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Livro: A Garota do Confessionário

Autora: Ângela Maria


Capa: T.V Designer
Revisão: Gramaticalizando Assessoria
Diagramação: M. Pinheiro
1ª Edição

Copyright © 2021 Ângela Maria


Todos os direitos reservados. Proibida, dentro dos limites estabelecidos pela lei, a reprodução total
ou parcial desta obra, o armazenamento ou a transmissão por meios eletrônicos ou mecânicos,
fotocópias ou qualquer outra forma de cessão, sem prévia autorização da autora Ângela Maria.
Sinopse
Aos 21 anos, tudo o que Camille deseja é ser uma estilista profissional. Quando a
jovem costureira se mete em uma encrenca na malharia em que trabalha, ela decide
que confessar seus pecados é a única forma de diminuir o peso na consciência.
Gabriel Átila Cordeiro é o filho primogênito de uma tradicional família de Curitiba.
Embora tenha sido criado para assumir os negócios da mãe e tenha uma índole
inquestionável, Gabriel vive recluso há quase dez anos em sua mansão no Batel, onde
mora sozinho. Em uma rara visita à igreja de Santo Antônio, Gabriel é confundido
com o padre e acaba escutando as confissões de uma garota, a qual faria de tudo para
ver novamente.
A garota do confessionário é mais do que um conto de fadas moderno. É uma
narrativa que trata sobre sonhos, confiança e como os espectros do passado
podem acompanhar seu dono por uma vida inteira.
Estive procurando por você,
Eu ouço um grito dentro da minha alma,
Nunca tinha sentido uma ansiedade como essa antes,
Agora, aqui, você está entrando exatamente à minha porta.

Again – Lenny Kravitz


01 | EU NÃO SOU PADRE!

Camille
Curitiba - PR

O despertador chacoalhou meus sentidos exatamente às seis horas de uma manhã chuvosa em
Curitiba. Eu havia dormido debaixo de, pelo menos, quatro cobertas nesta noite congelante, e me
recusava a me levantar.

Desde que meu pai foi removido pelo interesse da Administração Pública, e minha família
teve de se mudar do Tocantins para o Paraná há um ano, ainda não me acostumei com esse frio de
doer os ossos — pelo menos para mim, que não sou acostumada a qualquer temperatura abaixo dos
25°C.

Coloco-me para fora do colchão e ainda vejo Donatella, minha irmã mais nova, roncando de
boca aberta na cama ao lado. Apesar de Donatella ser apenas filha da minha madrasta, a considero
como irmã desde que meu pai se juntou com tia Lúcia, anos depois da morte precoce da minha mãe.
Embora eu não quisesse que meu pai se envolvesse com outra mulher no passado, ver que Lúcia e
Donatella também eram “sozinhas”, de certa forma, despertou em mim um sentimento de que
tínhamos algo em comum. E, naturalmente, com o tempo, nos tornamos uma família, pois a dor de
uma perda pode até viver para sempre em um coração, mas a vida exige que se siga em frente para
não sucumbirmos em tristeza.

Vou até Donatella e fecho sua boca com os meus dedos — não quero nem imaginar se entrar
uma mosca ali e eu ter que acompanhá-la até o hospital em plena seis horas da manhã. Céus! Não
quero nem ouvir mais esse nome: hospital. Cruz-credo!

Vou ao banheiro, faço minha higiene matinal rigorosa, de forma que dure o dia todo enquanto
trabalho na malharia do seu Reinaldo, e desço as escadas para preparar o café na cozinha.

A uma hora dessas, tia Lúcia, esposa de meu pai, já está aparecendo através do batente, com
seu robe de cetim vermelho, amarrando os cabelos com luzes em um rabo de cavalo frouxo e
bocejando alto. Apesar da idade avançada, minha madrasta é uma mulher muito bonita, no entanto, é
tão preguiçosa quanto.

Não faz nada em casa e assume o papel de esposa dondoca de um funcionário público, além
de apenas saber mandar.

— Ainda não está pronto o café? — Ela franze o nariz, olhando para a cafeteira, que ainda
não terminou de completar o serviço.

Abaixo-me ao lado da bancada e olho para o café, despejando-o na garrafa transparente, e


torno a fitar tia Lúcia.

— Pelo visto não. — Sorrio, um tanto debochada. Ergo minha coluna e vou até ela, me
colocando atrás, tocando seus ombros. — Se a senhora quiser o café mais cedo, que tal levantar mais
cedo e fazer a senhora mesma, tia?

— Bom dia, família! — Meu pai adentra a cozinha já em roupas formais, depositando um
beijo na minha testa e outro nos lábios de sua esposa; enquanto vou até a geladeira para pegar queijo,
presunto e pão de forma.

— Camille! — Ouço tia Lúcia me chamar.

Pisco duas vezes e respondo:

— Senhora?!

Ela engole em seco e empina o nariz, dizendo por fim:

— Amanhã não precisa levantar cedo. Eu mesma farei o café.

— Ah, tia, eu não quis...

— EU OUVI DIREITO?! — Donatella adentra a cozinha, impressionada.

Ela já traja o blusão do último ano da escola e seus cabelos castanhos com mechas rosas
ainda estão úmidos.

— Minha mãe fará o café amanhã? Só acredito vendo...

Tia Lúcia revira os olhos nas órbitas, ao passo que meu pai sorri e é repreendido logo em
seguida pelo olhar atravessado da esposa.

Vejo uma mensagem chegar em meu celular e noto que se trata do grupo de WhatsApp do
trabalho — uma colega avisando que nosso chefe já está bem e em casa. Agradeço aos céus por isso.
Deus me livre que acontecesse algo mais grave com seu Reinaldo depois que ele foi internado ontem
por conta de uma crise alérgica após o expediente. Quase nem dormi direito esta noite com peso na
consciência.
Preparo um misto durante o tempo que minha família conversa sobre coisas do dia a dia,
como de costume. Faço meu desjejum e acompanho Donatella para fora de casa. Graças a Deus, a
chuva dá uma trégua e posso deixar Donatella de lambreta na escola!

— Há algo de errado, Camille? Anda muito pensativa — Donatella pergunta ao entregar o


capacete, desconfiada, analisando meu rosto, enquanto desvio do seu olhar enxerido.

— Eu? Não. Claro que não.

— Você quase nunca anda pensativa.

— É claro que eu penso! — Olho para o portão ao nosso lado e digo, indicando com a mão:
— Vá logo para a sala de aula. Vá!

Ela sorri, cruzando os braços contra o peito.

— Tudo bem. Mas hoje à noite você vai me contar tudinho. — Ela arqueia a sobrancelha
direita, toda intrometida. Apesar de ser três anos mais nova do que eu, parece que Donatella é a irmã
mais velha. Sempre com os olhões avaliativos e as sobrancelhas arqueadas, lá em cima da testa.

— Ok. Hoje à noite eu conto. Só vá! — digo, balançando a mão para que ela apresse o passo.

— Espera, Camie! Eu tenho algo para pedir a você.

Fito seus olhos receosos e já posso imaginar do que se trata.

— O que foi dessa vez?

— Depois da escola, Carlos e eu sairemos. — Claro, Carlos! — Vamos ficar lá pelo centro,
e eu quero que confirme com minha mãe que passarei a tarde com você na malharia...

— Donatella, esse é seu último ano. Não será melhor você se concentrar nos estudos e
esquecer namoros?

— Por favor, Camie. Me encubra só hoje. Eu prometo que passarei a próxima semana
inteirinha estudando para o vestibular — ela diz, me olhando com aquele tipo de olhar pidão, que
amolece fácil um coração fraco feito o meu, enquanto aguarda minha resposta.

— Tudo bem. — Assinto.

Ela solta um gritinho e estala um beijo demorado em minha bochecha.

— Eu te amo, maninha. Você é a melhor irmã de todo o mundo!

— Ok! Ok! Apenas vá para a sala de aula.


— Está bem — ela responde, se afastando com um sorriso de orelha a orelha.

Observo ela adentrar o pátio e torno a dar partida em minha lambreta.

Enquanto dirijo pelas ruas úmidas de Curitiba, repenso o dia anterior. Céus! Eu só consigo
pensar no pobre do seu Reinaldo. E se ele tivesse batido as botas ontem? Eu nunca iria me perdoar.
Aliás, minha consciência está tão pesada, que mal pensei em outra coisa que não seja na saúde do
meu chefe. Ele já está bem, no entanto, ainda me sinto muito mal por isso. Eu preciso encontrar um
jeito de aliviar esse sentimento de culpa em mim.

Eu preciso me confessar e pedir perdão.

No entanto, se ele souber da verdade, com certeza irá me dar o belo de um pé na bunda e tão
logo serei a nova desempregada de Curitiba.

Ah, não! Isso não! Desemprego não!

Ele já até melhorou.

Paro em um sinal e olho para o lado, dando de cara com a Igreja de São José, e, de repente,
encontro a solução dos meus problemas.

Claro!

Como eu não pensei nisso antes?

Eu não posso confessar ao seu Reinaldo, mas para Deus... Tenho certeza de que Ele me dará
seu perdão e paz divina. Claro! Tenho certeza de que meu coração descansará em paz depois disso.

A buzina forte atrás de mim faz com que meu coração dê um solavanco e percebo que o sinal
já está aberto há alguns segundos.

Dou sinal para a direita, sob os olhares injuriados dos motoristas atrás, e estaciono minha
lambreta em frente à paróquia.

— Que povo estressado. Eu, hein?! Não se pode demorar um segundo parada no sinal —
resmungo baixinho.

Desço de cima da minha motoca e me coloco para dentro do templo de arquitetura barroca.

Olho para os lados, em busca de alguém da igreja que me conceda uma informação, mas não
encontro ninguém além de uma beata sentada no banco na última fileira, com um terço atravessado
entre seus braços.
— Com licença, senhora. — Ela abre os olhos, me fitando com seus grandes olhos
amendoados. — Desculpe-me por atrapalhar sua reza, mas a senhora poderia me informar onde faço
minha confissão de... pecados. — Engulo em seco.

Ela aponta para a plaquinha na parede ao lado, e responde:

— A partir das 9h até 10h da manhã, todos os dias.

— Eu não posso nesse horário — choramingo baixinho, lembrando que daqui a uma meia
hora, no máximo, devo estar na malharia. — Muito obrigada, senhora! — agradeço, um pouco
decepcionada. Eu quero tanto colocar isso para fora agora.

Preparo-me para sair de sua frente, quando ela diz:

— Espere um momento, menina. — Estanco o passo e espero esperançosamente pelas


palavras da senhora. Ela se levanta e continua: — O padre Antônio já está aí. Parece que está
atendendo um moço desde às seis da manhã... Talvez abra exceção se pedir com jeitinho. Sabe aquela
porta ao lado do altar? — Olho para o lado e assinto, enquanto ela me instrui: — Vá até lá e caminhe
até o final do corredor. É lá que o padre Antônio recebe os fiéis.

— Muito obrigada, senhora. Não sei nem como agradecer.

— De nada, filha. Eu já passei por isso que está sentindo. Aliás, foi muito grave? — ela
pergunta, arregalando os olhos.

— Grave? — indago, confusa. — Grave o quê?

Ela responde baixinho, olhando para os lados:

— O pecado. — Ela olha minha mão e observa: — Sem aliança na mão esquerda, a criança em
seu ventre não foi concebida dentro do casamento. — Quase engasgo com saliva e ela continua: —
Uma jovem da sua idade, vindo à igreja se confessar a essa hora da manhã, imagino que deva estar
desesperada pela paz do nosso Senhor.

Tenho certeza de que estou com as bochechas em brasas, não sabendo onde pôr minha cara.

— Não é nada disso que a senhora está pensando... — digo, balançando as mãos no ar e indo
em direção ao altar antes que eu me embarace ainda mais com a conversa.

— Oh, querida! Me perdoe se fui invasiva, não era minha intenção. Deus te proteja, minha
filha. — Acena com um menear de mão.

— Obrigada! — Imito seu movimento com a mão esquerda e topo em um dos bancos ao meu
lado, quase indo ao chão. Me recomponho e digo nervosamente: — Deus abençoe a senhora!

Sigo pelo caminho até o corredor mencionado pela beata. Ainda me sinto estranhamente
nervosa em ter que fazer isso. Eu já havia feito uma vez em Tocantins, mas foi, pelo menos, dez anos
atrás.

Nem me lembro como é que se fala com o padre. Meu pai nunca foi muito religioso e só
aparecia às missas em ocasiões especiais, então nunca tivemos o costume de visitar fielmente às
paróquias, mas sempre mantínhamos a fé em Deus.

Avisto as portas no fim do corredor e me aproximo, ansiosa.

Com cautela, olho para os lados, procurando por alguém, e nada.

Uma das portas está aberta, então não resisto. Adentro e sento na cadeira de madeira imbuia,
muito bem envernizada.

Olho para frente, tendo a vista contrária ao caminho que percorri, e minha alma quase sai do
corpo quando ouço a voz aveludada e grave feito um trovão, que parece vir do outro lado da janela
traçada, que mal dá visão do que está do outro lado da parede.

— Olá!

Levo a mão ao meu peito, tentando recuperar a batida que meu coração perdeu.

— Que susto, padre! Não sabia que o senhor estava aí — digo, ainda sem fôlego.

— Eu preciso ir...

— NÃO! — bramo, e depois prossigo, envergonhada, com a voz fina: — Por favor, fique,
padre. Eu preciso me confessar. Por favorzinho, fique. Eu preciso conversar com o senhor. Meu dia
não terá paz se eu não conversar com o senhor — rogo, disposta a chorar se for preciso.

Ele permanece em silêncio e ainda posso ver o vulto ao meu lado, imóvel. Então começo o
ritual, como eu me lembro:

— Eu pequei, padre. — Sinto que nesse exato momento ele dirá algo como: "Conte-me o que
lhe aflige, filha, Deus é poderoso para perdoar seus pecados", no entanto, não recebo nem uma
palavra de conforto.

Ai, Senhor! Será que esse padre é muito severo?! Começo a repensar se foi mesmo uma boa
ideia ter vindo aqui. E se eu sair me sentindo mais culpada do que quando entrei?

Ai, meu Senhor!, choramingo, olhando para as palmas de minhas mãos.


No entanto, já estou aqui, é melhor soltar logo de vez.

— Padre... eu... eu...

Escuto um pigarrear, e a voz grave e primorosa reverbera novamente no espaço, me fazendo


pensar se isso é uma voz ou uma orquestra sinfônica, de tão bonita.

— Filha, se não quiser confessar agora, podemos deixar para mais tarde.

— NÃO! — vocifero outra vez e morro de vergonha novamente. Onde já se viu gritar com um
padre? — Quer dizer, eu prometo que serei rápida. — Segue um instante de silêncio e tomo coragem.
— Eu... eu... eu quase matei o meu chefe ontem à tarde.

O silêncio invade o lugar e escuto a voz perguntar, avaliativa:

— Matar... do tipo matar mesmo?

Quando raciocino e entendo o que ele quer dizer, nego nervosamente:

— Não, padre. Eu nunca tive a intenção... Quer dizer, foi proposital...

— Não entendo. A senhorita teve ou não a intenção?

— Não! — respondo decididamente. Mas logo em seguida explico, gesticulando com as


mãos: — Mas coloquei, propositalmente, Lacto Puga no suco dele, e ele é alérgico. Ele inchou feito
um sapo cururu no meio do serviço e foi direto para o hospital.

— Que interessante! Quer dizer, que preocupante. Conte-me mais! — ele fala e,
estranhamente, sinto que está segurando uma risada atrás da parede. Claro, é apenas um sentimento. É
impossível um padre sorrir da desgraça de alguém. — O que seu chefe fez de tão terrível para
merecer um suco batizado com laxante?

Respondo, meio sem jeito:

— Ele queria que nós ficássemos até dez da noite ontem. E eu não poderia ficar, ontem era
um dia especial para mim. Eu expliquei isso a ele, mas ele disse que não poderia fazer nada. Enfim,
eu pensei que colocando laxante em seu suco, ele fecharia o caixa da malharia e me liberaria. Como
ele não deixa ninguém assumir o caixa, talvez devido à fobia de ser roubado pelos funcionários,
então achei que seria um plano perfeito... — Penso no pobre coitado inchando e completo: — Mas
não foi. — Fito minhas mãos.

— Mas deu certo? — o padre pergunta, complacente.

— Hãm? — Ergo a cabeça avulsa e depois sacudo o rosto. — Sim, padre. O seu Reinaldo já
está em casa, sã e salvo, graças a Deus!

— Eu me referi ao seu plano. Pôde sair mais cedo ontem? — o padre indaga.

Envergonhada, assinto.

— Sim. Deu certo.

— Então essa história teve um belo final feliz. O empregador não pode obrigar hora extra aos
empregados sem uma motivação plausível. Me parece que seu Reinaldo mereceu borrar as calças. —
Escuto ele dizer, maléfico, segurando uma risada, enquanto parece expirar o ar de seus pulmões. —
Aliás, qual é o seu nome?

— Ca-camille — gaguejo, pensando se é comum dizer o nome em meio a uma confissão.

— Obrigado por me proporcionar um momento de diversão, Camille. Você deixou minha


manhã mais leve.

Apesar de achar a informalidade toda muito estranha, não ouso contestá-lo. Apenas assinto.

Ele silencia e tenho dificuldade em perguntar se não tem mais nada além da conversa, nenhum
sermão ou ritual mais formal. Vai que eu estou sendo desrespeitosa com o padre. Mas pergunto:

— É só isso? Eu não tenho que dizer mais nada?

— Ah, claro! — Ele pigarreia novamente e a voz profere, enquanto parece se ajeitar na
cadeira ao lado: — Te perdoo em nome do Pai, do Filho e do Espírito — ele diz por fim.

Sua voz é tão hipnotizante, que quase perco o fôlego. Como será sua aparência? Será que ele
é um daqueles padres bonitões que aparecem na TV? Oh, céus, Camille! Deixe de pensar essas
coisas tolas, antes que tenha um novo pecado para confessar.

Vejo o relógio em meu pulso marcar 8h30 e percebo que já estou muito atrasada para o
serviço.

De repente, as luzes se apagam, e tudo o que consigo enxergar é a luz natural, que vem do fim
do corredor, e escutar o som da minha respiração.

— Uma queda de energia? — A voz desinteressada soa ao meu lado, murmurando enquanto
me levanto, topando na quina da parede em minha frente. Com dificuldade, me coloco para fora do
confessionário, na tentativa de sair dali o mais rápido possível, no entanto, acabo esbarrando mais
uma vez em algo, só que dessa vez, em um corpo, pelo menos, dez centímetros mais alto do que o
meu. Talvez, o padre.
Instintivamente, olho para cima, mesmo sem enxergar nada além de um vulto. Minhas narinas
são invadidas pelo cheiro almiscarado do homem em minha frente, enquanto sua respiração em meu
rosto me inebria agressivamente, me levando à outra dimensão por um instante.

Estou preocupada também com o pensamento de um padre estar possivelmente tão próximo
ao meu rosto e de sua mão segurar com firmeza o flanco de minha cintura, de modo que parece ter
perícia no assunto, o que é quase impossível.

Engulo em seco quando sua mão segura a lateral de meu braço esquerdo, e como se tivesse
algum magnetismo ali, os lábios dele tocam os meus e, pior, eu permito, sendo refém de um desejo
momentâneo que tomou conta de todo o meu corpo.

Oh, céus! A boca do padre está na minha, e eu estou nas nuvens.

Suas mãos sobem para minha nuca, e, em seguida, trilha para os meus cabelos presos em um
rabo de cavalo. Ele desliza lentamente a liga em meus cabelos, os libertando. Neste exato momento,
recobro o juízo e coloco minha mão contra seu peito, afastando-o.

— Não, padre. É errado. — Ofego, zonza.

A mesma voz que tenho ouvido nos últimos minutos me diz, também ofegando, de forma mais
rígida:

— Senhorita... eu não sou padre.

Meu coração gela, e tenho a sensação de que vou tropeçar em meu próprio tornozelo e cair
ali mesmo.

— Então... — Minha voz sai assustada quando sou interrompida pelo toque do meu celular.
Atordoada, retiro o celular da bolsa, fazendo contato com a luz fria do aparelho, e vejo que se trata
de Manuela, minha colega de trabalho. Talvez queira saber meu paradeiro, já que estou
perigosamente atrasada.

Por instinto, desligo o aparelho e me apresso em sair dali, mas, antes disso, reparo na cor da
camisa do homem em minha frente: azul-marinho.

— Fique mais um pouco... — Ele segura meu braço.

— Eu não posso — respondo apressadamente, correndo em direção à luz ao lado, como se


minha vida dependesse disso, deixando-o para trás.
02 | MANSÃO 503

Camille

— Para tudo! — Manuela exclama, boquiaberta, enquanto caminho para minha mesa ao lado
da dela em um dos corredores da sala de costureiras na malharia do seu Reinaldo, que fica no andar
de cima de uma das tradicionais padarias do bairro Alto da Glória.

Manuela me olha dos pés à cabeça, contemplando meu vestidinho vermelho estilo anos 50.

— Filha da mãe! Que vestido bafo! Onde comprou?

— Fui eu que fiz — respondo, orgulhosa.

— Talento é que fala. Ficou maravilhoso! — ela elogia e eu agradeço, um pouco sem graça.
Não sou muito boa em receber elogios, mesmo que os elogios venham de Manu, minha colega de
trabalho e melhor amiga ultimamente.

Nunca tive muitas amigas no Tocantins, no entanto, algo me diz que isso irá mudar ao
conviver mais tempo com Manuela. Ela é comunicativa, engraçada e compra todas minhas ideias
malucas de vestidos e saias de poás, fazendo com que eu já a considere muito.

Começamos a costurar as camisas encomendadas para as festas de fim de ano, e de repente


ele está ali de novo, metido em minha mente, fixado com cola permanente. Não consigo mais me
livrar desses pensamentos, se tornou meu vício confabular o rosto do homem misterioso que beijou
meus lábios naquele dia na igreja. Oh, céus! Se pudesse voltar no tempo... ou melhor, se existisse o
gênio da lâmpada, eu com certeza pediria que me revelasse a identidade daquele homem.

— Terra chamando Camille! Camie?! Camieee! — Escuto a voz ao meu lado, mas é como se
minha alma tivesse se teletransportado para outro planeta. — CAMILLE! — Manuela me chama
novamente, mais incisiva, batendo no tampo da mesa à minha frente, e eu dou um solavanco na
cadeira.

— Que susto! — Levo a mão ao peito.

— Você pode me passar o tubo de linha vermelha? — ela pergunta, com seus olhos curiosos,
tentando pescar alguma coisa em meu rosto. — Que cara é essa? — ela questiona ressabiada, e
murmura: — Estava pensando de novo no homem misterioso da igreja?

Eu coro ferozmente, me sentindo invadida mentalmente.

— Como você sabe?

— Ora, Camille! Isso não é lá muito difícil de se deduzir, garota! Só olhar para sua cara de
bobona quando você fica com o olhar perdido para cima dessa máquina.

Droga! Eu não deveria ter comentado sobre o tal homem misterioso com a Manuela.

Pigarreio e tento despistá-la.

— Eu estava pensando em um vestido novo que irei costurar nesse fim de semana.

— Vestido novo, minha bunda! Você estava toda maria-mole pelo falso padre. Aliás, você já
descobriu quem é? — ela sussurra, para que as outras costureiras não ouçam.

Inspiro fundo, respondendo com um resquício de decepção na voz:

— Não.

— Você foi à igreja novamente? — ela pergunta, curiosa.

— Sim. — E me sinto à vontade para confessar: — Eu não encontrei nada que me levasse a
ele.

— Perguntou ao padre? Ele deve saber de algo.

— Sim. Eu perguntei se ele se lembrava de quem havia ido à igreja naquela manhã, mas ele
me disse que não se lembra de ninguém além de uma beata.

— Estranho! — Ela encosta as costas no estofado da cadeira giratória. — Você disse que
aquela senhora havia comentado que o padre estava atendendo um fiel naquela manhã... A não ser que
o padre esteja mentindo. Quer dizer, isso é impossível, estamos falando de um padre. Aliás, nem se
fosse possível, por que ele mentiria? Não há razão — ela diz, pensativa.

Inspiro fundo.

— Acho que é melhor eu esquecer dessa história, Manu. Provavelmente, nunca mais irei
encontrar esse homem na minha vida. Eu nem mesmo sei como é o rosto dele.

Manuela continua pensando, e exclama, inconformada:

— Por que diabos você saiu correndo mesmo?!


— Eu não sei... Apenas fiquei muito envergonhada, assustada e com muito medo. — Na
verdade, eu estava apavorada.

Ela pisca os olhos duas vezes e tenta segurar a risada.

— Assustada? Com um simples beijo? Até parece, Camille! Só falta me dizer que essa foi a
primeira vez que você beijou — ela caçoa.

Engulo em seco e percebo que Manuela nota meu desconforto.

— Espera aí, esse não foi seu primeiro beijo... não é?

Desvio o olhar temporariamente.

— Nunca me aconteceu isso antes — confesso.

— Oh, céus! — Manuela exclama, como se tivesse acabado de escutar que o arrebatamento
será hoje. — Como isso pode ser verdade?

— Eu nunca tive... sabe... uma oportunidade real.

— Você é tão bonita, esperta, talentosa... Como pode?! — Ela ainda está em choque.

— Eu quero encontrá-lo. E se for ele o amor da minha vida...

— Ah, Camille! Eu posso até acreditar que você é BV, mas não se faça de ingênua! Eu já a
conheço suficientemente bem para saber que você não é tola. Você nem faz ideia de quem é esse
cara...

— Eu sei, eu sei... Parece loucura, mas senti algo especial quando ele me beijou.

— Tipo o quê? Pulso acelerado, falta de ar e mãos suando? — Ela revira os olhos nas
órbitas.

— Sim, mas...

— Eu senti isso com o meu primeiro namoradinho aos quatorze anos, quando ele tirou meu
BV. E advinha? Anos depois ele assumiu a homossexualidade. Ou seja, não foi o amor da minha vida,
já que eu não tenho duas bolas entre as pernas, como você pode ver. — Ela arqueia uma sobrancelha
e aponta para as partes íntimas. Ignoro o que ela diz e explico:

— Foi mais do que físico, sabe? Minhas mãos estavam geladas, mas meu coração estava em
chamas. Foi como se eu tivesse esperado a vida toda por isso, como se eu...

Manuela toca meu braço, me interrompendo.


— Camille, não exagere. Foi só um beijo, uma beijoca, um tocar de lábios, muá! Vai por mim,
não romantize primeiras vezes, você pode se decepcionar depois. O mundo moderno é assim:
decepcionante e sem graça. Se quiser sobreviver nesse mundo de amor, beijos e sexo, não romantize
tanto as coisas. Você pode se ferir com isso.

Manuela nos envolve em um clima de reflexividade, e tudo o que consigo fazer é assentir.

— Ok! Obrigada, Manu.

Eu sei que Manu tem razão em parte, no entanto, algo em mim está convicto de que aquele
beijo foi especial. De qualquer forma, pelo menos, para mim.

— E outra, e se esse cara for irmão gêmeo do seu Reinaldo? — ela reflete.

De repente, vejo seu Reinaldo se levantando do outro lado do vidro que separa a sala de
costura e o caixa da malharia. Observo-o vir até a sala de costura, junto com seu bigodinho ralo em
cima dos lábios finos e com sua pochete embaixo da proeminente barriga arredondada, e imagino o
que Manuela me disse. E se o homem misterioso fosse parecido com o seu Reinaldo?

— Deus queira que não! — murmuro enquanto ele caminha em nossa direção.

— Camille! — diz meu nome como se sentisse desgosto em ter que pronunciá-lo.

— Sim, senhor.

— Você tem uma entrega a fazer esta tarde.

— Entrega? — indago, confusa. Entregar não faz parte de minhas atribuições, mas pelo humor
do seu Reinaldo, decido não questionar.

— Sim, algum problema? Você não tem uma moto velha? Você pode ir nela.

— Não é uma moto velha, é uma lambreta...

— Que seja! Apenas cumpra as ordens e entregue aquela encomenda em cima da bancada
neste endereço — ele diz, me passando um papel riscado com sua caligrafia deprimente. — Esse é o
endereço. Não esqueça de ler a observação no verso do papel.

— Certo! — Assinto. Ele me olha de cima a baixo rapidamente e depois dá meia-volta,


saindo da sala das costureiras. Quando ele afunda o estofado da cadeira do caixa, suspiro aliviada.

Tantas costureiras nesta sala, por que ele foi pedir isso justamente a mim?

Será que ele desconfia de algo?


Ah, Camille! Pare de alimentar paranoias!, resmungo comigo mesma. Você acha mesmo que
o seu Reinaldo deixaria barato se descobrisse que o que aconteceu com ele foi sua culpa?

Claro que não! Suspiro aliviada.

— Você não deveria ter aceitado isso, Camille! — Manuela resmunga baixinho. — Depois da
primeira vez, ele vai querer te fazer de entregadora para sempre.

— Eu não podia simplesmente negar, Manu. — Dou de ombros, não me importando se o seu
Reinaldo me fará de entregadora de mercadorias para sempre. Quem sabe seja o universo
encontrando uma forma de me fazer pagar pelo meu erro.

— Ok! Depois não diga que eu não lhe avisei.

O fim da tarde está se aproximando e a temperatura começando a despencar, enquanto sigo


pelas ruas gélidas de Curitiba em minha lambreta. Eu adaptei uma pequena haste na garupa da moto,
para que não amasse as camisas de linho recém-reparadas e engomadas.

Paro ao lado da guarita do condomínio, em um dos bairros mais nobres de Curitiba, na rua
Carmelo Rangel.

Sinalizo para o guarda e digo em uma oitava mais alta quando ele coloca a cabeça para o
lado de fora do enorme paredão de vidro:

— Eu vim entregar essas camisas na casa 503.

— Qual seu nome?

— Camille. Camille Silva, da malharia do seu Reinaldo.

— Só um momento!

Ele fecha a janela de vidro e fico ali, esperando pela resposta. De repente, uma fina garoa
começa a cair sobre meu capacete e ombros, e estremeço por dentro da jaqueta, que cobre meus
braços e o vestido vermelho que eu mesma fiz.

— Está liberada! — o guarda anuncia ao meu lado. Assim que as portas se abrem, sou rápida
em dar partida para dentro do local, antes que a chuva me pegue.

Minha Santa Coco Chanel! Que lugar é esse?!

Provavelmente nunca entrei em um lugar tão grandiosamente luxuoso como esse em toda
minha vida!, penso, prendendo a respiração com cada obra de arte arquitetônica, enquanto a fina
garoa persiste em molhar meus ombros.

Ao invés de muros, as casas têm extensos jardins verdes e viçosos. As fachadas são tão
modernas, que parece que estou vendo os próprios projetos desenhados no papel, de tão perfeitos
que são os acabamentos.

Eu nem mesmo sabia que existia mansões tão bonitas aqui em Curitiba...

Enquanto fico imersa em meus pensamentos, de repente desperto com a buzina forte do carro
vindo em minha direção e percebo que já estou dirigindo pela contramão. Rapidamente desvio do
carro e estanco, apoiando os pés no chão, com o coração palpitante.

Ainda nervosa, ergo minha cabeça, e sorvo uma boa lufada de ar.

— Ok, Camille! Foi apenas um susto! — digo a mim mesma, tentando me acalmar. Olho para
os lados e repito, tentando me concentrar: — 503, 503, 503.

Olho para o lado esquerdo e me surpreendo quando encontro justamente o enorme número
502 em inox. Automaticamente, meu pescoço gira para o meu lado direito e lá está a mansão 503.

— Oh, aqui está! — murmuro com um pouco de felicidade na voz, por ter parado
coincidentemente bem em frente.

Estaciono ligeiramente ao lado da calçada e pulo para fora da moto, tomando os devidos
cuidados para que a saia do meu vestido não enrosque na lateral do banco. Retiro as camisas
envoltas por uma longa capa preta. Logo em seguida corro pelo caminho de pedras largas no jardim
de grama viçosa.

Enquanto ando a passos largos por esse trecho, observo a casa em minha frente, que parece
incrivelmente mais requintada do que as demais.

Sua fachada é toda em vidro, dando visão de toda escada lá dentro, além de um enorme lustre
de cristais.

Paro embaixo do alpendre de concreto, em frente à enorme porta de carvalho dos meus
sonhos. Caramba, ela é tão linda!
Logo procuro pela campainha nas laterais, mas não a encontro.

— Que desperdício! Fizeram uma casa tão luxuosa e foram economizar justo na campainha?
— sussurro, ainda procurando a bendita cuja, sem sucesso.

Será que é para bater? Fico confusa.

No entanto, não penso muito e apenas bato com os nós dos dedos na porta, pois já está
esfriando muito aqui fora.

Toc! Toc! Toc!

Abaixo a mão e espero. E... nada.

Tento novamente.

Toc! Toc! Toc!

Espero mais uma vez, sem resposta.

Oh, será que há gente em casa? Espio pelo vidro ao lado e realmente parece que não há
ninguém nesta casa.

Mas como, se o porteiro autorizou? Subitamente, me lembro da observação no verso do


bilhete que o seu Reinaldo mandou eu ler, mas não li.

Busco o papel no bolso da jaqueta e desdobro, para olhar o que tem escrito.

"Entre sem bater. Deixe a encomenda em cima da cama da última suíte do corredor, no
segundo piso."

— Entre sem bater? — Franzo o cenho e tenho dificuldade para compreender. — Ok? Que
tipo de observação é essa? Quem, em pleno bom estado de sanidade mental, deixa um estranho entrar
em sua casa sem bater? — Dobro o papel e sussurro: — Tem algo estranho aqui. Muito estranho...

Dou um passo para trás, vislumbrando novamente a mansão.

— Não entro aí nem morta! — digo, fazendo o caminho de volta pelo jardim, falando em voz
alta. — Onde já se viu?! Entrar sem bater?! Isso está com cheiro de emboscada! — exclamo,
marchando decididamente de volta para minha lambreta. — E se tiver um maníaco aí me esperando,
pronto para me decapitar e jogar meus restos mortais no lago mais próximo?! — questiono-me,
incrédula, sacudindo minha cabeça. — Que seu Reinaldo me demita, mas aí eu não entro sozinha!

Quando quase alcanço minha moto, parece que o céu desaba em minha cabeça. A chuva
engrossa e fico igual uma barata tonta no jardim, sem saber o que fazer. Então saio correndo de volta
para debaixo do alpendre, antes que meus cabelos e roupas ensopem d'água totalmente.

— Droga! Mil vezes droga! — praguejo, choramingando, prevendo que a chuva não cessará
tão cedo. — Como eu vou sair daqui?

Não me resta alternativa a não ser esperar.

Inspiro fundo e resgato um pouco de paciência no recôndito de minha alma.

O tempo vai passando e cada vez mais os meus braços se arrepiam com o frio que insiste
castigar minhas pernas desnudas e minha pele gélida debaixo das roupas úmidas.

Olho pela enésima vez a porta atrás de mim e pondero que pode não ser uma má ideia entrar.

Parece ser tão quentinho lá, penso, observando pelo vidro ao lado da porta o roliço bichano
me fazendo inveja, se enroscando em uma das almofadas do sofá. Nunca quis tanto ser um gato.

Talvez eu esteja exagerando e não haja perigo algum. E outra, não entregar a encomenda será
motivo suficiente para entrar para a lista do seu Reinaldo de costureiras na berlinda do desemprego.

Oh, não faz mal dar uma entradinha. É bem rapidinho. Talvez ninguém esteja em casa mesmo.

Meus dentes começam a bater, então não penso duas vezes e empurro a grande porta.

Como esperado, ela está destrancada.

Quando abro a porta totalmente e dou um passo à frente, quase deixo escapar um gemido de
satisfação ao sentir uma onda de calor envolver meu corpo.

A porta atrás de mim se fecha sozinha, fazendo meu coração pular e o felino saltar para fora
do sofá e desaparecer por uma das portas laterais.

Embora assustada, estava com tanto frio lá fora, que não cogito voltar atrás.

Fito a sala enorme em minha frente, ladeada de uma enorme escada em mármore, com um
guarda-corpo de vidro. Putz! Que casão! Tudo nesta sala parece moderno e clean — como costumo
ver nas revistas de moda.

Lembro-me da observação: "Entre sem bater. Deixe a encomenda em cima da cama da última
suíte do corredor, no segundo piso."

Segundo piso, Camille! Você precisa ir ao segundo piso. Converso comigo mentalmente,
inspirando uma boa quantidade de ar e caminhando em direção à escada, andando em passos furtivos.
A única coisa que consigo ouvir por aqui é minha respiração pesada, por causa do
nervosismo. No entanto, a tensão já está indo embora. É provável que ninguém esteja em casa mesmo
e que eu tivesse exagerado um pouco.

Chego ao segundo andar e caminho pelo corredor, com a parede de vidro que dá visão de
todo o jardim privativo da mansão.

Último quarto do corredor, repito, caminhando um pouco mais à vontade pelo corredor,
quando de repente vejo algo na parte externa, ao lado da piscina lá fora.

Estanco os passos e forço a visão para além dos pingos da chuva, no deque coberto ao lado
da piscina.

É um homem. Um homem de sunga preta e de músculos bem definidos, que mais parece um
ator de um filme de super-heróis da Marvel.

Observo ele caminhar despretensiosamente até uma mesa de madeira e pegar uma taça de
vinho e a levar aos lábios, enquanto puxa uma uva do cacho, que está no prato ao lado.

Deito a cabeça automaticamente para o lado, para ver seu corpo perfeito, e percebo que entro
em algum tipo de hipnose.

Sacudo a cabeça e murmuro, piscando os olhos copiosamente:

— Último quarto no fim do corredor. Último quarto no fim do corredor, Camille! Concentre-
se!

Coloco-me de volta em direção ao percurso para o fim do corredor e caminho em passos


largos até a porta que já consigo enxergar de longe.

Quando chego ao quarto, dou de cara com mais um cômodo, tão exuberante como o restante
da casa.

As roupas de cama são tão brancas, que tenho a sensação de que elas acabaram de sair da
loja, e o cheiro... Apesar de ser uma fragrância masculina... é muito gostosa de se sentir.

Coloco as camisas exatamente em cima da cama, como foi pedido, e me apresso em sair dali,
mas o meu olhar esbarra em um mural de fotos ao lado da porta, e uma foto em especial me chama a
atenção: a de um rapaz nas águas cristalinas no Jalapão, no Tocantins. Não sei muito bem dizer ao
certo se é o mesmo homem lá embaixo, mas ver esse lugar me traz boas lembranças de minha
infância.
De repente, me vejo curiosa ao ver cada uma das fotografias. Nelas sempre está uma pessoa
em comum entre toda a gente chique: o bonito homem de cabelos cor de piche e olhos azuis. Em
algumas fotos ele parece mais jovem, com os traços mais suaves; e em outras, mais maduro, com o
queixo mais quadrado e másculo.

— Gostou de alguma?

Meu coração dá um salto quando ouço a voz grave ao meu lado.

Os olhos azuis das fotos estão agora diante de mim, e parecem incrivelmente mais lindos,
vívidos e intensos.

Fico em transe ao olhar o homem ali, apenas com uma toalha presa na cintura e os cabelos
úmidos ajeitados para trás. Provavelmente estou com alguma expressão de terror marcada em meu
rosto. E, droga, minhas mãos estão tremendo, enquanto ele estranhamente está dando um passo em
minha direção. Prendo a respiração quando ele ergue cuidadosamente a mão e toca minha pele do
rosto suavemente. O que está acontecendo aqui?, pergunto internamente, em estado de pânico.

De supetão, afasto sua mão, e tropeçando sobre os meus próprios tornozelos, dou um jeito de
sair da frente do homem e correr o mais rápido possível para fora da casa.

Desço as escadas com o coração a mil e alcanço com um suspiro de alívio a porta pela qual
entrei.

— O que foi isso? — Com as mãos apoiadas nas coxas e resfolegando, murmuro ainda com a
adrenalina correndo em minhas veias.

Minha cabeça gira, ainda não digerindo muito bem o que acabou de acontecer, no entanto,
tudo o que eu quero é voltar para casa.
03 | SEGUNDA ENTREGA

Camille

— Eu saí correndo — respondo baixinho ao telefone, enquanto conto detalhe por detalhe da
minha tarde um tanto estranha à Manuela.

— Desculpe-me, eu não entendi. Você saiu o quê?!

— Correndo — murmuro um pouco mais alto.

— CORRENDO? — ela grita do outro lado da linha e levo um susto, debaixo de pelo menos
quatro mantas, depois de tomar um longo banho quente e beber uma xícara de chá de ervas
fervilhando. — Você só pode estar de brincadeira com minha cara, Camille! Você saiu correndo de
novo?! Da mesma forma que você saiu correndo do homem da igreja?!

— Aham.

— Fala sério! — ela exclama, inconformada. — Por que isso não acontece comigo, meu
pai? Você entra em uma mansão de um homem rico, gostoso e cheiroso, e sai correndo dele como o
diabo foge da cruz?! Que tipo de criatura você é, Camille?!

— Sei lá, Manu. Ele tocou meu rosto e parecia que ia tocar meus lábios a qualquer
momento...

— E você ia achar ruim?

— Claro! Eu não o conheço...

Escuto uma risada irônica do outro lado da linha, e Manu debocha:

— Falou a garota que ficou a semana toda caidinha por um cara que sequer sabe como é o
rosto. Pelo menos você viu o rosto desse ricaço.

— Não tem nada a ver. Naquele dia na igreja foi diferente... Foi especial.

— Não vá começar com o papo de "amor da minha vida", "destino" e toda essa baboseira!

Fico ali conversando com Manuela até nossas orelhas ficarem quentes, contando tudo o que
aconteceu para minha colega de trabalho, enquanto Donatella conversa com o namorado ao telefone,
deitada em sua cama, ao lado da minha. Mal sabe Donatella que estou com a vida "amorosa" mais
movimentada que a dela. Quem diria!

Depois de passar a manhã toda costurando camisas estranhas com estampas de corvos,
Manuela e eu voltávamos do nosso horário de almoço exatamente às 14 horas. O clima
milagrosamente melhorou essa manhã em Curitiba, e quase beira aos gloriosos 25°C.

— Camille! — Ouço meu nome ser pronunciado pelo seu Reinaldo, e me surpreendo quando
ele pede para que eu me aproxime do caixa.

— Tudo bem — digo à Manuela para que prossiga seu caminho até nossas mesas.

Caminho até seu Reinaldo.

— Você tem uma entrega hoje! — ele diz rápido, olhando para o computador.

Pisco duas vezes e tenho cuidado ao responder:

— Entrega? — Engulo em seco e continuo: — Seu Reinaldo, com todo respeito, mas o senhor
me contratou para ser costureira.

Ele desvia o olhar do monitor e sinto que não gostou nem um pouco do que eu falei, e desfere
em seguida as palavras venenosas:

— Sabe, menina, eu acho que tem costureiras demais aqui. Eu estou pensando em demitir
uma...

— Onde é a entrega? — pergunto prontamente.

Ele faz aquela cara de cobra naja do deserto do Saara e me pergunto o porquê de tanta
amargura no coração desse senhor.

— Mesmo endereço.

— Mansão 503? — pergunto, receosa.

— Algum problema? — ele indaga, desafiador.

Todo problema! E se eu encontrar com aquele homem novamente?!


— Seu Reinaldo, será que o senhor poderia pedir para outra costureira...

— Não. Não, não posso...

Pela sua expressão facial de irritação, acho melhor pegar as capas em cima da bancada.

— Já estou até indo — aviso, enquanto caminho em direção à escada.

Depois de chegar ao andar de baixo, inspiro fundo, pensando o quão azarada eu sou. Tantas
costureiras, por que o seu Reinaldo foi implicar justo comigo?! Ah, céus! Só pode ser castigo!

Cá estou eu novamente, em frente a essa mansão, com as mãos um pouco atrapalhadas, tirando
as camisas de cima da haste de metal improvisada na garupa de minha lambreta.

Pelo menos não está chovendo e, por sorte, até que está fazendo um calorzinho agradável.

Tomo coragem e atravesso o jardim. Tão logo bato com os nós dos dedos na porta de
carvalho.

Será que eu entro?!, pergunto-me, lembrando da observação no papel na vez passada. Seu
Reinaldo não disse nada e nem entregou nada..., penso, quando sou surpreendida pela porta se
abrindo à minha frente.

Uma senhora loira em roupas formais aparece, me estudando de cima a baixo.

— Boa tarde! Com o que posso ajudar?!

— Boa tarde. Eu vim deixar i-isso... — Levanto as camisas dentro das capas, gaguejando e
me dando conta do quanto estou nervosa com a possibilidade de encontrar com aquele homem
novamente.

Ela pega as capas de minha mão.

— Está pago?

— Sim, senhora.

— Ok. Entregarei ao seu Gabriel... — ela diz enquanto se prepara para fechar a porta em
minha cara.
Ufa! Eu não terei que me embaraçar toda para olhar nos olhos daquele homem outra vez;
comemoro internamente.

— Rosa, não faça isso. — A voz masculina soa e um homem de pele dourada e olhos
puxados, vestindo terno e gravata, surge detrás da escada, dizendo à senhora que parece ser sua
colega de trabalho: — Deixe que esta senhorita entre...

— Mas o seu Gabriel não recebe...

— Esqueça! Deixe que a garota entre e faça o serviço! — Ele impede a senhora de dizer
algo, e eu acho isso tudo muito estranho. — O patrão está no jardim. Pode usar a porta lateral — ele
me informa, indicando com a cabeça o caminho ao lado da escada.

Ok?! O que está acontecendo aqui? Por que essa senhora não pode simplesmente entregar
para mim? Esmoreço novamente. Ahhh, esse engravatado havia cortado meu barato!

Forço um sorriso enquanto a senhora me entrega as camisas novamente, e assinto para os


dois, que me observam atentamente.

— Tudo bem!

Desmancho o sorriso quando passo pelo engravatado, choramingando internamente. Tudo bem
nada, você estragou minha tarde, moço! Ai, minha Nossa Senhora!

Caminho pela sala até chegar à porta lateral, deslizando o vidro para o lado.

De repente, estou andando novamente por uma grama bonita e viçosa, procurando pelo tal
Gabriel. Os raios solares atingem em cheio meus olhos, então ponho a mão no meio da testa, a fim de
ter uma visibilidade melhor.

Adiante há a enorme piscina, rodeada de uma grande área gramada e algumas árvores que
parecem terem sido calculadamente posicionadas por um paisagista. Há algumas cadeiras de vimes
no deque coberto ao lado da piscina e uma sauna de paredes de vidro.

Corro os olhos por esse lugar, mas nem sinal do tal Gabriel; aliás, de ninguém.

— Está procurando por alguém? — Uma voz grave soa atrás de mim, e me viro em um
rompante.

O homem de rosto bem-afeiçoado, intimidante e másculo, está me encarando, sentado atrás de


uma mesa de madeira clara, com um notebook aberto e alguns papéis espalhados ao lado. Ele usa os
óculos e uma camisa preta listrada, que cai muito bem em seus braços bem torneados.
Olho para a área acoplada à construção principal da casa e pergunto-me como não a percebi
antes.

Noto seus olhos seguirem o caminho do meu rosto para o meu corpo, até chegarem em minhas
mãos, sentindo minha pele formigar onde ele passa com os olhos.

— Suponho que você seja da malharia do seu Reinaldo? — ele diz com os olhos fixos nas
camisas em minha mão.

Em um rompante, ele sobe o olhar para o meu rosto, e gaguejo, com a voz fina igual de uma
galinha:

— Si-sim, senhor!

Ele afasta a cadeira para trás. Levanta, tira os óculos e caminha em minha direção, enquanto
mentalizo nervosamente: Não, não. O senhor pode ficar aí mesmo...

Tão logo, ele está em minha frente, enquanto tento me lembrar de como respirar.

De perto, dá para ver melhor o azul-cobalto em seus olhos, bonito e hipnotizante. Isso é razão
suficiente para estar com a língua travada por não conseguir desviar o olhar e mesmo assim ficar
emudecida, com o cérebro desoxigenado.

— Essas são as camisas? — Ele olha para o lado rapidamente, então começo a raciocinar
direito.

— Aham — digo em um ímpeto, lançando as capas das camisas contra seu peito de forma
brusca.

Ele olha para baixo, em direção à minha mão, que segura o cabide das capas, e ele
tranquilamente o toma para si, me deixando um pouco mais aliviada, por eu já ter tecnicamente
completado o serviço.

Preparo-me para girar o calcanhar, olhando para o caminho de volta, mas ele se aproxima
mais ainda.

— Ontem, no fim da tarde... Por favor, me desculpe se eu a assustei.

Torno a fitá-lo e engulo em seco quando dou de cara com os dois olhões azuis me assistindo
com complacência.

— Tu-tudo bem, senhor — gaguejo.

Ele continua me fitando, como se eu fosse alguém famoso, e tenho dificuldade em encará-lo.
Ele franze o cenho e parece receoso em perguntar:

— Aliás, qual é o seu problema com corridas? — Ele aperta os lábios e me pergunto se
alguém já me olhou assim antes. No entanto, apenas elaboro uma resposta ridícula, para sair mais
rápido dessa casa.

— Perdão, senhor... Eu estou... — Ai, minha Nossa Senhora! Por que de repente eu estou
dando satisfação para um estranho? — Eu tenho corrido nesses últimos tempos...

— É uma atleta, então? — ele diz, e quase engasgo com saliva, querendo rir.

— Só se for de levantamento de garfo. — Olho para o lado, sorrindo, pensando alto.

Minha risada morre quando noto que o homem em minha frente ainda está com os olhos sobre
mim, como se não tivesse ouvido o que acabei de falar. No entanto, ele abre um meio-sorriso,
enfiando as mãos nos bolsos da calça de linho bege.

— Levantamento de garfo? Parece-me um bom exercício.

— Eu tenho que ir — aviso, quase gaguejando pela enésima vez, dando um passo para trás.

Ele toca meu braço.

— Está cedo. Aliás, qual é o seu nome?

Ai, ai. Isso não está me cheirando bem. Por que esse homem bonitão está querendo saber meu
nome? Lá no Tocantins, minhas tias sempre diziam que quando a esmola é grande, o santo tem sempre
que desconfiar.

No entanto, não me recuso a respondê-lo educadamente.

— É Camille, senhor.

— Bonito nome, Camille.

— Obrigada! — agradeço, sem jeito.

— O meu nome é Gabriel... Gabriel Átila.

— Nome legal — digo, tentando retribuir a gentileza de seu elogio.

— Você quer se sentar? Quer comer alguma coisa? Tomar algo... Posso cozinhar algo...

— Não, não, senhor. Não quero o incomodar...

— Não seria incômodo algum.


Oh, céus! Por que ele está tornado isso difícil?, penso, mordendo o lado de dentro da
bochecha.

— De qualquer forma, eu tenho que trabalhar — digo, apontando o dedo em riste para trás,
recuando um passo.

Ele suspira — e, caramba, até o suspiro desse cara é bonito — e diz em resignação:

— Tudo bem, Camille.

Glória!

— Tchau — falo meio sem jeito, sem saber o que dizer.

Ele me responde, levantando a mão no ar:

— Tchau. — Giro meus calcanhares e tenho a estranha impressão de ouvi-lo dizer em um tom
mais baixo: — Até amanhã.

Enquanto caminho para fora da casa, tenho um estranho pressentimento de que colocarei meus
pés novamente nesse lugar. E, sinceramente, não sei se trata-se de um pressentimento bom ou ruim.
04 | GABRIEL ÁTILA

Camille

— Onde você estava?

Quando volto à malharia, sou recepcionada por Manu, que está ao lado do bebedouro, no
canto, perto da única janela do corredor.

— Fazendo entrega. — Pego um copo descartável e o encho d'água.

Ela bufa.

— Que safado! Eu tinha razão! Seu Reinaldo te explorará e te fará de entregadora pelo resto
da sua vida — ela exagera.

— Desde que ele não me demita...

— Ele te ameaçou? — Ela abre a boca, indignada.

— Não explicitamente, no entanto, deu a entender.

— Que safado! Quanta mesquinharia em uma só pessoa! — ela pensa alto, olhando para a
janela. — Mas, e aí? Onde que você foi fazer entrega hoje? — Ela sorri, mudando de assunto. —
Alguma casa de um ricaço bonitão outra vez?

Penso se digo agora ou depois do expediente.

— Sim.

— Sim? Isso lá é resposta? — Ela arqueia uma sobrancelha.

— Depois eu te conto...

— Como assim? Tem alguma coisa para me contar? Ah, não! Você sabe que eu sou curiosa,
não vou aguentar sentar naquela cadeira dura de novo pensando que você tem um babado para me
contar. Desebumcha, mulher!

Inspiro fundo, olhando para os lados, sem saída. O jeito vai ser contar logo.

— Sabe o cara de ontem?

Ela leva a mão à boca.


— Nããaaao... Aquele que tocou seu rosto?! — ela pergunta, desacreditada.

— Esse mesmo. Era ele. Eu fui fazer entrega novamente na casa dele. — Franzo o cenho,
enquanto sinto os pensamentos de Manuela acelerarem. — Ele até me pediu desculpa...

— Você é a nova presa! — ela conclui, pensando alto. Eu levo a água aos meus lábios. — Ele
flertou com você? Tentou te beijar? Vocês se beijaram? Ele apertou sua bunda?

Quase engasgo com a água.

— Ele só me pediu desculpas, Manu. — Recomponho-me, tossindo, sem jeito, desviando dos
comentários sem cabimento.

— Oh, Camille! — Ela inspira fundo, ao passo que conspira algo em sua mente, coisa que ela
sabe fazer com maestria. — Eu não preciso ter uma bola de cristal para saber que esse homem queria
te ver de novo.

— Como? — pergunto, refletindo. — Você acha que ele pediu as camisas com a intenção...
Não... impossível — continuo, pensando alto. Como ele saberia que seria eu que entregaria
novamente?

— Claro que sim, boba! Que rico fica remendando roupas um dia atrás do outro? E, outra,
esses homens de hoje estão todos obcecados pela caça e, provavelmente, talvez ele tenha se
interessado pela entregadora da malharia, depois que você saiu correndo igual um veado escapando
de um lobo faminto...

Pisco os olhos para minha amiga, e em seguida explodo em uma gargalhada, tomando cuidado
para não soar muito alto e o seu Reinaldo acabar nos pegando futricando no horário de expediente.

— O que foi? — Ela cruza os braços, com o nariz em pé. — Você está rindo, mas depois vai
ver que eu tenho razão de novo. Pode esperar.

— Depois eu que sou a ingênua. Eu acho que é você que está assistindo a muitos filmes de
romance — digo entre risos.

Ela arqueia uma sobrancelha.

— Mas você acredita que o homem da igreja que você nem viu o rosto é o amor da sua vida?
— replica. — Oh, garota! Eu, sinceramente, te acho muito confusa.

Inspiro fundo e não tento explicar o inexplicável.

— Eu posso ser inexperiente com o amor, mas de uma coisa eu sei: não é riqueza e beleza
que une uma pessoa à outra, mas sim conexão — limito-me a dizer.

Bebo o líquido em meu copo e o descarto na lixeira ao lado, acenando para minha colega e
caminhando em direção à sala de costura, antes que alguém note nossa falta.

— Espera aí, garota! Como você sabe dessas coisas se beijou na boca uma única vez na
vida? — Ouço sua voz indignada atrás de mim. — Aliás, qual é o nome dele?

Procuro recobrar em minha memória, antes de responder.

— Gabriel Átila...

— Gabriel Átila? — Ela me alcança e fica reflexiva.

— O que foi? Conhece alguém com esse nome?

— Não sei... — Ela inclina a cabeça para o lado. — Não me parece estranho esse nome. No
entanto, não consigo me lembrar de ninguém.

— Talvez seja um nome comum aqui em Curitiba.

— É, talvez! — ela responde, ainda reflexiva.

— Mudando de assunto, Manu. Você está sabendo da seleção de estilistas que vai ter nesse
próximo fim de semana no shopping? Nós poderíamos nos inscrever. Eu poderia ajudar com suas
produções e você com as minhas...

Acordo bem cedinho, e como prometido, Lúcia prepara o café da manhã pela segunda vez na
semana, me fazendo uma enteada orgulhosa — mesmo que suas torradas estejam literalmente torradas
nas bordas, se assemelhando à textura de um carvão. Mas isso é algo que se melhora com o tempo e
prática.

Fico boa parte do café da manhã pensando no sonho que tive na noite passada. O homem
misterioso do confessionário veio me visitar em minha mente novamente, em uma camisa azul-
marinho, como daquela vez, no entanto, apesar da claridade em meu sonho, de alguma forma eu não
podia enxergar seu rosto. Ele tentava dizer seu nome, mas eu não conseguia escutar.
— Bom dia, Camille! — Quase dou um passo para trás quando o seu Reinaldo me saúda de
manhã pela primeira vez nos nove meses que trabalho nesta malharia. Normalmente, ele apenas nos
recepciona com uns olhares desgostosos, como se fosse um martírio ter que olhar para nossos rostos
logo de manhã, no entanto, agora, eu até posso enxergar um pequeno sorriso no canto dos lábios dele,
ou será impressão minha?

— Bom dia, seu Reinaldo — cumprimento-o de volta, um pouco mais baixo.

Ele retira algo debaixo do balcão e destrói toda a camaradagem do seu primeiro "bom dia"
direcionado a mim.

— Você já tem entrega hoje pela manhã. Já começou o dia bem. — Ele me mostra seus dentes
amarelados abertamente, sorrindo como se isso fosse realmente muito empolgante para mim.

— Que maravilha! — digo, forçando um sorrisinho a contragosto.

— Está feliz? — Ele sorri de volta, fazendo desse momento a coisa mais bizarra da minha
semana.

— Iupi! Nada me deixa mais feliz que uma entrega — exclamo, sorrindo.

— Muito bom, garota! Assim é que se fala — ele diz, como se me motivasse.

Quando foi que o seu Reinaldo virou um coach?

Apenas pego as capas pretas em cima do balcão.

— Onde está o endereço? — indago, confusa.

— Não precisa, menina. Você sabe — seu Reinaldo responde todo feliz.

— Sei?!

— É o mesmo endereço de ontem...

— Mesmo endereço de ontem? — repito.

— Sim, o mesmo endereço do filho mais velho dos Átila Cordeiro... — ele pensa alto, como
se eu não estivesse ali. — Se ele continuar mandando suas roupas para a malharia, acho que poderei
trocar de carro ainda no fim desse ano.

De repente, penso no que Manuela me disse e me pego questionando se ela teria razão. E se
esse... Claro que não, Camille! Não seja tola!

No entanto, uma coisa eu não posso ignorar: sinto que há algo de muito estranho nisso. Mas o
que será?

— Ah, quase me esqueci, garota! — seu Reinaldo diz à minha frente. — Depois dessa
entrega, você está livre. Não precisa vir mais à malharia.

— Sério? — pergunto, desacreditada.

— Sim. Vá, antes que eu mude de ideia.

— Está bem. Está bem. Já estou indo — digo, não me contendo de felicidade. Um dia livre?
Oh, céus! Eu passarei a tarde toda costurando e dando vida às minhas ideias para a seleção no
próximo fim de semana. Mas, agora... terei que voltar à mansão 503.
05 | TERCEIRA ENTREGA

Camille

— Olá! Sou eu de novo. Da malharia do seu Reinaldo... — digo sem jeito, na soleira da porta
da casa, fitando a senhora loira, depois dela abrir a porta para mim.

— Entre! Seu Gabriel está a esperando — ela diz, inexpressível, e é claro que não levo para
o lado pessoal. Apesar da senhora não ter expressão alguma no rosto, ela parece ser até mais
simpática que o seu Reinaldo.

Caminho para dentro da sala, um pouco perdida. Não importa quantas vezes eu apareça aqui,
sempre acharei essa sala exageradamente grande.

— Ele está no escritório. — A voz atrás de mim avisa. — Vou acompanhá-la até lá. — A
senhora se coloca em minha frente, e eu agradeço mentalmente por ela não me fazer adivinhar onde
fica o escritório.

Seguimos pelo andar de baixo até chegar à frente de uma porta de carvalho, assim como as
demais. A senhora ao meu lado acena com a cabeça para a porta e diz:

— Pode entrar.

Fico meio receosa, mas aquiesço.

— Ok. Obrigada!

Empurro a maçaneta para baixo e adentro a sala rodeada de enormes estantes de livros.
Caramba! Quantos livros! Nunca havia visto tanto papel reunido em um só lugar!

Será que a biblioteca de uma universidade também é assim?, pergunto-me, curiosa, pois
provavelmente nunca colocarei meus pés em uma faculdade, já que não preciso de um diploma de
nível superior para desenhar e costurar modelos de roupas. Até que existe faculdade de Moda, mas
isso é algo muito distante para a condição de minha família. Não somos pobres, no entanto, um curso
de moda não cabe em nosso orçamento, e desde cedo compreendo isso, por isso apreendi a costurar
sozinha — errando, tentando de novo e, por fim, aprendendo.

Passo meus olhos sobre os títulos dos livros e constato que a maioria deles carregam nomes
de difícil pronúncia, mas reconheço alguns: Immanuel Kant, Frederick Winslow Taylor, Henry Ford,
entre outros. Não me surpreende o bonitão ser um empresário, penso ao me lembrar dos livros de
Administração de meu pai.

Sempre foi o sonho do meu pai que eu me formasse em Direito e caminhasse para o serviço
público, assim como ele, um técnico previdenciário. No entanto, nunca me encheu os olhos essa
coisa de ir por qualquer caminho que não sejam desenhos e tecidos...

— Você chegou! — A voz grave atrás de mim me assusta, elevando as batidas do meu
coração, me fazendo virar o rosto automaticamente para trás.

Lá está ele, com esses olhos intensos, encostado em uma das madeiras da estante, com um
pequeno livreto nas mãos. Ele usa uma camisa branca e calças grafite, que combinam muito bem com
todo o resto.

Putz! Por que esse homem insiste em assustar?!, pergunto, ainda com dificuldade para
regularizar as batidas do coração dentro do peito.

Ele se aproxima, fechando o que parece ser uma espécie de um "pão diário", e para em minha
frente.

— Seja bem-vinda, senhorita Camille!

Meu cérebro mal consegue raciocinar direito. Me sinto muito idiota por estar sendo
intimidada por seu rosto másculo e sexy e todos os músculos bem definidos. Não há razão para eu
ficar assim, no entanto, ele contribui com essas piscinas nos olhos, tão focadas em minha direção.

— Bom dia, seu Átila! — digo formalmente, tratando-o pelo seu sobrenome, que eu me
lembro. — Suas camisas!

Levanto as capas em minhas mãos, as oferecendo a ele apressadamente.

Tento fazer isso o mais rápido possível, no entanto, ele me olha calmamente, como se tivesse
o poder de parar tudo em sua volta, menos o tremor em minhas mãos. Ele desce o olhar para meus
dedos e calmamente pega o cabide para ele, fazendo com que nossas mãos se esbarrem
momentaneamente, o suficiente para eu estremecer por dentro, enquanto ele continua com o olhar
compenetrado e bisbilhoteiro sobre mim.

— Me chame de Gabriel. É o meu primeiro nome. Gabriel.

Assinto roboticamente.

— Tudo bem, seu Gabriel.


— Sem o "seu", por favor.

Engulo em seco quando ele diz o "por favor".

O que eu digo agora? Me encontro perdida, enquanto ele não pega leve com os olhares
curiosos. Eu me sinto um... objeto sendo observado meticulosamente por ele.

— Obrigada pela preferência. Tenha um bom dia!

Abaixo a cabeça e dou um passo para o lado. Ele parece fazer o mesmo, parando à minha
frente.

Ergo o olhar lentamente e minha garganta se comprime quando o vejo mais próximo do que
antes.

Ele sacode levemente a cabeça, parecendo reprovar sua própria ação.

— Desculpe — diz com a voz macia. — Por favor... Fique. Podemos conversar. Você já
tomou café?

Por que, de repente, algo em mim se compadece por ele aparentar ser um homem carente
agora? Isso não combina com sua postura de ombros abertos e confiantes, mas ele é persuasivo
mesmo assim, muito persuasivo, com essa voz sedosa.

— Hãmm... Eu já tomei café... — Quando pronuncio a palavra "café", meu estômago revira e
faz um barulho constrangedoramente alto. Parece que as torradas queimadas que comi no café não
foram suficientes para forrar o estômago.

Ele mira minha barriga e tenho a sensação que a terra vai me engolir a qualquer momento com
tamanha vergonha.

— Adoraria ficar, mas tenho que trabalhar. — Sou rápida em dar outra desculpa.

Ele franze o cenho, deslizando as mãos para os bolsos.

— Estranho! — diz, pensativo. — Garantiram-me que você estaria livre o resto do dia.

Ok, como ele sabe disso?

— Eu mesmo fiz essa observação!

— Como?

Ele inspira fundo e diz em tom de confissão:


— Eu sabia que você provavelmente não teria tempo para tomar um café, então pedi ao seu
chefe para que te liberasse...

Quê?

Não sei com o que me surpreendo mais! Se é o cara estar interessado em uma conversa
comigo ou seu Reinaldo ter me liberado com um simples pedido de um cliente! Aliás, eu já havia
achado muito estranho aquele ser mesquinho ter me liberado tão cedo.

— Ele a liberou ou não?

Coço o topo de minha cabeça.

— Ah, sim! Agora me lembrei. Realmente ele havia me liberado.

O canto de sua boca se repuxa em um pequeno sorriso.

— Se não tem aonde ir agora... — Ele dá um passo à frente e dou outro nervosamente para
trás, enquanto ele relembra o que eu disse segundos antes. — E você disse que "adoraria ficar",
então acho que podemos... — Ele avança novamente em minha direção, e eu cambaleio, recuando
mais uma vez, enquanto Gabriel completa: — Passar a manhã conversando.

Como? Isso arruinará todos os meus planos de ficar em casa costurando. Meu cérebro entra
em colapso por um segundo e tropeço em meu próprio tornozelo quando ele dá mais um passo. Caio
para trás, em uma cadeira que, felizmente, é certeira em aparar minha bunda. Resfolego, apertando os
braços da cadeira, agradecendo por isso não ter sido pior, como ter caído no chão.

Olho para frente e não dou mais de cara com os olhos do homem que responde por Gabriel
Átila, mas sim com sua calça, mais especificamente com sua parte... sua bagagem dentro do tecido
grafite. Engulo em seco.

Minhas bochechas provavelmente estão em combustão, e fico no limbo de tornar a olhar os


seus olhos intimidantes ou continuar com os olhos fixos naquilo. Então resolvo virar o rosto para o
lado, disfarçando minha vergonha.

Sinto o homem dando a volta na mesa atrás de mim e sentando na cadeira, a qual parece ser
reservada ao dono da casa.

— Me desculpe por tudo isso, senhorita Camille. Eu não queria, sabe... assustá-la mais uma
vez.

Ok! A que exatamente ele está se referindo?


— Espero que essa cadeira esteja confortável para a senhorita... — Aperto os olhos, ainda de
costas para ele. — Eu vou pedir para que tragam algo, assim ficamos mais à vontade... — Sinto-o
pegar algo na mesa. — Se a senhorita girar a cadeira para frente, será mais agradável para nós dois.

Mordo o lábio inferior, apertando ainda mais os olhos, e recomponho-me rapidamente,


impulsionando a cadeira para a outra direção. Na direção de sua figura, que segura um telefone e
requisita para algum de seus funcionários um café da manhã especial.

Ele desliga e coloca de volta o telefone no gancho, dando-me visão de um homem sério e
imponente, o que ao mesmo tempo me faz questionar o porquê de ele estar tão interessado em
conversar comigo.

Ele abre um sorriso de canto de boca, unindo as mãos.

— Então, senhorita Camille... Há quanto tempo você trabalha como entregadora?

— Costureira! — corrijo-o na hora.

Pisco os olhos e percebo que não estou respirando. Solto o ar.

— Perdão. Eu sou uma costureira na malharia do seu Reinaldo — explico melhor. — Seu
Reinaldo pediu para que eu viesse...

— Então você não é uma entregadora?! — ele suspira e tenho a sensação de que está
encenando algo. Claro, apenas tenho a impressão, já que minha mente está bem confusa para poder
analisar algo com clareza. — É o que você sempre quis fazer?

— O quê?

— Costurar.

— Ah, sim! Sim, senhor. Sempre foi o meu sonho. Na verdade, é o que eu tenho almejado
com todas as minhas forças, continuar nisso, para quem sabe, no futuro próximo, me tornar uma
estilista profissional — digo timidamente, gesticulando excessivamente com as mãos.... — suspiro
fundo, confessando: — É a minha vida.

Um silêncio se perdura na sala por um momento, mas não por muito tempo.

— Gabriel, senhorita Camille. Apenas Gabriel.

— Ok... — Estico os lábios timidamente, e faço o que ele pede. — Gabriel.

Ele meneia cabeça levemente e abre um sorriso.


— Sabe, eu gosto disso. Desse brilho no olhar quando encontro alguém fazendo o que é
destinado a fazer. Nunca vi seus modelos de roupas, mas aposto que são cheios de vida.

Minha boca se abre automaticamente em um sorriso.

— Obrigada... — Hesito em completar: — Gabriel.

Ele continua me olhando e um clima estranho se engendra entre nós, e então, pensativa,
desvio o olhar dele para os livros.

— E você... — Mordo o lado de dentro da bochecha. — É um empresário?

— Na mosca.

Torno a fitá-lo e repito sua pergunta:

— É o que você sempre quis fazer?

Ele se apruma na cadeira, parecendo pensar na resposta.

— É o que sempre esteve ali para mim. — E explica melhor: — Eu tive que assumir algumas
responsabilidades na empresa da minha mãe junto ao meu irmão mais novo quando crescemos. Minha
mãe sempre foi empresária, e meu pai um jurista que transitou ao decorrer da carreira para o
parlamento.

— Você tem um irmão? — Seria tão bonitão quanto você?, penso, sorrindo internamente.

— Na verdade, dois. Um irmão e uma irmã.

— Sua irmã não quis se envolver com os negócios da família? — De repente, me vejo mais
interessada em saber da vida dele, já que deve ser bem mais interessante que a minha.

— Minha irmã é modelo. — Aposto minha lambreta que ela é tão bonita quanto ele. —
Giovanna não é do que tipo que é domada por qualquer tipo de obrigação familiar.

Alguém bate na porta e a senhora loira que me recebeu mais cedo adentra a sala com uma
bandeja farta nas mãos.

— Com licença, senhor.

Ela caminha até a sala e deixa a bandeja em cima da mesa, fazendo meu estômago revirar
com o cheiro e a aparência dos pães, frutas, suco, tortilhas de frutas vermelhas frescas e ovos
benedict.

— Obrigado, Rosa.
Ela assente gentilmente e logo faz o caminho de volta para a porta.

— Puxa vida! Quanta coisa gostosa! — Isso sai de minha boca automaticamente. Tomo
cuidado para que uma baba não escorra do canto de minha boca. Parece que a timidez diante de
Gabriel Átila está se desfazendo aos poucos.

— Fique à vontade, senhorita Camille — ele diz antes de eu provar do sabor de cada coisa
que está em cima da mesa, enquanto conversamos entre uma garfada e outra.

De longe, essa é minha melhor manhã de toda a semana.

Gabriel é um homem educado e encantador, e não é difícil eu me abrir para ele e falar de
minha família também. Em poucas horas, tenho aquela famosa sensação de que somos velhos amigos.

— Fique para o almoço — ele fala enquanto ríamos de uma de minhas piadas sem graça, que
aprendi no Tocantins.

— Infelizmente, não posso — respondo educadamente. — Eu sempre almoço com Donatella,


minha irmã mais nova, lembra? Aliás, já está na hora — digo, me assustando ao olhar o horário em
meu celular.

— Tudo bem. Podemos nos ver outra vez?

Meus olhos trombam com os seus e ele completa sem jeito:

— Esta casa, às vezes, é muito entediante.

— Claro, podemos marcar uma ida ao cinema ou até mesmo em um parque...

Ele franze o cenho.

— Será que não pode ser aqui de novo? — Não o compreendo muito bem no início, mas, em
seguida, ele confessa: — Não costumo sair muito daqui...

— Daqui onde? Desta casa?

Ele aperta os lábios e assente.

— Sim.

— Por quê? — Não entendo. — Você disse que trabalha para a empresa da sua mãe... —
Titubeio. — Você costuma sair para trabalhar, certo?

Ele balança a cabeça para o lado, em negativo.


— Não, exatamente. — Ele olha para o monitor da mesa na qual estávamos sentados e
continua: — A tecnologia tem sido um dos principais pilares da minha vida nestes últimos anos...

Era para eu já ter ido embora, no entanto, fico curiosa.

— Quando você diz que não costuma sair, é tipo...

— Nunca. — Ele é enfático. — Quase nunca eu saio desta casa.

Merda! O que quer dizer "nunca"?

— Por quê?

Encaro seus olhos, que ainda sustentam o meu olhar, e essa sensação de que tem algo de
errado me acomete novamente. Ele inspira fundo e quebra a tensão que se instaura.

— Podemos deixar essa conversa para nosso próximo encontro?

— Claro. — Deixo meu celular cair de minhas mãos, e rapidamente apanho-o do chão, me
levantando e me despedindo, ao passo que ele se levanta também, vindo em minha direção. — Tenha
um ótimo dia, seu... — Ele faz uma careta. — Quer dizer, Gabriel.

Ele estende a mão e eu a aperto educadamente.

— Desejo o mesmo, senhorita Camille — ele diz, olhando fixamente em meus olhos. Se
inclina para o lado e quase tenho uma síncope quando ele encosta os lábios em minha bochecha. —
Obrigado pela companhia.

Afasto-me sem jeito.

— Obrigada também. Sabe? — falo, rindo nervosamente, antes de sair pela porta. — Pelo
café da manhã, a conversa... — digo, ainda sem jeito com o beijo inesperado que ele deu em minha
bochecha.

— Eu mando mensagem — ele afirma, me fazendo ponderar se ter dado meu número a ele foi
uma boa ideia.

— Ok! — Aquiesço antes de topar na quina da porta e sair dali acenando copiosamente,
como se isso fosse afugentar a vergonha de meu rosto.

Nunca fui muito boa em captar problemas, mas não me parece normal um homem jovem, rico
e bonitão morar sozinho em uma casa que dá para abrigar metade da minha vizinhança, e mais ainda,
não sair dela. Algo me diz que há algo de errado com Gabriel, no entanto, algo me diz também que
ele é confiável. Para falar a verdade, é melhor deixar isso para lá. Todos nós temos nossos próprios
segredos, não é mesmo? Vai ver ele só queria mesmo alguém para conversar e talvez nunca mais
entre em contato. É melhor não pensar muito nisso, afinal, ainda tenho a tarde toda livre e
aproveitarei cada segundo dedicada à minha máquina de costura.
06 | TELEFONEMA

Camille

— Não seja ingênua, Camille. – Manu fala ao telefone às nove horas da noite enquanto eu limpava o
quartinho dos fundos, onde eu costuro em minhas horas vagas. – Você acha que esse homem quer
apenas conversar com você? Só como amiguinhos?... – ela pergunta, incrédula do outro lado da linha.
— Esse homem quer vuco-vuco com você, amiga. Afogar o ganso, entende? Descascar a mandioca,
rala e rola, tchaca-tchaca...

— Está bem, Manuela. Eu já entendi o que você quer dizer.

— Fico feliz. Aposto que ele é um desses homens que adoram sexo casual e ficam fantasiando com
as entregadoras...

— Não acho que o Gabriel tenha essa intenção. E outra, se ele quisesse isso, não passaria a manhã
toda conversando...

— Bobinha, está para nascer um ser-humano para tratar melhor uma pessoa do que um homem que
quer ficar com uma mulher pela primeira vez. Depois disso são outros quinhentos, a maioria não quer
nada com nada.

— Eu acho que você está viajando, Manu. Ele me pareceu ser uma pessoa carente, que gosta de
conversar.

— Carente? Você disse que o cara é bonitão e vive em uma mansão, e é carente? – Ela ri. – Posso
garantir a você que homem assim não sofre desse mal, amiga; ele deve dormir todo dia com uma
diferente.

— Manu, nem sempre as coisas se tratam apenas sobre sexo...

— Aliás, conseguiu uma foto dele? Eu estou curiosa para saber como ele é...

— Como vou conseguir uma foto dele, sua louca?


— Perfil do WhatsApp?

— Ele não me mandou mensagem; e também eu não perguntei o número dele.

— Claro que você não perguntou – ela suspira, e posso jurar que ela está revirando os olhos em
reprovação.

— Mas... – me lembro de algo.

— Mas?! – ela me incentiva a continuar.

— Eu acho que deve ter alguma coisa dele no Google. A família dele parece ser bem importante,
deve ter uma foto, com certeza.

— Claro! O Google. – Ela exclama. – Já estou até abrindo o notebook... Deixa eu ver... Gabriel
Átila, certo?

— Sim, certo.

— Você conseguiu lembrar do outro sobrenome dele?

— Cordeiro.

Enquanto Manu pesquisa, escuto ela pensar em voz alta:

— Eu ainda tenho a impressão de conheço esse nome de algum lugar... Família Átila Cordeiro...

Eu a espero do outro lado da linha, guardando os tubos linhas no armário ao lado da minha
mesinha de costura improvisada.

— Uau! Que benção de família! – Ela elogia ao telefone. – Eu sabia que havia ouvido falar desse
sobrenome! Mas é claro! O pai dele é Senador... Doutor Fernando Cordeiro. Isso é que dá não estar
por dentro da política... – Lembro-me que ele havia comentado algo sobre juristas e parlamento, e
começo a ligar os pontos. — E que espetáculo de mãe é essa, Camille? – Fico rindo e ouvindo as
reações de Manuela do outro lado da linha, curiosa com as fotos que ela está vendo. – O tal Gabriel
é o loiro?

— Não, ele tem cabelos escuros. Ele disse que tem um irmão...
— Ele é o mais gostoso da família então. Nossa senhora! Que homem! Espera um momento, eu vou
dar o zoom aqui... Misericórdia! Camille do céu! Você tem que ir conversar mais com esse homem
carente. Se não for, me avisa, que eu vou...

— Eu disse que ele era bonitão. – Digo sorrindo, tendo um pouco de diversão nesta noite fria.

— Sim, eu acreditei. Mas ele me surpreendeu de uma forma... Espera um momento...

— O quê?

— Estranho! – Escuto alguns clicks do outro lado da chamada e Manu diz: — Tem algumas matérias
que parecem estar indisponíveis... tratam-se dele, do Gabriel... Na verdade... Que estranho, há várias
delas... Mas nem o título aparece, como se tivessem sido removidas. Nunca havia visto algo assim no
Google.

— Podem ser matérias antigas que estão indisponíveis.

— Sim. Podem ser matérias antigas. – Ela diz, desencanando.

— Manu, eu vou ter que desligar aqui. Amanhã a gente se fala.

— Ok, baby! Esperarei ansiosamente pelo o dia de amanhã. Sonhe com os anjos. Quer dizer... com o
gostoso da mansão 503.

— Besta! – respondo, sorrindo.

— Boa noite, amiga!

— Boa noite, Manu.

Desligo o celular, inspirando fundo e termino de varrer os pedaços de tecidos no chão e, em


seguida, guardo os vestidos inacabados no armário. Amanhã à noite eu termino tudo, certeza.

Fecho a porta do quarto dos fundos e vou direto para o banheiro no segundo andar, tomando
uma ducha de água quente, relaxante. Hoje o dia bem louco e mal deu tempo para pensar nele. Mas
ele sempre estava lá, em meus pensamentos como naquele dia no escuro. Não sei ao certo quando
irei tirá-lo da minha mente, no entanto, acho que isso não acontecerá tão cedo.

Saio do banho, me visto e vou direto ao meu quarto que divido com Donatella, que, aliás, já
está com cabeça afundada nos livros do último ano, só que dormindo.

Tiro os livros debaixo de sua cabeça e puxo os cobertores para o seu corpo. Deve ter sido
um dia difícil, maninha. – Penso me lembrando de como era difícil os anos finais da escola e, em
seguida, apago as luzes e me enfio debaixo das cobertas em minha cama de solteiro.

Quando fecho meus olhos, e me aprumo no colchão, ouço um som do bip! e a luz do meu
celular ao lado se ascende automaticamente, tomando minha concentração.

Pego o aparelho em cima na mesinha ao lado e abro a mensagem do número desconhecido.

"Ainda está acordada? "

Leio silenciosamente, franzindo o cenho e me pergunto quem seria uma hora dessas.

Abro o perfil e quase engasgo com a saliva, embasbacada.

O homem terrivelmente bonitão aparece na foto, na beira de uma piscina, usando óculos
escuros.

Olho para o lado, conferindo se Donatella estava acordada, e agradeço por ela não estar
testemunhando minhas bochechas pegarem fogo.

O que eu respondo? Ai meu senhor!

Responda qualquer coisa, Camille. Não o deixe esperando. Vai parecer mal-educada.

"Ainda não" – me limito em responder.

Passo um bom momento olhando a tela e me pergunto se fui muito seca com minha resposta. E
de repente, uma foto aparece na página da conversa.
Abro rapidamente e tenho a impressão que não só minhas bochechas esquentarem dessa vez,
mas sim todo o meu corpo.

A foto dele parecia ter sido tirada segundos antes: encostado em um travesseiro, com um
sorriso muito lindo nos lábios. Se Manu visse essa foto, com certeza, enfartaria.

"Só queria agradecer pela companhia hoje pela manhã. Isso deixou meu dia mais feliz, senhorita
Camille! Eu espero vê-la mais vezes. "

Como é que se responde a isso?

Por nada? – não, não. Muito esnobe.

Obrigada também? – parece soar melhor.

Digito a mensagem e envio, e fico ansiosa pela resposta.

Um emoji de beijinho chega em minha tela, junto a uma mensagem de boa noite.

Caramba! Ele parece ser tão gentil!

Lembro-me do que Manu me falou sobre homens gentis e pergunto-me se aquilo é verdade.
No entanto, não levo ao pé da letra o que ela disse, já que não estou tão interessada em passar pela
cama de seu Gabriel... ou Gabriel. Mesmo que seja bonitão desse jeito. Então decido retribuir a
mensagem de boa noite cordialmente com uma carinha de bochechas vermelhas.

Desligo o celular e o abandono do lado da cama, respirando fundo.

Ufa! Definitivamente, o bonitão me deixa nervosa – penso sacudindo minha cabeça e


mudando de posição na cama.

Gabriel demorou alguns segundos em minha mente, no entanto, quando adormeci, era ele que es

pela primeira vez.


07 | TERCEIRA ENTREGA

Gabriel

Dias antes

Nada me parecia tão certo como visitar o padre Antônio naquela manhã. O dia havia
amanhecido chuvoso, não colaborando com minha garganta inflamada e a voz enrouquecida devido
ao banho de chuva que tomei no dia anterior no jardim de casa.

O padre e eu tínhamos essas visitas de meses em meses, no primeiro horário do dia de


preferência, em uma das raras vezes que eu via a luz do sol fora de minha propriedade, o que ajudava
a tranquilizar minha alma de alguma forma.

Os espectros do passado ainda me assombravam, e, de alguma maneira, o padre Antônio tem


sido um bom amigo nos últimos anos, me ajudando a entender melhor o que me rouba a paz.

Eu não sou um religioso ferrenho — se dissessem isso, estariam mentindo —, no entanto,


tenho achado em Deus a paz que não consigo achar em qualquer outro lugar ou pessoa. Falando
assim, até parece que sou um homem amargurado, assombrado pelos fantasmas do passado, buscando
redenção. Não é bem assim... Afinal, pela lógica, eu não tenho motivos para tal... Mas é que a vida
não somente dialoga com a lógica.

Eu só não sabia que aquela manhã se tornaria mais interessante quando saí da sala do padre e
parei dentro do confessionário para enviar urgentemente a folha de pagamento ao setor financeiro da
Átila Motor Company. Neste exato momento, uma jovem, chamada Camille, adentrou a pequena sala
do outro lado da parede, exalando todo o ambiente com seu perfume suave de jasmim.

Minha intenção no início era informar de que eu não era o padre Antônio, no entanto, em
poucos segundos, me vi entretido com a vida da garota, que me concedeu alguns minutos de diversão
confessando seus pecados, que pareciam terem sido os mais radicais que cometera em toda sua vida.

Pequei-me curioso para saber como era sua aparência, seu jeito de se mover, altura... Talvez
fosse tímida, desengonçada, sexy, no entanto, é certo que parecia ser uma pessoa criativa, instigante...
Ingênua, de certa forma, característica rara entre as pessoas que eu conheço.
— Uma queda de energia? — Olhei para a escuridão tomando todo o espaço ali e,
calmamente, me voltei para o corredor das dependências da igreja.

Um corpo pequeno esbarrou no meu, e, instintivamente, segurei a cintura em minha frente, lhe
dando a oportunidade de recuperar o equilíbrio. O cheiro de jasmim se tornou mais forte e
encorpado, levando-me a crer que se tratava de Camillle.

Estávamos perigosamente perto, enquanto eu sorvia seu cheiro inebriante, delicioso. Ali, com
minha mão na lateral de seu corpo, queria saber como era o rosto da garota à minha frente, e,
estranhamente, uma energia se alastrou em meu corpo quando senti a respiração ventilar a minha face
quando a inclinei para baixo. Porra! Por que de repente eu queria beijá-la? Tentei afugentar essa
ideia da minha mente, no entanto, como se estivéssemos atraídos feito ímãs, senti a maciez de seus
lábios tocar os meus, e, neste exato momento, tudo ao meu redor pareceu não importar mais.

Minhas mãos sentiram quase uma necessidade de tocá-la, e quando dei por mim estava
tateando sua pele com minha mão, subindo para sua nuca e libertando seus cabelos contidos em um
rabo de cavalo, preparando-me para enfiar minha língua em sua boca e provar mais do seu gosto.
Mas, merda, ela se afastou!

— Não, padre. É errado. — Ela resfolegou.

Padre?

— Senhorita... eu não sou padre — confessei, em uma tentativa de fazê-la retomar o beijo
outra vez.

— Então... — Sua voz saiu assustada, quando ela foi interrompida pelo toque do celular, que
parecia estar em seu bolso. Em poucos segundos, o rosto em minha frente se revelou timidamente
com o contato da luz fria do aparelho celular refletindo em sua face, e vi que se tratava de uma garota
de traços angelicais e lábios em forma de coração. Eu não sabia muito bem por que eu estava assim
por uma estranha, nunca havia me acontecido antes, mas me encantei de cara.

Ela desligou o aparelho e senti que ela iria escapar de mim.

— Fique mais um pouco... — Segurei seu braço levemente.

— Eu não posso — ela disse apressadamente, se desvencilhando de meu braço. Tudo


aconteceu rapidamente, até vê-la correndo em direção à luz ao lado, como se sua vida dependesse
disso, deixando-me para trás.

Porra! É isso. Eu irei deixá-la escapar? Que diabos de homem eu seria?!


No momento em que ela passou pela porta, tomei consciência da situação e algo em mim se
desesperou com a possibilidade de nunca mais vê-la, então disparei em seu encalço.

Quando cheguei ao salão principal da igreja, não a encontrei, e prossegui para o portão da
igreja.

Cheguei ao jardim de entrada, não encontrando ninguém além dos homens de preto tomando
café ao lado da igreja, que me esperavam prontamente sair do local.

— Aconteceu alguma coisa, senhor? — Estêvão, o chefe da segurança, perguntou,


provavelmente estranhando em me ver sair correndo da igreja.

— Você viu alguma garota sair daqui, Estêvão? — perguntei apressadamente, olhando para os
lados.

Ele parou para pensar e disse, apontando para o fim da avenida.

— Aquela garota naquela lambreta amarela acabou de sair daqui, senhor!

— Algum problema? — um dos funcionários de minha mãe perguntou.

— Não, não. Apenas descubram quem é ela.

Estêvão ordenou aos colegas de trabalho:

— Vocês! Entrem no carro agora.

E antes que eles partissem em um dos carros estacionados ali, completei a Estêvão:

— Eu quero saber tudo sobre essa garota.

— Sim, senhor. — Estêvão aquiesceu, sem questionar, antes de entrar no carro, e assentiu
para os outros dois seguranças que ficaram.

Soltei o ar abruptamente. Pousando as mãos na cintura e ainda observando a garota


desaparecer no final da avenida, me perguntei: quem é ela?
08 | ÁTILA

Gabriel

Meus pensamentos se voltam para o presente, mais especificamente para a mesa da cozinha,
em que eu estou fazendo minha refeição matinal.

Pego uma lasca de mamão e a devoro em poucos segundos, tomando mais do suco de laranja
e abandonando o café da manhã que Rosa preparou para mim como de costume, que, aliás, estava
saboroso como sempre.

Rosa é a mulher que sabe como ninguém dos meus gostos — até mesmo mais que a
controladora senhora Tereza Átila Cordeiro. Esta senhora a quem me refiro é minha mãe, que nunca
teve muito tempo para qualquer coisa que não envolvesse o nome de sua fábrica de automóveis —
herdada do meu avô, um italiano que veio ao Brasil nos anos 50 a negócios e se engraçou com a
brasileira mais linda que conheci em toda minha vida: minha falecida avó, Maria dos Anjos.

Vou direto à porta dos fundos, caminhando pelo gramado do jardim que rodeia minha
propriedade, em direção à academia, acompanhado da minha garrafa d'água.

Hoje está um dia lindo para caralho, cálido e fresco. Aproveitarei para pegar pesado com as
séries de levantamento de peso. Eu preciso descarregar a energia que se acumulou em meus ombros
na noite anterior. Sei que é de se esperar que eu já tenha me acostumado a levar a vida da forma que
eu levo, no entanto, ainda sinto por vezes os efeitos colaterais do isolamento.

— Bom dia, Carlos! — cumprimento o segurança perto do deque, que assente


respeitosamente.

— Bom dia, senhor!

Dou uma olhada rapidamente pelo jardim e, pelo menos, quatro dos oito seguranças estão por
aqui. Porra! Tenho que me livrar deles novamente! É provável que Camille apareça hoje à tarde, e
fico receoso de assustar a garota com a quantidade de homens de preto que ficam perambulando
pelos cantos desta casa.

De certa forma, não quero assustar a garota, e muito menos fazê-la ter uma ideia errada sobre
mim. Até palavrões estou evitando ultimamente. Eu preciso... eu preciso tocar aqueles lábios macios
outra vez. Eu preciso conseguir prová-los novamente, sentir aquela mesma corrente de energia que
aqueceu minhas veias, como eu nunca havia experimentado antes. Sinto que estou cada vez mais
obcecado por isso.

Adentro a academia de vidro ao lado da sauna e mergulho em um intenso treino com pesos,
cordas e saco de pancadas. A cada cinco pensamentos, três são sobre ela.

E se eu disser a verdade?

E se eu disser que sou eu o homem da igreja?

Porra! É melhor não pensar nisso agora, não quero correr o risco de assustá-la e afastá-la de
vez, caso ela não tenha sentido a mesma energia que eu senti beijando-a. Concentro-me em meu
treino e tento afugentar esses pensamentos de minha mente.

Ergo mais uma vez a barra com 30kg em cada lado, e repito pelo menos mais dez vezes. Em
seguida, jogo as anilhas no chão acolchoado em minha frente, quando meu celular toca em cima da
mesa de apoio.

— Fala! — atendo ofegante, sabendo que se trata de Gael, meu irmão mais novo e parceiro
de trabalho.

— Transando? — Ele caçoa do outro lado da linha.

Inspiro uma boa lufada de ar, restabelecendo a normalidade em minha respiração.

— Malhando — respondo, tomando um pouco da água na garrafa ali. — Algum problema?

Desde que Gael começou a trabalhar na fábrica, seus telefonemas ficaram mais constantes, e
posso imaginar que seja pela impetuosa pressão de dona Tereza Átila Cordeiro por perto. Mesmo eu
trabalhando à distância e assumindo a gerência de contratos e de cobrança, tive de provar muito à
minha progenitora que eu dava conta do recado, mesmo estando enclausurado em uma casa tediosa.
Para falar a verdade, ela até prefere assim. Se fosse por dona Tereza, eu já teria saído de Curitiba há
anos, e estaria residindo em uma dessas cidades pequenas, perto dos alpes suíços.

— Problema? Não, não. Deus nos livre... Só quero que você dê uma olhada nas propostas
dos relatórios que irei entregar à dona Tereza Átila... Ela está ameaçando me demitir se eu não
trabalhar direito. — Sorrio silenciosamente, lembrando do jeito general de minha querida mãe. — E
depois que ela me pegou na cena do coito com a operária da fábrica, eu não sei se ela perdoará
um serviço mal feito.

— Você está certo. Ela não perdoará — concordo com o meu irmão.
— Sim, mas vai me ajudar ou não?

Pego minha garrafa e saio da academia.

— Manda o arquivo para o meu e-mail.

— Show! Valeu, brother!

— Por nada — digo, caminhando pela grama do jardim e me preparando para desligar.

— Mas fala a verdade aí! Você está com uma gata, não é? Conheço esse som de foda...

— Acho que você se enganou dessa vez. Eu me aposentei dessa vida de putaria... — digo
seriamente.

— Só acredito vendo... Aliás, eu tenho uma amiga para te apresentar. Faz o estilo daquela
sua ex, a Joana: gata, alta, com belas curvas e inteligente. Eu estou tentando conseguir uma
chance com a amiga dela...

— Não estou interessado...

— Você vai gostar, ela é um pitelzinho, cara.

— É que não vai rolar mesmo, Gael...

Ele me interrompe:

— Espera aí. Quem é a mulher que está aí com você?

— Não tem mulher alguma aqui, Gael — respondo seriamente, olhando para os marmanjos de
preto no jardim.

Gael ignora o que eu disse e continua:

— Caramba! Eu quero conhecê-la. Pois para conseguir exclusividade com você, meu
amigo... é se de aplaudir de pé!

— Você está viajando. Não tem mulher alguma... E outra, acho bom você parar de pegar as
operárias da fábrica. Nossa mãe está velha e uma hora teremos que assumir a empresa de vez, sem as
intervenções dela. Acho bom que se torne mais responsável até lá... Nosso tempo de rebeldia já
passou, temos que levar com mais seriedade as coisas de nossa família. Sexo casual e putaria não
preenchem certas coisas.

— Perfeito, irmão! Use isso para você, que está velho. Eu ainda tenho muito o que
aproveitar. Até dona Tereza se aposentar, eu tomo jeito.
Inspiro fundo.

— Eu espero. Mande-me os relatórios agora. Vou dar uma olhada antes de iniciar meu
trabalho.

— Está bem. Obrigado, irmão! Até mais...

— Até.

Gael desliga e caminho para a sala, encontrando com Estêvão, meu amigo e secretário.

— Senhor, o cinema na sala de jogos está pronto.

Sorrio internamente com a boa notícia, imaginando que hoje eu terei um motivo mais concreto
para fazer a senhorita Camille ficar.

— Obrigado, Estêvão! Avise ao pessoal que desocupem a casa hoje, precisarei apenas de
Rosa.

— Tudo bem! — Ele assente e eu sigo para o meu escritório.


09 | FIQUE, POR FAVOR!

Camille

Se eu pensei que minha rotina voltaria a ser a mesma depois da conversa que tive naquele dia
pela manhã com aquele estranho, eu estava totalmente enganada.

As idas à casa do bonitão estão cada vez mais frequentes e, sempre que posso, invento uma
desculpa para escapulir dos seus convites tentadores para um chá nos arredores de sua mansão. Não
que ele seja desrespeitoso, muito pelo contrário, ele é gentil até demais.

A forma com que ele me envolveu com sua conversa durante a última vez que estive em sua
casa, confesso que me tentou a ficar um pouco mais, e, na verdade, há muitas coisas que eu quero
perguntar-lhe. No entanto, temo que ele possa acabar confundindo as coisas e que as ideias de Manu
sobre as intenções dele comecem a fazer sentido, de alguma forma. Então resolvo fugir toda vez que
seu Reinaldo me envia para lá.

Mas cá estou eu de novo, mais uma vez na casa de Gabriel Átila, desbravando novos
cômodos em que ainda não havia posto os pés.

Graças aos Céus, o clima em Curitiba está mais fresco e morno, fazendo desse dia um dos
melhores do mês. Posso usar um vestido mais soltinho e meus All Stars brancos sem medo de passar
por um lamaçal dos dias chuvosos. Além de ser começo de mês, dia que minha conta bancária dá
suspiros de alegria.

O seu Gabriel está assistindo filme na segunda sala depois do escritório, mentalizo as
palavras de Rosa, a governanta, indo de encontro à porta que ela me informou.

A porta está entreaberta, e como o volume da TV está alto, decido colocar minha cabeça para
o lado de dentro, já que batidas na porta podem ser inúteis. Sob meia-luz, vejo o que parece ser a
sala de TV da casa de seu Gabriel, que, modéstia parte, parece ser mais uma sala de cinema, só que
com menos cadeiras e mais confortável.

As poltronas de couros são largas e compridas, daquelas perfeitas para ficar com as pernas
para cima o dia inteiro; e a tela na parede, tão grande quanto a de um cinema. Deve ser por isso que
seu Gabriel não sai de casa. Até eu, se tivesse uma mansão dessa, não iria querer pôr minha cara na
rua nunca mais. Claro que estou exagerando e ainda quero saber a razão dessa esquisitice do bonitão
solitário. Mas como dizem por aí: “a curiosidade matou o gato”! E pondero que seja melhor conter
minha curiosidade antes que eu seja o gato em apuros neste ditado.

O som da TV é desligado e, no mesmo instante, encontro um rosto me encarando por cima de


uma das poltronas da primeira fileira. Seu Gabriel.

— Camille?! — ele pronuncia meu nome, me fazendo sentir de novo a estranha sensação de
que já somos íntimos. Em um rompante, ele se levanta, passando as mãos nos cabelos, e vem ao meu
encontro perto da porta. — Você está aí há muito tempo?

— Não. Acabei de chegar — respondo, sorrindo e levantando sua encomenda em minhas


mãos. — Sua entrega.

Ele pega a camisa de minha mão e agradece com aquele meio-sorriso que me deixa sem jeito.

— Obrigado!

Balanço meu corpo para trás, e como eu sei que ele nunca me deixa ir embora de imediato,
pergunto:

— Aliás, por que o senhor sempre pede para ajustar essas camisas? Tem tantas delas assim?

Como não ganho a resposta rapidamente, completo:

— E se tem muitas delas assim, não seria mais fácil reuni-las em um dia só e fazer um único
pedido? Assim o senhor economizaria a taxa de entrega...

Seu Gabriel joga a cabeça para trás, parecendo um pouco incomodado com o que eu disse.

— Senhor? — Ele inspira fundo e pergunta, calmamente.

Não é possível! Dentre todas as perguntas que fiz e a sugestão que dei, a única coisa que ele
ouviu foi a palavra "senhor"?!

Ele prossegue reclamando com a voz morosa, tranquila e sexy:

— Eu não sou tão velho assim, senhorita Camille.

Sinto-me culpada e vou tratando logo de me retratar, balançando as mãos no ar.

— Desculpe-me, seu Gabriel... Quer dizer, Gabriel. Não foi minha intenção... — Por mais
que ele me corrija, é meio que automático chamá-lo de "seu Gabriel", como forma de respeito.

— Tudo bem. — Ele pousa as mãos na cintura, suspirando e pensando em algo. — Se quiser,
pode continuar me chamando de "seu Gabriel", se assim você preferir. Mas não de senhor, por favor.
— Ele desmancha um sorriso, e eu o respondo prontamente:

— Claro. Não irá mais se repetir.

Ele assente e olha para trás, mais especificamente para o telão.

— Quer assistir a um filme?

Olho para o filme pausado, reconhecendo Adam Sandler em uma camisa estilo havaiana. Vejo
que o filme pausado se trata de uma das minhas comédias preferidas.

— Oh! Como se fosse a primeira vez? — exclamo, sorrindo comedidamente, escondendo


minha vontade de aceitar o convite. — Que legal! Eu adoraria, mas não posso — minto, já que o seu
Reinado me dispensou hoje novamente. — Eu combinei de bater perna no shopping com minha irmã
mais nova...

— Donatella?

Ele lembra?, penso, impressionada.

— Sim, com a Donatella. — Assinto.

Ele enfia as mãos nos bolsos e curva a coluna para frente, se aproximando do meu rosto, me
tirando a graça.

— Não irá demorar muito. — Seu rosto está tão próximo, que minhas narinas acabam
sorvendo um pouco do seu hálito mentolado, travando meu cérebro quando ele diz, outra vez
estudando meu rosto, que deve estar completamente drenado com sua aproximação: — Você citou o
cinema como uma das opções naquele dia no escritório... Pensei que você gostasse de cinema, então
fiz um para nossas conversas.

— Você fez um? — Bufo, disfarçando e quase gaguejando. — Claro que não, que mentira,
cara! — Dou um tapa no ar. — Impossível! Quem constrói um cinema da noite para o dia do zero? —
Olho para os lados. — Isso aqui deve ter levado tempo e dinheiro...

Ele sorri e diz com todo o molejo dele:

— Não foi construído do zero, já existia esse cômodo aqui, era uma sala de jogos. Eu só
mandei reformar depois que me disse que poderíamos nos encontrar em um cinema... — Não sei se
sinto inveja do dinheiro do bonitão ou compaixão por ele parecer tão solitário. Não custa ficar mais
um pouco, não é? — Não é um cinema de verdade, não há tantos telespectadores, mas a pipoca posso
garantir que tem o mesmo gosto amanteigado.
— Eu amo pipoca! — digo, dando algum crédito a ele. — Eu acho que posso ficar meia
horinha.

Ele abre um sorriso enorme, iluminando todo o restante de seu rosto e, em seguida, pega
minha mão, fazendo meu coração levar um susto.

— Prometo que não irá se arrepender.

Ele me conduz para as cadeiras da frente, encostando meu braço quente momentaneamente no
seu.

Sentamos nas poltronas centrais, bem em frente ao telão. E diferente do cinema, em que os
lugares são os menos privilegiados, a grande tela está alinhada perfeitamente ao chão, fazendo dos
lugares os melhores.

Ele me passa o balde de pipoca ao lado e o pego, com as mãos atrapalhadas.

— Obrigada.

Ele me retribui com o sorriso ridiculamente bonito. Oh, por que você continua sorrindo
assim para mim? Deixe de ser tão bonitão. Pesco uma pipoca no balde e a lanço em minha boca.
Ele aperta o play no pequeno controle remoto preto e coloca para iniciar o filme novamente.

Ele se apoia mais para o meu lado, fazendo nossos braços se encostarem. Coro
instantaneamente quando o pego me fitando de soslaio e afasto meu corpo para o lado da poltrona —
assim eu estarei mais segura até o fim do filme.

Apesar de ter assistido a esse filme incontáveis vezes na Sessão da Tarde, ainda rio e me
emociono com a falta de memória de Lucy, e, mais ainda, também me encanta o empenho de Henry
Roth em conquistá-la todos os dias para apenas estar ao seu lado. Faz-me pensar que,
independentemente de nossos defeitos e limitações, existe alguém neste mundo que é feito exatamente
para nós, e que esse alguém estará disposto a fazer de tudo só para nos manter ao seu lado.

Enquanto me emociono com o filme, por vezes sinto Gabriel ficar mais espaçoso, como se
estivesse invadindo o limite da sua poltrona para minha. Não sei quando foi exatamente, mas, ao final
do filme, entre uma fungada e outra, percebo que Gabriel meio que havia jogado os pés para a
cadeira ao lado e encostado a cabeça em meu ombro. Ele vira o rosto, mordendo o lábio inferior.

— Enganaram-me, me disseram que era uma comédia.

Limpo ligeiramente as lágrimas que deixei escapulir e pulo para fora da poltrona.
— Obrigada, seu Gabriel. Agora tenho que ir... — Ele se levanta em um ímpeto, se pondo em
minha frente.

— Fique para um lanche.

— Não posso. Minha irmã já deve estar me esperando. — Me apresso em sair de sua frente,
antes que ele me convença a ficar, com esses olhões hipnóticos.

— Quando podemos nos ver então de novo? — ele pergunta atrás de mim, enquanto caminho.
— Podemos marcar algo...

— Eu não sei, seu Gabriel. Eu vou participar de uma seleção neste fim de semana. Ainda não
sei se vou poder sair antes dela.

— Eu mando mensagem, então. Qualquer coisa, me avisa.

Oh, minha Nossa Senhora! Por que ele insiste tanto?!

Graças a Deus dou o último passo em direção à porta, e finalmente posso sair da casa,
quando trombo com o corpo de alguém!

Meu corpo solavanca para trás e ergo o olhar para ver de quem se trata. Um homem alto,
como seu Gabriel, de traços suaves e olhos tão azuis quanto os de Gabriel e com um terno azul-
marinho.

Ele pisca duas vezes, olhando em minha direção, e em seguida alterna o olhar para Gabriel.
Ele inclina a cabeça para o lado, fitando o rosto de Gabriel, que fica mais sério e duro por alguns
longos segundos, até o loiro explodir em uma gargalhada.

— Você deveria ver o seu rosto agora, irmão — ele diz ao homem logo atrás de mim, e posso
inferir que se trata do irmão mais novo de Gabriel, que Manu viu em uma foto no Google. — Não foi
você que jurou que havia se aposentado, mas agora... — Ele olha para mim com um olhar malicioso,
então fico incomodada. — Pelo visto, era da boca para fora. Você está mais on-line do que nunca,
sacana!

— Cala a boca, Gael! — Gabriel rosna.

Olho para o homem atrás de mim, que parece engolir o irmão com o olhar.

— O que foi? — O homem que responde por Gael torna a me fitar. — Ande logo, Gabriel!
Apresente-me a moça!

— Ela está de saída — Gabriel diz ríspido ao irmão.


— Por que todo esse mau humor? — o loiro pergunta, ressabiado.

Vejo-o sussurrar baixinho, que mal posso ouvir, no entanto, posso jurar que ouvi um: "não
estrague tudo, seu filho da mãe!".

— Que interessante. Deixou-me ainda mais curioso para saber quem é a moça. — Ele franze
o cenho, me oferecendo a mão. Sou pega de surpresa e não vejo alternativa a não ser apertar sua
mão, já que ele está bloqueando a passagem. — Prazer, Gael Átila.

Olho para Gabriel atrás de mim, que revira os olhos.

— Camille — digo.

— Quem é você, Camille? — Ele me olha no fundo dos olhos, como se eu fosse um objeto
estranho. E para ser sincera, isso está acontecendo muito comigo nesta casa.

Olho novamente para Gabriel, e parece que agora é ele que é vítima da insistência do irmão.

— Camille é uma amiga, Gael. Deixe-a em paz.

Amiga?! Seu Gabriel me considera tanto assim?!

Gael nos olha, procurando achar algo em nossas feições, e dispara em seguida:

— Amiga? — ele suspira. — Vou fingir que acredito, apesar de eu conhecer esse sacana
como a palma da minha mão. — Ele me fita novamente e posso jurar que minhas bochechas estão em
brasas. Ele desvia o olhar para os lados e franze o cenho. — O que aconteceu com a sala de jogos?

