Você está na página 1de 224

Caio Fábio D’Araújo Filho

1.a Edição

Rio de Janeiro
2010
Semear Publicações
Impresso no Brasil

Tiragem: 2000 exemplares

ISBN:

Capa: Semear Publicações

Transcrição: Dora Ramos

Revisão: Dora Ramos, Lígia do Amaral A. Madruga, Adriana Ribeiro D’Araújo

Diagramação: Marcos Vinícius Braga

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D213c
D’Araujo Filho, Caio Fabio
O Caminho do Discípulo / Caio Fabio D`Araújo Filho ; Transcri-
ção de Dora Ramos; Revisão de Dora Ramos, Lígia do Amaral A.
Madruga e Adriana Ribeiro D’Araújo -- Brasília: 2010. 224p.
ISBN:
1. Discípulo. 2. Ensinamentos de Jesus. 3. Estudo bíblico – Discí-
pulo. 4. Discipulado. 5. Teologia. 6. Cristianismo. I. Título
Editora: Semear
CDU: 248.48

© Caio Fabio 2010


Todos os direitos reservados. De acordo com a Lei nº 9.610, de 19-2-1998, nenhuma parte desta obra
pode ser fotografada, gravada, reproduzida ou armazenada num sistema de recuperação de informações
ou transmitida sob qualquer forma ou por qualquer meio, digital, eletrônico ou mecânico, sem o prévio
consentimento do autor.

2
Sumário
Apresentação 5

Introdução 7

1. Quem dizeis que eu sou? 21

2. A loucura de ser discípulo 33

3. A confissão do discípulo 49

4. Se alguém quer 61

5. Tomar a cruz – a morte do si mesmo. 71


Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.

6. Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos. 85


Hoje mesmo estarás comigo no paraíso!

7. Tomar a cruz – a humanidade do discípulo. 97


Tenho Sede!
Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?

8. Tomar a cruz – cancelado o escrito de dívidas. 109


Está consumado!

9. Tomar a cruz – livre da fobia da morte. 123


Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!

10. Quem quer ser meu discípulo? 135

11. A esperança da glória com certeza em fé. 149

12. Da Transfiguração à Glória Excelsa. 163


13. Olhar para a Glória de Deus todos os dias. 175

14. O encontro com a Glória de Deus. 189

15. A consciência do que é Reino de Deus e as três tendas. 199

16. As três tendas ou o Deus indisponível? 213


Apresentação

O texto que você tem em mãos não foi escrito por mim, mas por mim
foi inteiramente falado.
Essa afirmação precisa ser feita para que você entenda as razões de sim-
plicidade, improviso e oralidade – elementos esses sempre presentes em uma
obra que não foi escrita. Especificamente, neste caso, ela foi objeto de trans-
crição e de copidesque.
Devo dizer também que este livro também é o resultado de espontanei-
dade total. Sim, pois tudo o que aqui você lerá nasceu de anos e anos de
caminhada com Deus, com a Palavra e com os irmãos de fé. Porém, não
escrevi uma única linha de esboço a fim de falar qualquer das mensagens
aqui transcritas.
Portanto, é um texto existencial; ou seja, ele retrata a minha experiência
com Deus na alegria de seguir a Jesus, o meu Senhor e Mestre.
Assim, posso dizer que este livro é um derrame de meu amor, da minha
fé e da consciência pessoal do significado do Evangelho para a vida humana;
e isso a partir da única vida humana na qual o Evangelho pode fazer sentido
e bem a mim: a minha própria vida.
Digo isto porque o Evangelho não é para ninguém antes de ser para mim.
E não afetará ninguém para o bem que eu possa celebrar como valor do
Evangelho se antes o Evangelho não for o bem maior da minha vida.
Desse modo, o que você lerá não é uma “teoria bíblica” acerca do Dis-
cipulado de Jesus; porém, muito antes de ser isso, trata-se da minha experi-
ência existencial com Jesus, andando com Ele na alegria e na tristeza desde
julho de 1973.
O livro tem tons repetitivos [...] que decorrem, em algumas ocasiões, do
fato de que eu sempre me sinto na obrigação pedagógica de, a cada novo
capítulo (originalmente aulas dadas todas as quartas-feiras, transmitidas ao
vivo pela Vem e Vê TV), renovar a memória das pessoas “presentes” aos estu-
dos do Caminho do Discípulo.
Assim, ofereço a você esses muitos anos de vida em Jesus e de experiências
Nele, no chão da presente existência, como um presente de amor; pois sei,
5
de todo o coração, que o que você tem nas mãos é Evangelho de Jesus; é Ca-
minho do e para o Discípulo; e, sobretudo, trata-se do meu testemunho que
diz: “Nesses quarenta anos de jornada o que mais vejo é a maravilha de tal
Caminho sobremodo excelente; visto ser ele totalmente praticável por todo
aquele que se disponha a fazê-lo”.
Este é também o primeiro volume de uma série sobre o mesmo tema,
uma vez que continuo fazendo, todas as quartas-feiras, a mesma jornada
pelo Evangelho com aqueles que se reúnem para ouvir a Palavra aqui na
minha casa.
Abra o coração. Leia com carinho. Reflita com simplicidade. Confira
com a Palavra. Siga com verdade! Sei que se você fizer isso sua vida nunca
mais será a mesma!
Decida, portanto, se você deseja mesmo ler, porque, de fato, seja para
o bem ou para o mal, se você iniciar, jamais ficará livre do que está sendo
proposto a todos nós.
Que o Espírito Santo ilumine você agora!

Nele, a Quem sigo com amor alegre e confiante,


Caio
6 de agosto de 2010
Lago Norte
Brasília
DF

6
Introdução

Vamos ler em I Coríntios 2:12, 13.


Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo (ou
como o texto grego sugere: o espírito aprisionado), e
sim o Espírito que vem de Deus, para que conheça-
mos o que por Deus nos foi dado gratuitamente. Dis-
to também falamos, não em palavras ensinadas pela
sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito Santo,
conferindo coisas espirituais com espirituais.

Paulo está dizendo aqui que nós recebemos não o espírito do cosmo ge-
mente, não o espírito da natureza das coisas, mas o Espírito do Deus vivente,
para que possamos discernir aquilo que, de graça, já nos foi dado. E ele pros-
segue dizendo que disto também falamos, não com palavras ensinadas pela
sabedoria humana, ou pela filosofia, ou pela psicologia, ou pela antropologia,
ou pelas ciências do homem; nem com palavras ensinadas pela teologia, ou
por qualquer sabedoria humana, porque todas essas coisas nada mais são do
que sabedorias, presunções humanas. São fruto da árvore do conhecimento
do bem e do mal. Não importa se é ciência genética ou teologia. É apenas
sabedoria do homem.
Ora o homem natural (homem almal, almático, psychi-
kos) não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque
lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se
discernem espiritualmente.

O homem tenta acessar as coisas espirituais com o cérebro, com a mente,


com os recursos, com as mídias da sabedoria humana. Alguns tentam chegar
a Deus pelo pensar, pelo filosofar; outros fazem isso pela viagem psicológica;
e outros, pela viagem do não pensar, da anulação. Alguns ainda pela viagem
do teologizar, ou do mantra, ou pela viagem da oração nervosa, como se
Deus se constrangesse com o nervosismo ou com a aflição humana. São
meios, mídias, caminhos, todos equivocados. É assim que o homem natural
– psychikos – tenta acessar a Deus. Por isso todas as tentativas humanas de
acessar as coisas relacionadas a Deus parecem loucura.
7
Com a utilização do seu equipamento natural de discernimento, o homem
natural esbarra nas coisas de Deus sempre como loucura, porque quem quer
que se aproxime de Deus usando seus equipamentos mentais, cerebrais, na-
turais, vai esbarrar logo na impossibilidade da mente de fazer a viagem, uma
vez que estamos falando é das coisas de Deus e não das coisas do homem.
Não é um exercício de autoconhecimento. Estamos falando de Deus. E se
tentamos acessá-lo por meio de nossos recursos naturais esbarramos sempre
no fato de que as coisas de Deus nos são loucura. E não se pode entendê-las
porque elas se discernem em outro ambiente, em outra dimensão, elas se
discernem espiritualmente. Continuando em I Coríntios 2:15 até 3:3.
Porém o homem espiritual (pneumatikōs, que não
é o homem psíquico, almático, mas é o homem do
espírito) julga todas as coisas, mas ele mesmo não é
julgado por ninguém. Pois quem conheceu a mente
do Senhor, que o possa instruir? Nós, porém, temos
a mente de Cristo. Eu, porém, irmãos, não vos pude
falar como a espirituais, e sim como a carnais (como
bonecos orgânicos), como a crianças em Cristo. Leite
vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque
ainda não podíeis suportá-lo. Nem ainda agora podeis,
porque ainda sois carnais (Apenas seres orgânicos ha-
bitando um ambiente da confissão da fé, mas vocês são
apenas pessoas do corpo, das produções do sistema e
do conjunto orgânico). Porquanto, havendo entre vós
ciúmes e contendas, não é assim que sois carnais e an-
dais segundo o homem?

Ora, Paulo escreve aos irmãos que se reuniam na cidade de Corinto. O tex-
to de Atos 18 nos apresenta o contexto histórico. Ele chegou à cidade e encon-
trou um casal – Priscila e Áquila – que o acolheu. Na companhia deles, Paulo
começou a anunciar o Evangelho, primeiro aos judeus de Corinto que era
uma cidade portuária extremamente importante da Grécia e que fazia divisão
comercial entre os mares Egeu e Adriático. Uma cidade extremamente devassa,
com o templo de Afrodite erigido no cume da montanha, na Acrópole de Co-
rinto, com culto aos deuses estabelecido pela via da mediação sexual intensa. E
por ser portuária, era cidade de marinheiros, de movimentos multiculturais e
8
de pessoas desenraizadas que chegavam ao lugar somente querendo dar umas
lambidas, provar guloseimas, dar uma aliviada no tédio provocado pelos mares
ou pelo cansaço das rotas comerciais. Essa cidade, pelo que ela se transformou,
veio a se tornar verbo grego. Corintianizar significava, de fato, qualquer coisa
que se relacionasse a um bacanal, a algo que falasse dos devaneios sexuais mais
soltos. Era o espírito presente na cidade de modo geral.
Então Paulo chega e começa a pregar na sinagoga. Depois de alguns dias,
começa a sofrer resistência e é expulso. Ao sair, o principal da sinagoga, Cris-
po, creu na palavra pregada por Paulo e fez sua escolha de tornar-se discípulo
de Jesus. Saiu com Paulo, abandonou a sinagoga e foram para uma casa vizi-
nha à sinagoga. Paulo não era uma pessoa politicamente correta. Não tinha
a ética de geografia religiosa que os pastores de antigamente tinham – aquela
etiqueta de respeitar, quando já havia uma igreja em algum lugar, outra seria
aberta em um local mais distante e não ao lado. Paulo não estava preocupado
com isso. Expulso da sinagoga, ele somente facilitou as coisas para quem
quisesse vir com ele. Foi para a casa de um homem chamado Tício Justo, que
era temente a Deus, e a casa era contígua à sinagoga. Suscitou ódio em todos.
E o chefe da sinagoga foi junto.
E o texto, em Atos 18, diz que Paulo persuadia as pessoas. Essa palavra
“persuadir” aparece três vezes em relação a esse fato. Palavra essa que significa
apologia, persuasão intelectual poderosa, de modo que esmagava o argumen-
to contrário. É o sentido do termo usado, tamanho era o rolo compressor
da pregação de Paulo. As pessoas não tinham como argumentar. E o ódio
crescia. Ainda mais quando ouviam o ex-chefe da sinagoga cantando do lado
de lá. Um ano e seis meses foi o tempo ali. E o grupo crescia.
Havia outro chefe da sinagoga chamado Sóstenes. Ele era um delator, um
pit bull. Era o síndico de prédio que se frustrou porque não foi escolhido. Era
um contador frustrado, um auditor que não teve a oportunidade, um promo-
tor de justiça que nunca conseguiu acusar alguém que chegasse à condenação.
Esse era o espírito de Sóstenes. Magoado e machucado, um dia ele resolveu
acabar com Paulo. Agarrou-o e o levou perante o pró-consul da Acaia – Gálio
– e fez acusação formal. Gálio, depois de ouvir as acusações, perguntou: Essa
não é uma acusação religiosa? Tem algo a ver com o Império Romano? Ele
transgrediu alguma lei romana? É uma questão judaica dos livros de Moises? É
isso? Então, não tem nada a ver comigo. Podem sair da minha corte.
9
Quando Sóstenes viu que a causa entrava em estado de falência, retirou-
se. E as pessoas que foram com ele, apoiando-o, para ver o fim de Paulo, ao
verem aquilo, frustradas e zangadas, agarraram Sóstenes na saída do tribunal
e o espancaram. Foi um corredor polonês. Paulo ficou mais alguns dias entre
eles e depois se retirou.
O texto que lemos é endereçado a esse ambiente, onde se tem um
grupo chamado secular, na sociedade mais ampla de Corinto, extrema-
mente frouxo, livre – do ponto de vista de qualquer que fosse o critério
de comportamento melhorado –, entregue ao hedonismo, ao prazer, às
pulsões do desejo contínuo, e que ainda misturava o culto ao prazer com
o culto aos deuses, de modo que sexo e divindade estavam sacralizados
como uma possibilidade presente, contínua e normal, de um lado. De
outro lado, havia uma comunidade de judeus amargurados, presentes. E
ainda havia uma nascente comunidade de discípulos, que ouvia a palavra
há um ano e meio. A carta nos fala de três tipos de seres humanos. Paulo
diz que quando esteve entre eles, estava em fraqueza, vinha de problemas
anteriores e de ameaças. Quando chegou, foi levado para situações de
hostilidade, fora expulso, seu coração sentira medo. Foi então visitado
por uma consolação de Deus durante uma visão à noite, que dizia: Paulo,
não temas, porque eu tenho muita gente nessa cidade. Então, seu coração
se animou a continuar.
Paulo, então, afirma: Vocês viram que eu estive em fraqueza, por isso,
quem creu em Jesus não creu pela argumentação filosófica que eu fiz.
A minha persuasão não era para esmagar filosoficamente a mente das
pessoas; era tão-somente o anúncio do Evangelho. Não tinha relação
com lógicas ou sabedorias humanas. Era o rolo compressor da verdade.
E foi assim que eu estive entre vocês – pregando a palavra. E o que eu
compartilhei com vocês não foram invenções minhas; foram coisas reve-
ladas que nunca antes tinham subido à mente de ninguém, nunca antes
tinham sido vistas ou ouvidas por ninguém. Não foi produto de qual-
quer elaboração humana ou filosófica. Ao contrário, eu falei daquilo que
está para além da capacidade humana de produzir com a própria mente
ou com seus próprios recursos. O que eu disse foi revelação de Deus. O
que eu recebi como revelação do Espírito eu compartilhei: o Evangelho
puro e simples.
10
E Paulo continua: Vocês viram que o que aconteceu como reação, como
ódio, como hostilidade, como prisão, como ameaça, que tudo que eu en-
frentei naquele período – entendam agora – é porque o homem natural,
psíquico, almático, que vive na cidade de Corinto, sem Deus, é apenas um
ser que responde às pulsões da alma, do corpo; da química orgânica, ou dos
surtos mentais; dos cultos aos deuses dos valores falsos, ou dos desejos proje-
tados como fantasia, e que são buscados como se fossem capazes de realizar
alguma coisa. O homem natural, o homem do instinto, que habita em volta
de vocês, me ouve e diz: O que esse homem está dizendo é loucura. E para
esse homem é loucura mesmo. Ele não tem o software1 do espírito. Ele está
parado em um estágio que é apenas superior ao do chimpanzé, mas não tem
consciência de um humano tomado pelo Espírito de Deus. Está apenas con-
tido nas limitações daquilo que, quando se eleva, vai no máximo ao teto da
capacidade de discernimento intelectual; não passa disso. E como estamos
falando de coisas de Deus, ele se estagna nesse teto de si mesmo, porque
quando se trata de Deus, vem de Deus a revelação. Não será o homem que
construirá a escada desse acesso sozinho. Por isso, para tanta gente, o que eu
falei foi loucura.
Há também entre vocês o homem pneumático, o homem espiritual, o
homem que teve a chama do espírito acesa pela palavra, e que não reagiu
a ela apenas com os impulsos que pudessem brotar de pulsões ou de anta-
gonismos do coração. Não. Houve entre vocês aqueles que, em tendo sido
expostos à luz do Evangelho, deixaram-se iluminar; e amaram a luz que re-
ceberam, e foram iluminados nos seus espíritos, e transcenderam a dimensão
do homem apenas psíquico, apenas almático, apenas psicológico, apenas im-
pressionável por discursos, ou falas, sinais, manifestações sobrenaturais, ou
apenas por sua própria capacidade mental e intelectual. Houve, entre vocês,
aqueles que discerniram que, se é de Deus, a viagem somente pode ser feita
pela fé. Não como algo que façamos com as emoções da alma, mas como algo
que somente pode ser atingido se o voo for feito no espírito. E o espírito se
levanta para essa conexão em Deus somente se for pela fé, em confiança, em
entrega que não faz da própria mente teto para nada; que viaja com a mente
até onde a mente pode ir, mas onde a mente para, nem por isso o indivíduo

1. Programa de computador

11
para, porque a viagem da fé no espírito transcende o limite da própria mente.
Esses discerniram. Conferiram coisas espirituais com coisas espirituais, estão
crescendo, progredindo. Não estão parados.
E Paulo vai além: Mas também entre vocês, além do homem psíquico,
e do homem pneumático, eu também encontrei o homem carnal. O ho-
mem somente orgânico, o discípulo amestrado, aquele indivíduo que já não
é apenas entregue a pulsões imediatas do que o instinto produz, das pulsões
largadas e soltas da alma, mas que também não se tornou ainda o homem
pneumático – aquele indivíduo que já deu preferência, prioridade e razão
àquilo que se estabelece como revelação de Deus na sua palavra, e que é para
ser colhido, comido, absorvido no espírito. Ele dá razão a Deus mesmo que
na sua mente pare o processo de entender, porque o caminho inteiro é de fé.
Aí esse homem diz: Aqui eu paro, mas nem por isso fico; eu continuo porque
sigo crendo e confiando.
Vi, entre vocês, o boneco de carne, o homem carnal, que saiu da sinagoga
e disse que é discípulo de Jesus. Já não se pode mais dizer que ele é um ser
apenas completamente do instinto, porque ele já tem algum discernimento,
alguns lampejos, mas também não se pode dizer que ele se entregou à luz
do espírito, ou que o desejo dele é seguir dando razão a Deus em tudo e se
submetendo, pela fé, à palavra da vida. Não. Ele está como um ser mutante
no meio do caminho. Já não é o homem natural, mas ainda não se tornou o
homem espiritual. Esse homem é um boneco de carne andante, um discípu-
lo orgânico. É o que Paulo diz. Esse homem é alma vivente, por isso ele diz
gostar de reunião onde o fogo cai. E isso não é sintoma de homem espiritual.
É sintoma de homem carnal.
No meio evangélico, isso é louvável. Igrejas são divididas pela carnalida-
de. Aquele homem que aparece somente no dia em que o fogo estiver caindo
é o homem carnal. Ele não discerne as coisas espirituais. No máximo, ele
está sujeito às impressões dos sentidos. A diferença é que os seus sentidos
dele impressionados pelas coisas supostamente de Jesus. Mas ainda nem é
por Jesus.
Ele ficaria feliz se eu colocasse a mão sobre a cabeça de alguém e essa
pessoa estrebuchasse. Aí ele diria: Meu Deus, o fogo começou a cair. Ale-
luia! E eu seria o Caio Hinn. Esse homem se tornou um otário de Deus,
enganado por todos, seguindo todo vento de doutrina. Se tiver um arrepio
12
– especialmente na semana do carnaval, o inconsciente dele ainda tem as
memórias de tempo de mais agitação de samba no pé –, ele já aproveita
o carro alegórico. Mas é apenas um boneco de carne. Discípulo do orga-
nismo. É ainda um ser sob as leis de Pavlov, debaixo das perspectivas do
comportamento. Ele quer que alguém diga: Não ponha o pé ali, pois ali
o chão é amaldiçoado, coloque aqui. Ele quer um chão marcado, porque
ainda é apenas um ser orgânico. O máximo que entende de Deus é que
ser de Deus é ser domesticado. Por isso ele arranja os álibis para a sua
indomesticabilidade. Então ele diz: Eu sei que já precisava estar melhor
de comportamento, mas não consegui ainda porque são anos e anos de
pau que nasce torto morre torto. Mas já estou tendo a coragem de achar
que posso desentortar. E se acha o máximo em ser um boneco de carne de
Deus. Um organismo batizado, que come hóstia, ou pão de ceia, ou bebe
vinho de eucaristia.
Paulo disse: Eu não vos pude falar como a homo psychikos, ou como a
homens espirituais, homo pneumatikōs; ao contrário, eu falei como a homens
carnais. Vocês são máquinas carnais, orgânicas, caminhando sob condicio-
namento. O Evangelho não passou da crosta da moralidade; ainda habita o
superego. Não entrou no espírito, não se plantou no íntimo, ainda está na
camada do “pode ou não pode”, nos conflitos do comportamento, não se
fez verdade na essência do ser gerando consciência. Por isso, eu dei a vocês
apenas leite. Vocês estão no Molico, no Ninho básico, no Nestogeno. No
Nan, o leite mais infantil. Vocês são gente do Nan para sempre. Discípulos
do Nan. Bonecos de carne. Para o “ser Nan”, o coral2 lhe cai muito bem, já
tem a escadaria própria, não tem para onde sair, já está tudo predefinido. E
do que o homem carnal precisa é de predefinição; do contrário, como ele não
tem consciência própria, fica perdido.
Paulo fala, então, dos sintomas que evidenciam que Corinto está cheia
de homem natural. Existem alguns homens espirituais, mas, em relação aos
de Corinto, ele estava falando apenas com bonecos orgânicos, discípulos do
comportamento, e não com seres que têm consciência pessoal em Deus. Os
sintomas são evidenciados no fato de que superabundam os ciúmes, as in-
vejas, as contendas, as intrigas, os ódios, as raivas, as demandas, as cobiças,

2. Não tenho nada contra corais. Meu filho é maestro e cantor de coral.

13
os caprichos, as venetas, os partidos, as partições, as divisões, as preferências
infantis. Todas essas coisas que se manifestam entre os de Corinto.
E qual é a relação com a nossa realidade? O que isso tem a ver conosco hoje?
O fato é que, aqui entre nós, há o homem natural, há o homem carnal e há
alguns homens espirituais. Entre nós há pessoas que não passaram do cami-
nho do chimpanzé. É um símio que evoluiu, um mamífero domesticado, um
animal intelectualizado, é uma aberração da natureza que recebeu diploma de
alguma coisa e que caminha, todos os dias, com a certeza e impressão de ser
superior ao resto da criação, ao resto da natureza, apenas porque tem a capa-
cidade de construir prédios, de fazer cálculos matemáticos precisos. Por isso
pensa que se tornou um homem. No entanto, não passa ainda de um homo
psychikos, de um indivíduo que, se o dia amanhecer legal, quem sabe ele fique
bem; mas se alguma coisa de ruim acontecer, ele estará destruído para sempre.
Se alguém disser que ele é amado, ele sai dizendo que é o máximo; mas se
outra pessoa disser que ele é um zero à esquerda, ele se torna o que disseram
a ele. É apenas um ser sujeito às pulsões e manifestações do ambiente. Nada
nele é maior do que o que o cerca. Nada nele transcende aquilo que o impac-
ta. Nada nele é uma âncora que o deixe fixo em um chão de vida. Ele quer ser
discípulo porque Jesus é poderoso. Esse homem não passou ainda da fase do
boneco de carne. É daquele tipo que diz que é de Jesus e não de Buda, porque
Buda nunca curou nem uma mosca, e Jesus curou muita gente, até ressuscitou
pessoas de entre os mortos. É aquela fase de quem tem mais poder, de quem é
o Hércules, de quem levanta mais peso. Maomé não conseguiu. Jesus ganhou
a olimpíada dos deuses. Por isso ele é discípulo de Jesus. Mas esse é somente o
indivíduo da olimpíada. Ele diz que é de Jesus e não mais dos espíritos e dos
guias que ele seguia antes, porque os outros guias não conseguiram desassom-
brar a casa dele, por exemplo. E ele foi a uma reunião de poder e nunca mais
a casa estalou. Essa é a profundidade, essa é a consciência, esse é o nível. O
que vai continuar a se manifestar dentro dele é o que antes se manifestava. A
assombração parou do lado de fora, mas continua do lado de dentro. Ele se
compara com todos, inveja, se molesta com o sucesso dos outros, se angustia
com o que terceiros possam pensar dele, deixa-se conduzir o tempo todo pe-
las emoções, ou simplesmente por aquilo que, no seu modo de ver, seja um
caminho um pouco melhor, ainda que não seja vida de Deus no coração. Ele
perde a chance de virar um ser do espírito.
14
E o que é um homem pneumático, espiritual? É aquele indivíduo que
tomou a decisão, em Deus, de que não mais será joguete das suas emoções
e que terá uma profunda desconfiança acerca de suas próprias emoções. Vai
colocar, diariamente, seus processos mentais diante da luz da verdade revela-
da no Evangelho. E se esses processos mentais forem condizentes com a ver-
dade do Evangelho, ele os acolhe; mas se estiverem em rota de colisão com o
Evangelho, ele desiste deles. O homem espiritual é aquele que discerne, que
não se deixa levar por impressões imediatas; ao contrário, ele vê coisas espi-
rituais com coisas espirituais, ele vê se o todo faz sentido com o espírito do
Evangelho, com o que Jesus ensinou, que é amor, é alegria, é paz, é verdade,
é justiça, é graça, é reconciliação, é perdão de Deus para conosco e de nós
para com todos os homens. O homem espiritual é aquele que não vê possibi-
lidade de que qualquer coisa que não seja vida de Deus em nele, não seja fé
no coração, e que o que não seja ‘entranhamento’ do amor nosso em Deus e
de Deus em nós, tenha sentido. Ele não se deixa iludir por impressões e nem
por aparências, e desiste de tudo que signifique manifestação de ascendência
sobre os outros pela via das posições e das visibilidades. Ou seja, ele não diz:
Ah, o meu grande sonho é ser levita na casa do Senhor! Não, ele não diz isso
porque quem diz isso é o homem carnal. Quem de fato quer adorar e cantar
não diz isso. A única diferença entre você e o levita na casa do Senhor é que
ele está lá na frente, no palco, e você não. Para o homem carnal o ambiente
é do lado de fora. Não é o coração.
Paulo disse que não falara a eles como homens naturais, pois eles já ha-
viam passado dessa fase, mas também não pôde falar como a espirituais.
Falou como se estivesse falando a criancinhas, a gente do leite, a quem não
podia fazer um desafio ou chamar para uma consciência superior, porque eles
dormiam enquanto ouviam. O indivíduo já começa dormindo.
Eu quero insistir para que você faça a viagem completa; que não pare no
limbo e nem se contente com o fato de já não ser apenas animal vivente,
homem almal, psíquico, homem psicológico, o homem que apenas vive das
emoções. É necessário coragem para fazer a viagem completa, e ao final deste
estudo sobre o caminho do discípulo, ou você terá virado símio, homem
natural mesmo, somente a alminha vivente, parente de capivara; ou então
você terá se tornado o homem espiritual. E o boneco de carne no meio do
caminho vai apanhar até não suportar.
15
Sabemos como será a nossa vida se ousarmos andar no caminho do dis-
cípulo sem enganos, sem rodeios. Não é para cantar “manso e suave Jesus
está chamando”, que dá aquela acalmada, sentimos uma emoção, e então
pensamos que a viagem será gostosa e que vamos colocar nosso pé na es-
teira móvel automática. E que depois será somente abrir os olhos e pronto.
Não. Há que se caminhar. Um passo depois do outro com muita disposição
de andar, porque a nossa vocação é para o homem natural, porque somos
seres de uma ambiência espiritual falida dentro de nós. Somos gente muito
entupida, muito doente. Mas o chamado do Espírito de Deus é para que
nos tornemos gente do espírito, gente que não se abala, que sabe celebrar
o nascimento tanto quanto sabe celebrar a morte; gente que aprende a vi-
ver porque já aprendeu a morrer há muito tempo; que já não teme mais
nada porque não teme a morte, não teme amar, não teme crer, não teme se
entregar e confiar. E, então, vai se instalando em nós um software de uma
consciência no espírito cada vez mais aguda, e vamos nos ‘desabestalhando’,
deixando de ser ‘lesinhos’, começando a ter consciência, a juntar as coisas, a
pensar. Mas não pensar como quem esgota os recursos da mente, mas como
o indivíduo que aprende a pensar no espírito. Pensar no espírito não é pensar
com o cérebro; é não ter teto para as limitações impostas pela lógica. Pensar
no espírito é quando esbarramos na lógica e ainda assim temos as promessas
de Deus asseguradas como afirmação de algo que podemos não entender por
inteiro, mas nos está dito que é – porque a Palavra de Deus assim garante
–, e não ficamos estancados por nosso próprio limite. Ao contrário, pensar
no espírito, andar no entendimento em fé, nos põe para além de nós, pois é
somente quando, em fé, vamos para além de nós é que saímos desse estado
que em nós está contingenciado: ou de homem natural ou de homem carnal.
Porque o chamado para ser um homem espiritual é uma anomalia em relação
à natureza das coisas à nossa volta.
Por isso é que Jesus falou do caminho largo e do caminho estreito. O ca-
minho largo é o caminho do homem natural, do homem carnal. É onde cabe
tudo. O indivíduo vai se estiver sentindo, ou não vai se não estiver sentindo.
Ele ama porque simpatiza, ou odeia porque antipatiza. Ele gosta porque acha
que pode ter algum proveito, ou não gosta se não vai aproveitar nada. Ele se
dá bem se recebe cócegas de bem-estar, e é capaz de se sentir profundamente
mal se o outro trouxer estiletes de provocação que o deixem em estado de
desconforto. Aí o mundo se acaba.
16
O chamado é para ir além. É para chegar naquele momento da vida em
que, ainda que todas as coisas conspirem de modo contrário, o coração diz
como em Habacuque 3:17, 18:
Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na
vide; o produto da oliveira minta, e os campos não
produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas
do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me
alegro no Senhor, exulto no Deus da minha salvação.

Por isso o caminho do homem espiritual é caminho estreito. Não cabe


tudo nele. Não cabe o ódio pelo ódio, nem ódio de natureza nenhuma. O
ódio nunca se justifica na mente do homem espiritual. Não cabe a inveja,
não cabem os ciúmes, as intrigas, as iras, as monstrificações interiores batiza-
das pela religião. Cabe somente o que for realidade com a qual eu e você pos-
samos nos apresentar diante do Deus da vida, do Deus que é luz e verdade.
Por isso, é caminho estreito, porque vai depurando o ser, jogando para fora
e extirpando o lixo da mente, das emoções confusas, colocando o homem
em um caminho cada vez mais simplificado de confiança e de certeza de que
ele está crescendo não porque esteja evoluindo, mas está crescendo porque
Deus, de fato, está se revelando a ele.
Meu crescimento não é uma evolução minha. Eu somente cresço se hou-
ver uma revelação de Deus a mim; do contrário, o meu caminho é somente
de involução. É por isso que nenhum de nós aqui – em sendo adulto, e ain-
da vivendo uma vida somente natural, desconectada da consciência em fé
que se entrega a Deus em Jesus – pode dizer hoje, tanto mais adulto quanto
seja, que se tornou um ser melhor do que uma criança de dois anos.Vamos
ficando cada vez piores que nós mesmos à medida que envelhecemos. Ou
você acha que sem Deus o seu melhor está sendo hoje? A menos que seja
parado, interrompido, o processo do ciclo natural, almal, somente orgâni-
co, instintual, entregue a emoções, pulsões, provocações e sentimentos que
nos são gerados de fora para dentro ou se instalam em nós como manias e
vícios nossos de odiar. Enquanto havia um espírito de criança em nós, nós
éramos infinitamente melhores do que aquilo que, naturalmente, nos tor-
namos, A única coisa que nos salva da nossa involução certa é o Evangelho,
e é o que nos tornará pessoas melhores do que, um dia, na infância, fomos.
17
Do contrário, o caminho de todo velho é pior do que quando era criança.
E nós sabemos disso. Eu me nego, todo dia, a pensar que o melhor de mim
já está em mim. Eu peço, todo dia, que o melhor de mim eu sequer tenha
sonhado.
Uns dez anos atrás eu estava tão doído que olhava para trás e pensava que
o melhor de mim tinha acontecido dos 18 aos 35 anos. E que me restava
apenas o pior de mim. De repente, o passado deixou de ser minha coroa ou
meu troféu e, outra vez, o dia chamado HOJE se transformou no meu me-
lhor de mim. E as coisas que estão à frente se tornaram meus alvos a serem
alcançados, que farão de mim uma pessoa infinitamente melhor do que no
meu melhor dia, em qualquer época. Não porque eu vá me tornar bonzinho.
O bonzinho é horroroso. Mas porque, na graça de Deus, eu vá crescer no
amor, na paciência, na esperança, na perseverança, no domínio próprio, na
alegria que não se alimenta de contingências, mas que encontra seu poço e
sua fonte na eternidade do amor de Deus.
Esse é o convite de peregrinação que se faz ao discípulo de Jesus. Na caminha-
da com os discípulos, o que Jesus, sobretudo, queria era que a palavra entrasse na
mente, no coração, pois se ela se instalar aí será uma consciência que caminha
sólida e que na hora em que os problemas surgirem, o indivíduo vai perguntar:
Para quem irei? Aprendi que somente tu tens as palavras de vida eterna.
Você quer, realmente, andar no Caminho do discípulo? Quer aprender
a não se tornar uma pessoa que dependa do que os outros pensam de você?
Quer ser uma pessoa que não seja tão vulnerável às energias negativas de ter-
ceiros? Quer ser uma pessoa em quem somente a consciência do Evangelho
defina o seu passo? Quer se tornar uma pessoa que continue intacta na sua
mente, mesmo que a pessoa que você mais admire no Evangelho fracasse, su-
cumba? Essa é a diferença entre meninos e homens, entre o homem natural e
o homem espiritual, entre o homem carnal e o homem maduro em Cristo.
O convite não é para ser abobalhado, alienado, anestesiado ou para ficar
sentado no mesmo lugar ouvindo o que nunca se aprende, ou aprendendo
aquilo que nunca se pratica.
O Evangelho chega dizendo: Ou eu me torno vida em você, ou a simples
exposição a mim gerará morte em você. Para uns é cheiro de vida para vida.
Para outros é aroma de morte para morte. Mas é o mesmo Evangelho. Se
acolhido, gera o homem espiritual. Se tolerado, produz o homem carnal. Se
rejeitado, produz o homem natural. Simples assim.
18
Anotações

19
20
1. Quem dizeis que eu sou?

A vida é muito cheia de compromissos, e a maioria de nós não tem tempo


diário para se dedicar a Deus. Não tem aquele lugar secreto acerca do qual
Jesus falou, onde paramos e sossegamos. Não tem esse lugar nem dentro
nem fora do ser. Não tem dentro porque a gritaria interior, o vozerio, é
muito forte, perturbador, agitador. E do lado de fora, ninguém pode esperar
condescendência de um planeta como este, com todas as freneticidades desse
mundo. A maioria não sossega nunca a alma. E o que já é trágico fica pior,
quando continuamos viajando dentro dos nossos pensamentos. Aí, o que
vai sobrar é apenas uma experiência psicológica tênue, quase sem significado
algum. Muito parecida com aquela que teríamos com a reunião do Lyons
Clube do Brasil, do Rotary, ou até mesmo de uma Maçonaria.
É necessário reconhecer a importância de parar a mente, aquietar os pen-
samentos, focar tudo em Deus, no trabalho da Graça em nós, na tentativa
de se recuperar o mínimo de consciência em fé e de disposição de debruçar o
ser no altar da verdade, de todo o coração, buscando curas, onde as doenças
matam para a morte. E não são as doenças do corpo. São as doenças da alma
e do espírito.
Nossa caminhada deve ser na busca da consciência do significado do dis-
cipulado em Jesus.
O Caminho da Graça é apenas uma trilha histórica tênue do Verdadeiro
Caminho, que é Jesus. Não há nada mais importante do que o significado de
ser discípulo de Jesus, e nós, de um modo ou de outro, dizemos que somos.
Alguns se jactam de pertencerem a tais grupos denominacionais. Fazem dis-
so uma carteirinha de membro de igreja, transformam isso em diploma de
batismo ou de certidão de casamento na igreja. Outros aferem isso por frequ-
ência a reuniões e por todos esses outros critérios bons para serem praticados
no zoológico, com os animais, quando voltam para as jaulas; mas que não
têm absolutamente nada a ver com o que produz um discípulo de Jesus, no
coração, e consequentemente no todo da existência.
O nosso estudo do Caminho do Discípulo começa a partir da leitura de
Mateus 16: 13 a 23.
21
O Caminho do discípulo

Indo Jesus para os lados de Cesareia de Filipe, pergun-


tou a seus discípulos: Quem diz o povo ser o Filho do
Homem? E eles responderam: Uns dizem João Batista;
outros, Elias; e outros, Jeremias ou algum dos profe-
tas. Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou?
Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o
Filho do Deus vivo. Então, Jesus lhe afirmou: Bem-
aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne
e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos
céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta
pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno
não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do rei-
no dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos
céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos
céus. Então, advertiu os discípulos de que a ninguém
dissessem ser ele o Cristo. Desde esse tempo, começou
Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era
necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas
dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas;
ser morto e ressuscitado no terceiro dia. E Pedro, cha-
mando-o à parte, começou a reprová-lo, dizendo: Tem
compaixão de ti, Senhor; isso de modo algum te acon-
tecerá. Mas Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda,
Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não
cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens.

Os discípulos já vinham andando com Jesus há algum tempo, até que che-
garam a este momento da estrada, da jornada, do caminho. Alguns haviam
chegado logo no primeiro momento. Foram convidados por amigos, irmãos,
sócios, para dar uma olhada no que estava acontecendo. Ficaram. Outros
foram separados do grupo e, em número de 12, passaram a ser chamados de
apóstolo, que significa enviado, mensageiro, portador de um recado.
No novo Testamento, esse é um apóstolo. Não é aquele ser com um
anel enorme de bispo ou com uma mitra na cabeça e nem com báculo
na mão. E nem tampouco esse ser bruxuleante e macumbado com o po-
der de amaldiçoar os que não contribuírem financeiramente, deixando-os
sob profunda desgraça até que se arrependam e dizimem para o bolso do
22
Quem dizeis que eu sou?

apóstolo. Apóstolo é um garoto de recado. É um ser muito pequenini-


nho, mas que teve o privilégio de ouvir de Jesus e de reter a palavra. E ele
somente seria apóstolo se fosse apóstolo. No dia em que pregasse outra
mensagem deixaria de ser apóstolo de Jesus. Passaria a ser apóstolo de
qualquer outra coisa.
Portanto, apóstolo não era o título, não era cargo vitalício, não era uma
posição biônica e nem algo fixo. De modo que apóstolo se faz todo dia, se
renova todo dia, se converte todo dia, se reafirma todo dia na medida em
que ele carregue a mensagem inalterada. Portanto, o que faz o apóstolo é a
inalterabilidade da mensagem, conforme quem o enviou. Por isso o escritor
de Hebreus diz que Jesus é o apóstolo das nossas almas, porque ele é quem
carrega esse verbo inteiro de Deus para nós: Estou apenas dizendo o que ouvi
do meu pai. Há o eco dessa declaração, e ela se repete, principalmente, no
Evangelho de João: O que eu tenho ouvido, eu tenho falado. O que ouvi, te-
nho dito. Conforme meu pai me disse, assim digo; conforme meu pai julga,
assim faço. Mas é do Pai. E eu não posso alterar o que aquele que me enviou
me deu para dizer.
E Jesus diz: Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. Do mes-
mo modo como eu trato a mensagem que o Pai me deu, tratem a minha, re-
produzam a minha; caso contrário, vocês estarão divulgando qualquer outra
mensagem, sendo apóstolos de qualquer outra mensagem, mas já não serão
os enviados do Evangelho.
Então, esse grupo que está à volta de Jesus é formado por essas pessoas
que haviam começado a crer desde o início, que se achegaram por vias di-
versas, mas que receberam um único convite e uma única possibilidade de
discipulado. Quando, no início da jornada, lhe perguntaram: “Mestre, onde
assistes?” – era um curioso que queria saber o endereço da reunião, onde fica-
va a sinagoga do Senhor, onde estava instalada a escola na qual o Senhor pre-
gava; queria um endereço fixo –, Jesus então responde: “Vinde e vede”. Ele
não tinha nenhum endereço a dar. Ele não poderia dizer que era em Belém
ou em Jerusalém, que seria em Nazaré, nem que toda quarta-feira ele estaria
em Cafarnaum. Ele apenas disse: Se alguém quiser ser meu discípulo, venha,
veja e siga-me, porque o Tabernáculo é móvel, é andante, é caminhante. E se
alguém tem, de fato, a intenção de ser meu discípulo, fique sabendo que não
existe fixidez no discipulado.
23
O Caminho do discípulo

Não existem geografias fixas nem ambientes que sejam únicos, porque,
para ser discípulo de Jesus é necessário segui-lo nos veios, nos singramentos,
nos cortes, nos canais; nas trincheiras, vales, penhascos, planuras, planícies e
planaltos; nas regiões abissais. Ele diz: Onde quer que eu esteja indo, aí será
o caminho do discípulo. Por isso, venha e veja.
Portanto, não estamos falando de algo que acontece em um lugar de
reuniões. Estamos falando de algo que somente pode acontecer um dia de-
pois do outro, de modo consciente e lúcido, entre a hora em que se acorda
e a hora em que se dorme. Mas também de modo inconsciente e aberto à
palavra, até quando se dorme. É algo para o todo da vida, sem interrupção,
sem férias, sem dias santos para santificarem os caprichos do nosso egoísmo,
da nossa mesquinharia. É um convite para toda hora, para todo o tempo. É
uma jornada sem paranoia e sem neurose, porém de renovação automática,
constante, da mente; de suspeição permanente a respeito das mudanças sutis
e desviadoras do nosso próprio pensamento em relação ao Evangelho. De
modo que todo dia, muitas vezes por dia, teremos de trazer os pensamentos,
as emoções, as opiniões, as fixações dos desejos, ao crivo do Evangelho, à
palavra da vida.
Então, esse é o grupo que vem andando com Jesus. E em Mateus 16:1-12
se diz que Jesus inicia fazendo a eles uma advertência em relação aos fariseus
e aos saduceus. Cuidado com eles.
Os saduceus eram, em geral, oriundos da classe sacerdotal de Israel e for-
mavam também um partido político de centro-direita, aliado sempre com
Herodes e com as linhagens herodianas, consequentemente, com os roma-
nos. Porque interessava a eles a manutenção do seu próprio poder como
controladores do templo em Jerusalém, como também do ofício, do rito, da
arrecadação. Era onde rolava a grana. Era onde os fariseus queriam estar: Na-
quele ambiente religioso de muito controle, de muita sobriedade sacerdotal,
de muita pompa, de muita manifestação de importância e de imponência.
Uma elite política que se relacionava com os poderosos que controlavam o
país. Tanto os pró-consules romanos indicados quanto aqueles que fossem,
eventualmente, os reis postiços de Israel, como os Herodes conseguiram ficar
durante um período de, praticamente, cem anos.
Então, Jesus diz: Cuidado com os saduceus, acerca de quem o Novo Tes-
tamento diz ser um grupo que não cria em nada. Não criam em anjos, em
24
Quem dizeis que eu sou?

espírito, em demônios, em diabos, na ressurreição dos mortos. Eles “mal-


mente” criam em Deus. Assim eram os saduceus. Em geral, é o que acontece
com os indivíduos que se tornam os discípulos do templo, das mecânicas
que, supostamente, realizam o bem pela própria realização do rito em si,
como máquina de agradar a Deus.
E Jesus dizia também para tomar cuidado com os fariseus – um grupo de
centro-esquerda que mantinha uma relação tensa com o poder do templo,
com o poder romano, mas nem tanto, porque eles não queriam bater de
frente e nem ser esvaziados de poder. E o poder deles era oriundo do zelo,
da ortodoxia, do literalismo, do moralismo, do behaviorismo, tudo segundo
a Lei de Moisés. Eles iam aos extremos de detalhamento, de tentativa de
encarnação legal e cerimonial das descrições da Lei. Isso fazia deles esses seres
carregando caixinha de couro na testa com pedacinhos da Lei, com pedaços
da Lei amarrados nos braços, com a Lei presa na porta da casa e em tudo que
é lugar. Andavam repetindo a Lei o dia inteiro, tentando cumprir os man-
damentos ensinados por Moisés a respeito de como deveria ser a conduta do
indivíduo que temesse a Javé, ao Deus de Israel; com todas as cerimônias, je-
juns, dízimos, e todas as invenções que eles pudessem criar para se tornarem
mais justos do que a justiça.
Então Jesus diz para se ter cuidado com os saduceus, que é esse polo dessas
presenças mecânicas de Deus, sem vida, sem espírito, sem ressurreição, sem
transcendência, sem glória divina no espírito, sem alegria no espírito, sem
paixão, sem milagre. Também cuidado com o zelo dos fariseus que vivem
de um legalismo que inviabiliza a existência e que os torna seres somente da
fachada, porque, do lado de dentro, eles sabem que não conseguem cumprir
os rigores da Lei.
E como eles sabem que, na subjetividade, eles não conseguem, o que
fazem é apenas a construção de uma máscara hipócrita. Hipocrisia significa,
de fato, máscara. Então, Jesus diz: Cuidado para que vocês não fiquem mas-
carados como os fariseus, nem desapaixonados como os saduceus.
Ele faz essa advertência, logo no início, dizendo o que um discípulo não
tem de ser nunca. Não tem de ser esse indivíduo que de Deus guardou lem-
branças, álbuns, figurinhas, souvenires, e que também não desiste de frequ-
ências, de regularidades, vivendo a devoção dos hamsters nas repetições que
não levam a lugar nenhum. E nem tampouco sejam desses que vivem de
25
O Caminho do discípulo

projeções, afirmações, declarações e abusos de poderes espirituais, de supe-


rioridades morais e de culto a si mesmos, como os fariseus. Porque, no fim,
isso constrói apenas um ser que não é. Apenas tira a alma, mata a verdade no
íntimo, destrói a sinceridade.
Para Jesus, é conforme aquele seu gesto ao amaldiçoar a figueira que esta-
va cheia de folhas e não tinha frutos, porque não era tempo de frutos. Quem
conhece um pouco da botânica da Palestina sabe que o que ele estava dizen-
do é que a figueira dá primeiro os seus frutos, depois é que aparecem as suas
folhas. De modo que, quando uma figueira está cheia de folhas, é porque
ela já está entupida de frutos. Portanto, quando ela tem folhas, mas não tem
fruto nenhum, ela é farisaica. É como Israel nos dias de Jesus. É a figueira
cheia de folhas, mas que não tem frutos. Essa morre. Essa recebe a profecia
da hipocrisia e seca. Para ele, é melhor uma figueira verdadeiramente pelada,
mas honestamente figueira, do que uma toda vestida de folhas e sem fruto.
Para Jesus, o que interessa não é a aparência, não é o fruto. Uma figueira pe-
lada tem chance, no tempo próprio, de dar o seu fruto. Uma que conseguiu
inverter a ordem, e dar primeiro as folhas e nunca apresentar seus frutos,
essa se tornou híbrida de uma perversidade inconversível que somente vai
endurecendo mais o coração.
Então, esses discípulos chegam aqui neste ponto em que lemos, em Ma-
teus 16:13, indo para Cesareia de Filipe, para o norte do país, na direção do
monte Hermon, nas nascentes do Jordão, tendo ouvido de Jesus, anterior-
mente, de maneira enfática, essas duas afirmações: Cuidado com a doutrina
dos saduceus, cuidado com a fé que é somente plástica, mecânica, rito, que
é somente frequência, que é unicamente comportamento. E cuidado com
aquela que se transforma apenas em demonstração exacerbada, agigantada,
neurótica, paranoica, de uma espiritualidade que não é verdadeira, que acaba
gerando apenas casca e máscara.
No verso 13, lemos que eles estavam indo na direção das bandas de Cesa-
reia de Filipe. Depois desse contexto, Jesus pergunta aos discípulos: “Quem
diz o povo ser o filho do homem”? Eles respondem: Uns dizem ser João
Batista (não explicam como); algumas pessoas acham que o Senhor está re-
cebendo João Batista. Outros dizem ser Elias, que o senhor é a reencarnação
de Elias, e está aqui tomado pelo mesmo espírito, pelo mesmo poder, para
ser um grande reformador, um religioso de Israel, um purificador da nação;
26
Quem dizeis que eu sou?

