuando? — Falei
entredentes, não querendo criar uma cena entre os clientes.
— Não sabia que sofria de amnésia — meus olhos fuzilaram o
babaca. — Não se preocupe vou refrescar a sua memória — ele parou de
falar e todos da mesa o encararam em expectativa — você disse que o gosto
não sairia tão cedo da sua boca, tá lembrada?
— Eu estava me referindo ao petit gateau.
— Afinal, ao que mais seria? — Riu debochado.
— Você é insuportável! — Declarei irritada.
— E você é esquentadinha.
— Você é o único que me deixa assim.
— Te deixo quente, Dafne?
— Sim, fervilhando de raiva e querendo arrancar esse maldito
sorriso do seu rosto com as minhas unhas.
— Eu tenho uma serventia bem melhor para as suas unhas…
— Dafne, gostaria que a gente se retirasse para que vocês pudessem
discutir a relação com mais privacidade? — Fabrício perguntou.
— Eu e o Nicolas não temos absolutamente nada — afirmei.
— Querida, um restaurante em comum não é absolutamente nada.
— Eu não sou a droga de sua querida! — Ele riu alto, sem se
preocupar em estar chamando a atenção dos outros clientes — você não tem
uma cozinha para comandar?
— Vou deixar você e seus convidados mais à vontade. Só não
exagera na bebida para não chegar de ressaca no nosso almoço.
— Não me recordo de termos um almoço combinado...
— Até amanhã, Dafne — ele se despediu e se afastou antes que eu
pudesse voltar a questionar sobre o tal almoço.
— Acho que já podemos pedir a conta — Fabrício rompeu o
silêncio que se instaurou.
— Antes eu preciso ir ao banheiro, você me acompanha, Dafne? —
Celeste me pegou pelo braço e apressadamente nos distanciamos da mesa.
— Você está dando para o chef gostosão? — Questionou quando estávamos
longe o suficiente para sermos ouvidas.
— O quê? Você tá maluca?
— Então, está muito perto de dar pra ele! — Declarou —vi vocês
dois juntos e tem uma porra de tensão sexual acontecendo entre vocês.
— Acho que você bebeu demais…
— Eu vi a ceninha que vocês fizeram, não me diga que não tem
nada rolando.
— A única coisa que rola entre nós desde o primeiro encontro é
incompatibilidade. Nicolas é absolutamente irritante e parece ter
desenvolvido um absoluto prazer em me tirar do sério. E, infelizmente,
ainda não descobri o antídoto para permanecer imune a suas provocações.
— Acho que ele tem uma quedinha por você! — Afirmou quando
entramos no banheiro.
— Você está absolutamente enganada — sorri — o homem reclama
até do meu perfume.
— Não sei, acho que tem algo mal resolvido aí… — deu de ombros
— até o Fabricio percebeu.
— O Fabrício é outro babaca — as palavras saíram da minha boca
sem que eu pudesse contê-las — o que foi ele falando em francês? Parecia
estar testando o Nicolas…
— Isso te incomodou? — Arqueou a sobrancelha.
— Me incomoda pessoas que não agradecem ao garçom ou se
acham superiores aos outros.
— Isso significa que vai terminar a noite com o gosto do chef na sua
boca? — Ela abriu um sorriso amplo.
— Era a droga de um petit gateau! — Berrei, irritada. — Uma
senhora que saiu de uma das cabines me olhou como se eu fosse uma
histérica. O que era o caso nesse momento.
— Amiga, de verdade não importa que gosto termine na sua boca,
desde que entre algo no meio das suas pernas essa noite — Celeste piscou e
saiu rebolando até uma das cabines.
Fiquei parada em frente ao espelho, encarando a minha própria
imagem, o rosto em tons de rosa por culpa da raiva que o Nicolas causou.
Ele parecia ter feito de propósito, me provocando na frente dos meus
amigos. Quando Celeste saiu do banheiro o meu humor ainda não tinha se
reestabelecido, eu duvidava que isso aconteceria em algum momento ainda
nessa noite. De volta à mesa, Douglas comunicou que a conta já havia sido
quitada e dispensou a minha oferta de pagar pela minha parte.
— Dafne, parabéns pelo seu novo restaurante. É perfeito! — O
marido da minha amiga me elogiou em despedida.
— Obrigada, volte mais vezes.
— Com toda certeza, voltaremos — Celeste confirmou e me puxou
para um abraço. — Não esqueça o que eu falei — sussurrou ao meu ouvido
e eu revirei os olhos.
— A gente te espera no carro — Douglas falou para o amigo que
assentiu.
O casal, de mãos dadas, se afastou deixando nós dois sozinhos.
— Eu adorei essa noite, não tanto quanto gostei de te conhecer —
Fabrício deu um passo em minha direção, nossos rostos ficaram bem
próximos e de repente eu me senti tensa com aquela proximidade
inesperada. — Estou doido para saber que gosto tem esses lábios carnudos
— seus dedos tocaram os meus lábios e a minha reação foi dar um passo
para trás.
— Acho que aqui não é o lugar ideal…
— É por causa do cozinheiro? Vocês estão juntos?
— Não, não é por causa dele — fui enfática — estou no meu local
de trabalho.
— Você é a dona.
— Mais um motivo para dar o exemplo…
— Podemos ir para um lugar com mais privacidade… — Ele
avançou mais um passo e eu recuei, novamente, fazendo com que as minhas
costas tocassem a cadeira atrás de mim.
— Um outro dia talvez…
— Ok — ele se afastou sorrindo com as mãos para cima. — Será
que pode me passar o seu número para quando esse dia chegar… — Ele
pegou o celular do bolso da calça e eu ditei os números do meu celular. —
Até breve, Dafne. — Ele me deu um beijo próximo a boca e se afastou.
Encarei as costas do homem que tinha acabado de me beijar
pensando no outro que tinha o superpoder de me irritar.
 

 
Só não exagera na bebida para não chegar de ressaca no nosso
almoço.
A frase dita no calor do momento tinha um único alvo em mente:
irritar a Dafne, mas ela acabou atingindo o esnobe do seu amigo. E eu não
serei hipócrita em dizer que não apreciei o desconforto no rosto masculino,
o homem se mostrou mais perturbado do que a esquentadinha da Dafne. A
diferença foi que ele lutou para disfarçar enquanto ela deixou toda a sua
raiva emergir para a superfície. Assim que pus os olhos no homem ao lado
de Dafne, a minha primeira impressão não foi das mais amistosas. O
desenrolar dos acontecimentos comprovou que eu estava certo.
Não sei precisar se foi intencional a sua abordagem em falar em
francês comigo, mas de qualquer modo considerei essa uma atitude
prepotente e desnecessária. Deu a impressão de que eu estava sendo testado,
mas ele não foi o primeiro e nem seria o último a fazer isso. Logo no início
do restaurante recebia diversos clientes que, diante do chef de um
restaurante especializado em culinária francesa, arranhavam o seu francês.
Havia também os que dominavam com fluência a língua estrangeira. Em
comum, esses dois grupos demonstravam o espanto, acompanhado da
aprovação, diante do meu domínio em francês. Muito semelhante com o
que aconteceu com o amigo íntimo de Dafne. Arrisco até dizer que ele
ficaria mais feliz ainda se eu não passasse no seu teste.  Em resposta à sua
prepotência, acabei conduzindo o meu diálogo com Dafne de forma dúbia,
dando a entender que tínhamos mais que uma relação profissional.
Entretanto, o convite para o almoço não foi encenação. Ele era real e
seria feito de forma apropriada se o seu amiguinho não fosse um completo
babaca. Após alguns dias testando receitas, defini o menu para eventos
festivos e as apresentações seriam realizadas durante esse almoço. Os
funcionários, também estariam presentes, aproveitaria a ocasião para
atualizá-los sobre os novos pratos, essa era uma prática que eu costumava
fazer quando introduzia um novo item ao cardápio. Os garçons, em
especial, precisavam desse conhecimento para indicar um prato com
segurança ao cliente.
Antes das nove da manhã, a cozinha já estava em pleno movimento.
Havia muito trabalho a ser feito, uma vez que faria prato principal e
sobremesa multiplicados por 2, referente as duas opções que seriam
ofertadas. Os pratos seriam servidos em porções menores, feito um menu
degustação, de modo que ao fim do almoço as duas opções de menu fossem
contempladas por todos.
A primeira praça saiu quinze minutos antes do horário combinado
com Dafne e por se tratar do magret que ela já havia experimentado
autorizei que fosse servido antes da sua chegada.
— O magret é um velho conhecido de vocês. A novidade aqui é a
inclusão do molho de laranja como complemento, o componente cítrico da
fruta traz um frescor ao prato e acentua o sabor da carne — iniciei a
apresentação diante de uma plateia atenta — aos garçons eu tenho um aviso
importante: ao contrário de outros tipos de carne, o pato só tem um ponto: o
ponto certo. E isso tem uma explicação simples: é a gordura e o ponto
levemente malpassado que garantem uma carne macia, suculenta e
saborosa. Se passar demais, ficará seco e duro, o que é um sacrilégio diante
de uma carne tão nobre.
— Então, quando o cliente falar que quer o magret mais passado a
gente explica isso que o chef acabou de falar...
— Exato, caso eles permaneçam na dúvida pode requisitar a
presença do Kleber ou a minha. Mais alguma dúvida? — Negaram com
acenos de cabeça. — Bom apetite.
Peguei o celular do bolso da calça, cliquei no ícone do aplicativo de
mensagens e nenhum sinal da Dafne. Fiz isso diversas vezes ao longo
daquele início de tarde. Quando os profiteroles com sorvete de creme e
calda de chocolate chegaram às mesas, pedi licença e saí para descobrir o
motivo de tamanho atraso. A minha intenção era ligar para Dafne, a
presença dela era fundamental no dia de hoje, mas não cheguei a realizar a
chamada pois a sua silhueta surgiu no meu campo de visão.
Acompanhei a sua chegada à espreita, atento aos seus movimentos,
por isso encarei os lábios carnudos, tingidos de vermelho sangue, se
curvarem para cima antecipando o largo sorriso. O alvo daquele sorriso
estava em suas mãos, ela sorria para a tela do celular, desviando o olhar
apenas para garantir que não havia nada pelo seu caminho. Seus passos a
levaram até a entrada do restaurante e as portas automáticas se abriram em
anúncio a sua chegada. Assim, as minhas narinas rapidamente foram
envolvidas pelas notas de caramelo e baunilha da sua fragrância.
Apesar de ser adocicado o perfume não era enjoativo, pelo
contrário, o cheiro de Dafne era delicioso como um doce que derrete na
boca. Um doce que uma vez experimentado seria impossível se contentar
com apenas um. Seria o mesmo que dar um pote cheio de jujubas nas mãos
de uma criança, dizer que ela pode pegar apenas uma e se retirar do recinto.
Muito provavelmente, na sua ausência, a criança colocaria a mão no pote e
retiraria mais um doce. Agora eu era essa criança, querendo pôr as mãos em
Dafne e transferir o seu cheiro para mim enquanto descobria o seu gosto
através da minha língua. 
— Não vejo a hora de pegar você e te encher de beijos — a voz dela
serviu para me livrar do rumo dos pensamentos indesejados. Saí do meu
esconderijo e me aproximei de uma Dafne bastante distraída.
— Você está atrasada! — Falei, bem próximo ao seu ouvido.
Ela reagiu levando a mão livre ao encontro do seu coração e os
meus olhos foram guiados para o decote em V. A blusa preta dispunha de
um decote que pouco revelava, verdade seja dita, ele apenas acentuava o
par de peitos médios e redondos. Mas foi o suficiente para despertar a
minha atenção.
— Qual é o seu problema? — Perguntou cruzando os braços em
frente aos seus seios.
— Você! — Fui sincero.
— Será? — Arqueou a sobrancelha — não fui eu quem marquei
esse almoço de última hora…
A proximidade dos nossos corpos, o seu perfume invadindo os meus
sentidos, os olhos fixos nos meus, me inebriaram por alguns segundos e eu
precisei recuar para não me perder e me afogar na imensidão azul do seu
olhar.
— Você não acha que esse é um convite pessoal, não é? — Ergui a
sobrancelha.
— Por que eu acharia isso?
— Eu tive a leve impressão que você acreditou por alguns segundos
que eu tinha convidado você para almoçar. Aposto que a sua cabecinha
criativa criou um cenário de nós dois juntos, desfrutando de uma boa
comida, bebendo vinho e conversando sobre... Sobre o que mesmo
conversamos nas suas fantasias?
— Não existe conversa e você nas minhas fantasias...
— Se não conversamos, o que fazemos na sua fantasia?
— NADA! Não fazemos nada, porque não existe o menor espaço
para você nas minhas fantasias. Há espaço para mim em suas fantasias?
— Certamente no momento do banho enquanto a água se encarrega
de retirar o sabão do meu corpo eu penso em você...
— Quer dizer que eu povoo os seus pensamentos no banho? —
Dafne sorriu com malícia.
— Outras mulheres fazem isso de forma mais excitante...
— Você não sabe como fico feliz em saber que não sou uma dessas
pobres mulheres que te acompanham durante o banho — rebateu sorridente.
— É impressão minha ou a sua mente criativa projetou imagens
minha sem roupa? Eu não sou tímido, posso deixar você me assistir. Sua
agenda está livre hoje à noite ou vai jantar com o almofadinha?
— É muita presunção sua achar que eu assistiria você tomar banho.
— Prefere se juntar a mim ao invés de assistir?
— Eu prefiro ser atacada por centenas de muriçocas a ter que tomar
banho com você — seus olhos estavam fixos nos meus, em desafio.
— Quero que saiba que entre um ataque orquestrado de muriçocas e
deixar que você lave as minhas costas eu fico com a segunda opção —
deixei claro.
— Essa opção não existe! Assim como nada que envolva nós dois
juntos em um banheiro — rebateu.
— Nem se substituirmos a ducha pela banheira? Agora precisaria de
uma ampla banheira, não sei se você notou, mas eu sou um homem
grande...
— Nem que você fosse o último homem da terra — sorriu.
— É muito egoísmo da sua parte, sabia? Designar o fim da
humanidade pelo mero capricho de não dividir uma cama comigo.
— Achei que estávamos falando de banho.
— Eu sou homem e você — deixei meu olhar percorrer lentamente
por todo o seu corpo, quando voltei a erguer os olhos fitei os seus — não é
de se jogar fora.
Mentira! Meu cérebro gritou. Dafne era uma mulher absolutamente
linda, atraente demais para passar despercebida ao radar de qualquer
homem. Inclusive de um que jurou que não deixaria se envolver pelo seu
sorriso e pelos seus lábios.
— Naturalmente pintaria um clima e inevitavelmente eu arrancaria
gemidos dessa sua boca gostosa — as palavras saíram sem que eu tivesse
tempo de processá-las e ficaram pairando no ar.
Me preparei para o ataque bélico que receberia de Dafne, mas fui
surpreendido pelo seu sorriso. Ela deu um passo em minha direção, o gesto
enviou uma corrente elétrica pelo meu corpo e se desencadeou em meu pau
que deu uma fisgada, tomado por total excitação. Assisti em expectativa ela
aproximar o corpo do meu e me concentrei para manter as mãos paradas
juntas ao meu corpo, quando ela levou a mão esquerda ao meu peito e
projetou o corpo para falar ao meu ouvido.
— Quer dizer que você acha a minha boca gostosa, isso porque você
não faz ideia do que ela é capaz de fazer — sussurrou — escuta bem o que
essa boca gostosa tem a dizer: se a existência da humanidade dependesse de
nós dois, ela seria extinta porque nada em você me atrai.
A sua ousadia quase me fez gemer. Ela começou a se afastar, mas
segurei o seu pulso antes que o fizesse.
— Me solte! — Pediu sem fazer muito esforço para escapar do meu
toque.
— Eu não confio em suas palavras.
— Está chateado por não ser alvo do meu desejo? — Indagou
sorridente.
— A primeira vez que nos vimos você pareceu desejar bastante do
que estava em sua frente.
— Isso foi antes de descobrir quem você era — ela não mentiu que
me desejou à primeira vista, ótimo sinal.
— Nicolas Bernard, esse sou eu. O chef que você desejou desde o
primeiro momento, o mesmo que você acusa de ter o poder de te irritar com
apenas um olhar. Sou esses dois homens em um só. Você só precisa
escolher qual você prefere.
— Me solta! — Ela puxou o braço, mas mantive o meu aperto em
seu pulso.
— Do que você está fugindo?
— Eu vou gritar.
— Serei obrigado a te silenciar...
— Vai me amordaçar?
— Não, vai ser mais prazeroso para você, eu vou te beijar.
Estudei a sua reação, os olhos arregalados, os lábios entreabertos e a
mão livre que se agarrou a minha camisa como se ela precisasse se segurar
em algo para não despencar. Era o que eu precisava para levar adiante a
ideia que me causaria arrependimento no futuro.
Mas que se foda.
Puxei Dafne para mim, colando nossos corpos, minha mão tocou o
seu pescoço antes de seguir para a sua nuca e inclinei a cabeça para tomar
os seus lábios. Meus olhos se fecharam e antes que eu sentisse a boca
gostosa de encontro a minha, a realidade se fez presente.
— Aqui estão vocês! — Kedma foi a responsável por nos despertar
do universo que fomos transportados e, para ser bem sincero, fiquei
dividido entre agradecer e reclamar pela interrupção. Dafne, não
demonstrou dúvida, soltou do meu toque instantaneamente se colocando do
outro lado do salão.
— Eu atrapalhei algo? Desculpa. O Kleber pediu que eu viesse ver
se tinha alguma notícia da Dafne para que o segundo prato fosse servido.
— Tenha certeza de que você não atrapalhou nada — Dafne
afirmou, evitando o meu olhar.
— Isso, eu estava dizendo a Dafne que ela era a culpada pelo atraso.
— Agora que cheguei não tem por que esperarmos mais — Kedma
assentiu e as duas seguiram para o ambiente externo, enquanto eu precisei
de mais algum tempo para me juntar aos outros.
A minha chegada não foi notada, os funcionários e Dafne estavam
concentrados na apresentação do prato recém-servido pelo subchefe: posta
de bacalhau com mosaico de lulas em açafrão da terra e batatas ao murro,
harmonizados com um vinho branco. Esse prato assim como o magret iriam
compor o cardápio para eventos.  Varri os olhos pelo ambiente em busca de
um lugar que eu pudesse ocupar para fazer a refeição e o único vago era ao
lado da mulher que o meu bom senso clamava por distância. Eu poderia
pedir que alguém trocasse de lugar comigo, mas isso provocaria
comentários entre os funcionários.
Resignado, me aproximei, puxei a cadeira e assim que minhas
nádegas ocuparam o assento, recebi um olhar mortífero de Dafne.
— Não me olhe como se fosse parte de um plano eu me sentar ao
seu lado — movi a cabeça em sua direção para que só ela me ouvisse.
— Será que não?  — Questionou evitando me olhar — depois de
hoje eu não duvido de mais nada.
— Você está falando sobre o que não aconteceu hoje?
— Não há o que falar sobre o que não aconteceu.
— Foi o que eu achei.
Encarei o seu maldito rosto por alguns segundos e não encontrei
nada além de uma máscara de indiferença. Minha análise foi interrompida
pelo Kleber que se aproximou para me servir.
— Chef, seu prato.
— Obrigado.
De olho no prato à minha frente, me dediquei à tarefa de ignorar a
mulher ao meu lado, mas não era uma tarefa fácil. Assim tão de perto, seu
perfume me envolvia e saber que ela estava a um palmo de distância do
meu toque só piorava a minha situação.
Você precisa transar!
Todas as mudanças que Dafne trouxe ao Bernard me fizeram deixar
de lado a minha vida pessoal para me dedicar exclusivamente ao
restaurante. Por esse motivo, não houve espaço para ninguém na minha
cama no último mês. Nem mesmo a Ingrid, uma vez que nossas agendas
não estavam batendo diante de nossa rotina de trabalho.
Para falar a verdade, a única coisa que permaneceu inalterada nos
meus últimos dias, mesmo em meio ao caos vivenciado, foi a relação com o
meu filho. Ele sempre foi a razão para eu não perder as esperanças, ser pai
do Vicente era o equivalente a ter cinco estrelas Michelin.
Seguindo o combinado, após a prévia gustativa do prato principal a
sobremesa foi servida. A escolha para compor o menu foi um Mont blanc,
isto é, suspiros cobertos com creme de castanhas portuguesas e recheados
com chantilly. Ao fim da experiência gastronômica proporcionada para a
apresentação do novo menu, os elogios se acumulavam, mas um em
particular me interessava.
— Eis o menu festivo que você tanto queria, aprovado?
— Ao contrário da sua pessoa, a sua culinária sempre terá a minha
aprovação — Dafne se virou em minha direção e vi a sinceridade através do
seu olhar. — Já posso anunciar as novidades nas redes sociais?
— A minha equipe aguarda apenas o decreto da rainha para iniciar
as atividades — fui agraciado com um sorriso estonteante.
— Por mim, colocamos todos os planos em prática. Inclusive,
amanhã mesmo podemos voltar a abrir no horário do almoço — afirmou
animada. — E vou pegar a Kedma emprestada para me ajudar a contactar
nossos clientes e oferecer nosso salão externo para pequenos eventos,
entrarei em contato com cerimonialistas e...
A empolgação dela era contagiante, as palavras saindo rápido pela
sua boca e as mãos gesticulando indicavam a sua animação.
— O que foi? — Perguntou diante do meu sorriso.
— Você ama o seu trabalho. Isso está evidente no seu olhar, na
forma que você fala, nas mil ideias criativas. O Bernard precisava de
alguém como você.
— Isso foi um elogio? — Ergueu a sobrancelha.
— Não conta para ninguém — cochichei e ela sorriu — agora, vou
deixar você trabalhar.
Fiquei de pé e caminhei em direção contrário aos meus
pensamentos.
 

 
Os dias se passaram e graças ao excelente trabalho nas mídias
sociais, rapidamente tivemos o primeiro evento no Bernard: um noivado. A
cerimonialista do casamento entrou em contato com o restaurante para
agendar a data e Kedma agiu conforme a minha orientação, colhendo as
informações iniciais: data e horário do evento, quantidade de convidados e
os dados de contato, informando que a equipe entraria em contato com o
orçamento. A equipe, no caso, seria eu. Ainda estava cedo para contratar
um funcionário para executar essa função.  Marquei uma reunião com a
cerimonialista e ela compareceu acompanhada da noiva. O contato foi
breve, a noiva estava atribulada com os preparativos do casamento, que
aconteceria poucos meses após o noivado.
Quando o dia do noivado chegou, eu alternava entre euforia e
nervosismo. Acompanhei de perto a ação da equipe de decoração que
trouxe o romantismo do momento através das peônias rosas. Fiz uma
reunião com os garçons incumbidos de servir os convidados para repassar
os últimos detalhes, reposição imediata de bebidas e pronto atendimento às
solicitações dos presentes. Para finalizar o meu dia, ainda tive que interagir
com o Nicolas. Precisava checar se da parte dele estava tudo em ordem e
recebi um largo sorriso, seguido da resposta de que eu deveria adicionar
umas gotinhas de calmante ao meu energético ou eu não chegaria viva ao
início da noite.
O pior era que o babaca tinha razão. Por trás dessa minha fachada de
comando, eu estava com os nervos à flor da pele, a noite de hoje tinha que
ser um sucesso, a cerimonialista era super influente no seu meio e uma
avaliação negativa dela seria a derrocada de um projeto que estava apenas
começando. Entretanto, esse meu temor não foi compartilhado com
ninguém e, arrisco, dizer que nem mesmo um mísero sinal de tensão
transpareceu do meu rosto no dia de hoje. Todavia o irritante Nicolas foi
capaz de detectar, ele parecia ter o poder de me decifrar apenas com um
olhar. E isso era assustador.
Pelo cronograma do dia, totalmente dedicado ao novo restaurante,
reservei uma hora para ir até em casa tomar um banho e me vesti para o
evento. Durante o meu trajeto para casa ainda pensava em como aquele
homem havia percebido minha tensão, mas assim que pisei os pés no meu
apartamento, tentei mudar o foco da minha mente. Ainda assim, não
demorou muito para que ele retornasse. Assim que borrifei meu perfume
lembrei do quanto ele detestava o meu cheiro, por causa disso sorri e passei
um pouco mais, ele serviria como escudo para mantê-lo a distância.
Cerca de uma hora depois eu estava de volta ao Bernard para
exercer a minha tarefa da noite: ser a hostess do noivado. Apenas uma parte
do restaurante estava reservada, a outra funcionava normalmente, por isso
decidi que Kedma continuaria no papel de hostess do Bernard e eu me
encarregaria de recepcionar os convidados dos noivos.
A noiva estava linda, em um vestido branco de renda, e exalava
felicidade pelos poros. Também demonstrava uma certa inquietação diante
do atraso do noivo, mas nada que apagasse o brilho no seu olhar.
Na medida que os convidados iam chegando, se identificavam e
logo eram conduzidos até o salão externo. Não pude deixar de recriminar
mentalmente a cerimonialista por não me fornecer uma lista com os nomes
dos convidados, isso facilitaria o meu controle. Independente disso, as
coisas corriam bem, o champanhe era servido e as pessoas estavam felizes.
De volta ao meu posto, onde agora conversava amenidades com
Kedma, um timbre conhecido se fez presente e não precisei erguer os olhos
para identificar o dono da voz.
— Dafne? —  A surpresa estava evidente no rosto marcado pelas
naturais rugas do tempo.
Não sei quem estava mais surpreso nesse momento: meus ex-sogros
ou eu. De todo modo, nos encaramos em silêncio por alguns segundos antes
que eu decidisse pôr fim ao silêncio constrangedor.
— Alberto, Cássia... Como estão? Sejam bem-vindos ao Bernard.
— Obrigada — minha ex-sogra respondeu agarrada ao braço do
marido.
— Esse lugar é seu? — Alberto perguntou desconfortável.
— Sim — mais silêncio foi servido nessa torta de climão. E Kedma,
que parecia pegar as coisas no ar, veio ao meu socorro.
— Os senhores possuem uma reserva?
— Não, estamos aqui pelo noivado do André e da Alana — as
palavras entraram pelos meus ouvidos e , por uma fração de segundos,
cogitei ter ouvido errado.
Existem um número infinito de Andrés pelo mundo.
Mas, definitivamente só existe um André cujos pais são Alberto e
Cássia Lima.
— O André, filho de vocês? — Questionei torcendo para que não
passasse de uma terrível coincidência.
— Chegaram antes do noivo e... — O tal do André apareceu e o
sorriso no seu rosto foi sumindo até se evaporar.
Ele era o noivo.
O noivo que um dia já foi o meu.
Admirei o homem que um dia fiz planos para o futuro. O
apartamento em frente ao mar, o nome de Sophia para a nossa primogênita,
a viagem de balão na Capadócia... Esses e outros planos se desfizeram do
dia para a noite. Assim, como o nosso amor. Por vezes cogitei se ele me
amou de verdade, porque não houve dúvidas de que o amei.
Mas não foi o suficiente.
Não para ele.
Entretanto, esse era um assunto mais que superado, cerca de dois
anos após o rompimento do nosso noivado estar diante dele apenas me
causou uma surpresa, pois jamais cogitei que o mozi das anotações que
Kedma fez e que Alana, a noiva, ressaltou na nossa reunião pudesse ser o
André.
Seus olhos verdes como esmeraldas me fitaram em um estado de
choque e eu gostaria de poder ler os seus pensamentos. Mais do que isso,
questionar o que mudou em tão pouco tempo que o fez estar pronto para
assumir a responsabilidade do matrimônio.
— A Alana sabe? — O questionamento de sua mãe foi o balde de
água gelada para nos acordar das nossas reflexões internas.
— Mãe, agora não é o momento — André direcionou o olhar além
dos pais, vigilante frente a uma eventual aparição da noiva.
— Quando é o momento? — Rebateu irritada, mas sem alterar o
tom de voz — onde estava com a cabeça quando marcou o noivado no
restaurante da sua ex-noiva?
— A senhora me ofende em achar que eu sou esse tipo de homem
— passou a mão pelos fios uniformes bagunçando-os durante o processo.
— Alana me disse que havia encontrado o lugar ideal, como eu poderia
imaginar essa infeliz coincidência?
— Se vocês quiserem, posso oferecer a minha sala para que essa
conversa aconteça com mais privacidade — comentei, notando que em
pouco tempo, o trio passaria a chamar a atenção.
— Não é preciso — André foi firme ao dizer — mãe, pai, coloquem
um sorriso no rosto e se juntem aos outros, não quero que a noite da Alana
seja estragada por algo irrelevante.
Dois anos e meio de namoro mais um ano de noivado, não era bem
o que chamaria de irrelevante.
— Você tem razão, estamos aqui para celebrar o verdadeiro amor!
— Alberto completou dando tapinhas nas costas do filho.
O verdadeiro amor!
A frase atingiu um lugar desconhecido em mim.
— Eu acompanho os senhores — Kedma tomou a dianteira
enquanto eu permanecia parada, mantendo a minha fachada de
autocontrole.
— Me junto a vocês em um segundo — André falou diante do olhar
inquisidor da mãe ao notar que ele não se moveu. — Por que não cancelou
a reserva quando descobriu que eu era o noivo? — A pergunta dita em um
tom sereno e quase inaudível estava carregada de acusação.
— Você acha que eu sabia? — Meu autocontrole falhou e elevei o
tom de voz, algumas cabeças se viraram em nossa direção e eu respirei
fundo antes de continuar. — Fui surpreendida tanto quanto você, só hoje
tomei conhecimento que o tal mozi da Alana é você.
— Ela não pode saber — franzi o cenho diante daquele comentário
— Alana não pode saber que fomos noivos, isso estragaria o momento tão
sonhado por ela.
— Coitada, ela não sabe que o mozi foi noivo? Você não contou a
ela que o seu noivado terminou devido ao medo de matrimônio?  —
Indaguei sorrindo.
— Para de me chamar de mozi — falou irritado.
— Por quê? Achei um apelido fofo — debochei.
— O que você quer, fazer uma cena?
— Você acha mesmo que eu faria uma cena por você? — Soltei uma
breve risada.
— Não sei, você parece com inveja do meu noivado.
— Você é patético!
— Eu sei que as coisas não terminaram como você gostaria, mas
não estrague a felicidade de outra mulher por mero capricho.
— Se nesse momento estou com vontade de contar para Alana sobre
a nossa relação, é apenas para abrir os olhos dela ao seu respeito. Que tipo
de homem esconde que teve um relacionamento de mais de três anos?
— Ela está grávida! — A revelação caiu como uma bomba no meu
colo — vamos contar hoje a nossa família e amigos.
Eu estava totalmente paralisada com a informação, mas fui
despertada pela noiva feliz.
— Mozi... — Uma Alana que desconhecia a realidade bem na sua
frente se aproximou e se jogou nos braços do André, que a segurou,
girando-a no ar arrancando gritinhos de felicidade.
— Você está perfeita — disse, ao colocá-la no chão.
— Eu te amo — a declaração foi acompanhada de um mero encostar
de lábios — vejo que você já conheceu a Dafne, a fada madrinha da noite
— desviei os meus olhos dela e me concentrei em André que se mantinha
sereno. — Mozi, está tudo como nos meus sonhos, a decoração, a música
ambiente, as comidas... Os convidados não param de elogiar a comida!
Meus pais já querem agendar a comemoração do aniversário deles aqui.
— Preciso ver isso com meus próprios olhos — ele sorriu para a
noiva.
— Você vai amar — André começou a conduzi-la ao encontro dos
convidados, mas ela parou para me encarar.
— Dafne, aguardo você no brinde principal. Você é parte
fundamental nessa noite.
— Fico lisonjeada, mas não poderei me juntar a vocês.
— Não vai fazer essa desfeita com uma gravida, né? — Sorriu —
estou esperando uma menininha, Ana Sofia será o nome dela.
— Parabéns — as palavras saíram com dificuldade.
— Aguardo você no brinde.
Senti meus olhos arderem, pisquei algumas vezes em uma tentativa
inútil de afugentar as lágrimas acumuladas. Mas nada disso diminuiu o
aperto na minha garganta, a sensação era que uma mão invisível estava em
volta do meu pescoço dificultando a minha respiração.
Você prometeu que jamais voltaria a chorar por ele!
Inspirei, sentindo o meu coração martelar contra o meu peito.
— Dafne, você está se sentindo bem? — Kedma indagou fitando-me
longamente, seu olhar transmitia preocupação.
— Sim... Eu preciso... Você se importa de assumir o meu posto por
alguns minutos?
— De jeito nenhum, leve o tempo que precisar — sorriu em
cumplicidade.
— Obrigada.
Deixei apressadamente o balcão evitando olhar para os lados e não
dar de cara com mais um rosto conhecido. Mas para minha sorte, o
conhecido que cruzou o meu caminho era um garçom e ele trazia a bandeja
de champanhe em uma de suas mãos.
— O destino colocou você no meu caminho — o homem me
encarou com espanto enquanto eu pegava uma taça da sua bandeja. Não
demorou mais que um minuto para que a taça fosse devolvida ao lugar de
origem. — Acho que vou precisar também dessa...
— A senhora deseja algo mais?
— Eu quero uma garrafa desta bebida na minha sala, por favor — o
garçom assentiu e eu sorri satisfeita.
Assim que fechei a porta atrás de mim a segunda taça estava vazia,
mas não a minha cabeça. A sensação era que havia várias vozes falando ao
mesmo tempo impedindo que eu enxergasse a situação com racionalidade.
Após o término da minha relação com o André não nos vimos mais. Pelo
que soube de amigos em comum, ele estava morando em outro estado. Quis
o destino que o nosso reencontro acontecesse hoje, no dia que descobri que
ele estava noivo e esperando uma filha que se chamaria Sophia, o mesmo
nome da nossa futura filha, me desestabilizou mais do que eu gostaria de
admitir.
Deitei no sofá e fechei os olhos.
— A corretora acabou de me ligar, o cliente à nossa frente desistiu!
Somos prioridade da compra. Já mandei mensagem para o advogado para
agilizar a parte burocrática — comentei animada quando ele retornou à
sala de jantar com a pizza.
— Dafne, eu preciso te contar uma coisa.
— Ai, não me diz que você esqueceu de pedir a borda recheada de
cheddar mais uma vez. — Eu amava pizza com borda recheada, mas o
André sempre esquecia de pedir, já que ele não gostava tanto.
— Não vamos mais comprar a casa — a informação me pegou de
surpresa.
— Aconteceu alguma coisa com a empresa?
— Não.
— Então, por que mudou de ideia?
Abri a caixa de pizza, o cheiro de queijo derretido exalou pelo
ambiente, com a mão mesmo peguei uma fatia sabor lombo canadense e
levei em direção a minha boca, mas não cheguei a completar a ação.
Fiquei paralisada com a sequência de palavras que ouvi.
— Quero que saiba que eu gostaria que existisse uma outra forma
de dizer isso... — A tensão se espalhou pelos meus músculos, pois eu sabia
que nada de bom seria dito após aquela introdução. — Não me olha
assim...
— Qual o problema no jeito que te olho? — O meu apetite tinha ido
para o ralo, por isso devolvi a pizza à caixa.
— Você parece que vai chorar a qualquer momento e eu não
cheguei nem ao cerne do problema.
— Desculpa por não atender às suas expectativas de como me
portar após receber um balde de água fria — ironizei.
— Você acha que para mim é fácil atender as suas expectativas,
além das da sua família?
— De que merda você está falando? — Um novo sentimento se
apossou de mim: raiva. A minha família era o meu calcanhar de Aquiles e
não permitiria que eles fossem trazidos à tona em uma discussão de casal.
— “Já está na hora de agilizar o casamento para encomendar o
meu netinho” “E o meu netinho, André?” “Quando a sua amada sogra vai
receber a feliz notícia que tem um bebê de vocês a caminho?” Escutei essas
frases feito um disco arranhado da sua mãe antes mesmo do anúncio do
nosso noivado — André não escondeu a irritação ao repetir as falas — o
noivado serviu para cair a ficha que não tinha como fugir das obrigações
que o matrimônio acarreta.
— Aonde você quer chegar com esse papo?
— Não estou pronto para assumir a responsabilidade do
matrimônio e as suas eventuais consequências. Não vejo um filho com a
vida que levo hoje...
— Ter filhos sempre fez parte das nossas conversas, chegamos até
estipular uma data: daqui a cinco anos.
— Essa é a questão, esse futuro próximo. Não consigo me enxergar
mais nele, eu...
— Você conheceu outra pessoa? — Fui direto ao ponto.
— Eu não te traí, se é o que você quer saber.
— Teve vontade?
— NÃO! — Sentenciou — não há ninguém entre nós. Apenas
reavaliei a minha vida e cheguei à conclusão de que o noivado foi
precipitado. Não estou pronto para assumir as responsabilidades, sou
jovem demais para esse passo tão importante.
Duas lágrimas rolaram pelo meu rosto e rapidamente as sequei.
— Dafne, você é uma mulher incrível...
— Eu sei que sou.
— Não é nada com você...
— Será que você pode parar de falar esses clichês de término!? Eu
sei que sou incrível, sei que não fiz nada que pudesse ser motivo para que
você chegasse à conclusão de que o noivado, noivado esse cujo pedido
partiu exclusivamente de você, fosse reavaliado e considerado precipitado.
Estou errada?
— Não, mas eu não sou o algoz dessa história. Na verdade, acho
que somos vítimas de uma pressão social...
— Pressão social? — Ri em deboche — do que você está falando?
Estamos juntos há três anos e meio, era meio que um caminho natural:
casar, ter filhos... Tão natural que partiu de você o pedido de casamento.
— Talvez eu tenha sido influenciado pelos casais ao nosso redor.
— Agora fui pedida em casamento por influência dos outros?
— Não, você foi pedida em casamento porque eu te amava — o
verbo no passado chicoteou o meu coração — mas não posso negar que
houve uma influência externa, nossos amigos estavam todos noivando ou se
casando...
— Você é ridículo, André!
— Eu sou ridículo por não querer mais me casar com você?
— Não, você é ridículo por não conseguir assumir as suas vontades
e se esconder atrás dos outros.
— Não vamos mais nos casar, o noivado está desfeito. É isso que
você quer ouvir?
Fitei em silêncio o homem que me pediu em casamento em uma
cerimônia surpresa. Era estranho pensar que o mesmo homem que, por
livre e espontânea vontade, planejou o nosso noivado, agora estava se
sentindo sufocado pelas suas próprias decisões. Era doloroso constatar a
fragilidade da nossa relação, pois o esperado era que ele tivesse
compartilhado seus medos comigo. Justo eu que sempre pautei a nossa
relação no diálogo e na confiança, o que ele achou que eu iria fazer? Me
agarrar em suas pernas e suplicar que mudasse de ideia? Ainda que eu o
amasse e estivesse profundamente triste jamais faria isso, não nas
circunstâncias em que o homem que amo diz que não vislumbrava uma vida
ao meu lado.
— Você não vai dizer nada?
— Há ainda algo para ser dito?
— Não.
— Foi o que eu pensei. Você já tomou a sua decisão e eu estou com
a consciência tranquila de que jamais o obriguei a noivar comigo, muito
menos manter uma relação quando você não estava mais feliz.
— Eu fui feliz ao seu lado, você sabe disso.
— Eu não sei... Olho para você e a sensação é de que nunca te
conheci — as lágrimas ressurgiram em um choro silencioso.
— Não queria te fazer sofrer... — A mão dele se colocou sobre a
minha e encarei a aliança.
“A minha vida é mais feliz ao seu lado” foram as palavras que
antecederam o momento em que ele deslizou o anel de noivado pelo meu
dedo. Era irônico pensar que fui de motivo de felicidade a angústia em um
piscar de olhos. Afastei-me do seu toque, assim como das emoções
turbulentas que ameaçavam me dominar, mais um segundo na frente dele e
eu iria desabar em um choro desolador. Mas antes precisava dar sequência
ao rito de separação, retirar o símbolo da nossa união.
O anel que parecia grudado a minha pele foi retirado com certa
dificuldade, assim que ele saiu por completo a sensação de perda se fez
presente. Mas não havia mais volta.
— Adeus, André. — Depositei a aliança sobre a mesa, levantei-me e
caminhei em direção a saída do seu apartamento.
Aguardei com esperança de que a sua voz chegasse até mim quando
eu tocasse a maçaneta, mas o seu silêncio falou mais do que qualquer
palavra.
Era o nosso fim.
Você é patética, Dafne! Pensei em voz alta enquanto me servia de
mais champanhe. Encarei a garrafa pela metade, pensando que talvez mais
uma seria necessária para exorcizar os fantasmas do passado.
 