Gabriel dá de ombros.

— Não jogo mais bilhar.

— E transformou a sala de jogos em um cinema? — ele diz, estranhando algo. — Nem de


cinema você gosta! Prefere aqueles livros chatos que você tem no seu escritório...

— As pessoas mudam.

— Que seja. Mas como jogaremos bilhar agora?

Meu celular vibra no bolso e dou uma espiada na tela rapidamente, vendo que se trata de
Donatella, impaciente, por sinal.

— Com licença, eu tenho que ir — digo aos homens ao meu redor e dou um passo ao lado.
Porém Gael me segue, arrastando um passo para o lado, e me pergunto se isto é de família.
— Tão cedo, Camille?

— Ela tem um compromisso, Gael. Deixe de ser insistente. — Olha quem fala!

— Está bem. Vou deixar a garota ir. — Ele abre passagem.

Me preparo para dar um passo à frente quando ele bloqueia a passagem novamente, me
fazendo inspirar fundo.

— Mas antes... — Ele ergue o dedo em riste. — Vou ter que convidá-la para o churrasco que
vou fazer na beira da piscina de Gabriel amanhã.

— Churrasco? — o proprietário da mansão indaga. — Em meu jardim?

— Desculpe, senhor. Adoraria comparecer, mas amanhã eu trabalho.

Ele pensa um pouco e pergunta, ofendido:

— Está insinuando que eu não trabalho, Camille?

— Não, claro que não! — respondo rapidamente.

Ele sorri, provavelmente se divertindo da minha cara de pânico em possivelmente ter


ofendido alguém.

— O churrasco iniciará às sete. Está convidada. Se quiser vir com uma amiga, fique à
vontade. — Ele me lança uma piscadela e sai da minha frente.

— Obrigada! — Assinto respeitosamente e me despeço. — Tchau!

Olho pela última vez para Gabriel, que embrenha os dedos nos cabelos, e saio dali da mesma
forma que tenho feito nos últimos dias: às pressas.
10 | SEXTA-FEIRA À NOITE

Camille

Depois de um longo período no shopping com Donatella, atrás de novas rendas para os meus
vestidos, ainda passo boa parte da noite no quartinho dos fundos, ajustando alguns detalhes das peças
de minha coleção que irá ser apresentada aos jurados da seleção da marca de moda feminina Ortega.
Eu estou confiante de que fiz um bom trabalho, e se minha coleção de vestidos florais não for aceita,
sei que dei o meu melhor, e isso basta.

Um passo de cada vez, repito comigo mesma, como um mantra, para conseguir permanecer
firme em seguir meus sonhos.

Na manhã seguinte, já na malharia do seu Reinaldo, Manu insiste em me convencer a


acompanhá-la em um barzinho que inaugurou recentemente, perto da praça da Espanha — uma das
regiões mais badaladas de Curitiba.

— Eu não posso... — respondo sussurrando, tentando me esquivar do convite e aproveitando


para esticar meus braços no ar.

Botecos não são minha cara. Sempre fui do time série, cama quentinha e travesseiro. Mas
Manu nunca desiste de tentar me levar para um desses bares que ela vai aos finais de semana.

— Ah, não! Você nunca aceita meus convites, garota! Que tipo de amiga você é? — ela
indaga, acertando a linha na fenda da agulha.

— É que hoje realmente não posso, Manu. Amanhã será a seleção, lembra? Eu vou aproveitar
para dormir mais cedo...

— Já reparou que você sempre tem uma desculpa para tudo? É sério que vai ficar em casa em
plena sexta à noite? Vamos lá, vai ser divertido! Você dorme quando chegar do bar. — Ela endurece
o olhar, arqueando uma sobrancelha. — E outra, como espera encontrar o cara do confessionário se
você nem sai de casa? Pois imagino que ainda pense nele, não é mesmo?

— Todo esse sermão é apenas para me convencer a ir a um bar?

Ela inspira fundo.

— Você não vai mesmo, não é?


— Não... — respondo, e ela bufa. — Não ia. Mas...

— Mas...? — Ela me olha esperançosa.

— Já que você quer tanto... acho que posso abrir... posso abrir uma exceção. — Não
conseguirei dormir de qualquer forma, minha ansiedade não me deixará em paz tão cedo.

— É sério? Você vai mesmo?! — Ela abre a boca, desacreditada.

— Aham! — Sorrio.

— Oh, minha Nossa Senhora! Camille Silva irá ao barzinho pela primeira vez! — ela fala um
pouco mais alto, e eu aceno com a mão, pedindo silêncio, antes que as nossas colegas ao lado nos
denunciem para o seu Reinaldo.

Enquanto sorrimos discretamente, ela cochicha ao lado:

— Aposto que se convenceu porque te lembrei do homem da igreja, não é, safadinha?

Abro a boca, escandalizada.

— Que calúnia! Claro que não! — me defendo, faço uma pausa e confesso: — Tá. Talvez um
pouquinho.

Manu explode em uma risada e em seguida cobre a boca com a mão, me fazendo rir também.

Ela tem razão. Como eu acharei esse homem sem sair de casa?

Está certo que Curitiba é grande o suficiente para nunca mais nos cruzarmos nos próximos 50
anos, no entanto, ainda acredito em destino. Talvez nos esbarremos por aí e nos reconheceremos de
alguma forma. Ou talvez nunca mais o veja e, daqui a uns anos, ele se torne apenas uma vaga
lembrança em minha memória.

Depois de avisar à minha família que irei a um barzinho na praça da Espanha, provoco uma
reação de espanto em meu pai. Não negativa. É mais como: “o que está acontecendo com ela?”. Tia
Lúcia gosta e diz que estou ficando mais descolada. Donatella quer ir junto, mas, claro, ela acaba
ficando em casa, com seus livros do último ano.

O problema não é conseguir sair de casa, mas sim achar uma roupa apropriada para a
ocasião. Depois de vasculhar meu guarda-roupa inteiro, decido usar um dos meus vestidos guardados
na arara do meu pequeno ateliê improvisado no quartinho dos fundos. Opto por um vestido midi
vermelho, que costurei no mês passado, e acabo combinando-o com meus All Stars brancos, já que
não tenho o costume de usar salto alto.
— Manu, você não acha mais seguro ir de ônibus ou até mesmo pegar um táxi? Eu vim de
lambreta, se quiser, podemos ir nela também — digo, puxando a porta do Chevette azul 1975, que faz
um barulho esganiçado ao ser aberta.

O carro comprado por uma pechincha é simplesmente a paixão de Manu, mesmo que esteja
literalmente caindo aos pedaços e a deixando na mão diversas vezes.

Sento no tapete rosa que encobre todo o banco do carona e vejo Manu sentar ao meu lado, no
banco do motorista da lataria estacionada na garagem de sua casa.

— Não fale assim do meu bebê. Ele está ouvindo, ele tem sentimentos — ela diz, acariciando
o volante e se direcionando a mim em seguida: — Peça desculpas!

— O quê?

— Peça desculpas! — ela ordena novamente.

— Para o carro? Está louca?!

— Geralmente, ele não fica muito bem quando o insultam dessa forma, Camille.

— Mais um motivo então para nós irmos de táxi. Ou podemos ir de lambreta mesmo. — Temo
que possamos ficar no prego no meio do caminho.

— Para de besteira, Camille! Vamos em meu bebê e não se fala mais nisso! — ela fala, dando
partida. — Você é tão medrosa.

— Medrosa não é a palavra correta. Cautelosa — retifico.

— Ok, senhorita Cautela — ela debocha e diz um pouco mais alto, devido ao ruído do motor.
— Não se preocupe, eu o levei à oficina ontem e eles me garantiram que está tudo bem com o motor!

— Ok! Se você está falando... — digo em uma oitava mais alta.

Manuela nunca me ouve mesmo.

Antes de ela dar a ré e arrancar com tudo, Manu diz:

— Segure-se, senhorita Cautela, hoje você será levada para o mau caminho. Mas cuidado, só
faço uma ressalva: tente não gostar! — Ela me joga uma piscadela rápida e sorrio da minha amiga
sem juízo.

— Eu avisei — digo, saindo do carro para olhar o motor que parou, me colocando ao lado de
Manuela. Ela está compenetrada nas peças à sua frente, resmungando em tom choroso em uma das
ruelas que entrecorta o Batel.

— O mecânico havia me garantido... Ah, que mentiroso!

— Você tem o número dele? — pergunto.

Ela retira o celular do bolso.

— Tenho. Ele vai ter que dar um jeito. Ah, se vai! Esse mês eu usei quase todo meu salário
neste motor, ele tem de dar um jeito! — ela diz enquanto espera alguém do outro lado da linha
atender.

Permanecemos em silêncio por mais alguns segundos, ao passo que Manuela tenta completar
a ligação.

— Está sem sinal! — Ela abaixa o celular. — E agora, Camie?

— Sem sinal? Como assim? — indago, olhando meu celular e estranhando a falta de sinal em
uma região tão nobre.

Talvez a conexão seja apenas exclusiva aos ricos que moram nestas mansões, ou talvez o
problema seja mesmo com nossa operadora — o que é mais provável de ter acontecido.

— E agora, meu pai? Justo quando consigo arrancar essa garota de casa, me acontece isso! —
Manu continua resmungando, andando de um lado para o outro.

Guardo meu celular e penso em uma solução rápida.

— Primeiro, precisamos sair dessa rua o quanto antes. Está deserta — digo, olhando para os
lados. — Pegue sua bolsa no carro e o tranque. Vamos subir por ali até a avenida. Depois pegamos
um ônibus ou táxi.

— E meu bebê?
Olho para o Chevette azul ao lado.

— Vai ter que deixá-lo aí. Amanhã você volta com um mecânico para buscá-lo, de forma
mais segura.

— Mas...

— Cuida logo, Manuela! Antes que alguém apareça para nos fazer mal nesta rua deserta! —
peço, impaciente.

— Está bem. Está bem. Calma! Estou indo! — Ela levanta as mãos e retorna ao carro para
pegar suas coisas.

Ela trava o carro e seguimos pelo sentido contrário ao qual estávamos indo. Ainda nos
encontramos no Batel, e logo achamos uma avenida mais movimentada, quando saímos da região
mais residencial do bairro.

Enquanto passamos pela rua Carmelo Rangel, lembro-me de seu Gabriel. Sua casa fica em um
desses condomínios de luxo nesta região e me pergunto por que ele não encomendou mais camisas
hoje.

— Eu precisava tanto rebolar minha raba esta noite! — Manu pensa alto, me fazendo sorrir.

— Ainda podemos, assim que encontrarmos um táxi... — Enquanto digo isto, avisto uma moto
preta vindo em nossa direção. Até aí está tudo bem. Quando percebo que há dois homens montados
no veículo, uma energia ruim invade meu corpo, como se eu estivesse tendo um presságio.

Puxo o braço de Manuela para o lado, me enfiando atrás de um arbusto na calçada de uma das
mansões. Me abaixo e Manuela faz o mesmo.

— O que está acontecendo? — ela murmura.

— Shiii — peço a ela silêncio, enquanto espio por cima das folhagens. Vejo os homens
seguirem o caminho à direita e sumirem na próxima esquina.

— Ficou assustada assim por causa daqueles homens? — Manuela levanta, sorrindo.

Levanto-me, dando de ombros.

— Achei estranho. Melhor prevenir do que remediar.

— Calma! Você está exagerando, Camillle... — ela caçoa.

O sorriso de Manuela desaparece e, dessa vez, eu que sou puxada para o chão por ela. Ouço
a barulho do motor da motocicleta, e Manu choraminga ao meu lado.

— Ai, meu pai! Eu acho que vi uma arma. — Sua voz está trêmula, enquanto levanto a cabeça
sorrateiramente para confirmar que são os mesmos homens que acabaram de passar. E, realmente, o
homem mal-encarado da garupa está armado.

Continuamos de cócoras até eles sumirem novamente na outra esquina.

— E agora, amiga? Como vamos fazer para sair daqui? Esses caras parecem estar rondando
esta região... E se eles forem assaltantes? Ai, meu Deus! Eles vão me matar quando eu entregar esse
meu celular velho, vão pensar que estou escondendo um novo — ela diz a última parte quase
chorando.

— Calma, Manu. Vamos ficar aqui por um momento. — Tento me acalmar e pensar
racionalmente. — Vamos tentar avisar alguém pelo WhatsApp... talvez funcione agora... — digo,
tirando o celular e abrindo o aplicativo.

— Se não conseguimos fazer ligações, imagina mandar mensagens, Camille! A gente está
frita, isso sim! — Manu começa a se desesperar, não parecendo nada com a garota tagarela, que
passa o dia inteiro falando besteira na mesa de costura ao meu lado.

— Calma, Manuela. Calma! — falo, digitando uma mensagem para Donatella, pedindo para
que contate algum taxista, informando que estamos na rua Carmelo Rangel. No entanto, a mensagem
não é enviada devido à ausência de conexão. Droga!

Instintivamente, volto os olhos para a tela de mensagens não lidas e reparo uma em
específico. A de Seu Gabriel. A mensagem indica ter sido enviada no início da noite. Às 18h45.

Seu Gabriel me mandou me mensagem? Estranho, abrindo imediatamente. Com a correria nas
últimas horas, acabei não abrindo o aplicativo.

"No ponto ou malpassada?

P.S.: Estou te esperando. "

Ele havia mandado duas fotos: uma da carne ainda vermelha na grelha e a outra... dele.
Estonteantemente lindo em um avental preto de churrasqueiro. Poxa, por que ele tem que ser tão
gato?! Por alguma razão, começo a suar.

— Conseguiu, Camille?

— Hãm?! — Demoro a retornar à realidade. — Consegui o quê?


— Enviar mensagem?! Que cara é essa? Você está vermelha? — ela pergunta quando sinto
minhas bochechas esquentarem.

Desvio do assunto, gaguejando:

— A-a in-internet não está mesmo funcionando.

— E agora? Nós vamos ficar aqui? — Manu ainda está apavorada.

Tento achar uma solução, olhando por cima da folhagem novamente, encarando o enorme
muro do outro lado da rua. Aquele muro... Ah, céus! Claro! É o muro do condomínio do seu Gabriel.

— Ai, meu pai! E se esses homens voltarem e nos virem?!

Pego a mão de Manuela, olhando para os lados e a interrompendo:

— Escuta bem, Manu! Nós vamos atravessar essa rua e correr até a guarita daquele
condomínio! — Aponto para ela o muro cor de marfim.

— Por quê?

— Sem perguntas agora, amiga! No três, a gente corre e atravessa a rua.

— Está bem. — Ela aquiesce prontamente.

— Um...

— Três! — Manu corre antes da hora e saio correndo atrás dela, que tropeça nos saltos de
plataforma.

Quando chegamos à guarita, sorvo uma boa quantidade de ar e toco a campainha do porteiro.
Tudo acontece muito rápido, e pela expressão de estranhamento cravada no rosto do senhor de
cavanhaque e gravata azul, deu para perceber que Manu e eu ainda estamos com uma expressão
sobressaltada na face.

— Boa noite. — Sorrio, tentando parecer natural e não alterar a respiração.

— Sim...? — Ele enruga o cenho e diz: — Espera aí! Você não é a moça que entrega na casa
503?

— Ah, você me reconheceu? — Sorrio nervosamente. — É que eu fui convidada para um


churrasco...

— Camille, certo?
— Isso mesmo. — Aquiesço.

— Já recebi a notificação, pode entrar! — ele diz, destravando a porta para pedestres. Então
olho para Manu, que está sem entender nada, e peço para que ela me acompanhe.

— Mas espere um momento! — O homem de cavanhaque pede em um ímpeto, e eu estanco os


passos.

Engulo em seco e pergunto:

— Sim?

— De onde vocês surgiram? — Ele olha para os lados, e eu digo um pouco mais séria:

— Segredo.

— Segredo? — Ele pisca os olhos e depois completa, sorrindo nervosamente: — Oh, não é
da minha conta, não é mesmo? Boa noite, garotas.

— Boa noite! — respondemos em um uníssono.

Não sei bem o porquê, mas tive a impressão que deixei aquele senhor assustado. Talvez ele
estivesse dentro daquela cabine assistindo a um filme de terror sobrenatural, quem sabe. Mas o
importante é que Manu e eu conseguimos sair da rua e estamos livres de sermos assaltadas.

— Já pode me explicar essa história de churrasco, senhorita Camille — Manu amola.

— É uma longa história.

— Quem mora aqui que você conhece? — ela pergunta, olhando para os lados, boquiaberta,
assim como eu fiquei quando vim aqui pela primeira vez.

— Seu Gabriel.

Ela engasga com a saliva e diz, entre uma tossida e outra:

— Gabriel? Tipo, o Gabriel Átila Cordeiro?

— Uhum.

— Estamos indo para a casa dele? — Agora ela pergunta maravilhada.

— Eu acabei me esquecendo que ontem o irmão mais novo dele havia me convidado para um
churrasco. Mas eu não tinha levado a sério...

— Você tinha esse tempo todo um churrasco para ir na casa de um gato milionário e ia furar?!
Oh, céus! Você só pode ser de Marte, garota!

— Não foi bem o Gabriel que me convidou. Como eu disse, foi o irmão dele, o Gael. Se não
me engano, ele disse que eu poderia trazer uma amiga também. Acho que não se importam se nós
duas...

— Agora eu estou chateada com você. Você também poderia me trazer! Ai, meu pai! Que
desperdício de oportunidades! Isso para mim é irresponsabilidade social, Camille! Sua
irresponsável!

— De qualquer forma, Manu, a gente só vai entrar na casa dele, pedir um telefonema e avisar
alguém para vir nos buscar...

Ela começa a gargalhar, enquanto caminhamos pela calçada do condomínio.

— Você acha mesmo que eu deixarei você fazer isso?! Meu amor, nós saímos de casa para
nos divertir, e é isso o que iremos fazer! — ela diz decididamente, pegando minha mão e me
arrastando pelo condomínio adentro. — Vamos lá! Me diga qual é a casa do bonitão!

Churrasco, Manuela e homens bonitos? Lascou! Agora sim eu estou ferrada!

— O senhor Gabriel está a esperando no jardim com os amigos — diz Rosa à nossa frente.

— Amigos? Mais ou menos quantos? — Manu pergunta, interessada.

Quando Rosa vai responder, digo rápido:

— Não precisa dizer, Rosa! Você pode me informar a senha do Wi-Fi...

Manu me interrompe, perguntando à Rosa:

— Onde fica o jardim?

Ela aponta para a porta de vidro à esquerda da sala.

— Obrigada, Rosa. Estamos indo para lá — Manu diz enquanto pega minha mão e me puxa
em direção à vidraça que dá acesso ao jardim.

— O que pensa que você está fazendo? — resmungo baixinho.


— Eu que pergunto: o que você pensa que está fazendo? Vir nesse casão e fazer a desfeita de
não conhecer pessoalmente o anfitrião? Nada disso! Quem está na chuva é para se molhar!

Ela desliza a porta para o lado e nos coloca em cima do tapete gramado, o qual eu já havia
visitado.

Dali dá para ver a movimentação perto da piscina, no deque coberto, de onde reverbera uma
música de pagode e o cheiro delicioso de carne assando. De longe, reconheço o tal Gael. O loiro
sorridente está movimentando seus pés no ritmo da música, acompanhado na dança de uma linda
garota de traços orientais e cabelo estilo Chanel.

Procuro seu Gabriel e o encontro sentado em uma cadeira mais para o canto, com uma loira
muito bonita sentada em seu colo, enquanto sua mão está pousada nas costas dele.

Meus passos estancam e me recuso a seguir em frente.

Por algum motivo, algo em mim não se sente muito confortável em ver seu Gabriel tão íntimo
assim de uma mulher.

Ele tem namorada?

Oh, o que isso me importa?

— O que foi, Camille? — Manu pergunta, sorridente.

— Vamos voltar, Manu. Antes que eles notem nossa presença...

— Por quê? — ela diz, se embalando ao som do pagode.

— O seu Gabriel...

— OLHA LÁ! NÃO É A SUA AMIGA, GABRIEL?! — Me espanto quando uma voz parece
sair de algum tipo de alto-falante. É Gael. Com um microfone na mão.

Nesse exato momento a música para, e as atenções de todos ali se voltam para mim, inclusive
os olhos azuis cintilantes de seu Gabriel e os da loira exuberante em seu colo. Droga! Por que eu fui
inventar de sair de casa sexta-feira à noite?
11 | GIO

Camille

Fico paralisada quando o loiro convida-nos a aproximarmos do deque. Manu cochicha ao


meu lado:

— Ele é muito mais gostoso pessoalmente. — De quem ela está falando? — Não saia
correndo, pelo amor de Deus! Não me faça passar essa vergonha!

— Quem disse que eu vou sair correndo? — Ok! Meu plano inicial era sair de fininho, mas
como fomos notadas pelo loiro barulhento, não me parece uma ideia ruim sair apressadamente dali,
de modo vexatório.

— Garota, eu te conheço o suficiente para saber que você está pensando nisso. Nós não
vamos sair daqui, entendido? Eu não arredo o pé daqui antes daquele loiro saber que meu nome é
Manuela — ela resmunga entredentes, forçando um sorriso para as pessoas ali.

— CAMILLE! LEMBREI! É CAMILLE, NÃO É MESMO, GABRIEL? — ele pergunta ao


irmão, que parece incomodado com a voz saindo alta da caixa de som. — CHEGUE MAIS PERTO,
CAMILLE!

Manu, por sua vez, murmura ao meu lado:

— Por favor, eu nunca te pedi nada... Inspira fundo, prende a respiração e pensa na felicidade
da sua amiga depois de dar para esse loiro gostoso — ela sussurra e depois me puxa para frente,
dizendo para aquela gente, como se fosse íntima deles: — Ufa! Até que enfim conseguimos chegar,
pessoal!

Não sei se estou andando ou apenas flutuando quando sinto os olhares atentos de seu Gabriel
sobre mim, e escuto Manuela tomar conta da situação.

Alcançamos o piso de madeira do deque ao lado da piscina e da churrasqueira de tijolos


beges. Gael larga o microfone e vem até nós, sendo o primeiro a nos cumprimentar.

Enquanto vejo Manu se apresentar a Gael, observo de soslaio a loira alta saltar do colo de
seu Gabriel, que também se levanta e caminha em nossa direção.

Mantenho meus olhos em qualquer coisa que não seja o rosto do homem que está se
aproximando a passos firmes, e tento me concentrar na conversa de Manuela com Gael, me
certificando de que ela não está falando nenhuma grande asneira. No entanto, acabo me
desconcentrando com o bonitão parando à minha frente.

— Você veio! — Sua voz grave causa um efeito anestésico em meu cérebro quando ele segura
minha mão e beija minha bochecha demoradamente. Sua boca se afasta lentamente de minha pele,
fitando meus lábios por um instante, deixando meus ombros tensos.

Ele está tão perto, que posso sentir o aroma de seu hálito fresco, e, estranhamente, tenho a
impressão de que já senti algo tão bom por aí. Mas é claro que senti, nesta casa. Com ele.

Meus pensamentos fogem ao escutar a voz feminina sedosa.

— Quem é a moça, Gabriel? — A loira alta se aproxima com um olhar investigativo, não do
tipo intimidador, mas curioso.

— Oh, Giovanna! Não seja tão xereta — Gael zomba da mulher, que ergue a sobrancelha para
o loiro.

— Falou a personificação da inconveniência em pessoa! — ela replica.

— Doce como um limão... Que saudades eu estava de você, maninha! — Gael debocha.

Seu Gabriel revira os olhos em minha frente e rosna:

— Parem com isso! — Depois se direciona a mim: — Deixe-me apresentá-la à minha irmã,
Giovanna. Ela chegou da Itália ontem e agora veio me fazer esta visita.

Claro! A modelo. Seu Gabriel já havia a mencionado naquele dia no escritório, só não pensei
que ela fosse tão... espetacularmente bonita.

— Giovanna, esta é Camille! — ele diz à irmã, que abre um sorriso e me oferece a mão.
Aperto-a timidamente.

— Prazer. — Ela retribui com um sorriso e logo me afasto.

Olho para o lado e vejo Manu, que parece estar ansiosa por alguma coisa. Então a apresento.

— Essa é minha amiga, Manuela.

Seu Gabriel lhe estende a mão e tenho a impressão de que Manuela vai deixar escorrer a
baba do canto da boca a qualquer momento.

— Mas então... — Os olhos da irmã de seu Gabriel ainda estão sobre mim quando ela diz: —
Ainda não respondeu à minha pergunta, Gabriel. Quem é a garota? — a loira pergunta, cismando
comigo.

Seu Gabriel enfia as mãos nos bolsos, soltando o ar pelas narinas grosseiramente.

— Eu deveria ter proibido vocês de entrarem em minha casa hoje à noite — ele resmunga
para a irmã, arrependido.

Ela me olha depois, sorrindo, dizendo por fim:

— Entendi.

Entendeu o quê?

Seu Gabriel parece apressado em encerrar o assunto e pergunta, me direcionando o olhar:

— Estão com fome?

— Muita! — Escuto Manuela responder ao meu lado.

Seu Gabriel continua me olhando.

— Sim — respondo timidamente.

Ele se coloca ao meu lado e toca minhas costas, na intenção de me conduzir às cadeiras que
estão por ali, ao lado de Manuela. Sentamos nas cadeiras próximas à mesa e Gabriel atravessa o
deque para abanar o fogo dentro da churrasqueira.

Gael nos oferece bebidas alcoólicas de impressionáveis sabores, mas recuso educadamente,
já Manuela aceita prontamente uma cerveja amanteigada.

— Por favor, não fique bêbada — sussurro ao lado de Manu, que continua conversando com a
amiga da família, Sarah, a oriental de cabelos curtos que acompanhava Gael na dança quando
chegamos. Apesar de não frequentar os bares com Manu às sextas-feiras, sei de sua má fama com a
bebida, e temo que ela exagere nessa noite, já que mal chegamos e ela já está no quarto copo.

Enquanto Manu conversa sobre o clima com Sarah, tenho a impressão de que apenas a moça
de cabelos curtos me olha de maneira estranha, como se não aprovasse algo em mim. Porém tento
ignorar isso, já que pode ser coisa de minha cabeça, e peço para que Manu vá com calma com a
cerveja.

Gael religa o som e recobra o pagode que tocava antes de chegarmos, enquanto seu Gabriel
traz uma cesta de pães de alho para o nosso alcance na mesa de madeira à nossa frente e arrasta uma
cadeira para o lado, pegando um pedaço de pão de alho com as mãos.
— Prove. Esse é sensacional. — Ele leva o pão de alho à minha boca, me desafiando a
mordê-lo. Fico envergonhada, porém o faço, tampando a boca com a mão enquanto mastigo o pão
crocante por fora e cremoso por dentro. E caramba! É realmente maravilhoso!

Sou surpreendida quando seu Gabriel limpa o canto sujo de minha boca, e tenho a sensação
de que todas as pessoas ali, de alguma forma, estão atentas ao que estamos fazendo, me deixando
duplamente envergonhada.

A única que não nos observa é Manu, que se direciona para o lado da caixa de som,
mordendo uma linguiça no palitinho, que pegou em cima da mesa. Ela olha para Gael, dizendo algo
que o faz sorrir.

— Eu acho que Gael conquistou sua amiga — seu Gabriel comenta ao meu lado.

— Está enganado. Ela já veio conquistada. Ela é quem está o conquistando. — O pensamento
escapole de minha boca, fazendo seu Gabriel soltar uma risada tranquila e reanalisar a cena.

Em se tratando de Manuela, não existe qualquer paradigma que a impeça de tomar uma
atitude. E talvez seja isso que eu mais admire nela, apesar de eu não conseguir ser tão ousada como
minha amiga.

Ele abre um sorriso de canto, concordando.

— Olhando por essa perspectiva, acho que você tem razão.

Seu braço toca o meu ombro e estremeço no mesmo instante.

— Na verdade, estou bem surpreso que você esteja aqui — ele diz, baixinho.

Ai, meu pai! Ele pensou que eu não viria? Quer dizer que me excedi ao interpretar que aquele
convite era sério? Ai, minha Nossa Senhora! Que inconveniente eu sou!

— O convite não foi sério? Oh, desculpe-me, seu Gabriel. Eu pensei que poderia entrar... —
Me atrapalho.

Ele logo me tranquiliza com seu tom de voz mais grave e ao mesmo tempo macio, colocando
a sobra do pão de alho na cesta, em cima da mesa de madeira.

— Eu estou muito feliz que esteja aqui. Eu só pensei que você não apareceria. Está sempre
fugindo, então imaginei que eu nem mesmo receberia uma mensagem com desculpas inventadas de
última hora. — De certa forma, ele tem razão. Se o carro de Manuela não tivesse ficado no prego
aqui perto, nós já estaríamos bem longe daqui, em um bar nas redondezas da praça da Espanha.
Ele olha para os lados, suspirando, e depois fala, fitando meus olhos:

— Mas, de toda forma, eu não iria desistir.

Caramba! Assim de perto, percebo que ainda não me acostumei com sua beleza. Ele é tipo o
sol tinindo de Palmas em pleno meio-dia, que me deixa quente por dentro e me faz transpirar,
borbulhando os meus sentidos dentro da caixola.

Ele se inclina para frente, pega uma lata de cerveja e a abre.

— Desistir do quê? — Sai quase automaticamente.

Seu Gabriel abre a boca para falar, no entanto, Gael nos chama a atenção, desligando o som
novamente, e uma voz máscula irrompe atrás de nós, no jardim.

— Ah, por que desligou? Logo minha música preferida. — Um homem de pernas compridas e
cabelos escuros, que aparenta ter pouco mais de trinta anos, caminha pelo jardim, enquanto observo a
expressão de seu Gabriel ficar mais dura.

— Como vão, primos?

Ele chega ao deque e Gael logo o cumprimenta com um meio abraço.

O homem de cabelos escuros e olhos expressivos se vira para trás, parecendo procurar por
alguém no deque, e seus olhos param exatamente em seu Gabriel. A atmosfera fica mais densa, como
se o ar ali não fosse suficiente para os dois homens se encarando.

— Quem foi que convidou Orlando? — Ouço a voz feminina perguntar. É Giovanna, a irmã
de seu Gabriel.

— Fui eu — Gael assume.

— Só poderia ter sido você, seu imbecil! — A loira soa intransigente, porém não causa um
clima tão ruim como o que se formou quando os olhos daquele homem cruzaram com os de seu
Gabriel.

— Achei que pudéssemos nos reunir como nos velhos tempos. Deixar a mágoa de lado. —
Gael sorri, coçando o topo da cabeça.

— Eu vim em paz, prima! — O homem abre um sorriso para Giovanna, que o olha de cima a
baixo.

— Ai de você se pisasse aqui se não fosse em paz! — Giovanna replica.


Ele sorri friamente e torna a olhar seu Gabriel.

— E você, primo? Como vai?

Seu Gabriel continua o fitando seriamente, e fico desconfortável quando ele não o responde.
O homem em pé à nossa frente continua:

— Quanto tempo, não? — Ele enfia as mãos nos bolsos da calça, olhando para os lados. —
Mas também, você nunca sai dessa casa! Aliás, onde estão todos aqueles seguranças da sua mãe?

O silêncio perdura mais um pouco, mas o homem que responde por Orlando é paciente em
esperar seu Gabriel responder.

— O que veio fazer aqui? — seu Gabriel pergunta, em um tom grave, soando quase como um
rosnado.

— Como já foi dito, Gael me convidou.

— Então peça para que Gael te dê atenção. — Seu Gabriel é áspero ao falar.

Outra dose de silêncio toma conta do espaço e, em seguida, Gael pigarreia, tentando quebrar
o clima tenso e carregado da situação, que ele mesmo parece ter provocado.

— Vocês são chatos pra caralho, sabiam?! Vamos sambar que é melhor, pessoal. — Gael
coloca o samba para tocar novamente e oferece uma lata lacrada a Orlando. — Aceita uma
cervejinha, primo?

— Tem Martini?

— Martini? Você está pensando que veio para o quê? Algum desses bailes de inauguração de
lojas de roupas da sua mãe que você frequenta? Aliás, como está sua mãe? Ela ainda te escraviza
naquela empresa de maricotas?

— Posso te garantir que a empresa de minha mãe dá mais lucro que a concessionária meia-
boca que vocês herdaram do seu avô materno.

— Miserável! — Gael sorri, levando na esportiva. — Como está o tio Otávio?

— Ele está em Brasília uma hora dessas. Como qualquer outro Cordeiro, em busca de poder.

— Sei bem... O papai também só vive em Brasília, entocado naquele plenário.


Provavelmente deve estar jantando uma hora dessas com o tio Otávio, escondido da mamãe — Gael
diz, parecendo ser uma piada interna.
Mas pelo o que entendi, o vínculo entre eles trata-se de uma questão paterna. Assim como seu
Gabriel, ele trabalha para a empresa da mãe. Também noto que há algum conflito familiar ali, mas
não tenho certeza disso.

— Espera aí, que vou trazer uma taça lá de dentro para você. Só não arranje confusão —
Gael diz a Orlando, dando alguns passos para trás.

Ele pede licença à Manu, que está quieta demais para o meu gosto, e sai em direção à porta
de vidro, do outro lado do jardim.

Enquanto isso, observo o homem que se apoia ao lado do freezer, esperando Gael voltar com
a taça. Além de ser alto e esbelto, suas roupas me parecem muito bem recortadas. Não saberia dizer
ao certo a marca que ele usa, mas pelos cortes de sua calça de linho bege, que batem em sua canela, e
a camisa social de linhas vermelhas extremamente finas, sei que não é algo comum de se ver pelas
lojas de departamentos.

Claro! Ele parece ser um desses filhos de papai, que já nasceram montados na grana, afinal, é
primo de seu Gabriel. No entanto, ele me parece ser mais preocupado com a aparência do que os
demais.

Entretanto, não é apenas isso o que me chama mais a atenção na presença do homem, mas sim
a tensão que formou quando ele chegou. O que aconteceu de tão sério para seu Gabriel não querer
nem falar direito com o primo?

Aliás, há muitas outras perguntas que eu quero fazer a seu Gabriel, porém não quero parecer
muito enxerida ou muito interessada. Me levo a pensar que será melhor eu permanecer calada.

Gael chega com as taças, despejando o Martini em uma taça para Orlando, que parece mais
interessado em observar seu Gabriel de longe, que ainda está sentado na cadeira ao meu lado.

Os olhos castanhos do homem cruzam com os meus despretensiosamente, erguendo uma


sobrancelha, enquanto dá um gole do Martini na taça de cristal. Trato logo de virar o rosto para Gael,
que está convidando Manu para dançar o forró pé de serra que está tocando nas duas caixas de som
posicionadas perto da churrasqueira.

Manu não pensa duas vezes e já vai se encaixando no corpo do homem, que parece ser dez
centímetros mais alto do que ela.

Sinto mais uma vez o braço de seu Gabriel roçar minha pele desnuda, eriçando meus pelos
vergonhosamente. Céus! O que está acontecendo com o meu corpo? É como se ondas de calor
tivessem se formado dentro do meu ventre e como se meu corpo fosse extremamente sensível ao seu
toque. Aperto os olhos rapidamente, tentando pensar em outra coisa que faça minha pele voltar ao seu
estado normal, ignorando olhares de esguelha que seu Gabriel me lança.

A garota de traços orientais se levanta ao lado de Giovanna e se aproxima de nós com seu
vestido tubinho preto. Ela se inclina para frente, para alcançar o ouvido de seu Gabriel, apoiando as
mãos nas coxas dele de forma sensual. Forço a audição para ouvir o que ela tem a dizer a ele, porém
não obtenho sucesso. Não consigo ouvir com clareza uma palavra sequer.

Em seguida, ela ergue a coluna, e seu Gabriel diz para mim:

— Com licença. Eu volto em um minuto.

Ele se levanta e avisa para que Gael fique de olho na churrasqueira. Caminha pelo jardim ao
lado da mulher de cabelos curtos até a porta que Gael entrou mais cedo. Droga! O que será que
aquela mulher falou para o seu Gabriel, que o fez sair do meu lado?

Oh, Camille, o que isso te importa?

Meus pensamentos cessam quando percebo os olhares da irmã de seu Gabriel para mim. E
diferente da forma que ela tratou Gael e o tal de Orlando, ela tem um olhar mais gentil, uma mistura
de curiosidade com complacência.

A música de fundo termina, e logo Gael se afasta ofegante de Manu, que está com aquele tipo
de olhar malicioso, que só ela tem.

Ela pega o copo de cerveja na quina da mesa, dando um passo cambaleante para trás,
sorrindo à toa, sem deixar de olhar dentro dos olhos de Gael.

Pelo menos alguém está se divertindo, penso, ainda incomodada com o sumiço de seu
Gabriel e aquela moça.

Quer saber? A noite acabou para mim!

Levanto-me e vou até Manu, pedindo licença a Gael e a puxando para o canto do deque.

— Temos que ir! — delibero, indiscutivelmente. — Eu conseguirei um telefone com Rosa...

— O quê? Ir? Agora? Está louca?! Agora que a festa começou! — Ela dá mais um gole da
cerveja em sua mão.

— Começou para você, Manu! Eu não estou me sentindo à vontade... — replico, enquanto ela
corre com os olhos pelas pessoas ali.
— Onde está o anfitrião? — Ela procura mais um pouco. — E aquela mulher de cabelos
curtos? Eles sumiram? Juntos?

— Não sei. O que eu tenho a ver com isso? — Minhas palavras soam um pouco grosseiras.

— Por que esse mau humor todo? Nunca te vi assim — ela pontua com o olhar desconfiado.
— Não vá me dizer que está com ciúmes do Gabriel Átila? — Ela sorri mais do que deveria, e penso
que é melhor eu arrastá-la comigo. Mas se bem conheço minha amiga, ela não sairá desse churrasco
dessa forma.

— Claro que não! — replico, já começando a me irritar com toda a situação. Amanhã eu terei
uma seleção importante, por que diabos eu aceitei sair de casa com Manuela à noite?! E por que ela
simplesmente não colabora e vem comigo?

— Quem te viu, quem te vê, Camille! Toda santinha, com aquele papo de que encontrou o
amor da sua vida na igreja, agora já está até de olho em outro homem. — Ela me coloca pilha e eu
tento não cair na conversa dela. — E que homem, diga-se de passagem!

— Está ok, Manuela! Você quer ficar? Fique! Mas eu já estou indo!

— Beijooo, amiga. Te vejo segunda-feira lá no serviço.

Reviro os olhos, inspirando fundo e dizendo:

— Só pare de beber agora. Você já bebeu o suficiente para a noite toda. E também não faça
nada de que possa vir a se arrepender ou se envergonhar depois.

— Está bem, "dona" Camille — ela responde, dando um gole espesso da cerveja em seu
copo, me afrontando como de costume.

Despeço-me e giro meus calcanhares.

Não era muito de se esperar que eu convencesse Manuela a abandonar sua paquera e seu
copo de cerveja, então me resigno com isso e começo a caminhar para fora do jardim. No entanto,
enquanto passo ao lado da piscina, o homem de pernas compridas e olhar incisivo me alcança e se
coloca em minha frente. É o tal de Orlando, primo de seu Gabriel.

— Dance comigo! — É um pedido ou uma ordem?

Pisco os olhos e digo em seguida:

— Eu estou de saída.

Dou um passo para o lado e ele me impede mais uma vez, se colocando à minha frente.
— Se soubesse que você iria embora tão cedo, eu tinha pedido antes.

— Pois é... — digo sem jeito, tentando pensar em um jeito educado de sair e olhando para a
piscina ao lado, atenta, para não desequilibrar e cair ali.

— Posso saber qual o seu nome?

Digo ou não digo? Ai, ai! Por que algo me diz que não devo dizer?

— Camille.

— Ok. Camille — ele pronuncia meu nome como se fosse uma melodia meio sinistra, mas
melódica mesmo assim. — Dance comigo apenas uma música, prometo que não a importunarei
depois.

Ele pega minha mão, a segurando e me olhando com as íris sombrias.

— É que eu não sei dançar, moço — solto, dizendo uma verdade. Apesar de ter nascido perto
do Nordeste, sou um fiasco dançando forró. Já tentei aprender com meus primos, mas,
definitivamente, dá dois passos para cá e dois para lá não parece tão fácil quando executados por
minhas pernas descoordenadas.

— Eu insisto. — Ele inclina o corpo mais para frente, me deixando completamente sem
graça.

— A garota já não lhe disse que não quer?! — Reconheço a voz soando como um trovão atrás
de mim, enquanto o homem em minha frente olha por cima do meu ombro. — Deixe-a em paz!

Seu Gabriel se coloca ao meu lado e toma a minha mão para ele, e, de certa forma, me sinto
um pouco mais aliviada por ele ter chegado e desgarrado sem cerimônia a mão daquele homem de
olhos sombrios das minhas.

Orlando abre um sorriso.

— A garota é alguém importante para você, primo?

— Se ainda quiser ficar nesta casa, sugiro que não incomode minhas visitas!

— Não respondeu minha pergunta. — Ele olha para mim.

— Não comece com seus joguinhos, Orlando! Eles são entediantes e sempre acabam mal!

Orlando inspira fundo.

— Sim, acabam mal. Aliás, você não sabe brincar, não é mesmo, primo?
— Sim, não sei brincar! Quem gosta de brincadeira é moleque, e isso eu deixei de ser aos
doze anos!

— E desde então leva tudo a ferro e fogo — Orlando completa e sinto um pouco de
indignação em sua voz, fazendo o clima ficar ainda mais pesado.

— Calma aí, pessoal! — Gael interfere. — Já se passou tanto tempo. Caralho! Se eu soubesse
que o clima ficaria tão ruim...

— É claro o clima ficaria assim, seu sem noção! — Agora é Giovanna que replica. — O que
você tem nessa merda de cabeça?!

— Retire-se de minha casa — seu Gabriel ordena ao homem, que o encara.

Orlando continua o encarando, taciturno, no entanto, logo relaxa os ombros.

— Tudo bem. De qualquer forma, foi um prazer revê-lo. — Algo me diz que suas palavras
são ocas, falsas.

— Não compartilho do mesmo pensamento. Não apareça mais em minha casa, nem a convite de
outra pessoa.

— Vocês, às vezes, me assustam com essa merda de mágoa! Já faz tanto tempo, caramba! —
Gael diz.

— Cala a boca, Gael! — Giovanna dispara.

— Tudo bem. Como quiser! — Orlando responde a Gabriel, dando um passo para trás,
cumprimentando Gael, e em seguida caminha pelo jardim até a porta da sala.

Ouço o suspiro de Giovanna quando o tal Orlando passa pela porta da sala e logo ameaça o
irmão.

— Se fizer mais uma vez algo tão sem noção como fez hoje, eu juro que farei a cabeça de
nossa mãe para te deserdar, porra! — Giovanna diz, visivelmente irritada com Gael.

— Não se preocupe, que ultimamente nem é preciso você convencer dona Tereza Átila de me
tirar do testamento. Minha ficha com ela está mais suja do que pau de galinheiro — ele responde em
tom de troça e depois olha para seu Gabriel, parecendo esperar suas palavras.

— Nunca mais faça isso. — Seu Gabriel se limita a dizer, seriamente.

Gael dessa vez não brinca, e apenas aquiesce.


— Tudo bem. — Ele olha para Manu e diz: — Já que agora vocês estão mais tranquilos,
podemos continuar com o som, não é mesmo? — Ele nem espera a resposta e vai logo retomando o
forró anteriormente pausado.

Seu Gabriel se coloca à minha frente, segurando minhas duas mãos, enquanto a água da
piscina ao lado reflete em seus olhos.

— Desculpe por isso...

— Tudo bem, seu Gabriel. — Ele fecha os olhos quando eu digo "seu Gabriel". — Se me der
licença, eu estou indo. — Solto suas mãos das minhas, sem jeito. — Minha amiga vai ficar, eu espero
que ela não incomode...

— Não será nenhum incômodo. Mas você não pode ficar mais uma hora? — Ele tenta me
persuadir.

— Não vai dar mesmo, seu Gabriel.

— Podemos dançar — ele sugere.

— Dançar? — Ok! Eu nunca imaginei seu Gabriel dançando uma música nesse estilo, forró.
Isso seria, no mínimo, curioso de se ver.

— O que foi? — Ele abre um meio-sorriso de canto de boca. — Por que o estranhamento?

— É que...

— É que... — Ele me incentiva a continuar.

— É que eu não imagino o senhor dançando forró.

Ele pisca duas vezes e depois solta uma risada sonora.

— Mais um motivo para dançar comigo. — Ele se aproxima e dou dois passos para trás.

— Eu não sei dançar — confesso mais uma vez, só que dessa vez para o dono do lindo par de
olhos azuis em minha frente.

— Eu posso lhe ensinar — ele sussurra.

— Não saberia o que fazer com tanta falta de coordenação. — Ofego quando ele está
calorosamente perto de mim.

— Só saberemos se tentarmos — ele murmura, em um tom de voz mais fechado. Sua mão toca
minha cintura, me fazendo engolir em seco.
Ele traz meu corpo para o dele, me fazendo sorver uma boa quantidade do frescor da essência
de seu perfume. Seu Gabriel pega minha mão esquerda e a coloca em cima de seu ombro, e depois
segura a minha direita, se inclinando para baixo e encaixando seu rosto na curvatura do meu pescoço.
Minha Nossa Senhora! Estou sentindo os contornos dele, estou sentindo as curvas do corpo de seu
Gabriel tocarem minha barriga!, penso, enquanto sinto uma quentura debaixo do vestido vermelho
que escolhi para a noite que eu teria com Manuela. E essa quentura só piora quando ele começa a
embalar nossos corpos ao ritmo de Falamansa.

Seus lábios tocam meu pescoço, e eu arrepio inteira. Não sei se isso é de propósito, mas o
certo é que fico com vergonha quando meu corpo escancara o que seu toque me causou.

Enquanto dou dois passos para o lado e dois passos para o outro, e vejo que ainda não atingi
seu pé com o meu, concluo que a dança não está indo tão mal, ou seria o seu Gabriel um ótimo
condutor? O fato é que não está tão vergonhoso como das raras vezes que dancei forró com minhas
primas e primos no Tocantins.

Quando menos espero, ele cantarola um pedacinho da música.

“Escrevi seu nome na areia

O sangue que corre em mim sai da tua veia

Veja só, você é a única que não me dá valor

Então por que será que este valor é o que eu ainda quero ter

Tenho tudo nas mãos, mas não tenho nada

Então melhor ter nada e lutar pelo que eu quiser

Ê, mas pera aê

Ouça o forró tocando e muita gente aê...”

A música que ouvia em minha infância nas festas de minha família me parece mais sexy na
voz grave de seu Gabriel cantando ao pé do meu ouvido e com sua mão espalmando minha cintura.
Sinto um tipo de nervosismo gostoso, que percorre todo o meu corpo, e não sei distinguir muito bem
o que eu quero nesse momento. No entanto, apenas me deixo levar, e fico ali sendo embalada pelo
ritmo de seu corpo contra o meu, no compasso do forró.
Seu Gabriel ergue o rosto e o coloca frente a frente ao meu, enquanto meus pés seguem seus
passos. Ai, meu Deus! A quentura vira um caldeirão dentro de mim quando ele raspa a língua no
canto do lábio inferior, com o olhar fixo em minha boca.

— Senhorita Camille, eu preciso confessar uma coisa...

— O quê? — Ofego.

Ele resvala o olhar de minha boca para os meus olhos.

— Eu estou louco para beijá-la.

— O quê? — Minha voz sai meio ébria, como se faltasse oxigênio em meu cérebro.

Beijar. Beijar. Beijar. Minha cabeça gira enquanto penso. Seu Gabriel quer me beijar?

Ele pressiona mais a mão em minha cintura, acochando mais o meu corpo contra o dele, me
arrancando um vergonhoso arquejo.

Seu Gabriel torna a olhar meus lábios e começo a entrar em pânico. Ele fará isso agora? Ai,
minha Nossa Senhora!

Ouço a música terminar e depois a única coisa que consigo ouvir é o som do meu coração,
que bate desenfreado, quase saindo pela boca. Em um ímpeto, empurro o corpo de seu Gabriel para
trás e digo sobressaltada, quase gritando, tamanho o nervosismo:

— SEU GABRIEL, EU PRECISO IR AGORA! OBRIGADA PELO CONVITE!

Giro os calcanhares e dou um passo para frente, decidida a sair o mais rápido possível dali.
No entanto, só não esperava errar o caminho e dar um passo seguro dentro da piscina debaixo dos
meus pés, me levando ao fundo da água gelada junto a uma explosão de água, bolhas de ar em
polvorosa e zunidos.

Outra explosão se faz na água, e em poucos segundos entrevejo seu Gabriel atrás das bolhas
de ar que insistem em trepidarem à minha volta. Ele segura meu braço e me leva à superfície, me
fazendo arfar quando sorvo o ar com força.

— Você está bem? — seu Gabriel pergunta.

— Aham! — Aquiesço, meneando a cabeça em positivo.

Ele me puxa para a borda da piscina e me ajuda a sair da água.

Droga! Meu vestido está todo ensopado. Me levanto e vejo seu Gabriel sair da piscina
também, completamente molhado.

Ele embrenha os dedos nos cabelos pingando água, enquanto sobe o olhar pelo meu corpo. E
droga! Percebo que meu vestido está ousadamente colado em meu corpo e, em algumas partes, até
transparente.

— Posso lhe conseguir uma toalha em meu quarto. — Quarto? Ai, minha Nossa Senhora, isso
está ficando cada vez mais estranho. — Suponho que não queira ir para casa assim.

Quero recusar e poder sair logo de sua frente, mas não tenho muitas opções a não ser
concordar com seu Gabriel. Infelizmente, será mais perigoso sair molhada daqui do que aceitar sua
ajuda.

— AMIGA, ESTÁ TUDO BEM? — Ouço a voz alterada de Manuela soar longe, e quando
me viro para avistá-la, percebo que ela está pendurada no pescoço de Gael, em um clima de sedução
um tanto desajeitado.

— ESTÁ TUDO BEM, NÃO SE PREOCUPE! — respondo em voz alta e depois encaro
timidamente o seu Gabriel à minha frente.

Ele ainda dispõe do mesmo olhar complacente, me fazendo crer que não há nada de mal em
confiar nele e aceitar sua ajuda. Então o sigo pela casa adentro, mantendo todos os meus sentidos
atentos.
Seu Gabriel caminha ao meu lado pela escada que leva ao andar de cima, quando de repente
diz:

— Perdão por tê-la deixado sozinha. Sarah estava com dor de cabeça e havia me pedido um
analgésico.

— Não precisa de explicar, seu Gabriel. — Sorrio, um pouco constrangida por estarmos
molhados dos pés à cabeça e andando para o seu quarto.

— Tudo bem. — Ele retribui o sorriso de forma mais tranquila.

Percorremos até o fim do corredor, entrando pela porta a qual me lembro bem quando vim
aqui pela primeira vez. O quarto iluminado por lâmpadas de led calculadamente posicionadas, o
cheiro de lençóis limpos e a cama no centro do ambiente, me remetem àquele fim de tarde chuvoso
em que estive aqui pela primeira vez.

Sinto o calor de seu Gabriel atrás de mim e sua voz reverbera um pouco mais grave:

— Com licença, vou pegar uma toalha para você. — Ele passa por mim e vai até a porta
lateral, a qual infiro dar acesso a um closet.

Ele volta com duas toalhas que visivelmente parecem extremamente macias e me entrega uma.
Ele se afasta e retira o avental preto e a camisa molhada, revelando todo o conjunto de músculos
grandes bem torneados que existem debaixo de sua camisa. Engulo em seco, sentindo que estou
olhando mais do que eu deveria.

— Seu vestido não secará tão cedo — ele observa, abaixando o olhar para o pano molhado
rente ao meu corpo, e eu coro quando seu olhar passa rapidamente pelos meus seios. — Eu posso lhe
emprestar uma de minhas camisas. Acho que pode muito bem assumir a missão de seu vestido em
cobri-la até as pernas.

Tento agir naturalmente e respondo com um sorriso nervoso nos lábios, tentando não olhar
muito para o seu peitoral:

— Tudo bem! Eu vou aceitar sua camisa. Aliás, não tenho muitas opções, não é mesmo?

— Na verdade, até tem outras opções, mas é melhor eu pegar a camisa.

Ele retorna ao closet e nesse instante percebo que não estou respirando. O que ele quis dizer
com "até tem outras opções"? Céus! Expulso esses pensamentos de minha mente e pergunto-me o que
está acontecendo comigo. Sinto que estou a um fio de ter pensamentos libidinosos com o seu Gabriel,
o que me preocupa, já que antes disso eu nunca havia me sentido assim. Nem em meus sonhos com o
homem misterioso do confessionário eu estava tão nervosa e suando em lugares inimagináveis como
estou agora.

Recomponha-se, Camille! A voz da minha consciência tenta me acalmar, enquanto me viro


para a parede e dou de cara com o mural que havia visto na primeira vez em que estive aqui. Mas
diferente daquela vez, esses rostos já não me são estranhos. Ou pelo menos, quase todos. Gabriel,
Gael e Giovanna. Só agora me dou conta de que os três irmãos têm a mesma inicial nos nomes, me
levando a crer que um de seus pais têm algum tipo de encantamento pela letra "G".

Dentre registros de festas e viagens internacionais, mais uma vez uma foto em especial me
chama a atenção. Seu Gabriel sorrindo na beira de um dos rios cristalinos do Jalapão. Continuo
contemplando a foto por alguns segundos, e não percebo que ele já havia voltado ao quarto e está
atrás de mim.

— Até hoje me pergunto de qual você mais gosta.

Levo um susto como da primeira vez, me virando e batendo com as costas na parede atrás.

Ele ainda está sem camisa, apenas usando a calça azul molhada, dando um passo em minha
direção.

— Alguma delas te chamou a atenção? — Sinto que seu tom de voz está mais denso, olhando
fixamente dentro dos meus olhos, e tenho a impressão de que estou desaprendendo novamente a
respirar.

Ficamos assim por alguns segundos e tenho certeza de que meu coração parará de bater a
qualquer momento se ele continuar me observando com os olhões azuis naturalmente intimidantes.

Responda alguma coisa, Camille!

Disparo:

— A do Jalapão. — Engulo em seco. — Eu gosto da foto do Jalapão.

Ele passa a língua ligeiramente no canto de seu lábio inferior, com os olhos em minha boca.

— Do Jalapão? No Tocantins? — Ele enruga o cenho, parecendo curioso. — Por quê?

Respiro com dificuldade, mas confesso:

— Eu sou de lá. Quer dizer, eu nasci e cresci por lá. — Falar o nome Tocantins, de alguma
forma, me deixa menos nervosa. — Olhar essa sua foto no Jalapão, automaticamente me trouxe boas
lembranças.
Ele pisca uma vez e depois sorri.

— Então quer dizer que é uma tocantinense?

— Uhum.

Ele parece recobrar algo em sua memória e pontua:

— Eu gosto de lá. É quente.

E eu deixo escapar:

— O senhor também.

Minha Nossa Senhora! O que eu fiz?! De repente, o olhar de seu Gabriel fica mais escuro e
ele dá um passo em minha direção mais uma vez.

— Quer dizer... n-não foi isso o q-que eu quis di-dizer... — gaguejo com sua aproximação, e
ele me interrompe com todos os músculos, bíceps malhadões e sua pele úmida à minha frente.

— Senhorita Camille, eu tenho algo para lhe confessar — ele diz, olhando para a minha boca.

— O quê? — Ai, minha Nossa Senhora! O que seu Gabriel quer me confessar? Isso me
preocupa ainda mais por estarmos ao lado da cama dele e com seu corpo quase nu diante de mim.

— Minhas camisas sempre estiveram em perfeito estado.

Ok! O que ele quer dizer com isso? Minha cabeça está a mil, e não tenho como raciocinar
suas palavras rapidamente.

— Sim, em perfeito estado — repito o que ele disse e, em um ímpeto, consigo entender o que
ele quis dizer. — Como? Suas camisas sempre estiveram em perfeito estado? Mas por que eu tenho
passado esses dias entregando...

Ele se coloca ainda mais próximo de mim, como se isso fosse possível, toca meu rosto e, em
seguida, apoia a mão na parede atrás de mim.

— Porque eu quero você.

— Quer? Co-como assim quer, seu Gabriel? — gaguejo. — Nós mal nos conhecemos, não faz
nem duas semanas...

— É o suficiente para querer a senhorita de todas formas... — Ele toca de novo meu rosto, e,
dessa vez, passa o dedão em minha boca, suspirando pesadamente e parecendo ter uma conversa
consigo. — Porra! Esses lábios parecem ser tão puros, inexperientes... mas eu estou tão louco por
eles.

Ele morde o lábio inferior com força, como se estivesse tentando se controlar para não fazer
algo. Eu quero poder sair correndo daqui, porém minhas pernas simplesmente não obedecem aos
comandos de meu cérebro, e o pior, elas estão bambas, tomadas por um desejo pungente entre elas,
que nem eu sabia que existia em mim.

Seu rosto está tão próximo ao meu, pronto para descer o caminho para os meus lábios, quando
de repente uma voz feminina nos resgata do momento.

— Camille, certo?

É Giovanna, a irmã de seu Gabriel.

Pisco duas vezes, olhando para ela, que está parada na porta ao nosso lado.

— Sim — confirmo meu nome.

Ela nos entreolha, como se estivesse tentando deduzir o que havia acabado de interromper.
Percebo que seu Gabriel parece fulminá-la com o olhar, mas Giovanna não se importa, e pigarreia,
dizendo:

— Desculpe por ter atrapalhado a conversa, mas eu acho que sua amiga está começando a
não ficar bem... — ela me avisa.

— Não ficar bem? — indago.

— Eu acho melhor você descer e ver com seus próprios olhos.

— Claro, claro! — Aquiesço, já começando a ficar preocupada com Manu.

Seu Gabriel pergunta a Giovanna, me impedindo de sair daquele quarto:

— "Está começando a não ficar bem" é o que estou pensando, Gio?

Ela assente com um menear de cabeça.

Seu Gabriel me entrega a camisa de linho que buscou no closet e diz para a irmã:

— Ajude a senhorita Camille a trocar as roupas molhadas, Giovanna. — E depois ele me


direciona as palavras: — Descerei agora para ajudar sua amiga. Não se preocupe. Giovanna irá
ajudá-la com o que precisar.

Ele sai em direção à porta e eu fico sozinha com a loira dos olhos azuis-turquesa.
— O que Manuela tem? — pergunto, preocupada.

— Nada demais. Ela só está um pouco alterada com a bebida.

— Ai, minha Nossa Senhora! Eu disse para ela parar de beber.

Ela sorri.

— Não se preocupe, quem nunca passou por um momento assim na vida? — ela diz,
complacente. — Vamos lá trocar essa roupa. Aliás, onde comprou este vestido?

— Eu que fiz.

— Não! Sério que você costura? — ela pergunta, boquiaberta.

— Sim. Eu sou costureira e crio alguns modelos de vestidos nas horas vagas.

— Ficou... ficou maravilhoso! — ela exclama, com os olhos brilhando. — Gabriel já lhe
contou que sou modelo?

— Sim, ele contou...

Enquanto Giovanna me ajuda a trocar meu vestido pela camisa de seu Gabriel, ela me conta
sobre a vida que tem levado em sua última temporada em Milão e como conseguiu fechar contrato
com Mackenzie Zig, uma cobiçada estilista de alta-costura do mundo todo. Apesar de termos
atuações diferentes, sinto que Giovanna e eu temos muitas coisas em comum, me levando a ficar à
vontade em sua presença.

Ela me observa antes de sairmos do quarto de seu Gabriel.

— Não sei não... Está faltando alguma coisa aí... — Ela estuda a camisa masculina em meu
corpo. — Precisa de algo para dar uma cinturada nessa camisa... Ah, se estivéssemos na casa de
minha mãe, eu já estava fazendo você de boneca e provando todos os meus vestidos da Gucci em
você! Mas deixa eu ver algo que irá resolver por ora...

Ela adentra novamente o closet, enquanto digo estar satisfeita somente com a camisa de seu
Gabriel, que bate quase em meus joelhos.

— Assim está ótimo, senhorita Giovanna.

Ela retorna ao quarto com uma gravata.

— Gio. Eu prefiro que meus amigos e colegas me chamem de Gio. — Ela abre um sorriso. —
Acho que depois dessa noite podemos ser amigas, não?
— Claro, senhorita Giovann... Quer dizer... Gio.

— Levante os braços — ela me pede e eu faço o que ela diz.

Ela dá uma volta com a gravata em minha cintura e a aperta, com um laço livre,
transformando a camisa de seu Gabriel em algo mais feminino.

Ele se afasta, dizendo:

— Agora sim, estou satisfeita. Ficou ótimo.

E, realmente, até que não ficou nada mal.

Agradeço e finalmente caminhamos para fora do quarto de seu Gabriel, em direção à escada
que dá acesso ao primeiro andar. Estou um pouco ansiosa com o que encontrarei lá embaixo, no
entanto, Giovanna me resgata de meus pensamentos, dizendo:

— O quanto você é amiga do meu irmão?

Pisco os olhos, sem saber o que responder.

— O suficiente para saber de seu passado? — ela pergunta.

— Eu sei pouco sobre seu irmão, senhori... Gio.

Ela inspira fundo, dizendo:

— Tome cuidado, Camille. Não esteja onde não dê conta de estar.

Não perco a chance de perguntar:

— Não entendo. O que isso quer dizer?

Ela olha para o caminho em nossa frente e depois me responde, olhando em meus olhos.

— A vida do meu irmão não é tão fácil quanto parece ser. Se ele está se envolvendo com
você, ele deve saber o que está fazendo, e quando ele achar que for o momento certo, lhe contará uma
parte do passado que não foi tão feliz em nossas vidas, no entanto, quando isso acontecer, tenha uma
certeza em mente: não desconfie se quiser ficar na vida do meu irmão, caso o contrário, não a verei
com bons olhos.

Não compreendo muito bem tudo o que ela quer dizer, mas entendo que algo no passado de
seu Gabriel não foi tão fácil e feliz como vi naquelas fotos no mural. Por mais que eu tente fechar os
olhos para isso e não queira me intrometer, sei que depois do que aconteceu naquele quarto com seu
Gabriel, estou ainda mais curiosa para saber um pouco mais sobre ele. Afinal, não sou boba e, como
qualquer outro ser humano, eu tenho curiosidade. Porém, logo a curiosidade é substituída pela
vergonha quando passamos pela porta do jardim, avistando Manuela sambando em cima da mesa com
uma latinha nas mãos, enquanto seu Gabriel parece a vigiar, para que ela não caia, ao passo que Gael
faz o mesmo do outro lado da mesa.

Manuela cambaleia para o lado, quase caindo da mesa, enquanto meu coração dá um salto em
meu peito. Mas os homens por ali são rápidos em apará-la e colocá-la de volta ao chão. Quando
penso que posso suspirar aliviada, Manuela começa a dançar desajeitada na frente de seu Gabriel,
com Gael atrás de seu corpo, ao som do pagode Dança do Maxixe.

Como se a situação não pudesse ficar mais vexatória, a mão de Manuela cravada nas costas
de seu Gabriel faz um caminho pecaminoso até a bunda dele. Seu Gabriel está notavelmente
constrangido com a situação, e eu duas vezes mais. Ele olha para os lados, tentando se esquivar, mas
quanto mais ele se afasta, mais Manuela insiste em torturá-lo com mais alguns segundos de vergonha
alheia.

Chego ao deque sabendo que terei que tomar as rédeas da situação. Me coloco na frente de
seu Gabriel, morrendo de vergonha, com minha amiga totalmente fora de si.

— Já deu por hoje, Manu!

— Camille? — Ela pisca os olhos e começa a me abraçar e a falar com a voz ébria: — Oh,
amiga! Que bom que você não foi embora, sua louca!

Sussurro baixinho, enquanto Manuela chama a atenção de todos no deque:

— Já chega, né, Manu?! Vamos para casa agora.

— Já solicitei um carro para levá-las em segurança às suas casas — seu Gabriel me


tranquiliza, me levando a agradecer mentalmente por isso.

Obrigada, minha Nossa Senhora! Até que enfim uma coisa a menos para me preocupar
nesta noite.

— Eu... eu não vou. Vou ficar. Onde está Gael? — Ela se vira e eu seguro seu corpo
firmemente.

— Olha para mim, Manuela! Pelo amor de Deus, só vamos, amiga! Já chega de passar
vergonha! — falo baixinho para não escutarem, porém isso é quase impossível quando o som é
desligado por Gael.

Neste exato momento, parece que Manuela e eu somos o centro da atenção dos irmãos Átila
Cordeiro. Sem contar com os olhares reprovadores da amiga da família, a Sarah.

Manu olha para o lado e diz:

— Ok! Eu vou.

Ufa! Obrigada minha Nossa Senhora!

Porém, ela continua:

— Com uma condição! — Ela ergue o dedo em riste. Solto a respiração pesadamente e ela
sorri descomedidamente. — Amanhã voltaremos.

— Manuela...

Gabriel, que nos observa, me interrompe, dizendo:

— Eu acho que estarei aqui amanhã — ele ironiza. — Será um prazer recebê-las novamente...
— ele complementa, enfiando as mãos nos bolsos da calça ainda úmida e, em seguida, pigarreia. —
Sem álcool, claro.

— Claro — repito, envergonhada. — Sem álcool.

— E sem a Dança do Maxixe também — Gael diz, explodindo em uma gargalhada, e até
Giovanna, que parece não partilhar do mesmo senso de humor do irmão, segura o riso.

Manuela parece se conformar e aceita voltar comigo, me fazendo suspirar aliviada


finalmente.

Com o rosto em brasa, me despeço de todos, e depois somos acompanhadas por seu Gabriel
até o Sedan preto estacionado em frente à sua casa.

Manu entra primeiro pela porta traseira, e antes que eu adentre o veículo, sinto a mão de seu
Gabriel me puxar e trazer meu corpo para frente do dele.

— Você vai voltar, certo? — Suas mãos sobem pelo meu braço, trilhando um caminho até
meu rosto, acariciando minha pele com a lateral do seu dedão, arrepiando-me por completo.

— Não sei ao certo... — Fraquejo ao dizer.

Ele aproxima sua boca, me ventilando com seu hálito mentolado, meu cheiro se mistura ao
dele.

— Eu quero você aqui. Mais vezes. Comigo — diz com a voz arrastada, desregulando meu
coração dentro do peito enquanto ele continua me estudando com os olhos.
Retorno aos meus sentidos normais e gaguejo:

— A-amanhã e-eu participarei de uma seleção...

— Eu sei — ele sussurra, colocando uma mecha de meu cabelo para trás. — Essa seleção é
muito importante para você?

— Sim. — Aperto os lábios. — Muito. — Explico melhor: — É uma oportunidade para


conseguir trabalhar para uma marca grande. — Olho para o lado, confessando: — Criar e costurar é
minha vida.

— Entendo. — Ele passa a língua entre os lábios. — De qualquer forma, eu estou aqui. —
Ele olha para trás, para a mansão iluminada pelas luzes do jardim, e depois me fita, segurando uma
de minhas mãos. — Estarei torcendo por você... — ele sussurra com a voz mais densa, completando:
— E louco pelo seu retorno.

Ai, minha Nossa Senhora! Como é que se responde a isso?

Lembro-me de que estou usando sua camisa, e antes que me esqueça, aviso a ele:

— Eu a devolverei amanhã. — Olho para sua peça em meu corpo.

Ele fisga o canto inferior dos lábios.

— Ela ficou ótima em você... — ele diz, fitando rapidamente o meu corpo. — Se a senhorita
gostar, pode ficar. Eu tenho várias delas... as outras também devem ficar muito boas em você.

Engulo em seco, e a única coisa que consigo proferir é:

— Ok!

Ele abre um sorriso obscenamente lindo, aquiescendo.

— Ok!

Ele se afasta e me deixa entrar no carro. E enfim, reúno um pouco de força em minhas pernas
tão cambaleantes quanto as de Manuela e coloco-me dentro do carro. Seu Gabriel segura a porta para
fechá-la, mas antes me fita pela última vez, como se quisesse me dizer algo. Mas não o faz.

Seu Gabriel bate a porta com cuidado ao meu lado e, em seguida, fala algo ao motorista à
nossa frente. Sorvo uma boa lufada de ar quando o vidro fumê me esconde das íris intensas por trás
dele, e logo começamos a nos afastar dali.

Olho para trás e vejo seu Gabriel enfiar as mãos nos bolsos da calça, ficando parado em
frente de casa. Talvez esperando que saíssemos de sua vista.

Quando nos afastamos o suficiente, torno a encostar minhas costas no estofado, olhando para
Manuela, que começa a apagar ao meu lado, com a cabeça que balança solta de um lado para o outro.

Apoio a cabeça de minha amiga em meu ombro, enquanto, pela primeira vez na noite, começo
a relaxar.

— Amanhã voltaremos? — relembro o que ela disse, cochichando e sorrindo. — Amanhã


você não vai querer nem lembrar que seu nome é Manuela — murmuro, me divertindo ao imaginar
quando ela recobrar a consciência no dia seguinte.

Aos poucos, cesso o riso e começo a entrar no que chamam de mundo da lua, processando
tudo o que aconteceu esta noite. Eu não sei muito bem explicar, mas é como se algo em mim ainda
estivesse eletrizado. Não pelo o que aconteceu com Manu ou qualquer outra coisa. É uma
eletricidade prazerosa, que parece energizar todas as moléculas do meu corpo. E eu sei bem que a
fonte disso é ele, seu Gabriel, em como ele faz eu me sentir... desejada.
12 | SELEÇÃO

Camille

Queria eu que tudo fosse perfeito! É o que penso na sala de espera, aguardando meu nome
ser pronunciado pela monitora da seleção do Grupo Ortega, que fica em um prédio comercial no
Batel, área nobre de Curitiba.

Em minha direita há outras candidatas, em seus blazers caros e com suas Pradas descansando
em seus colos, dissertando sobre suas viagens fabulosas e os cursos que seus pais lhe
proporcionaram em Londres, Milão e até em Paris.

Apesar do curso de Moda não ser requisito básico, não negarei que minha confiança se abala
um pouco ao escutar essas conversas, já que a única coisa que tenho são minhas peças de roupas,
feitas unicamente por mim em meu ateliê improvisado no quarto dos fundos da casa do meu pai.

No entanto, como eu já disse, queria eu que fosse tudo perfeito e que tudo fosse mais fácil
para mim. Mas essa não é desculpa para não tentar. Pelo contrário. Lembro-me de minha mãe sempre
dizer que quando as coisas se tornam difíceis em nossas batalhas, significa que estamos sendo
preparados para grandes vitórias. E é dessa forma que devo pensar, devo olhar somente para a
vitória, sem desanimar ou pestanejar.

— E você? Aonde você fez o seu curso? — A ruiva de olhos cor de mel me indaga,
chamando a atenção das outras candidatas. — Paris? Milão?

Esboço um pequeno sorriso de canto de boca e a respondo:

— Eu não tenho curso de Moda.

— Oh, não tem? Então ainda está cursando? Aqui em Curitiba? — ela insiste.

— Não. Eu não faço nenhum curso.

Ela pisca os olhos e eu explico melhor:

— Na verdade, sou costureira.

Ela comprime os lábios, um silêncio sepulcral se faz entre as mulheres ali, e eu completo:

— Atualmente trabalho em uma malharia no centro da cidade. Trabalhamos confeccionando


camisetas, fardas e toalhas de mesa...

Sou interrompida quando a voz da mulher de cabelos castanhos iluminados adentra o


ambiente.

— Camille Souza Silva!

Me levanto prontamente e a monitora diz, me fitando:

— Sua vez, senhorita. Pegue apenas a criação principal que represente o conceito de sua
coleção e me acompanhe — ela informa o que já foi avisado previamente, e me locomovo
rapidamente para a arara do outro lado da sala, em busca da capa em que está o vestido longo de
renda cuidadosamente bordado e, em seguida, acompanho-a. Mas antes de sair da sala, ouço a voz
pesarosa da ruiva, fazendo um comentário baixinho:

— Coitadinha. Ela será massacrada.

Outra candidata completa, comentando:

— Que Deus a proteja.

A ruiva suspira:

— Amém!

Entendo que seus comentários não foram maldosos, afinal, eu não sou ingênua, e sei que o
meio da moda não é um conto de fadas e que as pessoas podem ser muito hostis quando algo não lhes
agrada. Porém, estou confiante de que irei causar uma boa impressão aos jurados e nada tira da
minha mente que fiz um ótimo trabalho.

Enquanto sigo no encalço da mulher de cabelos castanhos sedosos pelo corredor, observo os
detalhes do enorme andar cheio de paredes brancas refletidas no piso de porcelanato. Tudo parece
muito limpo e clean, até mesmo os quadros pendidos entre uma ou outra parede são sem muitas
firulas. Pelo contrário, há uma sincronia majestosa entre as paredes, os vasos e os aparadores.

Paramos em frente a uma porta de carvalho, que é aberta pela simpática monitora.

— Obrigada! — agradeço com um sorriso tímido e adentro a sala com dois jurados sentados
atrás de uma mesa de três lugares. Uma mulher de cabelos lustrosos e cacheados e um homem de
óculos em circunferências.

Estranho de início, pois o que havia sido informado para os candidatos era que seríamos
avaliados por três jurados, e ali se encontram apenas dois.
— Bom dia. Aproxime-se! — a mulher de cabelos cacheados diz, indicando com o olhar o
manequim em sua frente, batucando com a ponta da caneta na superfície do fichário em cima da
bancada. — Senhorita Silva, eu me chamo Roberta e esse é o Jeff, e junto ao diretor geral, que ainda
não chegou, avaliaremos seu modelo. E se você passar desta fase, nos veremos na etapa final, que é
uma apresentação de toda a coleção modelo. Entendido?

— Sim, senhora. — Meneio a cabeça.

— Ok. Vista o manequim ao seu lado e nos apresente o que você trouxe.

Tão logo faço o que ela me pede, tirando o vestido de dentro da capa e vestindo o manequim
com o vestido com transparências e rendas, e começo a explicar a proposta de minha coleção. O frio
na barriga é inevitável quando estou falando para pessoas que nunca vi na vida e que estão com os
olhares curiosos sobre mim, no entanto, ao final, me sinto satisfeita com a apresentação, mesmo com
todo o tremor em minha voz.

— Bem, senhorita Silva... Está dizendo aqui que você é costureira... — o homem me indaga,
fitando minha ficha em suas mãos.

— Sim, senhor. — Aquiesço.

— Tem algum curso? — Ele ergue uma sobrancelha. — Alguma especialização?

— Não, senhor.

Ele torna a olhar a ficha, riscando alguma coisa, fazendo meu coração apertar dentro da caixa
torácica e minhas mãos suarem de ansiedade, enquanto pensa alto:

— Não que isso realmente conte. Eu já estou farto de ter que selecionar aquelas dondocas
incompetentes. — As palavras soam revoltosas e grossas saindo de sua boca, mesmo que ele esteja
sussurrando. — Do que adianta ir à Europa se não sabe enfiar uma linha na agulha?

Percebo os olhares mais atenuados da mulher ao lado para o homem, que desabafa em
murmúrios.

Ele nos percebe e suspira:

— Perdão! — E em seguida, me direciona suas palavras: — Bem, senhorita Silva. Eu amei


seu modelo. Há delicadeza e muita vivacidade. Confesso que estou curioso para olhar o restante
dessa coleção... Por mim, você já está na segunda e última fase desta seleção. E você, Roberta?

Ai, minha Nossa Senhora! Meu peito se enche de alegria quando escuto seu parecer positivo,
enquanto alterno meu olhar para a mulher de semblante avaliativo.

— Eu achei... — Ela faz uma pausa dramática e sinto meu coração errar uma batida. — Eu
achei maravilhosa sua peça. Meus parabéns! Você está na próxima etapa, senhorita Silva.

Nesse momento, meu peito explode de felicidade e todos os meus músculos ficam dormentes,
sem reação, enquanto meus olhos criam poças d'água prestes a transbordarem.

— Tudo bem, senhorita Silva? — o homem indaga, estudando com os olhos meu rosto.

Limpo uma lágrima espessa do canto do olho com o antebraço e balanço a cabeça em
positivo, copiosamente.

— Sim, senhor. — Ainda emocionada, complemento: — Muito bem, senhor.

Depois de ser levada ao salão de desfiles do Ateliê Ortega no mesmo andar, meu corpo está
todo anestesiado de felicidade em umas das cadeiras no camarim, esperando o restante das outras
candidatas passarem pela primeira etapa.

De repente, o celular vibra em meu bolso e me tira do estado de transe.

Destravo a tela e vejo que se trata de uma mensagem de seu Gabriel.

"Você já ganhou essa vaga!"

Como ele sabe que eu estou em uma...? Embrenho as mãos nos cabelos e me lembro de que
eu havia comentado da seleção para seu Gabriel.

Ele deve ter deduzido que eu estaria na seleção agora.

Fito novamente a mensagem e essas palavras me trazem ainda mais confiança, deixando
escapar um sorriso abobalhado dos meus lábios.

Respondo à sua mensagem.

"Obrigada pela mensagem positiva, seu Gabriel. Estou neste exato momento aqui no Ateliê do
Grupo Ortega. Eu passei na primeira etapa e estou nas nuvens. Estou aguardando ser chamada
para a fase final."
Eu me empolgo, tiro uma foto esticando meus lábios o máximo possível em um sorriso e
envio para seu Gabriel. E, depois de alguns segundos, recebo sua mensagem.

"Grupo Ortega?"

Poxa, ele ignorou completamente a foto que tirei? Retorço o lábio em um biquinho.

Em um rompante, a monitora de cabelos castanhos cacheados chama o meu nome, pedindo


para que eu vista todas as minhas peças nos manequins. Aquiesço respeitosamente e ela sai em
direção à pequena passarela lá fora.

Respondo rapidamente seu Gabriel.

"Eu vou ter que sair agora."

Quase no mesmo instante que envio, recebo as mensagens, uma atrás da outra.

"Espere um momento."

"Fique!"

"Fale-me um pouco mais sobre esse Grupo Ortega."

A garota ao meu lado avisa, tocando meu braço com a mão:

— Se não for logo, eles irão te desclassificar.

— Claro. Eu estou indo. Obrigada — digo, dando um pulo para fora da cadeira.

Guardo o celular em meu bolso, mesmo chegando mais mensagens. Deixo para olhá-las
depois da segunda fase. Tenho certeza de que seu Gabriel entenderá. Então prossigo para a arara que
tem o meu nome grudado com fita durex na haste vertical e começo a vestir os bonecos de fibra.

Terminando de vesti-los, começo a levá-los para a passarela lá fora, um por um.

Ainda não tenho coragem de olhar para os jurados ao lado da passarela, meus membros
periféricos se tremem só de imaginar que o meu futuro depende de tudo o que vai acontecer a partir
de agora.

Depois de posicionar todos os manequins de frente para os jurados, sorvo uma boa lufada de
ar e me viro para eles. Meus olhos passam pelo rosto do homem e da mulher que me avaliaram na
primeira fase e depois param exatamente no novo jurado.

O terceiro jurado tem rosto peculiar: olhos castanhos grandes, as sobrancelhas grossas,
lábios finos e cabelos cor de piche. Meu cérebro demora um pouco para processar o que está diante
de meus olhos, mas, de imediato, sinto que o conheço de algum lugar. Minha Nossa Senhora! É
aquele homem!

Seus olhos ainda estão me avaliando enquanto procuro por algum sinal vital dentro de mim. E
agora? Ah, minha Nossa Senhora! Eu estava indo tão bem! Não deixe que eu perca essa
oportunidade!

Ele permanece me fitando com um olhar impenetrável e, em seguida, torna a fitar o caderno
em sua mesa e abre um sorriso de canto de boca, que estranhamente me causa medo.

— Nome? — ele indaga com os olhos no papel.

— Camille Souza Silva, se-senhor — gaguejo.

Ele anota algo e torna a me olhar, deixando a caneta e o papel de lado.

— Bom dia, Camille. Sou Orlando Ortega, diretor geral deste ateliê. — Ele embrenha os
dedos uns nos outros, apoiando os antebraços em cima da bancada e continua dizendo: — Eu, junto
aos meus colegas, avaliarei suas peças hoje e, caso acharmos que você atende às expectativas de
nossa empresa, que são muito altas, por sinal, direi a você se está apta ou não a trabalhar conosco.

Aquiesço.

— Está bem.

— Sua primeira vez aqui? — ele pergunta.

— Sim, senhor.

— Ótimo. — Ele risca alguma coisa.

O outro jurado toma a vez da fala.

— Pode começar, senhorita.

Engulo o nó em minha garganta e começo a colocar as ideias no lugar.

As peças. As peças. As peças, repito mentalmente, tentando me concentrar apenas em minha


coleção a partir de agora.

— Então... essa é minha coleção primavera-verão. Como as cores vibrantes estão em alta,
resolvi harmonizar isso com o floral, um clichê da estação, mas que sempre está em alta e as
mulheres adoram.

— De onde você tirou que as mulheres adoram floral? — Orlando me pergunta, com uma
sobrancelha arqueada. — Algum resultado de uma pesquisa em específico?

— Não, senhor. Mas minha irmã, minha madrasta e eu...

— Esqueça isso. Se não há pesquisa, seu argumento não é válido. — Ele é seco ao dizer. —
Tente falar sem achismos. Seja uma profissional. Aliás, onde está o curso de costureira no currículo?
— Sua voz é branda, porém suas palavras saem afiadas feito lâminas.

— Eu não tenho curso.

— Não tem curso? — Ele sorri, olhando para Jeff e inspirando fundo. — E o que está
fazendo aqui?

— É q-que... — gaguejo nervosamente, com os olhos ardendo.

A voz da outra jurada, chamada Roberta, me salva.

— Não foi colocado como pré-requisito no anúncio de seleção em nosso site, Orlando.

— Quem disse para fazer isso? — Orlando questiona e a outra jurada o olha como se tivesse
sido desafiada, porém ela o enfrenta.

— O senhor.

— Eu?

— Nós conversamos sobre isso na reunião antes do senhor ir a Búzios.

Orlando pisca os olhos e em seguida umedece os lábios. Ele torna a tocar as costas em sua
cadeira.

— Devo ter me esquecido.

— Búzios deve ter causado esse efeito de esquecimento no senhor — Roberta comenta.

— Tão debochada. Mais tarde eu te dou uma lição, abusada — Orlando replica e a mulher
revira os olhos.

Jeff toma conta da situação mais uma vez e me direciona as palavras:

— Pode começar com o vestido que nos apresentou na primeira fase? Eu aposto que nosso
diretor irá apreciá-lo, assim como Roberta e eu.

— Claro! — digo baixinho, com a confiança totalmente abalada, e começo a apresentar a


proposta do meu "vestido modelo". Falo como foi feito e explico cada detalhe, virando o manequim
de costas e mostrando a fenda atrás.

Antes que eu passe para o próximo manequim, Orlando comenta:

— Deprimente, não me empolgou nem um pouco. — Ele faz uma pausa. — Aliás, acho que
você pode ir embora agora. É provável que não goste de nenhum desses modelos. — Ele franze os
lábios ao fitar minhas roupas, que passei noites em claro para costurar.

Que filho da mãe sem coração!, penso, indignada, com vontade de enfiar a cara dele em um
cocô de cavalo. No entanto, apesar de saber que suas duras palavras talvez sejam motivadas por
alguma antipatia, elas acabam me atingindo da mesma forma.

Seguro as lágrimas que se acumulam em meus olhos.

— Não leve a sério as palavras de nosso diretor. Eu amei. Continue — Roberta diz.

Eu não tenho mais um pingo de ânimo para apresentar as próximas peças, no entanto, tenho
que fazer. Reúno um pouco de força para não sentir mais vergonha do que já senti e vou até o fim.

Completo a apresentação e me preparo para ser dispensada.

— Nossa, eu amei cada peça! São delicadas e ao mesmo tempo são de tirar o fôlego.
Compraria todas elas! — Roberta diz e olha para Jeff, que também concorda.

— Realmente, garota. Você tem talento! Por mim, você fica com uma das vagas. — Ele olha
para Orlando, que faz uma pausa dramática.

— Estou vendo que vou ter que contratar mais gente para pôr no lugar de vocês. Péssimo
gosto! — Ele olha para minhas peças. — Todas são de muito mau gosto. Tecido fajuto...

— Nós temos tecidos bons, Orlando — Roberta replica. — Se ela conseguiu fazer isso
usando chiffon, imagina usando nossos...

— Não é apenas isso, Roberta. Não gostei de nenhum. — Ele olha para mim e diz
impiedosamente: — Está dispensada!

— Orlando, você pirou?! A garota é muito boa!

— Não me agradou. Eu não contrato essa daí nem a pau!

Roberta revira os olhos.

— Tudo bem, pessoal. Muito obrigada mesmo pelo espaço e pelo tempo. Eu já vou indo —
digo, me preparando para tirar os manequins, para despi-los no camarim atrás.
— Obrigada você, querida. Você foi ótima. — Ela lança um olhar terno e eu retribuo com um
sorriso sepulcral.

Começo a retirar meus manequins enquanto ouço um tom de celular. Como não é o meu, e sim
da mesa de jurados, continuo andando com o manequim para o camarim quando escuto o nome dele.

— Gabriel? A que devo a honra de sua ligação? Confesso que estou surpreso! Onde
conseguiu meu número?

Uma pausa se faz, enquanto sinto meu coração acelerar ao escutar o nome dele.

— Gael. Claro! — Orlando torna a dizer. — Eu deveria ter imaginado. — Seu olhar pousa
em mim. — Advinha quem está em minha frente agora?

Um silêncio se faz uma vez, seguido de um sorriso debochado.

— Eu já a dispensei. Essas porcarias que sua amiguinha faz não são o estilo da Ortega! Por
que você não a contrata para mexer no maquinário de sua mãe? Aposto que ela seria menos
incompetente do que usar uma de costurar.

Seu Gabriel parece xingá-lo.

— Calma. Por que tamanha grosseria? — Ele ri, zombador. — Sabe, quando eu a olhei agora,
senti que teria uma péssima manhã. Mas agora estou vendo que não poderia ter sido melhor. Mande
mais gente sua para eu dispensar. Será um prazer. Até mais ver! Que seu dia seja fodidamente
desgraçado, igual a você!

Eu o vejo encerrar a chamada, enquanto meu coração sobe e desce descontroladamente ao


ouvir as palavras amargas, cheias de ódio, sendo direcionadas ao seu Gabriel.

Abaixo a cabeça quando ele faz contato visual, e me preparo para sair dali em passos largos.

— Ei! Você! — Dou o primeiro passo, quando o filho da mãe fala.

Estremeço ao perceber que ele fala comigo. Ergo o olhar ressabiada.

O cavaleiro das trevas me olha de cima a baixo.

— Está contratada.
Sabe aquela dúvida que não sabemos se fomos abençoados ou contemplados com o azar
mascarado de sorte? É exatamente assim que me sinto carregando minhas roupas até minha
motocicleta. Não sei se eu comemoro ou apenas lembro das palavras algozes daquele homem sem
coração. Mas, pensando melhor, eu devo estar saltitante por ter sido contratada.

Eu. Como estilista? Em um ateliê chique de Curitiba?

Apesar de tentar e esse ser meu objetivo quando vim a essa seleção, não imaginei que fosse
sair daqui contratada. Ainda mais quando dei de cara com aquele homem.

Sinto meu celular vibrar mais uma vez, então aproveito para encaixar as roupas na haste
improvisada na garupa da moto e tirar o celular do bolso.

Abro a conversa de seu Gabriel e vejo que ele enviou pelo menos umas quinze mensagens.
Concentro-me nas últimas.

"Perdão."

"Eu estou profundamente envergonhado."

"Isso foi minha culpa. Se você não tivesse vindo à minha casa ontem à noite, esse idiota não a
dispensaria!"

Digito rapidamente:

"Eu fui contratada."

Por alguns segundos, não obtenho nem um sinal de que ele está me respondendo. Oh, céus! Eu
sinto minha garganta mais seca, meus olhos arderem, sem saber exatamente o que seu Gabriel acha
disso, afinal, me interessa saber onde eu estou me metendo.

Prendo a respiração quando ele responde:

"Esteja aqui às 19 horas. Eu estarei esperando a senhorita."

Estranhamente sinto um calor invadir minhas veias quando leio a mensagem de palavras
mandonas. Seu Gabriel nunca havia se mostrado um mandão, pelo menos, não que eu tenha
percebido. No entanto, sinto que as palavras incisivas e irredutíveis revelam seu humor neste exato
momento.

Penso que não seria muito bom me encontrar com um homem solteiro à noite em sua casa,
ainda mais com esse tom autoritário nas palavras, no entanto, como eu já disse, tenho que saber onde
estou me metendo.

"Ok."

Respondo. E, em seguida, peço a Nossa Senhora para me proteger essa noite.


13 | SABADO À NOITE

Camille

Depois de avisar ao meu pai que irei sair esta noite, escolho uma roupa mais confortável para
ir à casa de seu Gabriel: uma blusa branca de mangas, jaqueta preta de couro e calça térmica de
zíper, além do tênis branco — claro, o novo coringa da mulher moderna. Me parece perfeito, pois é
provável que não iremos a nenhum outro local além da sua casa.

Vou até a sala e planto um beijo na cabeça de Donatella, que está sentada no sofá com o
celular nas mãos, provavelmente namorando por mensagens de texto.

— Estou indo! — a aviso.

Ela desgruda os olhos da tela, espichando-se para trás.

— Espera aí. Para onde? — Ela me olha de cima a baixo, e continua enrugando o nariz. —
Que cheiro é esse? É o perfume novo que você nunca usou?

— Um dia eu teria que usá-lo, não é? — Jogo uma piscadela a ela, sorrindo e caminhando
para fora de casa antes que ela pergunte mais do que eu posso responder, pelo menos, não agora.

Acabo dizendo ao meu pai que irei à casa de Manuela, afinal, o que meu pai pensaria de mim
se eu dissesse que visitaria a casa de um homem solteiro? Mesmo sendo maior de idade, não soaria
muito bem aos seus ouvidos. Ele está tão radiante com minha contratação, que nem se importa em
perguntar o horário que voltarei. E para falar a verdade, essa felicidade toda não me surpreende.
Apesar do sonho de me ver trabalhando no serviço público, sentia que mesmo assim ele torcia para
eu dar certo com os meus sonhos com a moda.

Quando abro o portão gradeado e coloco meus pés na calçada de casa, avisto quatro homens
de preto ao lado de três carros Sedans de luxo. Reconheço um dos homens, Estêvão. Ele quase
sempre está perambulando pela mansão de seu Gabriel com um pequeno aparelho enfiado na orelha
direita.

— Boa noite, senhorita.


— Boa noite, Estêvão — digo, um pouco confusa, enquanto fecho o portão.

Como ele sabe meu endereço?, penso e, em seguida, respondo minha própria pergunta em
pensamento. Claro, o senhor que me trouxe em casa ontem deve ter dado essa informação a ele.

— O senhor Átila está a esperando. — Sua voz grave diz enquanto abre a porta traseira do
carro atrás dele.

Meu cérebro dá um nó.

— Como? O seu Gabriel está aí? Aí den-dentro? — gaguejo.

É certo que eu já estava indo me encontrar com ele, mas odeio ser pega de surpresa. Ainda
mais pelo seu Gabriel e seus seguranças com caras de poucos amigos. Ele já me intimida demais com
aqueles olhões azuis.

Estêvão pigarreia, enquanto fito a porta aberta, e ele analisa:

— Em alguns segundos irá chover. Será mais saudável se a senhorita entrar agora.

Pisco os olhos duas vezes.

— Claro. — Peço licença e me curvo para adentrar a penumbra dentro do veículo. Me sento
no banco de couro e inspiro fundo o cheiro almiscarado que emana do homem grande ao meu lado.

Um silêncio sepulcral se faz e ainda não tenho coragem de encará-lo, enquanto sinto seu olhar
me estudar.

— Você é estonteante linda do seu jeito, senhorita Camille. Mas se tivesse um pouco mais de
confiança, iria ser um pecado perfeito.

Enrubesço com suas palavras e sinto ele sorrir ao meu lado, como se eu fosse algum tipo de
divertimento seu. Oh, droga! Eu sou tão patética que mal consigo agir naturalmente aos seus olhares
mais insistentes. Dou uma encorpada na voz e comento olhando dentro de seus olhos:

— Pensei que o senhor não saísse de casa.

Comprimo o lábio inferior quando vejo seus cabelos úmidos penteados para trás e sua boca
severamente vermelha por causa do frio. Arranco-lhe um sorriso e ele apruma seu corpo para mais
perto do meu.

— Eu pensei que não seria educado da minha parte não buscá-la em casa, já que vamos jantar
juntos.
De repente, se torna mais difícil sustentar o olhar quando ele está me fitando assim, tão de
perto. Sinto que meu corpo vai entrar em chamas a qualquer momento, mesmo que lá fora esteja
fazendo 8°C.

Ele ergue sua mão grande para os cabelos em meu ombro e os afasta para o outro lado,
sorrindo em seguida, me deixando zonza.

— O senhor pode parar de fazer isso?

— Isso o quê? — Ele franze o cenho.

— Sorrir.

Ele fica curioso.

— Por quê? Ele lhe incomoda?

— Esqueça. É coisa da minha cabeça.

Ele sorri mais uma vez e sussurra antes de darem partida no carro:

— Ok. Teremos a noite inteira para conversarmos sobre as coisas em sua cabeça, senhorita.
A noite toda — ele repete o final sussurrando e estranhamente sinto os pelos de minha nuca eriçarem
e meu peito acelerar as batidas.

Oh, seu Gabriel! Por que de repente o senhor está assustando o meu coração?

— O quão malvado seu primo pode ser? — pergunto a seu Gabriel, depois de terminarmos de
jantar o incrível filé ao molho madeira.

— Ele é um pouco... — Ele pensa em alguma palavra. — Revoltado. Mas não fará mal a
você, não se preocupe. Eu não deixarei. — Ele inspira fundo. — Mas é claro que eu preferia que a
senhorita não trabalhasse para os Ortega. Orlando é uma pessoa difícil, sempre foi, mas nos últimos
anos tem se tornado um irritante filho da mãe.

— O problema dele... — Comprimo os lábios. — Não tem nada a ver com o senhor?

Ele franze o cenho e parece pensar em uma resposta satisfatória.


— Não vou mentir, senhorita Camille. Meu primo não aprecia minha presença, e talvez ele
pense que eu tenha algo a ver com algum tipo de infelicidade no passado dele. No entanto, eu sou
inocente. Infelizmente, é ele que carrega seus próprios problemas, e eu não tenho absolutamente nada
a ver com isso.

Ele continua me olhando depois de falar essas palavras, que não fazem muito sentido para
mim, e então me tranquiliza:

— Novamente, não se preocupe com isso. Ele não fará mal a você.

— Eu acho bom, seu Gabriel. Eu não tenho nada a ver com essa treta. Logo agora que
consegui um emprego bom e poderei me livrar do seu Reinaldo... — penso alto. Quem seria pior?
Seu Reinaldo ou o lorde das trevas? Eu não quero nem imaginar.

Seu Gabriel sorri, e eu pergunto ressabiada:

— O que foi? Onde está a graça?

Ele pigarreia e explica:

— Gostei desse tom informal. Quem sabe você não esquece o "seu Gabriel" e me deixa uns
anos mais jovem?!

— Perdão, seu... — Engulo em seco e digo: — Gabriel.

Seus olhos parecem brilhar e seu braço cair um pouco mais para o meu lado.

— Dessa forma, creio que estamos mais íntimos, não é?

Enrubesço no mesmo minuto e gaguejo:

— E-eu a-acho que preciso de algo para beber.

Ele olha para minha boca lentamente e depois retorna a fitar meus olhos. Levanta-se de sua
cadeira e vai até o aparador ao lado da mesa e pergunta:

— Vinho ou cerveja? — Ele ergue uma taça de vinho nas mãos, armando um biquinho nos
lábios.

— Água.

Ele sorri silenciosamente, balançando a cabeça para os lados, e torna a procurar algo no
balde de gelo enorme no aparador da sala de jantar e, em seguida, se aproxima.

— Isso é muito previsível. — Ele despeja a água em minha taça e se senta ao meu lado, com
sua taça de vinho.

— Pensei que gostasse mais de cerveja — analiso, timidamente, me lembrando do dia


anterior.

Ele ergue uma sobrancelha e confessa:

— E gosto. Mas em um jantar, prefiro o gosto adocicado do vinho.

— Foi você quem fez? — digo, me referindo ao filé ao molho madeira antes servido em
nossos pratos.

— Como sabe? — ele pergunta, surpreso.

— Não vi ninguém aqui além de seus seguranças... Imaginei que você pudesse ter cozinhado.
— Tento explicar meu raciocínio.

Ele solta o ar com força e abre um sorriso.

— Eu estava brincando. Infelizmente, sou um fiasco na cozinha. Eu queria ser um daqueles


homens elegantes que sabem fazer coisas saborosas em suas panelas de aço inox, mas sou apenas um
homem sem talentos...

— Oh, você deve ter algum tipo de talento. Não seja tão despretensioso. Todo mundo tem.

— É. Talvez eu ainda não tenha descoberto... — Ele tamborila os dedos em cima da


superfície de madeira e fica pensativo. — Ou talvez eu tenha largado de mão.

Ele meneia a cabeça e me diz, abrindo um sorriso:

— Vamos mudar de assunto?

— Por que você tem tantos seguranças? — A pergunta sai no automático e seus lábios se
fecham. — O senhor corre algum perigo? Desculpe-me fazer essa pergunta, mas a quantidade de
seguranças que andam com o senhor...

— Eu sou filho de político, senhorita Camille — ele me interrompe. — Mas você tem razão.
Há muitos seguranças, talvez minha mãe exagere um pouco em me emprestar os dela.

Ele toma um gole espesso do vinho em sua taça e indaga:

— Alguma pergunta mais que gostaria de fazer?

— Na verdade, eu tenho.
— Sim. Faça! — ele incentiva, colando as costas na cadeira atrás, enrugando o cenho.

— O senhor pode me dizer onde fica o banheiro mais perto? — pergunto, sentindo um
incômodo no pé de minha barriga.

Sua expressão facial relaxa, os vincos da testa desmancham, e ele diz:

— No corredor aqui ao lado, segunda porta à esquerda.

— Tudo bem. Com licença. — Levanto-me da cadeira, desajeitada, trombando em um talher,


que me faz temer o pequeno estrondo no chão. Mas diferente do que eu espero, o garfo não encontra o
chão, pois seu Gabriel é descomunalmente mais rápido em apará-lo.

Meu coração suspira e eu o elogio:

— Ótimo reflexo!

Ele coloca o garfo de volta à mesa e agradece seriamente:

— Obrigado.

Ficamos nos olhando e imediatamente digo mais uma vez:

— Com licença! — Caminho em direção à porta ao lado e tenho a sensação de que posso
fazer xixi na roupa a qualquer momento.

Não é tão difícil de encontrar a porta do lavabo nesse corredor iluminado pela luz fabricada
das lâmpadas fluorescentes. Tão logo me coloco para dentro às pressas, abaixando o zíper da minha
calça com agilidade e me sentando no vaso para fazer xixi. Ah, que alívio!

Fico ali por alguns segundos e logo me levanto. Subo a calça para fechar o zíper, mas o
bendito zíper não quer fechar. Parece estar emperrado no pedaço de tecido da própria calça. Faço
mais uma tentativa, o que é em vão.

— Minha Nossa Senhora, como é que vou voltar com a calça assim? — murmuro,
preocupada. — Esse zíper vai ter que subir — digo, decidida, olhando para o pedaço de metal que
parece me desafiar.

Inspiro fundo e inconscientemente encolho a barriga, numa tentativa de fazê-lo levantar, e


mando brasa, soltando um gritinho arranhado. No entanto, desequilibro e bato com as costas na porta,
e se isso não bastasse, a porta se abre e quase caio para trás, se não fosse por um corpo enorme.

Recobro o fôlego e endireito minha coluna, me virando para ver quem está ali.
Eu já deveria imaginar. É seu Gabriel com sua taça de vinho, que balança dentro do vidro.

Seus olhões azuis sérios me desconcertam quando descem pelo meu corpo e param
exatamente em meu zíper aberto. Imediatamente cubro essa parte com minhas mãos, enquanto minhas
bochechas estão em brasas.

— O que houve com sua calça?

— Nada — respondo rapidamente, sorrindo de nervoso.

— Como nada? Parece que seu zíper está emperrado... — Ele analisa, me encarando e dando
um passo à frente.

Recuo um passo, adentrando novamente o banheiro.

— Já aconteceu com o senhor também?

— Sim. Talvez eu possa ajudar — ele diz, entrando no banheiro também, deixando a taça em
cima da pia ao lado.

— Como é que o senhor pode me ajudar? — Fico constrangida quando percebo que o espaço
é muito pequeno para duas pessoas.

Instintivamente, me viro e sinto meu bumbum encostar no mármore da pia.

— Eu posso subi-lo, com cuidado ou com força, dependendo do pedido.

Engulo em seco e gaguejo:

— N-não pre-precisa, seu Gabriel, está muito difícil. — Pressiono minhas mãos contra a
calça.

— Deixe-me tentar, eu insisto.

Ai, ai. Como é que vou sair dessa?

— Tudo bem. Mas o senhor tem que ser rápido.

— Ser rápido é a minha especialidade, senhorita Camille.

Aquiesço e abaixo minhas mãos. Ele toma conta da situação.

— Eu vou contar de um até três. No três, você prende a respiração, tudo bem?

— Certo.

Aperto meus olhos, sentindo suas mãos em meu zíper enquanto minhas narinas aspiram o
cheiro inebriante de seu Gabriel. A essa hora todas as partículas do meu corpo estão em combustão e
eu não posso fazer nada além de torcer para que esse momento embaraçoso passe logo.

— Como vai querer? Rápido ou devagar?

— Rápido, por favor.

Ele inspira fundo, dizendo:

— Ok!

— Um — ele começa a contagem fitando meus olhos, tão próximo que sinto seu hálito
ventilar meu rosto —, dois — aspiro o máximo de ar possível e o prendo em meu pulmão —, três!

Sinto as mãos de seu Gabriel forçarem o zíper enganchado, que persiste em ficar no mesmo
lugar.

— Ah, que teimoso! — seu Gabriel grunhe entredentes, enquanto insiste em completar a
missão.

Com muita dificuldade, ele consegue finalmente subir o zíper em um rompante e descansa as
mãos no mármore atrás de mim, literalmente me encurralando. Estou mais ofegante do que ele, e olha
que nem fui eu quem fiz o esforço todo.

Seus olhos azul-cobalto resvalam para minha boca, que está entreaberta, inspirando ofegante,
e agora nervosa. Nossas respirações se misturam e nem me lembro mais como me chamo quando
vejo ele molhar os lábios, fitando os meus. Oh, céus! Onde eu fui me meter?

Ele pega a taça de vinho atrás de mim, sem deixar de me olhar nos olhos nem por um
segundo, e bebe o líquido me espreitando. Minha Nossa Senhora, o que é isso que estou sentindo no
pé da barriga? Eu preciso cortar esse clima, antes que eu me perca neste banheiro. Diga algo,
Camille. Pense em algo.

— E-esse vinho está b-bom? — gaguejo.

— Aham — ele sussurra. — Você quer provar?

— Não, não. Como disse, eu não bebo nada alcoólico. — Enrubesço, hipnotizada pelos
lábios convidativos.

— Há outra maneira de provar.

Minha cabeça dá um nó e pergunto, sem tirar os olhos de seus lábios:


— Qual?

— Assim. — Suas mãos tomam meus quadris e nos encapsula em um espaço ainda menor que
nos encontramos, estreitando o olhar e abaixando seu rosto em minha direção lentamente. Ele
encontra meus lábios delicadamente, e meu corpo se incendeia abruptamente quando sente a maciez
dos seus.

Seu Gabriel é um homem muito grande, e senti-lo tão próximo assim, me faz sentir totalmente
tomada por ele. Sua língua parece pedir passagem, e automaticamente entreabro minha boca para
sentir seu sabor. Minha Nossa Senhora, como ele é saboroso!, penso quando uma onda de calor
invade meu baixo ventre com o beijo lento. Ele pressiona seu corpo contra o meu, que está recostado
na pia de mármore, e um arquejo escapole entre meus lábios.

A intensidade de nossas investidas se torna mais urgente, como se estivéssemos necessitados


disso. Suas enormes mãos me erguem e me sentam na pia de mármore, e depois sua boca torna a
colar na minha sem pudor. Oh, céus! O que eu estou fazendo? Isso é certo? Onde isso irá parar?
Meu corpo responde queimando. Que seja com ele ainda mais perto.

— Que boca gostosa — ele geme, se afastando um pouco.

Ofego, ainda de olhos fechados, sentindo que preciso de mais. No entanto, droga! A
lembrança do dia da igreja me vem à mente e em seguida abro os olhos, dando de cara com o rosto
de seu Gabriel.

Meus sentimentos estão confusos, como se não soubesse distinguir o que acontece dentro de
mim.

— Desculpa. Eu tenho que ir.

— Desculpe-me você. Eu que... — Ele inspira fundo. — Eu gosto de você, Camille. Com
todo respeito, eu realmente quero conhecê-la. Não quero brincar com você, se é isso o que a
senhorita tem em mente...

— Eu realmente tenho que ir, seu Gabriel.

Ele franze o cenho e pergunta:

— Aconteceu alguma coisa?

— Não, não. Não aconteceu nada. Mas é que eu preciso resolver algo.

Ele se afasta e desço da pia.


— Você vai voltar? — ele pergunta.

Meneio a cabeça em positiva e afirmo:

— Sim. Eu voltarei.

Ele umedece os lábios e se afasta para o lado, me deixando ir, como se fizesse isso a
contragosto.

— Tudo bem.

Despeço-me dele com um beijo tímido no rosto e saio em direção à sala, com o coração
eletrizado e as pernas bambas. Eu preciso fazer isso antes de me entregar a isso. Eu preciso tentar
uma última vez.
14 | ORTEGA ATELIÊ

Camille

— Filha, estamos quase fechando. — Ouço a voz serena à minha frente.

Eu havia pedido ao padre Antônio que me deixasse ficar alguns minutos no banco de madeira
envernizado do confessionário e, mesmo sem entender muito bem, ele me cedeu um tempo até o
horário de fechamento dos portões da paróquia.

— Tudo bem, padre. Eu já estou saindo.

Seu olhar curioso me analisa pela última vez e, em seguida, ele me cumprimenta ternamente.

— Que Deus a abençoe, filha. Boa noite.

— Boa noite, padre.

Ele se retira, arrastando sua longa batina preta para fora do alcance de meus olhos.

O silêncio se alastra pelo pequeno espaço novamente e a única coisa que escuto é minha
respiração.

Murmuro baixinho:

— Como eu sou patética. — Sorrio fracamente, olhando para minhas mãos. — É claro que ele
não irá aparecer. — O que me fez pensar que isso funcionaria? — pergunto-me e concluo que é
melhor esquecer. Essa é a última vez que venho aqui — converso internamente e repito, resignada:
— A última vez.