que ainda vai reunir todos no monte do Templo e dizer: Escolham hoje a
quem vocês servem – ao Senhor, ou aos romanos? E o Senhor vai disciplinar
quem pensar diferente. Muita gente tem essa expectativa de que o Senhor
é Elias. E tem de chegar com arsenais melhorados e mais fortalecidos, não
pode ser uma bolinha de fogo para destruir o altar, tem de ser uma bola nu-
clear para acabar com os romanos. Outros dizem ser Jeremias, por esse tom
de pregação profética sobre a destruição do Templo e por não dar a menor
importância para os significados das construções e nem para o poder que os
judeus conseguem arregimentar nos conluios com os romanos. O Senhor
está sempre avisando e dizendo que os dias são maus e que se não houver
conversão todos perecerão. Por isso, as pessoas dizem que o senhor se parece
com Jeremias, anunciando o exílio, o cativeiro, ou uma desgraça. Deve ser
Jeremias andando entre nós. Carregando um choro ambulante por Israel. E
há ainda os que dizem ser o senhor qualquer um dos profetas.
E Jesus diz: Mas agora eu quero saber o que vocês, os enviados, os após-
tolos, os discípulos, esses que eu estou enviando para pregar, dizem quem
eu sou. Olhem bem e digam quem eu sou, mas não deem uma resposta
evangélica.
E qual seria essa resposta? Ah, o Senhor é filho de Maria. E ela era vir-
gem quando o Senhor nasceu. E vieram anjos e cantaram; vieram magos do
Oriente. O Senhor nasceu em Nazaré.
Não, a pergunta de Jesus não era sobre genealogia, currículo ou pedigree.
A pergunta era simples: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Quem sou eu para
vocês? E Pedro tomou a palavra e disse: Tu és o Cristo, o Messias, o prometi-
do, aquele enviado que viria da tribo de Judá. És a promessa cumprida a Davi
de que, da sua descendência, viria aquele cujo reino é eterno. Tu és o eco do
grito de Miquéias de que viria o Cristo, cujas origens eram de antes da funda-
ção dos tempos. Tu és o sonho de Isaías, o amor e a paixão de Deus entre os
homens, o Messias, o enviado inteiro de Deus. Tu és o Filho de Deus, que em
Israel equivalia a dizer: Tu és Deus. Porque, de acordo, com Caifás, o sumo
sacerdote que julgou Jesus no final, a acusação que prevaleceu para o decreto,
a sentença final de morte, foi esta: Ele se diz Filho de Deus, fazendo-se a si
mesmo igual a Deus. Esta era a interpretação judaica.
Portanto, quando Pedro disse “Tu és o Messias”, até ali estava tudo bem.
Ainda que alguém não concordasse, era uma esperança de Israel que alguém
27
O Caminho do discípulo

o fosse. Mas ele vai mais além. Ele pega Miquéias e afirma que o Messias, de
fato, é eterno. E Jesus disse que ele era feliz. Simão, tu és um homem bem-
aventurado, porque não foi carne nem sangue, não foi intelecto, teologia,
junção de imagens, não foi concatenação, nem a capacidade de elucubrar,
não foi a filosofia, nem a autoiluminação, não foi a autogenialidade, não foi
nada disso quem to revelou estas coisas.
Discernir o que Pedro discerniu é impossível pela teologia, pela filosofia.
E os teólogos tinham de ser honestos, como os sacerdotes judaicos, e dize-
rem que, de fato, era um escândalo afirmar que, quem quer que fosse, fosse
Deus. Os teólogos tinham de admitir que, por nenhuma teologia se chegaria
à conclusão de que aquele que estava ali – com um metro e setenta, mais ou
menos, moreno ou claro, cabelos grandes ou curtos, com cheiro de macho –
era Deus. Não dava. Pela teologia não dava. Seria a idolatria dos sentidos, de
acordo com Israel: “Ouve, ó, Israel, o Senhor nosso Deus”.
Não apareceu com nenhuma aparência, ninguém viu nada. Imagine che-
gar alguém aqui e dizer:“Eu e o pai somos um”. Pela teologia é heresia. Pela
filosofia é loucura. O criador do cosmo e de tudo o que existe vai virar um
carinha deste tamanho andando entre nós, compactando o Eterno, no tem-
po e no espaço, dialogando com os homens? Loucura! Não existe tal coisa.
Por qualquer que seja o meio, a via, não existe tal coisa.
Pedro, não foi carne e nem sangue que to revelaram essas coisas, mas meu
Pai que está nos céus. Porque isso vem somente por revelação do Pai, não
vem por cogitação humana, nem por elucubração e nem por qualquer outra
coisa ou outro meio.
E se alguém diz: Não, eu nunca tive esse problema, eu já nasci crendo. Eu
diria que esse é um grande equívoco seu. Ninguém nasce crendo. Ninguém.
Nenhum de nós. Porque carne e sangue não produzem isso. Genética, berço,
nada produz isso. Pai e mãe não geram isso. Não nasce da carne e nem da
vontade do homem. Nasce somente do Espírito.
Então, ser discípulo de Jesus é algo que começa com a invasão do so-
brenatural na nossa vida. Do contrário, se é discípulo do cristianismo, dos
evangélicos, dos católicos, dos espíritas kardecistas que leem o evangelho
antes da sessão começar. Discípulo de qualquer coisa, menos de Jesus. E é
impossível ser discípulo de Jesus sem conhecer Jesus. Nesse caso, não é disci-
pulado de Jesus, mas presépio de discipulado, que é o que a religião oferece
28
Quem dizeis que eu sou?

e nós compramos de maneira iludida e equivocada. Porque o discipulado de


Jesus somente começa quando recebemos uma invasão definitiva da luz da
revelação. Quando ela entra, então o absurdo se instala e nós nos tornamos
filhos da loucura, discípulos do escândalo. Então, podemos dizer que, diante
de nós, encarnado como homem, no tempo, no espaço, na história, com
todas as implicações disso, estava Jesus e que Jesus é Deus. Dizer isso sem
ser por repetição do pai, da mãe, da vovó, do padre, da catequese, do cate-
cismo, mas dizer por uma convicção que poderia nos colocar nas portas do
céu ou do inferno, na glória ou no abismo, sem nosso ser poder negar esta
manifestação.
Como Dostoievski disse – preso, quando alguém insinuou algo sobre o
fato das circunstâncias serem tão perversas à volta que a única concepção
possível seria algo ateu em relação a Deus –: Olha, se alguém me disser que
Deus não existe, que não existe céu, nem inferno, que Jesus não era quem di-
zia ser, que os Evangelhos foram uma construção humana, ou esteja provado
que assim fora, o que existe dentro de mim é maior do que a crença em Deus,
do que recompensas celestiais ou pavores infernais; o que existe dentro de
mim nunca teve seu amparo na opinião de teólogos. Se alguém me dissesse
isso, eu diria: Fique com Deus, com céu, com inferno, com tudo; eu sigo
sozinho, sem Deus, sem céu, sem inferno, sem nada, mas com Jesus.
Alguns pensam que ele está dizendo que é possível tudo o mais sem Jesus.
O que ele, de fato, está dizendo é que tudo o mais não é possível sem Jesus.
Que Jesus é tudo. E isso entra em nós somente como revelação do Pai. Do
contrário, aprendemos doutrinas, catecismos, discutimos com testemunhas
de Jeová, com espíritas, com adventistas, com católicos, discutimos na uni-
versidade, brigamos no trabalho, nos estressamos com vizinhos, defendemos
Deus, ofendemos os ídolos, fazemos tudo o que crente faz, sem nunca ter-
mos nos tornado discípulos de Jesus.
Um indivíduo assim tem medo de morrer, pois ama muito mais a pre-
sente ordem de coisas do que a esperança da glória de Deus. No seu coração
não está fixada a certeza da vida, conforme o Evangelho, apenas a certeza da
conveniência social de um bom comportamento proposto pelo Evangelho,
mas na hora que o médico diz: Sinto lhe dizer, você está com câncer, aí a fé
acaba. Ou quando o médico diz: Seu filho está com AIDS. Nesse momento,
esse indivíduo diz: Ai, Deus, por que o meu filho? E começam as questões,
29
O Caminho do discípulo

que deixam de existir somente quando a alma for estuprada pela bondade de
Deus, pela revelação de Deus, quando for emprenhada pela Graça que diz
sem medo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
Essa não é uma declaração para os outros e nem para fora. Não é uma
tentativa marqueteira de divulgar Jesus. É um cara a cara com Deus, dizendo:
Para mim, Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Depois ele mesmo iria dizer,
quando muitos o abandonaram: “Não quereis vós também retirar-vos”? E
Pedro respondeu: “Para quem iremos? Somente Tu tens as palavras da vida
eterna...”.
Discipulado somente começa quando se instala dentro de nós o “somente
tu” em relação a Jesus. Sem o “somente tu”, em relação a Jesus, não há disci-
pulado. Com “também tu”, ou “tu maior que os demais”, ou “tu melhor que
os outros”, ou “tu superior aos outros”; ainda que tenha “os outros”, mas não
“tu”, com Jesus é “somente tu” e nada mais.
O discipulado está plantado em nós quando começa a confissão de quem
ele é, e vai se concluindo todo dia com as afirmações que vamos fazendo
contra todos os dissabores, contra os choques, contra os escândalos, contra
tudo que não se entende de imediato, contra tudo que nos parece ser uma
manifestação de esticamento do nosso ser, mas ainda assim permanecemos
dizendo: Para quem, para quê e para onde se para mim “somente tu”? A
primeira coisa, portanto, é que o caminho do discípulo começa somente
quando existe essa revelação que explode no nosso interior.
Paulo falou a respeito deste momento-revelação com algumas figuras de
expressão bem interessantes. Primeiro ele associa esse “somente tu” de Deus
na vida dele, essa luz que chega, que ilumina, com a criação do mundo. Por-
que ele andava pela estrada de Damasco, quando uma luz brilhou do céu.
Quando ele veio a escrever, posteriormente, a respeito disso, fala de um Deus
que, das trevas, disse: “Haja luz”. E houve luz e fez resplandecer em mim a
iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo Jesus. O
que aconteceu comigo, quando essa revelação chegou, era como a terra no
princípio, sem forma e vazia. Existente, mas não vivente. E a palavra de Deus
chegou e Deus disse: “Haja luz”. E de ente existente passei a ente vivente,
afirma Paulo.
Outra imagem que ele usa é a de um coração represando, resistindo: en-
tão superabundou, então transbordou, explodiu a Graça de Deus. E a pa-
30
Quem dizeis que eu sou?

lavra grega que ele usa é justamente aquela que designa o arrebentamento
de uma represa que estava contendo aquilo tudo e arrebentou, estourou. A
Graça prevaleceu.
A terceira imagem é a de um parto, quando ele diz, em I Coríntios 15,
que – diferentemente dos demais apóstolos que tinham encontrado Jesus,
enquanto ele andava por aqui – ele veio a encontrá-lo como um nascido fora
de tempo, fora de hora, quando Jesus já não estava. E Paulo diz que nasceu
como um nascido fora de hora usando um termo que designava um parto
difícil, de uma criança em sofrimento, de uma mãe que não conseguia dar à
luz e precisava da ajuda de parteiras que arrancassem a criança com as garras,
com fórceps, puxando para fora.
Para Paulo fora um nascimento provocado por trauma, por arrancamento de
Deus para fora. Essa imagem, juntamente com muitas outras, mostra uma coisa
que, na mente de Paulo – à semelhança do que deve existir na mente de qualquer
outro discípulo – não se inicia esse caminho sem que se seja invadido pela reve-
lação. Se não for assim, ninguém nasce. É ato de Graça amorosamente estúpida.
É Graça forçando a resistência, que arrebenta a represa. É luz que chega e vitaliza
uma terra sem magma, sem pulsão, uma terra pedrada, rochosa, uma terra que
não produzia vida. Sem essa luz, sem essa Graça, não há criação, nada acontece.
A primeira coisa que precisamos fazer, iniciando essa jornada, é perguntar
de quem somos discípulos. Somos discípulos das muitas catequeses? Precisa-
mos muito estar junto com os outros crentes, porque, se ficarmos um pouco
afastados perderemos a fé? Você é do tipo que se converteu e rompeu com
todas as amizades, com o chamado mundo, senão jamais iria caminhar na fé?
Daquele tipo que se ficar exposto a pensamentos muito diferentes se sente
muito angustiado porque parece que as convicções estão sendo roubadas?
Você é do tipo que fica desesperado quando alguém diz alguma coisa sobre
Jesus que possa parecer que, na mente dele, Jesus se tornará menos desejável?
Ou do tipo que sente uma obrigação enorme de afirmar para si mesmo que
crê nas coisas porque, lá no fundo, não tem certeza da maioria delas? Ou ain-
da do tipo que treme todinho quando vê na internet um link que relativize
a Bíblia como Palavra de Deus, Jesus como Filho de Deus, a fé como meio
único de vida com Deus? É assim?
Se alguém é desse tipo, eu digo que é um discípulo de crenças, de doutri-
nas. Por isso fica tão nervoso quando qualquer coisa chega, aparentemente,
31
O Caminho do discípulo

questionando os pressupostos das suas crenças, dos dogmas nos quais está
amparado. E aí, o coração claudica, balança, se aflige, se perturba. E alguém
me escreve dizendo: Você tem algum artigo que me ajude a não ficar nesta
dúvida? Mas o que ele quer dizer é: Ajude-me, estou para perder a fé!
Alguém aqui é desse tipo? Se é assim, tem muita vela na sua vida. Tem muita
luz de neon, lamparina de terceiros, mas a luz não acendeu aí dentro. Sabe por
quê? Porque a maioria dos discípulos que eu conheço se abala profundamente
com o que os outros pensam Imaginem um Pedro evangélico, andando por aí,
ouvindo aquela conversa do povo? É Elias? Não. É João. Eram primos. Eles até
se parecem. Ele é ousado como João. Não há registro, no Evangelho, de Pedro,
por exemplo, gritando, discutindo. Ele somente ouviu. E repetiu: “Uns dizem
que tu és João Batista, outros dizem que tu és Elias; outros, que és Jeremias ou
algum dos profetas”. Veja que Jesus começa perguntando o que os outros pen-
sam. Depois é que ele pergunta aos discípulos: O que vocês pensam?
O discipulado não começa enquanto as vozes dos outros não deixam de
nos perturbar. Enquanto o que os outros pensam nos perturbam, é porque
não recebemos ainda a luz final que, para começar, tem de ser recebida.
O paradoxo do discipulado é que ele não começa sem que a luz final co-
mece, sem que haja essa realidade final no começo. O discipulado não começa
se ele já não começar acabado, no sentido de que já está definido: Tu és. O
resto é processo em nós. Enquanto o que os outros pensam ou dizem nos per-
turbar demais, o caminho do discipulado não se fincou no coração.

Para refletir
1. Você está satisfeito com o que entende de Jesus?
2. Qual é a razão de Jesus dizer para se ter cuidado com saduceus e fariseus?
3. Que tipo de fé tem o saduceu?
4. Que tipo de fé tem o fariseu?
5. Quais as três imagens que Paulo usa para falar do momento-revelação que dá
início ao caminho do discipulado?
6. Avalie o seu coração e, verdadeiramente, responda: Quem é Jesus para você?
7. De quem você é discípulo?

32
2. A loucura de ser discípulo

A palavra discipulado está muito desgastada, já faz algum tempo, pela


quantidade enorme de ações que acabaram se tornando profundamente ide-
ológicas quando relacionadas ao termo discipulado. Somente no século pas-
sado, muitas ideologias esquisitas foram chamadas de discipulado de ponta a
ponta do espectro. Nos últimos 40 anos, quando tive a chance de, pessoal e
particularmente, assistir a muitas dessas coisas, fui testemunha ocular de como
o termo discipulado acabou sendo aplicado a qualquer coisa que não fosse
ensino do Evangelho segundo Jesus.
Esta é uma expressão que eu gostaria que esquecêssemos um pouco, por-
que muitas pessoas imediatamente a ligam a Watchmam Nee, Witness Lee
e a grupos radicais de discipulado maluco. E a moda mais recente de disci-
pulado, aqui no Brasil, foi o chamado G12. E já deu todo G e todo 12 que
tinha para dar. E as pessoas estão acordando para essa maluquice. O que era
chamado de discipulado, nada mais era que um sistema Amway, Herbalife,
de controle de pessoas, todas conectadas à hidra-mãe na colmeia. No entan-
to, essa rainha-mãe, na maioria das vezes, era uma hidra mesmo.
Esqueçam, portanto, qualquer possível conexão entre discipulado e essas
variadas ideologias que reinaram tanto tempo e reinam ainda, sem falar nas
muitas outras que ainda serão inventadas. De modo que, quando eu falo de
discipulado, estou falando do caminho do discípulo. Discípulo é o indivíduo
que aceita a disciplina do mestre.
A palavra disciplina é oriunda do termo discípulo. Disciplina é aquilo
que ao discípulo chega como mandamento, ensino e instrução do mestre.
Em nosso meio, disciplina ficou relacionada ao cacete, ao coro, à peia co-
mendo solta de acordo com o capricho de alguns desses deuses de homens
que se oferecem, e muitas pessoas os aceitam para serem aqueles que vão
tocar as suas vidas como um pastor nervoso e egoísta, no tranco e no tacão. É
desse modo que eles tangem as suas sofridas e infelizes ovelhas.
Disciplina, no entanto, do ponto de vista do Evangelho, é aquilo que
normalmente tem de acontecer. No dia de hoje, por dezenas de vezes, eu tive
de refazer processos mentais, ou impulsos, ou decisões interiores, ou espas-
33
O Caminho do discípulo

mos de manifestação instintual, porque, quando eles apareceram, eu vi que


não se assemelhavam ao caminho do discípulo. Não era e não é a disciplina
do Evangelho. Era disciplina como formatação externa, moral, behaviorista,
condicionante apenas do comportamento.
Esse caminho, no entanto, tem de ser algo que surge dentro de nós como
princípio estribado num valor que nos foi implantado no coração, pelo fato
de termos aceitado que o caminho da vida é Jesus, que ele é o Senhor da
nossa existência, e que o que ele diz é fato e nós damos razão a ele. Ao fazer-
mos isso – dar razão a ele –, aceitamos para nós o seu modo, o que seja vida
para ele, o que ele chame de caminhar de qualquer que seja a pessoa que,
amando-o e crendo nele, deseje segui-lo. Esse é o espírito do discipulado, é
o espírito do discípulo.
Então, vamos tentar pensar no caminho do discípulo com a mesma
simplicidade com a qual nós pensaríamos se fôssemos contemporâneos de
Jesus, andando com Ele, seguindo-o no caminho.
E alguém poderá dizer: Bom, mas essa possibilidade já não nos é facultada
porque Jesus está entre nós de maneira intangível, imponderável, subjetiva,
espiritual e nós já não temos mais a facilidade de segui-lo olhando para ele.
Eu, pessoalmente, prefiro muito mais a minha condição que a de Pedro.
Prefiro muito mais ter um Jesus que eu não veja que ter um Jesus que eu
veja. E eu explico de modo simples. Conhecendo-me como eu me conheço,
fico muito feliz que eu tenha conhecido Jesus quando ele já era chamado,
por todos, no ocidente, de Deus e Senhor. Fico feliz por eu ter nascido na
época em que a ressurreição era um fato da fé. Fico feliz que tudo o mais já
tivesse ficado para trás e que ele já tivesse sido assunto ao céu diante de todos
os seus discípulos, e que isso já tivesse sido absorvido como uma consciência
espiritual profunda. Por quê?
Paulo disse que para os judeus era escândalo, para os gregos era loucura
e para qualquer sensato também é loucura. E para qualquer um que tenha a
mentalidade dos judeus é escândalo, é inaceitável o fato de se pensar que o
criador de todos os universos possa estar presente numa colônia de parasitas
no intestino do cosmo, que é o lugar onde nós moramos. Esse é o nosso
tamanho. Pequenas giárdias em algum intestino universal.
A loucura é que Deus resolveu fazer essa giardiazinha, ou esse parasita
que anda no meio desses dejetos – que nós chamamos de terra, paraíso –, ter
34
A loucura de ser discípulo

o poder de dizer eu sou. Ganhou o poder de analisar o dejeto, de fazer uma


nave espacial para fora do lugar, viajar e voltar. Mas, basicamente, nós somos
essa caca. Se nós nos compararmos com todos os universos já verificáveis – e
ainda não se verificou nada –, nós somos o que não é. Jean Paul Sartre disse
que ele jamais poderia crer em Deus, porque isso seria uma afirmação con-
tundente da sua zerificação, da sua nulidade, do seu não ser.
Se existe alguém absoluto como Deus, logo, eu não sou. Essa é a consta-
tação sadia que salva. No entanto, Jean Paul Sartre não quis abraçá-la. Então
eu não sou mesmo porque, de fato, Deus é.
Observe a situação de quem estava ali diante de Jesus, andando com
Ele. Apareceu um garoto de 30 anos, pregando coisas estranhas, diferentes.
Referindo-se a Moisés na base do “Eu, porém, vos digo”; estabelecendo
antíteses e contradições em relação ao que estava estabelecido há séculos
e até há milênios; relativizando, em certo sentido, práticas estratificadas,
congeladas e fixadas; curando doentes; realizando feitos extraordinários, de
tal modo que quem quer que o visse não teria muita alternativa em relação
a ele, a não ser imaginá-lo como um profeta.
Jesus perguntou aos seus discípulos – no caminho para Cesareia de Fi-
lipe – quem a multidão dizia ser ele. A multidão dizia ser Jesus uma incor-
poração de João Batista, que acabara de morrer, mas que o espírito dele,
em vez de ir para algum lugar, pousou em Jesus. Então, ele seria um ser
de habitação espiritual dupla. Outros diziam ser Elias que baixou por ali e
que ia botar para quebrar. E outros, que seria Jeremias, por causa do jeito
solidário, compassivo, misericordioso, andando sempre como quem não
quer nada, e também dizendo que não ficaria pedra sobre pedra, olhando
com olhar nostálgico para o futuro da terra. E outros dizem que é algum
dos profetas.
Nessa categoria Jesus cabia com certa facilidade, porque qualquer homem
que se apresente dizendo coisa com coisa, ensino de bom senso, palavra de
misericórdia e de bondade, gesto de justiça, e, especialmente, se a ele se atre-
larem sinais de graça poderosa e sobrenatural, invariavelmente, o povo dirá:
é um profeta.
Mas Jesus não ficou por aí. Perguntou mais: Mas, vós, quem dizeis que
eu sou? E Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Essa
afirmação é uma impossibilidade filosófica, teológica, racional.
35
O Caminho do discípulo

Imaginem! Com que coração, com que mente, com que percepção, ou com
que compreensão de fatos alguém poderia chegar à conclusão de que aquele que
estava diante dele era Deus encarnado, era o Cristo de Deus? E na consciência
judaica – para não falar da fé de Jesus, apenas da fé dos judeus – essa afirma-
ção significava aquilo que o sumo sacerdote Caifás, posteriormente, veio a usar
como critério final para determinar que Jesus era o herege dos hereges. Porque
dizer, ou aceitar que alguém diga, que você é o Filho de Deus – de acordo com
a interpretação mais ortodoxa – era fazer-se a si mesmo igual a Deus. De modo
que, quando Pedro diz “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, ele está catapul-
tando aquele moço de trinta e poucos anos de idade para a direita do trono de
Deus nas alturas, o todo-poderoso. Um serzinho do tamanho dele, parasitaria-
mente do tamanho de Pedro, amebinha na Galileia, de repente, é Deus.
Ser discípulo de Jesus é uma impossibilidade humana. Uma possibilidade
humana é ser discípulo de Buda; isso é totalmente possível. Não se faz nenhu-
ma ruptura radical. Apenas se aceita disciplinas radicais. Não se tem de dar
nenhum grito e nem fazer uma afirmação dessas que tornem toda lógica, todo
bom-senso, toda compreensão, toda capacidade de raciocínio completamente
anulados. Não existe a possibilidade de alguém ser discípulo, de fato, de Jesus
se isso não for uma revelação do Espírito Santo, se isso não chegar ao indiví-
duo como um constrangimento superior a toda lógica, a toda opinião, a todo
bom-senso, a toda possibilidade filosófica de compreensão, porque, de fato,
estará diante de algo totalmente impossível aos sentidos. Discípulo de Jesus
que consegue justificar a sua adesão visceral ao caminho de Jesus como sendo
uma coisa racional não entendeu ainda nada.
Às vezes, ouço alguém dizer: Sou discípulo de Jesus porque sou muito inte-
ligente e tenho todas as razões do mundo para ser seu discípulo. E eu respon-
do: Interessante! Eu nunca consegui chegar a essa conclusão, porque eu tenho
todas as razões do mundo para não ser discípulo de Jesus. O que ele me ensina
bate de frente com minha natureza instintual o dia inteiro. Ele diz para dar a
outra face, e eu quero meter a outra mão na cara. Ele diz para não resistir ao
inimigo, e meu instinto quer atropelá-lo. Ele diz para eu não me vingar, mas
tudo em mim quer se levantar. Ele diz que não é para julgar, mas eu já tenho
um software de perversidade rodando em mim, julgando o dia inteiro. Ele diz
que é para não cobiçar, mas o meu coração vive como um buraco negro, quase
todos os dias engolindo, monstruosamente, tudo que entra pelos olhos.
36
A loucura de ser discípulo

Ele nos diz que o grande segredo da vida é praticar a fé da maneira mais
singela, simples, íntima, amorosa, profunda e discreta diante de Deus, no
secreto, e que as demais coisas são manifestações dessa experiência de amor,
como fruto da fé, no todo da vida; mas que nós não devemos, sob hipótese
alguma, manifestar isso como uma bandeira que se transforme numa cara,
num gesto, numa interpretação, numa performance, que é algo que trabalha
contra toda nossa paganidade psicológica, que necessita ser vista, ser afirma-
da, ser reconhecida, ser aplaudida. Necessita que os outros digam: Este, sim,
é o melhor! Este encontrou o caminho!
Isso para falarmos apenas nos seus ensinos que batem de frente, o tempo
todo, contra essa natureza arruinada. Mas ainda vem o pior de tudo. Pois
sobre seu ensino, alguns podem simplesmente ouvir e dizer: É extremamente
superior a mim, mas eu sei que está certo. Pena que eu não sou assim, mas
eu dou razão ao ensino desse profeta Jesus. Seu ensino até que aceitamos. O
difícil é ele. Ele é que é insuportável. Ele é quem diz: “Aquele que comigo
não ajunta, espalha. Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao
Pai senão por mim”. Isso é uma desgraça! Para com isso de que ninguém vem
ao pai senão por mim!
Então, o problema é ele. É Jesus. É o que ele diz de si. É o lugar de con-
vergência total no qual ele se coloca. É o seu exclusivismo megalomaníaco.
É essa capacidade dele de dizer: “Eu e o Pai somos um. Quem vê a mim, vê
o Pai. Como dizes tu mostra-nos o Pai? Tu não crês que o Pai está em mim
e eu estou no Pai”? Isto é chocante. Ele diz que quem não crer nele não tem
a vida eterna em si mesmo.
A quem quiser resolver o problema da sua existencialidade de maneira
absoluta, ele diz: Creia em mim, coma de mim, beba de mim, porque sem
mim nada podeis fazer. Então, o problema, mais do que seu ensino, é ele.
É o lugar onde ele se coloca, dizendo que todas as coisas nos céus e na terra
giram e se revolvem em torno desse eixo que ele significa, que ele represen-
ta. Aí é onde está a loucura, o escândalo.
Agora veja se eu não tenho razão. Se não foi mais fácil, para mim, nas-
cer neto da mãe Velhinha, que já era presbiteriana, e que desde cedinho
me ensinava: Repete, meu filho, “O Senhor é meu pastor, nada me falta-
rá”. Minha mãe ensinando também com os puxões de orelha, em nome
de Deus, de vez em quando. Uma palavra que vazava aqui e ali o tempo
37
O Caminho do discípulo

todo, e eu crescendo com a informação. Olhando para o céu, associando


a celestialidade ao nome de Jesus. Assim como o mulçumano olha para
o céu e associa a celestialidade não apenas a Alá, mas a Maomé. Ou seja,
o elemento cultural já estava no substrato da minha crença pagã. Como
pagão, eu já era um pagão cristão. Não que isso signifique alguma coisa,
mas já era uma introdução, com todos os arquétipos e simbolizações
presentes.
Quando eu cri que Jesus era Deus, a única coisa que isso significou
para mim foi uma rendição ao senhorio dele na minha vida, porque o
choque da afirmação de que Jesus era Deus não me atingiu, pelo fato de
que eu nasci ouvindo que Jesus era Deus. Ele não era Deus somente para
mim. Mas não era um choque pensar nisso. Mais do que isso, eu já vira
o desfecho da história – ele havia ressuscitado dentre os mortos. Era uma
questão de crer ou de não crer. Mas a história estava concluída diante
de mim. Diante de Pedro estava tudo aberto, andando no caminho. Ele
está, há um ano e pouco, caminhando com Jesus. Nesse momento da
jornada, o fato de ele dizer, quando indagado, Tu és Deus vivo entre nós,
é absoluta loucura.
É por isso que Jesus disse:
Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi
carne e sangue quem to revelaram, mas meu Pai que
está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e
sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas
do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as
chaves do reino dos céus; o que ligares na terra será
ligado nos céus; e o que desligares na terra será desli-
gado nos céus.

Essa palavra de Jesus chega a esse homenzinho que fez uma viagem que
Sócrates não faria sozinho, que Platão não faria sozinho, que Zenão, Epi-
curo, sábios e rabinos de Israel jamais fariam sozinhos. Jesus simplesmente
diz que é bem-aventurado o homem que fez uma declaração que homem
nenhum por si só a faz.
Paulo diz, em I Coríntios 12:3, que ninguém diz que Jesus Cristo é o
Senhor se não for pelo Espírito Santo. E com isso ele está dizendo que é
impossível alguém, apenas como uma construção oral, abrir a boca e dizer
38
A loucura de ser discípulo

que Jesus Cristo é o Senhor sem que isso seja pelo Espírito Santo. O que ele
diz é que nenhum coração verbalizará, com fé, essa confissão se isso não for
uma emulação do Espírito Santo; do contrário, jamais será algo verdadeiro. A
menos que seja algo do Espírito de Deus, é loucura. O Evangelho desestimula
qualquer tipo de declaração sobre Deus que não tenha sido revelação acolhida
no coração. Se o fizermos, sem que creiamos, é loucura. É loucura até dizer
que Jesus é Deus. Não diga. Fica melhor para você. Jesus não tem nenhum
problema se alguém não diz que ele é Deus porque não crê que ele seja Deus.
Horrível é dizer que ele é Deus quando não crê que ele seja Deus.
Bem-aventurado, Simão, porque não foi carne nem sangue que to reve-
laram, porque carne e sangue não chegam a essa conclusão. Ela é absoluta-
mente idiota, implausível, impossível, absurda. Para podermos dizer que o
homem Jesus – que encarnou e viveu entre nós, que era um homem do nosso
tamanho, com todas as manifestações da própria humanidade – era também
Deus, somente como revelação do Espírito Santo.
A outra hipótese é a lavagem cerebral. Aí é coisa de seita, de maluco, que
ficou condicionado, repetindo: É filho de Deus, é filho de Deus. E mui-
tas pessoas já passaram por isso. Mas isso não produz nada. Gera somente
uma mente doente, neurótica, nervosa, que vai, irremediavelmente, surtar na
maioria das vezes. No entanto, dizer que ele é o Filho de Deus e afirmar isso
com o coração cheio e pleno de fé somente pela revelação do Espírito. Por
outra via nenhum de nós chega a essa conclusão.
A primeira advertência que Jesus fez em Mateus 16, em relação a esses
discípulos, foi a de que eles deveriam se acautelar da doutrina, do fermento,
da influência dos saduceus e dos fariseus. Os saduceus, significando aquele
projeto de espiritualidade feita apenas de rito, de religião, de forma, porque
os saduceus não criam nem em anjo, nem em espírito, nem em ressurreição,
nem em vida eterna. Era aquela manifestação de uma fé ética, na fraternida-
de, nos interesses imediatos e no projeto político que eles tinham.
Jesus disse: Cuidado, porque antes de o indivíduo estar com o coração
totalmente atolado da convicção de que Jesus é Deus, uma das primeiras
tentações é achar que qualquer pessoa, para começar a segui-lo, tem de
logo sair dizendo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Não, isso é de-
pois na jornada. Esses discípulos já estavam andando com Jesus há algum
tempo. E Jesus não pregou para eles. Ele não chegou dizendo: Olha, eu
39
O Caminho do discípulo

sou o caminho, a verdade e a vida. Quem comigo não ajunta, espalha.


Vocês concordam? Aleluia! E no final ele perguntando: Quem dentre vós
quer aceitar a Jesus? Ele nunca fez isso! Jamais faria. Faz assim quem não o
conhece bem. Quem o conhece bem faz como ele fez. E como ele fez? Ele
não saiu do pressuposto, ele não achou que qualquer pessoa, para começar
a segui-lo, tinha de sair dizendo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
Não, isso acontece depois, na jornada.
Há pessoas que dizem isso porque são da geração que já nasceu dizendo,
mas nunca disseram de verdade, crendo. Papai e mamãe ensinaram. De ma-
drugada, na televisão, é somente o que vemos. Mesmo falando do diabo, mas
é em nome de Jesus que se fala. Enfim, é um bombardeio tão grande que não
temos muitas alternativas.
Aqueles discípulos se encontraram com Jesus. E como foi isso? Houve
pessoas que o viram e disseram: Está com cara de coisa nova pintando no
pedaço. Deve ser aquele de quem a Lei e os profetas falaram. E começa-
ram a ouvi-lo. João Batista estava com tudo. Odiado pelas autoridades,
portanto amado pelo povo. Pregando a palavra, que era uma espada que
dividia Israel.
E vem João e diz: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”.
Convém que ele cresça e que eu diminua. Eu aqui sou somente como o amigo
do noivo. O noivo chegou. A festa é dele. Deixe-me sair da frente. A minha
alegria é a de participar.
E alguns desses ouviram e saíram chamando os amigos, parentes, irmãos,
sócios e entraram nos ambientes da relacionalidade normal. Se fosse hoje,
a pessoa iria procurar a primeira sinagoga e dizer: Olhe, eu ouvi uma pa-
lavra maravilhosa de um pregador muito legal. Será que poderíamos fazer
uma agenda com ele aqui? Ou dizer: Eu ouvi uma pessoa, quero saber onde
ela congrega e quero fazer parte desse novo grupo. Aliás, houve quem per-
guntasse: “Mestre, onde assistes”? Seria como uma das perguntas: Onde é a
reunião? Onde é que rola tudo? Qual é o endereço do milagre? E Jesus disse:
“Vem e vê”. Porque não tem endereço; é no caminho; é todo dia, é andando.
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida” combina com “vem e vê”.
Se ele é o caminho, a verdade e a vida, e queremos ser seus discípulos,
temos somente de andar com ele. O caminho é andante, móvel. Vem e vê! O
convite dele não foi: Fiquem, assentemo-nos, irmãos.
40
A loucura de ser discípulo

Entre nós não acontece nada sem que nos assentemos para tratar do
assunto. Jesus não chamava ninguém para conversar. “Segue-me”, era o
chamado dele. Vem comigo, porque, até quando eu me assentar, eu estarei
andando. Vem comigo, porque quando eu me assentar, você se assentará
comigo. Então, se você se assentou comigo, você não se assentou, você
me seguiu. E eles vieram e o seguiram por razões diferentes. Mas isso não
estava implantado dentro deles desde o início. Eles não diziam: Poxa, eu
aceitei Jesus. Eu sei que ele é o Filho de Deus. Aleluia! Não. Eles foram
caminhando, tateando. Curas, milagres, choques, sustos, reviravoltas. E
eles comiam, bebiam, dormiam, acordavam – como João diz – “expostos
ao Verbo da Vida, à Palavra encarnada”.
E eles vão em direção à Cesareia de Filipe, no norte do país, uma cidade
pagã, construída por Herodes Filipe em homenagem a César, o imperador,
concorrendo com a cidade de Cesareia Marítima, lá na costa mediterrânea,
que fora construída por Herodes, o Grande. Jesus começa a lhes dizer para
terem cuidado com a doutrina e com o fermento dos fariseus e dos saduceus.
Ele diz: Vocês, à semelhança deles, correm o risco de se tornarem gente ape-
nas das formas; correm o risco de se tornarem pessoas apenas farisaicas, das
regras; e, depois de um tempo, vão perder a pureza dessa fé que se conecta
com o Deus eterno e que crê que tudo de Deus possa vir. E com o tempo
podem perder a alegria de uma caminhada que se alimenta da sinceridade;
podem ir se transformando em pessoas performáticas, apenas para consumos
externos – como os fariseus –, perdendo todo o sentido da vida. Isso impreg-
na e cresce numa sutileza enorme que pode destruir toda a construção dessa
viagem. É aí, depois disso, que ele faz a pergunta: “Quem dizem as multidões
que eu sou”? E ouve as respostas. “Mas vós, continuou ele, quem dizeis que
eu sou”? E ouve de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
No entanto, passou um tempo de caminhada para que se aprofundasse
neles a consciência de quem Jesus era. Eles tinham chegado como muitos de
nós chegamos. Alguns por fascinação – porque Jesus era fascinante. Mesmo
que para eles não fosse Deus, era fascinante. Era carismático como ninguém.
Era agradável como ninguém. Outros chegavam por mera sedução, ou por
interesse, perplexos. E outros, por razões pragmáticas. Ele cura e é bom ficar
ao lado de quem cura. É bom ficar ao lado de quem diz uma palavra e as
coisas acontecem. Outros chegaram simplesmente por construção teológica
41
O Caminho do discípulo

e análise política. Roma é o diabo. Ora, se Roma é o diabo, deve ter chegado
o tempo da visita de Deus aos homens. Se é mesmo Deus quem visita, eu não
sei, mas que é um profeta que ele vai mandar, certamente. Jesus apareceu e
eles disseram: Vamos ver, não custa nada!
Outros chegaram por interesses um pouco mais distantes. Talvez até te-
nha sido o caso de Judas Iscariotes, que pode ter imaginado que se alguma
coisa nova fosse acontecer em Israel seria pela via daquele homem. Precisaria
estar presente na hora em que esse grande movimento de reviravolta e mu-
dança de poder se instalasse em Jerusalém. Ele deve ter cantado: “Eu quero
estar com Cristo quando a luta se travar...”. Isso cabe na boca de gente boa e
também cabe na boca de Judas.
Então, as razões para o seguirem podem ter sido as mais diversas e foram.
Há ainda os que foram por gratidão. Mais ou menos como acontece ainda
hoje. A maioria de nós também segue caminhando com Jesus por razões mui-
to chulas. Muito pagãzinhas. E Jesus sabe. Pedro andou com ele – todos eles
andaram – um ano e tanto, e Jesus sem nenhuma pressa. Pedro, você já acei-
tou Jesus como seu salvador? Se Jesus fosse evangélico, pelo amor de Deus,
seria um horror! Ainda bem que ele não era. Jesus sabe como nós somos.
E a primeira coisa que eu pediria é que nós esquecêssemos essa falsa ideia
do que é um discípulo. Nós somos todos candidatos. Candidatos no cami-
nho do discipulado. Herdamos um bocado de coisas, já encontramos um
pacote meio formatado, pronto, feito. Toda pessoa, mental e razoavelmente
sadia, tem “uma” fé. Faz bem, é um eixo mental, auxilia na autoajuda. Qual-
quer coisa. É um risco dizer que não se tem Deus; afinal de contas, com tanta
esquina macumbada, é melhor mesmo, na hora de fazer gol, nos benzermos.
Na hora de perder também. Nós nos benzemos em qualquer caso. É de ben-
zimento em benzimento que nós vamos, mesmo quando não nos benzemos.
Mas Jesus sabe. Assim como sabia quando estava entre eles.
Veja que a palavra não foi tomada unanimemente pelos apóstolos. Não se
diz que o grupo dos doze, a uma só voz, cantou: “Tu és o Cristo, o Filho do
Deus vivo”! Não. Foi somente um. Pode até ser que os outros onze tivessem
a mesma coisa a dizer, mas não disseram. Houve quem dissesse ser João Ba-
tista. Explica para mim se é ou se não é, com isso colocando a culpa numa
pesquisa de opinião em algum lugar. Outros dizem ser Elias. E Jesus olha e
diz: Interessante! E outros ainda dizem ser Jeremias. E vocês, o que dizem?
Silêncio... E foi Pedro quem disse: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
42
A loucura de ser discípulo

O silêncio dos demais e a fala de Pedro podem também significar algo


que ilustra o nosso estado. Que estado é esse? Estamos todos no caminho,
mas nem todos em percepções idênticas nesse processo. Para uns, Jesus é
ainda um bocado de coisas, mas não é tudo. Em outros, a consciência disso
se aprofundou muito mais, mas ainda assim não fecha ciclo nenhum, porque
esse ciclo não se fecha até que se conclua eternamente. Enquanto se caminha,
a vereda da relatividade da presente ordem é um caminho de agregamento
de coisas o tempo todo. A prova disso é que Pedro disse o que disse, ouviu o
que ouviu, se alegrou do jeito que se alegrou – de maneira surtada –, porque
a proximidade entre a revelação e o surto foi enorme. Recebeu a revelação,
Jesus disse que ele era feliz, e ele achou que era somente para ele. Pensou que
dali para frente ele seria o Pedro das candangas. Tu és bem-aventurado, Si-
mão Pedro, não foi carne e nem sangue, foi meu Pai quem falou contigo. “Tu
és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela”.
E, nesse momento, Pedro foi se sentindo “o cara, ” e foi nascendo uma
mitra em sua cabeça. Foi surgindo um báculo. Pedro já começava a surtar.
No verso 21, está dito: “Daquele tempo em diante, começou Jesus Cris-
to a ensinar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e
sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser
morto e ressuscitado no terceiro dia”.
E Pedro, ouvindo aquilo, disse: De modo nenhum, Senhor! Escuta, olha
para mim. Eu sou o Pedro. O Pedro do teu Pai, o Pedro da revelação, o Pe-
dro que não recebeu nem por carne nem por sangue, mas tem muita carne e
sangue para segurar isso aqui. O que o Senhor está pensando? Isso jamais vai
te acontecer. Eu não vou deixar.
“Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas
das coisas de Deus, e, sim, das dos homens.”
Quando Pedro disse: Eu sou a pedra. Jesus disse: Sim, é de tropeço.
Quando Pedro disse: Eu ligo as coisas na terra, eu ligo as coisas no céu, e de
modo algum isso lhe acontecerá. Jesus disse: Sai, Satanás!
Então, de fato, Pedro não é pedra alguma. E nenhum de nós é coisa al-
guma, porque o Pedro que recebe revelação é o Pedro que cai em tentação.
O Pedro que diz “Tu és o Cristo, o Filho de Deus” é o Pedro que ouve “Sai,
Satanás” no minuto seguinte, porque nenhum de nós é discípulo acabado.
43
O Caminho do discípulo

Quem acha que é discípulo acabado está acabado mesmo. Discípulo acaba-
do é um discípulo falido. O caminho do discipulado é um caminho aberto,
cotidiano, de construção em construção. Como diz a Palavra, de glória em
glória, de fé em fé. E é assim que se vai num processo infindo.
A advertência original de Jesus foi: Tenha cuidado para que, nesse proces-
so, não entre o ceticismo dos saduceus nem a performaticidade oca e vazia
dos fariseus; e para que ninguém se torne uma pessoa impressionada com a
opinião dos outros, nem do povo, nem com interpretações a meu respeito.
Nesse processo, a única coisa que pode fincar e firmar você é a revelação do
Pai acerca de quem eu sou. Mas a revelação do Pai acerca de quem eu sou
não é a revelação do Pai acerca de quem você é. Jesus quer que aprendamos
isso. Porque Pedro podia dizer apenas quem Jesus era. O que Pedro não sabia
ainda dizer é quem ele próprio era.
O caminho do discípulo é um caminho onde quanto mais se discerne
quem Jesus é, mais avulta a percepção de quem nós não somos em rela-
ção a ele, de que somos de maneira dessemelhante dele, diferente dele.
Quanto mais eu o percebo, mais a minha autopercepção se mostra tão
diferenciada da dele. E isso não abisma nada entre mim e ele; apenas cria
a percepção da realidade que vai me fazer, dia a dia, me entregar mais e
dar mais razão a Deus.
De maneira bastante enfática, eu queria deixar uma palavra a mais. Que-
ria apenas que se prestasse atenção, de todo coração, no significado de se
estar no caminho andando com ele e na gradualidade dessa percepção. O
discípulo, frequentemente, pensa que as conquistas do discipulado são coisas
que nele se instalam gerando quase que a impossibilidade de que ele venha a
equivocar-se novamente acerca de Jesus. Mas não é assim. Nós podemos abrir
a boca hoje para dizer a coisa mais verdadeira possível sobre ele, e amanhã
abrirmos a boca para fazer as negações mais radicais daquilo que nós mesmos
havíamos afirmado como a realidade central da nossa convicção e da nossa
fé. O caminho do discípulo pode, subitamente, nos colocar nessa variação
que diz “Tu és o Cristo”, e depois ouve “Arreda, Satanás”. Porque o que pode
salvar a mente do discípulo é apenas a revelação do Pai. “Bem aventurado és,
Simão Pedro, porque não foi carne e não foi sangue quem to revelaram, mas
meu Pai que está nos céus.” Arreda, Satanás, tu és para mim pedra de trope-
ço, porque não cogitas das coisas de Deus e, sim, das dos homens”.
44
A loucura de ser discípulo