A celebração do noivado tinha sido um sucesso, pelo menos foi o


que chegou aos meus ouvidos durante a noite. Isso era recompensador, pois
a equipe da cozinha não parou por um segundo, conciliando o atendimento
do salão e os pratos do noivado. Quando encerramos o expediente da
cozinha, anunciei que tinha um compromisso. Era hora de dedicar um
tempo para mim e eu tinha uma pessoa especial que cuidaria com maestria
disso. Precisava apenas de uma pausa para o banho, por isso minha saída foi
antecipada.
— Até amanhã, Kedma. — Me despedi da minha eficiente hostess.
— Até... — Ela me olhou como se quisesse me contar algo.
— Aconteceu alguma coisa?
— A Dafne... — hesitou — O chef sabe dizer se ela está bem?
— Por que não estaria? — Franzi o cenho. A última vez que vi
Dafne ela parecia bem, estava irritada com a minha presença. Mas, bem.
— Ela está trancada na sala dela há algumas horas.
— Deve estar tendo mais alguma ideia na tentativa vã de trazer fios
brancos à minha cabeça — Sorri.
— É, deve ser isso.
— Ocorreu algum incidente envolvendo a Dafne hoje à noite? —
Ela não demonstrou nenhuma reação de que me contaria se algo tivesse
acontecido. — Vai omitir de mim? — Arqueei a sobrancelha.
— A minha discrição é um dos motivos pelo qual me contratou.
Mas se posso revelar algo é que a Dafne se recolheu em sua sala, pouco
depois de pedir uma garrafa de champanhe ao Aloísio.
Dafne, não era do tipo que bebia em serviço. O que me fez acender
um sinal de alerta. O celular vibrou no bolso da minha calça, peguei o
aparelho e conferi a notificação, era da Ingrid, a minha ex. O nosso
casamento chegou ao fim, mas continuamos nos relacionando sexualmente,
nesse campo nos entendíamos muito bem.
Estou te esperando.
A mensagem foi acompanhada por uma foto da sua bunda arrebitada
usando fio dental vermelho. A foto era uma provocação as nossas últimas
mensagens, Ingrid confessou que queria um sexo mais violento e que não
via a hora de sentir os meus dedos contra a sua pele. Anseio esse que eu
também compartilhava. Por alguns segundos, a minha conversa com Kedma
ficou de escanteio e debrucei a minha atenção no conteúdo à minha frente.
Devolvi o celular ao bolso, ciente de que eu deveria entrar no carro,
seguir até a farmácia para comprar preservativos e depois acelerar até
chegar ao encontro de Ingrid, mas Dafne estava no meio do meu caminho.
Eu precisava ver se estava tudo bem com ela para poder curtir a minha noite
em paz.
Porra Nicolas, não acredito que você vai deixar a Ingrid
esperando!
Seria apenas por alguns minutos, constataria que Dafne estava em
uma comemoração solitária pela noite espetacular e partiria para a minha
comemoração particular.
Alguns passos apressados depois, estava de frente a sala que um dia
já foi a minha e tudo estava no mais profundo silêncio. Talvez ela já tenha
ido embora sem que ninguém notasse. De toda forma, bati com os nós dos
dedos na porta fechada e não obtive nenhuma resposta. A luz permanecia
acesa no interior, insisti mais algumas vezes e nada aconteceu, por isso
decidi entrar sem esperar pelo convite. Girei a maçaneta e encontrei Dafne
deitada no sofá, as pernas esticadas na parede, os pés desnudos e os olhos
fechados. Abaixo dela estavam o par de saltos pretos e uma garrafa vazia de
Moët & Chandon. A princípio, não havia nada anormal na cena diante dos
meus olhos, com exceção de que era a Dafne nessa posição. A introspecção
do momento não combinava com a mulher de personalidade expansiva.
Ou talvez ela apenas esteja dormindo.
Me aproximei, com passos leves para não a assustar, a intenção era
despertá-la e colocá-la dentro de um táxi, já que, ela não tinha condições de
dirigir. Agora de perto, pude ver todas as nuances do seu rosto, as maçãs do
rosto sobressaltadas e coradas, os lábios volumosos e o nariz arrebitado, a
pele parecia macia, instintivamente levei meus dedos em direção ao seu
rosto para sentir a sua maciez na ponta dos meus dedos. O ato foi flagrado
pelos olhos azuis sedutores que se abriram e me olharam, pela primeira vez,
com felicidade ao me ver.
— Você! — Ela sorriu, o sorriso iluminando todo o seu rosto.
— Você está bem? — Arqueei a sobrancelha.
— Estou ótima — disse, enquanto girava o corpo e se sentava —
talvez um pouquinho tonta... — Sorriu.
O segundo sorriso do dia destinado a mim. Kedma tinha razão, ela
não estava bem.
— Vou pedir um táxi para você.
— Está querendo me enxotar do meu próprio restaurante? — Mais
um sorriso.
— Estou querendo evitar que você vomite no nosso restaurante e se
envergonhe disso no dia seguinte.
— Você tem razão, embora eu não esteja bêbada a esse ponto.
— Eu ouvi direito? — Ergui a sobrancelha. — Você acabou de
concordar comigo?
— É raro, mas às vezes você diz as coisas certas.
— O que aconteceu com você, bateu a cabeça e perdeu a memória?
— Provoquei.
— Nenhuma pancada na cabeça me faria esquecer essa noite — o
tom melancólico não passou despercebido.
Dafne pegou os saltos em uma mão e na outra envolveu a bolsa que
estava sobre o sofá, ficou de pé e me fitou intensamente.
— Por que você não me conta o que aconteceu?  — Acariciei o seu
rosto com o polegar e seus lábios se entreabriram, mas não foi dessa vez
que arranquei algum som da sua boca. A pele de Dafne parecia um veludo,
o seu pescoço cheirava ao mais delicioso dos perfumes, eu sentia a sua
respiração ofegante próxima demais.
— Não quero falar sobre isso.
— O que você quer, Dafne? — Meu toque seguiu até os lábios
macios, deslizando de um lado para o outro, sentindo em meu dedo o que
eu queria sentir com a minha boca. E dessa vez um suspiro escapou dos
seus lábios.
— Beijar você.
Com isso, ela inclinou a cabeça e me beijou.
Assim que a sua boca tocou a minha, o meu corpo se desligou do
meu cérebro e se entregou ao absoluto prazer de ter Dafne em meus braços.
A pressão dos seus lábios nos meus era suave, no entanto, se alastrou pelo
meu corpo em uma chama ardente. Cada célula e terminação nervosa do
meu corpo reagiu ao seu beijo. Não foi preciso muito para que eu sentisse o
meu pau tomando forma embaixo da cueca.
Puta que pariu!
A mulher havia me deixado de pau duro apenas com um beijo.
Eu já havia beijado inúmeras bocas e sabia que nem sempre o
primeiro beijo funcionava. Às vezes não rolava química ou o beijo não
encaixava mesmo, os narizes se chocavam e o ângulo perfeito não era
encontrado. Mas não, definitivamente não era o nosso caso. A boca de
Dafne parecia ter sido feita para os meus lábios, para que as nossas línguas
se conhecessem daquela maneira. As mãos que antes estavam inertes
iniciaram a exploração, seus dedos se enfiaram por baixo da barra da minha
camisa e minha pele se arrepiou quando a sua unha arranhou suavemente a
extensão do meu abdômen. Me agarrei ao último fio de sanidade e recuei
ligeiramente, roçando os lábios no dela em uma carícia provocante.
— Me diz quão bêbada você está?
— Menos do que eu gostaria, afinal ainda continuo te achando
detestável e atraente ao mesmo tempo — revelou com um sorriso diabólico
nos lábios.
— Dafne...
— Cale a boca e volte a me beijar.
Era o incentivo que eu precisava para me perder por completo em
sua boca.  Dessa vez o beijo foi mais ávido, possessivo até, com os meus
lábios dominando e exigindo que ela se rendesse ao meu ritmo. Dafne
pressionou cada vez mais o seu corpo contra o meu, envolvendo os braços
ao redor do meu pescoço, esfregando-se sem o menor pudor contra a minha
ereção.
Minhas mãos tatearam as suas costas até encontrar o zíper do
vestido, com um só puxão me livrei da peça que impedia o contato da nossa
pele, a peça caiu em um baque surdo no chão e contemplei a bela mulher
diante dos meus olhos usando apenas uma calcinha pequena de renda preta.
Fui surpreendido pela ausência do sutiã, uma surpresa deliciosa, os bicos
rosados dos seios médios e firmes apontavam em minha direção, clamando
pelo toque.
— Gostosa pra caralho! — Foi tudo que eu consegui dizer diante da
sua beleza estonteante.
Ela sorriu, uma risada contagiante.
— Tire a roupa para que eu possa devolver o elogio.
Não sei se era o nervosismo diante do seu olhar ou os malditos
pequenos botões da camisa que não facilitavam, mas eu me atrapalhei um
pouco com as primeiras casas de botões. Mas assim que o obstáculo foi
superado, joguei no chão e rapidamente me livrei dos sapatos, meias e por
último da calça.
Minha cueca branca estava marcada pela ereção que implorava pelo
seu toque.
— Gostoso pra caralho! — Ela umedeceu os lábios.
Um passo foi dado em minha direção e a sua mão se colocou sobre
o meu pau.
— Sem joguinhos Nicolas, você sabe o que eu quero.
Minha mão foi ao encontro das sua coxas, para levantá-las e passa-
las pelo meu quadril, as pernas dela se fecharam ao meu redor. Guiei o seu
corpo até o sofá e me sentei com ela montada sobre mim. O meu desejo era
prolongar essa noite, tomar o seu gosto nos meus lábios e fazê-la
estremecer, gemendo alto enquanto eu bebia, mas Dafne pressionou o corpo
sobre o meu, o movimento dos quadris dela contra meu corpo rígido
disparou centelhas de prazer pelo meu corpo, gerando uma sensação tão
intensa que se vacilasse eu não resistiria e gozaria apenas com a fricção dos
nossos sexos.
— Dafne... — Seu nome saiu em um murmúrio quando ela me
beijou na base do pescoço.
Senti a pressão dos seus lábios na região, suave o suficiente para não
deixar marcas, mas forte o suficiente para enlouquecer o mais são dos
homens. A carícia prosseguiu, seus lábios foram subindo até mordiscar o
lóbulo da orelha, arrancando um grunhido dos meus lábios.
— Eu estou pingando de desejo por você... — Sussurrou ao meu
ouvido.
Afastei a calcinha para o lado e meus dedos comprovaram o que ela
dizia. Não ficaria surpreso se dois dedos deslizassem com facilidade pela
sua boceta. Provoquei sua abertura, acariciei os grandes lábios, mas sem
penetrá-la. Cheguei em seu clitóris, esfreguei ali, ela entreabriu os lábios e
em seguida gemeu, o corpo inteiro se entregando ao prazer.
Dafne se esfregou ao encontro da minha mão, impaciente, desejando
que meus dedos se enterrassem dentro dela. Ela queria mais e eu atenderia o
seu pedido, de uma forma prazerosa para ambos, ergui Dafne o suficiente
para libertar o meu pau da cueca, ela afastou a calcinha para o lado e voltou
a sentar no meu colo.
Centímetro a centímetro, senti a sua maciez me abraçar e sorri
quando ela, inquieta, movimentou os quadris e me envolveu por completo.
Senti o meu pau pulsar dentro dela por alguns antes de começar a mover os
quadris rapidamente, preenchendo-a por completo. Dafne puxou meu rosto
para si e eu engoli os seus gemidos.
Eu a fodi rapidamente e ela me recebeu bem e me expulsou,
elevando os quadris em sincronia com os meus movimentos. Minha
respiração ficou ofegante, meu coração aumentou o ritmo, meu sangue
passou a correr mais rápido em minhas veias enquanto eu entrava e saía
diversas vezes.
Dafne acompanhou o ritmo dos movimentos, e a cada nova estocada
mais forte e mais profunda, os gemidos se tornavam menos controlados.
Segurei um dos seios com a mão em concha, e ela reagiu em ruídos de
prazer. Quando segurei o mamilo com os dedos em uma pressão suave, ela
mordeu os lábios para não gritar.
— Tente não gemer alto — foi o meu aviso antes de abocanhar o
mamilo inteiro, sugando o seio macio.
— Nicolas... — Suplicou, me segurando pelos cabelos e puxando-
me para mais perto.
Dafne passou as pernas ao meu redor, me abraçando, aumentando a
intensidade dos movimentos. Ali, preso a ela, minha boca se dedicou ao
outro seio enquanto eu ia mais fundo entre suas pernas.
Lábios, chiados e calor.
Tudo sentindo na máxima potência de sensações.
Um beijo longo e intenso calou os nossos gemidos quando o prazer
despontou em nós. Meus braços deslizaram pelas suas costas, puxando-a
ainda mais para mim e pude sentir o toque quente dos seus seios em
encontro ao meu peito. Estoquei uma, duas, três vezes até sentir ela se
tremer inteira, anunciando que estava sentindo o mesmo prazer avassalador
que já me dominava.
Dafne gozou e a visão dela se desmanchando de prazer em meus
braços, foi a gota d’água para que eu chegasse ao ápice também. Um som
gutural escapou dos meus lábios quando a preenchi com o fruto do meu
prazer mais intenso.
 

A culpa era do champanhe.


A quem mais eu poderia atribuir a culpa pelo que tinha acabado de
acontecer? O beijo havia sido uma decisão minha, um acerto que logo se
comprovou quando as nossas bocas se encontraram, em um beijo saboroso
e excitante. Beijar Nicolas foi o fio condutor que me levou a sensações
intensas, meu corpo se entregou sem demonstrar a menor resistência ao seu
toque. Tudo em mim ansiava por ele e ele me deu mais do que eu podia
aguentar. Mãos, pau e boca trabalharam em sincronia para me levar ao mais
delicioso dos orgasmos. Minutos depois de estremecer em seus braços, eu
ainda o sentia pulsando dentro de mim.
Saí do seu colo e ignorei a sensação de pesar que o meu corpo
emitiu com o fim do toque, a expressão de Nicolas era do mais puro deleite.
Ele estava absolutamente lindo, suado e com cara de safado. Seu sorriso
irritantemente largo que em dias normais me desconcertava, agora parecia
um imã. Atraindo minha boca de encontro a sua. Antes que meus instintos
me guiassem até ele, abaixei, peguei o vestido e corri para o lavabo que
tinha naquela sala.
Através do pequeno espelho redondo vi que a minha expressão não
era diferente da dele, havia um sorriso involuntário nos meus lábios. Lábios
inchados. Toda a extensão de pele do meu colo estava avermelhada, passei
os dedos ali, traçando o caminho que a  barba em crescimento havia
passado. Tudo em mim indicava que eu havia fodido com o meu parceiro de
negócios e quem nos visse saberia identificar facilmente o que rolou na
minha sala. Estranhamente, nada disso foi o suficiente para diminuir a
euforia que percorria as minhas veias.
Muitos minutos depois de fazer xixi, saí do lavabo. Dei de cara com
um Nicolas, completamente vestido, recostado na parede, braços cruzados e
uma expressão indecifrável.
— Você está bem? — Balancei a cabeça em afirmação enquanto me
sentava no sofá para calçar as sandálias — Ficou tempo demais no
banheiro...
— Virou fiscal de sanitário?
— Só achei que podia estar passando mal, cheguei até a encostar o
ouvido na porta, mas não ouvi nada além da descarga acionada.
— Que tipo de fetiche esquisito é esse? — Fiz uma careta.
— Nossa relação evoluiu a ponto de falarmos abertamente sobre
fetiches? — Ergueu a sobrancelha.
— Não existe nossa relação — fiquei de pé e o encarei — nos
deixamos levar pelo momento, foi gostoso, mas não irá se repetir. Somos
adultos e nada disso irá afetar a nossa parceria comercial.
— É claro, somos adultos.
— E adultos fazem grandes merdas e lidam com elas com a maior
naturalidade no dia seguinte.
— Foder comigo é uma das suas grandes merdas? — Sorriu.
— A maior de todas em anos — ele emitiu uma risada alta e
calorosa, que me envolveu como um abraço quentinho. — Humm, só para
eu anotar na minha agenda a escala de merda que atingi ao ficar com você:
Você e a mãe do Vicente são...
— Divorciados — respondeu antes que eu concluísse a pergunta.
— Graças a Deus, é a segunda família que evito a destruição em um
só dia — ele me olhou em completa incompreensão. — Longa história que
envolve ex, a sua atual noiva e um noivado aqui no Bernard.
— Eu estou interessado nessa história.
— Já eu, estou começando a me sentir enjoada... Não comi nada
essa noite.
— Posso te preparar um sanduíche e em troca você me conta a
história.
— Como você é fofoqueiro — constatei.
— E aí, é pegar ou largar? — Meu estômago respondeu por mim ao
emitir um ruído alto e vergonhoso. — Vem, vamos alimentar essa lombriga.
— Como você é bobo!
Para o meu alívio não cruzamos com nenhum funcionário pelo
caminho, mas o mesmo não se repetiu na cozinha. Uma mulher de costas
para nós ocupava o tanque de louças e Kleber estava debruçado sobre a
bancada em inox escrevendo em um bloco de anotações. O homem ergueu a
cabeça, primeiro seu olhar encontrou Nicolas e logo depois chegou até
mim, se ele pensou em algo a respeito não demonstrou.
— Você não tem uma família de gatos para alimentar? — A
pergunta de Nicolas quebrou o silêncio.
— Eu já estava de saída. Selma, você já acabou por hoje, né?
— Só estou esperando finalizar o processo da máquina de lavar
copos — girou o tronco para responder e não disfarçou a surpresa ao me ver
na cozinha. Aquele era um espaço inabitado por mim.
— Isso pode ser feito amanhã.
— Kleber tem razão, boa noite Selma.
— Boa noite, até amanhã.
— Até. — Respondemos ao mesmo tempo.
— Eu envio a lista de compras por mensagem — Kleber destacou o
papel apressadamente.
— Kleber pode dispensar os outros funcionários, eu mesmo fecho
restaurante.
— Sim chef, com licença.
— Agora sim eles vão ter a certeza de que aconteceu algo entre a
gente.
— Por que é tão ruim assim a ideia de estar comigo?
— Eu sou discreta nas minhas relações, assim como não envolvo
trabalho e prazer. Tenho pavor só de imaginar que eles podem falar pelos
cantos que estou trepando com o chef.
— Eles não vão falar nada, pode ficar tranquila — olhei com
descrença — e em caso hipotético do seu temor se concretizar, será a
primeira e última vez que dirão qualquer coisa ao seu respeito — a
intensidade com que as palavras foram ditas me fez acreditar nele.
Encostada na bancada de inox, assisti Nicolas se movimentar pela
cozinha, em uma espécie de dança sensual. Seus gestos e a forma como as
suas mãos trabalhavam os ingredientes me hipnotizaram, era evidente o
quanto ele se sentia à vontade naquele espaço, o homem trazia um brilho no
olhar preparando um simples sanduíche. Engano meu, nunca era uma
simples comida quando preparada por ele. Assim, o sanduíche de peito de
peru com queijo branco e molho rosé se transformou em um prato
sofisticado em pouco tempo. Coca-Cola sem açúcar fez companhia ao
prato.
— Voilà.
— Merci. — falei pouco antes de abocanhar um grande pedaço —
muito bom! —  Elogiei com a boca cheia.
Dona Dinamares teria uma síncope se me visse nesse momento.
Em um silêncio confortável, comemos os nossos sanduíches, ao
término do lanche fiz questão de lavar os pratos, mas minha oferta foi
recusada. E foi ele próprio deixar a sua cozinha limpa.
— Você é testemunha do quanto eu estava animada desde que o
Bernard abriu o salão externo para eventos — comecei a narrar os
acontecimentos, Nicolas apenas assentiu e prosseguiu esfregando a esponja
com detergente na louça branca. — Quando o primeiro cliente nos
contactou eu fiz uma ridícula dancinha da vitória no meu escritório.
— Gostaria de ter presenciado essa dança.
— Jamais — sorri — tal foi a minha surpresa que um noivado
inauguraria isso, conversei com a cerimonialista e a noiva, uma jovem
apaixonada e que não cansava de repetir o quanto queria que essa noite
fosse perfeita. Eu prometi que seria e cumpri até o fim a minha promessa.
— E onde entra o ex babaca?
— Eu nunca disse que ele era babaca.
— Ele deixou você escapar, é claro que é babaca.
Meu coração deu uma cambalhota, parou e voltou a bater
descontroladamente.
Não fode comigo, coração.
— Ele era o mozi, o noivo da jovem apaixonada.
— E você só descobriu hoje?
— O que você acha? — Questionei. — No calor da emoção acabei
não me atentando ao nome do casal de noivos para fazer a reserva. Apenas
escrevi “noivado da Alana” na minha agenda. Kedma escreveu mozi em
algumas das suas anotações e ficou por isso mesmo. O noivo em questão
era o mesmo homem que alguns anos atrás desfez o nosso noivado sob a
afirmação de que não estava pronto para a responsabilidade do matrimônio.
Mas não é o fato dele seguir a vida adiante que me incomodou, mas sim ele
esconder que tivemos uma história, como se o que vivemos não tivesse sido
importante... Pra completar ele pediu que eu não estragasse a felicidade da
sua noiva, como se eu fosse esse tipo de pessoa. Não fui nem quando era
mais jovem e inexperiente, não seria agora que eu me transformaria na
pessoa que fica feliz com a desgraça alheia.
Me dei conta de que precisava desabafar quando as palavras saíram
com facilidade da minha boca, o fato do meu interlocutor ser um bom
ouvinte e não demonstrar pena ou julgamento do que era relatado me fez
continuar.
— Eles estão esperando um bebê e um dos nomes que ele deu é o
mesmo que planejamos para nossa filha: Sophia.
— Um grande cuzão.
— É, um grande cuzão! — sorri — Desde que o reencontrei não
paro de pensar na Alana. Acho injusto que ela não saiba de verdade o tipo
de homem que ele é. Fico me perguntando se eu deveria procurá-la e contar
a verdade. Talvez ela nem acreditasse em mim e me tirasse com a ex louca e
ciumenta — dei de ombros.
— Você ainda o ama?
— Não, o meu amor por ele murchou no dia do nosso término e
morreu pouco tempo depois — não hesitei em responder porque era a mais
pura verdade.
— Então, não vejo motivos para gastar a sua energia com ele. Sei
que há uma parte em você querendo acolher a noiva apaixonada que você já
foi um dia, mas acredito que não há nada que possa ser dito que o tempo
não se encarregue em mostrar.
— Você engoliu um biscoito da sorte e agora está reproduzindo
pílulas de autoconhecimento? — Nicolas gargalhou em resposta.
— Vivi bastante coisa ao longo dos anos, já não sou mais um
jovenzinho.
— As rugas no seu rosto denunciam que passou dos trinta faz algum
tempo — provoquei.
— Ser pai me trouxe dezenas delas — sorriu — aposto que você
causou diversas no seu.
— Sempre fui uma filha exemplar, o meu irmão mais velho sim,
aprontou bastante.
Por que eu estava falando da minha família com o Nicolas?
— Tenho que eu ir, amanhã eu acordo cedo — ele percebeu a minha
mudança brusca de comportamento.
— Eu te levo em casa.
— Não, eu pego um táxi. Obrigada pelo sanduíche.
Agradeci, e me preparei para sair em disparada da cozinha, mas ele
me chamou.
— Dafne, eu fui um objeto de vingança contra o seu ex?
— Não, mas se fosse teria sido uma deliciosa vingança.
Fiz o caminho de volta a minha sala, catei rapidamente, bolsa,
chaves e celular. Com o aparelho em mãos solicitei o carro através do
aplicativo e o destino conspirou a meu favor, pois o motorista estava a três
minutos de distância. Me dirigi até a entrada do restaurante e senti a
aproximação de Nicolas atrás de mim, mas não me movi para não cair em
tentação. O carro branco surgiu a poucos metros da entrada do restaurante e,
com as mãos trêmulas, girei a chave liberando a minha saída, pronta para ir
para casa arquivar a noite intensa.
— Até amanhã, Dafne.
A lembrança de que os adultos lidavam com as escolhas erradas no
dia seguinte me atingiu por completo.
*
Passei os dias seguintes do pós-sexo com o gostoso e irritante
Nicolas evitando-o. Não deixei de ir ao Bernard, afinal era o meu trabalho,
mas restringi o meu espaço exclusivamente a minha sala. Até as minhas
refeições aconteceram nesse espaço, saindo apenas para reuniões com
clientes interessados em conhecer o ambiente externo e reservá-lo. Em uma
dessas noites Nicolas estava no salão atendendo a um dos inúmeros pedidos
diários para conhecer o chef, ele destinava o seu sorriso e atenção a um
pequeno grupo de mulheres que o olhavam como se ele fosse o prato
principal da noite.
— Aquele é o chef? — Voltei a atenção ao casal à minha frente,
dona Odete e seu Getúlio, como eles fizeram questão de serem chamados,
estavam ali porque decidiram celebrar as bodas de 50 anos de casados no
Bernard.
— Sim.
— Será que podemos dar uma palavrinha com ele?  — O marido
pediu.
— Com certeza — busquei o garçom mais próximo com o olhar e,
quando se aproximou, pedi que ele repassasse a Nicolas o recado. Para a
evidente tristeza das mulheres, ele deixou o grupo e caminhou em nossa
direção.
— Boa noite, em que posso servi-los? — O olhar dele passeou entre
o casal e se fixou em mim.
— Boa noite, eu sou o Getúlio e essa mulher linda ao meu lado é a
Odete — durante a o tempo em que estava com eles notei que, o tempo
inteiro o seu Getúlio era afetuoso e carinhoso com a esposa. Ela retribuía o
carinho na mesma intensidade. Alguns minutos na companhia deles e eu
logo compreendi o segredo da relação longeva: amor e respeito.
— É um prazer conhecê-los.
— A querida Dafne foi testemunha dos nossos extensos elogios a
sua culinária e como estamos felizes em poder celebrar bodas de 50 anos no
seu restaurante.
— 50 anos de uma história linda de amor, presumo — Odete sorriu
para o esposo, que acariciou a sua mão.
— Eu poderia repetir os motivos pelos quais continuo acordando e
dormindo amando a mesma mulher nesses 50 anos, mas a querida Dafne
não merece ouvir mais uma vez a ladainha de um velho apaixonado —
sorriu.
— Mais tarde, em seus braços, tenho certeza de que essa linda
jovem vai contar a nossa história de amor para você... — Dona Odete tinha
acabado de sugerir que Nicolas e eu tínhamos uma relação?
— Dafne e eu somos apenas parceiros de negócios — ele se
apressou em esclarecer.
— É, a nossa relação é exclusivamente profissional — confirmei.
— Me desculpem pelo inconveniente, é que eu sempre tive uma
intuição para identificar casais, devo ter perdido essa capacidade com os
anos, nunca havia falhado antes — sorriu.
— Ou eles apenas não perceberam que foram feitos um para o outro.
— Seu Getúlio completou.
— Nicolas e eu somos como água e óleo, incompatíveis.
— Você tem razão quando diz que dois líquidos imiscíveis não se
misturam. Isso porque, quimicamente falando, as moléculas de água são
polares enquanto as de óleo não, impossibilitando dessa forma a mistura.
Entretanto, se batermos ambos no liquidificador, resultará em uma mistura
homogênea e instável, essa mistura resulta em um processo chamado
emulsão. As emulsões estão muito mais presentes no nosso cotidiano do
que imaginamos. Na maioria das vezes, é na cozinha que as encontramos.
Eu não entendo de cozinha como entendo de química, mas o chef Nicolas
pode falar com mais propriedade do assunto — Odete finalizou.
— Ela tem razão Dafne, a emulsão resultada da mistura água e óleo
pode ser encontrada na maionese e na manteiga, por exemplo, dois
ingredientes bastante saborosos.
— Mas somos pessoas e não alimentos, então eu mantenho o que eu
disse sobre a nossa incompatibilidade.
— Fatos anteriores derrubam a sua tese... — Ergueu a sobrancelha.
— O senhor queria dar uma palavrinha com o Nicolas, não é? —
Desconversei, sentindo meu rosto arder.
— Sim, eu queria saber se é possível fazer um prato separado para a
minha Odete, ela é hipertensa e em casa abolimos o sal. Mas se não for
possível, não tem problema, a gente ainda vai fechar com vocês.
— Eu já disse a ele que um dia só não vai matar essa velha.
— Quem ama, zela — ele deu um beijo na mão da amada.
— Seu Getúlio está certo — Nicolas sorriu — cuidarei
especialmente do prato da Odete para garantir que não haverá um grama de
sal na sua refeição.
— Muito obrigada, meu filho.
— Não há por que agradecer, agora se me dão licença preciso voltar
a minha cozinha. Deixo vocês em boas mãos.
— Dafne é um encanto de pessoa.
— Se eu fosse você investiria nessa emulsão.
— Só falta ela querer — Piscou para mim, antes de se afastar.
Era óbvio que não passava de mais uma provocação do Nicolas.
Desviei o olhar das suas costas largas e encontrei expressões
sorridentes me encarando.
— Se eu posso dar um conselho para você, deixa de ser boba e
agarra esse partidão.
— Eu agradeço o conselho, mas como eu disse Nicolas e eu somos
apenas parceiros de negócios.
— Getúlio e eu também ocupávamos uma posição parecida, ele era
o diretor carrasco da escola e eu a professora. E olhe onde estamos, prestes
a celebrar 50 anos de casados. Às vezes o amor está do nosso lado e a gente
teima em não enxergar.
Dona Odete estava firme no propósito de convencimento de que
Nicolas e eu tínhamos um futuro pela frente. Portanto, resolvi não retrucar e
apenas sorri em resposta.
 

Dafne não fugiu como imaginei que ela faria após o nosso sexo
quente e intenso em sua sala. Ela ficou, conversou e expôs a sua intimidade
como nunca tinha feito. Contou sobre o ex-noivo e como o destino foi
sacana em trazê-lo de volta a sua vida justo no dia que ele ficou noiva de
outra mulher. Nas entrelinhas de tudo que foi dito havia o não dito, a forma
como o imbecil do ex-noivo a fez sentir descartada, alguém que sequer
merecia ocupar um lugar no seu passado. Como se Dafne fosse uma mulher
que pudesse ser esquecida com facilidade, só o mínimo esforço de querer
tirá-la da sua mente, já consistia em lembrar da sua presença.
Ela ocupou tanto espaço na minha mente que naquela mesma noite
esqueci completamente do meu encontro com a Ingrid. Apenas quando
minha ex me ligou, horas depois, me perguntando se havia acontecido
alguma coisa foi que me recordei da mancada. Rapidamente, me desculpei
com Ingrid e inventei que não conseguir ir ao seu encontro porque houve
um imprevisto no restaurante. Como minha companheira do passado, ela
sabia que isso acontecia com frequência, portanto não estranhou a minha
desculpa. Depois daquela noite, Ingrid tentou combinar outra noite comigo,
mas me esquivei de todos os convites. Não conseguia parar de pensar na
minha sócia que se distanciava cada vez mais de mim.
Tentei apagar a sua doce risada da minha memória, não apreciar
tanto seu perfume, não me encantar pela forma gentil com que tratava os
funcionários, com zelo e palavras de incentivo, mas não consegui. Lutei
para ignorar o desejo que me acometia sempre que a sua boca gostosa se
abria para me provocar ou reagir às minhas provocações. Alimentar essa
dinâmica da nossa relação se tornou um prazer constante, afinal eu não
estava sendo deliberadamente ignorado quando as irises azuis cintilavam de
raiva diante dos meus ataques bobos.
Na tentativa irracional de querer a sua atenção, me vi dependente da
sua presença. E esse foi o meu erro. Meu segundo erro foi achar que depois
que ficamos eu não seria mais invisível para ela. Agora ela passava as
noites dentro da sala, com a porta trancada, em um sinal claro que não
queria mais visitas. Não banquei o insistente e respeitei a sua decisão, mas
eventualmente nos víamos e assim que nossos olhos se encontravam em
meio à multidão, a fagulha de desejo estava ali adormecida pronta para
arder em chamas.
— Chef, você tem um minuto? — Estranhei a presença de Kedma
na cozinha.
— Deise, assume aqui por favor.
— Sim, chef.
Abri a porta, empurrando-a com o ombro, e saí da cozinha.
— Aconteceu algo com a Dafne?
— Não, mas a envolve — aguardei então que ela revelasse do que
se tratava. — É o seguinte, a dona Dafne solicitou que eu fizesse um pedido
na famosa rede de fast food, mas antes que eu concluísse o pedido mudou
de ideia, afirmando que pegaria mal para o restaurante chegar um
entregador aqui. Então, pensei se o chef autorizar, que a nossa cozinha
poderia atender a esse pedido inusitado.
— Sou chef na cozinha, mas ela é a chefe do restaurante. É claro
que podemos atender o seu pedido — sorri, feliz na oportunidade que
surgiu para uma interação nossa. — Qual é o pedido?
— Dois hambúrgueres de carne bovina, molho sabor cheddar,
cebola ao molho shoyu e pão escuro com gergelim. Acompanhamento de
batata frita grande e para beber: milk shake de Ovomaltine.
— Mais alguma coisa?
— Vou repetir as palavras dela “por ora, não” — sorriu.
— Não avise nada, quero fazer uma surpresa.
— Pode deixar, chef.
Retornei a cozinha dando continuidade ao preparo dos pratos que
estavam sob a minha responsabilidade e, em paralelo, iniciei o hambúrguer.
Moí o filé mignon e o temperei apenas com páprica defumada. O sal seria
acrescentado no momento de levar a carne para grelhar para evitar a
desidratação. Entre a entrega de um prato e outro, coloquei para aquecer o
azeite em fogo baixo junto com as cebolas cortadas a modo Julienne,
mexendo sempre até elas caramelizarem. Por fim, acrescentei o shoyu e
algumas pitadas de sal e contemplei o resultado. Os próximos passos foram
mais simples e rápidos, as batatas palitos estavam sendo fritas e a carne
grelhava sob o meu olhar atento para não errar o ponto, ao passo que o mix
trabalhava até chegar ao ponto do milk shake.
Com tudo pronto, chegou a hora de empratar, particularmente essa
era uma parte que eu gostava, mas conhecia diversos colegas que não
apreciavam a arte de escolher a melhor louça para destacar a comida.
Talvez, essa apreciação se deva ao fato de a minha base ser francesa, com
isso aprendi desde cedo a valorizar a arte do empratamento. Peguei o prato
retangular vermelho para fazer alusão a rede de fast food, acrescentei os
hambúrgueres mais ao canto direito e os molhos em duas cumbucas
pequenas de porcelana, na frente deles. Apesar de não haver molho no
pedido original, adicionei molho barbecue e maionese caseira porque
cairiam muito bem com os sanduíches. As batatas fritas foram servidas em
um mini cesto de inox, posicionado do lado esquerdo e logo depois limpei
as bordas do prato para que ficasse perfeito.
— Foi aqui que pediram hambúrguer com fritas? — Anunciei
quando a porta foi aberta.
Dafne me encarou em evidente surpresa, os olhos alternavam do
prato para o meu rosto. Demorou alguns segundos até o sorriso surgir no
seu lindo rosto e eu amaldiçoei o meu coração por reagir a um simples
sorriso.
— Entre — deu um passo para trás, fechou a porta assim que
adentrei na sua sala. Voltando-se para mim. — Como isso aconteceu?
— Kedma compartilhou o seu desejo por comida carregada de sódio
e gordura, então estou aqui para fazer a entrega do seu pedido— afastei
alguns objetos e coloquei o prato sobre a mesa.
— Não me julgue por querer me empanturrar — deu de ombros. —
E você? Desistiu da carreira de chef de cozinha francesa e resolveu tentar a
de entregador? Certamente ganhará muitas gorjetas com o seu perfil.
— Qual é o meu perfil? — Ergui a sobrancelha.
— Não vou alimentar o seu ego.
— Você sabe que acabou de fazer isso — bufou irritada — quanto
você me daria de gorjeta, Dafne?
— Muito pouco, afinal você está atrapalhando que eu consuma a
minha refeição enquanto ainda está quente — disfarçou, deu a volta na
mesa e sentou-se pronta para atacar os lanches. — Você vai ficar aí, não tem
um trabalho a fazer?
— Não vou a lugar nenhum, quero apreciar a cena de você
devorando um hambúrguer.
— Você tá de sacanagem, né? — Sorri.
— Alimentar você é prazeroso, mas acompanhar a sua satisfação ao
comer o que preparo é o meu novo deleite — seu olhar se fixou em mim e
vi uma fagulha de desejo nos olhos azuis expressivos.
— Vamos ver se é tão bom quanto o do fast food — foi tudo que ela
disse.
Dafne segurou o hambúrguer com as duas mãos, dispensando os
guardanapos, e o levou a boca. Abocanhou um generoso pedaço e ali estava
a sensação de prazer que ela fazia ao comer, o breve cerrar de pálpebras
acompanhado do sorriso de felicidade.
— Tão bom quanto o outro?
— Infinitamente melhor — sorriu — tem alguma coisa que você faz
que é ruim?
— Administrar restaurantes com toda certeza — a sua risada
acelerou as batidas do meu coração.
— Piadinha depreciativa a essa hora? — arqueou a sobrancelha.
— Sabe qual é a melhor parte de ter sido um péssimo gestor? A
oportunidade de te conhecer.
— O que você está falando? Isso é loucura.
— Acredito que tudo tem um porquê, se eu não tivesse fracassado, o
Bernard não teria você... Eu não teria você em minha vida.
— Nicolas, não... — Protestou debilmente.
— Você não pode me impedir de confessar os meus sentimentos.
— Acho que você está confuso depois de tudo que rolou entre nós...
— Você também não está confusa?
— Honestamente? Estou evitando pensar sobre isso, aconselho você
a fazer o mesmo.
— Dafne...
— Por favor, Nicolas.
— Ok, como você quiser... Vou te deixar sozinha.
Quando eu achava que estávamos finalmente nos entendendo ela
recuava vinte passos. Dafne me confundia, mas eu não conseguia deixar de
pensar nela.
— Espera — caminhou até ficar de frente para mim — eu não
pretendia agir como um homem babaca após transar, mas foi que acabei
fazendo.
— Do que você tem medo?
— De tornar a nossa convivência insustentável, somos sócios e
qualquer envolvimento poderia resultar em uma tragédia anunciada. Não
somos apenas nós dois, há vários fatores envolvidos: os colaboradores, o
pleno desenvolvimento do restaurante, nosso papel como profissionais. Não
podemos arriscar...
— Por que você parte do pressuposto que as coisas dariam errado?
— Tenho um histórico recente que prova que tenho razão — seus
lábios se ergueram para cima, mas ela não sorriu de verdade. — Coisas
acontecem, podemos nos magoar. E assim como eu, você não gostaria de
vir trabalhar e dar de cara com alguém que brincou com os seus
sentimentos.
— Dafne... — Ela levou um dedo aos meus lábios para me silenciar,
o simples toque fez o meu corpo reagir, ansiando para que sua boca
substituísse o dedo.
— Acredite, eu sei tudo que você vai dizer por que todas essas
coisas já passaram pela minha cabeça. É mais seguro para nós dois manter
as coisas como estão.
Eu discordava por inteiro dela, não que eu tivesse certeza de que
daríamos certo, mas não via motivos para não tentarmos. Estava claro que
ela me queria tanto quanto eu a desejava.
— Não rola nem o último beijo de despedida? — Dei a minha
cartada final.
Acompanhei a sua hesitação, ela estava em uma luta interna e eu já
tinha aceitado mais uma recusa quando ela sorriu.
— Foda-se!
Dafne se jogou nos meus braços, a boca devorando a minha,
impondo seu ritmo no beijo com gosto de paixão, saudade e algo que eu
ainda não sabia identificar. Meus dedos acariciaram a sua pele, descendo
lentamente pelas suas costas e pararam no zíper da saia social. Esperei pela
confirmação que ela queria aquilo tanto quanto eu, a resposta veio com os
lábios percorrendo o meu pescoço.
— O que estamos fazendo? — Perguntou inebriada pelo desejo.
— Acho que esse é um bom momento para seguir a sua sugestão e
não pensar em nada — senti o seu sorriso contra a minha pele.
Dafne sugou a pele do pescoço, como se fosse um ato inconsciente
de me marcar como seu. Abandonei o zíper por um segundo, levantei a
barra do tecido e deixei que as minhas mãos tocassem o que eu tanto
desejava. Com a mão espalmada toquei a sua boceta por cima da calcinha.
Ela se esfregou contra a minha mão em sinal de aprovação. Afastei o tecido
para o lado, levei meu dedo até a sua entrada e testei a sua umidade.
— Isso é por minha causa? — Avancei com um dedo e ele deslizou
pela sua boceta molhada. Mais uma vez, ela inclinou o corpo para me
receber por inteiro.
— Nicolas, por favor...
— Por favor o quê?
— Quero você. AGORA. Pulsando dentro de mim.
— Não tenho camisinha aqui... — Tentei ser racional.
— Você goza fora.
Dafne se soltou dos meus braços, me deu uma piscadela e se
debruçou sobre a mesa, os braços apoiando o peso do seu corpo. Diante
daquela bunda empinada disse adeus a minha racionalidade. Me posicionei
atrás dela, minhas mãos habilmente puxaram a saia para cima, o tecido
terminou enrolado em torno da sua cintura.
— Puta que pariu! — Gemi quando vi a minúscula calcinha preta de
renda que ela usava. Com a ponta dos dedos passeie pela bunda arrebitada,
em uma carícia lenta.
— Eu aprecio muito o carinho no sexo, mas você poderia acelerar as
coisas? Estou debruçada sobre a mesa do escritório no meu restaurante,
acho que não temos muito tempo a perder.
— Sim, senhora.
Inclinei sobre ela para retirar a calcinha, a peça desceu com
facilidade com ela me ajudando na tarefa de se livrar rapidamente da peça.
Levei a calcinha ao nariz, inspirando o seu cheiro, era o perfume do seu
desejo por mim.
— Isso me pertence — coloquei a calcinha no bolso.
— Tem algo mais que te pertence essa noite — se esfregou contra a
minha ereção.
Agradeci mentalmente o fato de ter retirado a dólmã quando saí da
cozinha, abri o zíper da minha calça, puxando a cueca em seguida liberando
o meu pau. Rígido e dolorido depois de semanas de desejo acumulado.
Ainda assim, me contive para proporcionar o máximo prazer a Dafne.
— Você mudou o perfume... — Falei afundando o nariz em seu
pescoço.
— Enjoei do cheiro — emitiu as palavras com dificuldade.
Segurei o riso, tendo certeza de que ela apenas não queria admitir
que parou de usar porque eu dizia que não gostava.
— Abra as pernas para mim.
Ela obedeceu e percebi que no sexo era o único momento que ela
não rebatia os meus comandos. Isso me fez dar a risadinha que não
consegui conter.
— O que é tão engraçado? — Inclinou a cabeça para trás.
— Apenas achei engraçado que não brigamos quando estamos
envolvidos sexualmente.
— Essa deveria ser a sua deixa para me penetrar de vez enquanto
ainda não me irritou — sorriu.
— Seu desejo é uma ordem — guiei o meu pau até a sua entrada e
dei o que ela tanto queria.
Os meus quadris começaram a se mover até preenchê-la por
completo. Um gemido baixo escapou dos seus lábios e puxei a sua cabeça
para trás para engolir o próximo gemido com um beijo. Meu corpo se
projetou contra o dela mais uma vez que me recebeu sem reservas.
Dafne acompanhou o ritmo dos meus movimentos, a cada estocada
mais forte, sentia que ela estava prestes a se derreter em meus braços.
Manipulei o seu clitóris com o polegar, intensificando o seu prazer. Quando
seu corpo estremeceu, notei que seus braços tremiam sobre a mesa, por isso
usei a mão livre para envolver a sua cintura e evitar que se chocasse contra
mesa.
Ela jogou a cabeça para trás de olhos fechados e, mordendo os
lábios, gozou nos meus braços. Mais três estocadas e encontrei o mesmo
prazer avassalador que ela sentira. Meu pau lamentou ao deixar o seu corpo
quando derramei o meu prazer líquido na minha própria mão.
Apoiei o meu corpo ao seu lado, éramos suor e prazer,
compartilhando o momento.
— Acho que eu gosto de sexo de despedida — afirmou ofegante
com um sorriso nos lábios.
Senti uma pontada no meu peito ao perceber que eu não curtia tanto
assim.
 