Eu não posso ficar presa a um momento que tive com um estranho. Não, não posso.

Olho para a parede ao lado, que separa o confessionário, recobrando alguns flashes de
memórias daquele dia.

Endireito a coluna, inspiro fundo e me levanto. Foi bom enquanto durou. Sonhar acordada
com um amor impossível. Não me parece muito inteligente persistir nisso, ainda mais quando essa
memória se conflita com o sentimento dentro de mim toda vez que estou com ele, com seu Gabriel.
Acordo exatamente às cinco e meia da manhã. Faço o café e me preparo para ir à malharia de
seu Reinaldo, afinal, ainda não assinei contrato com o grupo Ortega, então acho mais sensato só pedir
minhas contas quando todas as pontas estiverem bem amarradas.

Se fosse por Manuela, eu já teria ligado par o seu Reinaldo no exato momento que saí da
seleção, no entanto, expliquei por telefone que não posso meter os pés pelas mãos com aquele
homem de coração de gelo, o Orlando. Ela também ficou chocada quando disse que o primo dos
Átila Cordeiro seria meu novo chefe, mas não se importou muito, pois ficou ainda mais surpresa
quando comecei a contar as coisas que ela aprontou na sexta-feira.

Enquanto beberico o café com leite em minha xícara, sozinha na cozinha, meu celular vibra na
bancada. Tia Lúcia e meu pai ainda não acordaram, muito menos Donatella. Despretensiosamente,
espio as notificações e vejo que se trata de um e-mail, cujo a mensagem tem como remetente o nome
do Ateliê do Grupo Ortega. Quase me engasgo com o café e abro o e-mail rapidamente.

"Prezada, Camille Souza. Esteja nas dependências da Ortega às oito horas para assinar o
contrato na sala do diretor geral. Você assumirá suas funções ainda hoje.

Atenciosamente, Roberta Gusmão."

Olho para o relógio no topo da tela do meu celular e dou um gole espesso do café em minha
xícara. Minha Nossa Senhora, eu tenho apenas uma hora e meia para estar lá e nem devidamente
arrumada estou! Olho para minhas roupas confortáveis e analiso se estão adequadas para um dia de
trabalho em um ateliê conceituado de Curitiba.

Coloco um vestido preto com meia-calça da mesma cor e combino um sobretudo vermelho e
botas de cano médio.

Depois de acordar Donatella com o barulho no quarto, caminho a passos largos para a
garagem na frente de casa e guardo minha bolsa embaixo do banco da moto.

No momento, não penso em mais nada, a não ser estar de volta àquele prédio às oito horas.
Mas mesmo com uma pequena euforia dentro de mim, dirijo com calma e cautela, para não correr o
risco de algo dar errado em meu primeiro dia.

Depois de estacionar minha moto na frente do prédio comercial, me dirijo aos elevadores,
alisando a barra do meu vestido.

Não demoro muito para chegar à recepção da diretoria, e aguardo ser chamada na sala do
diretor geral. Nas cadeiras estofadas ao lado, reconheço os rostos de duas mulheres que também
estavam na seleção. Talvez tenham passado para a vaga, assim como eu.

Olho para os quadros de pinturas mórbidas contrastando com o branco que reveste todo o
andar e penso: será que foi o lorde das trevas quem pôs todos esses quadros melancólicos aqui?
Cruz-credo, que coisas mais assustadoras!

— Senhoritas, podem entrar.

A mulher exuberante sai da recepção em um vestido lindo de tecido azul-marinho e nos


convida a entrar na sala do diretor. Assim como minhas colegas naquele cômodo, me levanto e
caminho para dentro daquele compartimento.

O ambiente é bem maior do que eu imaginava. Além da mesa do diretor no fim da sala, há
também outra mesa maior, que parece ser de reuniões, em que Orlando está sentado e nos espera, ao
lado de Roberta.

Ele nos convida a sentar e até parece mais amigável do que no último dia que o vi. Não
detém o olhar maléfico, mas ainda é cedo para fazer qualquer conclusão.

— Não fiquem nervosas, eu sempre tenho essa conversa antes de mandarem os novos
funcionários ao Recursos Humanos para acertar a contratação. Espero que tenham trazido RG, CPF,
carteira de trabalho...

— Sim, senhor — as mulheres ao meu lado confirmam, se sentando nas cadeiras laterais. E,
em seguida, faço o mesmo e meneio a cabeça em positivo.

— Maravilha! — Ele retira alguns papéis do fichário em cima da mesa. — O assunto da


nossa conversa é decidir em quais setores trabalharão. Como devem saber, nós não trabalhamos
somente em parceria com lojas de departamentos, mas também temos nosso próprio ateliê de alta-
costura. Pensando nisso, uma de vocês foi contemplada a trabalhar em nosso ateliê de vestidos de
noiva...

— O quê?! — Roberta indaga, embasbacada. E depois sussurra para ele: — Você está louco,
Orlando?! As novatas sempre vão para o setor de moda de departamento! Será muito perigoso você
arriscar...

— Eu estou pedindo sua opinião? — Ele abre um sorriso para a colega de trabalho.

— Sua mãe não vai gostar nem um pouco disso...

— Ela não gosta da maioria de minhas decisões, e nem por isso deixo de tomá-las.

— Você sabe que elas são boas, mas jogá-las no meio do caos será crueldade. Elas precisam,
no mínimo, de 10 anos de experiência para aguentar a pressão de Consuelo. É bem provável que
Consuelo não a aceite. Ela quer alguém com bagagem...

— Não se esqueça que Consuelo também é funcionária desse ateliê!

— Experimenta não fazer os gostos dela para você ver ela pedindo as contas e a Ortega
perdendo a melhor estilista de alta-costura de Curitiba para outra empresa.

— Cale-se, Roberta! Guarde suas opiniões para você! — Orlando resmunga entredentes, e
depois pronuncia: — Raissa Beckman e Mariana Campelo, vocês vão fazer parte, a partir de hoje, de
nossa equipe de criação de moda para departamento.

As mulheres ao lado suspiram, aliviadas, e eu só pisco os olhos, ainda não sabendo o que
isso pode significar. Será que ir para um setor de alta-costura é tão ruim assim?

— Camille Silva, você fica com o setor de vestidos de noiva de alta-costura. Você irá
auxiliar Consuelo, a senhora mais simpática dessa empresa.

Roberta abre a boca, dizendo:

— Como você é mau, Orlando Ortega.

Ele olha para Roberta e a responde:

— Não nasci para agradar a todos, coração.

Ele se levanta e diz:

— Estão liberadas para irem ao RH. Depois se apresentem aos setores designados.

As meninas ao meu lado se levantam radiantes, enquanto eu ainda não sei exatamente o que
isso pode significar.

— Senhorita Camille — Orlando me chama a atenção antes de sair de sua sala.

— Sim?!
— Se você tiver namorado, é preferível que termine.

— Como? — indago.

— Você irá entender. Logo, logo irá entender — ele diz por fim, com um meio-sorriso.
15 | AVE DE RAPINA

Camille

Eu não nunca pensei que trabalhar com o que eu gosto poderia ser tão cansativo. Ah, estou
mortinha da silva! Parece que um caminhão passou por cima de mim três vezes seguidas e sugou toda
a energia de minhas pernas.

Não havia sossegado nem por um segundo depois de atender dez clientes em uma única tarde,
indo de um lado para o outro para fazer ajustes em peças extremamente delicadas. Sem contar com os
olhares assustadores de uma senhora chamada Consuelo. Segundo a recepcionista do ateliê de
noivas, a última ajudante pediu atestado médico para curar-se de uma depressão e nunca mais voltou.

Apesar do mau humor, dei o meu melhor em meu primeiro dia. E, embora os avisos sobre
dona Consuelo tivessem me assustado, sinto que ela não me odiou tanto assim no primeiro dia.

— Estêvão? — Enrugo o cenho, indo em direção à minha moto e encontrando o amigo


segurança de seu Gabriel ao lado de meu veículo na rua.

Já anoiteceu e o clima parece muito agradável comparado ao de hoje mais cedo.

— Boa noite, senhorita Camille.

— O que você está fazendo aqui? — Enfio as mãos nos bolsos do sobretudo.

Ele me estende um celular e automaticamente semicerro os olhos.

— O que é isso?

— Meu chefe quer falar com você.

Olho novamente para sua mão e depois fito Estêvão. Retiro uma mão do bolso e pego o
aparelho e o coloco contra minha orelha.

Inspiro fundo e digo:

— Alô?!

Não ouço nada e, em seguida, escuto a respiração dele pesar.

— Estou com saudade.


Minha nossa! Sua voz grave adentra meus tímpanos com essas palavras e, de repente, me
sinto desconcertada. Como se responde a uma frase dessas?

Responda algo, Camille.

Responda! Meu cérebro se agita.

— O senhor já comeu?

Hãm?! Que pergunta mais desconexa, resmungo internamente, insatisfeita com minha pouca
habilidade em elaborar frases contextualizadas quando estou desconcertada.

— Ainda não. Estou esperando você.

— Ah, não posso, seu Gabriel. Estou mortinha de cansaço...

— Dia longo?

— Dia difícil. — Assinto.

— Oh, entendo. — Ele é complacente pela primeira vez, não dificultando as coisas para mim.
Mas logo em seguida desfere: — Eu posso lhe fazer uma massagem.

Minha mente faz uma viagem, me fazendo imaginar as mãos de seu Gabriel em meu corpo.
Engasgo com a saliva, tossindo copiosamente, e afasto o celular do ouvido para que ele não escute.

Estêvão caminha para o meu lado, ameaçando me dar tapinhas nas costas. Recuso sua ajuda
no mesmo momento, garantindo que eu estou bem.

Aos poucos me recomponho, inspiro fundo e torno a falar com seu Gabriel:

— Eu realmente...

— Está tudo bem com você?

— Sim, senhor.

— Oh, já falei que não gosto do "senhor", posso até perdoar o bendito "seu Gabriel", mas
"senhor"...

— Me desculpa, seu Gabriel.

— Só desculpo se estiver você aqui em dez minutos...

— Eu...

— Aceite a carona de meus seguranças... Estêvão irá conduzir seu veículo, não se preocupe.
Olho para o homem grande engravatado ao meu lado e não o imagino dirigindo minha
lambreta.

— Até logo, senhorita Camille. Estarei preparando sua massagem.

Ele desliga, me deixando completamente sem opções.

Abaixo o celular e entrego a Estêvão, que me conduz à porta traseira de um Sedan preto.
Sento no banco estofado e ele me diz:

— As chaves.

— Como? — pergunto, ainda confusa.

Ele olha para minha magrela de aço, e eu entendo.

— Claro.

Tiro as chaves do bolso da frente e as entrego a Estêvão.

Ele bate a porta ao meu lado, e automaticamente olha pela fresta do banco do motorista em
minha frente, observando a rua atrás do para-brisa. E pergunto-me quando foi que minha vida se
tornou tão agitada.

De vez em quando, espio pelo vidro detrás do carro e me divirto com o enorme Estêvão
dirigindo minha magrela em nosso encalço. Ele é muito grande e suas pernas mal cabem no espaço
entre o banco e o guidão.

Chegamos ao condomínio Águas Claras e sou conduzida para dentro da mansão por Estêvão,
que parece sumir na penumbra quando me leva até o jardim.

Do outro lado da grama, lá está ele, encostado na mesa de madeira, com uma taça de vinho na
mão e um controle remoto na outra. Ele está muito bonito. Como sempre. Em uma camisa cinza de
malha fina e um calção preto, tão leve quanto a camisa. Ele parece entretido com as caixas de som,
mas não por muito tempo. Dou um passo à frente, o suficiente para fazê-lo me notar em sua casa.

Respiro fundo e vou até ele, e a cada passo, perco o ar quando me aproximo de sua beleza
intimidadora. Seu olhar é tão intenso, que preciso de algum tempo para me acostumar a olhá-lo, sem
desviar minha atenção para baixo. No entanto, agora, eles não parecem mais tão tímidos ao encará-
lo.
Paro em sua frente, ficamos em silêncio e ele aponta:

— Você não fugiu.

Esboço um sorriso e digo:

— Por que fugiria?

Noto ele arregalar levemente os intensos olhos azuis, e depois arquear a sobrancelha, me
estudando com calma.

— Isso me parece um bom sinal. Certo? — ele indaga, curioso.

Mordo o lábio inferior, tentando não sorrir de sua curiosidade.

— Não quero nem saber o que foi fazer na noite passada quando saiu daqui, mas você me
parece muito melhor do que antes. E olha que você já me parecia incrivelmente boa. — Ele
semicerra os olhos, e eu enrubesço.

Ele suspira e pergunta:

— Com fome?

— Um pouco.

Meu estômago me desmente, uivando alto. Droga!

— Certo. — Ele sorri com os dentes lustrosos, descendo o olhar para minha barriga, e em
seguida me convida a sentar à mesa de madeira, decidido a me alimentar com umas comidas
deliciosas de sua casa.

E, basicamente, sou bem alimentada por ele.

E até sinto que comi demais camarão com purê de abóbora salpicado de amêndoas.

— Estava muito bom — digo, levando o guardanapo aos lábios. Ele observa cada movimento
de soslaio, fazendo minhas mãos se atrapalharem um pouco. — Eu não posso ficar mais... Sabe...
Meu corpo está do...

— Dolorido? — Ele enfia as mãos dentro dos bolsos.


— Sim. — Assinto timidamente. — Tive um dia cheio.

Levanto-me em um rompante, e ele faz o mesmo.

— Eu vou indo.

Ele tira a cadeira entre nós, e fica mais próximo.

— Eu já havia prometido uma massagem — ele diz, persuasivo, com a voz grave e sexy, que
confunde os sentidos de qualquer um, ou, pelo menos, os meus.

— Não precisa...

— Prometi.

— Realmente, não precisa. O senhor também deve estar cansado.

— De quê?

Penso rápido em um argumento plausível.

— De ficar nessa casa o dia inteiro. Fazer nada também cansa.

Ele solta o ar com força, pousando as mãos na cintura, me reprovando:

— Oh, como você é má.

— Ah, não, não... Eu não quis dizer exatamente isso... Oh, me desculpe...

Ele parece se divertir com meu constrangimento e aproveita para dizer:

— Só desculpo se aceitar minha massagem.

Por que ele sempre faz isso? Nunca mais irei me desculpar.

— Prometo a você que não irá se arrepender. — Ele se aproxima e dou um passo para trás.

— Tu-tudo bem — gaguejo. — Eu aceito.

Ele sorri e olha para o lado, dizendo:

— Venha comigo.

Ele pega minha mão e me puxa pelo deque até a lateral da sauna, rente à piscina. Não sei
exatamente para onde ele está me levando, mas algo me diz que ele já tem tudo planejado.

Passamos por uma ampla porta e alcançamos uma sala quentinha, de teto de madeira.

— Caramba! Você tem uma cama de fazer massagem — digo, boquiaberta, olhando para a
maca no meio da sala.

— É, parece que eu tenho...

— Já deveria ter imaginado isso, essa casa é o paraíso! As melhores coisas estão aqui! —
Isso sai automaticamente e viro o rosto para o lado, para encará-lo. — Qual é o primeiro passo? —
questiono. — Eu nunca fiz isso.

— Nunca? — Ele desce o olhar para minha boca.

Coro ferozmente e pigarreio.

— Nunca.

Ele torna a olhar em meus olhos e diz:

— Fique com as costas livres e deite-se na maca, por favor.

Ele se vira para pegar algo na mesa ao lado. Olho para o meu vestido e balbucio:

— Como ficarei apenas com as costas livres?

— Eu acho que você irá precisar de uma tolha. — Ele se vira com um óleo na mão e me joga
uma toalha branca. — Eu ficarei aqui fora até que se ajeite na maca — ele diz com a voz mais grave
que o normal, fazendo o caminho de volta para a porta.

— Ok.

Aquiesço.

Ele me abandona na sala e me sinto totalmente desnorteada. Calma, Camille. É só uma


massagem.

Inspiro fundo e começo abaixando o zíper do meu vestido ao lado, ficando apenas de peças
íntimas e meia-calça preta. Deixo meu vestido no aparador branco e me deito na cama, ainda com a
toalha branca na mão.

— Certo. Para que serve essa toalha?

— Pronta?! — Escuto a voz abafada de seu Gabriel do outro lado da porta.

Ainda perdida, desisto da toalha e a enrolo em meus cabelos.

— Sim, tudo pronto! — digo em uma oitava mais alta, com o coração tamborilando.

Escuto a porta se abrir e sinto minha pele queimar. Ele provavelmente estará tendo uma visão
estranha de mim nesse momento, e me pergunto se é normal toda essa situação. Mas é claro que é.
Tento pensar que estou usando biquíni em uma praia e não me incomodar tanto por estar com poucas
roupas em sua frente.

No entanto, me incomodo mais ainda, pois o silêncio ainda se arrasta pela sala. Temo que ele
esteja fitando meu corpo. E, finalmente, vejo ele se aproximar e tocar minha cabeça. Ele desfaz a
toalha de meus cabelos.

— Isso não se usa aqui — ele diz com a voz grave eletrizante.

Ele abre a tolha e coloca sobre meu bumbum e pernas, me fazendo arrepiar.

— Assim — ele diz, e minha cabeça pega fogo, imersa em minha vergonha.

Droga! Por que eu não pensei isso antes?, resmungo mentalmente, me martirizando e
encaixando minha cabeça no buraco na maca.

— Com licença — ele me pede antes de tocar a pele de minhas costas com o frescor de um
óleo que cai deslizando na curvatura de minha espinha dorsal. Ele repousa o óleo em cima da mesa
ao lado e pede tocando o fecho do meu sutiã: — Posso?

— Uhum.

Aquiesço, temerosa.

Ele faz com cuidado e parece ter habilidade com isso. Tão logo minhas costas estão
desnudas, à vista dele.

Sua mão se encaixa na minha lombar e sobe por minha coluna em uma pressão que parece ser
perfeitamente calculada. Ele faz esse movimento pelo menos dez vezes.

— O que foi fazer ontem? — Sua pergunta surge inesperada.

Abro a boca para responder e sou sincera:

— Fui à igreja.

— À igreja? — ele indaga, enquanto suas mãos alcançam meus ombros. — O que foi fazer
em uma igreja àquela hora da noite?

— Eu tenho a opção de não responder? — pergunto em tom educado.

Suas mãos deslizam para os flancos de meu corpo, me arrancando um gemido fraco.

— Claro! — Ele abandona meu corpo por um instante, e em seguida sinto ele usar o
antebraço para massagear minhas costas. — E então? Resolvido? — Sua voz em minha nuca me faz
estremecer.

— Resolvido o quê?

— O que foi fazer na igreja. Parecia que você precisava disso para continuar aqui ontem à
noite...

— Si-sim. — Completo com mais convicção: — Está tudo resolvido.

Ele desce os antebraços para minha lombar e me arranca outro gemido fraco.

Seu Gabriel continua massageando minhas costas com muito respeito, apesar dos espasmos
incontroláveis quando ele toca algumas partes mais sensíveis. Sem dúvidas, estou relaxada por estar
ali. Um tipo de relaxamento em demasia, à flor da pele, o qual nunca provei antes na vida.

— Eu irei me retirar para que você se vista.

Assinto quando seu Gabriel termina a massagem, encaixa o fecho do meu sutiã e sai da sala.
Quando me levanto, com o corpo ainda quente, sinto-me renovada. Caramba! Essa massagem cura o
cansaço mesmo! Até parece que estou novinha para outro round de uma tarde turbulenta de trabalho.

Pulo para fora da maca e coloco meu vestido, pensando em seu Gabriel. Ai minha Nossa
Senhora, por que de repente eu fiquei com medo de mim? Meus pensamentos com seu Gabriel
parecem mudar de intensidade e começo a imaginar o que teria acontecido se ontem eu tivesse
ficado.

Balanço a cabeça, coloco meus saltos e me direciono para fora da sala. Avisto seu Gabriel,
encostado na parede, com as mãos enfiadas nos bolsos. Avanço em sua direção, e em seguida coloco-
me à sua frente. Seu corpo está inclinado de uma forma descontraída, que dá impressão que temos a
mesma altura.

Faz-se um silêncio ensurdecedor quando o olhar de seu Gabriel para em mim.

— Está tudo resolvido? — Ele recobra o assunto.

Subitamente, uma energia lasciva começa a se alastrar pelo meu corpo, enquanto ele me olha
daquela forma tão tranquila e ao mesmo tempo intensa. Tão intensa que me rouba o fôlego.

— Sim.

Tenho a sensação que o azul em seus olhos fica ainda mais escuro. Lentamente, ele desce o
olhar para minha boca, quase em ritmo letárgico, e diz:
— Se quiser ir agora, Estêvão a está esperando.

Engulo em seco, lutando contra minha vontade de ficar olhando para sua boca, ou até mesmo
contra o desejo que estou de tocá-la outra vez com os meus lábios.

— Tudo bem — pronuncio fraco. — Tchau. Obrigada... Sabe... por tudo.

Vejo-o assentir e então giro meus calcanhares para o lado, dando o primeiro passo com muita
dificuldade em direção ao jardim, ainda com meus sentidos relutantes. Eu não quero ir embora agora,
como se ficar na frente dele fosse algum tipo de vício. Neste exato momento, meu desejo está quase
reivindicando o controle de minhas pernas e as fazendo ficar. E, impressionantemente, elas fazem
isso.

Eu paro e me viro, lentamente.

Continuo parada, olhando para ele como uma bobona, enquanto me estuda com os olhos.

— Tem certeza? — Sua voz está rouca, e isso me deixa ansiosa.

Engulo em seco e respondo:

— Sim. Eu quero isso.

Meu peito sobe e desce enquanto ele continua me fitando.

Ele desgruda as costas da parede, endireitando a coluna, e vem até mim a passos firmes,
beirando a brusquidão. Resfolego quando ele pega a lateral do meu rosto com uma mão, erguendo um
pouco meus cabelos. Ele resvala seus dedos para minha nuca, enquanto continuamos nos encarando
de perto.

Ele toma meus lábios, unindo nossos corpos em um movimento ávido e decidido. Seu Gabriel
conduz meu corpo para o lado e imprensa nossos corpos contra a parede, me fazendo sentir cada
parte dele e arfar. Oh, céus! Meu corpo pega fogo quando sua língua esgueira para dentro da minha
boca no mesmo ritmo que sua mão aperta meus cabelos e a outra passeia pela lateral de minha
cintura.

Um gemido escapa dos meus lábios, enquanto ele cola nossas testas. Droga! Eu quero mais.
Muito mais disso, penso enquanto os lindos olhos azuis dele estão em minha boca entreaberta.

E, em um rompante, suas mãos caem para minhas coxas e me elevam com destreza, me
encaixando em seu corpo, fazendo meu vestido subir. Ele toma minha boca novamente, com um beijo
mais rápido, sem pudor. Noto que posso senti-lo rígido entre o meu meio e sinto a necessidade de
senti-lo cada vez mais contra mim.

Ele separa nossos rostos novamente, enquanto estamos ofegantes, me fazendo querer mais.

— Por que parou? — sussurro, desejosa.

Vejo-o sorver uma boa quantidade de ar, ainda com o rosto próximo ao meu. Ele passa
rapidamente a língua entre os lábios e responde:

— Senhorita Camille, não sou um homem para brincadeiras... Se continuarmos,


provavelmente teremos o maior caso de bolas duras já existente...

— Como?

— Responda-me: você já transou com alguém antes?

Nego com um menear de cabeça.

Ele sorri fracamente e sussurra:

— Como eu imaginei.

— Está tão na cara? — pergunto, um pouco ofendida.

Ele ignora minha pergunta e me coloca no chão.

— Você está cansada, podemos deixar isso para depois.

— Claro... — digo nervosamente.

— Você volta amanhã?

Dou um passo para trás, me recompondo.

— Eu vou pensar.

Ele semicerra os olhos, abrindo um sorriso e dizendo:

— Gostei.

— Do quê? — Ergo uma sobrancelha.

— Dessa informalidade. Eu acho sexy.

— Eu? Sexy? — Começo a sorrir.

— Se assistisse meus sonhos matinais, não teria dúvidas disso.

De repente, Estêvão surge do nosso lado e cambaleio para trás, embrenhando as mãos nos
cabelos, com as bochechas em brasa e me perguntando se ele viu ou ouviu algo.

Ele parece nos analisar por um segundo e é rápido em dizer:

— Havia me chamado?

Seu Gabriel respira fundo e responde:

— Sim, Estêvão. Providencie que levem a senhorita Camille em segurança para casa.

— Sim, senhor.

Seu Gabriel me fita e em seguida me acompanha até a porta de entrada de sua casa. Ele
atravessa o jardim até um dos carros pretos ali.

Estêvão fala alguma coisa para o motorista do segundo carro e arrepio quando seu Gabriel
fala em meu ouvido:

— Não demore, baby. Eu estarei à sua espera. — Ele lambe rapidamente o lóbulo de minha
orelha e meu corpo gela.

Meu coração perde uma batida e tento agir naturalmente.

— Tudo bem.

— Mandarei mensagem. — Ele se afasta e me lança uma piscadela, descaradamente lindo.

— Ok.

— Ok.

Estêvão abre a porta traseira do segundo carro.

— Obrigada pela massagem... — Complemento, tentando parecer mais educada em


agradecer: — Foi muito prazerosa.

— O prazer foi meu. — Vejo ele esgueirar as mãos para os bolsos do calção enquanto faço
um esforço em contemplar sua figura majestosa, sem deixar que uma baba escorra do canto da minha
boca.

Aquiesço pela última vez, me preparando para girar os calcanhares e adentrar o carro, mas
paro quando um pressentimento ruim me acomete.

Neste momento, um pingo despenca do céu e acerta precisamente a ponta do meu nariz. Olho
para cima, antes de entrar pela porta de trás do Sedan preto, observando por alguns segundos a chuva
que não foi anunciada, e, de repente, o estouro de um disparo comprime meu coração.

O mundo à minha volta parece entrar em câmera lenta. Olho para trás, apreensiva, e fico
aliviada de vê-lo de pé. Tão logo, escuto ao meu lado gritos de ordens das vozes dos seguranças, que
estão em polvorosa.

Endireito a cabeça em direção à rua do condomínio em minha frente e encontro o motoqueiro


de roupas brancas e capacete da mesma cor com a viseira fumê. Ele guarda algo dentro da jaqueta e,
em seguida, acelera em uma cadência assustadora em direção ao portão que já está aberto para outro
morador em um SUV.

Estêvão brada:

— Não deixem ele sair, porra!

O carro que está atrás, dá a ré rapidamente e canta pneu em direção ao portão de saída. Mas é
tarde demais. Ele já havia pegado vantagem saindo ao lado do carro à frente.

Ainda confusa, dou um passo para trás e torno a olhar seu Gabriel nos olhos, como se eu
exigisse uma explicação. Seus olhos estão mais escuros e sua pele mais pálida. Noto que ele leva a
mão para a parte inferior da barriga e meus olhos deslizam para aquela parte de seu corpo. Droga!
Minha Virgem Maria, não pode ser! Sangue!

Em um ímpeto, corro até onde ele está, e seu Gabriel não aguenta. Cai sobre os joelhos.

— Deite, por favor. Você tem que deitar — peço desesperada, enquanto ele me obedece,
estirando o corpo na grama. Uma chuva fina irrompe em cima de nossas cabeças. — ELE ESTÁ
FERIDO! POR FAVOR, CHAMEM UMA AMBULÂNCIA! ELE ESTÁ FERIDO!

Estêvão se aproxima rapidamente e se ajoelha do outro lado, tocando em seu Gabriel.

— Argh, que merda! — Estêvão rosna, indignado, olhando para o lugar que sangra.

Vendo seu Gabriel desfalecer diante de mim, estou em choque. Completamente em choque.
16 | 26 DE JUNHO 2007

Gabriel

10 anos atrás

Que droga de fim de semana!, praguejei em pensamento quando acordei naquela barraca e
senti meu rosto arder, provavelmente encoberto de pasta de dente.

Eu preferia mil vezes estar com todas aquelas amigas estranhas da minha mãe em um almoço
beneficente a ter que aturar os cuzões de meus colegas de turma por três dias em um acampamento.

Raspei a pasta branca de minha testa e a fitei em minha mão, inspirando fundo e tentando
relevar mais uma daquelas molecagens. Pivetes imundos! Quantos anos eles têm?! Treze?!

Em um ímpeto, vi o zíper da barraca descer, e Ramos apareceu, arregalando seus agressivos


olhos castanhos.

— E aí, Átila? Acordou bem? — ele perguntou em tom de troça.

— Vá se ferrar, Ramos!

Levantei-me de uma vez só, saindo da barraca e caminhando para fora, sentindo a terra macia
sob os meus pés e a brisa fria da manhã exalar entre as folhas das árvores ao redor da clareira.

Era verão quando o professor de biologia sugeriu que fizéssemos um acampamento nas
redondezas de São José dos Pinhais, valendo a média do semestre. Não tive escapatória. Tive que
vim. Pelo menos se eu tivesse tido a sorte de ter ficado resfriado, como Gael, o professor Pascual
talvez me perdoaria, me passando um trabalho escrito.

Ramos se juntou aos outros idiotas, sorrindo de meu desgosto com aquela maldita pasta
impregnada em meu rosto. Entre eles, estava Rafael, Alex e Orlando, meu primo.

Orlando se aproximou sorrindo e sussurrou:

— Calma, primo. Se você demonstrar raiva, eles irão insistir em te sacanear ainda mais.

— Eles? — Arqueei uma sobrancelha. — Somente eles?


Inspirou fundo e tentou me admoestar:

— Você também tem que ser mais flexível e se adaptar às regras do pessoal da nossa escola...

— Regras?! Criadas por quem?! Por esses idiotas?!

— Primo, você é novato, veja bem o que está falando. Soube que Gael se deu muito bem...

Aproximei-me dele e disse entredentes:

— Olha só, cara! Eu só quero passar esse último ano em paz. Já me basta minha mãe ter me
obrigado a entrar nessa merda de colégio. Só quero passar de ano e ir para a maldita faculdade sem
ter que ficar com essa ladainha de merda dos seus amigos!

Ele deu um passo para trás e enfiou os braços nos bolsos do moletom.

— Avise aos seus amigos que se não pararem, vou socar a cara de cada um!

Ele sorriu sarcástico e disse:

— Avisarei.

Retribuí o sorriso falso e disse:

— Obrigado.

Nunca fui agressivo, mas esses moleques já estavam enchendo demais meu saco!

Orlando fez o caminho de volta ao outro lado da clareira e tornou a ficar ao lado de Alex, o
garoto de cabelos dourados, que abraçou Orlando de lado.

Bando de imbecis! Sacudi a cabeça e fui até à barraca do professor Pascual, pedir permissão
para lavar meu rosto no rio ali próximo, que me permitiu apenas se eu acompanhasse Maria Júlia, a
irmã de Ramos, ao riacho também.

— Tudo bem. Onde ela está?

A voz tímida respondeu atrás de mim:

— Aqui.

Olhei para a garota de calças folgadas demais e blusa comprida demais, e ela acenou.

Maria Júlia tinha os cabelos castanhos e olhos claros iguais do irmão, a única diferença era
que ela usava óculos de lentes grossas e aparentava ser introspectiva. Não me recordava de vê-la ela
se enturmando nos corredores da escola, o que me levou a crer que tínhamos algo em comum.
— Ok.

Acenei com um menear de cabeça para o professor Pascual e saí ao lado da garota de cabelos
castanhos para dentro da mata de pinhais.

Seguimos em silêncio até ela dizer:

— Parece que conhece bem o lugar. Anda sem hesitar.

Fitei-a de soslaio rapidamente e respondi seriamente:

— Conheço essa mata como a palma da minha mão.

— Você já esteve muitas vezes aqui?

— Aham — respondi, sem muita delonga.

Quando eu era criança, meu pai sempre me levava ao clube de tiros ali perto. No entanto,
quando tomou posse como juiz federal há alguns anos, ele passou a me levar menos. Mas nunca perdi
o costume de vim com Diego, o segurança de minha mãe. Ele dizia que nunca havia visto de perto um
bom atirador igual a mim, e que eu deveria investir nisso. Como meu pai nunca foi contra e sempre
via com bom grado a prática de tiros esportivos, me permitia vim com Diego; mas minha mãe nunca
deixou que eu levasse a prática de tiros a sério. Segundo minha mãe, ela tinha planos menos
violentos para mim. E também menos conflituosos, como o destino de meu pai.

— Nunca esteve em São José dos Pinhais? — Fiz a pergunta à garota, que parecia querer
interagir.

— Não.

— Nunca? — perguntei, surpreso. — Perdão a surpresa. É que São José dos Pinhais é quase
um bairro de Curitiba, pensei que todo curitibano viesse a São José dos Pinhais.

— Prazer, eu sou a curitibana que nunca veio a São José dos Pinhais — ela disse em tom de
troça e me arrancou um sorriso fraco. — A não ser quando vou ao aeroporto, mas nunca estive, de
fato, aqui a passeio.

Continuamos andando sob os cascalhos, e ela perguntou:

— Por que anda sempre calado na escola?

— Você me parece muito calada também.

Ela retorceu o lábio inferior, enfiando mais os braços para dentro dos bolsos do moletom.
— É diferente. Eu sou tímida — ela respondeu, encolhendo os braços e me observando. —
Você não me parece ser tímido.

Ela parecia estar interessada demais, então expliquei:

— Sou novato. Como é o meu último ano nesta escola, não vejo razões para fazer amigos. Até
porque seu irmão e os amigos deles parecem não terem simpatizado comigo...

— Oh, isso é inveja!

— Inveja? — perguntei, confuso.

— Meu irmão está com inveja, pois me parece que Virginia ficou caidinha por você e ele está
desde o primeiro ano tentando conquistá-la. Pelo menos, da parte do meu irmão, é invejinha pura.
Não ligue. Ele é um babacão. Os amigos dele são apenas umas marias vai com a outras.

— Desculpe-me, quem é Virginia? — Pisquei duas vezes e disse seriamente à Maria Júlia. —
Espero que isso acabe logo...

— Se eu conheço Ramos, isso só está começando. Quando meu irmão cria antipatia por
alguém, ele não desiste até a pessoa pedir para sair da escola.

— Sinceramente, eu queria poder sair dessa merda de escola. Mas agora não dá. Se seu
irmão continuar fazendo merdas contra mim, eu vou acabar esmurrando a cara dele.

Ela engoliu em seco e concordou:

— Você está coberto de razão. Só não quebre o nariz e os dentes dele. Sabe como é que é: ele
é o queridinho do meu pai, meu pai literalmente morreria se algo de muito sério acontecesse com
meu irmão. Se for o caso, apenas dê uma surra de leve, para aquele babaca aprender a respeitar os
outros.

Fitei-a de lado e me perguntei em voz alta:

— Que tipo de irmã você é?

— Uma irmã que preza pela justiça. Sabe como é que é: olho por olho, dente por dente.

Dei de ombros, não dando muita importância ao seu senso de justiça. É cada gente estranha
nesta escola, pensei e seguimos pelo caminho de cascalhos até o riacho.

— De quem vocês são filhos? — perguntei.

— Doutor José Ramos...


— Já ouvi falar dele, mas não recordo exatamente onde. — Franzi o cenho.

— Ele é juiz, como o seu pai. Ou pelo menos era.

— Como sabe disso?

— Ele não é candidato a senador nestas próximas eleições? Céus, todos na escola sabem de
quem você é filho! Todos sabem também que seu pai é irmão do Senador Otávio Ortega, pai do
Orlando.

Ela tinha razão. As notícias se espalham rápido, já era de se imaginar.

Continuamos caminhando, e eu perguntei:

— Seu pai é legal com vocês?

— O quê? Dr. José Ramos? — Ela sorri, sarcástica. — Comigo, não. Mas com o meu irmão
queridinho, ele é maravilhoso.

— Não vejo razão para ele não ser legal com você.

— Eu sou muito diferente dele. O meu irmão sempre compartilhou das mesmas opiniões dele,
é normal um pai se apegar ao filho que se pareça mais com ele.

— E sua mãe?

Ela inspira uma boa lufada de ar e responde:

— Já não está ente nós.

— Eu sinto muito.

Um silêncio sepulcral se faz e ela desabafa:

— Ela se foi quando me deu à luz. Talvez seja essa a razão também por meu pai não
conseguir gostar tanto de mim. Desde que nasci, não o vi com nenhuma mulher. — Ela sacodiu a
cabeça e disse: — Não sei por que estou falando isso. Sinto que estou falando demais.

Ela encerrou o assunto quando chegamos ao riacho. Essa foi a primeira e a última vez que
falei com Maria Júlia Ramos.
Enquanto Marcos, o instrutor de tiros, apresentou aos meus colegas de escola o clube que
ficava perto do acampamento, fiquei em meu canto, quieto, observando os instrumentos novos que
chegaram depois da última vez em que estive aqui.

— Professor, já que estamos aqui, podemos praticar agora? — Ramos perguntou a Pascual.

— Não, meninos. Sei que vocês estavam ansiosos para me fazer essa pergunta, mas viemos
apenas visitar o local, aproveitando que estamos perto, não é? — Ele sorriu nervosamente. —
Conhecimento nunca é demais — ele disse em um tom sábio.

Fiz a leitura labial quando ele murmurou para si mesmo:

— Nem a pau eu deixo esses pivetes com uma arma na mão.

— Por que não? — o instrutor interveio. — O clube é muito seguro, professor. Seus alunos
não terão problema algum com nossos equipamentos. São fáceis de manusear, e o mais importante,
são muito seguros.

— Então só vamos, pessoal! — Ramos vibrou com os colegas idiotas.

Pascual revirou os olhos nas órbitas enquanto o grupo de alunos seguiam o instrutor até a
pequena arena de alvos.

Os primeiros foram os alunos do segundo ano. Alguns preferiram não praticar, e outros
estavam ansiosos demais para puxar o gatilho; enquanto eu ficava ali, observando de longe.

Eu estava decidido a ficar no grupo de pessoas que não iriam atirar naquela tarde e ficar
apenas estudando meus colegas de longe, em cima de um caixote alto de madeira.

Orlando, assim como eu, preferiu não praticar. No entanto, os restantes de seus colegas
pareciam empolgados com as armas em mãos. Ramos obteve ótimos pontos para um principiante,
mas nada espetacular. Quem me surpreendeu mais foi Maria Júlia, mas ainda estava muito longe da
perfeição. E, por último, Marcos, o instrutor do clube, fez um pequeno show depois de todos os
alunos atirarem. Conseguindo pontos espetaculares, ele deixou todos de boca aberta com sua
precisão.

— Puta merda! Você é bom pra caralho! — esbravejou Ramos, e alguns alunos começaram a
bater palmas, impressionados.

— Ele deve ser o melhor, meninos! — O professor Pascual acenou respeitosamente a


Marcos.

— Não, não. Que é isso, gente. Estou longe de ser um dos melhores... — Marcos disse,
coçando o topo da cabeça.

— Se isso não é ser um dos melhores, o que é ser o melhor, não é mesmo? — professor
Pascual elogiou.

— Poderíamos ter resultados bem mais precisos se um dos seus alunos tivesse disparado
hoje.

— Um dos meus alunos? Quem? — Professor Pascual começou a olhar para os lados.

— Gabriel Átila — respondeu Marcos.

Em poucos segundos, todos os olhares naquela arena se voltaram para mim.

— Quer tentar, Gabriel? Aposto que seus colegas irão gostar de assisti-lo... — Apertei uma
das ripas de madeira do caixote, enquanto meus colegas observavam, taciturnos, como se esperassem
minha resposta.

Meu cérebro estava decidido a recusar. No entanto, dei um pulo do caixote e aceitei o
convite, indo em direção à minha primeira bancada. Eu estava louco para atirar, então não resisti à
tentação.

Coloquei apenas os fones e os óculos, recarregando a carabina BT65, minha preferida para
aquela modalidade. Dei um passo para frente e me posicionei atrás da bancada de madeira. Ergui os
braços e mirei o alvo, sorvendo uma boa quantidade de ar para os meus pulmões. Enquanto sentia os
olhares curiosos dos meus colegas sobre mim, posicionei minhas mãos menos de um centímetro mais
para cima. Perfeito! Puxei o gatilho, fazendo uma sequência de dez tiros.

Em seguida, fez-se ainda mais silêncio, como se isso fosse possível.

— E-ele acertou todos os dez no centro? — Pascual gaguejou. — No-no extremo centro?

— Oh, meu Deus! Ele foi muito bom! — A voz feminina de alguma colega de classe exclamou
entre os outros, que começaram a cochichar em polvorosa.

— Está cada vez melhor, Gabriel. Acho que está perdendo muitas medalhas fora das
competições. — Olhei para o lado, enquanto Marcos se aproximava.

— Obrigado. Mas não dá para eu me dedicar exclusivamente agora... — Ainda tinha o último
ano e minha mãe me definharia se eu reprovasse. Além de ter que enfrentá-la ao ir contra todos os
seus planos para mim.

Despretensiosamente, olhei para o lado e encontrei os olhares odiosos de Ramos, mas ignorei
completamente. Ramos era o tipo de adolescente chato que demoraria a amadurecer. Era melhor
ignorar.

Algumas horas depois

Para aquela noite, o professor Pascual achou melhor nos levar para dormir nos quartos de
madeira nos chalés ali perto da mata. Ele decidiu isto depois de ouvir em um noticiário na rádio
sobre a forte tempestade que estava por vir.

Antes de levar minhas coisas para o alojamento, decidi caminhar um pouco pela mata que eu
bem conhecia. De qualquer forma, uma coisa eu gostei de estar naquele acampamento: ter me
reconectado com a natureza. Isso me fazia bem e me trazia paz.

Enquanto sentia meus pés encolherem as folhas no chão, escutei o som de duas vozes
distintas, como se tivessem conversando em um tom mais baixo. Era um trecho estreito e cheio de
folhagens, quando me deparei com os rostos assustados de Alex e Orlando.

— Primo? — Orlando embrenhou os dedos nos cabelos, com os olhos arregalados mais do
que o normal. Ele gaguejou: — Há-há quanto tempo está aí?

Olhei para o lado e para Alex, calmamente, sem entender o motivo de tanta tensão.

— Eu acabei de chegar.

Alex parecia ser mais analítico, me olhando de cima a baixo.

— Tem certeza?

— Por que eu mentiria? — disse, desinteressado. Se eles tinham algo para esconder, que se
fodam! Eu ando preocupado apenas com meus problemas mesmo. — Com licença, estou indo —
avisei ao passar por eles e seguir meu caminho.
Enquanto me afastava, ouvi Alex dizer algo como:

— Não se preocupe, darei um jeito nele.

Me afastei até não sentir mais a presença deles atrás de mim. Parei quando encontrei a
pequena cachoeira de cima do rio Arraial e me sentei em uma das pedras às margens, observando a
água descer sob o céu turvo. Fiquei por ali pelo menos por mais duas horas.

Quando começou a escurecer ainda mais, decidi me levantar para pegar o caminho de volta,
no entanto, fui surpreendido por um grupo de quatro pessoas saindo da penumbra da floresta.

Forcei um pouco mais os olhos e reconheci Ramos, Alex e Rafael. E Orlando, que estava
logo atrás. Desci o olhar para as mãos de Ramos, me atentando à barra de ferro que ele segurava.
Neste exato momento, Rafael e Alex avançaram sobre mim, cada um segurando meu braço com força.
Não entendi muito bem o que estava acontecendo, por qual razão, mas desconfiava do que estava
prestes a acontecer.

Ramos se aproximou em seguida, com um sorriso sádico nos lábios.

— Não se preocupe, Átila. Este será apenas seu batismo. Depois dele, você estará apto a
conviver conosco e pensar muito antes de desacatar qualquer um de nós.

Alex murmurou ao meu lado:

— Você vai ficar bem caladinho depois dessa.

Depois Ramos avançou sobre mim, cravando a barra de ferro em meu ombro com toda sua
força, me fazendo ajoelhar. Após isso, o desgraçado decidiu esbagaçar meu rosto, com pancadas,
socos e pontapés.

A raiva em mim me consumia, e eu não sabia muito bem se saberia o significado de perdoar
depois daquele infeliz episódio em minha vida.

Depois de me deixarem à margem do rio Arraial com o rosto ensanguentado, fiquei ali por
mais algumas longas horas, deitado no chão, esperando a chuva descer, tentando engolir todo o ódio
que se alastrava pelo meu corpo. Eles não ficarão impunes, eu juro, eles pagarão por isso!, pensei
enquanto meu rosto latejava e ardia quando os pingos fracos de chuvas despencavam do céu e
atingiam minhas feridas.

Quando os pingos engrossaram, fiquei mais um pouco e depois me forcei a levantar. Manquei
pela mata, entre as poças de lamas e debaixo da chuva trepidando forte nas árvores. Cheguei ao
terraço do alojamento à meia-noite, e parecia que todos já haviam se recolhido para seus respectivos
chalés. Estranhei ninguém ter dado conta do meu desaparecimento momentâneo, nem mesmo Pascual
— o que deveria estar mais interessado na segurança dos alunos.

Fui até a bancada de chaves e peguei meus pertences ao lado da cadeira de madeira. Fitei o
painel de chaves e percebi que não sobrou nenhuma para mim. No entanto, em cima de minha bolsa
de trilha, havia uma de número 503, como se tivesse sido reservada para mim.

Eu dormiria ali mesmo se não fosse pelos meus machucados, mas não me parecia uma boa
ideia devido à situação de meu corpo. Então decidi enfrentar novamente a chuva barulhenta lá fora e
encontrar um quarto com uma cama quente e confortável. Parecia o mais sensato a se fazer.

Enquanto mancava pela pequena vila de chalés debaixo da chuva revolta, testemunhei alguém
de roupas pretas entrar na mata. Não deu muito bem para ver quem era, mas não me parecia muito
seguro para uma pessoa inexperiente andar sozinha por ali, ainda mais com essa tempestade. Foda-
se! No estado que estou, mal consigo me ajudar, quem dirá me importar com os outros!

Prossegui em busca do chalé de número 503 e finalmente o encontrei. Subi pela pequena
escada que dava acesso à porta de madeira e quando me preparei para enfiar a chave, a porta se
abriu sozinha devido ao vendaval que soprou atrás de mim. As luzes estavam acesas, o que me fez
avistar de início as cinco camas em minha frente. Não notei apenas isso, mas identifiquei os três
caras que já estavam deitados. Rafael, Alex e Ramos.

Não demorou muito para eu reparar em mais um detalhe.

Meu sangue gelou e minha cabeça foi a mil.

Todos eles estavam com as camisas manchadas, precisamente no peito. Todos eles pareciam
estar... mortos.

Fiquei estático apenas por alguns segundos, tão logo me virei para tomar o caminho de volta
e pedir socorro. Mas fui interrompido pela chegada de Orlando, que segurava um guarda-chuva preto
sobre sua cabeça e na outra mão apertava um celular. Devido à calmaria em seus olhos, supus que ele
não soubesse de nada. Não por muito tempo.
Sirenes, luzes vermelhas e pessoas agitadas debaixo de chuva foi o resumo da minha noite de
26 de junho de 2007. O fato é que amanheci em uma cela gelada de uma delegacia em São José dos
Pinhais e não sabia muito bem quando eu sairia dali.

— Átila — o policial me chamou e eu levantei lentamente.

O policial me acompanhou até uma sala próxima dali e encontrei a mulher que costumava não
demonstrar fraqueza do outro lado da sala. Minha mãe estava estática, segurando uma daquelas suas
bolsas que parecia pesar toneladas.

— Meu filho... — Ela andou em minha direção e me envolveu em seus braços, me apertando
muito mais do que o habitual. Eu gemi, devido aos machucados, e disse:

— Mãe, eu não fiz isso...

— Eu sei, Gabriel. Eu conheço você, meu filho. Você não seria capaz de uma barbárie
dessas...

O homem sentado atrás de uma mesa de metal se pronunciou:

— Precisamos conversar, Gabriel.

Minha mãe se afastou um pouco e disse:

— Gabriel, esse é o dr. Gustavo, um advogado especialista neste tipo de caso, tenho certeza
de que ele nos ajudará. Seu pai pegou o primeiro voo quando Pascual me ligou. Ele deve estar
chegando...

A porta se abriu e meu pai adentrou a sala irritado.

— Já está em todos os noticiários! Que merda você fez, garoto?!

— Cala a boca, Fernando! — minha mãe esbravejou. — Você acha mesmo que nosso filho
seria capaz?! — ela perguntou entredentes. Meu pai se calou e minha mãe continuou: — Nosso filho
é inocente e nenhuma notícia ruim sobre meus filhos irá atrapalhar a sua candidatura!

Meu pai olhou para o advogado, que começou a dizer:


— Ao que se sabe, dr. Fernando, seu filho apenas está aqui devido às acusações de seu
sobrinho, Orlando Ortega.

— Orlando? — meu pai balbuciou.

— Ele afirma à polícia que foi Gabriel quem atirou nas três vítimas, motivado por uma surra
que levou das vítimas horas antes do crime. Além das três vítimas terem levado um único tiro
certeiro no coração. O que reforça uma evidência, pois o que se fala por aí é que seu filho tem muita
intimidade com armas... — Ele me olhou e temi estar muito ferrado. — Mas pelo o que sei, não há
nenhuma prova concreta. Tudo o que se fala por aí são apenas suposições. Além de ainda não terem
encontrado a arma do crime...

Minha mãe disse:

— Meu filho, definitivamente, não fez isso! Não preciso ouvir o que os outros têm a dizer, eu
conheço Gabriel e ele seria incapaz... Faça o possível e até o impossível, mas o meu filho não irá
ficar na cadeia nem mais por uma noite! E, aliás, eu quero que Orlando pague por isso que fizeram a
Gabriel! Isso sim não ficará impune!

— Espere um momento, Orlando também é meu sobrinho...

— Disse bem, Fernando. Seu sobrinho! O que me importa mais nesse momento é Gabriel,
unicamente! Hortência que cuide desse moleque bárbaro que criou!

Naquela noite, as relações entre nossas famílias ficaram estremecidas. Minha mãe resolveu
quase todo o problema e, em poucos meses, fui ao tribunal. Lá fui absorvido por falta de provas. E
Orlando condenado a seis meses de trabalho comunitário ao confessar que participou do evento no
lago.

E, como eu disse, minha mãe resolveu quase todo o problema. Apesar das notícias veiculadas
anteriormente terem sido retratadas e apagadas, a memória coletiva não é algo fácil de se modificar.
Muitos achavam que eu realmente era assassino, já que de fato nunca encontraram o verdadeiro autor
do crime.

Parecia que as pessoas queriam o culpado a todo custo e fui escolhido para ocupar essa
função. Então foi quando minha mãe planejou minha mudança de país um ano após eu ficar recluso
em casa por conta das constantes represálias na rua, mas, antes disso, os atentados contra minha vida
começaram. A primeira vez foi no aniversário de minha mãe, em um jantar perto da varanda de um
hotel, um tiro quase acertou meu pescoço.
Quem? Eu não sabia quem exatamente estava interessado em minha morte, mas algo me dizia
que era o mesmo desgraçado que agiu naquela noite! Algo me dizia que eu também deveria ter
morrido naquela noite, no entanto, era só um pressentimento, já que não havia razões claras para isso.

Ao invés de sair do Brasil, decidi ficar. Eu ficaria em Curitiba até encontrá-lo frente a frente.
Fugir não me parecia que iria solucionar meus problemas, então resolvi ficar e talvez encontrar os
motivos por trás daquela noite. Os anos se passaram, muitos não se lembram mais do que aconteceu
no dia 26 de junho de 2007, mas ainda não fui esquecido por ele.
17 | DEIXA EU CUIDAR DE VOCÊ

Camille

— Por favor, eu quero acompanhá-lo, Estêvão. — Meu murmúrio soa como uma súplica em
frente ao hospital, quando esbarro pela quinta vez no homem alto.

— Você não pode ficar, senhorita. Os pais de Gabriel já devem estar chegando e o clima não
ficará favorável por aqui.

— Não me importo...

Estêvão suspira.

— Senhorita, por favor... — É visível a preocupação no reflexo de seus olhos castanhos.


Algo que me diz que ele está muito sobrecarregado com a situação, então decido não insistir. Estêvão
me parece uma boa pessoa e tento me resignar para não ter o risco de prejudicá-lo.

— Tudo bem.

— Ele ficará bem, senhorita Camille. Ele é um cara forte, Gabriel ficará bem. Acredite.

— Mesmo? — pergunto, receosa, me lembrando de sua pele pálida demais quando adentrou
pela porta da emergência.

Ele sorve uma boa lufada de ar e diz em um tom firme:

— Não existe outra hipótese em minha mente... — Ele comprime o lábio inferior e completa:
— Fábio a levará para casa.

Avisto de soslaio o motorista ao lado e Estêvão diz por fim:

— Amanhã mandarei buscá-la, se Gabriel estiver lúcido. Creio que será a primeira coisa que
ele me pedirá.

— Promete? — indago, aflita. Eu não quero perdê-lo. Oh, Senhor! Não deixe que algo ruim
aconteça com ele!

Estêvão enche os pulmões de ar, deslizando as mãos para os bolsos, olhando seriamente em
meus olhos.
— Eu prometo.

— Mas ficarei um pouco aqui — digo, irredutível.

— Na calçada? — Ele enruga o cenho.

— Sim. Só um pouco.

Ele aquiesce e diz:

— Não vá demorar. A temperatura mais tarde vai cair.

— Obrigada — agradeço sua preocupação e depois o vejo sair em direção à emergência.

Fico ali por mais algumas horas, com esperança de Estêvão voltar e me dar notícias. Mas ele
não o faz, e quando a temperatura cai bruscamente, Fábio vem até mim.

— Senhorita, eu estou cansado. Se não se importa, que tal irmos embora? Não há muito o que
se fazer aqui — ele diz, sem jeito.

— Claro. — Levanto-me da calçada e assinto para o homem calvo. — Perdão. Vamos?

Ele meneia a cabeça em positivo, e logo sigo em seu encalço, ainda com o coração na mão.

O dia foi horrível. Além de dona Consuelo encasquetar com meu suéter azul logo pela manhã,
me atrapalhei diversas vezes por estar com a cabeça em outro lugar. Além de pinicar levemente as
costas de uma noiva com um alfinete devido à minha totalmente incapacidade de me concentrar
naquele momento.

Depois de um longo dia de trabalho, finalmente caminho pelo saguão do prédio da Ortega, em
direção à saída, enquanto Manuela diz do outro lado da linha:

— Ele vai ficar bem, Camille. Mas você já pensou na possibilidade do Gabriel não ser boa
gente? Isso é estranho. Levar um tiro em frente de casa. É no mínimo suspeito. Na verdade, o
bonitão sempre me pareceu suspeito.

— No momento eu não estou pensando se é ou não suspeito, Manu...

— Espera aí! É o que eu estou pensando?


— O que você está pensando?

— Você já está de quatro pelo bonitão? Oh, Camille, eu esperava mais de você! Até semana
passada você estava pensando que encontrou sua alma gêmea no confessionário da igreja... Oh,
não! Isso é muito para minha cabeça.

— Manuela, ele levou um tiro! Você acha que estou pensando nisso?

— Ah, claro! Ele não pode morrer antes de você dar sua vagina para ele, não é mesmo?!
Eu entendo você, amiga. Ficaria da mesma forma se estivesse no seu lugar.

— Ok, isso foi muito depravado. Desisto de você, Manuela.

Ela solta uma risada fraca.

— Só estou brincando, boba. Adoro suas reações quando falo sobre sexo. Aposto que suas
bochechas estão quentes agora.

Minhas mãos tocam a pele de meu rosto e lamento por eu ser tão previsível. Inspiro fundo e
confesso a Manu antes de desligar:

— De qualquer forma, eu não quero que nada de ruim aconteça a ele, Manuela. Você está
certa, estou gostando dele e perdê-lo agora seria muito frustrante. — Antes que ela faça qualquer
gracinha fora de hora, me despeço: — Estou saindo do prédio agora. Amanhã nos falamos.

— Ok, senhorita. Estarei aqui rezando para que não fique viúva precocemente.

— Bye, Manuela.

— Hasta la vista, baby! E se cuide!

— Ok.

Encerro a chamada e encontro os olhos expressivos de Orlando passando por mim. Sinto
minha espinha gelar com sua presença, e graças a Deus ele segue seu caminho até o carro parado em
frente ao prédio. Ele adentra o banco de trás do veículo e logo em seguida desaparece pela avenida
ao lado.

Ele estava logo atrás de mim?

Ele teria escutado algo sobre Gabriel? Provavelmente ele já está sabendo. Notícias ruins se
espalham como rastilho de pólvora.

Apesar de ele não ter me abordado, só o seu olhar me causa calafrios. Sacudo a cabeça
levemente e agradeço por ele não ser meu chefe imediato. E me disperso desses pensamentos,
tornando a procurar o homem de terno preto e cabelos acastanhados.

Meus olhos correm pela rua gélida e o encontro do outro lado da rua. Fico o fitando por
alguns segundos, um tanto surpresa, e em seguida caminho em sua direção. Ele abre a porta traseira e
eu entro sem fazer qualquer pergunta.

Estêvão entra pela porta ao meu lado e se senta como uma estátua de mármore. Às vezes, ele
me lembra o exterminador do futuro, de tão rígida que é sua postura.

— Gabriel já está em casa — ele diz, fitando o banco da frente.

Meu coração suspira aliviado, me fazendo ficar por alguns instantes em silêncio.

— Como imaginei, ele me pediu para que eu viesse...

— Leve-me até ele, Estêvão. Por favor — digo em tom baixo, porém suplicante.

— Fábio, prossiga — ele dá ordens ao motorista, que logo dá partida calmamente pela
avenida à frente.

Enquanto me aproximo do quarto de Gabriel, escuto uma voz madura dizer impetuosa:

— Isso é inadmissível, Gabriel! No condomínio? Pago todos esses homens para o meu filho
levar um tiro em frente à própria casa?! Estêvão está com os dias contados...

Escuto a voz rouca tentar falar algumas palavras, mas é impedido de continuar por Gael:

— Não faz esforço, cara! Fica quieto. — Ele parece se direcionar à primeira voz e sai em
defesa de Estêvão. — Mãe, Estêvão já trabalha para Gabriel há muitos anos... Ele tem cuidado bem
da segurança...

— Desse jeito, Gael?

— Foi só... — Sinto que engole em seco e completa: — Um tiro. Gabriel está bem. Olha para
ele.

A voz de Gabriel recende pelo espaço irredutível.


— Quem decide sobre minha segurança sou eu, minha mãe! Se quiser tirar seus homens de
minha segurança, fique à vontade, mas Estêvão fica! — ele diz com um tom de voz rigoroso.

— Por enquanto. Se alguma coisa lhe acontecer de novo, eu mesma virei com uma camisa de
forças e te obrigarei a sair do país.

— Não acontecerá de novo. — A voz de seu Gabriel sai rouca.

— Mandarei Fernando pressionar a polícia novamente quanto a isso. Graças a Deus não
perfurou nenhum órgão! Isso é quase um milagre!

— Aliás, onde está o papai? — Gael indaga.

— Ele teve que ir ainda há pouco. Amanhã cedo tem sessão ordinária no Senado... E eu
também não posso ficar.

— Que surpresa! — Embora o tom de Gael seja respeitoso, sinto que ele debocha.

— E você também virá comigo, Gael. Preciso de você mais do que nunca na reunião com os
chineses...

— E quem ficará com o acamado da família? Agora sim a senhora me surpreendeu com sua
sensibilidade, mamãe — ele ironiza.

— Gael, você não vai me escapar hoje. Como você mesmo disse, Gabriel está ótimo. Rosa
cuidará dele até Giovanna chegar ao meio-dia.

— Eu detesto o papo daqueles chineses — Gael resmunga. — Aliás, já percebi que nem o
tradutor gosta daquelas piadas que só tem graça no país deles.

— Mesmo assim você irá comigo e sorrirá de todas elas. — A senhora de cabelos castanhos
vai até à cama para se despedir do filho, enquanto fico hipnotizada, observando-os da soleira da
porta. Eu estava tão entretida em bisbilhotar aquela gente, que até esqueci de me esconder, quando os
olhos castanhos da senhora Átila se voltam para a porta, me encontrando.

Ela franze a testa e a pergunta é inevitável:

— Quem é você?

Pisco os olhos pelo menos cinco vezes, nervosa com toda aquela autoridade de sua voz.

Gaguejo, nervosa:

— N-não sei.
Droga! Por que de repente sinto que meu cérebro deu pane?

Ela semicerra os olhos para mim.

— Como assim não sabe? — Sua voz soa mais impetuosa. — Quem deixou você entrar aqui?

Em um rompante, a gargalhada sonora de Gael explode no espaço.

— Não seja tão dura assim, mamãe! — ele diz entre risos. — Não está vendo que está
assustando a namorada de Gabriel.

— Namorada? — Ela enruga o cenho, me olha de cima a baixo e depois direciona o olhar
endurecido para o homem deitado entre os travesseiros brancos. — Gabriel? Isso é verdade? Isso o
que seu irmão está me dizendo é verdade?

Gabriel permanece taciturno, com o olhar impenetrável. Penso em desmentir Gael, mas não
sei se tenho coragem para entrar em uma conversa com essa senhora.

Ela torna a me olhar, só que dessa vez ainda mais avaliativa.

— Tão... — Ela parece tentar encontrar a palavra certa para me descrever, enquanto passa os
olhos pelos meus ombros um pouco encurvados, e vagarosamente estremeço. — Insegura. — A
palavra soa azeda em sua boca. — Diga-me seu nome!

— C-Camille, senhora.

— Mãe, não precisa começar um interrogatório agora.

— Claro que não. Estamos atrasados. — Ela me direciona um último olhar e diz: — No
segundo domingo de todos os meses, nos reunimos para um almoço em família. Quero você lá neste
dia!

Isso é um convite? Demoro um tempo para raciocinar.

— Não liga para o jeito de minha mãe. Ela é mandona assim mesmo — Gael se desculpa ao
lado dela.

— Agora tenho que ir. A irmã dele vai chegar ao meio-dia. A governanta também estará aqui
para cuidar do meu filho. E tem uma enfermeira que veio do hospital com a gente, está lá embaixo
jantando. E, quase me esqueço, o médico passará amanhã cedo aqui, mas não se preocupe, Giovanna
estará o acompanhando.

Ela me olha de cima a baixo pela milésima vez, talvez querendo que eu fale mais. No entanto,
a única coisa que consigo desferir é:
— Ok.

Ela fita Gabriel pela última vez, e em seguida sai pela porta ao meu lado, na companhia de
Gael.

Meu corpo continua tenso, como se ainda reverberasse a voz impetuosa da senhora Átila
pelos cantos do quarto. No entanto, isso começa a desaparecer quando meu olhar encontra as esferas
azuis me observando do outro lado do quarto.

A única coisa que consigo ouvir é minha respiração, um pouco errante, enquanto minhas
pernas se movem lentamente até o lado da enorme cama de lençóis brancos.

Gabriel está sem camisa, com o semblante refrescante, o que me leva a crer que acabou de
tomar banho. Mesmo parecendo não usar perfume neste momento, o cheiro que sai desse homem é
obscenamente inebriante, e seu corpo... selvagem. Engulo em seco, procurando um adjetivo, me
perdendo nas curvaturas perfeitas de seu abdômen, que parece ter custado muitas horas de academia.

Ele olha para cima, para tentar acompanhar meus olhares, e percebo que está mais sério do
que o normal. Na verdade, nunca o vi assim diante de mim.

Preparo-me para dizer algo, mas ele se antecipa.

— Não podemos mais nos ver.

Fico estática por um instante.

— Por quê? — indago, confusa.

Ele puxa o lençol mais para si, em uma tentativa de esconder o curativo à mostra no canto
inferior da barriga, e depois sua voz soa séria demais:

— Eu não me sentirei bem se continuar vendo você.

Confesso que por dentro algo em mim esmorece ao escutá-lo dizer isto, mesmo que me deixe
desconfiada com sua mudança repentina de humor. Desde que o conheci, ele nunca havia me tratado
de maneira tão fria. Teria eu interpretado as coisas de forma errada? Eu estou tão confusa.

— Desculpe-me, eu vou me retirar então. — Respiro fundo. — Estêvão não tem culpa de
nada... —Tento conter meus olhos idiotas, que ardem, querendo chorar.

— Não se preocupe. Eu que pedi a ele que trouxesse você aqui.

Mesmo que Estêvão tivesse me dito isso antes, agora não consigo compreender a razão para
ele ter feito esse pedido.
— Por-por quê? — gaguejo com a garganta comprida.

— Porque eu precisava fazer isso. Não me parecia justo me afastar sem antes comunicá-la
disso.

— Qual o motivo? Deve ter um motivo, então.

— O motivo é totalmente alheio a você, Camille. Me desculpe por isso, eu admito que errei.

— Errou?

— Errei — ele afirma, fitando fixamente meus olhos. — Eu flertei com você de forma
indiscriminada... sem pensar em você e na merda do risco que você pode correr andando ao meu
lado... Eu, poucas vezes, me interessei por alguém, e nunca vivi esta situação... — Ele aperta o punho
com força, parecendo estar insatisfeito com ele mesmo. — Ainda é cedo, podemos consertar esse
erro.

Consertar, tipo, se afastar?, minha mente se questiona.

— E qual seria o risco? Eu posso decidir por mim mesma, mas antes preciso saber que tipo
de risco é esse. — Inspiro fundo e tomo coragem para dizer: — Não quero ser indiscreta, mas
sempre achei seu modo de vida muito estranho, apesar de não aparentar qualquer ameaça. Mas
ontem...

Ele me interrompe:

— Não quero te envolver nisso, te contar toda a merda que envolve meu passado... — Ele
amplia o olhar para mim, estudando cada detalhe do meu rosto. — Veja só! Você é alguém cheia de
sonhos, projetos, uma família provavelmente normal. Você não merece um homem limitado como eu.

— Não fale isso...

— Você merece alguém melhor, alguém que te leve para jantar em um restaurante, por
exemplo, que te busque no trabalho. Alguém normal.

— Eu não quero esse alguém. No momento, eu estou querendo você.

Ele umedece os lábios e seus olhos parecem falar comigo, contrariando tudo o que ele disse.

— Eu não posso estar contigo em todos os lugares.

— Eu não quero estar em todos os lugares. — Me sento ao seu lado. Observo sua mão e a
seguro, e afirmo com toda certeza dentro de mim: — Eu nunca precisei estar em todos os lugares.
— Camille...

— Não precisa me contar tudo de uma vez...

— Ainda há tempo de desistir.

— Eu não quero desistir.

— Não é seguro — ele replica.

— E qual lugar é?

Seu olhar endurecido se desmancha e ele solta o ar violentamente pelas narinas.

— Não precisa me contar agora, ok? — Aperto sua mão. — De alguma forma, eu confio
muito em você. Sei que não é uma pessoa ruim...

— A questão não sou eu. Se ao menos... — Ele estanca.

— Se ao menos...? — O incentivo a continuar.

— Se ao menos você me permitisse te proteger.

— Proteger como?

Ele olha para os lados e deduzo o que ele quer dizer.

— Seguranças? Eu acho que não preciso. — Solto um sorriso nervoso.

— Pelo menos, quatro.

— Está falando sério?

Ele enruga o cenho.

— Muito sério.

Prendo a respiração e olho para cima, imaginando a situação. Não me parece tão ruim. Ao
menos andarei tranquila na rua, sem o medo de ser violentada em cada esquina.

Ok. Se para continuar podendo vê-lo, eu tenha que ter novos amigos de preto, por que não?
Essa não me parece uma má ideia. Pelo menos, não na teoria.

— Dois — negocio.

— Três — ele replica.

Inspiro fundo e aceito.


— Tudo bem.

Sou rápida em pescar um sorriso tímido no canto de seus lábios, que em seguida é
desmanchado e tomado por uma careta.

— O que foi? — indago, preocupada. — Você está se sentindo bem?

Vejo seus lábios tremerem.

— Está fazendo frio.

Olho para o peitoral desnudo em minha frente e gaguejo:

— Vou pe-pegar uma camisa... — digo, me preparando para levantar e procurar algo, no
entanto, sou impedida quando ele torna a pegar minha mão.

— Não precisa.

Coloco minha mão sobre a sua e vejo que sua temperatura caiu bruscamente, igual ao clima lá
fora.

— Você está congelando.

— Venha aqui, então.

— Aqui onde? — indago, confusa.

— Para mais perto de mim.

— Como? — Estremeço.

Ele coloca o dedo indicador ao lado do rosto, me chamando.

— Aqui!

Não penso muito e apenas faço o que ele pede. Encurvo um pouco meu corpo, deixando meu
rosto a centímetros do seu.

— Assim? — pergunto, baixinho.

Dá para sentir nossas respirações se misturando, o suficiente para me inebriar com seu hálito
mentolado.

— Isso, assim — ele murmura com a voz lenta. Sinto todos os cabelos da minha nuca em pé a
uma hora dessas. — Eu gosto do calor que vem de você.

— Eu estou muito quente? — pergunto, tentando raciocinar direito com a aproximação.


— Para mim você é sempre quente, Camille. Você não sabe o tamanho da vontade que tenho
todos os dias de sentir sua pele morna em meus lábios.

Ele eleva sua mão e toca meu rosto. Tremo no mesmo instante, mas controlo meus instintos, já
que eles todos estão voltados com devoção à boca sexy de Gabriel entreaberta. Ele enruga o cenho e
no mesmo instante sinto-o levar a mão ao ferimento na barriga. Vejo claramente que agora não se
trata do frio, mas sim de um momento de dor.

— Está sentindo algo? Quer que eu chame alguém.

— Não, tudo bem. Foi só uma pontada leve, nada demais. Tudo sob controle. — Ele solta um
sorriso fraco.

Fico o analisando até confirmar que ele está bem, e quando me distraio, pergunto:

— Deixa eu cuidar de você? — Sai espontaneamente.

Ele inspira fundo e, ainda com o cenho enrugado, responde:

— Só se você me deixar cuidar de você.

Pego sua outra mão desocupada e lentamente levo meus lábios até sua pele, beijando-a.

— Condição aceita. — Consinto.

Ele continua me fitando, e o jeito que me olha me faz sentir arrepios em lugares
inimagináveis. Mais do que isso, seu olhar me faz, de alguma forma, me sentir importante, alguém de
muito valor. E eu gosto disso. Para falar a verdade, eu gosto de tudo nele e, excepcionalmente, da sua
capacidade de me fazer querer transgredir barreiras as quais jamais cruzei.
18 | LIBERDADE PROVISÓRIA

CAMILLE

Acelero mais uma vez pela avenida central do Batel, fazendo o trajeto para o Ateliê da
Ortega, sentindo a brisa fria sacudir meus cabelos castanho-claros contra os meus ombros. Eu já
havia deixado Donatella na escola, que adorou o fato de nós termos seguranças em nossa cola pela
manhã cedinho. Embora aqueles homens fossem discretos, eu temia que meu pai desconfiasse de algo
antes que eu contasse para ele sobre Gabriel. Mas até lá, pedi à minha irmã que fosse discreta e
guardasse “meu pequeno segredo” sobre os seguranças e o cara que eu estava me encontrando, o qual
ela não entendeu muito bem, mas Donatella estava tão ocupada com suas próprias coisas, que nem se
deu o trabalho de se meter em meus problemas.

Apesar de ter acelerado, não chego aos cinquenta quilômetros por hora em nenhum momento
desde que saí de casa. Não gosto de velocidade, mas parece que os caras do carro de trás não
partilham da mesma opinião, enquanto são obrigados a seguir meu ritmo de lesma no trânsito. Deduzo
isso pescando suas feições de tédio e sono, olhando pelo retrovisor, esperando o sinal abrir à minha
frente.

Chego cedo ao trabalho e, consequentemente, ganho um ponto com a senhora Consuelo, que
me vê trabalhando nos novos modelos de vestidos que ela havia comentado ontem. Na verdade, eu já
tinha alguns modelos desenhados e apenas os apresentei para ela e, apesar de não ter dado o braço a
torcer, senti que ela gostou muito das minhas ideias de vestidos vitorianos, e os aprovou para
confecção.

— Estão muito bons, mas não sei... preciso ajustar alguns detalhes. Eles precisam do meu
toque — ela disse.

— Sim, senhora! — respondi, contendo meu sorriso vitorioso.

Na medida em que os dias passam, meu estado de espírito parece ter sido promovido a outro
nível, o qual jamais me encontrei. Meu sorriso está mais fácil, minha criatividade está a mil, e
quando chega o fim do expediente, corro para o banheiro para me arrumar, antes de passar na mansão
503.

Depois daquela noite, passei a visitá-lo mais vezes, e me dispus a cuidar dele nos tempos
livres. Assistíamos a filmes de ação, tomávamos sopa e fazíamos companhia um ao outro, praticando
qualquer outra coisa que não seja colocar sua recuperação em risco.

Alguns dias já haviam se passado, e lá está eu: caminhando para seu escritório dentro de sua
casa, em uma noite de sexta-feira.

Bato com os nós dos dedos na porta e percebo que a porta está aberta. Ouço a voz de Gabriel
falar ao telefone e espio timidamente entre a brecha. No entanto, seus olhos cristalinos me flagram, e
ele abre um meio-sorriso enquanto conversa ao telefone algo que parece ser de interesse da empresa
de sua família.

Gabriel faz um sinal com a mão para que eu entre. Faço o que ele me pede.

Ele encerra a chamada e torna a me fitar.

— Cheguei cedo?

— Uma surpresa agradável.

— Não respondeu minha pergunta. — Sorrio, arqueando a sobrancelha.

Ele caminha lentamente em minha direção, cruzando o escritório e falando:

— Como eu poderia dizer que você chegou cedo se passei as últimas vinte e quatro horas
desejando te ver outra vez? — ele diz, me compenetrando com aquele olhar de tirar o fôlego que só
ele tem.

— O que vamos fazer já que cheguei antes da hora? — desconverso, sem graça.

Ele se aproxima mais ainda e diz, convicto:

— Eu sempre tenho ideias do que fazer com você, senhorita Camille.

Ele enruga o cenho, e dou um passo para trás, encostando o bumbum na parede de livros atrás
de mim.

— Alguma ideia agora?

— Aham. — Ele meneia a cabeça em positivo, passando rapidamente a língua entre os


lábios, e me encurrala com os seus braços fortes.

— Gabriel. — Minha voz se arrasta em tom de advertência, sentindo a carga lasciva entre
nós e temendo que as coisas saiam fora do controle.

— O que foi, baby? — ele sussurra e segura toda a extensão lateral do meu rosto com a
palma da mão.

— Faz pouco tempo que você tirou os pontos — digo, tentando não exceder o limite entre
nós.

— Eu já estou ótimo. — Seus lábios tocam minha bochecha e, de repente, sinto sua língua
morna deslizar sobre minha pele, encontrando meu pescoço. Ele chupa delicadamente ali e depois
mordisca o lóbulo de minha orelha, me arrancando um suspiro profundo.

Ele sobe seu rosto e me arranca um selinho molhado e demorado, e sussurra olhando dentro
dos meus olhos:

— Mas, antes, eu tenho outros planos para nós.

— Outros planos? — penso alto, confusa. — Quais?

Ele roça levemente o dedão em meu queixo e sussurra:

— Vamos sair. Jantaremos fora esta noite.

Elevo os olhos e não sei se ouvi direito.

— Sair?

— Por que a surpresa? — ele ironiza, em tom de troça. — Não se preocupe, eu sei o que
estou fazendo.

— Eu sei. Eu confio em você. Mas só tem um problema. Eu acho que não estou vestida
apropriadamente para um jantar...

Ele me cala com um beijo e sussurra em meus lábios:

— Estará.

Arqueio uma sobrancelha e ele aperta os lábios, abaixando os braços e enfiando as mãos nos
bolsos.

— Digamos que tenho muito tempo nesta casa. Adquiri a habilidade de pensar em todos os
detalhes. — Ele abre um meio-sorriso e eu, instantaneamente, sorrio junto. — Só preciso que avise
sua família, passaremos a noite fora.

De repente, tenho a sensação de que essa não será uma noite qualquer.
Olho meu reflexo no espelho à minha frente e confesso que me surpreendo com o que vejo. O
vestido vermelho de fenda deixa minha perna levemente à mostra, como uma daquelas mulheres
fatais convidadas a ocuparem as primeiras fileiras dos desfiles da Chanel em Milão. Umedeço os
lábios e murmuro comigo mesma: nada mal.

Desperto de meus devaneios quando ouço as batidas na porta atrás de mim.

Olho por cima do ombro e o encontro em um smoking preto, com o cabelo penteado para trás.
Viro-me por completo para encará-lo e... minha Nossa Senhora! Como pode um homem ser tão
bonito? Deixo escapar um suspiro silencioso de meus lábios enquanto observo seus olhos descerem
para minha perna desnuda.

Ele mordisca o canto da boca e pergunta em um tom mais grave:

— Pronta?

Engulo em seco e aquiesço com um menear de cabeça.

Ele continua parado, fitando meus olhos, e em seguida caminha até mim.

— Vire-se, por favor! — ele pede, gentilmente.

Não entendo, mas faço o que ele me pede. Fico de costas para ele e o observo pelo reflexo
do espelho. Ele se aproxima do meu pescoço e posso sentir sua respiração morna contra minha pele
inflamável.

— Está perfeita — ele sussurra em meu ouvido e em seguida sinto a textura dos seus lábios
encontrarem minha nuca. Todos os pelos de minha pele levantam, e sinto que posso parar de respirar
a qualquer momento.

Ele faz tudo com muita delicadeza: suas mãos resvalam para o meu pescoço um colar
cravejado de pedras que reluzem como pontos de luzes em um céu estrelado, em seguida, ele solta
meus cabelos, que caem em cascatas sobre minhas costas, e depois suas mãos escorregam para os
meus ombros, trazendo-os um pouco mais para trás, fazendo com que eu fique com uma postura mais
altiva perante o espelho. Um simples detalhe que fez toda diferença na imagem diante de mim.

— Está preparada? — ele murmura.


Para quê?, pergunto ansiosa para mim mesma e me sinto estranhamente quente com o tom de
voz de Gabriel. Seja lá o que for, sinto que estou preparada. Respiro fundo e afirmo:

— Sim.

Ele abre um meio-sorriso. Me viro em sua direção e o acompanho para fora da mansão.

Enquanto andamos de mãos dadas pelo jardim, imagino o que está nos esperando esta noite,
já que Gabriel deu a entender que tudo foi planejado, até a lingerie embaixo deste vestido.
Enrubesço, lembrando do tamanho da calcinha que estou usando.

Avisto do outro lado do jardim os carros dos seguranças de Gabriel, mas um deles se destaca
devido à cor vermelha.

Não sou especialista em reconhecer carros, mas entendo o suficiente para saber que esse
veículo se trata de uma Ferrari. Meu pai nos chamava atenção toda vez que um carro daqueles
aparecia nas ruas de Curitiba, o que era um evento pouco comum de acontecer.

— Onde seus seguranças guardam tantos carros? — pergunto, curiosa. A garagem de Gabriel
aparentemente não cabe mais que três carros, o que já é um número bastante expressivo para uma
pessoa só.

Ele aperta os lábios e responde:

— Eu tenho meus segredos.

Damos a volta no carro. Gabriel abre a porta do carona para mim, e brinco, rolando os olhos
nas órbitas:

— Eu deveria ter imaginado.

Adentro o lado do carona e pesco um meio-sorriso de Gabriel e o morder rápido do lábio.


Ele bate a porta ao meu lado, me deixando momentaneamente sozinha. Corro com os olhos sobre o
painel tecnológico e concluo que uma Ferrari é ainda mais bonita por dentro: o couro marrom claro
com gominhos brancos dá a sensação de suavidade e poder, o que combina com a imagem do dono,
que é ridiculamente bonitão.

Ele se senta ao meu lado e dá partida no carro. Passamos pela rua do condomínio e pelos
carros da segurança.

Gabriel diz, inexpressível:

— A casa ao lado é minha.


Demoro a entender suas palavras, no entanto, logo compreendo que se trata de uma resposta à
minha pergunta. No entanto, essa resposta me faz refletir mais sobre a vida de Gabriel. Leva-me a
crer que sua segurança é ainda mais rigorosa do que eu pensava, se é que isto é possível. Eu não
quero pensar nisso agora, mas a cada dia que passa eu fico mais curiosa sobre a vida e os segredos
que a envolvem.

Seguimos para fora do condomínio, em cadência regular, até chegarmos às avenidas, quando
Gabriel parece afundar mais o pé no acelerador. Observo os seguranças atrás de nós pelo retrovisor
ao lado, que parecem mais acordados, alegres. Comento baixinho:

— Ao menos estão tendo alguns minutos de emoção hoje. — Sorrio ao lembrar de seus
constantes bocejos de sono quando estão atrás de mim.

— Como assim? — Ele franze o cenho, confuso. Me encara por um mísero segundo e torna a
encarar a avenida à frente.

— Digamos que eu causo tédio em seus amigos no trânsito. — Seguro o riso.

Ele parece refletir.

— Curioso! Você causa tudo em mim, menos tédio. — Ele abre um sorriso sexy e eu
aproveito que ele está concentrado no trânsito e fico olhando descaradamente todos os seus detalhes,
hipnotizada com o rosto risonho desse deus grego.

Ele flagra meus olhares e repousa a mão direita sobre minha perna desnuda, e meu corpo
esquenta. Ele enruga o cenho, voltando sua atenção ao trânsito. Seus dedos pressionam suavemente
minha coxa e sinto que vou entrar em ebulição a qualquer momento. Sua mão abandona minha perna
quando vira o volante para a esquerda, seguindo pela avenida Visconde de Guarapuava; então
aproveito para soltar o ar com mais calma, ainda tomada pela excitação em meu baixo ventre.

Gabriel causa em mim desejos estranhos, os quais nunca havia sentido por um homem. Minha
pele fica quente e sinto uma eletricidade correr por lugares jamais tocados em meu corpo. Não é
como se eu fosse uma garota boba e ingênua, mas me sinto como uma virgem beata perto de toda
energia lasciva que emana do homem ao meu lado.

Não demora muito para chegarmos em um famoso restaurante francês da cidade, Le four, já
que Gabriel não mora muito longe dele. O fluxo de pessoas está tranquilo, no entanto, ainda há muitas
pessoas.

— Não sabia que esse lugar era tão mal frequentado! — Escuto o resmungado à mesa perto
da recepção. É uma senhora de cabelos curtos e colar de pérolas, que olha fixamente para Gabriel de
modo nada amigável. Parece incomodada com nossa presença.

Gabriel esfrega a mão em minhas costas, roubando minha atenção. Ele abre um meio-sorriso,
como se fosse programado a lidar com esse tipo de situação.

Somos conduzidos até uma mesa perto da sacada que dá de frente ao jardim do restaurante, e
atendidos por uma mulher ruiva de olhos castanhos, muito simpática. Gabriel faz o pedido e sugere a
mim a especialidade da casa: Boeuf Bourguignon. Eu aceito convictamente, e só percebo o quanto
estou faminta quando o prato finalmente chega. Depois dele a sobremesa de morangos, e continuamos
ali, conversando.

Olho para os lados, observando as pessoas que nos rodeiam, e quando tenho a oportunidade,
começo a falar:

— Há um tempo você havia me dito que não poderia me levar para jantar... Não entendo...
Por que você não fazia coisas como essas antes?

Ele me responde rapidamente:

— Aconteceu o mesmo comigo em um restaurante anos atrás.

— O mesmo? — indago.

— O atentado.

Minha garganta se comprime ao lembrar do dia que ele foi baleado diante de mim, da
sensação angustiante de vê-lo caindo ao chão.

— Eu estava com minha família no dia e nesta época não tínhamos tantas pessoas trabalhando
em nossa segurança. Depois desse episódio, nunca mais fiz algo parecido — ele fala com
naturalidade e abre um meio-sorriso, tentando afastar o clima ruim que se formou. — Esta é a minha
primeira vez depois de anos, confesso que estou me divertindo em estar aqui com você.

Ele olha para o lado, sussurrando:

— Sabe aqueles dois homens de preto sentados naquela mesa perto daquele arco na parede?

Corro com os olhos pelo restaurante, procurando-os. E encontro.

— Eles também estão conosco — ele comenta, me levando a crer que armou quase um evento
para que tivéssemos comendo tranquilamente nessa mesa.

Ele fita meus olhos, e eu digo, instintivamente:


— Obrigada.

— Pelo o quê?

— Por estar aqui comigo.

Continuo fitando seus olhos, enquanto as vozes das pessoas ao redor aparentam ficar mais
baixas entre nós.

— Eu já disse que você é linda?

— Inúmeras vezes. — Sorrio, pensando nos últimos dias, em seus elogios constantes.

— Então vamos lá para mais uma vez, senhorita Camille. Você é exageradamente linda! —
Ele faz uma pausa e completa: — E sexy!

— Obrigada. Pelo linda... — Balanço a cabeça para o lado. — E pelo sexy.

— Os senhores desejam mais alguma coisa? — A ruiva aparece ao nosso lado.

— A conta, por favor — Gabriel responde.

— Sim, senhor.

Ele torna a me fitar quando a ruiva se retira temporariamente e me adianta antes de sairmos:

— Preciso levá-la em mais um lugar.

Depois da conta ser paga, retornamos novamente às avenidas curitibanas, e, desta vez, a
viagem não é tão rápida. Demoramos ao menos uma hora para chegarmos ao destino planejado por
Gabriel.

Quando ultrapassamos pelo portão aberto de um muro extenso, vejo que se trata de uma casa
com um enorme jardim muito bem iluminado.

— Não me diga que me trouxe para conhecer sua família? — pergunto, engolindo em seco,
totalmente despreparada psicologicamente para encontrar a mãe dele novamente.

— Não. — Ele sorri. — Ainda não.

— Céus! — Solto o ar preso em meus pulmões.

— É impressão minha ou você ficou apavorada?

— Não, não é impressão sua. — Mudo de assunto. — Então quem mora nesta casa?

— Ninguém.
— Ninguém? — pergunto, incrédula. Enquanto nos aproximamos do casarão, noto que há
espaço para abrigar pelo menos um batalhão de pessoas. É um tremendo desperdício ninguém morar
nesta casa, ainda mais com todas essas lâmpadas acesas.

— Eu tomei posse desta casa ano passado, a maior compra que já fiz com royalties das ações
que tenho da Átila. Eu queria uma casa mais afastada do Batel, algo mais perto da natureza, onde eu
pudesse criar um tipo de fortaleza... mas, desde então, nunca me mudei. — Ele estaciona perto da
escadaria. — Sequer mandei o projeto para a reforma.

— Alguma razão em específico para não se mudar? — Espio por detrás da janela.

— Percebi que é grande demais para um homem solteiro. Apesar de eu estar sempre
acompanhado, me sentiria ainda mais solitário em uma casa maior.

Faz sentido.

Mas ainda estou curiosa.

— Por que me trouxe aqui?

Ele olha para minha perna desnuda e passa a língua entre os lábios rapidamente.

— Penso que aqui teremos mais privacidade.

— Por que precisamos de privacidade? — pergunto e me condeno por estar tendo


pensamentos castos.

Ele pensa bem antes de responder.

— Para fazermos o que tivermos vontade.

Gabriel destrava o carro e sai pela porta ao lado. E antes que eu possa abrir a porta do
carona, ele já o está fazendo por mim.

— Obrigada! — agradeço, alisando o vestido com as palmas das mãos e vendo todos os
seguranças se espalharem atrás de nós.

Olho para a escadaria de mármore à minha frente e sinto minha mão esquerda ser envolvida
pela dele, me conduzindo para dentro da casa. A arquitetura é antiga e muito diferente da outra casa
de Gabriel. As janelas côncavas e o teto de nuances diferentes de azul e dourado parecem que saíram
de algum quadro de um artista barroco.

Passamos por outra escada, só que desta vez não subimos pelos degraus, ao invés disso,
cortamos o enorme salão do primeiro andar. Quanto mais adentramos à residência, mais a quantidade
de seguranças vai diminuindo atrás de nós. Chegamos a um ponto que nenhum segurança está em
nosso encalço.

Encontramos outra porta igual a da entrada do outro lado do andar. Gabriel a abre com
felicidade e me traz para uma espécie de varanda.

Uma nuvem de ar fresco resvala pelos cantos do meu rosto, me levando a arregalar um pouco
mais os olhos. Uau! Surpreendo-me com a vista. Nunca vi algo tão bonito, nem em fotografia!

Na casa, existe um lago. Um bonito e iluminado lago no quintal.

Caminhamos pelo deque e fico deslumbrada com tamanha beleza daquele lugar.

— É artificial? — pergunto, curiosa.

— Totalmente natural.

— É lindo! — disparo, encantada.

— Eu sei. — Sinto seus olhos se voltarem para mim e dizer: — Só não é mais lindo do que
você.

Enrubesço com seu elogio bobo e caminhamos para mais perto do lago.

— Vem! — Descemos pela escadaria do deque de mármore, e em seguida ele me conduz pelo
gramado em direção à ponte de madeira sobre a água, e pergunto, receosa:

— O que está fazendo?

— Te levando para uma volta.

— No lago?

— Não se preocupe, meu plano não envolve entrar na água ou qualquer coisa do gênero. E se
precisarmos também, não é fundo, eu garanto.

— Se você está dizendo — comento enquanto caminho pelas ripas de madeira, hipnotizada,
vendo o azul cristalino sob nossos pés.

Chegamos até o limite do pequeno cais de madeira e vejo que há um jet ski amarrado ali e
dois coletes salva-vidas. Gabriel me entrega um colete.

— Isso é sério? — indago, olhando o jet ski.

— Muito sério! — Gabriel começa a tirar os sapatos e desamarra o veículo aquático, que já
começa a assustar minha Camille interior que não sabe nadar e sem um pingo de coordenação
motora.

— Eu já falei para você que sou desastrada?

Ele monta no veículo e liga o motor, me respondendo em uma oitava mais alta:

— Não há nenhum problema, Camille. Só tire suas sandálias e venha!

Ele ergue uma mão para mim, como se me desafiasse. Tombo um pouco minha cabeça para
trás e comento baixinho:

— Depois não diga que não avisei.

Aceito o desafio um tanto maluco para o horário, tiro minhas sandálias e subo a barra do meu
vestido para que possa ter mais flexibilidade.

Com um pouco de dificuldade e receio, consigo me colocar atrás de Gabriel sem cair na
água.

— Ufa! — Respiro fundo, já sentada atrás de Gabriel.

— Pronta? — ele pergunta por cima do ombro.

— Aham.

— Segure-se firme — ele me avisa antes de acelerar, no entanto, apenas entendo sua
instrução quando de fato ele acelera e eu rapidamente enlaço meus braços ao redor de seu tórax,
sentindo nossos corpos flutuarem rapidamente pelo lago azul.

Não sei de onde ele tirou a ideia de me trazer aqui à noite, mas enquanto sinto o vento soprar
em nossos rostos ao mesmo tempo que contemplamos o chão de pedras embaixo da água cristalina
iluminada pelos refletores posicionados nas margens, entendo o quanto isso é especial. Uma
experiência maluca que talvez nunca mais terei na vida.

— Você já fez isso antes? — pergunto, curiosa, quando paramos no meio do lago.

— Esta é a terceira vez. Quando comprei essa casa, o jet ski já estava aqui. O dono não quis
levar, disse que era um componente importante da casa. — Ele acaricia meus braços, que ainda estão
segurando firme seu tórax. — Agora eu o entendo.

— Realmente, foi uma ótima ideia!

Ele me olha por cima do ombro.


— Estou feliz por estar aqui com você.

— Eu também. — Sustento o olhar até me desconcertar. — Eu sou a primeira a vir aqui?

Ele confirma prontamente.

— Você é a primeira.

De repente, me vejo interessada.

— Com quantas mulheres já ficou?

Ele parece pensar.

— Como assim? Quer saber com quantas mulheres já me envolvi?

— Uhum.

O clima parece mudar de tom, ele é relutante em responder logo, mas o faz.

— Não vou mentir, Camille. Já fiquei com muitas. Encontros sem compromissos. — Ele faz
uma pausa. — Mas namorei apenas uma, há muitos anos, quando eu era ainda um adolescente. Minha
mãe me mudou de escola, começamos a ficar distantes e naturalmente terminamos.

Ela era tão bonita quanto ele? Ele ainda pensa nela? Algumas dúvidas começam a pairar em
minha mente, mas logo as ignoro, quando percebo que se trata de algo muito distante da realidade
atual de Gabriel. Afinal, já se passou muito tempo.

— Você sempre teve essa vida? Sabe... reservada?

— Não. Quer dizer, não tanto. — Ele comprime os lábios. — Meu pai migrou para o
magistrado muito cedo, antes de ir para a política. Então nunca tive uma vida com liberdade plena,
como a maioria das pessoas, mas não era algo tão intenso como agora.

Saber mais um pouco sobre Gabriel, de alguma forma, me deixa ainda mais aflita. Por que
alguém como ele merece levar a vida de um prisioneiro?

— Por que estão atrás de você? — Não consigo me conter e disparo.

Ele solta o ar pelas narinas.

— É uma longa história. Eu prometo contá-la. Logo. Mas não nesta noite...

Não fico satisfeita com sua resposta, porém não insisto.

— Ok!
— Agora é sua vez. Por que não me conta sobre sua vida amorosa?

Pisco os olhos copiosamente e depois não me seguro. Começo a sorrir vergonhosamente.

— Por que a graça? — ele pergunta, com a feição leve e ao mesmo tempo confusa.

— É que... — Ofego. — Me desculpe, é que você perguntou tão sério, e eu não tenho nada
para contar... Do nada me deu vontade de rir. — Outro riso escapole. — Me desculpe — digo mais
uma vez, tentando controlar meu súbito ataque de risos.

— Como assim nada a contar? — ele pergunta, interessado.

— Isso mesmo que está pensando: minha vida amorosa é um completo fiasco.

— Não houve nenhum outro homem...?

— Sim. Apenas uma pessoa.

— Alguém especial?

— Não. Na verdade, eu não o conheço.

— Não o conhece? Como pode haver uma pessoa, mas não conhecê-la.

— É uma história um pouco maluca — confesso rapidamente, antes que eu me arrependa. —


Mas o certo é que meu primeiro beijo foi um cara que eu nunca vi o rosto, em um confessionário de
uma igreja. Acredite ou não, foi o único homem que me envolvi fisicamente.

De repente, Gabriel engasga e receio de que eu tenha provocado isso com minha conversa
estranha. Será que eu o assustei? Está certo que não foi meu primeiro amor, mas creio que não
estávamos falando de amores platônicos, senão teria citado artistas do pop por quem já fui fissurada
na adolescência.

Dou tapinhas em suas costas, enquanto ele diz entre uma tosse e outra:

— Eu estou bem.

— Tem certeza?

Ele recupera o fôlego.

— Absoluta. — Ele torna a fitar meus olhos e tenho a ligeira impressão de que ele quer falar
algo.

— Eu sei. Eu sou uma pessoa estranha — digo nervosamente, tentando não pular do jet ski e
me enfiar debaixo d'água para não precisar encarar esse homem, me lembrando de toda a história do
homem misterioso do confessionário. Ainda bem que ele não estava de frente para mim, senão era
capaz de eu travar completamente, igual ao Chaves.

— Você queria conhecê-lo? Você o procurou depois?

Ai, meu pai! Como é vou responder isso?

Opto pela verdade.

— Não vou negar. Eu fui atrás dele... — respondo, com sinceridade. — Eu pensei diversas
vezes nele e por alguma razão... — Estanco, como se fosse abrir meu coração para ele. Por que de
repente estou falando de outro homem para Gabriel? Quem faria isso nestas circunstâncias? —
Esqueça. Me desculpe por dito essas coisas a você, totalmente sem noção. Eu só sou estranha
mesmo.

Um silêncio sepulcral se faz e ele me fita novamente por cima do ombro.

— Nunca conheci estranhas tão belas feito você. — Ele desce o olhar para minha boca, como
se estivesse com fome dela.

Minha Virgem Santíssima! Como ele pode levar qualquer clima a essa tensão inflamável tão
naturalmente?

— Camille... — Ele sopra meu nome, enquanto faço o mesmo que ele, fito seus lábios
entreabertos e convidativos.

— Sim?!

— Eu preciso contar algo! — ele murmura.

Meus lábios se aproximam dos deles lentamente, como se estivessem atraídos por um tipo de
ímã.

— Eu sou... — Antes que ele termine de falar o que quer me dizer, aperto meus braços em seu
tórax e inclino o flanco do meu corpo, para que minha boca possa alcançar a dele. Seja lá o que ele
tem para me dizer, estou atraída demais pelos lábios desse homem.

No entanto, o desastre acontece.

Inclino-me demais para o lado e coloco muito peso, nos fazendo tombar para fora do jet ski.
Droga!

Eu me desespero, mas tão logo firmo meus pés no chão e instintivamente impulsiono meu
corpo para a superfície. Como Gabriel disse, não é tão fundo assim. A água bate em meus ombros, o
suficiente para nos deixar completamente molhados.

— Oh, meu Deus! Me desculpe por esse... Eu estraguei tudo!

Gabriel eclode uma risada grave com os dentes perfeitamente alinhados, como se isso fosse
muito engraçado.

— Você bem que me avisou. — Ele se diverte.

— E você não me ouviu. — Entro na brincadeira, relaxando um pouco.

— Quer voltar? — Ele sinaliza com a cabeça para a casa atrás de nós.

Seu olhar torna a ficar mais sério, como se um convite estivesse implícito em suas palavras.

Aquiesço.

Ele vai até o jet ski e sobe nele novamente, me resgatando da água em seguida. Gabriel nos
leva de volta ao cais de madeira, enquanto me embriago um pouco do perfume dele, sentindo o calor
de suas costas ultrapassarem nossas roupas molhadas e me aquecendo. Aliás, estou mais quente do
que eu deveria, como se houvesse uma chama dentro de mim quando aperto a barriga sarada do
homem à minha frente.

Quando chegamos ao cais, ele amarra o veículo novamente a uma das vigas de madeira e
começa a desabotoar a camisa, deixando à mostra um pouco de seu peitoral exuberante. A lua reflete
em seus olhos cintilantes, iluminando cada pedacinho de seu rosto viril e naturalmente sério.

— Não me olhe assim — ele adverte, e eu percebo que estou com os olhos fixos em sua pele
desnuda, com meu peito subindo e descendo ritmicamente.

— Assim como?

Ele morde o canto do lábio e me repreende seriamente:

— Não me provoque, Camille.

Meu nome soa sexy na ponta de sua língua, principalmente quando sua voz está grave demais.

— Ou então?

Ele fisga o lábio inferior e olha para o lado, tentando dispersar a tensão entre nós.

— Nada — ele responde, me deixando estranhamente decepcionada. — Vamos?


Ele sinaliza com o braço para que possamos voltar para a margem do lago. Olho bem dentro
dos seus olhos azuis e me resigno:

— Ok.

Giro os calcanhares para o outro lado, mas escuto ele perguntar.

— Quer tanto quanto eu?

Viro-me novamente para ele, encontrando seus olhos em uma tonalidade mais escura.

Engulo em seco e respondo:

— Desesperadamente.

Ele tomba a cabeça para o lado rapidamente e depois vem em minha direção, tomando meu
rosto com seus dedos longínquos e minha boca com seus lábios macios com ardor. Ele começa um
beijo intenso, que desperta cada célula do meu corpo. Depois intensifica a velocidade em uma
cadência alucinante de necessidade e desejo. Ele puxa minha perna esquerda para sua cintura,
devorando minha boca e quase fundindo nossos corpos.

— Eu preciso de você. — Ele resfolega, colando nossas testas. — Vem.

Ele segura minha mão e prosseguimos para dentro da casa entre puxões e beijos ofegantes, até
chegarmos ao segundo andar, não ligando se há ou não seguranças por ali, pois neste momento é
como se existisse apenas ele e eu no universo, desesperados um pelo outro.

Gabriel me arrasta entre beijos para dentro de um quarto e me deita em uma cama macia.
Enquanto ele desabotoa os botões da camisa social em minha frente, recupero o fôlego, observando
cada curva perfeita de seu corpo. Gabriel é um homem forte, de braços largos e de pele viçosa. No
vão de seu peito há um caminho de pelos ralos, deixando-o ainda mais viril. Quero dizer, ele é todo
másculo. Desde as sobrancelhas sérias e o queixo quadrado até a linha dura que tem nos lábios. Oh,
céus! Eu estou ardendo por ele!

Ele encobre meu corpo com o dele e torna a me beijar, de forma profunda. Suas mãos
resvalam de meus braços para minha coxa, abrindo minhas pernas de forma que ele se encaixe em
meu meio.

Meu vestido levanta até minha cintura e gemo em sua boca quando sinto algo duro e quente
contra o tecido de minha calcinha.

Ele separa nossas bocas, me engolindo com os olhos.


— Tão inocente — ele murmura, pressionando novamente seu sexo contra o meu totalmente
sensível. Ofego um pouco mais alto. Os movimentos dele me fazem delirar de prazer, mas depois ele
se afasta, me deixando vergonhosamente de pernas abertas em sua frente.

Observo ele abrir a fivela do cinto e em seguida se livrar das calças, ficando apenas de cueca
boxer preta e com os olhos fixos em meu rosto. Lentamente, ele acaricia minhas pernas, mirando
minhas partes íntimas.

— Ficou linda, como imaginei — ele diz, deslizando as mãos para as laterais de minha
calcinha. Gabriel retira a minúscula calcinha que ele mesmo havia escolhido e minhas bochechas
queimam quando sinto meu sexo exposto.

Ele se deita novamente sobre mim e acaricia meus lábios com os seus. Depois desce seus
beijos, fazendo um caminho estranho em direção à minha barriga. Começo a me desesperar quando
sua boca beija minha barriga próxima ao vão entre minhas pernas e quando sinto sua língua morna em
meu centro. Tombo a cabeça para trás e solto um gemido rasgado. Misericórdia! Que sensação é
essa?!, penso, me contorcendo por inteira.

Ele continua e penso que a qualquer momento subirei aos céus. Quando já estou quase
explodindo e minha pernas tremulando, ele para e torna a ficar em pé novamente. Rapidamente, ele
abre um pacote laminado pequeno e abaixa a cueca boxer, fazendo aquilo pular para fora. Engulo em
seco, vendo um daqueles pela primeira vez ao vivo, e não sei exatamente se todos são assim, mas
Gabriel o guarda muito bem dentro da calça. Ele o veste com a camisinha nas mãos e depois inclina
seu corpo sobre o meu com mais cuidado, alcançando minha bochecha e respirando em minha orelha.

— Você tem certeza? — Ele desce e beija o canto de meus lábios.

Sinto minhas entranhas arderem, implorando por algo que nunca provei. Mas tenho a absoluta
convicção de quero isso.

Aquiesço, fitando seus olhos sérios.

Ele beija meus lábios com delicadeza e murmura, me avisando:

— Pode doer. Mas é natural que depois passe.

— Eu estou pronta. — Isso sai como um arquejo.

— Certo. — Ele beija o canto dos meus lábios e se posiciona em minha entrada pulsante.

Ele faz uma pausa e depois me invade de uma só vez, me arrancando um gemido de dor.
Ele para, me dando chance para respirar.

E depois me invade mais uma vez, completamente. Dói tanto quanto a primeira estocada, mas
não peço para ele parar. Ele continua me invadindo e as minhas paredes parecem se acostumar aos
poucos com aquilo, quando finalmente começo a sentir uma adrenalina boa com os seus movimentos.

— Mais rápido — rogo a Gabriel, que está com as costas tensas e cobertas de suor.

Ele faz o que peço e nos leva a um ritmo alucinante. Cravo meus dedos em seus braços
quando sinto meu corpo tremer de prazer — o ápice que tanto ouvi Manuela comentar, eu estou o
sentindo, com Gabriel dentro de mim. É como se as estrelas estivessem ao meu alcance nesse
momento. Oh, céus! Como isso é bom!, penso enquanto Gabriel cai ao meu lado, com a respiração
entrecortada como a minha.

Depois do êxtase, começo a escutar meu peito batendo mais forte. E um milhão de dúvidas
começam a surgir em minha mente. Em poucos segundos, ele se volta para mim e beija minha testa,
murmurando com a voz rouca:

— Eu te quero para mim, Camille. Quero que você seja minha. Apenas minha.

Ele torna a me beijar, me possuindo mais uma vez.

Gabriel é o tipo de homem que deve fazer toda mulher se apaixonar fácil, e isso me assusta,
pois nunca amei de fato alguém a quem pudesse entregar meu corpo. Não sei ao certo o que será de
nós, mas me agarro ao que tenho: o agora. E, por sorte, meu agora envolve ele, Gabriel.
19 |O DIA SEGUINTE

Camille

Acordo inalando a essência almiscarada que durante a noite havia impregnado nas minhas
vias respiratórias.

Abro os olhos, ainda sonolenta, e vejo que estou com o lado do rosto deitado em cima de um
peitoral masculino bem definido e rígido. Ergo um pouco a cabeça e encontro Gabriel de olhos
fechados, com seus cabelos castanhos iluminados por um feixe de luz que ultrapassa a cortina do
lugar.

Pela primeira vez em horas, caio em mim e olho ao redor. E quando percebo que estou
completamente nua e enroscada no corpo de Gabriel na mesma situação, uma sensação estranha me
acomete e tento escapar dessa posição o mais rápido possível, antes que ele acorde.

Céus! Nós passamos a noite toda nos tocando e fazendo coisas inimagináveis sem roupas, e
agora estou com vergonha de ele me pegar sem roupas?! Sacudo a cabeça, pensando nisso. Por que
de repente estou sentindo tanta vergonha? Tiro minha perna de cima da dele, sentindo o meio entre
minhas pernas arder.

— Nem pense em fugir de mim! — Me assusto quando a voz grave reverbera no espaço,
fazendo meu coração pular em minha caixa torácica.

— Você está acordado? — Respiro fundo, surpresa.

Ele abre lentamente os olhos azuis e responde:

— Estava esperando você acordar.

Engulo em seco quando ele puxa meu corpo nu para mais perto do dele, selando nossos lábios
em um beijo rápido.

— Precisamos de um banho.

— Precisamos? — Engulo em seco.

— Uhum.

— Que tal você ir primeiro?


Ele semicerra os olhos e depois espia a parte do meu corpo nu em cima do dele.

— É impressão minha... ou você quer se livrar de mim?

— Me livrar de você? Como assim? — Me faço de desentendida e caio para o lado da cama,
puxando os lençóis para mim.

— Está com vergonha de mim — ele afirma.

Enrugo o cenho e pergunto, confusa:

— Isso é normal?

Ele parece pensar e diz com um biquinho armado nos lábios:

— É ilógico, porém é perfeitamente normal. Foi sua primeira vez... — Ele desce o olhar para
a mancha no lençol e depois toca meu rosto com sua mão, continuando: — Você é ainda mais
inocente do que eu imaginava. É perfeitamente normal, meu bem.

Continuo fitando seu rosto perfeito até as carícias em meu rosto cessarem.

Ele inspira fundo sonoramente e se senta na cama.