Enquanto o discípulo é alguém se submetendo todo dia à revelação que


vem do Pai, que vem do Evangelho, da palavra, de Jesus, ele está nesse cami-
nho que o coloca de maneira simples na posição que não é somente de Pedro;
é de quem quer que creia. Que posição é essa? É meu coração ligado em Je-
sus, no seu amor, tomado pela sua consciência. Quando eu ligo na terra, está
ligado; quando eu desligo na terra, está desligado. Sabem por quê? Porque eu
não ligo nem desligo outros. Eu ligo e desligo somente a mim.
O grande problema foi terem feito isto se tornar um mandamento de
concílios, de bispos, que se reúnem numa grande confraria de bruxaria ho-
micida para decidir quem são os queridinhos para serem ligados e quem são
os desafetos para serem desligados. Aí pode bater tambor e chamar a pomba
gira, porque é o lugar dela – nessa maluquice. É o diabo.
Muita gente se reúne para decidir isso acerca de gente – eu entro nessa
reunião e quero entrar em qualquer uma para repreender a todos em nome
de Jesus –, mas ali tem somente diabo, porque essa não é a autoridade que o
Evangelho deu a ninguém. Prova disso é que Simão Pedro é bem-aventurado e
é também pedra de tropeço. Por isso não é Pedro, é a confissão, é o espírito. Se
a confissão do discípulo se alinha ao Evangelho, isso é para ele e para qualquer
um. É para Pedro e para o André. É para Pedro e para o Manuel. É para Pedro
e para qualquer um, em qualquer lugar da terra onde quer que essa confissão
tenha tomado conta de um ser que possa dizer que Jesus é Deus, o seu Deus.
Aí, nesse lugar, pode crer que tem uma pedra viva de Deus e que nenhuma
porta do inferno vai prevalecer. Pode crer que, nessa harmonia de amor com
Jesus, o que se liga, ligado está; o que se desliga, desligado está. Tem a ver com
a nossa relação com Deus; tem a ver com aquilo que, em fé, dizemos: Senhor,
eu quero estar ligado a ti; e tem muito mais a ver quando dizemos: Senhor, eu
quero me desligar disso. Senhor, eu quero pedir que ligue este meu irmão a esta
tua graça. Tem muito mais a ver com o interceder com amor pelas pessoas e di-
zer: Senhor, em teu nome eu peço que liberte esse indivíduo e que o desconecte
dessa maldade. Mas é somente até aí que vai. O que passar disso é do diabo.
O discípulo precisa ganhar essa consciência de quando ele deixou de ser
apenas um simpatizante que tem carinho por Jesus, que acha a causa legal,
que vale a pena ser ajudado – as palavras são tão boas, serenam o coração. É
a pessoa que chega com vontade de arrebentar tudo, mas abre mão por causa
do Evangelho e porque ouviu aquela palavra: “Não te deixes vencer pelo mal;
mas vence o mal com o bem”, mas não passa muito disso.
45
O Caminho do discípulo

Se o indivíduo vai a Jesus achando que está lhe fazendo um favor, eu lhe
digo: Deixe de ser bobo, meu irmão. Ele não precisa de adulação de ninguém.
Não o busque por qualquer outra coisa. É um chamado para se atolar em Deus,
mas por mais que se tenha chegado e ainda esteja nesses processos relativos – de
nunca se dar, nunca se derramar, nunca se entregar –, eu quero lhe dizer: Jesus
sabe. Ele está dando um tempo. Aquele dia foi a vez de Pedro dizer o que disse.
Houve ocasiões em que outros disseram outras coisas. Houve ocasiões
em que outros não disseram nada, mas bancaram tudo, como quando todo
mundo correu, mas as mulheres, que quase nada disseram, tudo disseram
ficando ali. Ou como João, que não correu como os demais, mas até se es-
condeu na saia de Maria para chegar bem pertinho, viu que Jesus sabia de
tudo e que não houve questões a respeito. Aquele dia era apenas o dia de
Pedro. Mas existe o dia de todos nós e de cada um nessa jornada. E Jesus sabe
disso. Eu não sei em que ponto da viagem você está. Às vezes, chegamos e
vamos ficando por razões muito superficiais e pequenas. Ou por causa do pai
que admiramos, ou da mãe que queremos bem, ou do irmão mais velho que
se converteu e está firme lá, resgatou a família... Por Jesus o meu irmão se
tornou o primogênito espiritual da casa; eu sou muito grato a Deus por isso,
então eu vou com ele. Ou é pelo maridão legal, ou pelo namorado ou namo-
rada novo. Ela se encantou com ele, que é discípulo de Jesus – somente Jesus
para fazer uma pessoa tão maravilhosa. Eu vou lá. E aí é aquele discipulado
não pela fé, mas por outras coisas.
Tem ainda aquela pessoa que se envolve com tudo. Aquele cara que é fla-
menguista em todas as direções. Se tiver um batuque, ele balança a bandeira;
se tiver banda, ele está dançando; não quer saber quem morreu, ele quer é
chorar. Tem muita gente assim. Vai visitar um amigo na fazenda e o amigo
diz que a associação de moradores está com programa para ajudar os pobres
dessa beira de estrada, logo ele diz: Conta comigo, estou dentro. Tenho de
ajudar nessa boa causa.
Ele faz a mesma coisa na igreja, na reunião, seja lá onde for. Se alguém diz
que ali é o gazofilácio, ele diz: Já aluguei esse cara – o Pastor – por duas horas
falando comigo, então, o mínimo que eu posso fazer é deixar uma contribui-
ção. Eu sou um cara do bem e quero ficar bem; afinal de contas é para Jesus.
Pelo menos dez reais tenho de dar, é para Jesus. Então, as razões pelas quais
as pessoas ficam são as mais diversas. E Jesus sabe disso.
46
A loucura de ser discípulo

Quando alguém diz que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, está
querendo dizer o quê, com isso? Que ele é mais um dentre vários? Que ele
é o mais legal no meio de muitas pessoas espiritualmente meio equivalente?
Ou significa o que começava a significar para Pedro? Que, de fato, ele não
seguia um líder, nem um mestre, nem um guru, nem um iluminado, nem
um profeta, nem a mente mais brilhante, nem o espírito mais elevado, nem
o maior curador de todos os tempos, nem tampouco o mais paranormal? Às
vezes, se leva um bom tempo na jornada para adquirir essa consciência. Mas,
cuidado, pois mesmo quando essa consciência entra em nós, ela não chega
para nos isentar, nos blindar, nos bloquear, nos fechar para a possibilidade de
que possamos viajar para fora dessa percepção por qualquer que seja o nosso
surto. A afirmação que Jesus fez sobre o que tinha acontecido no coração
de Pedro, não tendo sido processada com o devido cuidado e calma, logo a
seguir o fez pensar que aquela revelação o habitava, que morava nele, que era
dele, que lhe pertencia, e que qualquer coisa que procedesse da sua cabeça
tinha de ser oráculo de Deus, palavra de Deus. E é nessa hora que ele ouve,
da mesma boca de Jesus: “Arreda, Satanás”.
O caminho do discípulo, frequentemente, acontece entre a revelação
e a repreensão de Deus. De um lado, a revelação: Bem-aventurado tu és.
De outro lado, a repreensão, porque, muito facilmente, o discípulo mis-
tura o que lhe é dado por revelação com o que lhe sobe à cabeça como
cogitação. Pedro, um dia, recebeu revelação e ficou achando que todos
os seus pensamentos bondosos acerca de Deus e de Jesus seriam também
revelação, porque ele estava com o coração bondoso em relação a Jesus.
Ao ouvir Jesus dizer que iria para Jerusalém, que iria sofrer, ele disse: Não,
de jeito nenhum. Está pensando o quê? Não sou um discípulo desses que
somente assistem. Estou aqui para carregar o piano; de jeito nenhum, isso
não vai acontecer.
O que o discípulo de Jesus precisa aprender é que nossa bondade, nosso
amor, nossos melhores pensamentos e intenções não bastam. A questão não
é o que Pedro defendia. Ele defendia a vida de Jesus, impedindo uma ação
mortal, tirânica; uma causa que qualquer ativista social abraçaria imediata-
mente. A causa de Pedro daria para fundar um partido político, daria para
animar todos os Martins Luther Kings desse mundo. Vamos defender Jesus
contra Roma, contra o Sinédrio. Vamos defender!
47
O Caminho do discípulo

O que o discípulo precisa aprender é que as melhores ideias não signifi-


cam revelação de Deus, que a melhor intenção não basta, precisa ainda estar
sob a revelação; do contrário, a melhor intenção pode fazer a viagem român-
tica que o afaste da manifestação cruenta do caminho de Deus.
O caminho de Deus passava pela cruz, por Jerusalém. Sem cruz não ha-
veria caminho de Deus na terra, e nem discípulo algum. De modo que não
podemos confiar no nosso melhor amor, nem na melhor amizade, nem na
melhor intenção, nem no melhor projeto, nem nas melhores causas. O discí-
pulo tem de abrir mão da sua cogitação e entregar sua mente à revelação.
Alguém aqui quer aceitar a Jesus como seu Senhor e Salvador? A coisa
mais fácil a fazer é isso, para que todos pensem que a viagem acabou. A via-
gem sequer começou.

Para refletir
1. O que você pode dizer sobre quem é o discípulo?
2. Quais são os ensinamentos de Jesus que batem de frente com a nossa natureza
arruinada?
3. Qual é a loucura, o escândalo, de Jesus?
4. Qual é a loucura, o escândalo, do discípulo?
5. Quais as várias possibilidades de se dizer: “Jesus Cristo é o Senhor”?
6. Por que se acautelar do fermento e da doutrina dos fariseus e dos saduceus?
7. O quanto você está desligando ou ligando os ensinos de Jesus na sua vida?
8. O quanto você tem sido motivado por cogitação sua ou por revelação de Jesus a
você sobre Ele mesmo e, depois, sobre você mesmo?

Anotações

48
3. A confissão do discípulo

Há uma incompatibilidade essencial entre o discipulado de Jesus Cris-


to e aquele que aceita a disciplina de alguém. Discipulado tem a ver com
verdade, com sinceridade, com a cara para fora, com uma existência sem
véu no rosto, mostrando quem se é, no que se crê, como se anda; desejoso
de que a vida externa reproduza a sinceridade das convicções do coração;
aceitando a disciplina do Evangelho. O discípulo de Jesus é o ser sob a
disciplina do Evangelho, da Boa Nova. Não somente do que Jesus ensinou
e disse, mas do modo como ele interpretou o que disse pela vida, já que ele
é o Verbo encarnado. Sendo o Verbo encarnado, ele é a interpretação do
próprio Evangelho. De modo que não precisamos fazer muitas perguntas
– nem no grego, nem no aramaico – aos exegetas para saber o que Jesus
está ensinando, basta-nos apenas olhar para o modo dele ser, porque ele
interpreta o que diz. Do contrário, seria pura esquizofrenia e o Verbo não
teria se feito carne.
Jesus disse que não há caminho de discípulo no fermento dos fariseus,
porque o fermento dos fariseus é a antítese da disciplina do discípulo, que é
a disciplina da verdade, da vontade de que o rosto corresponda ao coração e
o coração ao rosto. Vontade de que a vida seja manifestação sincera daquilo
que habite o coração como tesouro. Esse é o caminho simples do discípulo,
que é absolutamente incompatível com o gerenciamento de imagem, com a
tentativa de impressionar pelas exterioridades, com a apresentação de pieda-
des que falsificam realidades interiores, que são apenas fachadas.
Jesus também disse, nessa mesma sequência – indo no caminho para Cesa-
reia de Filipe –, que o discípulo não anda em função do Vox Populi, Vox Dei,
não anda em função do que as multidões dizem, como a maioria dos que hoje
se dizem discípulos de Jesus.
Eu encontro pessoas, no curso da minha vida, que já mudaram de jesuses
muitas vezes. Já tiveram tantos jesuses! O apelido da figura é jesus, mas a
pessoa a quem elas servem, em cada uma dessas instâncias, eventos, surtos ou
moveres, não é Jesus. Eu os encontro um dia com o jesus romântico, depois
com o jesus severo, com o jesus da batalha do fogo, um verdadeiro São Jorge.
49
O Caminho do discípulo

Ali na frente, é um jesus dono da Amway, fazendo distribuição de células


em grupos. Mais adiante, é um jesus neurótico com o diabo. Um jesus sem
paz, atormentado por Satanás, em batalha espiritual o dia inteiro. Enfim, são
muitos jesuses.
Há discípulos que são discípulos das opiniões, são discípulos das impres-
sões. Aí, ora Jesus está com cara de João Batista, ora Jesus está com cara de
Elias, ora Jesus está assim dengoso e melting3 como Jeremias. Noutras ocasi-
ões, pode ser qualquer um dos profetas, dependendo do mover. Ora, Jesus
continua sempre Jesus!
O indivíduo, portanto, não chegou a ser discípulo se ele ainda é tangido de
um lado para o outro por qualquer jesus ou jesuses, ou por ventos de doutrinas
que soprem na intenção de construir uma imagem que não corresponda a
quem de fato Jesus é conforme o Evangelho: o mesmo ontem e, eternamente,
imutável. Não está aberto para nenhum tipo de evolução nem de mutação.
O caminho do discípulo somente pode acontecer por absoluto milagre.
Porque não é carne, não é sangue, não é filosofia, não é elucubração, não é
o muito pensar, não é a conclusão, não é a sistematização teológica, não é
a racionalidade doutrinária. Nenhuma dessas coisas nos traz a consciência
de que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo. Essas coisas no máximo nos
enganam. Geram crenças às quais nós nos habituamos por causa do tataravô,
do bisavô, do avô, do pai, da mãe. É o Jesus da parentela. É o Jesus parente.
É o Jesus ídolo do lar. É o Jesus da casa. É o Jesus da herança. É o Jesus das
gerações. É o Jesus que temos acompanhado. Então, para que mudar?
Talvez, se eu tivesse nascido sob o tacão de Maomé, maometano eu fosse;
mas como eu nasci do lado de cá, de Jesus eu sou. Temos somente que nos
adaptar. No máximo, o que encontramos – os leitores que visitam o meu
site4, que acompanham, sabem do que estou falando – é um indivíduo que
vive se queixando de tudo. De Deus e do mundo.
O discípulo é o indivíduo que tem de, inicialmente, saber que nada
verdadeiramente de Jesus se instalará nele por carne, por sangue, por filo-
sofia, por teologia, por doutrinação, por seminário, por repetição, por acú-
mulo de informação, por pesquisa. Por essas coisas, alguém pode se tornar

3. Enternecido, comovido.
4. www.caiofabio.net

50
A confissão do discípulo

até professor de seminário, um Ph.D. Pode até virar pastor de igrejas que
remuneram muito bem, mas não será ainda discípulo de Jesus. Porque o
discípulo de Jesus é aquele indivíduo que foi acometido pelo surto de Deus
na vida. Não dava para olhar para um rapaz de trinta anos de idade, macho,
honesto, galileu, carpinteiro, sincero, sem grandes expectativas na vida, e,
simplesmente, dizer: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, significando
dizer – de acordo com a interpretação do sumo sacerdote Caifás – que
quem assim declarasse teria blasfemado. E Jesus assim se declarava – de
acordo com os próprios judeus, que fizeram daquilo o mote condenatório
no seu julgamento, dizendo que ele se dizia Filho de Deus –, fazendo-se,
portanto, igual a Deus. Por esta conclusão do Sinédrio, o que Pedro estava
dizendo era: Tu és Deus! E é uma afirmação tão louca e tão inconcebível
alguém olhar para outro ser humano e dizer: Antes de qualquer coisa ser, tu
eras. Isso somente acontece como revelação do Pai que está no céu.
O discípulo, portanto, nasce somente quando é engravidado pela com-
pulsão celestial. Quando no seu coração não há mais retorno; rompeu todas
as barreiras, a dimensão profética ficou para trás, o sábio e grande mestre foi
superado; quando o jesus guru foi abandonado e o jesus semideus foi posto
de lado. Quando qualquer outra versão possível de Jesus foi descartada e o
indivíduo simplesmente diz: Tu és o meu Deus! Tu és o Eterno diante de
mim! O Cristo do Deus vivo!
Essa não é a declaração que é feita simplesmente quando alguém a ver-
baliza publicamente. Ela é feita somente quando ela é feita! Não é feita, por
exemplo, quando o pregador que deseja encher o tablado de pessoas aceitan-
do a Jesus, insistentemente, repete: Quem quer aceitar a Jesus levante agora
uma de suas mãos; citando, a partir daí, o texto de Jesus: “Portanto, todo
aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante
de meu Pai, que está nos céus; mas aquele que me negar diante dos homens,
também o negarei diante do meu Pai, que está nos céus”.
Nesse ponto, o indivíduo entra em pânico: Pelo amor de Deus! É diante
dos homens. E, lá na frente, o pastor continua, dizendo: Olha que eu estou
dando a chance. E o indivíduo está ali dizendo: Jesus, será que eu tenho que
ir mesmo? Então ele vai. Sem saber por que está indo, constrangido, não que-
ria ir, não desejava, não entendeu por que foi. Foi porque era um perigo não
ir. Era arriscado demais não ir. Lá na frente, dizem: Hoje, quarenta e nove
51
O Caminho do discípulo

receberam a Jesus. São quarenta e nove a mais no céu. Um déficit no inferno,


aleluia! Crédito celestial, déficit infernal. O pregador chega a pensar: Eu sou o
responsável, glória a Deus por mim! Essa figura vai fazendo esse tipo de coisa
achando e dizendo que é a confissão que se faz acerca de Jesus.
Conheço pessoas que, conquanto carregassem essa confissão verbal ou
essa crença por muito tempo, somente há pouco tempo disseram, verdadei-
ramente, no coração: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo na minha vida.
Já conheci muitos que deixavam a igreja ser a concorrente de Jesus. O
indivíduo ficava assim meio que na dúvida. Parecia que Jesus era uma coisa e
a igreja era outra. É verdade que eles não se parecem. E a conclusão a que se
vai chegando é que Jesus é maravilhoso; a igreja nem tanto. Mas o problema
é que essa igreja está aqui e ela tem um braço longo. Há alguém lá que é o
homem borracha, o homem aranha. E Jesus é manso demais para tais pessoas
o levarem a sério.
De maneira simplificada, ilustrando de modo banal, o que estou di-
zendo é que muitos de nós, nesse processo, há muito pouco tempo é que
começamos a dizer: “Senhor, para quem iremos? Só tu tens as palavras
da vida eterna”.
Há pouco tempo, quem sabe, alguém ainda dissesse: Eu sou de Jesus
desde que mamãe não morra jovem, desde que papai não me falte. Eu sou de
Jesus desde que ele guarde os meus filhos. Ou como um moço que me escre-
veu há pouco tempo – está lá no site –, que perdeu um filhinho de dois anos.
E uma das grandes aflições dele, em relação ao filho que morreu afogado
na piscina da casa, é com o grupo que ele frequenta. Uma dessas igrejas nas
quais Jesus é seguro contra acidente. Para tal grupo, Jesus não é vida eterna.
É, de fato, uma grande seguradora contra furacões, tornados, afogamentos,
acidentes de carro ou qualquer outra coisa. Ele tinha um pacto com Jesus,
dizendo: Jesus, tudo, menos que o meu filho morra afogado ou que alguma
coisa assim aconteça. E o filho dele veio a falecer afogado. Aí o Jesus da se-
guradora tem de pagar a apólice, porque a construção da fé foi toda baseada
nesse tipo de expectativa.
Ora, quando existem condições é porque Deus ainda não entrou profun-
damente no ser. Existe o desejo de encontrar a Deus, mas não entrou ainda
lá no talo, porque quando entra na essência do ser já não há mais conchavos.
É isso que nos custa crer: que nós somos filhos de Abraão segundo a fé, dis-
52
A confissão do discípulo

cípulos de Jesus. E que temos, em Abraão, o pai de uma fé que responde a


Deus no meio da noite, mesmo que a voz seja louca e diga: “Toma teu filho,
teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali
em holocausto, sobre um dos montes que eu te mostrarei”.
Esse é o absurdo da entrega. Essa é a loucura da rendição. Essa é a extrema
provocação do absurdo, para ver se compreendemos o nível da entrega e da
submissão.
Tu és Deus! A implicação dessa confissão no coração daquele que diz
isso, não apenas com a boca, mas com uma consciência crescente do seu
significado, é que todas as demais questões cessaram. Eu terei interesses e
curiosidades, mas já não carregarei questões atormentadoras, porque quem
diz “Deus é em mim!” não tem mais questão para além disso; no máximo,
sobram curiosidades.
Quando se recebe essa certeza de que o caminho do discípulo é uma
revelação, a consciência de Jesus como Deus em nós é obra de Deus e so-
mente dele. E não há nenhum elemento humano que possa fazer com que
essa realidade se instale em nós, não como um assentimento intelectual,
mas como um ancoradouro que se mistura com a nossa vida, de modo que
ninguém mais possa separar-nos daquilo que, como realidade de Deus, se
enraizou em nós.
A tentação que se segue a isso é aquela de pensar que agora somos orácu-
los andantes, como Pedro, quando disse: “Bem-aventurado és, Simão Barjo-
nas, porque não foi carne nem sangue quem tu revelaram, mas meu Pai que
está nos céus”.
Então Pedro imaginou ser um oráculo andante. Logo adiante, Jesus disse
que convinha ir à Jerusalém, padecer muitas coisas, sofrer, ser morto e ressus-
citado ao terceiro dia. Mas Pedro não estava a fim de ouvir nada sobre ressur-
reição. Jesus apanhando, levando na cara, sofrendo, sendo humilhado, não!
Já que é Deus e é meu Deus, e eu fiquei sabendo disso, aqui não! De maneira
nenhuma! Agora que eu disse que ele é Deus, que recebi uma revelação dessas,
e eu, sendo o portador dessa revelação, vou ficar passivo assim? De maneira
nenhuma! Depois que recebi a graça de dizer: Tu és o Filho de Deus, e que vi
Deus dizer aleluia para mim, e agora que ele está dizendo que vai a caminho
da morte, cumpre-me salvá-lo – é o que cogita Pedro. Então, nessa hora nasce
a igreja. A “igreja”. Que é essa atitude de “cumpre-me salvar Deus”.
53
O Caminho do discípulo

Afinal, o que foi que a igreja tentou fazer nos últimos mil e setecentos
anos, exceto nos trezentos primeiros? Antes de Constantino se tornar o sal-
vador do cristianismo havia uma igreja. Depois disso, não! E essa igreja dos
últimos mil e setecentos anos que chamamos de cristianismo, essa religião
multifacetada, de fato não fez outra coisa nesse tempo todo além de tentar
salvar a Deus.
É Pedro cogitando: De maneira nenhuma! É o sucessor. Nesse sentido,
cada papa se tornou sucessor do Pedro que ouviu dizer de Jesus: Arreda, Sa-
tanás! Eles se tornaram sucessores dessa versão. Porque sempre foi: De modo
nenhum! Toca fogo! Acende a brasa! Churrasca o indivíduo! Chicoteia!
Na realidade, essa síndrome é o que está presente nessa igreja de discí-
pulos que se entendem como oráculos andantes de Deus no mundo. Que
se dois ou três ou quatro deles se reunirem, e se forem doze então, o nú-
mero será extraordinário. Em doze, até Deus aceita mudanças em qualquer
desígnio eterno. Se doze se reunirem, os céus tremem e o inferno também.
Não foi isso que nos ensinaram ultimamente? Isso é uma grande falácia!
Evangelho é Evangelho. Seja Deus verdadeiro e eu, mentiroso; mas a pala-
vra de Deus não seja alterada.
Uma das grandes tentações é ser oráculo. Já que o indivíduo recebeu
revelação, parece que ela se instalou e então ele se tornou seu gestor. E aí as
cogitações passam a ser oráculos. E se esse indivíduo for ordenado pastor,
bispo, apóstolo ou qualquer uma destas coisas, ele passa a ser voz de Deus,
inquestionável, em qualquer momento, em qualquer hora. Sem saber que
ele saiu do Bem-Aventurado és tu, Simão Barjonas, rapidinho, para se tornar
objeto gritante do Arreda Satanás! Mas ele não ouve. Ele não ouve e continua
dizendo: Eu acho que o diabo está me tentando! É Jesus dizendo: Arreda,
Satanás! E ele dizendo: Está amarrado! Nem Jesus mais é reconhecível. Ele
agora é o dono do oráculo!
Nesse caminho, frequentemente, o indivíduo pode sofrer a tentação
e surtar, sabendo que recebeu a revelação ouvindo as palavras que dizem
“Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que
to revelaram, mas meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus”. O indivíduo
ouve isso e surta, como temos visto acontecer.
54
A confissão do discípulo

Há muitas pessoas pensando que a pedra é Pedro. Não somente na igreja ca-
tólica, romana. E o protestantismo, entre outras coisas, se insurgiu contra a igre-
ja católica por essa coisa de pedreira, perguntando: Quem é pedra? Quem é?
A Igreja Católica diz que Pedro é a pedra. E os exegetas protestantes retru-
cam: Não, a pedra não é Pedro, porque o texto grego sugere uma derivação
do aramaico, onde Cefas é pedacinho, fragmento de pedra. E a pedra não
pode ser fragmento, lasquinha. E daí vem a discussão. Parece coisa de meni-
no. E alguns até usam umas mitras na cabeça e uns báculos na mão, discutin-
do sobre quem é a pedra. Quem é a pedra? A pergunta não procede.
Então eu pergunto: Quando Pedro foi pedra? Ele foi pedra na casa de Cai-
fás? Foi uma pedra rolando pela ladeira. Foi no dia do Pentecostes? Foi uma
pedra queimada sem saber de onde o fogo vinha. Foi pedra angular e decisiva
quando? Na casa de Cornélio? Ora, ele já estava convencido, visitado, angeli-
zado, depois o Espírito Santo cai sobre eles e a última coisa é: Nós ainda va-
mos negar água a esses a quem o Senhor já batizou, como nós, no princípio?
Onde é que estavam as chaves na mão de Pedro nesse Reino de Deus?
O que ele saiu abrindo? Que porta ele abriu? Nem a da cadeia ele abriu.
Um anjo é quem foi lá tirá-lo. Olhem para o livro de Atos dos Apóstolos e
digam onde é que Pedro abriu as portas dizendo: É por aqui! Onde é que
ele foi pedra de alguma esquina? Há somente uma pedra, uma rocha, que
Paulo diz que é uma pedra andante que seguia os israelitas no deserto. Há
somente uma pedra de esquina, uma pedra angular. Uma pedra sobre a qual
se encontra refúgio e segurança eterna; e ai de quem sobre ela cair, porque
esse é esmiuçado e vira pó. Não há uma segunda pedra. Não há uma pedra
de adendo. Não há uma pedra que se transforme num cristal teológico do
cristianismo. A pedra é somente uma: Jesus Cristo.
Se alguém quiser a pedra, essa é a confissão de que Jesus é Deus. Mas essa
confissão em si não é magicamente a pedra; ela é poderosa somente como
rocha porque Jesus é a rocha. Do contrário, o que seria tal confissão? Então
não precisa recorrer a lugar nenhum.
Alguém que não tenha ficado idiotado pelas cogitações teológicas, lendo
com simplicidade o Evangelho – e quanto mais simplicidade, mais luz –,
perceberá, sem titubeio, que a pedra é uma só, aquela sobre a qual a vida do
discípulo é erigida. A Rocha da segurança do ser é Jesus e somente ele. Fora
dele não existe estabilidade em absolutamente mais nada.
55
O Caminho do discípulo

O discípulo, no entanto, corre o risco de ficar pensando que quem primei-


ro fez aquela afirmação transforma-se no patrono de tal verdade e em um in-
divíduo incumbido por Deus de defendê-la, como se agora as chaves do Reino
fossem uma prerrogativa dele. Ele anda com elas penduradas, dizendo quem
entra e quem não entra. Eu não sou o pastor e nem a porta, mas eu fui indica-
do como porteiro. Até prefiro ser porteiro, a ser a porta, porque sou eu quem
decide, quem diz quem entra ou quem não entra. Esse é o discípulo surtado.
E outra doença do discípulo que não se converteu é ficar pensando que as
chaves do reino que Jesus disse dar-te-ei eram chaves que se transformariam
em um poder para ser usado de modo abusivo.
O que Jesus está dizendo é que essas chaves do reino que ele dá não as
dá apenas a Pedro, mas dá a tantos quanto digam: Tu és o Cristo, o Filho
do Deus vivo. E por uma única razão: Onde está o Reino de Deus para ser
aberto por esta porta senão, meu irmão, antes de tudo, no seu coração?
É outra vez a doença do discipulado como religião pensar que se está
falando de uma chave para abrir uma porta fora de nós; sem discernir, sem
perceber que o Reino de Deus não vem com visível aparência. Jesus disse:
Não deem atenção quando disserem ei-lo ali ou ei-lo acolá, ou qualquer que
seja a tentativa de afastá-lo do eixo da sua verdade. Porque o reino de Deus
está em vós. Quando ele diz “dar-te-ei as chaves do Reino”, ele está dizendo
que eu e você, porque fomos iluminados com essa revelação eterna, temos
acesso, como escribas do Reino de Deus, a tesouros novos, a tesouros velhos
e antigos, a realidades que agora estão abertas a toda sorte de bênçãos nas
regiões celestiais em Cristo Jesus. É isso que a chave do reino abre. Não é
prerrogativa de um. É uma graça para todos.
É o que foi dito a Pedro pelo que ele tinha acabado de dizer. A graça foi
pessoalizada e personalizada na declaração feita a ele, mas, sinceramente, quem
pode negar que Jesus tenha dito a mesma coisa a ti, a mim; ou a qualquer um
de nós que tenha entregue a vida com consciência e que tenha ouvido, no co-
ração, que existe agora, pela fé, a possibilidade de se conectar ao inimaginável,
tanto quanto nos desconectamos daquilo que antes era impossível? E o que ele
prossegue dizendo é que, nesse caminho, o discípulo pode, também, incorrer
em outro risco extraordinariamente significativo de confusão mental.
O caminho do discípulo tem a ver com o início do verso treze do capítulo
dezesseis: “Indo Jesus para os lados de Cesareia de Filipe...”
56
A confissão do discípulo

Cesareia era uma cidade que tinha sido construída por Herodes Filipe em
homenagem a César, para fazer um contraponto político à cidade de Cesareia
Marítima, construída no litoral de Israel, também dedicada a César e erigida
por Herodes, O Grande, antecessor de Herodes Felipe. Uma cidade absolu-
tamente pagã dentro de Israel.
Israel, conforme o livro de Juízes, em alguns lugares e geografias, não
conseguiu ficar de todo livre das populações anteriores, que o precederam
quando o povo veio do Egito trazido por Josué e entrou na campanha de
tomar a terra. Um dos lugares que os descendentes de Jacó não conseguiram
tomar foi o norte do país, onde ficava a meia tribo de Dã, nas nascentes do
rio Jordão. Eles conseguiram sujeitar os moradores da terra a trabalhos força-
dos, mas não conseguiram expulsá-los de todo.
A localização de Cesareia de Filipe no sopé do monte Hermon, na nascente
do Jordão, que é uma geografia histórica de presença humana das mais antigas
do planeta, sempre foi pagã e o é até hoje. No tempo de Josué, eles encontra-
ram ali toda sorte de cultos. Culto aos deuses cananeus, aos deuses mesopo-
tâmios. Ali, havia uma densidade forte de presença mística, que depois veio a
se tornar realidade nos escritos bem posteriores do chamado livro de Enoque,
que nos diz que aquele complô de anjos, descrito no Gênesis, do capítulo
quatro até o seis, no dilúvio, teria se encontrado naquele afã desesperador de
possuir as filhas dos homens, de ter sexo com as mulheres. Naquele desespero,
os Benai Elohim, os filhos de Deus, queriam os melhores protótipos genéticos
para gerar aqueles que vieram a ser os gigantes que dominaram a Antiguidade,
os nephilins. Nesse texto, encontramos o remanescente desse grupo presente
no ambiente do monte Hermon, na literatura apocalíptica de Enoque.
A Bíblia faz referência também ao fato de que um dos últimos gigantes
remanescente desse tempo, Ogue, rei de Basã, morava ali nas imediações. O
monte Hermon carregava essa simbolização de presença de rebelião angeli-
cal. A presença de Ogue, rei de Basã, e de muitos outros, era uma marca no
imaginário e uma presença arquetípica na percepção judaica, e o é até hoje,
seja como lenda ou como mito.
E Jesus está indo com eles justamente para um lugar que era e continua a
ser um dos lugares mais pagãos de Israel, com nichos dedicados aos deuses des-
de a Antiguidade, nos dias de Jesus com um cenário que era exatamente corres-
pondente a qualquer cenário pagão de Roma ou da Grécia. Era a arquitetura, o
panteão; eram os deuses, as adorações, os ofícios, os cultos. Tudo isso.
57
O Caminho do discípulo

Interessante é que Jesus decide levantar a questão “quem sou eu” e afir-
mar que não foi o discípulo quem descobriu isso – foi o Pai quem o revelou
– para logo depois dizer: Se alguém quiser ser meu discípulo negue-se a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Ele faz isso não na direção de Jerusalém.
Podia ter feito no templo, com os levitas louvando. Era um lugar muito mais
adequado. Mas não, é na direção de Cesareia de Filipe. É na direção da ido-
latria. É na direção da multiplicidade dos deuses. É na direção da pluralidade
dos cultos. É na direção da diversidade das percepções. Da não unanimidade.
Na direção do mundo como ele é.
A caminho, no processo, é que tudo isso acontece, e Jesus fala ao discípu-
lo que disse “Tu és meu Deus” que ele fez isso não por autopercepção, mas
por revelação do Espírito Santo. E que agora esse discípulo é um cidadão
do Reino. Nasceu de novo! A chave do reino está com ele, que entra e sai e
acha pastagem. Não como um poder pessoal, mas como uma graça de Deus.
A ele é dito que pode caminhar em absoluta segurança porque as portas do
inferno não prevalecerão contra ele. Aqui está dito contra a igreja. Mas quem
é a igreja senão você, eu, os discípulos? Está pensando que é aquele prédio?
Aquele CNPJ, CGC? Igreja é gente. É somente essa igreja que Jesus conhe-
ce. Ele está falando de mim e de você. De discípulos. E as portas do inferno
não prevalecerão. A pedagogia é tão extraordinária que ele diz isso levando o
pessoal para o meio da Sapucaí. Não é uma sugestão de programas. É apenas
a pedagogia da libertação.
Eu sou o Cristo, o Filho do Deus vivo. Esta declaração cabe na direção da
casa de César, dos ídolos, em qualquer lugar; na porta do inferno, dentro do
inferno, em qualquer ambiente. Não andarão como quem se acovarda. Não
serão indivíduos da evasão, da fuga, da alienação, do medo, das geografias
proibidas, dos pânicos, dos terrores, do hoje estou salvo, hoje não estou sal-
vo, hoje obedeci a Deus porque fui a um lugar que é um CEP5 consagrado.
Ou, hoje eu estou numa situação ruim porque eu passei por um lugar que é
um CEP desconsagrado.
Jesus acaba com tudo isso e diz que se o discípulo não for sal da terra ele
não tem valor. Se essa luz não puder ser mais poderosa do que os deuses de
Cesareia de Filipe, ela não serve para nada. Se o caminho dessa fé for um

5. CEP: Código de endereçamento postal

58
A confissão do discípulo

caminho de fuga, de evasão e de síndrome do pânico em relação ao contágio


do mundo, não existe dentro do discípulo o Cristo, o Filho do Deus vivo. O
que existe é, no máximo, um indivíduo que segue crenças e que tem pavor
de não segurar a onda se a sugestão for mais forte do que a crença que nele
existe. Aí tanto faz como tanto fez. Continua a ser uma porca, apenas não
está suja; está lavadinha, mas a natureza não foi transformada.
O discípulo é um indivíduo que fica tão cheio da consciência de Deus na
sua própria existência que não tem medo de nenhum inferno, de nenhum
portão do inferno. Ao contrário, o surto cresce muito. Não aquele surto de
se achar um oráculo de Deus. Esse não, mas o surto da fé. Da certeza de que
maior do que o que está no mundo é o que está nele. Da certeza de que existe
sobre ele a ordem, a palavra que assevera, da parte de Jesus: “Eis aí vos dei au-
toridade para pisardes serpentes e escorpiões e sobre todo o poder do inimigo,
e nada, absolutamente, vos causará dano”. Essa certeza é maior do que tudo.
Quando a realidade do Cristo, do Filho do Deus vivo vai entrando e se
embrenhando em nós – e na experiência de Pedro vamos vendo, no curso e
na sequência das coisas, que foi um processo crescente –, embora o espigão
já estivesse plantado no âmago, o enraizamento é crescente. Quando essa
Presença está lá, o indivíduo pode até negar no pátio de Caifás, mas ele não
aprenderá nenhum outro caminho que não o traga de volta para o mesmo
lugar n’Ele, porque a Presença está nele e ele anda nela e com ela.
Essa certeza é tão maior que ele deixa de ser um indivíduo preocupado
com o diabo. Na realidade, o discípulo sabe que o surto da graça de Deus nele
é tão poderoso que ele passa a ser um problema para o inferno. Em Jesus, eu
sou a macumba do diabo. Eu sou, em nome de Jesus, a macumba do inferno.
O que Jesus está dizendo é isso. Podem colocar, façam este despacho de graça
na porta do inferno. E que despacho é esse senão a sua presença cheia do Es-
pírito Santo como sal de Deus, luz do mundo, carregando a palavra da vida
sem medo de nada e de coisa alguma? Um assombrador de assombrações.
Um discípulo do Evangelho, aprendendo todo dia que o caminho é esse.
Dinâmico, móvel, tabernacular. Andando e seguindo a Jesus. E se o caminho
passar por Cesareia de Filipe, na presença dos deuses, nós, como o salmista
diz, cantemos louvores e exaltemos o nome Dele na assembleia dos deuses,
dizendo: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.
59
O Caminho do discípulo

Para refletir
1. O que é “fermento dos fariseus e dos saduceus” na nossa vida?
2. Quem recebe ou pode receber – como foi dito a Pedro – as chaves do reino dos
céus?
3. O que significa receber as chaves?
4. Quem é o discípulo? O que identifica alguém como discípulo?

Anotações

60
4. Se alguém quer

Mateus 16: 20 a 27:


Então, advertiu os discípulos de que a ninguém disses-
sem ser ele o Cristo. Desde esse tempo, começou Jesus
Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário
seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anci-
ãos, dos principais sacerdotes e dos escribas; ser morto
e ressuscitado no terceiro dia. E Pedro, chamando-o à
parte, começou a reprová-lo, dizendo: Tem compaixão
de ti, Senhor; isso de modo algum te acontecerá. Mas
Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda, Satanás! Tu
és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das
coisas de Deus, e sim das dos homens. Então, disse
Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim,
a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Por-
quanto, quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; e
quem perder a vida por minha causa, achá-la-á. Pois
que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro
e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troca
da sua alma? Porque o Filho do Homem há de vir na
glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá
a cada um conforme as suas obras.

O verso 21 diz que, uma vez concluída a etapa da confissão de Pedro e


da diferenciação do Jesus do povo do Jesus de Deus, “Começou Jesus Cristo
a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e
sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser
morto e ressuscitado no terceiro dia”. Mas, antes, ele havia dito, no verso 20:
“Então, advertiu os discípulos de que a ninguém dissessem ser ele o Cristo”.
Pedro havia confessado quem Jesus era para ele. E Jesus então faz essa adver-
tência. Se fosse eu dizendo para não falarem a ninguém que Jesus é o Cristo,
diriam, com certeza, que eu seria o anticristo.
O discípulo tem de obedecer tanto a Jesus a ponto de conseguir não argu-
mentar, mesmo que a ordem seja para se calar a respeito dele. Essa contradição
61
O Caminho do discípulo

extraordinária – Pedro diz: Tu és o Cristo, e Jesus diz: Bem-aventurado tu és,


mas não diga a ninguém isso – coloca os discípulos em um compasso de espera
no qual Jesus está dizendo o seguinte: Vocês sabem, mas não estão preparados
para as implicações, e a vida ainda não está grávida deste momento, desta
declaração. O discípulo aprende a gravidez do tempo, da hora e dos aconteci-
mentos, tanto quanto aprende a gravidez do processo de Deus em si próprio.
Mas, além disso, o que é interessante observar é a afirmação de Mateus:
Passada essa etapa, ensinada essa lição, vivido esse tempo, começou Jesus
Cristo a ensinar outras coisas.
É a primeira vez na narrativa de Mateus – exceto na introduçãozinha lá
na genealogia, que é quase uma introdução cartorial, portanto, nem vale –
que Jesus tem o seu nome seguido da assinatura Cristo, o Messias; porque
isso estava definido: Tu és o Cristo.
Então, escrevendo “Passou Jesus Cristo”, Mateus está pontuando o fato
de que isso agora está incorporado, é uma consciência que deve ser absor-
vida. Desse tempo em diante, passou Jesus a ensinar outro caminho do dis-
cípulo, o caminho da cruz: “Era necessário seguir para Jerusalém e sofrer
muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto
e ressuscitado no terceiro dia”.
É quando Pedro diz: Senhor, tem compaixão de ti mesmo, tu andas de-
pressivo, já me deste a chave do reino dos céus, o que eu ligar, está ligado; o
que eu desligar, está desligado. Conta comigo, não te preocupes com mais
nada. Eu vou chegar a Jerusalém ligando, desligando, fechando; eu vou che-
gar lá também e ninguém vai lhe tocar; mas pare com essa história de cruz, de
morte. E Jesus disse: “Arreda, Satanás”. Porque o discípulo que tinha acabado
de declarar “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” não sabia ainda que essa
declaração não era de conquista e nem de glória.
Pedro surtou com a história das chaves do reino dos céus em suas mãos. E
então ele achou que era o cara, o gestor. Tinha saído da empresa de pesca com
os irmãos, mas agora era o gestor do reino dos céus. Ou seja, Pedro tinha se
tornado bem evangélico, de repente. Determinando, fechando, amarrando,
declarando. Tinha ficado “crente”.
E muitos já estiveram nesse barco. Não se enganem. É melhor falar a verdade
e dizer: Graças a Deus estou liberto. Vocês sabem do que estou falando. Não ou-
viram o “Arreda, Satanás” porque o pessoal somente dizia “está amarrado”. Cruz?
62
Se alguém quer

Jamais! Você nasceu para ser cabeça e não cauda. E esse mesmo pessoal decretava,
em nome do Senhor, que esta cruz virou relíquia, virou decoração numa mansão
que o Senhor está lhe preparando. É mais ou menos assim que a coisa ficou no
nosso meio.
Existe aqui uma deliberação pedagógica de Jesus de dizer que há uma eta-
pa sendo concluída e que o caminho do discipulado segue agora para entrar
no coração do seu significado. Porque o coração do seu significado prático,
existencialmente trazido para a vida, transcende a declaração que diz “Tu és
o Cristo, o Filho do Deus vivo” e nos leva para a implicação disso que ele
descreve com termos e construções pesadas.
Depois, quando ele anunciou que o entendimento do discipulado, do
discípulo, tinha de ser sobre o significado da cruz, não somente a de Jesus,
mas a cruz de qualquer discípulo – ao que Pedro reagiu –, ele escreveu no
quadro-negro da história qual era a proposta da aula:
Jerusalém, Cruz. Morte e Ressurreição.
Este é o tema. Pedro se levantou, apagou e disse: Este aqui, não. O Se-
nhor me desculpe, mas não, o negócio é para o reino, Jesus. O Senhor me
deu as chaves do reino, não as chaves de tumba, de mausoléu. Eu, pelo me-
nos, estou fora se for para abrir isso.
Observe como a melhor revelação de um discípulo ainda é mera estupidez.
E Jesus, a partir daí, diz a seus discípulos – discípulo, aquele que aceita a
disciplina do Mestre, aquele que diz: Eu quero andar conforme Jesus diz que
a vida é –: “Se alguém quer vir após mim...”
É nesse contexto que Jesus faz o convite a seus discípulos. Isso tinha aca-
bado de acontecer. O clima é este. Pedro dizendo: Cruz, não. Jesus dizendo:
“Arreda, Satanás”. E ele prossegue afirmando até para o próprio Pedro que
tinha acabado de declarar coisas maravilhosas.
Vejam como tudo é no caminho mesmo, como o passo daqui não me
garante o passo dali. Aquele que diz: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”,
no dia seguinte pode dizer: “De modo nenhum, Senhor”! E ouvir de volta:
“Arreda, Satanás”. Isso acontece porque não existe discípulo acabado, com-
pleto. Esse caminho termina quando termina. E somente termina quando eu
me torno semelhante a Jesus. E eu me tornarei semelhante a ele quando eu o
vir como ele é. E eu somente o verei como ele é quando eu já não estiver mais
63
O Caminho do discípulo

condicionado pelas relatividades do espaço-tempo desta vida, ou como Paulo


chama, deste “corpo de morte”, e tiver sido introduzido às coisas eternas e
que são. Então estarei acabado, porque serei como ele é.
Até então, até aqui e enquanto isto, é assim. Eu dou o passo de ontem e
ouço o Senhor dizer: Abençoado és, Caio. E eu digo: Maravilha! Já no meu
próximo passo aparece uma situação tão difícil que pensei que o nome de
Deus iria ficar afetado. Talvez até levasse a ideia de Deus à morte. Então, na
mesma hora, eu digo: Senhor, eu vou entrar na briga. Vou puxar a espada, vou
resolver isso. Acabe com essa passividade. Por que o diabo é mais agressivo que
o Senhor? Por que a macumba faz mais mal do que o bem do Evangelho? Nós
temos de inverter essa ordem. Temos de ser, pelo menos, piores ou mais agressi-
vos e assertivos do que o diabo. Afinal de contas, a chave do reino está conosco;
o Senhor disse que as portas do inferno não prevalecem contra nós.
Essa é uma lógica perfeita. Mas Jesus poderia dizer: Caio, Arreda, Satanás,
porque nesse momento eu teria virado o diabo. Teria virado o anticristo por
um momento, porque eu estaria trabalhando contra o caminho da cruz.
Ele diz: “Se alguém quer ser meu discípulo...” Tem de vir após mim, tem
de negar-se a si mesmo, tem de tomar a sua cruz e me seguir. Está pensando
que essa coisa toda termina com a confissão iluminada “Tu és o Cristo, o
Filho do Deus vivo”! Aleluia?
A maior parte da cristandade bem intencionada parou aí. É por isso que
as discussões são sobre credo, doutrina, sobre a natureza de Deus, sobre a
fimose na trindade. Ou então é a vanglória dos que dizem: Senhor, todos te
negaram, menos eu. Alguns já nem sabem mais se Maria era virgem, nem se
o Senhor nasceu mesmo do Espírito Santo ou se a história foi mal contada.
Alguns estão até dizendo que o Senhor se parece com qualquer dos profetas
do povo, e que, em certa medida, o Senhor e Buda estão pau a pau, com
certa vantagem de tranquilidade para Buda. No entanto, eu estou aqui, Se-
nhor, mantendo firme a confissão ortodoxa, escrita pelos melhores teólogos
piedosos da história da cristandade, e eu declaro que Tu és o Cristo, o Filho
do Deus vivo. Faço a minha profissão de fé!
E o indivíduo passa mais 50 anos da vida estudando sobre o Cristo, o
Filho do Deus vivo, para discutir com os outros que Jesus é o Cristo, o Filho
do Deus vivo. E durante a vida inteira a sua declaração é de que Jesus é o
Cristo, o Filho do Deus vivo. E a vida dele para aí.
64
Se alguém quer