Acordei com o toque da campainha, parecia que alguém havia


cravado o dedo no botão, o som estridente e repetitivo me desnorteou por
alguns segundos até eu compreender que aquele barulho indicava a
presença de um incômodo visitante. Joguei a máscara de dormir na cama e
marchei aborrecida ao encontro do responsável por tal escândalo. Abri a
porta e olhos azuis idênticos aos meus me fitaram de cima abaixo como se
nunca tivesse me visto na vida.
— Você está viva! — Silvio sentenciou — mais um minuto e a sua
porta seria colocada abaixo.
— Por que toda essa urgência? — Perguntei ainda sonolenta.
— Você sabe que horas são?
— Não. Mas nada justifica a sua presença na minha casa domingo
pela manhã.
— Dafne, são treze horas.
— Puta que pariu! O almoço do Dia das Mães! Mamãe deve estar
desesperada.
— Você ainda acha que nada justifica? — Ergueu a sobrancelha.
— Merda! Não ouvi o despertador tocar, nunca dormi tão
profundamente na minha vida — Silvio fechou a porta atrás de si e seguiu
os meus passos,
— Tem alguém aqui com você?
— Não.
— Isso justificaria você dormir profundamente depois de uma noite.
— Por que todo homem acha que só é possível uma noite de sono
profundo após o sexo? — Revirei os olhos.
— Porque é verdade — deu de ombros — na verdade não é a única
forma de deitar e ter um sono relaxante, mas é a principal delas.
— Saiba que ontem eu jantei pizza de Nutella enquanto assistia a
um documentário sobre o impacto do minimalismo em nossas vidas, após
isso eu tive a melhor noite de sono dos últimos anos.
— Sua vida é um tédio, irmã — sorriu.
— Vai se ferrar!
— Você tem dez minutos para ficar pronta ou dona Dinamares
chegará aqui com os bombeiros, polícia e jornalistas.
— Jornalistas? — Arquei a sobrancelha.
— Ela assistiu um desses documentários true crime e ficou
impressionada com a jovem que foi assassinada em sua casa e encontrada já
em estado de putrefação. Foi um jornalista que iniciou as investigações e
achou o culpado.
— Credo!
— Melhor correr antes que o Cidade Alerta esteja na sua cobertura,
imagina o apresentador sensacionalista falando da jovem empresária
sergipana desaparecida...
Não precisei imaginar a cena para literalmente correr até a suíte.
— Dafne, não há tempo para a maquiagem hoje — a sua voz me
alcançou na porta do quarto.
*
— Feliz dia das mães! — Desejei efusivamente para a minha mãe
que me apertou com força enquanto me abraçava. — Estou começando a
ficar sufocada, mãe.
— Você quase mata a sua mãe do coração — Disse afrouxando o
abraço, mas ainda me prendendo em seus braços, os olhos percorrendo o
meu corpo para certificar que nenhum pedaço foi arrancado. Após a longa
inspeção fui libertada — Você está mais cheinha, corada e sua pele está
brilhando.
— Como é delicioso chegar e escutar que você engordou —
Ironizei.
— Bem-vinda ao lar — Silvio sorriu.
— Dafne, parece que você não ouviu as outras coisas que falei. Você
sempre foi bonita, mas está com um brilho especial...
— Não começa, mãe.
— Está namorando, filha? Isso explicaria o brilho no olhar, mas
parece que tem algo mais... — Insistiu.
— A última vez que a sogra disse que alguém estava com um brilho
especial, a pessoa estava grávida, experiência própria.
— Até você, Ayla? — Minha cunhada sorriu.
— Não estou namorando e muito menos grávida. Os quilos devem
ser porque almoço no melhor restaurante italiano do estado e janto as
delícias da culinária francesa.
— Ainda temos que conhecer esse novo restaurante — Minha mãe
comentou — poderíamos ir em família.
— Ouvi falar muito bem do lugar — Silvio acrescentou.
— As portas do Bernard estão abertas para vocês.
— Ela diz isso da boca para fora, coube ao elegante Nicolas fazer o
convite quando nos conhecemos no Capolavoro.
— Eu tinha recém adquirido o restaurante, ainda estava me
habituando.
— O Nicolas é casado? — A casamenteira que habita em minha
mãe ressurgiu.
Meu pai escolheu o momento oportuno para se juntar a nós, de mãos
dadas com o neto ele se aproximou sorridente.
— Tiiia — Samuel soltou a mão dele para correr em minha direção.
Agachei pronta para receber o melhor abraço de todo o universo.
— Ai como eu estava com saudades desse abraço — falei
depositando vários beijinhos no seu rosto, arrancando uma gostosa risada
dele. Levantei com o garoto nos braços e caminhei até o meu pai.
— Que saudades eu estava de você, meu amor — ele abriu os
braços, Samuel e eu fomos acolhidos no seu abraço — está tudo bem com
você? — Me encarou com a testa franzida. Observei as rugas que
denotavam a sua experiência e sorri pensando quantas daquelas foram
ocasionadas por minha causa.
— Estou bem, podem ficar tranquilos.
— Você anda trabalhando demais.
— É de família — meu olhar seguiu até o meu irmão — e o senhor
sabe o quanto amo o que faço.
— Preciso conhecer esse novo amor.
— O senhor vai amar o lugar, a comida é um manjar dos deuses.
— Por falar em manjar dos deuses, agora que a filha preferida
chegou, será que podemos almoçar?
— Eu amo vocês na mesma medida — mamãe afirmou.
— Mas me ama muito mais e todo mundo sabe — provoquei.
— Samuel ama titia.
— Viu? Até seu filho me ama.
— Isso só porque você o enche de presentes.
— Amor — Ayla o repreendeu — ele é apaixonado por você,
Dafne;
— Eu que sou por essa coisa gostosa — apertei o garoto em meus
braços.
— Ai, dói. — Ele reclamou.
— Desculpa a titia.
— Você sempre teve um jeito Felícia de demonstrar amor.
— Idi... — Silvio ergueu a sobrancelha e interrompi o palavrão —
bobão.
— O que aconteceu hoje? Parece que voltaram a ser crianças.
— A culpa é do Silvio.
— A filha mais nova e imatura é você e não eu — acusou e eu
mantive a boca fechada para não agir como a garotinha que ele me acusava
de ser.
Quando nos reunimos na sala de jantar, nos juntamos às preces da
minha mãe pelo alimento de cada dia, declaramos mais uma vez o nosso
amor pela mulher que nos ensinou a sermos fortes e corajosos. A tarde
seguiu em clima de risadas e afeto como era sempre que a família
Capolavoro se reunia.
*
Eu tinha uma saúde de ferro, como papai costumava dizer.
Não recordo da última vez que fiquei gripada ou que qualquer outra
doença tenha me impossibilitado de trabalhar. Mas naquela sexta, acordei
com um mal-estar terrível. Uma sensação de desconforto na parte superior
do abdômen, mais ou menos na região da boca do estômago. A
sensibilidade no local era tanta que pensei que fosse vomitar, mas isso não
aconteceu, apenas permaneci levemente enjoada. O meu corpo clamava
para que eu permanecesse em repouso, mas eu me recusei a atender o seu
pedido, afinal deveria ser apenas o efeito colateral de quem se empanturrou
na noite não jantou como devia.
Levantei da cama e iniciei a minha rotina de skincare diurna, tendo a
náusea como minha sombra. Quando saí do banho a sensação ainda era
presente, mas com um grau de intensidade mais suave. Por isso, decidi fazer
uma refeição leve, um cafezinho e algumas torradinhas com geleia de
morango seriam o suficiente. Todavia, bastou um olhar para a cafeteira e
apenas a lembrança olfativa do líquido preto fumegante que eu tanto amava,
fez o meu estômago revirar.
Não tive alternativa a não ser abandonar o meu tradicional café da
manhã com café e segui para as frutas, abri a geladeira e salivei quando vi o
abacaxi dentro do recipiente transparente. Comecei a comer a fruta ali
mesmo no balcão da cozinha, sentei-me na banqueta alta e desbloqueei o
meu celular, acessando o aplicativo de correio eletrônico. Dentre as
newsletters e solicitações de parcerias, um e-mail se destacou. Intitulado
como “Parabéns, você foi indicada ao 1º Prêmio de Gastronomia de
Sergipe”, o corpo do texto trazia a minha indicação em duas categorias
principais: Melhor Restaurante concorrendo com o Capolavoro e
empresário gastronômico do ano.
— AAAAAAAAA! — Vibrei eufórica, ficando de pé para balançar
os quadris de um lado para o outro no ritmo da canção da vitória que tocava
dentro de mim. O aparelho abandonado sobre o balcão tocou e me debrucei
sobre ele, era uma ligação em vídeo do meu pai.
— Dafinha, parabéns! — O sorriso dele cobriu toda a tela.
— Obrigada pai, mas é só uma indicação — aquilo também servia
para mim, eram apenas indicações não tinha motivos para criar grandes
expectativas.
— Assim que vi o seu nome anunciado eu soube que esse prêmio
seria seu. Papai está extremamente orgulhoso de você, amor — foi
inevitável não me emocionar diante da avalanche de amor recebida, meus
olhos encheram de lágrimas e meu coração bateu acelerado.
— Não vai me fazer chorar logo cedo, né? — Sorri com os olhos
marejados, mas eu não era a única, minha mãe surgiu ao lado do meu pai
dividindo a tela. Era o que precisava para que as lágrimas molhassem o meu
rosto, eu sorria e chorava ao mesmo tempo.
— Eu estou tão feliz, mas tão feliz por você que parece que vou
morrer de tanta felicidade. Se o meu coração sobreviver a esse dia, não
preciso mais da consulta anual ao cardiologista.
— Não brinca com uma coisa dessas, mãe — repreendi, sorrindo.
— Vou tomar um chá de camomila para acalmar, preciso estar viva
para quando finalmente você resolver me dar um neto.
Minha mãe sendo a minha mãe.
— Onde vai ser a comemoração? — Papai perguntou.
— É, vamos almoçar juntos para celebrar a sua indicação. Amor,
liga para o Silvio do meu celular — minha mãe assumiu o controle da
chamada.
— Hoje não posso...
E nem pelos próximos cinco dias.
— Tenho uma reunião com uma gestora de mídias sociais agora pela
manhã, a tarde vou me reunir com o contador e terminarei a noite no
Bernard.
— Que horas você descansa?
— A noite quando me deito na cama e durmo maravilhosamente
bem.
— Você precisa delegar tarefas, filha. Precisa ter um tempo só para
você, antes que adoeça.
— Eu já estou fazendo isso, voltei à academia — o meu argumento
não convenceu a minha mãe e antes que a conversa se tornasse um sermão,
decidi encerrá-la. — A gente se fala mais tarde, preciso ir trabalhar.
Não era nenhuma mentira.
— Dafne, você não vai fugir de mim para sempre.
— Amo você mãe, amo você pai.
— Amo você, Dafinha — ouvi sua voz à distância.
— Te amo, se cuida.
— Pode deixar, mãe.
Encerrei a ligação, a ficha ainda não tinha caído totalmente.
Eu estava concorrendo a dois prêmios gastronômicos.
Surreal.
*
O meu primeiro compromisso do dia estava atrasado em quarenta e
cinco minutos. Imprevistos aconteciam, eu sabia disso. Mas isso não
significava que eu estava confortável sentada na sala de espera, sentindo
uma gota de suor escorrer pelas minhas costas. O pequeno ar-condicionado
do local não parecia ser o suficiente para suavizar o calor implacável da
capital sergipana, hoje era um daqueles dias em que a gente tinha a
impressão de que havia um sol sobre cada cabeça. Levantei-me, mais uma
vez, da poltrona de couro e caminhei até o bebedouro, usei o copo
descartável que mantinha em mãos e deixei que a água gelada preenchesse
o recipiente. Ingeri aos poucos o líquido, torcendo para que ele refrescasse
o meu corpo, joguei o copo no lixo e retornei a poltrona.
— Michele, pediu para avisar que acabou de chegar ao
estacionamento — a simpática recepcionista me comunicou.
— Obrigada.
Quase soltei um suspiro de alívio quando a elegante mulher que
deveria ser Michele saiu do elevador. Ela usava terninho vermelho feminino
e louboutin nude, óculos de sol Prada e bolsa da mesma grife dos óculos.
Tive certeza de que era Michele quando os óculos foram erguidos até o topo
da cabeça e ela sorriu para mim.
— Dafne, me desculpe por te fazer esperar. Tive que deixar as crias
na escola no caminho, o menor está em fase de adaptação, então sempre
rola um draminha na hora de ir com a tia.
— Posso imaginar.
— Você também tem filhos?
— Ainda não.
— Aproveite cada segundo de liberdade irrestrita, depois até as suas
idas ao banheiro são acompanhadas — sorriu amplamente. — Vamos?
— Claro. — Assenti, assim que fiquei de pé tive a sensação do
mundo girar ao meu redor, me desequilibrando. Voltei a sentar, apoiando as
mãos nas pernas.
— Você está bem? — Michele indagou preocupada.
— Fiquei um pouco tonta, deve ser o calor.
— Você quer uma água gelada?
— Não, obrigada. Você pode me indicar onde tem um banheiro aqui
próximo?
— Use o da minha sala.
Respirei bem lentamente por alguns minutos e a sensação de que a
terra tinha voltado ao seu eixo central se fez presente. Quando me coloquei
de pé novamente não senti nada, ao lado de Michele seguimos até a sua
sala, a minha próxima parada foi o lavabo à esquerda.
Fechei a porta atrás de mim, mas não passei a chave. Apoiei as mãos
na bancada e inspirei fundo quando senti um gosto ruim na minha boca,
consequência da náusea que resolveu dar o ar das graças. Cuspir a saliva na
cuba branca e abrir a torneira para que a água se encarregasse do resto, a
minha vontade era encher as mãos de água e jogar no meu rosto, mas a
maquiagem impediu. Umedeci papéis toalhas e passei ao redor do pescoço
para aliviar o calor. Pisei na lata de lixo para descartar os papéis, no mesmo
instante que senti um forte enjoo, dessa vez ele não desapareceu como
surgiu, tive tempo apenas de inclinar a cabeça e vomitar.
Depois de ter a minha alma arrancada do corpo, lavei a minha boca
com água, tirando o gosto ruim que havia ficado.
— Você precisa de algo? — Michele, que deveria ter escutado tudo,
me ofereceu ajuda assim que a porta se abriu.
— Desculpa — pedi constrangida.
— Não se preocupe, querida. Só quero saber se você está bem.
— Estou, obrigada.
Era mentira.
Me aproximei a passos lentos, com medo de que um movimento
mais rápido provocasse uma nova náusea. Alcancei a cadeira e me sentei
ali, me sentindo estranha.
— Quer que eu peça uma água? — Assenti em resposta.
Em um piscar de olhos a água foi servida em uma taça de cristal,
bebi um pouco do líquido gelado com receio de voltar a passar mal.
— Acho que precisamos remarcar a nossa reunião — coloquei a
taça sobre o porta copo na mesa.
— Você me envia mensagem e remarcamos.
— Obrigada e desculpa por tomar o seu tempo.
— De forma alguma, estimo melhoras para você.
— Obrigada.
Suei frio dentro do elevador e quando as portas metálicas se abriram
eu praticamente me lancei para fora, sob os olhares atentos do segurança do
local. Ignorei o homem e caminhei até o meu carro, imaginando a quentura
que deveria estar lá dentro, abri todas as janelas do carro e aguardei do lado
de fora que o ar circulasse.
Escutei o alarme do carro ao meu lado sendo desbloqueado, antes da
aparição da sua dona. Dali, consegui identificar uma pessoa conhecida.
Sandra? Era a minha ginecologista com a sua maletinha preta em mãos,
coincidentemente ela atendia no prédio em frente ao que eu estava.
— Dafne... — Escutei a voz ao longe, o que era estranho visto que
ela estava cada vez mais próxima de mim. — Está se sentindo bem? — Não
consegui responder, escutei os passos cada vez mais altos e apressados.
Até que eu não ouvi mais nada.
 

Era uma sexta-feira à noite como qualquer outra. O salão estava


cheio e a cozinha fervilhava em sons, cheiros e sabores, coma equipe
trabalhando em perfeita harmonia. Os pratos eram liberados sem atrasos e
as comandas chegavam uma atrás da outra, de modo que não ficávamos
parados por um minuto para esticar as pernas. Aos fins de semana, a
presença bastante requisitada do chef era recusada com a justificativa
plausível do grande movimento, tirar uma peça da cozinha era comprometer
o serviço de qualidade e pontualidade que oferecíamos.
Mas naquela noite eu queria sair da minha segunda casa, a cozinha,
para dar uma espiadinha no salão, meus olhos não demorariam para
encontrar a dona de cabelos pretos como a noite. Queria saber qual dos
terninhos foi o escolhido para a reunião, notei que havia um padrão de
escolha quando era dia de reunião, ela sempre aparecia com terninhos. O
meu preferido era o rosa bebê do dia que nos conhecemos. A verdade era
que todos caíam bem em seu delicioso corpo e acentuavam a sua beleza.
Dessa vez, ficaria apenas na minha imaginação a cor escolhida, pois como
também havia se tornado o padrão, ela ia embora antes que eu estivesse
livre. Apenas depois que a cozinha encerrava as atividades, era a hora do
merecido descanso do chef.
Com um suspiro, puxei a pequena banqueta que raramente era
utilizada e sentei-me para supervisionar os últimos pratos da noite.
Aproveitei a pausa para dar uma olhada no celular, havia um áudio do meu
filho.
“Pai, adivinha quem está aqui em casa? — Ele fez uma pequena
pausa para que eu completasse a sua pergunta e isso me fez sorrir. — A tia
Leila e dessa vez ela trouxe meus primos. Eles fizeram uma surpresa para
mim, cheguei da escola aí já ia direto pro banho como é o acordo, né?
Mamãe abre a porta e eles gritam surpresa. E foi uma surpresa feliz, tive até
vontade de chorar de tanta emoção. Eles vão dormir aqui e mamãe
autorizou o videogame mesmo sendo dia de semana. Hoje é o dia mais feliz
de toda a minha vida. Tô com saudade e te amo.”
A última frase serviu para dar aquele apertinho no coração, meus
horários não me deixavam ver meu filho tanto quanto eu gostaria, e
principalmente, ele queria. A cada vez que ele finalizava um contato
dizendo que estava com saudades, a sensação de não estar sendo o pai que
ele merecia me afetava. Por mais que eu tentasse compensar com ligações
diárias, ainda não parecia suficiente. Ignorei a sensação de merda que
martelava em meu peito e respondi a sua mensagem.
— Filho, papai não tem dúvidas de que hoje é o dia mais feliz da
sua vida. No mesmo dia recebeu a visita dos primos e ainda o videogame
foi liberado pela mamãe. No seu lugar eu teria chorado de felicidade —
sorri — também estou morrendo de saudades, domingo a gente se encontra
e mata toda essa saudade. Te amo muito.
Engoli o nó na garganta e fui ver as outras mensagens, passei pelo
grupo de chefs da faculdade, de chefs amigos, do restaurante, da família, da
escola, do condomínio e abaixo de todas essas mensagens não lidas, havia
uma da Dafne.
 
Dafne: Preciso conversar com você hoje e tem que ser pessoalmente.
Não importa o horário.
 
O tom da mensagem me preocupou, saí da cozinha e tentei contato
por telefone, mas a ligação foi recusada. Voltei ao campo de mensagem e
digitei com o coração acelerado.
 
Eu: Dafne, me atende.
Fiquei preocupado agora, aconteceu algo com você?
 
A resposta veio imediatamente.
 
Dafne: Não estou em perigo.
Você pode me encontrar ainda hoje?
 
Apesar da sua negativa sobre estar em perigo, a urgência
permanecia em sua mensagem.
Eu: Sim, me mande a localização.
Estou a caminho.
 
Segundos depois o endereço de um edifício residencial foi enviado.
Não cheguei a ver a sua resposta, pois já estava indo ao seu encontro.
*
Dafne abriu a porta da sua casa usando conjunto de moletom
marrom, a calça era mais justa ao corpo e a parte de cima mais solta. Seu
rosto estava limpo, sem nenhum artifício de maquiagem e ela continuava
linda. Os olhos inchados denunciavam que tinha chorado, busquei alguma
resposta neles, mas o contato foi interrompido. Seria o ex-babaca o motivo
das suas lágrimas? Só de imaginar que ele era responsável pelo seu choro
uma enxurrada de palavrões passaram pela minha cabeça.
Sem trocarmos nenhuma palavra, ela se afastou da porta e deu
passagem para que eu entrasse. A porta foi fechada com delicadeza atrás de
nós e Dafne se movimentou passando por mim. Acompanhei os passos dela
e logo o hall social ficou para trás e chegamos à sala de estar que deveria
ter o tamanho de metade do meu apartamento.
Ela se sentou, sobre as pernas, no sofá claro e me encarou por
longos segundos sem dizer nenhuma palavra. Vislumbrei a insegurança no
rosto da mulher mais confiante que já conheci, ela parecia reticente para me
contar algo. Caminhei até ela e me sentei ao seu lado, inclinei o corpo em
sua direção e perguntei:
— O que ele fez dessa vez? — Tentei imprimir na minha voz uma
serenidade que não existia.
— Quem?
— O se ex-babaca. Não é por ele que você está assim?
— Não, não é nada envolvendo o falecido.
Essa é a minha garota!
Tratar o ex como falecido me deixou mais feliz do que eu gostaria
de admitir.
— Passei as últimas horas pensando qual seria a melhor forma para
te contar e quanto mais eu pensava, mais eu ficava aflita porque o meu
medo real não era ter que contar a você, mas a sua reação. — Ela se ajeitou
no sofá, essa nova posição nos deixou frente a frente. — Eu sei que não
tenho controle do que vai acontecer depois que as palavras saírem da minha
boca e chegarem até você. Não tenho controle nem dos meus próprios
sentimentos e isso me apavora.
— Eu sei que diante do nosso histórico, você não me considera um
amigo. Mas nesse exato momento estou aqui como um amigo. Você pode
me dizer qualquer coisa, não haverá julgamentos, críticas ou...
— Eu estou grávida! — A revelação foi feita em uma voz trêmula.
A impressão que tive foi que o mundo ficou em suspenso enquanto
eu absorvia o impacto das suas palavras. Um flashback dos acontecimentos
que me trouxeram até o dia de hoje reforçou o que meu coração sentiu ao
ouvir as suas palavras. Eu seria pai novamente. De um filho da Dafne. E
isso foi o suficiente para que a alegria percorresse cada célula do meu corpo
e se concentrasse em meu rosto, na forma de um sorriso genuíno de
felicidade.
— Quer dizer que o Vicente foi elevado à categoria de irmão mais
velho?
— É séria essa sua reação? — Dafne me encarava em total estado de
choque.
— Eu não vejo a hora de encontrá-lo e dizer que ele vai ter um
irmãozinho — sorri.
— Nicolas, você entendeu o que eu disse?
— Que você está esperando um filho meu? É claro que sim. Estou
feliz, Dafne.
— Não vai perguntar como foi que aconteceu?
— Se você quiser encenar aquela noite estou a sua disposição — ela
sorriu, pela primeira vez naquela noite.
— Eu fiquei aflita ao descobrir, temendo a sua reação e você está
com um sorriso no rosto.
— Não sou o babaca do qual você me acusa.
— Não é, mas também não é como outros homens. Não consigo
categorizar você.
— Isso é ruim? — Ergui a sobrancelha.
— Para mim é. Você é uma caixinha de surpresas e isso me deixa
confusa.
— Acho que já sei como te ajudar a me classificar, me coloque na
gaveta do seu coração com o rótulo: pai do seu filho.
— Essa nunca foi a minha intenção, você sabe né?
— Que você não me escolheria nem se eu fosse o único exemplar
masculino para a manutenção da vida humana na terra? Acho que você já
me disse isso antes — dei de ombros.
— Nicolas, eu estou falando sério. Eu parei de usar pílula há um
ano, não estava namorando e nem saindo com ninguém...
— Eu fui o responsável por tirar você do celibato? — Ergui a
sobrancelha.
— Como você é idiota — revirou os olhos — com meus últimos
parceiros eu usei camisinha, era condição inegociável, mas...
— Aí você conheceu um homem alto, charmoso, atraente e se
deixou consumir pelo fogo da paixão sem pensar nas consequências.
— Mais ou menos isso — seus lábios se ergueram para cima — a
verdade é que foi um vacilo meu.
— Nada disso. Se a gente quer achar um responsável para isso, o
que eu acho que não tem, mas se insistir nisso, foi um vacilo compartilhado.
Também não pensei na camisinha, assim como não pensei em gozar fora.
Naquela noite eu só pensei em você, em nós dois juntos e como foi bom pra
caralho! Se quiser remoer uma culpa que não existe, divida ela comigo, mas
da minha parte eu garanto que não tem espaço para remorso, só felicidade
para o nosso futuro que está em construção nesse momento, bem aí dentro
de você.
— Eu estava morrendo de medo, ainda continuo, mas a forma como
você reagiu tornou tudo mais leve. Obrigada.
— Estarei sempre há uma ligação de distância — ela me fitou com
os olhos marejados — vai ser leve e divertido até o fim, você tem a minha
palavra. Confia em mim? — Estendi a mão em sua direção e fui
surpreendido com a rapidez que a sua mão veio de encontro a minha.
— Confio. — Ela sorriu, entrelaçando os nossos dedos.
A confiança dela em mim não seria em vão. Ela ainda não sabia,
mas eu não era um homem de quebrar promessas.
 

Grávida.
A revelação quase me encaminhou para outro episódio de desmaio,
mas dessa vez me mantive bem acordada completamente em choque.
Passado o impacto inicial, cogitei que poderia ter acontecido uma troca de
exames. Mas a minha médica assegurou que não houve engano algum e que
se eu quisesse poderia repetir o Beta-HCG, porém o resultado seria o
mesmo: Positivo. E pelas concentrações de HCG a idade gestacional era de
4 semanas.
Um pequeno filme se passou na minha cabeça, nele eu era uma
caçadora em busca de pistas de que esperava um bebê. Tirando o fatídico
dia de hoje, nada em mim parecia indicativo de gravidez. Interpretei o sono
em excesso como consequência natural da dupla jornada de trabalho, os
seios mais sensíveis associei ao período menstrual que se aproximava. Ah, e
o ciclo menstrual em atraso nem me levantou suspeitas, porque ele sempre
foi desregulado. Agora que eu sabia os motivos que me trouxeram até a
emergência de um hospital tudo fazia sentido.
Quando despertei do breve desmaio, ainda estava dentro do meu
carro, sentada sobre o banco reclinado, sendo observada atentamente pela
doutora Sandra. Ela fez uma anamnese rápida e ali mesmo narrei todos os
sintomas. Fiz até um autodiagnóstico de que poderia ser virose, alguns
funcionários do Capolavoro estavam afastados das suas funções porque
estavam doentes e eu poderia ter pegado. A médica me aconselhou que
fossemos até o hospital particular que ficava do outro lado da avenida para
realizar alguns exames. Aceitei a sua sugestão, porque ainda me sentia tonta
e enjoada, então ela me ajudou a chegar até lá.
Uma breve troca de palavras entre ela e a recepcionista do setor de
emergência do hospital resultou na minha admissão imediata. Na sala de
pré-consulta, após responder as tradicionais perguntas se eu tinha alergia a
alguma medicação, doença pré-existente e se estava grávida, um enfermeiro
chegou para fazer a coleta de sangue. Três tubos grandes chamaram a minha
atenção, afinal para que tanto sangue para detectar uma simples virose?
Na minha inocência e serenidade, permaneci em repouso enquanto
aguardava os resultados, não contei para ninguém onde eu estava para não
criar uma preocupação desnecessária. Mas precisei remarcar os meus
compromissos do dia alegando problemas particulares. Quando a doutora
Sandra entrou acompanhada da clínica médica plantonista tive uma leve
sensação de desconforto, foi inevitável não desejar que a minha mãe
estivesse ali ao meu lado. O resultado dos exames não aplacou a vontade de
ligar para ela e pedi que viesse até mim. Se eu ligasse, mamãe viria sem
titubear. Mas eu não fiz isso, porque senti que precisava de um tempo
sozinha para administrar a notícia que eu seria mãe.
Era real. Eu estava grávida do irritante chef Nicolas. E pensar nele,
evocou a sensação nauseante que me acompanhou desde que abri os olhos
pela manhã. Metade de mim era temor e a outra metade era ansiedade pela
inevitável conversa que teríamos pela frente.
Passei a tarde pensando em qual seria a melhor abordagem, no
primeiro momento considerei criar um terreno antes de entrar no assunto
principal. Confessaria que interrompi o uso da pílula anticoncepcional e que
não estava me relacionando com ninguém. Essa revelação da minha
intimidade, certamente despertaria alguma provocação do Nicolas, mas ela
era o cerne para explicar por que eu havia engravidado dele.
Quando enviei a mensagem pedindo que ele viesse ao meu encontro,
a única certeza que eu tinha era que ele precisava saber o mais rápido
possível. Sequer passou pela minha cabeça esconder dele a paternidade.
A reação dele foi tão acolhedora que me surpreendeu. Ele não
parecia o tipo de homem que rejeitava um filho, mas confesso que não
esperava que após saber que novamente seria pai, Nicolas reagisse
alegremente porque Vicente ia ser promovido a irmão mais velho. A cena
aqueceu o meu coração e me fez ter um vislumbre do tipo do pai que meu
filho teria. E o que vi me deixou mais serena.
Agora só faltava contar a minha família, tinha certeza de que minha
mãe iria ficar eufórica com a notícia.
*
Abri a porta da cozinha e logo de imediato o aroma dos alimentos
invadiu as minhas narinas. Um em especial me fez salivar e roubou o meu
foco principal.
— Esse cheiro maravilhoso é cereja? — Todos os olhares se
voltaram para mim, que estava junto a parede próximo a porta. Achei
engraçado que eles não conseguiram disfarçar o espanto diante da minha
presença.
— Sim, estamos fazendo uma redução de cereja e outras frutas
vermelhas — coube a Nicolas responder.
— O cheiro é realmente incrível.
— Você quer experimentar? — Meus olhos brilharam como uma
criança reagiria se fosse oferecido uma deliciosa bola de sorvete.
— Eu posso? É pedir muito apenas as cerejas?
— Você pede e eu obedeço — a frase foi acompanhada de uma
piscadela, o suficiente para acelerar os batimentos do meu bobo coração.
Assisti, do cantinho, Nicolas pegar uma taça de sobremesa e em
seguida preenchê-la até quase a borda com cerejas em calda. Minha boca
encheu de água apenas em expectativa de tê-las em minha boca.
— Aqui está.
— Obrigada.
A pequena fruta suculenta e macia se desmanchou em minha boca, e
eu mordi os lábios para conter a minha satisfação diante de tal sabor. A
minha reação não passou despercebida por Nicolas que me fitava em total
atenção, seus olhos desviaram do meu rosto para a minha boca. E de
repente a cozinha pareceu ainda mais quente.
— Muito gostoso — um sorriso largo se espalhou pelo seu rosto —
estava falando do sabor das frutas.
— Do que mais seria? — Ergueu a sobrancelha.
— Será que a gente pode falar em particular rapidinho?
Saí da cozinha acompanhada de perto por Nicolas, perto demais até,
podia sentir o calor do seu corpo próximo ao meu. O meu cérebro dizia para
me afastar, mas o meu corpo ansiava por aquela proximidade. No fim, a
razão venceu e, na minha sala, impus uma distância segura para não ceder
ao desejo. Assim, depositei a taça cheia de cerejas na mesa antes de me
colocar atrás dela;
— Aconteceu alguma coisa? Não está se sentindo bem? — A
preocupação dele amoleceu o meu coração, mas me mantive atrás da mesa
do escritório.
— Estou bem — sorri — convidei a minha família para jantar aqui,
vou contar a eles que estou grávida. E gostaria de pedir a sua ajuda para
executar uma ideia que eu tive. Gostaria que esse cartão fosse colocado em
um cloche[ii] e servido a minha mãe — Nicolas me ouvia com atenção —
sei que não é do expediente de um chef, mas eu não queria pedir aos outros
funcionários.
— Não se preocupe.
— Tem outra coisa — me fitou em expectativa — também sei que
não tenho nenhum direito de impedir que você circule no seu restaurante,
mas será que poderia não ir até o salão enquanto minha família estivesse
presente?
— Algum motivo específico?
— Algo me diz que assim que minha mãe pôr os olhos em você ela
vai deduzir que você é o pai. E quero evitar situações constrangedoras do
tipo ela perguntando quando pretendemos nos casar.
— E pretendemos nos casar?
— Você sabe que não.
— Esperei um grito alto com “é claro que não”, mas ele não veio.
Pretende me pedir em casamento, Dafne?
Nicolas me destinou um daqueles seus sorrisos irritantes.
— É claro que não! Satisfeito, agora?
— Não me satisfaço com pouco...
— Enfim, será que podemos focar no assunto principal?
— Que é você me esconder dos seus pais.
— Não, é evitarmos o seu constrangimento.
— Acho que eu sobrevivo diante de um pai questionando as minhas
verdadeiras intenções com a sua filha.
— Deus, como você é irritante!
— Vai me esconder para sempre dos seus pais?
— Eles saberão que você é o pai do meu filho, mas no momento
oportuno.
— Que seria?
— No momento oportuno, oras. Então, vai atender ao meu pedido?
— O que ganho em troca?
— É isso, você vai barganhar um favor?
— Vou! — Sorriu.
— Vai, me diz o que você quer.
— Um beijo.
— Não, outra coisa.
— Tem certeza? — Abriu um sorriso malicioso —posso pensar em
algo mais íntimo.
— Ok, um beijo — soltei o ar.
Um beijo não significa nada, Dafne.
— Vamos logo com isso — saí de trás da mesa com passadas
rápidas e me coloquei em sua frente, esperando que ele me beijasse.
Nicolas diminuiu ainda mais a nossa distância, o seu braço circulou
a minha cintura, e olhei para a sua boca desejando que ele me beijasse
rapidamente, mas pelos motivos errados. Nicolas impôs o seu ritmo,
lentamente ele inclinou a cabeça e fechei os olhos pronta para sentir o toque
macio dos seus lábios nos meus.
— Agora não, docinho. No momento oportuno — sussurrou ao meu
ouvido, os lábios tocando o lóbulo da minha orelha.
A irritação dominou o meu corpo e levei as duas mãos contra o seu
peito o empurrando para longe de mim. Mas ele não se moveu um
centímetro com o meu empurrão.
— Bom jantar em família, Dafne — desejou sorridente antes de me
soltar por livre e espontânea vontade.
Com o coração acelerado e a respiração mais profunda o vi deixar a
sala.
Maldito chef irritante!
*
Pontualmente a família Capolavoro chegou ao Bernard, faltava
apenas o nosso mascotinho, Samuel tinha ficado com a tia Vivi, amiga de
Ayla que estava de visita em Aracaju. Acompanhei os olhares de admiração
da minha mãe para o ambiente ao seu redor e obtive o olhar de aprovação
do papai. Ayla e meu irmão também apreciaram o ambiente, todos estavam
encantados com o clima do ambiente externo proporcionado pela linda
árvore. Em contrapartida, eu estava agitada diante da iminente revelação.
Mas consegui disfarçar bem sorrindo e interagindo com eles.
— Dafne, você avisou ao elegante chef Nicolas que estaríamos
aqui? Gostaria de elogiá-lo pelo restaurante e pela comida.
— A senhora sequer chegou a provar a comida — sorri.
— Tenho certeza de que vou apreciar. Avisou ou terei que pedir a
um garçom que faça isso? — Não foi preciso mentir para a minha mãe, pois
o garçom se aproximou com a minha surpresa.
Meu coração parecia que ia sair pela minha boca.
Minha mãe não desconfiou de nada até erguer a tampa e encontrar
um pequeno envelope preto. Os olhos percorreram todos na mesa até se
fixar em mim, sorri indicando com a cabeça que fosse em frente. De dentro,
ela retirou o bilhete dobrado ao meio escrito no topo: Leia em voz alta.
E ela o fez:
— A mamãe me disse que você é a mulher mais incrível, generosa e
carinhosa do mundo! Eu não vejo a hora de receber os seus beijos e
adormecer no seu colo. Parabéns, minha futura vovó! — Ela me encarou —
isso não é uma pegadinha, é?
— É sério, você vai ser vovó! — Anunciei sorrindo. E por um
pequeno intervalo de tempo nada foi dito. — Você me pediu tanto um neto
e agora não vai dizer nada?
— Eu estou tão feliz que não consigo expressar em palavras, meu
amor — as lágrimas rolaram pelo seu rosto — a nossa menininha vai ser
mãe — ela se voltou para o meu pai, que me fitava com os olhos marejados.
— Parabéns, vovô!
— Dafinha, parabéns! — Meu pai me puxou para um abraço
desajeitado. — Você vai ser uma mãe incrível, não duvide disso um único
dia — foi a minha vez de extravasar a minha emoção em lágrimas.
— Samuel vai ter um priminho. Parabéns, Dafne — Ayla ficou de
pé para cumprimentar com um abraço apertado.
— Cunhadinha, vou precisar dos seus conselhos para não surtar —
sorri.
— Conte comigo.
— Quem diria que mamãe adivinhou mais uma gravidez — Meu
irmão fez todos nós rirmos. Ele abriu os braços para me receber em um
abraço apertado — para quem passa a noite vendo documentário me
surpreende que tenha um bebê na sua barriga.
— Besta! — Gargalhei em resposta.
— Eu falei que tinha algo diferente com você, não falei? Mãe sente
essas coisas — minha mãe disse sorrindo. — Quando descobriu? Você está
de quantos meses? Já procurou um médico para saber se está tudo bem com
você e o meu neto?
— Descobri há apenas dois dias, estou de quatro semanas, o bebê e
eu estamos muito bem — vi o semblante de serenidade aparecer no rosto da
minha mãe.
— É indelicado perguntar pelo pai? — Meu pai consultou baixinho
para meu irmão.
— Não é, pai — respondi — em breve vocês irão conhecê-lo.
— É claro que vamos conhecer o pai do nosso neto, vou organizar
um jantar para que toda a minha família seja apresentada a ele.
— Sem jantares, por enquanto.
— Está com vergonha de apresentar a sua família?
— Claro que não, mãe. É só que eu e o pai do bebê não temos nada.
Foi uma noite sem compromisso — confessei.
— Agora têm um bebê a caminho — Silvio disse levando a taça de
vinho à boca.
— E bebê une casais — minha mãe completou.
— Eu não concordo com essa teoria, mas para unir um casal ele
precisa existir.
— Ele tem 8 meses para te conquistar — deu um sorrisinho de
satisfação.
— Quando finalmente atendo a sua expectativa de dar um neto, uma
nova é criada, assim fica difícil — reclamei.
— Um brinde à chegada do meu novo neto! — Meu pai ergueu a
sua taça e todos o acompanhamos.
— Que venha com saúde — minha mãe acrescentou.
— Ao novo integrante da família Capolavoro — foram os votos do
meu irmão.
É filho, você mal nasceu e já está cercado de tanto amor.
Bem-vindo, pequeno.
 

Domingo era o principal dia do meu tão merecido descanso, mas ao


contrário da maioria das pessoas que aproveitavam a folga para acordar sem
o habitual alarme do despertador, eu acordava na minha folga tão cedo
quanto os outros dias de trabalho e o motivo era um só: Vicente. Os meus
domingos eram sempre dele, mesmo muito antes do meu divórcio com a
Ingrid.
A rotina de trabalho no restaurante era árdua e muitas das vezes
incompreendida pelos familiares, amigos, namoradas e afins. Eu trabalhava
aonde as pessoas iam para se divertir, confraternizar e relaxar. Isso
significava, automaticamente, trabalhar em feriados, Natal, ano novo,
Carnaval… Na minha vida pessoal havia uma lacuna que eu não conseguia
preencher por mais que eu quisesse. Em quantos aniversários estive
ausente? Quantos jantares em família não pude estar presente por que
estava trabalhando?
Cozinhar era a minha paixão, me sentia realizado a cada prato
criado e os elogios recebidos eram meu combustível, mas havia um preço
alto e eu paguei por ele. Estar dentro da cozinha fazendo o que eu amava
não aplacava minimamente a culpa que eu sentia por não estar tão presente
na vida das pessoas que eu amava. Por isso, eu determinei após o
nascimento de Vicente que aos domingos seriam os dias que o Bernard
fecharia as suas portas. Depois vi que seria necessário fechar nas segundas
também e assim os dois dias seriam dedicados exclusivamente ao meu
filho, uma promessa que eu cumpria até hoje com extrema felicidade.
Desse modo, os preparativos para receber o meu filho iniciavam no
sábado à tarde quando os meus pais o pegavam na casa mãe e o levavam
para dormir na casa deles. Quando saí da casa que morava com Ingrid,
precisei encontrar um lugar para morar, dessa maneira levei em
consideração que residir próximo aos meus pais facilitaria os cuidados com
o Vicente, porque eventualmente eu precisaria da ajuda deles. Então,
quando o meu pai me noticiou sobre o morador do oitavo andar que estava
de mudança interpretei como um sinal para ir adiante com os meus planos.
Comprei o apartamento vago e me mudei para ele imediatamente.
Meus pais ficaram felizes em me ter morando a sete andares de
distância e mais ainda em cuidar do neto, por isso transformaram o antigo
quarto de hóspede no quarto do Vicente, com decoração que ele mesmo
ajudou a escolher. Não preciso dizer o quanto tudo isso tem funcionado bem
nesses anos, fortalecendo o laço afetivo entre eles. O nosso acordo era que
no domingo, assim que o neto acordasse, fosse trazido até mim para que
pudéssemos realizar o nosso tradicional café da manhã juntos e traçássemos
os planos do dia. Em geral, Vicente acordava bem cedo para aproveitar cada
segundo comigo, palavras dele.
A campainha anunciou a chegada dele no exato momento que o
sanduíche de bacon e ovos ficou pronto. Praticamente corri até a porta
sabendo que um abraço apertado me aguardava do outro lado.
— Pai! — Vicente soltou a mão do avô e se jogou nos meus braços.
Ergui o agora não tão pequeno Vicente e o abracei apertado, deixando toda
a saudade se diluir naquele gesto.
— Daqui uns dias papai não vai conseguir mais te pegar no colo,
cara — disse sorrindo, colocando-o no chão.
— Eu já estou quase do tamanho da vovó, né vô? — Falou
orgulhoso.
— Sim, não dou alguns meses para você ultrapassar a sua vó. E logo
menos, será minha vez de ser deixado para trás na altura — meu pai sorriu
para o neto. E em seguida se aproximou para me cumprimentar com um
abraço seguido de um beijo no rosto.
A demonstração de afeto sempre foi uma marca da família Bernard,
cresci recebendo abraços dos meus pais, escutando o quanto eles me
amavam e se orgulhavam de mim. Meu pai nunca teve dificuldade em
demonstrar sentimentos, sempre foi um chorão assumido e não tinha
vergonha de externar o seu carinho por quem nutria sentimentos. Seus
amigos, sua esposa, filho e agora neto eram sempre alvos das suas
mensagens carinhosas, dos seus abraços sinceros e do amor que só seu
Antenor era capaz de proporcionar. Quando descobri que seria pai pela
primeira vez, o meu primeiro pensamento foi que eu gostaria de ser o pai
que tive. Que eu pudesse estabelecer uma relação de companheirismo,
respeito e demonstrações públicas de amor com meu filho. Olhando em
retrospecto, acho que atingi o meu objetivo, a nossa relação de pai e filho
era de parceria e respeito. Assim como sempre foi a minha com o meu pai.
— E mainha? — Perguntei.
— Se arrumando para ir à feira, pediu para perguntar se você quer
alguma coisa de lá.
— Não. Você quer alguma coisa, filho?
— Amendoim e aquele negócio que vem em cima de uma folha de
bananeira que esqueci o nome agora.
— Beiju molhado — sorri.
— Isso.
— Não quer ir com o vô e a vó comprar?
— Acho que eu prefiro ficar com o meu pai.
— Isso, fique com seu painho, então — ele sorriu. — Espero vocês
para jantar?
— A vovó disse que ia fazer escondidinho de macaxeira — Vicente
contou em tom de segredo.
— Não podemos perder esse jantar, não é? — Meu filho balançou a
cabeça em afirmação, sorridente.
— Vejo vocês mais tarde.
— Tchau, vovô.
— Até mais tarde.
Fechei a porta e antes que eu pudesse trancá-la, meu filho se
mostrou faminto.
— Pai, e o nosso café da manhã?
— Pronto para ser devorado.
Vicente sorriu ao observar a mesa repleta de alimentos que ele mais
gostava. Havia salada de frutas, biscoito amanteigado, leite, achocolatado,
iogurte, sanduíche, frios e pães. Ele ocupou o lugar na ponta da mesa e me
sentei ao seu lado, pegou a taça com salada de frutas, acrescentou mel e
começou a comer. Enquanto eu me servi de café com leite para despertar de
uma vez por todas.
— Pai, temos que comprar o presente da Valentina — comentou
depois da terceira colherada.
— Hum, e quando é o aniversário dela?
— Na terça, vai ser uma festinha na escola. O problema é que eu
não sei o que comprar ainda.
— Você sabe o que a Valentina mais gosta?
— Ela gosta de ursinhos, chocolate e canetas diferentes, com
bichinhos, pingentes e cheirinho de frutas.
— No shopping tem uma loja que vende itens de papelaria bem
diferentes, podemos passar lá, o que acha?
— E se a gente não encontrar, podemos comprar chocolate, né?
— Pronto, está decidido. A gente pode ver se tem algum filme
infantil em cartaz também — sugeri sabendo que ele gostava de ir ao
cinema.
— E almoçar no Rei do Camarão? —Sugeriu, empolgado.
— Pensei em cozinhar para você — confessei.
— Você nunca cansa de cozinhar?
— Não — sorri — no restaurante eu cozinho para dezenas de
pessoas, os pratos são escolhidos por elas, já em casa eu que decido qual
alimento preparar. Além do mais, cozinhar para quem se ama é sempre
prazeroso.
— Acho que eu ia achar chatão ser cozinheiro e também ter que
cozinhar em casa, só ia pedir comida pelo aplicativo.
— Até sei o que você ia pedir...
— Pizza pisa em qualquer comida — declarou como o esperado. —
Ela tá no top 1 da minha lista preferida, em segundo vem camarão e em
terceiro, a lasanha e o petit gateau. Qual sua lista de alimentos favoritos de
todo o mundo, pai?
— Sabe que eu nunca tinha parado para pensar nisso!? Acho que
não consigo escolher apenas três. Gosto de macarronada, qualquer prato
com frutos do mar e sobremesa com frutas vermelhas.
— É impressionante como tudo com camarão é gostoso. O
espaguete com camarão que você faz é de outro mundo.
— Mais do que o do Rei do Camarão? — Ergui a sobrancelha.
— Não me coloque nessa situação, pai — ri alto em resposta.
— Papai quer compartilhar uma notícia com você — ele me olhou
desconfiado.
— É boa ou ruim?
— Boa, pelo menos eu fiquei feliz quando recebi a notícia.
— Então, acho que também devo ficar — sorriu.
— Está preparado?
— Conta logo, pai!
— Você foi oficialmente promovido a irmão mais velho.
— Eu vou ter um irmãozinho?
— Ou uma irmãzinha.
— Por que a mamãe escondeu isso de mim? — Franziu a testa.
— A sua mãe não sabe.
— Então, ela não sabe que está grávida? — Me olhou em confusão.
A confusão dele era justificável, pois mesmo com o divórcio Ingrid
e eu tivemos nossas recaídas. Não tinha rótulos para o que tínhamos,
ficávamos sempre que tínhamos vontade, e seguíamos nossa vida
normalmente no dia seguinte. Então diversas vezes, nosso filho me viu
beijando a mãe ou dormindo na casa dele.  Nunca passou pela minha cabeça
que isso pudesse gerar uma confusão nele, até esse momento.
— Não vou ter um filho com a sua mãe, mas com outra mulher.
— Humm... Entendi, é filho da sua segunda namorada.
Deveria ter no Google o seguinte tópico: Como explicar ao seu filho
que o que você tem com a mãe dele não é nada, além de sexo casual? Foi
mais fácil quando ele me perguntou como faz para ter um bebê.
— O seu irmãozinho é filho da Dafne! — Falei a primeira coisa que
surgiu na minha cabeça.
— A Dafne que comprou o seu restaurante? — Assenti em
confirmação — ela é bem legal, acho que vai ser uma mãe legal. Mas a
minha mãe é mais legal porque é minha, né?
— Você tem toda razão — sorri.
— Meu irmãozinho terá pais maneiros, assim como eu tenho —
sentenciou — agora tem uma questão importante: você vai ter que mudar
para uma casa maior? Eu gosto daqui.
— Eu também gosto, não tenho planos para mudar ainda. Mas
porque a pergunta?
— Então, o bebê vai ter que dormir no mesmo quarto quando eu
estiver aqui... Mas o Jaime disse que o irmão dele chora muito, muito
mesmo, quase deixa ele surdo. E se meu irmão for assim? Eu era assim?
— Nem todos os bebês choram muito assim. E você era bem
tranquilo e só chorava quando estava com fome.
— Tomara que meu irmãozinho seja assim também ou precisarei de
tampão para conseguir dormir — sorri em resposta.
O resto da nossa conversa girou em torno do seu irmãozinho e todas
as coisas que ele ensinaria como irmão mais velho. Enquanto o ouvia a
sensação de orgulho e amor se apoderou do meu corpo.
Eu era um homem de sorte por ser pai do Vicente.
 