— Tenho uma ideia, eu tomo banho primeiro.

Ele coloca as pernas para fora da cama, deixando apenas suas costas visíveis e me revelando
a tatuagem bem abaixo de seu ombro direito. É uma cruz de São Clemente, mais conhecida também
entre os católicos como cruz ancorada, devido ao seu formato lembrar uma âncora, em referência à
forma pela qual o santo foi martirizado, por ordem do imperador Trajano. Este mandou que o santo
fosse lançado ao mar com uma âncora de ferro.

Quando eu era adolescente, uma vez ouvi o padre dizer que a âncora simboliza para nós,
cristãos, um novo começo ou a esperança na vida eterna, me levando assim a refletir sobre qual
significado a cruz tem para Gabriel.

— Você é católico?

Ele me olha por cima do ombro e responde prontamente:

— Cresci em uma família católica, naturalmente me tornei um.

Ele levanta, me deixando completamente sem palavras quando vislumbro seu traseiro bem
duro, que parece ter sido esculpido por um artista da Antiga Grécia. Não sei como ainda fico
impressionada com suas curvas, tudo neste homem é perfeito, até o seu caminhar.
Pigarreio, limpando a garganta, e lanço a pergunta antes que ele entre pela porta que eu
imagino dar acesso ao banheiro.

— Não irá me devolver a pergunta? Não quer saber se sou católica?

Ele para, sem olhar para trás e me responde:

— Eu sei.

Depois ele retoma o caminho em direção ao banheiro, saindo do campo de minha visão e
deixando a porta aberta.

Murmuro comigo mesma, confusa:

— Ele sabe?

Ele pode ter imaginado. Reflito e dou de ombros na mesma hora.

Aproveito para sair da cama e cumprir uma missão que jamais pensei que poderia ser tão
difícil: encontrar minha calcinha. Enrolada em um lençol, reviro todo o quarto atrás da bendita cuja.
Olho embaixo da cama, dentro dos armários e até examino o teto, e nada.

Felizmente, a encontro dentro de um vaso, em cima de um aparador rente à janela côncava,


que tem vista para o jardim. Aproveito para espiar os seguranças lá embaixo, que estão rindo e
parecem estar tomando café.

Minha Nossa Senhora, será que dá para ouvir algo aí de baixo?!, penso apreensiva, e só de
lembrar que eu passei a noite toda desferindo sons esganiçados e constrangedores, me contorço toda
de vergonha com a possibilidade dos sons terem chegado aos ouvidos desses homens.

— É bem provável que não! — Sinto uma respiração gélida atrás de mim, fazendo meu corpo
solavancar de susto para frente.

— Céus! — Ofego, levando a mão ao peito e me virando.

Encontro seus olhos e o observo ligeiramente. Ele está apenas com uma toalha pendida nos
quadris, a pele está mais assentada, visivelmente macia, com o ar de frescor pós-banho, ou seja,
tentadoramente beijável.

— Eles passaram à noite no andar de baixo. Não dá para escutar nada do que se passa aqui.

Nesse momento, tento entender como foi que ele leu meus pensamentos.

Ele desce o olhar para o meu corpo enrolado no lençol branco e indaga, confuso:
— Ainda despida?

Meu cérebro falha um pouco e eu respondo:

— Encontrei agora — digo, mostrando a calcinha na minha mão. Quando dou conta do meu
ato desnecessário, escondo-a atrás de mim, totalmente sem jeito, entortando minhas pernas
embaraçadas de vergonha.

Gabriel abre um sorriso indecente de lindo, talvez se divertindo de minha patetice, e diz:

— O banheiro está a postos! — Ele dá um passo para trás. — Vou te deixar sozinha, sinta-se
à vontade.

Ele libera o espaço em minha frente e em seguida caminha para fora do quarto, tirando a tolha
dos quadris e secando os cabelos molhados. Oh, céus! Um dia esse homem me mata do coração!
Aperto a calcinha em minha mão e depois vou direto para o banheiro.

Faço minha higiene matinal e retorno ao quarto, enrolada em uma toalha branca que encontrei
dentro do armário do banheiro. Olho ao redor e não encontro Gabriel. Apenas avisto em cima da
cama minhas roupas que eu havia deixado na casa de Gabriel no Batel e uma bandeja em cima da
mesinha ao lado, com suco, torradas, geleia, mamão e uma rosa branca dentro de um estreito jarro de
porcelana.

Retorno minha atenção para minhas roupas e questiono-me:

— Como elas vieram parar aqui? — Estou confusa, porém grata por não ter que dar de cara
com os seguranças de Gabriel naquele vestido vermelho escarlate em plena luz do dia.

Visto minhas calças jeans e meu suéter branco, e me preparo para sair à procura de Gabriel.
Porém, minha barriga protesta alto e então dou uma chance à bandeja ao lado da cama.

Forro meu estômago rapidamente com torrada, geleia e suco; e depois me coloco para fora do
quarto, à procura da escada.

Quando desço, encontro Gabriel falando ao telefone ao pé da escada. Ele usa jeans e uma
camiseta branca mais leve, que consegue destacar ainda mais toda a beleza que ele carrega.

Gabriel se comunica em inglês com a pessoa do outro lado da linha. Eu não sou fluente, mas
já assisti documentários o bastante para reconhecer o idioma. Parece que se trata de um assunto
sério, porém sua expressão está serena, como se já tivesse feito isso muitas vezes.

Ele desliga e diz, franzido o cenho:


— Me desculpe por deixá-la sozinha. Eu estava...

— Não. Tudo bem — digo rapidamente.

— Deixei uma bandeja de café da manhã... — ele começa a falar e eu o interrompo, dizendo:

— Estava delicioso o café da manhã. — Abro um sorriso gentil.

Ele automaticamente estica os lábios também, me convidando a acompanhá-lo. Caminhamos


para o jardim da fachada da casa, onde Gabriel estacionou o seu automóvel lustroso. O sol havia
saído por completo, nos queimando até adentrarmos o veículo vermelho.

A primeira coisa que avisto é meu celular no banco do carona, me lembrando dele pela
primeira vez desde que saímos do restaurante à noite. Devo ter deixado cair no banco quando
vínhamos para cá. Gabriel dá partida ao lado e aproveito para conferir minhas mensagens, me
espantando com a quantidade de notificações do meu pai, Manuela e Donatella. E posso imaginar o
que possa ter dado errado. Droga! Eu deveria ter pensado nisso antes.

Abro as mensagens de Manuela, que parecem mais apreensivas.

"Camille, sua vaca! Onde você está?! Como você não me avisa que disse a Donatella que vinha
aqui?! Seu pai acabou de me ligar, me pegando totalmente desprevenida!" 22h00 de ontem.

"Acabei dizendo que você não apareceu aqui." 22h01

"Onde você está?" 22h05

"Cuida logo, garota! E me responde!" 22h40

"Camille?!" 23h00

"Por que não me responde?" 23h20

"Você está com o bonitão, não é?" 23h50

"Por que não me responde? Você já está me preocupando." 00h10

"REEEESPONDA LOGO, GAROTA!" 01h20

"Ai, meu Deus, e se aconteceu alguma coisa com você?" 02h00

"Por favor, Camille. Seu pai e sua madrasta estão vindo aqui." 02h30

(...)
Paro de ver as mensagens e aviso a Gabriel:

— Vou ter que fazer uma ligação. Minha família está preocupada.

— Não os avisou? — ele pergunta, surpreso, sem tirar a atenção da frente.

— Avisei.

De outra forma, mas os avisei. Não querendo tocar neste assunto com Donatella
precocemente, optei por dizer que havia ido dormir na casa de Manuela. Mas é como diz o ditado:
mentira tem perna curta e a minha não durou uma noite inteira.

— Droga! Está sem sinal! — resmungo baixinho.

— Que tal tentar o meu? — Gabriel retira o celular do bolso com a mão direita, destravando
a tela com a digital e me entrega em seguida.

— Obrigada! — agradeço e logo digito o número do meu pai. — Sem sinal! — Bufo.

— Neste bairro o sinal é péssimo mesmo. Algumas vezes funciona, outras não. É algo que
tenho que pensar também em relação a uma possível futura mudança.

— Quanto tempo demora para chegar aos bairros mais centrais?

— Uma hora.

Só de imaginar o desespero do meu pai pensando mil coisas, meu coração afunda dentro do
peito.

— Tem um posto de gasolina logo mais na frente. Há um ano, quando vim aqui, lembro-me de
ter visto um telefone público.

— Ainda existem telefones públicos?!

— Parece que sim. Aparentava estar em ótimo estado. Talvez o sinal seja melhor. Mas isso só
se estiver com muita pressa. Podemos seguir direto pela cidade.

Penso um pouco e respondo:

— Eu vou querer parar para telefonar.

— Tudo bem. — Ele parece ligar um rádio acoplado ao volante e avisa alguém do carro de
trás: — Vamos parar no próximo posto, pessoal.

A voz grossa aquiesce do outro lado da linha:


— Sim, senhor.

Não demora muito para estacionarmos em um posto de gasolina totalmente deserto, igual
àqueles que se encontram pela BR. Antevejo o telefone público que Gabriel havia mencionado, bem
em frente a uma conveniência, e observo os seguranças saírem do carro atrás. Em seguida, fazemos o
mesmo.

Gabriel segura minha mão e me conduz para dentro da loja com dois seguranças na frente.

— Precisamos de um cartão. Eles devem vender por aqui — Gabriel comenta, enquanto os
seguranças dele parecem averiguar se a pequena loja está segura. — Vocês têm cartão para aquele
telefone? — ele pergunta ao casal de idosos, que escutam a rádio FM em um aparelho antigo atrás do
caixa.

O homem atarracado assente e aponta para o final do corredor atrás de nós, para uma pequena
prateleira expositiva.

Gabriel aquiesce e nos dirigimos até o fim da fileira, parando em frente e procurando os
cartões entre os itens ali.

— Achei! — Encontro o cartão em cima dos chips para celular e quando o pego, uma voz
sedosa irrompe ao nosso lado:

— Gabriel? — A voz feminina parece surpresa.

Viro meu rosto lentamente e dou de cara com uma mulher muito bonita, de cabelos castanhos
e olhos claros. Ela tem a aparência jovial e descolada dentro da calça jeans estrategicamente
rasgada, combinando com a jaqueta preta de couro. Não sei bem explicar, mas é como se uma brisa
fria me atingisse o corpo quando meus olhos cruzam com os dela.

— Não lembra de mim? — a mulher insiste e olho de soslaio para o homem ao meu lado. —
Eu sou a...

— Maria Júlia. — Gabriel não parece estar à vontade na presença dessa mulher, o que me
deixa extremamente curiosa para saber o motivo. Ele pigarreia e diz educadamente: — Quanto
tempo, Maria Júlia!

— Pois é. A última vez que nos vimos você nem tinha toda essa voz — ela elogia.

— Como você está?

Algo nessa mulher não me soa natural, como se estivesse escondendo um sentimento dentro
do corpo. Eu vejo isso através dos olhos.

— Eu estou bem. Melhor do que já me encontrei.

— Eu sinto muito. — Um clima mórbido se forma e depois se esvai. — Fico feliz que hoje se
encontre bem!

Ela abre um sorriso amarelo e desce o olhar para mim.

— Sua namorada?

Gabriel olha para mim e um de seus seguranças se aproxima, analisando a mulher à nossa
frente.

— Algum problema, senhor? Quer ajuda para...

— Não, não, Carlos! Ela é uma conhecida.

Ele a encara novamente e dá alguns passos para trás.

Maria Júlia continua nos estudando com o olhar e logo diz, procurando algo na bolsa:

— Vou te dar meu cartão. Se quiser marcar para conversarmos mais, é só me ligar.

Gabriel pega o cartão de suas mãos e pergunta:

— Trabalha como segurança? — Gabriel estranha, passando os olhos sobre o cartão dela.

— Algum problema? — Ela é inexpressiva.

— Nenhum. Só estou surpreso, são poucas mulheres nesta área.

— Sempre foi um sonho meu. — Ela abre um sorriso um tanto artificial e pergunta: — Você
conhece essa área a fundo?

Gabriel olha de esguelha para os homens pela conveniência e afirma:

— Sim! Conheço. Muito bem.

Ela segue o olhar de Gabriel e olha para os homens atentos entre as prateleiras.

— Talvez me contrate, então. É possível que eu esteja em frente de um futuro cliente.

Gabriel a fita por cima do cartão, seriamente, e concorda:

— É possível, sim.

— Ok. Agora eu tenho que ver algo para comer. Estou faminta — ela comenta, dando alguns
passos para trás. — Foi um prazer, Gabriel.

— Igualmente.

Ela assente com um menear de cabeça em minha direção e adentra a outra fileira de
prateleiras.

Gabriel pede o cartão de telefone que está em minhas mãos e o entrego prontamente.
Enquanto fazemos o caminho de volta para o caixa, comento baixinho:

— De onde a conhece?

— Tempos de escola.

— Ela estudou com você?

Gabriel retira o dinheiro da carteira e respira fundo.

— Estudamos na mesma escola, não na mesma turma. — Ele franze o cenho, como se
lembrasse de algo. — O irmão dela que chegou a compartilhar turma comigo.

Ele responde por fim, e fico com meus pensamentos.

Se ela estudou na mesma escola de Gabriel, com certeza a família dela deve ser como a dele,
então trabalhar como segurança deve ser como um hobby para ela.

Gabriel me entrega o cartão. Nos dirigimos ao telefone e eu realizo a ligação. Como havia
imaginado, meu pai está preocupado e furioso comigo. Tento acalmá-lo por telefone, mas é inútil. Ele
me diz que só irá se acalmar quando eu chegar em casa.

Quando desligo o telefone, tento disfarçar a bronca que levei.

— Tudo bem? — ele pergunta seriamente enquanto caminhamos para o carro.

— Tudo bem. — Sorrio nervosamente. — Tem como chegarmos mais rápido que uma hora?

Ele estuda meu rosto e aquiesce, complacente.

— Claro. Podemos pegar a via expressa.

— Obrigada! — agradeço, envergonhada.

Enquanto Gabriel corta a cidade, observo o sol brilhar lá fora. De repente, fico pensativa. É a
primeira vez na vida que me sinto desta forma: como uma adolescente irresponsável que não avisa
aos pais aonde vai antes de sair. E talvez essa seja a última vez, já que não me sinto nem um pouco
confortável com essa situação. Depois da última noite, algo em mim aconteceu. Sinto-me que já não
sou mais uma "garota". Não sei muito bem explicar, mas houve uma pequena transformação em mim
que vai além do físico. Talvez seja coisa da minha cabeça, mas desconfio que só irei entender isso
com o tempo.

Não demora tanto para pararmos em frente a um portão gradeado ligeiramente enferrujado, na
rua da qual saio para trabalhar todos os dias pela manhã.

— Eu vou indo. Obrigada por ontem...

Gabriel destrava o cinto.

— Eu acompanho você até a porta.

— Não precisa. — Antes que diga qualquer coisa, ele já abriu a porta do motorista.

Ele dá a volta no carro e me ajuda a sair do banco do carona, segurando minha mão e batendo
a porta atrás de mim.

— Obrigada! — agradeço timidamente. Olho para a porta de minha casa e digo receosa: —
Em outra situação, eu o convidaria para entrar, mas agora...

Ele me cala, com seus lábios cobrindo os meus, em um gesto demorado.

— Não se preocupe, teremos muitas oportunidades — ele murmura contra meus lábios, com a
voz grave.

— Ok — sussurro, um pouco embaraçada com os olhares de seus seguranças logo atrás.

— Camille? — De repente ouço meu nome ser pronunciado junto ao ranger da porta de
entrada de minha casa. Olho por cima do ombro e avisto meu pai, Donatella e tia Lúcia saírem de
casa e atravessarem o minúsculo jardim até o portão gradeado. — Sua irresponsável! Você quase me
matou de susto! — meu pai ralha enquanto abre o portão e vem em minha direção, não dando muita
importância à presença de Gabriel.

— Quem é ele? — Ouço a voz de tia Lúcia, que está logo atrás do meu pai.

— Ele quem? — Meu pai automaticamente retira os olhos de mim e encara Gabriel ao meu
lado. — Verdade. Quem é você?

Gabriel e eu nos entreolhamos, e percebo que esse não é o momento adequado, mas ele
calmamente se posiciona.

— Me desculpe pelo ocorrido, senhor. A culpa foi toda minha.


— Como assim? — meu pai indaga, confuso.

— Afonso, não percebe? — tia Lúcia fala baixinho ao meu pai. — Deve ser o namorado de
Camille.

— Namorado? — Meu pai faz uma careta. — Ela nunca apareceu de namorado para mim... E
esse cara aparenta ser bem mais maduro do que a minha menina, Lúcia.

— Mas sua filha tem 21 anos, Afonso. O que você esperava, criatura? Que ela virasse freira
a qualquer momento? Ou que ela se relacione com adolescentes? Está na cara que passaram a noite
juntos.

Eles conversam sussurrando, como se não escutássemos a conversa entre eles.

— Ela poderia ter avisado. — Ele torna a me fuzilar com aquele olhar que vi poucas vezes
durante minha vida e volta a encarar Gabriel. — Qual o seu nome, rapaz?

— Gabriel... Gabriel Átila.

Meu pai o estuda de cima a baixo e diz a Gabriel:

— Preciso que venha jantar em minha casa se quiser namorar a minha filha.

— Pai, nós ainda... — tento explicar, mas Gabriel me impede.

— Sim, senhor. Será um prazer jantar com o senhor e sua família.

Meu pai lança mais um olhar escabreado a Gabriel, que sustenta um semblante calmo e gentil.

— Agora, se me der licença, eu tenho que ter uma conversa séria com minha filha.

— Tudo bem. — Gabriel meneia a cabeça para frente respeitosamente, enquanto desliza as
mãos para os bolsos da calça.

Meu pai assente e me conduz para dentro de casa, com Donatella e tia Lúcia, que espiam os
carros pretos atrás da Ferrari.

Olho por cima do ombro e vejo Gabriel dar a volta no carro, quando meu pai faz o mesmo e
pergunta, surpreso:

— Seu namorado tem uma Ferrari?

Pela primeira vez, ele observa este detalhe.

Gabriel dá partida e todos os carros parados em nossa rua fazem o mesmo, acompanhando-o.
— Além de bonito e parecer educado, é rico — tia Lúcia pensa alto, com um tom de voz
desconfiado.

— Minha filha, me conte mais sobre o seu namorado — ele me diz, interessado, enquanto
entramos em casa pela porta da sala.
20 |O PEDIDO

Camille

No dia seguinte

Observo em volta da mesa os olhares duros, encobertos por uma neblina de desconforto.
Exceto meu pai, que parece dedicado a encarar o homem ao meu lado, sentado em postura
graciosamente ereta. Sua disciplina me contagia a levantar os ombros, de forma que eu pare de
prejudicar tanto minha coluna cervical.

Tia Lúcia está do outro lado da mesa, de frente para Gabriel. E meu pai ocupa a cabeceira da
mesa, perpendicular a Gabriel.

Donatella finalmente chega à pequena sala de jantar, com má vontade nitidamente no olhar.
Ela detesta receber visitas.

Limpo a garganta e me sinto na obrigação de dizer:

— Gabriel, esta é Donatella, minha irmã.

O olhar de Donatella cruza com as piscinas do homem ao meu lado, então ela o cumprimenta
rapidamente:

— Boa noite. Prazer, moço. Desculpe a demora.

Gabriel detém um olhar gentil ao falar com minha irmã.

— Prazer, Donatella. Fico feliz em conhecê-la.

— Sério?

Gabriel sorri de sua pergunta.

— Muito sério.

— Ninguém me disse isso quando me conheceu. Então... obrigada!

Donatella vira o rosto para o homem sentado na outra cabeceira, em posição contrária ao do
meu pai. É Estêvão. Seus membros parecem tão imóveis, que facilmente o confundiria com uma
estátua.

— Quem é ele?

Tia Lúcia sussurra baixo para a filha:

— Apenas sente-se, Donatella.

Ela obedece à tia Lúcia e senta à minha frente.

Embora Gabriel tivesse explicado quando chegou há poucos minutos, ele diz mais uma vez:

— Estêvão é um amigo muito próximo a mim, Donatella. Espero que não se importe com a
presença dele nesta noite. — Tenho a impressão que a resposta continua ainda não satisfazendo
nenhuma das pessoas aqui, mas é o suficiente para não perguntarem mais. — Estêvão é uma espécie
de fã, me acompanha por todos os cantos — Gabriel fala por fim, fazendo contato visual com o
homem feito titânio.

Pela primeira vez na noite, capturo a imagem de Estêvão respirando pesadamente, talvez um
protesto velado contra as últimas palavras de seu chefe.

— Donatella. — O nome de minha irmã sai suave da boca de Gabriel. O olhar dele recai
para tia Lúcia e pergunta: — É um nome diferente no Brasil. Confesso que nunca conheci uma
Donatella. Algum significado específico para a escolha do nome?

— Da minha filha, Donatella? – Tia Lúcia pisca duas vezes e sorri. – Ah, isso é porque eu
amava aquela banda... Bon Jovi. – Os olhos dela parecem fixar no horizonte e parece recobrar a
memória: — Quando eu era adolescente, eu era obcecada por Jon Bon Jovi, o vocalista. Eu queria
casar com aquele homem, porém infelizmente ele já era casado com uma mulher chamada Dorothea.
Sabe, lembro-me de que naquela época eu queria ser ela. Eu achei o nome dela muito bonito. Tem
força, sabe? – Ela inspira fundo e em seguida dá o desfecho da história rapidamente: — E quando eu
soube que estava esperando uma menina, pensei em colocar um nome que soasse tão forte quanto o
dela, não conseguia pensar em nenhum outro que não fosse Donatella.

— Você nunca me contou isso, Lúcia — meu pai dispara.

— Não tinha necessidade, querido. Que diferença faria se eu contasse?

— Nenhuma. Mas era preferível que Donatella não tivesse esse nome horrível — papai
brinca de maneira séria.

— Horrível? É um bonito nome — tia Lúcia diz, indignada. — Calixto adorou. — Calixto é o
ex-marido e pai biológico de Donatella.

— Pergunte à garota se ela gosta do nome — meu pai replica.

Tia Lúcia se vira para Donatella e pergunta:

— Você não gosta de ser chamada de Donatella, meu amor?

Donatella responde franca, como de costume:

— Eu preferiria que tivessem escolhido Jade.

— Jade? É um nome tão sem sal, querida.

— Meu apelido na escola é Dona! E eu ainda nem tenho 18 anos!

— Viu como a menina não gosta? — papai replica, em tom de vitória.

Gabriel se inclina um pouco para o meu lado e murmura:

— Desculpe por isso, não era minha intenção causar um mal-estar com minha pergunta.

— Não. Eles não estão brigando — murmuro de volta, sorrindo. — Eles já vão se entender.
— Endireito minha coluna e pigarreio alto. — Pai, que tal o senhor conversar mais com o nosso
convidado?

Ele torna a encarar Gabriel e responde:

— Certo! — Interrompendo totalmente a discussão desnecessária. — Desculpe por isso,


rapaz, minha filha tem razão. Já que estamos todos reunidos à mesa, vamos conversar mais sobre
você e suas intenções com minha menina. Começando com o que você faz da vida.

— Papai! — exclamo, constrangida.

Apesar de eu ter fugido dessas perguntas quando cheguei em casa, não imaginei que ele
pudesse soar tão desagradável agora.

— É natural que eu queira saber se minha filha não está se envolvendo com pessoas erradas,
não?

Um silêncio sepulcral se faz antes de Gabriel responder:

— Você tem toda razão, senhor. Eu ajudo minha mãe com os negócios da minha família,
senhor.

— Você tem filhos?


— Não, senhor.

— Bebe?

— Socialmente.

— Fuma?

— Não, senhor.

— Faz algum uso de droga injetável?

— Não, senhor.

— Com o que a sua mãe trabalha exatamente?

— Fábrica de automotivos, senhor.

— Qual o nome da empresa?

— Átila Motor Company.

— Vocês são donos da Átila Motor Company? — Meu pai finalmente respira.

Gabriel anui com um menear de cabeça.

— Você me falou da sua mãe? E o seu pai? Ele mora com vocês?

Intervenho.

— Papai, o senhor não acha que está exagerando com essas perguntas? — murmuro, mas
todos escutam.

Porém, Gabriel responde com tranquilidade:

— Eu não moro mais com meus pais, senhor. Mudei para minha casa há alguns anos. Enfim,
moro sozinho... E sobre o meu pai: confesso que o vejo menos do que eu gostaria, assim como minha
mãe. Ele é um político ocupado.

— Político? Algum vereador que eu conheça?

— Senador. Doutor Fernando Cordeiro.

— Senador? — tia Lúcia exclama e cochicha baixinho com meu pai: — Já ouviu falar desse
homem, Afonso?

— Algumas vezes. Mudamos para Curitiba depois das últimas eleições para senador, mas me
lembro de ter visto esse homem nos noticiários daqui.

— Então a família desse rapaz, além de muito rica, tem muito poder. — Ela parece concluir.

— Só não sei se isso é algo bom ou ruim... O que será que esse rapaz quer com Camille?

Pigarreio novamente, não sabendo lidar muito bem com isso. É como se não estivéssemos
aqui, mas estamos ouvindo tudo.

Meu pai torna a se recostar na cadeira e se direciona a Gabriel mais uma vez:

— E qual sua intenção em relação a esse namoro, rapaz?

Sinto-me desconfortável com a pergunta, já que nós nunca tocamos no assunto namoro
especificamente. Não queria que meu pai encurralasse Gabriel, para o mesmo dizer mentiras.

— Pai, na verdade, não estamos namorando.

— Como assim não estão namorando? — Seu cenho franze.

— É que nós...

Gabriel me interrompe ao dizer:

— Dou minha palavra, minhas intenções são as melhores, seu Afonso. — Ele me fita
ligeiramente com o olhar maduro e prossegue com as palavras: — É verdade. Não estamos
namorando oficialmente, não sei por que ainda não, talvez seja porque minha vida não tenha tido
muitas cerimônias ou muitas novidades nos últimos anos. Nunca fui um homem para namorar,
confesso. Nos últimos anos fui uma pessoa extremamente reservada e nunca me interessei por alguém
como estou interessado em sua filha agora. — Ele me encara por alguns segundos, roubando o ar de
meus pulmões com a intensidade de seu olhar e logo torna a fitar meu pai. — Eu acordo e durmo
pensando em sua filha, trabalho pensando no que ela está fazendo, cozinho pensando se ela irá
gostar... — Ele faz uma pequena pausa. — É por isso que quero fazer dessa oportunidade o momento
para pedir ao senhor permissão para namorá-la. — Seus olhos encontram os meus, enquanto meu
peito sobe e desce em sequência, ofegante. Ele segura minha mão, esquentando meu peito, e
completa: — Eu estou perdidamente, completamente, irrevogavelmente apaixonado por sua filha. E
se ela aceitar ser minha namorada, eu gostaria muito que o senhor fosse a favor de nosso namoro.

Um silêncio ensurdecedor se faz na mesa e tudo o que escuto são as batidas altas do meu
coração dentro de minha caixa torácica.

— Se é assim, se realmente está bem-intencionado, não vejo problema algum nesse namoro.
— Gabriel beija a costa de minha mão e volta a prestar atenção às palavras de meu pai.

— Obrigado, seu Afonso. Eu prometo fazer sua filha feliz.

— Assim seja! — papai responde firmemente.

Gabriel me olha novamente, como se estivesse ainda aguardando ansiosamente minha


resposta.

Meneio minha cabeça em positivo, tremulando.

— Eu aceito. Sim, eu aceito — murmuro baixinho.

Ele abre um sorriso lindo. Seus olhos brilham e sua boca vem ao encontro de minha
bochecha, me fazendo sentir a textura de seus lábios risonhos encontrarem minha pele sensível, me
levando à outra dimensão.

Do outro lado, vejo os olhares encantados de tia Lúcia e Donatella em direção a Gabriel,
enquanto não consigo fechar minha boca aberta em um sorriso de felicidade. É como se o entusiasmo
dentro de mim me deixasse anestesiada de uma forma boa, me fazendo querer morar dentro deste
momento.

Depois de comermos a macarronada encomendada por tia Lúcia, espio mais uma vez o rosto
másculo do homem sentado ao meu lado, no sofá da minha casa, enquanto o noticiário das nove ferve
na TV à minha frente. Tia Lúcia, meu pai e Donatella já haviam subido para seus respectivos quartos,
nos deixando a sós na sala. Quer dizer, quase a sós. Estêvão está ao lado da cortina da janela,
observando a rua e os seguranças de Gabriel em frente à minha casa. Volto minha atenção para a TV,
mas não resisto, torno a encará-lo.

Confesso que não consigo me concentrar em nenhuma daquelas matérias com o braço de
Gabriel em minha volta e com seu perfume almiscarado invadindo minhas vias respiratórias.

Ele flagra meu olhar.

— O que foi? — murmura, curioso.

— Nada. É que eu nunca tinha imaginado isso. Você sentado neste sofá, vendo TV ao meu
lado. — Fisgo o lado de dentro da bochecha.

— É o seu lugar favorito da casa? — ele pergunta, fitando-me. Seus olhos são tão claros, que
é possível ver neles alguns reflexos da reportagem que passa à nossa frente.

— Não. Na verdade, não. Meu lugar favorito fica no quarto dos fundos. — Arregalo um
pouco mais os olhos, como se eu tivesse uma ideia, e pergunto: — Você quer ir lá agora?

Gabriel olha para Estêvão e me responde:

— Claro.

Levantamos do sofá e Estêvão se prepara para seguir em nosso encalço. Gabriel acena com a
cabeça para ele, como se dissesse: está tudo bem.

Estêvão estanca os passos, colocando as mãos para trás do corpo, assistindo nós nos
afastarmos da sala para o corredor que nos leva ao quintal. Gabriel segura minha mão e passamos
pelo quintal, fincando os pés no chão úmido, coberto por uma fina camada de lodo, devido ao
período chuvoso.

Abro a porta de madeira de imbuia e acendo a luz pelo interruptor ao lado.

A luz ilumina o local, revelando os vestidos que deixei por fazer montados em manequins de
arame, que eu mesma improvisei.

Inspiro fundo e encho a boca para dizer com orgulho:

— Esse é o meu local preferido.

Pesco as expressões de Gabriel, que parece observar cada canto do pequeno quarto. Desde
as paredes lilases até a máquina de costura antiga.

— É aqui que passo boa parte do meu tempo quando não estou trabalhando. Como diz a
Manuela, aqui é o lugar onde eu faço magia.

Ele começa a caminhar pelo quarto, tocando minha máquina de costurar e depois se senta
atrás, em cima da almofada lilás, sobre a cadeira.

Ele torna a me olhar e exclama:

— Uau! Esse lugar é realmente acolhedor.

— Você não imagina o quanto é acolhedor. Sorri e chorei sozinha muitas vezes aqui. Fiquei
feliz, triste, alegre, preocupada.
Ele me olha como se entendesse o que eu estou dizendo. Analisando o tempo que passamos
juntos, aposto que o lugar favorito de Gabriel em sua casa é o seu escritório. Eu sempre o encontro
lá. Mesmo que não esteja trabalhando, está lendo algum livro daquelas estantes enormes ou apenas
preso em pensamentos. Este quarto é como se fosse o escritório de Gabriel, o lugar que eu me
conecto comigo mesma e tenho liberdade de pensar e sentir o que eu quiser.

— Esses vestidos são para a Ortega? — Ele olha para os manequins ao redor.

— Não. Estes são apenas testes. Os originais estão no ateliê. Vai ter um desfile importante, e
tenho feito alguns testes em casa.

Ele umedece os lábios e seriamente me diz:

— Além de linda, é uma mulher esforçada. É admirável. — Ele se levanta e vem em minha
direção, me fazendo dar um passo para trás. — Não só admirável. É atraente também — ele sussurra
a última parte, subtraindo o espaço entre nós e unindo nossos corpos em um ritmo perfeito,
acariciando os lados do meu rosto.

Dou mais um passo para trás, automaticamente fechando a porta atrás de mim.

— Tenho pensado muito na noite passada — ele murmura, colocando seus lábios nos meus
em um selinho demorado.

— E-eu também pensei muito — gaguejo, ainda tonta com sua aproximação.

— Como foi para você? — ele me pergunta seriamente, segurando minha cintura.

— Dolorido... — disparo com sinceridade. — Mas ao mesmo tempo... eu senti muito prazer.
— Sinto dificuldade de expressar o que aconteceu na noite passada. Continuo mordendo o canto
inferior de meus lábios. — Eu quero outra vez.

— Você não imagina o quanto eu quero também. — Ele me lança um olhar lascivo, unindo
nossos lábios outra vez, só que dessa vez envolvo seu pescoço com minhas mãos, trazendo-o para
mais perto de mim, se é que isso é possível. E ele retribui afundando sua boca na minha com mais
intensidade, imprensando meu corpo contra a superfície da porta atrás de mim, enquanto sua língua
me invade de uma forma quase obscena. Céus! Onde isso vai terminar? Ele separa nossas bocas com
delicadeza, olhando em meus olhos chamejantes e unindo nossas testas. Eu acho que eu tenho agora
um grande vício. Consigo sentir todos os contornos do corpo dele contra o meu, enquanto sua língua
mentolada invade minha boca outra vez, só que de forma mais lenta.

Suas mãos caem para minhas coxas, queimando minha pele com o calor de sua mão através
do tecido do vestido. Ele sobe mais o tecido, apalpando toda extensão do meu bumbum, cravando
seus dedos ali. Automaticamente inclino meu corpo para frente, fazendo meus seios se elevarem
contra o seu corpo.

— Gabriel! — Arquejo, sentindo-o completamente duro em minha barriga.

— Eu estou com tanta vontade de você. — Ele passa a língua no meu pescoço e em seguida o
chupa, enquanto sua mão desliza para dentro de minha calcinha. — Quero chupar aqui. — Ele
pressiona meu centro sensível com as pontas dos dedos, abafando meu gemido com sua boca.

Toc. Toc.

— Camille! — Ouço a voz de Donatella. Droga! Ela já não tinha subido para o nosso quarto?
— Você está aí?

— Puta merda! — Gabriel xinga baixinho.

Desvencilho-me de Gabriel, ajeitando meu vestido e recompondo-me.

Abro a porta e estico um sorriso um tanto forçado para a garota de cabelos longos e pretos.

— Estou aqui. Algo de errado, mana? — Tento alcançar um tom de naturalidade.

Ela me avalia com os olhos grandes e curiosos, fazendo o mesmo com Gabriel, se
concentrando na camisa amassada dele. Enrubesço involuntariamente.

— O papai pediu para avisar que já está na hora do seu namorado e o amigo dele irem
embora.

Repreendo-a com o olhar, devido à forma grosseira como falou.

— Ué, só estou reproduzindo o que ele me disse — ela continua.

— Tudo bem. Eu já estava de saída mesmo. Seu pai tem toda razão, está tarde — Gabriel diz
atrás de mim. — Obrigado, Donatella. Já estamos indo.

— Por nada.

Ela fica paralisada ali, como se estivesse esperando Gabriel sair.

— Ok. Já estou indo. — Ele beija meu rosto rapidamente, dizendo: — Até logo, namorada.
— Ele me pega de surpresa.

— Tchau, namorado. — Sorrio, não sabendo distinguir onde é o céu: em cima de nossas
cabeças ou sob meus pés mesmo. Gabriel é o homem que qualquer mulher desejaria, mas nunca
ambicionei ter alguém como ele para mim. No entanto, agora ele é o meu namorado. Minha Nossa
Senhora! Eu estou nas nuvens.
21 |O INÍCIO DE UM SONHO

Camille

Caminho apressadamente pelos corredores dos bastidores do desfile da Ortega, apreensiva


com a possibilidade de algo dar errado.

Um medo sem cabimento.

O que tinha de ser feito, foi feito! Acalme-se, Camille! O que tiver de ser, será!

É o primeiro desfile da empresa que eu participo e, em minha cabeça, nada poderá dar
errado.

Segundo dona Consuelo, o desfile do Ateliê Ortega é tão importante quanto os realizados por
outras instituições, pois o foco está mais voltado ao desempenho dos funcionários e não para a
marca, como acontece em desfiles externos. E para as novatas, é um momento para testes, crucial
para garantir nossa permanência na empresa. Sem contar o fato que quase todos os jornalistas das
melhores colunas sociais de Curitiba marcam presença.

Como dona Consuelo disse: “trabalhar na Ortega é como uma faca de dois gumes: pode te
levar ao sucesso em uma única guinada, mas também pode arruinar toda a carreira que alguém
poderia vir a ter”.

— Vai dar tudo certo! — repito baixinho como um mantra até eu chegar ao camarim dos
vestidos de noivas, com a coroa de pérolas que falta para compor o último modelo de vestido do
desfile: o mais importante, aquele que todos esperam algo a mais.

Encontro o olhar de dona Consuelo me fitando do outro lado da sala, ajustando o vestido
vitoriano em uma modelo ruiva. Ela me olha, ajeitando as lentes grossas ao rosto, enquanto sinto
minha respiração cansada pesar. Ela pergunta pausadamente:

— Em que furacão você se meteu, menina? — Ela faz uma pausa e só piora quando retoma:
— Que galinheiro é esse em cima de sua cabeça?

Olho para o espelho ao lado, com o peito subindo e descendo. E noto pela primeira vez meu
cabelo cinza de tanta poeira, e para completar, há penas brancas entre os fios de cabelo. Sim, penas!
Como as de um ganso. Droga! Maldito desespero quando eu não encontro uma coisa rapidamente.
Lembro da bagunça que deixei na dispensa de acessórios e me acho um total fracasso por ter
revirado tudo aquilo atrás de uma simples tiara.

— Aqui está a tiara de pérolas que a senhora pediu. — Forço um sorriso e levanto a bendita
tiara.

— Coloque-a na bancada ao seu lado, eu cuido disso. E vá ajeitar esse cabelo. Não é porque
nós ficamos atrás das passarelas que podemos parecer uma galinha descabelada.

— Está bem! — Anuo, mantendo a pose, mas por dentro estou no chão.

Eu estava indo tão bem, fiz vestidos incríveis. Por que, de repente, em uma noite, parece que
tudo pode ir por água abaixo?

Vou para o cantinho do camarim e começo a tirar pena por pena de cima de minha cabeça,
penteando meus cabelos rapidamente e o amarrando em um coque apertado, para disfarçar o cheiro
de mofo que se instalou ali.

Volto a ajeitar os últimos detalhes dos vestidos nas mulheres altas e esbeltas. Depois de tudo
pronto, somos chamadas para nos direcionarmos para trás do palco, onde tudo irá começar a
acontecer.

— Que cara é essa, garota? É impressão minha ou você está um pouco amuada? — dona
Consuelo comenta baixinho, parada ao meu lado, atrás da parede que separa os bastidores do palco.

Disparo, sincera:

— É medo.

— Medo? — A palavra soa azeda em sua boca.

— De dar alguma coisa errada e eu nunca mais poder sonhar com isso.

— Larga disso, menina! É apenas sua primeira vez. Se está assim pelo o que eu falei, relaxe.
Não há a mínima chance de dar errado — ela diz sem olhar em meus olhos.

— Como pode ter tanta certeza?

— Olhe para os seus vestidos.

Faço o que ela me pede, e ela torna a dizer:

— Nunca na história dessa empresa alguém executou tão bem um projeto de vestidos de
noivas. Eu pensei que receberia mais uma daquelas novatas incompetentes que copiavam modelos da
internet, mas me enganei feio. O que eu assisti nos últimos dias foi um nascer de uma estilista que
terá um nome grande. — Sinto que ela tem dificuldade em dizer isto, mas diz. — E esse é apenas o
começo. Para você.
— Mas a senhora me ajudou... — penso, confusa.

— Eu fingi ajudar você, menina! No fundo, você sabia muito bem o que era para ser feito.

Franzo a testa, ainda confusa. Ela desliza o olhar para mim e diz claramente:

— Deixe de ser uma pirralha insegura! Você tem ideias grandes, levante esse nariz e mostre
ao mundo para o que veio. Lembre-se: o mundo gosta de ideias fantásticas, mas também não tolera
pessoas fracas. Não deixe que jamais ninguém menospreze seu trabalho, nem mesmo os medíocres
desta empresa!

— Preparadas? Vai começar, vai começar! — um dos staffs diz, enquanto a luz fica baixa e
vejo os holofotes iluminarem o palco lá fora.

Escuto a voz de dona Consuelo dizer por fim:

— Esse desfile é seu.

Ela caminha para escada ao lado enquanto uma música instrumental começa a soar lá fora.
Pisco os olhos, sem acreditar que a casca-grossa da minha chefe disse isso mesmo para mim ou se
estou sonhando. E depois me apresso em organizar a saída das modelos atrás de mim.

Dona Consuelo injetou um pouco de confiança em mim, e me sinto bem mais leve quando os
modelos de meus vestidos passam pelas passarelas nos corpos daquelas mulheres.

O show termina com os aplausos do público e o desfile de todas juntas, inclusive dona
Consuelo, que me chama para acompanhá-la, guiando a fileira de modelos pela passarela. A
adrenalina que corre em minhas veias me faz ver nada além da luz que nos ilumina, com uma alegria
dentro de mim sem igual. Me lembro das minhas noites no quartinho do fundo de casa, do meu tempo
trabalhando na malharia de seu Reinaldo e de todas as vezes que sonhei que isso aconteceria e logo
em seguida duvidei de que isso pudesse algum dia acontecer. Com certeza, viver um sonho é bem
melhor do que sonhar.
— Senhorita, champanhe?

— Não, não. Obrigada! — Sorrio gentilmente, passando pelo garçom na social pós-desfile,
procurando um lugar para que eu possa ouvir direito Gabriel ao telefone.

— Como foi o desfile?

Inspiro fundo, ainda não acreditando.

— Melhor do que eu imaginava! Eles gostaram das minhas peças, e até agora minha chefe
estava me apresentando para todo mundo, eles queriam me conhecer! Acredita?

— Acredito.

— Eu ainda não acredito que... e-eu... — gaguejo. Não consigo expressar em palavras tudo o
que estou sentindo, mas por fim completo: — Eu estou tão feliz.

— Você merece, baby! Temos que comemorar — ele afirma. — O céu é o limite para você,
baby.

— Camille!

Viro-me de uma vez e encontro a bela loira de seios perfeitos em um vestido dourado e
generosamente cavado na frente.

— Giovanna? — murmuro, surpresa.

— Giovanna...? Perdão, minha irmã está em sua frente?

— Queria parabenizar você pelo desfile de hoje... Foi surpreendente! — Ela gesticula com as
mãos, sorrindo. — Tão maravilhoso que eu fiquei com vontade de casar 12 vezes, só para poder usar
cada um deles.

Respondo baixinho ao telefone:

— É sim. Posso ligar de volta daqui a pouco?

Giovanna me observa e pergunta:

— É meu irmão na linha?

Emudeço.

— Como uma resposta pode estar tão estampada no rosto de uma pessoa? — ela diz, sorrindo
e falando um pouco mais alto: — Tchau, Gabi. Vou cuidar da cunha para você.
Cunha? De cunhada? Ai, meu Deus! Por que de repente eu gostei tanto disso?!

— Pode me ligar mais tarde. Até prefiro. Preciso me certificar que minha irmã não a levou
para o mau caminho.

Olho para a mulher sorridente com uma taça de champanhe nas mãos e respondo Gabriel
antes de desligar:

— Até mais tarde, s... — Quase digo por costume, mas engulo. — Gabriel.

Guardo o celular no bolso e agradeço os elogios de Giovanna.

— É sério! Milão está te perdendo, gata! O que foi esse desfile?!

— Muito obrigada! — repito, sem graça com tantos elogios.

— Giovanna. Você por aqui, minha prima? — Vejo Orlando se aproximar entre os
convidados.

A loira em minha frente revira os olhos nas órbitas, pensando alto:

— Até que estava demorando para os corvos aparecerem.

— Se não queria ver corvos, então por que a modelo veio na casa do corvo?

Giovanna se vira de uma vez e diz:

— Porque a modelo aqui, além de modelo, é formadora de opinião. Você deveria me


agradecer por eu ter passado em seu desfile antes de retornar à Europa! Eu sou muito disputada por
lá, sabia?!

— Não respondeu minha pergunta.

— Vim a convite de umas amigas que trabalham na Ortega.

— Por favor, diga-me quem são, que mandarei uma carta escrita à mão para a mesa de cada
uma.

Giovanna parece recuar um pouco, me olhando e dizendo:

— Não foi a senhorita Camille.

— Certamente não foi. Ela não tem poder para nada nesta empresa, tampouco para convidar
alguém.

— Mas deveria ter. Ela salvou o desfile inteiro.


Os olhos esbugalhados de Orlando recaem sobre mim, e ele pensa alto:

— Interessante, essa garota parece ser muito importante para vocês... Será que ela não estaria
tendo um caso com o seu irmão? Ele parece gostar muito dela também...

— Por favor — ela interrompe o raciocínio de Orlando, pegando mais outra taça de
champanhe com o garçom que passa, me entregando uma também.

Um homem careca e com óculos de oncinha nos aborda, perguntando à Giovanna e Orlando:

— Será que podem me conceder uma entrevista? — Orlando olha para Giovanna, e o moço
que aparenta ter uns quarenta anos faz um beicinho, com os olhos brilhando. — Por favorzinho. —
Giovanna pisca duas vezes, sendo pega de surpresa. — Perdão. Deixem que eu me apresente. Sou
Lorenzo, do blog Por dentro de Curitiba...

— Não o conheço — Orlando diz grosseiramente, mas o senhor continua:

— Por favor, meninos. É meu sonho entrevistar vocês. Entrevistar os filhos de Hortência
Ortega e Helena Átila me ajudaria muito no jornal, estou prestes a ser demitido por falta de matérias
relevantes, e entrevistar vocês... será perfeito. Eu tenho acompanhado os pais de vocês nas colunas
sociais de Curitiba desde que eu era um garotinho...

— Eu torço para que não diga isso na frente da minha mãe, pois caso contrário terá sérios
problemas em aparecer em qualquer evento da Ortega novamente. — Orlando é áspero.

— Por que não? — Giovanna parece se compadecer do jornalista, estufando o peito. — Pode
começar!

— Sério?!

— Claro, comece! — Giovanna afirma.

Ele olha com surpresa, mas tira o gravador do bolso rapidamente e aperta o pequeno botão no
canto direito.

Lorenzo começa a elaborar suas perguntas, e fico surpresa com tamanha habilidade de
inventar aquelas questões em poucos segundos. O que mais me chama a atenção mesmo é seu notável
conhecimento sobre as famílias de Orlando e Giovanna.

— Giovanna Átila, como se sente esta noite depois de voltar de uma temporada na França e
poder prestigiar o trabalho de seu primo?

Ela pisca os olhos e solta um riso educado, porém com um fundo de ironia.
— Perdão. Não vim prestigiar Orlando. Eu vim prestigiar outra pessoa.

— E quem seria?

Os olhos de Giovanna me procuram e ela me chama para o seu lado.

— Vem cá, Camille.

Morro de vergonha, mas me aproximo e ela segura minha mão.

— Eu vim prestigiar Camille Souza. Futuramente, uma das maiores estilistas que este país vai
conhecer. Hoje seu desfile foi impecável, fiquei totalmente... extasiada — ela diz, por fim. —
Gravem este nome, pois, com certeza, vocês ouvirão falar muito por aí.

— Uau! — Lorenzo abre um sorriso e pergunta: — Para finalizar, posso tirar uma foto de
vocês três juntos?

— Claro, querido! — Giovanna abre um espaço no meio, entre ela e Orlando, me chamando
para me colocar ali. Mesmo que desconfortável com a energia de Orlando, caminho para o lugar
reservado por Giovanna para mim.

— Digam: xis! — Lorenzo dá o comando antes de se escutar um clique e o flash iluminar


rapidamente nossos rostos.

Quando saímos da posição, tudo começa a ficar mais lento, como se eu tivesse um
presságio... Como se algo grandioso estivesse me aguardando. Sorvo uma quantidade de ar, me
questionando se isso se trata de algo bom ou ruim.
22 | SEGREDO

Camille

Pela manhã, caminho a passos largos em direção ao andar de cima. Mais especificamente, à
sala de Orlando, segurando o requerimento de dona Consuelo em minhas mãos. Meu celular vibra
eufórico em meu bolso e o atendo prontamente, sem antever no visor de quem se trata.

— Amiga, você está ocupada?! — Reconheço a voz um pouco esganiçada.

— Manu. Aconteceu alguma coisa? — Estranho sua ligação e entro no elevador.

— Você já abriu sua conta do Instagram hoje?

— O aplicativo está desativado em meu celular...

— Reativa agora, Camille!

— Eu estou trabalhando, Manu. Não tem como ser outra hora? Aliás, você não está em
expediente agora?

— Seu desfile está em todos os perfis mais famosos de Curitiba! — ela dispara. — Você é
um fenômeno das redes sociais curitibanas, amiga. Um fenômeno! Ai, meu Deus! Eu ainda não sei
se tenho maturidade para lidar com uma amiga famosa!

— Calma, Manu! Não tem ninguém famosa aqui não.

— Eu vou te mandar os links por mensagem, garota! Seu rosto está estampado em várias
fotos ao lado daqueles vestidos que você desenha, que parecem de princesa...

— Manu, depois eu ligo para você.

— Tudo bem. Mas depois quero saber tudo. Eu não estou sabendo acompanhar sua vida.
Primeiro, você consegue fisgar o coração de um bonitão do Batel que parece que saiu de algum
filme greco-romano e é amigo íntimo de um imperador românico, e agora vira subcelebridade. —
Ela estala a língua no céu da boca, resmungando: — Isso é muito para minha cabecinha de vento.
Mas quero saber de tudo!

— Combinado, Manu. Mas, neste momento, eu vou ter que desligar mesmo. Agora que
começou o expediente.
— Tudo bem, amiga.

Rapidamente, me despeço de Manu, inspiro fundo e adentro o andar do setor da presidência.


Não encontro ninguém na secretaria de Orlando, então decido bater com os nós dos dedos na porta de
carvalho à minha frente.

Não tenho resposta alguma, e, quase que instintivamente, empurro a porta lentamente,
deixando o som das vozes vazarem da sala.

Ouço uma voz grave reverberar:

— Você acha que eu tenho orgulho de um filho que cuida do negócio de roupas da mãe?! Por
favor, Hortência! Eu adestro esse moleque desde pequeno para aprender a ser homem de verdade,
mas ele não passa de uma costureira jogada atrás de um balcão maltrapilho!

— Não admito que fale assim!

— Não era isso que você era?! Antes de eu te conhecer anos atrás, você não era uma
costureira?! Tudo isso aqui que você construiu foi graças a mim e ao meu dinheiro! — A voz cruel
faz uma pausa e diz: — Infelizmente, meu único herdeiro não merece o nome Cordeiro como
sobrenome!

— Meu sobrenome é Orlando Ortega. Somente. Não vou permitir que trate minha mãe dessa
forma! Você...

— Ora, seu moleque! — Escuto o pai de Orlando rosnar.

— CHEGA! — Ouço a voz madura e feminina bramir. — O que você quer, Otávio?!
Divórcio?! Eu te dou o divórcio! Mas não venha em minha empresa importunar meu filho e a mim! Eu
assino os papéis, eu assino! — Ela parece dizer entredentes, parecendo soar uma ameaça, embebida
pela raiva.

Um silêncio sepulcral se faz, mas é cortado pela própria Hortência.

— Não quer se separar, não é? Claro! As eleições estão chegando e você precisa da gente
pelo mesmo motivo. Para armar o teatro de família perfeita e feliz, para enganar essa gente pobre que
acredita em qualquer história de homem honrado. — Ela sorri ironicamente e pragueja: — Homem
honrado é um caralho! Você é podre, Otávio Cordeiro! Podre! Um rato! Você e sua família de gente
ambiciosa, assassina e invejosa!

— Não aguento ficar mais um segundo olhando para vocês!


De repente, a porta à minha frente é aberta de uma vez só e vejo o homem alto de feições
maduras e cabelos grisalhos. Ele usa terno e gravata e tem um olhar assombroso. Cambaleio para trás
quando seus olhos caem para o meu corpo, como se eu fosse um pedaço de carne. Por um instante, me
sinto suja e envergonhada por esse senhor estar me olhando dessa forma.

— O que veio fazer aqui, Camille?! — Nunca pensei que eu pudesse sentir isso, mas ouvir a
voz de Orlando me resgata de um breve momento angustiante.

— Com licença! — o homem à minha frente diz e dou espaço para que ele passe.

Olho para dentro da sala e encontro Orlando. Ao seu lado há uma mulher de cabelos pretos e
de olhos tão expressivos quanto os de Orlando. Suas sobrancelhas cheias em forma de arco
contribuem para sustentar sua aparência jovial, mas eu sei muito bem que essa mulher tem mais anos
do que aparenta ter. Afinal, ela é a Hortência Ortega. A mãe de Orlando. A mulher retratada em
alguns dos quadros pendurados pela empresa. Nunca tinha a visto de perto. Segundo as conversas
pelos corredores, ela passa uma boa parte do tempo viajando a negócios.

— O que veio fazer aqui?! — Orlando pergunta mais uma vez, impaciente e visivelmente
incomodado com minha presença. A camada fina de suor que encobre sua testa denuncia que ele não
está em um bom momento. Mas é claro que não está.

Droga! Por que eu apareci justo agora?

— Eu po-posso vir outra hora — gaguejo com os olhares tensos de mãe e filho sobre mim.

A mulher parece se recuperar da conversa anterior e me pergunta, curiosa:

— Você não é a nova funcionária que trabalha com Consuelo?

— Sim, senhora. — Como ela sabe?

— Quando foi admitida?

— No mês passado, senhora.

— Que interessante. — Ela me olha de cima a baixo. — Eu acompanhei o desfile dentro do


voo, vindo para cá. Foi deslumbrante! — Ela aponta o dedo em riste e elogia: — Tem talento! Sinto
que temos que aprimorar isso!

— Obrigada, senhora.

Orlando parece impaciente e me diz com um sorriso forçado:

— Agora nos dê licença, eu quero conversar com minha mãe.


— O requerimento! — balbucio, levantando o papel que dona Consuelo me deu a missão de
entregar.

— Eu pego mais tarde em seu setor — ele responde, inexpressível.

— Tudo bem. — Assinto prontamente e fecho a porta em minha frente. Sinto meu corpo
finalmente relaxar fora do alcance dos olhares de mãe e filho. Sacudo a cabeça, espantando a energia
ruim, e retorno ao meu setor. Uma família não deveria se machucar com palavras tão hostis.

Depois de passar a tarde toda atendendo e recebendo noivas interessadas em meus vestidos,
Orlando aparece na sala de dona Consuelo às seis horas.

— Onde está Consuelo?

Termino de colocar o último vestido no guarda-roupa para ajustes, e viro meu corpo em
direção ao homem alto de olhos expressivos.

— Ela já foi embora.

— O que queria mais cedo? — Ele se senta atrás da mesa de dona Consuelo, unindo as mãos.

Vou até a bancada ao lado da mesa e tiro o requerimento entre as folhas de papéis.

— Dona Consuelo está requisitando ajuda de pessoal de outros setores. De ontem para hoje a
demanda de vestidos aumentaram muito e não dá para atender todo mundo que enviou e-mail para o
setor.

Entrego o documento.

— Certo. Alocarei algumas pessoas para cá. — Ele dá de ombros.

Ele fica me olhando, com aquele olhar que sempre tem: como se eu fosse um experimento de
laboratório.

— Se me der licença, estou de saída também.

Apresso-me em pegar meus pertences.

— Espere!
Torno a olhá-lo.

— Tenho algo para conversar, sente-se! — Ele aponta para a cadeira em minha frente.

Mesmo escabreada, faço o que ele me pede. Ai, ai! O que ele quer?, penso com um pé atrás.

Ele inicia, parecendo esvaziar o ar dos pulmões:

— Minha mãe gostou de você. Gostou muito de você e do desfile de ontem. Ficamos
conversando sobre você depois que saiu, e ela teve ótimas ideias. Ela não pôde ficar e dizer isso
pessoalmente, mas me delegou a função de conversar sobre seu futuro.

— Meu futuro? Na empresa?

— Sim. Ela quer levar esse desfile para as passarelas europeias. Nós realizamos alguns
desfiles por lá, estamos em processo de expansão, e ela achou que essa coleção de vestidos de
noivas será interessante para nós, ou até mesmo uma chance de alavancar o nome da Ortega no
exterior.

Minha mente dá um nó, como se essa informação fosse demais para mim.

— Meus vestidos serão apresentados na Europa?

— Roma, Milão, Londres, Cannes, Paris... Você conhecerá a Europa inteira ao lado de uma
pessoa que entende bem do assunto.

A proposta é tentadora, mas e...

— Demoraria quanto tempo essa viagem?

— Na verdade, o plano é uma mudança definitiva para Milão, assim você terá mais tempo
para estudar também. Creio que será muito bom para seu desenvolvimento. Isso tudo custeado por
nossa empresa.

— E o que vocês ganharão em troca?

— Um contrato de exclusividade de 10 anos.

— 10 anos?! — repito, atônita.

— Você nos representando na Europa, com tudo que uma boa profissional tem direito. E aí,
topa?

Pisco pelo menos três vezes, não sabendo lidar com a profusão de pensamentos e sentimentos
que fazem voltas dentro de mim.
— Eu preciso pensar — murmuro, confusa.

— Pensar? No quê? — Orlando meneia levemente a cabeça, desacreditado. — Há uma


possibilidade de recusar uma oportunidade dessas?

— Eu não sei... É muito boa! Na verdade, é muito mais do que eu sonhei para agora! Eu só
preciso pensar.

Orlando bufa.

— Entendi. — Ele se levanta e vem até mim, me inquirindo: — Vai desistir do seu sonho por
ele? Você acha que ele vale tanto assim?

— Eu não disse nada. Só preciso pensar. — Estou muito confusa.

— Ele ficará arrasado com sua partida para a Europa. — Ele desliza as mãos para os bolsos
e reflete: — Sei que você é alguém importante para ele. — Ele torna a me encarar. — Mas ele não
deve ser importante para ninguém. Muito menos estar acima dos seus sonhos. Gabriel é um verme,
que merece ter a vida que tem. Um miserável que não merece pena ou qualquer sentimento de
compaixão...

— Não. Não é — nego, balançando a cabeça. — Ele não merece a vida que tem. Pare de
falar isso! Eu não admito!

Ele arregala os olhos, como se eu o tivesse ofendido. E, em seguida, ele replica com amargor
no tom:

— Com certeza não o conhece.

— O que significa conhecer para você? — Inspiro fundo e digo firmemente: — Eu o conheço,
bem mais do que você! Não importa quantos anos o conheça ou o que aconteceu no passado entre
vocês dois, eu o conheço suficientemente para saber que ele se arrepende muito...

Ele rosna, enfurecido:

— Nem se ele tivesse outra vida para se arrepender! Quem ele assassinou, não vai voltar
para eximi-lo dessa culpa!

Dou um passo para trás, sentindo o impacto das últimas palavras, como um soco na boca do
estômago.

— O que foi? Ele não te contou? Você não sabia, não é mesmo?

O que está acontecendo?


— O que fez com que ele achasse que eu não contaria a você? Será que ele acha que eu tenho
medo? — Ele ri, ironicamente. — Então vamos lá... — Ele se aproxima bruscamente do meu rosto e
jorra as palavras odiosas: — É isso mesmo o que você escutou. Seu namorado é um assassino!
Gabriel ceifou a vida de três pessoas a troco de nada! Um covarde que assassinou três meninos
dormindo, sem chance de se defenderem! Um verme! Um vadio! Um criminoso que deveria estar
apodrecendo na cadeia!

De repente, ele sorri descontroladamente.

— O que levou esse imbecil a pensar que eu não contaria a você? — ele repete.

Tudo começa a girar, como se eu não soubesse onde estou. Eu não estou me sentindo bem e
sei que provavelmente irei começar a chorar em minutos. Dou alguns passos para trás, para fugir da
sala, com os pensamentos a mil.

— Você vai fugir? Gabriel é um...

— Me deixe em paz!

Começo a chorar inesperadamente, antes de sair pelo corredor em direção ao elevador.


Minha mente chega a doer com tantas informações e não posso fazer nada além de sentir coisas
horríveis esmagarem meu cérebro.

Gabriel

Termino a última flexão na barra e finco meus pés no chão, com um rastro de suor descendo
pela lateral de meu rosto.

O treino de hoje rendeu bastante, aliviando a tensão que carrego em meu corpo. A academia
nos últimos anos tem sido minha fonte de distração. Toda vez que treino, sinto cinco quilos esvaírem
de minhas costas, como uma válvula de escape. Pego a toalha de rosto em cima do banco de couro,
secando o suor do meu rosto e pescoço, e recobro algumas memórias de noites anteriores. Suas
curvas timidamente perfeitas, seus seios pequenos e sua pele sedosa me levam a pensar
constantemente nela. Droga! Eu estou com uma puta vontade de possuí-la de novo e ensiná-la a
transar com mais prazer. Com ela, não é apenas sexo. No entanto, o sexo é inevitável para mim. Eu a
desejo, demasiadamente. E agora que somos namorados, quero ensiná-la a foder.

Em seguida saio da academia, atravessando o jardim ao lado da piscina.

Encontro Estêvão na sala, que diz:

— Ela está aí.

— Ela quem? — pergunto, colocando a toalha em volta de meu pescoço.

— A senhorita Camille. Ela está no escritório.

Pressiono os lábios, estranhando sua vinda repentina. Havíamos combinado de nos ver
amanhã, por que de repente ela mudou de ideia...

— Obrigado, Estêvão. Vou falar com ela. — Assinto, caminhando em direção ao escritório.

Ah, Camille! Você está perdida! Passo a língua entre os lábios.

Chego ao escritório e vejo Camille sentada na cadeira do outro lado da sala, concentrada nos
livros das prateleiras ao lado. Ela está impecavelmente linda em um blazer branco e com os cabelos
amarrados no topo da cabeça.

— O que está fazendo? — pergunto, adentrando o escritório.

Ela faz um breve suspense, mas responde:

— Tentando enxergar o que você vê.

Aproximo-me da mesa e indago, curioso:

— O que eu vejo? — Minha voz sai grave demais.

Ela parece inspirar fundo e solta o ar pela boca, me olhando dentro dos olhos.

— Não faço ideia.

Ela repuxa o lábio inferior, me encarando. Seus olhos parecem me estudar minuciosamente, e
em seguida seu cenho franze, enquanto meus lábios sussurram:

— Tem algo de errado?

Ela reluta em dizer, mas desfere:

— Orlando veio ao meu setor hoje.


Ela continua me olhando com um semblante tenso, como se tivesse algo a incomodando.
Observo ela morder o lábio inferior com força, parecendo chegar ao limite.

— Me conte tudo. — Seus olhos enchem d'água. — Por favor.

— O que... — começo, confuso, mas estanco, entendendo o que pode estar afligindo-a.

— Camille... — Hesito pela primeira vez, sendo tomado pela raiva. — Desgraçado! —
Fecho o punho, querendo socar a cara daquele filho da puta! Ela me olha com as sobrancelhas quase
unidas, visivelmente abalada. Gaguejo: — E-eu iria contar a você, eu só estava esperando o
momento...

— Me conte, por favor.

— Eu estava... eu estava com tanto... tanto medo. — Tenho dificuldade em confessar, tomado
pela raiva e vergonha por meu passado me pertencer.

— Medo de quê?

— De que você não acreditasse em mim. — Sinto os espectros da dor de uma ferida que
nunca foi curada, mas ainda mais temoroso por outra razão. — Eu ainda nem te tenho direito e já
tenho tanto medo de perder teu amor.

Vejo uma lágrima pelo canto de seu olho e ela limpa rapidamente com o antebraço.

Sorvo uma boa quantidade de ar, tentando manter minha mente sã.

— Me desculpa. Eu pensei que podia lidar com isso, mas não posso te meter nisso — digo,
pousando as mãos na cintura, analisando o melhor a se fazer. — Vá embora, Camille. Me desculpa.
Escape disso, vá embora.

Ele se levanta e dá a volta na mesa que nos separa. Apesar de seu corpo ser muito mais baixo
do que o meu, ela me envolve com seus braços, dizendo contra o meu peito:

— Eu não vou. — Ela faz uma breve pausa e prossegue: — Então, por favor, confie, eu
acredito em você. Apenas me conte. Eu não tenho medo de ficar ao seu lado... Já te perder, isso sim
me dá pavor.

— Ok! — Sorvo uma boa quantidade de ar, decidido a contar essa parte da minha história.
Inspiro pesadamente mais uma vez e digo em uma só respiração: — Há dez anos eu fui acusado de
executar três dos meus colegas de escola.

Assisto seus olhos se arregalarem um pouco, quase imperceptivelmente.


Ela não diz nada, apenas me espera prosseguir.

Tento resumir:

— Tudo aconteceu em um acampamento de escola nas redondezas de São José dos Pinhais. Eu
tinha levado uma surra das vítimas horas antes e, depois, à noite, eu fui o primeiro a chegar no chalé
em que eles já se encontravam... mortos.

Vejo Camille soltar o ar dos pulmões, como se isso fosse pesado demais.

Meneio a cabeça em negativa, apertando os lábios e em seguida dizendo:

— Eu não os matei.

Ela sopra com a voz embargada:

— Eu sei que não.

— Tinha tudo para todos pensarem que foi eu, mas juro que não fui eu...

Sinto meus olhos se encherem d’água, e, droga! Limpo rapidamente com o canto do pulso,
enquanto ela vem em minha direção em tempo recorde, envolvendo meu tronco com seus braços
pequenos. Ela afunda seu rosto em meu ombro, beijando ali, sussurrando:

— Eu não sei o que houve naquela noite, mas sei que não foi você. – Seu tom de voz é
inequívoco, cheio de certeza.

Seguro sua cintura com uma mão e envolvo suas costas com o meu braço livre, mordendo o
lábio inferior com força e reunindo forças para não deixar as malditas lágrimas caírem dos meus
olhos.

— Os garotos que foram assassinados naquela noite eram amigos de Orlando, por isso a
revolta dele.

— Orlando não deve conhecer você tanto quanto eu conheço. Você seria incapaz, Gabriel. Eu
sei disso... Não tenho dúvidas. — Ela aperta mais seu corpo contra o meu.

Passei quase uma década pensando que eu teria que provar minha inocência para qualquer
estranho que me conhecesse e, por ventura, tivesse conhecimentos dos detalhes sórdidos de meu
passado, como se eu realmente tivesse puxado o gatilho naquela noite. Passei dez anos passando sal
em minhas feridas e negando o lugar de vítima, pois ninguém além de minha família e aqueles que me
rodeiam aliviaram os julgamentos, mas ela... Eu não tive qualquer expectativa quanto ao seu
julgamento, e em um futuro próximo estava disposto a fazer o possível para convencê-la a acreditar
em mim.

Mas, sem pedir, ela o fez.


23 | ATÉ À MEIA NOITE

Camille

— O que está fazendo? — Donatella entra no quarto com um olhar julgador para a montanha
de roupas que havia formado em cima da minha cama.

— Escolhendo uma roupa.

— E ainda não achou? — ela debocha.

Retribuo com um sorriso enviesado, respondendo:

— Ainda não. — Tiro a última peça do guarda-roupa, suspirando e me afundando entre o


emaranhado de tecidos. — Eu sou uma piada! Uma estilista sem uma peça suficientemente aceitável
para conhecer oficialmente a família do namorado!

— Quanto drama! — Donatella exclama, me puxando pela mão. — Por que não escolhe
aquele vestido preto de transparências que você guarda no quartinho dos fundos? Me parece muito
bonito.

— Aquele vestido não! É especial. Estou esperando para lançá-lo em algum momento
especial no futuro, quem sabe.

— E esse não é um momento especial? — Donatella me convida a refletir.

Olho para o lado, pensando. E se depois eu não gostar dele tanto como eu gosto agora?
Talvez minha irmãzinha esteja certa.

— Vou usá-lo. — Salto da cama, decidida.

— Quem te viu, quem te vê. — Donatella senta na cama, me olhando de cima a baixo.

— Ih, o que foi, pirralha? — indago, curiosa.

— Sei lá... Desde que conheceu esse tal Gabriel você parece mais altiva, mais esperta para
certas coisas que antes não ligava... Até parece que você está ocupando finalmente seu lugar de irmã
mais velha.

Pisco os olhos, não acreditando na audácia de minha irmã mais nova.


— Eu vou deixar essa passar. Na próxima eu não coloco mais créditos em seu celular para
falar com o tal Carlos.

— Não está mais aqui quem falou. — Ela pega o celular, se deitando e se cobrindo com o
cobertor.

Sorrio e vou em direção ao banheiro, para iniciar minha produção.

Hoje é sábado, dia que fui convocada a aparecer a um jantar em família na residência dos
Átila Cordeiro, a convite da matriarca, dona Tereza Átila.

Ela mesma me ligou pela manhã, mesmo eu não me lembrando de ter dado meu número, ou
sem qualquer ideia de como ela o conseguira. E como não sou boba nem nada, me apressei para
chegar em casa depois de uma manhã no Ateliê para cuidar dos detalhes de minha aparência. Dona
Tereza parece uma mulher criteriosa e uma mãe controladora, quesitos suficientes para saber que ela
avaliará até o suspiro de minha alma nesta noite, e eu de nenhuma forma quero causar uma má
impressão à mãe de Gabriel.

Depois de pentear meus cabelos para trás, vou até o quarto dos fundos, pego o vestido preto,
de transparências e mangas levemente bufantes, e retorno ao quarto para finalizar a maquiagem. Dou
algumas batidinhas com as pontas dos dedos em meus lábios e volto a pedir a opinião de Donatella.

— Deslumbrante! — ela diz, com os olhos brilhantes.

Abro a porta da sala, e apesar do frio, meu corpo esquenta quando o vejo à minha espera, em
frente a um Mustang de cor branca. Ele usa uma camisa polo preta e jeans escuro, e apesar da
neutralidade nas roupas, Gabriel nunca parece ficar abaixo de estonteantemente lindo.

Atravesso o pequeno jardim, tomando cuidado para não deslizar no chão úmido, e me coloco
completamente para fora de minha casa.

— Eu o convidaria para entrar, mas meu pai e tia Lúcia dormem cedo... — começo,
apontando o dedo indicador para trás.

— Adorarei cumprimentá-los em outra oportunidade — ele diz com um meio-sorriso nos


lábios.
Depois ele sacode a cabeça e dá um passo para trás, como se fizesse isso para me olhar
melhor.

— Eu confesso que você me tira o fôlego, senhorita! Está magnificamente linda dentro desse
vestido!

Ele umedece os lábios ligeiramente com a língua, e eu enrubesço.

— Pronta? — Ele me oferece a mão.

Meneio a cabeça em positivo, segurando sua mão.

Caminhamos pelo asfalto molhado, com meu coração tremulando enquanto sinto o calor de
sua mão. Ele para em frente à porta do carona, pronto para abri-la, mas parece desistir. Gabriel
conduz meu corpo com suas mãos quentes, fazendo minhas costas encontrarem a superfície gélida do
carro atrás e em seguida cobre meu corpo com o seu, deslizando lentamente sua mão de meu braço
para minha coxa. Ele levanta minha perna esquerda, de forma que ele se encaixasse perfeitamente ao
meu corpo, e um suspiro pesado escapa entre meus lábios.

Mesmo que eu esteja sob o efeito do perfume gostoso que vem desse homem, ainda me
lembro da presença dos homens que o acompanham dentro dos carros logo atrás. Abro minha boca
para protestar, mas logo Gabriel a encobre com um beijo lento e luxurioso.

— Eles estão olhando. — Ofego entre seus lábios.

— Eu não posso esperar pelo final da noite. Eu acho que me entenderão perfeitamente. — Ele
desce as mãos para minha cintura, me fazendo recobrar a lembrança, ainda fresca em minha memória,
de seus dedos habilidosos percorrerem meu corpo naquela noite. Ele enche minha boca novamente, e
eu, desta vez, passo meus braços pelos ombros dele, trazendo seu corpo para mais perto do meu, com
sua língua adentrando lentamente minha boca. É incrível como ele tem a capacidade de me fazer
sentir a sensação de que meus pés estão flutuando, enquanto meu coração parece estremecer dentro
do peito.

Ele finaliza o beijo com um selinho demorado, estabilizando meu corpo e me girando para o
outro lado. Ele abre a porta do carona para mim. Tento respirar compassadamente e entro em seu
carro, e tão logo ele faz o mesmo.

— Vamos logo, antes que ela fique nervosa — Gabriel pensa alto, dando partida.

— Ela quem?

— Dona Tereza Átila, minha mãe.


Gabriel manobra o volante e depois sinto sua mão cair para a minha, que descansava em cima
de minha perna.

Inspiro fundo e pergunto, um pouco preocupada:

— Você acha que ela vai gostar de mim? — Dona Tereza Átila me pareceu uma mulher
calorosa, e confesso que fico um pouco tensa lembrando de seu jeito rígido.

— Não se preocupe, Gael e Giovanna ficaram encantados com você. — Ele desvia um
segundo da sua atenção do trânsito para me jogar uma piscadela.

— Isso significa?

Ele enruga o cenho e confessa:

— Você já cativou metade de minha família. Na verdade, mais do que a metade, contando
comigo, que sou a pessoa que mais importa, em minha humilde opinião. — Ele aperta os lábios. —
Minha mãe é um pouco complicada com as relações interpessoais fora do trabalho. Mas não se
preocupe com isso, isso é com todos. Até mesmo conosco, que somos filhos.

Ele me olha por um breve instante e murmura:

— Não pense nisso, você é maravilhosa.

Noto que Gabriel tenta me tranquilizar, então meneio a cabeça, agradecendo, deixando sua
atenção voltar totalmente para o trânsito. Embora suas palavras me passem segurança, não me agrada
cogitar a possibilidade da senhora não me receber bem.

Depois de percorrermos pelas ruas arborizadas do Ecoville, uma das localizações mais
privilegiadas de Curitiba, adentramos o jardim de uma mansão iluminada e moderna. Tudo parece
estar perfeitamente alinhado, assim como a fileira de carros que nos escoltam e estacionam um atrás
do outro em perfeita simetria.

Gabriel desce e abre a porta para mim, como um verdadeiro cavalheiro, e eu desço, assim
como os seguranças dos carros atrás. Sem querer, avisto Estêvão saindo da Ranger Rover preta logo
atrás e aceno educadamente para ele, que retribui com um tímido menear de cabeça. De repente,
observo a mulher em trajes pretos surgir atrás de Estêvão e estranhamente sinto meu coração gelar.
Eu a conheço, de algum lugar. Ela usa o mesmo fone de ouvido de Estêvão e tem uma postura tão
formal quanto ele. Claro que a conheço. É a mulher da conveniência. Ainda me recordo de seu nome.
Maria Júlia.

Seus olhos esverdeados encontram os meus, permanecendo assim por um segundo.

A mão de Gabriel me resgata do mísero momento de intimidade com aquela mulher e


murmuro enquanto subimos pela pequena escada em nossa frente:

— Você a contratou? — Me assusto com meu tom de voz em espanto.

Ele olha ligeiramente para trás e faz que sim.

— Ela precisava de um emprego, então concedi uma vaga a ela — ele diz com tranquilidade.
— Por que a pergunta? Me parece... — Ele me olha nos olhos e se detém em dizer.

— Nada. Apenas curiosidade. — Forço um sorriso para ele, tentando consertar o tom de
surpresa, que nem mesmo eu sei de onde vem exatamente.

Seus lábios pousam em meu ombro, me arrepiando a nuca, e em um ímpeto as portas enormes
de carvalho em nossa frente são abertas, nos revelando o interior iluminado, e por trás delas a linda
senhora em um vestido branco bem recortado, que caminha em nossa direção.

— Até que enfim!

Ela abre os braços e abraça Gabriel calorosamente.

— Como você está, meu filho? — Ela deixa dois beijos em cada lado de suas bochechas.

— Felizmente, bem. Como a senhora está, minha mãe?

— Bem também, querido. Bem! — diz ela, deslizando o olhar para mim, mais
especificamente para minhas vestes e pés. Ainda bem que fiz as unhas ontem e isso, pateticamente,
me deixa um pouco mais confiante.

— E como você está, querida? — Percebo que o entusiasmo de sua voz vai perdendo o tom.

— Bem.

— Qual é mesmo o seu nome?

— Camille, senhora.

Ela olha para Gabriel e comenta:


— Nome bonitinho.

— Eu o acho lindo. — Gabriel parece pescar algo no tom de voz de sua mãe.

— E você? — Ela olha por cima de meus ombros e sinto que já não é mais comigo. Sigo seu
olhar e vejo Maria Júlia ao lado de Estêvão logo atrás. — Eu a conheço...

— Não, senhora. Não nos conhecemos — responde Maria Júlia firmemente, com os ombros
perfeitamente em linha reta e postura impecável.

— Não, não é uma pergunta. Eu a conheço de algum lugar.

— Desculpe-me, senhora. Mas não há como.

— Tenho boa memória, querida. Sei que a conheço.

— Ela é uma colega de escola, mãe — Gabriel intervém. — E agora faz parte de minha
equipe de segurança.

— Colega de escola? — dona Tereza pensa alto. — Filha de quem?

Maria Júlia responde:

— Dr. José Ramos.

Dona Tereza abre a boca quase imperceptivelmente e depois a fecha como se tivesse
cometido uma indelicadeza. E diz com todo o cuidado:

— Meus sentimentos, querida.

— Tudo bem. Já faz muito tempo, senhora.

A mãe de Gabriel pisca algumas vezes e comenta:

— Agora sim me lembro de onde a conheço. Esses olhos. Você era uma garotinha quando meu
marido e eu fomos convidados a visitar sua casa. Meu marido e seu pai já foram colegas de
profissão, antes de Fernando rumar para a política.

— Não me lembro da senhora, mas fico lisonjeada de sua memória me guardar por tanto
tempo. Sinal que tem uma ótima saúde — Maria Júlia a elogia e, pela primeira vez, assisto dona
Tereza sorrir abertamente de forma sincera.

— Agora me conte? Como assim segurança? — Ela olha para Gabriel e depois para Maria
Júlia. — Não é um trabalho árduo demais para uma garota? Creio que não precisa disso, não recebe
a pensão de seu pai? — ela pergunta, confusa.
Maria Júlia explica:

— Um sonho de infância.

— Ah, claro! — dona Tereza exclama, respeitosamente. — Mas ainda assim vejo delicadeza
com toda essa firmeza. — Ela a olha de cima a baixo e murmura em tom de aprovação: — Gostei de
você, menina.

Dona Tereza convida todos a entrar, e eu sigo ao lado de Gabriel, que beija as costas de
minha mão com carinho. Neste momento, aproveito para questioná-lo, com a incoerência pairando
em minha mente:

— Você disse que ela precisava desse emprego.

Ele sussurra de volta:

— E precisava. Não por razões econômicas, mas por necessidades diferentes. — Seu tom
calmo recebe uma pontada de provocação, me olhando nos olhos enquanto caminhamos sob a luz de
um enorme lustre pendido no teto da sala. — Não me diga que está com ciúmes? — Ele franze os
lábios, e eu pisco duas vezes.

Pigarreio, desviando o olhar.

— Claro que não. Que bobeira! Por que estaria com ciúmes?

Percebo que se diverte ao meu lado, sorrindo silenciosamente.

— Por que está sorrindo? — murmuro ainda mais baixo, para a mãe dele não ouvir.

Ele me rouba um selinho rápido, dizendo:

— Nunca imaginei você assim, com ciúmes.

Preparo-me para protestar quando Gael aparece em nossa frente, ao lado de um homem mais
velho e calvo. Eu provavelmente já o vi em algum lugar, o senador Fernando Cordeiro.

— Santo Deus, não pensei que viveria o bastante para ver o que está diante de meus olhos!
Meu primogênito nos apresentando a uma namorada. Oh, céus! Que momento glorioso! — O senhor
se aproxima, me olhando mais de perto e elogia: — Uma namorada muito bonita, por sinal.

— Estou ansioso para o senhor ver como ela é educada, meu pai — Gael retruca.

— Eu tenho certeza de que ela é. Gabriel não faz o tipo que corteja mulheres de língua solta
como você, meu filho.
— Obrigado. Mas gosto é gosto. Adoro as insolentes.

— Você quis dizer linguarudas? — comenta dona Tereza, revirando os olhos nas órbitas.

— Qual é o seu nome, senhorita? — Seu Fernando se direciona a mim.

— Camille Souza, senhor.

— Belo nome. Camille me soa doce e delicado.

— Obrigada, senhor.

Dona Tereza parece impaciente quando nos convida:

— Vamos entrar. O jantar já está na mesa.

Gabriel desliza a mão para o meio de minhas costas, me conduzindo para dentro dos
aposentos da casa de sua família.

— Pelo menos, tem bom gosto para vestidos. — Ouço dona Tereza dizer baixinho em nosso
encalço.

Eu não sei exatamente o que em mim não agrada a mãe de Gabriel, mas quero mudar isso de
qualquer forma. No entanto, como irei mudar isso sem saber exatamente o motivo?

Sentamos na mesa de uma linda sala de jantar. A superfície da mesa retangular reluz contra a
luz, assim como os pratos, flores, talheres e taças postos à mesa.

Sento-me ao lado de Gabriel, de frente para Gael. Dona Tereza ocupa o lugar ao lado do
marido, que senta na cabeceira da mesa.

— Quantos anos você tem, Camille? — seu Fernando pergunta.

— Vinte e um, senhor.

— Muito nova — dona Tereza pensa alto, crispando os lábios.

— Faz faculdade?

— Não, senhor.

— Por que não?

Penso em explicar que trabalho no Ateliê da Ortega, mas analiso que não seja oportuno.

Gabriel esgueira sua mão debaixo da mesa, segurando a minha e respondendo à pergunta do
pai:
— Camille trabalha como estilista em um ateliê, meu pai.

— Que interessante. É uma profissão digníssima, exige talento! Posso saber em qual ateliê
você trabalha?

Inesperadamente, dona Tereza responde o marido:

— O ateliê de sua cunhada, Fernando. O ateliê dos Ortega.

As sobrancelhas do pai de Gabriel se erguem em surpresa e tão logo ele volta a se recostar
na cadeira, exclamando:

— Olha só!

— Como sabe disso, mãe? — Gabriel pergunta, apoiando os antebraços na mesa.

— Giovanna.

— Claro. Giovanna — Gabriel repete, como se isso fosse óbvio.

— Sobre o trabalho de Camille, Giovanna me adiantou muitas coisas antes de retornar à


Itália...

— Muitas coisas? — Gabriel repete novamente, curioso. E sua mãe confessa:

— O resto eu soube com os meus próprios métodos.

— Por Deus, mãe! — Gael interfere. — Não vá me dizer que mandou espionarem a vida da
moça!

Dona Tereza ignora o tom de reprovação do filho e prossegue:

— Sei também que ela vive uma vida mediana, tem uma família tranquila, embora o pai tenha
se casado mais de uma vez. É uma garota pouco sociável, não frequenta festas, não fuma, não bebe,
não é escandalosa. — Como ela sabe tanto? — Ao menos isso me parece bom para você, Fernando.
Uma nora que combine com a reputação ilibada que você deve manter.

Pela primeira vez, estranhamente acho que ganhei pontos positivos com dona Tereza.

— Mas é pouco confiante, o que não combina com o conceito de nossa família — ela
completa com um sorriso amargo.

— Qual é o conceito de nossa família? — Gabriel parece impaciente.

Seu Fernando toma as rédeas da conversa, mudando de assunto.


— Siga o exemplo de seu irmão, Gael. Ache uma mulher ajuizada. Na idade de vocês eu já
estava casado.

— Não é para tanto, Fernando — dona Tereza replica, e Gael assente.

— Vou tentar, meu pai. Vou tentar. — As palavras de Gael me soam pouco sinceras.

Respiro fundo, olhando para dona Tereza e esperando mais uma pergunta que talvez faça,
mas, felizmente, ela parece me poupar e nos convida a comermos. Meus ombros relaxam, mas nem
tanto. Eu sei que cada gesto meu na mesa está sendo estudado pelos olhares atentos da mãe de
Gabriel, e uma falha qualquer de etiqueta, será listada por ela em algum espaço de sua boa memória.

Depois do jantar, me vejo em uma conversa de negócios em família. Apesar de ser um


político, seu Fernando parece estar bem inteirado dos assuntos da empresa que a esposa gere. Mas,
incontestavelmente, é dona Tereza quem mais fala entre eles ali, em ótimo tom. A liderança nata
enraizada em sua postura, voz e olhar. De certa forma, acho que entendo um pouco de sua
insatisfação comigo. Somos muito diferentes, isso é inegável. E penso que talvez eu não queira criar
um personagem para agradá-la.

Em dado momento, Gabriel e eu nos entreolhamos, e sinto uma energia lasciva esquentar meu
corpo depois de longos minutos ouvindo sua mãe falar sobre o mercado exterior. Seus olhos descem
para a transparência de meu vestido, resvalando para os meus seios. Ele umedece os lábios com a
língua e eu enrubesço em imaginar o que ele está pensando.

— Com licença, levarei Camille para conhecer o jardim. — Gabriel se levanta da mesa,
erguendo a mão para mim e me pegando de surpresa.

— Com licença.

Levanto-me rapidamente e acompanho Gabriel para fora da sala de jantar, caminhando pelos
cômodos da casa que ele bem conhece.

Ele me puxa para dentro de um cômodo, o qual não se parece nada com um jardim. Ele liga as
luzes e avisto os sofás beges e as paredes cor de creme. Observo também o que parece ser uma
lareira automática e uma estante de livros extensa, como a que Gabriel tem em seu escritório.

— Não me parece um jardim.

— Tem razão. Não é um jardim.

— Então...
— Mas temos vista do jardim daqui — ele diz e me oferece sua mão novamente.

Aceito-a, caminhando pela sala de estar, parando em frente à vidraça que dá visão a uma
grande extensão de grama e blocos de arbustos e muitas violetas em sincronia, iluminadas por um
refletor.

— Muito bonito! — elogio, encantada com a delicadeza da paisagem minimamente calculada.

Ouço seu respiro longo e profundo, e mesmo estando de costas para ele, sei que está prestes a
dizer algo mais sério.

— Eu quero pedir perdão por minha mãe e pela intromissão dela nos detalhes de sua vida —
diz ele atrás de mim, com todo o cuidado.

— Tudo bem. Só queria saber como ela ficou sabendo de tanto a ponto de descrever meus
hábitos tão bem...

O silêncio de Gabriel me leva a completar:

— Pensando bem, eu posso imaginar. Aliás, por que me trouxe aqui? — pergunto, olhando-o
por cima do ombro.

Ele está em uma pose relaxada, com as mãos dentro dos bolsos. Ele se aproxima e cola o seu
corpo ao meu, segurando meu queixo com o dedo indicador e me tomando para um selinho molhado e
rápido.

— Queria um momento com você — ele fala baixinho contra minha boca, erguendo uma
sobrancelha. — A sós.

— Para quê? — indago.

Ele morde o canto do lábio inferior, com os olhos em minha boca.

— Para te fazer relaxar.

Sinto o calor inebriante do corpo de Gabriel incendiar o meu por trás, arrepiando-me por
completo. Volto a olhar fixamente para frente, em uma tentativa de controlar os meus espasmos
devido à sua aproximação, mas é inevitável quando sinto todas as suas curvas se encaixando em
mim.

As mãos dele massageiam as laterais do meu corpo, deslizando lentamente para minha
barriga, até agarrar firmemente meus quadris, roçando meu bumbum contra a rigidez dentro de sua
calça. Fisgo o lábio com força, tentando não transparecer a respiração entrecortada e vergonhosa
toda vez que ele me toca dessa forma.

Sua mão desliza mais uma vez, só que dessa vez Gabriel ultrapassa os limites de meu vestido,
adentrando minha calcinha com seus dedos longínquos. Ele pressiona meu ponto sensível com o
polegar, e sussurra contra minha orelha:

— Ainda me lembro do gosto que é estar entre suas pernas, Camille.

Eu quero isso ardentemente.

Em um rompante, ele abandona minha intimidade e gira meu corpo para ele em um movimento
delicado, e toma meus lábios com ardor, segurando firme minha nuca.

Seu beijo esgueira para o meu pescoço, ombro, barriga, ao passo que ele fica de cócoras para
mim, sem desviar nem por um segundo sequer a atenção de meus olhos. Aliás, os seus estão ainda
mais profundamente azuis.

Gabriel sobe a barra de meu vestido, expondo minha calcinha de renda preta.

— Gabriel... — Ofego, com a adrenalina correndo em minhas veias. — A porta...

Ele parece não me ouvir, concentrado demais em abaixar as laterais da renda que cobre
minha feminilidade, olhando-me em contemplação, com os olhos desejosos. E não demora muito para
que ele me invada com sua língua, me injetando uma onda de prazer misturado ao perigo de sermos
pegos. Por um instante, gemo sem pudor, sentindo sua língua me massagear em um ritmo lentamente
obsceno.

Ele intensifica seus movimentos em um ritmo alucinante, me arrancando um gemido sôfrego.


Fisgo seu ombro com as pontas dos dedos e tenho a sensação que todos os meus músculos se
contraem, prestes a desabar. Mas estranhamente eu quero mais, mais rápido, o desejando de forma
indecentemente compulsiva. E quando estou prestes a ir ao meu limite, Gabriel estanca e olha para
trás.

Tudo o que ouço é minha respiração vacilante enquanto ele se levanta rapidamente e desce
meu vestido.

— Tem alguém vindo — ele me avisa, se colocando em minha frente.

Ah, minha nossa! Queimo de vergonha.

Com as mãos atrapalhadas, ajeito minha calcinha debaixo do vestido, tentando me recompor
antes que a porta seja escancarada. E é exatamente isso o que acontece.
Uma senhora atarracada de roupas azul-marinho adentra a sala com um controle remoto nas
mãos, se assustando brevemente com nossa presença.

— Oh, seu Gabrielzinho! Eu não sabia que o senhor estava aqui. E muito menos que estava
acompanhado. — Ela alterna o olhar de Gabriel para mim, um tanto desconfiada, enquanto cruzo
minhas pernas, ainda sentindo os movimentos libidinosos da língua de Gabriel reverberarem entre
minhas pernas.

— Boa noite, Dalva. — Gabriel abre um sorriso comedido e limpa a garganta antes de
questioná-la: — O que faz aqui uma hora dessas?

Ela olha para mim mais uma vez, curiosa. No entanto, responde educadamente a Gabriel:

— É que não estava me lembrando se eu havia desligado o aquecedor desta sala antes de me
recolher. — Ela olha para o aparelho ao lado da estante e conclui: — É, parece que eu já havia
desligado mesmo. — Ela abre um sorriso para Gabriel e dispara: — Quem é a moça?

— Minha namorada, Dalva. Senhorita Camille.

Dalva acena para mim e eu retribuo no mesmo instante. Logo ela se retira, alegando que está
com frio, talvez temendo que tivesse atrapalhando algo.

— Vamos à minha casa? — Gabriel propõe quando a porta bate em nossa frente. — Prometo
que não demoraremos. — Ele me olha com um olhar de cachorro sem dono, e sou incapaz de negar
um pedido assim dele.

— Tenho que chegar antes da meia-noite.

— À meia-noite estará em sua casa. Eu prometo — me garante.

Saímos da sala reservada e vamos para a sala principal. Gabriel retorna para dentro de casa
em busca dos pais, para que possamos nos despedir formalmente. O que ele não havia reparado antes
de retornar à sala de jantar é que seus pais estavam ali perto. Eu até mesmo poderia ouvir as vozes
deles conversando.

Olho para a porta entreaberta no canto esquerdo da sala, vendo que se trata de um escritório,
e apuro os ouvidos, para ouvir melhor, quando escuto meu nome durante a conversa calorosa.

— Meu sonho era que Gabriel pudesse sair normalmente, assumir os negócios da Átila. Eu
descansaria em paz se isso acontecesse. Mas... mas... mas... eles são um fracasso! — dona Tereza
desabafa, desgostosa. — Não só Gabriel, mas também o destrambelhado do Gael. Meus dois filhos
são um fracasso! Um mulherengo e o outro, além de estar fadado a uma vida reclusa, agora me vem
com uma menininha que mal parece comandar o próprio nariz — ela reclama para o marido, que
replica:

— Não se manda nessas coisas, Tereza. Você queria que Gabriel se interessasse por quem?
Por uma pessoa enquadrada em seus pré-requisitos?

— Isso não é difícil de se encontrar, Fernando! Até a colega de escola que está trabalhando
como segurança me parece uma pretendente melhor do que essa menina! — As palavras me espetam
bruscamente, amargando minha boca.

— Colega de escola?

— Sim. Filha daquele juiz que faleceu há alguns anos. Ele era até seu colega, visitávamos a
casa dele quando os meninos eram pequenos. Vocês trabalhavam juntos em uma investigação de um
esquema de corrupção.

— Ramos?

— Sim. Ele mesmo.

— Ah, o Ramos! Foi um grande parceiro de magistratura, por sinal. O povo perdeu um
justiceiro implacável. Uma pena ter ido tão jovem e de uma forma melancólica. E ainda mais deixar
dois filhos.

— Uma filha. O outro morreu naquele massacre. — Dona Tereza parece lembrá-lo mais uma
vez.

— Camille! — A voz de Gabriel atrás de mim me espanta, me levando a virar o rosto


bruscamente. Tenho certeza que em meus olhos estão estampados o sentimento de frustação e tristeza.
E ele parece compreender muito bem o que está se passando comigo, denunciando que ele está ali há
bem mais tempo do que o previsto.

— Não precisamos nos despedir.

— Eu quero ir para casa. — Sou enfática ao dizer. Para ser sincera, não estou com clima para
mais nada.

Ele pousa as mãos na cintura, visivelmente desapontado. Não sei se é comigo ou com sua
mãe, mas também não quero pensar muito. Querendo ou não, Gabriel não tem culpa disso. No
entanto, é algo complicado. Ele, de alguma forma, mesmo aparentando que pode cuidar de si próprio
em outra realidade menos conturbada, parece que ainda é muito dependente da família.
— Tudo bem. — Ele assente.

Nós caminhamos para fora da casa, adentrando seu carro estacionado perto da pequena
escadaria, avistando a mulher de olhos claros ao lado de Estêvão. Gabriel segura minha mão
enquanto caminhamos em direção ao seu carro, e logo os seguranças já estão a postos para segui-lo
aonde vá. Ele dá partida em silêncio. No entanto, minutos depois o quebra:

— Há algo de errado?

— Não. Não se preocupe. Não há nada de errado. — Me detenho em dizer, olhando para a
avenida à frente.

Ele crispa os lábios e comenta:

— Parece pensativa.

— Sua mãe não é a favor desse relacionamento mesmo — disparo, como um desabafo.

Ele entreabre a boca e fecha pelo menos umas duas vezes, mas diz:

— Não absorva as palavras dela, meu amor.

— Ela é sua mãe, Gabriel.

De esguelha, vejo suas mãos apertarem o volante.

— Eu sou um homem feito, Camille. Eu decido com quem me relaciono ou não. E, no


momento, eu estou com você. Minha mãe gostando ou não. — Ele larga uma das mãos do volante e
segura a minha. — Ao menos que você desista, eu estou com você.

Viro meu rosto para observá-lo e aperto sua mão em agradecimento. No fundo, estou com
medo de me entregar demais a uma relação infrutífera e sofrer com isso mais para frente. Mas talvez
eu esteja sendo ansiosa demais a algo que possa acontecer ou não.

Percorremos o restante do caminho em silêncio, mas com a certeza de que tudo está bem.
Gabriel parece obstinado a afastar qualquer atmosfera ruim que nos afete e isso me acalma e ganha
ainda mais meu coração.
24 | MESA DO ESCRITÓRIO

Camille

Enquanto caminho a passos largos pelo corredor da Ortega, me sinto animada para desfrutar
da tarde livre que terei hoje. Dona Consuelo decidiu nos dar folga depois de uma longa e intensa
semana de trabalho, e mal posso esperar para gastar meu tempo livre com Gabriel, que cancelou
todos os compromissos virtuais para passar esse tempo comigo. Eu disse que não precisava, mas ele
insistiu. Disse que não era nada de tão importante e poderia adiar o que tinha que fazer hoje.

Sigo pelo corredor à esquerda e a voz me surpreende:

— Camille?

Viro-me para olhar quem é a dona da voz, e vejo que se trata nada menos do que a chefe dos
chefes desta empresa.

— Seu nome é Camille, não é mesmo?

Engulo em seco e respondo no mesmo instante:

— Sim, senhora. A senhora está precisando de alguma coisa?

— Não, não. Quer dizer... — Ela enruga o cenho, conferindo um tom de curiosidade ao seu
rosto. — Orlando conversou com você?

Pisco os olhos duas vezes e gaguejo:

— Con-conversou, senhora.

— Já tem uma resposta, então?

Sentindo-me encurralada, desconverso:

— Ainda não, senhora. — Coço o topo da cabeça, falando: — É que eu pensei que não fosse
sério.

Agora é a vez dela piscar os grandes olhos expressivos e perguntar:

— Como assim não é "sério''? É seríssimo! Eu quero levá-la a Milão, pensei que Orlando
tivesse sido claro.
— Ele foi.

— Então creio que você está de acordo, certo?

Ai, minha Nossa Senhora! Como eu vou dizer isso para a patroa dos patrões?!

— É que eu estou pensando.

— Pensando? — ela repete, como se essa frase fosse inconcebível para ela. E, de certa
forma, é. Quem estaria pensando com uma proposta dessas?

Ela abre mais o peitoral e diz:

— Ok. Pense bem e diga qual decisão tomou até o fim dessa semana para Orlando. Eu estarei
viajando amanhã à Itália, mas meu filho estará encarregado de acertar o contrato com você, caso
aceite.

— Muito obrigada, senhora.

— Por nada, querida. Te vejo em Milão — ela diz por fim, confiante. Ela segue seu caminho
pelo corredor do departamento de finanças e desaparece na próxima curva.

Fico ali, sozinha, aturdida, com os pensamentos conflitantes. Nunca pensei que tivesse
dúvidas quanto a seguir meus sonhos, e ainda não tenho. Mas uma mudança abrupta significa muita
coisa, inclusive, significa ficar longe dele. Ai, minha Nossa Senhora! Me ajude a resolver isso!

Aproveito para dar uma passada rápida em casa. Depois Estêvão aparece de surpresa às 14
horas em frente à minha porta. Tenho a impressão de que minha lambreta ficará mal-acostumada desta
forma.

Chegando à mansão 503, caminho até o escritório dele, avistando uma cena a qual jamais
esperaria assistir.

As mãos femininas de Maria Júlia estão massageando os ombros de Gabriel enquanto ele vê
algo no celular, sentado atrás de sua mesa de mogno.

Bato com os nós dos dedos na porta e desperto os olhares dos dois para mim.
— Com licença — digo.

Um sorriso se abre no rosto dele, e Maria Júlia se afasta lentamente, enquanto Gabriel
agradece.

— Obrigado, Júlia. Sua massagem é realmente muito boa — ele diz educadamente.

— Foi o que eu disse. — Ela sorri rapidamente para o homem de olhos azuis e diz por fim:
— Com licença. Vou deixá-los a sós.

Gabriel aquiesce e Maria Júlia sai do escritório passando por mim, me desejando boa tarde.

— Nós estávamos conversando. De alguma forma, a conversa rumou para esse assunto, e
quando vi ela já estava com as mãos em meus ombros... — ele começa a se explicar.

— Tudo bem.

Aquiesço, mesmo estranhamente começando a sentir uma pontada de ciúmes. Maria Júlia é
uma mulher muito bonita, forte e aparentemente madura. Sua beleza é até mesmo equiparada a de
Gabriel, levando-me a achar que eles combinam juntos, ao ver aquela cena. Mas não dou o braço a
torcer e finjo desinteresse, quase como se eu acionasse um gatilho de defesa. No fundo, sei que é um
ciúme tolo, infundado.

Ele inspira fundo, ainda se explicando:

— Na situação, pensei que soaria indelicado negar...

— Eu disse que está tudo bem. Eu confio em você — afirmo, não mentindo. Gabriel nunca me
deu motivos para que eu não confiasse nele. Ele sempre agiu com probidade e franqueza comigo.

Ele se levanta, vindo em minha direção, exalando o cheiro delicioso de seu perfume
almiscarado. Antes que ele me beije, agarro seu pescoço e o faço antes que o faça, beijando-o
demoradamente.

Separamos nossas bocas quando o ar nos falta, e ele brinca com uma sobrancelha arqueada e
a boca entreaberta:

— Eu não sei o que fizeram com minha namorada, mas acho que estou gostando dessa nova
versão. — Sorvo seu hálito inebriante enquanto ele cai um pouco a cabeça para trás, na intenção de
olhar minha saia jeans e fixando o olhar em minhas pernas desnudas. — Essa saia lhe cai bem!

— Ganhei de Manuela em meu aniversário. — E algumas calcinhas devassas, que nunca


pensei que um dia fosse usá-las. Mas aqui estou eu, vestindo uma vermelha de renda.
— Que pena que não irá usá-la por muito tempo — ele murmura, fisgando novamente meus
lábios. Sua boca está gelada e tem um saboroso e viciante gosto de menta. Sinto que estou quase
dependente disso. Ah, céus! A viagem. E pensar que um dia posso demorar a beijá-lo assim. Por que
tudo é tão difícil?

— Você gostaria de conhecer meu quarto hoje? — Ele ofega, separando nossas bocas,
dizendo seriamente.

— Mas eu já conheço — replico com um leve sorriso.

— Não do jeito que eu adoraria.

— De qual jeito?

— Do jeito que eu tenho imaginado todas as noites e todas as manhãs quando acordo
pensando em você... — Ele morde o canto do lábio e retifica o que disse. — Se bem que para
fazermos o que tenho em mente, só precisaríamos daquela mesa ali atrás.

Olho por cima do ombro, vislumbrando a mesa de mogno por um breve instante. Entreabro os
lábios, tentando adivinhar o que se passa em sua mente, porém sacudo a cabeça, sentindo meu corpo
aquecer e percebendo o volume dentro de sua calça de moletom.

— Pensando bem, estou com pressa e não posso esperar um segundo sequer — ele diz essas
palavras sem tirar os olhos de minha boca e a ataca como se isso fosse uma necessidade sua.

Enfio as mãos entre seus cabelos sedosos, enquanto nos movemos em direção à mesa.

Gabriel desce seus beijos para o meu pescoço, e antes que eu trombe na mesa atrás, ele me
ergue, me sentando na superfície polida, enquanto cobre um dos meus seios com uma de suas mãos,
em um gesto desesperado. A barra de minha saia levanta automaticamente, enquanto a língua dele
adentra minha boca lentamente, fazendo com que as carnes entre minhas pernas fiquem rijas, a ponto
de latejar quando ele decide me sentar na mesa e se colocar em meu meio.

— Eu quero que abra mais suas pernas — ordena Gabriel, embora a voz não esteja tão
autoritária, mas sim rouca de desejo.

Ele se desfaz da blusa em poucos segundos, revelando o peitoral de grandes e belos


contornos.

Ele dá um tapinha leve em minha coxa, me levando a abrir minhas pernas como ele havia
dito. Ele tira para fora sua magnitude, vestindo-a com um pedaço de látex. Engulo em seco, com o
olhar fixado em seu sexo, me levando a recordar o quão rijo e assustadoramente grande ele é, embora
o meio entre minhas pernas esteja pulsando por ele.

Gabriel não faz muita cerimônia, apenas afasta minha calcinha com os dedos e me invade sem
pudor, beijando minha boca, abafando o gemido alto ao senti-lo todo dentro de mim. Minhas paredes
ainda parecem apertadas demais para comportá-lo, sentindo uma onda de dor e prazer ao mesmo
tempo.

— Ainda é tão apertada! — ele geme, me estocando novamente, mais fundo.

Ele beija meus lábios e começa a me penetrar com movimentos perfeitamente ritmados.

Gradualmente ele aumenta a velocidade, me levando a cair com a cabeça para trás, apoiando
as mãos na superfície lisa da mesa.

Gabriel entra e sai de mim em um ritmo alucinante e delicioso, agarrando minhas coxas com
uma rispidez excitante, me levando a saborear o prenúncio do êxtase. Ele me estoca mais forte e se
derrama em mim, soltando um gemido rouco.

Gabriel parece não se satisfazer com o ápice. Com seu pênis ainda visivelmente rijo, vira
meu corpo abruptamente de costas para ele, de forma com que ele tenha a visão de meu bumbum.
Coro violentamente. Ele desce minha calcinha rapidamente e indago, arredia:

— O que pretende fazer?

— Fazer amor com você de quatro — ele responde com a voz rouca.

— E isso é seguro? — Engulo o suspiro arredio.

— Meu amor, o quanto você sabe sobre sexo?

Gaguejo, dizendo:

— Sei de tu-tudo que fi-fizemos naquela noite em sua outra casa... E também algumas coisas
que li em sites, revistas... E também sei que fazemos sexo pela frente... — Fisgo o lábio inferior.

Ele solta um sorriso abafado.

— Não se preocupe, não vou te invadir por trás, amor. Se é isso o que está se passando por
sua cabeça... — Seu tom de voz fica mais denso, ao passo que sinto suas mãos acariciarem meu
traseiro. — Eu estou louco, Camille. Quero ainda mais você. Com segurança e desejo. — Sinto sua
boca beijar o meio de minhas costas, enquanto seus lábios se movem contra os meus cabelos. — Eu
quero foder você, meu amor. Bem gostoso. — Ele me invade na posição animal, e eu aperto as mãos
nas bordas da mesa. Um gemido sai quase como um grasnado de minha garganta. Ele segura meus
quadris com firmeza, me estocando de uma forma furiosamente lasciva. E se é que eu possa ficar
ainda mais excitada, minhas paredes apertam seu membro, à medida que minha excitação cresce. Seu
pênis me penetra e sua pélvis roça em meu ponto sensível e entumecido. Ele me leva ao limite e solta
um palavrão antes de esquentar mais uma vez o látex dentro de mim.

Minhas pernas ficam bambas quando sinto meu corpo arder contra a superfície fria da mesa.
Vejo a mão de Gabriel se apoiar ao meu lado e logo sinto seu beijo contra minha nuca, ouvindo sua
respiração ofegante.

— Ainda tenho muito o que te ensinar, meu amor. — Ele beija e mordisca o lóbulo de minha
orelha, eriçando todos os pelos de minha pele. — Mas não se preocupe, temos todo o tempo do
mundo.

Ficamos assim até nos recompormos, e depois aproveitamos mais um pouco em seu quarto, no
andar de cima. Na verdade, ficamos a tarde inteira nos amando em sua cama. Gabriel me ensinou a
montar nele, e apesar da sua performance extasiante na cama, sinto que ainda tenho muito o que
melhorar. Mas isso não é problema, tenho certeza de que tenho o melhor professor de todos.
25 | SOBRE O FUTURO

Camille

Já é fim de tarde, e meu dedo indicador faz movimentos circulares entre os pelos ralos em seu
peitoral enquanto estamos ainda enroscados entre os lençóis cinzas de sua cama. De repente, penso
novamente na proposta de mais cedo. Como se ela tivesse me perturbando toda vez que me sinto feliz
ao lado de Gabriel.