Aquilo que um dia Jesus disse acerca do que Pedro dissera – “Bem-aven-
turado és” –, se virar uma obsessão mecanicista, deixa de ser aquilo que um
dia foi num instante de verdade. Porque essa declaração somente se consubs-
tancia, se incorpora, se faz válida se, desse tempo em que entendemos isso
em diante, aceitarmos que, assim como o caminho de Jesus levou à cruz, o
caminho do discípulo também leva à cruz. Não à cruz de Cristo, expiatória,
substitutiva, salvadora, redentora, solidária, cósmica, transcósmica, erguida
antes da fundação do mundo e manifesta na história. Não. Essa é única, ini-
gualável. Mas ele fala da minha, que ele simboliza chamando-a de cruz, por
bondade de transferência de signo de graça, de privilégio transferível para o
discípulo; mas a minha não é como a dele. Existe a minha porque há a dele.
Se não houvesse a dele não haveria nem cruz de graça para mim.
A minha e a sua não carregam nenhum poder meritório, salvador, re-
dentor, não faz transferência de bem espiritual para ninguém. É apenas um
privilégio meu e seu, e ele a descreve, dizendo que cruz é essa. E não é a so-
gra, com certeza. Sogra é no máximo fardo, jugo, mas não é a cruz. Nem é o
marido, nem a esposa, nem os filhos desobedientes, nem a igreja que alguns
suportam. Ele diz qual é essa cruz. A minha e a sua. E ele diz descrevendo o
processo inteiro do caminhar: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se
negue, tome a sua cruz e siga-me”.
O processo inteiro começa numa decisão completamente pessoal, porque
existe a diferença entre o Jesus do povo e aquele que se dirige a nós com a
questão: “Mas vós, o que dizeis que eu sou”? De fato, o que nós temos diante
de nós é o convite, e temos de decidir se aceitamos, se queremos. Se não for
alguma coisa absolutamente sua, intestinal, visceral, que habite a intimidade
mais recôndita do seu ser, que seja a decisão mais arraigada dentro do seu
próprio interior e daquilo que você chama de eu, se não for assim, não co-
meça nada. Ninguém pode querer por você.
Não é um conceito de transferência, não é um benefício transferível; não
se pega por osmose, não se passa em família, não carrega um contágio efetivo
que realize a coisa somente por andar nas proximidades.
Fazer isso sem decidir no coração apenas produz indivíduos cínicos e
impermeáveis. Por isso é que Jesus começa dizendo: “Se alguém quer...” E
não adianta teologizar, usar a herança presbiteriana – seja ela qual for – para
fugir da luta.
65
O Caminho do discípulo

Qual é a herança presbiteriana? É o indivíduo logo apelar para a predesti-


nação. Será que eu fui predestinado? Isso é desculpa de quem não quer nada.
Discutir sobre a predestinação, a presciência, a eleição – tudo papo que não
tem nada a ver com Jesus. Não sabemos nem o que está acontecendo no inte-
rior do nosso corpo neste momento, quanto mais sobre a presciência de Deus.
Jesus não teologizou isso. Ele apenas disse: Essas coisas não nascem da carne,
isso é revelação do Pai. “Se alguém quiser”. O que é do Pai é do Pai. O que diz
respeito a cada um, diz respeito a cada um. Se o Pai revelou, ele revelou.
A pergunta agora é: Revelado está, alguém quer? Temos de decidir se
queremos. Não basta dizermos que cremos no que Deus diz. Aquilo em que
se crê tem de se transformar no que se quer, senão nada do Evangelho será
realizado em nós. Nada, absolutamente nada. Se alguém quiser ser meu dis-
cípulo... Não é um grupo de privilegiados.
Ele começa tudo com um se, com uma possibilidade de liberdade aberta
ao exercício da vontade, do arbítrio próprio, da consciência, da determina-
ção, que diz: Eu quero, eu sou, eu vou. “Se alguém quiser ser meu discípulo”.
Não é apenas parecer, aparentar, demonstrar, testemunhar. É a mutação de
alguém em discípulo. Antes, havia alguém, identificável, fenomenologica-
mente, como um mamífero pertencente à raça humana. Alguém. A viagem é
do alguém para o ser discípulo. E o indivíduo tem de querer, tem de aceitar
a disciplina do mestre, o ensino do Evangelho. Nada mais está aberto à ques-
tão quando eu digo: Eu quero ser teu discípulo.
É óbvio que isto não será fechado nesse dia. Vai acontecer no caminho.
Mas tem de começar no momento em que o indivíduo, ainda que tropece
milhares de vezes, diga hoje e diga todas as vezes, tantas quantas tropece ou
acerte: Eu quero ser teu discípulo. Mesmo quando não querendo, eu quero.
Mesmo quando insuportável, eu quero. Mesmo contra tudo que em mim es-
tremece, eu quero. Eu quero ser teu discípulo. Quero ser. Quero incorporar.
Jesus diz: Quer? Então, negue-se a si mesmo. E o indivíduo diz: Pelo amor
de Deus! O que vai sobrar, então? Negar a mim mesmo?
Quando eu me converti, em 1973, negar-me a mim mesmo era cortar o
meu cabelo grande, diminuir a barba para não escandalizar os irmãos, jogar
fora as calças carne-seca, de pano de saco. Essas coisas não podiam mais. Era
pecado. Jogar fora os tamancos, as roupas extravagantes. Tudo. Jogar a mim
mesmo fora.
66
Se alguém quer

Negar-me a mim mesmo era também voltar correndo na minha motoci-


cleta para fechar o tubo de pasta de dente que eu havia esquecido aberto no
banheiro por pressa, porque estava atrasado para o trabalho. Eu me lembrava
a um quilômetro de distância de casa, e eu sentia aquela convicção no cora-
ção, que eu achava que era o Espírito Santo mandando voltar para fechar o
tubo de pasta. E eu voltava em obediência. Voltava, fechava o tubo de pasta,
chegava atrasado ao trabalho, mas eu tinha negado a mim mesmo.
Existe uma dimensão da vida, quando estamos do tamanho de um ha-
mster, que negar-se a si mesmo até passa por aí; um processo educativo, uma
pedagogia de brucutu que ainda faz parte do mundo do Fred Flintstone, da
pedra lascada. Faz até parte, mas não é isso.
Negar o self, o si mesmo, não é negar o eu. Se eu negar o meu eu, eu me
torno budista em certo sentido. Se eu conseguisse essa façanha absoluta de
negar o meu eu, eu mergulharia direto no Nirvana, no grande mar cósmico,
dissolvido na impessoalidade, misturado com o todo.
Eu sou chamado a negar o self, o si mesmo, que não é o eu. É a decoração.
É o carro alegórico. É a Sapucaí da minha vida. São as minhas máscaras, as
minhas crostas, as minhas incorporações que eu passo a chamar de eu, de
mim, e elas são de uma quantidade tão absurda que, praticamente, a maioria
das pessoas não sabe qual é o seu próprio eu. Porque tudo o que elas experi-
mentam é uma relação do si mesmo com o mundo, que é feito de outros si
mesmos. Ou seja, é uma relação de fantasia, porque o si mesmo é fantasia.
São relações de fantasia. Si mesmos encontrando si mesmos.
Então alguém pode perguntar: Como você tem tanta certeza de que o si
mesmo é fantasia? É porque logo adiante, no texto, Jesus diz o que é ser seu
discípulo. Ele faz um arrazoado, propõe uma lógica para animar as conside-
rações do pessoal que o ouvia.
Ele diz, no verso 25: “Porquanto, quem quiser salvar a sua vida, perdê-
la-á; e quem perder a vida por minha causa, achá-la-á. Pois que aproveitará
ao homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o
homem em troca da sua alma?” Ou seja, Jesus, imediatamente ao falar do si
mesmo nos traz para um ambiente da relação do homem com o mundo, do
homem com a fantasia. “O que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro se
vier a perder a sua alma”? O que significa isso? Significa que ganhar o mundo
inteiro é tarefa da qual o si mesmo se empenha. O si mesmo é produzido no
67
O Caminho do discípulo

curso desse mundo. O si mesmo é esse indivíduo turbinado, o dia inteiro,


para ganhar o mundo inteiro. Ele é feito de conquistas, de traumas, de decep-
ções; ele é feito de ilusão, de paixão, de grandes revoltas e raivas, de política,
de ideologias, de gostos culturais, de razões e direitos estabelecidos num dado
momento social, circunstancialmente condicionado a uma geração.
E você ouve alguém dizer: O que você conseguiu fazer com seu si mes-
mo? Todos adoravam o seu si mesmo, e de repente, o seu si mesmo virou
essa porcaria. E você ainda pergunta o que é o si mesmo. Si mesmo é o que
pensamos que se chama eu em nós. Ele é feito de traumas parentais, de
desculpas psicológicas para não se dizer “eu quero”. Ele é feito de todas as
ilusões que alimentamos, estimulamos, colocando soro nas veias para que
elas se mantenham em um estado de zumbificação alegre. O si mesmo é
feito desse arcabouço. Ele é a volta da reflexão da imagem, do meu holo-
grama construído pelo mundo, ungido pelo mundo com as categorias que
dizem: Assim é um homem bem sucedido; assim é uma mulher bonita;
assim é uma pessoa inteligente; assim se faz, assim se veste, assim se anda,
assim se visita, assim se gosta, assim se entrega, assim é. Como ser um si
mesmo bom? O indivíduo compra essa história inteira e sai andando por
aí dizendo: eu, eu, eu.
Muitos vão saber o que é o eu neles somente quando não sobrar mais
nada. Tudo tem de ser comido até a morte; e quando morreu tudo e foi
surgindo o eu – e graças a Deus por isso –, uma velhice longa e uma morte
dolorida são uma bênção. O objetivo é ver se no meio de tanto jogar de si
mesmo fora, consiga, pelo menos, encontrar o eu soterrado lá dentro.
Às vezes, uma falência é uma coisa maravilhosa para sair rasgando o si
mesmo para tudo que é lado, a fim de se ver se, lá no fundo, aparece o eu
moribundo. Por isso desilusão é uma bênção. Muitos lamentam tanto as
desilusões! O ruim é andar iludido. Quando alguém diz que sofreu uma de-
silusão, eu digo: Aleluia! Quanto mais desilusão, melhor. Não somos gente
do Caminho, da Verdade e da Vida? Então, bem-vinda desilusão! Aleluia!
Assim, vamos caindo na real.
Mas o si mesmo é feito das ilusões que são muito doloridas, difíceis de
se desfazer em nós, porque o si mesmo vive de mentiras, de fachada, de fan-
tasia, de grifes diversas, psicológicas, espirituais, até daquelas que se quiser
inventar, as mais básicas.
68
Se alguém quer

Se alguém quer ser meu discípulo, diz Jesus, o indivíduo tem de tomar
consciência de que existe uma montanha de impressões sobre si que precisa
ser jogada fora. O discípulo tem de encarar os fatos e fazer a viagem “após
mim, olhando para mim, tendo a mim como sua única referência, dando-me
razão em tudo” – é o que Jesus está dizendo. E ainda que, de forma sofrida,
tenhamos de dizer: O Senhor tem razão. Mesmo não gostando das razões
de Deus, como Abraão, que não achou nada gostoso, nada delicioso, nem
foi cheio de gozo, nem de gáudio, nem falando em línguas ou profetizando,
andando para o monte Moriá. Não. Ele foi gemendo, mas foi. E quando viu
o monte, chamou os servos e disse: “Ficai aqui, e eu e meu filho, tendo ido
e adorado, voltaremos para junto de vós”. Mas ele não disse: Aleluia, nós so-
mos os levitas do monte Moriá! Não era essa adoração panaca. Era adoração
que se adora com dor, com perplexidade, sem entender nada, mas dizendo:
Tu és Deus, e, contra tudo o que eu sinto, eu vou. Isso é o após mim.
“Se alguém quiser vir após mim”, então, saiba que há um carro alegórico
na sua vida, imenso, que vai ter de ser quebrado todinho para então aparecer
esse serzinho que até hoje, talvez, não tenha tido a chance de olhar, nem de
relance, e que é você.
O caminho do discípulo é o caminho das abençoadas desilusões e das
eternas verdades. O caminho do discípulo vai reduzindo a vida ao pouco que
seja necessário, ambicionando chegar o dia em ele diga: Basta-me uma coisa
somente. Esse é o Caminho.
Olhe para dentro de você e pergunte se, de fato, você quer esse Caminho.
No Evangelho é assim. Temos de querer. E não é o nosso dinheiro em
qualquer gazofilácio que mede a determinação do nosso querer. São as deci-
sões de andar após Ele. De dizer: Eu dou razão ao Evangelho na minha vida.
Não temos de fazer uma reflexão secundária de como vamos tratar o nosso
inimigo. Jesus já disse como é que ele tem de ser tratado. Não temos de fazer
reflexão secundária e nem ponderar com Deus o tamanho das nossas raivas,
das nossas justiças ofendidas, dos nossos direitos aviltados, e que, portanto,
temos direito a uma instância superior de vingança. Ir após ele é simplesmen-
te entrar em todos os buracos com Jesus, sair de todos os buracos com Jesus,
visitar todos os cemitérios com Jesus; é sofrer na presença de Jesus, ver a re-
velação da nossa incoerência na presença dele, enquanto somos disciplinados
pelo Evangelho, dando lugar à disciplina, que não é cacete de diácono, nem
69
O Caminho do discípulo

de presbítero, nem de igreja doida, nem de conselho surtado. Disciplina, no


Evangelho, é quando o Espírito Santo coloca na nossa consciência a razão
do Evangelho contra todas as nossas certezas ou opiniões. É quando o nosso
coração diz: Eu o quero para mim. Aí começa um caminho que não será
perfeito, mas será perfeitamente imperfeito e gracioso até o dia em que ele se
tornar pleno e total.
Todos nós ainda estamos apenas nas veredas das nossas próprias relativi-
dades, mas saiba que a grande questão é: Eu quero realmente? O quanto eu
quero? Ou, de fato, o que eu estou querendo?

Para refletir
1. Aonde leva o caminho do discípulo?
2. Qual é a diferença da cruz de Jesus Cristo para cruz do discípulo?
3. Qual é a decisão pessoal que faz começar o caminho da cruz para o discípulo?
4. Faça uma análise da frase: “desilusão é uma bênção”. Você concorda? Por quê?
5. O que é o “si mesmo”?
6. Do que vive o “si mesmo”?
7. Qual é a diferença entre o eu real e o eu falsificado?
8. Por que é impossível seguir a Jesus sem negar o si mesmo?
9. Qual é a referência do discípulo durante a caminhada?
10. O que se entende por “reflexão secundária”?
11. Você quer ir após Jesus?
12. O que é que mede a determinação do seu querer?

Anotações

70
5. Tomar a cruz – a morte do si mesmo
Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.

Em Mateus, no capítulo 16, já vimos que não era coincidência o fato de


que, antes de Jesus introduzir a questão do discípulo, tenha ele feito a jorna-
da, o caminho deles passar por aquela questão que se relacionava ao fato de
que eles deveriam cuidar para que, em seus corações, não houvesse a malda-
de, o fermento, o inchaço, a artificialidade, o volume não correspondente à
massa, à densidade real, que é o fermento dos fariseus e dos saduceus – como
ele, em texto paralelo no Evangelho de Lucas, diz.
Antes de ser discípulo – ele diz – o indivíduo tem de saber, de saída, que
não dá para levar o culto à imagem que os fariseus fazem à ética midiáti-
ca – que é uma ética apenas de valor concentrado em si mesma –, nem ao
fermento dos saduceus, que não criam em espírito, nem em anjo, nem em
ressurreição e nem em coisa alguma, mas comportavam-se da maneira mais
sacerdotal e ritualística possível, porque o que eles queriam também era o
prêmio da observação dos homens. Tampouco dá para ser discípulo ou levar
no coração o fermento de Herodes, que é aquela vontade de poder, de con-
trole, que são os inchaços dos tentáculos das ambições.
Ele prossegue e introduz a questão a caminho de Cesareia de Filipe, uma
geografia completamente pagã desde sempre. Não foi casualidade a introdu-
ção dessa questão andando na direção da geografia da paganidade, da geografia
do paganismo; da geografia das multimanifestações, da geografia onde nada é
homogêneo, onde cada um tem seu altar, seu nicho, seu deus, seu credo.
Ou seja, ele falou no assunto levando os discípulos na direção do mun-
do real, como ele é; não os levou para dentro de uma redoma, ou para o
claustro de uma igreja-templo, ou para o clube dos salvos. Ao contrário,
ele falou em discipulado, falou em segui-lo, levando-os num movimento
dinâmico; indo, caminhando como um hebreu – que é aquele andar de-
sinstalado –, para a direção de Cesareia de Filipe, que era uma das cidades
mais pagãs que havia dentro das fronteiras de Israel naqueles dias. Ele en-
sinou que, antes de qualquer coisa, o discípulo tem de não se impressionar
com o que os outros dizem.
71
O Caminho do discípulo

Um discípulo que anda pela cabeça dos outros jamais será discípulo de
Jesus. Para ser discípulo de Jesus tem de haver a decisão no coração de que
Jesus é único, exclusivo e absoluto.
O que os outros dizem é o que os outros dizem. O que os outros dizem
vira religião, vira seita, vira denominação, vira doutrina, vira grupo específi-
co, vira ênfase, vira qualquer outra coisa, mas não é Evangelho. Evangelho é
a totalidade do nosso compromisso, e, em descobrindo, discernindo, perce-
bendo o que seja a palavra de Deus em Jesus, acolher aquilo sem discussão.
Quando Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, vi-
mos que isso não nasce dentro de nenhum homem como produto apenas
da reflexão e da mente. A menos que ele seja pagão de pensamento; e, nesse
caso, Jesus para ele será apenas um ídolo como qualquer outro. Há os que o
fazem de gesso, de pau, de pedra, de ouro, ou de qualquer outro material; e
há aqueles que o fazem de gente.
Se alguém olha para Jesus e diz: Eu creio que tu és Deus, mas diz isso
sem que tenha havido no coração a revelação do Espírito Santo que assente
no seu interior o significado absoluto disso; ou que signifique apenas tu és
Deus do meu pedaço; tu és Deus do meu país; tu és Deus dos cristãos; tu és
Deus dos que te acham legal; tu és o Deus da Terra; tu és o Deus da nossa
galáxia, isso não significa nada. Significou, sim, quando Pedro disse “Tu
és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. O tamanho da loucura e da blasfêmia
do ponto de vista humano foi tão grande porque aquilo significava que,
naquele ser que estava diante dele, havia o adensamento de todas as coisas
pertinentes a Deus, já que Deus não é tempo, não é espaço, não é massa,
não é volume. Deus é Espírito.
Esse discernimento vem por revelação do Espírito Santo, não nasce no
monte Olimpo, Sócrates não o produziu, Platão não o elaborou, teologia
alguma o fabrica. Para ser real e verdadeiro, tem de ser, de fato, trabalho e
revelação do Espírito de Deus no coração do ser humano. Saber isso, receber
essa revelação, não nos torna oráculos andantes de Deus. Porque o mesmo
Pedro que disse essas coisas, em momentos posteriores, disse uma loucura
imensa, pela qual veio a ser repreendido com “Arreda, Satanás”. Nos capítu-
los anteriores, estudamos as implicações variadas disso tudo.
Jesus – tendo visto que os discípulos haviam confessado que ele era o
Cristo, o Filho do Deus vivo – inicia, de modo decisivo, uma segunda etapa.
72
Tomar a cruz – a morte do si mesmo

Em Mateus 16:21 está dito que foi depois dessas coisas, depois daqueles
acontecimentos, claramente fazendo uma transição pedagógica. Uma vez
que isso estava posto, esclarecido, ele passou adiante introduzindo a questão
do convite a segui-lo. É quando ele anuncia a cruz. É quando Pedro se in-
surge contra a ideia da cruz. Pedro tinha assimilado que Jesus era o Cristo,
o Filho do Deus vivo, mas não tinha ainda assimilado que o caminho do
Cristo, do Filho do Deus vivo, e de qualquer discípulo seu, era o caminho
da cruz. Era outra loucura para Pedro, que tinha recebido revelação do Pai.
Ele usou a sua conjectura e a sua elaboração e chegou à conclusão estúpida
de que o melhor a fazer seria repreender Jesus por estar dizendo que estava
caminhando para a cruz.
Então, se conhecido estava que Jesus era quem era, havia chegado o mo-
mento de ficar conhecido quem o discípulo era. Uma coisa é quando eu
recebo revelação de quem Jesus é. Isso me salva, isso me ilumina. Outra coisa
é quando a revelação de quem Jesus é transforma-se no significado a respeito
de quem eu sou chamado para ser. Porque na hora em que eu recebo reve-
lação de quem Jesus é, passa a ser apenas uma questão de tempo, pois, em
sequência, ato contínuo, eu vou ter de me deparar com o fato de que saber
quem Jesus é demanda de mim um compromisso com quem eu devo ser,
com quem eu fui chamado para ser, com quem eu sou, do ponto de vista de
Deus. E esse é o chamado do discípulo.
O discípulo não é chamado para inventar ou para entrar num caminho
inumano. Ao contrário, ele é chamado para mergulhar no caminho mais
humano que existe. O discípulo é chamado para deixar a inumanidade e a
desumanidade do caminho, que caracteriza a existência humana antes de um
homem se tornar um discípulo.
O discípulo não é o vip da jornada humana, não é o indivíduo que deci-
diu ir para a última classe do vagão, que, do ponto de vista de Deus, seja a
primeira. Não. O discípulo é apenas o indivíduo que entendeu que, se Jesus
é Deus e se ele crê nisso, a implicação disso é simples.
Eu tenho de me perguntar: Sendo Jesus quem é, como é que eu devo
ser? E a resposta é simples: Se ele é quem ele é e se eu fui feito à imagem e
semelhança de Deus, tudo quanto em mim não se pareça com Jesus é uma
dessemelhança a ser curada. Porque o meu chamado é para a semelhança
com ele, é para a conformação com ele, é para ir transformando a minha
73
O Caminho do discípulo

mente, no processo da jornada do caminho da nossa existência, olhando


para ele, seguindo-o, de tal maneira que, ao contemplá-lo todos os dias pela
revelação do Evangelho, eu vá sendo transformado com a cara olhando para
ele, olhando para a luz que ele é; e o meu rosto vá sendo transformado na
imagem do Senhor, pelo trabalho contínuo do Espírito Santo.
No entanto, no texto de Mateus 16, o indivíduo descobre que o cami-
nho para ele se tornar ele, em Deus, é o caminho da desistência de tudo
quanto ele pensa que seja ele. Que é jogar fora o self, que é jogar fora o si
mesmo. Porque Jesus disse: “Se alguém quer ser meu discípulo, a si mesmo
se negue, tome a sua cruz e siga-me”. Não foi isso o que ele disse? Portanto,
quem quiser salvar o seu self, perderá a vida; e quem perder o self por minha
causa, achará a vida.
É exatamente isso que Jesus está dizendo, que é preciso pegar o si mesmo
e jogar fora. Matar o si mesmo para sobrar o eu. Discernir o que é construção
do self, desse eu artificial que eu vou absorvendo. E essa absorção, diz o Novo
Testamento, é a partir de níveis bem básicos. O self vai sendo construído a
partir da nossa psicose básica. Nossa psicose básica está descrita em Roma-
nos, no capítulo 7, e é a seguinte: “Porque não faço o bem que prefiro, mas
o mal que não quero, esse faço”. É constatar a minha esquizofrenia básica,
constatar essa rachadura essencial que existe dentro de mim, constatar que
eu não sou uno, que eu não sou inteiro. Essa é a grande constatação humana
que Paulo faz, aquele grito superverdadeiro, carinhoso e totalmente visceral.
Carinhoso para conosco, na medida em que ele fala a verdade; e visceral, pela
dor com a qual ele faz aquela confissão: “Desgraçado homem que eu sou;
quem me livrará do corpo desta morte”? Porque eu sou contradição. Então
a primeira coisa é identificar essa pulsão essencial que vai produzindo o self;
que nasce dessa psicose básica, dessa divisão interior, do diabulos existencial,
dessa rachadura. Paulo diz que a tendência do homem natural é para o self, é
para a autogratificação, para se sentir forte por conquista. E não por ser.
A tendência do homem natural é essa. Se essa rachadura está estabelecida
essencialmente aqui dentro de mim, no curso da minha existência, a minha
tendência, natural e infelizmente, é de assimilação do self, desse si mesmo
que vai ganhando valor agregado – ou desvalor agregado – a partir da minha
própria dissonância interior, a partir da minha rachadura mais essencial, a
partir da incomunicabilidade do meu ser com o meu ser. Você pensa que já
74
Tomar a cruz – a morte do si mesmo

se nasce falando consigo mesmo? Isso é uma conquista da caminhada. Na


maioria das vezes, nós somos somente seres espasmódicos, somos espasmos;
águas vivas psíquicas. É a vida! É somente isso; unicamente isso.
Outro nível que alimenta o self – diz também o Novo Testamento – é
aquilo que é chamado de paixões da carne, que é essa psicose básica, treinada
pelo tempo; treinada pelo desejo, treinada pelo instinto descontrolado: vai
crescendo, crescendo, para se tornar viciado. A paixão da carne é o vício do
desejo, com soberania e supremacia sobre a consciência. Essa é a paixão da
carne. Vai alimentando o self. A paixão da carne, por seu turno, se alimenta
do curso deste mundo, também.
O que é o curso deste mundo? Curso deste mundo é a média ponderada
das importâncias compartilhadas na coletividade a partir da cultura familiar,
da cultura de bairro, da cidade, do país e a partir da cultura global, para nós,
que somos todos filhos dessa “aldeinha” cada vez menor. Então, o curso deste
mundo vai alimentando as paixões da carne, porque o curso deste mundo
estabelece o que a carne deve desejar e pelo quê ela deve se apaixonar, o que
ela deve possuir. Porque a carne come vaidade, a carne come o que não é. A
carne é pó, volta ao pó, adora pó. E o curso deste mundo serve pó com grifes
legais. É tudo pó com grife, pó grifado. É isso que o curso deste mundo ofe-
rece e com isso alimenta a carne.
E o indivíduo quer. Ele quer, ele se esforça, ele diz: Um dia, eu chego lá,
um dia eu serei alguém. Você já ouviu alguém dizer isso? Um dia eu serei
alguém! Ou aquele cara que diz: Eu não sou ninguém! Você também já
ouviu esse? Já, claro, em toda boa reunião de oração aparece esse indivíduo
que diz: Senhor, eu não sou ninguém. Ora, ninguém não consegue dizer:
Senhor, eu não sou ninguém. A outra loucura é: Um dia, eu serei alguém.
Se não houver um eu, jamais haverá, um dia, alguém! Portanto, o eu está
à procura não do eu, mas do não-eu. O que ele chama de “um dia serei al-
guém” é “um dia não serei mais eu”; “serei essa outra coisa”. De fato, é isso.
É o curso deste mundo que vai produzindo isso. Essas ambições que nós
nascemos para cumpri-las, essas vocações de vespa! Nascemos para ferroar;
é assim que é. É o curso deste mundo.
Então esse mesmo indivíduo conquista um diploma, se olha no espelho e
diz: Puxa, vida! Agora, eu sou melhor! Eu já estou lá, ou comecei a ser. Alguns
contam, assim, com a maior gratidão: Graças a Deus, agora eu sou alguém.
75
O Caminho do discípulo

Ele apresenta um relatório, ou um curriculum vitae, um diploma, um


anel; uma mulher. Agora eu sou alguém... O que faz a vida se tornar tão
patética assim? Quem foi que disse que isto é verdade?! Quem foi que disse?
Mas é o curso deste mundo. E nós vamos adotando o curso deste mundo,
pensando que mundo tem a ver com o tamanho do seu cabelo, tem a ver
com a roupa que você veste, sem saber que mundo tem a ver com o que se
pensa, tem a ver com o que se diz; é valor, é vida, é significado, é conquista, é
para ser alcançado a qualquer preço! Se não chegar lá, não valeu a pena!
Ou parece, também, com aquela desculpa ao contrário que o curso deste
mundo dá, por exemplo, para o cara que morreu jovenzinho porque fez tan-
ta safadeza que um dia a safadeza o matou. Mas ele era daquele tipo safado
gente boa, gostoso, bon vivant, estava em todas, lambendo tudo, querendo
sentir todos os gostos, parecia um cão farejando a vida. Aí, plan! Morreu! E
para dar uma desculpa para essa tragédia, muita gente diz: Viveu curto, mas
viveu muito, naquele pedaço ali! E o que foi “viveu muito”? Não viveu mais
do que uma água viva. Água viva tem mais espasmos do que ele teve. Porque
ele foi somente um espasmo, um espasmo créu! Créu-espasmo. Espasmo.
Mas é o curso deste mundo que fabrica esse cara.
De modo que vamos encontrando somente castelos de areia. Muito pra-
zer – você cumprimenta o outro holograma. Cumprimentos de hologramas!
Você já viu como muitas pessoas são outras pessoas quando se encontram?
Às vezes, ele é lindo, deslumbrante, cheiroso, legal. Leva para casa! Leva para
casa! Mas não precisa nem comer um quilo de sal. Um saleirinho com o
bicho, e já se percebe que é absinto puro! É egoísta, pavoroso, desgraçado!
Lindo, como o diabo. Mas é o curso deste mundo que vai nos fazendo tomar
quase todas as nossas decisões na vida baseados nessas referências do self. Des-
se eu que não é. Que é um balão inflado pelo engano e que vai crescendo.
Além disso, o si mesmo, o self, se alimenta significativamente de todas as
sugestões que vêm da loucura do inferno e do diabo. Que vêm do mundo in-
visível – embora haja pessoas que não querem admitir nem crer – e que é mais
real do que qualquer um e está aqui em volta. Outros estão querendo saber de
onde vêm os extraterrestres. Eu não sei. Mas eu sei que o diabo é extraterrestre.
Ele anda por aqui, mas vem de fora. Nenhum anjo nasceu no Amazonas. Ga-
briel não nasceu em Nazaré nem em Belém. Miguel não nasceu em Israel. Eles
todos vêm de fora. Qualquer moçada que não seja você, que não seja eu, ou
76
Tomar a cruz – a morte do si mesmo

que não seja leão, girafa, hipopótamo ou qualquer coisa do planeta, é extrater-
restre: anjo, diabo, demônio. Esses poderes estão aí, com os nomes que quei-
ram dar a eles. Todos os dias aumentando o volume de engano, exacerbando
no interior humano a fantasia, gerando, em conluio com a produção perversa
dos seres humanos, os aparatos, os sistemas, os modos, as formas, as trocas,
os relacionamentos mais adoecidos que se possa pensar, conceber, imaginar.
É nessa direção insaciável que esse volume perverso de poder maligno anda,
tentando se alimentar o dia inteiro, à nossa volta. É essa coisa aí que Jesus diz
que tem de morrer. Você acha ruim? Pelo amor de Deus! É a mesma coisa que
dizer: Negue o diabo e siga-me. Se alguém quiser ser meu discípulo, negue o
diabo e siga-me.
É difícil entender que o si mesmo termina sendo a coisa mais diabólica no
processo, porque é o si mesmo que nos descola do eu real. Somente com o eu
real existindo em nós, de fato, é que seremos alguém em Deus.
“Negue-se a si mesmo e dia a dia tome a sua cruz e siga-me”. Há textos
que dão ênfase, em Marcos e Lucas, no dia a dia. Tome a sua cruz e siga-me:
dia a dia. O processo do dia a dia é duplo: é tanto do negar-se a si mesmo
como do tomar da cruz. Porque não existe hiato entre o negar a si mesmo e
o tomar da cruz. Nega-se a si mesmo à medida que vamos tomando a cruz. E
quanto mais eu tome a cruz, menos o si mesmo crescerá em mim. E quanto
menos eu desejo tomar a cruz, mais o si mesmo aumentará em mim. Por isso,
é dia a dia, tanto uma coisa quanto outra.
Não há um dia de férias para o si mesmo. O si mesmo não pode ter
sossego. O si mesmo quer renascer, ele tem um poder extraordinário, ele
é um rabo de lagartixa. Mesmo cortado, fica estremecendo, e, se deixar,
cresce outro no lugar. O si mesmo tem de ser podado todo dia, toda hora.
O si mesmo tem de ser objeto de uma confrontação diária, porque ele
existe para fazer conformação com o mundo, conformação com o aeon,
com o sistema, com o espírito desse engano. O si mesmo se conecta, faz
interface com isso, de modo natural; seu software foi programado lá, ele
roda e fala em conectividade total. Por isso, o si mesmo tem de morrer.
E somente se inicia esse processo quando, no dia a dia, tomamos a cruz.
Porque se todo dia não olharmos para o self como potencial de regene-
ração perversa em nós, creia, ele se regenerará para o mal, em nós. Por
isso, é todo dia.
77
O Caminho do discípulo

Dia a dia equivale a “não vos conformeis com este século, antes, trans-
formai-vos pela renovação da vossa mente”. É um processo cotidiano. Paulo
chama de culto racional, porque é a relação da razão do Espírito, da razão
produzida pelo Evangelho, da razão produzida como consciência e mente de
Cristo em nós. Tem de ser todos os dias uma relação dessa razão espiritual,
dessa inteligência espiritual do Evangelho, perguntando, confrontando, dis-
secando, examinando as produções do nosso ser viciado no self e não naquilo
que Deus chama de eu, em nós. É toda hora. Porque o vício é muito grande.
E nós nos esquecemos o tempo todo.
É por isso que a religião é uma coisa tão confortável para a maioria
das pessoas. Quanto mais religioso o indivíduo se torna, mais ele associa a
experiência de Deus a um encontro como este. Então, como ele não quer
ter muito tempo, ele procura logo um encontro onde ele ache que caiba
tudo. Onde dê para ele plantar bananeira, virar lagartixa, dançar como um
pai de santo convertido. Um encontro que dê a ele a chance de ver todos
os milagres, ainda que sejam fajutos, de ouvir todos os gritos, que tenha
até ‘anja’ dançando no palco, e trombeta tocando, assim ele terá um pacote
de duas horas de presépio de Deus; depois irá embora dizendo: Bom, eu
acho que tive minha experiência com o Sagrado, nesta semana. E, assim,
ele não precisa dia a dia negar-se a si mesmo, tomar a sua cruz e segui-lo,
porque ele transferiu tudo isso para esse pacotão, para esse presépio de
outras ilusões do mundo.
Isso é tão ilusão do mundo quanto o mais alienante show que a Broadway
possa produzir. É esse, do presépio, do palco, e que ainda envolve Deus na
história! Tudo o que envolve Deus, não sendo verdade, é um engano pior do
que qualquer engano dito em nome do diabo.
Eu vou repetir, para que não se esqueçam nunca mais: Tudo que envolve
Deus, o nome de Deus, não sendo verdade, é engano pior do que o pior
engano feito em nome do diabo. O pior engano não é o do diabo. O pior
engano é o do diabo feito em nome de Deus! E aí a pessoa entra numa des-
sa; confunde o convite para seguir a Jesus todo dia com frequência a algum
lugar onde ela tenha essa experiência de catarse, e sai dali dizendo: Eu acho
que encontrei o sagrado; senti uma arrepiada enorme; houve um momento
em que vibrei. E aí, essa pessoa fica isenta de ter de, dia a dia, olhar para
dentro de si, tomar a cruz e carregar.
78
Tomar a cruz – a morte do si mesmo

A questão é: Se o si mesmo tem esses contornos descritos, e a cruz? Por-


que, se é para negar o si mesmo e tomar a cruz, a cruz equivale, estranha e
paradoxalmente – para a mente da maioria dos cristãos –, ao eu purificado,
santificado, justificado em Deus. Tomar a cruz é largar o si mesmo para to-
mar o eu, em Deus.
O que é a cruz, finalmente? Ora, a cruz é uma cadeira elétrica, é uma
forca, é uma guilhotina, um aparato de morte. A cruz se relaciona com Jesus
de Nazaré, com os quatro Evangelhos e com as narrativas da nossa salvação.
Nós até transformamos a cruz num aparato que foi, assim, concebido nos
céus. Deus disse: Deixe-me fazer uma cruz. E antes de criar o mundo, criou
dois pedaços de pau e fez uma cruz; antes dos tempos eternos, colocou de
pé uma cruz, lá. Ficamos sempre pensando que quando a Bíblia fala do Cor-
deiro imolado é porque a primeira criação de Deus foi um cordeirinho, um
carneirinho. É como se um indiano dissesse: A primeira criação de Deus foi
um elefante. Imaginamos, lá atrás, o Cordeiro. Lá no fim, o Cordeiro. E a
nossa cabeça vai funcionando sempre com essas categorias. Aí, vamos para
a cruz. Esquecemos que, em primeiro lugar, a cruz é um instrumento de
execução, e ponto.
Foram os romanos que a inventaram como instrumento de execução –
pelo menos, para o nosso conhecimento ocidental. Mas se fosse hoje, Jesus
diria o seguinte: Quem quiser vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua
cadeira elétrica e siga-me. Tome a sua sentença!
Não tenha medo do que o mundo chama de morte! Não fuja do que o si
mesmo chama de anulação, porque é justamente aí, nesse lugar-cruz, na di-
mensão existencial do seu ser, que reside você. Se não tiver a coragem de, antes
de tudo, pensar que a cruz é a sentença de morte do si mesmo, que a cruz é a
declaração e é o compromisso da vida com a vida que é – e não com a vida que
aparenta ser –, não há nem como começar o caminho do tomar a cruz.
Então, a cruz, a nossa cruz, do ponto de vista conceitual, do significado
do que Jesus estava dizendo com “tomar a cruz”, terá de ser exatamente o
que a cruz significava para ele. Com a diferença apenas de que as impli-
cações da cruz de Jesus eram cósmicas, e as implicações da nossa cruz são
todos os benefícios que vêm da cruz de Jesus para nós, e o benefício de
vivermos, todo dia, em obediência ao mesmo princípio, de tal modo que
vamos nos tornando um eu construído em Deus. Se a nossa referência de
79
O Caminho do discípulo

cruz é a cruz de Jesus, exceto pelo fato de que a dele salva todos os homens
e todas as coisas e já estava pré-ordenada desde antes dos tempos eternos,
a nossa é um chamado existencial para ser. No entanto, assim como era a
dele, assim é a nossa. Começa tudo com aceitar o fato de que morremos
para o mundo e o mundo morreu para nós. Isso é tomar a cruz, é o que
Paulo diz, escrevendo aos gálatas.
Qual é o mundo que morreu para nós? É o oceano Atlântico? É o Pacífico?
É a natureza linda e maravilhosa? É o encontro bom com o ser humano? É o
beijo sadio, o abraço gostoso, o encontro verdadeiro, o amor que seja amor?
Não! O mundo que Paulo diz que morreu para nós em Cristo é o mundo do si
mesmo, que é o diabo, como eu descrevi acima. Então, para que se inicie esse
processo de deixar que o si mesmo vá morrendo, matar o si mesmo, negar o
si mesmo, precisamos ter um eu. Porque quem quer ser meu discípulo – diz
ele – tem de querer. E, querendo, tem de negar-se a si mesmo, o que implica
uma vontade pessoal dupla: a que diz eu quero, e a outra que faz, negando o
si mesmo. Portanto, não existe nenhum eu implicado nisso aí. Existe algo que,
não sendo eu, parece que quer ser eu e faz tudo para ser eu, sem ser. É isso que
temos de ter dupla vontade de fazer morrer em nós, tomando a cruz. Que não
é diferente da de Jesus.
Olhe a cruz de Jesus. Ele foi levado e crucificado. E ele olhou lá de cima
e viu as pessoas cumprindo aqueles ritos da morte, os soldados romanos, e,
fora os soldados romanos, os que falavam um monte de bobagens sem saber
de nada; e ele disse: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
Tomar a cruz não é somente aceitar essa sentença de morte, como Jesus
que ainda nem tinha chegado à cruz quando disse o que disse, em Mateus
16, e já ia andando sabendo que é; mas, à medida que se vai encontrando a
experiência factual, se vai discernindo quais são os elementos da cruz de Jesus
presentes na nossa.
Tomar a cruz significa, entre outras coisas, discernir que o mundo é o
mundo. O que é ilusão e o que é engano. Discernir que o meu self é pro-
duzido pelo amontoamento desses volumes de ilusão. Discernir tudo o que
já discernimos, quando encontramos a estupidez, quando encontramos o
ódio gratuito, quando encontramos a antipatia que não se explica, quan-
do encontramos a disposição canina de fazer mal; quando encontramos a
alienação organizada para produzir algo malévolo, como liquidar alguém;
80
Tomar a cruz – a morte do si mesmo

quando encontramos a associação da estupidez produzindo um volume


enorme de loucuras à nossa volta – que foi o que Jesus viu ali. Quem toma
a cruz começa a olhar essas coisas e dizer: “Pai, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem”.
O meu discipulado começa quando eu entendo o que não é, podendo, a
partir daí, discernir o que é; e em discernindo o que é, me posicionar, dizen-
do: Eles não sabem o que fazem. Não sendo assim, não é discipulado. Mas é
discipulado se digo: Pela Tua Graça eu sei o que é, eu vi; então, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem.
Além do perdão que se recebeu originalmente em Cristo, na prática, nin-
guém toma a cruz como benefício que se transforma em vida.
O passo seguinte é que quem recebeu esse perdão, perdoa: “Pai, perdoa-
lhes, porque não sabem o que fazem”. Discípulo que não perdoa não é dis-
cípulo, nunca será. Isso não é brincadeira. Não tem conversa, não dá para
prosseguir se a cruz, se o tomar da cruz não começar com: Eu sei que estou
perdoado. Isso é o que Jesus fez por mim.
E agora, o que fica? Fica o meu caminho de cruz como ele, na Terra. E,
então, estender essa consciência, essa luz, esse discernimento e dizer: “Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Sem isso não dá nem para
começar o caminho do discípulo. Se não houver perdão, não dá para haver
passo algum nessa vereda de seguir a Jesus. Começa assim. O indivíduo se
oferece até para ser cristo em praça pública, mas não quer viver o Evange-
lho. Em praça pública, “crente” topa qualquer coisa. Ele somente não quer
viver o Evangelho.
Você quer ser discípulo? Veja então as implicações da dimensão da cruz:
entender que tudo é ilusão; entender que o centurião está iludido; que Pedro
está tomado pelo seu si mesmo, coitado; que Judas foi enganado pela desgra-
ça; que os que estão à volta são todos uns alienados, mecanizados pelo fluxo
de acontecimentos que os leva de roldão, porque são somente seres que vão
no espasmo e não tomaram consciência das coisas. E, justamente por isso,
poder dizer sinceramente, sem fingimento: “Pai, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem”.
O discípulo começa, portanto, também dizendo que Jesus não deseja
o inferno para ninguém. Porque quem diz “Pai, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem” está intercedendo pela salvação de todos os alienados,
81
O Caminho do discípulo

de todos os perdidos, de todos os obturados, os cegados, os encabrestados e


marionetados, da vida ou do inferno. Pai, perdoa esse contingente, qualquer
um, porque, se eles soubessem, não estariam fazendo isso; como Paulo veio a
dizer depois: “... jamais teriam crucificado o Senhor da Glória”.
Tomar a cruz significa também perdoar o engano do mundo. Porque,
enquanto não perdoamos o engano do mundo, não ficamos livres do seu
engano como sedutor da nossa alma. O si mesmo, o self, vai sendo vencido,
anulado e negado quando perdoamos o engano do mundo e o nosso próprio
engano; quando não tentamos mais justificar o nosso engano, nem o tempo
que perdemos, nem as nossas loucuras e nem melhorar um pouquinho o
inferno desse sistema que jaz no maligno. Ao contrário, o discípulo perdoa o
mundo. E quando ele perdoa o mundo, ele vai se libertando das pulsões que
o mundo e a carne deixaram fomentando, formando a construção artificial
desse eu que não é o eu, que é o si mesmo. Portanto, quando alguém diz:
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, e sinceramente faz isso,
essa pessoa está, de fato, desenraizando o poder que esse mundo de ilusão, de
engano, esse sistema de trocas loucas já teve sobre ela! A pessoa está tão livre,
que perdoa, perdoa, perdoa. Está perdoado!
Não adianta dizer que toda mulher é safada, que todo homem é canalha,
que todo político é corrupto, que todo pastor é ladrão e que toda religião
quer dinheiro. Não adianta ficar passando a vida inteira denunciando essas
coisas num denuncismo que apenas nos vincule a elas de maneira profunda-
mente atávica, de modo que quanto mais as denunciamos, mais nos lembra-
mos delas, mais falamos delas, mais nos alimentamos delas, mais existimos
por causa delas, e até achamos que não precisamos tomar providências de nos
protegermos contra esse próprio mal, porque o nosso próprio “denuncismo”
nos justifica. Para ficarmos livres, isso tem de estar perdoado. Aí começa a
liberdade do discípulo. É quando ele perdoa. Perdoa até a si mesmo.
Para o si mesmo ir se tornando nada, o discípulo tem de perdoar o mundo,
perdoar também a si mesmo e não ao seu “si mesmo”, e não fazer do si mesmo
o seu testemunho, mas fazer do eu em Cristo a sua afirmação de vida.
Os testemunhos dos crentes são quase todos desfile do panteão do si mesmo
reavivado. E quanto mais o si mesmo tiver sido safado, melhor é o testemunho.
Si mesmo comportado não converte ninguém. Tem de ser um si mesmo para
gerar um outro si mesmo, um si mesmo gospel. Continua tudo no si mesmo.
82
Tomar a cruz – a morte do si mesmo

E o sintoma é quando dizem: Oh, eu era do mundo, agora não sou mais do
mundo; não canto mais música do mundo, não vejo o mundo, não sei o quê
do mundo. Tudo agora é gospel. Aleluia, aleluia, aleluia!
E quanto mais reativo ele diz que é ao mundo, mais do mundo ele é,
porque somente fica livre do mundo quem diz: “Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem”. Esse está livre. Centurião não tem mais poder sobre
ele. Ninguém vai ter. A lança do centurião pode até doer; não doeu em Jesus
porque ele já tinha morrido. A chicotada dói, tudo dói, mas o centurião não
tem poder de nos tornar seu escravo, porque ele está perdoado, não sabe o
que faz, coitado. Eu é que estou livre. Chicoteado e livre; desprezado e livre;
seja como for, livre.
Tomar a cruz não significa nenhuma dificuldade ou vergonha de admitir
a nossa humanidade. Em nenhuma das suas dimensões. Jesus disse: “Deus
meu, Deus meu, por que me desamparaste”? Tomar a cruz é ter a coragem de
fazer salmos para Deus com a verdade do nosso ser. O salmo que Jesus estava
citando era o 22, que se transformou no seu salmo, porque naquela hora era
dele a experiência do desamparo.
O discípulo não tenta convencer Deus com a mentira. Ele afirma a ver-
dade. “Meu coração está profundamente triste até a morte. Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste”? Ele não tem medo de falar com Deus. No
tomar da cruz, ele experimenta o significado da impressão do desamparo.
Ninguém vai fugir disso.
Assim como não há um tomar de cruz, nem um caminho de discípulo que
vá vencendo o si mesmo e gerando esse eu fortalecido que não seja pelo perdão,
que não comece perdoando a vida, também não haverá nenhum caminho con-
sequente se houver negação da realidade da existência. Quando dói, dói. Eu
não preciso, ao dar uma topada, ou ao arrancar uma unha, fingir que não está
doendo nada. Não. Jesus não sorriu em cada pregada que deram nele. Ele não
recebeu o dom do sorriso na cruz, a bênção de Toronto. Era dor mesmo.
O discípulo tem de saber que ele, tomando a cruz, vai passar por cami-
nhos solitários, de desamparo; vales de sombra da morte; perplexidades. Vai
encontrar o absurdo a sua frente. Vai sentir, às vezes, tanta dor, ou vai ficar
tão chocado com o absurdo, ver tanta loucura, se sentir tão impotente, em
alguns momentos, que seu coração vai dizer: “Deus meu, Deus meu, por que
me desamparaste”? Eli, Eli, Lemá sabactani!
83
O Caminho do discípulo

Um discípulo não se faz sem a jornada do desamparo, que é quando ele


aprende a amar a Deus por nada, a servir a Deus por nada. Ele não estará
dizendo: Não há Deus, porque eu estou desamparado. Ele está é falando
com Deus: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste”?! Mas é uma
conversa entre gente que se vê, que se enxerga, que se sabe! É somente uma
perplexidade do pequeno ante o volume das coisas! Esse dia, essa vereda
nunca deixa de existir no caminho de um discípulo. E faz parte do tomar a
cruz e de continuar seguindo.