A vida era uma caixinha de surpresas. Alguns meses atrás, se


alguém me dissesse que eu engravidaria em breve, iria rir na cara da pessoa.
Agora aqui estou gerando um bebê cujo pai era um homem irritante e
extremamente atraente. Algo havia mudado nas últimas semanas, o seu
cheiro, a sua voz, até o maldito sorriso que tinha o poder de me chatear com
facilidade, agora me atraía. Meu corpo estava consciente, até demais, do
seu. De modo que ficava cada vez mais difícil resistir a Nicolas.
Se esse meu dilema fosse compartilhado com Celeste, a minha
amiga diria que eu deveria me jogar nos braços do chef gostosão e
aproveitar cada segundo. E era exatamente o que eu queria fazer nesse
exato momento quando ele entrou na minha sala. Capturei cada pedaço do
homem que eu via todos os dias usando seu tradicional traje de chef de
cozinha, mas que agora usava uma camiseta  básica azul-claro e calça jeans.
Os cabelos castanho-claros estavam molhados, a barba curta e rente ao
rosto resultado dos dias de folga e o cheiro com frescor de quem acabou de
sair do banho. Ele percebeu a minha varredura pelo seu corpo e sorriu,
como se quisesse me dizer: aprecie sem moderação. O que me fez achá-lo
detestável e me repreender mentalmente por ser pega em flagrante.
— Acabaram de entregar esse pacote para você — só então notei a
caixa em suas mãos.
— Estranho, não me recordo de pedir nada — ele se aproximou e
imediatamente meu corpo reagiu com a proximidade. A caixa foi colocada
sobre a mesa e ele se afastou, mas manteve-se perto, sentando-se na cadeira
à minha frente.
— Pode ser presente de um admirador — insinuou.
— Se fosse, não seria o endereço do Bernard que eu informaria.
— Faz bem, não gostaria de saber da existência de admiradores
secretos.
— Você sabe que não temos nada, né? — Ergui a sobrancelha.
— Exceto um filho.
— E só.
— Parece muita coisa para mim — sorriu.
Ele tinha razão, mas eu fiquei em silêncio. Ter um filho do Nicolas
era mais coisa do que um dia imaginei que fosse possível.
Voltei a minha atenção pela caixa cor de marfim em curiosidade
para saber o seu conteúdo. Assim que levantei a tampa, reconheci o vestido
que eu havia comprado para a cerimônia de premiação.
— Seu admirador acertou no presente?
— Não é de um admirador, embora isso não seja da sua conta. É o
vestido que vou usar no Prêmio de Gastronomia de Sergipe, acho que
acabei confundindo os endereços na hora que passei para a loja.
— Quer dizer que seremos concorrentes? — Arqueou a sobrancelha
— O Bernard foi indicado na categoria de Melhor Restaurante.
— Independente do resultado eu levo a melhor — sorri.
— Tem razão, é a dona dos dois. Além do mais, essa é a minha
deixa para pedir que seja você a representá-lo no evento em caso de
eventual vitória.
— Você não vai? — Perguntei surpresa.
— Eu não costumo frequentar esses eventos, prefiro ficar na minha
cozinha.
— Acho que você é o único chef modesto que eu conheço. A sua
categoria ama ser prestigiada publicamente.
— Eu já consigo isso no meu restaurante.
— Ainda assim, acho que deveria ir.
— Está querendo companhia?
— Já estarei muito bem acompanhada.
— Do almofadinha esnobe que fala francês?
— Do Fabrício, não — Nós não nos falávamos desde aquele jantar,
ele disse para entrar em contato quando eu mudasse de ideia sobre ficar
com ele. Mas esse dia nunca chegou. — Não me diz que você ficou com
ciúmes? — A possibilidade me fez sorrir e ao mesmo tempo questionar o
motivo.
— Apenas achei que você merecia algo melhor. Tipo eu, por
exemplo. — Ri alto em resposta.
— Como pode ser tão convencido?
— E gostoso, palavras suas — fui guiada até a noite que transamos
nessa mesma sala e meu corpo esquentou em lembrança ao dia que nosso
filho foi concebido.
— O tesão faz a gente dizer coisas que nos arrependemos no dia
seguinte.
— Não me arrependo de nenhum segundo daquela noite — a
intensidade com que as palavras saíram da sua boca me atingiram mais do
que deveria. Os batimentos do meu coração se aceleraram e cada célula
adormecida do meu corpo, despertou fazendo o sangue correr mais rápido
nas minhas veias.
— Humm, vamos falar do motivo pelo qual solicitei essa reunião —
fingi procurar entre os papéis previamente organizados o relatório. — Aqui
está a sua cópia para acompanhar.
Passei as folhas para ele e nossos dedos se tocaram brevemente
irradiando uma onda de calor pelo meu corpo. Precisei de alguns segundos
até recobrar a atenção que o momento exigia e, para não me distrair,
novamente decidi falar olhando para a tela do notebook.
— Bom, esses são os dados detalhados dos últimos três meses do
restaurante, conforme você pode observar nas páginas de 1 a 5.
— Isso é desnecessário, confio em você — ergui a cabeça em
resposta.
— Essa é a coisa mais idiota que escutei vindo de você e olhe que
você fala muitas outras.
— Se eu não confiasse em você, não seria o seu sócio.
— Sócios também passam a perna um no outro — contra-
argumentei.
— Não você!
— Como pode ter tanta certeza? — Ergui a sobrancelha.
— Você não investiria seu tempo e se dedicaria de corpo e alma ao
Bernard se houvesse algum interesse em me sabotar.
— Nicolas continua sendo irracional não querer saber o que
acontece com as finanças do seu restaurante, não é à toa que precisou
vendê-lo — o sorriso desapareceu de imediato do seu rosto ele ficou com o
semblante fechado, de uma forma que eu nunca tinha visto. — Desculpa,
não tive intenção de te ofender.
— Não precisa se desculpar, você tem razão, fui ingênuo e me
ferrei, mas dessa vez eu tenho motivos para confiar em alguém.
— Agradeço a confiança depositada em mim, mas insisto em falar
sobre o relatório financeiro.
— Não vou te convencer do contrário, não é?
— Não — sorri.
— Sou todo ouvidos — recostou na cadeira, levando as mãos atrás
da cabeça em postura relaxada.
Apresentei o balanço financeiro a Nicolas, mostrando os dados do
fluxo de caixa. Um instrumento importante utilizado por empresários para
acompanhar a situação financeira da sua empresa. Nele se registra toda a
movimentação de entradas e saídas de dinheiro que já aconteceram na
empresa, nesse caso os três meses desde a implantação real das minhas
sugestões de mudanças. O saldo até a presente data era extremamente
positivo, isso era decorrente do crescimento no número de clientes. A
abertura do restaurante no horário do almoço era fator determinante para
esse crescimento, assim como os eventos realizados que cresciam em uma
escala exponencial.
— Portanto, a minha projeção é um crescimento ainda maior pelos
próximos meses.
— Viu só? Não tinha por que me preocupar com administração do
restaurante — sorriu — parabéns pelo excelente trabalho.
— Obrigada pelo reconhecimento ao meu trabalho. Isso se tornou
importante na minha vida — Nicolas me fitou com um sorrisinho sacana na
sua boca gostosa — me refiro ao restaurante, é claro.
— Ao que mais seria, afinal? — A frase foi acompanhada de uma
piscadela.
— Falando no restaurante, agendei uma sessão de fotos suas com a
equipe que está administrando as redes sociais. Eles acham que precisa de
pessoalidade nas publicações, as fotos dos pratos em si são atrativas, mas é
preciso mostrar o responsável por eles. E eu concordo plenamente com eles.
— Isso é mesmo necessário? Sempre trabalhei para que o centro do
meu restaurante fosse a comida.
— E vai continuar sendo, acrescentaremos o seu belo rosto à comida
excepcional que você cria. Além do mais, até parece que você não gosta
quando a sua presença é requisitada no salão e as mulheres se derretem por
você.
— Não tenho culpa se sou irresistível. — Deu de ombros.
Irresistível, irritante e extremamente gostoso.
— Então, use toda essa irresistibilidade e seduza as câmeras, isso
atrairá mais clientes.
— Tudo bem, patroa.
— Sócia — corrigi.
— Majoritária — ressaltou.
— Sim, é muito importante lembrar desse detalhe — dei de ombros.
— E como você e o bebê estão?
— Estamos bem, obrigada por perguntar, os enjoos praticamente
sumiram.
— Fico feliz em saber. Ah, Dafne...
— Sim?
Ele se manteve alguns minutos em silêncio, me encarando.
— Era só pra dizer que se precisar de qualquer coisa não hesite em
me dizer.
— Ah, certo, o farei.
Nicolas ficou de pé e deixou a minha sala, mas a sua presença
pareceu continuar ali.
 

A noite do 1º Prêmio de Gastronomia de Sergipe chegou e a


sensação era de vitória. Antes mesmo que os vencedores fossem anunciados
eu já me sentia uma vencedora, afinal era a única mulher concorrendo na
categoria empresário do ano.
Não era novidade para ninguém da área o quanto o mundo
gastronômico era extremamente machista e por vezes opressor com as
mulheres. A prova disso era que a maioria dos chef eram homens, não
porque a mulher demonstrava nível inferior à figura masculina, mas sim
porque poucas conseguiam alcançar o lugar de destaque devido à falta de
oportunidades. Isso também era evidenciado no número de mulheres
gerenciando restaurantes. Um levantamento do ano de 2019 constatou que
apenas 5 dos melhores 50 restaurantes do mundo eram comandados por
mulheres. Havia uma espécie de acordo tácito entre os homens para que
isso não fosse modificado, portanto ocupar esses espaços era um ato de
resistência.
Se a cultura do machismo estrutural prevalecia, cabia às mulheres
que ocupavam posição de destaque trazer as outras para o pódio. Por isso,
no Capolavoro a chef era mulher, assim como os demais integrantes da sua
equipe, essa era uma tradição que começou com a minha mãe e prosseguia
na minha administração. Por isso, pela primeira vez em anos, as portas do
Capolavoro se fecharam para que as mulheres que comandavam o
restaurante pudessem celebrar ao meu lado esse momento tão especial.
A minha família também se fazia presente, todos elegantíssimos
como o ambiente exigia. O pequeno Samuel estava lindo, trajando uma
calça de sarja preta e uma camisa social azul. A camisa combinava com a
que o pai usava por baixo do terno e estava evidente no rosto do meu irmão
a sua felicidade com essa combinação pai e filho. Ayla seguia deslumbrante
em um vestido preto estilo sereia, enquanto papai em sua tradicional
elegância escolheu um terno risca de giz preto. Já mamãe escolheu um
vestido prata com sobreposição de renda e mangas curtas.
Enquanto eu optei por fugir do básico preto e prata e apostei num
vestido azul royal. O modelo estilo midi era feito de tecido plissado na parte
inferior, já a parte de cima possuía detalhes cruzados no busto e decote em
V, além das mangas compridas que terminavam antes do punho.
Havia um clima de confraternização no ar, mas também era um
ambiente propício para networking. Por isso, por mais que a minha vontade
fosse exclusivamente ficar ao lado da minha família, circulei pelo salão,
cumprimentei velhos conhecidos e tive a oportunidade de conhecer
fornecedores, empresários e chef de cozinha. Mas nenhum deles era o chef
Nicolas Bernard.
— Está procurando por alguém? — Minha mãe que ocupava a
cadeira ao meu lado perguntou. É claro que não passaria despercebido para
ela as diversas vezes que eu varri o salão de eventos com o olhar. Havia
uma parte de mim que torcia para que Nicolas mudasse de ideia e viesse.
— Não.
— Pois para mim parece que sim — sorriu. — É o charmoso chef
Bernard? Soube que o restaurante dele, que agora é seu, está concorrendo.
Mas não o vi pelo salão.
— Sim, está. Mas ele não vem.
— É uma pena, gostei muito dele. Ele é o tipo de homem que toda
mãe deseja para a sua filha.
— Por que não estou surpresa com o fato de a senhora querer me
jogar nos braços do Nicolas? Desde que meu noivado acabou, o que mais a
senhora faz é me empurrar em direção a todos os homens solteiros da
cidade.
— Não são todos os solteiros — ergui a sobrancelha, incrédula —
são os melhores partidos e o Nicolas parece um. Se bem que agora tem o
pai do bebê para levar em consideração nas minhas escolhas. Você não vai
mesmo apresentá-lo à família? Pelo menos o nome você deveria dizer.
O mestre de cerimônia foi o responsável por me salvar de assumir
que Nicolas era o pai do filho que eu esperava. Afinal, eu sabia que assim
que minha mãe soubesse ela iniciaria os preparativos do nosso casamento.
O que era uma ideia estapafúrdia, não compartilhávamos nada em comum
além da atração física. Pelo menos da minha parte eu podia assegurar que
era só isso.
Afastei os pensamentos de Nicolas e voltei a minha atenção para o
palco. Uma longa e desnecessária apresentação foi feita sobre os
organizadores, os patrocinadores e a equipe técnica responsável pela
escolha dos vencedores, formada por críticos gastronômicos e chefs. Após
isso, o ritmo das coisas acelerou e começou as premiações, a minha
serenidade deu lugar a ansiedade.
— Acho que vou vomitar de nervosismo — declarei em tom de
confissão.
— Quer ir ao banheiro? Posso te acompanhar — minha mãe se
ofereceu.
— Está tudo bem, é apenas a sensação nauseante de quem está tensa
— busquei tranquilizá-la.
As primeiras categorias que subiram ao palco para receber seus
respectivos prêmios, foram a de melhor bar, melhor bar de praia, melhor
food park e melhor pizzaria. Alguns dos estabelecimentos eram do meu
conhecimento, os outros elenquei como lugares que eu gostaria de conhecer
futuramente.
— Agora chegou o momento de revelarmos o melhor restaurante —
a expectativa fez o meu coração bater mais rápido. — E pelo que os jurados
me confidenciaram nos bastidores, foi a decisão mais difícil. Afinal, os
estabelecimentos dessa lista são todos de altíssimo prestígio.
— Por que esse homem não para de enrolar e vai direto ao assunto?
— Meu pai deu voz ao pensamento.
— Sem mais delongas, o prêmio de melhor restaurante dessa noite
vai para — ele fez suspense por alguns segundos — o restaurante
Capolavoro.
Uma sequência de aplausos acompanhou o resultado.
— Vencemos! — Vibrei emocionada.
— Nunca duvidamos disso, meu amor — papai beijou o meu rosto.
As felicitações se estenderam por todos da mesa e vi em cada um
daqueles rostos a alegria pela vitória. A chef Rizio sorria e chorava ao
mesmo tempo, o mesmo sentimento de euforia foi acompanhado pelas suas
assistentes.
— Esse prêmio é nosso! — A minha fala se estendia para a equipe
da cozinha, afinal não existia melhor restaurante sem comida de qualidade.
Mas em especial ela foi direcionada a minha mãe, o alicerce do restaurante
da família. Nada mais justo que levá-la ao palco comigo para receber esse
prêmio. — Vem comigo, mãe.
— Filha, não precisa — disse com a voz embargada
— Não tem a menor condição de eu subir nesse palco sem a
fundadora do Capolavoro.
Mamãe se colocou de pé e de mãos dadas seguimos para receber o
nosso prêmio.
Mais palmas acompanharam a nossa chegada ao palco, além das
declarações de amor ditas pelo meu pai em voz alta. A assistente
responsável por entregar o troféu de premiação nos parabenizou e em
seguida me passou o símbolo da vitória: um prato de prata. Minha mãe e eu
admiramos em silêncio o prêmio e a nossa troca de olhar transmitiu toda a
emoção que esse reconhecimento representava nas nossas vidas.
Achei que as minhas pernas não responderiam enquanto eu me
dirigia ao púlpito, tamanha era a minha emoção. Mas elas me guiaram em
passos firmes e decididos até o local. E com a minha mãe ao meu lado,
iniciei o discurso de agradecimento.
— Boa noite, agora que estou aqui me dei conta de que eu deveria
ter preparado um discurso minimamente coerente, pois parece que meu
cérebro derreteu no caminho — algumas risadas surgiram com a minha fala.
— Não há como começar qualquer agradecimento sem antes agradecer a
Deus, sem Ele eu não teria chegado até aqui. Agradeço também a minha
família que sempre me apoiou e incentivou a nunca desistir dos meus
sonhos. A chef Rizio, a subchefe Dayane, as cozinheiras Jojo e Mirela, as
mãos talentosas responsáveis por transformarem alimentos em arte. Além
de toda equipe que faz o restaurante funcionar, desde os seguranças,
passando pelos garçons e terminando no pessoal da limpeza. Obrigada! Em
especial, gostaria de dedicar esse prêmio a minha mãe, Dinamares Gusmão,
a fundadora do Capolavoro. A minha eterna fonte de inspiração, foi através
do seu olhar que eu me apaixonei pela gastronomia. Te amo, mãe. — Uma
lágrima puxou a outra e quando vi eu estava chorando diante de todos.
— Eu te amo muito mais — fui envolvida pelo abraço que sempre
me transmitiu segurança.
Encerrei o meu agradecimento sob aplausos e começamos a
percorrer o caminho de volta à mesa, quando o meu nome foi anunciado
novamente. Eu tinha sido eleita a empresária do ano. Levei as mãos à boca
quando o palavrão criou forma em meus lábios.
— Eu ganhei! — Falei, puxando a minha mãe para um abraço.
— Vai lá receber o que é seu por direito.
— E a minha maquiagem? — Passei o dorso da mão abaixo dos
olhos para secar os últimos vestígios de lágrimas.
— Você continua linda.
Retornei ao palco, dessa vez sozinha, e em completo estado de
euforia. Com o novo prêmio em mãos retornei ao microfone, se da primeira
vez eu estava com dificuldade em organizar os pensamentos, agora não era
diferente. Esse prêmio significava muito para mim, ele era o
reconhecimento de muita dedicação, estudo e trabalho. Passei o último ano
com foco total em administrar o Capolavoro, tanto que acabei abdicando da
minha vida pessoal. Entretanto, havia zero arrependimentos. Saber que eu
consegui dar continuidade ao próspero restaurante familiar era o meu maior
orgulho. E eu queria encontrar as palavras certas para transmitir a
importância desse reconhecimento. Sem saber se elas surgiriam iniciei o
meu discurso.
— Hoje enquanto eu realizava o trajeto do meu apartamento até
aqui, um filme passou pela minha cabeça. E nele algumas cenas se
destacaram, como o desafio que eu encarei ao assumir o comando do
Capolavoro alguns anos atrás. Houve diversos momentos que a minha
capacidade foi questionada, não pelos que me cercavam, mas por um grupo
que na nossa atualidade ainda tem dificuldade em lidar com o fato de
mulheres ocupando espaços de poder, em especial no nosso meio. Perdi as
contas de quantas vezes ouvi, como se fosse um comentário inofensivo, que
eu administrava um restaurante apenas porque a minha mãe era dona. Era
evidente o ar de desconfiança e, por vezes, o claro desejo de me ver
fracassar. Porém, nunca dei ouvidos a nada do que se dizia ao meu respeito
e isso não está relacionado a prepotência, porque eu sabia o caminho que
percorri para ocupar esse espaço. E com isso não estou desconsiderando
que a minha inserção nesse meio tão machista foi facilitada pelo fato do
restaurante ser da minha família. Todavia, se o que me levou a ser
empresária foi o vínculo familiar, foi o meu talento e dedicação que me
trouxeram até o dia de hoje. Talvez todo meu discurso soe como prepotente
para alguns, afinal é negado às mulheres enaltecerem os seus feitos —
acompanhei rostos femininos assentindo em concordância a minha fala —
mas essa noite quero aproveitar a minha posição para enaltecer outras
mulheres que são apagadas pela estrutura patriarcal que nos cerca. Sou a
única mulher indicada ao prêmio e todos aqui sabem que diversas outras
mereciam essa indicação. A todas essas mulheres quero dedicar esse
prêmio, ele é nosso. Ele representa a nossa força em ocupar lugares em que
a nossa presença é indesejada. Espero que nas próximas edições do Prêmio
Gastronomia de Sergipe mais mulheres dividam comigo essa lista de
indicações. Obrigada.
Da posição privilegiada que eu ocupava, assisti a minha mãe ficar
de pé em puxar o coro de aplausos, Ayla se juntou a ela, e dezenas de outras
mulheres me aplaudiram efusivamente. Em completo estado de choque,
percorri o salão absorvendo a força daquele momento, quando de repente
um sorriso se destacou na multidão fazendo o meu coração dar cambalhotas
de felicidade.
Como se Nicolas fosse um imã que me puxava até ele, meu corpo se
movimentou indo ao seu encontro. Os degraus não se tornaram
impedimento a minha ânsia de tocá-lo, quando por fim pisei em solo firme
um pequeno grupo de mulheres interrompeu os meus passos, elas queriam
me parabenizar pelo discurso motivador. Quando finalmente elas se
dispersaram, notei que Nicolas havia desaparecido.
— Dafne, você está se sentindo bem? — Ayla surgiu ao meu lado.
— Estou — meus olhos seguiram a procura de Nicolas — apenas
preciso ir ao banheiro.
— Tem certeza de que está bem? Está muito quente aqui dentro,
seria bom que fossemos até a área externa tomar um pouco de ar fresco.
— NÃO! — Ela me encarou assustada, então decidi ser franca — vi
um rosto conhecido, mas o perdi de vista. E nesse momento tudo que eu
mais quero é encontrá-lo — o entendimento percorreu o seu rosto e a minha
cunhada sorriu.
— Vou voltar à mesa e dizer que você apenas está com uma vontade
incontrolável de fazer xixi — piscou para mim.
— Eu te amo, cunhadinha! — Beijei o seu rosto, passei o meu troféu
para suas mãos e segui na minha caça a Nicolas.
Não era uma miragem, meus olhos tinham capturado perfeitamente
cada traço do homem gostoso no terno azul marinho.
— Estava me procurando? — Arrepiei diante do reconhecimento
daquela voz próxima ao meu ouvido. Virei o corpo em sua direção e
encontrei o seu habitual sorriso, encarei seus lábios com vontade de
mordiscá-los antes de pressioná-los com os meus.
— Nicolas… — arfei o seu nome — achei que não viria.
Ele direcionou os olhos para meus lábios no meio da conversa.
— Vim cobrar o meu beijo — verbalizou.
Apesar de estarmos em uma área mais afastada, qualquer um que
passasse por ali poderia nos ver. Mas nada tinha importância diante da
expectativa de beijá-lo.
— Me beije.
Meu desejo foi prontamente atendido, Nicolas delicadamente puxou
o meu rosto, mas a delicadeza evaporou quando a sua boca tomou a minha
em um beijo avassalador. Nenhuma emoção que senti essa noite chegou
perto da explosão violenta de sensações que o seu beijo me causou. A
muralha que eu havia construído para me proteger do irresistível chef
desmoronou com extrema facilidade. Como se fosse um castelo de areia, as
barreiras ao redor do meu coração caíram por terra. E nada restou além dos
seus lábios marcando os meus feito fogo.
As mãos dele deixaram o meu rosto e circularam a minha cintura, as
minhas adentraram pelo seu terno em busca de pele, ávida pelo contato
mais íntimo. Eu queria mais do que seus beijos. Eu queria sentir sua pele na
minha. Eu queria tudo que ele pudesse me oferecer.
— Me leve daqui — sussurrei contra os seus lábios.
— Para onde?
— Qualquer lugar em que eu possa fazer mais do que beijar a sua
boca — ele riu em resposta.
— O seu desejo é uma ordem, minha rainha.
 

 
Demorei apenas o tempo de pegar a minha bolsa e me despedir da
minha família, inventando uma desculpa esfarrapada para sair dali o mais
rápido possível. O seu carro foi o responsável por nos transportar para o
apartamento dele, que para o meu alívio ficava a cerca de dez minutos do
salão que realizava a premiação. Consegui resistir a não o tocar pelo curto
trajeto, mas assim que chegamos ao apartamento, a porta se fechou atrás de
mim e as minhas mãos começaram a trabalhar. Tirei o paletó com o auxílio
dele que ajudou a peça sair mais fácil do seu corpo e segurei a gravata
enrolando o tecido sobre a minha mão, puxando-o para mim. Nicolas riu e o
seu sorriso desapareceu quando devorei os seus lábios, como se ele fosse o
ar que eu necessitava para me manter viva.
Havia desespero naquele beijo, uma urgência que eu não lembrava
de já ter sentido. Era como se estivéssemos famintos um do outro e o nosso
corpo fosse o banquete que o outro ansiava por devorar. E isso ficou
evidente à medida que os seus dedos escorregaram pela minha cintura, a
ponta dos dedos me desbravando por inteira. Quando ele invadiu o meu
vestido e os dedos se cravaram na minha bunda em um aperto firme, gemi
contra seus lábios.
— Nicolas… — Seu nome saiu como um suspiro, quando senti a
sua mão descer pelas minhas costas até chegar ao zíper.
Ele praguejou baixinho quando encontrou dificuldades para retirar o
vestido. Senti a sua impaciência aumentar na medida em que o zíper
invisível não cedia aos seus avanços. Me preparei para ajudá-lo na tarefa,
mas antes que meus dedos chegassem ao local, o som do tecido se rasgando
ao meio revelou que ele tinha alcançado êxito. Nunca pensei que seria tão
sexy que um homem, na ânsia de me tocar, rasgasse a minha roupa.
— Desculpe por isso — disse me ajudando a sair do emaranhado de
tecidos sobre os meus pés.
— Pode rasgar todos os meus vestidos desde que continue me
beijando.
— Eu vou te dar exatamente o que você quer, mas do meu jeito.
Quando Nicolas se colocou de joelho a minha frente uma corrente
de prazer percorreu meu corpo e culminou na minha boceta. Pronta para
recebê-lo, recuei alguns centímetros até as minhas costas tocarem a parede,
precisava de algo sólido atrás de mim para me manter de pé.
Uma mão em cada lado do meu corpo serviu para retirar a minha
calcinha. Mantendo o contato visual, acompanhei quando dois dedos se
colocaram em minha entrada molhada. Me esfreguei contra os seus dedos,
desejando ardentemente que eles escorregassem pela minha entrada. Mas
Nicolas não mentiu quando disse que seria do seu jeito, ao invés de invadir
a minha boceta com os seus dedos, ele separou os lábios dali e cessou o
toque. Ele levou o dedo brilhando da minha excitação até sua boca e o
sugou como se fosse o melhor alimento que já experimentou.
Estava prestes a suplicar que ele voltasse a me tocar, quando seus
lábios encostaram na minha boceta, em um beijo suave, mas intenso o
suficiente para arrancar o meu primeiro gemido da noite.
Ele me chupou e acariciou com a língua, meus dedos se enfiaram no
seu cabelo e o puxei para mais perto, pressionando sua cabeça contra o meu
centro pulsante e faminto por ele. Uma fome que Nicolas tratou de aplacar
com uma longa lambida. Incapaz de manter quieta, movi os meus quadris e
ele precisou usar as mãos para me manter firme naquela posição.
A língua de Nicolas encontrou o pontinho duro e pulsante, e eu gemi
alto em resposta, sem me importar em ser ouvida pelos vizinhos. Ele
prosseguiu investindo naquele ponto, a língua trabalhando em movimentos
circulares e constantes, castigando-me em uma tortura deliciosa.
Ele me surpreendeu ao aumentar a intensidade, começou a chupar
com força, dedos e língua passaram a arrancar de mim gemidos cada vez
mais altos. Fechei os olhos tomada pelo prazer absoluto, amando a sensação
de tê-lo ali dando-me absolutamente tudo que eu queria. A sua língua
incansável me guiou até a beira do precipício, minha outra mão se colocou
entre seus cabelos porque eu precisava me agarrar a alguma coisa para não
desmoronar. O combo de dedos e língua em sincronia me fez estremecer e
gritar o seu nome.
Com as pernas trêmulas, a respiração ofegante, ainda o sentindo em
mim mesmo quando tudo terminou, eu confirmei que jamais havia
experimentado algo como Nicolas foi capaz de me proporcionar.
Mas eu ainda queria mais. Queria senti-lo por inteiro. E como se
adivinhasse o rumo dos pensamentos, ele se colocou de pé e me beijou, me
fazendo sentir o meu próprio gosto através da sua língua.
Quando nossas bocas se separaram foi para que ele, em uma
velocidade absurda, se livrasse de todas as suas peças, ficando
completamente nu em minha frente. Nicolas me girou e apoiei as mãos na
parede, mantendo uma pequena distância entre o meu corpo e ela. Inclinei
os quadris até sentir o seu pau duro e pronto para me invadir, me esfreguei
nele e ele emitiu um ruído alto de prazer.
Ele passou o braço em volta da minha cintura e me penetrou por
trás, de uma só vez e me fez dar um grito de prazer intenso. Naquela
posição ele, que já era grande, parecia maior e mais grosso, pois me
preenchia completamente. Quando minha boceta se acostumou com o seu
tamanho, ele se afastou, deixando apenas a cabecinha em minha entrada e
voltou a se enfiar por completo em mim.
— Ahhhhhhhhhh — gritei, mais uma vez.
Nicolas passou a me foder rapidamente e meus movimentos se
uniram aos seus na mais perfeita sincronia. Eu o sentia entrando e saindo,
reivindicando o seu prazer, arrancando de mim gritos e a mais prazerosa das
sensações. A minha respiração se tornou mais ofegante, meus braços
começaram a reclamar do esforço que depositei para manter a posição, o
sangue passou a correr mais rápido em minhas veias enquanto as estocadas
se tornaram mais profundas. Eu estava tão molhada que o seu pau deslizava
com facilidade, saindo e entrando diversas vezes.
Nicolas pressionou levemente a mão sobre a minha barriga me
segurando, pois sabia que mais um orgasmo se aproximava. Ele virou meu
rosto e tomou minha boca na sua, em um beijo voraz, intenso e alucinado.
Sua mão escorregou para o meio das minhas pernas, em busca do meu
clitóris. Com a pressão dos seus dedos ali e seu pau enterrado em mim, meu
corpo explodiu em um orgasmo avassalador. Nicolas enterrou o rosto em
meu pescoço e chamou meu nome quando o prazer o atingiu por completo.
De repente, senti a gravidade me puxar para o chão e Nicolas se
antecipou me pegou em seus braços, me guiando até o tapete, deixando-me
ali sentindo o tecido felpudo e macio nas minhas costas. Ele se deitou ao
meu lado e virei a cabeça para encará-lo. Notei seu sorriso presunçoso de
quem sabia que tinha me levado ao orgasmo duas vezes.
— Será que um dia conseguiremos chegar à cama? — Perguntei
com a respiração ofegante, Nicolas sorriu em resposta.
— Foi desconfortável para você, por causa da gravidez?
— Não, foi intenso e perfeito — vi o alívio passar pelo seu rosto.
— Vou garantir que a próxima vez seja sob um colchão macio.
— E quem disse que haverá uma próxima? — Ergui a sobrancelha.
— Você já provou que não consegue resistir aos meus encantos.
— Por que tão convencido? — Sorri.
— Eu também não consigo resistir a você, estamos na mesma
página.
— Isso significa que não há ninguém entre nós? Digo por que estou
grávida e nunca lembramos da camisinha.
— Não há ninguém além de você, pode ficar tranquila.
— Não estou pedindo exclusividade, mas sinceridade. Se ficar com
outra pessoa, por pior que seja ouvir isso, quero ser informada. Bem, não é
informada, tá mais pra comunicada e… — Quanto mais eu falava mais eu
me complicava.
Eu não tinha direito de pedir nada ao Nicolas, pois não havia nada
entre nós além do mútuo desejo.
— Dafne, eu quero ficar com você.
— Por causa do bebê?
— O nosso filho não é o fator determinante pelo qual meu corpo
reage diante da sua presença, não é por ele que você é o meu último
pensamento ao dormir, não é nele que eu penso quando te beijo. Não duvido
que ele seja responsável por tornar o nosso elo mais forte, mas não é o
motivo da minha escolha.
As suas palavras me atingiram em cheio. Por alguns segundos
apenas fitei os olhos azuis cheios de promessas. E ainda que não admitisse,
acreditei em cada uma delas, assim como nas suas palavras. Nicolas me
confundia com frequência, exatamente como agora ao fazer uma confissão
dos seus sentimentos.
Ou talvez você esteja atribuindo um peso muito maior ao que foi
dito.
Ainda naquela noite, durante o banho, Nicolas me levou ao prazer
intenso que apenas ele era capaz de me proporcionar. A exaustão me
dominou quando ele me conduziu até sua cama e antes de adormecer em
seus braços eu ainda sentia as suas palavras dentro de mim.
*
Despertei e por alguns segundos demorei para entender onde estava,
mas a figura masculina sem camisa com a bandeja retangular de madeira
em mãos refrescou a minha memória. O cheiro gostoso dos alimentos, tão
gostoso quanto o dono das mãos que os preparou, me fez ansiar por prová-
lo imediatamente.
Provar Nicolas com a minha boca também era o meu desejo
imediato.
— Não faz isso… — Falei quando a bandeja recheada de coisas
gostosas foi colocada sobre a cama, próximo a mim.
— Não te alimentar?
— É, assim fica difícil resistir a você.
— Você tem noção de que acabou de me entregar o seu ponto fraco,
né? — Ergueu a sobrancelha.
— É preciso muito mais do que fazer pão de queijo, torrada e ovos
mexidos com bacon para conquistar o meu coração — sorri.
— Estou ciente disso e quero continuar, apenas precisava de um
norte para começar.
Eu deveria ter dito que nós dois juntos era uma ideia absurda, mas
nada fiz além de sorrir feito boba.
O que você faz comigo, Nicolas?
 