— Eu tenho algo a dizer. — Quebro o silêncio, me aninhando mais contra o corpo dele.

Sua mão que antes acariciava meu braço, sobe para os meus cabelos e ele me olha
atentamente.

— Sou todo ouvidos.

— Eu recebi uma proposta de Orlando... Quer dizer, de dona Hortência.

Ele franze os lábios e enruga o cenho, como se estivesse curioso.

— É o seu trabalho. Por que está com esse olhar receoso?

— Hortência quer me levar à Europa. — Mordo o lado de dentro da bochecha e completo: —


Com tudo pago: curso, verbas para realizar desfiles... Parece que ela gostou muito do que viu no
desfile.

Gabriel pisca duas vezes, engolindo em seco e dizendo:

— Que ótima notícia, não?

Interrompo-o:

— O contrato será de 10 anos.

Gabriel parece não ter mais palavras para continuar falando, e sustenta um olhar
inexpressível. Ele desvia o olhar, e eu pergunto, ansiosa:

— O que me diz disso?

— Confesso que você me pegou de surpresa... — Ele pigarreia e diz seriamente: — Na


verdade, por essa eu não esperava.
— Nem eu. Acredite.

Ele continua olhando para o centro do quarto, com o olhar indecifrável. E depois, ele reforça:

— Você não pode recusar.

— Eu não quero recusar.

— Está certa. É o seu sonho. É uma ótima chance, e realizar sonhos tem a ver com agarrar as
chances que o mundo nos dá.

Pisco os olhos, pensando no quanto eu estou o amando.

— Sim — concordo, um pouco emocionada. — Obrigada.

Continuo o fitando e pergunto:

— E quanto a nós? — insisto. — Como nós ficaremos?

Gabriel parece estar concentrado demais em me olhar sem dizer qualquer palavra, e em
seguida solta um longo suspiro, respondendo:

— Podemos deixar essa conversa para depois? Temos que pensar bem... — Ele aproveita o
momento para se desvencilhar do meu corpo e sair da cama, ainda nu, pescando do chão a calça de
moletom e a vestindo.

Fico ali, de alguma forma, ainda processando sua reação.

— Podemos nos visitar nas férias, não? — Me sento na cama, cobrindo meus seios com o
lençol.

Gabriel não me responde. Ele apenas veste a camisa branca.

Continuo:

— Você pode me visitar e, quem sabe, pode até se mudar. Lá poderia ser mais seguro para
você... — Engulo em seco, temendo que tenha sido muito egoísta em minha colocação.

— Eu não tenho como me mudar de Curitiba, Camille. Esse é o meu lugar, é minha chance de
libertação.

— Eu não entendo — murmuro, com os ombros murchos.

— Dez anos não são como um ou dois. É uma parte de uma vida, Camille. — Ele pousa as
mãos na cintura e confessa: — Eu acho que não me contentarei de te ver de ano em ano. — Aquelas
palavras soam como um soco na boca estômago.

O que está acontecendo? Ele quer desistir da gente? É isso?

Ele prossegue:

— A vida é assim. Um rio. Coisas vêm, coisas maravilhas... mas não temos controle sobre a
correnteza. Você tem tanta coisa para ver, viver seus sonhos, tantos outros sonhos para sonhar...

— E não podemos fazer isso juntos?

Ele passa a língua entre os lábios e depois solta outro longo suspiro, como se fosse difícil de
dizer.

— Não é essa questão. E, de qualquer forma, eu não posso pedir para você ficar. Podemos
conversar sobre isso depois?

— Não. Não podemos — respondo. Pela primeira vez, sinto meu coração doer dentro do
peito, devido suas palavras.

Me arrasto para fora da cama, enrolada nos lençóis, pegando minhas roupas jogadas no chão.
Marcho para dentro do seu closet e me visto rapidamente com as mãos tremendo, fora do alcance de
sua visão.

Quando saio do closet, ele ainda está lá, imóvel. Não persisto muito nisso e me preparo para
sair dali sem olhar para trás.

— Camille! — ele me chama. — Não fique desse jeito.

Minha boca amarga, cheia de coisas para falar. Me viro e desfiro:

— Sabe o que é engraçado? Você fingir tão bem que gosta de mim e desistir na primeira
dificuldade...

— Não é algo tão simples.

— Sim, é simples. Para quem quer, é simples.

— Me perdoe.

Sua indiferença me faz apertar os punhos, com uma sensação que nunca havia experimentado.
Um misto peculiar de tristeza e raiva.

— Vá se ferrar! — Pego um travesseiro da cama e arremesso com toda minha força contra
ele.
Saio, fincando os pés pelo chão da sua casa em direção à saída. Quando chego ao jardim,
praguejo para mim mesma por não ter vindo de moto. Droga!

Olho para Estêvão perto de um dos carros pretos e penso comigo, decidida: não volto para
casa com eles nem a pau!

Saio caminhando pelo outro lado do jardim, ouvindo a voz grave berrar atrás de mim:

— Camille! Volte aqui. Por favor... Vá com Estêvão. Não é seguro sair daqui sozinha.

Quando sinto Gabriel quase me alcançar, me viro e digo entredentes:

— Me deixe em paz! Eu vou voltar de ônibus. E nem pense em mandar sua gente me seguir!

Ele para no lugar que está, com o olhar visivelmente impaciente.

Ele engole em seco e parece assentir a contragosto, respeitando minha vontade.

— Tudo bem.

Fito-o pela última vez e me concentro em sair do seu condomínio sem derramar uma lágrima
sequer.
26 | VOCÊ

Camille

Por que, de repente, foi tão fácil para ele desistir de nós? Reflito, ainda com as lágrimas
presas aos olhos, sentada em uma das cadeiras da última fileira de um ônibus vazio.

Apesar de aguentar firmemente nos últimos minutos, as lágrimas caem quentes, molhando
minhas bochechas, como sinal da dor que venho guardando dentro do peito desde que saí daquela
casa no fim da tarde.

Gabriel nunca foi alguém o qual pedi para minha vida, mas ao longo dos últimos meses, era
como se fosse. Ele me fazia sorrir, me deleitar com sua gentileza e desejá-lo como nunca desejei
homem algum. No entanto, o que mais me dói é saber que isso se quebrou em poucos segundos de
indiferença. Era como se eu não tivesse o mesmo valor que ele tem para mim.

Já é noite, e sigo encarando a rua passando por trás de um dos janelões do ônibus, tentando
entendê-lo de alguma forma. De alguma maneira, tento procurar soluções. Naquela noite em seu
escritório, ele havia me contado sobre o dia no acampamento em que aquelas vidas foram perdidas.
Eu acreditei nele e ainda acredito. Pelo o que conheci, ele seria incapaz. Até o dado momento eu
consigo compreender seus motivos ou apenas imaginar sua dor. Mas permanecer em Curitiba para
sempre, esperando atrair um criminoso para vir atrás dele, não me parece uma boa ideia. Afinal,
trata-se de um caso de polícia. A polícia deveria se encarregar de resolver, não ele.

No entanto, não tenho nada a ver com isso. Ainda mais agora que ele deixou claro que prefere
terminar comigo ao ter que adaptar nosso relacionamento a uma distância.

Se a distância será capaz de nos separar, sinal de que detalhes bem menores poderá nos levar
ao fim.

Permaneço dentro do ônibus, seguindo uma das rotas mais longas de Curitiba. E confesso que
não quero voltar para casa, pois sei que quando eu deitar na cama, o choro apenas piorará. E não
quero atrair as atenções de Donatella, tia Lúcia e, ainda pior, de meu pai. Temo que ele vá atrás de
Gabriel no meio da noite tirar satisfações.

Antevejo o próximo quarteirão, e quando passo em frente à igreja de São José, uma ideia me
acomete e levanto abruptamente do banco. Como se eu não tivesse controle de minhas ações, puxo a
corda sobre minha cabeça e desço na próxima parada, protegendo a cabeça dos pingos de chuva com
as mãos.

Prossigo correndo até a igreja e depois tomo uma boa lufada de ar quando alcanço o abrigo
da paróquia, andando entre os bancos vazios. Não encontro o padre Antônio, que talvez esteja em
seus aposentos internos da igreja. Direciono-me ao confessionário, afundando-me na superfície dura
do banco de madeira. Não tenho a mínima ideia de por que estou aqui, mas sinto que estou em um
lugar mais seguro do que antes. Um banco de ônibus vazio não me parece um lugar seguro à noite, ou
talvez eu só, misteriosamente, goste desse lugar.

Escuto o estrondo do trovão lá fora e deduzo que não conseguirei retornar à minha casa tão
cedo. Então decido avisar Donatella, me limitando a dizer que demorarei a chegar em casa e que ela
avise ao meu pai que até a meia-noite eu estarei em casa se a chuva lá fora me permitir. Ao menos,
tarde da noite, eu poderei me sentir triste sem ser notada.

Ela não estranha minha mensagem curta e também não faz muitas perguntas, talvez imaginando
que eu ainda esteja com Gabriel.

Guardo o celular no bolso e encosto minha cabeça no gradeado de madeira ao lado, com a
mente a mil, e, aos poucos, vejo o cansaço me vencer.

Permito-me fechar os olhos. É só um cochilo, até a tempestade lá fora passar.

Acordo com o estrondo do céu caindo lá fora, e quando dou por mim, percebo que a chuva
ainda não passou. Talvez tenha piorado.

Levanto-me, sentindo meu corpo doer, e me arrependo amargamente de ter caído no sono
nesse banquinho de madeira e acordar com as costas em frangalhos.

De repente, um forte relâmpago faz oscilar a energia. Ergo o olhar para as luzes no teto e me
preocupo. Ai, Senhor! Só o que me faltava uma queda de energia uma hora dessas!

Levanto-me antes que seja tarde e dou um passo à frente, em busca de um lugar mais
confortável para ficar. Tenho certeza de que uma das vezes que visitei a paróquia, vi uma senhora de
idade auxiliar o padre António. Ela deve saber o que fazer comigo caso falte luz.
Quando dou mais um passo à frente, um clarão seguido de um forte barulho lá fora faz com
que a escuridão me envolva de vez.

— Minha Nossa Senhora! — Estremeço, sem enxergar absolutamente nada.

Fico paralisada alguns instantes, esperando meu cérebro dar ordens para o resto do meu
corpo se mover. Estranhamente sinto a presença de outra pessoa em minha frente. Ouço o leve
barulho de sua respiração, o que me faz recuar um passo.

— Q-quem está aí? — gaguejo.

A pessoa demora a responder, mas o faz.

— Sou eu. — A voz grave irrompe no espaço.

— Eu quem? — pergunto em um fio de voz, com meu cérebro processando o timbre da voz.

De repente, ouço o som de seus sapatos tocarem o chão de madeira em minha direção,
enquanto meu coração erra uma batida. E, por algum motivo, esse momento me dá gatilhos do dia em
que encontrei aquele rapaz misterioso.

Ele se aproxima de meu corpo e sinto suas mãos quentes tocarem meu rosto. Em um breve
segundo, tudo parece acontecer lentamente. Seu corpo parece se inclinar levemente, me fazendo
sentir o aroma almiscarado que vem dele, e seus lábios tocam minha testa em um gesto demorado. Eu
conheço a voz, eu reconheço o cheiro. Como se eu tivesse algum tipo de epifania, um turbilhão de
sensações toma meu corpo e invade minha mente. E a lembrança. É impossível! Ofego.

Em seguida, na escuridão, ele inclina o rosto em minha direção e toca meus lábios, me
elevando a algum tipo de confusão mental. Eu não sei distinguir. Quem é quem? Impossível! Eu sei
quem ele é!

Em um rompante, a energia retorna, iluminando tudo ao nosso redor. No fundo, sei muito
quem bem está diante de mim, mas preciso abrir os olhos para constatar isso.

Encontro seus olhos de um azul profundo. Suas mandíbulas estão apertadas, assim como sua
postura rija. Dou um passo para trás, me afastando de seus braços.

Abro a boca duas vezes e a fecho novamente, ainda atordoada.

— Era você? — sussurro, em um tom desacreditado. — Todo esse tempo era você?
27 |O CONFESSIONÁRIO

Camille

Com a respiração presa no peito e com um medo terrível de perdê-la — é assim que eu me
sinto desde que saí de casa atrás dela horas atrás. Não posso simplesmente deixá-la ir, eu já não
tenho mais essa opção. Foi preciso vê-la partindo de minha casa para perceber que ela é muito além
de um vício, ela é o ar para os meus pulmões. Eu não irei perdê-la, nem se um caralho de distância
nos separar. Eu a quero como minha mulher, e é isso o que vim reivindicar aqui.

Continuo assistindo seus olhos arregalados me fitando depois de beijá-la na boca e as luzes
reacenderem tão logo. Ela me direciona a pergunta novamente, visivelmente confusa:

— Me fale! Era você naquele dia, não era?

Não consigo respondê-la, apenas entreabro meus lábios de maneira quase imperceptível, mas
desisto no meio do caminho. Ao invés disso, deixo o silêncio consentir naturalmente.

— Agora tudo faz sentido — ela diz, franzindo o cenho. Provavelmente, está relembrando a
forma que nos conhecemos. — Você já me conhecia, por isso que você... — Ela estanca e estreita o
olhar para mim. — Por que... — Ela engole em seco, e eu posso ver que seu pescoço transpira,
mesmo que estando frio. — Por que não me contou? Por que esse tempo todo...

— Porque eu estava fixado em você, Camille. — Inspiro fundo. — Estava com medo de
achar que eu estava a perseguindo... Eu só queria que as coisas acontecessem naturalmente. Eu não
sabia quem você era, mas eu estava obcecado pela menina de palavras sinceras atrás do
confessionário.

Ela sussurra, e parece pensar alto:

— E eu aquele tempo todo procurando por você, sendo que estava ao meu lado.

Suas expressões estão indecifráveis. Não sei se ela está com raiva, irritada ou apenas
indiferente.

— Está brava comigo?

— Eu não sei exatamente. Não sei o que pensar disso — ela responde francamente.

— Eu não menti.
— Mas escondeu — ela replica no mesmo instante.

— Não é a mesma coisa.

— Mas agora soa como fosse...

— Me perdoe, então. — Dou um passo à frente.

— Quando pretendia me contar?

— Em um momento especial.

— E qual momento seria mais especial do que as vezes em que estivemos juntos?

Penso nos planos que tenho em mente, que nunca tive em todos esses anos, mas depois que a
conheci, eu consigo imaginar. Uma família ao lado dela. Estou certo disso, e farei o meu máximo
para merecer isso.

— Você não acreditaria nestas circunstâncias.

Ela balança a cabeça levemente e torna a me indagar em um fio de voz:

— Por que veio?

Dou mais um passo à frente, enfiando as mãos nos bolsos da calça de moletom, enquanto
observo seu peito subir e descer em uma cadência ofegante.

— Porque eu não posso conviver com o risco de perder você... Se você me perdoar, eu
gostaria de nunca mais cometer esse erro.

Ela umedece os lábios, e em seguida fecha o punho. Seus olhos ficam vidrados de lágrimas e
exclama, visivelmente exausta:

— Você promete?

Em seu olhar consigo ver sua exaustão. Muitas vezes me encontrei assim, perdido e sem
rumo, procurando respostas constantemente. No entanto, Camille é diferente. Ela é uma garota doce,
alegre e cheia de sonhos. Me desespera saber que eu a deixei assim. Jamais tive a intenção de lhe dar
menos do que meu afeto. Droga! E eu falhei! Falhei tentando estar no controle sobre o que é melhor
para nós dois.

Avanço os últimos passos que me falta até ela, e a envolvo em meus braços, a apertando forte
e beijando o topo de sua cabeça, confessando:

— Eu te amo.
Seu corpo comprimido em meus braços parece se desmanchar, e em seguida seus braços
enlaçam o redor de minha cintura, me apertando contra o seu corpo.

— Eu também te amo. Muito — ela responde com a voz embargada.

Por muitos anos na vida, me senti perdido. Confuso. E com a fé abalada.

No dia que pedi a Deus para que aliviasse o desconforto de minha alma, Ele me mostrou
Camille, como se fosse uma generosa dose de alívio para minha existência. Mesmo ficando
encantado por aquela garota logo de cara, insisti em colocar à prova toda essa minha súbita
fascinação. E minha alma se desdobrou ao seu jeito doce, sua fala mansa e sua mente brilhante, cheia
de sonhos. Seus lábios cheios, sua boca convidativa, a vontade infinita de sentir seu gosto. Apesar de
admirá-la e desejá-la em todos os aspectos, não é algo que eu possa explicar. Eu apenas a amo
verdadeiramente. Como nunca amei ninguém. Eu apenas a amo, com o perigo de fazer isso
eternamente.
28 | TE PERDER DE MIM

Camille

Gabriel e eu nos direcionamos à saída principal da igreja, em que Estêvão nos espera
fielmente, com dois guarda-chuvas pretos.

— Para a casa de Camille, Estêvão.

— Sim, senhor.

Ele comunica o resto da equipe pelo minúsculo rádio digital pendido em seu colarinho.

Estêvão entrega a Gabriel um guarda-chuva, grande o suficiente para caber duas pessoas.
Gabriel esgueira uma mão para o meio de minhas costas e o abre sobre nossas cabeças enquanto
caminhamos em direção ao carro preto estacionado perto da entrada principal da igreja.

Sua aproximação me aquece internamente de forma gostosa, e o frio não parece tão
insuportável enquanto os pingos de chuva caem impetuosos contra a superfície do tecido preto sobre
nós. Gabriel para em frente à porta traseira do carro, a abrindo para que eu entre. E como se esse
momento congelasse, paro e fico hipnotizada com seu rosto.

— O que foi? — ele pergunta, com um meio-sorriso cravado na face.

Nem eu mesma sei o que aconteceu. Eu apenas quero olhá-lo.

— Nada — respondo, inspirando fundo.

— Eu te amo.

Sorrio ao perceber que essas palavras saem fácil de sua boca, mesmo que ele tenha
demorado para dizê-las.

— Eu te amo — retribuo, convicta.

Seus lábios abrem um pouco mais, deixando à mostra seu sorriso estonteante, me arrancando
um suspiro.

Ele indica com a cabeça para a porta aberta, e eu assinto. Não sei exatamente como explicar,
mas tudo acontece muito rápido. O som do disparo, um breve solavanco em meu coração. Ou seria o
meu corpo?
Vejo os respingos de vermelho escuro na camisa de Gabriel e meu coração para
completamente. Tudo novamente parece entrar em câmera lenta, como se tivéssemos retornado
àquele dia em frente à sua casa. Meus olhos atônitos encontram os seus, visivelmente atordoados, até
mais do que eu me recordava naquele dia. No entanto, é como se eu estivesse revivendo aquela
sensação horrível. De impotência, indignação e medo. Com meus olhos vidrados de lágrimas, com
um medo terrível e com a adrenalina correndo em minhas veias, sustento o olhar.

Os olhos de Gabriel descem por um momento, me fazendo dar um passo à frente, em uma
tentativa de ajudá-lo. Ele deixa o guarda-chuva cair e em seguida me impede, segurando meus braços
bruscamente. Ele continua com o olhar baixo, e é quando me dou conta da situação. Instintivamente,
com o corpo eletrizado, sigo seu olhar para minha barriga e vejo que ele não foi atingido. É o meu
sangue respingado em sua camisa.

Minha vida nunca foi sinônimo de boas doses de adrenalina, nunca me vi de fato em perigo.
Na verdade, nunca pensei que uma pessoa pudesse viver constantemente assim: com a morte a
perseguindo. E, muito menos, se passou em minha cabeça amar alguém que vive assim.

Não sei exatamente quando apago, se é antes ou depois do tiroteio que se sucede.

Na verdade, não sei quando, exatamente, comecei a delirar. A verdade é que eu estava mal,
mas esquisitamente aliviada por não serem dois feridos. Mas ele não estava se sentindo assim. A
última memória que tenho de seu rosto é com o desespero cravado em seu olhar, os vincos quase
rasgando sua testa e sua boca comprimida enquanto me deitava no banco traseiro do carro.

Eu queria lhe dizer algo, queria dizer que não era sua culpa, mas eu mal podia respirar. Não
demorou muito para meus sentidos perderem a força e eu apagar complemente.

Acordo incomodada com as luzes no teto. Abro os olhos em ritmo letárgico, lentamente,
assimilando as vozes das pessoas que conversam ali perto.

— Sua filha perdeu muito sangue. Foi uma cirurgia complicada. A bala se alojou na parede
torácica inferior esquerda, alguns centímetros a mais para cima e teria sido fatal à Camille. Você e
sua família têm muito o que agradecer, sua filha nasceu de novo.
— Obrigado, doutor. — É a voz do meu pai, visivelmente abalada.

Com o corpo dolorido, movo minha cabeça para o lado e avisto tia Lúcia sentada em uma
poltrona confortável do outro lado do que parece ser um quarto de paredes brancas e cortinas azuis,
enquanto meu pai parece assentir para um homem alto de jaleco.

— Ah, aí está. Ela até acordou. — O homem de óculos de armação redonda me flagra o
encarando. Presumo que seja o médico.

Ele caminha em minha direção, perguntando:

— Como está se sentindo?

— Por quanto tempo? — replico, tentando me levantar. — Por quanto tempo eu dormi?

— Calma aí, mocinha. — Ele me impede, tocando um de meus ombros. — Primeiramente,


estamos em um hospital. — Ele olha para os meus familiares, como se pedisse licença para dizer o
que está prestes a dizer. Meus olhos recaem sobre seu jaleco em que está bordado: Dr. Rodrigo
Mendes. Médico cirurgião. — Já faz algumas horas que você está desacordada. Você foi atingida por
uma bala perdida. Você se recorda disso?

— Onde está Gabriel? — Ofego quase no mesmo instante, quando ele me pergunta.

— Ele não pôde entrar — tia Lúcia responde, se aproximando da maca.

— Ele está bem?

— Deveria se preocupar com você, Camille. Ele está ótimo. — As palavras saem amargas da
boca de meu pai, como se ele desconfiasse de algo.

— Ele provavelmente não está mais aqui, Camille — o médico me conta de forma franca.

— Você o conhece?

— Ele mesmo a trouxe aqui. — E confessa: — Conheço a família dele.

— Que hospital é esse? Não me diga que é particular... Eu não tenho plano de saúde...

— Não se preocupe com isso. Suas despesas já estão todas pagas até o devido momento, e é
provável que não seja diferente até você sair do hospital.

— E por que ele não está aqui?

Dr. Rodrigo expira o ar dos pulmões, como se ele não soubesse me responder. E é claro que
não é seu trabalho. Afinal, deve haver muita coisa mais importante do que cuidar da vida pessoal dos
pacientes.

— Eu não sei.

— Tudo bem — respondo, resignada. — Obrigada.

— Por nada. Você irá ficar em observação.

— Tudo bem — repito, soprando, com a minha cabeça já em outro lugar.

— Ah, quase ia esquecendo. — Dr. Rodrigo se aproxima de uma mesa ao lado da cama em
que eu me encontro. — Ele deixou isso para você. — Ele me entrega um envelope cor de creme e me
dá uma piscadela. — Espero ter feito uma jovem feliz essa noite — o médico diz simpaticamente
antes de sair pela porta da frente, e deixa contraindicações: — Sem estripulias, por favor.

Alterno o olhar para o meu pai, que olha para o envelope em minhas mãos, com um tom de
curiosidade e receio.

Meus dedos sentem a textura aveludada do pequeno envelope, pensando que será mais
confortável fazer isso livre dos olhares atentos de meu pai.

Ele parece entender, inspira fundo e caminha até a varanda ao lado. Neste momento, quero
agradecê-lo por isso.

Enquanto isso, retorno minha atenção para o envelope em minha mão, sorvendo uma boa
quantidade de ar e o abrindo em uma só respiração.

Retiro o pequeno cartão escrito de caneta de tinta preta, em uma letra cursiva:

Camille, se você está lendo esse bilhete agora, provavelmente está fora de perigo.

Bem, não sei por onde começar, mas queria começar com: me desculpe. Me desculpe por
ter entrado em sua vida e me desculpe por aquilo que prometi há algumas horas.

Eu não posso cumprir.

É melhor rompermos.

Eu percebi que é o melhor que podemos fazer agora.

Não me odeie, por favor. Não alimente nada que seja ruim em você, pois você só alimentou
coisas boas em mim. E me lembrarei disso por muito tempo.
Gabriel.

Minhas mãos deixam cair o bilhete sobre meu peito, atônita. Não sei muito bem o que pensar
disso, nem consigo medir a profundidade das palavras de Gabriel. Se nós conversarmos com mais
calma, ele voltará atrás, certo? As dúvidas começam a brotar em minha mente, como se eu recusasse
a mim mesma a ideia de me afastar dele. Eu não quero aceitar de imediato, mas não é possível
controlar as lágrimas que começam a arder meus olhos. Por que ele terminaria assim, de forma tão
seca? Por bilhete?

E se isso não tiver volta? E se ele realmente nunca me amou como disse que amava na
noite passada, por isso deu o pé pra trás tão facilmente? Ah, minha Nossa Senhora! É horrível ter
essas dúvidas. Limpo uma lágrima que escorre para minha bochecha.

Tia Lúcia se levanta de sua poltrona e para em minha frente.

— Chamarei Donatella ou Manuela. Elas estão lá embaixo. Tenho certeza que te darão uma
animadinha — ela diz, pousando a mão em cima da minha e a afagando, como um consolo velado. De
alguma forma, me acalmo um pouco com o apoio de tia Lúcia.

Apesar de tudo, ainda acho que essa situação é reversível. Eu não desistirei tão fácil,
tampouco o perderei por falta de diálogo.

Eu entendo muito bem os motivos dele, sei que ele teme por minha segurança, e se para tê-lo
de volta for preciso ceder, eu cederei. Pois é isso o que o amor faz. Eu o farei desistir dessa ideia
estúpida de me proteger.
29 | ACEITO!

Camille

Os dias iam se passando e a ferida que ganhei na pele ia sarando, conforme eu ganhava uma
nova cicatriz arroxeada localizada embaixo de meu seio. No entanto, não sentia a mesma melhora em
relação ao meu estado de espírito. Era como se outro buraco, invisível, tivesse sido aberto dentro do
meu peito, e aquilo só aumentava quanto mais o tempo se passava.

Durante minha recuperação, não via a hora de poder ficar saudável e poder encontrar Gabriel
para termos uma conversa. Essa ansiedade de poder encontrá-lo só passava quando Donatella ou
Manuela me distraíam em uma de suas visitas no hospital, me obrigando a conversar sobre as coisas
mais triviais.

Finalmente, quando pude sair do hospital, tive uma ótima recuperação em casa. Passei alguns
dias de licença e a própria Hortência Ortega me ligou, desejando melhoras e me deu mais alguns dias
para pensar em sua proposta.

E quando finalmente a licença expirou, felizmente, meu corpo e mente estavam vibrando para
sair de casa.

Em uma manhã de quarta-feira, retorno às minhas atividades na Ortega, imbuída do que


chamo de uma vontade danada de trabalhar.

Dona Consuelo me recebe com um surpreendente abraço caloroso e me apresenta à Clara,


nossa nova colega de setor, que Orlando havia contratado exclusivamente como ajudante de dona
Consuelo. Parece que Orlando está certo que eu aceitarei a proposta de sua mãe e se apressou em
colocar alguém em meu lugar.

Logo cedo, já sou encarregada de levar os contratos do dia anterior para Orlando assinar,
caminhando em direção à sala da presidência.

Quando adentro a secretaria da presidência, vejo Beth, a secretária de Orlando, sair com
alguns papéis em mãos, me cumprimentando com um menear de cabeça.

Paro em frente a porta entreaberta e, ao escutar duas vozes conversando, fico estática, em
dúvidas sobre o que fazer. Entro ou não entro? De repente, a lembrança daquele dia em que escutei
uma discussão familiar me vem à mente, o que me faz recuar. Não quero sair de bisbilhoteira. Além
de que a lembrança dos olhares do pai de Orlando sobre mim faz minha espinha gelar. No entanto,
quando ouço uma das vozes masculinas falar, fico curiosa.

— Eu te amo, Orlando. Que infelicidade a minha. Mas eu amo você. Essa é a verdade. Eu sei
que você avisou que não é de se apaixonar, mas o que eu posso fazer? — A voz tremula um pouco. —
Aconteceu!

Movo minha cabeça furtivamente para o lado e espio pela brecha entre a porta e o batente.

Avisto Orlando ao lado da mesa, com o olhar endurecido. Ele veste uma camisa branca social
e suspensórios. Enquanto o rapaz loiro de jeans e camiseta preta o encara fixamente. Orlando abre a
boca para respondê-lo, no entanto, o homem à sua frente avança alguns passos e o beija.

Por um momento, fico em choque. Não por nunca ter visto dois homens se beijarem, mas por
temer a reação de Orlando, esse idiota frio e cruel com as palavras. No entanto, cinco segundos se
passam, e em seguida vejo a mão de Orlando repousar nas costas do rapaz, como um ato de
reciprocidade.

Pisco duas vezes, e depois dou dois passos para trás. Agora temo ser pega a qualquer
momento.

Aperto os contratos contra o meu peito e saio dali, surpresa.

Orlando? Gay?

Oh, céus! Isso nunca havia se passado por minha cabeça. Não que a orientação sexual das
pessoas tenha de vir escancaradas, mas nunca suspeitei das preferências de Orlando, afinal, ele
sempre pareceu ser um daqueles homens machistas e intolerantes. Mas, pensando bem, isso não me
diz respeito.

Carrego os contratos de volta para o setor de alta-costura e me sento em minha poltrona, com
a mente confusa. Dona Consuelo me pergunta sobre os contratos e minto, dizendo que não o
encontrei. Depois retorno a pensar novamente no que vi minutos antes.

Encontro-me assim por mais alguns minutos, mas depois meu pensamento retorna ao assunto
grampeado em minha cabeça: Gabriel. Eu não sei mais o que fazer para tirá-lo da mente, no entanto,
pelo menos hoje será o dia que o enfrentarei e conversarei com ele. Ao final do expediente, irei à sua
casa, eu estou decidida. Não suporto mais tanta saudade, e tudo me leva a crer que ele sente o
mesmo, embora ainda esteja firme com a ideia boba de me proteger e bloquear todos os caminhos
virtuais possíveis que me levam a ele. Eu estou certa de que o farei voltar atrás. Eu estou certa.
Pela tarde, apresento à dona Consuelo alguns croquis que criei durante o tempo que passei em
casa, e ela aprova sete modelos diferentes de vestidos, me deixando muito satisfeita. Atendemos
algumas clientes também e saímos às seis horas em ponto.

Dou uma ajeitadinha no visual antes de sair da Ortega e sigo em minha lambreta até o
condomínio de luxo que fica no Batel.

Apesar do porteiro da guarita me conhecer, ele tem que falar com o Estêvão para liberar
minha entrada. E, felizmente, ele libera.

Estaciono em frente ao jardim da mansão 503 e me direciono à porta, onde Estêvão me


aguarda, envolvido pela luz do entardecer.

— Estêvão, por favor, me deixe... — começo, receosa.

— Ele está no deque da piscina — ele me interrompe.

— Obrigada! — Gesticulo como se esse obrigada fosse menos do que ele merece.

Passo por ele e adentro a casa que bem conheço.

Inspiro fundo e vou em direção à lateral do jardim, em que há uma porta de vidro. Deslizo-a
para o lado e firmo meus pés na grama viçosa. Avisto Gabriel próximo ao deque, conversando com
Maria Júlia, enquanto ele folga a gravata.

Sua camisa social de tecido e a calça de linho me levam a crer que hoje ele saiu. E, por um
momento, assistindo de longe, penso que atrapalharei a conversa que aparenta ser importante.

Gabriel embrenha os dedos nos cabelos, enquanto ouve atentamente o que Maria Júlia diz,
que, aliás, não dá para eu escutar absolutamente uma palavra. Ela dá um passo em direção a ele,
agora escutando as palavras dele. Em seguida, ela dá outro passo em direção a ele, mas, dessa vez,
Maria Júlia alcança a boca dele e seus braços envolvem os ombros largos de Gabriel.

Ele fica imóvel, assim como fico também. Estou com um gosto amargo na boca e os punhos
cerrados.

Fico ali, estática, ansiosa por qualquer reação dele. No entanto, temo que isso não aconteça.
Ao invés disso, assisto a mão dele pousar na lombar de Maria Júlia, assim como vi no escritório de
Orlando mais cedo, como um ato de consentimento.

Um suspiro escapole entre meus lábios, enquanto não consigo sentir o chão sob os meus pés.

Uma sensação horrível me acomete, eu não estava preparada para isso. E mesmo que eu
estivesse, sinto que ainda assim me sentiria da mesma forma.

Meus olhos se enchem d'água e minhas pernas entram no automático. Saio dali sem prestar
atenção em nada. É possível que Estêvão tenha falado comigo na sala de estar e eu não tenha
prestado atenção. Eu só quero sair dali para derramar minhas lágrimas. Eu só quero chorar e nada
mais.

Subo em minha motocicleta com o peito doendo e só paro em um parque, próximo do Batel,
sentando embaixo de uma árvore robusta, ao lado de um transformador de energia. Envolvo minhas
pernas com os meus braços e deixo as lágrimas rolarem livremente, pensando no quão idiota fui de
acreditar nas palavras dele. Ele disse que me amava. Como pode alguém amar desse jeito?! Ele
havia me trocado tão rápido, e isso dói muito.

Droga! Por que eu fui me apaixonar? Mas que droga!

Permito-me chorar até anestesiar a dor em meu peito.

Depois de alguns minutos, me sinto menos pior, ao menos um pouco, e seco as lágrimas com a
manga do meu casaco. Neste instante, o celular em meu bolso toca e vejo que se trata de Hortência.
Não penso muito, apenas pigarreio rapidamente e atendo:

— Alô?

A aveludada voz do outro lado da linha faz uma pausa antes de responder.

— Como você está, querida? Sou eu, Hortência.

— Bem — minto, ridiculamente.

— Como foi seu primeiro dia de trabalho?

— Como a senhora sabe? — murmuro, confusa.

Ela sorri do outro lado da linha e me responde:

— Eu estava falando com Consuelo antes de ligar para você. Consuelo é uma velha amiga, e
assim como eu, uma grande admiradora de talentos natos.
Fico sem saber o que dizer e apenas agradeço.

— Está se perguntando porque estou ligando a essa hora da noite. Eu esperei o mês
ansiosamente para ouvir sua resposta, mas não posso mais esperar, Camille. Terá de se decidir.
Posso contar com você ou não para a próxima temporada em Milão?

Sinto minha mão gelar, enquanto seguro o aparelho contra minha orelha. Eu estava certa de
que não aceitaria, mas as coisas saíram totalmente fora de órbita. Eu já não tenho algo que me faça
partir olhando para trás, além de minha família. Eu não tenho mais ele e, apesar de tudo, isso me dói.
Mas quer saber? Dane-se! Eu tenho que pensar em mim mesma agora. A partir de agora, vejo que é o
melhor a se fazer.

— Pode contar comigo. Eu assinarei o contrato. Eu irei quando a senhora quiser, só tenho que
resolver a questão do passaporte e conversar com minha família.

Confirmo para a mulher do outro lado da linha, que solta um suspiro vitorioso. Sinto que já
não tenho mais nada além da vontade de correr atrás dos meus sonhos, e isso é o que farei.
30 |O DIA QUE TE PERDI

Gabriel

Semanas antes

Na manhã seguinte, quando Rodrigo vem me avisar da situação de Camille, finalmente posso
soltar o ar preso em meus pulmões. Inspiro fundo e expiro, olhando para Estêvão ao meu lado.
Agradeço a Rodrigo e volto à minha toca, munido daquilo que chamo de choque de realidade. Porra!
Eu a expus mais do que deveria, e ela poderia ter morrido e me tirado o restante de paz que tenho, se
é que eu conseguiria conviver com isso pelo resto de minha vida.

Antes de vim para casa, tive uma conversa franca com seu Afonso na sala de espera em que
se encontrava, visivelmente abalado com a notícia de que a filha foi alvo de tiros. Ele e sua família
haviam saído às pressas e não entendiam nada do que estava acontecendo, o que me fazia me sentir
ainda mais culpado por toda a situação.

Naturalmente, ele queria saber como havia acontecido e me fez a pergunta a qual eu sempre
me fiz nos últimos anos:

— Quem havia feito isso?

E, pela primeira vez, eu queria pagar na mesma moeda, eu queria matar aquele covarde
infeliz.

Disse ao pai de Camille que não sabia, e que apesar de amar sua filha, não era seguro ela
ficar ao meu lado. Pedi desculpas, e ele secamente concordou comigo, dizendo que iria à polícia
assim que Camille saísse do hospital. Pensei em mais uma abertura de outra investigação demorada
que resultaria em nada. E isso apenas pioraria se citassem meu nome. Apesar de ter sido absorvido
em todas as instâncias, ainda havia muitas desconfianças de delegados que ainda se lembram do meu
caso. Se isso já não bastasse, nenhum investigador encontrou vestígios de que eu possa mesmo estar
sendo perseguido. E foi por esses e mais motivos que escolhi confiar inteiramente na equipe de
segurança que trabalha para minha família.

Despejo um pouco de uísque no copo largo em cima da bancada da cozinha, e em seguida


desabotoo a camisa suja com o sangue dela.

Caminho pelos cômodos baixos, ingerindo goles espessos da bebida espirituosa, em uma
tentativa de anestesiar meus ânimos. Subo pela escada para o segundo andar, chegando ao meu
quarto. Abandono o copo em cima da cômoda e me dispo por completo, empilhando as peças de
roupas no cesto no canto do quarto. Direciono-me ao banheiro, tomando uma ducha de água quente,
sentindo os meus músculos se contraírem toda vez que o calor da água faz com que minha pele se
sinta aquecida. Como se isso fosse errado, como se não fosse o meu normal. Como se meu corpo
estivesse fadado ao frio e à dormência, e não fosse digno de que qualquer alívio. É assim que eu me
sinto, um ser que não merece nada que seja bom. Como se a felicidade batesse em minha porta com
um par de olhos doces e cabelos castanhos, e eu não pudesse agarrá-la.

Aperto o punho e dou um murro na cerâmica da parede em minha frente, sentindo a água
corrente deslizar pelos meus cabelos e escorrer pela curvatura do meu nariz. De repente, a água
quente se mistura com o calor das lágrimas que ardem em meus olhos.

Eu a amo. Porra! Como eu a amo. E, por essa razão, tenho a obrigação de deixá-la em paz.

Dias depois

Nunca pensei que minha mãe viesse um dia me exigir isso. No entanto, ela o fez.

Estou no banco traseiro do carona, esperando que Estêvão me dê um sinal positivo para que
eu possa sair, enquanto Maria Júlia pergunta, sentada no banco da frente:

— Está ansioso?

Olho para toda a gente entrando no salão de entrada do escritório da fábrica, cuja a cor prata
é predominante. Algumas pessoas em trajes formais andam apressadamente pelo local e me sinto um
total estranho por estar pondo os pés aqui depois de tanto tempo, apesar de ter dedicado minha total
atenção a essa empresa nos últimos anos.

— Ansioso não é a palavra certa para esse momento. Curioso, talvez — respondo à Maria
Júlia sem tirar a atenção sobre as pessoas que passam.

— De qualquer forma, sinta-se seguro. Enquanto eu estiver de plantão nesta equipe, nada vai
lhe acontecer. — Tenho a sensação de que ela brinca, se gabando, mesmo que seu tom de voz esteja
formal.

Entro na brincadeira de minha velha colega de escola e concordo seriamente:

— Tenho certeza que sim.

Estêvão finalmente faz um sinal positivo do lado de fora do veículo e vislumbro a pistola 380
em cima do banco de couro bege ao meu lado. Apesar da perseguição durante anos, nunca cogitei a
possibilidade de pegar em uma arma outra vez. Mas olhando para trás, talvez eu tenha deixado o
receio me dominar — o receio de eu ganhar novamente uma narrativa acusatória. No entanto,
ultimamente não estou mais ligando para os meus próximos passos ou tentando entender suas
artimanhas. Já não estou mais com medo da morte, sequer de passar alguns anos na cadeia. Eu não
quero mais viver em função de um desgraçado covarde. Camille já não está ao meu lado. Eu estou
decidido a enfrentá-lo frente a frente.

Manuseio a pistola em minhas mãos, abro a porta ao lado e, em um movimento calculado,


guardo-a na parte traseira da calça, encaixando meus óculos escuros no rosto e andando em direção
ao saguão. Maria Júlia e Estêvão acompanham meus movimentos e caminham em meu encalço,
seguidos do restante da equipe.

Um homem achatado e uma mulher de cabelos vermelhos paralisam ao me olharem. Posso


jurar que os dois viram alguma alma penada, devido às aberturas entre suas bocas.

Pego o primeiro elevador e Estêvão aperta o quinto botão, parecendo conhecer muito mais a
fábrica do que eu.

Paramos em frente ao apinhado de mesas organizadas em forma de V, e sigo Estêvão para o


outro lado da sala sob os olhares curiosos das pessoas ali. Retiro os óculos e aquiesço
respeitosamente para as pessoas. Faltando pouco para cruzarmos a sala, ouço uma voz feminina
dizer:

— Meu Deus! É o hoje o dia do arrebatamento?!

— Quem é esse?

Uma outra voz cochicha:

— O outro filho de Tereza. Gabriel Átila. O dono da voz do setor financeiro.


— Ele é mais velho do que Gael?

— Parece que sim. Ele é considerado uma lenda aqui na empresa. São poucos os que já
viram de perto, apenas os funcionários mais antigos, quando ele ainda era um adolescente.

Elas cochicham perto de mim, como se eu não tivesse uma boa audição.

Vejo a porta de vidro se abrir antes que chegue até ela e o loiro fajuto de terno e gravata saia
com um copo raso de café na mão. Despretensiosamente ele olha em minha direção, me flagrando e
deixando o copo de café escorregar de sua mão.

— Puta merda! — ele xinga, exasperado, sem saber se olha para mim ou para o terno cinza
agora manchado de café. — Droga! Esse era o meu favorito!

Aproximo-me, olhando para o estrago no tecido e digo ao meu irmão:

— Sinto muito. — Toco seu ombro e o consolo: — Se quiser, posso te dar um dos meus.

— Não, não. Eu compro outro. Ou mando fazer um igual. — Ele ergue o olhar e pergunta, sem
esconder a surpresa na voz: — Aliás, o que é que você veio fazer aqui? Dona Tereza sabe que você
está colocando a cara para fora? Se ela souber disso é capaz de trancar você em um calabouço sem
chaves.

— Ela mesma pediu para que eu viesse.

— Como?

Pigarreio, olhando para os funcionários do escritório atrás de mim, que logo desviam o olhar
e tornam a fazer o que estavam fazendo.

Explico a Gael:

— Parece que temos uma reunião hoje com os nossos parceiros franceses e ela me pediu para
que eu assumisse a reunião, já que ela está em Brasília desde sábado.

— Sim, estou sabendo. — Ele desliza as mãos para os bolsos da calça. — Ela até mesmo
pediu para que eu tomasse de conta desta reunião, mas os caras não sabem pronunciar uma palavra
em inglês. E daqui também mal sai um Çá vá[i]. Então que bom que veio.

— Não se engane, meu francês está um pouco enferrujado...

— Oh, pare de ser um maldito modesto! — Ele abre um sorriso zombeteiro.

— Onde fica a sala de reunião? — pergunto, curioso.


Gael me fita com um olhar reflexivo, talvez esteja pensando o quão irônico eu sou por não
saber algo tão simples, como onde fica a salão de reunião da Átila. Ele sacode a cabeça levemente e
responde:

— Aqui. — Ele abre a porta pela qual havia acabado de passar e me acompanha até o
departamento da presidência. — Os franceses já devem estar chegando — avisa.

Folgo a gravata que circunda meu pescoço, enquanto minha outra mão segura a garrafa de
uísque que levo até a mesa do deque. Despejo a bebida acastanhada na taça e inspiro o ar puro que
vem do jardim. Já está anoitecendo e sinto que hoje foi um dia bom.

Nunca me senti tão útil quanto naquela mesa de reunião com aquelas pessoas, negociando um
contrato de bens e serviços. O sentimento que eu tinha era como se eu fosse um homem com uma vida
normal, como qualquer outro.

Levo a taça aos lábios, me apoiando na quina da mesa, pensando nela outra vez. Ela está
sempre lá, mesmo quando penso que não. Não há nem um segundo do meu tempo que eu não pense
nela. E cada dia que passa, isso apenas se intensifica.

Vejo Maria Júlia sair do corredor que leva às dependências internas do jardim, e ela se
espanta ao me ver.

— Oh! Perdão. Eu não sabia que estava aqui — ela diz, envergonhada. — Eu estava usando o
banheiro... — Ela aponta para trás.

— Não precisa se explicar — digo, levando outra vez mais uma boa dose de álcool aos
lábios. — Aceita? — ofereço, levantando a garrafa achatada.

Maria Júlia tem se tornado uma ótima companhia nos últimos dias. De alguma forma, ela
sempre parece conseguir engatar uma conversa interessante, mesmo quando não estou aberto a
conversas. E confesso que é a única pessoa com a qual consegui me abrir nos últimos dias, fazendo
dela mais do que uma velha colega de turma, mas agora uma amiga. Maria Júlia, sem dúvidas, é uma
mulher inteligente e gentil, mesmo por trás da postura casca-grossa que ela parece querer sustentar.
Ela, como muitos naquela noite, perdeu um ente querido: Ramos, seu irmão. No entanto, apesar das
fortes implicâncias do irmão enquanto vivo, a família de Maria Júlia foi a única que não se revoltou
expressamente contra a decisão judicial que me absorveu de qualquer culpa.

— Eu não bebo em horário de expediente — ela responde.

— Ok. Desculpe-me. — Dou mais um gole, olhando para a piscina.

Sinto ela se aproximar ao meu lado e comentar:

— Dalmore 62 Single Highland Malt Scotch.

— Conhece? — Torno a fitá-la.

— Meu pai tinha uma ótima adega abastecida quando era vivo.

— Que interessante. Esse é um dos melhores.

— Eu sei — ela sopra. — Alguma ocasião especial? — Ela pigarreia. — Creio que não se
abra uma bebida de sabor tão nobre em qualquer ocasião.

Pisco os olhos duas vezes, abrindo um meio-sorriso e respondendo sua pergunta, dando mais
um gole:

— Estou comemorando o dia de hoje. Afinal, não é todo dia que vejo o mundo exterior de
perto.

— Parece-me um ótimo motivo. Em sua perspectiva.

Solto um riso fraco, me dispersando um pouco da conversa e tornando a olhar o jardim.

— Parece triste — ela observa, me chamando a atenção. Ela analisa a situação, dizendo: —
Aliás, você sempre tem me parecido mais triste nos últimos dias. A razão seria...

— Sim. É ela — interrompo-a antes que Maria Júlia cite o nome dela.

Ela emudece por alguns segundos e pergunta:

— Por que não vai atrás dela? Você não irá conseguir cumprir essa promessa de ficar longe.

— Não. Você está enganada, eu estou disposto. — Torno a fitá-la. — Posso lhe perguntar
algo?

— Claro.

Embrenho as mãos nos cabelos ligeiramente e depois pergunto:

— No último mês, já deu para ter uma noção de como que é minha vida de perto, minha rotina
e riscos. Seja sincera e me responda: é muito irresponsável eu querer manter uma pessoa ao meu
lado?

— Como posso dizer ao meu chefe que ele é irresponsável?

— Por favor, desconsidere esse detalhe. Eu estou perguntando de amigo para uma amiga, se
assim posso chamar você.

— Claro.

Ela me encara com um olhar mais sério, e finalmente começa a responder:

— Não posso julgar se é ou não irresponsável, pois é uma situação complexa. No entanto,
falando como membro de sua equipe de segurança: eu acho que Camille estaria em constante perigo.
Não sabemos se a bala foi direcionada a ela ou a você. — Embora eu tivesse esperança que eu
ouviria algo diferente, isso já estava claro para mim. — Mas essa é sua decisão. E é ainda mais
difícil mandar nessas coisas, sentimentos influenciam muito na vida das pessoas. É provável que não
resistam mais dias sem se ver... Ela também o ama.

— Obrigado, Maria Júlia. Mas a decisão está tomada. — Endireito a coluna, ficando de
frente para ela. — Se depender de mim, ela estará livre de mim. Como você disse, eu a amo. —
Franzo os lábios antes de dizer: — Eu sou louco por ela. E é por isso que não posso correr esse
risco. Isso me sucumbiria.

— Você tem...

Maria Júlia hesita, mas logo em seguida diz claramente:

— Você tem certeza disso? E se ela viesse te procurar?

— Pouco provável que ela venha depois do bilhete que deixei...

— Mas se ela vir? — ela me interrompe, incisiva.

Mordo levemente o canto do lábio, pensando em algo que pudesse resumir o que realmente eu
faria.

— Direi a ela que não a amo mais.

— Se eu estivesse no lugar dela, não acreditaria nessas palavras.

— Por que não? — pergunto friamente.

— Porque nenhuma palavra conseguiria desmentir seus olhos quando fala nela, quem dirá
você ficar frente a frente à Camille e tentar a convencer dessas palavras.

— Alguma sugestão melhor? — Ergo uma sobrancelha.

Ela enfia as mãos nos bolsos e me indaga:

— Você quer mesmo minha ajuda com isso?

Emudeço momentaneamente, mas tão logo aquiesço.

— Confia em mim? — ela pergunta.

Assinto com um menear de cabeça em positivo.

— Então me corresponda.

Os olhos de Maria Júlia escurecem e ela vem em minha direção, cruzando o limite aceitável
entre nós. Ela toca minha boca com seus lábios, me deixando sem entender o que se passa. No
entanto, não a repilo. Só fico imóvel, esperando qualquer outra reação dela. Ela enfia uma de suas
mãos em meu cabelo e sussurra contra os meus lábios:

— Apenas me corresponda.

Minha mão cai sobre sua lombar, fazendo o que ela me pede. E apenas desperto do instante
quando escuto o barulho da porta de vidro se abrir lá atrás.

Afasto-me de Maria Júlia e olho para trás, capturando a imagem da garota de cabelos
castanhos saindo apressadamente do jardim.

— Merda! — praguejo, dando alguns passos para trás, a fim de alcançá-la antes que saia de
minha casa.

— Você vai estragar tudo — Maria Júlia avisa.

Com o peito ofegante, estanco os meus passos, tentando não agir por impulso, e olho para
trás, para onde Maria Júlia está.

Ela continua a dizer:

— Não era isso o que queria? — Ela faz uma pausa.

— Não posso deixá-la ir embora assim.

Ela pousa as mãos na cintura e diz racionalmente:

— Você tem duas opções: deixá-la ir sem risco de volta ou ir atrás dela e desistir da decisão
que tomou.

Dou um passo para trás, com a cabeça a mil. Eu quero correr atrás dela, mas minhas pernas
estão paralisadas. Eu não queria isso, porra, não tinha que ser desse jeito! Mas Maria Júlia tem
razão. Não tem outro jeito. Eu tenho que deixá-la ir para não ter o risco de perdê-la. É como se desde
o início eu estivesse ignorando o destino: nós estávamos condenados ao fim.
31 STELLA MACKENZIE
|

Camille

Desde que assinei contrato com Hortência Ortega, minha vida deu uma forte guinada e meus
dias mudaram drasticamente.

Viajei em meados de novembro para Paris, antes de viajar no fim do mês para Milão, não
sabendo falar uma palavra sequer em francês ou italiano. No entanto, mesmo assim me arrisquei, com
o inglês fraco que havia aprendido nos tempos de escola e reforçado assistindo séries americanas.

Fui recebida por um assistente de Hortência, cujo o nome é Pierre. Apesar do nome inglês,
Pierre é brasileiro e capixaba, e muito falante, por sinal. Pierre foi uma das poucas pessoas que me
acolheu ao chegar à Europa, já que eu me sentia como uma criança assustada em meio a tantas
informações.

Pierre me mostrou minhas acomodações em Paris: um charmoso apartamento que cheirava a


folhas secas de outono e localizava-se perto do Champ de Mars. Da sacada circundada por um
parapeito gradeado dava para ver parte da Torre Eiffel. Foi a primeira vez que a vi ao vivo, e
naquela noite estrelada ela parecia radiante com suas luzes fortes bruxuleando.

No dia seguinte, fui conhecer o ateliê da Ortega em Paris, que ficava em um bairro chamado
Le Marais. Para minha surpresa, já havia um salão de criação apenas para mim, o que me deixou em
estado de choque. Era tudo extraordinariamente bonito. A cidade, as flores, o apartamento que eu
estava, o ar romântico parisiense e aquele lugar só para mim. Pierre disse que na Itália, o ateliê da
Ortega conseguia ser ainda mais grandioso, me deixando ansiosa por Milão.

Logo mais, Pierre me levou para conhecer a escola em que poderia me matricular em cursos
isolados de moda, cumprindo a promessa que Hortência havia me feito, me deixando cada vez mais
animada. Eu tinha muito o que fazer por ali, muito mesmo. Talvez isso me fizesse esquecer um pouco
o passado e me concentrar no futuro. Apenas no futuro.
Paris, França

Um ano depois

Já não imagino minha vida sem Pierre. Pergunto-me como consegui viver uma vida inteira
sem ele. Sua companhia é extremamente viciante e quando percebi, já estava totalmente dependente
dele.

Pierre praticamente prepara o mundo para me receber. Tudo o que eu devo fazer é meu
trabalho. E o restante, Pierre resolve os problemas como ninguém. Logo depois das primeiras
semanas, nos tornamos muito amigos depois de uma noitada em Quartier Latin, o bairro dos pubs que
aconteciam as melhores loucuras de Paris. Eu já não estava mais me reconhecendo. Em uma dessas
noites, descobri que Pierre também gostava de homens. E na mesma noite, desabafei sobre minha
desilusão amorosa. Contei sobre Gabriel e como fui ingênua em acreditar que seus sentimentos eram
tão fortes quanto os meus. Pierre me abraçou e disse que estava tudo bem, que todo mundo já passou
por isso, e acrescentou que quando eu estivesse bem, ele me apresentaria os homens parisienses, que
eram ainda mais encantadores do que os italianos. Eu sorri, pensando que seria difícil pensar em
outra pessoa novamente, ou quase impossível. No entanto, eu estava completamente enganada.

Nas noitadas eu encontrei uma válvula de escape. Comecei a gostar de saborear os drinks
adocicados que Pierre me indicava e, aos poucos, quando dei por mim, comecei a retribuir as
investidas dos franceses galantes dos pubs de Quartier Latin. Até então, Manuela não me reconhecia
mais por chamadas de vídeo.

Apesar das noitadas calorosas, Pierre deixa claro que devo manter a disciplina, que os
prazeres momentâneos nunca devem atrapalhar de forma alguma o trabalho. Por isso nunca
festejamos em dias de semana, em que nos encontramos no ateliê, trabalhando arduamente em uma
coleção nova de primavera.

O resultado de minha coleção de vestidos de noivas não fez tanto sucesso como Hortência
esperava, e, segundo ela, isso se devia ao meu nome chocho, sem sal. Eis que tive de escolher um
nome para mim. Pierre sugeriu Tara Reynald, mas Hortência detestou. Sugeri Stella, e Hortência
recebeu bem essa opção, completando com Mackenzie ao final.

E foi assim que surgiu Stella Mackenzie.

Depois de dar meu sangue para os desfiles de primavera, conseguimos apresentar a coleção
nova na semana de moda em Paris, que assustadoramente explodiu nas colunas de moda de toda
Europa, levando a Ortega a alcançar o ranking das 50 marcas de mais sucesso de alta-costura. Claro,
Hortência se deleitou com tal notícia. Isso me rendeu algumas viagens para o País de Gales e
algumas entrevistas para rádios de toda a França.

A cada dia que passa, fico mais envolvida com a moda e internalizei a tal disciplina que
Pierre me ensinou. No entanto, sinto algo endurecer dentro de mim, como se eu estivesse ficando fria,
mas isso não me assusta, isso me faz crescer. Tudo o que me proponho a fazer é meticulosamente
calculado, aguçando meu senso de competição.

Eu tenho que ser assim. Eu já não sou mais a mesma.

Além do mais, durante esse tempo, tive que assumir outras responsabilidades no Brasil.
Donatella não passou no Exame Nacional para ingresso na faculdade, então me comprometi a pagar
as mensalidades do curso de Medicina dela. Desta forma, tornei-a minha dependente. Com o dinheiro
que ganho da Ortega e o sucesso da coleção, também consegui comprar uma casa melhor para minha
família — meu único ponto fraco que restava neste mundo.

Acordo com os estímulos matinais em meu corpo.

Abro os olhos preguiçosamente, dando de cara com o feixe de luz saindo entre as enormes
cortinas cinza. Inclino a cabeça para baixo e flagro os olhos sedutores de Joseph me encarando, com
o queixo enterrado em minha barriga. Lembro-me da noite anterior e me excito novamente com a
forma lasciva com que Joseph me pega nas mãos — um jogador de golfe que conheci um mês atrás.
Estamos saindo há algumas semanas e, de alguma forma, fiquei viciada no frescor de seu perfume.

— Bon Jour, Mademoiselle[ii] — ele diz com o sotaque francês carregado.

— Bon Jour, Mon cher[iii] — respondo, me empertigando entre os travesseiros, enquanto ele
toca com os lábios a pele de minha barriga, me causando cócegas em meu baixo ventre.

— Eu tenho uma coisa para você... — ele pronuncia em inglês.

— O quê, exatamente? — pergunto, curiosa.

Joseph pega algo ao nosso lado, uma pequena caixa preta que havia passado despercebida
por mim ao acordar. Ele a abre em minha frente, revelando uma linda aliança em prata, cravejada do
que parece ser diamantes. Olho para o homem de pele bronzeada e cabelos castanhos, gaguejando:

— Jo-Joseph, o que é isso?

Ele parece se satisfazer ao me ver gaguejar. Nunca havia ficado dessa forma em sua frente.
Ah, se ele me conhecesse há um ano, não ficaria tão surpreso ao me ver vacilar com as palavras.

— Calma, Stella. Eu não quero te pedir em casamento, se é isso que está pensando. — Ele
inspira fundo e completa: — Pelo menos, não ainda. Eu só quero que seja minha namorada. — Ele
pisca os olhos, respirando pausadamente. — Eu quero você ao meu lado. Não preciso de muito
tempo para perceber isso. Sei que não depende só de mim, por isso estou fazendo esse pedido agora.
E quero muito que não me rejeite. Por favor, não me rejeite.

Desde que cheguei em Paris, nunca me relacionei seriamente com alguém. E nunca cogitei que
isso aconteceria tão cedo, muito menos, com Joseph — um jogador de golfe famoso e respeitado
dentro e fora dos campos. Sua generosidade e conduta impecável diante da imprensa tornou um
simples jogador famoso em um símbolo de liderança e confiança ao redor do mundo.

Joseph está no auge, e confesso que não esperava que ele me fizesse essa proposta. Havia
tantas opções, modelos espetaculares atrás dele... Por que eu?

Apesar de estar surpresa, reorganizo meus pensamentos e aceito sua proposta. Porque, de
alguma forma, sei que isso me faz bem. Estou carente demais de afeto, sem ver a minha família
durante meses. Talvez ter alguém para amar feche a lacuna em meu peito, e talvez até me faça superar
alguns traumas que adquiri no passado, que estão adormecidos em meu peito.

Joseph abre um sorriso radiante, tirando a aliança em prata da caixa e deslizando para meu
anelar da mão direita. Seus olhos reluzentes sorriem para mim e em seguida ele serpenteia o corpo
sarado para cima do meu e cobre meus lábios com um beijo.

A partir do pedido, minha vida começa a mudar novamente. No entanto, essa mudança toma
outras proporções. Nunca pensei que viveria algo tão intimidante e assustador depois que foi
oficializado meu namoro com Joseph. Todos querem saber quem está por trás do nome Stella
Mackenzie, todos querem me conhecer.

Contudo, minha coleção passa do ranking das 50 mais vendidas da Europa para o ranking das
3 mais vendidas. Consolidando, desta maneira, a Ortega no mercado europeu da moda.

Este crescimento é tão absurdo, que mal conseguimos lidar com a demanda. E minha vida
pessoal ganha novamente um novo estilo, ensandecido, ao lado de Joseph. Somos clicados em todos
os lugares, seja durante os almoços beneficentes, no Havaí ou nas Ilhas Maldivas. Os tabloides
franceses nos adoram e, consequentemente, somos convidados para eventos importantes, como o
aniversário do príncipe de Gales — amigo íntimo de Joseph. O meu vestido usado no evento
repercutiu no mundo inteiro, levando muitas mulheres a copiarem o modelo prateado de fenda
generosa nas costas.

O meu número de seguidores nas redes sociais cresce em um ritmo descomunal, e chego a
ultrapassar os incríveis 70 milhões de seguidores de Joseph, começando a figurar na lista das
mulheres mais influentes de todo o Ocidente.

Minha vida mudou, no entanto, algo em mim mudou também. Eu já não sou a mesma pessoa,
já não me sinto mais como a velha Camille.

Seis meses depois do início do nosso namoro, Joseph e eu rompemos, como qualquer outro
casal de famosos. Motivos? O mesmo de sempre. Nossas agendas já não se conciliavam e o fim foi
inevitável.

Dois anos depois

Roma – Itália.

Fito os rostos dos patrocinadores do outro lado da passarela, que assistem atentamente ao
desfile, que está mais para um espetáculo ao ar livre. Eles estão com olhares do tipo: "valeu todo
dinheiro que investi nisso".
O desfile de alta-costura de outono está deslumbrante. A ideia de levar nossa passarela para
dentro de uns dos monumentos de Roma tem um toque especial.

Enquanto as harpas soam e a ópera delicada recende, as modelos descem pelos poucos
degraus entre as grossas colunas cor de creme. Enquanto isso, um filme se passa em minha cabeça.
Nos últimos três anos, dediquei todos os meus suspiros à Ortega, porém agora já não faz sentido.
Parecem poucos anos, mas para mim faz uma eternidade. Aliás, já não me reconheço como a menina
que deixou o Brasil em novembro daquele ano. É como ela tivesse sido enterrada.

Talvez, por isso e por mais coisas, me emociono mais que o normal neste desfile, porque eu
estou disposta a dizer adeus a essa fase de minha vida.

Olho para Pierre ao meu lado, e é como se nós conversássemos pelo olhar. Ele segura minha
mão, parecendo sentir também o que estou sentindo.

Depois esgueiro meu olhar para frente, do outro lado da passarela, onde a poderosa
Hortência Ortega está ao lado dos patrocinadores, e ligeiramente ergo a cabeça e torno a assistir ao
espetáculo. Ela ainda não sabe de minha decisão, no entanto, isso não se trata da vida dela. Trata-se
da minha. Exclusivamente da minha.
32 | CURITIBA

Camille

Dois dias depois


Dias atuais
Aeroporto Internacional de Curitiba

— Bagagens? — pergunto a Pierre, andando pela ponte telescópica em direção ao salão de


desembarque.

— Já acionei uma equipe para pegá-las — Pierre responde, andando apressadamente ao meu
lado, tentando acompanhar meu ritmo.

— Motorista?

Sinto-o recuar um pouco antes de dizer:

— Sua família dispensou. Seu pai disse que ele mesmo vem te buscar.

Desacelero os passos, desencaixando os óculos do rosto e dizendo seriamente:

— Tem muitas pessoas hoje?

Ele engole em seco.

— Claro, Mademoiselle. Estamos no Brasil! — ele diz, como se isso fosse óbvio. — O
saguão já deve estar lotado para te recepcionar.

Raciocino por um instante, tentando pensar em uma forma menos conturbada de rever minha
família.

— Diga ao meu pai que me espere na porta lateral do aeroporto.

— Mademoiselle, estão todos te esperando. Paparazzi, curiosos...

— No momento certo aparecerei em público, Pierre. Avise à gerência do aeroporto que sairei
pela lateral.
Pierre suspira fundo.

— Está bem, Mademoiselle. Está bem.

Eu torno a empurrar meus óculos Dior contra o rosto, enquanto Pierre volta a mexer
novamente no aparelho em suas mãos. De repente, ele solta um grito esganiçado.

Torno a fitá-lo, com uma sobrancelha arqueada, e disparo:

— O que foi?

— A-a-a-a-a... — ele começa a gaguejar, enquanto o celular em suas mãos vibra. — A Big
Boss[iv]... Quer dizer, nossa antiga chefe... — Ele engole em seco, apavorado, mas prossegue com as
palavras: — Hortência está ligando. E agora, o que eu faço?

Sem pensar duas vezes, levo meu dedo indicador para a tela do celular dele e rejeito a
chamada.

— Pronto! Resolvido. Agora, vamos, antes que descubram que não vamos sair pelo portão
principal.

Torno a caminhar, enquanto Pierre vem em meu encalço, com o tom de voz receoso:

— Mademoiselle, não acha melhor desistir dessa ideia de quebrar o contrato? Se bem
conheço, Hortência não deixará barato...

— Tem razão. Ela não deixará barato — concordo com a voz inexpressível. — Estou
disposta a pagar o valor absurdo da multa que ela estipulou no contrato em letras minúsculas.

Ele gagueja, tentando ainda me convencer:

— De-deveria ao me-menos ter consideração, Mademoiselle. Ela te deu oportunidades,


assim como ela me deu também.

Solto um sorriso fraco, dizendo:

— Eu tenho consideração, Pierre. Mas não sou boba. Se eu ganhei com os últimos anos,
Hortência ganhou dez vezes mais. Por que eu deveria ser fiel ao ponto de me reduzir a uma marca?

— Você irá perder muito dinheiro.

— Você sabe mais do que ninguém que as intenções de Hortência não foram boas ao requerer
fidelidade de dez anos e uma multa absurda. Ela sabia que eu tinha pouco conhecimento sobre o
assunto e se aproveitou.
— Você está mesmo disposta a pagar 100 milhões de libras? Você tem todo esse dinheiro?

— Já está agendada a transferência para hoje, sob supervisão do gerente do banco e sob a
observação de Roberto, o advogado que contratei no Brasil. — Confesso: — É praticamente tudo o
que consegui até hoje, mas pagarei. Eu consigo esse dinheiro de volta em um ano.

— Mademoiselle, você precisa de muito dinheiro para manter o padrão...

Inspiro fundo e digo a Pierre:

— Ainda há tempo para desistir de me acompanhar, meu amigo. Você pode voltar para a
Europa a qualquer momento...

— Não — ele diz, irredutível. Depois se derrete e me abraça. — Eu prometi que eu viria e
não irei voltar atrás. E o que seria de mim sem você, Mademoiselle?

Suspiro aliviada, respondendo:

— Eu quem pergunto: o que seria de mim sem você, Pierre?

Quando chegamos ao portão lateral do aeroporto, avisto a pequena Kombi amarela que meu
pai comprou no último verão.

Meu pai está ao lado de um homem, que o ajuda a colocar minhas bagagens no porta-malas.
Ele para completamente quando me vê. A última vez que nos vimos foi há um ano, quando eles foram
me visitar em Milão. Aproveitamos minha folga e viajamos para a França, realizando um dos sonhos
de meu pai, que era conhecer a Torre Eiffel.

No entanto, revê-lo em Curitiba parece ainda mais especial.

Papai seca uma lágrima que escorre do canto do olho esquerdo, escondendo sua
sensibilidade, o que não adianta de nada. Eu já sei que ele é manteiga derretida, então não há
problemas. Apresso mais os passos e o abraço fortemente, sentindo o cheiro do amaciante de
violetas que vem de sua camisa. Esse cheiro está gravado em minha memória. Algumas coisas não
mudam, apesar de ele parecer ter ganhado uns quilinhos e vinte novos fios de cabelos brancos.

Donatella mudou o corte de cabelo para um Chanel bem curto, e tia Lúcia está exatamente
igual ao que eu me lembrava.

Depois de abraçar Donaella e tia Lúcia, Pierre e eu seguimos com minha família e nos
hospedamos na casa que comprei para o meu pai, até acertarmos os últimos detalhes do apartamento
que aluguei no Batel.
Durante a noite sou surpreendida por um bolo de boas-vindas e a presença de Manuela, que
havia perdido alguns quilinhos e está ainda mais arisca do que eu recordo.

Ela oferece o bolo de chocolate a Pierre, e ele recusa sem muita cerimônia, dizendo que não
ingere glúten. Talvez seja por essa razão que os dois não tenham se dado bem desde o início, no
entanto, nesse momento, me divirto com isso. Eu estou tão feliz, que não dá para explicar em
palavras.

Nessa noite, me delicio de estar na companhia de minha família, antes de Pierre e eu


começarmos a pensar em construir minha carreira solo, sem a intervenção de Hortência.

Nós ainda temos muito o que fazer.


33 | PRESIDÊNCIA

Gabriel

A luz que passa entre os janelões de vidro esquenta deliciosamente meu rosto, embora o frio
do ar-condicionado deixe a sala da presidência mais fria. É uma segunda-feira ensolarada em
Curitiba, e apesar das pilhas de problemas em cima da mesa, me dobro em agradecimento.

Estou sentado atrás da mesa de vidro, no lugar imponente que minha mãe ocupou por muitos
anos.

Há três anos, desde que Tereza Átila reivindicou que Gael se preparasse para assumir a
presidência, tudo mudou. Gael imediatamente se esquivou, alegando não estar pronto, e Giovanna...
bem... era uma possibilidade quase remota, já que era pouco provável que ela abandonasse a carreira
consolidada que construiu para ficar atrás de mesas de reuniões. Isso levou nossa mãe a um estado de
desgosto profundo. Foi então que me ofereci para assumir.

Na época eu não me encontrava bem, bebia todos os dias e entrava em um estado de solidão,
com o peito dilacerado desde que ela se mudou para a Europa. Até dado momento depois de sua
partida, não mais tive notícias, e comecei a me autossabotar, em uma tentativa de aliviar minha culpa,
mesmo sabendo que eu tomara a melhor decisão.

Quando você está no fim do poço, você acha que não tem nada a perder. Eu não estava me
importando mais com nada, não me importava se eu morresse estupidamente por um atirador filho da
puta em frente de casa ou em qualquer outro lugar. Muito menos me importava com os motivos que
ele tinha para fazer isso — algo que sempre me perturbou.

Em um jantar de sexta-feira, me ofereci a minha mãe para assumir sua posição.

Lembro-me que no dia seus olhos ficaram endurecidos e sua boca muda. E, em seguida, ela
disse decididamente:

— Não.

Insisti, ciente do que eu queria, mas ela disse que apesar desse sempre ter sido um desejo
dela quando eu ainda era um garoto, ela nunca se perdoaria se algo acontecesse comigo ao sair
diariamente para ir à presidência. Naquela noite, ela estava decidida.
Mas eu não desistiria tão fácil.

No dia seguinte, me apresentei à empresa e assisti à reunião dos acionistas ao lado dela.
Apesar de ir contra sua vontade, sabia que minha mãe iria acabar cedendo quando visse que não era
tão perigoso como ela imaginava. E em nove meses de treinamento, minha mãe finalmente se
aposentou, depois de comandar por anos, com mãos de ferro, uma das empresas mais importantes do
ramo automobilístico no Brasil, sem presenciar nos últimos meses nenhum atentado contra minha
vida. E, curiosamente, essa tranquilidade se seguiu por mais dois anos.

Vejo a porta de carvalho em minha frente deslizar para frente e a mulher alta de cabelos
castanhos e olhos verdes adentrar, acompanhada de um delicioso aroma de café, que vem da bandeja
em suas mãos.

Hoje é o seu dia de folga.

Maria Júlia caminha em minha direção e abandona a bandeja em cima da mesa.

— Por acaso você tem lido minha mente? — Inspiro uma boa lufada do cheiro magnífico.

Ela me responde, se aproximando e virando minha cadeira em sua direção. Ela sobe
ligeiramente um pouco da barra de sua saia branca colada, abrindo as pernas torneadas e se
encaixando em meu colo, enquanto suas mãos enlaçam meu pescoço, ao passo que minhas mãos
resvalam para o seu bumbum. Ela geme antes de me beijar apaixonadamente.

— Boa tarde, meu amor.

— Boa tarde, meu bem — respondo contra os seus lábios.

Depois de criarmos uma amizade próxima por dois anos, Maria Júlia e eu assumimos um
relacionamento recentemente. Ela tem sido uma fonte de apoio nos últimos anos. Ninguém me entende
tão bem quanto ela, e tê-la ao meu lado diariamente contribuiu para que nos aproximássemos
fisicamente. Em um sábado normal, tive notícias de Camille pela primeira vez em anos. Vi sua foto
estampada em uma matéria da BBC, ao lado de um jogador de golfe. Ela estava deslumbrante em um
vestido prateado e os cabelos prendidos em uma trança. Ela estava bem, muito bem. Parecia mais
confiante e suas feições estavam mais maduras com aqueles lábios tingidos de vermelho. Ela tinha
seguido em frente e era para eu estar feliz por isso. No entanto, bebi todas naquele dia e nos restos
dos dias da semana também. Em um desses sábados, Maria Júlia bebeu comigo também, e nós
acabamos na cama, transando até o amanhecer.

E, desde então, vivemos um relacionamento monogâmico.


Ela joga a cabeça para trás, com um sorriso encantado.

— Vamos a Cascavel quarta-feira?

Olho para os papéis ao meu lado e ela faz o mesmo.

— Tenho que ficar aqui antes que as coisas com a Átila piorem — comento, relembrando-a
que a Átila passa por uma das piores crises desde que meus avós faleceram.

— Ainda sobre aquela reportagem?

— Sim. — Beijo carinhosamente seu ombro direito. — Mas creio que conseguiremos
contornar a situação neste próximo mês. Aliás, o que você vai fazer em Cascavel?

Os olhos de Maria Júlia escurecem para um tom de verde mais fechado, e ela responde:

— Visitar uma tia distante. Ela é prima do meu pai. Lembro-me dela nos visitando quando eu
era criança. Ela entrou em contato comigo faz alguns dias e hoje fiquei pensando que poderia
aproveitar esses dias de minha folga para visitá-la...

— Júlia, você sabe que tem todos os dias de folga...

— Já conversamos sobre isso. É um prazer trabalhar para você — ela replica


automaticamente, com satisfação, mesmo que eu ache estranho uma mulher com quem me relaciono
ser minha funcionária tão direta.

— Eu pensei que você poderia me acompanhar. Vou morrer de saudades.

— Eu também.

Ela me beija outra vez, dizendo:

— Eu te amo, Gabriel Átila.

De repente, a porta ao nosso lado se abre e Maria Júlia pula rapidamente de meu colo,
alisando com as mãos a saia abarrotada.

Suspiro aliviado quando vejo que se trata de Giovanna.

— Olá, maninho... — Ela olha para Maria Júlia e completa: — Olá!

Não sei a razão ao certo, mas sinto certa implicância de minha irmã com Maria Júlia, o que
me deixa incomodado, pois ela nem ao menos tem a delicadeza de disfarçar.

— O que houve, Giovanna? Conseguiu alguém?


Giovanna está na cidade desde o começo do ano, quando o escândalo envolvendo o nome da
Átila explodiu em todos os noticiários Sul-Americanos. Isso porque cinco meses atrás, alguns
automóveis de nossos clientes, que compraram os carros fabricados pela Átila, vieram apresentando
problemas na direção dos veículos, ocasionando prejuízos e acidentes pelo Brasil. Como presidente,
resolvi tirar todos os carros fabricados recentemente de circulação, indenizando todos aqueles que
tiveram qualquer dano e devolvendo o dinheiro pago pelos veículos.

O problema apenas se agravou quando um programa de televisão de expressiva audiência


resolveu tomar partido da situação, ajudando a levar nosso nome a uma fama irreversível, mesmo
que tudo estivesse sendo resolvido para que ninguém saísse lesado com o erro de nossa fábrica.
Enquanto isso, nossos engenheiros encontraram falhas mecânicas em carros resgatados, mas nenhum
de nossos funcionários soube ainda a razão de tal erro banal passar despercebido.

A situação fez com que Giovanna finalmente se encontrasse pela primeira vez na empresa,
encarregada de cumprir uma missão: encontrar alguém de confiança para que possa dar voz à Átila
em nossa primeira propaganda depois de todos terem sido indenizados. Eu quero alguém respeitado,
de conduta ilibada e famoso. A influência de Giovanna pode nos ajudar a encontrar alguém neste
momento.

— Ainda não. Mas trouxe uma lista com algumas opções — ela diz, olhando Maria Júlia de
soslaio e andando em direção às cadeiras à minha frente. — Caio Barcellos...

— Não. — Descarto a possibilidade imediatamente. — Próximo!

— Roberta Smith.

— Quem é?

— Uma atriz famosa da rede... — ela começa a dizer, como se aquilo fosse óbvio.

— Próximo nome!

Ela suspira, balançando a caneta contra o papel.

— Diego Karmal.

Inspiro fundo, pensando que nenhuma dessas opções são suficientemente boas.

— Você falou com a Mariana? — Mariana Vasconcelos é alguém que tinha em mente desde o
início.

— A equipe dela visualizou minha mensagem e sequer me respondeu.


— Você disse que pagamos bem?

— Se bem a conheço, não aceitaria nem por um bilhão.

Impulsiono minha cadeira para trás, suspirando fundo.

— Droga! Ninguém respeitável vai querer representar a Átila neste momento.

Giovanna dá de ombros e me dá um conselho:

— Olha só, Gabriel, não esquenta muito a cabeça com isso. Qualquer coisa, mamãe vende a
empresa e está tudo bem.

Giovanna fala de forma simples, sem considerar que Tereza Átila afundaria junto com essa
empresa. O pior disso tudo é que está acontecendo quando eu assumi seu lugar. Apesar de eu dizer à
minha mãe que está tudo bem, que dou conta, e fazê-la prometer que não se envolverá com isso, ela
deve estar na retaguarda, dando um jeito de saber de tudo.

— E se contratarmos uma personalidade de outro país? — Maria Júlia sugere ao meu lado.

— Contratarmos? — Giovanna indaga, com uma sobrancelha arqueada.

— É uma boa ideia — digo, fuzilando Giovanna com os olhos.

Giovanna abaixa o olhar para o celular em sua outra mão, como se já estivesse farta de nossa
conversa.

— Quem você sugere, Júlia?

— Tem uma cantora argentina... — Maria Júlia é interrompida por Giovanna, que parece ver
algo na tela do celular.

— Ah, meu Deus, Gabriel! Você sabe quem voltou para o Brasil? — Giovanna me fita com os
olhos arregalados e ainda com o celular ligado na mão.

Antes que eu diga qualquer coisa, Giovanna se levanta bruscamente e pensa alto:

— Eu já sei! — Ela bate com a mão no tampo da mesa de ébano e promete, olhando nos
fundos dos meus olhos: — Eu vou conseguir uma pessoa respeitável e, ainda por cima, brasileira.
Vai preparando a equipe de marketing, que a propaganda será grande, ou eu não me chamo Giovanna
Átila Cordeiro!

Ela dá um meio-sorriso e sai confiante pela porta à nossa frente.

— Quem será que ela está pensando, Gabriel? — Maria Júlia pergunta, ainda olhando para a
porta.

— Não faço a mínima ideia — respondo, tornando a assinar as rescisões de contratos.

Apesar de minha irmã ser difícil às vezes, uma coisa eu tenho certeza: Giovanna sempre tem
ótimas ideias. Se ela disse que conseguirá alguém aceitável, ela vai conseguir esse tal alguém.
35 FLORES E PROPOSTAS
|

Camille

— Quem era, Pierre? — Caminho apenas de roupão para a sala de meu novo apartamento no
Batel.

Acabei optando por uma cobertura mobiliada de cômodos espaçosos e claros, e uma vista
privilegiada da cidade lá fora. Nestes últimos anos, descobri que não tenho um pingo de paciência
para escolher móveis e decoração de casa, e por mais que me esforçasse, prefiro que tudo esteja
pronto e harmonizado, no ponto de morar.

— Flores! Mais flores. Essas são da esposa do governador — Pierre diz, vindo em minha
direção enquanto um menino de cabelos cacheados e farda verde aparece atrás dele com um jarro
simpático de orquídeas. — O que vamos fazer com todos esses arranjos, Milady?

Olho em volta da sala lotada dos mais diversos tipos requintados de flores e penso
rapidamente:

— Leve-as para o terraço lá em cima e providencie um paisagista, Pierre.

— Sim, senhora. — Pierre pega um arranjo de violetas do chão e chama o garoto que
segurava as orquídeas.

— Não, não. Esperem! — digo em uma oitava mais alta, abrindo os braços. Pierre e o
entregador me olham confusos. — Antes eu vou querer uma foto para mostrar aos meus seguidores.

— Ai, claro! — Pierre se anima, abandonando o buquê em cima do sofá de couro e tirando o
seu celular do bolso. Ele mira a câmera em mim e me instrui: — Mademoiselle... me conquiste!

Me posiciono entre os buquês e seguro um arranjo de rosas vermelhas em meus braços,


deixando o roupão cair um pouco para o ombro direito, enquanto abro o meu melhor sorriso.

— Outra! Agora sentada no sofá.

Faço o que Pierre me diz, me sentando no sofá ao lado e abrindo outro sorriso.

— Outra. Só que dessa vez eu quero um olhar sexy, como de uma leoa. Uma felina pronta
para a caça.
— Assim? — Estreito os olhos, compenetrando as lentes do celular de Pierre.

Pierre faz alguns cliques, comentando:

— Dios mio! Deslumbrante, Milady! Arrebatadora!

Brinco, mostrando meus dentes caninos, e Pierre faz o mesmo por trás da câmera, me fazendo
cair na risada.

— Chega, Pi. Agora eu quero ver as fotos — falo entre risos.

— Com licença — o menino ao lado se pronuncia, ainda com o vaso de orquídeas nos
braços. — Eu posso tirar uma foto com a senhora também? É que mainha adora ver essas revistas de
famosos e quando eu disse que viria, pediu para eu tentar uma foto.

— Claro que sim. Venha aqui! — Bato com a mão no lugar vago ao meu lado. — Qual o nome
de sua mãe?

— Marianalva.

O menino deixa as flores no chão e se apressa para entregar seu smartphone a Pierre e se
sentar ao meu lado.

— Digam X! — Pierre fricciona a língua no céu da boca ao capturar a foto.

DING DONG!

O som da campainha tocando recende por todo o apartamento, enquanto o menino ao meu
lado se levanta rapidamente e pega de volta o celular das mãos de Pierre, agradecendo.

— Quem é? — pergunto a Pierre, confusa.

— Oh! Quase estava me esquecendo! — Pierre leva as mãos às têmporas. — Deve ser nossa
nova equipe de marketing e imprensa. Eu já tinha avisado na portaria mais cedo e já estava
esquecendo que eles viriam hoje. E agora? — ele diz, olhando para as flores por todos os lados.

— Deixe as flores para depois. Receba-os, que eu vou me vestir.

— Entendido, Milady. — Caminho em direção ao meu quarto e Pierre libera o menino da


floricultura enquanto atende o pessoal.

Me visto no quarto, observando pela janela a cidade lá fora. Ah, como é bom estar de volta a
Curitiba! Mesmo que não seja a cidade que nasci, eu me sinto em casa. É reconfortante ter essa
sensação de saber que minha família está por perto, de respirar ares brasileiros e de poder sentir o
calor das pessoas, que não tem em nenhum outro lugar do mundo. Eu sinto que poderei fazer muito
aqui.

Depois de colocar um macacão longo jeans e uma blusa social branca por baixo e um mix de
colares, retorno à sala em que três rostos desconhecidos me esperam. Quer dizer, quatro rostos, e um
deles conheço bem.

— Manu? O que está fazendo aqui?

Manuela, que está um pouco mais reclusa, dá um passo à frente, dizendo:

— Amiga, seu pai disse que você estava em seu apartamento novo, então vim dar uma
conferida — ela fala, olhando para os lados, admirada.

Pierre sussurra, cruzando os braços contra o peito:

— Que garota inconveniente! Isso é lá horário para visitar a casa das pessoas!

Pigarreio e explico à Manuela:

— Vou entrar em uma reunião agora, Manu. Não tenho como mostrar a você o apartamento
neste momento...

— Eu prometo que vou ficar quietinha aqui. Vocês nem vão lembrar da minha presença.

— Tudo bem, Manu. Se você quiser ficar, fique à vontade. — Não vejo problema.

— Obrigada, amiga! — ela responde baixinho.

Pierre limpa a garganta, impaciente, olhando para os senhores em minha frente. Duas
mulheres maduras de cabelos castanho-escuros e um homem de cabelos marrons cacheados.

— Mademoiselle, eu gostaria de apresentar Vitor Calheiros, administrador há quinze anos,


com muita experiência no mercado; Mariana Prado, analista em finanças; e Ariane Moreira,
consultora de marketing digital. Todos eles são maravilhosos e têm currículos impecáveis, e com
certeza irão compor bem nossa equipe de imprensa!

As pessoas assentam gentilmente para mim, enquanto Pierre conclui:

— E, senhores, vos apresento a rainha do meu coração e dona de minha vida — rolo os olhos
nas órbitas, sorrindo dos exageros de Pierre —, a maior estilista do Brasil e do mundo, Stella
Mackenzie.

Manuela bate palmas animadamente e Pierre a fuzila com o olhar.


— Que foi? Eu já acreditava nela antes mesmo de Camille ter esse nome gringo aí.

— Você não disse que ia ficar quietinha? — Pierre pergunta entredentes.

Ignoro a discussão sem sentido entre os dois e vou direto ao ponto:

— Senhores, me acompanhem até a sala de jantar. Lá poderemos conversar melhor à mesa —


digo, caminhando para o outro lado da sala, enquanto eles se levantam e me seguem.

Depois de estarmos todos sentados à mesa, inclusive Pierre e Manuela, a séria mulher de
óculos vermelhos começa a dizer em nome de todos:

— É um prazer estar com a senhorita neste momento. Confesso que estava ansiosa por isso.
Eu sou uma admiradora do trabalho que a senhorita tem feito, tanto que pedi demissão em meu último
emprego para estar aqui agora.

— Nossa! — sopro, impressionada em saber dessa responsabilidade.

— Pierre tem falado conosco nestes últimos dias, nos passando as informações sobre você e
sobre seus projetos futuros, inclusive o primeiro desfile de sua carreira solo no Corcovado, no
próximo mês, no Rio de Janeiro. Está tudo correto até aqui?

Inspiro fundo e assinto, tendo uma boa primeira impressão dessas pessoas, e digo:

— A coleção já está toda pronta para ser lançada. Eu, na verdade, já estou pensando na
segunda coleção.

Eles se entreolham, e Mariana retoma:

— Stella, não há a possibilidade de fazer esse desfile em outro local? — Percebo o receio
em seu tom de voz. — Trata-se de uma locação muito cara, que exige uma infraestrutura mais cara
ainda para ser realizado o desfile, e pelo o balanço de seu patrimônio que Pierre enviou para nós
ontem, não será muito interessante você fazer esse desfile agora.

Sorrio fracamente, dizendo:

— Desculpe-me. É que eu acabei de pagar uma multa de valor exorbitante.

— Pierre nos contou. A questão é que você pode... falir de vez. Apesar de você ter uma
carreira promissora e que já colhe bons frutos, é muito arriscado.

— Eu posso fazer alguns trabalhos de campanha publicitária para poder pagar o desfile ou
até mesmo conseguir patrocinadores.
— Para quando quer esse desfile mesmo? — Mariana pergunta.

— Próximo mês — afirmo. Sendo aprovado ou não, eu farei esse desfile. Eu estou decidida.
Nem que eu tenha que falir de vez, mas eu vou realizá-lo! É um sonho pessoal, e estou decidida em
torná-lo real.

— Você acha que consegue algum patrocinador ou um trabalho de marketing que te


proporcione mais de 30 milhões? — Mariana provoca um silêncio com sua pergunta. Eu sei que não.
Eu sou famosa, mas não sou alguém como o Michael Jackson. Ela inspira fundo, sendo sincera: —
Confie em mim, não há como se envolver em mais de sete campanhas neste curto período de tempo.
Isso até desgastará sua imagem perante o público. Sem contar com o fato de nenhuma empresa no
Brasil pagar 30 milhões de reais para fazer apenas uma campanha. Isso é utopia. O máximo que você
conseguirá é a metade desse valor. A não ser você queira fazer de qualquer jeito... — Essa última
opção não existe mais em meu dicionário.

Apesar de ser como um banho de água fria, no fundo sei que Mariana está me mostrando a
realidade.

O homem de cabelos marrons ao lado de Mariana parece pensar alto:

— E se eu disser que tem sim uma empresa que paga até mais do que esse valor à Stella?

— Como? — indaga Mariana, ao lado dele.

Vitor ajeita a postura, nos explicando:

— Eu recebi uma ligação de uma velha amiga depois que anunciei em minha conta do
Instagram que estarei integrando a equipe da Stella — Vitor diz, agora olhando para mim. — Ela
parece desesperada, procurando um meio para entrar em contato, mas como você ainda está
publicamente vinculada à Ortega, ela não encontrou um jeito. Enfim, ela é uma modelo e a família
dela é muito conhecida aqui em Curitiba. A empresa da mãe dela vem passando por algumas crises
com a imprensa e com o público consumidor devido a uma falha mecânica que a própria fábrica
deles deixou passar.

— Quanto eles pagam? — Mariana pergunta, parecendo ser mais objetiva.

— Eu até sei qual é a fábrica — Manuela comenta baixinho, com o tom de voz opaco.

Vitor responde:

— Se você topar fazer a primeira campanha deles pós-escândalo, eles pagam 60 milhões.
— 60 milhões? — Pierre repete ao meu lado, boquiaberto. Depois do impacto, Pierre
exclama: — Maravilha! — Ele bate palmas alegremente.

— Eu aceito! — digo prontamente.

— Camille... — Manu, receosa, começa a dizer alguma coisa, ao mesmo tempo que pergunto
a Vitor:

— Qual o nome da empresa?

Vitor rapidamente liga seu iPad, buscando por algo na internet, e depois me oferece o
aparelho para eu própria analisar.

Aceito o aparelho das mãos de Vitor e olho curiosamente para a tela inicial de um site
empresarial. Quando vejo o nome estampado em um design imponente de cor prata, algo adormecido
dentro de mim parece vir à tona. Não tão forte como seria há alguns anos, quando saí do país, mas é
como um sopro que traz sensações diferentes, as quais não sei explicar.

Aprumo-me na cadeira, deslizando o olhar para Manuela. Ela sabe. Claro que sabe, ela está
aqui todo esse tempo. Ela sabe de muita coisa, mas por eu optar não querer escutar, não soube nada
relacionado a ele durante esses últimos anos, muito menos sobre a empresa de sua família.

Devolvo o iPad a Vitor, que pergunta:

— Eu posso confirmar com ela?

Emudeço, tentando organizar os pensamentos.

O celular de Vitor começa a tocar de repente, e ele diz antes de atender:

— Olha aí. É ela... Não falei que estava desesperada por Stella? — Ele sorri, aceitando a
chamada. — Alô, Giovanna... Eu estou com ela neste momento... Ela se interessou, mas ainda estou
esperando uma resposta... Endereço... — Vitor desgruda o celular da orelha e pergunta: — Ela disse
que quer conversar pessoalmente com você. Posso passar o endereço daqui? Ela quer vir neste
instante — Vitor me pergunta.

— Claro. Passe rápido — Pierre se adianta, visivelmente feliz.

— Não. Não pode — Manuela nega.

Penso por mais um instante e me decido rapidamente. Digo a Vitor firmemente:

— Pode sim. Diga a ela que estou a esperando.


Manu me olha como se não estivesse entendendo nada, enquanto me levanto e caminho em
direção à cozinha, para tomar um copo com água. De repente, além de sentir as sensações de anos
atrás, me recordo de alguns momentos em que tive contato com ele e sua família. Embora me
encontrasse de frente ao passado, já não sou a mesma pessoa. Eu já não sou tão emocional. 60
milhões me parece ser um ótimo negócio, e é por esse motivo que decido dar uma chance de analisar
essa proposta.

Não demora muito para eu retornar à reunião na sala de jantar do meu apartamento e ver cara
de interrogação de Manuela. Tão logo a campainha toca, Pierre recebe minha nova visita.

A loira alta e exuberante adentra a sala de reunião em um elegante vestido amarelo. Como em
minhas lembranças, Giovanna ainda detém uma autenticidade em sua postura e um olhar gentil. Ela
me procura entre as pessoas ali, e quando seus familiares olhos azuis cruzam com os meus, digo antes
que ela se pronuncie:

— Quanto tempo, Giovanna!

Ela continua me estudando com seu olhar curioso e responde com um meio-sorriso nos
lábios:

— Faz algum tempo.

— Ah, eu conheço essa moça! Ela desfilou para a Louis Vuitton na última temporada —
Pierre pensa alto, lembrando do desfile em que talvez Giovanna tivesse trabalhado. Aliás, me admira
muito a gente apenas ter se reencontrado em Curitiba. No entanto, o mundo da moda na Europa é
vasto, talvez isso explique nossos prováveis desencontros. — Vocês se conhecem? — Pierre
pergunta, surpreso.

— Somos quase íntimas — ela responde.

Giovanna caminha para o centro da sala de estar e se senta na cadeira vaga na outra cabeceira
da mesa. Ela desliza o olhar para Manuela, e comenta brincalhona:

— Olá, garota da mesa.

— Garota da mesa? — Manuela indaga, e em seguida suas bochechas coram violentamente,


imagino eu que lembrando daquele fatídico fim de churrasco em que ela bebeu todas.

— Eu pensei que ninguém se lembrava mais disso — Manuela choraminga.

— Fica tranquila, eu realmente não me lembrava disso. Só lembro, pois Gael faz questão de
lembrar, de puxar essa história em todas as festas de fim de ano, quando alguém está bebendo além
da conta.

Manuela arregala os olhos e pragueja:

— Que filho da mãe!

— Meu irmão não é uma pessoa madura mesmo, sei disso. Mas não vim falar de Gael... —
Ela torna a me fitar, dizendo: — Vim tratar de negócios com a senhorita Stella Mackenzie. — A loira
pigarreia e começa a dizer: — Se estou aqui, Vitor já deve ter adiantado a proposta. A empresa de
minha mãe entrou em uma situação complicada nos últimos meses...

— Por que eu? — interrompo a conversa fiada, indo direto ao ponto.

Ela morde ligeiramente o canto do lábio inferior, se remexendo de leve na cadeira e pensando
rápido em uma resposta aceitável.

— Porque sei que se tornou alguém de credibilidade nesses últimos anos.

— Somente por isso?

Ela olha para os lados e aquiesce com um menear de cabeça.

Depois de anos, ainda consigo simpatizar com Giovanna. Ela tem leveza no olhar e firmeza
nas palavras, mas ainda falta mais sinceridade.

— Ou talvez porque ninguém queira representá-los. Afinal, ninguém quer se envolver nos
problemas dos outros...

Ela aperta os lábios por um instante e depois solta o ar.

— Está certa. Eu estou desesperada. E você é minha única esperança de salvar a empresa de
minha mãe antes que tudo comece a ruir — ela confessa em um único suspiro.

Analiso suas palavras, tamborilando meus dedos em cima da mesa. Penso alto:

— Engraçado! A empresa é de sua mãe, mas por que é você que está aqui? — Lembro-me do
jeito difícil de Tereza Átila.

— Ela já não trabalha mais. Minha mãe se aposentou.

— E você assumiu o lugar dela?

Giovanna solta uma risada fraca.

— O que você acha? — Ela arqueia uma sobrancelha.


Penso um pouco.

— Deve ter sido difícil Gael ter que assumir responsabilidades — concluo.

Dessa vez ela sorri com um pouco mais de força.

— Não. Gael não assumiu o lugar de minha mãe. Ela até tentou, muito, por sinal. — Ela faz
uma pausa dramática, olhando para o vidro da mesa. — Quem assumiu a presidência da Átila foi
Gabriel.

Confesso que essa notícia me pega de surpresa. Não sei por qual motivo, mas a mera menção
de seu nome ainda causa efeito em mim. Mas como? Ele está gerindo uma empresa de casa? Será
possível?

— Ele sabe que você está aqui? — pergunto, afastando as dúvidas de minha mente.

As palavras dela ficam em suspenso. Giovanna desvia o olhar momentaneamente para o lado,
e eu tenho minha resposta.

— Ele está tão desesperado quanto eu, ou mais — diz ela por fim. Não consigo imaginá-lo
desesperado, ele sempre me pareceu muito tranquilo, mas consigo imaginá-lo aflito.

— Por que você acha que vou aceitar uma proposta para representar a empresa de vocês?
Afinal, apesar da alta quantia, você sabe que ainda assim não é uma boa proposta para muitos.

Ela parece pensar em uma resposta convincente, mas acaba dizendo:

— Eu não sei. Eu realmente não sei. Mas quando eu vi sua foto na internet chegando em
Curitiba, pensei que de alguma forma você seria alguém que pudesse nos salvar... Talvez por causa
do relacionamento que teve com Gabriel no passado...

— Esqueça. Meu relacionamento com Gabriel não irá ajudar a me convencer a aceitar. — Ela
murcha os ombros. — Mas, de alguma forma, a proposta me interessa, e farei a campanha.

Observo Giovanna soltar um suspiro aliviado, como se estivesse preso há algum tempo
dentro dela. Ela pisca os olhos, tentando disfarçar a surpresa com minhas palavras.

— Não sei como agradecer. — Ela gesticula com as mãos.

— Não agradeça, isso é um negócio — respondo.

Em seguida ela me oferece a mão e eu a aperto, selando um acordo antes do contrato.

— Você mudou, Camille — ela pontua, ainda com os olhos fixos em mim, e reforça em
italiano: — Di sicuro sei cambiato[v].

— Stella. Por favor, me chame de Stella — digo por fim.


35 | DECOLAGEM

Gabriel

— Eu acho que já está na hora de me contar quem é essa tal celebridade que você arranjou,
Giovanna — resmungo, impaciente, debaixo do atípico sol escaldante em Curitiba, em frente à
aeronave particular da Átila, com um grupo de nossos profissionais ao nosso lado.

Esperamos por Gael, que está atrasado, como de costume, e também pela mulher teoricamente
famosa que Giovanna inventou de me guardar segredo sobre sua identidade até sua chegada. E, pior
ainda, Giovanna tinha me convencido a autorizar que toda a equipe de marketing organizasse uma
propaganda relâmpago no meio da Floresta Amazônica com essa tal celebridade, que nem mesmo sei
o nome. Segundo ela, tínhamos de fazer aquilo o mais rápido possível, antes que as coisas se
tornassem irreversíveis para a Átila. Com seus argumentos, Giovanna me convenceu.

Apesar de eu tentar manter a calma, todos esses meses de estresse depois do escândalo
acabaram me envolvendo em uma atmosfera de irritação. Eu fico puto quando as coisas dão errado e,
ultimamente, tudo tem dado errado na empresa.

— Calma, Gabi. Confia em mim! Eu sei o que estou fazendo.

— Se eu achar que ela não é boa o suficiente, vou ter que dispensá-la, Giovanna. Isso não
será muito agradável.

— Certo. Tenho certeza de que você não vai precisar fazer isso.

A confiança dela me deixa ainda mais curioso para saber quem ela havia convencido a fazer
nossa campanha, pois Giovanna normalmente sabe o que está fazendo. Espero que ela não me
decepcione agora.

— Olha lá! Eu acho que são eles chegando — Giovanna fala animadamente, olhando para a
estrada lateral, que beira a pista de decolagem.

Avisto uma Ranger Rover branca se aproximando. Estêvão aparece logo à frente, quando o
carro estaciona ao lado de um dos nossos.

Dou quatro passos à frente, a fim de enxergar melhor quem sairá do carro, ajeitando os óculos
escuros contra o rosto.
Vejo um homem franzino sair pela porta traseira, usando uma calça justa de couro e camisa de
estampa de onça. Quando me preparo para olhar para Giovanna atrás de mim, vejo que ele ajuda
mais alguém a sair do carro.

Um par de saltos fincam no chão de concreto, revelando as pernas magras e torneadas de uma
mulher que usa uma saia acinturada preta e um blazer da mesma cor por cima de uma blusa pérola de
seda. Os fios soltos de seus cabelos emolduram estrategicamente o seu rosto, uma boa parte coberto
pelo óculos escuros aviador.

O brilho do sol contra o chão ofusca meus olhos um ou dois segundos.

Depois, tudo acontece em câmera lenta, como se minha mente se negasse a reconhecer quem
está a alguns metros de distância. Quando a mulher começa a andar em minha direção ao lado do
homem franzino e de cabelos espetados, minha mente tão logo processa sua imagem. Sinto meu pomo
de adão subir e descer quando resvalo meus olhos para aqueles lábios, como se a adrenalina que
pensei que nunca mais sentiria pudesse me acertar em cheio agora. É impossível.

No entanto, é ela. Eu sei que é ela. Descomunalmente linda, desfilando em minha direção,
enquanto o mundo para ao redor.

Quando ela chega perto, próxima o suficiente para que eu possa ver sua feição inexpressível,
ela passa por mim, seguindo em direção à Giovanna e o pessoal lá atrás, ignorando minha presença.

Pouso as mãos nos quadris, olhando momentaneamente para o chão, e depois olho para trás,
onde ela para em frente à Giovanna. Viro-me e escuto a voz feminina firme perguntar:

— Onde está o contrato?

Giovanna responde, levantando uma pasta em sua mão:

— Aqui, mas antes meu irmão quer falar com você.

Aperto os olhos, amaldiçoando Giovanna mentalmente por ter armado isso sem que eu
soubesse. Ela ainda pigarreia e ironiza:

— Ele quer saber se o contrato valerá a pena.

Camille tira os óculos do rosto e pela primeira vez vejo seus olhos me fitarem, falando sem
um pingo de emoção em seu tom de voz:

— Pensei que isso já estava resolvido.

— O que você pensa que está fazendo, Giovanna? — resmungo, impaciente.


— Tentando salvar a empresa de nossa mãe. Eu acho que você já deve saber quem sua ex-
namorada se tornou nos últimos anos...

— Por favor — Camille exclama, incomodada com a última fala de Giovanna.

— Desculpe-me, Stella. — Giovanna se retrata rapidamente e torna a se direcionar a mim,


mais incisiva: — Espero que não cometa a burrada de deixar essa chance passar.

O fato dela estar aqui como alguém que pode salvar nossa empresa não me incomoda, mas
sim o fato de eu ter sido pego de surpresa.

— Você poderia ter me contado sobre isso antes — digo à Giovanna, com a voz mais densa
do que o normal.

— Desculpa, eu realmente não tenho tempo para essa discussão sem sentido — Camille
pronuncia, com o timbre de voz que ainda me afeta.

— Dê os papéis a ela, Giovanna. — Dou a ordem e olho para a mulher diante de mim. —
Iremos fechar com Camille.

Giovanna faz uma careta, como se eu tivesse dito algo de errado, e sussurra com cuidado:

— Stella. Chame Camille de Stella, Gabriel.

Não ligo muito para o que minha irmã diz e apenas pergunto:

— Você trouxe bagagens?

Ela se vira para pegar a pasta que Giovanna lhe oferece, me respondendo friamente:

— Estão no porta-malas.

Estudo seu jeito despreocupado, estranhando a frieza em seus movimentos. Ela não é mais a
mesma pessoa. Não sei se ela finge, mas se finge, deve ter aprendido a fazer isso muito bem. Não tem
sequer resquícios de emoção em sua voz, como se aquele tempo não tivesse existido.

Mando alguns de meus homens buscarem as malas no automóvel em que ela chegou, e depois
de Camille assinar os papéis, nos direcionamos ao interior da aeronave, acompanhados de nossa
equipe e de sete de meus homens.

Sento duas poltronas atrás da dela, na fileira oposta, quando uma comissária de bordo
caminha pelo corredor até a cabine do piloto. Giovanna resmunga algo ao meu lado, com o celular
em mãos.
— Onde será que essa criatura está? — Giovanna reclama, impaciente, se referindo a Gael,
que até o presente momento não deu as caras.

— Ele não está atendendo? — pergunto, sem tirar os olhos da mulher quase desconhecida
logo à frente.

Deslizo o olhar para suas pernas cruzadas e sua postura relaxada ao lado de seu funcionário.
Flagro um sorriso dela quando Giovanna me responde:

— O celular dele só dá desligado.

Desvio o olhar para minha irmã e digo a um de meus seguranças na poltrona atrás:

— Diego, autorize a decolagem.

— Sim, senhor. — Ouço o homem anuir.

O homem de terno preto se direciona à cabine do piloto, enquanto assisto Estêvão adentrar a
cabine e sentar na poltrona ao lado dela. Apuro os ouvidos quando ele diz respeitosamente:

— É um prazer revê-la, senhorita.

— Igualmente, Estêvão.

Presencio o que raramente acontece: um meio-sorriso engessado de Estêvão. Tão logo, a


comissária de bordo faz suas instruções e depois o avião começa a taxiar na pista de decolagem.

Quando a aeronave aumenta a velocidade para mais de 30 km por hora, Giovanna cutuca meu
braço com uma de suas unhas pontudas.

— Olha lá! Nosso irmãozinho. Que fofo! — Ela sinaliza com os olhos para a janela do avião
e avisto o Porsche prata de Gael correndo ao lado do avião. Consigo enxergá-lo dentro do carro,
pedindo para parar, com uma de suas mãos balançando dramaticamente. — Que vexame! Nem lavou
o rosto. Aposto que passou a noite em uma casa de show.

Diego volta da cabine do piloto e me pergunta:

— Senhor, o piloto Fernandes disse que ainda há tempo de parar para Gael.

Ergo o olhar para Diego e respondo:

— Diga a Fernandes que prossiga.

Ele assente com um menear de cabeça, dizendo:


— Sim, senhor.

Em menos de um minuto, sinto a aeronave alçar voo, nos elevando ao céu e deixando Gael
para trás. Nestes momentos, consigo compreender nossa mãe. O trabalho foi feito para ser levado a
sério, se você não consegue amadurecer essa ideia, não merece que o restante olhe para trás por
você.
36 | AMAZONAS

Camille

Passamos por Manaus depois de longas horas consecutivas escutando as músicas de Tiziano
Ferro pelos fones de ouvido. Entre uma música e outra, ouço Pierre tecer elogios sobre a rígida
masculinidade de Estêvão e confessar que acabou de adquirir uma paixão súbita, mesmo sabendo que
ele está sentado quase ao nosso lado, devendo estar escutando absolutamente toda essa conversa.
Mas Pierre não mente, Estêvão é realmente um homem muito atraente.

Já sobre o homem que está logo atrás de nós, Pierre decide guardar sua opinião para outro
momento.

Sobrevoamos Manaus e seguimos para um resort mais afastado dos pequenos polos do
Amazonas. Pousamos em uma pista atrás da enorme construção branca e revestida de vidro, que se
destaca entre o verde vivo da Floresta Amazônica.