Para refletir
1. Olhe para o seu coração e sonde: O que há nele que seja fermento dos fariseus,
dos saduceus ou de Herodes?
2. Como é o processo de dia a dia negar-se a si mesmo e tomar a cruz?
3. O que é tomar a cruz?
4. O que você aprendeu sobre tomar a cruz X nossa humanidade?
5. A quem, ainda, você não concedeu o seu perdão?
6. O quanto seu coração quer dizer: Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que
fazem?

Anotações

84
6. Tomar a cruz – Ele levou sobre si
o pecado de nós todos

Hoje mesmo estarás comigo no paraíso!

Nos capítulos anteriores, vimos sobre o significado do si mesmo, do self,


do que Jesus disse que tem de ser negado, do que ele se compõe, dos elemen-
tos que o constituem. “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue,
tome a sua cruz e siga-me”.
Muitos pensam que o si mesmo é a mesma coisa que vida. Vida é o que
Jesus veio para dar: vida e vida em abundância. O si mesmo é uma constru-
ção fantasiosa, um eu fetichista, iludido, agregado por uma quantidade enor-
me de adereços, aparatos psicológicos, emocionais, culturais, morais, éticos,
traumáticos, todas essas coisas que vão virando crostas na nossa vida; essas
coisas que achamos que somos nós.
Alguém pode dizer: Eu sou assim, enjoado, perco a cabeça, tenho vontade
de matar as pessoas... Você não é assim. O seu si mesmo ficou assim por uma
série de razões. Outra pessoa diz: Ah, eu sou assim. Não consigo ver uma mu-
lher passando, que não me seguro e corro atrás. Você não é assim, o seu si mes-
mo é que adoeceu. Eu não consigo ver uma oportunidade, um dinheiro a ser
ganho, que eu não faça o que puder para chegar lá, porque eu sou assim. Você
não é necessariamente assim. Foi o seu si mesmo que se desenvolveu com as
pulsões e os agregamentos de doença que acabaram constituindo esse resultado
que você chama de eu. Um eu que jamais será discípulo de Jesus. E se alguém
chama isso de eu, é melhor desistir de ser discípulo de Jesus, porque esse eu não
gosta de amor, não gosta de renúncia; gosta de receber amor, de cafuné, gosta
de indulto, de ser paparicado; tudo isso é coisa do si mesmo.
Aquele que quer seguir a Jesus tem de gostar de amor, de misericórdia, de
compaixão. Não de receber, mas de dar, de oferecer, de servir; tem de gostar
de alongar os caminhos, de tornar-se longânimo, paciente com o besteirol
humano, seu e dos outros. Então, a permanecer aquilo que nós chamamos
de eu, e que Jesus chamou de self, de si mesmo – dizendo que ele precisa ser
85
O Caminho do discípulo

negado por nós, como um ato de volição nossa, e que precisa ser determina-
ção do indivíduo –, não pode haver, nessa hora, aquela oração que diz: Oh,
Senhor, me dê vontade de querer. Que geralmente é o que fazemos quando
não queremos fazer. Oh, Senhor, dispõe meu coração para te agradar, é o que
a pessoa diz quando não está querendo correr atrás da verdade.
Aquele que sabe não transfere para Deus, embora saiba que tudo provém
de Deus, que tudo é graça divina e que não depende de quem quer, nem de
quem corre, mas de Deus usar de misericórdia para conosco. Quem sabe
qual é a palavra da verdade não fica fazendo essa oração, simplesmente aceita
o que Jesus diz.
E Jesus não está dizendo: Se Deus quiser, havendo alguém com algum inte-
resse de, quem sabe, tornar-se meu discípulo – e se a bondade extrema de Deus
se derramar sobre ele, de modo que ele, que tem apenas esse lampejozinho de
vontade, apesar de não estar muito decidido, venha a se tornar uma pessoa tão
turbinada de desejo de fazer a vontade do Senhor –, aí, então, ele vai conseguir
negar-se a si mesmo, tomar a sua cruz e se tornar um dos meus discípulos. Jesus
não disse isso. Ele simplesmente disse: Se alguém quiser, se for decisão sua.
Jesus avaliou bem essa questão da decisão que o discípulo tem de ter. Ele disse
que é semelhante a um rei que, sabendo da vinda de outro rei contra ele, munido
de um exército de 20 mil pessoas, enquanto ele tem apenas 10 mil, tem de veri-
ficar se há como enfrentar o contingente adversário ou não. Do contrário, Jesus
disse que é melhor ser esperto e mandar uma comissão diplomática e negociar
termos de rendição, a partir para uma guerra que ele não vai dar conta.
Disse a mesma coisa de um homem que iria construir uma torre. Começou
a construir, mas não calculou se com aquela quantidade de pedras, tijolos e
outros materiais ia conseguir chegar ao final da torre. Sendo assim, Jesus disse
que é melhor não começar; não terá a vergonha eterna de ficar o tempo todo
anunciando que é, quando não é; anunciando a disposição de alguma coisa
que nunca se tornou verdade. É apenas parte de um enredo sem compromisso
e sem radicalidade. Então, quando ele diz se alguém quer, a primeira coisa que
ele faz é mandar negar o self. Esta decisão é a mesma que diz: Agora eu entendo
a diferença entre o que seja eu e o que seja meu falso eu, meu self, meu si mes-
mo, com todos os valores a ele agregados, formando esse produto fantasioso,
esse fetiche de ego, que é o meu eu. Então, já sei o que Deus chama de eu e sei
também que existe a chance do eu sadio.
86
Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos

O eu sadio não é sinônimo de egoísmo. O egoísmo é uma doença do


self. O eu nem existe, praticamente, até que ele seja energizado pela palavra
de Deus em nós. Do contrário, a maioria de nós vai vivendo igual aos seres
descritos por Paulo como seres almáticos, seres psíquicos, seres somente da
volição. Um ser que tem inteligência, cérebro, captação, raciocínio associa-
tivo, que aprende, consolida, compacta informação e se move pela dinâmica
e pulsão da alma, dos impulsos psicológicos, emocionais, afetivos, traumáti-
cos, consolidados, formando essa massa percepcional que ele chama de eu,
mas que nem ele mesmo é ainda. Porque, de fato, nascemos quando somos
avivados na intrincidade morta do nosso ser pela palavra de Deus.
Ou não será exatamente isso que Paulo diz em Efésios 2? “Ele nos deu
vida estando nós mortos nos nossos delitos e pecados”. Ou seja, estávamos
vivamente mortos, animadamente mortos, intensamente mortos, construin-
do impérios, e mortos, devorando pessoas, e mortos. Jesus é que nos deu o
que ele chama de vida. Nós tínhamos existência. Uma existência almática,
psíquica, espiritualmente falida e morta com um eu sem pulsão eterna, sem
vontade da eternidade dentro de nós. Apenas animados pelos elementos cir-
cunstanciais que formam essa miragem de eu, que Jesus chama de si mesmo,
que precisa ser negado para que possamos aparecer. Mas enquanto essas ou-
tras coisas determinam quem supostamente somos, nunca vamos aparecer.
Toda essa viagem sobre autoconhecimento de que ouvimos falar por aí é
tratada por Jesus, quando ele diz que o si mesmo tem de ser morto para que
surja o eu puro, com a consciência limpa do significado da vida. Isso é um pro-
cesso. No entanto, ele diz que não é apenas uma questão de negar a si mesmo.
Negar a si mesmo é apenas a parte negativa dessa decisão. É quando vamos
discernindo: Não, esse aqui não sou eu. Isso é herança, trauma, é o aeon, o
século. Foi a era que me deu esse pacote. Nunca abri, mas assumi que é verda-
deiro. Mas não basta apenas chegar a esta conclusão. Porque a esta conclusão
muita gente chega pela via da filosofia, da psicologia, de algumas “ciências da
angústia”, que não fazem nada além de discernir a miragem do ser.
Então aparecem alguns, que discerniram somente esse aspecto, fazendo
declarações intensas, como a que a minha mulher ouviu pela televisão há
alguns dias, de um filósofo dizendo que o que ele realmente descobriu é
que o eu não existe. Por quê? Porque ele fez a viagem da desconstrução da
ilusão da existência dele e foi até Salomão. Foi até o Eclesiastes. Tudo é
87
O Caminho do discípulo

correr atrás do vento. E é mesmo. Porém, não acaba aí. Quem fica aí, fica
morto, mergulha em depressão profunda, perde o sentido de todas as coi-
sas. Apenas mergulha nos gostos amargos de tudo quanto seja sem sentido
daquilo que chamamos de vida. É apenas uma constatação que destrói,
mas não constrói.
Por isso Jesus diz que tem de negar a si mesmo. É o lado negativo disso,
discernir o self e negá-lo. Mas, de outro lado, ele diz que tem de tomar a
sua cruz e segui-lo. De um lado negamos; do outro, tomamos. Tem uma
ação que é de discernimento consciente, volitivo, decisivo, intenso, resol-
vido, que diz: Eu não sou isso. Não é possível que Deus tenha me chamado
para me adornar com dejetos. Eu não sou isso; eu fui chamado para a glória
de Deus. Portanto, até por saber quem Deus é, que Ele é a cara de Jesus – e
eu sou antitético em relação a isso –, o que eu chamo de eu não pode ser o
eu que Deus me fez para ser. Isso é o si mesmo, que tem de morrer.
Mas aí vem a ação de tomar a cruz. No último capítulo, vimos algumas
dimensões desse tomar a cruz. Eu disse que a nossa cruz não é diferente
do significado de tomar a cruz para Jesus, exceto por uma razão. A cruz
dele salva o mundo inteiro; a nossa não salva nem a nós mesmos. A nossa
é um exercício de tomar a cruz para a construção do ser que já está salvo
em Cristo e que somente será moldado se fizermos o caminho dele nesta
via, nesta existência. Do contrário, neste mundo caído, somente cresce
joio em nós, somente cresce self. Não cresce, espontaneamente, em nós, o
eu, segundo Jesus. Esse tem de ser energizado pela palavra da vida dentro
do nosso coração.
Então, se é assim, a coisa mais sensata a fazer é pensar, de saída – antes
de mergulhar em muitas outras coisas a respeito do mesmo tema –, sobre o
que Jesus disse quando estava na cruz. Porque aquelas declarações de Jesus
açambarcam um significado bastante amplo do que significa tomar a cruz
para mim mesmo.
Tomar a sua cruz era equivalente a dizer: tome a sua cadeira elétrica,
tome a sua sentença de morte, aceite que o self terminou seus dias. Agora que
começamos a ser discípulos de Jesus, que aceitamos a morte do si mesmo, o
tomar da cruz vai ter de significar um dilatamento interior, espiritual, exis-
tencial, para deixar surgir uma consciência nova, que é a mesma que brota
das declarações que Jesus faz na cruz.
88
Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos

A primeira delas foi quando o grupo de soldados romanos e a turba alvo-


roçada estavam ali fincando os pregos, fazendo-o sofrer, impondo humilha-
ções ou coisas do gênero, e ele, posto na cruz, olhou em volta e disse: “Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Se alguém quiser tomar a cruz
de Jesus, a cruz é essa. É essa a cruz que ele nos chama a tomar: perdoar o
mundo, a humanidade inteira.
Um eu dentro de nós surge somente um quando o si mesmo perdeu o
poder de odiar o mundo, de brigar ou de se comparar com ele; de ambicio-
ná-lo, de competir com ele. De se ressentir do mundo, de dizer: Ah, não me
entenderam, não me perceberam. Essas coisas todas das quais nos achamos
vítimas. Tudo isso é doença do si mesmo. Jesus, da cruz, sem self nenhum
dando ordens, sem nenhuma autoindulgência, olha a ignorância humana, e
simplesmente diz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
O primeiro passo prático, a primeira mudança e alteração mental de sig-
nificado e de valor a se instalar em nós deve ser essa disposição de perdoar.
E perdoar a todo mundo, o mundo inteiro, de perdoar os executores, os
carrascos, os algozes, a injustiça e até os excessos de justiça. Perdoar. Se não
pudermos colocar o pé no caminho tendo partido do perdão, que diz: “Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, não começa o caminho do
discípulo dentro de nós, jamais. Foi isso que Jesus disse. Esse é um princípio
que está instalado para sempre: quem quer perdão, perdoa; quem não per-
doa, não tem perdão; simples assim.
Portanto, quando Jesus diz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que
fazem”, ele está dizendo para todos os que não sabem que são filhos do mes-
mo Pai – os irmãos alienados, ignorantes, idiotizados, embrutecidos e bes-
tializados. Não precisamos ir a lugar nenhum se não pudermos passar disso.
Se para você for uma coisa relativa, opcional, se é como uma viagem para
Israel com opcional para a Grécia, desista, meu irmão. Porque isso aqui não
é o opcional, é o primeiro passo. Ninguém começa a ser discípulo se, em
negando o si mesmo, tomando a cruz, não disser: “Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem”.
Então, se alguém está desejoso de aprender a ser discípulo como se essa
fosse uma coisa que entrasse na mente, e então, em casa, lesse a lição, a revis-
tinha, decorasse para contar aos outros, como se todo mundo virasse teste-
munha de Jeová, por esse meio, desista dessa maluquice. Para ser discípulo de
89
O Caminho do discípulo

Jesus não há muita coisa a ser aprendida. Na verdade, existem poucas, e essas
são para ser aplicadas. Por isso, se alguém quer ser meu discípulo, disse Jesus,
a si mesmo se negue – negue o si mesmo – e tome a sua cruz. E a primeira di-
mensão dessa cruz diz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
Eu gostaria que você, que está desejoso de ser discípulo, pensasse, nesse
momento, quais são as pessoas sobre quem você não consegue nem dizer:
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. São aquelas pessoas acer-
ca de quem você diz: Pai, não perdoa não, porque o safado sabe, Senhor.
Trata dele, trata bem.
Vi uma bispa pela televisão, no Rio de Janeiro, dizendo: “Você vai ver que
o Senhor vai se vingar. Espera, a mão de Deus está vindo aí e vão quebrar
todos os inimigos, aleluia”! Essa é discípula do si mesmo, não tem nada a ver
com Jesus. Está falando o nome de Jesus, mas não tem nada a ver com Ele.
Ele nem passou aí, não sabe o que é isso. Ele diria: Olhe, nem te conheço
ainda e nem poderia dizer que tenho muito prazer, porque o que você está
dizendo é um terror.
Veja quem são aqueles sobre quem você nem consegue dizer: “Pai, per-
doa-lhes, porque não sabem o que fazem”, ou o que falam, ou o que dizem a
meu respeito, ou o que pensam sobre mim, como me interpretam, como me
divulgam. Se você não puder passar por essa pessoa não tem discipulado. É
melhor parar por aqui e pensar bem sobre o assunto.
Minha vontade é ver nascerem alguns discípulos. Então, a primeira coisa
antes de prosseguirmos, e nós não vamos prosseguir se não passarmos daqui,
é saber quem são as pessoas acerca das quais não conseguimos nem mesmo
dizer: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
E mais do que isso, eu pergunto: Dentro da sua cabeça existe algum
compartimento que foi criado de modo tão ilusivo e sutil que faz você pensar
que há pessoas para amar e perdoar e outras que você não precisa odiar, mas
também não precisa amar? Tem? Geralmente quando o indivíduo se vicia em
reuniões cristãs ele fica com esse tipo de doença. A humanidade a ser amada
é aquela que ele encontra para cantar, bater palmas, cultuar, fazer oração jun-
tos. Esses são seus irmãos, o mundo a ser amado. Quem está fora desse grupo
é um pessoal que se vai levando, se der; e se não der, o indivíduo atropela.
E que o Senhor me abençoe e me guarde porque eu sou um bom dizimista,
aleluia! Não tem geografia do silêncio, de sombra nesse chão.
90
Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos

Quando João Batista começou a chamar alguns para o arrependimento


– a prévia do convite ao discipulado de Jesus – vieram alguns segmentos di-
ferentes, como, por exemplo, os soldados do imperador ou do templo, e per-
guntaram: “O que devemos fazer para herdar o reino dos céus”? João Batista
disse: Não deem cacetada naqueles que estão abaixo de vocês, tratem os seus
presos com humanidade, dignidade, bondade, misericórdia, contentem-se
com seus soldos e não metam a mão. Aí, chegaram os oficiais da receita, os
publicanos, e disseram: E quanto a nós, o que devemos fazer? Ele respondeu:
Não aceitem suborno, não façam extorsão, não usem seus poderes para acha-
car o próximo. E então vieram os fariseus com a mesma pergunta, e ele disse:
“Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura? Produzi, pois,
frutos de arrependimento”.
São coisas muito simples e muito práticas. Ninguém tem de aprender
a se sentar numa posição budista, ficar horas meditando sobre como, por
exemplo, enfrentar a mãe daqui a pouco ou o marido que está vindo aí.
Não é assim. A decisão é em Jesus. Porque fomos perdoados do imperdo-
ável, perdoamos tudo e todos os imperdoáveis. De coração. Pai, perdoa o
meu marido porque ele não sabe o que faz. Pai, perdoa a minha mulher
porque hoje ela amanheceu surtada; perdoa o meu filho. Não significando
dizer que não devemos tomar as providências da dignidade, da saúde e da
relacionalidade. Filhos – já perdoados – devem ser disciplinados do mesmo
jeito como Deus nos disciplina. Na conjugalidade, temos de tratar com o
outro já perdoado, embora haja coisas que precisam ser tratadas em nome
da verdade e da justiça no sentido real das coisas. E em qualquer outro nível
da vida. Não sendo assim, não é.
Você quer ser discípulo? Então olhe agora no seu coração, veja quem
são os ícones dos seus ressentimentos, antipatias, raivas, das suas impossibi-
lidades de perdão. Você tem impossibilidade de perdão? Veja se há pessoas
acerca das quais você diz: Senhor, eu perdoo o mundo inteiro, mas este
não! E se quiser saber a razão do não, é porque a pessoa fez mal ao seu self.
Significando dizer que o self nem foi negado ainda, porque o eu não diria
isso. O eu, segundo Deus, quer paz, amor, harmonia, sossego, silêncio
interior, quer voz suave, brisa. Quer alegria que não seja o grito do agito,
mas o gozo de ser. É isso que o eu verdadeiro quer. Por isso, eu pergunto de
novo: Você quer ser discípulo? Está disposto, identificando o panteão das
91
O Caminho do discípulo

suas antipatias e inimizades ou qualquer outra coisa, a dizer: Pai, perdoa-


lhes, porque não sabem o que fazem? Se não pudermos começar daí, eu
repito: Não tem para onde ir. Esse é o chão primeiro. Se alguém quer ser
discípulo precisa perdoar e precisa ter o olhar do perdoado por Deus como
aquele que enxerga a vida com os olhos da graça. Eu tenho necessidade de
perdoar o mundo inteiro, porque o que em mim já foi perdoado é maior
do que todos os mundos inteiros.
Quando Paulo disse: “Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo
Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal”, ele
não estava com um argumentozinho retórico de piedade falaciosa. Ele sabia o
que dizia. Não estava se comparando com nenhum dos grandes bárbaros, ma-
tadores da Antiguidade, nem com nenhum criminoso perverso. Ele somente
estava olhando para ele mesmo e dizendo: Eu sei que, dos pecadores, eu sou o
principal, até por causa de tudo o que eu sei. Porque alguns fazem o que não
sabem, mas eu sou o principal porque toda vez que eu faço eu sei. Justamente
por isso é que eu tenho de andar todos os dias da minha vida perdoando a todo
mundo e dizendo: “Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem”.
O segundo passo do discípulo aparece na declaração da outra cruz. Havia
dois malfeitores sendo executados com Jesus. Um à direita, outro à esquerda.
Um deles dizia: “Se tu és o Cristo, como propagas, porque não salva-te a ti
mesmo e a nós também? Desce da cruz”. E o outro dizia ao que afirmava
essas coisas: “Tu nem ao menos temes a Deus estando sob igual sentença?
Nós, na verdade, com justiça, estamos aqui porque estamos pagando o que
os nossos atos merecem, mas este nenhum mal fez”, e acrescentou: “Jesus,
lembra-te de mim quando estiveres no teu reino”. Ao que Jesus lhe disse:
“Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.
Tomar a minha cruz é olhar para Jesus e dizer: Ele está levando sobre si o
pecado de nós todos. Porque aquele homem que morria ao lado e não blas-
femava dizia o que está em Isaías 53, sem que soubesse:
Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades
e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos
por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi tras-
passado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas
iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre
ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.

92
Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos

Foi exatamente isso que o malfeitor, sem teologia, Bíblia ou escritura,


sem memória de nada, sem catequese, sem rabino ou mestre, soube por lím-
pido discernimento do Espírito Santo. Veio sobre ele a mesma revelação que
veio sobre Pedro, quando disse: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Sobre
este homem veio de outro modo. Ele disse de uma forma muito mais can-
dente, poética, intensa e visceral. “Tu nem ao menos temes a Deus” – quem
estava ali diante dele era Deus, o Cristo, o Filho do Deus vivo – “estando sob
igual sentença”? Deu um passo para além de Pedro, que quando ouviu Jesus
dizer que ia para a Cruz o repreendeu. Esse não. Esse reconhece a sentença
de Deus como sendo a sentença de todos os homens, como sendo a sentença
dele, estando sob igual sentença. “Nós, na verdade, com justiça”. Isso é um
homem morrendo satisfeito! Um homem! Havia tudo ali, menos um meni-
no. “Nós, na verdade com justiça”. Ele sabia o que era o caminho da vida.
O caminho da vida não rouba, doa; o caminho da vida não toma, entrega;
o caminho da vida não usurpa, mas legitima o que é bom. O caminho da
vida é verdade simples e sincera. Ele sabia o que era e o que não era. “Nós,
na verdade, com justiça. Porque estamos pagando o que os nossos atos mere-
cem. Mas este nenhum mal fez”. E acrescentou: “Lembra-te de mim quando
entrares no teu reino”.
O discipulado começa quando nos dispomos a perdoar tudo, todos, por
causa de tudo e de todas as coisas que em nós já estão perdoados. E o discipu-
lado continua mantendo o coração certo de que o grande prêmio, o grande
lucro desta vida não é ser salvo de nenhuma calamidade humana. Não é
ser arrancado de uma cruz, e não ser pregado em nada; não é ser poupado
de nada, nem eximido de nada. Para o discípulo, depois que ele viu Jesus,
discerniu Jesus, enxergou Jesus e compreendeu a glória e o ganho que é estar
em Jesus, qualquer coisa que a ele aconteça é, na verdade, com justiça. Não
tem demandas ou questões. Ele sabe que está sempre aquém e nunca vai se
encontrar além da referência porque é sempre um ser aquém dela. Por isso,
seu descanso não está em si mesmo, nem na sua autoconstrução. Ao contrá-
rio, ele sabe que, nem que seja nos estertores, nos momentos finais da sua
consciência, em qualquer que seja o tempo, a lucidez de Deus a ele chega e a
ele visita. Se seus olhos abrirem e ele discernir Jesus, já o faz sabendo que já
está tudo pago e consumado, está feito. O discípulo sabe que tem lugar no
paraíso, não por causa dele, mas por causa de Jesus. Ele tem lugar no paraíso
93
O Caminho do discípulo

apesar dele. O paraíso é o destino dele, não por causa dele, mas por causa da-
quele que levou sobre si as iniquidades de nós todos e é por isso que ele anda
pacificado. E é por isso que ele nunca une a sua voz aos clamores blasfemos
desta vida, às vozes que aviltam a Deus, que trazem acinte a Deus, às vozes
que trazem demandas a Deus – “se tu és, faze por ti e por nós”.
Para o discípulo, Deus nunca é tratado como: Se tu és, então me pro-
va. Para o discípulo, Deus é, Jesus é, com cruz, sem cruz, pendurado ou
deitado. Cabeça para baixo ou para cima; o que importa é que ele é. E o
discípulo nele é lembrado no paraíso. O paraíso sabe do discípulo todo dia;
o discípulo é contado no paraíso como um dos cidadãos de lá. O paraíso o
conhece, embora ele ainda não o conheça. Mas aquele que entrou nele por
nós diz “Olhe, quando chegar o teu dia” ou “Hoje mesmo estarás comigo
no paraíso”.
E mais que isso, o discípulo vai descobrindo, à medida que caminha,
que o paraíso não é somente um lugar transcendente, mas é também um
lugar existencial. Onde se está com Jesus, aí vai virando o paraíso. O paraíso
é em nós também. Jesus em nós não é a esperança da glória? Jesus em nós é
presença antecipada e crescente das consciências do paraíso e da glória. Não
se faz um discípulo sem a transcendência do paraíso ou sem a imanência do
paraíso. Ele tanto nos transcende e nos motiva como é imanente em mim
e gera em mim as pulsões do desejo eterno que nos remetem na direção
daquilo que nos aguarda.
Temos ainda as outras declarações para meditar sobre elas: “Deus meu,
Deus meu, por que me desamparaste”? “Tenho sede”. “Mulher, eis aí o teu
filho”. “Está consumado”. “Nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” “Tenho sede”, signi-
ficando dizer que tenho sede de beber água. Discípulo precisa aprender sobre
sua humanidade. Discípulo que não respeita sua humanidade vai se perder
no caminho. Esqueça o seu batismo, o primeiro, o segundo, o décimo, o que
fez nas águas do rio Jordão, Jordãozinho ou Tietê.
Desejo que você estabeleça um lugar de perdão. Que do alto da cruz – o
lugar onde você está crucificado com Cristo, perdoado em Cristo, justificado
em Cristo, eternamente resolvido nele – você possa olhar para cima, junto
com ele, e dizer: Pai, perdoa meu pai, minha mãe, perdoa meu ex-marido, que
me magoou tanto, perdoa minha ex-mulher que me traiu, minha noiva, que
94
Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos

tem me desprezado, que não sabe nem terminar um relacionamento direito;


perdoa aquele patrão que tem prazer em me acachapar; perdoa os que gra-
tuitamente me odeiam, perdoa os que receberam informações erradas a meu
respeito e construíram um ser que não sou; perdoa aqueles que ficaram com a
minha imagem, a imagem do meu self, que durante tantos anos foi o que eu
apresentei a eles e hoje eles não têm nem como avaliar o que mudou em mim,
perdoa-lhes, porque não sabem o que me aconteceu.
Faça o seu exercício interior de andar naquele caminho íntimo pro-
curando pessoas. Algumas delas precisamos encontrar fora de nós, ma-
nifestar com os olhos, com a voz, com as mãos, a declaração de perdão,
de reconciliação e graça. Com outras nem precisam, somente dentro de
nós mesmo. Precisam ser informados disso somente aqueles a quem nós
informamos do nosso ódio. Aqueles a quem nós nunca informamos sobre
o nosso ódio somente precisam ser perdoados, para não se criar outro
problema no coração.
Essa é uma viagem desagradável, essa é a verdadeira psicanálise. Podemos
frequentar um analista durante dez anos, mas se não perdoamos, a única
coisa que vamos descobrir é como o nosso self é complexamente construído
de amarguras; somente isso. Quem quer ter um eu verdadeiro, começa per-
doando. Para receber vida em Cristo, temos de abrir o coração para receber o
perdão que vem dele. E quem recebe esse perdão passa a ser servo do perdão
e da graça. Isso é ser servo de Cristo.
Ser servo de Cristo é ser servo das coisas pelas quais ele viveu e mor-
reu. Servo das coisas que ele chama de vida. E sem perdão, não principia
vida na existência de todos nós. Não tente maquiar ou fazer uma relação
diplomática com esses bichos aí dentro de você. Essa cachorrada tem de
ser morta aí dentro. O que tem de nascer é essa disposição de graça e de
perdão. E aí a cura brota.
Um tempo atrás, uma senhorinha me falou, no Rio de Janeiro, que há
anos frequentava reuniões de cura divina, procurando cura para sua vida,
mas que as doenças somente aumentavam. Até que já há um tempo ela estava
me ouvindo pela Vem & Vê TV falando sobre perdão, e ela creu na palavra
do Evangelho. Ela disse: O senhor nem orou pela minha cura, bastou eu crer
na palavra do Evangelho e decidir que eu iria perdoar, e eu amanheci curada.
Estou curada já tem três meses.
95
O Caminho do discípulo

Às vezes, não percebemos como vamos represando os males dentro de nós


porque não deixamos esses sentimentos perversos vazarem pela via do perdão.
Discípulo não é um ser que caminha sacrificialmente atrás de Jesus. Jesus não
disse que a vida do discípulo seria um sacrifício. Disse que era uma vida abun-
dante. Então negamos o si mesmo e tomamos a cruz para termos vida abun-
dante. Vida abundante é vida que não está escravizada ao ódio de ninguém.
É perdoar a todo mundo, andar acima disso, navegar acima das vagas, crendo
que o agito de baixa confusão das almas desencontradas não tem nada a ver
com o nosso chamado em Cristo.

Para refletir
1. O que pode energizar, dar vida ao eu? E quando ele passa a existir?
2. Quais são as pessoas sobre as quais você não consegue dizer: “Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem”?
3. O que você vai fazer com este ensino de Jesus para sua vida no Caminho de ser
discípulo de Jesus?
4. “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso“- De que forma essa palavra pacifica o
seu coração?

Anotações

96
7. Tomar a cruz – a humanidade do
discípulo
Tenho Sede!
Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?

Mateus 16: 24 a 27:


Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer
vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e
siga-me. Porquanto, quem quiser salvar a sua vida per-
dê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-
la-á. Pois que aproveitará o homem se ganhar o mun-
do inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem
em troca da sua alma? Porque o Filho do Homem há
de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então,
retribuirá a cada um conforme as suas obras.

Temos estudado o significado do convite de Jesus para que nos torne-


mos seus discípulos. “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue,
tome a sua cruz e siga-me”. E encontramos o acréscimo, em Marcos 8 e em
Lucas 9, da declaração da cotidianidade desse chamado dia a dia: “Tome a
sua cruz e siga-me”.
Falamos sobre o significado do si mesmo, do negar a si mesmo, e inicia-
mos o significado do tomar a cruz, que não é apenas um convite à negação
do si mesmo, o self, e que não é o self junguiano. É o self conforme o conte-
údo do Evangelho, ainda que ele tenha, como realidade descritiva do Evan-
gelho, algo a dizer à categoria conforme o conceito segundo Jung, porque,
na realidade, quando Jung determinou que o self seria o elemento central
de convergência e de distribuição de organização psíquica, ele estava lidan-
do apenas com o psíquico. Porque toda a psicologia trabalha com o homo
psychikos e não com o homo pneumatikōs, como já vimos aqui. Trabalha com
o homem almático, não trabalha com o homem espiritual.
Supostamente, o homem espiritual necessitaria muito pouco ou quase
nada do trabalho de natureza psicológica e infantil que, muitas vezes,
97
O Caminho do discípulo

a psicologia propõe em relação ao que seja o espigão da penetração da


consciência do Evangelho em alguém que já foi ferido por uma consciên-
cia mais profunda no espírito e que já deixou de viver apenas de camadas
e de pulsões da própria alma.
Do ponto de vista do que eu tenho emitido aqui como conceito sobre
o si mesmo como um self descrito no Novo Testamento, eu poderia dizer
que o si mesmo é o véu, na linguagem de Paulo. É aquela camada pela qual
nós enxergamos as coisas a partir de distorções, de fantasias, que se voltam
sobre nós mesmos, modelando-nos conforme a percepção dessas distorções
e fantasias, e que são alimentadas, como eu já disse, de elementos de natu-
reza atávica, congênita e genética, algumas delas. Mas o nosso DNA, por
mais profundo que seja em determinações, ainda não é o nosso eu. Nós
transcendemos o nosso DNA, transcendemos o nosso genoma. Existe um
plus em nós que choca com o nosso próprio DNA.
Esse véu, essa construção que frequentemente fica distorcida e que se
alimenta de percepções equivocadas, acaba se voltando contra nós mesmos e
nos modelando conforme a fantasia e a distorção, e que, portanto, ainda não
é o nosso eu; se alimenta de todos os elementos traumáticos da existência e
dos elementos bons.
Aquilo que signifique absorção de amor é sempre incorporado à dimen-
são mais profunda do ser como espírito. Mas em geral aquilo que significa
apenas emoção midiática, ou que signifique trauma, se aloja e se instala com
poder enorme na dimensão dessa camada da alma. E aí vai incorporando
valor, distorção de impressão, ao que pensamos chamar de eu e que imagi-
namos ser eu em nós. Isso também se alimenta do curso deste mundo, desse
volume enorme de troca de impressões, de imposições e de ações sublimina-
res, além de toda sorte de seduções para a mente, de estímulos no sentido de
que o indivíduo se torne alguém pela via do coisa alguma, do abraço a um
holograma, de uma idealização fetichista de como deveria ser uma pessoa
inteira no mundo atual. Então, eu tento viver nessa coisa que não sou eu.
Mais do que isso, esse self que não sou eu, esse si mesmo que Jesus disse
que tem de ser negado, que tem de morrer, também é alimentado por prin-
cipados, potestades, dominadores deste mundo tenebroso, forças espirituais
do mal. É alimentado pelo príncipe da potestade do ar, que é o espírito que
agora atua nos filhos da desobediência, que acabam se tornando aqueles que
98
Tomar a cruz – a humanidade do discípulo

obedecem ao curso deste mundo. Que obedecem apenas ao fluxo da alma e


que vão ficando cada vez mais encalacrados num processo escravizante, que,
no fim, eles chamam de eu, de meu mundo, minha coisa, minha mente,
meu futuro, meu interesse, meu orgulho, minha dignidade, minha reputa-
ção, meu nome, meu, meu, e que não é nada além de fantasia, carteira de
des-identificação.
Esse é o self, que tem de morrer para então surgir o eu. Porém, esse eu,
segundo Deus, somente nasce da morte do si mesmo e da decisão de tomar
a cruz. E demanda uma vontade intensamente dupla. A vontade exercida
sobre a pulsão do engano e a vontade que não tem medo de desembrulhar
esse pacote inteiro do eu fantasiado, o si mesmo; que não tem medo do que
vai sobrar. Porque, se não sobrar nada, não se perdeu nada, já que o que
constituía isso não era nada mais do que bolha. Mas tem de haver essa cora-
gem. E tem de haver uma disposição intensamente dupla, como eu disse. É
a coragem de tomar a cruz.
E já falamos sobre os significados desse tomar a cruz e ainda há muito
que se falar. O tomar a cruz como decisão consciente de crer e de assumir
que Jesus morreu não somente pelos nossos pecados, mas morreu por quem
nós somos, morreu pelo nosso pecado essencial, morreu por causa da nossa
rachadura básica, morreu por causa da nossa psicose básica, morreu por cau-
sa da nossa esquizofrenia mais aguda e latente, morreu porque nós brigamos
conosco e ficamos sem saber quem somos, e então gritamos: “Desgraçado
homem que sou”! Quem me livrará do corpo desse engano, dessa morte,
dessa conjunção de conflitos?
E quando se ouve “Graças a Deus por Jesus Cristo”, pela cruz, é aí que
começa o tomar da cruz. É quando tomamos consciência da justiça própria,
da autoconstrução, das autofantasias, de engano – do self. Quando acaba a
justiça própria e dizemos que morremos com Cristo – porque se não mor-
rermos com Cristo não há vida para nós –, aí morre toda a presunção, toda
vaidade, morrem todas as filosofias, morre tudo, para que da cruz nasça um
eu conforme Deus.
Precisamos ter a coragem de dizer que negamos a nós mesmos, e isso é um
processo constante, diuturno, sem fim, para o qual não há férias; ao mesmo
tempo em que tomamos a cruz, que também é um processo sem fim, e que,
para o qual, também não há férias. É um modo de ser dia a dia. É a inclusão
99
O Caminho do discípulo

desses dois mecanismos, não como uma mecânica, mas como um mecanis-
mo que rode como um software de consciência permanente. Dia a dia temos
de ver quais são as tentativas de reinvenção do si mesmo em nós. Sutis, mas-
caradas, renitentes, intensas, perseverantes, como uma tentativa da morte.
De outro lado tem de haver o mesmo querer, a mesma disposição de to-
mar a cruz, que passa todo dia pelo benefício de retomar a desilusão a nosso
respeito e saber que sozinhos somos apenas o homem que diz: “Desgraçado
homem que sou!” Quem nos livra do corpo dessa morte é aquele que levou
sobre si todas as nossas iniquidades e as nossas dores; ainda que no nosso
engano do self, o reputássemos por aflito, ferido de Deus e oprimido, porque
é assim que o self interpreta alguém que se entrega como cordeiro de Deus
que tira o pecado do mundo.
Mas ele levou sobre si a iniquidade de nós todos. E compreender que o
castigo que nos traz a paz estava sobre ele e pelas suas pisaduras fomos sara-
dos é a compreensão essencial do discípulo no tomar da cruz.
Quando Jesus disse que o discípulo deve tomar a sua cruz, ele não estava
falando do carma pessoal de qualquer um e de cada um. Jesus estava falando
de um projeto de existência, de um caminho consciente, de uma jornada,
uma peregrinação que tem de ser marcada pela cruz.
A maneira mais simples de entendermos isso seria olhando aquelas
declarações que Jesus fez na cruz; porque são as declarações do crucifi-
cado, daquele que estava levando a cruz, que era a minha e era a dele.
Foi ele quem levou a minha e a de todos nós na dele para nos ensinar o
significado da nossa.
Vimos também que a primeira decisão de alguém que quer ser discípulo,
que quer “tomar a cruz” é aprender a perdoar. “Pai, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem”. Sem perdão ninguém se torna discípulo de Jesus. Não
existem meios, nem malabarismos, nem batismos, nem trezentas correntes,
nem qualquer que seja a tentativa ou barganha, nem amizade com o arcanjo
Miguel, que nos torne discípulo de Jesus sem perdão.
Podemos ser discípulos de Jesus estando culpados. Não podemos ser dis-
cípulos de Jesus estando culpados por não perdoar. Jesus tem discípulos cul-
pados, mas não tem nenhum que seja culpado por não perdoar, porque, se
não perdoar, não pode ser discípulo. Para ser discípulo tem de ser discípulo
que perdoa, para que a misericórdia venha sobre ele; para que ele, por exercer
100
Tomar a cruz – a humanidade do discípulo

misericórdia, alcance misericórdia, em vez de se tornar um credor incompas-


sivo e perverso. Simplificando a história inteira.
Não dá para ser discípulo de Jesus, sob hipótese nenhuma, se o indiví-
duo não tiver, dentro de si, aquela consciência de que qualquer que seja o
juízo, qualquer que seja a cruz, qualquer que seja a sentença, a experiência
ou dor – concorrem para o bem. É revelação do malfeitor: “Tu nem ao
menos temes a Deus, estando sob igual sentença? Nós, na verdade, com
justiça, porque estamos pagando o que os nossos atos merecem, mas este”
– referindo-se a Jesus, Deus conosco – “nem um mal fez”. E acrescentou:
“Jesus, lembra-te de mim quando estiveres no teu reino”. E sobre isso ficou
claro que quem é discípulo não tem mais no coração e na mente a menor
perspectiva de não torcer para que todo ser humano diga: “Jesus, lembra-te
de mim quando estiveres no teu reino”.
Também vimos que quem é discípulo sabe que qualquer coisa que a ele
aconteça, acontecerá com justiça. Ele já desistiu de qualquer justiça própria,
filosófica ou de qualquer outra natureza. E ele sabe que também não há
nenhuma relação entre catástrofe humana e o amor de Deus. Que pode ser
envolvido por uma malha de injustiça e perversidade, mas isso nada tem a
ver com o amor de Deus. Que pode morrer crucificado, mas isso não tem
nada a ver com o amor de Deus. Sabe ainda que a única coisa que tem a
ver com o amor de Deus, nesta vida, não tem nada a ver com o modo que
vivemos ou com o modo aterrador com o qual possamos morrer. A única
coisa que tem a ver com o amor de Deus é que nós, na verdade, receberíamos
qualquer coisa como justiça, e não recebemos porque aquele que deveria nos
condenar resolveu, como Paulo disse, nos justificar. E disse: “Hoje mesmo
estarás comigo no paraíso”.
O pau pode cantar, João Batista pode perder a cabeça, qualquer san-
to pode ser atropelado, qualquer um pode ser esquartejado, a calamidade
pode acontecer, mas o discípulo haverá de saber – se discípulo ele for –
que nenhum cenariozinho da história humana está concluindo nada sobre
a existência de um discípulo. Porque aquele que disse “Hoje mesmo estarás
comigo no paraíso” não estava usando metáfora.
O discípulo sabe que as maiores certezas dessa vida são segredos de Jesus
contados a ele. Ficamos sabendo daquela conversa não porque a nós foi
explicada; ali eram apenas pessoas agonizantes.
101
O Caminho do discípulo

Ele apenas balbuciou: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. E o dis-


cípulo crê. Não precisa que Maria aplauda e confirme e nem que haja inter-
seção dos apóstolos. O discípulo crê.
O tomar a cruz não pode ser a cruz da minha invenção, mas a cruz pro-
posta por Jesus de acordo com aquilo que Pedro diz na sua primeira epístola.
É a cruz que ele tomou para que seguíssemos os seus passos e andássemos
segundo ele. Nesse espírito, o que vem adiante é a certeza de que, para o
discípulo, o tomar a cruz implica a visceralidade da admissão da sua huma-
nidade. Porque parece que estamos sendo chamados para sermos discípulos
de um mineral, de um trono de matéria mineral transcósmica indefinível; de
um cristal ou de um Buda no nirvana, dissolvido.
É onde nasce a hipocrisia do discípulo que não assume que ele é ape-
nas gente. E que aquele que o chama a seguir se chamou de o Filho do
Homem mais do que qualquer outra coisa. Admitiu ser o Filho de Deus,
confessou o tempo todo ser o Filho do Homem. Não escondia essa huma-
nidade. Pedia para beber, ainda que fosse em ambientes constrangedores,
como diante da mulher de Siquém, à beira do poço de Jacó. Uma mulher
conhecida pelos homens da cidade e reconhecida pelos discípulos de Je-
sus sem que eles mesmos a conhecessem. Eles somente a reconheceram
porque nela viram a beleza feminina. Por isso perguntaram a Jesus: Por
que conversa com ela? É isso mesmo, Senhor, esse pedaço de samaritana,
sozinha no poço ao meio-dia, e a mulher dizendo que está com sede e que
muitos maridos já teve... O senhor mesmo puxou este assunto com ela.
Não pega bem...
Mas ele não quer nem saber; atropela essas coisas. Está com sede? Talvez
até a sede da mulher seja maior. Mas ele não chega falando da sede dela. Ele
chega falando é da sua sede.
Ninguém o ouve negando alguma das suas humanidades. Se o sono foi
grande, ele foi capaz de dormir enquanto uma tempestade varria o barco.
Um desmaio de cansaço. O vemos cansado de gente querendo pegar nele,
puxar um pedaço dele. Quando o pessoal já não se segurava mais, ele passou
a pregar de dentro do barquinho, seis a sete metros da margem. O Evangelho
de Marcos diz que era para evitar o tumulto de gente querendo pegar nele.
Somente faz isso um Deus muito humano, um Deus gente, que diz: Olha,
eu preciso de um espaço.
102
Tomar a cruz – a humanidade do discípulo

Vemos o tempo todo Jesus afirmando, com misericórdia, todas as ne-


cessidades, condições e circunstâncias da carência humana, encarando-as
sem escândalo. O escândalo, para ele, era o fingimento da não existência
da necessidade, da vida farisaica, da vida impermeável, da vida de negação
da humanidade. Era a expectativa de que o outro fosse sempre um ser in-
falível, que é o que torna o indivíduo um ser escandalizável. O que é um
ser escandalizável se não aquele absolutamente abobalhado, idiotado, que
projetou para o outro – não para ele – a expectativa de perfeição? Quem
faz essa viagem não é ainda discípulo de Jesus, porque o discípulo de Jesus
sabe que o homem é o homem. Sabe da condição humana.
Do alto da cruz Jesus diz: “Tenho sede”. Ele não vê nenhum pudor em
dizer que está com sede. Assim como não vê nenhum pudor em dizer aos
seus discípulos: Fiquem comigo, vigiem comigo, não me deixem sozinho.
Vocês ficaram comigo o tempo todo nas minhas tentações, não durmam
agora! Fiquem acordados um pouco mais.
Ele é aquele de quem se diz que nos estertores daquela viagem, daquela
passagem ao encontro da cruz, estava sentindo tristeza, angústia de morte. A
minha alma está profundamente triste até a morte. Essas são as declarações
de humanidade da cruz, com a culminância deste grito último sobre a con-
dição do próprio corpo, da necessidade de comer, de dormir, de descansar,
de se alimentar, de se cuidar, de ser cuidado, de saber seus limites, de admitir
a finitude, a mortalidade, a fragilidade, de dizer: eu tenho sede. E como as
mãos estavam pregadas, ele estava pedindo que lhe dessem de beber. Porque
enquanto suas mãos não estiveram pregadas, ele andou na direção do poço
sem se importar com as interpretações. Mas como agora ele está pregado, ele
ensina que o discípulo não tem de ter vergonha de, na sua impotência, dizer:
Ajude-me. Eu estou com sede e não tenho como me ajudar. O discípulo con-
fessa necessidade humana, fraqueza humana, impotência, carência humana,
mas não aceita qualquer coisa.
Então tomaram um caniço, nele puseram uma esponja, embeberam-na
numa mistura de vinagre e fel e lhe trouxeram à boca; ele, porém, provando,
não a quis beber. Porque não é por estar limitado, impotente, condicionado,
carente e sedento que ele vai aceitar fel e vinagre em vez de água.
O discípulo, carregando e tomando a cruz, admite a sua condição e
a sua necessidade, mas não bebe o que não é verdade, o que não é vida.
103
O Caminho do discípulo