 
Dafne me dava sinais confusos dos seus sentimentos. Chegamos a
ficar outras vezes e naqueles momentos ela se entregava sem reservas. Nada
era mais satisfatório para mim do que arrancar seus gemidos e orgasmos. A
nossa química, não dava para negar, era de outro mundo. Dafne parecia ter
o mapa do meu corpo, sua boca sabia como extrair o meu prazer mais
intenso. Mas a nossa conexão não se restringia apenas ao sexo,
compartilhávamos o mesmo amor pela gastronomia, tínhamos em comum a
dedicação ao trabalho e o amor pelo nosso filho que crescia saudável em
seu ventre. Todavia, ela parecia ignorar tudo isso, pois quando o dia
seguinte chegava, ela voltava a erguer uma muralha entre nós, me mantendo
afastado. E assim eu recomeçava o trabalho de derrubar tijolinho por
tijolinho para chegar ao seu coração.
Se Dafne colocava uma barreira entre nós, o mesmo não acontecia
com relação ao nosso filho. Ela sempre ressaltou que, independentemente
de qualquer coisa, ela não tiraria de mim a chance de exercer a paternidade.
E que se fosse meu desejo, poderia acompanhá-la durante o pré-natal.
Confesso que a atitude dela não me surpreendeu, mas me emocionou. As
lembranças da gestação do Vicente ainda estavam vívidas na minha
memória, a emoção que senti quando escutei os seus batimentos cardíacos,
a felicidade quando o médico informou que o bebê estava saudável e era um
grande menino. O seu nascimento me fez chorar feito um bezerro
desmamado e a primeira vez que tive ele em meus braços, me senti o mais
realizado dos homens. Anos depois, eu estava revisitando antigas memórias
e sentimentos, e sentindo tudo na mesma intensidade.
Observei a sua barriga em crescimento constante, enquanto o
médico espalhava o gel no seu baixo-ventre. Dafne estava cada dia mais
linda, era visível a transformação no seu corpo, o aumento das mamas e a
sensibilidade maior aos meus estímulos, a barriga cada dia mais
arredondada e os quatros quilos a mais, que ela pontuava com frequência,
serviam apenas para ressaltar o seu corpo gostoso. Todas essas mudanças
acentuaram a sua beleza estonteante, a linda mulher se transformará em
uma rainha digna de reverência.
A médica que realizaria o exame indicou a tela onde o bebê seria
visto e deu início ao exame, deslizou o transdutor de ultrassom pela barriga
de Dafne. E focou na tela, ajustando a imagem, logo em seguida começou a
conversar com Dafne, para que ela relaxasse e pudesse observar com
clareza o bebê.
— Esse é o primeiro ultrassom?
— Sim — respondemos juntos.
— Querem saber o sexo do bebê? Pergunto por que alguns pais
fazem chá revelação… — Dafne e eu nos comunicamos apenas com o
olhar. E ele foi o suficiente para que a nossa decisão fosse tomada.
— Sim, estamos ansiosos por isso — ela respondeu e eu sorri em
concordância.
— Ótimo! Pelo que vejo aqui, ele está na posição ideal para que
vocês saiam daqui com essa descoberta — um largo sorriso apareceu no
rosto de Dafne. — É o primeiro filho do casal?
— Nosso sim, mas eu já tenho um menino que completou oito anos.
— Dafne, você teve sorte, hein? O papai é um velho marujo que vai
te ajudar a passar com facilidade em eventuais tempestades.
— O que a senhora quer dizer com tempestades? Há algo errado
com o bebê? — Dafne arregalou os olhos.
— Pode ficar tranquila, seu bebê está com o desenvolvimento
perfeito — assegurou sorrindo. — Aqui são os braços, as mãos, os dedinhos
e as pernas — cada parte foi destacada na tela — é um bebê grande, mede
23,5 centímetros e pesa 350 gramas, um peso acima da média.
— Isso é bom? — Indagou receosa.
— É perfeito, significa que ele está se desenvolvendo de forma
plena e satisfatória. O que diminuiu em 50% a chance de nascer prematuro.
— Ainda assim há uma chance de isso acontecer? — Dafne
questionou com o cenho franzido.
— Mamãe, você não precisa se preocupar com isso. Seu bebê está
super saudável, agora vamos escutar os batimentos cardíacos dele para
acalmar seu coração.
— Nicolas, você grava? — Se voltou para mim que estava de pé ao
seu lado. — Minha mãe não vai me perdoar se eu não fizer isso.
— Claro. — A médica aguardou até o meu sinal de que poderia
começar.
Quando os primeiros tum tum tum se fizeram ser ouvidos, Dafne se
entregou às lágrimas. Ela sorria e chorava ao mesmo tempo escutando os
sons rápidos e contínuos do nosso filho. Sabe o velho clichê que um filho é
o seu coração batendo fora do peito? Ele era real, o meu coração batia na
mesma sintonia do meu pequeno.
De forma inesperada, a mão de Dafne encontrou a minha,
correspondi ao contato envolvendo a sua pequena mão e entrelaçando os
nossos dedos. Ela não se desvencilhou do meu toque, inclinou a cabeça para
mim e me presenteou com o mais lindo dos seus sorrisos. A emoção do seu
gesto e o som do coração do nosso filho fez duas lágrimas correrem pelo
meu rosto.
Notei quando a médica permaneceu em silêncio por uma grande
fração de segundos, a atenção completamente voltada para a tela,
movimentando o transdutor repetidas vezes no lado esquerdo. Mantive a
expressão serena para não assustar Dafne, mas por dentro o silêncio da
médica acionou um grande sinal de alerta. Logo depois, ela abriu um
sorriso e eu fiquei calmo.
— Qual dos papais é tímido? Porque o bebê estava com as
perninhas cruzadas escondendo o sexo.
— Nenhum dos dois — Dafne sorriu — isso significa que teremos
que vir outro dia para descobrir?
— Não será necessário, o bebê de vocês atendeu o pedido dos
papais, demorou um pouquinho, mas está totalmente visível agora.
Parabéns, tem uma garotinha a caminho.
— A senhora tem certeza? — Dafne perguntou sem acreditar no que
os seus olhos viam.
— A precisão do ultrassom é de mais de 90% e pelo que eu vi não
resta dúvidas que é uma menina.
— Uma menina, meu Deus! — Dafne exclamou sorridente. —
Estou tão feliz.
— Uma menina que será linda e forte como a mãe — beijei sua testa
com carinho.
Ela me fitou com os olhos marejados e sorriu. Vê-la tão emocionada
mexeu ainda mais comigo, naquele momento, eu desejei que pudesse
compartilhar muitos outros momentos assim com aquela mulher.
Ao término do exame éramos pura felicidade. Saber que a nossa
menina estava saudável era o maior presente que poderíamos receber. Dafne
rompeu o silêncio enquanto seguíamos pelos corredores da clínica médica
em direção à saída.
— Sabe o que eu queria agora?  Morango com chantili, mas não
qualquer morango, meu desejo é por aqueles suculentos que escorrem pela
nossa boca quando mordidos.
— Humm, eu conheço um lugar que tem muitos desses morangos
suculentos.
— Não me diga… — Ela me destinou mais um dos seus belos
sorrisos e o meu coração deu cambalhota no meu peito.
Eu havia esquecido o quão patético um homem podia se tornar
quando estava apaixonado.
— Vem comigo, não quero que nossa filha nasça com cara de
morangos, prefiro que ela tenha o lindo rosto da mãe. 
— Você não deveria agir dessa forma… 
— Está funcionando? —  Ergui a sobrancelha.
— Que canalha! Sequer nega que esteja fazendo de propósito — a
risada acompanhou o seu comentário.
— Eu não costumo ludibriar as pessoas, pelo contrário, sou franco
com o que sinto e eu estou gostando de…
— A gente se encontra no Bernard! 
    Dafne praticamente se jogou para dentro do seu carro. Fugindo
mais uma vez dos sentimentos que nos cercavam. E coube a mim, mais uma
vez, me mover ao seu encontro.
Pouco tempo depois seu carro estacionou ao lado do meu e juntos
seguimos até o nosso restaurante. As portas do Bernard estavam fechadas
para os clientes, mas excepcionalmente elas se abriram para receber a sua
dona. Foi ingenuidade minha achar que ela se contentaria apenas em levar o
meu restaurante, mesmo sem estar nos seus objetivos definidos, Dafne
pegou o meu coração para si. E ao contrário do restaurante que ela
administrava com excelência, o meu coração seguia sem sua gestão. 
— Estar aqui sem ninguém me faz voltar no tempo. Parece que faz
um século desde o dia em que estive aqui para te fazer a proposta de
aquisição...
— O dia em que você se apaixonou por mim. Vai, confessa que foi
amor à primeira vista.
— Não, nesse dia eu apenas te achei um grande gostoso. —  A
risada dela preencheu o ambiente vazio — Maciel, meu advogado, é
testemunha disso. Aluguei o ouvido do coitado por horas falando do chef
arrogante e extremamente gostoso. Por sua causa vivi um dilema interno,
como pode uma pessoa me irritar na mesma medida em que me atrai?
— Encontrou uma resposta?
— Não, mas parei de procurá-la. 
— Dafne, eu…
— Os morangos, afinal concordamos que não queremos que a nossa
filha nasça toda vermelha como a fruta.
— Os morangos. — Assenti sorrindo.
Adentramos na cozinha e eu pude sentir a sensação de
estranhamento em ver tudo tão quieto. Aquele era o meu habitat, mas ele
era composto de sons, texturas e cheiros e encontrá-lo sem nenhum desses
requisitos era diferente. Ignorei a sensação e caminhei até a geladeira e
peguei um dos vários saquinhos herméticos com morango, distribuídos
sobre a prateleira. Tínhamos sempre frutas suculentas e frescas no
restaurante, além de renovarmos as compras com frequência, usávamos
aqueles saquinhos para prolongar a sua conservação. Todos os meus atos
foram acompanhados de perto por Dafne que me seguia com o olhar atento.
— Obrigada — sorriu, após ser servida — você quer? — Perguntou
afundando o morango no chantili.
— São todos seus.
Assisti, em verdadeiro estado de adoração, a mulher que fazia o meu
coração bater mais rápido e o meu pau endurecer com o mais casto dos
beijos, levar a fruta aos lábios carnudos. Dafne estava linda, debruçada
sobre a bancada de inox, saboreando um morango após outro com puro ar
de deleite. Ela satisfazia seu desejo e aumentava o meu.
— Eu nunca disse em voz alta o que vou te dizer agora e, para falar
a verdade, nem sei por que resolvi verbalizar esse pensamento justo para
você — confessou sorrindo — mas contar as coisas para você é fácil porque
a sensação de que não estou sendo julgada.
— E não está.
— Espere até ouvir o que tenho a dizer — o sorriso sumiu dos seus
lábios — sempre quis ser mãe, então saber que estava grávida foi a
realização de um sonho que estava adormecido em mim, mas junto com ele
trouxe algumas reflexões indesejadas. Quando menos me dei conta, estava
pensando que todos os planos ainda não executados para o Bernard e o
Capolavoro precisarão ser suspensos daqui a alguns meses e fiquei triste
pelo adiamento. A tristeza deu lugar à culpa, afinal o motivo era mais do
que nobre, o meu afastamento era para cuidar da filha que eu tanto sonhei.
Não tive coragem de confessar isso para ninguém, porque acho que as
pessoas não entenderiam.
— Acho que se tem alguém que te entende perfeitamente, esse
alguém sou eu. Assim, como você eu respiro a gastronomia e sei como é
árduo esse caminho que escolhemos seguir. Ser chef é a minha paixão, meu
pai brinca que a cozinha é o meu oxigênio, sem ela eu morreria. E ele está
certo. Quando o futuro do Bernard parecia incerto, o que me trazia
serenidade era saber que em algum lugar de Sergipe haveria uma cozinha
esperando por mim — sorri, sentindo que a emoção se aproximava em
passos lentos. — Um restaurante precisa de um bom chef, assim como
Vicente precisa de um pai mais presente. Essa é uma balança que eu luto
para manter em equilíbrio desde o dia que ele nasceu, mas nem sempre
consigo. Não consegui chegar a tempo de ver a sua apresentação infantil,
certa vez e vi no rosto do meu filho o quanto isso o deixou triste. Também
não consegui atender os seus pedidos para que eu não fosse trabalhar em
determinada noite — encontrei no olhar de Dafne o reflexo das minhas
lágrimas — e foram tantos outros momentos em que eu não consegui me
fazer presente na vida dele porque a minha profissão não permite. Um
trabalho que eu escolhi, que me satisfaz plenamente, mas que por inúmeras
vezes me faz sentir o mais mesquinho dos homens. Afinal, não estou sendo
100% o pai que eu gostaria de ser, o pai que o Vicente merece.  
— Você não é um homem mesquinho por isso, tampouco um pai
ruim — Dafne secou as próprias lágrimas, tenho certeza de que o Vicente
não escolheria outro pai, ele venera você.
— Assim, como você não é uma mãe ruim por refletir sobre a
chegada de um bebê e como isso alterará o rumo da sua vida. Nossa filha
terá muito orgulho da mãe, da mulher que enfrenta um meio inóspito como
esse, com coragem e determinação.  
— Minha mãe é a minha fonte de inspiração e ela conseguiu
administrar o restaurante e cuidar de dois filhos, mas e se eu não conseguir
encontrar o equilíbrio entre o trabalho e a maternidade? Se eu descobrir que
sou um fracasso no quesito mãe?
— Você não precisa ser uma cópia da sua mãe para ser uma boa
mãe. Assim como não existe manual para criar os filhos, não há um manual
para ser pais. Você vai errar, acertar, sentirá culpa, se questionará se está
fazendo a escolha certa, mas tudo isso faz parte desse caminho que te
espera.
— Você vai ser o meu farol se eu me perder em meio a tempestade?
É tudo novo para mim...
— Não serei farol, porque estarei ao seu lado no barco. Dafne, você
não está sozinha, vamos passar por quaisquer tempestades juntos.
— Você promete?
— Com todo o meu coração — verbalizei o meu mais profundo
sentimento.
— Consigo lidar melhor com sua versão detestável — fungou,
limpando o rosto.
— É fácil resolver isso — sorri — tenho uma ou duas frases em
mente que te deixarão bravinha...
Dafne andou em minha direção trazendo consigo um morango e
antes que eu pudesse falar, ela o enfiou na minha boca. Mal tive tempo para
morder e os lábios dela vieram de encontro à fruta.
O melhor dos sabores se encontrou com minha língua e não era do
morango que eu estava falando. O sabor da língua de Dafne era
incomparável.
 

 
Mais da metade da gestação havia passado e entre azia, vontade
urinar frequente e desconforto na região lombar, estava tudo bem com a
minha saúde e a da minha menininha. Sim, havia uma garotinha no meu
ventre. E eu não poderia estar mais feliz, também estaria imensamente feliz
se fosse um garotinho, mas ser mãe de menina sempre foi o meu sonho. E
agora eu me sentia plenamente realizada. Nem preciso comentar o quanto
minha mãe ficou feliz ao descobrir que tinha uma netinha a caminho,
felicidade compartilhada pelo resto da família. Eu nunca tive dúvidas de
que isso aconteceria, assim que eu soube que estava grávida não tive receio
de compartilhar com eles, sabia que seriam receptivos e amorosos com a
chegada do mais novo integrante da família Capolavoro.
Uma Capolavoro Bernard. Uma junção que jamais tinha passado
pela minha cabeça, todavia parecia que estava escrita para acontecer.
Afinal, Capolavoro e Bernard se uniram em uma sociedade, eu só não
imaginava que essa união empresarial expandisse para o campo dos
sentimentos. Nicolas era o chef que tinha o poder de me provocar, mas
também era o mesmo homem que comi com os olhos a primeira vez que
nos vimos.
Cheguei a pensar que havia saciado a minha fome quando transei
com ele, mas não foi o suficiente. Nicolas era como uma fatia de torta de
chocolate e doce de leite, impossível se contentar com apenas uma garfada.
Todavia, não faltou força de vontade da minha parte para não me submeter
a gula. Feito uma dieta restritiva que excluía doces franceses, restringi o seu
sabor em minha vida. Mas como toda pessoa que se propõe a fazer uma
dieta, eu tive os meus dias de fraqueza e caí de boca no meu ponto fraco.
Literalmente falando.
E esse foi o meu primeiro erro, já havia desconsiderado como erro o
dia que gerou a minha filha, não era justo com ela crescer com esse
estigma. O meu primeiro e único erro foi me deixar levar por seu belo
sorriso, corpo definido, olhar sedutor e uma boca capaz de me fazer ver
estrelas. Assim, sem que eu me desse conta, Nicolas e eu viramos ficantes
fixos, não tínhamos nenhum compromisso, mas impossibilitados de ficar
com outras pessoas. Era uma boa combinação para ambos, o sexo era
sempre prazeroso, nunca menos que isso e também tínhamos momentos de
afeto sem conotação sexual. Ele fazia questão de atender aos meus desejos
de grávida, como no dia que comentei que estava com vontade de comer
macarrão com geleia de amoras e minutos depois recebi na minha sala o
alvo do meu desejo. As coisas poderiam parar aí, mas o meu coração
resolveu me trair e amolecer diante dos encantos de Nicolas ao ponto de
vislumbrar nós dois juntos como um casal, apesar de ele nunca ter dito
claramente que isso era uma possibilidade.
Era por volta da meia noite quando o interfone tocou e foi
anunciado que havia um senhor Nicolas na portaria, autorizei de imediato a
sua entrada. Mas, fiquei sem entender a aparição dele sem avisar. Eu tinha
trabalhado de casa naquele dia, então não tínhamos nos falado.
— Oiii… — Ele me cumprimentou com um largo sorriso.
— Oi — dei passagem para que ele entrasse.
— Gostei do seu pijama — apontou para o conjunto americano rosa
com estampa de corações pretos.
Um pijama nada sexy para receber o seu ficante, mas extremamente
confortável para um sábado à noite.
— Eu não sabia que você vinha.
— Teria usado uma das suas camisolas de renda para me receber?
— Ergueu as sobrancelhas.
— Por que usar camisola se posso te receber nua? — Acompanhei a
sua pupila dilatar e o desejo cintilar em seus olhos.
— Foco, Nicolas! — Verbalizou e foi a minha vez de sorrir — você
deve estar se perguntando por que apareci aqui sem avisar...
— Você é bom em adivinhar pensamentos, deveria abandonar a
gastronomia e se tornar vidente.
— Está engraçadinha hoje… — Sorriu.
— A convivência diária com você faz as pessoas agirem de forma
infantil — provoquei.
— Não há nada de infantil em mim e você sabe bem disso.
Ô se sei…
— Ainda continuo aguardando o motivo da sua visita.
— Primeiro eu estava com saudades — meu coração errou a batida
— segundo porque queria te fazer um convite.
— E não podia esperar até amanhã? — Ergui a sobrancelha.
— Não, afinal amanhã é o dia que envolve esse convite. O que acha
de passar dois dias em um resort fazenda? Vicente, eu e você — o convite
me pegou desprevenida, ele queria a minha presença em um passeio com o
filho?
— Assim, em cima da hora?
— Se eu te desse mais tempo, você com certeza iria declinar do
convite.
— Talvez não seja uma boa ideia.
— Saiba que eu acho uma ideia maravilhosa, o Vicente concorda
comigo.
— Não quero ser uma intrusa na viagem dos dois.
— Dafne, você não é uma intrusa. É a mãe da minha filha. Além do
mais, fará bem para o Vicente conviver com a irmãzinha desde o ventre,
ajudará na construção de laços.
— Você está usando uma criança para me convencer, isso é
desonesto.
— Cada um usa as armas que tem. E aí, convite aceito?
— Você tem certeza de que está tudo bem para o Vicente? — Ele
balançou a cabeça em afirmação. — Nicolas, me diz a verdade: por que
esse convite?
— Porque eu gostaria de ter você ao meu lado. Não é o suficiente?
Esse é o principal motivo e o segundo é naturalizar a sua presença na vida
do Vicente, nós três vamos conviver com frequência.
— Vamos?
— Você tem dúvidas? Temos uma filha que entrelaça as nossas
vidas para sempre.
Era pelo bebê, sua tola.
Ainda assim eu aceitei o convite porque Nicolas, evidentemente,
tinha se tornado o meu ponto fraco.
*
O hotel fazenda ficava localizado a menos de uma hora de Aracaju,
apesar disso saímos às seis da manhã para aproveitar ao máximo o dia.
Fiquei surpresa ao entrar no carro e encontrar Vicente completamente
acordado, enquanto eu estava bem sonolenta. Mas o garoto estava agitado e
feliz, acabei adormecendo ouvindo o pai e ele cantarolarem a canção que
tocava no rádio.
Quando chegamos ao nosso destino, deixamos as nossas coisas no
quarto e seguimos para tomar o café da manhã. Além de todas as comidas
gostosas de um hotel, ainda tinha do café regional: cuscuz, macaxeira,
batata doce, inhame, beiju, tapioca, pé de moleque e diversos outros pratos
da culinária sergipana estavam ali. Sem critério nenhum, coloquei no
mesmo prato uma rodela de inhame e um pouco de ovos, no lado oposto
uma fatia de bolo de puba e pé de moleque.
— Estou grávida, tenho licença poética para essa alegoria de
carnaval que é o meu prato — me justifiquei ao retornar à mesa.
— Eu sou 100% a favor de que a minha filha seja bem alimentada
— Nicolas sorriu.
— Acabei! — Vicente anunciou após devorar rapidamente o pedaço
de bolo em seu prato. — Podemos ir para a piscina, agora?
— Você comeu apenas 1 fatia de torta de chocolate, Vicente.
— Estou sem fome. — Vi a mentira no seu rosto, quantas vezes
também usei essa desculpa só para me jogar na piscina o quanto antes.
— Filho, a piscina não vai embora se você tomar um café reforçado.
Tem um monte de coisas que você gosta: beiju, suco de laranja, iogurte.
Temos todo o dia para aproveitar o parque aquático.
— Então, eu acho que vou pegar beiju e um achocolatado.
— Vou com você.
— Pai, eu já sei me servir — Nicolas sorriu e acompanhou o filho
com o olhar.
— Prepare-se, eles ficam independentes rápido demais.
— Eu sou uma mãe ruim por querer que essa independência demore
a acontecer?
— Não, é natural. Nosso primeiro instinto é querer colocar o filho
embaixo da asa e protegê-lo do mundo. Mas aí um belo dia você acorda e
descobre que filho é como passarinho e não nasceu para viver na gaiola.
Então, você faz o seu máximo para prepará-lo para o dia do inevitável voo.
E por mais esquisito que pareça você fica feliz quando esse momento
chega, afinal o amor é libertador.
— Não imaginei que você fosse capaz de dizer coisas tão profundas.
Estou verdadeiramente impressionada — ele riu alto, sem se importar com
as pessoas ao nosso redor.
— Não sou apenas um rosto bonito e um corpo gostoso.
— Eu não me oponho a sua beleza, pelo contrário aprecio bastante.
— Você vai apreciar ainda mais quando escutar tudo que eu tenho a
dizer sobre os meus sentimentos. Dafne, eu…
— Pai, eu sem querer derrubei o achocolatado na bancada —
Vicente falou com voz de choro — tentei limpar, mas acabei sujando ainda
mais.
— Está tudo bem, acidentes acontecem. Fique tranquilo, papai vai
limpar — o garoto fungou tentando controlar as lágrimas.
— Eu não queria derrubar, mas a jarra era pesada demais — se
justificou para mim.
— Deixe-me te contar uma história, eu tinha um pouco mais do que
sua idade quando isso aconteceu. Era aniversário da minha mãe e íamos
surpreendê-la com café da manhã na cama. Depois de uma disputa com o
meu irmão para saber quem ia levar a bandeja, meu pai permitiu que ela
ficasse comigo. Eu estava radiante segurando a bandeja, caminhando em
direção a minha mãe, mas no caminho havia um tapete e eu não vi, acabei
tropeçando e caindo. foi xícara para um lado, maçã para o outro, voou leite
na minha cara, uma bagunça completa — Vicente sorria com a história.
— E o que aconteceu?
— Além do meu irmão rir bastante da minha cara? — Balançou a
cabeça em afirmação — nada. Minha mãe me ajudou a levantar e me
consolou dizendo que eu não tinha estragado nada, que acidentes acontecem
e que um dia íamos rir bastante daquela história. Ela tinha razão.
— Dafne, posso te fazer uma pergunta?
— Claro.
— Você é namorada do meu pai?
— Por quê? — Devolvi a pergunta para ganhar tempo.
— Você está nessa viagem e vai dormir com ele na mesma cama.
Isso é coisa que namorados fazem.
— Amigos também dividem a mesma cama.
— Não amigos homem e mulher.
— O que tem homem e mulher? — Nicolas finalmente retornou a
mesa, estava começando a suar com a conversa.
— Estava dizendo a Dafne que apenas namorados dormem na
mesma cama. E ela é sua namorada, né? — O olhar de Nicolas fixou em
mim.
— Vou te confessar uma coisa, filho — falou em um tom de quem
contava um segredo — acho que ela não quer namorar com o seu pai.
Reprendi Nicolas com o olhar, mas ele apenas sorriu.
— Você já perguntou para ela?
— Tenho medo de ela me dizer não.
— Se você entregar chocolates quando perguntar, ela pode dizer
sim. Funcionou no desenho que eu vi.
— Boa dica, filho. Vou fazer isso.
Eles continuaram conversando como se eu não estivesse na mesa.
— Eu não demoraria para perguntar, ela é bem bonita outro homem
pode ser mais rápido — mordi os lábios para não sorri.
— Acho melhor eu me apressar. Obrigado pelo conselho, filho —
Vicente abriu um enorme sorriso.
— Agora já podemos ir para a piscina?
— Sim.
Vicente foi o primeiro a levantar da cadeira e caminhar até a porta.
Nicolas e eu fomos logo atrás, ele se inclinou e sussurrou ao meu ouvido.
— O que você acha de um pedido de namoro com chocolate?
— Eu acho que você não deveria seguir conselhos de uma criança,
ainda que ela seja mais madura que você — disfarcei a emoção que eu senti
diante da possibilidade de oficializarmos a nossa relação. Talvez eu tenha
parado no tempo, mas eu ainda apreciava pedidos de namoro.
Ele tocou o meu braço, girando o meu corpo até estarmos frente a
frente.
— Ele tem razão em duas coisas: você é bem bonita — sorri — e
que um homem poderia pedir você em namoro.
— Não precisa ficar preocupado. Estou grávida e se tem uma coisa
que homens solteiros abominam é mulher com filhos.
— Sabem quem gosta de mulher com filhos? — Ergueu a
sobrancelha — o pai do bebê. Não tenho o chocolate agora, mas posso
compensar me ajoelhando no chão — ele fez o movimento do corpo para a
execução do gesto, mas segurei firme em seu braço impedindo.
— Não faz isso! — Supliquei.
— Só se você aceitar ser minha namorada.
— Isso é coação.
— Terei que me ajoelhar diante desses estranhos e fazer o pedido,
de todo modo você será coagida a aceitar — soltou o meu braço e se
ajoelhou, imediatamente alguns olhares se voltaram até nós.
Senti o meu rosto arder por ser o centro das atenções.
— Sim, agora se levante por favor.
— Viu? Foi indolor — ele me trouxe para perto e belisquei a sua
barriga para descontar a minha raiva que logo passou quando Nicolas
segurou o meu rosto e me beijou profundamente — Agora você é
oficialmente a minha namorada. Minha.
O sorriso que fixou no meu rosto ao ouvir isso deixou evidente o
quanto eu estava feliz com isso.
 

 
Quando convidei Dafne para passar esses dias comigo e o Vicente
eu tinha um objetivo bem definido em minha mente: convidá-la para o meu
mundo. E não tinha como fazer isso sem o Vicente ao meu lado, esperava
que Dafne percebesse o que a sua presença significava. Ela não estava ali
apenas no papel da mãe da minha filha, mas era a mulher por quem eu
estava apaixonado. A mulher que queria apresentar ao meu filho como
namorada, que estaria presente em nossos passeios, nos almoços em
família.
Eles passaram o dia em perfeita harmonia, se divertiram no parque
aquático, tiraram várias fotos engraçadas juntos com a câmera instantânea
de Dafne, ela o apoiou e incentivou quando ele quis descer no tobogã mais
alto do lado infantil. Quando ele emergiu da água ela estava ao seu lado
vibrando, parabenizando pela sua coragem.
Acompanhei com uma felicidade que não cabia em meu peito a
relação deles dois começar a se estabelecer. Era notável o quanto Vicente
gostava de estar ao seu lado, escolhendo-a a mim em vários momentos,
como quando pediu que ela o ajudasse a colocar o seu almoço. E Dafne o
ajudou, sempre com um sorriso no rosto, ela passou o dia brincando e
sorrindo com ele. Não demonstrou nenhum incômodo pela atenção que ele
exigia dela o tempo inteiro. Se eu ainda não estivesse perdidamente
apaixonado por ela, teria ficado no dia de hoje.
Precisei controlar os meus sentimentos para não dizer tudo que o
meu coração gritava. Queria gritar que eu conseguia nos enxergar como
uma família, morando em uma casa grande, com quintal para as crianças
brincarem, uma área de lazer com piscina e churrasqueira para receber os
amigos, uma cozinha espaçosa para que eu pudesse preparar o café da
manhã. Chegar em casa após um dia exaustivo de trabalho e encontrá-la na
cama, acordada esperando para perguntar como foi o meu dia. Fazer amor
com ela e adormecer sentindo o seu corpo junto ao meu. Esse parecia um
plano perfeito para nós. Todavia, eu temia que ela me achasse precipitado e
guardei ele só para mim.
— Filho, você está aí? — A voz da minha mãe do outro lado da
linha me trouxe de volta a realidade.
— Sim, mãe.
— Então, até mais tarde, meu amor. Vai ser um desvio de rota
maravilhoso.
— Tenho certeza de que a senhora vai adorar, até daqui a pouco —
guardei o celular no bolso e me aproximei das duas pessoas mais felizes
daquele lugar. Vicente e Dafne faziam várias poses para a câmera, em
comum, as fotos retratavam o sorriso no rosto do meu filho e da minha
namorada.
— Vem, pai! Vamos tirar uma foto de nós quatro, mas dessa vez na
câmera da Dafne.
A câmera da Dafne era um Fujifilm instax mini, isto é, uma câmera
instantânea cuja principal atrativo eram as fotos serem reveladas
instantaneamente à frente dos seus olhos.  Não preciso nem dizer que
Vicente ficou encantado pela câmera, para uma criança da era tecnológica
acompanhar revelação de fotos era pura magia.
Dafne orientou a nossa posição para que todos pudessem aparecer na
foto.
— Agora digam xis! — Anunciou.
— Uau! — Ele exclamou após Dafne passar para as suas mãos a
foto revelada — Eu posso ficar com mais essa? — A essa altura ele já tinha
dezenas de fotos em sua posse.
— E todas as outras que você quiser. — Dafne sorriu.
— Já posso voltar para a piscina, pai?
— Agora não, vamos nos arrumar para almoçar com o vovô e a
vovó.
— Sério? Hoje é o dia mais feliz da minha vida — O sorriso do meu
filho foi o colete salva-vidas que vesti para me proteger do olhar inquisidor
da Dafne. Mas, isso não impediu que ela me puxasse de lado, aproveitando
que Vicente caminhava a alguns passos à nossa frente.
— Nicolas, como assim almoço com vovô e vovó? —  Disse
entredentes.
— O que tem?
— O que tem!? No mesmo dia você me pede em namoro e decide
me apresentar aos seus pais. É muito para um único dia.
— Eu acho que acabei atropelando as coisas, deveria ter consultado
você antes de convidar os meus pais, mas saiba que não estou nem um
pouco arrependido. Quando te convidei para se juntar a mim ao Vicente
neste fim de semana eu esperava que, de alguma forma, você enxergasse o
que já está cristalizado em meu coração. Eu quero você na minha vida,
construir mais memórias felizes ao seu lado, ser o seu companheiro nos
momentos bons e ruins. Estou perdidamente apaixonado por você e a minha
vontade é sair te apresentando como minha namorada para o porteiro do
meu prédio, para os garçons do Bernard, para o moço da quitanda onde
compro as frutas. Então, quando você aceitou ser a minha namorada, não
pensei duas vezes antes em ligar para os meus pais.
— Você não pode falar tudo isso para uma mulher com tantos
hormônios em ebulição e esperar que ela não se debulhe em lágrimas —
sorriu com os olhos marejados. — Não é sobre os seus pais em si, é sobre o
misto de sentimentos habitando em mim. A verdade é que eu não esperava
nada disso, o convite para a viagem, o pedido de namoro e agora ser
apresentada aos meus sogros. Estou feliz e nervosa pelo que me espera.
— Não há motivos para nervosismo, meus pais vão amar você. É
impossível não amar.
— Por que você está chorando? — Vicente encarou Dafne com uma
expressão de confusão.
— São lágrimas de felicidade.
— Vocês adultos são bem estranhos.
Gargalhamos e, de mãos dadas, seguimos trilhando o caminho da
felicidade.
*
Assim que chegamos à varanda do restaurante, Vicente localizou os
avós e correu em direção a eles, esquecendo completamente o meu aviso
sobre não correr em restaurantes, pois poderia acabar esbarrando em algum
garçom. Apesar de dizer que estava nervosa, Dafne não demonstrava isso.
Com um sorriso no rosto chegou para conhecer os sogros.
— Olha se não é a famosa, Dafne — meu pai se apressou a quebrar
o gelo.
— Famosa? — Ela me encarou sorrindo.
— Nicolas, não para de falar de você. É muito bom atribuir um rosto
à mulher da qual ouvi tantas coisas boas.
— O prazer é todo meu.
E como não podia ser diferente, depois de demonstrar o seu afeto
com palavras. Ele estendeu para o toque físico, abraçando Dafne.
— Será que também posso abraçar a mãe da minha neta?
— É claro. — Dafne sorriu. — É um prazer conhecê-los.
— O prazer é todo nosso, bem-vinda a família Bernard — Minha
mãe verbalizou o meu sentimento.
— É oficial, agora você é uma de nós e não vamos deixar você
escapar — falei trazendo-a para junto do meu corpo.
— Fique tranquilo, não pretendo ir a nenhum lugar.
*
Meus pais, que estavam a caminho do sítio onde iriam receber
alguns amigos, fizeram apenas uma pausa para almoçar conosco e logo
retornaram à estrada. Assim como foi a sua interação com Vicente, o
encontro de Dafne com meus pais foi natural e afetuoso. Eles pareciam
velhos conhecidos, conversando e sorrindo o tempo todo. O encontro foi
breve, mas se encerrou com a minha mãe convidando Dafne para jantar.
Já era fim da noite, estávamos recolhidos no quarto e assistíamos ao
filme favorito do Vicente. Ele adorava ver Meu Malvado Favorito e perdi as
contas de quantas vezes sentamos juntos para assistir essa animação. Ele já
tinha decorado vários diálogos e falava junto com os personagens. Dafne
sorriu quando isso aconteceu e ao final da nossa sessão de cinema
improvisada, ele se voltou para ela.
— Meu pai me contou que ainda não temos um nome para minha
irmã e acho que precisamos resolver isso. Não dá para ficar chamando de
irmãzinha para sempre, né?
— Você tem razão, o que acha de me ajudar a escolher o nome da
sua irmã.
— Eu acho uma boa ideia.
— Você já pensou em algum nome, filho?
— Vários.
— Sou toda ouvidos — Dafne sorriu.
— O primeiro é o nome da minha amiga Valentina.
— É um lindo nome, mas acho que já tem Valentina demais no
mundo — comentei e Dafne concordou com o meu comentário, assentindo.
— Eu pensei em Helena…— Ela sugeriu.
— Nome de velha — Vicente rebateu e ela sorriu.
—Vitória para começar com a inicial do seu nome, filho, o que
acha? — Tentei.
— Humm, acho que não gosto de Vitória — minha namorada
expressou.
— Também não — Vicente concordou com Dafne. — Que tal
Velma, do Scooby doo?
— Seria uma excelente combinação, mãe e filha com nome dos
personagens do mesmo filme — provoquei, esperando a reação de Dafne.
— Credo! — Ela fez uma careta antes de cair na gargalhada.
Fomos sugerindo nomes nas mais diversas categorias como pedras
preciosas, personagens bíblicos e chegamos a consultar o Google para saber
o significado de alguns. Não conseguíamos pensar em um nome que
agradasse aos três. Até que depois de um tempo, Vicente sugeriu mais um.
— Que tal Agnes, como a menina do Meu Malvado Favorito? Ela
ama unicórnios e a minha irmãzinha tem jeito que também vai gostar.
— Agnes — Dafne repetiu como se testasse o nome na sua boca.
— Gosto de Agnes — aprovei.
— Eu também — ela sorriu com os olhos brilhando. — Então, está
decidido que será Agnes Capolavoro Bernard, mais conhecida como a irmã
mais nova do Vicente — Dafne anunciou sorrindo.
— Eba! — O garoto comemorou e eu soube que aquele seria um dos
momentos que eu ia lembrar com carinho, para sempre.
 

 
— Vamos pai, estou com fome! — Vicente apressou o pai que se
arrumava no quarto. — O mocinho está mesmo com fome ou quer comer o
bolo de chocolate? — Indaguei sorrindo.
— Fome de bolo de chocolate ainda é fome, ué! — Respondeu
sorrindo.
— Você é um garoto esperto.
— Pronto, agora vamos alimentar esse rapaz faminto — Nicolas se
juntou a nós na sala. E como sempre acontecia quando ele surgia no
ambiente, eu era inexplicavelmente atraída pelo belo exemplar masculino.
Obviamente que ele notou o meu olhar e respondeu com uma piscadela.
— E depois, vamos fazer o passeio de charrete pra ver os animais
— Vicente disse animado.
Ele passou a noite inteira falando empolgado sobre os animais da
fazenda, compartilhando o seu conhecimento sobre as espécies e fez todos
nós ativarmos o despertador para não perder o horário do passeio de
charrete reservado para às dez da manhã.
— Você que manda!
Peguei a minha bolsa no sofá, ficando de pé para acompanhar um
Vicente que já estava de pé na porta nos aguardando.
— Eu achei que era a Dafne que mandava aqui, mulher sempre
manda em tudo.
Nicolas riu alto em resposta.
— Você tem muito que aprender com o seu filho.
— Até parece que eu não sou seu súdito, minha rainha — ele me
abraçou por trás e sussurrou a frase em meu ouvido.
— Será que vocês podem se beijar depois? Não quero perder o bolo
de chocolate.
Me desvencilhei dos braços de Nicolas e apressei os passos ao
encontro do seu filho.
A distância até o espaço que acontecia as refeições era de
aproximadamente 5 minutos. Tínhamos a opção de usar carrinho de golfe
para encurtar o trajeto, mas isso significava encurtar o contato com a
natureza que o hotel fazenda nos proporcionava. O canto dos passarinhos, o
farfalhar das copas das árvores, o ruído leve produzido pela água do rio em
movimento, a brisa do vento no rosto, tudo isso fazia valer a caminhada.
Uma criança que nasceu e cresceu na cidade, como eu fui, aprendeu a ter
um olhar mais contemplativo para a natureza.
— Droga! — Exclamei ao constatar que em meio a minha saída de
praia, necessaire, carteira e celular não estava a máquina instantânea.
Vicente tinha me pedido emprestado assim que acordamos e eu achei que
tinha colocado na bolsa, mas devo ter deixado em cima da cabeceira da
cama. O pior disso tudo foi perceber isso a alguns passos do restaurante.
— O que foi? — Nicolas me lançou um olhar preocupado.
— Esqueci a câmera.
— Ah, não — Vicente soltou em um lamento.
— Eu vou voltar e pegar rapidinho. Acordei um pouco enjoada hoje,
só ia comer uma fruta mesmo, faço isso quando voltar. Já vocês ficam e
fazem um café da manhã tranquilo.
— Tem certeza?
— Absoluta. Vicente, coma uma fatia de bolo de chocolate por mim.
— Pode deixar — sorriu — agora podemos entrar no restaurante,
pai?
— Me junto a vocês em breve.
— Vou guardar o seu lugar ao meu lado.
— Obrigada, Vicente.
Os dois entraram no restaurante e eu fiz o caminho de volta até o
quarto. Quando voltasse utilizaria o carro de golfe para chegar mais rápido.
Cheguei ao hotel ofegante e precisei de alguns minutinhos sentada no sofá
para descansar, estava descobrindo na prática os efeitos de estar grávida. A
respiração se tornava facilmente mais irregular à medida que as semanas
avançavam, pequenas caminhadas eram acompanhadas de alguns minutos
de descanso e a vontade de fazer xixi triplicou. Foi esse motivo que me fez
sair do repouso e ir até o banheiro.
Quando estava com a câmera em mãos bateram na porta. Só podia
ser o Nicolas, era óbvio que ele viria atrás de mim. Apressei os passos e
abri a porta.
— Você não consegue passar um minuto longe de mim, né? — O
sorriso no meu rosto desapareceu de imediato quando não foi Nicolas que
encontrei do outro lado da porta.
Uma mulher?
Uma mulher loira, alta, esbelta, sem nenhuma ruga no rosto, rosto
esse imaculado. A visão que eu tinha era de uma modelo da Victoria's
Secret.
— Acho que errou de quarto — falei para que a mulher estática
pudesse sair da minha frente.
— Não, esse não é o quarto do Nicolas? — Assenti — sou a mãe do
filho dele e você, é? — Ela me olhou de cima a baixo. O olhar de
superioridade não me causou boa impressão já de cara, mas decidi ser
cordial e passar por cima desse ruído de comunicação.
— Dafne.
— Dafne? Nunca ouvi falar, seu nome não me diz nada —sorriu,
ciente do efeito causado.
— Eu já estava de saída — foi tudo que eu consegui dizer.
— Meu filho e o meu… o Nicolas estão aqui?
— Estão no restaurante.
— Nicolas sempre acorda faminto — a intimidade com que se
referia a ele me causou incômodo, mas eu lutei para manter a máscara
serena no rosto. — Enquanto meus meninos se alimentam, a gente se
conhece melhor. O que acha? — Foi uma pergunta retórica, pois ela
adentrou no ambiente e se sentou no sofá.
De costas para ela, respirei fundo e me preparei para uma conversa
que eu não gostaria de ter.
— Sente-se aqui, Dafne — bateu com a mão no espaço ao seu lado.
— Eu estou bem de pé.
— Você deve estar se perguntando por que estou aqui, mas confesso
que você não é a única surpresa. Meu primeiro pensamento foi: o que essa
mulher que eu nunca vi em toda minha vida está fazendo no quarto do
Nicolas? E quem é ela? Vim até aqui para fazer uma surpresa e fui
surpreendida. Nós fomos surpreendidas.
— Seu filho vai ficar muito feliz em vê-la.
— Eu não tenho dúvidas disso. Você pode imaginar a carinha de
felicidade dele vendo a mamãe e o papai juntinhos? Ai que mal-educada eu
sou, nem me apresentei: muito prazer, Ingrid — estendeu a mão para mim,
não percebi que eu estava trêmula até mover a minha de encontro a sua.
— Você está trêmula, querida. Não está passando bem?
— Estou bem — cruzei os braços, escondendo as mãos.
— Não parece, você também está pálida… Eu sou médica, posso te
examinar.
— Não precisa, estou bem — fui firme.
— Tem certeza de que não quer se sentar?
— Eu não quero ser indelicada, mas Vicente e Nicolas estão me
esperando para o café da manhã. Podemos ter essa conversa outra hora.
— Não era a minha intenção atrapalhar os seus planos — disse,
ficando de pé — acho que teremos outra oportunidade para conversarmos
com mais calma. E trocar experiências, sabe? Acho que esqueci como
cuidar de uma barriga que só cresce — sorriu.
— Você está grávida? — As palavras foram ditas pausadamente.
— Sim, de quatro semanas — acariciou a barriga ainda inexistente
— esse é o motivo pelo qual estou aqui.
De repente, tive a impressão de que o meu corpo foi puxado, de uma
só vez, para baixo e me agarrei à mesa de canto para não sucumbir. Uma
mão veio em meu socorro e ajudou a me estabilizar. Não senti aquele toque,
mas deixei que ele me guiasse até o sofá. Um nó se formou em minha
garganta tornando cada segundo mais difícil de respirar. O meu corpo
clamava por uma fuga. fugir dessa conversa, dessa mulher, de Nicolas e
suas mentiras. Tentei ficar de pé, mas não tive forças.
— O pai do seu bebê é o Nicolas? — Me agarrei ao último fio de
esperança.
— Acho que é melhor que ele mesmo conte isso a você — levei a
mão à boca para amenizar o som do choro descontrolado que se apoderou
do meu corpo.
Tremendo e chorando compulsivamente, escondi o rosto entre as
mãos. Envergonhada por ser feita de idiota e principalmente por ter
desmoronado na frente dela.
— Não fique assim não vai fazer bem para o bebê — senti seu toque
junto ao meu braço e repeli ao contato indesejado. Não sei como, mas reuni
as forças e fiquei de pé, me afastando dela.
— Eu quero ficar sozinha.
— Eu não posso te deixar sozinha nesse estado. Senta aqui enquanto
eu pego um copo de água para você — Ingrid emitiu cada palavra em um
tom digno de pena. O que contribuiu para que eu me desestabilizasse ainda
mais.
— Me deixe só, por favor! — Exigi.
— Dafne, você precisa se acalmar. Vem, vou pegar uma água para
você — deu um passo em minha direção.
— Me deixe só! — Voltei a repetir, em um tom elevado.
— Eu só estou querendo te ajudar, querida.
— Saia daqui! — Berrei, abrindo a porta para que ela sumisse de
uma vez por todas da minha vida.
— Você não está pensando no seu bebê agindo assim. Dafne,
nenhum homem merece que seu filho entre em rota de perigo, se acalme.
— SAIA DAQUI! — O meu grito ecoou no quarto em um misto de
súplica e desespero. Ingrid deixou o quarto, mas não sem antes me lançar o
mesmo olhar do minuto inicial em que nos conhecemos.
Bati a porta que fez em um ruído alto e deslizei por ela até encontrar
o chão. Abracei a minha barriga desejando que com aquele gesto pudesse
proteger a minha filha de todo mal. E foi por ela, para protegê-la que
enxuguei as lágrimas, levantei e decidi colocar um ponto final em uma
história que sequer deveria ter começado.
*
Como era de se esperar, Nicolas esteve à minha procura no meu
apartamento. E como combinado, o porteiro interfonou para anunciar a sua
chegada e ninguém atendeu, assim ele seguiu a minha orientação para
informar que: a senhora Dafne, não retornou para casa desde que saiu no
domingo. Ainda assim, ele insistiu que o homem interfonasse mais de cinco
vezes.
Ele também me ligou no celular dezenas de vezes ao longo do dia.
Uma a uma, deixei as ligações chamarem até cair na caixa postal, bloqueei
o seu contato no aplicativo de mensagens, mas ainda assim ele seguiu
tentando falar comigo. Recebi vários SMS, os quais exclui sem serem lidos.
Não havia mais nada a ser dito.
Nada do que ele viesse me dizer poderia aplacar a dor no meu peito.
Nenhuma das suas desculpas seriam suficientes para que eu o perdoasse por
ter me feito de trouxa. A minha única exigência foi que fôssemos sinceros
um com o outro. E ele foi incapaz de fazer isso, desde o início ele mentiu
para mim. Mentiu que não tinha ninguém em sua vida, que a mãe do filho e
ele estavam separados e agora quando poderia ele mesmo ter revelado que
ela estava grávida ele não o fez. Saber por ele seria doloroso de igual forma,
mas seria mais honesto. Descobri pela boca de outra mulher que você era só
mais uma na lista de mulheres que ele engravidava era humilhante.
Pior ainda, ele fez eu me senti mal, como a pior de todas as
mulheres porque tinha ficado com um homem que já pertencia a outra,
porque era isso que ele era e agora tudo fazia sentido. O papel de divorciado
foi apenas uma desculpa para que eu não desconfiasse. Como eu fui trouxa.
Dei vazão aos meus sentimentos, entregando-me ao choro
compulsivo e as lágrimas foram a minha companhia pelo cair da noite.
Revivi em looping, detalhe por detalhe, do meu encontro com Ingrid mais
cedo. As palavras dela ecoando em meu ouvido, acompanhadas do
pensamento: como você foi burra, Dafne!
Senti as minhas pálpebras ficando pesadas, me guiando para o sono
profundo. Fechei os olhos e comecei a sentir uma pontada do lado esquerdo
da barriga, o movimento se repetiu no mesmo lugar, o suficiente para
chamar a atenção. Levei a mão ao local e senti o que parecia ser um chute.
As lágrimas voltaram a molhar o meu rosto, mas dessa vez eram de
felicidade, era a primeira vez que eu sentia o bebê mexer tão forte. Da outra
vez foi tão rápido que fiquei em dúvida se tinha mesmo acontecido.
Minha menina chutava a mamãe como se dissesse: “ei, estou aqui”.
— Mamãe sempre estará com você — coloquei a mão sobre a
barriga e acariciei — seremos eu e você para sempre.
 