O resort tem uma vasta área construída com piscinas, lagos e SPA. Para um lugar recluso, é
um estabelecimento luxuoso e aconchegante, que faz eu me sentir praticamente no interior do
Tocantins — no tempo que eu era criança. Quando saímos do avião, uma névoa de calor e umidade
envolve meu rosto, assegurando oficialmente de que estou no Norte do país.

Somos recebidos por um Jeep do hotel, que nos leva até a recepção para registrar o check-in,
enquanto um homem de olhos levemente puxados, vestido em roupas brancas, me conduz a uma suíte
que já tinham reservado para mim, não sendo necessário o registro imediato de chegada. Giovanna
parece ter cuidado de tudo para me agradar, reservando uma das suítes presidenciais no último andar.

Enquanto o concierge apresenta os cômodos da espaçosa suíte a Pierre e a mim, escuto o


farfalhar das árvores lá fora, misturado ao cantarolar incessante de bem-te-vis. Logo de cara, amo
esse lugar e sinto minha mente desacelerar com a energia da natureza em volta.

— Com licença! — O homem de traços indígenas assente respeitosamente e sai pela porta da
frente.

Depois Pierre se vira para mim e diz:

— Agora que você está acomodada, eu vou procurar um quarto para mim, Milady!
— Como assim um quarto? — Arqueio uma sobrancelha. — Você vai dormir aqui comigo, a
cama é enorme...

Ele pigarreia, gesticulando com as mãos.

— Não me leve a mal, Milady, mas eu sou um mero funcionário. Funcionários dormem em
quarto de funcionários. Eu vou ver se não tem uma vaguinha para mim no quarto dos seguranças...

Abro a boca, escandalizada.

— Você vai me trocar por aquele bando de pares de calças?

Ele estreita os olhos, dizendo:

— A senhora sabe que não são só apenas calças. A Milady sabe!

— Que safado! — Pego uma almofada redonda da poltrona ao meu lado e arremesso contra
Pierre, resmungando: — Você está brincando, não é?! Não vai me trocar por aqueles seguranças?! Eu
odeio dormir em camas de hotéis sem você!

Ele me olha seriamente e depois desmancha um sorriso, vindo até mim com os braços
abertos.

— É claro que estou brincando, Milady. — Ele me envolve com seus braços calorosos. —
Não trocaria você nem por um exército de modelos da Calvin Klein.

Dou um soquinho no braço dele, rindo.

— Não exagere.

— Je vous aime[vi] — ele sussurra.

— Je t'aime aussi[vii] — me declaro também dentro de seu abraço quentinho.

Neste momento, ouço a campainha de nosso quarto tocar.

— Quem será? Será que o concierge esqueceu alguma coisa? — Pierre pergunta, se
afastando, e eu respondo, indo em direção à porta:

— Não sei, vamos saber agora.

Puxo a maçaneta da porta, dando de cara com uma senhora atarracada, que está com uma
bandeja de uísque em mãos.

— Perdão. — Ela me olha meio sem jeito. — É a suíte do senhor Gabriel?


— Não. Creio que não — respondo, confusa. Será que erraram?

Ela olha para papel ao lado do uísque em cima da bandeja, pedindo desculpas novamente.

— Aqui diz suíte 42. Acho que houve um engano, deve ser a outra.

De repente, o homem alto de camisa social branca passa por trás da senhora, deslizando o
cartão na porta da suíte em frente. É Gabriel, e antes que eu diga alguma coisa àquela senhora, ela
parece deduzir:

— O senhor deve ser o Gabriel.

Ele se vira, respondendo tranquilamente:

— Sim, sou eu.

Seu olhar alterna para o lado, flagrando meus olhos. Ele me fita por um momento, sem dizer
nada.

Por mais que eu tenha conhecido muitos homens bonitos ao redor do mundo, nenhum tem um
olhar tão profundo quanto o dele. Ele ainda continua absurdamente bonito e charmoso, isso não posso
negar. No entanto, já não me intimido com sua presença. Eu consigo sustentar o seu olhar com
facilidade, sem o desespero de desviar a qualquer momento para o lado, motivada pela vergonha.
Oh, céus! Como isso era bobo!

A senhora adentra sua suíte pela porta entreaberta, enquanto o clima parece ficar mais denso
no espaço do corredor entre nós. Quando ele abre os lábios para dizer algo, me adianto:

— Boa tarde.

— Boa tarde — ele sussurra com a voz rouca, pressionando os lábios, ao passo que eu bato a
porta.

— Quem era? — Pierre volta do outro cômodo, curioso.

— Era engano. — Sorvo uma boa quantidade de ar e caminho até ele. — Que tal entrarmos na
hidromassagem e abrirmos um champanhe?

— Ótima ideia, Milady! — Pierre exclama, animado.

De repente, sinto meu corpo mais quente, talvez devido à alta temperatura do clima quente e
úmido, então acho que será uma boa ideia nos refrescarmos com água fresca e o delicioso sabor
gélido de um champanhe.
Depois de relaxarmos na jacuzzi da varanda, que dá visão à piscina lá embaixo, Pierre e eu
literalmente caímos de sono na cama de casal.

Quando acordo já anoiteceu, nem mesmo pude assistir o pôr do sol, já está tudo escuro,
inclusive o quarto.

Espicho meu braço para o lado, acendendo o abajur e achando um bilhete em cima da
mesinha rente à cama.

“Estou indo dar uma volta nos arredores, Milady. Continue descansando sua beleza,
amanhã será um longo dia. Je vous aime[viii]!”

Volto a deitar minhas costas no colchão, olhando as horas em meu celular, que marcam dez e
meia da noite.

Não demora mais de dez segundos olhando para o teto para eu ficar entediada e me levantar
da cama, caminhando em direção à minha mala.

Por mais que me esforce, não consigo ficar quieta, sem fazer nada. Por isso coloco um biquíni
preto pequeno, ajeito uma saia preta longa, de estilo envelope, de tecido quase transparente, e saio
em direção à área da piscina, decidida a dar um mergulho sob a luz da lua cheia, que está
especialmente linda nessa noite.

Quando chego ao deque da piscina, um casal jovem me reconhece, e a menina de cabelos


vermelhos vibrantes me pede uma foto, surpresa com minha presença ali, confessando que é minha
seguidora no Instagram. Sou solícita com o casal e depois me despeço, me aproximando da piscina.

Olho ao redor e não vejo ninguém além de mim. Parece que os únicos que estavam por perto
era o casal, me levando a crer que esse resort não é tão frequentado, talvez devido à localização
reclusa. Ou talvez, o mais provável, esteja tarde demais para um banho na piscina.

Todos devem estar nos bares do hotel, onde imagino que Pierre esteja.

— Estão observando você da varanda. — A voz grave me faz perder uma batida em meu
peito.
Recomponho-me e olho para trás, mais precisamente para a espreguiçadeira mais escondida
ao lado da porta por onde entrei.

Eu não tinha reparado que ele estava ali, sentado de forma relaxada na espreguiçadeira de
vime. Ele veste uma camiseta cinza despojada e calção branco, sustentando o corpo atleta que perece
ter desde sempre. O tempo só melhora para ele.

Sua atenção está sobre mim, com um fundo de curiosidade nos olhos.

Ignoro o tipo de aviso que ele me dá.

— Não tinha o visto aí — digo respeitosamente, antes de virar e fazer o que estava para
fazer. — Com licença.

— Não é uma boa hora para entrar na piscina — ele continua, de novo me interrompendo e
começando a incomodar.

— Obrigada pelo conselho — agradeço e desenrosco a saia preta de minha cintura,


deixando-a cair na espreguiçadeira ao meu lado.

— Não seria um bom momento... — ele começa novamente.

Agora é minha vez de interrompê-lo.

— Você está sozinho aqui? — pergunto, sem emoção na voz. — Onde estão seus seguranças?

Apesar de não ter sido minha intenção, isso soa como uma provocação. Espio sua reação e
vejo seus lábios se retesarem, olhando para cima momentaneamente.

Faço o mesmo e vejo alguns de seus homens na sacada do primeiro andar. Além deles, vejo
alguns outros curiosos em quartos distintos, atentos à área de lazer.

— Podemos conversar? — ele pergunta, se levantando e deslizando as mãos para os bolsos


do short branco, deixando seus músculos ainda mais evidentes.

Penso por um momento e assinto.

— Claro.

Ele escorrega o olhar para os meus seios e sobe rapidamente, como se houvesse cometido um
delito. Ele pigarreia e pergunta:

— Você pode se vestir novamente?

Pego de volta minha saia envelope e visto-a, de forma que boa parte de meu corpo esteja
coberta, inclusive os seios.

Caminho até ele, parando um pouco abaixo da sombra do alpendre e ficando frente a frente
com Gabriel.

— O que você quer conversar? — pergunto, sendo objetiva. Ainda tenho um mergulho para
fazer.

Ele inspira fundo, dizendo:

— Sobre o passado.

— Já resolvemos tudo o que tinha para ser resolvido...

— Eu queria te agradecer — ele diz antes que eu diga algo. — Hoje mais cedo, confesso que
fui tomado pela surpresa e não tive como agradecer direito... Foi uma atitude nobre ter aceitado vir e
fazer essa campanha...

Pisco os olhos e tento não ser rude.

— Desculpe-me. Mas como eu disse à sua irmã: isso se trata de um negócio... Não estou
fazendo isso por você. — Isso soa absurdo, mas tenho que dizer.

Agora é a vez dele piscar os olhos e falar:

— Eu sei. Claro. Eu sei.

Não. Não sabia. Ele ficou sabendo agora.

— É só isso? — pergunto.

Ele não responde. Interpreto seu silêncio como um sim e dou um passo para trás.

— Espere — ele pede. Ele umedece os lábios, fitando meus olhos. — Nesses últimos anos...
eu pensei muito em você.

Se essas palavras não fossem tão patéticas, eu cairia por esse lindo par de olhos azuis
intensos.

Ele parece esperar ansiosamente por minha resposta, tão próximo de mim, que até dá para
sentir o cheiro almiscarado de seu perfume misturado ao álcool do uísque.

— Eu tive muito trabalho nos últimos anos. Minha cabeça ficou cheia...

— Ok! — Ele aquiesce seriamente, talvez evitando que a situação fique constrangedora ou
humilhante para ele.

— Com licença.

Dou mais um passo para trás, abrindo minha saia em sua frente.

— Eu sugiro que não entre na piscina agora. Há muitos hóspedes na varanda. Você pode se
surpreender com fotos suas amanhã na internet...

— Eu já tenho várias fotos de biquíni na internet — digo, me livrando completamente da saia.

— Com um biquíni tão...

— Ousado? Devasso? — Ele se refere à minha parte de baixo, um delicado fio dental.

— Eu ia dizer pequeno.

— Já fui clicada nas praias de Ibiza com menores. — Não minto ao dizer.

— Não estamos em Ibiza.

Inspiro fundo, mantendo a educação.

— Na verdade, não estamos em sua casa para você ditar como eu vou ou não entrar na
piscina. Agora, se me der licença...

Ele parece não gostar da pouca importância que dou aos seus conselhos conservadores, mas
também não me aborreço muito com isso.

Vou até a beirada da piscina, olhando para o meu reflexo na água e, em seguida, adentro a
piscina em um pulo silencioso, mergulhando até o meio.

Volto para a superfície e vejo que o homem de camiseta cinza ainda está parado ao lado da
espreguiçadeira, completamente desgostoso com minha total incapacidade de seguir seus conselhos.
Olho para cima e vejo os seguranças de Gabriel atentos, especialmente Estêvão, que está com a
expressão facial indecifrável. Há pessoas em outras varandas também, mas agora nem tanto.

Dou mais outro mergulho e quando me sinto confortável, tiro a parte de cima do biquíni e a
deixo em cima da borda da piscina. Eu amava fazer isso nos hotéis franceses, e não será aqui que não
farei.

Eu amava a Itália, mas foi na França que surgiu a mulher que sente prazer em transgredir
normas socialmente impostas. É como saborear a liberdade em meio à adrenalina de ser pega.

Dou mais um mergulho, sem olhar em volta, e quando chego ao meio da piscina, sinto a água
ao meu lado se agitar. Levanto no mesmo instante, vendo-o vir em minha direção, todo molhado,
dentro da piscina, me fulminando com o olhar.

— Coloque o biquíni! — ele ordena.

— Como? — indago, desacreditada.

— Você vai querer representar a empresa de minha mãe dessa forma?

— Dessa forma como? — pergunto, impaciente.

— Nua!

— Já começou o comercial e eu não estou sabendo?

— Coloque o biquíni agora ou eu...

— Ou eu o quê? — Coloco as mãos na cintura, com um tom de voz ameaçador. — Você vai
romper o contrato?

Eles não têm ninguém para representá-los e ele ainda tem a coragem de vir me incomodar em
meu tempo livre?

— Eu... — Ele aperta o punho e completa: — Ou te tiro desta piscina agora...

— Você seria incapaz...

Ele avança, arranca meus pés do chão e ergue meu corpo para o seu colo contra minha
vontade, seguindo para a escada do outro lado da piscina, me envolvendo com seus braços fortes e
seus ombros, que parecem proteger meus seios contra os olhares curiosos lá em cima. Neste mesmo
instante, vejo um flash iluminar as costas de Gabriel, que segue até a sombra do alpendre. Ele me
coloca no chão e me enrola de qualquer jeito com minha saia, sem desviar os olhos de meu rosto.

— Satisfeito? — pergunto, murmurando.

Ele ergue uma sobrancelha e responde com a voz profunda e autoritária:

— Não!

Ele nos coloca lado a lado, segurando meu braço e me conduzindo para a parte interior do
resort, enquanto meus pés cambaleiam para frente. O tecido preto transparente fica colado de forma
grosseira em meu corpo, me assemelhando a um embrulho de presente malfeito.

Adentramos o elevador enquanto resmungo:


— Que dia você se tornou esse homem das cavernas?

— Pergunto-me também que dia que você se tornou essa mulherzinha difícil?! Você
costumava ser mais madura!

Ele me arranca um sorriso irônico.

— Madura? Você quer dizer boba, complacente, obediente... Por favor, solte-me! — peço,
começando a me irritar com sua invasão. — Eu sei andar sozinha. — Desgarro sua mão de mim.

As portas se abrem no último andar e me coloco para fora.

— Você ainda vai fazer a campanha?

Ele vem perguntando atrás de mim, enquanto me coloco em frente à porta de meu quarto.

— Me deixe em paz! — Abro meu quarto e entro, batendo a porta.

Inspiro e expiro repetidas vezes, tentando afastar essa energia perturbadora dentro de mim.
37 | EM SEU ENCALÇO

Gabriel

— Ela está demorando... Será que aconteceu algo lá em cima? — Giovanna pergunta ao lado
do helicóptero.

No dia anterior, parte de nossa equipe foi até uma clareira aqui perto, onde montaram a
estrutura do palco de led e receberam nosso modelo SUV para que pudéssemos realizar as
gravações. Com todo o trabalho que deu para deslocarmos toda essa estrutura para o meio do nada,
torcia para que eu não tivesse estragado tudo ontem à noite.

Empurro os óculos de sol contra o rosto, fitando o chão e começando a ficar impaciente com
a espera por Camille.

— Giovanna, eu preciso confessar algo.

— O quê? — Giovanna vira o rosto despretensiosamente para mim.

Minha irmã me conhece como ninguém, e não é preciso mais de 10 segundos para ela deduzir
que eu tinha feito merda.

Ela diz pausadamente:

— Gabriel, eu vou matar você!

— Ontem à noite...

— BON JOUR! AI, CHEGAMOS! — O funcionário de Camille adentra o pátio do


aeródromo do resort animadamente. Logo atrás, vejo Camille caminhar em nossa direção em um
macacão branco com detalhes em prata e azul-turquesa, que provavelmente alguém de nossa equipe
de marketing cuidou de lhe entregar no dia anterior.

Suspiro aliviado.

— Desculpe-me o atraso. Não estávamos encontrando o heliporto — ela diz se aproximando,


olhando para Giovanna e ignorando completamente minha presença. — Falta mais alguém?

— Que susto! — Giovanna exclama, suspirosa.

— Tudo bem? — Camille pergunta, confusa.


— Sim, sim. Tudo bem. — Giovanna se recompõe imediatamente e responde: — Todos já
estão lá. Só falta a gente.

— Ótimo, então vamos! — o homem esguio exclama, batendo palmas copiosamente.

Sigo até Estêvão, que conversa com o piloto, e confirmo nossa partida.

Camille é a primeira a entrar na aeronave, seguida de Pierre, seu funcionário.

Entro depois de Giovanna e me sento na poltrona vaga entre Giovanna e Camille.

Antes de colocar os fones, sussurro baixinho ao seu lado:

— Pensei que fosse desistir.

Ela demora a responder, mas o faz cochichando de volta:

— Eu não desisto de trabalhos em andamento. Espero que você valorize meu


profissionalismo e nunca mais me carregue em seus braços!

Suas palavras me recobram da noite passada, em que eu tive seu corpo morno e seminu em
meus braços, enquanto tentava me manter centrado com seu cheiro de rosas invadindo meus sentidos.

— Claro. Nunca mais o farei. — Aquiesço em um murmúrio.

Depois de alguns segundos ajustando o painel de controle, o piloto nos faz alçar voo em meio
à floresta tropical. O trajeto é curto e demora menos de dez minutos até aterrissarmos em um campo
perto do resort.

Cerca de trinta pessoas se encontram ali, ao redor do palco redondo de led, além de três
carros 4×4, dois caminhões reboques e pessoas especialistas em gravação externa.

Camille dá dois passos à frente, estancando quando se vê diante de enormes poças de lama.

— Nem mais um passo, Mademoiselle. Você vai sujar todo seu look de pilota... — Pierre
choraminga.

Camille olha para trás tranquilamente, me encarando.

— Vai sujar a roupa.

Estudo o local, pousando as mãos nos quadris, e concordo:

— Está certo. Sua roupa irá ficar suja. — Anuo e ela bufa, desgostosa, por eu dizer o óbvio.

— Como eu vou chegar lá? — Camille aponta impaciente para o palco. — Claro, sem fazer
essa roupa branca virar um figurino de comercial de sabão em pó.

— Eu vou dar meu jeito, Stella — Giovanna se pronuncia rapidamente.

— Eu tenho uma ideia — digo despreocupado, fitando a mulher de figurino branco.

— Tem? — Giovanna indaga.

Camille me olha como se estivesse tentando decifrar minha ideia, então desço o olhar para
suas pernas e lentamente alterno o olhar para o meu ombro. Neste instante, ela ri, compreendendo o
recado.

— Se Stella me pedir com jeito, posso carregá-la em meus braços até o palco.

Giovanna me dá um beliscão insignificante e resmunga baixo ao meu lado:

— Para de provocá-la, imbecil!

Camille alterna seu peso de uma perna para a outra, olhando para o lado momentaneamente e
voltando a nos encarar...

Ela pigarreia antes de começar.

— Por favor... — Ela fixa o olhar no meu e depois resvala mais para o canto, continuando: —
Estêvão! Você pode me levar até o palco?

Reteso os lábios, apertando os olhos. Depois vejo Estêvão me fitar seriamente, como se
esperasse uma ordem minha.

Fecho os olhos novamente e meneio a cabeça em positivo, a contragosto.

Estêvão espera alguns segundos antes de caminhar até Camille e a suspender no colo sem a
menor dificuldade.

— Uou! Como você é fortão, Estêvão — ela pontua.

Estêvão começa a andar pelo lamaçal, enquanto Pierre comenta logo atrás:

— Ai, eu também quero ser carregado assim.

— Nós podemos alternar na volta — Camille sugere, arrancando um gritinho do funcionário,


que mais parece ser seu amigo íntimo.

Inspiro uma boa quantidade de ar e solto violentamente pelas narinas, seguindo para o palco
também.
Quando alcançamos a superfície estável ao redor do palco, o homem de cabelos grisalhos e
óculos de telas azuis se aproxima. Lauro, o diretor contratado.

— Oh, Dios mio! Não é que estou mesmo diante de Stella Mackenzie! — Ele segura a mão
dela e a beija, fitando seus olhos. — É um prazer, senhorita. Me chamo Lauro. Sou o diretor.

— O prazer é meu, Lauro. — Camille é jeitosa ao respondê-lo. Tem a postura ereta e ar de


uma diplomata implacável. Notoriamente, ela mudou. Em todos os aspectos.

— Giovanna deu o roteiro a você? — Lauro pergunta.

— Sim. Já sei mais ou menos o que tenho que fazer...

— Ah, maravilha! De qualquer maneira, o comercial é tudo mais simplificado, não que seja
fácil. Mas já está tudo pronto para sua estrela brilhar. Pode se posicionar ali no centro, já vou lá
instruí-la para os takes.

— Certo. — Camille consente e caminha para o centro.

Lauro vem até nós, me cumprimentando respeitosamente com um menear demorado de


cabeça.

— Que prazer o meu recebê-los.

— Igualmente — respondo.

— Por tantos anos trabalhei para Tereza. É muito satisfatório ver os filhos dela tomarem
conta da Átila Motor Company...

Giovanna assente para o homem, que dispõe de uma fina camada de suor sobre a testa.

— Obrigado, Lauro. Nós também estamos muito felizes em trabalhar com você.
Especialmente neste momento tão crítico para nossa empresa.

Ele expande o peitoral e depois relaxa, dizendo:

— Quero que não se preocupem. Está tudo sob controle...

— Confiamos em você — Gio responde.

Ele alarga um sorriso e fala, disposto:

— Vamos à gravação?!

— Por favor — respondo seriamente.


Lauro se põe ao meu lado e começamos a andar pelo palco.

— Antes eu quero explicar as roupas de Stella. Creio que meu assessor disse à Giovanna
sobre seu significado, mas quero detalhar tudo a vocês. Já ouviram falar da psicologia das cores?

— Devo ter visto alguma vez na faculdade — respondo, olhando para a mulher, que se
diverte com o balanço no meio do palco.

— Escolhemos um macacão todo branco, pois traz a ideia de renascimento, renovação. Os


detalhes em azul-turquesa expressam confiança e o prata traz a textura do logo da Átila... —
Enquanto Lauro explica cada detalhe do comercial, eu a observo de longe.

Ela se tornou uma mulher confiante, leve, atrevida, e isso faz dela uma mulher irresistível.

Enquanto isso, Lauro me explica que colocará um fundo verde atrás de Camille, fazendo com
que ela pareça estar em um salão de paredes brancas, ao passo que se embala no grande balanço. A
ideia é que o telespectador assista à mudança súbita de ambiente para a Amazônia aparecer em volta.
Segundo Lauro, isso criará no subconsciente das pessoas a ideia de credibilidade e, em seguida, de
nacionalidade, de apropriação do que é nosso. Tudo terminará com Camille dirigindo pelas trilhas
que levam ao resort, provando da potência e qualidade de nossos veículos. Todas essas cenas virão
com um belo discurso milimetricamente calculado, gravado em estúdio pela voz de Camille.

Não demora muito para que as gravações comecem e possamos ter um vislumbre mais
concreto do que está sendo trabalhado. De início, me agrada muito. Eu não tenho muita experiência
com gravações audiovisuais, mas me parece de muito bom tom para o momento que nossa empresa
vive.

— Corta! — Lauro vocifera. — Ficou perfeito! Bom trabalho, Stella! Descansem um pouco e
mais tarde retomamos com a trilha. Quero ver essas máquinas em ação. — Ele aponta para nosso
modelo de lançamento: um SUV com teto solar e uma suspensão de tecnologia de ponta.

Vejo Camille se alongar depois de algumas horas de gravação, enquanto me refresco com
água mineral.

— Chega de descanso! Vamos lá — Lauro diz, batendo palmas.

Camille entra em um de nossos carros, que estava encaixado em uma espécie de guincho
frontal apropriado para esse tipo de gravação. Giovanna e eu acompanhamos logo mais à frente em
uma 4×4 de nossa linha, enquanto ouvimos pelo rádio os comandos de Lauro. As gravações dentro do
carro se iniciam quando ele dá sinal e se segue por pouco minutos, passando para as gravações
externas dos carros, liberando nosso SUV do guincho.

— Eu posso dirigir — Camille fala, dispensando o dublê.

— Tem certeza, Mademoiselle? — Pierre pergunta, parecendo não gostar da ideia.

— Absoluta.

— Seu desejo é uma ordem. — Lauro parece gostar da disposição de Camille.

Camille caminha de volta para o carro, passando por mim sem olhar em meus olhos. Não é
como se ela tivesse raiva ou rancor de mim, mas como se simplesmente não se importasse com minha
presença. Sua indiferença está começando a me incomodar. Eu sei lidar com raiva e rancor, no
entanto, a indiferença...

— Gabi, eu vou com Lauro e Pierre no carro da produção. Quero assistir mais de perto.

Dou um passo para frente e assinto para Giovanna, que me abandona.

— Tudo bem.

Coloco-me de volta dentro do carro, e fico parado enquanto as ordens dos carros mudam para
a gravação.

Dessa vez, Camille fica na frente, dirigindo nosso SUV, entre dois carros câmeras enquanto
acompanho tudo mais atrás.

Depois de vários minutos cansativos dirigindo pela estrada barrosa, ouço Lauro se comunicar
pelo rádio com Camille.

— Maravilha! Acho que conseguimos todos os takes... Bom trabalho, pessoal! Vamos gravar
mais uma rodada e terminamos. Algum pedido especial, Gabriel?

Vejo o céu tomar uma cor alaranjada entre as folhagens das árvores que nos encobrem,
anunciando o fim do dia.

Ligo o rádio e respondo a todos:

— A senhorita Camille poderia pisar mais o pé no acelerador.

— Camille? — Lauro indaga, confuso. Certamente só a conhece por Stella.

O áudio do outro veículo é ligado e ela mesma me responde seriamente:

— Seu pedido é uma ordem... seu Gabriel. — Tenho a impressão de que ironiza ao final. —
Por favor, peguem essas cenas. Vão ser as melhores — ela avisa.

De repente, escuto o carro mais à frente arrancar em uma velocidade mais rápida do que eu
esperava, em uma cadência desproporcional àquele tipo de estrada, ultrapassando o carro câmera da
frente.

— Mais devagar, Milady — Pierre pede ao rádio com o tom de voz preocupado.

— Continue, Stella! Estamos acompanhando você! — Lauro diz com um fundo de excitação
na voz.

Dirijo mais rápido, para poder acompanhá-los, quando Lauro parece mudar de ideia.

— Diminua a velocidade, Stella! Estamos perdendo você... — Alguns minutos se passam e


Lauro torna a chamar por Camille: — Stella... Querida... está me escutando? Merda! Perdemos a
conexão com a rádio dela! Acelerem! Vamos alcançá-la! — Lauro dá a ordem.

Alguns segundos se passam sem a resposta dela, e agora sou eu que piso fundo no acelerador,
ultrapassando todos os carros à minha frente, em busca dela. Para que eu fui abrir a porra da boca?!

Quando alcanço uma velocidade maior do que o habitual na trilha, me deparo com uma
bifurcação. Nas duas opções de estradas têm marcas de pneus. Decido ir pela opção em que as
marcas estão mais fundas, deduzindo que é por ali que ela se meteu.
38 | PONTO DE TENSÃO

Camille

Depois de horas dentro do mesmo carro, fico cansada do meu corpo sacolejando com os
obstáculos no chão de barro. Mas pelo menos penso que mais tarde irei voltar com a certeza de que
fiz meu melhor. Se já não bastasse o meu cansaço que envolve meus membros periféricos, ainda tive
de ouvir pelo rádio uma insinuação ultrajante do cliente insatisfeito — alegando que eu estava
dirigindo devagar.

Como posso ter dirigido devagar se o carro estava trepidando incessantemente há horas?

Que mal-agradecido! Estou fazendo meu melhor e ainda tem coragem de fazer pouco caso do
meu esforço?!

É velocidade que ele quer?! Então é isso o que ele vai ter!

Piso fundo no acelerador, ultrapassando o carro da frente e entrando em um tipo de adrenalina


gostosa de correr pelos corredores entre a vegetação úmida. Confesso que me empolgo com a
potência do motor e acelero mais do que devo, como uma criança em um parque de diversões.

Acelero tanto que nem noto que perdi o sinal do rádio. Continuo dirigindo e tentando resgatar
o sinal, quando me deparo com uma espécie de tronco caído no meio da trilha. Por sorte, freio
bruscamente, a tempo.

Levo a cabeça para o volante, suspirando aliviada.

— Foi por pouco! — Ofego.

Olho em volta e depois testo o rádio novamente. Sem sucesso, ligo para Pierre pelo celular,
inutilmente. Sem sinal.

Não tenho outra opção a não ser dá ré e encontrá-los no meio da estrada. Quando ligo o carro
novamente, vejo pelo retrovisor outro veículo se aproximando.

Graças a Deus! São eles!

De repente, a porta se abre, e o homem de roupas sociais e sapatos sujos de lama marcha em
direção ao carro que estou. Gabriel está com uma expressão carrancuda quando bate com os nós dos
dedos contra a janela.
Abaixo o vidro e ele é ríspido em dizer:

— Você pirou?!

Fecho os olhos por um instante, inspirando fundo e pensando: Ai, Pai! Me dê paciência com
esse homem!

— Você poderia ter batido o carro, maluca!

Neste exato instante, minha paciência esgota.

Abro a porta do carro rapidamente e me coloco para fora.

— Do que mesmo você me chamou?!

— Você poderia ter morrido!

— Por Deus, você pediu para eu acelerar! Por que está tão mordido?!

Ele se aproxima, ficando cara a cara comigo, com os olhos em chamas.

— Porque se algo acontecesse com você... — Ele morde a língua.

— Se algo acontecesse a mim, o que mais? — Desafio ele terminar a frase.

Ele aperta as mandíbulas enquanto analisa de perto cada canto de meu rosto. Droga! Por que
ele está tão perto? Apesar de ter sido um cretino no passado, ele ainda continua muito gato com essa
boca avermelhada e máscula tão próxima a mim. Ele recua, dizendo:

— Eu não me perdoaria. — Ele parece respirar por fim.

Noto que também perco o fôlego e mudo de assunto:

— Tire o seu carro daí!

Ele continua imóvel, enquanto abro a porta do SUV da propaganda.

Arqueio uma sobrancelha e pergunto a ele, que ainda continua imóvel:

— Não vai tirar?

Ele não me responde, apenas fica me olhando, com o olhar intimidador de macho alfa
contrariado. Mas eu conheço esse golpe e não irei cair nele mais uma vez!

— Tudo bem. Eu mesmo tiro. — Bato a porta ao lado e caminho em direção ao 4x4. Eu
chegaria lá se não fosse o chão deslizante sob os meus pés, que me faz cair de costas no lamaçal, me
arrancando um grito gutural.
— Droga! Mil vezes droga! — praguejo.

Olho para o homem de pé, em sua mesma postura firme e imponente. Ele parece segurar o
riso no canto da boca.

— O que está olhando?! Não vai me ajudar, não?! — pergunto, agoniada, sentindo o barro
entrar em meus cabelos.

Ele estreita os olhos e se delicia ao dizer:

— Peça “por favor”.

Essa história de “por favor” novamente?

Solto o ar violentamente pelas narinas, bufando e tentando me levantar sozinha, mesmo que
isso seja misteriosamente difícil.

Ele se aproxima e me oferece a mão. Paro e a encaro por um instante.

Aceito e em seguida puxo seu braço com toda minha força para baixo, fazendo com que ele
caia de cara na lama ao meu lado.

Estico meu pescoço para sussurrar em seu ouvido, enquanto o lado de seu rosto está
enterrado no chão:

— Aproveite a lama, seu Gabriel. Ouvi dizer que faz bem para a pele.

Apoio minha mão no chão e me preparo para levantar. No entanto, ele é rápido em puxar meu
braço, usando seu peso como alavanca e rendendo meu corpo debaixo dele em um movimento quase
teatral.

Ele imobiliza minhas pernas com as suas e rende meus braços em cima da cabeça, ficando
com seu rosto a centímetros do meu, com uma corrente elétrica me atravessando.

Ele murmura com a voz rouca, tentadora:

— Assim é bem melhor.

Ele desce o maldito rosto sexy para o lado e esfrega sua bochecha suja de lama na minha. Ele
repete o movimento na outra, provavelmente me deixando com o rosto sujo igual ao dele.

Ele torna a deixar sua boca a centímetros da minha, enquanto me compenetra com o olhar.

— Não brinque comigo, eu não tenho paciência para brincadeiras.


— Nem eu — grunho, tentando serpentear meu corpo para longe, inutilmente.

— Então estamos entendidos. — Ele aperta meus punhos, puxando mais para cima, enquanto
meus seios se elevam automaticamente e encostam involuntariamente em seu peitoral, fazendo seus
olhos escurecerem. Como se isso tivesse algum efeito poderoso contra ele, Gabriel libera meus
braços e pernas, tentando se levantar. Entretanto, agora sou eu quem envolvo seu pescoço com meu
braço e o rendo no chão, ficando por cima.

Sento em cima dele e deixo alguns fios de cabelos caírem para o lado.

Ele ofega roucamente quando sento no final de seu tronco.

Sinto-o duro embaixo de mim.

Muito duro.

O que faz aumentar a temperatura do meu corpo.

No entanto, não deixo isso tomar conta de mim.

Desço o rosto para dizer as últimas palavras:

— Agora sim estamos entendidos.

Dessa vez, consigo me erguer do chão e caminho, deslizando para a porta do meu carro.

Torno a encarar Gabriel. Ele já conseguiu se levantar e está imóvel, esperando-me adentrar o
carro, com uma expressão irresistível cravada no rosto, me observando de longe como um falcão.
Seus olhos encobertos por uma energia lasciva fazem minha respiração vacilar. Sua boca contida em
uma linha impassível denuncia algum desejo que ele luta para aprisionar nesse momento.

De repente, algumas luzes iluminam as costas de Gabriel e vejo que se trata da equipe que
deixamos para trás. Suspiro aliviada.

Lauro e Pierre descem quase ao mesmo tempo do Jeep preto, vindo em nossa direção e
perguntando o que aconteceu. Amenizo os acontecimentos para Pierre e peço para que voltemos logo
para a clareira, antes que anoiteça. A estrada poderá ficar ainda pior.

Não demoramos muito para voltarmos e pegarmos o voo de volta para o resort. Durante o
pequeno trajeto entre a clareira e o resort, um silêncio ensurdecedor se faz entre os tripulantes dentro
do helicóptero. Talvez o cansaço tivesse nocauteado qualquer animação pós-gravação, ou talvez a
energia estranha entre ele e eu esteja contagiando os demais.

Aterrissamos quando a luz do sol já se recolheu e seguimos para fora da aeronave. Quando
chega minha vez de descer, escorrego na escada e quase me estatelo no chão, se não fossem as mãos
hábeis de Gabriel me apararem, erguendo meu corpo em seu colo. Eu estou tão exausta, que nem ao
menos protesto, apenas deixo que ele caminhe comigo até o outro lado do aeródromo.

Apesar da lama seca por toda a parte de seu corpo, ele ainda tem aquele cheiro inebriante.

Escuto Giovanna murmurar ao lado:

— Não acredito que essa mulher veio!

Gabriel continua caminhando, enquanto sinto seus músculos ficarem mais rijos.

— Você a chamou? Eu não acredito, Gabriel!

Ele continua andando como se fosse um robô, enquanto inclino minha cabeça para olhar a
pessoa que está incomodando Giovanna.

Apesar de estar um pouco escuro, reconheço-a. É ela. Maria Júlia.

Ela detém ainda o mesmo olhar sinistro de anos atrás, misturado com algum sentimento
inquietante.

Gabriel me coloca no chão cuidadosamente ao lado de Pierre, que está tão exausto quanto eu,
e agradeço formalmente:

— Obrigada!

Vejo Maria Júlia se aproximar e envolver Gabriel com um abraço caloroso. Quando os lábios
dela tocam os seus em um selinho rápido, tenho uma súbita vontade de chutar o saco dele.

Antes que a mulher se vire para mim e comece uma conversa indesejada, continuo
caminhando com Pierre ao meu lado, alcançando a escada que nos leva ao piso inferior, tentando
evitar os pensamentos que rondam minha mente. Mas é inevitável!

Ele ficou solteiro por todos esses anos, era quase improvável que não se envolvesse com
ninguém. Aliás, eu também me envolvi. Mas ela?!

Tinha que ser ela?!

Aquela mulher de olhar sinistro?!

Ele está com ela desde aquela época?

Como ele ainda teve a coragem de dizer que sentiu minha falta?!
Admira-me tamanha canalhice!

São tantas dúvidas, que nem consigo refletir sobre cada uma delas.

Mas, por que, de repente, estou tão interessada nisso?

Quer saber, dane-se!

Não vejo a hora de retornar a Curitiba, cumprir com minhas últimas obrigações contratuais e
sumir da vida dele novamente. Eu não darei a ele o sabor de entrar em minha pele mais uma vez.
39 | VOCÊ É MEU!

Gabriel

As conversas de Maria Júlia sobre a tia em Cascavel se estendem até a chegada ao quarto em
que eu estou hospedado. Ela parece estar tentando nos envolver em uma atmosfera mais leve desde
que nos encontramos no aeródromo. Afinal, ela sabe de minha relação com Camille no passado, não
é um segredo. Eu só não contava que Camille fosse reaparecer em minha vida, tampouco que isso
acontecesse mais cedo do que o esperado, e aquele sentimento retornasse ainda mais forte. É por
essa razão que fico receoso em fazê-la sofrer ao me pegar de surpresa com Camille em meus braços.
Maria Júlia não merece sentir qualquer sentimento ruim dentro de si por minha causa. Ela foi minha
melhor amiga durante esses três anos, ela não merece se sentir para baixo.

Mas, também, ela não merece ser enganada.

Tudo o que vivi com Maria Júlia até o presente momento foi real, porém não foi tão forte o
suficiente para me fazer esquecer do meu ponto fraco, daquela que nunca superei.

Quando chegamos à suíte presidencial e ficamos a sós, no momento que ela se despe,
relevando seus seios rosados entumecidos sem ao menos eu tocá-la, me arrependo amargamente em
ter despertado algo em Maria Júlia. Eu não posso mais corresponder naturalmente. Porra! Eu só
penso nela a todo momento, a cada mísero segundo de tempo, como se fosse uma obsessão!

Tento conversar com Maria Júlia, mas ela não me deixa falar. Cobre meus lábios com sua
boca e reivindica meus toques, enquanto sinto o amargor de estar desejando ardentemente a boca de
outra mulher.

Tento pacificamente outra conversa, porém dessa vez tenho os lábios fisgados por uma
mordida. Rosno:

— Temos que conversar! — Afasto grosseiramente seu corpo para o outro lado da cama.

Fito sua figura ofegante e certo tom de irritação dentro dos olhos.

Ela puxa o lençol para o corpo nu e pergunta com a voz macia:

— O que quer conversar?

Fito a sacada ao lado, inspirando fundo e olhando em seus olhos.


— Não podemos continuar.

Ela pisca pelo menos três vezes, e suspira.

— Entendi.

Um silêncio sepulcral se faz e depois ela sai da cama, procurando seu vestido alaranjado e
dizendo em um tom mais áspero:

— É ela, não é mesmo? Depois de me usar, você está me largando por ela. — Ela se vira e
desfere: — Quer saber? Fica com ela, seu demônio traidor! Pensa que não sei que enquanto fui a
Cascavel você se aproveitou para vir aqui e trepar com essa vadia com a desculpa de acompanhar
um comercial?!

É compreensível a raiva de Maria Júlia, no entanto, fico surpreso com sua reação. Ela nunca
havia se mostrado descontrolada como se mostra neste momento, muito pelo contrário, Maria Júlia
sempre se mostrou uma pessoa centrada e muito racional.

— Eu não traí você.

— Cínico! — Ela vai até sua bolsa em cima da cômoda marfim, retira um envelope de dentro
e me atira o papel contra o peito. — Então o que é isso, seu nojento traidor?! Tudo o que vem de
você é nojento!

Abro o envelope e vejo as fotos tiradas ontem à noite na piscina, com Camille seminua em
meu colo.

— Quem tirou essas fotos? — indago, começando a ficar irritado. Quem estaria interessado
em causar esta intriga?

— Eu deveria matar os dois. — Ela quase cospe essas palavras.

Inspiro fundo e sibilo:

— Ontem não houve nada demais. Não me eximo da culpa de romper essa relação. Mas não
posso continuar, Maria Júlia. Se nós continuássemos, aí sim estaria traindo você... — Sorvo uma boa
quantidade ar e peço: — Me perdoe por tudo.

— Você é um mentiroso infeliz! Um verme que deveria estar debaixo da terra! — ela diz
entredentes, fora de si.

— Não fale dessa forma. Você não é assim — digo, olhando dentro de seus olhos, em uma
tentativa de conseguir seu perdão.
Ela ri, ironicamente.

Talvez eu não consiga seu perdão de imediato, mas ainda o quero.

Levanto-me, abrindo os braços.

— Você quer me machucar? — Dou um passo em sua direção. — Bata-me.

Ofereço-me para que ela desconte a raiva em mim.

Ela continua me encarando, com suas mandíbulas tremendo. Apesar de estar visivelmente
tomada pela raiva, nenhuma lágrima escorre de seus olhos. Maria Júlia tem algo que eu considero
uma casca espessa, que reveste seus sentimentos, como se seus pensamentos estivessem inacessíveis.

Continuo com os braços erguidos, esperando uma resposta sua. Nem que seja um soco na
cara.

Ela caminha em minha direção. Eu estou pronto para receber agressões, no entanto, ela une
nossos lábios, repetindo copiosamente:

— Você é meu. Só meu. Está me ouvindo? Meu!

Ela me aperta, enquanto me mantenho imóvel, deixando que a perturbação temporária de


Maria Júlia desvaneça. Eu ficarei parado aqui o tempo que precisar, até que ela se restabeleça.

Quando Maria Júlia adormece à base de calmante, decido que ficaremos mais um dia no
resort e peço à Giovanna para que acompanhe o pessoal de volta a Curitiba na manhã seguinte. Não
quero ter risco de causar qualquer estresse no caminho para Curitiba, ainda mais sabendo que
Camille se tornou uma mulher de pavio curto.

Durante a tarde do dia seguinte, encerro a chamada com Álvaro, o chefe de investigação da
polícia federal do Paraná, enquanto Maria Júlia continua no quarto lá em cima. Sento em uma
espreguiçadeira da piscina, divagando em meus próprios pensamentos. Tudo é relacionado a ela.
Quando penso que finalmente posso controlar minha vida, ela vem e invade minha cabeça. Olho para
a piscina e lembro-me do momento em que segurei seu corpo seminu contra o meu peito, da vontade
descomunal que tive que controlar. Fico duro no mesmo instante.

Camille não é a mesma garota que possuiu meu coração no passado com sua leveza e doçura,
agora ela é uma mulher feita, decidida e geniosa. Talvez isso atice ainda mais minha vontade dela. Eu
estou completamente louco para tê-la em minhas mãos.
40 | INTUIÇÃO

Camille

Curitiba - PR
Dias depois

Pierre adentra meu quarto carregando um fabuloso vestido em plena manhã de sábado,
enquanto rabisco alguns modelos de chapéus em meu caderno de notas.

— O que é isso, Pierre? Que vestido é esse?

Pierre sorri, arqueando uma sobrancelha.

— Seu vestido para hoje à noite, Milady. Está pensando que a campanha acabou? Nananinão.
— Ele estala a língua no céu da boca, meneando a cabeça em negativa.

— Nem me lembre. — Levanto da cama, deixando o bloco em cima do colchão, e resmungo,


massageando as têmporas: — Essa campanha já está me dando muita dor de cabeça.

— Pense pelo lado positivo: é o último evento que a Milady tem que comparecer.

— É para glorificar de pé. — Caminho para o outro lado do quarto, abrindo mais as cortinas.
— Não estou com a mínima vontade de reencontrar a família Átila.

— A família Átila é? — A voz de Pierre tem um fio de deboche. — Pensei que fosse um
homem alto, cara de macho, forte e sensual, chamado Gabriel.

Estreito meu olhar para ele, que pigarreia, lembrando:

— A irmã dele nos tratou muito bem. Pensei que as duas se dessem bem — Pierre pontua,
mudando de assunto.

Reflito e por fim concordo:

— Tem razão. Giovanna é uma pessoa agradável. — Penso mais um pouco e adiciono: — Só
não se iluda. Nem todos os membros da família Átila Cordeiro são pessoas agradáveis. A mãe deles
é uma serpente!
Pierre abre a boca, surpreso, mas não perde a oportunidade de perguntar:

— Chocado! Será que ela vai estar na festa de hoje?

— Provavelmente, sim — respondo, desinteressada. — Afinal, ela comandou essa empresa


por muitos anos. É natural que compareça na campanha de lançamento depois do escândalo.

— Essa noite promete. Se precisar de ajuda para dominar a cobra, só fazer um sinal.

— Não precisa, Pi. Sei tomar conta de mim. Obrigada. — Lanço um sorriso terno ao meu
amigo e estendo minha mão, pedindo o vestido. — Ande! Agora me dê. Vou provar.

— Claro. — Ele me entrega o vestido e vou até o closet.

Como sempre, Pierre conhece bem os meus gostos, escolhendo um vestido longo com uma
generosa abertura na saia e uma fenda nas costas, que desliza e adere perfeitamente o meu corpo, em
um encaixe perfeito.

Como Pierre disse: essa noite promete. E, sinceramente, não faço a mínima ideia do que
acontecerá, no entanto, confesso que estou ansiosa para reencontrar Tereza Átila.

Pierre retorna do salão principal e entra contente no camarim das dependências sociais do
hotel.

— Você não faz ideia do quão bonito está lá fora! É tudo brilhante e luxuoso, Milady. Está
bombando!

Sento em uma cadeira de couro bege, girando de forma que eu fique de frente para o espelho
que cobre toda a parede.

— Tem muita gente? — pergunto.

— Uma multidão de gente elegante! Até parece que estamos em algum evento importante em
Nova York! As pessoas têm um ar de poder. Ai, estou adorando! É hoje que eu saio casado daqui!

Sorrio, dizendo:

— Aproveite e arranje um marido para mim também.


— E Mademoiselle quer um marido? Pensei que não se interessasse por essas denominações
de relacionamento.

— Um marido seria um exagero. Talvez eu queira uma companhia.

— Milady, Milady... A última vez que você quis uma companhia passou meses engatada a um
jogador de golfe, viajando a Europa toda.

— Estou brincando, Pierre — digo entre risos. — O último lugar que quero arranjar uma
companhia é nesta festa. Ainda teremos muitas noitadas em Curitiba para resolver nossas carências.

De repente, escuto batidas na porta.

— Pode entrar — diz Pierre em uma oitava mais alta e giro a cadeira de volta.

A porta se abre logo em seguida e o ser estonteantemente em um smoking preto de corte


retilíneo fica parado na soleira da porta. Gabriel.

Ele alterna o olhar de Pierre para mim, em um tom mais grave que o de Pierre.

— Se me permitir, quero conversar com você. — Ele completa: — A sós.

Pierre dá um solavanco, parecendo entender as palavras de Gabriel. Detesto quando isso


acontece.

— Vou deixá-los a sós.

Quando Pierre sai do camarim, indago, sem levantar da cadeira, e me viro novamente para o
espelho, pegando minha nécessaire:

— O que deseja?

Ele pigarreia e o assisto procurar os bolsos da calça para enfiar as mãos.

— Temos que acertar algumas coisas de sua aparição. A parte mais trabalhosa já foi feita,
agora só nos resta essa noite.

Pego o pincel do blush, aderindo uma boa quantidade de produto nas cerdas pretas, e em
seguida retiro o excesso na costa da mão.

— Quando pretendia me contar? — A pergunta sai de minha boca espontaneamente.

Ergo o olhar para fitar sua reação no reflexo do espelho, e assisto ele inclinar a cabeça para
o lado.
— Maria Júlia e eu já não temos mais nada.

— Não foi o que pareceu — replico, com a voz indiferente. — Vocês pareciam bem íntimos.

— Nós tínhamos um relacionamento. E ele acabou naquele mesmo dia.

— Por quais motivos? — Dou uma pincelada de blush em meu rosto.

— Tenho a opção de não responder?

— Por que não quer responder?

Assisto ele franzir os lábios, apertando as mandíbulas e dando um passo à frente,


compenetrado em meus olhos pelo espelho.

— Porque está claro. — Sua voz fica mais grave e abafada.

O silêncio ensurdecedor toma de conta do espaço, nos levando a uma atmosfera mais densa.

Sacudo levemente a cabeça e me levanto, concluindo:

— Eu estava certa. Você estava com Maria Júlia naquela época.

— Nem tudo é o que parece, Camille.

— Não estou falando de suposições, eu presenciei... — Sorrio, olhando para os lados.

— Eu sei o que viu.

— Sabe? — indago, tornando a fitar seus olhos, e ergo levemente meu queixo.

— Aquele beijo não foi algo natural. Eu não estava com Maria Júlia naquela época. — Ele
hesita ao dizer, mas continua em tom de desabafo: — Eu estava tão fodido pela culpa de você ter
levado um tiro em meu lugar, que eu preferia ter que te perder daquela forma. — Ele respira fundo.

Meus olhos piscam involuntariamente, tentando assimilar suas palavras.

— Isso não muda nada — digo.

Ele dá um passo à frente, fazendo que seu cheiro almiscarado penetre minhas narinas e
pulmões. Caminho para o outro lado do camarim, tentando respirar melhor.

— Eu era louco por você, Camille — ele diz com a voz rouca.

— Tão louco que não pediu minha opinião quando fez questão de se afastar.

— Você não se afastaria. — Suas palavras são uma tortura, pois sei que no fundo são
verdadeiras. Mas isso não apaga o fato dele ter feito sua escolha lá atrás.

— Tem razão, eu não me afastaria. Mas essa era a Camille lá do passado, hoje eu já tenho
outra opinião.

Ele dá um passo em minha direção, e eu pergunto:

— E quando ficou mais fácil? E quando sua vida de repente mudou da água para o vinho?
Bastou eu ir embora para você voltar a fazer coisas normais, como trabalhar, por exemplo, até
namorar.

— Eu não tinha nada a perder. E Maria Júlia me jurou que sabia se cuidar. Mas você,
Camille...

— Claro, eu era apenas uma garota boba em apuros.

— Não, você era uma das pessoas mais importantes para mim. E se algo de pior tivesse
acontecido, eu não sei se poderia ter me perdoado. — Seu tom de voz é intenso ao dizer. — Você não
era uma garota boba. Não, não era. Uma garota boba não provocaria o que você causou em mim.

Mordo o lado de dentro da bochecha, tentando sustentar o olhar para o homem que joga sujo
com os olhos. Por vezes, flagro seu olhar deslizando sorrateiramente para minha boca, com uma
feição de predador faminto.

— Você não pensou em sua família? Eles poderiam virar um alvo também — comento.

— Eu convivo com isso há mais de dez. Você acha mesmo que se o alvo fosse minha família
também, ele não teria ido atrás deles?

Reflito e anuo.

— Tem razão. Mas isso não é motivo suficiente para se estar na rua. Deveria tomar cuidado.
— Uso meu tom de voz indiferente para expressar alguma preocupação.

— Obrigado — ele solta, mais relaxado. — Mas também as coisas estão se resolvendo mais
rápido do que eu esperava.

— Como assim? — Ergo uma sobrancelha.

— Há uns dois anos, depois do que aconteceu naquela noite em frente à igreja com você,
consegui que abrissem uma nova investigação sobre o caso do acampamento e a Polícia Civil
conseguiu levar o caso para a instância Federal. Uma nova equipe policial assumiu o caso. As
investigações estão em um nível bastante avançado, e eu creio que logo o desgraçado estará atrás das
grades.

— Algum suspeito? — indago, curiosa. A história de Gabriel sempre me interessou.

— Uhum. — Ele assente.

— Confidencial — concluo. — Ok.

— Uhum — ele diz tranquilamente, avançando o espaço entre nós. Devido sua aproximação,
recuo dois passos, sentindo minhas costas quase alcançarem a superfície energizante da parede atrás.

Ele pousa a mão na superfície dura ao lado, me encurralando com um de seus braços, ficando
insuportavelmente com sua boca perto do meu rosto.

— O que você quer? — Tomo cuidado para minha voz não vacilar.

— Você.

Ele é objetivo ao dizer, me roubando o fôlego com a intensidade de seu olhar.

— Você só pode estar brincando comigo — resmungo, incomodada com sua tentativa de
intimidar e me preparo para sair do espaço.

No entanto, ele é rápido em colocar sua outra mão em meu lado esquerdo, me encurralando
completamente. Se já não bastasse a ousadia, escuto ele desligando a lâmpada pelo interruptor ao
meu lado.

Sinto o calor do seu corpo a centímetros do meu, enquanto todos os meus músculos se
contraem, entrando em uma tensão absurda. Sinto a mão dele espalmar o meio de minhas costas, na
parte em que o vestido não cobre minha pele, me fazendo arrepiar. Ele reivindica meu corpo para
mais perto, fazendo com que nossas respirações se misturem, e desce a mão, acariciando a pele de
minha lombar com o dedo indicador, como se me provocasse na intenção de me arrancar um suspiro.
Mas não fraquejo. Ao invés disso, sussurro indiferente:

— Qual o seu problema?

A lâmpada se ascende, revelando seu rosto quase colado ao meu, com seus lábios
entreabertos e com a mandíbula apertada, como se estivesse lutando contra algo. Céus, como ele tem
uma boca sexy!

Ele demora, mas recua, dando dois passos para trás.

— Esteja pronta em 30 minutos.


— Ok.

Ele me fita pela última vez e depois passa pela porta ao meu lado.

Demoro alguns segundos para soltar o ar aprisionado em meus pulmões. Droga! Por que ele
tem que ser tão gostoso?!

Retorno à minha cadeira e tento me concentrar em descansar. Alguns minutos se passam e


simplesmente não consigo descansar. Vejo que estou transpirando debaixo dos cabelos, pela nuca, e
noto que preciso de um pouco de água. De um banheiro, mais especificamente.

Levanto-me e vou até o corredor. Chegando lá, deparo-me com a última pessoa que pensei
que veria por ali: Maria Júlia. Parada no fim do corredor, ela mexe no celular. O que está fazendo
aqui?

Ela está de roupas pretas, como as que usava no passado, quando era segurança de Gabriel.
Ela ainda trabalha para ele?!

Ela ainda não me viu e é provável que isso não dure muito tempo. No entanto, quando ela
ergue o olhar, uma senhora uniformizada passa por ali, empurrando um carrinho com baldes e rodos e
para em sua frente. Provavelmente, alguém da equipe de limpeza do hotel.

Tenho a impressão que elas se reconhecem, mas Maria Júlia e ela não demonstram muito
contentamento. Muito pelo contrário. A mulher parece estar estranhamente receosa, com medo.

Maria Júlia se despede, indo para a outra ala do primeiro andar, deixando a senhora sozinha,
que faz o sinal da Cruz pelo menos umas cinco vezes depois que Maria Júlia sai de sua frente. Acho
isso tudo muito estranho.

A senhora parece fazer uma oração rápida e depois prossegue caminhando pelo corredor,
passando por mim, acompanhada do barulho dos baldes sacolejando no carrinho. De repente, algo
me acomete. Não sei explicar muito bem, mas apenas chamo aquela senhora, antes que ela
desapareça no final do corredor.

— Ei! — Giro meus calcanhares e caminho apressadamente até ela.

— Oi? Posso ajudar? — ela pergunta, confusa.

— Sim. Posso lhe fazer uma pergunta? — indago, franzindo o cenho.

Ela me olha desconfiada, mas assente.

— Se eu puder responder...
— Você conhece aquela moça que estava parada ali? — Aponto para trás.

— Maria Júlia?

— Sim, Maria Júlia. — Assinto.

— O que a senhora exatamente quer saber? — Seu tom está mais desconfiado do que antes.

Demoro um pouco para expressar o que não sei muito bem responder, como se fosse uma
intuição. Mas respondo:

— De onde exatamente a senhora a conhece?

Se eu me perguntasse o que eu quero com essa conversa, certamente não saberia o que
responder. Mas minha intuição me diz que tenho que fazer isso. E é isso o que vou fazer.
41 | GAROTA PROPAGANDA

Camille

Caminho para o salão ao lado de Pierre. Eu havia o encontrado pelos corredores do hotel
atrás de mim. Sinto uma ansiedade incomum quando meus olhos descortinam o ambiente bem
iluminado à nossa frente. Meu coração começa a acelerar dentro do peito quando os olhares de toda
essa gente se voltam para mim. Eu nunca havia me acostumado de fato com isso, de ser o centro das
atenções em momentos como esse. Mas sinto essa sensação de nervosismo mais presente agora,
como se aqui no Brasil os olhares fossem mais atentos e avaliativos.

Encho meus pulmões de ar e solto pela boca. Elevo o queixo, como aprendi nos últimos anos,
de forma com que eu não transpareça insegurança. Abro os lábios em um sorriso contido e
misterioso, e cumprimento com um acenar de cabeça as pessoas mais próximas, que fazem contato
visual.

O salão está lotado de mesas simetricamente posicionadas. Todas elas sob um enorme lustre
de cristais pendido no teto. No centro do salão há um palco em que um cantor performa Frank
Sinatra, acompanhado de instrumentistas.

Pierre me acompanha até a mesa reservada para mim ao lado do palco. Sento-me no assento
ao lado de Giovanna, que está linda em um vestido azul Tiffany. Ela me abraça delicadamente,
elogiando meu vestido. Correspondo ao abraço com carinho, elogiando seu visual deslumbrante para
a noite. Apesar das minhas desavenças com sua família, não me esqueço de sua generosidade no
início da minha carreira, que foi primordial para me alavancar como profissional e me fazer alçar
voos mais altos.

Na mesa ao lado, aceno educadamente com um menear de cabeça para o senador Fernando
Cordeiro e seu filho, Gael, que me fitam insistentemente.

Corro com os olhos discretamente pelo salão, estranhando a ausência de Tereza e Gabriel,
mas não os encontro em canto algum. Dessa forma, relaxo em minha cadeira e começo a embalar
meus ombros ao som do Jazz de qualidade que ressoa do palco à minha frente.

Depois de uma ou duas músicas, o senhor na mesa ao lado se levanta junto de Gael e vem me
cumprimentar. Levanto-me prontamente e aperto sua mão.
Gabriel tem as mesmas feições do pai, mas é inegável que os olhos azuis escuros foram
herdados da mãe. Como eu bem me lembrava, o senador Fernando é imparcial e me agradece por eu
ter aceitado representar a empresa de sua esposa. Sua leveza lembra Gael, que também me recebe
com um aperto de mão e uma piada indiscreta, perguntando se minha amiga viria. Respondo que não,
e ele suspira, aliviado.

Eles acenam por fim e retornam à mesa ao lado.

Antes que eu me sente, escorrego o olhar para a senhora de vestido preto e pedras
iridescentes entorno do pescoço. Pergunto-me como não notei sua presença antes.

Apesar da espessa maquiagem que cobre sua pele, seu rosto é marcado por vincos naturais,
devido à idade, mas ainda assim é uma mulher exuberante fisicamente.

— Pensei que nunca mais a veria, minha querida — Tereza Átila me cumprimenta com aquele
mesmo ar esnobe que sempre deteve.

— Compartilho do mesmo pensamento. Pensei que nunca mais a veria.

Ela continua me fitando com seus incisivos olhos azuis, como se estivesse procurando uma
forma de me intimidar com seu tom esnobe. Mas em nenhum instante vacilo. Sustento o olhar até ela
inspirar fundo.

— É curioso como o mundo dá voltas, não? Anos atrás você visitava minha casa como
namoradinha do meu filho, e veja só agora: você está trabalhando para nós. — Ela abre um sorriso
com pouca verdade.

— Não estou trabalhando para sua empresa. Eu recebi uma proposta e estou a representando.
Aliás, quando Giovanna entrou em contato comigo, ela explicou a situação da Átila, afinal, não tinha
como eu saber que sua empresa estava indo de mal a pior. — Assisto seu rosto retesar. — Mas como
eu não misturo o lado pessoal com o trabalho, decidi aceitar a proposta, pois ela é realmente muito
boa... diria que um tanto desesperada.

— Desesperada? — ela repete com uma sobrancelha arqueada.

— Apesar dos pesares, sua empresa conseguiu fazer um bom negócio. Seria difícil encontrar
outra pessoa que aceitasse o risco.

— Eu deveria agradecê-la? — Ela sorri, irônica.

— Só se seu bom senso lhe permitir.


Ela me fulmina com olhos, e eu não recuo.

— Vejo que aprendeu muito com minha cunhada. Hortência, aquela mulher petulante!

A música estanca ao nosso lado e uma espécie de cerimonialista dá início ao evento de


campanha. O homem calvo e de timbre grave dá boa noite a todos e se apresenta, enquanto a mulher à
minha frente parece dar uma trégua.

— Vou começar dando a palavra a uma mulher muito importante para esse evento... — o
cerimonialista diz.

— Com licença, agora eu terei que falar com as pessoas — Tereza sussurra, se virando para
o palco. Logo em seguida, o cerimonialista anuncia:

— Com vocês, nossa mais nova diva brasileira das passarelas europeias. — Tereza para no
segundo passo. — Recebam com muitos aplausos: Stella Mackenzie!

Tereza olha para trás e uma sonora salva de palmas se faz no salão. Ela me olha, mas dessa
vez não sustento o olhar. Pego uma taça de champanhe de uma bandeja do garçom perto do palco, e
passo por ela, molhando a garganta com a bebida.

— Obrigada pelas palavras gentis — agradeço o homem antes de falar ao microfone.

— Por nada. É um prazer vê-la de perto. Sou um grande amante da moda.

Sorrio gentilmente e em seguida me ponho de frente para as pessoas da alta sociedade de


Curitiba. Abandono a taça de champanhe na superfície do púlpito e começo a discursar as palavras
que ensaiei durante a tarde de hoje.

— Boa noite. É um prazer estar aqui com vocês... representando uma das melhores marcas
automobilísticas de toda a América do Sul. Quando Giovanna me convidou para fazer essa campanha
— olho para a mulher de olhos brilhantes —, confesso que não saberia que ia entrar em uma
campanha tão bonita, apesar dos percalços das gravações (...) Para quem não me conhece, eu sou
Stella Mackenzie. Nasci no Tocantins e morei por um tempo aqui em Curitiba, antes de passar os
últimos anos em outro continente (...) — Todos me olham atentamente, enquanto conto minha história
de vida antes de falar sobre a Átila. Apesar de tudo, sou profissional e dou alguns dados importantes
que a Átila alcançou nos últimos anos, tudo estudado mais cedo. Avisto Gabriel se levantar de uma
das mesas da última fileira, acenando respeitosamente para um senhor de cabelos grisalhos. Ele se
junta à sua família, me assistindo discursar de perto. — Hoje assistiremos ao comercial de
lançamento do mais novo modelo da Átila Motor Company, um SUV potente que aguenta qualquer
tranqueira. Confesso que ainda não assisti o resultado final, verei hoje com vocês. Eu espero que
vocês gostem. Fiquem à vontade.

Pego minha taça de champanhe, sendo seguida pelos aplausos.

Tomo meu assento ao lado de Pierre, que comenta, pousando a mão sobre a minha:

— Divina. Como sempre, Milady.

— Obrigada, Pi.

Dessa vez, o cerimonialista chama ao palco Gabriel, e observo Tereza se remexer na cadeira,
parecendo incomodada com o cerimonialista.

Gabriel se levanta e vai até o palco. Ele agradece a presença de todos e, especialmente, a
minha.

— Tão educado — sussurro para Pierre, revirando os olhos.

— Ah, Milady! Você tem que confessar que hoje ele está maravilhosamente gostoso nesse
smoking. — Pierre olha para mim e neste exato momento se redime: — Me desculpa, Milady. Sei que
não deveria falar assim do alecrim dourado, mas acontece que ele é muito bonitão.

— Tudo bem, Pierre. Você não tem a obrigação de não gostar de alguém por minha causa.
Fique à vontade para gostar ou desgostar.

— Se é assim... — Ele retira os óculos de grau do bolso e encaixa no rosto, cruzando as


pernas e analisando o que Gabriel fala.

Apesar de concordar com Pierre, é incrível como a beleza de Gabriel ultrapassa o físico.
Além de bonito, ele também é muito charmoso discursando. Suas mãos apoiam as laterais do púlpito,
fazendo o lugar ficar pequeno para ele, além de sua voz grave soar muito bem saindo das caixas de
som. Ele olha para mim por um instante e parece esquecer o que estava falando, e depois balança a
cabeça, retomando com dificuldade o assunto.

Ah, Gabriel! Por que você fez isso comigo no passado? Eu não posso mais te dar uma
segunda chance. Eu não estou disposta a arriscar e me ferir novamente. Foi difícil sarar aquela ferida
que ele me deixou, não suportaria caso isso acontecesse outra vez.

Gabriel finalmente chama a dona da empresa ao palco, que já está visivelmente impaciente
com alguma coisa. Talvez com o fato de ter não sido a primeira a discursar.

Seu discurso se inicia ao mesmo tempo que sinto minha bexiga apertar. Eu aviso a Pierre e
me levanto, caminhando em direção às dependências laterais do salão.

Passo por Estêvão, lhe desejando boa noite, e sigo em direção ao banheiro feminino. Adentro
umas das cabines e, finalmente, alivio o xixi preso.

Saio da cabine, indo direto lavar as mãos, mas sou surpreendida pelo reflexo da mulher
recostada em uma das colunas. Maria Júlia. Viro o rosto e a fito por cima do ombro.

Ela não diz nada. Apenas me encara, calada.

Seco minhas mãos com o papel toalha, me virando e vendo que ela ainda está lá, me
encarando com um olhar esquisito.

— O que foi? — Sinto-me incomodada. — Perdeu alguma coisa aqui?

Seus olhos verdes ganham uma tonalidade mais escura, mas de sua boca não sai nada.

— Por que está me olhando dessa forma?

Ela não responde, mas franze o cenho.

Inspiro fundo e pergunto:

— Não vai me responder, não é mesmo?

Fico sem resposta, como eu imaginava.

— Ok. Estou indo, então. — Giro meu calcanhar para o lado da saída e caminho em direção à
porta.

— Você vai morrer. — Escuto sua voz abafada declarar baixinho.

Paro e me viro outra vez para ela.

— O que foi que você disse? — pergunto, caminhando em sua direção.

Ela desgruda as costas da parede e dá alguns passos em minha direção, parando diante de
mim. Ficamos cara a cara.

Ela pronuncia outra vez, pausadamente:

— Eu disse que você vai morrer.

Tenho certeza que um frio percorre minha espinha dorsal com o tom de suas palavras, como
se ela fosse mesmo capaz disso. No entanto, engulo o medo bobo e ergo uma sobrancelha.

— E quem vai me matar?


— Advinha!

— Você? — Sorrio. — Por causa de Gabriel. Ah, vá tomar banho!

— Você duvida?

— Vai ser aqui? Agora? — pergunto, a desafiando. — Faça-me um favor e procure um


terapeuta para ajeitar essa sua energia pesada e esse olhar esquisito que você tem!

Ela esgueira a mão para o supositório da arma de agente de segurança pessoal, e seguro o ar,
com o coração gelando.

— Camille? — Escuto a voz masculina adentrar o espaço.

Olho para trás e vejo que é Estêvão. Ele franze o cenho quando vê Maria Júlia com a mão na
arma.

— O que você faz aqui, Maria Júlia? — ele pergunta.

— Eu quem pergunto, Estêvão! O que faz em um banheiro feminino? — Tenho a impressão


que o tom autoritário de Maria Júlia não agrada a Estêvão. Afinal, ele é o chefe da segurança.

Ele olha para mim.

— Eu vim atrás da senhorita Camille. — Ele pigarreia e direciona as palavras a mim: —


Notei que estava demorando.

— Com licença — Maria Júlia diz com o tom de voz ríspido e sai do banheiro, junto com sua
energia sinistra, que me dá calafrios.

Suspiro, aliviada.

— Tem algo de errado, senhorita? — Estêvão me pergunta, estudando minhas feições.

— Eu não gosto dessa mulher — digo, colocando a mão atrás do pescoço.

— Eu também não — ele diz em um tom desconfiado, olhando para a saída atrás de nós.

— Você também? — Arregalo os olhos, surpresa. — Você notou aquele olhar esquisitão que
ela tem?

— Uhum. — Ele assente em um tom imparcial, talvez não querendo desenvolver uma fofoca
sobre a colega de trabalho.

— Eu pensava que só eu achava isso.


Levanto a mão e digo rapidamente:

— Bate aqui.

Ele me olha relutante, mas bate timidamente a mão na minha.

— Se não se importa, eu vou ter que sair daqui — ele diz, sem jeito, abaixando o braço.

— Claro. Eu vou com você.

Caminho ao lado dele e cruzo nossos braços.

— Qual outra coisa você não gosta, Estêvão?

Ele me olha confuso, constrangido com minha aproximação.

— Como assim, senhorita Stella? — ele indaga.

— Ah, pode me chamar de Camille. Como você havia me chamado ainda agora no banheiro.
Somos velhos amigos.

— Somos? — Ele pisca os olhos, confuso.

— Uhum. — Sorrio de sua reação. — Mas retornando à minha pergunta inicial: qual outra
coisa você detesta?

— Como assim?

— O que mais te tira do sério?

— Mentiras. — Ele é categórico.

— Engraçado, eu odeio mentiras também. — Sou sincera ao dizer. — Eu acho que temos
muitas coisas em comum. — Lanço-lhe um sorriso gentil, e ele retribui com um acenar de cabeça.

Caminhamos até o salão, enquanto faço diversas perguntas a Estêvão. Curiosamente,


descubro que ele morou durante a infância próximo à minha antiga casa, o que me faz achar que
temos mesmo muitas coisas em comum.

Quando chegamos ao salão, Estêvão se solta do meu braço cuidadosamente. Olho para o telão
do outro lado e percebo que o comercial já está prestes a ser exibido. Até mesmo o discurso de
Tereza tinha terminado.

Pierre levanta a mão da mesa na qual eu estava, sinalizando para que eu retorne ao meu lugar.

— Com licença, Estêvão.


Ele assente com um menear de cabeça e vou em direção a Pierre.

— O que você estava fazendo, Milady? Por que demorou? — Pierre sussurra em meu ouvido
quando me sento.

— Depois eu te conto, Pi. Ultimamente tem acontecido umas coisas estranhas — murmuro de
volta.

Giovanna, que havia saído para dar uma volta, retorna à mesa, comentando:

— Finalmente vão exibir o comercial. Lauro já chegou.

— Vai ter uma After Party depois do comercial? — Pierre pergunta, curioso.

— Com certeza! — Giovanna joga uma piscadela para Pierre. — Ou eu não me chamo
Giovanna Átila Cordeiro.

— Ah, é hoje que saio daqui casado! — Pierre reforça, animado, quando as luzes se apagam.

As primeiras imagens exibidas são as minhas em um quarto branco, impulsionando devagar


meu corpo em um balanço. A voz gravada em estúdio se sobrepõe ao vídeo — uma pequena peça
teatral para envolver o interlocutor. De repente, o balanço se transporta para a floresta tropical, em
que eu encontro o SUV. A fotografia da filmagem ficou sensacional e farei questão de parabenizar
Lauro depois.

O vídeo termina e o carro coberto por uma manta preta é revelado ao público. Os aplausos
eclodem, animados, influenciados pela linguagem conativa dos detalhes do comercial. E, de alguma
forma, me sinto orgulhosa por participar do projeto.

Torço para a Átila se restabelecer como uma empresa confiável, pois sei o quão duro as
pessoas trabalham todos os dias para fazer as coisas acontecerem — assim como acontece nos
ateliês de costura. Quando algo dá errado, todos têm que pagar o preço, sendo uma negligência ou
não da administração.

Levanto-me ao lado de Pierre e vou até Lauro, que está em pé, e o parabenizo. Quando olho
em volta, todos já se levantaram e conversam entre si. Cumprimento algumas pessoas que puxam
conversa, enquanto uma música eletrônica envolve o espaço. Perto do palco, as mesas haviam sido
retiradas, e uma espécie de tímida pista de dança se formou por ali.

Depois de cumprimentar a mulher do governador e agradecê-la pelas orquídeas que me


enviou, Pierre me conduz para a pista de dança.
— É impressão minha ou aquele homem está olhando para você, Pi? — Refiro-me ao homem
barbudo que não desgruda os olhos de Pierre.

— Também percebi. Eu acho que ele se encantou. Acho que vou lá falar com ele.

Seguro sua mão e digo:

— Claro que não, Pi. Deixa ele vir primeiro.

— Será que ele é algum empresário? — ele pergunta, confabulando.

Olho as botas de couro marrom do homem e comento:

— Está mais para um fazendeiro.

— Não diga? Eu adoro montar a cavalo. — Ele dá um solavanco e me assusto quando diz: —
Não sirvo para ser difícil, Milady. Eu sou uma gay decidida. Eu vou lá agora — ele avisa e me
entrega sua taça de champanhe.

— Pierre do céu! — digo, apreensiva.

Vejo-o entrar em ação, caminhando até o homem e pegar a taça de champanhe do fazendeiro
em movimentos de puro flerte. Olho para o lado antes que eu convulsione de ansiedade por Pierre.

Devolvo as taças de champanhe vazias para o garçom e, sem querer, avisto Estêvão. Ele
ainda está perto das colunas laterais, imóvel. Nossos olhares se cruzam e ele desvia no mesmo
instante, com as bochechas ganhando um tom avermelhado. Que bonitinho. Estêvão até ficou
envergonhado?

Não me controlo, e quando dou por mim, estou atravessando o pequeno espaço, indo até as
colunas, onde ele está.

— Vamos dançar? — pergunto em uma oitava mais alta, devido ao som.

Ele me encara seriamente e responde educadamente:

— Estou em meu horário de trabalho.

— Qual é? Gabriel não vai demitir você por dançar um pouquinho.

Ele parece ter mais juízo do que eu e me explica:

— Não é ético, senhorita Camille.

Inspiro fundo e me resigno:


— Tudo bem.

Preparo-me para voltar para a pista de dança quando tenho uma ideia.

— Você vai ficar a noite toda parado aqui?

Ele olha para os lados e responde:

— Certamente.

Arqueio uma sobrancelha e aquiesço.

— Tudo bem.

Embalo meu corpo em sua frente, de acordo com a música que sai das caixas de som em cima
do palco, e começo a dançar ali mesmo, na frente de Estêvão.

— O que está fazendo? — Ele coça a ponta do nariz, visivelmente envergonhado.

Coloco-me ao seu lado e roço nossos braços, dizendo:

— Dançando. Com você.

Coloco-me em sua frente e começo a girar os braços no ar, ao som da música If you, do DJ
Magic Box, enquanto tento arrancar um sorriso dele, mas ele parece ser durão. Faço o “dois” com os
dedos e deslizo no ar, próximo ao meu rosto, como nas danças antigas, e, neste exato momento, flagro
um meio-sorriso dele. Sorrio abertamente, continuando dançando. Estêvão não mexe um músculo,
mas também não se afasta, e, por vezes, sorri das minhas dancinhas ultrapassadas.

Coloco minha mão em seu ombro, me apoiando para jogar meu corpo para trás, no entanto,
me desequilibro e quase vou ao chão, se não fossem as mãos rápidas de Estêvão, que me aparam a
tempo. Enquanto meu coração quase sai do peito, Estêvão me encara com seus olhos castanhos bem
próximos ao meu rosto.

— Tenha cuidado, senhorita — adverte.

Ele puxa meu corpo para frente, me firmando no solo.

De repente, a música pausa, e automaticamente olho para trás, encontrando Gabriel em cima
do palco, atrás da caixa de comando do som. E pela cara de poucos amigos, ele parece estar de mau
humor. Não entendo porque exatamente ele tem que olhar em minha direção com aquela carranca.

Vejo-o mudar a música para uma ópera melodramática e, em seguida, observo ele descer do
palco.
— Milady. — Vejo Pierre se aproximar com uma expressão não muito confortável.

— Oi, Pierre. Aconteceu alguma coisa? — Estranho sua expressão facial.

— Já que você cumpriu com todos os seus compromissos hoje, será que poderíamos ir
embora? — Pierre pergunta, escondendo a lateral do rosto com a mão. Ele parece envergonhado, não
tenho certeza. De repente, me pego curiosa: o que foi que o fazendeiro fez para deixar Pierre
envergonhado?

Entendo a situação.

— Claro, Pi. Estamos indo — aviso, me despedindo de Estêvão.

Caminhamos apressadamente entre as pessoas, enquanto cochicho:

— O que houve, Pierre?

— O homem é deficiente visual — ele fala tão baixinho, que nem sei mesmo se ouvi direito.

— Não escutei, Pierre! Ele é o quê?!

— É cego, Milady! — ele fala um pouco mais alto, choramingando. — Ele não estava me
paquerando, é que o homem tem um olhar perdido mesmo. E, ainda por cima, a namorada do homem
apareceu e disse que eu estava me aproveitando de sua deficiência para assediá-lo.

Seguro-me para não rir, mas falho miseravelmente.

— Ai, que vergonha, Milady! — ele exclama, quase chorando quando passamos pela saída.

— Não fique assim, Pi... — Seguro os ímpetos de risos. — Isso acontece.

— Eu sou um desastre.

— Não é não.

— E por que a senhora está rindo?

— É porque foi engraçado. Desculpa. — Inspiro fundo, tentando respeitar o momento de


vergonha de meu querido amigo.

— Eu nunca mais vou paquerar.

— Não faça promessas que não pode cumprir.

— Ah, Milady! — ele choraminga mais uma vez, deitando sua cabeça em meu ombro.

Consolo Pierre de suas lamentações até chegarmos ao meu apartamento. Abrimos uma garrafa
de champanhe e começamos a conversar asneiras, terminado a noite com a barriga doendo de tanto
sorrir.
42 | A VERDADE

Camille

Levanto da cama por volta das nove horas da manhã, depois de enrolar um bocado entre os
lençóis de seda, sentindo os efeitos de uma noite regada a champanhe e Martini pesar a cabeça. Vou
ao banheiro e lavo meu rosto com água morna, que jorra da cuba de mármore. Faço minha higiene
matinal e, em seguida, retorno ao quarto, escovando meus cabelos e prendendo-os em um coque
apertado.

Fecho meu robe e caminho até a sala, onde Pierre anda de um lado para o outro, falando ao
telefone. Pela conversa, trata-se da administração do condomínio. Então decido ir até a cozinha,
encho uma xícara de café, e retorno à sala, em que Pierre já está encerrando a chamada.

— Problemas? — indago, bebendo um gole espesso de café.

— Nada que atrapalhe sua paz. Documentação pendente.

— Ah, sim!

Ele dá um solavanco e exclama:

— Ah, tenho uma notícia muito boa, Milady!

— Hum, que maravilha! Eu sempre estou ansiosa por notícias boas. — Dou outro gole no
líquido fumegante.

— Eles depositaram na sua conta o valor da campanha — ele diz, depois tampa a boca com a
mão, deixando à mostra apenas os olhos brilhando.

— Isso sim é uma boa notícia.

— Milady está rica outra vez. Mal posso acreditar que vamos organizar o desfile dos sonhos
no Corcovado.

— Eu disse que daria certo. — Caminho até o sofá e tento pensar racionalmente. — O que os
julgadores da internet estão dizendo sobre a campanha?

Ele inspira fundo e solta o ar de uma vez só.

— Ainda é cedo, Mademoiselle. Giovanna avisou que o primeiro comercial será exibido
hoje em rede nacional. Aliás, vou ligar a televisão agora. Não quero perder esse primeiro momento.

Ele pega o controle em cima do console e liga a tela.

Meus olhos passam despretensiosamente pela legenda da notícia, em que diz:

“Após dez anos, o caso do acampamento pode ter chegado ao fim. A polícia chega a
indícios importantes do paradeiro do mandante dos disparos”.

Reconheço o homem de paletó preto e óculos escuros adentrando ao prédio da polícia federal
em meio aos fotógrafos e seguranças, e meu coração se comprime dentro do peito. É Gabriel,
provavelmente, indo prestar depoimento.

Pierre se prepara para mudar de canal, mas sou rápida.

— Não mude, Pierre! — Impeço, enquanto ouço o interlocutor dizer:

“O mistério pode ter chegado ao fim. A investigação sobre a morte de três meninos em um
acampamento aos arredores do São José dos Pinhais pode ter finalmente encontrado uma pista
real sobre o mandante dos disparos, motivados por uma tentativa de manipulação de investigação
contra um esquema de corrupção que vem se arrastando há anos. O filho mais velho do falecido
juiz Ramos, na época chefe da forte investigação contra o esquema de corrupção, teria sido o alvo
principal, com a finalidade de desestabilizar Ramos. O juiz apresentava um quadro de depressão e
zelo excessivo com o filho mais velho. O que está sendo investigado é que o senador Otávio
Cordeiro pode ter pensado friamente em uma forma de parar Ramos na época, com o propósito de
ganhar tempo e esconder provas que o condenasse. O que resultou na morte de mais dois colegas
de seu filho, sobrevivendo apenas Orlando Ortega Cordeiro, filho de Otávio, que também era
amigo de escola das vítimas. Tudo indica que a morte dos dois colegas de Ramos foi outra forma
de despistar as investigações, o que teve êxito por muito tempo. O juiz Ramos se afundou em seu
quadro de depressão e, poucos anos depois, foi encontrado sem vida na casa em que vivia com os
dois filhos.”

— A-aquele que acabou de entrar na delegacia é o... — Pierre gagueja.

— Sim, Pierre. É Gabriel. — Não consigo disfarçar a surpresa em meu tom de voz. O pai de
Orlando? Durante todo esse tempo era ele? Por quê? A troco de que ele perseguiria todos esses anos
o próprio sobrinho? Ah, Deus! Um frio irrompe minha espinha dorsal, e penso no quão obscura é
essa história que cerca Gabriel.

O jornalista prossegue com a reportagem:


“Na época, Gabriel Átila foi tido como principal suspeito e absorvido por falta de provas.
O jovem é filho da empresária Tereza Átila com o senador e ex-juiz federal Fernando Cordeiro,
irmão do senador Otávio Cordeiro.”

— Oh, Dios mio! Que notícia é essa, Senhor?! — Pierre exclama, aterrorizado com as
informações escabrosas. Ele se vira para mim e pergunta: — Isso é verdade, Milady?

— Eu não sei, Pi — exclamo baixinho. — Não sei.

Apesar de conhecer o passado de Gabriel, não sei o que está acontecendo nesse momento.

“Nesta manhã, Gabriel fará um novo depoimento à polícia, assim como Otávio Cordeiro.
Tudo indica que, dessa vez, o culpado vai responder pela morte brutal dos três adolescentes
naquela noite de junho de 2007.”

A reportagem termina, mas aquelas palavras ainda estão rodando minha cabeça em espiral.
Assistir tanta maldade não me fez bem. Desligo a TV e caminho para a sacada do apartamento,
embrenhando meus dedos nos cabelos. O céu está se fechando, ganhando uma tonalidade cinza-
escuro, acompanhado do vento frio que sopra meu rosto. Teria Gabriel sido pego de surpresa hoje?
Com certeza, ele não estava esperando que essa notícia vazasse. Se não, ele não teria marcado o dia
de lançamento do comercial para hoje.

Depois de alguns minutos calada, ainda em choque, percebo que Pierre foi à cozinha nesse
meio tempo e preparou um chá para nós dois. Ele me convida para me juntar a ele, então sentamos na
bancada da cozinha e conto tudo o que eu sei sobre a família Átila, enquanto Pi me escuta
atentamente. Eu queria poder comentar aquilo com alguém de confiança.

— Você acha que Gabriel sabia?

Pierre pisca duas vezes e endireita a coluna.

— Mademoiselle, pelo o que você me disse agora, ele sabia. Ele com certeza já sabia e faz
algum tempo.

— Você acha que foi mesmo o tio dele?

— Quem saberá responder essa pergunta é a polícia.

— Como será que Hortência reagiu a uma notícia dessas? — comento. — Meu Deus! Orlando
odiava Gabriel.

Pierre inspira fundo e diz, afastando o assunto:


— Isso não é da nossa conta, não sobrecarregue essa cabecinha com essas notícias mórbidas!
Eu esqueci de dizer, mas a senhora foi convidada para tomar um chá da tarde na casa de uma atriz
que está bombando nas redes sociais daqui, Isadora Pinheiro.

— Recuse o convite educadamente, Pi. — Levanto-me para lavar a xícara indiana na pia da
cozinha. — Eu vou passar o dia na casa de minha família. Preciso espairecer até começarmos a nos
dedicar a todo vapor à nova campanha do Corcovado.

— Tudo bem, minha querida. Eu entendo você perfeitamente.

— Você viu o que deixei para você em cima do aparador? — pergunto, me lembrando das
passagens que imprimi ontem, logo depois que Pierre adormeceu no sofá.

— O quê? Não vi.

— Passagens para o Espírito Santo, meu amigo. Eu quero que tenha uma semana de folga
antes de começarmos mais uma jornada de trabalho.

— Não acredito! Isso é sério, Milady? — Ele arregala os olhos.

— Vá ver sua mãe, meu querido. Eu tenho certeza de que ela vai amar lhe ver.

Seus olhos se enchem de um brilho radiante e depois ele vem me abraçar, dizendo:

— Muito obrigado. Eu vou, Mademoiselle, mas prometo não demorar muito.

— Eu me cuido, Pi. Fique tranquilo.

— Obrigado.

— Não precisa agradecer. Você sabe que trabalhando para mim vai ter muito desses
momentos. A sua mãe vai até abusar da sua cara. — Nós sorrimos juntos baixinho, abraçados. Por
alguns anos, me sentia como Pierre, como se eu estivesse a todo momento renunciando de minha
família para viver uma vida só para mim. Eu não queria viver assim. Eu queria poder abraçar meu
pai quando eu quisesse, pois a vida por si só é muito curta para não vivermos ao lado de quem
realmente importa. Eu espero que meu amigo possa desfrutar do amor de sua mãe na mesma
proporção que sinto a necessidade de estar perto de minha família. A partir de agora, minha vida
passa por muitas outras mudanças, digamos que até reversas. Mas, no fim, a vida é assim mesmo:
uma constante engrenagem de mudanças de rumos, pensamentos e destinos. Nosso dever é unicamente
estarmos tranquilos para encará-la na adversidade que aparecer.

Eu espero que essa mudança tenha chegado para Gabriel.


Apesar das desilusões no passado, desejo que ele seja livre. Eu desejo isso do fundo da
minha alma.

Gabriel

A manhã foi longa na delegacia. Quando prestei oficialmente meu depoimento, resolvi voltar
para a casa de meus pais.

Em meu telefone há 39 chamadas perdidas de minha mãe, que provavelmente já deve estar
enlouquecida com os noticiários. Sabia que isso mais cedo ou mais tarde iria acontecer, mas não
detinha o controle de quando aconteceria.

Era certo.

O desgraçado fez tudo por dinheiro. Para encobrir a merda do dinheiro sujo que desviava dos
cofres públicos.

Há provas cabais de que meu tio é o culpado. Não se pode condenar ninguém sem o devido
processo legal, é constitucional. Mas para os operadores da Lei está claro. Roberto Lagos, um
sicário — mais conhecido como assassino de aluguel —, foi preso alguns meses atrás, em
decorrência de outro assassinato. Depois de um depoimento de Lagos, as investigações começaram a
ligarem os pontos, até chegarem a um dos senadores do Estado.

Ainda que não saiba exatamente se o desgraçado do meu tio está atrás de mim todos esses
anos ou se foi apenas ele quem encomendou a morte dos adolescentes naquele acampamento.

Por mais que eu soubesse que as investigações estavam tomando esse caminho, ainda custava
a acreditar que era ele por trás de tudo.

Era para ter sido eu também naquela noite, caso eu tivesse o infortúnio de estar naquele
quarto de chalé àquela hora. Era para ter sido eu também.

Meus pés parecem mais firmes quando tocam o chão de entrada da casa de minha família. O
tempo em Curitiba não está iluminado, pelo contrário, a chuva começa a despencar lá fora e os
cômodos ficam naturalmente mais escuros quando isso ocorre.

Uma das secretárias da casa me avisou que minha mãe se encontra no terraço do jardim, então
atravesso o primeiro andar pelos corredores, encontrando minha mãe parada em frente ao jardim.
Caminho até ela e paro a1i, ao seu lado.

A vejo observar por trás do vidro o jardim sob a chuva forte.

Deslizo as mãos para os bolsos, inspirando fundo.

— Mãe...

— Você sabia? — ela pergunta, sem desviar os olhos do pedaço de terra embaçado pela forte
chuva em nossa frente.

— Uhum — confirmo. — Faz alguns meses.

Elevo meus olhos para a mesa e o conjunto de cadeiras brancas de ferro forjado no centro do
jardim. Meu pai está ali, sentado, com o olhar perdido no horizonte, enquanto os pingos de chuva
inundam o café da manhã posto à mesa.

— Meu pai... — Dou um passo à frente e minha mãe segura o meu braço.

— Deixa ele, Gabriel. — Minha mãe, pela primeira vez, me olha nos olhos. — Seu pai está
anestesiado com essas notícias. Ele está se sentindo culpado.

— Ele não tem nada a ver com isso, minha mãe.

— Você não o conhece? Seu pai não é como eu. Seu pai sempre teve o coração amolecido.
Ele provavelmente está se culpando por não ter protegido você durante todo esse tempo.

— Ele não sabia.

— Mas era o irmão dele, Gabriel. Seu pai foi criado com Otávio. Entenda que ele precisa
digerir isso... — Minha mãe inspira fundo, antes de dizer: — Sei que esse não é o momento, mas esse
acontecimento também enterrou a carreira política de seu pai, apesar de ter levado uma vida justa e
honrada. A política, infelizmente, mexe muito com a imagem. Então eu preciso que você seja forte,
meu filho. Ainda antevejo uma grande tempestade se aproximando em nossas vidas. É necessário que
estejamos fortes. Nesse momento, mais do nunca. — Minha mãe segura minha mão e agradeço por tê-
la ao meu lado. Apesar de toda sua rigidez, minha mãe é quem sustenta os pilares de nossa família.
Talvez ela esteja cansada, farta de tomar conta de quase tudo a vida inteira, no entanto, ela nunca
deixa transparecer. Muito pelo contrário, ela sempre está ali para pensar na melhor forma de nos
proteger. Às vezes, ela acerta; outras, erra, como qualquer outro ser humano. Mas ela sempre está ali.
Por nós. É por essa razão que tenho que tomar o controle da situação. Meus pais envelheceram, e
chegou minha hora de tomar as rédeas dos problemas que nos acometem e dá um passo à frente,
assumindo o controle do que é nosso.
43 | NOITE CURITIBANA

Camille

— Finalmente, um dia de descanso nessa vida sofrida de acadêmica! — Donatella se lamuria,


jogando o corpo esguio contra o sofá da sala, enquanto leio sobre as passarelas brasileiras em meu
tablet, em plena manhã de sábado. Apesar de Donatella ter se tornado uma universitária, ela ainda
aparenta ter os anos da adolescência. No entanto, é só a carinha que aparenta. Donatella sempre foi
uma menina com a mente desenvolvida para a idade dela.

Alguns dias se passaram desde que Pierre embarcou para o Espírito Santo, e eu fiquei em
Curitiba, desfrutando de uma vida normal na casa de meu pai. Passo quase o dia todo conversando
com tia Lúcia e a ajudando em alguns afazeres de casa. Aliás, eles não poderiam ter escolhido uma
casa melhor. O jardim é amplo, assim como a casa, e repleto de árvores frutíferas.

— Eu preciso de uma festa para desestressar um pouco — Donatella suspira.

— Eu ouvi alguém dizer “festa" aí? — A voz feminina adentra a sala, ao passo que viro a
cabeça em direção à porta e vejo que se trata de Manuela. — Bom dia, família.

— Eu não acredito! — Donatella exclama. — Parece que os céus ouviram minhas preces e
trouxeram a melhor festeira da cidade para a sala da minha casa! — minha irmã diz, olhando para
Manuela com os olhos brilhando.

Fito Manuela por cima do tablet e pergunto:

— Não vá me dizer que nesses anos você levou Donatella para aquelas festas que você ia,
Manuela?

Manu pisca os olhos e me responde, como se fosse óbvio:

— Mas é claro que sim! — Ela se aproxima do sofá e se senta, erguendo o dedo indicador em
riste. — Camille, se você está preocupada com a possibilidade de que eu tenha desvirtuado sua
irmãzinha nas noites curitibanas, saiba que é mais provável que ela que me leve para o mau caminho.

Tia Lúcia retorna da cozinha, comentando:

— Isso é verdade. Donatella não é flor que se cheire.

— Mãe! — Minha irmã abre a boca, fingindo estar ofendida.


— O que foi? A única nesta casa que poderíamos dizer que era uma moça inocente era
Camille — tia Lúcia diz, me analisando logo em seguida. — Mas, agora, nem sei se posso dizer isso.

Tia Lúcia fala divertida, me arrancando uma risada.

Descruzo as pernas, enquanto Donatella comenta entre risos:

— Ainda bem que o tio Afonso não está aqui para ouvir essa conversa.

— Já, já ele volta do mercado — tia Lúcia lembra.

Como é bom ter essas conversas descontraídas no sofá da sala, sem ter hora para acabar.
Depois que meu pai chega, almoçamos na companhia de Manuela, e passamos a tarde inteira
confabulando sobre a noite de hoje.

Manuela dá algumas sugestões de lugares para sair, mas nenhum deles parecem agradar minha
irmã mais nova.

— Tive uma ideia — Donatella exclama, deitada na rede armada no terraço. — E se Camille
pegasse uma senha naquela festa fechada no Batel?

— Aquela festa? — Manu exclama.

— Que festa? — indago.

Manu me explica em tom de fofoca:

— É uma festa que só convidam a alta sociedade de Curitiba, amiga. Só tem homens ricos,
lindos e sarados lá. Eu só vejo fotos dessa balada pelo Instagram, mas nunca cheguei nem perto de
ser convidada. Eu nem sei onde é.

— Mas a Stella Mackenzie... — Donatella diz. Ela e Manuela se entreolham, como se


estivessem planejando algo.

— Por favor, me deem um minuto. Descubro já o número da organização dessa festa. —


Manuela pesca o celular do bolso rapidamente e digita algo na tela. — Eles precisam saber que
Stella Mackenzie deve estar hoje na festa deles.

Reviro os olhos nas órbitas, prevendo uma noite maluca com essas duas.
Finalmente ficamos prontas, depois de passarmos horas nos vestindo e maquiando em frente
ao espelho do quarto de Donatella. Deixamos uma verdadeira bagunça para trás e saímos de casa
exatamente às nove, no carro de meu pai — a Kombi amarela que ele arrematou em um leilão de
carros antigos.

Escolhi um vestido preto com uma fenda discreta, que corta até o meio de minhas costas, em
que meus cabelos cobrem minha pele desnuda. Como eu não havia renovado minha carteira de
habilitação, Donatella dirige até a área badalada do Batel, que não demora muito para chegarmos.

Estacionamos em frente ao sobrado iluminado por luzes de neon, vigiado por dois seguranças
parrudos.

— Não sei vocês, meninas, mas eu posso curtir a festa na entrada mesmo — Manuela diz,
saindo do carro e fazendo contato visual com uns dos homens de preto. — O que você acha,
Donatella?

— Muito grandes! Não fazem meu tipo. — Donatella faz uma careta ao comentar.

— Esqueci que seu tipo é estilo malhação. Magrinho, cabelo lambido para o lado, rostinho
bonitinho...

— Vá se ferrar, Manu! — Donatella pragueja, rindo.

— Talvez faça o tipo da sua irmã. — Ela me olha com uma sobrancelha arqueada. Não dou
qualquer indício de consentimento. — Talvez da Stella Mackenzie?

Abro um sorriso, assentindo.

— Talvez.

Caminho para a porta de entrada, enquanto Manuela solta um gritinho atrás de mim.

— Não se faça de sonsa, Camille! Você já gostava de homens musculosos muito antes de sair
do país. Não é à toa que seu primeiro amor foi um puta de um homem gostoso e musculoso —
Manuela continua brincando. Passamos pela porta de entrada depois que confirmo meu nome e de
minhas acompanhantes com um dos seguranças. — Ah, meu Deus! — Manu exclama.

Ela arregala os olhos quando chegamos ao salão da festa de ornamentação em neon. Tudo
parece jovial nesse lugar, desde o DJ em cima do palco, no meio do salão, até a enorme bola de
cristal pendida no teto, girando energeticamente. Olho em volta, observando aquela gente, e vejo que
a realidade cumpre com o que as meninas prometiam mais cedo: além de mulheres deslumbrantes, há
muitos homens bonitos. No entanto, todos parecem iguais em suas camisas polo de marca.

Manuela é rápida em nos arrastar para o balcão de bebidas no lado esquerdo do salão, onde
se encanta pelo barman. Até que o ruivo não é nada mal. Tem uma tatuagem sexy no braço esquerdo e
um olhar misterioso, o suficiente pra Manuela ativar o modo flerte.

Duas ou três pessoas me reconhecem, e me pedem educadamente para tirar foto. Sorrio
gentilmente para os cliques e torno a sentar ao lado de Manuela.

Ficamos por um bom tempo no balcão do bar. Fico observando o movimento, a música e as
pessoas sentadas no andar superior antes de ir para a pista dançar um pouco.

— Quem são? — pergunto à Manuela, observando três homens grandes e cheios de músculos
sentados em uma mesa rodeada de mulheres. O primeiro tem os cabelos loiros, o segundo é um
careca que consegue ser maior do que o homem sentado ao seu lado, e o terceiro tem cabelos
castanho-escuros e detém uma aparência um pouco menos intimidadora.

Manuela olha para cima e me responde:

— Ruan Gonzalez, Pablo Pauloski e Diego Garito. Lutadores de MMA aqui de Curitiba.

— Não conheço. — Dou um gole de margarita em minha taça em formato de pera.

— São muito famosos aqui em Curitiba, lutam em torneios e tudo mais. Mas não conseguem
se destacar no cenário nacional, porque são uns fanfarrões. O Diego Garito é disputadíssimo entre as
mulheres aqui de Curitiba, mas é um verdadeiro sem-vergonha. Não consigo entender o fetiche
dessas mulheres para homens idiotas, por mais que eu goste de homens gostosos, existe um limite
para babaquice. — Manu continua, indiferente: — Eles devem ser convidados VIPs, por isso estão
sentados lá em cima.

Nesse mesmo instante, alguns homens chegam à mesa ao lado, o que me chama a atenção.

— Espera aí. Eu conheço aquele loiro — Manuela comenta, surpresa.

Volto minha atenção completamente para os homens ao lado e vejo que o loiro se trata nada
menos que Gael, acompanhado de outros homens de terno, entre eles, Gabriel.

Dou outro gole no drink em minha mão, enquanto Manuela comenta:

— Que merda! O que eles estão fazendo aqui?

Me pergunto o mesmo. Eu passei quase a semana toda assistindo as notícias sobre a prisão
temporária do seu tio e, de alguma forma, isso me deixa um pouco irritada. Como ele poderia estar
na mesma festa? Ele frequenta esses tipos de lugares? Desde quando?

Eles sentam no sofá em volta da mesa ao lado dos lutadores de MMA e, automaticamente,
duas mulheres que passam por ali se direcionam à mesa deles para cumprimentá-los.

Gabriel parece perdido em seus próprios pensamentos, em sua postura ereta e ao mesmo
tempo relaxada: com as pernas entreabertas e as mãos pousadas sobre as coxas. Pelas roupas, ele
parece ter vindo de alguma ocasião empresarial, e parece ignorar o que acontece à sua volta,
enquanto o irmão dá atenção às loiras.

Estou quase desviando o olhar quando seus olhos parecem dispor de algum tipo de ímã para
os meus. Ele cruza meu olhar e, no mesmo instante, giro meu corpo lentamente para o balcão.

— Uma dose dupla de tequila, por favor — digo ao barman.

— Por que de repente eu estou achando que essa noite vai ser um fiasco? — Manuela se
pergunta.

— Fica tranquila. Ninguém vai atrapalhar nossa noite.

— Ele não para de olhar pra cá.

— Então não olhe de volta, Manu — replico, e tão logo ela se vira também.

O monumento ruivo me serve a dose de álcool, agradeço e viro o copo de uma vez só.

Manuela me fita, piscando os olhos copiosamente.

— O que foi? — pergunto, confusa.

— Nada. O mundo definitivamente anda mudando — ela pensa alto, com um sorrisinho nos
lábios.

— Eu vou dançar — disparo, decidida.

— Ok. — Ela levanta as mãos no ar. — Vou ficar aqui com Donatella. Estamos muito bem
acompanhadas — ela diz, com os olhos procurando o ruivo atrás do balcão.

Pego minha taça com margarita e caminho entre as pessoas ali, começando a embalar meu
corpo no ritmo da música eletrônica.

O álcool já está começando a fazer efeito e as luzes parecem se triplicarem quando olho para
cima, mexendo meu corpo lentamente. Apesar de ficar tentada, não olho de forma alguma para o
andar de cima. Sinto meus cabelos dançarem em minhas costas nuas e começo a sentir aquela
sensação gostosa de estar imersa nas batidas. Fico assim por um bom tempo.

Levanto minha taça para o alto, fechando os olhos, sentindo a música penetrar meu corpo.
Neste exato momento, sinto o calor de um corpo muito próximo ao meu, atrás, o que faz meu coração
gelar. Sinto uma mão resvalar para minha barriga, arrepiando os pelos de minha nuca. Viro-me
rapidamente, dando de cara com as esferas azuis intensas me encarando.

— O que está fazendo? — Resfolego, a centímetros de sua boca macia.

— Eu quem pergunto. O que está fazendo aqui? Está me seguindo? — ele pergunta, sem tirar
os olhos de minha boca.

Encho meus pulmões de ar e sorrio.

— Você só pode estar de brincadeira — resmungo, me afastando um pouco e falando em uma


oitava mais alta: — Pensei que não frequentasse esses lugares!

— Tem razão! Eu não frequento! — ele responde, aumentando o tom de voz. Ele se aproxima
do meu ouvido e explica: — Gael me sugeriu que viéssemos. Estávamos em uma reunião que se
estendeu até o início da noite. — Maldita voz aveludada, que faz todos os meus sentidos vacilarem.

Afasto-me novamente, quase gritando sobre a música:

— Não tem muita gente aqui, não? Não é perigoso para você?

Ele parece notar um pouco de nervosismo, talvez motivado pelo álcool. Sim, o álcool tem um
efeito reverso em mim. Ao invés de me relaxar, me tira completamente da minha postura de madame
má, que levei um tempo para adquirir.

Ele se aproveita disso e se aproxima do meu ouvido.

— Ainda tenho seguranças. Mas estou confiante de que andarei sozinho em breve. Talvez
acompanhado. De uma pessoa só — ele diz as últimas palavras como um sopro, o que faz meu
coração tropeçar. Sua mão cai para minha costa desnuda, que sofre espasmos com o seu simples
toque.

Ele afasta o rosto para me encarar e percebo que ele sabe que está no controle da situação.

Droga! Eu não posso deixá-lo por cima da carne seca.

Faça alguma coisa!

Faça alguma coisa!, ordeno, incomodada comigo mesma.


Decido tomar o último gole de margarita e depois entro no clima de sua investida. Jogo um
braço para trás do ombro dele e lentamente colo nossos corpos, sentindo o calor torturante que vem
de seu tronco e também sentindo a protuberância dos contornos de seu corpo. Sussurro em seu
ouvido:

— Quem seria essa pessoa que você mencionou?

Noto que a pele de sua nuca arrepia com meu tom de voz manso. Eu sei ser doce quando eu
quero.

— Eu a conheço? — pergunto, roçando levemente meus lábios no canto de sua orelha.

Ele aperta minha cintura, fazendo com que eu leve um susto e o encare de frente.

— Não brinque comigo, Camille.

Neste momento, seus olhos azuis-cobalto detém uma tonalidade escura que beira a
assustadora, parece que eu cometi uma afronta à sua pessoa.

— Senão o quê? — desafio-o, arqueando uma sobrancelha.

Ele aperta novamente minha cintura, me dando um gatilho. Ele me encara como se estivesse
prestes a me engolir, no entanto, manuseia meu corpo para longe do seu.

— O que foi? — digo em uma oitava mais alta.

Ele responde em seu tom de voz normal, encoberto pela música alta, no entanto, consigo fazer
a leitura de seus lábios:

— É melhor ir, antes que eu cometa uma besteira.

Ele recua alguns passos e segue seu caminho de volta entre a pequena multidão naquele
espaço. Levo a mão até o meu pescoço e resmungo, baixinho:

— Droga, eu estou suando!

Retorno à bancada do bar, a fim de pegar um drink e refrescar meus ânimos.

— O que aconteceu? — Manu pergunta, analisando meu rosto de perfil.

Pigarreio e disfarço:

— Como?

Ainda continuo péssima em disfarçar meu estado de espírito.


— Você parece, sei lá, estranha. Aconteceu alguma coisa na pista?

— Não. Está tudo bem. — Sorrio para Manuela e ela dá de ombros. Eu não quero tirar o foco
de nossa noite de meninas para a minha história com Gabriel.

— Outra margarita, por favor — peço ao barman.

Quando minha taça fica pronta, retorno à pista, com os ânimos mais aguçados que o normal.
Embalo meu corpo para um lado e para o outro, sentindo o ritmo sexy da música colombiana que o
DJ colocou para tocar. Não ligo se Gabriel está olhando, apenas curto a noite, deslizando meu corpo
para o lado e rebolando conforme a música.

No entanto, infelizmente, acordo do meu momento de diversão quando sinto uma mão estalar
em meu traseiro. Dou um passo para trás, de supetão, e quando me viro, encontro o homem careca e
grandalhão tentando dançar para cima de mim. Reconheço que é um dos lutadores de MMA, que
estava sentado lá em cima.

Arqueio uma sobrancelha e pergunto, com o tom de voz alto:

— Foi você que bateu em minha bunda?

Ele tenta olhar para o meu traseiro e depois me responde na maior cara de pau:

— Foi sim! Eu vi ela assim, tão gostosa, que me deu vontade de bater. Eu pensei: por que não
bater? Então dei um tapinha de leve. — Ele morde o canto do lábio e solta um sorriso abestalhado.

— Pois vá bater no traseiro de sua avó, filho da mãe!

— Calma aí, guria. Eu só quero chegar em você...

— Que tal saber “chegar” em meu advogado? — retruco, mas a vontade mesmo é de dar um
tapa nesse babaca. Onde já viu bater na bunda de uma mulher que não conhece?!

Ele sorri, debochado.

— Já vi que é braba. Vai logo ameaçando chamar advogado... Sabia que não sobe no meu
conceito gente assim? Para tudo é um processo. — Ele se aproxima, me agarrando à força, de forma
que meus pés saiam do chão. Meu coração tremula dentro do meu peito, não sabendo reagir diante
dessa situação.

Olho para os lados e ninguém parece perceber o que acontece. O brucutu fala em meu ouvido:

— Cadê seu advogado? Eu não estou vendo-o.