Não bebe. O interessante é que aquele elemento, aquela mistura química,


alguns estudiosos desses costumes antigos disseram que, à época, era uti-
lizada na intenção de que funcionasse como anestésico, como diminuidor
da dor. E Jesus não aceita esse diminuidor da dor da condição humana. Ele
não quer sentir menos. Ele quer beber água; mas não sendo água, não quer
não sentir a vida em troca de um paliativo, ou por causa de um factoide
existencial. Então, ou é realidade, ou é água, ou não serve. Ele não quer.
Isto, obviamente, nos fala de todas as dimensões do discípulo tomando a cruz
da vida humana, condicionado neste corpo de morte, levando dentro de si as
pulsões da alma, que precisam, dia a dia, ser objeto de negação, de retomada de
consciência, de um refazer da viagem inteira tantas vezes quantas se apresentem
os mesmos temas, as mesmas situações. Quando reafirmamos o mesmo compro-
misso de, dia a dia, tomar aquela cruz, não pode faltar a esse elemento a admissão
da minha condição humana, a declaração da minha necessidade; não pode faltar,
nesse tomar da cruz, o meu pedido de ajuda quando eu me sentir impotente;
não pode faltar nesse tomar da cruz, também, de modo nenhum, a disposição no
coração de não me autoindulgir com aquilo que não seja a realidade.
O discípulo de Jesus não é assenhoreado pela carência, nem pela fuga
e nem pela evasão. Ele admite a necessidade; apenas não admite a fantasia
como proposta para a realidade, porque, se não for água, ele não bebe.
Em seguida, esse tomar da cruz – passando pela viagem de Jesus, como
não poderia deixar de ser, porque, como eu tenho dito, a minha cruz não é o
meu carma, não é uma invenção minha, é um chamado para olhar para Jesus
e seguir os seus passos – é também para o discípulo ir crescendo na consciên-
cia de discípulo e ir se estabelecendo, se renovando. É a manifestação de que
ele precisa, como discípulo, saber que o tomar da cruz implicará aprender a
conversar com Deus, em amor, sobre o assunto, aprender a lidar com o Pai,
mesmo quando tudo parecer desamparo, absurdo, abandono. Quando tudo
parecer não fazer nenhum sentido, ele terá ainda de saber, sem ser com a
boca, mas com a verdade instilada no espírito, chamar a Deus de Deus meu,
de Deus da minha vida, de Deus do meu ser, de Deus da minha existência;
ainda que ele tenha, ao final da vida, de dizer: “Por que me desamparaste”?
O discípulo aprende, nesse momento da jornada, que a sensação do de-
samparo não tem, absolutamente, nada a ver com a distância do Pai. Essa
é a contradição do clamor de Jesus: “Deus meu, Deus meu, por que me
104
Tomar a cruz – a humanidade do discípulo

desamparaste?”, dizendo isso de uma maneira tão próxima que dá para ver
a cara do Pai, tocando nariz com nariz, beijando-lhe a boca.
“Deus meu, Deus meus, por que me desamparaste?” é uma pergunta de
desamparo que ecoa como um abraço e um beijo. O discípulo precisa saber
que, quando Deus é Pai, ele é meu Deus, e todo sentimento pode ser expres-
so, toda dor de alma pode ser confessada. Quando Deus é Deus meu, ele é
meu Pai e nenhuma dor será amargura, nenhuma confissão de absurdo será
blasfêmia, nada será juízo quando Deus é meu e é meu Pai.
E o discípulo precisa saber que ele será colocado em situações dessa na-
tureza muitas vezes na existência, quando o que o assolará e o que sobre ele
se abaterá será a sensação de desamparo. E ali era um desamparo que se con-
jugalizava com quantidades e situações múltiplas de vínculos que ele tinha
e que não estavam presentes além daquilo que, do ponto de vista teológico,
nós sabemos, sobretudo por Isaías, acerca da sua vicariedade e de ele estar
levando sobre si o pecado de nós todos, e – como Paulo diz – não sendo
pecado fazer-se pecado por nós.
Além desse significado, que está para além de tudo, aquele “Deus meu,
por que me desamparaste?” também conta a história humana desse salvador,
único mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem, experimen-
tando, com todas as consequências espirituais, a própria cruz, como poder
vicário sobre todos nós e sobre o mundo inteiro, com diz João. Mas, ao mes-
mo tempo, é sua a experiência, e ele a sente como desamparo, como angús-
tia, como inferno existencial. E com isso ele diz que nem todo discípulo será
poupado de passar pelo vale da sombra da morte, para aprender a não temer
mal nenhum, porque vai aprender a dizer “porque tu estás comigo”.
Há alguém aqui que pensa que viverá como o pai de Sidarta, o pai de
Buda, que tentou criá-lo até a adolescência sem conseguir provar, nem expe-
rimentar o mal? Não há nenhum mal mais profundo do que esse que assola
as comunidades fechadas para o mal.
Vocês viram o filme “A Vila”? Vira doença, o bicho.
Não existe a alternativa de não experimentar o mal. Jesus disse: “Pai, eu
não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal”. E o melhor lugar
para ser livre do mal é no mundo. O pior lugar para ser livre do mal é na eva-
são do mundo, no ajuntamento dos neuróticos e paranoicos sobre o mundo,
formando um monastério. Aí a macumba é o dia a dia. O mal se instala ali
105
O Caminho do discípulo

como nunca. É igual igreja, que quanto mais fechada, quanto mais unidos
são os irmãos, mais diabolicamente há a mistura da fofoca. Quanto mais eles
não se largam, mais eles se devoram. Mas têm de ter comunhão, comunhão...
Pensando que serão livres do mal, vão virando o próprio mal.
Vamos sendo forçados a crescer na vida. Sendo forçados a nos gloriar nas
próprias tribulações, sabendo que sem “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” acontecendo na alma humana, sem essa tribulação não se
gera perseverança, não se gera experiência, não se gera esperança e nem se
gera aquela segurança que já não mais se confunde, porque o amor de Deus
é derramado nos nossos corações.
É no “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” que vamos
aprendendo a servir a Deus por nada, por coisa nenhuma, sem nenhum es-
pírito de recompensa, sem barganhas. Servindo a Deus por Deus. Não estou
entendendo o desamparo, mas o Senhor é meu Deus.
E mais além, nesse tomar da cruz, o discípulo vai ter de aprender o signi-
ficado de relacionalidade transanguínea, transrracial, transcultural, transétni-
ca, transpolítica e transpartidária, ou trans qualquer coisa.
Ali, do alto da cruz, ele vê a sua mãe Maria e vê, ao lado dela, João, um
dos discípulos. Maria teve muitos outros filhos depois de Jesus, como nos
dizem os Evangelhos. Dois deles escrevem nos livros do Novo Testamento.
Tiago, líder da igreja em Jerusalém, e Judas, que escreveu uma epistolazinha
que é uma súmula da epístola de Pedro; é uma pílula da de Pedro. Então,
Jesus teve outros irmãos e irmãs, que eram filhos de Maria. Jesus foi o primo-
gênito de Maria até o fim. Não tinha nem um irmão dele ali. Todos estavam
fora. Se não fosse por amor a Jesus, que fosse pelo menos por amor à mãe,
mas que a moçada estivesse lá.
E Jesus disse que filho é quem fica junto da mãe e mãe é quem fica junto
do filho. “Mulher, eis aí o teu filho; filho, eis aí tua mãe”. E daí em diante
João a levou para casa.
E com isso Jesus reafirmou a presença de vínculos familiares transanguíneos,
transcendendo a todos esses elementos e afirmando o potencial da capacidade
essencial, de todo ser humano, de se fazer pai de outro ser humano, de se fazer
filho de outro ser humano, de se fazer membro da família de Deus entre os
humanos. Estava afirmando o potencial essencial que existe no coração de cada
discípulo de experimentar a realização da promessa de Jesus, quando disse, res-
106
Tomar a cruz – a humanidade do discípulo

pondendo aos que haviam dito: “Senhor, por causa do teu nome nós deixamos
pai, mãe, família, mulher, casa, bens, propriedades, e te seguimos”.
E ele diz: Em verdade, em verdade eu te digo que ninguém que te-
nha deixado pai, mãe, família, mulher, casa, bens, propriedades, para
me seguir, por amor de mim e por amor ao reino de Deus, não receba,
já nesta vida, neste mundo, neste tempo, mães, irmãos, família, casas,
bens, propriedades, com perseguições. E com isto ele não estava falando
de aquisição de casa, bens, propriedades. Não, não estava se referindo a
abrir-se uma ONG para a terceira idade. Não era nada disso. Ele estava
falando no amor de Deus, na penetração desse amor na consciência do
discípulo, no significado da cruz, na morte do si mesmo, com todo o
poder asfixiante que ele tem de querer nos fazer, de modo pagão, amar
somente o nosso próprio sangue, a nossa mesma carne, não como algo
que devemos fazer para honrar pai e mãe, mas como algo que fazemos
porque nosso coração é egolátrico e concentrado em si mesmo para
amar o que não consideramos nosso. Ninguém quer dilatar o coração
para amar além.
E Jesus pergunta: Você está se sentindo órfão, discípulo? Pode ser que
sua mãe esteja do seu lado. Você chora tanto pelos filhos que não estão aqui
e não tem coração para enxergar os filhos que aqui estão. Fica confinando a
sua felicidade ao quadrado familiar estabelecido pelo si mesmo, em vez de
quebrar essas fronteiras, abraçar o que seja amor fraterno, filial, paterno,
materno – genuínos e verdadeiros.
O discípulo nem discute sobre adoção. Ele se sabe intrinsecamente
adotado. Por isso, para ele, não existe o ídolo do sangue, não existe o
totem do sobrenome, não existe o poder da herança genética, não existe
obsessão pela transmigração do genoma, do gene, para que ele se per-
petue numa espécie de transmigração de DNA. Essa jamais será uma
obsessão do discípulo. Ele está interessado em parir corações, em acolher
e não ter medo de ser acolhido, em não brigar contra o amor. Isso faz
parte do tomar a cruz.
Finalmente, para que você tenha isso bem claro. Temos a humanidade do
discípulo e os caprichos do si mesmo. Veja o que pode ajudar você a fazer a
distinção.
107
O Caminho do discípulo

A humanidade do discípulo quer ser vestida. O si mesmo diz: Depende


com o quê.
A humanidade do discípulo pede água. O si mesmo diz: Só se for Perrier6.
A humanidade do discípulo diz: Por que me desamparaste? O si mesmo
diz: Eu sabia que eu não podia confiar.
A humanidade do discípulo diz: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o
que fazem. O si mesmo diz: Eu sabia que era isso que iria acontecer.
A humanidade do discípulo assume tudo aquilo que seja genuinamente
humano. O si mesmo chama de humano o que é adereço, chama de humano
o que é valor agregado, frequentemente pervertido.
A humanidade do discípulo reconhece a necessidade do abraço, o si mes-
mo quer viver para todos os abraços.
A humanidade do discípulo não tem nenhum medo de dizer que está
com fome. O si mesmo, se puder, transforma pedra em pão.
A humanidade do discípulo olha e sabe quem é, mas não aceita nenhuma
oferta para pular do pináculo do templo. Desce pela escada. O si mesmo não
resiste e se arremessa para o show.
A humanidade do discípulo, mesmo carregando a mais importante de
todas as missões, não crê nunca que os fins justificam os meios. O si mesmo
não resiste e, ao ouvir: “Tudo te darei se prostrado me adorares”, prostra-se,
põe-se de quatro e adora. Essa é a diferença entre uma coisa e outra.

Para refletir
1. Você pode identificar as tentativas diárias que o si mesmo faz para crescer em você?
2. Por que se tem de ter coragem para tomar a cruz?
3. O que você entende pela expressão “tomar a cruz”? Qual é a origem da minha cruz?
4. Quais são os passos que se caminha nessa cruz?
5. Quais são suas sedes? Que água você escolhe para matar cada uma delas? Ou,
qual é a sede diária do discípulo e que Jesus reconhece na sua humanidade?
6. O que leva o discípulo a dizer com confiança: “Deus meu, Deus meu por que
me desamparaste”?
7. Quais são os laços que a cruz pode criar entre os discípulos?

6. Água mineral francesa.

108
8. Tomar a cruz – cancelado o
escrito de dívidas
Está consumado!

Vimos que não é possível ser discípulo se o indivíduo não estiver com os
sentidos abertos. Diferentemente dos saduceus e fariseus que pediam sinal
do céu, não é possível ser discípulo mantendo no coração o fermento dos
fariseus e dos saduceus – de um lado é a hipocrisia dos fariseus; do outro, a
religiosidade cética dos saduceus –, que não se abre para a transcendência e
nem para a experiência da realidade espiritual.
Jesus disse que para ser discípulo o indivíduo não pode ficar impressio-
nado com a opinião de terceiros, com o que os outros dizem; ele tem, por
revelação, de discernir que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, e todas
as implicações disso. O fato de alguém ter essa revelação – como foi o caso
de Pedro – não o impede de ter cogitações perversas. A seguir, foi também
Pedro repreendido com “Arreda, Satanás, tu não cogitas das coisas de Deus,
mas das dos homens”.
A introdução do tema igreja – Eclésia, os chamados para fora –, foi feita
enquanto Jesus ia no caminho, viajando da Galileia para a região da Cesareia
de Filipe, porque igreja é uma comunidade andante, hebreia, que tem de
estar sempre pisando no chão único do Evangelho, no caminho que enfrenta
a realidade da vida. Se ela enfrenta as portas do inferno, por que não andará
no chão da vida e do mundo? O chamado do todo para o ajuntamento dessa
comunidade de consciência, aconteceu pela primeira vez também em Mateus
16. É um anúncio feito a discípulos, porque igreja somente existe se ela for
feita de discípulos. Se os membros não forem discípulos, ela é um clube, uma
igreja entre aspas. Se os que dela participam forem discípulos, ela é igreja, e as
portas do inferno não prevalecerão contra ela.
Propositalmente, Jesus escolheu fazer este anúncio da inserção deste
corpo de sal da terra e luz do mundo justamente numa das cidades mais
pagãs de Israel, pagã desde sempre – e nunca deixou de ser –, que é a região
do Hermon, nas nascentes do Jordão, a Cesareia filipal, cheia dos nichos e
109
O Caminho do discípulo

dos deuses. E ele anuncia que igreja não tem de estar separada, mas inserida
no mundo. Isso acontece na direção da paganidade, porque para ser igreja
de Deus não pode ser sal no saleiro; tem de ser sal na terra, e onde a terra
for mais insípida tanto mais ela deve se inserir, se fazer presente, necessária,
dando gosto à existência.
O convite ao discipulado explícito, em Mateus 16:24, é claro: “Então, dis-
se Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue,
tome a sua cruz e siga-me”. Se é uma condicional; precisa ser fruto de uma
escolha, e o indivíduo tem a alternativa de não querer ser discípulo.
Discipulado, em João, nos Capítulos 15 e 17, é descrito como amizade de
Jesus. “Vós sois meus discípulos se fazeis o que eu vos mando. Se fazeis o que
eu vos mando, eu não vos chamo servos, eu vos chamo amigos”.
O caminho para a amizade de Deus é o caminho do discipulado, que é uma
alternativa. “Quereis vós porventura também retirar-vos“? É a pergunta que
Jesus faz de vez em quando. Se o pessoal vai ficando blasé7, ele começa a per-
guntar: Por que vocês não pensam em dar uma volta, em tirar férias, qualquer
coisa? Mas se é para ser meu discípulo, é para se engajar, porque ninguém que
tenha posto a mão no arado e olha para trás é digno do reino de Deus.
Existe a alternativa de não ser discípulo, de não segui-lo, de não obedecê-
lo. E existe a alternativa de se fazer de conta que se é alguma coisa dele sem
que se seja, que é o que a maioria acaba escolhendo. Vestem-se com os figu-
rinos, com as indumentárias, fazem parte do elenco, entram para o teatro,
aprendem o jargão do gueto, descobrem os jogos de poder, ataviam-se com
as simbolizações, fazem parte dos ritos. Então são membros da igreja que tem
endereço, CPF, registro, são sócios beneméritos. Participam, sustentam e,
dependendo do lugar, votam, decidem, põem, gritam, fazem o que querem.
Mas se não obedecerem a Jesus, eu lhes digo, poderiam estar em outros
lugares. Talvez o Lyons Clube do Brasil e o Rotary tenham menos fofoca,
sejam ambientes mais finos. Ou a Maçonaria, com seus ritos sofisticados e
antigos, porque, espiritualmente falando, é tudo igual. Para ser igreja tem
de ser discípulo, tem de obedecer ao mandamento de Jesus: “Vós sois meus
amigos, se fazeis o que eu vos mando. Já não vos chamo servos, porque o ser-
vo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque
tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer”.
7. Profundamente entediado de tudo, na realidade ou por afetação.

110
Tomar a cruz – cancelado o escrito de dívidas

Então perguntamos: Qual é o mistério? E Jesus diz que, como Deus é


amor, o mandamento dele é amor. E esse é o segredo do universo: ”Amai-vos
uns aos outros como eu vos amei”. Quem andar assim é meu amigo, meu
discípulo. Existe a alternativa de não me obedecer; e até a de fazer de conta.
Mas se alguém quer, tem de querer, embora seja Deus quem efetua em nós
o querer e o realizar. Isto é assunto de Deus; mas como eu não sou Deus, eu
somente lido com o que me diz respeito. Deus é quem sabe o que ele está
fazendo quanto a querer e realizar. Se eu sei disso, então eu tenho de parar de
ficar dizendo: Senhor, me faz querer!
Isso é transferência. Ouvimos muitas orações responsabilizando Deus por
nos transformar em alguma coisa. Paulo disse: “É Deus quem opera em nós
tanto o querer como o realizar”. Ele disse também: “Desenvolvei a vossa
salvação com tremor e temor”. Então, o querer e o realizar são “negócio” de
Deus e eu não sou secretário nem da secretária da Santíssima Trindade. Mas
de uma coisa eu sei. Eu sei quando a minha consciência dói, sei quando sou
convencido da verdade, sei quando o arrependimento entra em mim; e se o
arrependimento entra em mim, então aí Deus já efetuou o querer e o realizar,
porque não há ninguém que se arrependa sem que antes seja movido por
Deus, porque arrependimento é dom de Deus.
Então o indivíduo culpado, com a consciência pesada, com vontade de
mudança, com arrependimento, já está turbinado por Deus. Não tem mais
o que dizer. Tem de levantar e andar. Acabou! A parte de Deus fazer o que
ele tem de fazer é dele; a do discípulo é querer. Se eu fui convencido de que
o Evangelho é a razão e o significado da vida – e vida é Evangelho – no meu
coração, eu me dou por consciente de que uma existência sem o Evangelho
é um caminho no contrafluxo da vida.
E Jesus não disse: Olha, considerando que é o Pai quem efetua o querer e
o realizar, se apesar disso surgir, quem sabe, uma disposição e vocês sentirem
uma cócega positiva quanto a virem após mim, após grande reflexão, con-
sultando pai, mãe, irmãos, amigos e vendo a média ponderada da sensatez
universal, então sigam-me, porque eu sou uma das boas alternativas.
Não! É se alguém quer. Mas tem a alternativa de não querer. Mas se
quiser, é para querer, é para vir, o que implica a não estagnação. É uma
decisão andante, caminhante, crescente, não conformada jamais, em proces-
so de transformação; é a escolha por um estado mutante. Permanentemente
111
O Caminho do discípulo

mutante. Diariamente mutante. Não aceitando a formatação do aeon, do


mundo, do sistema, da era, rompendo com toda mentalidade de rebanho
que segue o fluxo da maioria, e agora seguindo no caminho estreito, ainda
que sozinho, se for o caso, mas sabendo a quem segue.
Por isso ele disse: “Se alguém quer...” Porque ele não está chamando as
pessoas para ficar. Quem chama para entrar e ficar é a instituição chamada
igreja. Lá, sem ficada não há salvação. Quem inventou o ficar foi a igreja.
Ela não casa ninguém com Jesus. Ela diz: Venha domingo e fique. Fique
com Jesus um pouquinho. Venha para uma visita. A pessoa somente quer ser
visitada. Habitada? Não. Quer ser tocada. Ser vivido por Jesus? Não. Então
quem inventou o ficar com Deus foi a igreja. O convite de Jesus é para vir,
porque Deus não está ficando. Quem ficar vai ficar só. O que precisamos
saber é que Deus está indo. E tudo o que ele diz sobre nós tem a ver com o
ser indo. “Se alguém quiser vir após mim”.
Há pessoas que caem na tentação de ir adiante dele. Quase como se Jesus
dissesse: Se alguém puder me dar uma ajuda, porque eu não estou enxergando
bem... Eu fui muito açoitado, vocês são muito mais novos, por favor, deem
uma ajuda. Eu estou precisando de planejamento de marketing, de estratégia
de operação. Alguém conhece um bom CEO8 para fazer o management9 do
reino de Deus? Alguém que seja entendido de mensagens subliminares para
ver se surge uma ideia para esse pessoal? Alguém com grande treinamento
em hipnose, neurolinguística? Olha, eu sou Deus, mas eu não sei me vender
legal. Quem me vende bem é evangélico. Mas eu mesmo, Jesus, não sei me
vender. Eu não me ofereço daquele jeito, não me proponho daquela forma,
não me facilito daquele modo, não imploro a ninguém “Pelo amor de Deus,
venha a mim”! Eu não digo nada disso. Ao contrário. Eu sou capaz de amar e
de dizer para o indivíduo: Olha, meu filho, já que você diz que é bom assim
, então, venda tudo o que tem e dê aos pobres; então venha e me siga. E ele
não veio e eu fui embora; amando-o, mas o deixei.
“Deixa primeiro eu sepultar meu pai”. E Jesus falou: “Deixa os mortos
sepultarem seus próprios mortos”. “Senhor, deixa somente eu me despedir
dos de casa”. Jesus nem concessão fez.

8. CEO = principal executivo em uma empresa.


9. Gerenciamento

112
Tomar a cruz – cancelado o escrito de dívidas

E nós temos que ver o Mel Gibson esfolá-lo mais do que Tiradentes que
foi esquartejado. Lembram-se dos pregadores de antigamente, das campa-
nhas de evangelização? Eram campanhas de santa inquisição do calvário.
Eram campanhas para saber qual evangelista era o mais habilidoso em des-
crever as torturas físicas de Jesus. O evangelista dramatizava tudo. Até falar
no tipo de madeira da cruz, no peso, nos espinhos grandes, na coroa tecida.
Era uma tortura tremenda para ver se o pessoal ficava com pena de Jesus.
Ele morreu por você. Passou esse sofrimento todo por sua causa. Dá até a
impressão de que o sofrimento de Jesus foi aquele.
Aquilo ali não foi o sofrimento de Jesus, aquilo ali foi a cenografia da
crucificação. Sofrimentos físicos como aquele havia todo dia em Israel, nos
dias de Jesus. De Norte a Sul viam-se cruzes espalhadas, porque os romanos
faziam isso com regularidade, e deixavam o indivíduo morrer – dois, três
dias – ali, para ser exemplo. O que mais havia no tempo de Jesus era cruz.
Ele não inventou uma, não inaugurou uma. A dele não tinha grife especial.
Era comum. Era cruz.
Então ele diz: “Se alguém quer vir após mim”. Não adiante de mim, não
achando que eu estou carente e necessitado, não tentando me vender e criar
discípulos emocionais da carência eterna de Deus, como se estivesse fazendo
favores divinos. Não. Ao contrário. Tem de ser atrás de mim. Tem de andar
por onde eu for. Caminho que eu não faço discípulo não conhece. Caminho
que eu não escolho, discípulo corre risco neles. Tem de ser “após mim”.
“A si mesmo se negue”. Estudamos a diferença entre o eu verdadeiro e o
eu falsificado, fantasiado, que é fruto de toda essa coletânea multifacetada
que nós já vimos nos capítulos anteriores. Tome a sua cruz. E cada um tem a
sua. Estudamos as várias implicações da cruz, até que chegamos ao ponto em
que afirmei que qualquer que seja a cruz de cada um, nela, todavia, precisam
estar presentes os mesmos elementos constitutivos do conteúdo da cruz de
Jesus. Existem aspectos da cruz de Jesus que são somente dele para nós; o
que diz respeito a nos expiar, nos redimir, nos reconciliar com Deus. Todos
os demais aspectos dizem respeito a nós na horizontalidade dos vínculos,
no expiar a culpa do irmão, no redimir o próximo, na criação de pontes
e construções reconciliadoras para que sejamos chamados filhos de Deus.
Iniciamos o estudo nas sete declarações que Jesus fez na cruz como sendo os
elementos pivotais para definir a nossa consciência do que seja levar a nossa
113
O Caminho do discípulo

cruz em qualquer que seja o contexto. E eu iniciei falando em levar a nossa


própria cruz, que não é uma outra cruz, é como a cruz de Jesus. Mas a cruz
referência absoluta é a dele.
Levar a nossa própria cruz implica dizer: “Pai, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem”. Não existe caminho de discipulado sem perdão ao
mundo, à vida, a todos. A marca do discípulo é perdão, porque o discípulo
é aquele que diz: “Eu fui perdoado de tudo para sempre”. Por isso ele não
é um credor incompassivo do próximo. Como foi perdoado de tudo, ele
perdoa tudo.
Para ser discípulo, o indivíduo tem de ter o mesmo olhar de Jesus, que
consegue ver o potencial da graça onde ninguém consegue enxergar. No mo-
ribundo e no sentenciado ao lado existe um filho do paraíso. Ninguém é
discípulo se não tiver esse olhar da expectativa eterna projetada como bem
sobre todo homem, com a expectativa de todo homem, em qualquer lugar;
e ainda que seja na mais inconcebível de todas as circunstâncias, se os olhos
dele se abrirem, e se abrirem num átimo de qualquer que seja o instante, a
graça nele está instalada e o discípulo confessa como o Mestre: Hoje mesmo
você estará no paraíso, meu irmão. Discípulo tem essa mania de Jesus de sair
condenando as pessoas à salvação e à graça.
Para ser discípulo, o indivíduo tem de carregar dentro de si a consciência
da sua própria humanidade. Ele tem sede, ele tem fragilidades, ele não pode
brincar com os elementos das necessidades essenciais, do mesmo modo que
ele não aceita as falsificações. Jesus disse: “Tenho sede”. Quando deram o
que não era água, ele não quis beber, ainda que fosse um entorpecente para
diminuir a dor. Isso é consciência da humanidade; ao mesmo tempo em que
existe o desejo de não fazer fugas e nem rotas evasivas do que seja a realidade
da vida e da condição humana.
Discípulo é aquele que consegue ver o potencial de amor, de familia-
ridade, de aproximação, de solidariedade, de conciliação que transcende a
toda consaguinidade. É por isso que do alto da cruz ele disse à sua mãe:
“Eis aí o teu filho”, referindo-se a João; e disse a João: “Eis aí a tua mãe”,
referindo a Maria.
Ser discípulo é saber que na experiência com Deus ele pode atravessar o
vale do sentimento mais agudo de abandono e de desesperança e mesmo as-
sim sua consciência tem de crescer e evoluir, a ponto dele dizer: “Deus meu,
114
Tomar a cruz – cancelado o escrito de dívidas

Deus meu, por que me desamparaste?” Ou seja, é a possibilidade de tratar do


seu desamparo com total intimidade com Deus, porque é o desamparo mais
acolhido. Porque o “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” é a
fé que cresce para servir a Deus por nada, para ser de Deus no desamparo,
usando um antropomorfismo que para alguns poderia soar até meio blasfe-
mo, mas Deus entende. O discípulo carrega no coração esse desejo de ser de
Deus. Tem de crescer dentro dele essa capacidade de adorar a Deus ante o
absurdo. É a fé de Abraão, o monte Moriá.
Ao olhar para a cruz de Jesus, aprendemos que ser discípulo é crer que
“Está consumado!” É declarar que está consumado e viver para o que já
está consumado em nosso favor. Tetelestai é o brado de Jesus na cruz, é a
penúltima declaração, e ele usa uma expressão que é extremamente enten-
dida por aqueles que estavam em volta. Não importa se do Aramaico para o
Latim, para o Hebraico ou para o Grego. Ele usa uma expressão que tinha
um significado judicial, forense, do Direito, especialmente no texto do Novo
Testamento, em João, que é: “Está consumado!” Nos outros Evangelhos, se
diz que ele deu um grande brado, mas é João quem coloca significado no
brado. O brado foi: Está pago. Tetelestai é a palavra que João usa no texto do
Evangelho, que era a palavra utilizada para designar a quitação absoluta de
qualquer débito, não importando a natureza do crime.
Quando o indivíduo era apanhado e condenado, eram escritos, numa
lista, os crimes pelos quais ele estava condenado e encarcerado. Essa lista
era afixada à porta da sua cela. Quando chegava o tempo da remissão, da
redenção, do cumprimento da pena ou da absolvição, fosse qual fosse o
critério, o oficial de justiça selava com o imprimatur romano a declaração
de que estava consumado. E, dependendo do contexto – se fosse no mundo
grego – o que ia era o imprimatur do Tetelestai. Está pago. Está consumado.
Está feito. Está realizado.
O discípulo, portanto, ao tomar a cruz e seguir Jesus, faz isso sabendo
que segue a Jesus não porque isso fará com que ele chegue aonde ele deseja
chegar. Mas segue a Jesus porque já sabe que agora ele pode. Antes não
podia, por mais que ele quisesse; mas agora ele pode, porque está pago.
Porque está quitado. Então, mesmo quando, no caminho, se autoinviabiliza,
ele pode se levantar, imediatamente; não como aquele que tem de fazer peni-
tências longas para ver se reencontra Deus; ele sabe que já está pago.
115
O Caminho do discípulo

Obviamente que isso não gera no coração do discípulo cinismo e nem


uma atitude blasé, ou indiferente. Ao contrário. Paulo afirma, aos coríntios,
que é a consciência de que está pago que produz em nós a pulsão, o motor,
a motivação, o poder que vai nos colocar neste caminho contínuo de segui-
lo: “Julgando nós isto, um morreu por todos, logo todos morreram para que
aqueles que vivem não vivam mais para si mesmos” – e nem para o si mesmo
–, “mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou”. Então Paulo diz que
o motor dessa disposição é a consciência produzida por essa gratidão em fé.
Está pago. Eu podia ser o criminoso ao lado. Não tenho de ir ao purgatório,
não preciso passar por um vestibular introdutório, nem fazer um concurso
público celestial. Nada disso. O homem da cruz do lado de lá disse: “Tu nem
ao menos temes a Deus estando sob igual sentença”? Aquele que não blasfe-
ma contra Jesus passou da cruz de cá – de maneira quântica – para a cruz do
meio: crucificado com Cristo instantaneamente.
O Pai já não o via ali. O Pai já o via crucificado com o Filho. Quando Jesus
disse: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”, é óbvio, Jesus está indo para o
paraíso. Quem está em Jesus está indo com ele. Está consumado. Tudo que é
de Jesus agora é meu. Tudo que me matava, por isso Jesus morreu. E o que me
matava não era a morte física. O que matava e mata a qualquer um é a morte
espiritual, que decorre da alienação com Deus e de um espírito que nunca é
emulado pelo Espírito de Deus, porque nunca se abre para o Espírito de Deus,
e muitas vezes nunca se abre quando o Evangelho o esbofeteia. Está consuma-
do. O discípulo sabe que, porque está tudo pago, ele é um produto do amor de
Deus; e se isso não gerar em nós a motivação para o seguir, nada mais gerará.
Porque qualquer outra motivação não gerará. Sem amor, nada aproveitará.
Podemos ser discípulos do medo. Tenho medo do inferno, por isso vou
seguir a Jesus, alguém pode dizer. Não. Você estará seguindo uma estrada
cristã, fixa, religiosa, física, mas não estará seguindo a Jesus, porque, para
seguir a Jesus, tem de ser pela motivação do amor, e não pela motivação do
medo. Sem a motivação do amor, nada aproveitará; nem a tentativa de seguir
a Jesus. É desse “Está consumado” que nasce a gratidão absoluta que nos
coloca na motivação do amor que obedece ao mandamento.
Na segunda dimensão do “Está consumado” é que ele introduz a li-
bertação de todas as falácias e seduções das relatividades de emancipação
espiritual que nos possam ser propostas. Em Colossesses 2, Paulo, antes do
116
Tomar a cruz – cancelado o escrito de dívidas

“Está consumado” ao qual ele se refere – não com as mesmas palavras, mas
descrevendo o mesmo conteúdo –, antes de chegar nesse momento ápice
da descrição, ele diz: “Ninguém vos engane, ninguém vos enrede com vãs
filosofias, com os rudimentos desse mundo”. Com pensamentos vãos, com
argumentações, com suposição de gnoses, de conhecimento secreto que
gere autoelevação.
Com a expressão “vãs filosofias”, ele já se referia, especialmente, ao
movimento gnóstico, que queria entrar no ambiente da fé produzindo
uma salvação pelo autoconhecimento e pelos conhecimentos secretos,
não compartilhados com o povo nem com o mundo. Ele dá ênfase nisso
e daí parte para a Lei. Quando fala de vãs filosofias, está falando daquele
público que lia, que se deixava impressionar com os últimos pensamen-
tos, últimos achados, última viagem, último livro reflexivo, última cogi-
tação. Ele parte daí e vem para o ambiente da Lei, dizendo: Não entrem
nessa de vãs filosofias, nem na de autossalvação pela Lei; coisas do am-
biente bem judaico daqueles dias.
Um romano, por exemplo, não precisava ouvir essa mensagem da
Lei de Moisés. O romano não tinha absolutamente nada a ver com a Lei
de Moisés. Não adiantava vir com uma instrução do Velho Testamento
para um romano. Paulo, quando pregava aos romanos, aos gregos, não
levantava argumentação de Abraão, de Davi ou dos Salmos. Ele somen-
te dizia que Jesus tinha vivido entre nós assim, fazendo o bem em toda
parte, curando, expulsando o diabo; morreu na cruz e ressuscitou dos
mortos. Você crê? Quem crê, vem para cá; quem não crê, fica aí. Vamos
embora.
Mas para o judeu – e naquele ambiente havia judeu também – tinha
de ter um argumento na Lei, que era o ambiente central, pivotal. E acabou
tornando-se um argumento pivotal e central também para o cristianismo,
que ficou judaizante. Nós que éramos gentios, gastamos a maior parte do
tempo discutindo essas questões judaicas da Lei. E ele diz: A Lei também
morreu na cruz, como ele já havia dito em Romanos 10:14: “Porque o fim da
Lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê”. Quando Paulo dizia isso,
ele estava dizendo: Está consumado.
Em Colossessens 2: 13- 16, Paulo diz:
117
O Caminho do discípulo

E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas trans-


gressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu
vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos
delitos; tendo cancelado o escrito de dívida que era
contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos
era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o
na cruz; e, despojando os principados e as potestades,
publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles
na cruz.

Tetelestai! Está pago.


Essa Lei é insuportável, ante a qual ninguém sobrevive. Ninguém. Ninguém
a obedece cem por cento do lado de fora e ninguém a obedece em nada do lado
de dentro. Do lado de fora, com bom condicionamento, adestramento, com
muito treinamento, frequentando a igreja do encantador de cães, pode ser que
nos eduquemos; e do lado de fora o indivíduo vai como um manequim, um
robô... Eu nunca fiz isso, nunca fiz aquilo. É carnaval de crente. Eu fiz, mas
nunca mais farei... Eu fui, mas não sou mais... Fui, mas não serei...
A Lei não é somente aquela bondadezinha dos dez mandamentos. Os dez
mandamentos são apenas a azeitona do pacote. Quem quiser ver o tamanho
do escrito de dívida, entre em Levítico. Não sobra nem para animal. Se o bi-
cho morder o vizinho errado, pau nele até a morte. Não sobra para ninguém.
Desobedeceu a papai e mamãe? Pendura no madeiro e deixa apodrecer vivo,
até que as aves do céu venham comer os olhos do cara. Casou com tio? Pedra-
da. É filho de uniões muito próximas? Cacete. Pegou a mulher do próximo?
Morte para ela. Nasceu? No oitavo dia tem de cortar. Se não cortar, não tem
Deus. As minúcias são insuportáveis. O indivíduo tem de participar até das
festas. Se for lua nova e ele não aparecer, está danado. Tem de participar de
tudo. Tudo. Tudo mesmo. E isso tudo é brincadeira diante do que Mateus 5,
6 e 7 nos ensinam sobre as subjetividades do pecado todas as vezes que Jesus
fala “Eu, porém, vou digo...”
Deus perguntou a eles no Monte Sinai: Escutem, o pacote é este, vocês
querem? E eles, tremendo de medo – Moisés diz que eles nem ousavam chegar
perto do monte –, disseram apavorados: Queremos, mas com uma condição:
Que você, Moisés, conte para nós. Não damos conta de ouvir a voz dele. Nós
queremos... Mas ninguém queria. Eles não aguentaram nem a espera!
118
Tomar a cruz – cancelado o escrito de dívidas

Moisés demorou 40 dias no monte e rolou idolatria com o bezerro de


ouro; todos já estavam no carnaval. O que eles fizeram naquele deserto, nem
os egípcios sabiam fazer. Com raiva de Moisés e tanta raiva acumulada, eles
disseram: Nós vamos nos matar de fazer safadeza. Vocês conhecem bem este
espiritozinho.
O que ocorre? O escrito de dívida afirmava no seu bojo que aquele que
obedecesse a tudo, mas transgredisse um único mandamento, era réu de to-
dos os mandamentos a que ele porventura obedecesse, portanto era uma lei
de morte e não de vida, de inviabilidade. Era uma lei que acentuava a impos-
sibilidade humana de autossalvação; que mostrava, sem sombra de dúvida,
que “todos pecaram e todos igualmente carecem da glória de Deus”.
Uma lei que chegava com aquela ação terapêutica de elevar o indivíduo
ao amargor da consciência mais profunda da sua impotência, para que ele
dissesse: Deus, a Lei é boa, santa e justa, mas eu sou um pecador. Tem mi-
sericórdia de mim! E, então, ele seria justificado, como todos os que foram
justificados em Israel, por essa oração de quem diz: Ela é boa, santa e justa,
mas eu não sou. Tem misericórdia de mim!
Paulo, no entanto, diz que no “Está consumado” da nossa cruz o que
absorvemos e aprendemos é que o escrito de dívida que era contra nós foi in-
teiramente removido. Não precisa nem colocar bandeira de Israel no púlpito,
como algumas igrejas fazem. Isso é um culto a judeu. Há um tesão psicológi-
co por judeu que é uma coisa louca! Há um frisson por judeu. Vi muito isso
nos grupos que levei a Israel.
O escrito de dívida que constava contra nós, cheio de ordenanças inviá-
veis e impossíveis, foi inteiramente removido, encravado na cruz. Tetelestai!
Está consumado! Ele foi a todos os cárceres – no meu cárcere, no seu e no
de cada um de nós, de todos. Foi lá, pegou todas as listas que estavam nas
portas das nossas celas, todas as nossas transgressões, todo nosso escrito de
débito, de dívida, de inviabilidade humana. E quando O pregavam na cruz,
tudo estava sendo pregado nele, não com pregos, mas com a decisão dele de
chamar para si a iniquidade de todos nós.
Então, quando eu tomo a minha cruz, eu sei que está pago, consumado.
Isso gera em mim um motor de gratidão, ao mesmo tempo em que gera
em mim uma absolvição absoluta de toda culpa neurótica. Deixa a reserva
técnica em mim apenas para a culpa sadia, que é aquela que decorre da
119
O Caminho do discípulo

constatação real de que se transgrediu o mandamento do amor ou o signifi-


cado da vida. Mas remove toda culpa neurótica, toda culpa simbólica, toda
culpa arquetípica, toda culpa ritual, toda culpa cerimonial, toda culpa mo-
ral que se faça ser culpa moral por causa de pesos neuróticos colocados em
nós. Fica para nós agora a lei da Graça, que é a consciência acerca do que
seja mandamento de Deus como prática do amor, onde não há leis, porque
o amor não transgride. E quanto mais alguém mergulha e se entrega ao
amor de Deus, tanto menos transgressões haverá na vida desse indivíduo.
E mais, quando o discípulo toma a cruz e segue, ele sabe que o “Está con-
sumado” implica segurança absoluta, espiritualmente falando, porque quan-
do Jesus tomou o escrito de dívida e cravou na cruz, despojou o poder dos
principados, das potestades, do mundo espiritual, dos demônios, de todos os
seres visíveis e invisíveis. Despojou esse poder, arrancou esse poder que eles
tinham na mão contra nós e que era exercido sobre e contra nós em razão da
nossa culpa real e também em razão da nossa culpa neurótica.
De modo que, fosse pela objetividade real da culpa, fosse pelo caminho
da neurose culposa, os principados e potestades se serviam desse banquete
culposo e compulsivo que todos nós oferecemos – e alguns ainda oferecem
em razão do pânico e da transgressão da lei –, e oprimiam as nossas existên-
cias. Ainda continuam oprimindo todo aquele que não tomou posse do fato
de que isso está consumado. Mas para nós que cremos, ele já despojou os
principados e potestades e, publicamente, os expôs ao desprezo, triunfando
sobre eles na cruz. É por isso que o discípulo pode andar na porta do inferno
e a porta do inferno não prevalecerá contra ele porque “Está consumado” e
os principados e potestades foram expostos ao desprezo. Eles não têm mais
esse poder sobre o discípulo.
Quando o discípulo crê que “Está consumado” nessa extensão toda em
seu favor, ele se torna um assombrador de assombrações. Ele se torna um
atormentador de demônios. Ele se torna aquela pessoa acerca de quem o
mundo invisível diz: Conheço a Jesus e sei quem é Paulo. Porque não tem
como não se transformar em um ente luminoso. Se pudéssemos abrir os
olhos espirituais, nós veríamos a ressignificação de um ser humano quando
a consciência do Evangelho entra nele em fé; quando ele acolhe o espírito de
Deus como selo eterno e crê de todo coração, sabendo que está tudo pago.
Na mesma hora, ele vira uma luz incandescente, um luzeiro nesse mundo
120
Tomar a cruz – cancelado o escrito de dívidas

de escuridão. Então ele vira um pânico para principados e potestades. Está


pago. Não existe mais medo de diabo, de demônios, de assombração, de fan-
tasma, de OVNI, do que quer que seja. Porque está consumado, ele sabe que
nem vida, nem morte, nem coisas do presente, nem do porvir, nem altura,
nem profundidade, nem qualquer criatura pode separá-lo do amor de Deus
que está em Cristo Jesus, o Nosso Senhor.
Porque está consumado, o discípulo sabe, de todo coração, que está com-
pletamente escudado. Não há débito em lugar nenhum do universo acerca
dele. Ele pode estar ainda encalacrado no Serasa e no SPC, como aquele
ladrão ou malfeitor da cruz estava encalacrado até o talo. Estava falido e sem
salvação, mas foi para o paraíso. Saiu da falência para o paraíso. Esse é o salto
extraordinário quando alguém se apropria em fé do que já está feito. Porque
está consumado, o discípulo também anda declarando isso para a vida e para
o próximo.
Se o discípulo começa tudo dizendo: “Pai, perdoa-lhes, porque não sa-
bem o que fazem”, as coisas todas vão terminando com ele dizendo: Eles não
sabem o que fazem, Pai, mas está pago por eles. De modo que o discípulo é
um ser que caminha fazendo afirmações vicárias, é um ser que caminha afir-
mando que tudo já convergiu para ele. É um libertador de almas e espíritos
do mundo, porque ele declara que está consumado. Que assim como foi
com Jesus, assim também será com ele. Que agora o Espírito de Deus está
sobre ele, pelo que o ungiu para proclamar libertação aos cativos, restauração
de vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, para anunciar o ano
aceitável do Senhor, porque está consumado.
E ele se une a Jesus nessa tarefa. Quando Jesus disse: “Assim como o pai
me enviou eu também vos envio”, o discípulo aceita o modelo do envio de
Jesus como o modelo do seu próprio envio. E se Jesus declara que tudo está
consumado, o discípulo é um repetidor disso; e a partir do benefício que
ele recebeu, ele estende, com a convicção visceral dos perdoados, o perdão a
todos os seres humanos.

Para refletir
1. Releia todo o capítulo e escreva o significado que essas palavras têm na cruz do
discípulo:

121
O Caminho do discípulo

»» Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. (Lucas 23:34)

»» Hoje mesmo estarás comigo no paraíso. (Lucas 23:43)

»» Tenho sede. (Mateus 27:43)

»» Mulher, eis aí o teu filho; Filho, eis aí a tua mãe. (João 19: 26, 27)

»» Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? (Marcos 15:34)

»» Está consumado! (João 19: 30)


2. Você pode falar – com certeza em fé, com consciência do que isso significa
para você – sobre o escrito de dívida que havia contra você? O que aconteceu
com ele?
3. Qual é a consequência imediata, e para sempre, desse fato relatado em Colossenses
2:13 a 16?

Anotações

122
9. Tomar a cruz – livre da fobia da
morte
Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!