 
— Mãe! — Vicente exclamou e eu interrompi a mensagem que
estava enviando à Dafne, ergui a cabeça para ver a minha ex se materializar
bem na minha frente.
— Oi, filho. Como você está cheiroso — beijou o topo da cabeça
dele.
— Parece que você viu um fantasma, Nicolas — ela se inclinou e
beijou o meu rosto.
— O que você está fazendo aqui?
— Decidi fazer uma surpresa, consegui? — Puxou uma cadeira e se
sentou.
— Sim, foi a maior surpresa — Vicente declarou sorridente — mãe,
você tem que provar o bolo de chocolate.
— Você poderia pegar um pedaço para a mamãe? Obrigada, amor.
— Ela esperou até o filho se afastar para se voltar para mim. — Conheci a
Dafne, um amor de pessoa.
— Onde? Como?
— É uma história bem engraçada — sorriu — fui até o quarto que
vocês estão hospedados para fazer uma surpresa e antes que eu pudesse
tocar a campainha uma linda mulher saiu. Você sempre teve bom gosto para
mulheres.
— Como conseguiu o número do quarto?
— Supliquei à recepcionista, falei que era apenas uma mãe
querendo deixar o filho feliz e ela me informou. Só não esperava encontrar
uma mulher ali.
— E onde ela está?
— Ah, ela disse algo sobre ter que resolver um problema urgente de
trabalho. Pediu que eu passasse o recado para você e disse que depois te
ligava para explicar melhor.
— Aqui mãe — Vicente retornou com o pedaço de bolo — aonde
você vai, pai? — Perguntou quando me coloquei de pé para tentar contato
com Dafne.
— Eu vou tentar falar com a Dafne.
— Hum, esse bolo está bem gostoso mesmo.
Saí do restaurante e liguei para Dafne, a ligação chamou até cair na
caixa postal. Isso se repetiu algumas vezes.
— Atende, Dafne! — Supliquei para o telefone.
Sem respostas dela, voltei ao quarto na esperança de encontrar um
bilhete ou um recado qualquer. Mas tudo que encontrei foram sinais de que
alguém precisou sair às pressas e não teve tempo de recolher todos os seus
itens. Na bancada do banheiro tinha alguns itens de maquiagem, o relógio
dourado foi esquecido na mesa de cabeceira e tinha o biquíni que estava
secando na varanda.
Refiz a ligação e nada dela me atender. Segui para o aplicativo de
mensagens e ao tentar falar com ela por ali, descobri que estava bloqueado.
Mas que porra estava acontecendo?
O que aconteceu nos minutos que sucederam o retorno de Dafne ao
quarto para pegar a máquina fotográfica? O que Ingrid e ela conversaram?
O que, de tão urgente, aconteceu no trabalho para que ela não tivesse tempo
de se despedir? E a pergunta que martelava na minha cabeça: o que eu fiz
para ser bloqueado? A ausência de respostas me deixou em um estado de
total confusão. Dafne estava feliz, nós estávamos felizes, o que mudou de
um minuto para outro?
Corri até a recepção do hotel, na esperança de ainda encontrá-la. Ela
estava sem carro deveria estar por ali, mas não estava. Fui informado que
haviam chamado um carro para a minha acompanhante.
— Pai, vamos perder o passeio — Vicente segurou minha mão.
— Vamos Nicolas, não queremos deixar o nosso filho triste, não é?
Por mais que a minha vontade fosse entrar no carro e ir atrás de
Dafne em busca de todas as respostas, não podia, de uma hora para outra,
desfazer os planos iniciais. Vicente era uma criança e isso o deixaria triste.
Ele não parava de falar sobre os potrinhos, as zebras e os coelhos. Foi por
ele que coloquei de lado as minhas vontades para realizar as suas.
— Vamos lá, campeão!
*
Agi o resto do dia em modo automático, meu corpo estava presente,
mas a minha cabeça e pensamento estavam com Dafne. Passei o dia
tentando falar com ela e sem sucesso, por isso recorri aos torpedos quando
percebi que não seria atendido.
 
Dafne, o que aconteceu? Me diz se chegou bem em casa.
Enviado às 11:58
Você está bem? Estou preocupado.
Enviado às 12:00
Atende à ligação, só quero ouvir a sua voz. Saber que você está bem.
Enviado às 12:30
Só me diz que já está em casa, que chegou em segurança. Por favor.
Enviado às 13:00
O que eu fiz de errado?
Tem a ver com a Ingrid? Eu não sabia que ela viria, me deixe explicar.
Enviado às 13:30
Porra Dafne, você quer mesmo me enlouquecer?
Atende esse telefone.
Enviado às 14:00.
 
A última mensagem foi enviada às 14:30 informando que eu estava
retornando a Aracaju e que iria ao seu encontro. Como Ingrid tinha ido no
seu próprio carro, fizemos o trajeto cada qual no seu veículo e Vicente
resolveu voltar com a mãe.
Assim que chegamos na capital sergipana, me despedi do Vicente e
fui até o Capolavoro que, diferente do Bernard, funcionava de domingo a
domingo. A gerente do restaurante informou que Dafne não estava e
quando insisti dizendo que era urgente e referente ao seu novo restaurante,
fui convencido pela mulher que afirmou que ela tinha feito uma curta
viagem, mas no dia seguinte estaria de volta. A simpática mulher sugeriu
ainda que eu tentasse contato pelo celular, como se eu não estivesse
tentando desde que cheguei.
Me dirigi até o prédio que ela residia e o porteiro tentou contato com
a cobertura, sem sucesso. Banquei o insistente e pedi que interfonasse
outras vezes e obtive a mesma resposta, não havia ninguém no apartamento.
Dei uma volta no quarteirão para passar alguns minutos, e voltei à portaria.
Talvez Dafne estivesse no banho e por isso não atendeu naquela hora. Mais
uma vez, deixei a portaria sem nenhum sinal dela.
Estou na frente do seu prédio, me mande mensagem quando chegar.
Enviei mais uma mensagem e decidi ir para casa aguardar a sua
resposta.
As horas passaram e nenhuma notícia de Dafne, o que só aumentava
a minha angústia. Será que ela tinha passado mal e estava no hospital? Será
que aconteceu algo no trajeto de volta? A minha mente criava os piores
cenários.
Ficar parado esperando por notícias suas era angustiante, por isso
refiz todo o roteiro em sua busca e em todos os lugares a mesma resposta:
nenhum sinal da Dafne. Estacionei o carro do outro lado do prédio e decidi
aguardar, ela voltaria para casa em algum momento.
A espera se prolongou por horas até que apaguei de exaustão.
Despertei, notando que já estava claro e, de imediato, senti o corpo reclamar
da noite mal dormida com a área do pescoço e ombros doendo. Desci do
carro para me esticar e vi o exato momento que a porta da garagem do
prédio se abriu. Reconheci o carro que saía e fiz a primeira coisa que passou
pela minha cabeça: me atirei em frente a ele. Para a minha sorte, a
velocidade estava reduzida e ela freou bem antes de me atingir. Espalmei as
mãos no capô do carro e vi a sua expressão mudar de susto para raiva.
— Você perdeu completamente o juízo? — Perguntou me encarando
pelo para-brisas.
— Desde o minuto que você foi embora sem se despedir.
— Eu estou com pressa, sai da frente.
— Precisamos conversar, Dafne.
— Não temos nada para conversar. Agora será que pode parar de ser
patético e saí da frente do meu carro?
— Só se você aceitar falar comigo.
— Nicolas, sai da frente — pisou no acelerador.
— Pode passar por cima, não pretendo sair daqui.
— Não me provoque… Agora sai da frente.
— Dafne, estou falando sério. Não vou sair daqui até você aceitar
conversar comigo. Passei a noite no carro esperando por esse momento.
— Você dormiu na frente do meu prédio?
— Para você ver o meu nível de insanidade.
— O porteiro deveria ter acionado a segurança, um carro suspeito
parado deveria ser notificado imediatamente.
— Dafne, por favor. Me deixe entrar no seu carro e vamos
conversar.
— Ok — se rendeu, por fim.
Me afastei da frente do carro e dei um passo para o lado para chegar
até a porta do carona, mas assim que o impedimento saiu da sua frente,
Dafne pisou o pé no acelerador e saiu sem dar maiores explicações.
*
Tentei não pensar nela pelo resto do meu dia, mas falhei
miseravelmente. A ausência de respostas e explicações sobre a sua brusca
mudança de comportamento seguia me inquietando. Busquei encontrar nas
nossas últimas horas juntos qualquer vestígio que pudesse me ajudar a
compreender o que tinha acontecido para ela me tratar dessa forma, mas
não encontrei nada. Ela estava feliz, nós estávamos felizes. Ou talvez eu
que acabei projetando nela a minha felicidade, quis tanto viver aquele
momento feliz com ela e meu filho que acabei acreditando que ela também
se sentia da mesma maneira.
Perdido na teia de confusão que se criou em minha cabeça, desliguei
por um segundo da ação que eu executava. Tempo o suficiente para que a
faca deslizasse sobre o meu dedo, causando um corte que parecia ter sido
superficial se não fosse a quantidade de sangue que começou a escorrer pela
extensão de pele.
— Cortei o dedo! — Ergui a mão esquerda, pressionando o corte —
alguém assume a praça do magret, por favor.
— Sim, chef.
Pequenos acidentes, como cortes e queimaduras, eram comuns na
cozinha, por isso tínhamos uma caixa de primeiros socorros facilmente ao
nosso alcance. Rasguei com a boca a embalagem de compressas de gaze,
retirei uma unidade e coloquei sobre o corte para estancar o sangramento.
— Perfeito! — Elogiei Deise, que filetava o magret no meu lugar.
— 4 Mont blanc! — Jaime leu a comanda recém adicionada.
Seria Deise a assumir a praça dos doces, se não estivesse exercendo
a minha tarefa. Tinha tanto tempo que eu tinha cortado um dedo na cozinha
que sequer conseguia lembrar a última vez que isso tinha acontecido.
Encarei a gaze completamente tingida de vermelho antes de retirá-la para
avaliar o dedo. O sangramento que aparentemente parecia ter cessado
ressurgiu com menos intensidade, mas ainda se fazia presente. Envolvi o
dedo com outra gaze limpa e acrescentei o esparadrapo para manter o tecido
no lugar. Acrescentei mais uma volta de esparadrapo e ignorei a dor que a
pressão intensa ocasionou.
— Alguém me ajuda a pôr a luva, por favor — Kleber que estava
mais próximo veio em meu socorro.
Ele olhou para os pontinhos de sangue manchando o tecido branco e
eu logo soube o que se passava na sua cabeça naquele momento. Assim,
como eu, ele sabia que o sangramento não tinha sido contido por completo
e o melhor a fazer era repousar por alguns segundos antes de voltar ao
trabalho. Mas eu não queria dar descanso para a minha mente, ela
certamente acabaria me levando até Dafne. E eu precisava me manter
afastado para seguir no comando da cozinha.
— Só coloca a luva! — Ordenei e ele sorriu em entendimento.
— Se qualquer um estivesse no seu lugar, você mandaria que ficasse
em repouso — a luva de látex deslizou facilmente por todos os dedos, até
chegar ao indicador cortado. Kleber precisou aplicar uma pressão maior
para que o látex descesse pelo curativo. Não contive a careta de dor com o
ato e meu subchefe me repreendeu sem precisar dizer uma palavra, apenas
com um olhar.
— Obrigado — agradeci ao meu amigo — assumindo os 4 Mont
blanc! — Anunciei o meu retorno às atividades.
Eu tinha um dedo ferido, mas ainda tinha outros nove à minha
disposição. Logo, não havia motivo para que a equipe trabalhasse com um
integrante a menos. Além do mais, fazer suspiros não exigiam muito da
minha mão. Coloquei na batedeira claras de ovos e açúcar refinado, batendo
até que se tornasse um merengue firme. Enquanto isso, untei e enfarinhei
duas bandejas retangulares. Depois que o suspiro chegou ao ponto ideal,
com a batedeira desligada, adicionei castanhas portuguesas torradas e
trituradas, usando uma espátula de silicone até que se tornasse homogênea a
distribuição das castanhas. Passei o conteúdo da batedeira para o saco de
confeiteiro e modelei os suspiros nas formas untadas, a ação utilizando as
duas mãos, foi acompanhada de um pulsar latente no dedo ferido. Ignorei a
dor até concluir a tarefa e levei as bandejas ao forno e agora era só esperar
assar.
— Merda! — Exclamei ao perceber o sangue na luva.
Por sorte, eu tinha o tempo de forno para fazer um novo curativo.
Assim que tirei a luva senti um alívio enorme, a pressão no local havia
amenizado, mas ao retirar a gaze percebi que a ponta do dedo estava
avermelhada e quente. Levei a mão ao jato de água corrente e deixei que a
área fosse limpa
— Nossa, isso está com cara de quem precisa de uma sutura —
Deise comentou ao meu lado.
— É apenas um corte, só preciso de um curativo decente — fiz
pouco caso.
— Eu posso fazer o curativo, mas se continuar cozinhando amanhã
não conseguirá mexer a mão de tanta dor.
— Tem analgésico aqui? Resolvido o problema da dor.
— O sangramento pelo menos cessou.
Deise se colocou a fazer o curativo, aplicando um antisséptico e
secando o excesso com a gaze. Apesar da delicadeza com que ela executava
cada ação, eu sentia dor. Um band-aid substituiu a gaze, mas a sensação era
de um arame farpado envolvia do meu dedo.
— Muito obrigado.
— Me desculpa por ser invasiva, mas por que está fazendo isso com
você? Por que está se sacrificando? Está tudo sob controle.
— Mas eu não estou — assumi com a voz embargada — cozinhar
me ajudará a ficar bem.
— E amanhã quando acordar morrendo de dor, você acha que
conseguirá fazer o que mais ama?
— Amanhã é outro dia, Deise.
Um novo dia no qual eu esperava conseguir falar com Dafne.
 

 
Não fui ao Bernard no dia posterior à viagem e pelos dias seguintes.
Não conseguia encarar o Nicolas sem sentir tudo que ele tinha me causado.
Eu temia cair no choro assim que ficássemos frente a frente, por culpa dos
hormônios. Queria gritar com ele, exigir explicações e mandá-lo ao inferno
logo depois. Ele e suas mentiras. Ainda precisava de um tempo distante até
organizar os sentimentos confusos dentro de mim, embora houvesse uma
maldita parte em mim que queria acreditar que tudo não passava de uma
grande confusão. E era essa parte que eu precisava silenciar, temia
encontrá-lo e acreditar nas suas palavras, me deixar envolver pelo seu
sorriso e toque. Por isso, trabalhei de casa. Não saí nem para ir ao
Capolavoro, fiz tudo remotamente com medo de que ele estivesse me
aguardando na calçada e se jogasse mais uma vez na frente do meu carro,
em uma tentativa ridícula de chamar a atenção.
Quando as ligações cessaram e ele deixou de ir até o meu
apartamento, soube que ele finalmente tinha desistido. Portanto, era a minha
vez de retomar ao controle da minha vida. Acordei na manhã seguinte, me
maquiei, escovei os cabelos e escolhi um vestido longo de estampa floral, a
peça transmitiria a alegria que estava desaparecida, mas que eu a
encontraria muito em breve.
No momento em que estacionei no Capolavoro, ainda dentro do
carro, vi a porta do veículo ser aberta e Nicolas se materializar no banco
vazio ao meu lado. Demorei alguns segundos absorvendo a sua presença,
fitando longamente o seu rosto: as olheiras e a barba maior eram novidades.
Desejei saber o motivo do descuido e da insônia, mas logo reprimi tal
pensamento, não era da minha conta. Vai ver a outra mamãe estivesse
exigindo demais das suas noites.
— Saia do meu carro! — Ordenei, desviando o olhar.
— Essa é a única coisa que você tem a me dizer?
— Saia do meu carro! — Repeti, desejando que ele atendesse o meu
pedido de imediato, antes que as emoções me dominassem.
— Dafne, olhe para mim. Por favor — o pedido foi feito como uma
súplica e eu acabei atendendo.
— É isso que você quer ver, as lágrimas nos meus olhos? Não se
preocupe, elas desaparecerão na mesma velocidade que surgiram.
— Você acha que é a única que está sofrendo aqui? Desde que você
foi embora sem me dar uma explicação, eu não sei o que é deitar a cabeça
no travesseiro e ter uma noite de sono tranquila. Há dias não consigo me
concentrar em nada porque todos os meus pensamentos estão com você. A
cozinha que sempre foi o meu reduto de calma e felicidade se tornou um
lugar insosso, porque ir até o Bernard e não encontrar você me deixa uma
sensação de vazio — cada palavra foi dita olhando no fundo dos olhos, por
uma voz embargada.
Até parecia ser sincero. Mas eram apenas falsas palavras, assim
como os seus sentimentos.
Ainda assim, meu corpo reagiu a cada uma delas, o meu coração
acelerou os batimentos e eu me emocionei ao ouvi-las, duas lágrimas
molharam a minha face eu me apressei em afastá-las. Assim como os meus
sentimentos por ele.
— Você só tinha que me dizer a verdade, era o mínimo que eu
merecia — declarei.
— Que verdade?
— Você me ofende ao me tratar como se eu fosse uma tonta. Se bem
que eu devo parecer mesmo...
— Dafne, eu não sei do que você está falando. Eu juro pela vida do
meu filho.
— Não coloque mais um inocente nas suas mentiras — esbravejei.
— Que mentiras?
— Quando você pretendia me contar? Quando a minha filha
nascesse? Também estava preocupado com a minha saúde?
— Agora Agnes é a sua filha?
— Ela não merecia ser sua filha. Nem ela, nem o Vicente mereciam
ter você como pai — soltei, com raiva.
— Você pode estar chateada comigo, mas...
— Chateada? Eu estou decepcionada e com ódio.
— Ok, apesar de eu desconhecer os motivos você pode se sentir
dessa maneira, mas não tem o direito de questionar o tipo de pai que eu sou.
Você sabe, o tipo de pai que eu sou, presenciou a minha relação com o
Vicente e...
— O problema aqui é o que eu não presenciei, não é? Cheguei a
tentar enxergar pela sua ótica, como você se sentia com isso e sim, deve
alimentar o ego de um homem da sua idade ter duas mulheres na sua cama,
denota virilidade...
— De que porra você está falando? — Elevou o tom de voz.
— Engravidar duas quase ao mesmo tempo, então? Deve ter sido
um feito fantástico, digno de compartilhar nas rodas de conversa cheio de
orgulho.
— Não faz o mínimo sentido o que você está falando.
— Chega — gritei, batendo no volante. — Tenha a decência de pelo
menos assumir que mentiu para mim esse tempo todo, que eu não passei de
um casinho para fugir da sua rotina.
— Eu não vou admitir o que não é verdade. Você nunca foi um caso,
porque nunca houve ninguém entre nós. Acredite em mim!
— Nicolas, eu quis tanto que fosse apenas um mal-entendido. Que a
Ingrid estivesse ali pelo Vicente... Mas não. Eu me senti usada, enganada e
traída. Questionei por diversas vezes por que você me colocou nessa
situação. Eu nunca exigi nada, você que fez questão de me colocar na sua
vida. Acreditei nas suas palavras, cheguei a achar que pudéssemos ser uma
família. Por que fez isso? Eu não merecia passar por tudo isso, mais uma
vez.
Havia perdido a batalha contra as lágrimas e começava desmoronar
bem na sua frente. Nicolas levou a mão ao meu rosto, senti a aspereza do
curativo no dedo, em contato com a minha pele. O toque da ponta dos seus
dedos ativou antigas memórias, lembranças de bons momentos, de quando a
sua carícia não me trazia sofrimento.
— Não! — Afastei a sua mão. — Não ouse me tocar, tenho nojo de
você.
Minhas palavras o atingiram, pois ele me encarou em uma expressão
de espanto e profunda tristeza.
— Eu juro que queria entender o que eu fiz de tão grave para
merecer esse desprezo.
— Você quer que eu faça uma lista para você? — Sorri
amargamente. — Número 1 fodeu com outra mulher, mesmo estando
comigo e jurando que não havia mais ninguém.
— Eu disse a verdade para você, não tinha ninguém na minha vida.
— Vai me dizer que você e a Ingrid não transavam?
— Ingrid e eu não estávamos mais juntos.
— Mas isso não impediu que vocês se pegassem, não é?
— Sim, mas isso foi antes de eu ficar com você.
— E como ela engravidou? Por telepatia?
— Grávida?
— Nicolas, eu já sei de tudo.
— Ela não me contou nada e sabe por quê? Porque ela não está
grávida ou se está eu não sou o pai.
— Por que continua mentindo, não basta toda a humilhação que me
fez passar?
— Você precisa acreditar em mim, Ingrid não está esperando um
filho meu e sabe por quê? Porque desde a noite que ficamos no restaurante
não rolou mais nada entre nós. Eu estou apaixonado por você, não tenho
atração por ninguém além de você, não desejo passar o meu tempo com
nenhuma outra mulher. Você é a única que eu quero, Dafne — Nicolas se
declarou com os olhos marejados.
Sua feição me passava verdade, seus olhos estavam tristes, mas
sinceros e eu me permiti ponderar sobre sua versão.
— Por que ela mentiria para mim?
— Não sei, vou descobrir isso.
— Ela não tinha necessidade de mentir, Nicolas.
— E eu tinha? Você acreditou nas palavras de uma mulher que
acabou de conhecer e é incapaz de acreditar em mim. Sequer tive o
benefício da dúvida. Como você pode achar que tudo que tivemos foi uma
completa mentira? Que todas as vezes que fizemos amor não significou
nada para mim? Que as minhas demonstrações de afeto eram falsas? Dafne,
olhe bem no fundo dos meus olhos e se você enxergar uma centelha de
dúvida, prometo que te deixo em paz. Mesmo sabendo que vou sofrer com a
sua partida.
Encarei as írises azuis e não encontrei o que eu procurava. Seria
mais fácil se eu detectasse que ele estava mentindo, mas tudo que vi foi um
homem sofrendo e o mais profundo afeto.
— Ela olhou no fundo dos meus olhos e disse que estava grávida de
quatro semanas. E quando questionei se você seria o pai, ela pediu que eu
perguntasse diretamente a você. Como acha que eu me senti?
— Foi por isso que foi embora sem se despedir?
— Aquele não era o meu lugar, não havia espaço para mim na sua
família.
— Você, a nossa filha e o Vicente é que são a minha família.
— Você e a Ingrid tem uma história não resolvida. Não quero ficar
no meio disso.
— Quantas vezes tenho que repetir que a minha relação com a
Ingrid não existe mais. Dafne, eu te amo! Você não sente o mesmo?
— Não importa o que sinto, não consigo me entregar por inteiro
enquanto você não for meu por completo.
— Eu já sou seu! Acredite em mim.
— Eu preciso de um tempo, nós precisamos de um tempo.
Aproveite para reavaliar a sua vida, as suas vontades, não faça escolhas
porque as condições te levaram a elas. Eu vou entender perfeitamente se
não quiser assumir o bebê, assim como entenderei se a nossa relação for
exclusivamente restrita à nossa filha.
— Acha mesmo que eu estou com você somente pelo bebê? Eu
estaria com você em qualquer outro cenário, em qualquer outra
circunstância.
— Eu só preciso de um tempo, um tempo para organizar os meus
pensamentos.
— Vou te conceder esse tempo, mas saiba que eu não preciso dele.
Tenho certeza absoluta de que eu quero você na minha vida. Você tem a
chave do meu coração, quando quiser entrar e fazer morada sabe onde me
encontrar.
Ele plantou um beijo no meu rosto e se retirou. Levando a metade
do meu coração com ele.
 

 
— Que deliciosa surpresa! — Ingrid me recebeu sorridente. Ela se
inclinou para me cumprimentar com um beijo no rosto, mas eu me afastei.
— A casa é sua!
— O Vicente está aqui? — Indaguei ao passar pela porta. Não
queria que o nosso filho presenciasse a nossa conversa.
— Está na área de lazer com os coleguinhas, está rolando uma
competição de bola de gude. Temos a casa só para a gente... — Insinuou.
— O que você disse para a Dafne?
— Falamos de tantas coisas… — Ela não sustentou o olhar, em um
claro indicativo de que estava mentindo.
— Vou perguntar pela última vez: O que você disse para a Dafne?
— Exigi, tomado pela raiva.
— Você jamais usou esse tom para falar comigo. Essa mulher fez
mesmo a sua cabeça.
— Como você quer que eu mantenha a calma quando descubro que
você inventou a porra de uma gravidez?
— Era apenas uma brincadeira — se defendeu sorrindo — ela que
se mostrou sensível demais e começou a chorar descontroladamente, tentei
apelar para o seu bom senso. Mas Dafne não me ouviu. Fiquei preocupada
com o bebê, mas ela me expulsou do quarto antes que eu pudesse revelar a
verdade.
— Em que momento você se tornou essa pessoa dissimulada e eu
não percebi?
— Você não tem o direito de entrar na minha casa e me ofender.
— Você pensou nisso quando mentiu para a minha namorada que
estava esperando um filho meu?
— Sua namorada? Até ontem eu nem sabia quem era essa mulher.
Até o meu filho vir me contar que teria um irmão porque você não teve a
decência de me dizer, o nome dela era desconhecido para mim. E agora
evoluiu para sua namorada?
— Não mude de assunto. Que porra passou pela sua cabeça quando
inventou essa história?
— Eu estava com ciúmes, confusa… fui fazer uma surpresa, passar
um tempo com os dois homens da minha vida, não esperava encontrar
aquela mulher no seu quarto.
— Assim como eu não esperava a sua presença lá.
— Eu era sua esposa.
— Isso mesmo, era.
— Você faz parecer que eu sou maluca. Como se eu não tivesse
motivos para sentir ciúmes. Até um dia desses, você era presença constante
na minha cama, você gozava chamando o meu nome e me dava a porra da
falsa esperança de que nossa a família seria refeita — gritou.
— Eu não sou o canalha dessa história. Nosso acordo era que
aproveitássemos enquanto fosse bom para ambos. Você sempre soube que
era apenas sexo!
— Não sou a porra de uma boneca inflável para não ter sentimentos.
Eu nunca deixei de amar você, esperei que você reencontrasse esse amor
adormecido dentro de você.
— Você me deu o meu bem mais precioso, claro que amo você, mas
não é o amor de marido e mulher mais. Ele acabou e você sabe disso.
— Vai me dizer que é amor fraterno? Me poupe, Nicolas. Quero o
amor carnal, que faz com que me sinta viva ao seu lado, que incendeia o
meu corpo apenas com um olhar. Eu quero você, quero a nossa família de
volta...
— Sinto muito, mas eu não posso mais te dar isso.
— Por causa dela?
— Não, porque eu não sinto mais nada disso por você — as
lágrimas molharam o seu rosto e eu detestei ser o responsável por isso.
— Seu amor acabou quando meu dinheiro não se fez mais
necessário? Deixou de me amar quando seu restaurante começou a
prosperar?
— Do que você está falando? — Perguntei atordoado pelas suas
palavras.
— Se o Bernard saiu do papel foi pelo meu dinheiro, o dinheiro da
minha família — as palavras me deram a mesma sensação de levar uma
bofetada. — Ou você esqueceu o quanto eu investi no seu sonho? De como
abdiquei da minha vida para que pudesse viver a sua profissão? Sustentei a
nossa família por um ano inteiro enquanto o restaurante não dava lucro.
— Você fez questão de assumir as despesas da casa sozinha, recusou
as minhas constantes ofertas de auxílio.
— O que eu poderia fazer? Reduzir o padrão de vida que vivíamos
para nos adequar a sua realidade? Não iria morar em um apartamento
pequeno ou trocar a marca principal de iogurte por uma genérica só porque
você não tinha grana.
— Você tem ideia do quanto está sendo injusta comigo? Eu não era
o gigolô que você bancava. Estava trabalhando oito, doze, até dezoito horas
por dia para prover a minha família. Além do mais, paguei cada centavo
que a sua família investiu. Sempre disse que aquilo era um empréstimo e
quitei a minha dívida.
— Enquanto você trabalhava todas essas horas eu estava sozinha em
casa com um bebê, você nunca estava ao meu lado nos eventos em família.
— Mesmo exausto eu passava as madrugadas com o Vicente para
que você pudesse dormir, mas não estou querendo parabéns por fazer a
minha obrigação.
— Não era o suficiente! — Esbravejou.
— O que mais eu podia fazer?
— Ter mudado de profissão, sei lá. Se formar em outro curso que te
desse uma profissão com status social e retorno financeiro imediato.
— Você largaria a sua profissão se eu pedisse? Deixaria de fazer o
que mais ama para atender um capricho meu?
— É completamente diferente, eu sou médica.
— Ah, sim, não podemos comparar uma médica a um cozinheiro —
desdenhei. — Por que, propositalmente, resolveu me atacar agora?
— Porque estou ferida, porque me trocou por aquela maldita
mulher! — Gritou.
— Por que vocês estão brigando? — Me virei e encontrei, parado a
porta, Vicente nos fitando com uma expressão de espanto. Ele jamais tinha
presenciado uma discussão nossa.
— Não estamos brigando, amor — Ingrid enxugou as lágrimas e se
voltou sorrindo para o filho — estávamos apenas conversando.
— Eu vi você gritar com o papai.
— Foi apenas uma conversa mais acalorada, está tudo bem —
assegurei — e o meu abraço?
Ele sorriu e correu para os meus braços.
— Amo tanto você, filho.
— Eu também, papai. Você vai me levar à escola hoje? —
Perguntou animado, teria apenas que ligar para o restaurante e pedir que
assumisse as pontas até a minha chegada.
— Seu pai já está de saída — Ingrid cortou.
— Mas eu queria que ele me levasse à escola.
— Não tem problema, posso levá-lo a escola.
— O Vicente sabe que durante a semana você está completamente
comprometido com o restaurante. Você lembra que o papai alimenta as
pessoas, ele não pode fechar o restaurante para levar você à escola, né
filho? — Ele balançou a cabeça em confirmação — mas não se preocupe,
saímos mais cedo e a mamãe te compra um sorvete no caminho,
combinado?
— Combinado — ele sorriu.
— Ingrid…
— Dê um beijo no papai, ele já está de saída.
Foi por Vicente que eu não insisti em levá-lo ao colégio. Não queria
que ele presenciasse em uma nova discussão, os meus problemas com a
mãe dele, não iriam afetar a nossa relação.
*
Ingrid me enviou uma mensagem no sábado para dizer que Vicente
não dormiria na casa dos meus pais naquele dia, como era de costume.
Afirmou que ela e Vicente iriam comparecer em uma festa infantil e não
sabiam a hora que chegariam. Portanto, no domingo pela manhã fui até o
seu apartamento pegar o meu filho. Alguns minutos se passaram até que a
porta fosse aberta, Ingrid usava uma camisola longa de seda, não me ative
por muito tempo ao corpo que eu conhecia muito bem e concentrei a minha
atenção no seu rosto.
— Bom dia — me cumprimentou sorridente.
— Bom dia, Vicente já está pronto?
— Acho melhor você falar com ele — deu de ombros e eu caminhei
até o quarto dele e o encontrei deitado usando pijama.
— Acordou agora, dorminhoco? — Sorri — Levanta, vamos tomar
café da manhã em um hotel.
Ele não mostrou felicidade com a minha chegada, era a primeira vez
que isso acontecia.
Ele está apenas sonolento.
— Eu não quero ir.
— Tudo bem, vamos para casa e eu faço o sanduíche que você tanto
gosta. Hum, que tal tapioca com Nutella?
— Eu quero ficar aqui, com a minha mãe — não consegui esconder
o quanto a negativa dele me causou tristeza. O domingo era o momento
mais esperado para nós dois e ele sempre demonstrava felicidade em
estarmos juntos?
— Aconteceu alguma coisa? — Me sentei na beira da sua cama.
— Não.
— Então, por que não quer ficar comigo?
— Pai, você vai ficar zangado comigo se eu não quiser ir para sua
casa? — Ele me respondeu com outra pergunta.
— Por mais que papai queira muito ficar com você, não vou ficar
zangado por isso. Mas posso saber por que não quer ir comigo?
— Não quero ver a Dafne.
— Ela não está lá, mas você gostava da Dafne, o que aconteceu?
— Não gosto mais — respondeu emburrado.
— Por quê?
— Porque não gosto, também não gosto mais da Agnes.
— Você está apenas chateado, sei que você ama a sua irmã.
— Eu odeio ela! — Gritou.
Vicente demonstrou irritação, as palavras foram ditas com
agressividade e acompanhadas por lágrimas nos olhos. O seu
comportamento atípico me causou estranheza.  Não era da sua natureza agir
dessa forma.
— O que acha de a gente conversar sobre o que está sentindo? Me
conta de onde veio essa raiva pela sua irmã?
— Queria ser filho único pra sempre! Não quero dividir sua
atenção.
— Não precisa sentir ciúmes pela chegada da sua irmã, você vai
continuar sendo amado.
— Isso, até ela nascer. Você vai esquecer que eu existo e vai preferir
o bebê fofinho — as lágrimas antecederam o choro compulsivo.
Puxei o meu pequeno para um abraço e deixei ele colocasse para
fora as suas emoções. Acariciei as suas costas sentindo o corpo trêmulo
junto ao meu, as lágrimas molhando a minha camisa e tentei transmitir com
meu toque e palavras, ditas ao seu ouvido, o quanto ele era amado. O meu
amado filho.
Aos poucos o choro foi cessando, as lágrimas diminuindo e o nosso
abraço chegou ao fim. Ver no rosto dele o sinal de tristeza, os olhos
vermelhos e inchados de quem chorou bastante, fez com que um nó se
formasse em minha garganta e as lágrimas acumulassem nos meus olhos.
— Olha bem no fundo dos olhos do papai e escuta com atenção o
que vou te falar — ele atendeu ao meu pedido — eu te amo desde que você
era um amendoinzinho na barriga da sua mãe, você nasceu e esse amor só
aumentou. A primeira vez que te peguei em meus braços foi o dia mais feliz
de toda a minha vida e sabe por quê? — Balançou a cabeça em negação —
porque nesse dia eu entendi o que era amor, aprendi o que era o sentimento
que me roubava o ar e acelerava o coração, compreendi que a partir daquele
dia eu não poderia viver se você não estivesse ao meu lado.
Uma lágrima solitária correu pelo meu rosto.
— Você cresceu e se tornou um garoto forte, inteligente, engraçado,
lindo e amoroso. E continuou sendo o amor da minha vida. Cada dia que
passa eu só sei te amar mais e mais. Não pense que a chegada da Agnes vai
diminuir o amor que sinto por você.
— É verdade, pai?
— É a mais pura verdade. Não vou deixar de te amar quando ela
vier ao mundo, porque o amor de um pai não se reduz, ele se multiplica.
Você vai continuar sendo o meu filho amado, vai continuar ocupando o
mesmo espaço na minha vida e no meu coração. Ninguém ocupará o seu
lugar.
— Você promete?
— Prometo! — Ele sorriu ao ouvir a minha resposta — Eu te amo
muito, nunca duvide disso. Está me ouvindo?
— Eu também te amo muito e acho que gosto da minha irmã —
confessou.
Não tentei convencê-lo a ir comigo e por mais que a minha vontade
fosse que ele me acompanhasse, respeitei a sua vontade. Não iria obrigá-lo
a nada, nunca fiz isso e não iria começar hoje. Passamos a manhã brincando
no seu quarto, começamos a montar o jogo de Lego dos Minions. As mais
de 870 peças não seriam montadas naquele momento, então combinamos
que uma vez no mês iríamos dedicar algumas horas para a montagem.
— Vicente hora de almoçar, mas antes: banho! — Foi Ingrid que me
fez perceber que havia perdido a noção do tempo.
— Você almoça comigo, pai? — Consultei ela com o olhar, que
assentiu em concordância.
— Sim, agora obedeça a sua mãe e já para o chuveiro.
— Não esqueça de lavar as costas, vou conferir se não tem nenhuma
sujeirinha em você — ela sorriu.
— Pode deixar, mãe — ele sorriu e seguiu para o banheiro.
— Será que posso dar uma palavrinha com você? — Saímos do
quarto, fechei a porta para que as nossas vozes ficassem abafadas.
— O Vicente não quis ir comigo, disse algo para ele? — Questionei
em um tom sereno e baixo.
— Acha que eu impediria o nosso filho de ir com o pai?
— Não, mas talvez tenha dito algo para ele…
— Não disse nada. Não contei que o pai dele iria construir uma
nova família, que trepou com a mamãe enquanto buscava o amor em outra
mulher. É isso que você quer saber?
— Eu quero saber o motivo da mudança brusca de comportamento
dele. Quero saber de onde surgiu essa insegurança com a irmã, por que ele
não quer ver a Dafne?
— Não sei.
Não acreditei nela.
— Tem certeza de que esses pensamentos não foram colocados na
cabeça dele por você?
— Essa sua acusação é absurda.
— Absurdo é uma mãe usar o filho como instrumento de vingança.
Se eu souber que você está jogando Vicente contra mim…
— Vai fazer o quê, me bater?
— Jamais faria isso com nenhuma mulher, ainda que ela cometa
alienação parental.
— Está me ameaçando? — Sorriu — se eu quiser solicitar ao
advogado que dê entrada na guarda unilateral, o que deveria ter sido feito
quando nos divorciamos, o seu tempo com o Vicente será reduzido a duas
visitas mensais.
— Você não vai tirar meu filho de mim! — Esbravejei.
— Não grita com a minha mãe! — Vicente se colocou na frente
dela.
— Está tudo bem filho, seu pai só está um pouco nervoso — ela o
abraçou.
— Vicente, eu não queria gritar com a sua mãe...
— Mas gritou e homem não grita com mulher. Você já ensinou!
— Desculpa, eu errei.
— Está desculpado — Ingrid sorriu — você estava me dizendo que
recebeu uma ligação e não poderá ficar para almoçar, né? — Vi a decepção
no rosto do meu filho.
— Já consegui resolver, vou ficar e almoçar sim — menti.
— Eba! — Ele comemorou batendo palmas — vamos, você vai
sentar ao meu lado.
Ele me pegou pela mão e conduziu a mesa.
Aquela foi a refeição mais insossa que já comi.
A ameaça de Ingrid tinha roubado o meu apetite, assim como a
minha paz de espírito. Não iria permitir que ela jogasse o nosso filho contra
mim. Não iria perder o Vicente para ela. Nem que para isso eu precisasse
sufocar outros sentimentos.
 

 
O meu retorno ao Bernard foi marcado por um misto de
sentimentos. Estar de volta ao restaurante, indiretamente significava dar um
passo em direção ao Nicolas. Porque não havia a menor possibilidade de
reencontrá-lo e não ser afetada pela sua presença, o seu cheiro, a sua voz, a
sua risada. Senti a sua falta na minha vida, até das provocações que me
irritavam eu tive saudade. O meu corpo também lamentou a sua ausência,
desejando ardentemente pelo seu toque. Que fosse o seu pau que estivesse
no lugar dos meus dedos me fazendo contorcer de prazer. Nicolas esteve em
meus pensamentos durante o banho, enquanto escolhia o vestido para usar
essa noite e me perseguiu no trajeto até ali.
— Dafne, que bom te ver! Está tudo bem com o bebê? — Me senti
acolhida por Kedma.
Para explicar o meu afastamento repentino acabei revelando a minha
gravidez, como justificativa que eu precisava descansar. O que não era uma
completa mentira. Eu me cansava com mais facilidade do que antes, então
diminuir o ritmo era uma boa pedida.
Durante a minha ausência, Kedma foi a minha fonte de atualizações
diárias sobre o restaurante, ela também acabou se tornando responsável pelo
agendamento dos eventos. E seria recompensada por isso no início do mês.
— Tudo ótimo, obrigada por perguntar. Tem uma garotinha aqui
com saúde de ferro, como a mamãe — toquei a barriga, acariciando a
extensão arredondada.
Desviei o olhar de Kedma para o salão e o encontrei, ele ergueu a
cabeça e seus olhos encontraram os meus, como se sentisse a minha
presença. Nicolas deu uma piscadinha para mim, sorriu e voltou a atenção
ao casal de idosos.
— A dona Odete e o seu Getúlio estavam procurando por você —
Kedma me trouxe de volta ao eixo.
— Algum problema com o jantar?
— Não, está tudo perfeito. Palavras deles. Mas disseram que a
senhora, digo você, prometeu que passaria por lá.
Eles haviam me convidado para a comemoração dos 50 anos de
casados, disseram que não aceitavam um não como resposta. Logo, não tive
alternativa a não ser confirmar a minha presença. Entretanto, pensei muito
em evitar uma desculpa qualquer e não aparecer. Seria a primeira vez que
Nicolas e eu ficaríamos frente a frente depois que ele confessou
abertamente os seus sentimentos por mim, sentimentos esses que eu
compartilhava. Mas estava com medo de admitir e quebrar a cara
novamente. Eu não poderia fugir para sempre, por isso resolvi aparecer e
enfrentar o mix de sentimentos que me acompanham dia após dia.
— Vou me juntar a eles.
Nicolas não estava mais no ambiente quando me movimentei. Era
melhor assim, caso contrário tinha uma enorme chance de eu declarar que
havia chegado ao meu destino ao passar por ele.
Assim que pisei os pés no salão externo fui envolvida pela bolha de
felicidade e amor que rondava o ambiente. Cada um dos presentes
celebrava com alegria as bodas de ouro do casal apaixonado. Não me
aproximei, fiquei no canto assistindo a linda interação familiar. Mas seu
Getúlio notou a minha presença e avisou a esposa da minha chegada. Eles
se levantaram e vieram em minha direção.
— Passei apenas para desejar mais 50 anos de felicidades ao casal.
— Obrigada, querida — Odete me puxou para um abraço.
— É apenas um singelo presente — passei a embalagem festiva para
as mãos dela.
— Não precisava — disse, já retirando o adesivo que fechava a
sacola de papel.
— Que coisa mais linda! — Dona Odete exclamou ao ver a
luminária de led em formato de árvore genealógica. Nela tinha o nome dos
filhos e netos.
— Contei com a ajuda da filha mais nova de vocês para esse
presente.
— A danadinha não nos contou nada — seu Getúlio sorriu.
— Vai ficar na cabeceira da minha cama, obrigada pelo presente.
— Não vou tomar mais o tempo de vocês — me preparei para me
retirar.
— Onde a mocinha pensa que vai? Você é a nossa convidada de
honra.
— Não quero atrapalhar a reunião familiar de vocês.
— Vou ficar triste se fizer essa desfeita — Odete prendeu o meu
braço ao seu e não me deu alternativa a não ser acompanhá-la de volta a
mesa. — Temos novidades aqui? — Seu olhar seguiu para a minha barriga.
— Sim — sorri.
— Deixe-me adivinhar quem é o pai…
— Eu aposto no chef bonitão — o marido que vinha alguns passos
atrás opinou.
— Se tivéssemos apostado, o senhor seria o vencedor — confirmei.
— Eu sabia que vocês iam ficar juntos, a minha intuição não me
engana.
— Humm, não estamos juntos.
— Ainda… Vocês jovens têm dificuldade em agarrar o amor quando
encontra, mas o caminho de vocês está interligado por toda a vida. Vocês
têm um filho em comum, filho é laço permanente.
A imagem de Ingrid se formou na minha mente. Nicolas e ela
tinham um filho, o que significava que eles estariam sempre unidos. E ao
aceitá-lo em minha vida, ela vinha por tabela, como um fantasma do
passado do Nicolas. Um passado que reivindicava o futuro. A minha razão
elencou todos os motivos para que as coisas permanecessem como estavam,
mas o meu coração já o tinha exigido como meu. Ele era a minha escolha,
com uma ex perversa e todas as adversidades que surgissem pelo caminho.
*
Fui apresentada à família e acolhida por todos. Saboreei as delícias
produzidas por Nicolas e constatei que até da sua comida eu sentia falta.
Em determinado momento, Getúlio convocou a atenção de todos para dizer
algumas palavras.
— Todos os dias eu acordo e agradeço a Deus por ter Odete em
minha vida. É fácil amá-la porque ela é dona de um sorriso fácil, é
generosa, doce, leal, engraçada, se preocupa com todos ao seu redor e está
sempre oferecendo uma palavra de carinho. Além de ser uma mãe exemplar
e aturar por 50 anos esse velho resmungão — rimos diante o comentário —
vou seguir repetindo até o fim dos meus dias: sou um homem de muita sorte
por construir uma família ao seu lado. Te amo.
— Eu te amo mais ainda — um selinho acompanhou a declaração e
os aplausos acompanharam o beijo. — Acho que é a minha vez de dizer
algumas palavras. Desde muito nova eu pedia para ter um marido igual ao
que meu pai foi para minha mãe, alguém que apoiasse os meus sonhos,
fosse meu melhor amigo e envelhecesse ao meu lado. Achei que tinha
encontrado essa pessoa, mas o pai de vocês me mostrou que eu estava
errada, ele não precisava ser igual ao homem que me criou. Ele era muito
melhor — sorriu — foi com ele que aprendi o que amor verdadeiro. Ele diz
que é um homem de sorte por ser o meu marido há 50 anos e eu brinco que
essa sorte é compartilhada, nos encontramos em meio a desencontros
pessoais e lutamos pelo nosso amor. Se alguém chegou para você e disse
que o amor é fácil, essa pessoa mentiu. Viver plenamente o amor é
desafiador, exige dedicação constante e paciência para enfrentar os dias
ruins. Mas, no fim, quando o amor é verdadeiro, qualquer obstáculo é
superado. Aposte no amor, ele sempre vale a pena.
Não notei que estava chorando até sentir uma lágrima quente tocar a
minha bochecha, outras seguiram enquanto aplaudia a linda declaração de
amor que falou diretamente ao meu coração.
Vale a pena tentar de novo.
Decidi seguir o meu coração e ir ao encontro de Nicolas, mas não
precisei ir muito longe porque ele estava ali, em um canto escondido
acompanhando tudo. Meus batimentos cardíacos estavam no ritmo da
bateria da escola de samba quando ficamos frente a frente. O meu fluxo de
pensamentos era rápido e confuso, dificultando a articulação de palavras,
mas isso não me impediu de verbalizar os meus sentimentos.
— Preciso confessar que até essa noite eu não sabia o que fazer com
os sentimentos que tenho por você. Foi tudo tão rápido. Tenho medo de
quebrar a cara, já tive o meu coração partido uma vez — ele respirou fundo
— e quase achei que tinha tido novamente. Ah, sei lá. Acho que estou
disposta a assumir esse risco de ser magoada novamente. Por você vale a
pena arriscar. Já trocou a fechadura? Quero usar a chave que me deu para
entrar no seu coração e fazer morada.
A resposta dele veio em um beijo repleto de saudade e o mais
profundo amor, levei as mãos ao redor do seu pescoço, permitindo que ele
reivindicasse os meus lábios, o meu corpo e o meu coração. E ele o fez,
tomando para si o que sempre te pertenceu.
— Prometo honrar a sua confiança em mim.
— Conto com isso, agora volte a me beijar.
Senti o seu sorriso nos meus lábios quando ele atendeu o meu
pedido.
Nicolas tinha o poder de fazer o mundo desaparecer ao nosso redor
e naquele instante éramos apenas nós dois e o nosso amor.
 