— Me solta, infeliz — digo com nojo do seu bafo de cigarro em meu rosto.

— Viu como não adianta ser malcriada? — Ele puxa meu cabelo para trás. — Você tem que
saber respeitar a avó dos outros. — Ele vira minha cabeça para o lado e diz em meu ouvido: —
Sabe, os meus amigos lá atrás? — Ele aponta para o andar de cima. — Eu disse a eles que desceria e
pegaria você. Então seja uma boa menina e não dê uma de cu doce. — Estremeço com a proximidade
e, antes que ele me tome com a boca, grito com toda minha força:

— Socorro! Por favor, alguém me ajuda! — As pessoas finalmente despertam para o que está
acontecendo comigo e tenho quase uma síncope quando vejo ele aproximando aquele rosto nojento
do meu.

— SOLTA ELA, FILHO DA PUTA! — Alguém me puxa para trás e avança para cima do
brucutu em minha frente. É Gabriel, totalmente transtornado, levando o punho cerrado para cima do
homem, que cai no chão. As pessoas começam a se afastar, enquanto a música ainda continua
tocando. O sujeito corpulento se levanta, com o nariz sangrando, enquanto temo que algo aconteça
com Gabriel. O lutador estala o pescoço e vem em direção a Gabriel com tudo, de punho fechado. Os
dois travam uma luta de chutes e socos, me deixando completamente aflita. E merda! Ninguém faz
nada! Muito pelo contrário, se afastam e filmam. Gabriel é levado ao chão e, em seguida, dá uma
rasteira no grandalhão, que cai no chão também. Gabriel começa a acertar o rosto do homem caído,
ao passo que seu rosto escorre sangue pela lateral.

Por um momento, penso que o pior pode acontecer se ele continuar socando o rosto daquele
homem, que parece ébrio com tantas pancadas.

Lanço-me naquela briga e tento agarrar as costas de Gabriel.

— Para, Gabriel! Você pode matá-lo! PARA!

Ele parece me ouvir e se levanta, ofegando.

Olho para o rosto dele e vejo que um corte se abriu no canto superior da sobrancelha. Ele
está visivelmente cansado. E, para piorar, vejo os outros dois amigos do grandalhão chegando ao
local.

O infeliz, que está no chão, se levanta com dificuldade, com o sorriso debochado de gente
ruim para os outros homens, que detém de sua mesma energia.

Deus, não!

Fico apavorada quando eles começam a dar passos em nossa direção, e, por impulso, me
coloco na frente de Gabriel, que me afasta no mesmo instante, pronto para atacá-los. Céus! O que
Gabriel está pensando que é?!

Começo a me desesperar, e quando eles se aproximam, escuto vários estalos e homens de


pretos nos cercam.

— Parados aí! — É Estêvão, ao lado de Gael e outros seguranças, rodeando os vândalos com
sede de porrada antes que possam tocar novamente em Gabriel. Os sujeitos parecem ser renderem
com a quantidade de homens armados e colocam as mãos na cabeça.

Gabriel pega minha mão e me conduz para fora dali, enquanto olho as meninas do outro lado
do salão. As pessoas haviam se dispersado para a outra área, restando poucos no meio do salão.
Peço desculpas com o olhar para as meninas do outro lado e sou conduzida para fora. Droga!
Definitivamente, Manuela acertou em sua previsão. A noite se tornou um fiasco.

Quando saímos para a rua, tenho a estranha sensação de que meus pulmões instantaneamente
se purificaram com o ar de fora, talvez seja alívio.

Observo o ferimento de Gabriel e aponto:

— Você precisa dar um jeito nisso.

— Eu preciso que você esteja segura — ele diz, atravessando a rua, e eu reclamo, me
colocando de frente para ele.

— Isso pode virar uma cicatriz feia se você não tratar logo.

Ele franze os lábios, estancando os passos a contragosto.

— Está muito feio! — Faço uma careta, me sentindo um pouco culpada por isso ter
acontecido. — Dói? — Toco o topo da sua testa, e ele resmunga.

Ao invés de falar sobre sua dor, ele me fita seriamente para dizer:

— Me prometa que nunca mais vai aparecer em uma festa em Curitiba.

— Não posso fazer essa promessa.

— Mas vai ter que fazer. Ao menos contrate seguranças...

— Seguranças? Eu vou denunciá-los, Gabriel! É isso que pessoas normais fazem: denunciam
as outras nesses casos. E é isso o que eu vou fazer.

Um carro passa beirando nossos corpos e Gabriel conduz meu corpo para a superfície gélida
do carro estacionado na rua.

— Não seja ingênua, Camille. Os processos não funcionam com tanta rapidez no Brasil. Você
não está mais na Europa.

— Aquele desgraçado bateu na minha bunda, Gabriel! — solto as palavras, indignada.

E por incrível que pareça, Gabriel parece estar ainda mais puto com isso. Ele aperta os olhos
e tenta engolir o que aconteceu.

Ele respira fundo e me diz:

— Não estou dizendo que você não pode denunciá-lo, eu mesmo vou com você. Estou
pedindo para que não coloque sua integridade física em risco, ok?

Respiro fundo e anuo.

— Ok.

Continuamos nos encarando, como se tivéssemos uma enorme vontade de prolongar a


conversar. No entanto, algo corta nosso clima amistoso, e, de repente, a explosão do tiro na
superfície do carro ao lado me tira de órbita. Tudo acontece muito rápido. Tão rápido que não dá
tempo de saber o que está acontecendo. Em questão de segundos, Gabriel joga meu corpo para trás
do carro e caio de lado no chão duro da calçada. Durante esses segundos, minha audição parece
falhar, como se o pânico se instalasse em meu cérebro, me fazendo apenas prestar atenção na rua por
baixo da suspensão do carro em minha frente. Percebo que Gabriel também cai para trás do carro, só
que sentado, e murmura:

— Você está bem?

— Sim — sopro, hipnotizada pelos coturnos que atravessam lentamente a rua pelo asfalto
úmido. Cada passo que a pessoa dá acompanha uma batida dentro do meu peito.

— Porra! O desgraçado está vindo! — Gabriel comenta ao lado.

Fecho os olhos, temendo o pior.

— Vamos ter que correr, Camille — Gabriel diz, decidido.

— Não dá tempo, Gabriel — murmuro em um lamento. — Ele está muito perto.

Ergo o olhar para ele, que deveria estar transparecendo medo.

Ele parece pensar em algo e suspira, dizendo:


— Você não tem nada a ver com isso.

Automaticamente, franzo o cenho e ergo minha coluna, apertando o pulso.

— Eu tenho a obrigação de zelar por sua vida. — Ele engole em seco, inclinando a cabeça
para frente e me compenetrando com o olhar. — Eu prometi isso para o seu pai três anos atrás. Eu
prometi isso a mim mesmo.

— Para de idiotice! Vamos ficar juntos! — resmungo, aborrecida.

Ele desgarra minha mão de sua blusa e se levanta, fazendo meu coração afundar dentro do
peito.

— Se algo acontecer de agora em diante, saiba que você foi os meus melhores sorrisos
quando eu a tive.

— Não faça isso, Gabriel. — Agarro novamente sua camisa.

— Será nós dois se eu ficar — ele replica. — Está tudo bem. Você vai ficar bem. — Ele
beija minha testa quando uma lágrima esquenta minha bochecha.

— Não faça isso — insisto, mas ele não me escuta.

Deus, não!

Por favor!

Não deixe que isso aconteça.

Meu coração roga por isso. Gabriel se põe para fora da proteção do carro, enquanto meu
cérebro entra em colapso.

Alguns segundos se passam e nada acontece.

Gabriel ainda continua parado, encarando a pessoa à sua frente com as mãos no alto.

Ele fica assim, na mira do assassino, por alguns longos segundos.

No entanto, algo parece eclodir do outro lado da rua, fazendo com que os coturnos no meio da
rua recuem até uma moto branca. Ele monta em cima da motocicleta sem placa e foge em meio aos
disparos, que parecem vir da entrada da casa de festas. Em poucos segundos, vejo dois carros
arrancarem pela rua.

— Gabriel, tudo bem? — É a voz de Estêvão se aproximando.


— Era o desgraçado, Estêvão! Ele ainda continua na rua. E por algum motivo, decidiu não
atirar.

— Tem certeza? Isso não faz sentido algum. — É a voz de Gael.

Gabriel pensa alto, concluindo:

— Você tem razão, Gael. Não faz sentido algum.

— Você conseguiu ver o rosto do filho da puta? — Gael pergunta.

— Ele estava de capacete – Gabriel responde, pensativo. — A viseira tem fumê.

Levanto-me com dificuldade e vejo Estêvão falar em uma espécie de rádio:

— Não deixem ele escapar.


44 | COTURNOS PRETOS

Camille

Depois de sairmos da delegacia do Batel, insisto que Gabriel vá ao hospital, no entanto, ele
dispensa os cuidados médicos e volta para casa. Sentindo que é o mais justo a se fazer, acompanho-o
para ajudá-lo a cuidar do machucado em sua testa, afinal, ele está machucado por minha causa. Não
que eu tivesse culpa, mas ele não tinha a obrigação de comprar aquela briga.

A sensação de estar de volta àquela casa me envolve em uma atmosfera estranha — parece
que em cada canto desse lugar uma lembrança me acomete ao tempo que mal nos conhecíamos e que,
de maneira misteriosa, quase todos os dias eu tinha que fazer entrega de suas camisas em perfeito
estado.

Pouca coisa havia mudado na decoração: as cortinas imensas em tom de creme, o sofá de
couro sintético, os vasos estrategicamente pensados, tudo parece em perfeito estado. Como eu
poderia ter mudado tanto? Definitivamente, não foi apenas a desilusão que contribuiu para que eu
endurecesse em alguns aspectos. A pressão do trabalho e a necessidade de não parecer frágil o tempo
todo contribuiu muito mais do que qualquer outra coisa.

Mergulho o pedaço de gaze no soro e depois a levo para a testa de Gabriel, arrancando um
gemido gutural dele.

Estamos em seu quarto, enquanto desinfeto sua testa e faço o curativo com o kit de primeiros
socorros que compramos na farmácia do bairro. Ele está de frente para mim, sentado na beira da
cama, com a gola da camisa social manchada de sangue. Sinto sua respiração pesar em meus ombros
toda vez que toco com a gaze a mucosa do ferimento em sua testa, bem ao lado de sua têmpora
arroxeada.

Furtivamente, olho para a cama atrás e minha mente instantaneamente recobra a última vez
que estive em cima dela. Seu corpo sobre o meu, se enterrando em mim enquanto apertava meu seio
com vigor, nossos corpos suando em bicas, a deliciosa sensação de ter orgasmos múltiplos. Eu não
sabia disso naquela época, para mim Gabriel era espetacular nisso, e hoje tenho a certeza. Ele me
levou diversas vezes ao ápice nas poucas vezes que fizemos amor, me estimulando sem pudor, como
nenhum outro.
— No que você está pensando? — Sua voz irrompe de repente no espaço, me pegando de
surpresa.

Pense em algo. Rápido! Meu cérebro pressiona.

Pigarreio.

— Eu estava pensando em como alguém pode escapar tantas vezes.

— Nem me fale! — Ele bufa, lembrando do ocorrido.

— Você acha que é a mesma pessoa? Sabe, a pessoa que tem perseguido você nos últimos
anos?

— Provavelmente, sim. — Ele apoia as mãos no colchão atrás, de forma com que seus olhos
se alinhem com os meus. — Nunca mais houve ataques dessa forma, mas ainda me lembro do modelo
da moto presente nos ataques passados. É o mesmo. Uma Shadow, 2012.

— Você acha que é alguém ligado ao... — Mordo a língua.

— Ao meu tio? — ele completa.

— Perdão! Não queria ser invasiva.

Ele solta um sorriso fraco.

— Invasiva? Já não é segredo para ninguém. A vida falida de minha parentela está em todos
os cantos.

— A campanha não resolveu muita coisa, não é?

Ele franze o cenho e responde:

— Em questão de gráficos, surpreendentemente começamos a vender mais nesta última


semana. Principalmente, o nosso novo modelo, o que não tínhamos muitas expectativas depois da
prisão, sabe, do meu tio. — Aquela palavra parece amargar em sua boca. — Até que os resultados
foram bem satisfatórios.

— Fico feliz! — Inspiro fundo, grudando um discreto esparadrapo em cima da curvatura de


sua sobrancelha.

— Au!

— Doeu? — Arregalo os olhos, receosa.


— Um pouco. Mas dá para aguentar.

— Claro que dá. Deve ter doído muito mais horas atrás. Você aguenta. — Arqueio uma
sobrancelha, enfiando as gazes sujas dentro da sacola da farmácia.

— Que enfermeira má.

Direciono-me ao banheiro, falando:

— Vou jogar isso fora e já vou embora. Você precisa de um banho.

Vou até o banheiro, me livrando da sacola de materiais usados na pequena lixeira, ao lado da
cuba. Retorno ao quarto e vejo Gabriel desabotoar os últimos botões da camisa social branca,
deixando seu tórax invejado por muitos homens à mostra. Ele passa a camisa pelas costas e atravessa
o quarto para lançar a peça no balaio de roupas sujas.

— Eu estou indo — aviso como uma despedida, me preparando para sair de seu quarto.

Gabriel atravessa o quarto, vindo em minha direção. Talvez pelo fato de ele estar sem
camisa, minha respiração pesa quando se aproxima.

— Obrigado. — Ele aponta para o curativo na testa. — Por isso.

— Se não fosse por mim, não estaria com isso no rosto.

— Tem razão. Devo interpretar isso como uma honra? — Ele se aproxima, sussurrando.

— Deve interpretar isso como algo que demorará a sarar e deixará uma cicatriz — digo,
tentando não escorregar os olhos para nenhuma outra parte do seu corpo que não seja o rosto. —
Estou indo — falo novamente, girando o calcanhar, caminhando em direção à porta.

Sinto seu braço envolver minha cintura, fazendo meu coração saltar desgovernado no peito.
Ele puxa meu corpo de volta para sua frente, só que dessa vez sua pele toca a minha, e, por instinto,
lanço minha mão contra o rosto, dando-lhe um tapa sonoro.

Gabriel vira o rosto para o lado e permanece dessa forma, enquanto sinto meu peito subir e
descer em uma frequência desenfreada.

Quando tomo consciência, ofego.

— Me desculpe... Me desculpe por isso. Não sei o que aconteceu comigo... — Meus olhos
enchem d'água, pensando no quanto seu rosto poderia estar dolorido. — Talvez o que aconteceu
comigo ainda mais cedo tenha me pego de surpresa... — Tropeço nas palavras, tentando achar a
razão para tal, como se meu corpo estivesse na defensiva. — Eu não soube como reagir... — Eu não
havia notado, mas a invasão daquele homem mexeu com o meu emocional mais do que poderia ter
imaginado. — É melhor eu ir para casa — digo com os nervos à flor da pele, tentando concatenar as
ideias.

Ele dá dois passos para trás e me fita.

— Tudo bem. Eu quem peço desculpas.

— Ok — despeço-me, alisando energeticamente o tecido do meu vestido. Fito seus olhos e


saio pela porta ao lado, antes que eu possa piorar o clima entre nós.

Caminho pelo corredor do segundo andar e desço pela escada, quase de lance em lance.

Inspiro e expiro de forma compassada enquanto desço os lances da escada, tentando


equilibrar a bagunça dentro de mim. Antes que eu mesma abra a porta da entrada principal, ela é
aberta pela mulher de olhos verdes lodo e um tanto agressivos. Maria Júlia.

— Stella? Você por aqui? — ela indaga, com o olhar surpreso.

— Pois é... Já estou até de saída — digo, passando por ela, evitando que a conversa se
estenda.

— Eu sabia que você voltaria um dia e correria atrás de Gabriel. — A voz dela parece mais
ácida quando estou prestes a sair da casa. Soa como uma provocação.

Paro e me viro para encará-la.

— Como? — indago.

— Você sabia que Gabriel e eu estávamos em um relacionamento e, mesmo assim, fica atrás
dele feito uma cachorra.

— Cachorra? — Essa mulher só pode estar tentando testar minha paciência.

— Você não pode entrar e sair da vida das pessoas quando bem entender. Quem você pensa
que é? O grande amor da vida dele? É por isso que se acha tão importante para fazê-lo agir de
acordo com suas vontades?

— Não foi minha vontade quando assisti você o beijando no jardim naquele dia. Você sabia
que eu estava lá, você fez sabendo no que isso poderia resultar. — Tenho a satisfação de ver seu
queixo trincar. — Gabriel me contou tudo, que vocês sabiam que eu estava ali. Se minha volta não
lhe agrada, não minta na minha cara jogando responsabilidades que não são minhas. E se isso te
consola, fique com Gabriel. Se assim ele quiser.
Tenho a sensação de que ela pode pular em meu pescoço a qualquer momento, mas tão logo
digo:

— Passar bem.

Antes de girar o meu corpo para a direção contrária, meus olhos despretensiosamente caem
para o chão de relance. Como se eu tivesse um lampejo de lucidez, meus olhos filmam
meticulosamente seus coturnos pretos, enquanto me viro, com um frio se alastrando pela espinha.
Perco um pouco da audição e sigo para fora da casa de Gabriel como se nada tivesse acontecido.
Uma explosão de desconfiança acerta minha mente em cheio e agradeço que eu não tenha percebido
aquele detalhe antes, a tempo de ela notar minha curiosidade sobre seus calçados.

Adentro um dos carros de Gabriel, incumbido de me levar de volta para casa de meu pai.
Retorno em um silêncio inviolável, e quando me coloco para fora do veículo, ligo para Pierre,
atravessando o jardim de casa.

— Alô. Milady? — Pierre atende com a voz embolada.

— Desculpa o horário, Pi. Mas eu preciso que você consiga algo para mim.

— Claro que consigo, Mademoiselle. Mas aconteceu alguma coisa? Você parece séria.

— Não, Pi. Quer dizer, eu ainda não sei. — Inspiro fundo e digo: — Eu preciso que você
consiga uma visita na prisão da Polícia Federal.

— Na prisão? — ele questiona, com a voz em choque.

— Eu preciso visitar Otávio Cordeiro.

— Otávio Cordeiro? O senador? Quer dizer, o bandidão? Por quê?

— Sim, Pierre. Quando você retornar a Curitiba eu explico melhor.

— Tudo bem, mas saiba que talvez eu não consiga, Milady. O homem ainda nem foi
julgado. Seria mais fácil se ele estivesse em um presídio, mas pelo que se ouve nos noticiários, ele
foi preso preventivamente.

— Pierre, lembra do que você me disse uma vez, que não há nada que você não consiga?

— Se isso fosse verdade, eu estaria com um lindo escocês me esperando toda noite deitado
na cama.

— Pierre, eu sei que você consegue.


— Tudo bem, tudo bem. Vou consultar o doutor Júlio e verei o que podemos fazer.

Respiro pesadamente, agradecendo Pierre.

Encerro a chamada disposta a me meter em um assunto que não é meu, porém minha intuição
ordena que eu o faça.
45 | O SUSPEITO

Camille

Alguns dias atrás


Noite de lançamento
.

Observo tudo de longe: Maria Júlia cumprimentando a mulher que trabalha na limpeza do hotel
e se despedindo logo em seguida. Estranho a senhora fazer um sinal da Cruz pelo menos umas cinco
vezes depois que Maria Júlia sai de sua frente. A mulher atarracada toma o seu caminho de volta
pelo corredor e passa por mim, com o carrinho sacolejando, é então que tenho a estranha sensação de
que devo arrancar algo dessa senhora sobre Maria Júlia. Mas ela parece relutante quando a abordo.

— Posso lhe fazer uma pergunta? — indago, franzindo o cenho.

Ela me olha desconfiada, mas assente.

— Se eu puder responder...

— Você conhece aquela moça que estava parada ali? — Aponto para trás.

— Maria Júlia?

— Sim, Maria Júlia. — Assinto.

— O que a senhora exatamente quer saber? — Seu tom está mais desconfiado do que antes.

Demoro um pouco para expressar o que não sei muito bem responder, como se fosse uma
intuição. Mas respondo:

— De onde exatamente a senhora a conhece?

Se eu me perguntasse o que eu quero com essa conversa, certamente não saberia o que
responder. Mas minha intuição me diz que eu tenho que fazer isso.

Ela me fita ainda mais desconfiada, mas confessa:

— Eu trabalhava na casa da família dela anos atrás.


— Anos atrás quando?

— Há muitos anos. A Maria Júlia ainda era uma garota, mas já me dava arrepios — ela
responde, balançando os ombros.

— Arrepios como?

— Ô, senhorita, estou achando isso muito estranho. Por que está me fazendo essas perguntas?

— Para falar a verdade, eu também não sei. — Sou sincera ao dizer. — Algo me diz que
Maria Júlia não é uma boa companhia.

— E não é mesmo — confessa. Ela me analisa, como se estudasse se eu sou confiável, e


parece estranhamente se compadecer de mim. — Se tiver a opção, fique longe dessa menina. Ela
parece ser inofensiva, mas é o capeta em forma de gente. Só para a senhora ter uma ideia: quando ela
era mais nova e o doutor Ramos saia para o tribunal, ela pegava os gatos de rua e fazia maldade com
eles, até os bichinhos morrerem, e depois enterrava no quintal. Isso tudo porque um gato da vizinha
arranhou seu rosto, até sarou depois. Mas ela matou o bichano da vizinha e mais uns quatro que
encontrou na rua.

— Meu Deus! — exclamo, boquiaberta. Que ser humano de bom coração faria uma coisa
dessas?

— Essa menina é muito esquisita. Estou lhe dizendo. Agora deixa eu trabalhar, senão eu
perco o emprego.

Ela torna a empurrar o carrinho, mas antes me diz:

— Se puder, fique longe dela, menina. Deus te proteja.

— Igualmente, senhora. Obrigada. — Sou rápida em me despedir, antes que ela desapareça
no próximo corredor. Fico ali, parada, pensando na tal Maria Júlia. Ah, céus! Por que, de repente,
tenho um pressentimento estranho sobre essa mulher?

Camille
Dias atuais
— Senhorita Camille Sousa, me acompanhe! — o policial de cabelos grisalhos chama meu
nome, e logo me levanto da cadeira da recepção e o acompanho pelos corredores da sede da Polícia
Federal de Curitiba, onde os reclusos mediante prisão preventiva ficam.

O senhor abre a porta de uma sala escondida nos fundos do prédio e me informa que preciso
esperar um pouco mais.

Dou alguns passos em direção ao centro da sala úmida e gelada, e me sento na cadeira de
material escorregadio atrás da mesa de alumínio.

A porta se abre novamente atrás de mim e escuto a pessoa ser deixada na sala, assim como
eu. O senhor atrás de mim dá alguns passos ao meu lado, me encarando com o cenho enrugado. Suas
mãos estão algemadas, mas seus pés não. Ele rodeia a mesa e se senta à minha frente, me encarando,
como se buscasse algo na memória.

— Eu a conheço?

Continuo o observando. As olheiras fundas denunciam as noites mal dormidas e o cheiro de


mofo que vem dele é pouco agradável. Ele desce o olhar para o meu tronco e depois torna a me fitar.
A primeira e última vez que o vi, na sala de Orlando, ele parecia tão repugnante quanto agora.

— É uma advogada? — Ele cruza as pernas e estreita os olhos, como se apurasse a visão. —
Engraçado. Por que tenho a sensação de que a vi antes?

— É porque você viu — respondo seriamente. — Eu trabalhava para sua esposa até alguns
meses.

— Claro. Claro! Você é uma das funcionárias de Hortência. — Ele arregala os olhos e parece
ainda mais confuso. — Mas o que uma funcionária de Hortência faz aqui? — ele pergunta,
desconfiado. — Por que deixaram você entrar?

— Eu vim conversar com o senhor.

— Comigo? Estou curioso para saber o que uma garota feito você tem para conversar
comigo? — ele subestima.

— Quero saber como aconteceu.

— Aconteceu o quê?

— O que fez o senhor estar aqui.

Ele olha para os lados e depois solta uma gargalhada.


— Isso é uma armadilha? Só podem estar de brincadeira. Estou tão velho para cair em
armadilhas.

— Não. Não é uma armadilha — confesso, endireitando a coluna, e uso do meu tom de voz
mais persuasivo. — Eu tenho acompanhado seu caso na TV e, de repente, fiquei curiosa para saber
sua versão.

Ele estanca o riso, limpando a garganta com uma tose tuberculosa. Depois de alguns
segundos, torna a concentrar seu olhar em mim.

— As paredes são de concretos, como pode ver. Não há câmeras também, pode observar. E
se quiser me revistar... — engulo em seco — verá que também não tenho escutas...

— Eu sou inocente — ele confessa, não muito convincente.

— Mesmo? — exclamo. — O senhor não sabe o que aconteceu naquela noite?

Ele parece pensar e dizer.

— Sim, sei. Você tem cigarro aí?

— Não, não trouxe — lamento.

Ele respira pesadamente e começa a falar:

— O que sei é que meninos foram executados naquela noite de 2007. Todos morreram
dramaticamente com um tiro certeiro no meio da testa. Fiquei sabendo que o primeiro a morrer foi
um viadinho... Júlio... — Ele parece recobrar o nome na memória. — Esse nem preciso comentar, é
um desperdício de existência em nossa sociedade... — Lembro-me de Orlando e sinto meu estômago
embrulhar ao assistir seu pai falar dessa forma sobre alguém por causa de sua orientação sexual. —
De toda maneira, foram apenas moleques inconsequentes. Não entendo o motivo de tanto alvoroço.
Claro, eram vidas, mas já passou tanto tempo.

Pigarreio, lembrando:

— Seu sobrinho foi acusado na época...

— Sim, Gabriel. Filho de Fernando, meu caro irmão... Lembro disso.

Tenho dificuldade em formular a pergunta:

— Por que acha que a pessoa que atirou nesses meninos perseguiu por tantos anos o seu
sobrinho?
— Gabriel? — Ele arqueia uma sobrancelha.

— Sim.

— Eu não... — Ele morde a língua e reformula sua resposta: — Não acho que a pessoa que
matou esses pivetes tenha perseguido meu sobrinho.

— Seu sobrinho foi perseguido por anos. Você não tinha ciência disso?

Ele descruza as pernas e me explica:

— Fernando deve ter comentado alguma coisa do tipo quando nos encontrávamos em sessões
legislativas. No entanto, sou um homem ocupado... Quer dizer, pelo menos era. Tinha tantos
problemas para resolver, que não costumava saber da vida de meus sobrinhos. Isso é coisa deles, não
me importa.

— Então... — Ofego. — O senhor quer dizer que as mortes no acampamento não estão
vinculadas com os ataques contra Gabriel?

— Claro que não. Não acredito que a pessoa que supostamente tenha perseguido meu
sobrinho seja a mesma que executou aqueles meninos. — Por mais improvável que pareça, consigo
enxergar verdade nos olhos desse monstro.

Olho para os lados, raciocinando rapidamente.

— Há alguma coisa a mais que queira perguntar, docinho?

— Não — suspiro.

— Tempo encerrado — o policial declara, abrindo a porta atrás de mim.

Otávio se levanta com dificuldade, parando em minha frente.

— Eu sou inocente — ele sussurra, pouco convincente.

Pisco copiosamente quando ele passa ao meu lado, indo em direção à porta atrás de mim.

— Espera! — Viro meu rosto, um tanto exasperada.

Otávio para em frente à porta, me encarando, com os punhos algemados.

— P-por fa-favor... — gaguejo. — Quantas vezes você mentiu para mim nos últimos
segundos?

Não tenho tanta esperança que ele me responda, mas ele abre um sorriso e levanta o dedo
indicador somente. Ele assente com a cabeça, se despedindo e se colocando sob custódia do policial
que o espera.

Uma. Apenas uma vez, penso, ofegante, tendo a certeza que eu vim procurar.

Não é ele. O tio de Gabriel nunca esteve interessado na morte do sobrinho. De repente, só
consigo pensar no que aquela senhora me disse no corredor do hotel alguns dias atrás. Os coturnos. O
olhar agressivo. Céus! Se o que eu estou pensando faz algum sentido, Gabriel está seriamente
correndo risco de morte neste momento.
46 | OS RASTROS DA RAPOSA

Camille

Escolho a mesa para duas pessoas ao lado da janela de um jeitoso café na rua Conselheiro
Araújo, no centro. Peço um expresso e fico observando por trás dos óculos escuros a rua
movimentada lá fora. É um dia atípico em Curitiba, o sol havia saído por completo. Sinto o calor dos
raios solares matinais penetrarem minha pele de forma gostosa, enquanto espero pelo meu
convidado, que, aliás, está atrasado dez minutos.

Escuto o sino da porta de entrada tilintar e viro meu rosto lentamente em direção à entrada.

O olhar de Estêvão cruza o meu, mas mesmo assim levanto a mão no ar, chamando-o para
minha mesa. Ele assente e atravessa o estabelecimento entre as mesas, sentando na cadeira à frente.

Confesso que minha mente demora a processar a imagem de Estêvão fora do terno. Ele parece
mais despojado em uma calça jeans clara e uma camiseta preta, que deixa à mostra a tatuagem tribal
em seu braço esquerdo, nunca antes vista por mim. Noto também que seus cabelos estão úmidos e
suas cútis mais firmes.

— Bom dia — ele me cumprimenta, se aprumando na cadeira de madeira em que mal cabe.
— Desculpe-me pelo atraso. Já estou no horário de expediente, então tive que deixar a liderança da
equipe com alguém.

— Sem problemas, Estêvão.

Ergo a xícara de café e pergunto:

— Café expresso ou cappuccino?

Ele franze o cenho e responde:

— Um expresso, por favor.

Faço o pedido com uma das atendentes que passa ali perto e logo torno minha atenção para
Estêvão.

Inclino meu corpo para frente, de forma com que meus antebraços deitem alinhados em cima
da mesa.
— Você sabe o motivo pelo qual o chamei aqui?

— Imagino — ele responde francamente. — A ligação da senhorita ontem à noite me deu


algumas dicas, mas confesso que estou curioso por essa conversa.

— Você redobrou a atenção em Maria Júlia? — questiono, um pouco paranoica.

— A noite toda — ele afirma e eu suspiro, aliviada em saber que ele fizera o que eu havia
pedido ontem à noite. — Hoje é o dia de folga de Maria Júlia, é pouco provável que ela encontre
Gabriel durante o dia. No entanto, se isso acontecer, deixei alguém de confiança, caso a situação
venha a sair de controle.

Minha cabeça pesa quilos só de imaginar o pior.

— Estêvão... Eu conversei com Otávio. O tio de Gabriel.

Ele franze o cenho e pergunta:

— A senhorita foi à polícia? — Ele parece extremamente confuso. — Por quê?

— Eu estava desconfiando de algumas coisas, que agora fazem todo sentido. — Tenho
dificuldade em falar. — Não acho que Otávio tenha relação com os ataques contra Gabriel. Sabe,
naquele dia em que houve os disparos em frente àquela festa? Eu vi com meus próprios olhos os
coturnos da pessoa que atirou. São os mesmos da Maria Júlia. O mesmo modelo, a mesma cor... —
Começo a ficar nervosa quando toco no nome dela, como se o que eu digo não seja o suficiente para
que Estêvão acredite em mim. — Eu sei que é meio maluco, mas tenho outros indícios...

— Calma. — Estêvão apoia sua mão cálida em meu antebraço. — Eu estou acreditando em
você. — Apesar de seu tom de voz inflexível, Estêvão transparece confiança, me acalmando e me
deixando confortável para falar. — Inspire fundo e me explique tudo.

Reorganizo as ideias e começo a contar tudo o que tenho pensado nos últimos dias para
Estêvão. Ele ouve atentamente tudo o que eu tenho para dizer, o que me faz ter ainda mais confiança
no que eu estou falando.

Depois que termino de contar, ele suspira e me encara.

— Nós já sabíamos que havia a possibilidade dos ataques terem uma motivação diferente do
assassinato. Gabriel tem ciência disso, aliás, cada dia que passa ele está mais convicto disso. Não
faz nenhum sentido esses ataques continuarem, afinal... Otávio está preso.

— Estêvão, é ela. Eu sei que não tenho provas...


— Não estou duvidando.

— Então vai demitir essa mulher?

Ele sorve o ar grosseiramente e responde:

— Gabriel é o único que poderá demiti-la. Aliás, por que não o procurou?

— De alguma forma, sei que essa mulher consegue entrar na mente dele — confesso.

— Tem razão. Ela fala tudo o que as pessoas desejam ouvir — ele comenta.

— Você acha que Gabriel levaria em consideração minhas palavras?

— Pensando bem: não acho que seja uma boa ideia. Não saberia como Gabriel reagiria caso
Maria Júlia estivesse envolvida nisso.

— Seja sincero, Estêvão! Você acredita nisso? — pergunto baixinho, espichando meu corpo
para frente.

Ele olha para a rua ao lado e comenta:

— Olhando sob essa perspectiva: ela sempre teve motivos concretos. No entanto, ela nunca
levantou suspeita sobre qualquer insatisfação do passado. Seu irmão e pai morreram quase no mesmo
ano, eu avisei a Gabriel sobre isso alguns meses depois de sua contratação. Mas, de alguma forma,
ela parecia denotar muita confiança... nenhuma das famílias dos acusados fizeram oficialmente um
pedido de desculpas a Gabriel, mas ela o fez. Talvez isso...

— Estêvão, é ela — digo com um fiapo de voz. — Eram os mesmos coturnos pretos, com o
mesmo brilho... O olhar dela... Ela está mentindo...

Ele se inclina sobre a mesa.

— Só há um detalhe que ainda não se encaixa e nunca se encaixou. — Vejo alguns vincos se
formarem em sua testa, antes dele refletir: — Se ela está interessada na morte de Gabriel, por que
ainda não o fez?

Tento achar uma explicação e falho miseravelmente.

Não há lógica. Se ela o queria morto, por que desperdiçaria tantas oportunidades?

— Obsessão. — Ele próprio resolve sua questão, mudando o porta-guardanapos para o outro
lado da mesa. Ele endireita a coluna na cadeira e retira rapidamente o celular do bolso, discando um
número. — Alô, Max. Preciso que você procure nos arquivos de admissão os documentos de uma de
nossas funcionárias: Maria Júlia Calheiros Ramos... Envie para minha caixa de entrada. — Estêvão
desliga o telefone, e eu questiono:

— No que está pensando?

— Eu vou fazer uma visita à Maria Júlia — ele diz, levantando a mão e pedindo a conta.

— Como assim?

— Quero saber se ela tem uma Shadow sem placa.

Embora Estêvão tenha negado de cara minha companhia, ele não conseguiria impedir que eu
viesse. Ele estaciona o carro em um quarteirão depois do prédio de Maria Júlia. Observo o padrão
da torre e imagino que seu pai tenha a deixado em uma boa condição financeira, mais uma razão para
suspeitar de seu interesse em trabalhar com Gabriel. Maria Júlia provavelmente deve receber uma
boa pensão, e, talvez, nem precise trabalhar.

— Não saia desse carro em hipótese alguma — Estêvão adverte.

— O quê? Eu pensei que fosse ajudar. Você vai ter que me levar, Estêvão!

— Sinto muito, mas a senhorita vai ficar. Já foi muito arriscado ter concordado em trazê-la.
— Ele pega uma arma do porta-luvas e a guarda dentro da calça jeans, atrás, enquanto observo outra
escondida na parte da frente. — Se algo acontecer com você, eu não me perdoaria como profissional
e nem como pessoa. Por favor, não insista.

— Tudo bem. — Torno a grudar minhas costas no banco do carona, tentando me resignar.

Ele encaixa algo atrás do celular, escondendo dentro da capa preta, e liga a multimídia do
carro.

— Você pode ouvir tudo por aqui.

— Isso é uma escuta? — pergunto, perplexa, e um tanto animada.

— Tem a mesma função. Fique atenta às conversas. De toda forma, é pouco provável que haja
qualquer complicação... — Ele abre o porta-luvas novamente e retira uma pasta de papéis.
— O que é isso?

— Documentos. Tenho que ter um motivo para uma visita.

— Claro. — Anuo.

— Até daqui a pouco, Camille — ele diz, saindo do carro.

— Até.

Permaneço sentada ali, observando Estêvão atravessar o quarteirão pela calçada e chegar à
portaria do prédio de Maria Júlia. Ele fala com o porteiro pelo interfone, que liga para o
apartamento. Demora alguns minutos até ser autorizada a entrada de Estêvão, que adentra pela porta
de alumínio ao lado, o que me faz concluir que ela está em casa.

Por muitos minutos, só consigo ouvir o som de seus passos e de barulhos aleatórios.

Meu coração está na mão, sobressaltado com cada barulho aparentemente insignificante.

— Estou no estacionamento — ele sussurra. — Aparentemente, não há nada por aqui.

Estêvão parece retomar o percurso correto até o apartamento de Maria Júlia, adentrando um
elevador barulhento.

Depois seus passos tornam a serem dados em uma distância mais curta.

Escuto as batidas na porta, e começo a suar.

Alguns segundos depois, a porta range e a voz cínica aparece.

— Estêvão? O que faz aqui? — Meu coração aperta. — O que é isso?

— Documentação pendente.

— Documentação pendente? Eu deixei tudo com Max. — Ela estranha.

Estêvão é sagaz em responder:

— Houve um problema no sistema e perdemos muita coisa. Se for possível, gostaria que
preenchesse.

— Conseguiu meu endereço como? — Seu tom de voz se faz desconfiado.

— Com Max também. Como eu disse, não foram perdidas todas as informações.

— E aí você veio pessoalmente?


— Algum problema? — Estêvão pergunta.

— Não, nenhum. Hoje não é seu dia de plantão?

— Como está vendo: estou trabalhando.

Ela suspira.

— Perdão. Não queria ofender ninguém...

— Sem problemas.

Eles continuam quietos, até Estêvão retomar a conversa, como se lembrasse de algo:

— Estamos fazendo manutenção dos rádios, você está com o seu aí?

Ela demora a responder, mas o faz:

— Sim. Espere um momento, vou buscar em meu guarda-roupa.

— Posso entrar?

Ela custa novamente a responder, porém concorda:

— Fique à vontade.

Algum tempo se passa e nada escuto além do vento batendo nas cortinas. Droga! Esse é o pior
momento. Não sei o que Estêvão está fazendo, se ele está bem, nada.

— O meu aparelho está funcionando perfeitamente. — Maria Júlia parece retornar à sala.

— Precisamos trocar a bateria. Essa aqui irá acabar logo, logo.

— Mais alguma coisa? — Maria Júlia pergunta.

— Não. Tudo certo.

— Então até amanhã, Estêvão. — Percebo um filete de arrogância em seu tom de voz, como
se estivesse incomodada com a presença dele.

— Até amanhã, Maria Júlia.

Escuto a porta bater e mais uma vez fico ansiosa pela volta de Estêvão. Apenas relaxarei
quando ele sair pelo portão do condomínio. Fico apreensiva que isso não aconteça, mas ele sai,
caminhando de volta pelo quarteirão. Quando ele está bem perto, faz uma pequena corrida até o carro
e adentra o veículo pela porta do motorista.
Solto o ar dos pulmões, ofegante, como se eu tivesse sido asfixiada por longos minutos.

— Deus, ainda bem que voltou!

— Não encontrei a Shadow.

— Eu sei. Eu ouvi tudo.

Ele levanta a camisa e tira um envelope escondido.

— Mas peguei isso — ele diz, seriamente.

— O que é isso?

— Uma conta de água... — Ele me entrega e não entendo nada. — Achei na gaveta do console
da sala. Veja, está em outro endereço.

Olho o verso do papel e confirmo o que Estêvão acaba de dizer. Não sei se eu estou pensando
o mesmo que ele, mas tudo indica que sim.

— Campo de Santana? Onde fica esse bairro? — indago.

— Não muito longe daqui. Fica mais ou menos a uns 16 km de distância. Eu vou pedir um
reforço e irei agora lá, depois de deixar a senhorita em casa.

— Me deixar em casa? — Sinto-me ofendida. — Nada disso, eu vou também.

Ele aperta os olhos, como se eu fosse um fardo a ser carregado. Mas não ligo, pois estou
disposta a desmascarar aquela bruxa!

— Tudo bem. Você vai ficar no carro.

Reviro os olhos nas órbitas, com preguiça de Estêvão, mas aquiesço.

— Ok!

Depois de passarmos por algumas ruas desertas, adentramos uma região onde a vegetação se
faz mais presente. Apesar do sol irradiando sob nossas cabeças, as árvores do bairro estão úmidas
devido ao típico clima chuvoso de Curitiba. Estêvão estaciona em frente a um portão enferrujado, e o
carro logo atrás faz o mesmo.

Estêvão desce, alertando-me:

— Fique aqui dentro.

— Mas não é perigoso? — pergunto, olhando para os lados, mostrando-me insegura quanto
ao lugar.

Ele replica, lembrando:

— Você prometeu.

— Eu sei que prometi, mas e se alguém chegar aqui? Parece deserto demais para uma mulher
ficar sozinha dentro de um carro.

Estêvão parece tirar paciência do céu para lidar comigo.

— Você tem razão. — Ele volta atrás em seu raciocínio, da forma que eu imaginei horas
atrás. — Saia também.

Tento esconder meu sorriso vitorioso e me ponho para fora do carro, sendo recebida pelo
cheiro de terra molhada.

Dois dos amigos de Estêvão se aproximam e perguntam como farão para entrar na casa à
nossa frente.

— O jeito vai ser pular — penso alto, atraindo os olhares dos grandalhões para mim. Pela
forma que me olham, me sinto por alguns minutos a líder de um movimento delinquente. Eu sei que
suas profissões são pautadas na ética, mas o que faremos a seguir não tem nada de ético. Eu quero
mais é que a ética se dane diante de uma situação dessas!

Estêvão se apressa e analisa o muro sem reboco, relativamente baixo. Tão logo ele se
aproxima, apoiando uma mão na caixa do medidor de energia e impulsionando o corpo para cima.
Estêvão desempenha tudo com muita facilidade, fazendo com que eu desconfie que tenha feito algo
parecido no passado.

Ele abre a porta por dentro, e eu brinco:

— Mandou bem, hein, Estêvão?! Em que rolê você tem andado para aprender dar um salto
desses? Você faz parkour? — Arranco uma risadinha de um dos seus amigos.

— Obrigado! Eu servi ao exército — ele responde naturalmente.


— Ah, o rolê era o exército — comento, entrando no terraço aberto da casa à nossa frente.

Observo o lugar de paredes amarelas desgastadas e as portas de madeira jogadas ao léu. O


mato ao redor está crescido, no ponto de capinar. Os telhados são tão velhos, que o mofo é
facilmente identificado nas placas.

Estêvão tenta abrir a porta persiana de madeira em nossa frente, sem obter sucesso.

— Tem um quintal aqui — o parceiro de Estêvão avisa.

Caminhamos pelo corredor envolvo por musgos nos rodapés antigos da parede, atrás dos dois
rapazes que parecem limpar a área.

— Se Gabriel descobrir que te trouxe aqui... — Estêvão comenta à minha frente.

— Você vai falar? Pois eu não vou contar nada — tranquilizo-o.

— Ulalá! — Ouço o homem mais na frente exclamar.

Estêvão e eu somos os últimos a chegar ao quintal, mas não perdemos em nada a surpresa ao
vermos a moto branca.

O homem bem mais à frente se aproxima, observando os detalhes da moto.

— Uma Shadow... sem placa — ele aponta.

Para mim não é nenhuma surpresa, mas sinto que isso afeta Estêvão. Não sei exatamente o que
se passa em sua cabeça, mas imagino que a sensação de ter falhado em seu trabalho possa ter o
atingido intimamente.

Amplio o olhar para o quintal e noto que a porta dos fundos da casa está aberta. Toco o braço
de Estêvão e indico com a cabeça a porta.

Vejo sua mandíbula trincar, enquanto ele se vira para adentrar a casa maltrapilha por trás.
Sigo em seu encalço, assim como os outros dois. A penumbra do interior nos envolve e percebo que
a casa tem pouco mais de três cômodos, úmidos e gelados. Estêvão acende a luz amarelada e abre
caminho para mim. O cheiro forte de mofo irrita minhas narinas e começo a espirrar copiosamente.

Quando minha crise de espirro cessa, acompanho Estêvão, que caminha para dentro do que
deve ser um quarto. Ele acende a luz, revelando uma cômoda antiga de seis gavetas. Estêvão para em
frente à parede esquerda, como se observasse algo intrigante, e me ponho ao seu lado para enxergar
melhor.

Adiante, um calafrio sobe por minha espinha, enquanto meus olhos correm pelo grande painel
de recortes de fotos, jornais, datas e revistas. Todos com um nome em comum: Gabriel Átila
Cordeiro. Há as mais variadas fotos, desde a infância até a sua adolescência e maturidade. Que
merda é essa?! Essa mulher é ainda mais doente do que imaginava!

Estêvão tira o celular do bolso, e eu pergunto:

— O que vai fazer?

— Armazenar informações.

Ele começa a fotografar cada pedaço do painel separadamente, enquanto observo as datas
escritas entre as imagens ao redor. Eu não consigo ligá-las a nenhuma outra informação, pois sua
grande maioria se trata de anos antes de eu conhecer Gabriel. Mas uma, em especial, me chama a
atenção: 11 de novembro. O dia em que fui levada ao hospital às pressas depois de um disparo em
frente à igreja. Meus olhos percorrem cada informação em busca de algo que faça sentido, e quando
Estêvão para ao meu lado, noto algo de muito errado no centro do painel.

— Es-espera — gaguejo. — Que dia é hoje?

Estêvão demora a responder, mas o faz:

— 17 de setembro. Pela lógica, ela está planejando uma coisa para hoje.

Aponto para o centro do painel e o questiono:

— Todas as datas estão escritas ao redor do painel. Por que a data de hoje está diferente das
demais? — Olho para Estêvão, com a garganta se comprimindo.

— Temos que voltar ao Batel. Gabriel está no escritório da Átila — Estêvão diz firmemente,
ao passo que as batidas em meu peito ficam mais altas.
47 | ENTREGUE

Camille

Meu coração parece que vai parar toda vez que Estêvão tenta ligar para os colegas de
trabalho e seu celular indica que estamos fora de área.

Seguimos em uma velocidade perigosa, a mais de cem quilômetros por hora em uma das
avenidas que liga Campo de Santana aos demais bairros de Curitiba.

— Droga! — Estêvão rosna, socando a lateral do volante. — Está sem sinal, mais uma vez!

— Em quanto tempo você acha que chegamos lá? — pergunto com o coração na boca quando
passamos por uma curva sinuosa.

— Vinte minutos.

— É um bom tempo. — Inspiro fundo, tentando pensar positivo em meio aos maus
pensamentos que martelam minha cabeça e me tiram o ar.

Percorremos mais alguns quilômetros e finalmente conseguimos sinal. Estêvão consegue falar
com o líder temporário da segurança, alertando que redobre a atenção em Gabriel. O homem do outro
lado da linha acata as ordens de Estêvão, que desliga o telefone com os ombros um pouco menos
pesados.

— Eu preciso que vá para casa quando chegarmos ao Batel — Estêvão comenta, absorto em
sua própria raiva, talvez sobrecarregado com o tanto de informações que absorveu naquele casebre.

— Sem chances, Estêvão! Pare de querer me privar das coisas, isso está me irritando! Por
muito tempo, eu não quis saber dos problemas de Gabriel, mas agora que eu me meti, acho bom que
me leve até o fim!

— Não estou privando você. Estou tentando não envolver desnecessariamente mais gente
nesse caso.

— Desnecessariamente? Céus! Vocês estavam com essa mulher bem debaixo do nariz! E
ainda continuariam, se eu não... — Tento ponderar o que sai de minha boca e não deixar Estêvão
ainda mais insatisfeito consigo mesmo devido às minhas palavras. — Não sossegarei se eu não for.
Por favor, não me impeça de ir. Eu vou de toda maneira — digo por fim, empertigando meu corpo no
banco, aflita, com a ansiedade me corroendo aos poucos por dentro.

Apesar do tempo ter moldado algumas coisas dentro de mim, ainda não detenho total controle
sobre minhas emoções, e para falar a verdade, por mais que lute contra isso, tudo o que se relaciona
a Gabriel me tira do eixo. Passar tanto tempo fora me ajudou a equilibrar minhas emoções, mas
parece que ficar perto dele faz tudo vir à tona, de forma avassaladora.

Não sossegarei até averiguar com meus próprios olhos que ele está bem.

Quando chegamos ao escritório da Átila, acompanho Estêvão junto dos dois homens à
paisana pelo prédio de paredes cinzas com acabamento em prata, passando por uma espécie de
barreira de seguranças no primeiro andar. Entramos no elevador espelhado, até as portas se abrirem
em um salão movimentado por pessoas vestidas formalmente atrás de seus computadores e de
máquinas impressoras.

Caminho atrás de Estêvão até a sala da presidência, e não encontramos ninguém além dos três
seguranças tomando café na porta da sala, cuja parede é de vidro. Aliás, aparentemente, não há
ninguém atrás daquelas paredes.

— Onde ele está? — Estêvão sai da sala, perguntando aos dois homens relaxados.

— No terraço. Maria Júlia chegou aí, e os dois subiram para o terraço...

Estêvão parece se exaltar, perguntando enquanto meu corpo é atingido por uma energia
paralisante:

— E por que, porra, vocês estão aqui?!

— Calma aí, Estêvão! Túlio está com o chefe! Sem contar que Maria Júlia também é
experiente. Ela está fora de expediente, mas se algo acontecer, o que é bem difícil, ela sabe o que
fazer.

— Merda! — Estêvão pragueja, dando alguns passos para trás, enquanto faço o mesmo.
Estêvão dispara a correr pelo escritório, rejeitando o elevador, que ainda está no sexto andar, e
pegando às escadas ao lado dos seus colegas, que ficam em seu encalço e sacam os revólveres
escondidos dentro das calças.

Paro entre a escada e o elevador, ofegando muito e prevendo que me faltará o restante do ar
que tenho no meio do percurso, caso eu opte por subir pelos degraus.

Olho para os lados, enxergando o espanto entre os funcionários e mentalizando para que
aquele elevador não pare em nenhum outro lugar que não seja o qual eu me encontro. As portas se
abrem e eu voo para o seu interior, pressionando de forma grosseira o botão do último andar. As
portas se fecham e minhas costas caem para a parede atrás. Minhas mãos apertam a barra inox que
protege o espelho. Deus, que nada aconteça com ele! Por favor, não deixe que o mal lhe acometa!,
rogo em pensamento, com os olhos vidrados no pequeno visor no canto superior do elevador.

Chego desnorteada ao terraço, caminhando para fora da pequena sala social, com o vento
soprando forte meus cabelos, enquanto olho de um lado para o outro à procura dele, com o coração
acelerado, a boca seca e a respiração se tornando mais difícil a cada passo que dou.

Minhas pernas param quando o vejo de costas, ao lado de Estêvão, com as mãos enfiadas nos
bolsos da calça creme, em uma camisa preta social, encarando a cidade lá embaixo em uma postura
rígida. Procuro Maria Júlia pelos cantos do lugar, mas não a encontro. Estão apenas ele e Estêvão, no
que parece ser um clima tranquilo. Um suspiro involuntário escapa entre meus lábios, como se algo
me levasse a crer que está tudo bem.

Ainda com o efeito eletrizante reverberando em meu peito, me coloco a caminhar pelo
enorme chão, que me leva até os dois sob o sol de Curitiba. Enquanto o vento ricocheteia meus
cabelos contra as costas, a raiva domina todos os meus sentidos.

Quando me aproximo suficientemente, Gabriel olha para trás por cima do ombro, notando-me
ali. Alguns vincos se formam em sua testa, denotando estranheza ao perceber minha presença. Ele
gira o corpo lentamente em minha direção, enquanto suprimo o espaço entre nós e desfiro um tapa em
seu rosto, ofegando.

— Idiota!

Da maneira que seu rosto vai para o lado, assim ele fica por alguns segundos, de olhos
fechados, sorvendo o ar com força, tentando digerir isso. Pela segunda vez na semana. Ele vira o
rosto lentamente, me encarando com um olhar nada amistoso. Agora, ele está tão irritado quanto eu.

— Você está maluca?! — Ele bufa, entredentes.

Ignoro-o completamente, explodindo:

— Sério?! Você acreditou nela por todos esses anos?! Que tipo de homem é você?!

Gabriel me encara com o olhar em combustão, puto com minha falta de respeito. Mas eu
quero mais que sua raiva se dane. Meu coração só faltou parar minutos atrás por causa de um cara
que desconfio que não pensa com a cabeça de cima. É a única razão que consigo enxergar para ele
não ter desconfiado.
— Camille, eu acho melhor... — Estêvão começa a falar ao nosso lado, talvez tentando me
apartar.

— Estêvão, eu já disse para você não impedir mais. Se você ainda não contou quem é aquela
mulher, eu mesma vou fazer isso agora! — digo, decidida.

— Camille... Vocês estão com os ânimos exaltados... — Estêvão reluta, enquanto não desvio
o olhar de Gabriel, que parece que irá me engolir a qualquer momento.

— Estêvão, me espere no andar de baixo — Gabriel ordena, sem desgrudar os olhos


injuriados de mim. — Não deixe que ninguém suba. Eu quero ouvir o que a senhorita Camille tem a
dizer.

Os amigos de Estêvão surgem das laterais das dependências do terraço, como se estivessem
verificando o lugar.

— Chefe, está tudo limpo — um deles diz a Estêvão, que demora a concordar com o pedido
feito por Gabriel.

— Esperarei no andar de baixo. — Estêvão acena respeitosamente com um menear de cabeça


e faz o caminho de volta para o elevador atrás.

Permaneço ali, sustentando o olhar de Gabriel, envolvida em um clima rarefeito.

— O que tem para me dizer? — Sua voz grave mostra que ele ainda não digeriu o tapa.

— Sobre sua segurança, Maria Júlia...

— Nunca mais faça o que fez minutos atrás — ele me interrompe.

— Como eu estava falando, sua segurança...

— Não sou o tipo de homem que...

— DÁ PARA PARAR DE INTERROMPER?! — vocifero, nervosa.

Ele dá um passo em minha direção, aproximando nossos rostos em uma ínfima distância.

— Está claro que não somos mais os mesmos, mas não subestime minha paciência, Camille.
Senão... — ele murmura furioso, com o olhar endurecido, com as mandíbulas apertadas, quase
rasgando as laterais de seu rosto.

— Senão o quê?

Ele aperta os lábios quando seus olhos caem momentaneamente para minha boca. Ele aperta o
punho e a veia em seu pescoço fica sobressaltada contra sua pele. Engulo em seco, temendo pelos
meus próprios sentidos.

Não recuo, pelo contrário, me aproximo ainda mais, se isso é possível, dizendo-lhe:

— Não me ameace, Gab...

Ele me rouba as palavras com sua boca, me tomando também o ar com a intensidade de um
beijo. Suas mãos cravam meu pescoço quando sua língua adentra entre meus lábios com vigor,
fazendo com que meu corpo estremeça com a energia absurdamente lasciva que emana dele.

Dou um passo para trás e ele me acompanha, sugando meu lábio inferior de forma obscena.
Ele conduz nossos corpos para a mureta do terraço, me beijando violentamente. Não sei em que
momento começo a retribuir, mas quando dou por mim, um gemido de prazer sai entre meus lábios,
quase como uma súplica em meio ao desejo e o reencontro com o inebriante sabor de sua língua.

O volume em sua calça me pressiona contra a mureta, assustadoramente duro, ao passo que
sua língua me toma mais uma vez sem pudor e seus dedos se afundam nos flancos de minhas nádegas.

Dessa vez, ele solta um gemido rasgado, me levando a um estado deplorável e insano de
prazer. Não podemos fazer sexo aqui, expostos! Droga, eu não posso fazer sexo com ele! Esses
receios são arrastados em minha mente por uma onda perigosa de desejo, que não poderei esperar
nem por mais um segundo.

As mãos de Gabriel vão aos meus joelhos e levantam com facilidade minha saia, de forma
que ela fique curta e minha intimidade vulnerável. Seus dedos hábeis e longínquos sobem pela pele
interna de minha coxa, afastando o tecido de renda para o lado e massageando meu ponto sensível,
enquanto cala meu gemido, sugando minha língua. Jogo meu pescoço para trás, alucinada com a
eletricidade tremulando meus membros periféricos.

Ele continua me estimulando de forma pecaminosa, até os meus olhos deslizarem nas órbitas.
Estou totalmente entregue aos seus toques. A mão de Gabriel me abandona por um momento e o vejo
abrir a braguilha da calça rapidamente.

— Não podemos fazer isso aqui... — Ofego, observando sua ereção descomunal se libertar
da calça.

Ele abre um pouco minhas pernas, perguntando diplomático:

— Você quer que eu pare, Camille? — Ele me beija e depois me olha nos olhos, se
posicionando em minha entrada.
Balanço minha cabeça em negativo, sofregamente. Ele me toma novamente com seus lábios
firmes, se enterrando por completo dentro de mim. Todas as partículas de meu corpo entram em
combustão de maneira surreal. Como se eu atravessasse os limites de uma dimensão, me elevando a
um estado de puro êxtase.

Gabriel começa a me penetrar repetidas vezes, fazendo com que nossos corpos se atritem
dramaticamente, sentindo a ânsia de cada estocada ritmada. Céus, ele mete forte, duro, em um ritmo
gostoso! Transamos no terraço como dois animais irracionais, escravos do desejo. Jogo meu corpo
para trás e ele aperta meu seio com força, crescendo a cadência de suas estocadas. Seus olhos
apertam, me encarando profundamente, com as íris flamejantes, enquanto solto um gemido áspero,
sentindo que eu estou quase lá. Gabriel nos eleva a um ritmo enlouquecedor, me fazendo gozar e, em
seguida, se derrama em mim, ao mesmo tempo que um uivo sai rasgado de sua garganta. Ele
cambaleia um passo para trás, não largando a mão da lateral de minha cintura.

Sinto os espasmos em meu corpo, me deleitando da sensação que é me sentir preenchida por
ele.

Recupero o fôlego aos poucos, enquanto levanto minha calcinha, com a respiração cansada.
Ele me olha como se não tivesse sido o suficiente, pegando minha mão.

— Ainda não terminamos. Quero chupar você.

Ele captura meus lábios e tão logo me conduz para a pequena construção na lateral do
terraço, uma sala de paredes de vidro com uma visão panorâmica lá de fora.

As cortinas brancas são longas e estão todas abertas, deixando o sol iluminar naturalmente a
grande mesa, que parece servir para reuniões.

Os lábios dele reivindicam minha pele, agora traçando um beijo em minha nuca, enquanto
desabotoa a camisa preta que usa. Mesmo que pareça um absurdo, também não estou satisfeita dele.
Eu quero mais dele. Eu quero mais.

Quando ele se afasta para abrir a calça e se livrar dela, afasta também os sapatos e meias
para o lado. Ficamos completamente nus quando ele me ergue no colo e me beija com ardor.

Gabriel deita meu corpo sobre a mesa, com o cuidado de quem carrega algo frágil. Depois
me toma novamente, olhando-me nos olhos e abocanhando meus seios. Um por um. E depois cada
canto do meu corpo.

Sua língua chega ao meio de minhas pernas, me fazendo arfar. Ele me estimula com gosto —
eu posso ver isso em seu olhar latente — até o último momento e me chupa até a última gota.

Ele puxa meu corpo para fora da mesa, como se eu fosse uma propriedade sua, nos colocando
em pé. Sua excitação está dura como ferro, batendo quase em meus seios.

A luz lá fora ilumina seu rosto magnificamente lindo, deixando seus olhos mais claros.
Gabriel está no auge da excitação. Ele me vira de costas, puxa meus braços para trás, erguendo um
pouco meu corpo para que ele possa encontrar minha entrada e depois para que possa me consumir.

Ele me invade profundamente, me arrancando um gemido esganiçado. Ele me toma


novamente, com meus anseios, meu corpo e minha alma. Ele penetra em cada esconderijo de minhas
entranhas e, mesmo que aparentemente apenas signifique sexo, eu deveria saber que nada se tratando
dele é apenas sexo.

Ele vira meu corpo novamente, me deitando na mesa, me estocando em um ritmo brutal, como
se fosse a última coisa que fará em sua vida.

Céus! Eu o desejo duas vezes mais do que quando saí de Curitiba. E ter negado esse desejo
pode ter contribuído para que eu chegasse a esse estado. Gabriel chega ao ápice pela segunda vez,
derramando o líquido quente em minhas pernas, que tremem. Permanecemos nos olhando, ofegantes,
sem arrependimento algum do que acabamos de fazer, embriagados pelo calor poderoso do prazer.

A luz que reflete em seu rosto o deixa ainda mais absurdamente sexy, me reafirmando que eu
estou encrencada com meus próprios sentimentos, pois, de alguma maneira, ainda me sinto
preenchida com ele como com nenhum outro.
48 |À SUA ESPERA

Camille

Gabriel põe a calça creme de volta e parece desistir de se vestir, se apoiando no tampo da
mesa e me fitando com os braços cruzados contra o peitoral nu. Rapidamente, olho para o meu
reflexo na parede de vidro e embrenho minhas mãos nos cabelos, ajeitando os fios em total
desalinho. Não quero correr o risco de alguém me ver assim, descabelada.

— Isso ficou ainda melhor do que eu me lembrava — ele comenta.

Aperto os olhos, tentando não demonstrar a mesma opinião. Ele prossegue:

— Janta comigo hoje.

— Não posso.

— Não pode ou não quer?

Viro-me para ele, para respondê-lo categoricamente, mas me perco na fina camada de suor
que encobre seus ombros e braços, me recordando dos momentos de prazer minutos atrás.

— Os dois. Não posso e não quero.

Ele descruza os braços e apoia as mãos na mesa, respirando sonoramente.

— Eu espero você querer.

— Parece confiante — observo. — Se eu fosse você não estaria tão confiante quanto a isso.
Sexo se consegue com qualquer um...

— Você sabe que não é apenas sexo... Apesar dessa arrogância toda que trouxe da Europa,
você não engana a mim, Camille. Você não transaria com qualquer um...

— Você tem razão. Eu não transaria com qualquer um. Mas o que houve entre nós hoje foi
apenas sexo. Não espere que eu aceite jantar com você ou restabeleça algo parecido ao que nós
tínhamos no passado. Lembro-me de que você não sabe cuidar das coisas além da cama, então não
me interessa mais qual é a sua expectativa sobre a noite de hoje.

Ele inspira pesadamente, como se minhas palavras não tivessem o agradado. E que bom que
não o agradou. Eu já tinha o feito gozar, seria decepcionante se eu massageasse seu ego depois.
Preparo-me para sair dali, mas ele me impede com suas palavras:

— Você disse que tinha algo para me contar sobre Maria Júlia.

Minha mente rebobina, me levando à tensão de horas atrás, antes de ele enfiar os dedos
dentro da minha calcinha e me fazer esquecer completamente do mundo ao meu redor.

— Se não quiser contar agora, podemos jantar hoje à noite.

— Estêvão contará a você. Ele saberá lhe dizer tanto quanto eu — digo por fim, me virando
para sair dali.

— Por que não deixou que ele o fizesse? Estava com raiva? — Espero ele questionar. —
Ciúmes?

— Ciúmes? — Sorrio e viro meu rosto, olhando-o por cima do ombro. — Você anda
flertando com o perigo, e eu tenho ciúmes? Essa é a última coisa que eu poderia ter de você com
aquela mulher. Certifique-se de que Estêvão lhe conte tudo. Não vou mais me meter nisso.

— Ok.

— Aliás, onde ela está? Disseram que ela estava aqui com você minutos antes.

— Maria Júlia? Ela já foi embora. — Ele enfia as mãos nos bolsos. — Veio apresentar sua
carta de demissão e entregá-la ao chefe da segurança. Como Estêvão não estava presente, ela a
entregou a Túlio.

O que está acontecendo?! Ela falou com Estêvão hoje mais cedo! Por que não o fez?! E por
que, aparentemente, nada de estranho aconteceu? Minha cabeça dá um nó. O que essa mulher está
planejando? Seja lá o que for, não tem a ver comigo. Deixarei que Estêvão resolva agora. Ele e
Gabriel saberão tomar as providências cabíveis melhor do que eu.

Viro novamente, dando um passo à frente, agora decidida a partir.

— Stella... — Estanco um passo, sem olhar para trás. — Eu encontrarei um jeito de me


redimir. — Sua voz está calma, mas convicta. — Não sei como ainda, porém farei o impossível para
merecer ter seus sentimentos de volta.

Tento impedir que meu coração se derreta com a promessa, afinal, mais vale ações do que
palavras. E estas, já não significam mais nada para mim.

Retomo meus passos, saindo pela porta da sala de reunião, atravessando o terraço. Sinto
meus saltos mais pesados, fincando o chão de concreto, ao passo que tenho a sensação de que meu
corpo está leve como uma pena. Se essa sensação tomar conta do meu corpo mais vezes, eu estarei
perdida. É por isso que não devo deixá-lo nunca mais entrar em minha pele. Eu havia prometido a
mim mesma, anos atrás, enquanto chorava copiosamente com o peito dilacerado. Eu era apenas uma
garota inocente, que não sabia nada sobre o amor. Isso não significa que hoje eu seja uma
especialista, mas aprendi muito com a desilusão, a me proteger emocionalmente. Será muito
arriscado ignorar o que aprendi para poder me permitir a tornar meus sentimentos vulneráveis de
novo pelo mesmo homem. Mesmo que ele não seja qualquer homem. Mesmo que ele seja Gabriel.

Entro no elevador, me apoiando na barra de ferro, tentando reorganizar meus pensamentos.


Abandono a cabine do elevador no térreo, pegando o celular da bolsa e solicitando um carro por
aplicativo. Não me sinto confortável em ter que depender dos homens de Gabriel para tudo, por isso
me adianto em traçar minha própria volta para casa.

Saio do prédio da Átila e atravesso a rua, parando na praça em frente à enorme construção
cinza. No aplicativo marca 5 minutos para a chegada do motorista, então não me permito sentar no
banquinho ali perto, ao invés disso, fico em pé, de braços cruzados, olhando para o final da rua
iluminada pela luz do crepúsculo diário.

Uma BMW preta estaciona em minha frente e me sinto incomodada. Tanto lugar para
estacionar, por que esse filho da mãe veio justamente parar em minha frente? O fulmino com o olhar
por trás do vidro preto, sem enxergar seu rosto. Caminho para trás, de forma que eu tenha visão da
rua e da porta de entrada do prédio à frente. No entanto, o infeliz dá ré, como se tivesse percebido
minha insatisfação. Ele só pode estar de brincadeira! Respiro fundo e caminho novamente para
frente. Ele me segue. Preparo-me para perguntar qual é o seu problema, mas a porta se abre em um
rompante e a pessoa que dirige o carro sai, carregando uma barra de ferro. Tudo acontece
rapidamente: os olhos verdes lodo, o ódio encoberto e a voz feminina sussurrando:

— Surpresa, vadia!

A última lembrança que tenho é da superfície de ferro acertar em cheio minha cabeça, me
levando ao chão.

Acordo ao som de uma música de ninar, daquelas que saem do interior de uma caixinha de
música, com uma bailarina girando nas pontas dos pés de modo letárgico. Abro os olhos com
dificuldade e vislumbro o forro de madeira, sentindo minhas órbitas arderem. Minha cabeça pesa
quilos, e meu corpo está com uma estranha sensação de dormência.

Olho para os lados e encontro a caixinha de som em cima da bancada empoeirada, ao lado de
um suspensório enferrujado, daqueles que se vê em hospitais. Reparo em uma espécie de medicação
no topo do suporte e sigo com os olhos o fio que se liga a um cateter em meu pulso, amarrado à cama.

Imediatamente, tento arrancar aquilo com a outra mão, mas a tentativa é em vão. Olho para
minha outra mão, que está presa por diversas camadas de fita silver na lateral da cama. Visto que não
conseguirei dessa forma, reúno toda força em meu corpo e espicho minhas costas, de forma que
minha cabeça tombe para frente. Quando minha boca alcança o meu punho, arranco com os dentes o
cateter junto da agulha.

Torno a me recostar no colchão, ofegante. Um filete de sangue escorre de meu lábio inferior, e
um suspiro involuntário escapa entre meus lábios enquanto olho para os lados. É um quarto, e,
aparentemente, não parece ser um quarto de um hospital. Todos os móveis parecem antigos e estão
encobertos por uma grossa camada de poeira e teias de aranha.

Apesar da poeira, o lugar não se assemelha nem um pouco ao muquifo que encontramos em
Campo de Santana. Os detalhes têm requinte, principalmente a luminária antiga no teto, em forma de
átomo.

— A donzela acordou. — Viro o rosto e a encontro na soleira da porta, com o olhar fixo em
mim.

Sua blusa é preta, assim como a calça. Os coturnos também, os mesmos daquela noite.

Ela caminha em minha direção e senta na cadeira ao lado, enquanto o ar para mim se torna
rarefeito.

— Onde estou? — Ofego.

— Em minha casa. — Apenas escuto sua voz responder. Não tem como fazer contato visual
com essa bandida, a não ser que ela fique de frente para mim. Eu estou imobilizada e mal posso virar
o pescoço em sua direção. — Arrancou seu remedinho de dormir? Que pena! É difícil achar o acesso
em sua veia, sabia? Ela inchou umas três vezes nos últimos dias.

Minha mente leva um choque e balbucio:

— Dias?
— Pois é. Você tem sido uma boa hóspede até aqui.

Tento me levantar, rosnando:

— O que você quer comigo?

Olho de soslaio um estilete arranhar a lateral da cama até o meio.

— Ainda não decidi. Na verdade, já me decidi. Mas é muito difícil para mim, Camille.

— Seja lá o que você está planejando, você não pode me prender dessa forma!

— Prender você aqui é o mínimo que pode acontecer à sua pessoa.

— Você será presa se tentar...

— Quem vai me prender? — Ela se diverte.

— Estêvão sabe de tudo, sobre sua casa em Campo de Santana, sobre os ataques... Eles
provavelmente já entregaram você à polícia...

— Então eu tenho mais um motivo para mantê-la aqui.

— Gabriel já deve saber de tudo. Uma hora dessas a polícia... — continuo e, em um


rompante, Maria Júlia se levanta, segura meus ombros e vocifera:

— Pensa que eu não sei disso, sua vaca?! Pensa que eu não observei Estêvão pela janela do
apartamento?! Você estava lá! Você e aquele idiota estavam juntos! — Ela cospe no meu rosto, e eu
tenho vontade de enterrar um soco em sua cara. — Você vai morrer, entendeu? Vo-cê va-i mor-rer —
ela sussurra a última parte pausadamente.

— E por que ainda não o fez? — pergunto entredentes.

Ela se afasta com a testa vincada pelo ódio.

— Eu preciso que ainda esteja viva. Para atrair Gabriel.

— Sua ordinária! Você é desprezível...

— Não é a primeira vez que alguém faz com que eu me sinta assim, desprezível.

— Por que Gabriel? Por que esse tempo todo você ficou atrás dele? A troco de quê?

— Não te devo explicações. — Ela caminha para o outro lado do quarto, em que há uma
bandeja de medicamentos em cima da cômoda. — Logo, logo ele estará aqui. E será apenas você, ele
e eu.
Ela retorna para o lado da cama e segura meu punho com brutalidade, enfiando aquela merda
de agulha em minha veia sem nenhum cuidado. Grito de dor.

Ela troca o que parece ser um tipo concentrado de calmante, regulando a dosagem de modo
muito mais rápido do que o habitual. Começo a chorar em desespero.

Eu não quero dormir de novo. Temo enfraquecer mais do que já havia enfraquecido.

— Assim você ficará bem melhor — ela diz, e eu a olho de baixo.

— Não faça nenhuma besteira, Maria Júlia. As coisas podem ficar ainda piores...

— Tarde demais para me falar isso, querida. Eu não tenho nada a perder. Aliás, nunca tive
nada.

— Sempre temos alguma coisa.

— Pois eu sou uma exceção. Eu não tenho absolutamente nada — ela sussurra as últimas
palavras, me deixando ali e caminhando para outro cômodo.

Choro até soluçar e os meus olhos apagarem.


49 | AS REGRAS DO JOGO

Gabriel

Tento me reconectar com o trabalho novamente, mas o resto do mundo parece quase nada
depois de tê-la outra vez, mesmo que por alguns instantes.

Direciono-me ao escritório da presidência, com Estêvão em meu encalço, que me aguardou


todo esse tempo perto do elevador.

— Onde está a senhorita Camille? — Ele se coloca ao meu lado, enquanto caminho pelo
salão do escritório entre os funcionários, que cochicham entre si mais do que o normal.

— Camille foi embora — respondo. — Eu preciso falar com você. Sobre Maria Júlia.

Estêvão entra em contato com os seguranças no térreo, dando ordens para que levem Camille
para casa em segurança.

Entramos em minha sala, e logo me sento na cadeira atrás da mesa, regulando o ar-
condicionado em uma temperatura mais baixa.

— Camille disse que você vai me contar algo, que ela também sabe, mas não me contou.

— Não contou? — Estêvão parece surpreso. — Desculpa. É que me pareceu que tiveram
tempo suficiente para essa conversa.

No mesmo instante, me pego recordando da conversa corporal que tivemos em cima da mesa
de reunião no terraço do prédio.

Pigarreio.

— Não. Ela foi embora antes que me contasse algo relevante. Então quero que me explique.
Isso já está começando a me dar nos nervos... O que vocês sabem sobre Maria Júlia que eu não sei?

Pela forma que Estêvão me encara, boa coisa não pode ser.

Quando reencontrei Maria Júlia anos atrás, ela me pareceu uma pessoa racional. Sua sensatez
e sua opinião, por vezes, me impressionava. Maria Júlia até tinha motivos para não querer se
aproximar de mim, afinal, quando não dão nomes aos culpados, é natural que a família da vítima
sentencie o acusado, mesmo não havendo provas suficientes para condená-lo. No entanto, Maria
Júlia além de não julgar, tornou-se uma espécie de amiga nos últimos dois anos.

— Hoje encontramos a Shadow branca usada nos ataques em um casebre em Campo de


Santana.

— Puta merda! — Continuo fitando Estêvão e raciocinando no mesmo instante. — Como


você ficou sabendo disso? — disparo.

Estêvão faz a porra de uma pausa dramática, mas prossegue:

— Consegui o endereço em uma das contas no apartamento de Maria Júlia.

— Maria Júlia? — Minha voz sai como um sopro, como se minha mente embaçasse ao ouvir
esse nome. Dessa forma, nesse contexto.

Conhecendo Maria Júlia, nunca imaginaria tal hipótese. Nada faz sentido. Mas, ao mesmo
tempo, tudo faz sentido. Mas, merda! Como eu imaginaria que quem esteve tão perto durante esses
últimos anos estivesse envolvida nisso?

— Infelizmente, é ela a autora dos disparos, Gabriel. Camille reconheceu seus coturnos
naquela noite no Batel, e conversou com Otávio...

Levanto, sacudindo a cabeça, embebido pelas informações inesperadas. De repente, sinto que
não consigo digerir que o nome de Camille esteja envolvido nessa história. Ela conversou com
Otávio? Estêvão só pode estar de brincadeira.

— Camille o quê? — Ergo o dedo em riste, dando alguns passos para trás.

— Foi Camille quem me trouxe a dúvida, Gabriel. Ela estava convicta de que Maria Júlia
estava envolvida nos ataques depois de conversar com seu tio na prisão. De toda forma, isso me
ajudou a chegar ao casebre em Campo de Santana... E pelo o que encontrei lá, essa mulher tem algum
tipo de obsessão, que ainda não foi investigada a fundo, mas...

Em um momento de ira, chuto a cadeira giratória ao meu lado, que colide contra o armário do
outro lado da sala, fazendo um barulho estridente em todos os cantos do escritório.

— Como pode todo esse tempo ser ela? — sussurro, com a raiva subindo para minha cabeça.
Como pude ser tão tolo? — Onde Camille está? — Uma espiral de perguntas gira em minha cabeça e,
ao mesmo tempo, só consigo me preocupar com ela.

— Vou ligar para o pessoal lá embaixo. Talvez já tenham a levado.

— Faça isso! — Assinto com veemência, inspirando e expirando com força.


Não posso acreditar. Maria Júlia?

Eu a coloquei dentro da minha casa. Dei minha total confiança e agora descubro que é ela
esse tempo todo? Por mais que confie em Estêvão, algumas coisas parecem não se encaixarem. Se
ela estava tão interessada em minha morte, por que diabos ela não o fez nos últimos anos?

Observo Estêvão falar ao telefone, com uma expressão não muito satisfeita. Ele desliga e me
diz:

— Aparentemente, Camille foi embora sozinha. — Estêvão parece irritado tanto quanto eu.
— Eles não sabem. Não viram. Ela deve ter pegado um táxi.

Mordo o lábio inferior, pensando em algo.

— Eu vou agora para casa — digo decididamente.

— Não acho que seja uma boa ideia. Vou reunir mais gente para reforçar a segurança.

— Não estou com medo dela! — rosno, com uma puta raiva de tudo isso.

— Não se esqueça que todos esses anos tem sido ela. Não subestime Maria Júlia. E outra,
tem um evento marcado para hoje.

— Evento marcado para hoje? Como assim? — resmungo.

— Segundo as anotações dela, que encontramos em um dos quartos do casebre, algo vai
acontecer hoje.

— O quê?

— Não sei. As anotações não especificavam — ele diz, e eu bufo, puto com a possibilidade
disso ficar pior. — Dê uma olhada. — Estêvão me mostra as fotos no telefone e eu as passo
rapidamente. A primeira se trata da moto branca sem placa, me fazendo ter ainda mais a certeza de
que é ela. Depois analiso as fotografias do painel de revistas e manchetes de jornais, como se minha
mente fizesse um link, compreendendo o que cada data significa. Desde o primeiro atentado até o dia
que levei um tiro na porta de casa. Porra! Essa mulher é muito mais do que uma pessoa movida pela
vingança, ela é doente! Isso perturba ainda mais minha mente. É como se eu nunca tivesse a
conhecido de fato!

— Em algumas horas, poderemos retornar à sua casa, Gabriel.

— Não! Antes vamos passar na delegacia! Eu vou entregá-la! — Viro-me para olhar para a
cidade diante da vidraça em minha frente e acrescento, enfiando nas mãos no bolso: — Não
esperarei mais nem um dia, Estêvão. Camille também está em perigo. Convoque mais seguranças, eu
pago o valor que for, e os coloque atrás de Camille.

Não esperarei nem mais um dia para iniciar uma caçada à Maria Júlia. Durante todo esse
tempo vivendo uma guerra contra um inimigo desconhecido, passei a valorizar mais o tempo. Um dia
a mais é o suficiente para que algo aconteça contra nós. Uma sensação ruim me acomete, pensando no
quão arriscado foi Camille se meter novamente na roubada que é minha vida.

Curitiba
Dois dias depois

“Stella Mackenzie segue desaparecia. A última vez que foi vista foi no escritório da
fábrica automobilística Átila, a estilista brasileira havia ido conversar com o ex-namorado,
Gabriel Átila, atual CEO da empresa. As câmeras mostram o momento exato em que Camille sai
do prédio e se direciona à praça, em frente ao escritório. A garota é acertada com uma barra de
ferro por uma mulher de cabelos castanhos e, de forma impressionante, a mesma consegue
arrastar o corpo de Stella para o banco de trás. A suspeita foi identificada como Maria Júlia,
filha do falecido e respeitável juiz federal, mais conhecido como doutor Ramos.”

A reportagem prossegue, enquanto Estêvão adentra o escritório particular em minha casa, me


dando uma notícia.

— O pai de Camille deu entrada no hospital com pressão baixa — Estêvão me avisa sobre o
estado de saúde de Afonso, completando ainda mais o inferno que minha vida se transformou nas
últimas setenta e duas horas.

Desligo a TV com o controle remoto e respondo:

— Assegure que ele esteja bem amparado, Estêvão.

— Sim, senhor. — Ele se aproxima da mesa, perguntando: — Ela ligou?

Estêvão me parece desconfiado.


— Você acha que eu esconderia caso ela ligasse? — Minha voz engessada o indaga.

Ele me olha seriamente e respira fundo:

— Não. Claro que não.

— Ótimo. Eu quero que traga Roberto aqui. — Roberto é o investigador de polícia


responsável pelo caso.

— Sim, senhor. — Estêvão assente e sai pela porta pela qual entrou, me deixando sozinho.

Fixo meu olhar novamente no aparelho celular jazido em cima da mesa. Nunca desejei tanto
que ele tocasse. Meus olhos caem para o lado, relaxando um pouco. Já faz dois dias que não durmo e
meu corpo parece começar a sentir os reflexos disso.

Afasto a cadeira para trás, levantando e alongando minhas costas. Não pretendo dormir tão
cedo, então é melhor que esteja em boa forma.

Meus ouvidos capturam o som em meu celular e, no mesmo instante, atendo a chamada:

— Alô? — Ofego.

Um silêncio sepulcral se faz do outro lado da linha.

— Quem é? — Faço uma pausa. — Maria Júlia? Eu sei que é você.

— Você ainda reconhece o som de minha respiração. — Sua voz estável reverbera calma. —
O que anda fazendo, meu bem?

— Solte Camille! Seu problema é comigo, não é com ela!

— Tem razão. Você deveria estar aqui, meu amor.

— Onde vocês estão?

— Em minha casa.

— Qual o endereço? — pergunto, incisivo.

— Você vai vir?

— Sim. Estou indo. — Assinto, tentando manter o tom de voz.

— Antes preciso que você me assegure que não trará a polícia com você.

— Não levarei.
— Preciso que prove — ela replica, impaciente.

— Como eu posso provar?

Ela retoma o silêncio.

— Alô?!

Ela torna a falar por fim:

— Preciso que despiste seus seguranças. Tem um templo em Campo Comprido, preciso que
vá até lá, sozinho. Ao redor do templo moram conhecidos meus. Avisarei a eles que você irá sozinho.
Caso me digam que apareceu algum de seus colegas, Camille morre no mesmo minuto. Então
cuidado, docinho. Não se precipite.

— Eu preciso saber como ela está.

— Bem. Os sinais vitais dela estão em ótimo estado.

— Preciso falar com ela.

— Não vai ser possível. Ela está dormindo.

— O que deu para ela? — replico.

— Nada demais. Apenas estou ministrando calmantes regularmente. Venha você mesmo
conferir o estado de saúde dela.

— Estou indo. Agora.

— Então até logo, meu bem. Um amigo meu te buscará na capela.

— Até! — me despeço, inspirando fundo, descansando as costas no estofado da poltrona


atrás e unindo as mãos.

O celular vibra novamente por um instante e eu o pego rapidamente, abrindo a tela.

Na imagem enviada de um número desconhecido, Camille aparece deitada e descordada em


uma cama de lençóis brancos. Ela parece pálida e doente, com o pulso ligado a uma medicação que
aquela mulher injetou. Mordo o lábio inferior com força, me punindo por isso que está acontecendo
com ela. De novo.

Eu tenho que tirá-la de lá, tenho a obrigação. Mesmo que isso custe minha própria vida.
Mesmo que essa seja a última coisa que faça na terra.
Diante do altar, nessa capela deserta, só há eu e as imagens de santidades à minha volta.
Estou sentado, olhando para a imagem dEle, e rogo pela vida de Camille. Minha alma se dobra em
devoção, pedindo misericórdia por ela, por minha alma e pelas próximas horas.

Uma mão repousa em meu ombro e sinto minha mandíbula trincar.

— Gabriel? — o que imagino ser o capanga de Maria Júlia pergunta em um tom de voz baixo.
Mas mesmo assim sua voz reproduz ecos pelas paredes da capela taciturna.

Levanto-me sem olhar para trás e caminho para o corredor entre os bancos de madeira,
enquanto ele faz o mesmo.

O homem, de cabelos extremamente baixos, esconde seus olhos atrás do Ray-Ban preto. Ele
usa uma jaqueta da mesma cor dos óculos e calças jeans surradas, escondendo uma pistola na lateral
de seu corpo.

Caminhamos até o carro estacionado na rua principal do templo, entrando em uma BMW, a
mesma que apareceu tantas vezes nos noticiários.

— Quem é você? — pergunto, sentando, como ele me manda, no banco de trás. — Ela te
contratou ou você faz parte disso?

— Calado! — ele resmunga, chutando minha canela. Filho da puta. Engulo em seco, tentando
acalmar meus ânimos até chegarmos ao cativeiro.

Não tenho ideia do que se passa na cabeça de Maria Júlia, mas ainda tenho que chegar até
Camille. Bater de frente com as regras de seu jogo não me parece uma estratégia muito inteligente.
Então decido tentar obedecê-las, mesmo que eu não as conheça, até libertar Camille da loucura vil de
Maria Júlia.
50 | LIBERDADE

Gabriel

O cheiro de naftalina invade violentamente minhas narinas quando piso no chão empoeirado.

Ainda tem luz lá fora, mas a noite está prestes a cair.

Foi um dia quente em Curitiba, mas a temperatura caiu drasticamente nos últimos minutos,
como de costume. O homem atrás de mim me guia até a sala de ornamentações ultrapassadas, onde
uma lareira trepida o fogo entre os galhos velhos — é um modelo típico do início dos anos 2000.

Ao lado da lareira é possível ver sofás cobertos por lonas cinzas e uma pequena mesa de
centro se acomoda entre os estofados do cômodo.

— Seja bem-vindo, meu bem.

Ergo o olhar para o canto superior da sala, alguns poucos degraus acima do piso em que
estou. Ela se encosta na grossa coluna de concreto ao lado, com os braços cruzados abaixo dos seios.

Sinto minhas mandíbulas se apertarem outra vez quando seu olhar cruza com o meu, refletindo
o alaranjado do fogo em suas íris esverdeadas.

Ela desce os degraus à frente e entrega um bolo de dinheiro ao capanga ao meu lado.

— Tudo certinho? — ela o indaga, autoritária, enquanto ele conta as notas de cem reais.

Ele demora a afirmar:

— Certinho, dona. Mais do que certo.

— Se eu precisar, posso te chamar de novo?

Ele esboça um riso um tanto forçado.

— Essa é a última vez que presto serviços à senhora, dona. As coisas estão ficando feias
para o seu lado.

— Por isso você vai me deixar na mão. — Ela revira os olhos nas órbitas. — Eu deveria ter
imaginado. — Ela solta o ar, resmungando: — É um cagão mesmo!

— Do que me chamou? — Ele eleva a voz.


— Vá para a sarjeta do seu bairro e me deixe em paz! — Maria Júlia ralha, sacando um
revólver 38.

Tão logo, o homem ao meu lado dá alguns passos para trás, saindo sem se despedir,
intimidado pelo olhar fulminante.

No primeiro momento, estranho seu comportamento astuto e um tanto agressivo. É como se


não fosse a mesma pessoa. É como se ela revelasse seu verdadeiro eu, que até então eu não tinha
conhecimento.

Quando a porta bate atrás de nós, seu olhar desliza para mim.

— Você demorou — ela pontua.

— Tive trabalho em despistar meus homens — respondo, fingindo um tom desinteressado.

— Vamos sentar? — ela pergunta, olhando para os sofás encobertos.

— Dispenso. Onde está Camille? — Apesar de tentar admoestar meu humor, as palavras
saem naturalmente rudes de minha boca.

— Camille? Camille! Camille! Camille! Sempre Camille!

— Você me prometeu mais cedo que me deixaria vê-la.

— Que tal conversarmos sobre nós?

Analiso a proposta com mais cuidado e a aceito.

— Certo. Vamos conversar sobre nós. Comecemos com o passado. Tem algo a me dizer?

— Algo a dizer? — Ela sorri sarcasticamente.

— Algo que talvez você não tenha me contado. Algum detalhe que deixou despercebido.

— Detalhe? Por que de repente sinto que está falando nas entrelinhas, Gabriel? O que
realmente quer perguntar? Seja claro!

Seu cinismo repugnante faz com que eu feche os olhos. Não bater de frente. Não bater de
frente, repito essa merda em minha mente como um mantra, mas está complicado.

Reformulo a pergunta, amenizando a situação com as palavras:

— Sei que é você que estava atrás de mim... Por quê?

Ela ergue as sobrancelhas e depois bate palmas, com um sorriso comedido nos lábios.
— Você conseguiu... Achei que ia ficar enrolando aí até a meia-noite.

Ela anda em direção ao sofá, dizendo:

— Se não quer se sentar, eu mesma o faço. — Ela repousa a 38 sobre a perna, respirando
fundo. — Por onde começo? Ah, já sei! — Ela se sobressalta e torna a me fitar. — Que tal voltarmos
para anos atrás, quando perdi meu irmão mais velho para um massacre?

— Você sabe que não sou o responsável... — replico e sou interrompido pela sua voz
perigosamente macia:

— Logo depois, meu pai desbundou em uma maldita depressão, até tirar a própria vida e me
deixar sozinha. Mesmo que aquele velho me rejeitasse e me culpasse diariamente pela perda de
minha mãe e fizesse eu me sentir sozinha, ele não tinha o direito de me deixar sem família.

— Não fui quem atirou em Ramos.

— Eu sei, eu sei. Hoje eu sei. Mas, na época, como poderia imaginar? — Ela solta um
sorriso amarelo, com espasmos nos olhos. Ela está totalmente fora de controle. — Sabe, lembro-me
que no mês que fiz 18 anos, enterrei meu pai e fiquei dentro dessa casa com uma apavorante sensação
de que não havia ninguém nesse mundo por mim. Era como se eu não estivesse aqui. Ninguém vinha
aqui para saber como eu realmente estava, a não ser a família aproveitadora do meu pai, que queria
me arrancar dinheiro a todo momento.

— Sinto muito. Mas eu não tive nada a ver com isso — reforço, impaciente.

— Eu entrei em uma depressão profunda, e só conseguia pensar apenas em uma coisa:


vingança. Eu queria encontrar um culpado por aquilo está acontecendo em minha vida e só pensava
em você. Para mim, quem havia disparado contra meu irmão naquela noite também era responsável
pela morte do meu pai. Então, certo dia, decidi que você tinha que morrer.

Olho para o lado, me perguntando se esse corredor me levaria à Camille.

— Eu me preparei fisicamente durante um ano, comprei armas, munições, estudei cada passo
seu e de sua família. E, um dia, fiquei de espreita no prédio ao lado do restaurante que você estava e
posicionei o rifle no limite do terraço, mirando o seu peito. Naquela época, foi muito fácil acertá-lo,
você tinha apenas um segurança. Mas você não morreu. E aquilo me deixou transtornada.

— Você é doente — sussurro. Maria Júlia precisa urgentemente de cuidados psiquiátricos.


Assisti-la falar sem máscara, me deixa mais convicto que isso vai além de uma vingança. Ela sofre
de uma grave patologia mental.
— Depois tudo se tornou mais difícil. Sua mãe colocou um exército de seguranças, e você se
mudou para sua própria casa — ela suspira. — Não havia um dia sequer que eu não pensasse em sua
morte. Eu queria que você pagasse...

— E agora? — questiono. — O responsável pela morte do seu irmão está preso. E agora? O
que diabos você quer comigo?

Ela repuxa o canto inferior dos lábios e murmura:

— Eu me apaixonei por você.

Tento não piscar os olhos e digerir isso em minha mente. Ela só pode estar de brincadeira!

— Quando entrei em sua casa, comecei a achar novas formas de puni-lo. Começando por
Camille. Depois a empresa, que estava em suas mãos.

— O erro de fabricação? — sussurro.

— Sim. Paguei 70 mil para dois técnicos de produção desregularem a direção de uma série
de carros.

Pouso as mãos na cintura, respirando fundo.

— Mas eu comecei a me apaixonar, Gabriel. Eu sentia que era recíproco. Você também
sentiu, você sabe mais do que eu que tínhamos uma conexão... Até aquela garota reaparecer de novo
em sua vida.

— Por favor, pare.

— Depois que descobri que não era você, mas sim Otávio, me senti tão... tão... idiota. Mas
tudo já havia sido feito. Eu não tinha como voltar atrás.

— Mas por que droga ainda está atrás de mim?

— Porque eu só consigo pensar em você — ela diz com os olhos lacrimejando. — Como se o
meu cérebro não conseguisse ser resetado, você ainda continua morando em minha mente como em
todos os últimos onze anos. — Suspiro pesadamente, já não aguentando tanta maluquice para uma
conversa só. — Seu tio foi preso. Mas e eu, como fico? Voltarei novamente para aquele estado de
depressão? Me afundarei na solidão? Enquanto você se aproxima novamente daquela piranha! Nós
estávamos felizes, Gabriel...

— Não, não estávamos felizes. — Meneio a cabeça em negativa. — Você estava.

— Se ela não aparecesse, você continuaria comigo. Você continuaria sendo meu.
— Se eu soubesse de tudo isso, nunca deixaria você entrar em minha casa.

— Gabriel...

— Você precisa de ajuda médica, Maria Júlia. Você não está bem. Se você se entregar, o juiz
levará em conta seu estado de saúde mental...

— Você promete ficar comigo se eu me tratar? Você promete não voltar para aquela garota...

Vendo sua instabilidade emocional, penso bem antes de responder. Mas logo o faço:

— Sim. — Engulo em seco, instintivamente coçando a ponta do nariz. — Eu prometo.

De repente, o som da sirene invade a sala. Ela franze o cenho e caminha para a janela,
provavelmente avistando a polícia chegando. Porra!, resmungo, lembrando de quando pedi discrição
a Roberto.

— ESTÁ MENTINDO! — ela vocifera, me apontando o revólver 38. — Você é um infeliz


mesmo! Um mentiroso, um traidor! Mas você vai pagar muito caro por isso, Gabriel. Eu avisei —
ralha, entredentes. Totalmente desequilibrada.

Ergo lentamente minhas mãos para o alto, a fim de que ela não cometa nenhuma besteira.

— Calma! Nós podemos resolver isso de maneira pacífica. Eu prometo tirar a queixa. Eu
mesmo procuro um médico, eu quero ajudar você.

Em um ímpeto, ela começa a sorrir. Não sei exatamente do que ela sorri, mas meus olhos
nesse momento caem para o lado, entre as colunas, onde a mulher de cabelos castanhos caminha a
passos trôpegos. Ela mal consegue se sustentar no próprio corpo e caminha para o outro lado da sala.

Torno a fitar Maria Júlia em minha frente e tento roubar sua atenção.

— O que você espera de mim? O que posso fazer para reverter essa situação?

— Nada — murmura, limpando uma lágrima solitária que escapa pela lateral de seu olho
esquerdo. — Eu já decidi. Você tem que morrer, Gabriel. Sua garota também. Eu nunca ficarei
satisfeita sabendo que está feliz com ela. Eu me sentirei ainda mais indesejada nesse mundo. Sozinha.

— Você não se sentirá sozinha. Por favor, acredite em mim.

— Você está mentindo. Está dizendo isso para eu deixar você viver. — As lágrimas de seus
olhos caem desenfreadamente, enquanto segura a arma com as duas mãos. — Está tão perto. Não tem
mais escapatória, Gabriel. Seu dia chegou. — Olho de esguelha e vejo Camille pegar furtivamente a
barra de ferro, que está apoiada ao lado da clareira, provavelmente é a mesma que vi no vídeo da
câmera de segurança naquele dia que Maria Júlia a atingiu na cabeça. — Não se preocupe, Camille
irá logo mais.

— Não faça isso. Acalme-se, não faça nada impensado.

— Você acha que eu não pensei? Pensei muito. Pensei até minha cabeça doer. Por isso que
você está aqui. — Ela funga. E depois diz, decididamente: — Adeus, meu bem. Até nunca mais.

Ouço o primeiro estalo no gatilho e finalmente ela se prepara para puxá-lo e atirar. No
mesmo instante, irrompe no espaço o urrado da mulher com uma barra de ferro nas mãos, atrás de
Maria Júlia. Camille corre com toda força que lhe resta contra a mulher em minha frente e acerta sua
cabeça quase no mesmo segundo que ela puxa o gatilho. O tiro esquenta meu braço, enquanto Maria
Júlia cai de lado. Sua cabeça bate no chão e seu corpo solavanca com o impacto.

— Vaca! — Camille desfere, ofegando, tropeçando em seus próprios pés. Rapidamente,


capturo a revólver ao lado de Maria Júlia e abraço Camille, antes que ela caia.

— Ela morreu? — Camille aperta os dedos em minha camisa, com a voz visivelmente
abalada, perturbada.

— Não sei, vamos sair daqui.

— Ai, meu Deus! Eu matei alguém. — Camille enterra o rosto em meu peito, choramingando.
— Eu nunca mais vou ter paz na vida. — Ela soluça.

Afago seus cabelos, negando:

— Você fez em legítima defesa. Você não tem culpa. — Ela me olha com os olhos marejados
e me sinto o homem mais infeliz por vê-la nesse estado: lânguida e com o desespero cravado no
olhar. Eu não a conheci assim. Ainda me lembro do seu olhar inocente e vivo, que trazia cor e alegria
para os meus dias sombrios. Presenciar Camille dessa forma, me destrói por completo. — A polícia
está aqui na frente. Temos que ir — aviso, afetado com o que presencio.

Ela assente, com o queixo tremulando e os lábios em frangalhos.

Suspendo seu corpo leve em meus braços e caminho para fora daquela maldita casa. Quando
me coloco no terraço, as luzes da sirene acertam nossos corpos, me cegando um pouco. Desço os
degraus à frente e caminho pelo jardim. Os policiais invadem a casa atrás, enquanto vejo Estêvão se
aproximar e fazer o mesmo, passando por mim e olhando momentaneamente Camille em meus braços.

Lembro de hoje mais cedo, quando recebi a ligação de Maria Júlia. Antes de ir à capela, tive
uma rápida reunião com Estêvão e Roberto, o investigador. Desde cedo, com o pequeno detalhe que
Maria Júlia deixou escapar, chegamos à conclusão que o cativeiro pudesse ser uma das casas que
Ramos deixou de herança para Maria Júlia. Estava tudo planejado para que resgatassem Camille a
tempo, não saberia dizer se eu teria a mesma sorte. Mas, no final, meu peito está aliviado por estar
vivo, para me certificar que ela sairá dessa casa com vida também.

Continuo caminhando até a rua lotada de camburões, com Camille em meus braços, enquanto
algumas pessoas me conduzem para a ambulância posicionada na descida. Deito Camille na maca e a
acompanho durante o percurso ao hospital, segurando sua mão de dedos franzinos e pensando no
quão miserável eu seria se algo de mais grave tivesse a acometido.

Acabou!

Pelo menos assim, eu espero.


51 | OS PRIMEIROS DIAS

Camille

Confusa.

É exatamente assim como me sinto depois de viver tudo que presenciei nas últimas horas. É
como se meus pensamentos estivessem a todo vapor, com um turbilhão de sentimentos ainda
martelando meu peito, e, a qualquer momento, eu enlouqueceria.

Dormi por alguns minutos e acordei sobressaltada. E apesar de ter sentido a mão quente de
Gabriel afagar a minha durante todo o percurso para o hospital, não trocamos sequer uma palavra.

— Fugiu? PORRA! PORRA, ESTÊVÃO! Eu deixei uma mulher inconsciente no chão daquela
casa e você me diz que ela fugiu pelos fundos com aquele tanto de policiais na frente? — Gabriel dá
um tapa forte na mesa da enfermaria enquanto fala ao telefone. Tremo com isso. — Vocês só podem
estar de brincadeira com minha cara! Eu estou há mais de dez anos sendo perseguido por uma mulher
desequilibrada e a porra da polícia desse país não consegue fazer nada, como quer que eu fique
calmo?! Cacete!

— Algum problema por aqui? — A enfermeira adentra o leito, fitando Gabriel. — Senhor,
sugiro que não grite ao telefone. Estamos em um hospital.

Gabriel ergue as sobrancelhas e se restabelece.

— Sim, claro! Não farei mais barulho. — Ele lança um meio-sorriso respeitoso à senhora de
cabelos grisalhos.

— Obrigada por sua compreensão. — Ela se retira logo após.

Quando a porta se fecha, seus olhos flagram os meus abertos.

— Depois te ligo. Camille acordou.

— Minha família... — Minha voz sai fraca.

— Eles estão vindo... Eu mesmo os comuniquei quando estava dormindo.

— Pierre?

— Também.
Reteso meus lábios machucados, lembrando de quando acordei sozinha naquele quarto
empoeirado, com os punhos presos às laterais da cama e tomei a feliz decisão de rasgar aquelas fitas
grossas com os dentes, em um ato de desespero. Se eu não tivesse feito aquilo, provavelmente não
estaria aqui agora.

— Ela fugiu? — indago para Gabriel, incisiva. Apesar dessa possibilidade ser agonizante,
estranhamente me sinto aliviada por ela não ter morrido.

Nos olhos dele é nítido o sentimento da culpa esmagadora que carrega. Mas, mesmo assim,
decido perguntar. Eu estou extremamente cansada mentalmente, tenho o direito de estar ciente disso.

Gabriel apoia a mão ao lado da maca, se inclinando para frente, de forma que fiquemos mais
intimamente próximos. Ele sussurra, tocando uma mecha de meu cabelo:

— Vai ficar tudo bem. Eu prometo. Eu vou dar um jeito. Ninguém vai chegar perto de você.
Eu não deixarei.

— Nem de você — murmuro.

— Você não tem nada a ver com isso.

— Nem você — completo novamente.

Ele franze o cenho, respondendo:

— Isso tem mais a ver comigo do que com você. Eu preciso que saia do Brasil.

— O quê?

— Preciso que esteja bem longe dessa loucura até tudo isso passar. Não precisa ser para
sempre.

Pisco repetidas vezes e digo categoricamente:

— Não.

Ele arregala os olhos em surpresa.

— Não espere que faça isso novamente por você.

— Camille...

— Nada do que você disser vai mudar minha opinião.

— Essa não é uma boa hora para ser cabeça-dura — ele retruca, visivelmente irritado.
— Olha quem diz isso.

— Não posso conviver com o perigo de que algo aconteça com você.

— Também foi difícil para mim anos atrás. Era o meu maior medo. E o que você fez? Me
afastou. Não espere eu mudar novamente minha vida drasticamente por você, pois não vou fazer isso.
Eu preciso das pessoas que amo por perto para me manter bem.

Ele fecha os olhos, inconformado.

Em um rompante, a porta do leito se abre e Pierre aparece logo atrás de Gabriel.

— Milady? — Pierre me fita com olhos fundos e vidrados de lágrimas. Ele caminha até a
lateral da cama, me abraçando com cuidado, e lamuria aos prantos: — Minha menina! Eu nunca mais
vou deixá-la sozinha, nunca mais. — Pierre funga em minha cabeça e tenho a sensação de que vou
desabar a qualquer momento. — Seu pai, Donatella e dona Lúcia estão chegando... Até aquela sua
amiga maluca está correndo para cá. — As lágrimas não param de cair do rosto de Pierre, fazendo
com que meu coração fique do tamanho de uma ervilha vendo a preocupação que causei nele.

— Eu vou indo — Gabriel, que está do outro lado da cama, avisa.

Seguro sua mão antes que ele saia, agradecendo:

— Obrigada!

— Pelo quê? — ele analisa a situação.

Amasso um pouco mais forte seus dedos.

— Por isso.

Ele ergue nossos dedos e beija a costa de minha mão rapidamente, quase de forma mecânica,
se despedindo com um olhar endurecido. Gabriel me deixa a sós com Pierre, mas sua presença ainda
reverbera dentro de mim, como eternos ecos incessantes.
Camille

Curitiba
Duas semanas depois

Depois de receber alta, minha família me acompanha até a polícia, para prestar depoimento, e
depois retorno ao meu apartamento. Meu pai me fez prometer que nunca chegarei perto de Gabriel
novamente, mas não sei se poderei cumprir essa promessa. Afinal, quero saber como ele está. E sei
que essa vontade só aumentará com o passar dos dias, já que Maria Júlia ainda continua solta.

Tento relaxar e não pensar muito nos dias de repouso recomendados pelo médico, mas
confesso que falho várias vezes. As lembranças do semblante daquela mulher invadem minha mente
sem permissão e quando eu dou por mim, já estou revivendo aqueles dias de terror mais uma vez.
Então decido mentalizar que aproveitarei os dias seguintes unicamente para me dedicar ao projeto do
Corcovado, sob uma condição de Pierre: não sair de casa pelo menos por 15 dias.

Acho justo, já que nos primeiros dias ainda me sinto sonolenta e fraca.

Durante uma manhã de sábado, me espreguiço na cama, coloco meu robe cor-de-rosa de seda
e vou até a cozinha buscar uma xícara de café quentinho.

Abro as cortinas da sacada e observo o horizonte urbano de Curitiba: prédios intercalados de


árvores de um verde-escuro. Sorvo o ar mais veemente quando uma brisa acerta meu rosto e começo
a observar o movimento da rua lá embaixo, como de costume.

Passo meu olhar entre a movimentação de pessoas, carros e motocicletas, e, de repente, algo
me chama a atenção: o homem alto de cabelos castanhos, terno preto e Ray-Ban, parado em frente à
cafeteria, falando com outro rapaz à paisana. É Estêvão.

Esforço-me um pouco mais e me recordo que aquele homem à paisana também trabalha para
Gabriel. Mas também me lembro dele de ontem, ele estava neste mesmo lugar. Estêvão parece se
despedir do homem ao seu lado e caminhar para a outra ponta da calçada, onde há outro colega. Em
um ímpeto, amplio a visão para as demais pessoas na rua, tendo uma espécie de epifania. Vejo que
todos aqueles rostos espalhados pela rua estão ali há dias.
Estêvão olha para cima, e eu, automaticamente, dou um passo para trás.

Coloco-me para dentro da sala e fecho as cortinas da porta da sacada.

— Mademoiselle? Algum problema? — Pierre vem em minha direção com um catálogo da


Dior em mãos.

— Pierre, você sabia disso? — Aponto o dedo em riste para trás.

— Disso o quê?

— Desses seguranças — respondo, ainda em choque com a quantidade de homens lá fora.

Pierre esboça um sorrisinho desconcertado e tenho minha resposta.

— Gabriel disse que você não aceitaria caso ele oferecesse...

— Claro que não. Se eu quisesse seguranças, eu mesma contrataria com o meu dinheiro.
Aliás, quando ele disse isso?

— Ele me ligou.

— Como ele tem seu número?

— Não sei. Talvez Giovanna tenha vazado para ele essa informação.

Vou até a mesinha de centro e pesco meu celular entre os vasos.

— Qual o número dele? — pergunto.

— Para quê?

— Oras, pra quê? Para dispensar toda essa gente da minha porta.

— Por quê? Se aquela louca vier atrás da senhora, não dou conta não.

— Pierre, estamos em casa há dias. Que mal pode nos acontecer?

— Eu não sei... Mas, por mim, nós já estávamos de volta à Europa faz tempo.

— Aposto que ele ficou de conversinha com você sobre voltar para a Europa. Que
manipulador! — exclamo, pensando alto.

— Confesso que adorei a ideia. Eu não nasci para lidar com bandida não.