O versículo 16 do capítulo 24 de Mateus é a declaração que apresenta


a importância pivotal para aquilo que estamos tratando. Todas as demais
coisas gravitam em torno desse convite radical de Jesus ao discipulado. Ele
nos quer seus discípulos, significando dizer que sejamos aqueles que devemos
aprender a sua disciplina. A palavra discípulo vem da raiz grega que designa
a palavra disciplina, caminho, ensino, compreensão.
O convite de Jesus é para que o sigamos, porque, de fato, é uma con-
vocação que não pode ser apreendida, nem capturada, nem discernida por
qualquer via que não seja aquela diretamente experiencial. Jesus disse que se
alguém quiser conhecer como é a doutrina, que a pratique. Do contrário,
não existe a menor possibilidade de se experimentar a verdade segundo Deus
pela via da elucubração ou da reflexão mental, porque a proposta da verdade
no Evangelho é algo que transcende o mero exercício de qualquer que seja
o pensamento mais evoluído. Jesus disse: Se você não puser o pé na estrada
para provar se o que está dito, em sendo praticado por fé, passa no simples
teste – se a realidade subsiste como verdade –, não adianta nem iniciar qual-
quer que seja a viagem. Então, o que ele faz é um convite para que o discípu-
lo o siga; e as condições estão estabelecidas nesse texto.
Então disse Jesus: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo,
tome a sua cruz e siga-me; pois, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas
quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á”.
Vimos cada um desses elementos da condicional se. Da necessidade de
que, qualquer que seja o voluntariado para que se aceite o convite ao discipu-
lado, a reflexão tenha se estabelecido seriamente. O indivíduo tem de medir
os custos. Justamente por isso, também está explicitado que a decisão não é
de uma categoria especialíssima de pessoas superdotadas. É uma graça divina
que Jesus simplesmente diz que pode acontecer a qualquer um. Está dispo-
nível a qualquer pessoa. Por isso ele diz: “Se alguém”. Não é apenas para um
123
O Caminho do discípulo

grupo, uma casta, uma categoria especial. Qualquer ser humano que, tendo
ouvido, tendo acolhido, faz parte do grupo com todas as possibilidades de
provar e de conhecer. Mas precisa querer.
Refletimos, seriamente, sobre essa questão da vontade e dos nossos vícios
de transferência de vontade para Deus, das nossas orações adoecidas, o tem-
po todo dizendo: Senhor, faz-me querer. Isso justamente para que nunca se
tome decisão nenhuma acerca da própria existência. São todos mecanismos
evasivos que vemos a toda hora sendo utilizados. Mais do que isso, o convite
ao discipulado que eu posso particularizar, inventar, patentear, como minha
versão de discipulado, não produz nada!
Jesus disse: “Se alguém quer vir após mim”. É um convite que põe o
indivíduo no caminho. É um vir, é um movimento; o resultado é seguir; é
um caminho hebreu. A palavra hebraica carrega esse significado andante,
caminhante, mutante, na estrada, aprendendo, provando.
No entanto, o indivíduo precisa saber que ele não tem a prerrogativa de
inventar seu próprio caminho de discipulado. E nem de formatar seu próprio
Jesus. Estamos lidando com uma realidade absoluta: “Se alguém quer vir após
mim”. E não existe nenhuma garantia de que isso vá se realizar como bem,
como Evangelho, como boa nova, como saúde, como libertação do ser dessa
multidão de construções de eus fantasiosos, de selfs fantasmagóricos. Para que
a libertação aconteça, para que a realidade e a verdade se casem com a graça,
gerando o ser cada vez mais próximo do eu real, é preciso que sigamos após ele e
desistamos das nossas fantasias de autofabricação de evangelhos personalizados,
porque não há nenhuma promessa de que o fantasiar dos nossos caprichos un-
gidos de religiosidade batizada em nome de Jesus vá fazer algum bem a nós.
Vimos o significado do negar a si mesmo, do si mesmo; as diferenciações
entre os selfs categorizados de maneira junguiana, por exemplo, e a definição
do self segundo o Novo Testamento. Vimos como a perversão do eu profun-
do quer crescer em nós à medida que o esvaziamento de irrealidades e de fan-
tasias vão dando lugar à experiência da verdade. No tomar da cruz, vimos o
significado visceral da consciência disso como benefício particular, e falamos
da psicose básica acerca da qual Paulo faz menção em Romanos 7, que tem
de ser o primeiro tomar da cruz de consciência em fé do discípulo. Também
vimos que não faz sentido falar no tomar da cruz inventando qualquer que
seja a imagem ou ideia de cruz como em geral a religião costuma fazer.
124
Tomar a cruz – livre da fobia da morte

Eu disse que nós tínhamos uma única cruz referencial. Porque o que não
faltava nos dias de Jesus era cruz. A história nos mostra que, especialmente
durante o curto período de Pôncio Pilatos, a cruz era comum. Pôncio Pila-
tos foi um indivíduo cruel, brutal. A história começou a saber disso depois
que foi encontrada a documentação que comprova a sua existência, 40 anos
atrás, em Cesareia de Filipe, na costa mediterrânea de Israel. E de lá para cá,
há uma quantidade enorme de informações sobre ele, inclusive sobre suas
brutalizações naquele período anterior à crucificação, quando havia, muitas
vezes, cerca de 500 pessoas crucificadas, por dia, em todo o estreito territó-
rio de Israel. Eles andavam a pé da Judeia para a Galileia, da Samaria para
a Judeia, para o Norte e para o Sul do país, vendo cruz o tempo todo. Os
crucificados não morriam com a rapidez com a qual Jesus morreu. Em geral,
a asfixia era lenta. Podia durar um, dois dias. O indivíduo mal crucificado
e resistente fisicamente poderia resistir na cruz por quase três dias. Era uma
morte extremamente lenta. Isso tudo numa mente religiosa, alegórica, ser-
viria para bilhões de viagens que o indivíduo quisesse fazer. Mas nós não
estamos nos negócios dos caminhos viajantes e, sim, das factualidades. E a
única cruz referencial que temos, a única que vale a pena ser entendida é a do
“Negue-se a si mesmo...”.
Jesus está nos chamando para tomar a nossa cruz e segui-lo. Significa
segui-lo na sua própria cruz, no seu próprio conteúdo e significado de cruz.
Havia uma dimensão da cruz de Jesus cujo significado se aplica a nós e que
é absolutamente para além de nós, que nos transcende, que nunca será nos-
so, porque nós habitamos a dimensão do limite e da finitude. É o benefício
que vem da vicariedade total de Jesus para com o universo, os multiversos
e todas as existências. Mas é dele para lá. Somos beneficiários. Não temos
o poder de torná-la um benefício que nasce em nós para o próximo. No
entanto, os demais elementos daquela cruz, especialmente os designados
pelas sete declarações que Jesus fez ali, são o conteúdo, são os elementos
que constituem o significado da nossa visão do que seja levar a nossa cruz
e segui-lo no caminho.
Depois chegamos à declaração que diz: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito. E tendo dito isto, expirou”. Essa declaração é o elemento absoluta-
mente constitutivo da minha cruz, da sua cruz, da jornada humana como
discípulo de Jesus.
125
O Caminho do discípulo

É uma leitura que eu quero fazer de trás para frente. Ou seja, começando
no fim, na última declaração, no último suspiro, que é no expirar, que é no
morrer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Porque essa é a inesca-
pabilidade da experiência de todos nós. Em primeiro lugar, o discípulo que
não aprender a inescapabilidade dessa hora terá vivido enganado por toda a
sua existência. Segundo, o discípulo que não discernir que o que nos quali-
fica todo dia para viver é a libertação total do medo de morrer, também não
vai aprender a ser discípulo.
Alguns acham que quando eu falo de libertação total do medo de morrer
estou de brincadeira, mas não estou não. De fato e de verdade. O escritor de
Hebreus nos diz que dentre as coisas que Jesus veio fazer como bem espiritual
para aquele que, discernindo, acolhe em fé, uma delas é destruir aquele que
tem o poder da morte, a saber, o diabo, o esquizofrenizador de seres e que
divide tudo; e também que ele veio para destruir aquele que em nós instila,
infiltra, infunde, oprime o poder da morte, o medo da morte, a fobia da
morte, em razão da qual nós vivemos escravizados a vida inteira.
A fobia da morte é uma das pulsões mais primais, mais presentes, pro-
vavelmente a mais intrínseca. Uma pulsão essencial, uma sensação de con-
tagem regressiva que todos têm, que é o motor da maior parte das nossas
ansiedades. Algo em nós conta regressivamente a nossa existência de modo
inconsciente e vamos tentando dar significados pontuais a essa contagem re-
gressiva. E não a experimentamos com a intensidade angustiante, na maioria
das vezes, somente na infância, enquanto o peso opressor da potestade do
futuro não se instalou como angústia na mente infantil; enquanto o ser ain-
da carrega aquela existencialidade recomendada por Jesus, que diz que cada
dia é apenas aquele dia, como, em geral, é com as crianças. Mas em algumas
crianças isso começa a acontecer antes, pelo encontro antecipado com morte
de pessoas muito queridas.
A maioria de nós faz parte do grupo de pessoas filhas de gerações que foram
protegidas de defuntos. E também protegem seus filhos e netos dos defuntos.Eu
venho de uma terra, o Amazonas, onde era privilégio ficar em volta do morto.
Era não somente um dia de comer muito bolo, tomar muito café, mas também
de conversar a noite inteira, coisa extremamente interessante. Um Halloween
sem susto. Os vizinhos se reuniam, contavam histórias do morto; o morto res-
suscitava de tanta história que se contava dele. No Amazonas, naquele tempo,
126
Tomar a cruz – livre da fobia da morte

era melhorado nas histórias. Todos repintavam o indivíduo. Ele ficava uma ma-
ravilha. As crianças achavam tudo aquilo normal.
Mas há crianças que acordam para a significação da morte quando a or-
fandade bate forte mesmo e se estende para a família maior, onde não há uma
tia ou avó, um vínculo essencial para dar aquele abraço que recompõe. Daí,
inicia-se, antecipadamente, a contagem regressiva para a morte, pela respon-
sabilidade que é emulada pela necessidade da sobrevivência.
Na adolescência, quando se mistura com a explosão hormonal da ado-
lescência e mais as crises existenciais da época, a contagem regressiva vai se
transformando em comichão ansioso que é quando bate um frenesi incon-
trolável naquele ser, que vai se tornando um vulcão de desespero querendo
devorar e engolir o mundo inteiro. Na realidade, isso se transforma em um
buraco negro. Tudo que bate ali, naquele horizonte do buraco negro, é cha-
mado e sugado para o lado de dentro. E então apelidamos isso, na adoles-
cência, de “minha necessidade de curtir”, de “não posso perder essa”, enfim,
de qualquer coisa.
Depois os estágios mudam e vamos reapelidando essa ansiedade, rebati-
zando-a de muitas responsabilidades, muitos deveres, muitos cursos a fazer,
muitos alguéns a nos tornar, muitas obrigações a atender. Muitas coisas. Nós
transferimos e mudamos o marco, repintando a placa dessa ansiedade. Mas,
de fato, é a fobia da morte, latente. É o medo constante de morrer. É o re-
lógio disparado na contagem regressiva que diz ao indivíduo que ele está em
franco processo de degenerescência, ao mesmo tempo em que vem a fantasia
que diz, não somente uma coisa, mas bilhões delas, que atribuem, como
obrigação de significação existencial, que ele vá se tornando, aparentando e
mostrando coisas que, de um lado, exacerbam a ansiedade e, de outro, bati-
zam a ansiedade, de modo que a questão básica, o elemento causal, que é a
fobia da morte latente, fica dissimulado.
Então, quando o discípulo genuinamente diz: “Pai, nas tuas mãos entrego
meu espírito” – quando isso acontece sinceramente em fé –, é porque a fobia
da morte foi desconstruída dentro dele; a fobia da morte que se alimenta do
obscuro, do medo, do pânico, do nada ou de um tudo pavoroso, ou de coisa
alguma. Nessa hora é que o discípulo ganha a convicção absoluta de que o
caminho não é um algo, nem quem sabe “um alguém”, nem um nirvana, onde
não se sabe que existe. Ao contrário, para além desse morrer, desfeita a fobia,
127
O Caminho do discípulo

o que se sabe que há é a mão do seu Pai. E que ele não é adoecido como o pai
terreno que talvez alguém tenha tido. É o Pai. Caímos nas mãos dele, somos
nas mãos dele, existimos nele. Uma vez que essa consciência nos atinja e em
nós se instala em fé verdadeira – e isso não é utopia –, quando começamos a
caminhar em fé e a crescer nela, a passar pelos getsemânis da existência e nela
perseverar, vamos vendo como, de fato, a libertação do ser em relação à contin-
gencialidade da morte é crescente. Chega-se ao ponto em que “o viver é Cristo
e o morrer é lucro mesmo”, como Paulo diz.
Paulo chegou a dizer, sem ufania nenhuma: “Para mim é infinitamente
melhor, eu bem que preferia...”, de tão densamente real que se tornara. Ele
disse: “Eu não vou ainda somente pelo benefício que a minha presença
possa trazer para vocês e pelo que os dons da graça de Deus na minha vida
ainda possam trazer sobre alguém, alguns ou muitos; porque, por mim, a
minha convicção é que olhos nunca viram e ouvidos nunca ouviram e que
nunca subiu ao coração de homem algum o que Deus tem reservado para
aqueles que o amam”.
Então, quando o discípulo diz: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espí-
rito”, em fé, ele está declarando a libertação da fobia mais essencial, mais
molestadora, mais pervertedora de caminhos, mais indutora de fantasias,
mais destruidora do olhar limpo, claro e simples, mais fabricadora de ne-
cessidades inexistentes de eus que não correspondem a quem de fato ele
é. Quando o discípulo diz isso ele sai das outras mãos. Fica livre dessa
multidão de mãos que o agarravam. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito”.– Essa foi a última declaração de Jesus e a declaração que ele fez
durante toda a sua existência.
Ilustrativamente, vejamos alguns elementos pivotais.
Quando Jesus é tentado depois de 40 dias sem comer e sem beber –
“Transforme essas pedras em pães” –, o que ele disse foi: “Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”, dizendo: “Nem só de pão viverá o homem, mas de
toda palavra que sai da boca de Deus”.
Quando é levado ao pináculo do templo e o tentador diz: “Atira-te abai-
xo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito para que te
guardem”, o que Jesus respondeu mesmo foi: “Pai, nas tuas mãos entrego
o meu espírito”, porque a tentação foi: “Se tu és o filho de Deus atira-te
daqui”. É uma tentativa de fragilizar a autoimagem, de desviar o curso da
128
Tomar a cruz – livre da fobia da morte

própria natureza e de instilar dúvidas sobre sua própria essência. E o que ele
disse foi: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, quando respondeu:
Não tentarás o Senhor teu Deus”.
Quando é levado a um alto monte e a ele são oferecidos todos os reinos
do mundo sem cruz, sem a escolha da vereda estreita, do caminho do amor,
da vitória que não estupra, que não desembainha a espada, que não esmaga,
que é a vitória da vida e da graça de Deus, quando essa é a proposta satânica,
ele diz: “Arreda, Satanás”, significando dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego o
meu espírito”, a minha confiança está em ti.
Filipenses 2:5-8:
Tende em vós aquele sentimento que houve também
em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de
Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus;
antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de
servo, tornando-se em semelhança de homens; e reco-
nhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou,
tornando-se obediente até a morte e morte de cruz.

Nesse texto – a sua existência inteira, anterior a sua própria encarnação, a


existência do Cordeiro de Deus que foi imolado antes da fundação do mun-
do, antes de qualquer universo, multiverso, de universo paralelo, do cosmo
e de todas as existências acontecerem – o que está sendo dito é que Jesus, o
Cordeiro eterno de Deus, disse: “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito”,
porque o Cordeiro de Deus foi imolado antes de qualquer criação. A criação
já nasceu sob o signo do perdão daquele que, na cruz, disse: “Pai, perdoa-
lhes, porque não sabem o que fazem”.
Lemos, em Hebreus, a declaração acerca de Jesus sendo citado no Salmo
40:6-8:
Sacrifícios e ofertas não quiseste; abriste os meus ou-
vidos; holocaustos e ofertas pelo pecado não requeres.
Então, eu disse: eis aqui estou, no rolo do livro está
escrito a meu respeito; agrada-me fazer a tua vontade,
ó Deus meu; dentro do meu coração, está a tua lei.

A declaração em Hebreus de que Jesus é citado no Salmo 40 diz respeito


ao que Jesus fez, ao seu significado e à decisão dele de que, de fato, tudo
129
O Caminho do discípulo

quanto a ele concernia em relação a Deus não tinha a ver com o fazer de
um sacrifício ou de sacrifícios. O que o escritor de Hebreus está dizendo é
que o que Deus queria mesmo do encarnado não eram sacrifícios nem ho-
locaustos. O que se está dizendo, na sequência, é que aquele que se encarna
diz: Eu sei que no teu livro está escrito a meu respeito, cumpra-se em mim
toda a tua vontade.
A conclusão de tudo isso é: Na encarnação, o prazer de Deus não era no
sacrifício do encarnado, o prazer de Deus era na disposição dele de cumprir
toda a sua vontade, dizendo: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
No Evangelho de Marcos, nas narrativas anteriores à crucificação, é in-
teressante ver a quantidade de vezes em que Marcos usa a palavra entregar,
mostrando, insistentemente, que o caminho de Jesus – quando inicia a de-
terminação de que ele será levado à cruz – é um caminho marcado pelo signo
da entrega. Entrega, entrega, entrega. No capítulo 14:10, Judas tramou para
entregar Jesus; no verso 11, ...buscava ele uma boa ocasião para o entregar;
em 15:1, ...levaram-no e o entregaram a Pilatos; em 15:10, ...lho haviam
entregado; em 15:15, ... entregou-o para ser crucificado
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” é uma decisão que a maioria das
pessoas pensa ser uma declaração a ser dita imediatamente anterior ao morrer.
Eu vou guardar a minha para a última hora. Mas se o seu marido passar mal,
se começar a ficar pálido, e for ficando cada vez pior, com os olhos macerados,
e começar a dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, você vai inter-
romper, gritando: Para com isso, meu bem! Porque isso de entregar o espírito
a Deus ninguém quer. Se o indivíduo puder adiar para toda a eternidade, ele
adia. Adia para sempre. Ele não quer entregar nem na hora da morte;– ele gos-
taria de adiar para sempre –, imagine se ele quer se entregar vivo!
A luta é para não entregar nas mãos do Pai. A pessoa diz: Olha, pai, meu
espírito eu entrego na última hora, mas enquanto não chega essa hora, eu sou
dono da minha alma, das minhas emoções, das emulações, dos desejos, das
pulsões, das compulsões. Sou dono das taras, até dos meus desejos à revelia,
até no que não mando eu sou dono. Eu adoro o meu surto, amo perder o
controle. Então, um dia eu te entregarei o meu espírito. Por enquanto, eu
sou essa água viva pulsante, esse ente psíquico pulsante, divorciado de uma
consciência e de compromissos com a busca do que seja verdade em mim, a
partir da verdade absoluta que eu tenho do sentido da vida expresso por ti.
130
Tomar a cruz – livre da fobia da morte

Tudo isso somente faz sentido se formos discípulos. Se não, nossa primei-
ra pergunta é a de Pilatos: O que é a verdade? A tua? A minha? A do fulano?
De quem? E voltamos ao papo de sempre. É por isso que tudo o que Jesus
está dizendo é para gente que quer vir após ele. Quem não quer não precisa
gastar um minuto ouvindo nada. Até o conceito de verdade é uma questão
de absoluta desnecessidade de discussão, a menos que, por revelação – como
aconteceu com Pedro, que disse: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, no
contexto antecedente do que já estudamos –, o indivíduo tenha recebido a
certeza dessa loucura. Porque, de fato, assumir que Jesus é Deus é um desva-
rio absoluto e um surto total da religião. Não será assim se for revelação da
Palavra e do Espírito Santo.
Por isso Paulo diz que é loucura, e o próprio Jesus diz, afirmando a seus
discípulos que muitos quiseram saber discernir e não puderam: “Graças te
dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e
entendidos, e as revelaste aos pequeninos; sim, ó Pai, porque assim foi do teu
agrado”. Um apocalipse, um tirar de véu na simplicidade, um discernir. Do
contrário, não sendo discípulo, não existe essa conversa de dizer: “Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito”. É algo que se adiaria para sempre – se pudésse-
mos –, até que chegássemos à experiência da falência física, pelo pânico, pela
fobia profunda que toma conta do coração da maioria absoluta das pessoas.
Precisamos entregar ao Pai a mente, a consciência, abrindo mão de uma
quantidade enorme de coisas que podem chegar e parecer agregamento a
nós, mas que são, de fato, apenas pesos de fantasias que vão acabar descons-
truindo nosso próprio ser. Deveríamos tomar a decisão de caminhar dia a
dia, dizendo cumpra-se em mim a tua vontade. Nas tuas mãos entrego o
meu espírito. É decisão após decisão. Eu quero ser uma pessoa de consciência
renovada todos os dias na disposição de que em tuas mãos, Pai, eu entrego
o meu espírito.
Do ponto de vista da antropologia bíblica, não existe dimensão humana
última, mais essencial, mais profunda do que o espírito. Encontramos uma
visão de tricotomia do ser humano na Bíblia – corpo, alma, espírito. Corpo,
como organicidade que iria, de maneira muito básica, do hardware do cé-
rebro ao todo do organismo e suas complexidades. A alma, como aparelho
psíquico. E o espírito, como algo que transcende a isso, que está para além
do elemento pulsional que habita a alma.
131
O Caminho do discípulo

Daí, o chamado do Novo Testamento para se adorar a Deus, em espírito


e em verdade; e Paulo dizer que o nosso chamado não é para ser homo psychi-
kos, mas para ser homo pneumatikōs. Homens espirituais, não homens psico-
lógicos, almais, pulsantes, mas homens de uma consciência límpida, simples
e definida, capazes de dizer não à alma. Homens capazes de dizer: “Por que
estás abatida, ó minha alma”? Não, isso é ilusão e fantasia.
Um estado de percepção vinculado ao absoluto revelado da vontade de
Deus é o que estabelece, do ponto de vista de Jesus, essa nitidez de um espí-
rito fixado no Pai, e referenda cada decisão da vida sobre a possibilidade de
que aquilo seja ou não algo que eu ponha ou não nas mãos do Pai, porque eu
não quero carregar para as mãos do Pai nada que não seja eu, pleno, sincero,
total, completo. Somente serve ‘eu’ nas mãos do Pai. Não o aparato das fan-
tasias. E essa não é uma decisão de morte. É a grande decisão da vida.
Por isso eu disse antes que iria começar de trás para frente. É pronunciada
na última hora, mas essa é a grande decisão gênesis da nossa existência. Ela
vai nos acompanhar até ao apocalipse dessa existência. É o alfa e é ômega. Em
Hebreus 10, quando se faz menção de Jesus, no Salmo 40, se diz: No teu livro
está escrito a meu respeito. E eu aqui estou para cumprir toda a tua vontade.
No gênesis dessa estrada, quando me fizeste corpo, quando me introduziste
no mundo, a declaração foi: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. Eis-
me aqui para cumprir a tua vontade”. E a declaração última é: “Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito. Eis-me aqui para cumprir a tua vontade”.
O existir de uma consciência em fé acontece em Deus todo dia, em todos
os atos, dos mais banais aos mais extremos. São atos acerca dos quais pergun-
tamos ao Pai se por essas vias estamos confiando e entregando ao Pai o nosso
espírito em suas mãos. Por esse meu ato eu pulo nas tuas mãos ou salto dela?
É decisão de quem se joga nas tuas mãos ou decisão de quem se evade dela?
“Se alguém quer vir após mim a si mesmo se negue, dia após dia tome a
sua cruz e siga-me”, disse Jesus.
No ato de tomar a sua cruz, lembremos de que o chamado é para perdoar
a existência, é para reconhecer graça de Deus nos ambientes e nos corações
mais, humanamente falando, impossibilitados. É para não fugirmos da pró-
pria realidade e da própria sede natural e para não recorrermos às evasões
da nossa realidade se a oferta não for o que seja necessidade. Não estamos
contingenciados pela existência.
132
Tomar a cruz – livre da fobia da morte

Existem muitos pais, muitas mães, muitas possibilidades de encontros e


de afeto em que o coração pode se dilatar; não precisamos transformar nossa
vida numa existência de vespa, marcada para ferroar, por causa de uma ances-
tralidade perversa. Podemos nos tornar filhos, podemos adotar a melhor mãe
do mundo; o coração continua aberto para fazer escolhas conscientes sobre a
quem amar e por quem se deixar amar. Lembrar que, nesse caminho e nessa
jornada, haverá dias absurdos em que continuaremos sendo de Deus, apesar
de todas as impossibilidades de discernimento e de compreensão.
Lembremos, insistentemente, que está tudo pago. Está tudo consumado.
Não há débito nenhum contra nós, mas que não é por causa disso que de-
vemos nos tornar um ser blasé, cínico. Ao contrário, é a consciência de que
isso é fruto de graça, de amor, de perdão, de bondade, fruto da cruz, do amor
redentor de Deus, que cumpre o que Paulo disse: “Sabendo nós que, se um
morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que
os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e
ressuscitou”. E, sobretudo, sabendo nós que o projeto da nossa vida inteira
deve ter a gravidade confiante de que, nos estertores dessa existência, se diz:
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
Não dá para brincar de viver, um viver inconsequente, assim como não
dá para brincar de morrer. E se Jesus entrou nesse mundo dizendo “Pai, nas
tuas mãos entrego o meu espírito”; e se ele partiu dizendo “Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito”; e se ele diz isso no contexto dessa cruz que ele
nos chama a carregar, então ele nos conclama a dizer todo dia: “Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito”.
Alguém ouve isso e fica pensando que essa é uma fala religiosa. Não seja
bobo. O caminho de Jesus não é projeto religioso. É, ou não é. Religião é cons-
trução humana, sistematização humana, tentativas humanas. Dá certo para
alguns fanáticos e não dá certo para outros. Agora, o Evangelho é verdade. E
quando estamos diante de Deus, não temos alternativa. Ou estamos diante de
Deus ou estamos diante de um doido. Não dá para salvar Jesus no meio. Ou ele
é doido – quando diz: “Eu e o Pai somos um; quem me vê a mim vê o Pai; antes
que Abraão existisse eu sou” –, ou ele é um surtado. Não dá para ficar politica-
mente correto dizendo: Ele é tão legal, é um mestre. No mínimo, um grande
mestre doido. Um grande profeta absolutamente desgovernado. Dizendo de si
mesmo coisas que somente se podia dizer de Deus. Não dá para salvar Jesus.
133
O Caminho do discípulo

Ou o indivíduo descarta com bom senso fazendo qualquer análise – filo-


sófica, psicológica, teológica, de qualquer nível – ou, então, misteriosamente,
essa loucura é verdade. Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mun-
do e não imputando-lhe as suas transgressões porque Jesus é a verdadeira luz
que vinda ao mundo ilumina a todos.
O próprio Novo Testamento chama o Evangelho de loucura de Deus, de
surto de Deus. Total. É para além de toda a concepção. Inadmissível. Impen-
sável. Se não houver um desselamento, um gênesis, um haja luz, um abrir de
olhos, uma revelação, um tirar de véus, pelas nossas mensurações não dá. Eu
admito essa impossibilidade a partir de mim. Se eu não tivesse sido alcan-
çado por quem me alcançou, eu não teria a menor condição de dizer o que
estou dizendo, porque eu não creria. Eu jamais creria se eu não tivesse sido
crido, se eu não tivesse sido atingido, se eu não tivesse sido apanhado pela
eternidade. Seria uma tarefa impossível.
Por isso, se alguém quer ser meu discípulo, a si mesmo se negue e dia a dia
venha após mim, tomando a sua cruz, e me seguindo – é o que ele ainda diz.
As lógicas são invertidas, pois aquele que deseja preservar o seu si mesmo,
a sua pseudovida, o seu fantasma, a sua fantasia, a sua projeção, o seu self
construído neste mundo, perderá o que Deus chama de vida. Aquele, porém,
que perder essa existência fantasmagórica, esse self fantasioso, pela decisão da
consciência que abraça a cruz que tem todas essas marcas, esse preservar-se-á
para a eternidade, projetar-se-á para além do imediato. Essa é a grande pro-
messa, essa é a grande verdade.

Para refletir
1. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” – o que significa essa palavra na cruz
do discípulo?
2. Do que se alimenta a fobia da morte?
3. De acordo com o texto citado de Hebreus, podemos dizer que o prazer de Deus
não era no sacrifício. Avalie sua vida diante disso: o quanto seu coração tem
prazer na vontade de Deus?
4. Porque esta palavra de Jesus “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” deve ser
a primeira e não a última da nossa cruz? O que isso significa?

134
10. Quem quer ser meu discípulo?

Lemos em Mateus 16: 24 a 27.


Então disse Jesus a seus discípulos: “Se alguém quer vir
após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-
me. Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;
e quem perder a vida por minha causa, achá-la-á. Pois que
aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder
a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma?
Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai,
com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme
as suas obras.

Falamos bastante, nos capítulos anteriores, que negar a si mesmo é negar


o falso eu – que é uma construção fantasiosa, imposta por heranças familiares
ou culturais, ou muitas vezes apenas o produto da doença do pecado essen-
cial, que produz resultados diferentes na vida de cada pessoa.
Então, é a mesma psicose básica lá de Romanos 7, que pode ser definida
por aquela rachadura essencial que faz o homem dizer: “Porque não faço o
bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço. Desventurado homem
que eu sou!”
Na essência de cada um de nós, essa mesma doença essencial produz
camadas do lado de fora. É uma doença aliada às nossas heranças, à perso-
nalidade, ao conjunto de determinações genéticas, à construção familiar,
às figuras paternas, parentais, que todos tivemos; doença aliada à nossa
geração, ao tempo, às influências, às coincidências, aos encontros com pes-
soas que muitas vezes têm influência para o bem ou para o mal, na nossa
existência, de modo profundo. Enfim, essa doença vai construindo essa
montanha de camadas, isso que nós costumamos pensar que é o nosso eu,
que é feito de muita obrigatoriedade, de muita coisa imposta, de muita
decisão que tomamos achando que gente, para valer a pena nessa geração,
tem de ser assim. E vamos incorporando camadas e camadas, nos perdendo
no processo, nos distanciando de nós mesmos. Sem Deus, é praticamente
um processo inevitável.
135
O Caminho do discípulo

Quando vemos isso – o reconhecimento da rachadura, da grande fal-


sificação que somos nós mesmos – acontecendo numa alma humana que
não tenha tido conhecimento explícito do Evangelho de Jesus, saiba que
é porque o Espírito Santo está em ação, revelando a verdade do conteúdo
do Evangelho àquela pessoa e fortalecendo a decisão dela naquela direção.
É Deus agindo. Do contrário, sem essa graça, entregues a nós mesmos,
não existe em nenhum de nós essa vontade de verdade, essa vontade do
encontro com o que é.
E muitas vezes não há nem essa vontade, nem essa disposição, nem essa
coragem e nem a resistência para o encontro. Porque ficar cara a cara com
essa multidão de quase ‘nós’, que vão nos cobrindo, formando essas cama-
das, e um dia descobrir que a grande falsificação dessa existência não foi o
que fizeram contra nós, não foram os enganos que alguém cometeu contra
nós, não foram as traições sofridas, não foi nada disso, mas que o grande
engano, a grande falsificação somos nós mesmos então muitos não suportam
esse encontro. Alguns até fazem gestão sobre até onde ir. Muitos dizem, não
raramente, que quando adotam uma determinada linha, por exemplo, de
terapia, adotam avisando até onde o escarafunchar pode ir, porque, se for
agudo demais, já estão pulando fora.
Dizer “Senhor, tu me sondas e me conheces, sabes quando me assento e
quando me levanto, de longe penetras os meus pensamentos, esquadrinhas
o meu andar e o meu deitar. Ainda a palavra não me chegou à língua e tu,
Senhor, já a conheces toda...”, e ter prazer nisso, é algo que somente acontece
de fato em Deus, porque a maioria das pessoas está numa rota de fuga o
tempo todo, de evasão.
De modo que o convite de Jesus, existencialmente falando, coloca o
indivíduo no contrafluxo do movimento natural de fuga, de evasão, de
permissão, de sequestro e de cooptamento que a pessoa vai concedendo ao
mundo, ao príncipe deste mundo, aos entes conscientes de si mesmos, aos
fenômenos, aos tempos, às eras, às gerações, aos momentos. Daí a pessoa
vai virando essa coisa que não é e que não tem como ser abençoada por
Deus, a menos que ele abençoe hologramas. Uma pessoa que não tem
como ser visitada profundamente pela paz, a menos que a paz possa habi-
tar um software de computador, porque, de fato, naquele ambiente que o
indivíduo chama de eu não tem eu nenhum. Tem apenas uma conjunção
136
Quem quer ser meu discípulo?

multifacetada de pulsões estranhas que entraram num processo de conste-


lação funcional e que rodam, mas que estão longe do sol da existência desse
indivíduo. Completamente longe.
O si mesmo é o equívoco que pode ser perfeitamente ilustrado pela con-
vicção da igreja, contra evidências científicas, já nos dias de Galileu, de que
a terra não era o centro do universo. O si mesmo é o centro do universo, e
o engano é tão chocante quanto este. Por isso é que Jesus diz: “Se alguém
quer vir após mim, a si mesmo se negue”. Tem de haver essa disposição para
que, em havendo o discernimento do que não sou eu, do que não tem de ser
eu, do que não é obrigação do eu ser, de construção da minha essência, da
verdade de quem Deus me fez para ser, tudo que não for isso é peso morto. É
pecado que tenazmente nos assedia, é peso em excesso, é lixo para ser jogado
fora. Porque, para ir surgindo o eu nessa história, que é um processo para
sempre em Cristo, só mesmo dia a dia, numa decisão de que não é somente
por hoje, é também por hoje e eternamente, mas hoje é dia de zerar tudo.
Tudo o que ontem foi suficiente para mim, hoje eu zero e recomeço com
aquela disposição mais básica de dizer: Jesus, ensina-me a viver o dia de hoje,
eu não aprendi o dia de hoje. Assim como basta a cada dia o seu próprio mal,
basta também a cada dia o seu próprio dia. E basta em cada dia você, pela
primeira vez naquele dia, porque, naquele dia, você está pela primeira vez.
Então, nesse dia, que é o primeiro dia, a primeira vez da sua existência,
é dia de tomar a cruz de novo. De não achar que ficou um crédito, uma
poupança, de ontem, nem de anteontem, nem dos últimos quarenta anos.
É todo dia, todo dia, tomar a cruz, que vai implicar a decisão de perdoar
a todos – “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Todo dia
temos o que e a quem perdoar. Às vezes, não entendemos por que perdoar
acontecimentos e não somente pessoas. Ficamos com raiva de circunstân-
cias, de acontecimentos, de acidentes. Então, “Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem”.
Isso se aplica a homens, a acidentes, ou incidente, ou a circunstâncias,
seja lá o que for, mas essa é uma decisão do discípulo. É vereda da cruz
todo dia. É vereda da cruz todo dia cada um daqueles elementos, é vereda
da cruz todo dia olhar para o lado e achar que de onde não existe nenhum
potencial a graça de Deus pode fazer surgir a mais lúcida de todas as cons-
ciências, que estarão em colóquio eterno conosco no paraíso. Manter esse
137
O Caminho do discípulo

olhar perspectivo, esperançoso, limpo, da cruz, que é o olhar de Jesus, que


olha para o malfeitor ao lado e diz: Olha, segura mais um pouquinho a
onda porque quando o pessoal estiver aqui tirando as coisas, recolhendo-
nos do madeiro e todos voltando para casa, as aves se aninhando, o sol se
pondo, as mães chamando os meninos para dentro e os homens voltando
do seu labor, o sacerdote saindo do seu torpor e Pilatos do seu cotidiano
perverso, “tu estarás comigo no paraíso”.
Levar a cruz é carregar esse olhar perspectivo de Jesus todo dia. Levar a
cruz é não negar a humanidade. Quando eu tenho sede eu tenho sede. Mas
é também não aceitar a falsificação da oferta. É não aceitar vinagre no lugar
de água. Ele não aceitou vinagre, não aceitou ficar entorpecido; era somente
matar a sede que ele queria.Então, levar a cruz é saber que a satisfação e o
significado do ser são encontrados no sentido do que seja próprio. Portanto,
o princípio que daí decorre tem a ver com propriedades. Se ele estivesse
querendo curar um bicho de pé aceitaria o vinagre, porque pode ser que para
bicho de pé o vinagre sirva. Para sede é água.
Na cruz, o que existe é a escolha do que é próprio, em relação à saúde
humana. Na cruz, o que existe é essa decisão do discípulo de ser de Deus,
apesar de Deus, diante do absurdo. Sabendo que existem dias absurdos, ho-
ras absurdas. Se Deus nos transcende, o desígnio da soberania dele, quando
dói, gera em nós uma dor absurda e que temos de aprender a vivê-la em
Deus. “Deus meu, Deus meu”! Esse dia existe, e não é por causa desse dia
que Deus é menos meu e nem sou menos de Deus. Isso tudo acontece, como
eu disse, naquele espírito de Jó, dizendo: Deus, advogue minha causa contra
Deus, entendam-se a meu respeito. Agora, que eu me sinto desamparado, eu
me sinto mesmo, ao mesmo tempo em que tu és meu até o talo e eu sou teu
até o fim. Entendam-se rápido, por favor, porque está doendo.
O discípulo é aquele que descobre a transparência, a familiaridade que
o amor gera, que adota e se deixa adotar. Encontra, nos encontros, verdade
onde exista verdade e assume responsabilidades que transcendem o sangue.
Por isso é que gera irmandade, gera também a inexplicabilidade de deter-
minados vínculos sem nenhuma justificativa histórica, nem de tempo, nem
de qualidade de vínculo, nem de relacionamento, nem de convívio, nem de
coisa alguma. Ainda assim produz em nós o estranho e inegável sentimento
de irmandade. São estranhos que se irmanam sem poder explicar a razão.
138
Quem quer ser meu discípulo?

É o que acontece como decorrência do crescimento da consciência do dis-


cípulo, onde Maria adota João e João adota Maria. Cada um tem famílias
para cada lado e são famílias funcionais, mas surge, de repente, um vínculo
que, do ponto de vista de Jesus, era sadio e por isso é ele que propõe – o
discípulo estando na cruz com Jesus – que as pessoas de fato existam para
se encontrar em amor, porque, na realidade, se estamos na cruz com Jesus e
é Jesus que diz: “Eis aí o teu filho, mulher!”; e diz a João: “Eis aí a tua mãe”,
o que de fato sobra como consciência do discípulo que leva a sua cruz é a
bem-aventurança do filho de Deus, que é um pontífice entre os homens,
pacificando e aproximando e sendo chamado de filho de Deus.
O discípulo é aquele indivíduo que, de todo o coração, sabe que está tudo
feito, consumado e que anda em segurança pelo que está realizado. E, por
último, ele é aquele que todo dia faz essa entrega, essa decisão de renovar o
cotidiano em Deus, não como um sacrifício, mas como quem conclui isso
sempre nas mãos do Pai: “Nas tuas mãos eu entrego o meu espírito”. Esse é o
caminho, é a voluntariedade simples do discípulo todo dia.
Ora, o que é que sobra depois disso? Sobra o siga-me. Então a questão é o
que vamos fazer com isso. Nessa busca para se conhecer o que é o caminho do
discípulo, nós vamos até o capítulo 21 de Mateus, pelo menos, e no final nin-
guém vai ter se formado. E o único que irá formar você é aquele que, um dia,
dirá: Entre, servo bom e fiel. Tome posse do gozo que está preparado para você
desde a fundação do mundo. Nesse dia, estaremos formados.Antes disso, é dia
a dia negando a si mesmo, tomando a cruz, praticando a cruz, seguindo.
Paulo ensinou: Suportando-vos uns aos outros, amando, perdoando, ad-
moestando, aconselhando mutuamente. Então, é mutualidade, é caminho.
Siga-me, venha após mim, me acompanhe é o que aprendemos com Jesus. É
o que ele diz. Porque não basta ser após ele. É após ele, seguindo-o. Alguém
pode vir após ele, mas fica tão após que o perde de vista. Pode até dizer: Há
trinta anos, quarenta, vinte, quinze, quando eu o conheci, saímos juntinho,
mas algumas coisas foram acontecendo. Eu virei diácono, me tornei presbí-
tero, fui para o seminário, virei pregador leigo, líder da juventude, professor
de escola dominical, entrei em um grupo de visitação. Jesus foi e eu fiquei tão
ocupado, falando dele o tempo todo que, sinceramente, hoje eu continuo
pregando melhor do que nunca. Mas não sei onde ele anda dentro de mim.
Eu o perdi de vista.
139
O Caminho do discípulo

Foi como eu vi acontecer com milhares no curso da jornada. O indiví-


duo ficou mais discípulo do que seguidor, no sentido da dinâmica hebreia
em fé de dia a dia atualizar o passo, seguindo. E a esquizofrenia é tão gran-
de, a doença e a capacidade de gerar departamentos estanques é tão pro-
funda que, nesse momento, significa dizer, inconscientemente, para esse
indivíduo, que o tempo da devocionalidade, da paixão tenra, do romance,
do namoro com Deus, da entrega, do carinho, do privilegiar as coisas de
Deus na fala do coração está dando lugar a outro tempo, onde a pessoa é a
cabeça dos outros, é o guia dos cegos, é o condutor dos infantes na fé.
Quando isso começa a acontecer, inevitavelmente o indivíduo se
torna extremamente útil ao que a “igreja” chama reino de Deus. Está
em todas, não falta nenhuma, vira o multihomem, a multimulher, o
multitudo. É uma quase inveja do diabo que, supostamente, poderia
estar em dois lugares ao mesmo tempo, quase um elétron, um diabo
quântico. Se pudesse estaria nos dois lugares. É tanta atividade para
Deus, é tanto discipulado!
E é aí que começam as maluquices. O indivíduo se sente tão discípulo
que quer fazer outros à sua imagem e semelhança. Ele vai ensinando, vai
tentando se reproduzir nos outros; vai crescendo dentro dele uma neurose
missionária que nada mais é do que um fetiche de controle, mas que não
carrega piedade. Eu preciso cuidar dela, dele. É meu discípulo, é meu. E
vai entrando nos esquemas. Depois de um tempo, o coração se tornou
completamente seco, a alma perdeu a alegria, o espírito não se regozija em
Deus. Essa pessoa se pensa o dia inteiro em relação aos outros; mas não se
pensa em relação a Deus. O processo mental muda. Levar os pensamentos
num processo mental em Deus, pensar nas coisas lá do alto, onde Cristo
vive, não pode. É um discípulo, tem tanta gente para discipular e tanto
ministério para praticar que tem de pensar nas coisas aqui de baixo, onde
os homens moram e onde ele tem muita gente para atender, para ganhar.
Ficou compulsivo. É um discípulo.
Depois de um tempo, ele se torna discípulo de si mesmo. Perde comple-
tamente o vínculo, a intimidade, o liame com aquilo que, um dia, na infân-
cia espiritual, ele pensava ser a imaturidade, mas que, de fato, era a singeleza
do amor para com Jesus. Por mais imatura que a pessoa fosse, o amor não era
imaturo; era verdadeiro e sincero para com Deus.
140
Quem quer ser meu discípulo?

Isso é muito fácil de se instalar em nós, especialmente quando achamos


que começamos a aprender coisas. Especialmente, quando olhamos para
uma determinada pessoa que nos está ensinando e achamos que ela ensina
aquilo de uma maneira extraordinária, que estamos tendo um grande ganho
ao aprender com aquela pessoa. O que pode ser verdade, mas carrega o pe-
rigo de estancar o processo. Gera aquela mentalidade paralisante que dá a
sensação de que ambientes e encontros, horas e dias marcados, informações,
conexão pedagógica para compreensão são em si o que é ou o que deveria ser.
E não são. Puro e virgem de qualquer informação o discípulo seria melhor.
Portanto, a questão tem apenas a ver com o que vamos fazer com o “Ne-
gue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Porque é no siga-me que
algo se renova todos os dias, que algo faz com que abramos mão das nossas
agendas existenciais também. Para segui-lo, tem de haver dentro de nós de-
terminada disposição para a mudança cotidiana, e que não é somente aquela
de não se conformar com este século, mas também de se transformar pela
renovação da mente.
Estou falando de mudança prática. Mudança que, às vezes, significa o
desconforto de mudar de lugar, de geografia, de ambiente, de mudar de vida.
De aceitar as contingências e as imposições de quem estamos seguindo. Às
vezes, o indivíduo diz que estava seguindo a Jesus de todo o coração e não
entende por que foi parar naquela buraqueira. E eu lhe digo que se ele estava
seguindo a Jesus de todo o seu coração, a buraqueira é o melhor lugar. Mas
era a Jesus mesmo a quem ele estava seguindo? Perdoando todo mundo, an-
dando conforme o discípulo? Jesus poderá dizer: Siga-me para a buraqueira,
se for o caso. Por isso, cada um meça, veja se é isso que quer, porque tudo é
muito ponderada. Jesus é o rei da ponderação.
Eu largarei tudo e seguir-te-ei, e Jesus disse: As aves têm os seus ninhos,
as raposas têm as suas tocas, mas quem anda comigo não tem onde reclinar a
cabeça. Aí, um outro disse: Eu vou contigo, mas primeiro me deixa sepultar
o meu pai. E ele respondeu: “Deixa os mortos sepultar os seus próprios mor-
tos”. Mais um outro falou: Senhor, eu te seguirei para onde fores, mas deixa
primeiro eu me despedir dos de casa. E Jesus disse: “Quem bota a mão no
arado e olha para trás não é digno do Reino de Deus”. Se quiser, vem agora.
Veja quanta dificuldade, não tem uma facilidade. Jesus não implora nada
a ninguém, não fica dizendo: Pelo amor de Deus, me ajudem, vejam a minha
141
O Caminho do discípulo

missão, eu estou sozinho, preciso muito de vocês, socorram-me. Não, não.


A convicção dele é tão grande que ele diz: “Se ninguém falar, se todo mundo
resolver ser contra, essas pedras falarão”.
Há alguns que têm aquele orgulho no sêmen de Abraão, um culto ao sê-
men abraâmico. Se pudessem teriam a relíquia do sêmen de Abraão. E falam
o tempo todo que são filhos, descendentes de Abraão. É tudo de Abraão, uma
coisa abraâmica o tempo todo. Jesus, porém, diz: Vocês cultuaram tanto o sê-
men de Abraão que viraram filhos do diabo. Deus pode suscitar, dessas pedras,
filhos de Abraão. Pode começar a nascer filho de Abraão para todo lado.
O discípulo tem de desconstruir esse monte de mentiras, que são ho-
logramas, são fantasmas dele mesmo, e aprender quem ele é. E somente
vai aprender quem ele é tomando a cruz, perdoando, amando, limpando o
olhar, olhando e esperando o melhor, vivendo qualquer situação em Deus; a
melhora, a piora, a dor, o abandono, seja o que for. Sendo um construtor de
pontes, um aproximador, um vinculador de fraternidades, um dissolvedor de
solidões, um indivíduo que crê que está tudo feito, que não há acréscimos a
fazer, que anda pacificado, que usufrui da paz como um bem na vida e que
faz de cada dia um dia de dizer: Senhor, esse não é um dia de sacrifício, é mais
um dia de derrame do meu ser nas tuas mãos.
“Portanto, quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á”. Sua vida é o si mes-
mo. É esse pacote, que é a construção de imagem, a intenção de projeção de
holograma social, a expectativa de viver para alcançar determinados padrões
estabelecidos que, supostamente, constituem alguém, constroem alguém, fa-
zem de um ser uma pessoa que se torna alguém na vida. Mas não aceite que
nenhuma determinação, de nenhuma natureza, faça de você quem você não
é somente porque alguém disse como é que deve ser alguém na vida. Alguém
na vida tem de ser parecido com Jesus de Nazaré. As aplicações é que são
diversas. Isso é ser alguém na vida. Portanto, se alguém quiser salvar esse
pacote, vai se perder. Não vai mais se achar, vai ser abduzido, tateará e não se
encontrará, e vai ficar perguntando aonde ele foi parar. Essa é uma sensação
horrorosa que consome a maioria das pessoas em relação a se perguntarem
sempre aonde é que foram parar. Onde é que estava aquele eu? Então, geral-
mente, começam as saudades da infância, porque é onde o processo cumu-
lativo das falsificações de eus – que não eram você ainda – não tinham se
iniciado tão intensamente.
142
Quem quer ser meu discípulo?

E Jesus, não casualmente, chega e diz para o mesmo grupo – aquele a


quem ele manda negar-se a si mesmo, tomar a cruz e segui-lo – que se o in-
divíduo não se fizer como uma criança não tem nenhuma chance. Em outras
palavras, ele está mandando não que se sofra de amnésia, mas que a gente se
desafetive, destraumatize, dessignifique tudo quanto tenha ficado para trás
que tenha sido falsificação do eu. E o caminho – que vai me levando para o
Caminho que um dia eu fui e que eu tenho pedido a Deus que vá restauran-
do dentro de mim – não é incompatível com a lucidez de um homem de 54
anos de idade. Ao contrário, eles podem se casar perfeitamente.
Jesus, no entanto, está dizendo que agora que se sabe disso, agora que nos
está sendo posta a decisão de segui-lo, ou não, devemos saber, com toda cla-
reza, que quem quiser entrar no processo de autopreservação do pacotão do
si mesmo, da projeção em 3D, no cinemax do estelionato existencial onde se
é projetado, quem quiser viver para isso e preservar isto, perder-se-á. O que a
pessoa pensa que é vida e que estará sendo preservado é o que não é vida.
Enquanto a pessoa existir para preservar o que não é vida, se perde na
história, se perde no tempo-espaço, se perde aqui, se perde no dia de hoje,
se perdeu no dia de ontem. O ontem não vai significar nada no dia de hoje,
o dia de hoje não vai significar nada amanhã. E não vai haver construção
nenhuma de significação dentro desse ser, porque ele está existindo para pre-
servar o que não é. Ora, a fantasia jamais receberá a bem-aventurança de
Deus. Não são bem-aventurados os que fantasiam. Bem-aventurado é quem
é humilde de espírito. Nenhuma fantasia boa, má ou média carrega qualquer
bem-aventurança. Bem-aventurança é para a realidade. O feliz é. Não é o
pacotão, não é o si mesmo, não é essa outra produção. Isso é somente uma
falsificação inungível, a menos que o indivíduo vá ao Benny Hinn. Ele vai
abençoar mesmo é a falsificação, porque o negócio dele é esse. Ou dos que
são semelhantes, que praticam as mesmas coisas. Mas quem quiser viver para
preservar esse pacotão vai perder. E perde agora, perde no tempo-espaço,
perde no curso da vida, perde amanhã, perde todo dia, não agrega nada, vai
vazio para o nada. Isso é inferno.
Por outro lado, Jesus diz: “E quem perder a vida”..., significando perder o
que se chama de vida, porque quem olha para a decisão que alguém tomou
em Cristo, pela fé, acha que escolheu o caminho sacrificial e da morte, que
a decisão foi uma decisão autodestrutiva. Mas são elas que vivem enganadas
143
O Caminho do discípulo

pelo si mesmo, nessa fantasia e nesse circo infindável de um faz de conta,


mas que é apenas um ocultamento constante, frequente, contínuo, do que
a pessoa é, de modo que ela existe e morre sem nunca ter se visto. A grande
maioria das pessoas está morrendo sem nunca ter se visto. Cumpriram pa-
péis, carmas e obrigações, mas nunca se viram.
A melhor maneira de perder é jogando pela janela. Não é uma entrega
do tipo, Senhor, eu vou jogar para cima, o que é seu o Senhor pega, o que
cair é meu. Não é assim não. Quem quer, mata. Todo dia. Fazer o que
Paulo fez. Considerou tudo isso refugo, lixo ilusório que Deus usou para
levá-lo à crise dessa verdade radical que o salvou. Foi somente isso. Não
vira testemunho, não é a minha história, não é o meu conto, não é a minha
fábula, não é a minha saudade, não é a minha perda; por isso, eu tenho
como lucro, Paulo diz.
No meio cristão, essas coisas todas quando são propostas o são como
um abrir mão de algo extremamente prazeroso. E há até os testemunhos:
Meus irmãos, imaginem o que eu deixei! E o indivíduo parece que está fa-
zendo um favor. É esse o espírito que vemos por aí. Mas os mandamentos
dele não são penosos.
As pessoas ficam pegando o si mesmo e transformando em testemunho.
Os testemunhos são todos do si mesmo, do holograma. Ah, não é para mim.
Não é para você o quê, meu irmão? Perdoar? É para você o quê? Odiar? Se o
seu negócio é odiar, se você escolheu o seu pai, fique sabendo disso, é simples
assim. O apóstolo João já disse: Filhinhos meus, todo aquele que escolheu
odiar, escolheu seu pai, que é o diabo. Todo aquele que escolheu amar, esco-
lheu seu pai, porque Deus é amor. Quem ama, nasceu de Deus; quem odeia
não procede de Deus. Se não procede de Deus, não queira saber de onde
vem. É simples assim.
Então, o chamado é esse, sem equívoco. Nem aqui, nem na televisão,
nem nesta geração, nem na por vir. Esse pacotinho de estelionato existencial
fará perder a genuína vida. E quem perder, quem jogar fora essa miragem de
existência a qual se chama vida por ter entendido o Evangelho, fazendo isso
por causa de Jesus, encontrará a verdadeira vida. Pois, que aproveita o ho-
mem se ganhar pelo si mesmo, pela imagem, pela autoprojeção, pela gestão
de imagem, por um monte de coisas que nada têm a ver com o que ele seja e
muito menos com o que seja vida nele?
144
Quem quer ser meu discípulo?