 
— Feliz aniversário, meu amor! — Surpreendi Dafne com um
brunch. Antecipamos a nossa comemoração no dia anterior, a celebração
começou no banho, seguiu para cama e se estendeu para a bancada da
cozinha. De modo que a aniversariante do dia terminou a noite em pleno
estado de felicidade e exaustão, então deduzi que ela dormiria até tarde para
recuperar as energias. Saí da cama com movimentos suaves para que ela
não acordasse e acabasse com a surpresa. Passei as primeiras horas do dia
cozinhando. Além dos mais variados alimentos, compunha a mesa um balão
personalizado e um buquê de lisianthus e astromélias.
— Por isso acordei com o meu lado da cama vazio? Valeu a pena —
sorriu, e se aproximou para me beijar.
— Sente-se, vou te servir. Hoje você é a rainha e eu sou o seu
súdito.
— Posso pedir qualquer coisa ao meu súdito? — Ergueu a
sobrancelha.
— Qualquer coisa — sorri.
— Já sei o que eu quero.
— O quê? — Perguntei dominado pela pulguinha da curiosidade.
— No momento oportuno saberá — completou com uma piscadela
— ai, eu não tinha visto o balão.
Ela leu com lágrimas nos olhos a frase escrita no balão “mamãe,
parabéns!”.
— Às vezes eu acho que vou explodir de tanta felicidade que você
me proporciona diariamente.
— Acho que vou me manter afastado de você, não quero ser
atingido por pedaços de Dafne.
— Que horror! — Riu alto.
— O que quer beber?
— Aquele suco é de laranja? — Assenti — ele mesmo — enchi o
copo com a bebida. — Agora quero aquele bolo de chocolate com bastante
calda de doce de leite. Vicente iria amar esse bolo.
— Com toda certeza!
A minha relação com meu filho ainda era delicada, eu sentia que ele
gostaria de passar o domingo e a segunda comigo. Mas estava hesitante.
Esse domingo chegamos a passar o dia juntos, mas quis dormir com a mãe.
Disse que era para ela não ficar sozinha. Consultei um advogado e ele me
aconselhou a fazer uma denúncia de alienação parental no Ministério
Público contra Ingrid. Entretanto, decidi ter uma conversa definitiva com
ela antes de partir para a justiça. Estava preocupado com a saúde mental do
meu filho e estava disposto a ir até às últimas consequências para preservá-
lo.
— É só uma fase ruim — Dafne acariciou a minha mão. — Em
breve vocês estarão juntos.
— Em breve nós quatro estaremos juntos — toquei sua barriga que
só aumentava de tamanho.
— Eu não tenho dúvidas disso. E a comemoração hoje à noite…
— O que é que tem? — Disse com a boca cheia de bolo. — Está
nervoso, em conhecer seus sogros? — Ergueu a sobrancelha.
— Conheci poucos sogros na minha vida, não sei como agir. O que
falar... — Ela socou o meu braço com força — o que falei de errado? —
Massageei o lugar acertado.
— Temos um acordo de não falar de antigos relacionamentos,
esqueceu?
— Como a minha namorada é ciumenta — sorri — sou todo seu!
— É, mas já foi de uma longa lista de mulheres que eu sei.
— Não namorei todas elas.
— Isso só te torna ainda mais cafajeste.
— Eu prefiro experiente, adquirir muito conhecimento como você
pôde comprovar.
— Você consegue ser extremamente irritante quando quer.
— E você gosta até desse meu lado.
— Não tenho alternativa, você me seduziu e depois me engravidou
— gargalhei em resposta.
— E você se entregou tão fácil ao meu plano de sedução...
— Até parece — sorriu — você que não resistiu a mim e se
apaixonou à primeira vista.
— Tem razão, sua boca me seduziu quando me dei conta estava
querendo te beijar e sentir essa boca gostosa no... Filha não escuta isso —
Levou as duas mãos a minha barriga, uma de cada lado, representando o
gesto de tapar os ouvidos — meu pau!
— Nossa, como meu namorado é romântico.
— Sou mesmo, te dou flores e pau. O que mais você pode querer?
Dafne gargalhou e o som da sua risada preencheu o ambiente,
espalhando alegria por cada canto da casa.
Eu dedicaria todos os dias da minha existência para vê-la feliz.
*
Dafne optou por uma celebração mais intimista na sua cobertura.
Mas isso não significava simplicidade, o lugar estava elegante com flores e
balões metalizados na cor de ou rosé. Alguns móveis foram retirados da
sala para que os convidados circulassem livremente no local, em pequenos
grupos as pessoas interagiam entre si e eu me sentia um estranho no ninho
enquanto Dafne recepcionava os seus convidados. Rostos familiares se
aproximaram e busquei na memória o nome dos amigos de Dafne: Celeste e
Douglas. Eles estavam no jantar com o almofadinha arrogante, olhei ao
redor para me certificar de que ele não estava ali.
— Chef Nicolas — Celeste me cumprimentou sorridente, o
cumprimento seguiu para o contato físico, um beijinho em cada lado do
rosto. — Não se preocupe, seu concorrente não veio. Embarcou em uma
viagem para fora do país, você ganhou.
— É bom saber disso — não menti.
— É um prazer reencontrá-lo — o marido dela e eu trocamos um
aperto de mão.
— Por falar em prazer, devo te parabenizar por usar o seu tão bem.
Engravidou a Dafne sem chance de defesa — ela riu e eu meneei a cabeça,
achando-a um pouco inconveniente.
— Acho que você precisa de uma bebida para relaxar — foi o
Douglas quem fez sinal para o garçom se aproximar com as bebidas. Na
bandeja tinha whisky, gin tônica e French 75, o drink preferido de Dafne.
Não queria terminar a noite bêbado, mas realmente precisava de um pouco
de álcool naquele momento. Douglas me acompanhou.
— Nossa Whisky demonstra bem o seu nervosismo — Celeste
afirmou sorrindo, enquanto eu ingeria a pequena dose de uma só vez, que
desceu queimando pela garganta.
— Foi uma boa escolha, querida, Nicolas optou por não terminar a
noite vomitando pelos cantos — o marido completou.
A mulher riu abertamente.
— Lembra de quando Dafne fez uma after aqui e ficou
extremamente irritada quando, no dia seguinte, descobriu que tinham
vomitado dentro do vaso do lírio da paz? Ela saiu mandando mensagem
para cada pessoa que compareceu para descobrir o culpado — se voltou
para o marido.
— Ela até hoje não sabe que foi o André — ele riu e a menção ao ex
noivo me causou um incômodo passageiro. — Somos péssimos amigos por
não ter contado... Ops, desculpa por tocar no nome do finado, às vezes sou
sem noção.
— Quase sempre é — Dafne se juntou a nós — por isso se deu tão
bem com Celeste.
— Ai, que direta — a amiga levou a mão ao peito. — Apesar disso,
você sabe o quanto estou feliz em te ver assim, tão plena, não sabe?
— Sei sim — Dafne e ela deram as mãos e trocaram um aperto
carinhoso.
— Mas que horas você vai admitir que eu estava certa quando o vi
pela primeira vez e adivinhei que tinha tensão sexual?
— Você estava certa, ok? Agora me dê licença que quero apresentar
meu namorado para as minhas amigas mais sensatas.
— As sensatas são as mais chatas — gritou, enquanto Dafne me
guiava para o outro lado.
Pela mão, ela me levou até os dois casais e acabou me apresentando
a Sara e Diana, com seus respectivos namorados os quais não registrei o
nome no primeiro momento. Meu foco era me concentrar nas amigas, seria
mais importante para Dafne se eu mantivesse uma relação boa com elas.
— Finalmente estamos te conhecendo, cheguei a achar que você era
uma fantasia da cabeça criativa da nossa amiga — Sara disse, sorrindo.
— Ele é real e bem gostoso. E todo meu! — Dafne declarou.
— Nicolas não sei o que você tem, mas você conseguiu arrancar
uma declaração pública tórrida da, toda racional, Dafne. — Diana comentou
me fazendo sorrir.
— Eu não sou um coração de gelo, não é amor? — Ela me encarou.
— Sempre sou eu quem diz eu te amo primeiro — provoquei.
— E eu sempre demonstro meu amor com ações que te agradam
bastante...
— Não tenho do que reclamar — passei a mão pela sua cintura e a
trouxe para mais perto.
— Será que você pode tirar as mãos da minha irmã? — A voz grave
me causou arrepios, girei lentamente e encontrei um homem sério. — Estou
brincando com você — seus lábios se ergueram para cima, mas não o
suficiente para formar um sorriso completo.
— Silvio, você quase matou o pai da minha filha — Dafne o
repreendeu.
— Então, é ele? — Ergueu a sobrancelha.
— Sim, sou eu. Muito prazer, me chamo Nicolas — estendi a mão
em cumprimento.
— Sou Silvio, irmão da irritadinha aí — se apresentou com um
aperto de mão firme. — Esse é o Samuel. — Apresentou a mini cópia em
seus braços.
— O amor da titia — o garotinho esticou os braços para Dafne que
o pegou, distribuindo beijos por todo o corpo da criança.
— Cuidado com a barriga da sua tia — o pai alertou.
— Neném! — Ele tocou a barriga dela.
— É, a sua priminha. Onde está a sua linda esposa?
— Vem logo ali atrás com a mamãe e o papai. Nicolas, boa sorte,
minha mãe vai marcar a data do casamento até o fim da noite.
— É exagero dele — Dafne assegurou sorrindo.
— Exagero? — Ergueu a sobrancelha — ela pediu netos na primeira
vez que viu a Ayla.
— Nicolas pulou essa etapa, já estou grávida — sorriu.
— Então, só resta o casamento.
— Casamento? — Dinamares perguntou com os olhos brilhando em
expectativa. — Não me diz que fez o pedido antes de chegarmos? Eu disse
ao seu pai para sairmos mais cedo e fugir do trânsito.
Silvio me olhou como se dissesse “Eu avisei”.
— Mãe, não houve nenhum pedido de casamento — Dafne olhou
feio para a mãe.
— Ainda — completei e Dafne me encarou com espanto —
Dinamares, a senhora está linda, como sempre.
— São seus olhos, Nicolas. Aqui entre nós — se aproximou para
falar em tom conspiratório — você comprou a aliança e vai fazer o pedido
hoje?
— Acho que a sua filha não gostaria de um pedido surpresa.
— Assim, como não gosto de fuxicos. É o meu aniversário e sequer
recebi os seus parabéns, mãe.
— Feliz aniversário, minha amada filha. Que papai do céu te proteja
e a minha netinha, e que você seja muito feliz ao lado do charmoso Nicolas.
— Parabéns cunhada, muita saúde e toda felicidade que houver
nessa vida. Agora vem com a mamãe antes que a sua tia termine a noite
com dor na lombar.
— Dafinha, parabéns — o pai abriu os braços e Dafne se
aconchegou ali. — Te desejo a mesma coisa todos os anos: que você seja
extremamente feliz. E pelo sorriso no seu rosto acho que já encontrou a
felicidade que tanto procurava.
— Esse é o Nicolas, o responsável pela minha felicidade e pai da
sua netinha.
A notícia não surpreendeu ninguém, era como se eles já soubessem
desde o início.
— Como vocês sabiam?
— Sogra sempre disse que era o chef charmoso — Ayla comentou.
— Depois do nosso jantar no Bernard, sua mãe cantou essa bola —
o pai dela disse.
— Eu não interagi com o Nicolas nessa noite, vocês sequer
chegaram a vê-lo.
— Por isso mesmo, eu soube que era ele. Já sabia da fama do chef
em cumprimentar os clientes e nessa noite, você me distraiu com a notícia
de que eu seria avó mesmo quando eu insisti em falar com ele.
— Sua filha que fez questão de me esconder, teria sido um prazer
conhecê-los na ocasião.
— Já está puxando o saco da sogra? — Dafne me repreendeu.
— Preciso garantir que serei aceito na família — beijei o seu rosto.
— Você é mais que bem-vindo — meu sogro assegurou — o que
acha de marcarmos um churrasco qualquer dia desses? Você é excelente na
cozinha, mas eu sou um churrasqueiro de primeira.
— Eu topo — sorri.
— Qualquer dia desses é muito abrangente, vamos marcar no
próximo domingo. Você está livre, Nicolas? — Fiquei inseguro em
responder, não sabia como eles reagiriam, e Dafne falou por mim.
— É o dia que ele fica com o filho.
— Você já tem um filho? — Não havia julgamento na pergunta da
sua mãe.
— Sim, o Vicente de 8 anos.
— É só trazer o Vicente junto, vamos adorar ter a casa com mais
crianças — Dona Dinamares afirmou sorrindo.
— Com certeza, assim como você, seu filho é mais que bem-vindo a
nossa família. — o pai de Dafne assegurou.
A noite foi incrível e minha namorada estava radiante. Conheci as
pessoas que ela amava, revi o advogado que tratou da nossa sociedade e,
quando a última pessoa se foi, me senti totalmente inserido em sua vida.
Mas o melhor de tudo foi saber que meu filho era bem-vindo a
família Capolavoro, aquilo me trouxe serenidade e uma dose extra de
carinho pelos membros da família da minha namorada. Eles não faziam
ideia do quanto significava vê-los acolher o meu filho tão bem sem nem
mesmo tê-lo conhecido ainda.
 

 
— A doutora Ingrid irá te atender agora.
Acompanhei a atendente que me guiou pelo extenso corredor de
porcelanato até o consultório. Durante o trajeto voltei a me questionar se
estava tomando a decisão correta ao decidir conversar com Ingrid. A ideia
surgiu e se fixou em minha mente e quando vi busquei o local que ela
trabalhava no Google a partir das informações que extraí do Nicolas de
forma despretensiosa. Antes que eu chegasse a uma conclusão, paramos
diante de uma porta branca onde se lia, em letras cursivas e douradas:
Dermato Ingrid Motta Almeida.
— Obrigada. — Agradeci e passei pela porta aberta.
Com o coração acelerado e a cabeça erguida, me aproximei. Ingrid
não escondeu o desgosto com a minha presença.
— Não sei quem deixou você entrar, mas pode se retirar. Estou
aguardando o próximo paciente.
— Eu sou a próxima paciente. Apesar de não ter vindo até aqui
pelos seus serviços médicos, paguei pela consulta —puxei a cadeira e me
sentei de frente para ela.
— O que você quer?
— Conversar.
— Foi o Nicolas que te mandou?
— Ele não sabe que estou aqui.
— É claro, ele certamente não aprovaria que a querida Dafne ficasse
no mesmo ambiente que a sua ex-megera.
— Ingrid, essa conversa não é sobre o Nicolas. Estou aqui para
termos uma conversa de mãe para mãe — ela ficou em silêncio, portanto
prossegui — acredito que se tivéssemos nos conhecido em uma outra
circunstância, hoje estaríamos em outro momento da nossa relação.
— Que otimismo da sua parte — sorriu com desdém.
— Para alguns isso é um defeito, mas particularmente acho que o
meu otimismo é um bom aliado na resolução de problemas.
— Então, temos um problema? — Ingrid alternava entre a postura
defensiva e o deboche.
— Não, já te perdoei pelo que fez comigo no passado.
— Não me recordo de ter me desculpado com você — ergueu a
sobrancelha.
— Eu estaria mentindo se dissesse que a sua atitude cruel não me
machucou. Você sabia o ponto exato para me atacar e atingiu o seu objetivo,
me fez sentir a pior mulher do mundo.
— Não estou interessada em saber o que a pobre Dafne sentiu —
estava estranhamente serena, de modo que, as suas constantes provocações
não causaram nenhum efeito.
— Mas esse não era um sentimento exclusivo meu. Não é mesmo?
— Ela não sustentou o olhar — passada a minha raiva, me coloquei em seu
lugar e imaginei o que sentiu ao me encontrar no quarto do Nicolas. Chegou
para fazer uma surpresa e encontrou uma intrusa. Tentei mensurar a sua dor
e se você sentiu apenas um terço do meu sofrimento, sei o quanto sofreu.
— Por que está me dizendo essas coisas? Onde pretende chegar?
— Ingrid, estou aqui para dizer que não sou a sua rival. Jamais foi a
minha intenção ocupar o seu lugar na vida do Nicolas, vocês têm uma
história e um elo definitivo: um filho. Se houvesse uma disputa entre nós
duas eu seria facilmente derrotada.
— Não precisa se fazer de coitadinha, você também é mãe de um
filho dele. E além do mais, parece que ele te ama — acrescentou deixando
as emoções aparecerem.
— Eu também o amo muito e é por esse amor que engoli o meu
orgulho e vim conversar com você. Nicolas está sofrendo com a ausência
do Vicente, você mais do que qualquer pessoa sabe o quanto ele ama o
filho. E o quanto Vicente é apaixonado pelo pai. Nesse pouco tempo em que
nós estamos juntos pude presenciar a cumplicidade pai e filho. Nenhuma
divergência nossa deveria afetar a relação deles, não é justo com os dois que
as nossas diferenças enfraqueçam o amor que um tem pelo outro. Por isso,
venho até aqui dizer que se for da sua vontade ficarei distante do Vicente,
ele pode ir à casa do pai tranquilamente que não irá me encontrar, também
não sairemos em viagem juntos ou passeios. Você tem a minha palavra.
— Você faria mesmo isso?
— Sim, sou mãe e faria qualquer coisa que proporcionasse
felicidade ao meu filho. E sei que faria o mesmo. Você criou um filho
maravilhoso e as vilãs não são boas mães, portanto não quero rotulá-la
assim.
— Dafne...
— Não me veja como a mãe substituta do seu filho — prossegui. —
Vicente só tem uma mãe e é você! A mulher que cantou para ele dormir,
que zelou o seu sono, ofereceu colo quando ralou o joelho e o amou
incondicionalmente antes mesmo dele nascer. Nem eu, nem nenhuma outra
mulher roubará esse lugar que é só seu.
— Eu realmente agradeço que você seja sincera dessa maneira, mas
aí eu também preciso ser. Eu fui casada com ele e nós ficamos juntos
mesmo depois de separados. Eu quero o Nicolas, me senti traída também, a
simples ideia de que outra mulher levaria os meus homens embora me
assombrou e agi com raiva. Eu vou me desculpar apenas pelo modo como
agi e não pelo que sinto. Não devia ter mentido e aquele seu mal-estar
poderia ter afetado o bebê, não me dei conta naquele momento porque
estava cega de raiva, então sinto muito.
— Entendo e espero que também entenda que nunca tiraria o seu
filho de você.
— Hoje eu sei disso, mas quando o Nicolas confessou que te amava
o meu medo de perder os dois ficou muito perto de se concretizar. Vicente
iria conviver com você frequentemente, com a irmãzinha que está a
caminho e juntos você se tornariam uma família. Então, chegaria o dia que
ele pediria para morar com o pai e eu seria abandonada pela pessoa que eu
mais amava nessa vida. E eu não poderia ficar de braços cruzados e permitir
que isso acontecesse.
— Não vou renunciar ao Nicolas e espero que você não tente
nenhuma outra artimanha para me separar dele — avisei — não sou a
culpada pelo fim da relação de vocês e não permitirei que você tenha tal
relevância na nossa. Você é a mãe do filho dele e eu respeito isso, mas a
mulher dele agora sou eu.
— Direta e reta, eu respeito isso — ela ergueu as sobrancelhas. —
Não vou me meter no caminho de vocês, mas saiba que se ele vier até a
mim não fecharei a porta na cara dele.
— Ele não vai! — Sentenciei.
— Quanto ao Vicente, vou ver o que posso fazer.
— Obrigada pelo seu tempo — fiquei de pé, encerrando a conversa.
— Não te desejo mal, Dafne.
— Também não, Ingrid.
Com um aceno de cabeça, nos despedimos e eu a deixei no seu
consultório.
*
— Chef, a sua presença está sendo requisitada no salão.
— Sim, senhora — ele sorriu, deixou a panela no fogão sob os
cuidados do Kleber — esse é um novo código para sexo no trabalho?
— Claro que não, seria um código terrível, visto que, a sua presença
é realmente solicitada o tempo inteiro — sorri.
— O único salão que eu gostaria que a minha presença fosse
requisitada é o seu…— Às mãos desceram pelas minhas costas em direção
a minha bunda, os dedos apertaram a pele em uma pressão deliciosa.
— Chega a ser pecado dizer isso para uma mulher grávida.
Nicolas emitiu a sua característica risada e em seguida me beijou. O
beijo lento e delicado foi o suficiente para agitar cada partícula do meu
corpo.
— Você não vai me distrair com os seus beijos. Tire a dólmã, você
não vai mais precisar dela.
— Não posso me ausentar da cozinha no início dos atendimentos.
— Não só pode como vai — sentenciei — tem uma pessoa que você
vai gostar de ver. Você não quer deixá-lo esperando, não é?
Ali mesmo no corredor, ele se livrou do seu tradicional uniforme,
revelando por baixo uma camisa preta. Pedimos a um funcionário que
deixasse a roupa de trabalho na minha sala antes de seguirmos até o salão.
Bastou apenas um olhar para ele encontrar a outra parte do seu
coração. Capturei o exato momento que Vicente avistou o pai, abriu um
enorme sorriso, soltou a mão da mãe e correu em direção a ele. Nicolas se
agachou para acolher o filho em um abraço afetuoso.
— Que saudades eu estava de você — a ponta dos dedos tocou o
rosto de Vicente como se para se certificar de que era real — o que você
está fazendo aqui?
— Estava com saudades e a mamãe disse que eu poderia vim te ver,
que não ia atrapalhar seu trabalho.
— Sua mãe estava certa, estou muito feliz em ter você aqui — o
olhar de Nicolas seguiu até a sua ex.
— Eu também, pai. A gente vai ficar em pé pra sempre, não vamos
sentar e comer? — O comentário dele nos fez sorri.
— Dafne, você poderia acompanhar o Vicente até a mesa? Quero
trocar uma palavrinha com o Nicolas.
— Claro — sorri.
— Até amanhã, mamãe. Te amo muito!
— Eu também te amo, comporte-se! — Ela se inclinou e o beijou no
rosto.
Deixamos os dois para trás e seguimos até a mesa reservada para
Nicolas essa noite. Puxei a cadeira para que Vicente se sentasse e ele
ocupou o assento, sentei-me ao seu lado enquanto aguardava o retorno de
Nicolas.
— Dafne, queria dizer para você que eu gosto da Agnes, viu?
— Sei disso, meu querido — estiquei minha mão em direção a ele e
Vicente a segurou.
— Fiquei irritado com umas coisas, mas era bobagem e também é
normal sentir um pouco de raiva, né? — Apertei seus dedos com carinho,
sentindo um enorme afeto se desenvolver dentro de mim.
Eu sabia que ele podia sentir ciúmes, ainda mais depois do
afastamento que teve do pai, mas vê-lo tão sincero me deixou
extremamente emocionada. E muito satisfeita com o passo que a Ingrid
tinha dado na direção certa. Vicente e Agnes não tinham culpa dos enroscos
das vidas dos pais.
— Sim e quero que saiba que podemos conversar quando se sentir
assim, se você quiser, tudo bem?
Ele assentiu e logo mudou de assunto, como uma boa criança de
mente veloz.
— Tem certeza de que a sua barriga tem espaço para a minha
irmãzinha? — Apontou para a minha barriga cada vez maior e pesada.
— Parece pequeno e apertado, né? — Ele balançou a cabeça
afirmativamente — mas tem espaço de sobra para ela. Até a perna ela
consegue esticar, sabia?
— Sério?
— Sim, na próxima vez que ela fizer isso, vou filmar e pedi para o
seu pai te mostrar. — ele se mostrou animado. — Você quer fazer o pedido
ou esperar pelo seu pai?
— Acho que é melhor pedir logo, né? Mamãe nunca fala só uma
palavrinha, ela fala um livro inteiro — sorriu.
— Então é melhor esperar com a barriga cheia — ele concordou
sorrindo.
— Por que não tem batata frita no cardápio?
— Mas isso não significa que você não possa comer — seus
olhinhos brilharam de alegria — ninguém irá negar batata frita a um cliente
tão precioso. O que acha de arroz, bife e fritas?
— E suco de laranja junto? — Assenti e acionei o garçom, passei
para ele o pedido especial.
— Meus pais agora brigam sempre quando estão juntos, será que
estão brigando agora? — Olhei em direção a eles, da minha posição
conseguia apenas ver Nicolas de perfil e ele parecia sereno.
— Não, estão apenas conversando.
—Mamãe disse que é normal brigar, que adultos se desentendem
com frequência e fazem as pazes depois.
— Sua mãe tem razão, adultos são complicados.
— Não quero ser adulto, quero ser criança para sempre — a
ingenuidade dele me fez sorrir. — Estava brigando com a mamãe? —
Vicente perguntou apreensivo quando o pai se aproximou.
— Não, filho. Sua mãe estava me contando que hoje você vai
dormir comigo.
— Sim! E no domingo e na segunda também! — Afirmou dominado
pela euforia.
— Assim o coração do papai não aguenta de tanta felicidade.
— Um coração velhinho, né pai? — Não contive a risada — Dafne,
você sabia que o meu pai já passou dos 40 anos?
— Nicolas, precisa ter cuidado com esse coração velhinho —
perturbei.
— Você sabe muito bem que o meu coração é de um garotão de 20
anos.
— Isso é impossível, porque você já passou dos 20 tem um tempão
— abriu os braços, esticando de um lado a outro, para demonstrar a
quantidade de tempo.
— Qual é filho? Você não pode dizer para a jovem namorada do
papai que ele está ficando velho.
— É para mentir? Você disse que mentir era errado — deu de
ombros.
Nicolas sorriu e fitou o filho com admiração e amor. O mesmo
sentimento se via nos olhos de Vicente. Eu conhecia bem essa conexão que
dispensava palavras e explicações. Meu pai e eu podíamos nos comunicar
apenas com um olhar e manifestar o nosso amor sem que nenhuma palavra
fosse usada. E quando as declarações de amor eram verbalizadas, era como
se nenhum vocábulo existente conseguisse traduzir o sentimento
avassalador que era amar um pai e ser amado de volta. O meu coração se
aquecia em saber que minha filha também vivenciaria esse amor.
— Meninos, divirtam-se! — Precisei me apoiar na mesa para ficar
de pé — daqui a pouco precisarei de um guindaste para me levantar —
Vicente gargalhou em resposta, a risada infantil contagiante.
— Não vai jantar com a gente? — Nicolas perguntou.
— Não, hoje é a noite dos meninos.
— Mas tem espaço para as meninas também — Vicente mostrou a
cadeira ao seu lado vazia.
— Eu sei que tem, mas aposto que você e o seu pai tem muito o que
conversar.
— Sim, tem tanta coisa para te contar, pai.
— Boa noite, Vicente — me despedi.
— Boa noite, Dafne e Agnes.
— Está tudo bem? — Nicolas me encarou preocupado.
— Não poderia estar melhor — sorri e alisei o vinco que se formou
em sua testa. — Eu te amo por diferentes motivos, mas neste momento eu
amo o pai que você é. Que sorte a dos seus filhos em ter você — os olhos
azuis se transformaram em poças d’água.
— Ingrid me contou brevemente sobre a conversa que tiveram…
Muito obrigado.
— Não me agradeça, curta muito o seu filho essa noite. Durma
agarradinho com ele e mate essa saudade sufocante que estava dentro de
você por todo esse tempo.
— Eu te amo cada dia a mais — acariciou o meu rosto.
— Tenho me esforçado para isso — ele riu.
A verdade era que o meu amor por Nicolas só aumentava a cada dia.
Amava o que já conhecia e amava ainda mais cada parte que eu descobria
na convivência diária. E o amor que eu sentia se estendeu para o Vicente,
sem que eu me desse conta esse sentimento ganhou forma e se apoderou do
meu coração. O garoto esperto e de olhos inocentes me conquistou com seu
sorriso e doçura. Deveria ser algo genético dos homens da família Bernard,
um poder mágico de invadir corações e fazer morada.
Eu era uma mulher de muita sorte por não ser imune a eles.
 

 
Acompanhei Ingrid até a frente do restaurante e me preparei para o
início de mais uma discussão. Infelizmente elas haviam se tornado
frequentes sempre que estávamos juntos. Mas, dessa vez eu faria o esforço
sobrenatural para não brigar, não queria que ela levasse o Vicente embora.
— Quando Dafne foi ao meu consultório imaginei que ela tinha ido
me dar o troco, esfregar na minha cara a sua felicidade, mas me enganei
completamente.
— Do que você está falando? Quando a Dafne foi ao seu
consultório?
— Ela vai te contar todos os detalhes — sorriu — foi a mulher que
você escolheu para construir uma nova família que me fez enxergar o
quanto eu estava sendo mesquinha e tóxica com minhas atitudes. Quero me
desculpar por todas as coisas que eu falei no meu ataque de fúria, elas
foram injustas com você. Nicolas, quero que saiba que nunca impedi o
nosso filho de ficar com você, mas isso não atenua o fato de que dei a
entender que a minha tristeza era por sua causa. Eu estava cega pela raiva e
acabei usando o Vicente para te atingir.
— Você acertou bem no alvo.
— Estou profundamente arrependida disso. Não imaginei que
confundiria os sentimentos dele, que causaria sofrimento e angústia.
— Palavras sem ações, são apenas palavras.
— Você tem toda razão. Marquei um psicólogo para Vicente para
tentar reverter os estragos que causei. Quero ser uma boa mãe, uma mãe
que ele tenha orgulho, que o guie pelo caminho certo — os olhos dela
estavam marejados.
— Não vou mentir e dizer que não cogitei entrar com um processo
de disputa pela guarda do Vicente, estava aflito vendo o meu filho cada vez
mais se afastar de mim. Achei que a única forma de resolver esse impasse
era por meios legais.
— Por que mudou de ideia?
— Porque eu lembrei da conversa que tivemos no dia que decidimos
colocar um ponto final no nosso casamento, prometemos um ao outro que
nosso filho não passaria por todo o estresse que uma disputa de guarda na
ocasião. Acordamos naquela manhã que Vicente seguiria morando com
você, pela sua flexibilidade de horário, e a mim eram destinados os
domingos e às segundas. Ele está um pouco mais velho, mas ainda sigo com
o mesmo pensamento de poupá-lo do estresse que podemos resolver entre
nós.
— Continuaremos com esse acordo — declarou.
— Estou aberto a sentar e conversar com você sobre algumas
mudanças, se quiser, mas não quero nunca mais ficar longe do meu filho. Se
isso acontecer não haverá uma nova chance, moverei céus e terras para
conseguir a guarda dele. Eu vendo o que me resta do restaurante, arranjo
um emprego de seis horas diárias, modifico toda a minha vida para que isso
aconteça. Não tome isso como ameaça, mas como um aviso de um pai que
quase enlouqueceu apenas com a hipótese de perder o contato com o seu
filho.
— Eu te dou a minha palavra, isso nunca voltará a se repetir.
— Foi por isso que trouxe ele, mesmo sem ser um dos dias
combinados?
— É uma demonstração prática de que estou arrependida de tê-los
afastado.
— Ingrid, quero que saiba que eu não escolheria outra mãe para o
Vicente. E tenho certeza de que ele compartilha do mesmo sentimento.
— Você não sabe o quanto isso significa para mim — uma lágrima
escorreu por seu rosto.
— Você sabe que eu torço pela sua felicidade, não é? — Assentiu —
espero que ao virar a esquina você encontre o amor da sua vida.
— Por favor, não. Isso significa que ele passou direto pelo
cruzamento e acertou o meu carro em cheio — sorriu, brincando.
— Eu não alteraria nenhuma linha da nossa história, porque você
me deu o grande amor da minha vida. Vou te amar para sempre por isso —
declarei.
— Eu mudaria, mas é tarde demais para isso — assenti.
Me despedi do meu passado e caminhei até o meu presente e
inevitavelmente o meu futuro.
*
A sensação de completude se apoderou de cada célula do meu corpo
quando vi o meu filho. O vazio que a sua ausência deixou foi preenchida
pelo seu sorriso, pela sua voz que narrou todas as coisas maneiras que ele
tinha realizado nas últimas semanas, pelo seu toque, desde o abraço
apertado quando nos encontramos até a mão que ele segurou ao seguirmos
até o carro. E quando chegamos em casa, ao fim da noite, ele pediu para
dormir na minha cama, deitou a cabeça sobre o meu braço e antes de
adormecer disse que me amava mais do que pizza de calabresa. Foi como se
o meu coração tivesse sido devolvido ao peito e voltasse a bater no seu
ritmo regular.
Não era possível mensurar a felicidade que senti ao acordar e tê-lo
ao meu lado, ainda mais em preparar o café da manhã com tudo que ele
gostava. Quando ele despertou e nos reunimos em volta da mesa,
retomamos aos antigos hábitos, fizemos planos para o fim de semana e ele
fez o pedido do que gostaria: macarronada de carne moída. Foi como se a
nossa relação tivesse ficado em pause durante esse tempo que estivemos
mais afastados, mas um start deu prosseguimento ao ponto exato que
paramos.
— Pai, tem como me levar ao shopping?
— Não pode esperar até o domingo? Hoje tem escola.
— Eu sei, mas prometo que é bem rapidinho. Já vou de uniforme
escolar para não perder o horário.
— Tudo bem — ele sorriu — será que posso saber a urgência dessa
ida ao shopping?
— É surpresa! Vou tomar banho para a gente ir logo ao shopping.
— Filho, vista apenas a calça do uniforme e outra camisa. Não
queremos que você chegue à escola com a farda suja de molho de tomate.
— Mamãe ficaria uma fera se isso acontecesse.
— E a gente não quer ver a mamãe uma fera, não é mesmo? —
Assentiu sorrindo. — Não esqueça de lavar os pés.
— Tá certo, pai.
Chegamos ao shopping mais próximo da nossa residência e
encontramos o espaço com pouca movimentação, justificável para a
primeira hora após a sua abertura. Vicente não hesitou ao me guiar até a
escada rolante em direção ao primeiro andar. A loja de brinquedos estava à
nossa esquerda assim que chegamos ao destino e foi até ela que ele nos
encaminhou, de mão dadas entramos no lugar.
— Bom dia, querem ajuda? — O funcionário simpático nos
recepcionou.
— Bom dia, por enquanto não. Obrigado.
— Qualquer coisa é só me chamar.
Assim que o homem se afastou, Vicente puxou a minha mão
cobrando atenção.
— Pai, eu queria a ajuda dele!
— Se você queria um brinquedo, tinha que ter conversado com o
papai antes. Esse é o nosso acordo.
Apesar de possuir condições financeiras de comprar qualquer
brinquedo que ele pedisse, estabelecemos algumas regrinhas. A sua mãe e
eu na tentativa de criá-lo da melhor forma possível, chegamos a um acordo
que nem sempre ele teria os seus pedidos atendidos. Foi uma forma que
acabamos encontrando de estabelecer limites e fazer com que ele
aprendesse desde cedo a lidar com frustração.
— Não é para mim, é pra minha irmãzinha. Economizei a minha
mesada para comprar. Agora posso pedir ajuda ao vendedor?
— Vá em frente — sorri.
Deixei que ele tomasse a frente da situação, sozinho ele conversou
com o vendedor, analisou as opções dos brinquedos correspondentes a sua
escolha, a minha participação consistiu em apenas em ajudá-lo a contar se o
dinheiro que tinha era suficiente para comprar o presente. Não só era, como
sobrou 20 reais, por isso ele foi até o caixa pagar.
— Meu avô diz que pagando em dinheiro tem desconto — a moça
do caixa acompanhou o meu sorriso, chamou o gerente e o homem
concedeu o desconto de 10%.
Meu pai ficaria orgulhoso em saber que o neto se tornou um
aprendiz da arte de pechinchar.
Vicente deixou o shopping plenamente feliz com o presente da irmã.
Agora só faltava entregar o presente.
*
— Que honra em receber esses ilustres convidados! — Dafne beijou
o rosto do Vicente e eu ganhei um selinho.
— Papai disse que você é a dona deste restaurante também. Todos
os restaurantes de Aracaju são seus? — Ela riu em resposta.
— Ainda não, mas não duvido que nos próximos anos ela adquira
pelo menos metade deles — insinuei.
— Nos próximos anos, a única coisa que vou adquirir é a
experiência de trocar fraldas — sorriu — vieram almoçar aqui?
— O Vicente queria comer macarronada e não tinha lugar mais
indicado que o eleito melhor restaurante sergipano para isso.
— E também trazer isso pra minha irmãzinha — ele ergueu da
cadeira o saco de presente e passou para as mãos de Dafne.
— Filha, você ganhou um presente — ela disse animada enquanto
rasgava o papel de que o envolvia . — Um unicórnio!
— Não é só um unicórnio, é o Fluffy o unicórnio da Agnes do Meu
Malvado Favorito — Vicente esclareceu.
— Você acertou em cheio no presente, sua irmã vai amar, combina
com a escolha do nome!
— Sabia que eu paguei com o meu dinheiro? — Falou todo
orgulhoso.
— E ainda pechinchou um desconto.
— Você é muito esperto, sabia? — Ele abriu um largo sorriso. —
Esse presente é muito especial. Vou contar à sua irmã a história por trás
desse unicórnio. E assim como eu, ela vai achar você o melhor irmão do
mundo.
— Você ouviu isso, pai?
— E você está surpreso com isso, filho? Papai, nunca teve dúvidas
de que você seria o melhor irmão do mundo.
— Melhor irmão do mundo…
Ele repetiu em êxtase.
Naquele segundo eu me sentia o homem mais feliz do mundo.
 