— Se quiser voltar para Hortência, ainda tem tempo. Talvez ela tenha misericórdia de você,
Pierre.
— Está repreendido. — Ele faz o sinal da Cruz três vezes. — Como punição pela minha
traição, ela pediria para eu assinar um contrato até o final da minha vida.

— Quem sabe da próxima vida também — completo e sorrimos juntos.

DING DONG!

— Quem é? Estamos esperando alguém, Pierre? — pergunto, olhando para a porta.

— Que eu me lembro, não. Vamos descobrir agora — ele diz, se apressando antes que eu
mesma vá.

Pierre abre a porta e vejo por cima do ombro dele nada além do que um enorme buquê de
rosas vermelhas e um par de calças cinza de linho. O buquê é afastado para o lado e os lindos olhos
azuis-cobalto são revelados.

— Bom dia! — Ele me olha de longe.

— Bo-bom dia! — Pierre gagueja, talvez nervoso com a irritante beleza de meu ex-
namorado.

Como pode ser tão gato? O tempo só melhora sua aparência.

— Eu posso falar com a senhorita Camille?

— Claro. — Pierre me olha e complementa: — Vou deixar vocês a sós. Pode entrar!

Pierre dá espaço para que Gabriel entre e se recolhe logo em seguida sob meus olhares
condenadores.

Resignada, decido falar:

— Que bom que veio. Estava pensando em falar com você.

— Para você. — Ele me entrega o buquê de rosas vermelhas e meu nariz enruga com o
perfume das pétalas, e a sensação de enjoo me acomete novamente, como nas últimas vinte e quatro
horas. Pego rapidamente o buquê de suas mãos e o abandono em cima da mesa. — Estou curioso para
saber que pauta quer tratar comigo.

Viro-me novamente para ele e olho para o lado.

— Quero que recolha sua gente aí embaixo. — Admoesto a náusea e inspiro fundo o ar puro,
fora do alcance do perfume doce das rosas.

Ele retesa os lábios, enfiando as mãos nos bolsos.


— Você reparou — ele observa.

— Não acho justo que pague uma fortuna em seguranças para mim.

— Você quase morreu por minha causa, e ainda quer discutir se é justo ou não eu ceder
seguranças? Por favor, dá pra parar de fazer drama?

— Drama?

— Não vou recolher ninguém. A rua é pública, então trate de se acostumar com eles em sua
vizinhança. — Ele é irredutível ao dizer.

— O que veio fazer aqui? — Não tenho paciência e me estresso logo.

— Saber como você está. E, pelo que vejo, está muito bem. Até recuperou a arrogância que
trouxe da Europa.

— Eu, arrogante? Olha só o seu tom de voz. A rua é pública, então trate de se acostumar...
— imito.

Ele pressiona um dedo contra a têmpora, franzindo a testa.

— Desculpa. Desculpa, ok? — Continuo o olhando, enquanto ele realmente se mostra


arrependido. Ele se aproxima um pouco, pontuando: — O que é isso em seus olhos? Você está
chorando?

Imediatamente levo as mãos aos olhos e limpo uma poça d'água que se formou com
facilidade.

— Não sei, parece que sim. Isso tem acontecido com facilidade — respondo, sem entender.
— É só isso o que veio fazer aqui?

— Aparentemente, sim. — Ele dá de ombros.

— E Maria Júlia? Alguma notícia dela?

Ele enrijece sua expressão facial.

— Até agora nada. Aliás, tenho que agradecer a você. Estêvão me contou com mais calma
como tudo foi descoberto. Você foi muito esperta.

— Obrigada. Já não posso dizer o mesmo sobre você.

Ele semicerra os olhos.


— Não seja má.

— Apenas digo a verdade. — Elevo o nariz. Os olhos de Gabriel deslizam para meu
pescoço, trilhando um caminho para os meus seios cobertos pela camisola branca, quase
transparente, e queimando lentamente minha pele desnuda com os olhos. Quase por instinto, ele
umedece os lábios.

Enrubesço levemente, apertando a faixa do robe que havia afrouxado.

— Posso passar aqui depois do trabalho? — Sua voz rouca é tentadora, principalmente
quando meus hormônios parecem mais agitados do que o normal. No entanto, retiro forças da minha
consciência para negar:

— Não seria uma boa ideia. Não venha.

— Tudo bem. Eu virei quando você me quiser tanto quanto eu quero você.

Fico sem palavras com a audácia dele em vir aqui e me falar isso em plena oito horas da
manhã, quando ainda estou vestindo uma camisola.

Ele inspira fundo, dizendo:

— Até qualquer dia.

— Qualquer dia? — Arqueio uma sobrancelha.

Ele passa aquela língua entre os lábios, esboçando um meio-sorriso confiante.

— É só modo de dizer.

— Ok. — Olho para a porta atrás dele. — Tchau.

Ele parece finalmente ir embora, mas antes lança uma olhadela para minha boca.

Gabriel sai pela porta da frente e Pierre volta para a sala logo em seguida, como se estivesse
atento à conversa na cozinha.

— Que buquê de flores lindo! — ele exclama, pegando o buquê nas mãos para cheirar. —
Tão cheio, tão auspicioso!

— Dá para parar de puxar o saco dele?

— De quem, Milady? Estou falando das flores. Aliás, já sentiu esse cheiro maravilhoso
adocicado? — Ele traz o buquê para minhas narinas, sem tempo de eu raciocinar direito.
O aroma enjoativo sobe pelas minhas vias respiratórias e acerta meu estômago. De repente,
meu sulco gástrico bate em minha goela, e dessa vez não consigo controlar. Corro para o vaso mais
próximo e despejo a jato o líquido amarelado.

Quando paro de vomitar, Pierre segura meus cabelos no topo da cabeça.

— Tudo bem?

— Sim, sim, Pi. — Maneio a cabeça em positivo.

— Parece que não anda bem do estômago. Já é terceira vez de ontem para hoje que você
vomita. — Ele me passa seu lenço de bolso, e eu limpo os cantos da boca.

Pierre se afasta, comentando:

— Se Milady tivesse tido noites de amor nestas últimas semanas, até desconfiaria que
estivesse grávida.

Meus olhos se petrificam quando ele cita essa possibilidade.

— O que foi, Milady? Está passando mal de novo?

— Não, não — respondo, com um gosto amargo na boca.

— Parece assustada... — Ele me estuda com o olhar e depois abre a boca. Em seguida, fecha.
Depois torna a dizer: — Não vá me dizer que você... Com quem? — ele pergunta, desesperado.

Droga! Naquele dia no terraço... Não usamos camisinha.

— Me responda? Não vá me dizer que ficou grávida do... do... Estêvão?!

— Estêvão? Não. Por que Estêvão? De onde tirou isso?

Ele suspira aliviado, me explicando:

— É que a senhora disse que ficou mais próxima dele naquele dia que a senhorita
desapareceu...

— Claro que não. Não rolou nada com Estêvão.

— Graças a Deus! Não estou preparado para ser titio.

— Mas Pierre...

— Mas o quê? — Ele arqueia uma sobrancelha, novamente sobressaltado.

— Eu transei com Gabriel sem camisinha.


Ele abre a boca totalmente, tomando todo o ar da sala e abanando as mãos desesperadamente.

— Oh, Mademoiselle! Oh, Mademoiselle! O que você foi fazer, minha menina?

— Eu preciso fazer o teste — murmuro, anestesiada. — E se eu estiver mesmo... — engulo


em seco — grávida?

Será meu fim.


52 | AUDIÊNCIA

Camille

Curitiba
Algumas semanas depois

Depois de uma breve visita rotineira à clínica de um hospital de referência no centro da


cidade, Pierre dirige ao meu lado, com destino ao tribunal de justiça do Paraná.

Após a prisão de Otávio, muitas coisas vêm abalando a política paranaense, especialmente a
imprensa curitibana, que está em polvorosa com os vários pedidos de justiça do povo. Não só pelo
enorme esquema de corrupção, mas também pela morte dos garotos, que morreram de forma torpe e
cruel anos atrás.

O julgamento de Otávio é hoje, a pedidos de uma população revoltada com os anos de


impunidade.

Enterro levemente meu dedo no botão da porta do carona, descendo o vidro e sorvendo o ar
puro que vem de fora. O clima está cálido, de maneira gostosa. As folhas das árvores estão secas e
viçosas, como no auge do verão. Resvalo minha mão para a barriga, acariciando o pequeno ser que
não tem ainda o tamanho de uma maçã, mas que já considero como um mundo inteiro.

Ao mesmo tempo, é inevitável não pensar em Gabriel quando sinto os dedos sobre minha
barriga. E é impossível não ficar pensativa em relação ao futuro.

Droga! Por mais que eu nem por um segundo tenha rejeitado essa criança em meu ventre, não
era para ter acontecido.

Pierre para no sinal e repousa a mão sobre minha barriga, que ainda não possui sequer um
sinal de que haja algo se desenvolvendo ali.

— Você tem que contar para ele. — Pierre torna a insistir.

Nego com um menear de cabeça.

— Mademoiselle, você não pode esconder esse bebê para sempre.


Pierre tem razão.

— Não pretendo esconder para sempre. Mas não estou preparada para contar isso agora... —
Fisgo o lábio inferior com força. — Sabe, eu praticamente acabei de chegar no Brasil, Pi. Eu tinha
tantos planos... Mas, de repente... estou grávida. Dele, de novo ele. Eu tenho que pensar bem sobre
meus passos daqui em diante... Minha cabeça está a mil... — Pierre esfrega a mão em meu ombro
num gesto terno, como se significasse: “vai ficar tudo bem! As coisas vão se resolver”.

O sinal abre e meu amigo dá partida.

— De todo modo, acho que deveria contar a Gabriel logo — ele conversa enquanto cobre o
volante com as mãos. — Ele merece saber disso tanto quanto você. A cada dia que passa ficará ainda
mais difícil de contar. Se for para contar, que seja logo. Aliás, é provável que ele apareça hoje no
tribunal também. — Ele fita o retrovisor do para-brisas, olhando rapidamente para os homens que
nos seguem para onde quer que vamos. — Se é que os homens dele já não estão desconfiados de suas
frequentes idas ao hospital — Pierre diz por fim, entrando no viaduto.

Retorno aos meus devaneios até chegarmos ao estacionamento em frente ao tribunal. Nos
últimos dias, tenho evitado contato com Gabriel como o diabo foge da cruz. Apesar dele ter mil
desculpas para visitar meu apartamento ou me fazer ir ao escritório da Átila, me certifiquei de fechar
todos os meios que me levem a ele.

O resultado foram incontáveis mensagens enviadas para minha caixa do e-mail empresarial,
contando sobre seu interesse em renovar a parceria com a empresa de sua mãe. Inspirei fundo e
redirecionei todas as mensagens para a lixeira.

Suas tentativas eram tantas, que cheguei a sonhar que ele estava me esperando sem roupas
debaixo da cama, me levando a crer que eu precisaria de uma terapia se ele continuasse insistindo.

A verdade é que Gabriel é homem. E a grande maioria dos homens são movidos pelo sexo. E
Gabriel não é uma exceção. Ele gostou do que provou no terraço, e é capaz que esteja atrás de um
repeteco. Mal sabe ele o problema que me arranjou.

Enfim, apesar de ter fugido todos esses dias dele, como Pierre disse: hoje é provável que não
escape disso. No entanto, valerá a pena. Pierre havia falado com meio mundo para que
conseguíssemos participar da audiência como plateia, e eu não perderei a oportunidade de ver esse
caso solucionado.

Entramos no prédio do Palácio da Justiça de Curitiba pela porta lateral, nos direcionando a
uma ala mais distante da porta de entrada.
— Stella Mackzeine? — Uma voz masculina ao lado me chama a atenção. O homem grisalho
de quarenta e poucos anos me olha com surpresa nos olhos. — O que faz aqui?

Meu cérebro demora a recobrar o rosto familiar, e tão logo me lembro do casal de brasileiros
simpático que conheci no Havaí, na época que eu namorava Joseph.

— Lúcio? — Abro um sorriso, desacreditada, abrindo os braços. — O que faz aqui? E de


terno! — Talvez seja a razão pela demora em lembrar seu rosto, pois quando o conheci no Havaí, ele
e sua esposa só usavam roupas de praias, em tons vivos e floridos. No entanto, também me vem a
vaga lembrança dele ter comentado que advogava no Brasil.

— Eu quem pergunto: o que você faz aqui, Stella? Vivian havia comentado que tinha visto
você na TV, aqui no Brasil, mas pensávamos que você já tivesse voltado para a Europa.

— É que estou morando aqui. Aliás, como Vivian está?

— Grávida.

— Sério? — indago, surpresa.

— Sim. De oito meses — Lúcio responde todo orgulhoso.

— Ah, que maravilha! — Olho para o lado e apresento Pierre a Lúcio. Ele me pergunta se
tenho notícias de Joseph, mas nego gentilmente, explicando que continuamos amigos, mas não nos
falamos com frequência.

Lúcio me convida para passar o dia em sua casa de campo, que fica aos arredores de
Curitiba, alegando que Vivian adorará me reencontrar. Aceito prontamente e ele se despede,
avisando que Vivian entrará em contato comigo logo, logo, quando souber que eu não estou apenas de
passagem.

Despeço-me de Lúcio e prossigo com Pierre até a sala de audiência. Um pouco mais
animada.

Corro com os olhos pelas cadeiras vagas e percebo que somos os primeiros a chegar. A
audiência não começou, tampouco o réu, a promotoria, o juiz e o júri chegaram.

Pierre e eu sentamos na última fileira de cadeiras da plateia, quase ao lado da porta pela qual
entramos. Aos poucos, as pessoas vão chegando e as cadeiras à frente começam a serem ocupadas.

Observo o pai de Gabriel chegar acompanhado de Gael, sem a esposa, Tereza Átila, e se
senta na primeira fileira, perto da mureta que separa a plateia das bancadas da tribuna.
Não posso ver direito seus rostos, mas seus ombros cansados dizem muita coisa. Afinal, ele
já deve ter estado em um julgamento parecido no passado: com o filho mais velho. A diferença é que
quem está atrás da bancada agora é o seu irmão, e diferente do que aconteceu com Gabriel, há provas
suficientes para condenar Otávio.

— Milady... — Pierre me cutuca, cochichando: — A senhorita acha que Hortência virá?

Penso na resposta por um instante e exponho minha opinião baixinho:

— Por vontade própria, acho pouco provável. Mas...

— Mas o quê? — Pierre me incentiva a continuar o que eu dizia.

— Há uma pessoa a qual estou curiosa se virá.

— Quem?

Por coincidência, o homem alto de olhos expressivos e cabelos castanho-escuros adentra a


sala. Faz muito tempo que eu não vejo Orlando pessoalmente, ele parece mais pálido e
aparentemente mais amargo, se isso é possível. Ele mete as mãos nos bolsos, sorvendo uma boa
quantidade de ar, fitando a bancada do réu. Nesse momento, sinto pena dele. Deve ter sido uma barra
crescer com um pai como Otávio. Ele fica imóvel por alguns segundos, mas em seguida desce pela
escada, sentando na fileira do meio, apoiando o cotovelo na cadeira e segurando a cabeça com a
mão.

Os minutos vão passando e a sala vai lotando seus assentos. Algumas pessoas de togas
começam a ocuparem seus lugares na tribuna, entre eles o juiz, um senhor calvo, cuja as lentes dos
óculos são demasiadamente grossas.

Finalmente a audiência se inicia.

Otávio adentra a tribuna acompanhado de policiais e se senta atrás da bancada designada a


ele, ao lado de seu advogado. Olho para trás, para a porta, e estranho Gabriel não ter chegado. Teria
ele se atrasado? Por que, de repente, me sinto nervosa?

Oh, Deus! Ultimamente também tenho tido muitos pensamentos pessimistas.

Continuo assistindo a leitura dos autos do processo, chegando finalmente à acareação.

Três testemunhas dão seus depoimentos, entre elas, Hortência. O que me surpreende, afinal,
não imaginava que estava no Brasil. No entanto, só não contei com o fato dela ser uma das principais
prováveis testemunhas dos crimes de Otávio.
Como eu imaginava, Hortência sabia quase nada sobre a vida do marido. Segundo ela, os
dois não viviam como marido e mulher há muitos anos, e seu relacionamento com Otávio tinha
puramente o objetivo de manter as aparências. Apesar de saber da agressividade, afirmou que nunca
desconfiou que o marido pudesse ter encomendado a morte de adolescentes por um motivo torpe.

Quando Hortência é liberada pelo promotor, o seguinte nome é convocado para depor:
Gabriel Átila Cordeiro.

Quando Gabriel aparece saindo da porta lateral da tribuna, um suspiro aliviado escapa suave
entre meus lábios. Ele é recebido pelo promotor, que o indaga logo em seguida.

As perguntas feitas a Gabriel não são tão invasivas quanto as direcionadas à Hortência. O
depoimento de Gabriel é o mais rápido de todos, e ele termina com o impressionante poder de me
encontrar em meio a tantas pessoas. Ele me encara de longe e um arrepio irrompe em minha nuca, e
ele deixa o palco.

Em seguida, o sicário — o assassino de aluguel — é inquirido pela promotoria, que arranca


com todos os detalhes a noite no acampamento e o pagamento pelo crime, feito por Otávio. Todo o
depoimento é horripilante e me deixa tonta. Pierre pergunta se quero ir embora, mas nego. Quero
saber o desfecho de tudo isso.

A audiência se arrasta por horas, com um intervalo de trinta minutos. E quando o juiz lê a
sentença em mãos, acontece o inevitável. Otávio é condenado a sessenta e oito anos de cadeia em
regime fechado. Alguns curiosos na plateia comemoram, batendo palmas. O juiz bate seu martelo,
pedindo ordem, e Otávio se levanta, sendo levado para fora pelos policiais. Ele parece visivelmente
resignado com sua sentença.

Apesar da sensação de vitória para muitos, uma energia que nunca havia sentido paira pelo
local. Uma energia densa, pesada. Em um rompante, Orlando levanta e sai marchando pelo corredor
ao meu lado. Assisto Gael afagar as costas do pai, em frente à mureta. Talvez os dois ficassem ali
por mais tempo, refletindo sobre o julgamento.

— Vamos, Mademoiselle? — Pierre pergunta ao meu lado.

Viro meu rosto para ele e aquiesço.

Levantamos e caminhamos para os corredores do tribunal.

— Está pensativa — Pierre observa, estudando meu olhar perdido momentaneamente. —


Quer compartilhar algo?
— Não é nada, Pierre. — Desperto. — Apenas estou pensando em como Orlando deve estar
se sentindo.

— O filho de Hortência? Aquele grosso que víamos por chamada de vídeo?

— Sim — afirmo.

— Ele estava lá? Não havia notado.

Pierre não conhece pessoalmente algumas pessoas que trabalhavam para Hortência. Orlando
é uma dessas pessoas. É compreensível que não tenha o reconhecido.

De repente, passando entre um corredor e outro, avisto os dois homens, um de frente para o
outro, perto de uma enorme janela que dá acesso à rua. Gabriel e Orlando se encaram, e apesar de eu
estar um pouco distante para escutar qualquer coisa, parece que estão tendo uma conversa ali.

O olhar amargurado de Orlando relaxa um pouco, mas os ombros continuam em uma postura
imponente, beirando a soberba. De repente, presencio o inimaginável. Os ombros de Orlando
murcham e seus joelhos se dobram perante o primo, assim como sua cabeça. Orlando agora encara o
chão duro, e mesmo que seu olhar esteja rígido, consigo perceber uma lágrima ligeira escapar pela
lateral do seu olho esquerdo.

Gabriel permanece estático, observando o primo se curvar. Eles ficam assim por um
momento, enquanto escuto Pierre comentar baixinho:

— O que está acontecendo?

— Não sei, Pi. Não sei. É entre eles — sussurro, assistindo-os se reconciliarem.

Gabriel dá um passo à frente e pousa a mão esquerda sobre o ombro de Orlando, e,


respeitosamente, dá quatro batidinhas de leve, dizendo alguma coisa inaudível. Alguns segundos se
passam e Orlando se levanta, encara Gabriel e assente para o primo com um menear de cabeça, se
despedindo. Em seguida, ele toma o caminho da saída, passando por nós.

— E-e-esse é o filho grosseirão de Hortência? — Pierre gagueja, se abanando. — Que gatão!


Os boatos que ele é gay são verdade mesmo?

Enquanto isso, vejo Gabriel vir em nossa direção também, só que diferente de Orlando, ele
não ignora minha presença. Bem que eu queria. Mas ele pega meu braço, me arrastando para longe.

— Preciso falar com você. — Ele olha para Pierre, avisando: — A sós.

— Claro. — Pierre assente.


— Dá para largar meu braço? — resmungo baixinho, enquanto ele me arrasta para o canto.

Ele me solta quando estamos longe de qualquer olhar, me encurralando contra a parede,
aproximando-se do meu corpo.

— O que é? — Minha voz sai ácida, motivada pela falta de delicadeza com a qual me
arrastou para cá.

— Por que está me evitando? — ele pergunta, baixinho.

— Evitando? Você? Como assim?

Ele semicerra os olhos, impaciente.

— Você sabe que está me evitando, Camille.

— Ok. E se eu estiver? Qual o problema?

Ele passa a língua entre os lábios, pousando as mãos nos quadris e olhando para cima,
suspirando.

— Você está decidida mesmo a me afastar.

— Já estávamos afastados, você não se lembra?

— Aquele dia no terraço... — ele argumenta, olhando em meus olhos.

— Não existiu aquele dia — retruco, estremecendo.

— Nós transamos! — ele exclama baixinho, como se estivesse indignado.

— Foi só sexo — replico. — Você queria o quê? Que me declarasse para você depois...
Depois de você ter decidido me deixar no passado...

— Você não vai me perdoar mesmo, não é?

— Não é questão de perdão. É questão de confiança. Como um vaso quebrado, mesmo que os
retalhos sejam colados de volta, as rachaduras sempre estarão lá, visíveis, para te fazer lembrar do
dia que ele quebrou.

— Eu nunca deixei de pensar em você, Camille. — Ele se aproxima, me compenetrando com


a profundidade dos seus olhos. Ele está tão perto, que correntes elétricas se alastram por todo o meu
corpo. Por mais que eu negue, ele ainda me afeta, e isso me apavora.

— Preciso ir — murmuro.
Ele apoia um braço na parede atrás de mim, ficando ainda mais perto de mim.

— Por que você tem ido ao hospital tantas vezes nos últimos dias? Está doente? — ele
questiona.

Pego-me totalmente desprevenida, não sabendo o que responder.

— Fui... — Engulo em seco. — Fui... tomar soro.

— Tomar soro? Por quê? — Ele franze o cenho, desconfiado.

Ah, meu Deus! Será que ele sabe de alguma coisa?

— É que eu estava meio desidratada e fui ao hospital resolver isso... — Me enrolo. Que
droga! Que desculpa mais fajuta!

Ele crispa os lábios, analisando:

— Por que não se hidratou em casa? Você fez alguma coisa para perder líquido?

— Tomei sol. — Merda! Sou um desastre total em mentiras. Nem uma criança de seis anos
acreditaria nisso.

— Por que estou achando que você está mentindo? — Me encurrala mais uma vez.

— Mentindo? Claro que não. — Sorrio nervosamente.

— Por que está tremendo? — Ele observa minhas mãos, então as escondo imediatamente
dentro dos bolsos da calça.

— Estou com fome. — Sorrio mais uma vez. O que é verdade. Minha barriga roncou pelo
menos umas trinta vezes durante a audiência.

— E esse sorriso? — Ele cruza os braços contra o peitoral, me inquirindo.

— Não posso sorrir mais?

— É que você não tem mostrado os dentes para mim ultimamente. Estranho, não? —
Desconfiado, ele arqueia uma sobrancelha, o que o deixa incrivelmente sexy. Droga de hormônios!
Por que de repente eu quero transar?

Começo a sorrir novamente, totalmente ferrada.

— Ah, desisto! — Me rendo.

— Ótimo. Agora me conte a verdade. — Ele desce as mãos para o bolso, me fitando
seriamente.

— Eu... eu tenho uma doença constrangedora e não posso falar. E você, nesse exato momento,
está me constrangendo com essas perguntas invasivas. Aliás, eu vou indo, pois não devo explicações
para ninguém.

Dou um passo para o lado, para sair do campo de visão dele, mas Gabriel pega meu braço
novamente, me parando ao seu lado.

— Nada me tira da cabeça que você está mentindo.

— Não estou.

— Então diga... que doença é essa? — Parece que eu aticei ainda mais a curiosidade dele, me
deixando completamente perdida. — Se me disser que doença é essa, prometo não importuná-la mais
— ele me desafia.

Inspiro fundo, pensando no que dizer.

Aperto os olhos por um momento.

Em seguida, o encaro e respondo pausadamente:

— Eu. Estou. Com. Hemorroidas.

Um silêncio sepulcral se faz entre nós, e Gabriel demora para processar a informação.

Mordo o lábio inferior, segurando a droga do riso indesejado.

Ele larga o meu braço, abrindo a mão por completo, soltando o ar com força pelas narinas.
Ele fecha os olhos e depois os abre.

Ele levanta as palmas das mãos no ar, recuando um passo.

— Ok. Tudo bem. Ok.

Ele caminha para trás e depois vira o calcanhar, seguindo o caminho contrário, me deixando
sozinha. E eu fico ali, pensando se ele acreditou em minha mentira ou só desistiu de tentar me
arrancar a verdade.
53 | DENTRO DE MIM

Camille

Meus dedos pousam em cima do teclado do notebook mais uma vez e não consigo progredir
mais do que duas linhas do pedido. Ainda que eu esteja de escritório novo em meu apartamento, nada
sai.

Hoje eu tinha muito o que fazer: papéis para assinar, pedidos de tecidos para fazer e
relatórios para receber. Mas parece que minha cabeça não acompanha minha enorme de lista de
tarefas. Eu só consigo pensar em coisas como parto, roupas de bebê e comidas, dos mais variados
tipos. Parece que eu regredi anos atrás e uma enxurrada de emoções se move dentro de mim, me
fazendo chorar sem motivo e comer descontroladamente.

Eu me sinto frágil, dramática, infantil, chorona, gulosa, tarada; tudo de uma maneira
exponencialmente maior. Além dos enjoos, que voltaram com tudo e me deixam ainda mais fraca e
faminta.

— Olha só o comprimido. — Pierre chega ao escritório com um copo d'água em cima da


bandeja.

— O que é isso? — pergunto quando ele me entrega o comprimido marrom. — Outra


vitamina?

— Esse aí é o ferro. Para o bebê nascer forte e corado. — Ele sorri. — Anotei tudinho com o
doutor.

Enfio o comprimido na boca e pego o copo com água.

— Com esse tanto de vitamina que estou tomando, acho que está mais fácil eu dar luz ao
Clark Kent.

— Clark Kent?

— O Superman — explico melhor.

— Ah, sim. É que não sou muito adepto a esses filmes de super-heróis. Mas é possível sim
que você dê luz a um pequeno Clark Kent, se puxar para o físico do pai — Pierre analisa, me fazendo
lembrar dele.
Pierre sempre faz questão disso, como um lembrete claro para mim de que ainda existe algo
pendente.

— Pi, que tal você me deixar aqui sozinha e ligar para os fornecedores?

Ele recolhe meu copo.

— Tudo bem! — Ele ergue o queixo, saindo do escritório e dizendo: — Eu vou ligar para o
Gustavo Ávila, cujo o sobrenome parece com Átila, e mais tarde eu volto.

Ele bate a porta ao meu lado, e eu respiro fundo.

Deus! Pierre não vai me deixar em paz até eu contar. E, de certo modo, eu sei que ele não está
errado. Eu tenho que contar. Mas não hoje, não agora. Eu preciso trabalhar para minha vida não virar
um completo fiasco de vez.

Inspiro o ar profundamente, afastando esses pensamentos e sentimentos conflituosos dentro de


mim, e tento novamente me concentrar na tela em minha frente, sem deixar que meus hormônios em
polvorosa me atrapalhem outra vez.

Depois de passar a tarde inteira trabalhando atrás do notebook, me espreguiço, olhando para
o pôr do sol através da pequena janela do escritório. Solto um gemido de satisfação e fico um pouco
mais orgulhosa de mim por ter conseguido colocar as coisas nos eixos.

Meu estômago resmunga pela décima vez e decido retornar à cozinha. No entanto, um bipe em
minha caixa de entrada me impede. De repente, fico curiosa com o nome do remetente: Gabriel Átila.

Ele voltou a me enviar e-mails novamente?

Confesso que agora ele me pegou de surpresa. Não esperava mais seus e-mails depois
daquela conversa.

Sento-me novamente na cadeira atrás da mesa e abro sua mensagem, um texto mediano, que
diz:
De: Gabriel Átila

Para: Stella Mackenzie

De antemão: não se preocupe, esse e-mail é o último que sua caixa de entrada irá receber.

Ultimamente tenho me arrependido de tantas coisas, que não estou no direito de insistir em
qualquer vontade minha que seja. Mesmo que minha vontade seja você. Então peço perdão se a
importunei de qualquer forma nos últimos dias, meu objetivo era tentar me redimir dos erros que
cometi no passado.

Mas, pelo visto, entendo que nada do que farei vai fazê-la voltar atrás quanto sua opinião
sobre nós. Espero que eu tenha entendido que nem sempre temos segundas chances, mas quero que
saiba que minha intenção nunca foi afastá-la, muito pelo contrário, minha intenção sempre foi
preservar sua vida. No mesmo plano que eu. Eu queria que você vivesse. Em todos os sentidos
literais e figurados possíveis. Eu estava com tanto receio que atingissem meu ponto fraco e
tirassem você de mim de forma brutal, que decidi lutar contra as minhas próprias vontades.

Confesso que errei em outros sentidos também, sendo assim, são compreensíveis suas
razões. No entanto, por um instante, eu pensei que você pudesse passar por cima disso e viver no
presente comigo. Mas eu estava errado. Eu mudei, você mudou, eu ainda continuo querendo você,
mas parece que algo no tempo congelou. Mas... Porra... Eu te amo. Como eu nunca amei ninguém.
Eu continuo te amando mesmo que sua língua tenha crescido e suas respostas tenham ficado
atrevidas, mesmo que seus ombros estejam mais abertos e seu olhar mais firme, mesmo que não
saiba contar uma mentira sequer sem tremer os lábios. Amo até essa sua total incapacidade de
mentir. Talvez eu venha a te amar ainda mais, pois, no fundo, ainda é você.

Sempre foi você.

Se um dia eu voltar a amar de novo, ainda será você. Eu sei que é difícil de acreditar, mas
eu te amo tanto, Camille, que nenhuma palavra escrita por mim expressará o que sinto dentro do
peito.

Me perdoe por me abrir dessa forma, é minha última chance, afinal.

Respeitando sua vontade, eu me afastarei.

Gabriel.

P.S.: Meus seguranças ainda permanecerão em sua porta, não os interprete mal. Assim que
pegarmos Maria Júlia, os liberarei. Espero que entenda.
Abaixo a tela do notebook com as lágrimas esquentando meu rosto. Limpo rapidamente
minhas bochechas, antes que eu desate em um choro incessável.

Eu detesto me sentir assim: perdida, sensível, com as emoções à flor da pele, e o pior, com
uma estranha sensação de ser exatamente a Camille de três anos atrás. Não queria ser aquela garota
frágil e boba, que assentia para tudo e todos. Não mais. Eu não queria voltar a me apaixonar pela
mesma pessoa e ter o perigo de ver os mesmos erros se repetirem. Não queria. Eu estava certa disso,
de não voltar atrás quanto aos meus sentimentos. Mas agora, com uma criança crescendo dentro de
mim, minhas certezas parecem não valerem nada perto dos lastros de emoções que dominam meu
corpo e minha mente. Apesar do tempo, Gabriel continua sendo o homem pelo qual me apaixonei no
passado. Apesar de ter ganhado um rosto ainda mais maduro, ele é o mesmo que desperta desejos
carnais em mim e me atravessa por inteira apenas com um olhar. Ele ainda tem o mesmo calor nos
braços em que eu me completo, o mesmo cheiro almiscarado viciante e a mesma boca inebriante.
Céus! Eu não acredito que irei voltar atrás depois de tantas promessas que fiz a mim mesma. Valerá a
pena mesmo correr o risco?

Levanto-me, enxugando as lágrimas, e me direciono à cozinha. Lá preparo um salmão ao


molho de maracujá, que aprendi com Joseph, e afasto os pensamentos difíceis que insistem em
martelar minha mente. Pierre adentra a cozinha e me ajuda com o preparo do arroz, sorvendo o ar da
cozinha de maneira expressiva e elogiando o aroma que exala do salmão.

O celular em cima da bancada vibra quando termino de montar os pratos. Rapidamente, lavo
minhas mãos, enxugo e dou uma olhada no aparelho. É uma mensagem de Vivian. Parece que Lúcio
deu mesmo o recado à esposa.

Vivian: Olá, minha querida. Que saudade! Fiquei sabendo que se estabeleceu mesmo aqui
em Curitiba, Lúcio me contou ontem quando chegou em casa, dizendo que encontrou você nos
corredores do tribunal. Que dia você vem almoçar aqui em casa?

— Quem é? — Pierre pergunta, curioso.

— É a Vivian. A esposa daquele amigo que encontrei no tribunal. Ela está me convidando
para almoçar na casa deles.

Afasto um pouco a tristeza e respondo Vivian com alegria:


“Oi, Vivian. Quanta saudade, minha amiga. Quando você quiser.”

Vivian: Então venha amanhã, querida. Prepararei um almoço especial para você.

Envio outra mensagem, confirmando nosso encontro, e guardo a localização de sua casa.
Pierre leva os pratos para a mesa da sala de jantar e chama para que eu me junte a ele. Sento na sua
frente, e tão logo desfrutamos do salmão, que derrete na boca. Santo Deus! Comer, sem dúvidas, é
uma das melhores coisas do mundo a se fazer. Te dar prazer, te leva ao céu, e ainda de quebra, não te
decepciona.

O celular vibra outra vez ao lado do meu prato.

— Depois você olha, Milady. Termine seu prato. — Pierre é cuidadoso.

— Só mais essa, Pi.

Manuseio meu celular e não hesito em abrir a mensagem de um número desconhecido. A


mensagem, na verdade, é uma foto. Devido à pouca luminosidade do lugar, demoro a processar do
que se trata a imagem. No centro, há uma janela que dá visão de uma praça aqui perto, a única nas
redondezas do bairro. O lugar é sempre muito frequentado por jovens, que ficam nos bares dos
sobrados ao redor da praça. E, pelo ângulo da imagem, a pessoa que tirou a fotografia provavelmente
estava em cima de um desses sobrados. Amplio a imagem e meu cérebro assimila a arma de grande
porte posicionada na soleira da janela.

Outra mensagem dispara e as palavras são claras.

“Gabriel morrerá às 20 horas. Venha assistir.”

Meu coração congela.

— O que houve, Mademoiselle? Por que está com essa cara?

Confiro o horário em cima na tela, que marca 19h45.

— Droga! — Me sobressalto, levantando com tudo para fora da mesa.

— O que foi? — Pierre pergunta com os olhos arregalados, espantado.

— Gabriel... Ele... Maria Júlia... — Não consigo explicar.

— Calma. Sente-se e me conte tudo com calma. — Pierre continua sentado.

— Não há tempo, Pi — sussurro, dando alguns passos para trás, e depois disparo para a
porta ao lado.
Corro para o elevador do andar e quando as portas se abrem, rezo para que desça rápido. As
portas se abrem novamente, e eu voo para fora do elevador, como se minha vida dependesse disso.
Saio na rua, procurando por alguns de seus seguranças. Avisto um na calçada do outro lado do
prédio, ao lado de uma Ranger Rover preta, cuja a placa reconheço.

Atravesso a rua em frente, quase sendo atropelada por um ciclista, no entanto, consigo chegar
à calçada.

— Gabriel está correndo perigo. — Ofego, com pouco ar nos pulmões.

— Senhorita Camille? — O homem de camisa preta franze o cenho, confuso.

Com minhas mãos tremendo, entrego meu celular para ele, mostrando a mensagem.

— É Maria Júlia. Ela disse que Gabriel vai morrer às 20 horas.

Ele analisa a imagem e me entrega de volta o celular.

— Fique tranquila. Gabriel está em casa neste exato momento — ele afirma.

Embora eu não duvide de suas palavras, temo que ele esteja agindo de maneira inocente.

— Liga para ele — exijo, vendo que se passaram cinco minutos.

— Fique tranquila, senhorita. Eu tenho certeza... — Ele só pode estar de brincadeira comigo.

— Qual o número dele? — peço urgentemente.

— Senhorita Camille, eu já disse, fique calma.

— NÃO TENHO TEMPO PARA FICAR CALMA! — grito, desesperada. — Você tem que
ligar para ele!

— Tudo bem. Eu vou ligar. — O homem disca o número e o coloca no viva-voz.

Seu telefone indica que está fora de área ou desligado.

— Calma, eu garanto que está tudo bem — o homem ainda insiste, me deixando ainda mais
nervosa.

Péssima hora para ter paciência!

Eu sinto que há algo de errado. No fundo, eu sinto.

— Quer saber? Dane-se! — sussurro, correndo pela calçada ao lado, não tendo a mínima
ideia de como irei chegar àquela praça a tempo. Mas eu chegarei.
Percebo que os homens de Gabriel me seguem, enquanto corro pela caçada. Vasculho com os
olhos cada canto da rua em busca de um táxi. E, por sorte, avisto um virar a esquina e me lanço na
rua para pará-lo.

O motorista freia bruscamente e me fita com aquele tipo de olhar, como se eu fosse alguma
maluca. Entro pela porta de trás do Sedan branco, ao passo que os homens de Gabriel tentam me
convencer de algo que não entendo muito bem. Nada do que digam me fará ignorar minha intuição.

Quando fecho a porta ao lado, peço para que me leve à próxima praça do quinto quarteirão. O
motorista acelera e sinto um frio se alastrar por todo meu corpo. Eu começo a rezar, pedindo
proteção a Deus, com as pernas tremendo mais do que vara verde.

Ansiosa, verifico, de dois em dois segundos, os minutos que se passam ainda mais rápidos. E
quando falta mais um quarteirão para alcançarmos a praça do bairro, lembro que não tenho dinheiro
para acertar com o taxista.

— Moço, ao final, quanto o senhor acha que essa corrida custará para mim?

— Não sairá por mais do que doze reais. — Vejo seus olhos se alternarem para o taxímetro.

— Eu pago duzentos.

— Como? — Ele engasga com a saliva.

— É que não tenho dinheiro aqui, agora. Eu o recompensarei se me esperar e me levar de


volta para casa.

— Como saberei que está falando a verdade, garota? — Ele me olha pelo retrovisor,
visivelmente escabreado e de mau humor. — Como saberei que não desaparecerá nessa praça?

Enfio as mãos nos bolsos e não encontro nada além do celular. Hesito, mas respondo:

— Posso deixar meu celular como garantia.

Sem olhar para trás ele confisca meu celular com a mão livre, guardando no porta-luvas.

— Vou cobrar meus duzentos reais — ele diz, estacionando o carro ao lado da praça
congestionada de jovens.

— Certo! — Abro a porta. Antes de sair, pergunto rapidamente: — Que horas são?

Ele demora exatos três segundos para responder.

— 19h58.
— Merda! — Faltam dois minutos. Bato a porta com força e corro entre a pequena multidão
juvenil.

Procuro-o por todos os cantos, andando entre aquelas pessoas, com o coração batucando mais
forte em meu peito. Giro o meu corpo em um ângulo de 360°, a fim de que meus olhos tenham uma
visão mais ampla do espaço. Não o encontro em lugar algum, até olhar para o casal que se encontra
no centro da praça. A menina e o menino de cabelos loiros saem de sua frente, me dando total visão
de seu rosto primoroso. Mesmo que olhe para os lados, seus ombros permanecem magnificamente
alinhados em uma camisa social. Pelos trajes, suponho que ele esteja vindo do trabalho. Ele olha
para os lados, procurando por alguém que eu não sei exatamente quem é, mas posso imaginar.

Um grito estrangulado sai rasgando minha glote:

— GABRIEL!

Mas ele não escuta. Há muitos ruídos e um espaço enorme entre nós.

Mas que droga! Desato a correr, pisando no pé de uma moça, que me xinga instantaneamente,
porém não me permito olhar para trás para pedir perdão, não há mais tempo. Quando chego perto
suficiente, grito pelo seu nome repetidas vezes. No entanto, quando ele parece escutar um de meus
gritos e se vira para me procurar, algo acerta o seu peito. Gabriel solavanca para trás, recuando um
passo.

Neste exato instante, minhas pernas paralisam, enquanto meus cabelos pulam para frente,
pelas laterais do meu rosto. Como se um buraco se abrisse em meu peito, nada parece ter mais som
ao redor, nem mesmo meu coração. O silêncio toma conta de meus sentidos ao vê-lo cair de joelhos
no chão.

As pessoas ao redor correm desesperadas, esvaziando o centro da praça, onde ele se deita no
solo de concreto, com a mão no peito. Mesmo que meu cérebro esteja em transe, minhas pernas
trôpegas me levam em direção a ele.

Ajoelho quando finalmente o alcanço, sussurrando:

— Tudo bem! Vai ficar tudo bem. — Tento o enxergar por trás dos meus olhos vidrados de
lágrimas.

— Camille? O que está fazendo aqui? — Escuto ele murmurar, em um tom de preocupação.

— ALGUÉM CHAMA A AMBULÂNCIA! — grito para os lados, em desespero, na


esperança de alguém me ouvir. Enfio as mãos no bolso, procurando meu celular, e lembro que não
estou com ele. — Droga! — praguejo baixinho, sentindo as lágrimas descerem descontroladamente.
— CHAMEM A AMBULÂNCIA! — Ninguém parece escutar.

Sua mão pousa em minha coxa, alisando lentamente minha pele.

— Vai ficar tudo bem — repito para ele, que me fita ainda de olhos abertos.

— Eu sei que vai — ele responde, otimista, pressionando a mão no peito.

— Você não pode me deixar. — Soluço, não conseguindo controlar as lágrimas que pulam
dos meus olhos.

— Não vou deixar — ele responde.

— Não. Você não entendeu. — Sacudo a cabeça. — Você não pode mesmo me deixar... Eu...
— Soluço outra vez. — Eu estou grávida, Gabriel. — Finalmente as palavras saem da minha boca, e
juro por tudo o que é mais sagrado que meu desejo nunca foi contar dessa forma.

— Grávida? — ele profere em um sopro de voz.

— Eu iria contar para você... — Minha voz falha e a única coisa que consigo fazer é chorar.
— Não me deixa, por favor — peço copiosamente entre os soluços do choro. — Não faça esforço.
— Pouso minha mão sobre a dele, protestando: — Eu pressiono para você. — Arranco sua mão do
peito, esperando encontrar uma pequena mina de sangue, no entanto, a surpresa me vem.

Não tem nada além de um furo em sua camisa, que não chegou nem perto de ultrapassar a
barreira que envolve seu tórax.

— Isso é um colete... — murmuro.

De repente, um som sai de algum lugar das roupas de Gabriel. Escuto os brados de homens
em meio às batidas de porta e uma ordem de prisão:

— Mãos para o alto! Você está presa!

Gabriel fecha os olhos e solta um longo suspiro, aliviado.

Pisco algumas vezes, tentando entender o que acontece. Corro com os olhos pelos sobrados
ao redor, procurando-a. E depois volto a fitar Gabriel, que olha para minha barriga. Seu olhar
aliviado deu vez a curiosidade.

Continuo ali sem entender absolutamente nada, com a adrenalina correndo em minhas veias.
Não sei se fico feliz por ele estar vivo ou em alerta por ter falado demais.
54 | GIRASSOL

Gabriel

Por mais que eu tenha ansiado por esse momento há anos, a sensação de vê-la de punhos
algemados me causa mais alívio do que qualquer outro sentimento semelhante ao de alegria.

Maria Júlia é conduzida para dentro do camburão preto, com os olhos inflamados presos aos
meus. Embora eu me esforce, não consigo entender o motivo de tanto ódio. E para tentar suprimir
essa falta de sentido em minha mente, recorro à sua sanidade mental comprometida. Espero que ela
possa um dia ao menos enxergar com clareza a realidade e se cure de sua mente obsessiva. E eu farei
o possível e o impossível para que ela nunca mais chegue perto das pessoas que amo.

Faço-me essa promessa quando a porta ao seu lado se fecha, e respiro fundo.

Meus olhos varrem o local, procurando por Camille em meio aos curiosos, e avisto seus
cabelos castanhos perto do táxi estacionado do outro lado da rua. Precisamos conversar, penso,
convicto, caminhando em sua direção. Nós temos muito que conversar. No entanto, antes que eu a
alcance, ela entra pela porta de trás do veículo, que segue no sentido de seu apartamento.

Suprimo meu impulso de ir atrás, afinal, talvez sua partida antecipada seja um sinal para que
deixemos essa conversa para depois, para quando nossos ânimos estiverem mais calmos, mais
lúcidos para tomarmos as melhores decisões. Mas essa conversa não passará de amanhã.

Pela manhã mesmo, eu estarei em seu apartamento para cobrá-la uma melhor explicação.

Retorno para casa com Estêvão, que participou de toda a emboscada que armamos para
Maria Júlia junto da polícia.

Decido abrir o melhor uísque de minha adega, e degusto do sabor com o meu melhor amigo
no deque do jardim. Estêvão não faz o tipo que fala muito, mas posso enxergar nele a sensação de
que hoje, definitivamente, não é um dia comum. Não estamos felizes nem tristes, mas tudo parece
estranho aos nossos olhos depois de quase treze anos vivendo essa vida. Mas, o mais estranho
mesmo, é a ansiedade que me consome em querer questionar Camille sobre o que me dissera na
praça, antes de perceber que tudo se tratava de uma armação.
Acordo às cinco da manhã. E, exatamente, às sete horas estou em frente ao seu apartamento,
em minhas roupas para um dia comum de trabalho no escritório da Átila. Há uma pilha de relatórios
em cima de minha mesa hoje, no entanto, não deixarei essa conversa para depois.

— A senhorita Stella não está em casa. Ela acabou de sair — o porteiro avisa. — Se você
chegasse cinco minutos mais cedo, você até cruzaria com ela.

— Sabe me dizer se ela saiu com Pierre?

— O magricela baixinho?

— Sim.

— Não. Ela saiu sozinha. Ele deve estar aí em cima. Quer que ligue para lá?

— Não, não precisa. Eu mesmo o faço — respondo, voltando para dentro do carro
estacionado rente à calçada.

Disco o número do funcionário de Camille, que custa a atender.

Quando finalmente ele atende, ouço-o bocejar.

— Alô! Quem é? — Devido à voz embolada, suponho que tenha acordado há pouco tempo.

— Sou eu. Gabriel.

— GABRIEL? — Ele solta um grito esganiçado do outro lado da linha. — Ah, perdão!
Perdão! É que não havia olhado seu nome antes de atender.

— Tudo bem. Eu estou aqui em frente ao prédio do apartamento de Camille, o porteiro me


informou que ela saiu. Você sabe me dizer para onde ela foi? Preciso falar com ela com urgência.

— Saiu? — Ele ofega, parecendo andar pelos cômodos. — Estranho. Ela não me avisou.
Deve ter havido algum engano.

Apoio uma mão no volante enquanto espero Pierre procurá-la pelo apartamento.

— Parece que ela saiu mesmo. Mas não se preocupe, vou ligar para ela... Para falar a
verdade, eu também acho que vocês devem conversar.

— Faça isso, Pierre. E depois me retorne.


— Certo. Tchau, tchau. Até mais.

— Até mais. — Desligo a chamada e fico ali na frente, esperando a ligação de Pierre de
volta.

Enquanto isso, analiso os cantos da rua e lembro que ontem mesmo dei ordens para que
Estêvão tirasse todos os homens dessa rua. Entretanto, me pego pensando se não me precipitei.
Afinal, se Camille estiver mesmo esperando um filho meu, isso fará de mim um homem ainda mais
obcecado por proteção.

O celular toca em minhas mãos, e eu imediatamente atendo ao funcionário dela.

— Ela está com o celular desligado — ele avisa, me deixando intrigado.

Franzo o cenho e pergunto, seriamente:

— Você acha que pode ter acontecido algo?

— Do tipo, algo ruim? Não, não. Eu não acho. Se bem conheço Mademoiselle, ela deve ter
desconfiado que você viria hoje e está fugindo.

— Fugindo?

— Não se preocupe. Vou descobrir onde ela se meteu, e assim que achá-la, retorno
imediatamente para você.

Respiro fundo sem paciência, mas respondo para o rapaz do outro lado da linha:

— Ok. Eu estarei aguardando. Obrigado!

— Disponha! — ele cantarola.

Fugindo? Sinceramente, se ela estiver fazendo isso... Ah, porra! Se ela estiver pensando que
vai me excluir de algo, ela está muito enganada!

Começo o dia assim, com um mau humor dos infernos. Apareço no escritório da Átila
pisando mais fundo no chão e despachando os papéis em cima da mesa sem dó e nem piedade. Só há
duas pessoas capazes de me tirar do sério nessa vida: minha mãe e, agora, Camille, que parece fazer
questão de testar minha paciência.

Durante a manhã, ainda tenho que participar de uma reunião com os engenheiros mecânicos,
enquanto espero ansiosamente pela ligação de Pierre. O tempo passa, e nada. Tento manter a calma e
aguardo mais um tempo. Quando o relógio marca meio-dia, eu mesmo ligo para Pierre, que me
explica que ela acabou de ligar, avisando que está tudo bem. Mas não tinha informado onde está. O
que consegue me irritar ainda mais.

— Não acredito que ela vai me enrolar por mais tempo! — praguejo, dando um tapa na beira
da mesa.

Soltando fogo pelas ventas, compareço a mais uma reunião com os colaboradores pela tarde
e saio em torno das seis e meia, folgando a gravata antes mesmo de voltar para casa.

O sol já começa a se pôr, quando recebo outra ligação inesperada de Pierre.

Só que dessa vez, sua informação corresponde às minhas expectativas.

Percorro pela estrada que leva à região rural de Curitiba, seguindo para o endereço que
Pierre me enviou. A chuva, que ameaçava cair há alguns minutos, despenca no para-brisas de modo
torrencial, dificultando ainda mais as coisas. No entanto, estou muito perto para desistir. E, mesmo
que eu estivesse longe, continuaria até o fim, para vê-la explicar o que deixou escapar ontem.

O GPS indica para que saia da estrada e pegue a próxima rua à direita. Faço o que é instruído
e entro em uma espécie de lamaçal ladeado de cercas de arames farpados. Sigo pela rua, confiante de
que meu SUV está coberto de lama depois dessa aventura, mas ao mesmo tempo tenho cuidado para
não atolar.

A ruela de chão me leva exatamente a um sítio no alto de uma serra, com uma rústica casa de
dois andares e uma árvore centenária ao lado. Estaciono ao lado da picape verde, espionando as
janelas abertas da casa, em busca dela. No entanto, mal consigo enxergar pelo vidro embaçado ao
desligar o motor do carro. Pelo jeito, não tem como eu esperar mais. Vou ter que descer.

Destravo o cinto de segurança, me preparando para levar alguns pingos fortes d'água. Mas a
chuva é o menor dos problemas quando, antes de saltar para a calçada coberta, enfio meu pé em uma
poça generosa d’água. Praguejo.

Sigo em frente e caminho para o terraço da casa, sentindo a água dançar dentro do sapato.

Como a porta está aberta, entro sem ser anunciado na residência simples de detalhes azuis-
turquesas e amuletos espalhados por todos os lados. Uma mulher de cabelos loiros ondulados e com
uma expressiva curvatura localizada na barriga passa em minha frente com um pequeno apinhado de
pratos nas mãos, me flagrando ali, parado.

— Quem é você? — ela pergunta, confusa e assustada, com toda razão.

Pigarreio, me sentindo um intruso, e deslizo as mãos para os bolsos.

— Perdão. Estou procurando Camille...

— Gabriel? — A voz familiar adentra o ambiente, me fazendo virar a cabeça em direção à


porta larga da sala, a qual tem um filtro dos sonhos pendido no alto. Camille usa um vestido amarelo
simples, que desenha seu corpo com esplêndido rigor. Seus cabelos castanhos estão soltos, caindo
em cascatas sobre os ombros estreitos e lânguidos. Seu rosto parece mais corado do que o normal e
sua boca mais cheia, sensual. Porra, como ela está linda!

Tenho certeza de que estou a encarando como um idiota, quando a mulher ao lado exclama:

— Gabriel? Aquele Gabriel? — ela pergunta nas entrelinhas.

— Sim, Vivian — Camille confirma timidamente. E depois se dirige a mim: — O que veio
fazer aqui? Aliás, como sabia? — Nem preciso responder, ela deduz e bufa. — Claro, Pierre! Aquele
bocudo! Eu falei para ele não dizer...

— Precisamos conversar — afirmo categoricamente.

— Não, não precisamos. Estou de visita na casa de amigos, como pode ver. Que tal esperar
que eu volte para casa para termos essa conversa?

— O rapaz pode jantar conosco se ele quiser, Camille. Não há problema algum.

— Não precisa, Vivian! Ele já está indo!

Direciono meu olhar à mulher que responde por Vivian e agradeço:

— Muito obrigado! Eu vou aceitar o convite.

Neste exato instante, sinto os olhos ao meu lado me fulminarem.

— Ótimo! Lúcio vai adorar ter uma companhia masculina para conversar nesta noite. Entre!
— Ela caminha em direção à Camille, passando por ela.

— Onde estão seus homens? — Camille pergunta baixinho, ranzinza.

— Eu vim sozinho.

Apesar de ser uma simples resposta, ela soa estranha aos ouvidos.
Decido ignorar os olhares atravessados de Camille e acompanho a mulher grávida e
simpática pelos cômodos, até chegarmos a aconchegante sala de jantar. Avisto o homem sentado à
mesa, com um copo de cerveja na mão e, prontamente, o cumprimento com um acenar de cabeça.

— Querido, esse é o Gabriel. — Ela completa: — O Gabriel Átila da Camille.

— Gabriel? — Sua esposa parece conversar com os olhos, e ele consegue entender algo. —
Ah, sim! Gabriel. Seja muito bem-vindo! — Ele sorri, levantando o copo com o “suco de cervejada".
— Aceita um copinho para esquentar?

— Claro! — Assinto imediatamente, me juntando a ele atrás da mesa de madeira.

— Mas só um copo mesmo, pois o barreado[ix] já está pronto — Vivian adverte.

O homem se levanta, pegando outro copo no armário e respondendo com afeto:

— Sim, meu amor. Não passaremos disso. — O homem se senta ao lado e enche o copo, me
estudando com os olhos. — Então, Gabriel... De onde você é?

— Daqui mesmo de Curitiba.

— Ah, é paranaense?

— Ele é filho do senador Fernando, meu bem. — Olho para Vivian e aproveito para espiar
um pouco Camille, que ajuda a pôr os pratos na mesa.

— Ah, sei! Sei! Filho do dr. Fernando Cordeiro. Ele foi um grande jurista! — Ergo as
sobrancelhas, como se agradecesse o elogio pelo meu pai. — Então quer dizer que o senador vai
ganhar um neto? — Lúcio solta, fazendo sua esposa engasgar com saliva.

— Lúcio, está na hora de parar de beber, meu bem! — Vivian exclama entre uma tosse e
outra.

Neste instante, encaro Camille, que me ignora completamente, abanando com um pano de
prato a mulher de cachos dourados.

— Você está bem? — Camille pergunta.

— Sim. Sim, querida.

— Eu falei alguma besteira? — Lúcio pergunta.

— Meu bem! — Vivian exclama, arregalando os olhos e me olhando de soslaio, como se


quisesse avisá-lo de algo, que já não é mais nenhum segredo para mim. No entanto, preciso ouvir
melhor saindo da boca de Camille.

— Chega de cerveja por hoje! — O homem despreocupado ao meu lado parece entender sua
mulher, sorrindo desconcertado para mim. — Geralmente, não costumo beber durante a noite, sou
mais do dia. Mas sabe como é que é! Eu, por exemplo, passo o dia todo correndo atrás de juiz, e
quando tenho uma folguinha, só quero relaxar.

— Você é advogado? — Me admiro ao saber.

Ele ergue o dedo em riste e completa:

— Dos bons!

— Criminalista?

— Tributarista — ele afirma.

— Muito bom! — exclamo, engatando uma conversa com o homem gentil ao lado.

Ele me conta que ele e a esposa compraram o sítio recentemente, depois de voltarem de uma
viagem no Atacama, onde encomendaram a pequena Agatha, que cresce urgentemente no ventre de
Vivian. Pelo que entendo de nossa conversa, concluo que Vivian e Lúcio são um casal de
aventureiros, que tem levado uma vida mais pacata nos últimos meses. Segundo Vivian, eles
conheceram Camille em uma viagem no Havaí e logo se identificaram por serem brasileiros, além da
feliz coincidência de serem naturais daqui de Curitiba.

Enquanto comemos o saboroso barreado, conversamos sobre os mais variados assuntos. Não
é muito difícil gostar do casal. Haviam se passado algumas horas naquela mesa, mas pareciam
minutos. Entre uma garfada e outra, meus olhares se cruzam com os de Camille, e eu noto seu mau
humor se desmanchar aos poucos, até vê-la sorrir de uma piada ridícula que faço à mesa, e que
provoca uma série de gargalhadas sem fim em Lúcio.

Em certo momento, Vivian continua a discorrer sobre suas experiências com a gravidez.

— No início da gestação, foi uma loucura! Lúcio e eu pensávamos que não poderíamos fazer
uma série de coisas que não tinham fundamento científico algum. Para vocês terem uma ideia, eu
parei de tomar café, deixei de cortar o cabelo por conta da gravidez e até sexo paramos de fazer. —
Ela cobre a boca risonha com a mão. — Lúcio pensava que se transássemos, ele acertaria o bebê —
Vivian conta aos risos, com os olhos lacrimejando.

Alterno meu olhar para Camille, que se diverte também, com os cotovelos sobre a mesa e as
mãos segurando o queixo. Em seus lábios está pincelado um sorriso doce, descontraído, enquanto
Vivian gargalha do outro lado da mesa.

— Até que fomos ao médico e o doutor nos explicou que o bebê fica fechado dentro do útero,
envolvo por uma bolsa de água, e devidamente protegido pelo colo do útero também... Enfim, o
médico tirou todas nossas neuroses da cabeça e pudemos relaxar depois disso...

Um trovão estronda lá fora, ao mesmo tempo que as lâmpadas bruxuleiam sob nossas
cabeças, nos avisando que o temporal ainda não passou, muito pelo contrário, a chuva parece ter
engrossado e se tornado mais sonora.

— Eu sinto muito, Gabriel, mas, pelo jeito, você terá que passar a noite aqui. — Ela boceja.
— A rua que leva à estrada deve estar inacessível a uma hora dessas.

Olho para o horário no relógio de parede ao lado do armário, que marca exatas dez horas da
noite.

— Isso é verdade. A água costuma subir muito por essa região, principalmente no pé da serra
— Lúcio confirma.

— Não vejo problemas em ficar. — Sorrio.

Observo Camille se levantar com Vivian.

Lúcio começa a retirar os pratos da mesa, e Vivian me chama para que eu a acompanhe.

— Venha! Vou dar a você roupas confortáveis. Acho que as camisas e shorts de Lúcio
servirão em você. — Ela para ao lado de Camille e me fita. — Mas só tem um problema! — Ela
alterna o olhar para Camille. — Só temos um quarto disponível para hóspedes. Infelizmente, não
temos como abrigar Gabriel no quarto da Agatha, pois lá não tem nada maior do que um berço.

— Tudo bem, Vivian! — Camille assente, respondendo por mim. — Gabriel dormirá no sofá.

Vivian olha para o sofá com uma expressão de dó cravada no rosto.

— Esse sofá é tão pequenino. Será que ele não poderia dormir na cama de casal no quarto
dos fundos com você?

— Não, não se preocupe. Ele saberá se virar com esse sofá. Não é, Gabriel? — Camille me
desafia com o olhar.

Avalio o minúsculo sofá laranja à minha frente.

— Verei o que posso fazer.


— Ótimo! — exclama Camille. Pelo jeito, satisfaço-a pela primeira vez na noite.

— Então vou ao quarto, lá em cima, pegar as roupas e as cobertas.

Camille acompanha Vivian, e tenho a impressão de que ela está fugindo de ficar sozinha
comigo.

Enquanto elas não voltam, tiro meus sapatos molhados e os afasto para o canto, ao lado do
sofá. De repente, me pego pensando no filho que Camille poderá me dar e me vejo ansioso. Como
seria se estivéssemos juntos? Seria tudo mais simples. Não precisaria correr atrás dela o tempo todo
para saber como o bebê está. Confesso que não me agrada saber que passaremos os próximos meses
dessa forma, sabendo que poderíamos estar como um casal, como Lúcio e Vivian, gozando de paz e
união.

Não fui criado para ser um homem que foge da paternidade, muito pelo contrário, em minha
família os filhos são vistos como verdadeiras dádivas. Mesmo que minha mãe tenha demorado muito
para conseguir que um de seus filhos assumisse seu lugar na empresa, ela sempre deixou claro que
nós somos os maiores tesouros que poderia ter ganhado da vida, pois somos aqueles que daremos
continuidade aos seus feitos e aos de nossa avó. Nem tudo é dinheiro. Embora ela tenha passado
quase uma vida inteira metida em um escritório, ela sempre fez questão de fazer que nos sentíssemos
seres desejados e promissores.

Não quero que um filho meu se sinta de forma diferente, pelo contrário, quero fazer ainda
melhor.

Vivian volta com as roupas limpas de Lúcio e mostra o banheiro social para que eu me
troque. Agradeço, e logo ela se recolhe com o marido para o quarto de cima, ao passo que Camille
se direciona ao último cômodo nos fundos. Decido não insistir muito e apenas me troco.

A camiseta verde-musgo e o short cinza ficam um pouco colados em meus braços e pernas,
mas nada que incomode. Volto para o sofá, me deito de forma que minhas pernas fiquem para fora e
minhas costas rente ao estofado.

Troveja muito lá fora, e o frio não demora muito para me atingir.

Em certo momento, começo a imaginar como deve estar lá no quarto ao final do corredor, se
está quente debaixo das cobertas, se sua pele está tão macia como me recordo, e seus lábios
deliciosamente mornos. De repente, me vejo tentado a cruzar o corredor à minha frente e bater no
quarto dos fundos.
Camille

Apesar do quarto de hóspedes ficar nos fundos da casa, durante o dia é o lugar mais
privilegiado desse lugar. Isso porque é possível ver toda a plantação de girassóis no terreno da
fazenda vizinha.

Vivian e eu passamos a tarde toda neste quarto, com as janelas e portas abertas, deixando o
vento entrar livremente. Mas, agora, com essa chuva, não há como ficar com nada aberto.

Durante a noite de ontem, pedi a Vivian para que pudesse me receber mais cedo. E, solícita
como ela é, disse eu poderia passar o dia todo se eu quisesse.

Como Lúcio passou o dia todo fora, fiz companhia para Vivian até ele chegar no finalzinho da
tarde.

Vivian e eu conversamos sobre vários assuntos, dentre eles, sobre minha gravidez. Lúcio
acabou pegando uma parte da conversa e ficou surpreso em saber que eu havia tido outro namorado
no passado, além de Joseph.

Eu estava tão atordoada com os últimos acontecimentos, que essa visita à casa deles me fez
relaxar um pouco. Vivian e Lúcio tratam tudo com muita simplicidade, e essa energia me contagia de
alguma forma.

Agora, deitada nessa enorme cama de casal, olhando para o teto em um quarto escuro, me
pego pensando em como Gabriel está no minúsculo sofá na sala. Questiono-me se não fui dura
demais em deixá-lo dormir por lá, sendo que há um enorme espaço ao meu lado.

Viro-me para o outro lado, tentando pegar no sono, mas simplesmente não consigo. Sinto
minha consciência pesar.

Meu lado humano fala mais alto e me levanto, decidida a chamá-lo para se deitar no espaço
vago. Mas, antes, acendo a luz e coloco uma barreira de travesseiros bem no meio, me prevenindo de
qualquer ação inconsequente durante a noite.

Agora sim, posso chamá-lo!, pondero, caminhando para a porta.

Quando puxo a maçaneta, a surpresa me pega.

Ele está parado em minha porta, os nós dos dedos prontos para bater. A chuva cai atrás dele
com a mesma intensidade que no início da noite, me fazendo dar espaço para que ele entre
rapidamente.

Fecho a porta e me viro para ele, que parece maior dentro das roupas de Lúcio.

— É impressão minha ou você estava saindo? — ele pergunta, se recostando na cômoda ao


lado.

Pigarreio, respondendo:

— Eu ia chamar você. — Olho para o lado, completando: — Há espaço suficiente para nós
dois aqui.

Ele observa a cama separada por travesseiros, e esboça um meio-sorriso.

— Boa estratégia! — pontua.

— Obrigada.

— Mas esses travesseiros não seriam necessários se duas pessoas estivessem convictas do
que querem. — Ele torna a me fitar.

— Concordo! Eu, por exemplo, agora estou convicta de que quero dormir. — Desvio de seus
olhares e me preparo para retornar ao meu lado da cama.

— Desde quando sabe que está grávida?

Estanco os passos, apertando os olhos e os fechando.

Aceito que não posso mais fugir e respiro fundo.

— Faz quase um mês.

— Um mês? — ele repete, assoprando.

Viro-me para encará-lo e explico:

— Eu iria contar...

— Daqui a um ano? Quando você aparecesse com um bebê de colo?

— Eu contei a você.

— Naquela situação! — ele exclama com perplexidade na voz. — O que você estava
achando? Que sou um moleque, para me esconder que está grávida de um filho meu? — ele pergunta
com o cenho franzido.
Isso é o suficiente para que os meus olhos comecem a arder. Temo que eu vire um chafariz de
lágrimas pela décima vez na semana.

— Não me leve a mal, mas quem está sendo infantil nessa droga de situação é você! — ele
resmunga.

Limpo as lágrimas rapidamente com o antebraço e declino:

— Você não sabe como me sinto.

— Então me conte como se sente. Converse! Mas não me esconda.

Ele pousa as mãos na cintura.

— Por que fugiu hoje? — ele indaga.

— Eu não fugi!

— Então fez o quê?

— Vivian havia me feito o convite antes.

— Eu quero que saiba que não vai me deixar de fora da gestação do meu filho, entendeu? —
ele rosna.

— Quando nosso filho nascer, eu faço questão de avisar.

Gabriel bufa, impaciente, sabendo o que eu quero dizer.

Ele quer o quê? Me acompanhar nos ultrassons e agir como se fôssemos um casal?

Ele aponta o dedo para mim, dizendo entredentes:

— Olha só, Camille, antes era só você, e tinha todo o direito de querer me afastar, mas agora
não é só você, tem uma criança minha em seu ventre, então não pense por um segundo que irá
conseguir me afastar, porque não vai conseguir.

— Não somos um casal...

— Então case-se comigo! — ele dispara, me tirando as palavras da boca. — Por mais que
argumente o contrário, você precisará do pai dessa criança.

— Não estou pedindo para que se case comigo! Em que século você vive para achar que uma
mulher não pode cuidar sozinha de uma criança?!

— Não estou questionando se você é capaz ou não. Só não quero que meu filho cresça com
pais separados, principalmente tendo ciência de que a amo profundamente.

Um silêncio ensurdecedor toma vez.

Ele respira fundo, como isso fosse uma tarefa difícil de se realizar e continua:

— Quando vai entender que eu não cometerei mais o mesmo erro? — ele murmura, com o
olhar fixo ao meu. Ele dá alguns passos à frente, se aproximando. — O que mais eu posso fazer para
te fazer entender que você é tudo o que mais quero?

— Você vai fazer de novo... — murmuro.

— Não. Não vou — ele nega firmemente, balançando a cabeça. — Case-se comigo! E
provarei todos os dias que sou o homem certo para você.

— Você está louco!

— Louco por você. Sempre fui. — Ele subtrai a distância entre nós e segura os flancos do
meu rosto com as mãos. — Não tenho tempo para namoros. Para falar a verdade, nunca tive. E agora
que minha vida parece ter expectativas de dias melhores, tenho a plena certeza do que eu quero. E o
que eu quero é você.

— Gabriel...

Ele cola nossas testas, sussurrando a centímetros de minha boca:

— Por favor, não me negue isso.

Fecho o punho e soco fracamente o vão em seu peito, ainda resistindo. Lentamente, ele
envolve meus ombros com os seus braços, mantendo-me dentro deles, enquanto sorvo uma boa
quantidade do seu cheiro almiscarado.

Ele beija o topo de minha cabeça, e eu cravo os dedos em seus braços, murmurando com a
voz sensível:

— Se você fizer de novo, eu juro que eu...

— Não farei — ele assegura, alinhando nossos olhares.

Sua boca toca o canto da minha, escorregando em direção aos meus lábios. Iniciamos um
beijo calmo, cheio de carinho e reconciliação. Não posso mais resistir, eu estou em meu limite. Não
é como se eu pudesse escolher ou mandar em meus sentimentos, pois mesmo que minha cabeça se
recuse, meu coração desgovernado fala por todos os meus sentidos.
Gabriel ergue meu corpo e me leva para a cama, me sentando em seu colo. O sinto pronto
para mim dentro da calça, me deixando ainda mais ávida pelo seu corpo.

Não resisto e me livro da blusa de seda branca, deixando meus seios entumecidos à mostra.
Ele ergue novamente as costas e abocanha um de forma lasciva, fitando com seriedade os meus
olhos.

Amamo-nos de todas as formas, sob o som da chuva trepidando lá fora.

Apesar do tesão instalado em nossos corpos e movimentos, sinto que Gabriel é mais delicado
do que na última vez. Exceto quando me vira de quatro e me penetra até sua base, me arrancando um
gemido sôfrego e nos fazendo suar em bicas num frio de 15°C. Uma gota de suor despenca de minha
testa quando sinto minhas pernas tremerem, anunciando o meu ápice. Gabriel parece entender os
sinais do meu corpo e torna mais potente o ritmo de estocadas, me fazendo explodir de prazer,
relaxando todos os meus músculos. Em seguida, sinto ele guinchar, soltando um gemido rasgado,
como um uivo de prazer.

Caímos no colchão, ofegantes, alucinados pela onda lasciva que corre em nossas veias. Não
sei quando meu corpo volta a procurar o seu peito, mas quando dou por mim, já estou me aninhando
em seus braços viciantes novamente.

Acordo com a claridade acertando meu rosto. Esfrego os olhos com o dorso da mão e vejo
que as janelas do quarto estão completamente abertas e o sol já saiu, exalando o cheiro de mato
encoberto pelo orvalho matinal depois de uma longa tempestade durante a noite de ontem.

Seguro o lençol branco contra o meu peito, relembrando da noite anterior, e procuro por
Gabriel ao meu lado. Porém não encontro nada além do que seu lado da cama arrumado. Em um
ritmo letárgico, saio procurando minhas peças de roupas pelo quarto, inclusive minha calcinha, que é
a mais difícil de achar.

Coloco meu vestido, alisando as mãos nos cabelos. Saio do quarto, me deparando com a
imensidão de terras sob a luz do amanhecer, e encontro Gabriel parado de frente para a plantação de
girassóis lá embaixo, com as roupas em que chegou ontem à noite.
Avanço o limite da calçada e caminho até ele, descendo uma suave ladeira de terra.

— Lindo, não? — Me coloco ao seu lado, contemplando a miríade de girassóis diante de nós.

— Não mais do que uma linda mulher que deixei na cama hoje mais cedo — ele comenta sem
tirar os olhos da plantação.

Capturo o irresistível sorriso no canto de sua boca, e automaticamente minhas bochechas


sentem cócegas involuntárias, como se estivéssemos conectados.

— Há algo curioso na natureza dos girassóis, sabia? — Conto o que aprendi com Vivian
ontem. — Se você perceber com mais afinco, notará que todos estão voltados para o sol. Não é à toa
que são conhecidos como perseguidores da luz.

— E quando não há luz? — ele questiona. — Como ontem?

— Eles curiosamente se voltam uns para os outros, e se fortalecem de suas próprias energias.
— Respiro fundo. — Engraçado que é assim com as relações humanas. No momento de dor e aflição
há sempre alguém que quando nos voltamos, conseguimos energizar novamente a luz dentro de nós.

Ele vira para mim.

— Então você é o meu girassol. — Um meio-sorriso se curva em meus lábios. — Você


dormiu bem?

— Não dormi quase nada — respondo com sinceridade.

Explodimos em uma risada quase no mesmo segundo, como se fosse uma piada interna. Tenho
receio de completar, mas o faço:

— Mas nunca me senti tão bem.

Mordisco o lábio inferior, perdida no azul profundo, que está especialmente mais claro hoje,
contra a luz.

Ele dá um passo para trás e empertiga atrás de mim, pousando suas mãos em minha barriga.

— Sei que está cedo, mas você já tem a resposta? — ele sussurra na curvatura do meu
pescoço.

Seu cheiro me entorpece pela milésima vez e tenho que retomar os meus sentidos normais
para dizer:

— Isso ainda continua sendo uma loucura.


— O amor por si só é uma loucura — ele reflete. — Quem em sã consciência quer deixar
seus sentimentos vulneráveis para alguém?

— Tem razão. Mas ainda é cedo.

— Não. Estamos atrasados.

Viro-me e beijo seus lábios.

— Eu não quero conviver com a possibilidade de te perder outra vez.

— Então viva comigo para sempre. — Ele roça o nariz no meu.

— Há tantas coisas para ajustarmos.

— Isso é um sim? — Ele cola nossas testas.

Em seus olhos, posso ver o reflexo das flores amarelas lá embaixo, sentindo todo o meu
corpo se aquecer com seu olhar tão próximo ao meu, enquanto ele aguarda ansiosamente a resposta
que pode mudar nossas vidas

Meneio a cabeça em positivo, e ele suspira fundo, abrindo um sorriso de tirar o fôlego. Eu o
amo, tenho certeza disso. E, por mais que as dúvidas tivessem pairado em minha mente em algum
momento, ainda tenho essa certeza em meu coração. Depois de tantas dores e injustiças, nós
merecemos ser felizes. Não somos perfeitos, muito pelo contrário, somos falhos e levamos feridas
que iremos carregar para sempre. Mas isso é o que nos torna humanos, capazes de apreender e
acertar de novo.

FIM
Epílogo 1
E Deus sabe
Que é difícil encontrar a pessoa certa
Mas no tempo certo
Todas as flores se viram de frente pro sol (James Blunt)

Camille

Um mês e meio depois

Depois de uma semana no Rio de Janeiro, trabalhando arduamente para o desfile acontecer,
Pierre e eu temos nossas horas de glória vendo nosso site recém-inaugurado subir com números
expressivos de pedidos. Coincidentemente, no mesmo dia do desfile, Gabriel teve que se reunir com
fabricantes japoneses de tecnologia de ponta, fechando um contrato bilionário, que renderá à Átila
bons frutos no mercado financeiro.

“Eu já sinto sua falta!”

Gabriel me enviou esta mensagem no dia em que cheguei ao Rio. E para falar a verdade, era
provável que eu sentisse mais falta dele durante a noite. Dos seus braços me puxando para mais perto
na cama, de seus dedos longínquos acariciando a pele de minha barriga e seu cheiro delicioso tão
próximo de minhas narinas.

Embora estejamos em processo de reconciliação, acabei me mudando para a casa de Gabriel


no Batel a pedido dele. Com as coisas melhorando na empresa, sua agenda está ainda mais lotada, e
como nos dispusemos a fazer isso dar certo, decidimos morar sob o mesmo teto até que consigamos
uma vaga na igreja na qual queremos realizar a cerimônia.

Apesar das restrições de algumas Igrejas Católicas não realizarem casamentos com noivas
gestantes, Gabriel teve uma longa conversa com o padre Antônio, que depois de muito relutar,
concordou em realizar a cerimônia o mais rápido possível, antes que minha barriga dê indícios de
que há uma criança aqui. No fundo, ele sabe que queremos muito a bênção de Deus, afirmando que
esse desejo genuíno em nossos corações é o que mais importa.

Minha vida virou de ponta-cabeça e tenho a impressão de que estou fazendo uma enorme
mudança em todos os sentidos. Começando quando Pierre decide morar sozinho, alegando que não
quer atrapalhar um casal.

Mas, no fundo, desconfio de que há algo a mais para Pierre não querer morar sob nosso teto.
Desconfio que há alguém. E o pior, ele está me escondendo! Logo ele, que vive em prol de revelar a
verdade o quanto antes. A hipocrisia, enfim!

Também decidimos que iríamos nos mudar para a casa do lago. Apesar de ser mais distante
do centro da cidade, é mais perto do aeroporto, o que facilitaria as coisas para mim. Além de ser
uma vontade de Gabriel, mas sempre guardou esse momento para quando formasse uma família. E
parece que esse momento chegou.

Meu pai, no primeiro momento, não ficou nem um pouco feliz em saber que voltei a me
relacionar com Gabriel, mesmo explicando que eu estaria segura ao lado dele. No entanto, quando
soube da minha gravidez, ele amoleceu. Afinal, ele é pai. E pais geralmente querem que suas filhas
estejam protegidas. Sabendo que eu daria à luz nos próximos meses a uma criança, deve ter passado
em sua cabeça que Gabriel também quisesse proteger o filho tanto como ele queria me proteger.

É sábado e havíamos acordado mais cedo. Tomamos café e comemos torradas com pasta de
amendoim na bancada de mármore na cozinha, antes de sairmos para caminhar pela vizinhança.
Finalmente, um dia de folga para que possamos relaxar durante a manhã inteira, e decidimos fazer
isso nos exercitando juntos.

— É impressão minha ou sua barriga ganhou uma linda curva hoje à noite? — ele pergunta,
raspando com a língua o resto de pasta de amendoim do canto da boca, absurdamente sexy em uma
regata preta de malha fria e um short da mesma cor.

Levo minha mão para a barriga, que se recusa a crescer, e concordo com a observação de
Gabriel. Ela está maior do que eu me recordava.

Ele abandona a torrada em cima do prato da bancada e se ajoelha em minha frente, segurando
os flancos de minha barriga com a mão.

— Vá com calma, filha! Eu ainda não sei se estou preparado para ver você crescer tão rápido
— ele sussurra, carinhoso.

Uma das melhores coisas que acontecem desde que eu e Gabriel voltamos, são esses
momentos. Gabriel se mostra extremamente carinhoso em relação a tudo que envolve minha gestação,
o que me leva a crer que será um pai incrível para a bebê em meu ventre. Além dele ter a estranha
certeza de que é uma menina, mesmo que ainda não saibamos de fato o sexo do bebê.

— Ela irá crescer de qualquer jeito — pontuo, olhando de cima e sorrindo. — Crescer é
bom!

— Só espero que ela demore em nos apresentar os namorados. Confesso que não estou pronto
para isso — ele fala seriamente, ainda fitando minha barriga, e eu caio na risada.

— Ela ainda nem nasceu, Gabriel.

Ele se levanta e beija o topo da minha testa.

— Mas vai nascer, e linda como a mãe, vai arrastar marmanjos por onde passar. Tenho que
me preparar psicologicamente para lidar com essas questões no futuro.

Enlaço meus braços em seu pescoço e toco seus lábios macios com minha boca, enquanto
suas mãos seguram firmemente meus quadris.

— Que tal focarmos no presente? Em nossa caminhada? Tenho certeza que fará bem ao nosso
filho.

Ele me rouba um beijo mais intenso, fazendo as partículas do meu corpo se agitarem de uma
forma que só ele provoca em mim. Ele termina com um selinho lento, me olhando dentro olhos.

— Só se for agora.

Ele pega minha mão e caminhamos para fora da cozinha, seguindo para a garagem da casa.

— Não é melhor irmos a pé?

— Eu pensei em corrermos em um parque mais distante. Confia em mim, você vai adorar. —
Ele caminha ao meu lado, depositando um beijo em meu pescoço.

Na garagem, há os seus carros preferidos, os três que ele mais usa ultimamente para ir ao
escritório da Átila. No entanto, Gabriel não parece se interessar por nenhum deles e me conduz em
direção a uma manta preta que envolve o que parece ser uma estrutura pequena de metal.

— O que é isso? — pergunto.


Ele solta minha mão e se põe ao lado da coisa coberta pela manta preta, com um sorriso
sapeca nos lábios, que raramente ele tem.

— Está preparada? — ele pergunta, arqueando as duas sobrancelhas.

— O que você está aprontando? — Antes que eu termine de fazer a pergunta, ele puxa de uma
vez só a manta, me deixando sem palavras quando vejo o que tem embaixo.

Demora alguns segundos para minha mente processar que é mesmo o que eu estava
imaginando.

Levo as duas mãos para minha boca.

— Ai, meu Deus! — exclamo, perplexa. — Parece com a lambreta que eu tinha...

— É a própria.

— Mentira! — Me aproximo para conferir os detalhes, ainda em choque. — Co-como? —


gaguejo, confusa.

Antes de eu deixar o Brasil e viajar para Paris e depois para Milão, eu havia a vendido para
arrecadar um bom dinheiro, receosa de que me faltasse algo nos primeiros dias em um país
desconhecido, mesmo que Hortência tivesse garantido que não me faltaria nada. Na verdade, estava
assustada, e acabei vendendo algo que eu pensei que nunca mais reaveria.

— Ontem, indo para o trabalho, reconheci a placa quando parei no sinal vermelho. — Ele
coça o topo da cabeça, com um sorriso de canto de boca. — Acho que não preciso contar como
convenci o cara — ele fala enquanto analiso cada detalhe da relíquia que me traz ótimas memórias
afetivas.

Está bem conservada para uma moto que passou dois anos fora de minhas mãos, mas ainda
tem o pequeno amassado no guidão, do dia em que eu caí saindo de casa. Aquelas memórias ainda
estão tão vivas em minha cabeça, como se fossem hoje.

— Eu quero pilotar! — aviso, decidida.

— Calma aí, mocinha. Hoje você vai de carona.

Ele me entrega um capacete e arqueio uma sobrancelha, em dúvida se ele está falando sério.
Como ele, desse tamanho, irá manobrar uma lambreta dessas?

— Essa eu quero ver. — Sorrio, encaixando o capacete na cabeça.

— É impressão minha ou a senhorita está me subestimando?


— Não. Só estou preocupada, nunca vi você em cima de uma moto.

Ele coloca o capacete e fecha a trava embaixo do queixo.

— Pois saiba que eu nunca arrastaria uma mulher grávida para minha garupa se não tivesse
perícia no assunto. — Ele empurra a motocicleta para frente, de modo que consegue montá-la.

Ele liga o motor, passando uma perna para o outro lado do banco, montando.

Faço o mesmo.

— Vamos lá, senhor especialista em motos. — Circundo seu tórax com meus braços, me
prendendo bem ao seu corpo.

Ele dá partida, fazendo meu coração se energizar quando saímos pela lateral do jardim,
alcançando a rua do condomínio. Olho por cima do ombro, vendo dois de seus seguranças parados na
porta, sem se moverem para dentro do carro para nos acompanhar.

Apesar de Gabriel ter mantido alguns de seus seguranças por razões mais sensíveis, sua vida
tem se tornado cada dia mais normal, como agora, em que nos afastamos sem a companhia deles.
Passamos das ruas do condomínio para as avenidas de Curitiba. Sinto o vento abraçar o meu rosto e
sacudir meus cabelos enquanto sorvo o cheiro maravilhoso que vem do meu noivo. Nada é tão bom
como a sensação de liberdade e proteção que me atravessa quando estou com ele, e isso só cresce
com o passar dos dias. Gabriel tem se tornado meu porto seguro, meu ponto de paz. O que estamos
construindo vai além do eu poderia imaginar. Gabriel é um homem paciente, correto, protetor,
sensível e justo, aquele que quero jurar eternidade no altar.

Nessa manhã, fazemos nossa caminhada ao redor do parque, onde famílias e grupos de
amigos se reúnem para fazer piqueniques na grama — uma prática comum na Europa e em Curitiba
também, o que me fez lembrar dos anos de aprendizado, consequentemente, me fazendo refletir sobre
tantas coisas que me levaram para longe dele, mas, no final, ainda conseguimos encontrar o caminho
de volta. É mágica a sensação de que existe uma pessoa especial no mundo para nós, e não importa
que caminhos tomemos, se for para ser e houver amor, sempre tomaremos nosso caminho de volta,
um para o outro.

— Você tem tido notícias dela nestes últimos dias? — questiono enquanto estamos andando
de mãos dadas no pequeno trajeto ao lado do lago cor de âmbar. De repente, me sinto curiosa para
saber como ela está.

De maneira quase imperceptível, sinto sua mão se comprimir contra a minha.


Embora eu soubesse que Maria Júlia tivesse sido conduzida a uma espécie de clínica
psiquiátrica especial para detentos de alta periculosidade, pouco sei sobre sua real condição.

— O processo dela ainda demorará alguns anos. A situação é complexa. — Ele respira fundo,
parando em minha frente e tocando meu rosto com os nós dos dedos. — Não se preocupe. Ela está
sendo muito bem vigiada. Eu prometo que não chegará nem perto da nossa família.

Apesar dele estar seguro disso, saber que Maria Júlia está reclusa em uma espécie de
manicômio, alimentando mais ódio dentro de si, me causa um frio na espinha. Que Deus me perdoe,
mas eu me sentiria mais aliviada caso ela tivesse a dez palmos debaixo da terra. Me perturba
imaginar a possibilidade dela voltar para as ruas outra vez.

— Não há razões para pensarmos nela... Com a ajuda do meu advogado, consegui que
aceitassem o pedido de transferência dela para outro hospital psiquiátrico em Brasília. Não gosto de
dar chance ao azar, e se ela, por ventura, fugir do hospital em Brasília, vai demorar algum tempo
para que chegue a Curitiba. Tempo suficiente para eu tomar as devidas providências. Como eu disse,
me assegurarei de que ela esteja bem longe.

Abraço seu tronco, tocando meus lábios em sua clavícula e sussurro:

— Obrigada! — Deito minha cabeça em seu peito, suas mãos envolvendo minha cintura,
enquanto ouço seus batimentos. — Por se dedicar para nos manter seguros — sussurro.

— Essa será minha missão até o fim de nossas vidas. Agora vocês duas são o centro do meu
mundo.

Ele beija o topo de minha cabeça, apertando meu corpo contra o dele, me dando a certeza de
que esse é o meu lugar preferido em toda face da terra: dentro do seu abraço, sentindo seu coração
bater.

Curitiba
Grande dia!
— Com o véu! — Pierre diz.

— Sem véu! — Giovanna rebate.

— Ai, pessoal! Tanto faz. — Donatella se joga contra a poltrona, com um brilho especial no
olhar, como se dissesse: você é deslumbrante, mana, com ou sem véu.

— Com o véu tudo parece mais chique, auspicioso! Mademoiselle não veio ao mundo para
ser uma noiva modesta.

— Meu querido, já ouviu o ditado em que diz que menos é mais? — Giovanna discute com
Pierre. Ela está com um vestido rosa, de madrinha, da mesma cor dos vestidos de Manuela e
Donatella, que delineia com perfeição as curvas de seu corpo exuberante.

Pierre arqueia a sobrancelha e replica:

— Já ouvi falar sim. Mas ele está bem fora de moda ultimamente. — Ele faz uma careta
engraçada.

— Que tal perguntarmos a opinião da noiva? — Giovanna cruza os braços embaixo dos
seios, voltando seu olhar para mim. — Como a grande estilista que minha cunhada é, saberá
responder a essa questão com facilidade. Com ou sem véu?

Penso por alguns instantes e suspiro.

— Com véu!

Pierre bate palma, como se tivesse ganhado uma partida de pôquer, enquanto explico à
Giovanna:

— É mais por uma questão simbólica do que propriamente estética.

— Eu compreendo. Fui criada na Igreja Católica também, mas sou um pouco cética para
esses tipos de superstições... — Ela vem até mim e segura minhas mãos com ternura. — De qualquer
forma, você está absurdamente linda hoje, Stella Mackenzie.

Toc. Toc.

As batidas na porta chamam a atenção de todos na sala, e quando minha futura sogra aparece
na soleira, todos se calam.

— Mamãe? — Giovanna sopra.

Tereza demora a se pronunciar, mas o faz, olhando para todas as pessoas que estão na sala.
— Posso ter alguns minutinhos a sós com a noiva?

Alguns segundos se passam, para que todos se levantem e façam o que Tereza pede, inclusive
tia Lúcia e Donatella.

Quando eles saem e a porta se fecha, seus olhos finalmente se fixam aos meus.

— A senhora não veio aqui me criticar, não é mesmo? — indago, com o peito aberto.

— Não tenho interesse algum de criticar uma noiva no dia de seu casamento. Especialmente
quando se trata da moça com a qual o meu filho vai se casar daqui a algumas horas.

— Ótimo! Fico feliz que a senhora não veio aqui para isso. Por que veio, então?

Ela respira fundo, dizendo enigmaticamente:

— Eu vim porque preciso te pedir duas coisas.

— Se eu puder corresponder... Diga.

— A primeira, quero que me perdoe — ela suspira, como se isso fosse difícil demais para
uma mulher como ela. — Em algumas das vezes em que nos encontramos, posso ter soado um pouco
indelicada...

— Esnobe, severa. São essas as palavras — corrijo.

— Sim, esnobe, severa. Peço que me perdoe! — ela fala tão rápido, que mal consigo captar a
humildade em seu pedido de desculpas, mas ela ainda assim está fazendo isso, o que por si só
representa uma boa atitude.

— Tudo bem. Qual o outro pedido?

— Eu quero que prometa que depois do “sim” no altar, você ficará ao lado do meu filho para
sempre.

— Essa é a ideia.

— Sim. Não me interprete mal, mas hoje em dia as pessoas têm levado o casamento como
brincar de casinha... se é que me entende.

— Tereza, Gabriel e eu teremos um filho! — enfatizo, interrompendo qualquer coisa que ela
venha a insinuar. Apesar de me parecer que ela tem boas intenções, deveria ser mais sensível com as
palavras.

Ela murcha os ombros e suspira, mais uma vez.


— Eu sei. Gabriel me contou. — Seu olhar parece genuíno enquanto ela me fita. — E sou
absurdamente grata por me dar a honra de ter um neto — ela fala isso como se não tivesse mais
esperanças de que isso aconteceria, e explica melhor: — Sabe, Giovanna já deixou claro que não me
dará netos, me disse diversas vezes que não nasceu para ser mãe. Já Gael, esse é um caso perdido!
Apesar de ser um homem de trinta anos, criei um menino inconsequente. Será difícil vê-lo se apegar
a alguém tão cedo. Sinto que isso pode demorar alguns anos para acontecer ou, talvez, eu morra antes
— ela suspira e diz por fim: — Gabriel era minha última esperança. Apesar dele ter se tornado um
homem centrado, eu ainda tinha dúvidas que ele pudesse vir um dia a me dar um neto. A vida
solitária que ele vivia me levava a crer nisso. Mas agora... — Ela olha para minha barriga com uma
inquietante admiração. — Eu vou ter um neto — ela repete, como se fosse um título de grande valia,
notoriamente emocionada. — Um neto!

Mordo o canto inferior da boca, sem saber o que dizer. Não estava preparada para ver Tereza
Átila se dobrar ao meio por causa do meu filho.

— Obrigada...

Ela ignora meu agradecimento condescendente e pergunta:

— Aquela senhora que acabou de sair é sua mãe?

— Não. É minha madrasta. — Sinto meus olhos pinicarem um pouco quando digo: — Minha
mãe faleceu anos atrás.

— Sinto muito, querida — ela diz no mesmo instante.

— Tudo bem.

— Sei que pode parecer estranho o que vou dizer, mas quero que se sinta parte da minha
família, como se fosse uma filha a partir de agora. Novamente, sei que parece estranho, pois uma mãe
não trata um filho com dureza, da maneira a qual tratei você, mas criei todos os meus três filhos
dessa forma.

Mais uma vez, não sei me expressar de forma toleravelmente adequada para tal situação.
Apenas agradeço.

Ela sacode a cabeça, abrindo os lábios em um sorriso comedido.

— Por último, antes que eu retorne à igreja para levar Gabriel ao altar, eu posso lhe dar um
abraço?

Faço que sim com um menear de cabeça, enquanto ela se aproxima de braços abertos e me
envolve cuidadosamente, selando a paz.

Poucos minutos depois, ela se retira, avisando que tem que acompanhar o filho ao altar.

Tão logo a hora do início da cerimônia chega e sinto minha espinha gelar. Apesar de eu ter
sido, muitas vezes, o centro das atenções nos últimos anos, o sentimento de casar não me parece nada
familiar. E é pouco provável que eu passe por isso outra vez. Uma vez que não há segundas chances
para uma cerimônia, tudo tem que dar certo neste dia, nesta hora, o que me deixa apreensiva e
nervosa.

— Você está maravilhosa, filha! — papai diz quando me vê pela primeira vez ao lado do
carro de modelo antigo. Ele esfrega rapidamente o olho, sem graça. — Eu acho que vou chorar.

— Ah, não, pai! O senhor vai me fazer chorar também.

— Não, filha. Você não pode chorar. — Ele olha para cima, tentando controlar as lágrimas.
Ele torna a me fitar e abre a porta traseira. — Temos que ir. Gabriel está a esperando no altar.

Tenho a sensação de que estou vivendo o meu próprio conto de fadas quando meu pai desfere
essas palavras, como se estivesse indo em direção ao meu “felizes para sempre". Sento
cuidadosamente no banco de trás, enquanto papai empertiga com cuidado a cauda do meu vestido.
Optei por um modelo que desenhei em um dos finais de semana que passei em Cannes a trabalho. Um
modelo tradicional, harmonizado, com a saia longa de espessas camadas de tecido.

Meu pai dá a volta no carro e se senta ao meu lado, enquanto as batidas em meu peito se
tornam mais audíveis.

O momento chegou.

Estamos diante da enorme porta de madeira com cruzes esculpidas em sua superfície. Seguro
o singelo buquê, uma combinação de mirto, lírios do vale, rosas e jacinto. Meu pai oferece seu braço
esquerdo quando os sons dos trompetes anunciam a velha e emocionante Marcha Nupcial de
Mendelssohn, e me posiciono de forma que eu encaixe meu braço na curvatura do seu.
— Pronta? — papai pergunta.

Balanço a cabeça, fazendo que sim.

Encaro as portas, e, em poucos segundos elas se abrem, descortinando a pequena plateia


ocupando os bancos da igreja. Meus olhos atravessam o corredor em minha frente, avistando um
homem exageradamente lindo em um terno azul-royal bem recortado, com mãos rentes às laterais do
corpo, em sua postura admirável. Se não fosse pela boa visão que Deus me deu, não teria visto o
leve suspirar quando seus olhos me encontram, e tenho que me esforçar para prestar atenção em meus
próprios pés para não tropeçar.

Finalmente, meu pai e eu seguimos a passos lentos pelo corredor ladeado de arranjos das
mais variadas flores brancas, enquanto cumprimentamos os convidados durante o pequeno percurso.
Próximo ao altar, avisto Pierre, em uma das primeiras fileiras. Cumprimento-o, lançando-lhe um
sorriso, e ele larga a mão de alguém para poder acenar para mim.

Por estar tão focada em chegar ao altar em segurança, não havia reparado na presença de
Orlando ao lado de Pierre. E, para minha surpresa, ele torna a segurar a mão dele, me revelando
finalmente quem está por trás de todo aquele brilho no olhar de Pierre nas últimas semanas.

Meu Deus, Pi! Orlando?!

Por um momento, não consigo imaginar Pierre lidando com o mau humor infernal de Orlando.

Meus pensamentos se dispersam quando os trompetes alcançam uma nota mais alta, me
lembrando que ainda tenho mais passos para dar em direção ao altar.

Reencontro o olhar sereno de Gabriel e suas mãos ansiosas para me receber.

Chegando ao último degrau do altar, meu pai se desfaz do meu braço, dando a vez para
Gabriel, acenando demoradamente com a cabeça. Gabriel retribui da mesma forma e depois me ajuda
a nos posicionar perante o padre Antônio. Neste curto espaço de tempo, ele comenta baixinho:

— Que sorte a minha! Terei a princesa mais linda que já tocou a face da terra como minha
esposa.

Mordo o canto direito do lábio inferior, tentando não me derreter por completo diante das
pessoas com as atenções voltadas para nós.

O padre Antônio inicia a cerimônia, falando sobre as escrituras, Deus e a união entre um
homem e uma mulher. Por vezes, entre uma palavra ou outra do padre que faz sentido para nós, seu
dedão acaricia o dorso de minha mão. Seguimos assim até finalmente nos virarmos um para o outro e
fazermos nossos votos.

Como eu havia ensaiado dias antes, profiro meu juramento a ele:

— Eu, Camille Sousa, aceito você, Gabriel Átila, como meu legítimo esposo. E prometo
amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por
todos os dias da minha vida, até que a morte nos separe.

Deslizo a pequena circunferência em seu dedo anelar, deixando um beijo ali.

— Eu te amo — ele sussurra, de forma que somente eu e padre Antônio possamos ouvir.

Ele retira um pequeno papel de dentro do paletó, na sua vez de fazer seus votos. Seguro a
respiração quando começa, passando os olhos por cima da caligrafia espirituosa em suas mãos.

Ele parece desistir, guardando o papel de volta no paletó.

— Oi, todo mundo! — Gabriel fala com as pessoas ali, depois olha para o padre. — Com
licença, padre. Não sei se estou quebrando algum protocolo, mas quero compartilhar algo legal com
vocês. — Fito-o, não entendendo nada, mas ele continua me olhado. — Basicamente, Camille e eu
nos conhecemos no confessionário desta igreja há pouco mais de três anos, e por isso queríamos
muito que tivéssemos a bênção de Deus com as palavras do padre Antônio, nesta igreja em
específico. O mais curioso disso tudo é que anos atrás eu passava por alguns problemas, como a
maioria de vocês aqui devem saber, e teve um momento que senti que eu deveria encontrar alguém
para me sentir menos solitário. No entanto, não queria qualquer pessoa. Eu me lembro de ter pedido
a Deus que me mostrasse alguém que me trouxesse paz e ao mesmo tempo enlouquecesse meu
coração de uma maneira que nunca senti antes. E olha só. Lembro-me que dias após eu vim nesta
igreja visitar o padre Antônio e conversei pela primeira vez com Camille. — Lembro da primeira
vez que nos falamos e sorrio. — E aqui estamos. O que eu quero dizer com isso é: levem a sério o
que vocês conversam com Deus, pois mesmo que você pense que Ele não vai atender suas preces,
pode apostar, Ele está atento a tudo, e no momento certo, Ele trará algo maravilhoso para sua vida,
algo tão sublime, que você não saberá explicar. — Ouço um coro de suspiros quando Gabriel torna a
me fitar com ternura. — Então eu vou parar de falar tanto e finalmente fazer meus votos de
casamento, antes que Camille desista e eu perca minha noiva.

Ele arranca algumas risadas de nossos convidados e depois torna a tirar o papel.

— Hoje lhe aceito como esposa, a mulher que seguirei ao lado durante a vida inteira.
Prometo incessantemente cuidá-la e amá-la com toda ternura que mora em meu peito. Prometo ouvir
todas suas conversas com atenção, motivá-la quando parecer que os percalços da vida sejam mais
difíceis do que realmente são, ser seu porto seguro quando o seu dia não encontrar o sol e,
principalmente, ampará-la quando cair. — Meus olhos ardem, me lembrando do dia mágico que nos
conhecemos, dos dias difíceis que vivemos e do quanto o nosso amor resistiu até chegarmos aqui. —
Te prometo amor na saúde, na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da minha vida, até
que a morte nos separe.

Ele encaixa a aliança em meu dedo trêmulo e se curva para beijar minha mão demoradamente,
deixando o calor de seus lábios ecoarem em minha pele.

Ele se levanta, me olhando em adoração. Estou a segundos de me tornar a senhora Átila, e


mal posso tirar os olhos do meu futuro marido.

— Então vos declaro: marido e mulher. O noivo, por favor, agora pode beijar a noiva.

Gabriel escancara um sorriso brilhante no rosto, digno de tirar o fôlego. Apesar de eu ter
planejado para esse momento um beijo sob medida, em um rompante Gabriel me puxa pela cintura,
elevando as batidas do meu coração, enquanto minha mão pousa em sua nuca. Seus olhos me
veneram, como se houvesse apenas nós dois aqui, e, em meus lábios, ele enterra um beijo delicado,
mas com uma intensidade que faz todas as moléculas do meu corpo dançarem, assim como a
intensidade de nosso amor, que nem mesmo a maldade, o tempo e a insegurança puderam vencer.

Agora somos nós e ele, nosso filho. Juntos. Por toda vida.
Epílogo 2
Maria Júlia

Miro o peito daquele desgraçado com uma angústia me consumindo. Ele tem que morrer!
Minha mente repete incontáveis vezes. Ele não pode ser feliz. Eu ansiei por anos esse momento,
tenho que disparar. Não há escapatória, só descansarei quando vir seu sangue derramar.

O relógio em meu pulso marca as exatas oito horas, me avisando que o momento chegou.

— Adeus, querido! — sussurro, com os olhos empoçados de lágrimas, e puxo o gatilho.

Como se uma ópera entoasse em minha cabeça, assisto ao caos. Ele se ajoelha, com a mão
espalmada no peito, não se aguentando e se deitando no chão. As pessoas correm desesperadas, se
jogam umas contra as outras, até Gabriel ficar completamente abandonado no meio da praça,
moribundo. Todos fogem, exceto uma pessoa, que finalmente consigo avistar.

Ela.

Aquela vadia!

Recarrego o rifle sem deixar de observá-la.

Ela se aproxima de Gabriel, como uma tola. Dobra-se sobre seu peito, se derramando em
lágrimas. Antes de puxar o gatilho, saboreio seu desespero e me alimento um pouco de seu
sofrimento. Como é bom ver as pessoas sofrerem! Elas quase nem reparam no sofrimento das
outras até a dor visitar sua própria pele. Me deleito com a cena por mais alguns segundos e,
finalmente, chega a hora dela.

Quando a porta em minhas costas é arrombada, meu corpo solavanca.

Não estou revivendo isso outra vez.

É apenas uma lembrança. Eu sonhei outra vez com essa estúpida lembrança.

— Filhos da puta! — murmuro, abrindo meus olhos lentamente e sentindo a maca em que
estou balançar. Deito minha cabeça para o lado, dando de cara com um cilindro de oxigênio. Faço um
esforço para olhar em volta e identifico que estou dentro de uma ambulância.

Minha cabeça pesa quilos devido ao maldito sedativo que as enfermeiras dão para aqueles
que costumam desobedecer às regras. No entanto, mais do que isso, hoje foi me reservado um dia
especial.

Antes de cair em sono profundo, consigo escutar a conversa da enfermeira com a diretora
geral, em que comentam sobre minha transferência para um hospital em Brasília. Não consigo tirar da
cabeça que aquele desgraçado do Gabriel tem alguma coisa a ver com essa decisão judicial
repentina.

Olho para as algemas em meus pulsos e me levanto, zonza, sentindo a ambulância sacudir
meus sentidos. Pelo vidro da porta traseira, observo a estrada ladeada de uma vegetação alta e
barrancos íngremes ao redor. Olho por cima do ombro, observando a parede que separa a cabine do
motorista com a do paciente, que descuidadamente não está totalmente fechada como deveria.

Em passos furtivos, vou até lá e observo o homem barbudo que dirige e a enfermeira de
cabelos vermelho cereja, que raramente aparece nos leitos para nos medicar.

De repente, me surge a ideia.

Essa é a hora.

Minha hora.

Rapidamente, estudo como eu poderei fazer para rendê-los. E antes que eles percebam que a
maluca acordou, ressuscito a fúria que há em mim.

Deslizo a porta para o lado, usando meu cotovelo para acertar o pescoço da ruiva, que bate o
rosto no vidro e desmaia no mesmo instante.

O homem barbudo se exaspera, em dúvidas se usa as mãos para me conter ou para segurar o
volante. Aproveito que ele ainda está dirigindo para enforcá-lo com a corrente das algemas em meu
pulso. A ambulância vai de um lado para o outro, até ele apagar completamente.

— Porra! — Assisto o carro correr desgovernado, me fazendo pular para o banco da frente
para pisar no freio, no entanto, não há tempo. O carro está em alta velocidade, cruzando a pista e
indo em direção a um barranco, o qual não sei o quão fundo pode ser. Instintivamente, passo por cima
da enfermeira, abro a porta e me jogo, quase no mesmo instante que a ambulância despenca para a
lateral da pista.

Meu corpo rola no asfalto, rasgando a pele de meu braço, parando no meio da pista da
direita. Ergo meu rosto com dificuldade, com meus cabelos cobrindo minha face. Em um ímpeto,
tenho um ataque de risos. Ai, ai, ai, Gabriel. Você está fodido!
Escuto a buzina intermitente, que me leva a virar o rosto para o outro lado da pista. Tudo
acontece rápido demais, tão rápido que nem os freios do maldito caminhão serão capazes de parar a
tempo. Só dá tempo de ver as luzes dos faróis em alta velocidade se aproximando e depois o fim.
Meu fodido fim!
AGRADECIMENTOS

Querido leitor, foi uma delícia escrever A garota do confessionário, e foi ainda mais
especial com a companhia de algumas pessoas que contribuíram para o resultado final desta história.
Antes de partirmos para os agradecimentos, queria recordar o dia que comecei a pincelar o enredo
em uma folha de papel A4, e nada parecia com o que esse livro se tornou no meio caminho. A priori
era para ser uma história que levantasse uma temática Cinderella e um homem misterioso, mas o
passado de Gabriel foi se revelando a mim e tive apenas que obedecer às vontades dos presentes
personagens. Desde então, tenho compartilhado os sentimentos de Camille e Gabriel com pessoas
muito especiais, e, nesta obra, meus agradecimentos se destinam inteiramente a elas.

À minha mãe, minha fiel conselheira. Às leitoras que me acompanham pela Amazon e pelo
Wattpad, que são mulheres incríveis que se emocionam, surtam comigo, e, às vezes, simpatizam com
um possível romance entre a mocinha e o segurança. Meninas, vocês são incríveis e alegram minhas
semanas! Muito obrigada JC, Mayara, Suelen, Neia, Rose, Rosiclea, Irineuma, Bruna, Victoria,
Karine, Viviane, Osana, Eid e muitas outras leitoras que compartilham do mesmo amor que tenho
pela palavra escrita. Muito obrigada, meninas! Amei estar com vocês nesse processo.

E nosso próximo encontro será em Uma secretária para o CEO, uma comédia pra lá de
romântica.

Um forte abraço,

Ângela Maria.
INSTAGRAM DA AUTORA: @autoraangelmaria
[i] Tudo bem?
[ii] Bom dia, senhorita!
[iii] Bom dia, meu querido!
[iv] Grande chefe.
[v] Definitivamente, você mudou.
[vi] Eu te amo!
[vii] Eu também te amo!
[viii] Amo você.
[ix] Barreado é um prato típico paranaense a base de carne e temperos.

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