 
Eu amava o Natal, o espírito natalino que despertava o melhor das
pessoas e toda a magia que a data evocava. Sempre gostei de decorar a casa
com enfeites natalinos, montar a árvore e me dedicar à tarefa de encontrar o
presente perfeito. Estar grávida nessa data tão especial tornou tudo ainda
mais perfeito, aquele seria o primeiro ano que não precisaria desviar das
indiretas da minha mãe sobre dar-lhe um neto.
Celebramos o nascimento do menino Jesus em uma ceia farta,
cercados pela presença das pessoas que amamos. Meus pais abriram as
portas da sua casa para receber Nicolas, o filho e os seus pais. Foi o
primeiro momento de interação entre a família Capolavoro e a Bernard, e
não foi nenhuma surpresa que essa união deu liga. Meus sogros eram
pessoas extremamente gentis e carinhosas, sendo assim não encontraram
dificuldades em se integrar a família. Acompanhei à distância a conversa
dos patriarcas sobre alfaiataria, meu pai ouvia com atenção sogro falar com
paixão da sua profissão. Mamãe e sogra pareciam melhores amigas de
infância, em uma conversa animada repleta de sorrisos. Vicente distraiu
Samuel com caretas e brincadeiras para que os pais, ao nosso lado,
pudessem jantar em tranquilidade. Mais do que a troca de presentes,
compartilhamos afeto e declaramos o nosso amor. Por volta da meia-noite
nos despedimos, fizemos uma pausa para deixar os pais de Nicolas e
Vicente em casa e seguimos para o meu apartamento. Que agora era nosso,
já que Nicolas passava metade dos dias aqui.
— Guardei o melhor presente para agora — ele disse assim que
passei pela porta do banheiro usando um camisetão feminino branco e uma
calcinha larga de algodão.
— Não sei se você notou, mas tem um bebê enorme aqui.
Aguardando apenas o chamado da natureza para nascer.
— Li em um artigo científico que os orgasmos favorecem a
contração uterina e facilitam a indução do parto. A própria obstetra
confirmou isso.
— Está usando uma opinião médica para enfiar o seu pau grosso e
grande em mim? — Ergui a sobrancelha — Você sabe o quanto sou uma
grande apreciadora do seu pau, já dei inúmeras demonstrações do meu
amor, mas não sei se tenho condição de recebê-lo nessa altura da gravidez.
— Jamais te pediria isso, mas isso não impede que eu te proporcione
orgasmos.
— Humm, agora a coisa começa a ficar bem mais interessante. Sim,
estou sendo egoísta e pensando no meu próprio prazer. Afinal, é a minha
lombar que está sendo castigada nesse exato momento — Nicolas sorriu.
— Essa noite não é para mim, é para você! — Foi o suficiente para
a minha pele esquentar e o desejo correr em minhas veias — Tire a camisa e
sente na beira da cama.
Eu, que não gostava de receber ordens, atendi essa com um sorriso
no rosto. Senti a cama afundar quando ele se colocou atrás de mim, ansiei
pelo toque nas minhas costas e eles vieram acompanhados pela
cremosidade de um hidratante com cheiro de frutas vermelhas. Nicolas
espalhou o creme por toda a extensão de pele das minhas costas, antes de
iniciar a massagem suave. A ponta dos seus dedos trilhou um caminho até
os meus seios. Os polegares circularam os mamilos e gemi em aprovação ao
toque. Meus seios estavam maiores e extremamente sensíveis, eu poderia
gozar apenas com o seu toque.
— Você está ainda mais gostosa — sussurrou ao meu ouvido.
— Não pare… — Supliquei quando o toque cessou.
— Vou te dar tudo que você quer… — Minha pele se arrepiou ao
ouvir o som característico do vibrador em ação.
Com Nicolas eu me sentia desinibida para expor os meus desejos
sexuais, por isso de forma despretensiosa apresentei o meu
vibrador/estimulador de clitóris e mamilos. Ele tinha sido o meu fiel
companheiro por muito tempo, foi com ele que tive o meu orgasmo mais
arrebatador e pude vivenciar o que eu achava que acontecia apenas com as
mulheres do filme pornô: o squirting. Sei que para muitas mulheres nada se
compara ao pau masculino, mas a minha experiência me mostrou que eu
poderia me satisfazer plenamente apenas com o objeto que remetia ao
formato de um porquinho. Fiquei receosa que Nicolas não reagisse bem ao
sex toy, ainda tinham homens que viam os brinquedos sexuais como rivais.
Mas ele me surpreendeu positivamente ao dizer que jamais iria rivalizar
com um objeto que fazia coisas que a sua língua jamais seria capaz de fazer.
E olhe que a língua dele era capaz de me fazer ver estrelas.
Um último fio de racionalidade foi arrancado de mim quando o bico
do meu seio passou a ser estimulado pela sucção do vibrador. A sensação
avassaladora causada pelo sugador foi elevada a sétima potência quando
Nicolas mudou de posição, saindo da cama e ficando de frente para mim.
Ele levou os seus lábios até o pontinho latejante entre as minhas pernas e
feito um felino, ele passou a dar lambidinhas no meu clitóris em uma
angustiante e prazerosa tortura. Eu pingava de desejo, estava
completamente molhada e sedenta por mais.
Completamente enlouquecida pelo tesão que se espalhou do fio de
cabelo ao dedão do pé, enfiei os meus dedos entre seus cabelos e empurrei a
sua cabeça. Senti o seu sorriso na minha pele antes dele me dar tudo que eu
queria. Nicolas passou a beijar, lamber e chupar alternadamente, de modo
que, quando eu achava que não podia ir mais longe ele me surpreendia
aumentando a intensidade e desacelerando de propósito para arrancar
súplicas dos meus lábios.
Sua língua passou a me foder e, com as mãos espalmadas na cama,
inclinei a cabeça para trás e tive dificuldade em permanecer parada
enquanto ele me guiava com maestria ao ápice do prazer. Tentei prolongar
ao máximo a sensação, querendo aproveitar cada segundo do desejo que
incendiava o meu corpo, mas Nicolas arrancava com a sua língua os meus
gemidos, cada vez mais altos. Não me contive quando o polegar acariciou o
meu clitóris, massageando exatamente onde eu mais desejava.
— AIIIIII, NICOLAS! — Explodi em orgasmo arrebatador gritando
o seu nome. O squirt veio em seguida, o líquido molhou a cama e escorreu
pelas minhas pernas. E eventualmente atingiu o meu parceiro que ainda me
enlouquecia com a sua boca.
Nicolas se colocou de pé e vi o quanto para ele foi excitante me
causar tamanho prazer, ele colocou o pau para fora e lambi os lábios ao
percorrer com o olhar toda a extensão da sua rigidez, a ponta da cabeça
brilhava em excitação. Segurei em minhas mãos, sentindo-o pulsar, vi a
surpresa em seu olhar quando o recebi na minha boca. Com metade do seu
pau na minha boca e a outra parte em minha mão, sincronizei os
movimentos em um vai e vem ritmado.
— Boca gostosa da porra! — Falou com a voz rouca de desejo,
quando empurrei o seu pau um pouco mais fundo. Mas, como das outras
vezes que tentamos, eu não consegui mantê-lo por muito tempo na minha
boca, a barriga comprimia o meu diafragma e ter um pau na boca tornava a
respiração ainda mais difícil.
Entretanto, nada disso foi impedimento para que extraísse dele o seu
mais profundo gozo. Lambi, usei as mãos e suguei, não apenas o seu pau
como os seus testículos, acelerando os movimentos até que ele não resistiu
e um som gutural escapou dos seus lábios quando ele se entregou ao mais
profundo prazer. Os primeiros jatos do gozo atingiram o meu rosto, mas ele
direcionou os outros pelos meus seios e por toda a extensão da minha
barriga.
Eu sabia que deveria correr para o banheiro e me limpar antes que
endurecesse em minha pele feito um pingo de vela, mas eu me permiti mais
alguns segundos de pura satisfação. Naquele momento, toda gozada pelo
homem que eu amava, me senti a mais sexy das mulheres.
— Caralho! — Exclamou sorrindo, deixando o corpo cair ao meu
lado.
— Eu não descreveria de uma forma melhor!
— Tenho um outro presente para você — ergui a sobrancelha —
esse é muito mais romântico, pode ficar tranquila.
— Foi muito romântico da sua parte fazer a namorada cosplay da
grávida de Taubaté se sentir a mulher mais sexy do mundo.
Nicolas gargalhou diante da minha alusão à mulher que enganou a
todos com uma falsa gravidez de quadrigêmeos. A mulher usou uma barriga
de silicone do tamanho de uma bola grande de vinil para representar a
barriga de grávida. A minha barriga estava há um passo do tamanho da
grávida de Taubaté.
— Essa referência denuncia a sua idade.
— Ainda continuo mais jovem que você — sorri — e o meu
presente romântico? Eu ainda preciso me livrar dos seus vestígios na minha
pele.
— Você tá sexy pra caralho, assim! — Seu olhar percorreu pelo meu
corpo e tive a mesma sensação de uma pena tocando a minha pele, me
provocou arrepios. — Gostosa! —
Nicolas lambeu a minha boca e levantou para buscar o meu
presente. Não me movi, sentindo a minha lombar reclamar pelo tempo que
fiquei na mesma posição. O seu retorno foi notado quando seus dedos
tocaram o meu pulso e uma corrente de ouro foi colocada ali.
— É linda! — Ergui o braço para observar melhor, a pulseira com
chapinha era delicada e elegante, tinha um símbolo de um coração gravado.
Meus dedos tocaram a pulseira e vi que tinha algo escrito na parte de
dentro.
Je t'aime
— Que tipo de chef francês eu seria se não dissesse eu te amo em
francês para a mulher que eu amo? — Sorri. — Todos os dias busco formas
de demonstrar o meu amor por você.
— E faz isso muito bem. Vejo seu amor nos seus gestos diários, a
comida que prepara, as mensagens de carinho, o cuidado para que eu me
alimente direito e descanse.
— Ainda assim, eu senti que faltava um gesto mais concreto e
definitivo. Pensei em comprar um anel de compromisso, mas eu não sabia o
tamanho agora que seus dedos estão mais gordinhos. Então, encontrei essa
pulseira de compromisso e mandei gravar essa frase, ela simboliza o meu
amor e o meu desejo em permanecer ao seu lado todos os dias da minha
existência. Como sabe, não posso realizar o seu sonho de casar na igreja
porque sou divorciado, mas o nosso matrimônio terá o mesmo valor diante
dos homens. Ainda assim, você aceita casar comigo?
— Você já realizou o meu maior sonho, me deu uma família.
Encontrei em você o mais verdadeiro dos amores, quero envelhecer ao seu
lado e colecionar momentos de felicidade em família. Casar será apenas um
capítulo na nossa linda história.
— Então, não quer casar comigo?
— É claro que eu quero — sorri — quero o Vicente e a Agnes
entrando levando a aliança, eu quero tudo com você.
— Vai ser o dia mais feliz da minha vida.
— Eu não tenho dúvidas disso. Amo você com tudo que tenho e
sou.
— Sou seu, Dafne. Desde o primeiro beijo sempre fui seu.
Meu.
O meu verdadeiro e grande amor.
 

 
A maioria das pessoas tem um roteiro de vida previamente definido
e eu não era diferente delas. Esse roteiro era uma espécie de planejamento,
uma sequência de etapas simples e fáceis de executar. A primeira parte
englobava a fase romântica:  namoro, noivado e casamento. Feito isso,
chegaríamos a segunda parte: o planejamento para ter um filho. Depois de
ter encontrado o homem ideal era preciso seguir uma série de passos para
aumentar a família e inevitavelmente a primeira coisa a ser feita era
diminuir o ritmo de trabalho. Felizmente eu podia me dar ao luxo de
trabalhar a distância, contar com profissionais qualificados para me ajudar
nessa nova etapa da minha vida.
O próximo passo era o mais fácil do meu roteiro: engravidar.
Dedicaria horas do meu dia a árdua tarefa de transar com o meu marido.
Uma vez grávida, era hora de me debruçar sobre o universo infantil. Pensar
em nomes de bebês e consultar seus significados, elaborar lista para opções
de ser um menino ou uma menina. Montar o enxoval, transformar o quarto
comum em quarto do bebê. Já podia imaginar a arquiteta me apresentando o
projeto, cada detalhe pensado em tornar o ambiente mais aconchegante para
a chegada do meu filho.
Entretanto, tudo isso mudou de figura quando vi meu noivado se
desfazer. Foi ali que eu vi que as coisas não podiam ser controladas. E
então, Nicolas entrou na minha vida e me mostrou que a vida, de fato, não
seguia roteiro. Ele rasgou qualquer plano e me engravidou no mesmo dia
que demos nosso primeiro beijo.
Assim, o irritante chef logo se tornou irritantemente irresistível.
Assim como a sua comida me satisfazia, seu corpo passou a exercer a
mesma função. Nicolas era um banquete que eu devorava por inteiro,
sugando até a última gota.
Nicolas realizou os meus desejos mais íntimos: ser mãe e construir
uma família. Uma família que fugia dos modelos tradicionalmente
impostos. A nossa construção familiar tinha um pai exemplar e minha
exaltação ao Nicolas era além das suas obrigações, uma vez que os pais
deveriam ser figuras ativas na criação dos filhos, portanto cuidar do bebê,
trocar fralda, acordar durante a madrugada não passava de obrigação
paterna. Mas o que eu mais admirava no Nicolas-pai era o jeito que ele se
relacionava com o filho, a paternidade dele era exercida através do diálogo
e do afeto. Mesmo quando Vicente, como toda criança da sua idade, fazia
alguma birra ou ficava chateado por não ter o que queria no momento, as
coisas eram resolvidas através da conversa. Nicolas nunca alterava o tom de
voz com o filho, assim como nunca recorreu a chamada “palmada
disciplinar” para fazer valer a sua autoridade de pai. E essa era uma das
suas maiores qualidades, compartilhávamos a mesma visão na criação de
um filho, pautada no respeito e no amor. Acompanhá-lo exercendo o
desafio da paternidade apenas aumentava a minha admiração pelo homem
que ele era.
Eu já nutria por Vicente o amor de uma mãe, acolhedor,
companheiro e protetor. Esse amor era compartilhado com a sua irmãzinha,
a mais nova integrante da família que estava a caminho. Agnes era a peça
que faltava para a nossa família ficar completa. E a julgar pela minha última
noite, a nossa filha estava mais do que ansiosa para ocupar o seu devido
lugar.
A noite de ontem poderia ser apenas mais uma da sequência terrível
da reta final da gravidez, o tamanho da barriga, as dores nas costas e a
indisposição já não me deixavam dormir por tantas horas seguidas. Mas
ontem apenas adormeci por curtos intervalos de tempo, a minha lombar
parecia que ia se partir em duas, nem mesmo o banho quente e as
massagens que recebi de Nicolas aliviaram o incômodo. A médica havia
explicado que agora que entrei na trigésima sétima semana, o meu corpo
iniciou os preparativos para a chegada do bebê. Então era comum essas
dores nas costas e dificuldade em achar posição para dormir. Quando
finalmente apaguei foi de exaustão, dormi sentada na poltrona de
amamentação, após horas de agitação.
Acordei com uma leve indisposição, mas decidi não alterar os
nossos planos. Meus sogros e Vicente iriam passar o réveillon aqui em casa.
O plano inicial era alugar uma casa de praia e passar lá a virada do ano, mas
Nicolas e eu decidimos evitar imprevistos. O parto de Agnes estava previsto
para dali a duas semanas, mas a verdade era que ela podia nascer a qualquer
instante. Então decidimos ficar mais próximo do hospital. Entretanto, isso
não nos desanimou. Nicolas era o mais animado de todos, afinal iria unir as
suas maiores paixões: a cozinha e estar ao lado de quem amava.
O dia correu sem maiores problemas, almocei uma comida leve
preparada pelo meu delicioso namorado, coloquei uma comédia romântica
natalina para assistirmos após o almoço. Mas não vi o final do filme, porque
acabei cochilando ali mesmo no sofá. Despertei sentindo uma espécie de
cólica menstrual, só que concentrada bem na parte inferior do abdômen e a
sensação era que uma pequena reunião de diabinhos acontecia ali e eles
constantemente me espetavam com os seus tridentes.
A dor desapareceu tão rapidamente quanto surgiu, por isso não dei
muita importância. Não queria contar para o Nicolas e estragar a nossa
noite. Eu sabia que assim que eu dissesse que estava sentindo cólicas, ele
suspenderia tudo, ligaria para a obstetra e me levaria até o hospital para
avaliação médica. Por garantia, conversei com a minha médica por telefone
e ela orientou a cronometrar as cólicas para avaliar se eram falsas
contrações e que ficasse tranquila. Estava tudo normal, mas a qualquer novo
sintoma que ligasse para ela.
Assim foi feito, a mantinha informada das contrações. No início o
intervalo era de cinquenta e cinco minutos, depois caiu para cinquenta e
agora era quarenta e cinco minutos. A intensidade havia subido um nível, a
dor agora iniciava na lombar e irradiava para o púbis. Traduzi para a médica
que a sensação que eu tinha era como se eu fosse a cama elástica que Agnes
pulava sem parar.
— Está tudo bem, amor? — Nicolas perguntou ao me flagrar
fazendo uma careta de dor.
— Claro — sorri — vai ser difícil tirar os olhos de você essa noite.
A combinação da camisa de botões branca, dobrada, e calça de sarja
caqui o deixaram ainda mais lindo e elegante.
— Achei que isso acontecia todos os dias.
— Convencido! — Sorri.
— Você está estupidamente linda! — Ele passeou pelo meu corpo
demoradamente com o olhar. E a temperatura no ambiente de repente ficou
mais alta.
Eu não era única a sentir esse aumento, pois ele olhou para os meus
lábios com desejo. E foi naquele exato momento que nossos convidados
resolveram chegar.
— E se a gente fingisse que não tem ninguém em casa? — Ele
tentou me convencer com os seus lábios tocando o meu pescoço.
— A campainha, Nicolas! — Sorri.
— Sim, senhora.
Quando ele retornou à sala, foi acompanhado pelos seus pais e seu
filho. Apoiei os braços no sofá para me levantar, mas Simone fez o gesto
para que eu permanecesse no mesmo lugar.
— Não precisa se levantar, sei bem como é difícil de voltar à
posição confortável no seu estado — minha doce sogra se aproximou e
beijou o meu rosto.             
— É sim — sorri — tudo bem com a senhora?
— Melhor agora que estou te vendo. Como essa garotinha está?
— Agitada, parece que não vê a hora da chegada do próximo ano.
— Boa noite, Dafne. Boa noite, irmãzinha — Vicente se aproximou
sorridente.
— Boa noite! Já te disseram que você está muito lindo, hoje?
— Várias vezes — ri alto em resposta.
— Ele é exibido que nem o pai — a avó comentou sorrindo.
— Sogro, como está?
— Ansioso para conhecer o rosto da minha netinha.
— Eu também não vejo a hora de pegar a minha irmãzinha no colo
— Vicente se sentou ao meu lado no sofá.
— Ela também não vê a hora de conhecer o irmãozinho, acabou de
mexer aqui. Quer sentir? — Ele balançou a cabeça em afirmação, coloquei
a mão dele sobre a minha barriga.
— Ela vai ter que ir à mesma escola de futebol que eu vou. Nosso
time está precisando de um artilheiro e ela chuta bem.
A seriedade dele arrancou a minha mais sincera risada. Os avós e o
seu pai também não ficaram imunes ao seu comentário e uma explosão de
gargalhadas preencheu o ambiente.
*
— Dafne, fez xixi! —  Vicente anunciou no mesmo instante que
senti o líquido escorrer pelas minhas pernas. Paralisei na posição que eu
estava, no meio da sala, estava retornando do banheiro. Então, eu tinha
certeza de que aquilo não era xixi, mas sim a bolsa que havia estourado.
— Agnes está a caminho — Simone sorriu ao dizer essas palavras.
Apesar de ter me preparado para dar à luz, agora que o momento
chegou eu me senti insegura. Não ter o controle de todo o processo era o
que me incomodava. A partir de agora nada dependia exclusivamente de
mim, como disse a minha obstetra havia chegado o grande momento da
magia do parto. E só me restava ficar serena e deixar que a natureza
seguisse o seu próprio ritmo.
— Nossa menina, está ansiosa para conhecer a mamãe — Nicolas
segurou as minhas mãos, visivelmente emocionado.
— Agora? A gente nem viu os fogos — Vicente comentou.
— O Vicente tem razão. — falei a primeira coisa que passou pela
minha cabeça.
— Está tudo bem, amor. — Nicolas sorriu — vou pegar a mala de
vocês e vamos para a maternidade, está bem?
— Preciso ligar para a obstetra, avisar aos meus pais…
— Eu ligo para a obstetra e você avisa aos seus pais que estamos
indo para a maternidade.
— Será que dá tempo de trocar de roupa? — Consultei a minha
sogra com o olhar.
— Sim, você quer ajuda? — Assenti.
O vestido longo branco foi trocado por outro de poá.
Antes de sair de casa, consegui falar com a minha mãe que não
escondeu a emoção e me disse para ficar tranquila pois Nossa Senhora do
Bom Parto estava comigo. A voz da minha mãe trouxe de volta a
serenidade que eu precisava para trazer a minha filha ao mundo.
*
Confesso que cheguei até os nove meses de gestação sem uma
decisão se o parto seria natural ou cesáreo. Teve períodos que achei que a
cesárea era a opção ideal, agendar uma data para garantir que Nicolas
estaria ao meu lado no parto. Mas também teve períodos em que eu pensava
em deixar a natureza seguir o seu próprio curso, Agnes nasceria no dia e
hora que quisesse.
Agora que entrei em trabalho de parto eu tinha uma decisão a tomar.
As contrações estavam mais intensas e ocorrendo em intervalos menores. O
exame de toque inicial revelou que eu cheguei com seis centímetros de
dilatação. Na teoria, apenas mais alguns centímetros e o bebê nasceria. Mas
isso poderia levar horas, além do mais havia outros fatores a se considerar
nessa espera.
Nicolas estava ao meu lado, não me deixou por um segundo desde
que chegamos na maternidade, acariciando a minha mão e me dando todo o
suporte emocional que eu precisava. Cheguei a perguntar qual a decisão que
eu deveria tomar e ele me disse que eu deveria escolher a que fosse melhor
para mim, que independente da minha escolha, ele estaria ao meu lado,
segurando a minha mão.
— Dafne, você chegou com seis centímetros de dilatação e agora
evoluiu para sete — a obstetra informou após mais um exame de toque,
perdi a conta de quantas vezes o gesto se repetiu desde que cheguei à
maternidade.
— Isso significa?
— Que a sua filha está pronta para nascer! — Anunciou sorrindo. —
O centro cirúrgico está sendo preparado. — As contrações haviam
aumentado e em um momento de intensa dor eu gritei que queria fazer a
cesárea, para acabar logo com a dor.
— E se eu quiser ter normal?
— Vamos fazer o que você quiser.
— Eu que sempre sei o que eu quero, agora não sei — confessei
frustrada.
— É claro que você sabe. Você quer que a sua filha nasça em um
parto saudável e sereno. Vamos garantir isso independente se o parto
ocorrer nessa sala ou no centro cirúrgico. Está bem?
As palavras dela me guiaram até a minha escolha: Agnes nasceria de
um parto normal. Decisão tomada embarquei em uma montanha russa de
sensações e sentimentos. A doula, disponibilizada pela maternidade, foi me
conduzindo e sugerindo posições e exercícios que ajudavam a estimulação.
Ela me colocou no chuveiro e a água quente ajudou a aliviar a dor na
lombar, mas isso durou poucos minutos. Quando as contrações estavam
mais intensas eu fiquei muito tempo na bola de pilates. Nicolas e a doula
tentavam fazer de tudo para me trazer mais conforto: massagens, carinho,
chuveiro quente, palavras de incentivo. Mas nada diminuía a minha dor.
— Acho que não consigo! — Confessei agarrada a grade da cama
— estou exausta — lágrimas e suor molhavam o meu rosto, não conseguia
diferenciar.
— Você é a mulher mais forte que eu conheço, não precisa provar
nada para ninguém — Nicolas falou sem interromper o carinho em minhas
costas.
— Dafne, a anestesista está aqui. Quando você quiser receberá
analgesia — escutei a voz da obstetra ao longe.
— Vamos transformar essa dor em força, Dafne — Maria, a doula,
me incentivou.
E então voltei à posição de cócoras. Agachei e voltei a posição
inicial, por repetidas vezes até que na última vez que me coloquei senti um
“puxo”, como se o bebê estivesse sendo puxado para baixo com extrema
força. Instintivamente, o meu corpo acompanhou o movimento e fiz força
na direção indicada.
— AAAAAAAAAAAAAAAAAAA! — Gritei agarrada à cama.
— Continua Dafne, mais uma vez!
— Vamos amor, você consegue!
Juntei todas as minhas forças e empurrei.
— Coloca a mão aqui… sente o cabelinho dela! — Maria que estava
sentada embaixo da cama, de frente para mim e na posição de agarrar a
Agnes caso ela nascesse, incentivou. Levei a minha mão e senti a minha
filha.
A sensação foi como se uma dose de ânimo tivesse sido aplicada na
veia, a partir daí entre gritos, choro e dor, eu trouxe Agnes ao mundo. Os
fogos de artifício lá fora anunciavam a chegada do novo ano e o choro da
minha filha anunciava o novo ciclo em minha vida.
Parir era animalesco, intenso e absurdamente inexplicável. Toda a
dor dilacerante que eu senti desapareceu no minuto seguinte que ela foi
colocada em meus braços, quando nossos olhos se encontraram eu tive a
certeza de que passaria por tudo novamente, pela recompensa de tê-la em
meus braços. Meus pensamentos estavam desconexos e eu não conseguia
fazer nada além de admirar a minha filha e tocar o seu rosto.
— Bem-vinda ao mundo, amor! — Nicolas transformou em
palavras os meus sentimentos — sua mamãe é a mulher mais forte e
corajosa desse mundo, sabia? — As lágrimas corriam livremente pelo meu
rosto. — Ela também é inteligente, linda, criativa e mandona. Mas o papai
ama obedecer a ela. Sou um homem de muita sorte por ter vocês duas na
minha vida.
— Seus filhos e eu é que somos os verdadeiros sortudos em ter você
nas nossas vidas. Eu achava que o meu sonho era ter um filho, mas não era.
Percebi que a minha realização é completa porque você é o pai da minha
filha. Você me deu uma família linda e que me enche de amor. Não sei se
isso é possível, mas a cada dia eu continuo te amando mais. Tenho certeza
de que dia após dia, você continuará sendo o meu final feliz. 
— Você não só é o capítulo mais lindo da minha vida, como é o
mais saboroso, o mais engraçado, o mais quente e o que mais me ensinou
sobre o amor — acariciou o meu rosto — De mansinho, você entrou no
meu coração e me apresentou um amor que eu desconhecia. E é desse amor
que eu quero me alimentar dia após dia. Amo o homem que eu sou ao seu
lado.
— Amo a mulher que você me tornou.
Nossos lábios se tocaram e ali com a nossa filha em meus braços,
confirmei que nenhum roteirista escreveria tão bem o livro da minha vida.
 

 
A vida tinha sido bem generosa comigo. Ao lado do Nicolas, ela
tinha um sabor diferente, trazia notas de felicidade, uma pitada de
concretização de sonhos e uma dose extra de amor. Os meus
empreendimentos eram um sucesso absoluto, todas as pessoas que eu
amava estavam com saúde e gozavam de uma boa vida, além do mais eu
tinha uma família do jeitinho que sonhei. O nascimento de Agnes
solidificou o nosso amor, nossa menina trouxe alegria aos nossos dias, de
modo que me sentia vivendo um sonho diariamente. O meu mundo não era
sempre cor de rosa, mas nos dias cinzas tínhamos uns aos outros e isso
tornava qualquer infortúnio mais fácil de atravessar.
Hoje era mais um capítulo feliz da minha vida, as crianças e eu
estávamos no nosso reduto preferido: a casa de praia. Esse era o nosso
segundo lar, o lugar que vínhamos para nos desligar do trabalho e
proporcionar diversão aos nossos filhos. Dessa vez, resolvi tornar a nossa
estadia mais longa. O Vicente estava de férias e eu merecia miniférias, dez
dias para recarregar as energias e curtir integralmente a minha filhota.
Apesar do curto período, as crianças ficaram eufóricas quando tomaram
conhecimento que iríamos passar esse tempo na casa de praia.
Para a nossa felicidade ser completa faltava apenas que o papai
pudesse se juntar a nós desde o primeiro dia, mas Nicolas não podia se
ausentar do restaurante por tanto tempo nessa época do ano. O mês de
dezembro era o tradicional mês das confraternizações e isso indicava salão
lotado todos os dias. Logo, não tinha como diminuir a equipe, pelo
contrário, contratamos mais dez funcionários para essa temporada de festas.
A ausência do meu marido era completamente compreensível e
naturalizada, por mim e pelos nossos filhos, pois sabíamos que ter um papai
chef de cozinha tinha o bônus de comer maravilhosamente bem e o ônus de
não o ter em todos os momentos ao nosso lado. Todavia, isso não
significava que ele era ausente nas nossas vidas. Nicolas se desdobrava para
conciliar o lado profissional com o pessoal. Ele era um pai presente,
aproveitava cada segundo do seu tempo livre com os filhos, e um marido
dedicado, amoroso e leal.
O saldo ao lado de Nicolas era sempre positivo, éramos bons
parceiros nos negócios e na cama. A nossa sintonia era de outro mundo, ele
não perdeu o hábito de me perturbar, mas confesso que eu amava ser tirada
do sério pelo meu chef irritante. Assim como tinha orgulho e admiração por
cada parte que formava o homem incrível que eu amava cada dia mais.
Alguns dias longe e eu já estava morrendo de saudade de acordar com o seu
bom dia, mas eu não era a única. Agnes olhava para proteção de tela, uma
foto dela no colo do pai, e repetia sem parar “eu amo o papai”.
— Ele também te ama e logo estará aqui com a gente e vai te encher
de beijos.
— Beijos na fiota.
— Isso, beijos na filhota do papai — inclinei a cabeça e dei várias
bitocas pelo seu rostinho, fazendo-a sorri. — Agora vamos terminar o café
do seu irmão antes que ele acorde. Filha, passa geleia na torrada — ela
repetiu o meu gesto, levou a colher infantil ao pote, pegou muita geleia e
passou sobre a torrada espalhando por todo lado além da comida — isso
muito bem!
— UUU, Azedo! — Fez careta após levar a colher suja de geleia de
morango a boca.
— Morango é azedinho, mas é gostoso.
— Agnes não gosta — enfatizou balançando a cabeça de um lado
para o outro.
— Mamãe sabe do que Agnes gosta muito: melancia.
— Melancia! — Ela expressou a felicidade batendo palmas, quando
coloquei a sua frente uma fatia da fruta com os caroços retirados. Não
precisei incentivar para que ela comesse, pois ela avançou sobre a melancia
com ávidas mordidinhas.
— Seu irmão tem razão, o seu nome deveria ser Magali.
— Eu falei... — Vicente se juntou a nós na cozinha. — Bom dia,
irmãzinha — Beijou o rosto da garota.  — Bom dia, Dafne.
— Bom dia, dorminhoco. Está com fome?
— Muita.
— Ótimo, porque sua irmã e eu preparamos o seu café da manhã —
anunciei apontando para a bancada da cozinha: tinha suco natural de
laranja, iogurte, queijo muçarela e presunto de peru, pão francês, torrada
pronta e frutas: maçã, laranja e melancia. — Não é o café da manhã
sofisticado do papai, mas foi feito com muito carinho.
— Aposto que está delicioso — ele levou a torrada a boca e fez sinal
com o polegar em aprovação. — Qual a programação do dia?
Essa era a parte mais difícil de sair de férias com as crianças,
principalmente o Vicente que já era quase um rapaz, era necessário ter um
roteiro pré-definido de atividades para entretê-los por 24 horas. Ontem
fomos à praia, a tarde improvisamos um cinema em casa, que logo se
transformou em soneca da tarde. A noite eles ainda tinham energia, então
fomos passear na Orla do pôr do sol, Vicente andou de patins enquanto
Agnes passeou na sua bicicleta de unicórnio, mas logo perdeu o interesse e
quis imitar o irmão. Assim que abri os olhos pela manhã, já comecei a
pensar o que faríamos no dia de hoje.
— Festa na piscina! — O sorriso se ampliou no seu rosto — pensei
em colocar a toalha de piquenique na grama e fazer o nosso lanchinho da
manhã ali. O que acha?
— Acho maravilhoso, né Agnes? — Ela soltou um gritinho de
felicidade, o suco da melancia escorrendo pela boca e descendo pelo
pescoço. — Acho que alguém precisa de um banho urgente — sorri com o
comentário dele.
— Vamos tomar café para aproveitar ao máximo a exposição ao sol.
— Eu posso pegar a câmera instantânea para registrar nossos
melhores momentos?
— É claro, mas precisa ter cuidado para não molhar.
— Vou secar bem a mão quando for para pegar.
Tomamos um café da manhã tranquilo, pelo menos o mais tranquilo
que se consegue com uma criança e, em determinado momento, Agnes
começou a brincadeira de atirar comida no irmão que não demorou a
revidar. Em poucos segundos, uma guerra de comida se iniciou bem a
minha frente.
— Crianças, comida não é brinquedo.
— Ela que começou! — Vicente disse sorrindo.
— Agnes não fez nada — respondeu com carinha de inocente, mas
não demorou para voltar a atirar pedacinhos de pão. Seu olhar encontrou o
meu e ela baixou a cabeça envergonhada. — Agnes se felou.
Não consegui evitar sorrir diante de tamanha fofura, ela repetia
muito as palavras que o irmão deixava escapar e eu não podia chamar
atenção deles já que “se ferrar” nem era palavrão.
— Vou pegar um pano para limpar toda essa bagunça antes que as
formigas apareçam para nos fazer companhia. Nada de guerra de comida,
estamos entendidos?
— Sim — responderam ao mesmo tempo.
Segui para a área de serviço em busca do pano e senti o meu celular
vibrar no bolso da calça. Peguei o aparelho e o meu sorriso se ampliou
diante do nome que surgiu na tela: Amor. Atendi rapidamente a chamada de
vídeo. Ele apareceu na tela sem camisa e com gotas de suor escorrendo pelo
seu abdômen seco.
— Isso sim que é um bom dia — ele riu alto, a sua risada tinha o
poder de deixá-lo ainda mais bonito.
— Bom dia, amor. Apreciando a vista?
— Sim, mas espero que eu seja única.
— Você sabe que é tudo seu, tirei a camisa assim que passei pela
porta.
— Muito bem — sorri.
— Estou morrendo de saudades.
— Eu também.
— É estranho chegar em casa e não encontrar a minha bela esposa
dormindo na nossa cama.
— Também sinto falta de dormir agarradinha a você.
— Só disso? — Ergueu a sobrancelha.
— Não, sinto falta do seu p...
— Mamãe! — Agnes gritou e antes que eu pudesse correr ao seu
encontro, ela se aproximou de mãos dadas com o irmão.
— Ela pediu para sair da cadeirinha e fez aquela carinha de gatinho
abandonado. Foi impossível dizer não.
— Vem aqui, gatinha manhosa — sorri, pegando a pequena no colo
completamente ciente de que a minha roupa terminaria suja — sabe quem
está falando comigo? O papai. — Virei a tela para eles.
— Pai, quando você vem? Estou morrendo de saudades.
— Também estou, mas amanhã estarei com você para matar essa
saudade. E aí, está se divertindo?
— Muito! A gente foi a praia vários dias, comemos queijo coalho
assado, batata frita, pastel de frango, caranguejo. A Dafne também fez a
noite da pizza, construímos nossas próprias pizzas e eu criei uma com
sorvete de creme e M&M's que você tem que experimentar.
— Aposto que ficou deliciosa, você vai ter que fazer uma para mim.
— Pode deixar, pai.
— Como está a filhota do papai?
— Suja — a resposta sincera fez o Nicolas gargalhar.
— Daqui a pouco vou te dar um banho e vai estar limpa —
comentei. — Seu pai vem amanhã, o que acha?
— Eba! — Comemorou com palminhas.
— Amor, a gente se fala mais tarde tenho que limpar a bagunça que
esses dois fizeram após uma guerra de comida.
— O papai não se incomoda que brinquem, mas sem desperdiçar
comida. Não é legal — repreendeu os filhos em um tom sereno.
— Me desculpa, pai — Vicente pediu.
— Desculpa, Agnes, papai — a menina falou em um tom bem
manhoso que sabia que faria o pai se derreter.
— Estão desculpados, agora vocês vão ajudar a mãe de vocês, quer
dizer a Dafne, limpar toda a bagunça que causaram.
— Não se preocupe pai, Dafne é mesmo como uma segunda mãe
para mim. Não tem nada de madrasta no jeito dela — sorriu para mim —
me trata da mesma forma que trata a minha irmã — meus olhos marejaram
com o que foi dito.
As coisas com a mãe de Vicente tinham avançado até um nível que
ficávamos no mesmo ambiente em um estado de harmonia, sem
ressentimentos pelo passado. Mantínhamos contato com frequência por
causa do Vicente, eu o pegava na sua casa ou ela ligava para dizer o horário
do remédio que ele teria que tomar. Ela superou o fato de que o Nicolas não
seria mais dela e, ao que parece, tinha encontrado o próprio final feliz.
Estava noiva e prestes a casar com um colega de profissão, o seu novo amor
e Vicente se davam muito bem. O que importava era que no final, todos
estávamos felizes.
— Não tinha por que ser diferente, ela ama vocês da mesma forma.
— É muito maneiro ter duas mães — sorriu.
— Você é um rapaz de muita sorte — o pai completou.
— Também vou ter dois pais quando ela se casar com o Josh. Meu
terno está massa, pai. E você, Agnes só tem um pai e uma mãe —
perturbou.
— É, a sua irmã terá que se contentar com apenas uma mãe e um pai
pelo resto da vida — Nicolas afirmou sorrindo.
— Ainda bem que eu escolhi um pai perfeito — declarei.
— Piscina! — Agnes apontou para o lado externo.
— Papai vai desligar para que vocês aproveitem a piscina, não
esqueçam de ajudar a limpar a bagunça que fizeram.
— Tá certo pai, até amanhã.
— Até, filho.
— Tchau papai — Agnes se despediu mandando beijos com a mão.
— Tchau, filha.
— Amor, mais tarde a gente se fala. Te amo.
— Eu também te amo — encerrei a chamada. — Vamos limpar a
sujeira e depois piscina! — Anunciei e as crianças comemoraram.
Vicente varria a sujeira do chão enquanto Agnes tentava imitar os
seus passos, todavia espalhava mais a sujeira que verdadeiramente limpava.
Com o auxílio dos meus ajudantes, em poucos minutos controlamos o caos
na cozinha.
— Pronto, agora vamos tomar um banho e depois piscina!
— Dafne, por que tomar banho se vamos entrar na piscina? É tudo
água no final — deu de ombros.
— Você cada dia com mais argumentos para fugir do banho, hein
rapazinho? — sorri — mas lamento informar que, apesar de tudo ser água,
uma tem a função de limpar o nosso corpo e a outra refrescar.
— Mas também quando tá muito calor a gente usa a água do
chuveiro para se refrescar — contra-argumentou.
— Você tem razão, mas o banho antes da piscina continua mantido.
— Agnes, ninguém pode dizer que eu não tentei — gargalhei em
resposta.
— Agora vamos! — Segurei a mão dela e caminhamos em direção a
escada que nos levaria a suítes no primeiro andar. — E você não tente me
enrolar, sua irmã vai inspecionar se você tomou banho e a gente não quer
que ela desmaie quando cheirar embaixo dos seus braços, não é?
Vicente reagiu com uma risada alta.
— Não mesmo, pode ficar tranquila irmãzinha vou estar bem
cheiroso.
— Também vou ficar bem cheilosa, né mamãe?
— Sim, serão as pessoas mais cheirosas de todo mundo.
*
A festa na piscina tinha sido um sucesso, as crianças se divertiram
muito e relutaram quando precisei tirá-las do sol para prevenir de uma
insolação. Mas ficaram felizes quando foram recompensadas com picolé de
frutas. Tinha sido um dia incrível como todos os outros quando estávamos
juntos.
Após o jantar, eles apagaram exaustos em suas camas e eu aproveitei
para trabalhar um pouquinho. A verdade era que eu não conseguia me
desligar completamente da administração dos restaurantes mesmo de férias
e com uma equipe maravilhosa que conduzia tudo com maestria na minha
ausência. Kedma havia sido promovida a gerente do Bernard após o
nascimento de Agnes, assim nós perdemos uma excelente hostess, mas
ganhamos muito ao contratar, para essa função importante, alguém que
conhecia bem o restaurante. Ela se dava muito bem com os funcionários e
era querida pelos clientes.
Era uma de suas demandas que eu estava respondendo naquele
momento. No e-mail, ela solicitava permissão para contratar novos
folguistas devido à alta demanda e me comunicava da oferta que o subchefe
Kleber recebeu para ser o responsável pelo menu de um casamento no seu
dia de folga, ele queria consultar a minha opinião e saber se havia algum
impedimento.
 
Boa noite, Kedma,
Fico feliz em saber que tudo está na mais perfeita ordem na minha ausência. Sim, eu autorizo a
contratação de novos folguistas, confio em você para escolher os colaboradores. Diga ao Kleber que
não há nenhum impedimento para que ele aceite a oferta, se ele mesmo tivesse me enviado uma
mensagem saberia como fico feliz pelo seu reconhecimento como profissional. Repasse para ele os
meus parabéns e diga que desejo muito boa sorte.
 
Qualquer coisa estou aqui, há um clique de distância.
 
Dafne Bernard Capolavoro
Gestora do Bernard
 
Enviei a mensagem e alguns segundos depois caí no sono, mas
despertei com um barulho vindo do térreo. Empurrei os lençóis e, com o
coração acelerado, segui até o quarto onde as crianças estavam. Fiquei
aliviada ao perceber que os dois dormiam serenamente, mas o som não
cessou. Eu não tinha uma alternativa a não ser averiguar o motivo, desci na
ponta dos pés usando a lanterna do celular para iluminar o ambiente e
encontrei Nicolas agachado sobre o tapete colocando de pé o brinquedo de
Agnes.
— Você quer me matar do coração? — Indaguei baixinho para não
acordar as crianças.
— Desculpe, não queria te assustar. Tentei ser o mais silencioso
possível, mas falhei quando esbarrei na confeitaria mágica.
— O que você está fazendo aqui? — Com alguns passos ele se
colocou bem a minha frente, os braços ao redor da minha cintura.
— Não conseguiria ficar mais nenhum segundo longe de você.
Passado o susto, deixei que o meu corpo respondesse o quanto eu
senti sua falta. Passei os braços ao redor do seu pescoço, puxei a sua cabeça
para baixo e colei os meus lábios nos seus. Nicolas retribuiu o beijo como
se eu fosse o alimento que o mantinha vivo, a paixão concentrada no nosso
beijo tinha o poder de irradiar e iluminar toda a sala.
A mão dele passeou pelo meu peito até encontrar um dos meus
seios, acariciando sobre o tecido fino do pijama de seda. Nicolas beliscou
de leve o mamilo, o suficiente para fazer o meu corpo arder em chamas. Me
agarrei ao último fio de controle que eu tinha e falei em um sussurro:
— As crianças...
— Vamos para o quarto, mas você precisa prometer que vai gemer
baixinho...
— Essa virou a minha especialidade desde que a Agnes nasceu —
sorri.
Fiz o caminho de volta para o quarto, dessa vez, com Nicolas me
provocando com beijos pelo meu pescoço e mãos tocando cada parte do
meu corpo. Assim que trancamos a porta, a chama da paixão se transformou
em uma labareda. Nicolas avançou sobre mim, provocando-me com boca,
mãos e língua, minhas costas tocaram o colchão macio e aguardei o peso do
seu corpo sobre o meu. Mas, ele não veio. Nicolas se inclinou sobre o meu
corpo, levantou a minha blusa até a altura dos seios e seguiu uma trilha de
beijos pela minha barriga.
— Quero matar a minha fome e você é o meu banquete — segurou
o cós do short e puxou para baixo, ergui os quadris para facilitar a saída da
peça.
Seus lábios voltaram a me tocar no ponto exato que pulsava por ele
e choraminguei baixinho quando me lambeu feito um gato diante de um
pires de leite. Ele foi implacável na tarefa de me arrancar gemidos, fiz um
esforço hercúleo para não deixar o grito escapar dos meus lábios enquanto
ele me provava com a boca, língua e dedos.
Instintivamente, meus quadris oscilaram para frente ao encontro dos
seus dois dedos, ele combinou os seus movimentos aos meus, preenchendo-
me cada vez mais fundo. Mordi os lábios quando senti que derreteria com o
seu toque.
Era intenso, mais do que eu poderia suportar, por isso agarrei os
lençóis e deixei que palavras sussurradas escapassem dos meus lábios.
Nicolas se dedicou a essa função até que eu explodi em mil pedacinhos.
Ainda estava lidando com as sensações dominantes no meu corpo quando
ele se posicionou, afastando as minhas pernas para os lados e entrou em
mim com um impulso intenso. Prendi o grito na garganta quando ele recuou
por um instante, para iniciar uma nova investida ainda mais forte que a
anterior. A cada estocada eu me abria mais para recebê-lo por inteiro.
O que fazíamos nesse momento era mais do que sexo com gosto de
saudade, apesar da urgência com a qual nossos corpos se chocavam, era
amor que fazíamos. Nicolas fazia amor comigo como ninguém mais fez, ele
reivindicava não apenas o meu corpo, mas o meu coração. Ao seu lado eu
me sentia viva, inteira e completamente amada. Ele me dava tudo que eu
sempre sonhei e eu buscava retribuir com a mesma intensidade.
Ele passou a me penetrar em um ritmo lento e constante, saboreando
cada segundo da nossa conexão. Nos entregamos ao prazer absoluto juntos
e o mundo silenciou para nos ouvir. As batidas erráticas dos nossos
corações, as respirações ofegantes e as declarações de amor ditas apenas
com o olhar.
— Você é o meu final feliz— declarei a mais profunda verdade
contida no meu coração.
— Te amo — ele suspirou, beijando minha testa.
No que dependesse de mim, a receita da nossa felicidade seria
seguida e refeita durante toda a nossa vida.
 

 
Antes de mais nada quero agradecer a você.
Sim, a você mesmo que escolheu esse livro na Amazon e dedicou
algumas horas para lê-lo: o meu muito obrigada. Se você gostou da história
da Dafne e do Nicolas, que tal deixar uma avaliação na Amazon? A
avaliação ajudará os novos leitores a escolherem esse livro e,
principalmente, me deixará extremamente feliz saber o que achou do nosso
casal apimentado.
Família: obrigada por não desistir de mim quando precisei recusar
os convites para sair porque precisava colocar um ponto final nessa história
que eu estava enrolando há meses. Amo vocês!
À minha dupla que segura as pontas quando a síndrome do impostor
bate em minha porta e eu abro rsrs. Obrigada por ser a voz da racionalidade
que me traz (repetidas vezes) de volta aos trilhos.
Com amor, Ane Pimentel
 

 
Dafne aparece pela primeira vez no Pimentelverso em Uma Virgem
Sob Meu Domínio. A história de Silvio e Ayla é bem diferente, tenho
certeza de que vocês vão adorar. Clique aqui para conhecer.
 

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Um empresário milionário.
Uma jovem em busca de sua origem.
Ele é dezessete anos mais velho, controlador e domina jogos de poder.
Ela tem vinte e um anos, é virgem e escolherá se entregar.
 
Silvio é dono de um dos hotéis mais requisitados da cidade e se surpreende quando uma de suas
hóspedes passa a investigar sua vida. Ao saber que ela está, à noite, na área de lazer, vai ao seu
encontro para saber quem era a mulher e o motivo de sua busca.
 
Ele a vê nadando e admira cada parte do seu corpo molhado, desejando secá-la de uma maneira não
muito convencional.
Ayla está em busca de sua origem e acaba se encantando pelo dono do hotel onde está hospedada. A
aura dominadora daquele homem desperta desejos que nem ela mesmo sabia que tinha.
Viciá-la com o seu toque é o novo objetivo de Silvio.
“Seu corpo me pertence, Ayla. Você o deu para mim e marcá-lo me deixou louco.
 
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Nós amamos ler e, por consequência, escrevemos aquilo que
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Um Amor de Virada
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Estamos sempre com ideias novas e adoramos dividir com vocês. Nos
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[i]
Manterrupting é um neologismo surgido a partir da junção das palavras em inglês "man" e
"interrupting" para indicar a interrupção desnecessária de uma mulher por um homem.
 
[ii]
acessório culinário cuja finalidade é proteger os alimentos e manter a temperatura da comida

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