Que adianta a ele ganhar o mundo inteiro, gerando apenas uma persona,
apenas um 3D, um holograma, uma projeção de um ser irreal, que apenas
coopta, que apanha, toma, apreende, rouba, captura, toma posse daquilo que
o mundo diz que é vida, e ele, na ilusão do mundo, diz ser alguém, e toma
isso como significado e sentido da sua existência? E Jesus pergunta: O que
vai adiantar isso tudo se essa pessoa, no processo, inevitavelmente já perdeu a
sua alma? Não tem alma que sobreviva a essa mentira. É uma falsificação do
eu muito grande, a falência do que quer que tenha sido resquício de um ser
nessa pessoa. Porque o Filho do Homem há de vir na glória do seu Pai. Eu
gosto disso - na glória do seu Pai.
O indivíduo vê uma aurorazinha boreal e fica todo bobo, assiste o History
Channel, o programa Universo, com aqueles efeitos especiais maravilhosos, e
fica deslumbrado. Vê um monte de Água Viva no fundo do mar com efeitos
fosforescentes e bioluminosos, polvos miméticos e brilhantes que parecem
assombrações interplanetárias extraordinárias e fica embasbacado. Imagine
ver o Filho do Homem na glória do Pai! Eu não vou dizer que esta eu quero
ver, porque esta eu já estou vendo. Já estou assentado num lugar de onde,
mesmo que eu não veja, eu sei que verei.
O Filho do Homem virá, na glória do seu Pai, com os seus anjos, com
esses entes todos de dimensões distintíssimas estranhas e diferentes, com es-
sas criaturas de outras dimensões espirituais, esses mensageiros de Deus. E,
então, ele retribuirá a cada um segundo as suas obras. É interessante que ele
está falando aqui de retribuição numa perspectiva extremamente positiva. Às
vezes, ouvimos falar na vinda do Senhor para retribuir a cada um segundo as
suas obras e fica bem clara a intenção de julgamento bom e mal daquilo que
vai glorificar uns e destruir outros. Aqui não. Retribuição aqui é retribuição;
o equivalente a tudo o que jogamos fora de nós mesmos.
O que Deus está dizendo é que tudo isso que pensamos estar jogando
fora – e que muita gente diria que é vida –, tenha certeza, é o arremesso
do que não é vida. O que vai sobrar é vida genuína, crescente, que não
está acabada. Andamos para frente, para trás; três passos adiante, um atrás,
retomamos o caminho – aprendemos. Há momentos de mais estabilidade
e há momentos de fragilidade; mas não se pode parar. Não podemos deixar
de seguir, de ir após, nem de pensar que o dia de ontem transferiu crédito
para o dia de hoje. É preciso negar a si mesmo, praticar a cruz e segui-lo
145
O Caminho do discípulo

todos os dias. Não perdê-lo de vista. Não arranjar o álibi das distrações
feitas em nome de Jesus, que impedem, de fato, aquela caminhada simples
que, prioritariamente, o segue.
Eu não quero ter nenhum serviço ou ministério praticado na minha vida
que não me seja posto por Jesus. Não quero dom que Jesus não me dê. O
melhor de mim, a melhor versão de mim serei eu todinho em Jesus.
O que eu estou dizendo a vocês, com todo o meu coração, é que nós, a
vida inteira, seremos aquelas pessoas que precisaremos dizer:
Esquecendo das coisas que para trás ficam e avançando
para aquelas que diante de mim estão, eu prossigo para
o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em
Cristo Jesus. (Fp. 3:13, 14)

Esse chamado para segui-lo se traduz em poder dizer todo dia: Estou
combatendo um bom combate. Hoje é o dia de completar mais um passo
dessa carreira. É um dia de guardar mais carinhosamente o depósito da fé.
Paulo diz: “Não que eu julgue, irmãos, haver obtido a perfeição, ao contrá-
rio, eu esqueço para trás, prossigo para o alvo”. E conclui: “Ora, todos nós
que somos perfeitos, tenhamos esse entendimento”.
De um lado, a consciência de Jesus me faz constatar a inacababilidade da
minha existência, no curso na terra, neste corpo de morte, de ambivalências
e de ambiguidades. De outro lado, não gera nem espaço para acomodação.
É para praticar, negar a si mesmo, tomar a cruz, desenvolver a salvação com
temor e tremor; é para prosseguir, para querer, é para buscar as coisas exce-
lentes. Além disso, é uma consciência que existe não na tensão, mas no pa-
radoxo, no “está consumado”, que fez a sua síntese na cruz, que é a seguinte:
De um lado eu não sou perfeito. De outro lado, eu já sou perfeito.
Então, a minha não-perfeição não vai ganhar poder de destruir o meu
levantar, porque quando a minha não-perfeição não está justificada pelo fato
de que em Cristo eu já estou aperfeiçoado, ela é uma não-perfeição que so-
mente carrega a negatividade da culpa e da desistência. Mas quando eu sei
que estou aperfeiçoado em Cristo, a minha não-perfeição não me deixa um
cínico; gera em mim o ânimo de quem se levanta todo dia e diz: Vamos lá.
O dia de ontem se foi e as misericórdias do Senhor se renovaram hoje.
Eu quero dar passos novos hoje; é assim que eu vou caminhar. Então ele diz:
“Vem e siga-me”. E vamos ver que o caminho nos leva em muitas direções.
146
Quem quer ser meu discípulo?

Para refletir
1. “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue”. Expresse com suas palavras
o ensino de Jesus nessa frase.
2. O que para você significa salvar a vida ou perder a vida? O que significa para
Jesus?
3. “Se alguém quer vir após mim, dia a dia tome a sua cruz e siga-me” (conforme
Lucas 9:23). O que significa a expressão dia a dia?

Anotações

147
O Caminho do discípulo

148
11. A esperança da Glória com
certeza em fé

Lemos em Mateus 16:24-28 e Mateus 17:1-8


Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer
vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e
siga-me. Pois, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;
e quem perder a sua vida por minha causa, achá-la-á.
Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo in-
teiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em
troca da sua vida? Porque o Filho do homem há de vir
na glória de seu Pai, com os seus anjos; e, então, retri-
buirá a cada um conforme as suas obras. Em verdade
vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram,
que de maneira nenhuma passarão pela morte até que
vejam vir o Filho do homem no seu reino.

Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro e aos irmãos Tiago e João, e
os levou, em particular, a um alto monte. E foi transfigurado diante deles; o
seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como
a luz. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele. Então, disse
Pedro a Jesus: Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três tendas;
uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias. Falava ele ainda, quando
uma nuvem luminosa os envolveu; e eis, vindo na nuvem, uma voz que dizia:
Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; a ele ouvi. Ouvindo-a
os discípulos, caíram de bruços, tomados de grande medo. Aproximando-se
deles, tocou-lhes Jesus, dizendo: Erguei-vos e não temais! Então, eles, levan-
tando os olhos, a ninguém viram, senão Jesus.
A pergunta inicial é: O que toda essa conversa sobre discipulado tem a ver
com essa manifestação epifânica, extraordinária, chocante, única, singular e
pirotécnica? Do ponto de vista espiritual, o assunto era a cruz, e, de repente,
eles chegam ao alto desse monte e há essa epifania.
Quando Jesus acabou de dizer “Tome a sua cruz e siga-me”, ele introduziu
a vinda do Filho do homem, após falar da loucura que é ganhar o si mesmo,
149
O Caminho do discípulo

que é feito do pacotão de ganhar o mundo inteiro, que é aquela absorção fanta-
siosa de que o mundo é o que é, é o que faz alguém, é o que catapulta alguém,
é o que legitima alguém, então, que adiantava ganhar esse si mesmo fantasioso
e perder a sua alma?
O Filho do Homem vem na sua glória, com seus anjos, e então re-
tribuirá a cada um conforme as suas obras. E ele diz que entre vós há
alguns que, de modo algum, passarão pela morte sem que vejam o Filho
do Homem no seu reino.
Mas alguém poderia dizer: Falhou, não é? Porque todos eles morreram
e o Filho do homem não veio no seu reino. Essa é a primeira conclusão a
que chegamos. A segunda conclusão vem como pergunta: Qual é a conexão
entre o desafio, o convite para segui-lo e o fato de Jesus levar os discípulos a
esse lugar alto? Provavelmente, esse lugar alto era o monte Hermon, pois eles
estavam chegando à cidade de Cesareia de Filipe, que fica no pé desse monte,
que é o ponto mais alto daquela região, fronteira com Israel, Líbano e Síria e
com todos os seus significados bíblicos. O Salmo 133 – o salmo da fraterni-
dade – fala de como é bom viverem unidos os irmãos, pois é como o orvalho
do Hermon, que se derrama sobre Jerusalém. Tudo aquilo que acontece: a
geleira que desce, que escorre, que forma o Jordão, o mar da Galileia, até a
sequidão de Judá, até Jerusalém – lugar ermo e seco – é beneficiada pelo Her-
mon. E o que o salmo diz é: Se há irmandade, se há irmãos, uns não podem
prescindir dos outros. Imagina Jerusalém sem o orvalho do Hermon!
A necessidade um do outro é essencial, é fundamental. O monte Hermon
também fazia parte do imaginário judaico. Era relacionado a uma rebelião de
anjos, aquela lá de Gênesis, capitulo 6, que diz que os filhos de Deus possu-
íram as filhas dos homens e geraram nelas seres alienígenas, aqueles gigantes
da Antiguidade, que despotizaram o mundo antigo, que se hibridizaram com
humanos, que desfiguraram o caminho humano.
Foi uma intervenção de natureza genética de desconstrução, de descons-
tituição humana, de tal modo que o livro de Gênesis diz que, por esta razão,
por tamanha decadência, corrupção e degeneração, e pela inviabilidade de
continuidade da existência humana naquela circunstância, veio a catástrofe
do dilúvio, que Pedro interpreta como salvação. E de fato foi. Do contrário,
não sabemos se a humanidade teria chegado aqui. E se tivesse chegado, talvez
fosse da maneira mais vampiresca e desumana que se pudesse imaginar.
150
A esperança da Glória com certeza em fé

O livro de Enoque registra essa ocorrência, não como algo que diga que
foi assim que aconteceu. Estou apenas dizendo que, no imaginário judaico,
inclusive no imaginário dos apóstolos e dos contemporâneos do Evangelho, o
Hermon também carregava essa significação místico-arquetípica dessa queda
de anjos. Ali diz que os vigilantes – aqueles anjos que geraram Nephilins com
as mulheres – reuniram-se na sua confraria de rebelião sobre o monte Hermon.
Isso fazia parte do imaginário, do pensamento daquela geração também.
É para esse monte que Jesus os leva, conversando com eles pelo caminho.
Pouco antes ele dissera: “Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui
se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam
vir o Filho do homem no seu reino”. O texto de Lucas 9, similar a esse de
Mateus, diz, ato contínuo:
Cerca de oito dias depois de proferidas estas palavras,
tomando consigo a Pedro, João e Tiago, subiu ao
monte com o propósito de orar. E aconteceu que, en-
quanto ele orava, a aparência do seu rosto se transfigu-
rou e suas vestes resplandeceram de brancura. Eis que
dois varões falavam com ele: Moisés e Elias, os quais
apareceram em glória e falavam da sua partida, que ele
estava para cumprir em Jerusalém. Pedro e seus com-
panheiros achavam-se premidos de sono; mas, conser-
vando-se acordados, viram a sua glória e os dois varões
que com ele estavam. Ao se retirarem estes de Jesus,
disse-lhe Pedro: Mestre, bom é estarmos aqui; então,
façamos três tendas: uma será tua, outra, de Moisés, e
outra, de Elias, não sabendo, porém, o que dizia. En-
quanto assim falava, veio uma nuvem e os envolveu; e
encheram-se de medo ao entrarem na nuvem. E dela
veio uma voz, dizendo: Este é o meu Filho, o meu
eleito; a ele ouvi. Depois daquela voz, achou-se Jesus
sozinho. Eles calaram-se e, naqueles dias, a ninguém
contaram coisa alguma do que tinham visto.

Jesus os levou ao alto monte e transfigurou-se diante deles. E o que se pode


concluir disso? Se Jesus diz que há alguns que não passarão pela morte sem que
vejam o Filho do Homem vir no seu reino, e Lucas diz que oito dias depois de
proferir estas palavras ele sobe ao monte e acontece a transfiguração, ele estava,
151
O Caminho do discípulo

obviamente, referindo-se não à vinda que os teólogos chamam de parousia,


essa manifestação final que vem dos céus, e todo olho verá. Não é sobre essa
vinda global, universal, cósmica, perceptível ante todos os sentidos. Por quê?
Porque quando isso acontecer todo olho verá. Ninguém será excluído.
Nessa vinda ele cria uma exclusividade. “... alguns dentre vós”. Alguns
poucos. E o texto de Lucas não deixa margem para dúvidas. Portanto, Jesus
estava falando de uma manifestação do reino de natureza subjetiva. Não da
manifestação final e objetiva, senão teria sido um fracasso, não teria aconteci-
do. E seria uma contradição, porque ele dizia o tempo todo que nesse dia da
vinda do Filho do Homem todo olho verá. Não será uma confraria, não será
uma volta esotérica, para um grupo de iluminados e de vips. Será para todos.
Lá, se confina à subjetividade da experiência de três. Exatamente como ele
disse: Alguns dentre vocês não vão morrer sem ver. E Pedro, Tiago e João
foram levados e viram.
O que isso tem a ver com o caminho do discípulo? No capitulo 16,
aprendemos que não deveríamos ficar tomados pelo espírito dos saduceus e
dos fariseus, que queriam sinais dos céus e não liam as sutilezas dos tempos
e das horas. Jesus adverte quanto ao fermento. Cuidado, porque isso incha
sutilmente e ninguém que carregue esse espírito de hipocrisia, de inchaço, de
fachada, poderá ser meu discípulo.
A seguir, ele introduz a questão: “Quem diz o povo ser o Filho do Ho-
mem”? E depois, acrescenta: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro diz
que ele é o Cristo, o Filho do Deus vivo.
Mateus 16: 21 começa com “desde esse tempo”. Desde esse tempo faz
conexão com o que tinha acontecido antes. Jesus está virando pedagogica-
mente uma página. Eles haviam entendido o “Eu sou o Cristo, o Filho do
Deus vivo”. Agora eles precisavam saber o que ele iria fazer, já que sabiam
quem Ele era.
Jesus fala da cruz, e é quando Pedro surta. Nesse ponto, há outra virada
no mesmo caminho. Ele introduz o tema da vinda do Filho do Homem –
“Alguns há que não passarão pela morte sem que vejam o Filho do Homem
vir no seu reino”. Oito dias depois, ele leva Pedro, Tiago e João e se transfi-
gura diante deles. É outra virada pedagógica. Que marco é este?
Quando ele diz “segue-me”, o que ele está dizendo é que o seguir a
ele, no caminho da existência – e vamos ver que os caminhos são todos os
152
A esperança da Glória com certeza em fé

caminhos da existência, no alto, no baixo, com Deus, com o diabo, com


os traidores, com tudo, com a vida, com a morte, com o absurdo, mas a
trilha é a mesma e é com ele –, somente se realiza depois da compreensão
do significado da cruz.
“Porventura não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua
glória”? Não foi o que ele perguntou aos dois discípulos de Emaús? Por-
que depois da cruz o que vem é glória. Ele então pontua esse significado
– seguir a Jesus, depois de deixar o si mesmo e tomar a cruz. A cruz é per-
dão ao mundo inteiro, é ver o potencial da graça de Deus onde ninguém
consegue enxergar, é produzir irmandades e vínculos onde vínculos não
há; é não fugir da nossa própria condição, e também não camuflar nossa
necessidade com a fantasia do que não a atende. Tomar a cruz equivale a
experimentar e a viver Deus no dia absurdo, com Deus e apesar de Deus;
seja lá como for. Mas ele é Deus e ainda que o sentimento seja de desam-
paro, estranhamente ele é meu Deus. Tomar a cruz implica também saber
que está tudo pago, está consumado e o meu ser está resolvido. Está tudo
feito. O mundo acabou. E eu já sou cidadão das esperanças certas do
novo céu e da nova terra, e, enquanto isso, todo dia eu entrego nas mãos
do Pai o meu espírito, a minha consciência e o meu existir. E ele deseja
que esse seguir seja tomado na consciência da glória. Tudo isso parece
com tudo no Novo Testamento.
Veja como Romanos 5:1-5 derrama-se sobre nós aprofundando as con-
vicções da nossa âncora já posta para além dos Santos dos Santos e segura em
Jesus para sempre.
Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus
por meio de nosso Senhor Jesus Cristo; por intermé-
dio de quem obtivemos igualmente acesso, pela fé,
a esta graça na qual estamos firmes; e gloriamo-nos
na esperança da glória de Deus. E não somente isto,
mas também nos gloriamos nas próprias tribulações,
sabendo que a tribulação produz perseverança; e a per-
severança, experiência; e a experiência, esperança. Ora,
a esperança não confunde, porque o amor de Deus é
derramado em nosso coração pelo Espírito Santo que
nos foi outorgado.

153
O Caminho do discípulo

Qual é o processo?
Sou justificado. Tenho diante de mim a esperança da glória de Deus, na
qual eu me glorio. Vida eterna, imortalidade, não no sentido de que esse cor-
po mortal continua vivendo, mas no sentido de que eu passo da morte para
a vida. A morte acabou. Somente fica sabendo da morte quem não morreu
ainda. Quem já morreu não a nota mais, não se vincula mais a ela. Nosso
egoísmo é que nos faz transformar a morte em luto eterno.
Alguém tem dúvida de que eu amo meus filhos visceralmente? Assim que
o Lucas morreu, em março de 2004, eu fiquei 20 dias fechado em meu quar-
to. Senti todas as dores que a alma consegue sentir. Depois desse período, eu
me levantei e falei: Agora eu vou pregar todos os dias, até o final do ano. E
vou chorar quieto e sozinho. Por quê? Vocês olham para mim e veem luto?
Nós começamos o Caminho da Graça em Brasília poucos meses depois.
Eu não sentia dor? Ah, você não tem ideia das saudades que eu sentia! Mas
eu sempre soube que era somente meu egoísmo, a pequenez do vermezinho,
a visceralidade do ventre paterno querendo que o filho sepulte o pai. Era
somente a ambição pela ordem natural das coisas, porque, se eu exercesse a
minha consciência em Cristo por um segundo, toda a minha lágrima rolaria
doce. Como rolou. Por quê? Porque eu não perdi filho nenhum. Ele está
em glória. Indizível. Se alguém perguntasse a ele se quer voltar, ele diria que
de jeito nenhum. E se me perguntassem: Se o Senhor lhe desse o poder de
trazê-lo dos mortos você traria? Eu tenho dito e repito: Eu não faria a ele tal
mal, jamais! O nosso luto é o melhor e mais bondoso egoísmo, mas é. É a
nossa incapacidade de transcender, de ver a glória, de ver que a morte já não
existe, que tudo é nosso em Cristo. Sentimos falta da pessoa e gostaríamos
de manter essa pessoa amada, porque falta em nós a esperança da glória de
Deus. Falta o discípulo ver a transfiguração, a transcendência.
É por isso que depois de dizer que na terra é assim que será a cruz, ele
os leva para a experiência da percepção da transcendência, da glória, por-
que, para tomar a cruz todo dia e segui-lo precisamos fazer isso tomados
da esperança da glória de Deus, senão nos tornamos um saduceu cristão,
que é aquele indivíduo que não crê em espírito, em anjo, em ressurreição,
em coisa alguma, mas acha o maior barato seguir a Jesus, porque dá status
de gente boa na terra. Se fizer direitinho, vira até um Dalai Lama do seu
bairro. A maioria dos cristãos nem é discípulo e nem tem esperança da
154
A esperança da Glória com certeza em fé

glória. É por isso que são tão infelizes. A maioria nem é discípulo e nem é
levada pela esperança e alegria eterna do reino. Sentimos dor ao ouvir isso,
mas é verdade. E Paulo disse que assim seria. Que se a nossa esperança em
Cristo se reduzir apenas a esta vida, nós nos tornamos os mais infelizes dos
homens. Porque estamos entregando a vida a um projeto que não carrega
eternidade. Que não venceu a morte em nós. Que não nos libertou da
contagem regressiva desgraçada do findar da existência – como a maioria
dos que não têm esperança vive – e, pior, nos agrava com aquele estado que
Jesus disse que é pior do que o primeiro, porque nos coloca diante desse
arquétipo de cruz, de vida eterna, de perdão, de culpa, de graça, que não é
internalizada, não é crida, não é vivida, mas fica latente como uma culpa
não resolvida, porque não é absorvida.
Não é à toa que as psicologias desenvolvidas no planeta terra tenham
procedido todas do berço judaico-cristão. As correntes mais importantes.
A freudiana é judaica, a junguiana é protestante. São os dois modelos. No
ocidente judaico cristão, uns estão cheios de lei e outros cheios de vida eterna
com medo da morte. Leis, culpas e pesos acumulados em séculos e séculos de
construções mentirosas.
Gerou-se uma sociedade cheia de pânico, apavorada, necessitada de uma
ciência que lide com essas angústias latentes que estão espalhadas por aí. Não
se encontra essa incidência no oriente, na Índia. Não se encontra essa neces-
sidade, nesse nível, no mundo árabe, e nem nas comunidades primitivas e
distantes. É uma doença produzida pela cultura judaico-cristã, que teve de
inventar os sacerdotes curadores dessa enfermidade produzida por esse volu-
me. E que volume é esse? É o volume da infelicidade, da não transcendência,
da falta de ressurreição, de uma existência sem alegria da vida eterna, que faz
com que se continue a sofrer a morte, seja nossa ou dos outros, com uma
dor radicalmente pagã, que se perpetua dentro de nós, dando testemunho da
nossa desesperança, da nossa falta de certeza de transcendência e da nossa fal-
ta de amor pela eternidade. É isso que o desespero enlutado, que as orações
angustiadas de filhos pedindo a Deus para preservar a mãe de 99 anos estão
revelando – essa falta de consciência e de certeza da glória.
Os espíritas kardecistas estão anos-luz adiante de muitos cristãos que
eu conheço. Esses cristãos estão falando em salvação, em vida eterna, em
Jesus, mas borrados de medo de tudo que eles dizem que está resolvido.
155
O Caminho do discípulo

Mentirosos, descrentes, incrédulos. Falam muito de vida eterna porque


não acreditam nela; somente para ver se se convencem disso. E, de 20 anos
para cá, no mundo inteiro, o que já era ruim ficou horroroso.
Com a chegada das teologias midiáticas e imediatas, como a da prospe-
ridade – que é pior do que a heresia papista do século 16, porque pelo me-
nos o papa ainda estava tentando vender salvação, perdão de pecados, vida
eterna; pelo menos a temática era transcendente –, com a chegada dessas
teologias, vida eterna virou bobagem. Salvação é não ficar sem grana. Sal-
vação é não ter nenhuma doença, é se livrar da dor. Salvação é anestésico.
Salvação é não ficar sozinha - se o marido for embora, chega logo outro.
Salvação é isso. Não se está vendendo vida eterna, nem perdão. Vende-se é
acesso ao primeiro carro, ao segundo carro; à primeira casa, à segunda casa;
vendendo-se solução para empresinha, microempresa de fundo de quintal,
falida. A macumba é terrena. Não é transcendente. Você já viu alguém
fazer um despacho visando à vida eterna? Não. É igualzinho à teologia da
prosperidade. Ficamos pedindo oração pela mãe de 99 anos, e quando ela
morre entramos em crise. Não estou brincando. Isso é sério. Sem solução
para isso não há caminho para frente.
Tomar a cruz e segui-lo tornar-se-á o mais fascinante projeto de vida,
tornar-se-á a mais maravilhosa de todas as aventuras existenciais, a vereda
mais sublime, o caminho mais liberto apenas para quem carregar o reino
como maquete de esperança viva construída no coração.
Então você pergunta: Por que ele levou somente alguns e não levou todos
os 12 lá para cima? “Muita coisa eu tenho a vos dizer, mas vós não estais
preparados ainda”. Haveria o dia em que, não de maneira simbólica, como
foi a transfiguração, todos eles teriam a experiência radical e mais profunda
do reino, mais do que Pedro, Tiago e João tiveram lá em cima. Mas era com-
pletamente importante que aqueles três, provavelmente por alguma razão de
discernimento, compreensão, ousadia, ou de necessidade, tenham sido os
escolhidos para ir lá, participar daquele momento e daquela hora.
E quando terminou o episódio todo, eles receberam a recomendação de
que a ninguém contassem a visão até que o Filho do Homem ressuscitasse de
entre os mortos. Ainda precisavam ficar calados por mais um ano ou um ano
e meio. O pessoal lá embaixo perguntando o que eles estavam fazendo no
monte, e dizendo: Nós aqui embaixo, num perrengue terrível, expulsando
156
A esperança da Glória com certeza em fé

um demônio que não queria sair, e um pai chato que ainda ficava dizendo
que nós não tínhamos fé. Nós não expulsamos o demônio porque deu tanta
raiva do pai que a vontade foi de matá-lo, para depois expulsar o demônio.
E ele ainda reclama com Jesus, queimando nosso filme. E vocês? Onde esta-
vam? No acampamentozinho gostoso lá no alto? Num piquenique? O que
houve? Imaginem a cara dos três descendo com esse mistério. Uma das piores
tentações é aprender a viver com o reino em silêncio, sem fazer do reino uma
propaganda.
“Está dentro em vós. Não vem com visível aparência”. Aquilo ali foi so-
mente uma maquete, uma construção arquetípica. Estamos diante de algo
que nos exige silêncio – não contem nada para ninguém -, mas que termina
sendo o nosso projeto existencial, porque temos de passar muito mais tempo
carregando o reino em silêncio, no coração; não o declarando a todas as pes-
soas, em todos os lugares, para que ele não perca o sentido.
Outra coisa singela que Jesus ensina nisso tudo é a necessidade de que
cada experiência existencial, espiritual, seja levada para o interior, selada em
silêncio, até que ela se decante, profundamente, em nós, e ganhe suas pro-
fundidades e suas próprias raízes. Acho extremamente perigoso quando vejo
pessoas que nem entenderam ainda o que viram, o que experimentaram, o
que perceberam e vão logo contando para todo lado.
Meu pai, seis anos antes de partir para o Senhor, teve uma experiência
de arrebatamento espiritual. O que mais me impressionou sobre a verdade
do significado, da seriedade, da autenticidade de tudo aquilo foi que três
meses depois ele não tinha conseguido contar para ninguém. Ficou comigo
três dias na floresta tentando contar e não conseguia. E quando se dispôs a
contar, começou a chorar e simplesmente falou: Sabe o que o nosso irmão
Paulo disse lá em II Coríntios 12, quando ele foi ao terceiro céu e voltou de
lá dizendo que não era lícito referir? Pois é, aconteceu comigo. Mas o nosso
irmão Paulo estava enganado. Eu perguntei: Como, pai? E ele: Não é que
não seja lícito referir. É lícito. Mas é irreferível. Eu nem tenho como dizer.
Se eu tentar dizer o que experimentei, vou blasfemar na descrição. Vou jogar
lama na glória. Eu somente preciso que você saiba que é glória indizível. Eu
não tenho nada além disso para dizer.
É algo que vai descendo, aprofundando, entrando, criando raízes no co-
ração. Se você abrir em II Pedro 1:16-21, lerá:
157
O Caminho do discípulo

Porque não vos demos a conhecer o poder e a vinda de


nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas engenho-
samente inventadas, mas nós mesmos fomos testemu-
nhas oculares da sua majestade, pois ele recebeu, da
parte de Deus Pai, honra e glória, quando pela Glória
Excelsa lhe foi enviada a seguinte voz: Este é o meu
Filho amado, em quem me comprazo. Ora, esta voz,
vinda do céu, nós a ouvimos quando estávamos com
ele no monte santo. Temos, assim, tanto mais confir-
mada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la,
como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso,
até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso
coração, sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma
profecia da Escritura provém de particular elucidação;
porque nunca, jamais qualquer profecia foi dada por
vontade humana; entretanto, homens santos falaram
da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo.

Fábulas inventadas são o que se diz que o Evangelho é hoje; é invenção, é


construção, é absorção de mitos. É o esoterismo fazendo crer nessa constru-
ção mítica. Pedro diz que não foi segundo fábulas inventadas. Era o que já
ocorria nos dias de Pedro. Já tinha gente tentando inventar Jesus: era o Jesus
João Batista, o Jesus Jeremias, o Jesus Elias. Depois, todos inventaram um
Jesus. Os gnósticos também. É por isso que Jesus deixou testemunhas ocula-
res da ressurreição. Mas há quem diga que isso tudo é construção engenhosa,
fabulosa, de misticismo. É por isso que eu não tenho nenhum problema
em considerar os evangelhos apócrifos como apócrifos mesmo, porque são
fábulas engenhosamente inventadas. Somente não vê quem quer contraditar,
quem não quer ficar cara a cara com o Evangelho.
Pedro diz que eles mesmos foram testemunhas oculares da sua majestade.
Eu gosto dessa expressão. Testemunhas oculares da sua majestade. Eles ouvi-
ram a voz quando – pela Glória Excelsa – estavam com ele no monte santo.
Observe o impacto dessa experiência em Pedro, décadas depois.
Ele está dizendo: Olha, está correndo muita versão de Jesus que não tem
nada a ver com Jesus, mas enquanto eu estiver vivo, eu digo: Eu estava lá, eu
vi a Glória Excelsa, eu ouvi a Palavra que disse: Ele é único. Não há desdo-
bramentos dele, não há permissão para reinventá-lo, ele é único. A ele ouvi.
158
A esperança da Glória com certeza em fé

O discípulo que negar a si mesmo e tomar a cruz tem de desembocar


na experiência do enchimento da esperança da glória em si; do contrário
ele se cansará no caminho. O que nos mantém alimentados no meio de
todas as tribulações é a esperança da glória de Deus. Ou como Pedro
afirmou – e sua carta é uma carta de sofrimento, todo o contexto dela é
de dor, de aguentar firme na esperança, de não desistir da esperança, de
não perder a exultação da esperança, de ter sempre pronta a confissão da
esperança, é um chamado à esperança –, que se instalou completamente,
definitivamente, nele, como voz da Glória Excelsa. Estava passando por
aquilo tudo porque os ecos da Glória Excelsa retumbavam dentro dele o
dia inteiro.
Sem que nos convertamos de todo coração à consciência de que já pas-
samos da morte para a vida, de que a existência nesse tempo é contingen-
cial, não nos tornaremos discípulos. Poderemos ser longevos, vivendo até
os noventa; ou morrer aos 23. Um filho pode sepultar um pai, mas pode
haver um filho que já nasce tendo que ser sepultado pelo pai. Eu já vivi a
experiência de sepultar um filho oito horas depois que ele nasceu. E depois
o Lucas que faleceu aos 22 anos. É somente a consciência da glória de Deus
que descontingencializa qualquer que seja o sentido de anacronismo, do
casuísmo e do absurdo nessa vida.
Quem tem a consciência e a certeza da glória de Deus instalada, quem
carrega esse cenário permanente dentro de si está pronto para tudo. Todo dia
é dia da volta de Jesus para o discípulo, ou todo dia pode ser o dia da volta
dele para Jesus. Tanto faz. As coisas ficam idênticas depois que a glória de
Deus entra em nós. Quando a glória de Deus e a consciência da eternidade
entram em nós, Jesus voltando para nós ou nós para Jesus é tudo a mesma
coisa. Por isso é ridículo quando alguém vai para Jesus e nós caímos numa
desconsolação desgraçada para o resto da vida. É como se a trombeta tocasse
e alguém não subisse porque ficaria dizendo: Ai, meu Deus, infelizmente
chegou a hora de partir. Ou você está pensando que quando o Senhor voltar
com os anjos no seu poder e glória, o espetáculo de graça, de envolvimento,
de amor, será maior do que acontece com qualquer um e acontecerá comigo
e com você se nós partirmos antes desse dia? De jeito nenhum. A Glória Ex-
celsa é somente uma. Seja aquela que todo olho verá, seja aquela que Pedro
disse que viu no monte santo.
159
O Caminho do discípulo

Eu e meu netinho estávamos assistindo a um desenho animado de um


elefante chamado Horton. A grande sacada é do elefantinho; ele é mara-
vilhoso, bagunçado, desajeitado, usa a orelha como proteção no banho.
E lá vem ele... É um elefante com consciência de mecânica quântica, mas
com uma lição muito bonita. Ele chega, mergulha, e aparece uma flor. Ele
fica encantado, pega a flor e vê um ponto branco no meio dela. E ele fica
com a sensação de que aquela coisa falou com ele... Então começa uma
conspiração na floresta inteira para arrancar aquela flor da mão dele, aquela
coisa que falou com ele. Todos querendo destruir aquela coisa que eles não
sabem o que é.
Mas aquele elefante é doido e fica ensinando o mau caminho às crianças,
que é o caminho da fantasia, da imaginação e da irrealidade, porque numa
coisa tão pequenininha não existe consciência – diziam todos os bichos da
floresta. Não, uma pessoa é uma pessoa, não importando o tamanho, era a
tese do elefante. E ele dizia: Vamos inverter. Imagine se tudo ficar grande
e a gente pequenininho... Aí tudo cresce e ele vai ficando pequenininho; a
floresta vai ficando mínima, e o elefante vai virando micróbio... E ele fica
pensando que se tivesse alguém lá desse tamanho, olhando para cá, iria
dizer: Não existem elefantes. E depois ele descobre, dentro desse pontinho
– na viagem dele –, que existe um mundo inteiro infinitamente maior do
que tudo que existia do lado de fora. E ele aprendeu que, por menor que
seja uma pessoa, dentro dela pode habitar um mundo maior do que tudo
que se possa enxergar.
Essa é a mensagem do Evangelho. O reino de Deus está dentro de cada
um. Não tem tamanho, não tem maior, não tem menor. Está dentro de
nós. E se está dentro de nós, vamos encontrar sentido em tudo; no gran-
de, no pequeno, no menor, no maior, em todas as coisas. Tudo passa a ter
significado pra de nós.
Eu já orei muito, quando era novinho na fé, pedindo para ter o privilégio
de morrer pregando. Vejam como eu sou sadio de cabeça. Esse negócio de
morrer na inutilidade, não. Eu pedia que o Senhor me mantivesse daquele
jeito, pregando, gritando: A cruz! E eu já vendo aquela glória me esperando;
provavelmente, olhando a multidão de irmãos gritando: Meu Deus, como
será agora? O que vou fazer?
160
A esperança da Glória com certeza em fé

Estou dizendo que é para não chorar? Não. Jesus chorou diante de um
amigo. Chorar faz bem, é um processo humano, faz bem à alma. Mas eu
posso chorar todas as mortes sem lamentar nenhuma delas. Eu tenho direi-
to à saudade, à vontade de abraçar, de sentir o cheiro, mas sem nenhuma
lamentação, porque o meu amor se gratifica na felicidade eterna de quem
eu amo. E eu mesmo estou livre dessa neurose, dessa fobia desgraçada da
morte. Eu não morro mais. Acabou esse papo. Tão certo como vive o Se-
nhor. A glória já é minha em Jesus Cristo, nosso Senhor. Sem que a glória
se instale, discípulo nenhum carregará alegremente a sua cruz.

Para refletir
1. Quais são os caminhos do segue-me?
2. Qual é o processo do seguir, de acordo com Romanos 5: 1-5
3. Porque este texto de Romanos não se aplica ao saduceu?
4. O que é essencial que o discípulo tenha, como certeza de fé, para continuar
seguindo?
5. Quais são as consequências da falta de consciência, da falta de certeza da glória
na vida daquele que se diz discípulo?

Anotações

161
O Caminho do discípulo

162
12. Da Transfiguração à Glória
Excelsa

No capítulo anterior, eu afirmei que não é possível tomar a cruz sem a intro-
dução, na consciência, da Glória de Deus. Porque se não carregarmos a trans-
cendência todos os dias, fica impossível tomar a cruz. A cruz é uma possibilidade
somente para quem repete com Jesus a sua afirmação aos discípulos que cami-
nhavam de Jerusalém para Emaús, que é uma afirmação-questão: “Porventura
não convinha que primeiro o Cristo padecesse e, então, entrasse na sua Glória”?
Quando Jesus fez essa pergunta, ele estabeleceu não somente a pedagogia
de Mateus 16 – primeiro, vem a cruz, depois é que vem a Glória da transfi-
guração –, mas muito mais do que isso; ele estabeleceu a pedagogia da cruz
para ele, a ressurreição ao terceiro dia e todas as demais coisas, assim como
estabeleceu o mesmo princípio existencial que é repetido o tempo todo nos
Evangelhos, nas Cartas de Paulo e no todo do Novo Testamento: “Porque
para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem
ser comparados com a glória a ser revelada em nós”.
Jesus disse para ter cuidado com o fermento dos fariseus e dos saduceus.
Não dá para ser discípulo de Jesus levando dentro de si os conteúdos, as fer-
mentações e as doenças dos fariseus e dos saduceus. Depois vêm os herodia-
nos. Os fariseus viviam da autossatisfação de sua própria ética: moralidade,
justiça própria e legalismo. Os saduceus, dos ritos no Templo, da alegria e do
orgasmo estético que o rito sacerdotal lhes dava. Aquela satisfação estética,
ritual, porque eles faziam parte da classe sacerdotal – a maioria deles – e labu-
tavam por uma sociedade judaica de ética imediata, ritual e sacerdotal, mas
sem transcendência. Eles não criam nem em espírito, nem em anjo, nem em
ressurreição. Então, não criam na esperança da Glória de Deus. Significando
dizer que não acreditavam que existisse qualquer coisa que os transcendesse.
Ora, se não dá para ser discípulo carregando o fermento dos fariseus e dos
saduceus, e nem a satisfação midiática de poderes ao alcance da mão – que é
o fermento de Herodes, a sedução política −, também não dá, sob hipótese
alguma, para levar a cruz sem que tenhamos dentro de nós a transcendência
da consciência em fé acerca da Glória de Deus.
163
O Caminho do discípulo

Eu quero dizer que nós nos gloriamos na esperança da Glória de Deus,


primeiro. “E não somente isto, gloriamo-nos nas próprias tribulações, sa-
bendo que a tribulação produz perseverança; a perseverança, a experiência,
a experiência produz esperança; e que a esperança não confunde, porque
o amor de Deus é derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que
nos foi outorgado”.
Quem tiver a disposição de passar pela tribulação e não ficar com fobia
nem com pânico de tribulação, mas vencê-la; quem prevalecer sobre ela,
vendo que ela o catapultou para níveis cada vez mais intensos de resistên-
cia, de confiança, de maturidade, de experiência, de esperança, de certeza
de vínculo do Espírito Santo no coração, que assegura aquelas garantias
indubitáveis a quem anda calçado com a preparação do Evangelho da Paz;
aquele que tiver essa disposição andará em paz, sem medo, desassombra-
do, podendo experimentar todo o benefício da promessa do Evangelho,
da experiência de Jesus na interioridade da vida como paz, pacificação,
tranquilidade de entendimento, confiança, como descanso interior. Mas
somente experimentará se, antes, conforme disse Paulo, essa sequência se
estabelecer: nos gloriamos na esperança da Glória de Deus, e não somente
isto, mas também nos gloriamos nas próprias tribulações.
Então, que tenhamos o ânimo de fazer esse exercício infindável de nos
dissociar do si mesmo – essa persona que é uma possessão, um valor agre-
gado viciante, uma fantasia que se autorrenova, que tem estímulos diários
de retorno ao eu e que é de um oportunismo horrorosamente virulento.
Qualquer brecha, qualquer raiva que se tenha, qualquer espírito de vingan-
ça, qualquer vontade de chutar o balde, de dizer: Chega! Cansei do bem;
imediatamente o si mesmo aparece.
Para se ter o ânimo de negar-se a si mesmo todo dia e de tomar a cruz,
precisamos primeiro nos gloriar na esperança da Glória de Deus, vivendo o
significado do que seja tribulação, exercitando o perdão que perdoa o mun-
do inteiro. Ou o exercício de ver o melhor de Deus no outro – como no
malfeitor que estava morrendo ao lado de Jesus numa das cruzes. Precisamos
construir vínculos entre pessoas que estejam separadas, órfãs, carentes, ou
necessitadas – eis aí teu filho, eis aí a tua mãe. Viver a experiência de ser de
Deus, apesar de Deus, ou contra Deus, ou sem Deus, ou sem Palavra de
Deus, ou sem nada de Deus, mas, ainda assim, ser de Deus, dizendo: “Deus
164
Da Transfiguração à Glória Excelsa

meu, Deus meu, por que me desamparaste”? Ou ainda na confissão da nossa


própria humanidade – eu tenho sede. Também rejeitando qualquer que seja
a solução que não se adapte à realidade da própria condição humana e da
nossa necessidade. É por isso que Jesus rejeita o vinagre como entorpecente
da hora e do momento. Ele está com sede, ele não está precisando de um
alterador de consciência para suportar o tranco. E, sobretudo, precisamos
saber que está tudo pago e consumado, e justamente por isso o mundo já
acabou. E se o mundo já acabou, ganhamos a liberdade absoluta de viver
com muita tranquilidade.
É a tese de Paulo o tempo todo: Quem morrer em Cristo fica livre do peca-
do. E Jesus diz que vida decorre dessa decisão de morrer; que liberdade decorre
dessa decisão de morrer. Então, se o indivíduo de fato morre, a liberdade nele se
instala, mas a disposição para viver essa liberdade vem exclusivamente de outro
nível e de outra dimensão. Alimenta-se e alimentar-se-á da esperança da Glória
de Deus. É Jesus o tempo todo declarando o que declarou, quando disse: O
Filho do Homem vai para Jerusalém e será preso, humilhado e manietado; será
julgado e crucificado. E inclui, em todas as declarações, uma adversativa de
vitória: Porém, ressuscitará no terceiro dia. Ele descreve essa história inteira de
cruz porque vence qualquer que seja o processo da cruz com essa adversativa
de esperança eterna: Porém, ressuscitará ao terceiro dia.
Não carregar a esperança da Glória de Deus e ter como horizonte ape-
nas esta vida, ao que se possa ter agora, ou ao que se possa pegar, provar,
comer, sentir, experimentar; ou se arrepiar, ou se emular; se nos restringi-
mos apenas ao confinamento do que se possa geograficamente percorrer, se
o espaço-temporal vencer como movimento sobre a terra, sobre o globo,
sobre a cidade, sobre o bairro; se a vida se restringe ao que pensamos sobre
o que adquirimos de significado pela quantidade de pessoas com as quais
nos relacionamos, ou conhecemos, ou em razão daqueles que nos reconhe-
cem, nos percebem, ou nos aceitam; se o limite vai se tornando esse, se não
nos alimentamos da Eternidade nem da vida eterna, mas somente da nossa
reputação, do que os outros pensam a nosso respeito, do que eles projetam
acerca de nós como importância, como bondade, como inteligência, como
pessoa interessante ou sóbria, ou confiável, ou de bem, ou de qualquer outra
coisa, ainda estaremos no mundo dos saduceus, que é o mundo da ética, da
reputação, dos ritos, da expressão.
165
O Caminho do discípulo

Ou se ainda estamos no mundo dos fariseus, ou no mundo de Hero-


des – que é um mundo de poder, da aparência que impõe, que assusta, que
amedronta, que conquista – ainda não somos discípulos de Jesus. Seremos
discípulos de Jesus somente no dia em que o motor da nossa alma for a espe-
rança da Glória de Deus. Aí, tudo o mais decorrerá do amor de Cristo. Tudo
o mais se tornará natural, se tornará fruto. Quando isso tiver sido entendido,
começamos a aprender algumas outras coisas.
Segundo Mateus, “Seis dias depois de proferidas essas palavras: Em ver-
dade vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira
nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Homem no seu
reino”; ou, como diz Marcos: “Até que vejam uma manifestação do poder
do Reino de Deus”; ou vejam o Reino de Deus manifestar-se em poder. Ou,
como Lucas diz: “Cerca de oito dias depois de proferidas essas palavras – o
que nos mostra que não precisamos ficar tentando dar explicações longas e
tolas, que ocupam meses e anos de discussão nos seminários pela falta de
uma admissão simples de que Jesus disse: “As minhas palavras são espírito e
são vida”.
Ele não estava falando de literalidade nem quando disse: “Quem não
comer a minha carne e não beber o meu sangue, não tem vida em si mes-
mo”. Se nem isso era literal, por que a descrição histórica do texto tem de
ser literal? Eu, como ser humano, me sinto absolutamente confortável se um
episódio foi narrado vinte anos depois, o outro, trinta anos, o outro, quaren-
ta anos, e os três variarem em coisas tão mínimas quanto essas.
Alguns dias depois, Jesus os levou a um alto monte e se transfigurou
diante deles. Mateus deu ênfase nisso, Lucas naquilo e Marcos deu ênfase
em outro detalhe, mas para mim estão me contando a mesma história, sob
ângulos humanos diferentes, com lapsos de memória, interesses de persona-
lidade; um contabiliza mais, outro contabiliza menos, um é mais dilatado. É
tudo bobagem de religião querer fazer disso um livro de exatidões acerca de
todas as coisas, em vez de ver que a exatidão aqui é o Espírito da revelação.
Então, essa é uma questão de somenos, a não ser para quem se dedica a essas
operações eternas de fimose textual. Mas não é o nosso caso.
Então − seis dias, ou oito dias depois, tanto faz –, algum tempo depois
toma Jesus consigo a Pedro e aos irmãos Tiago e João e os leva em parti-
cular a um alto monte. É uma viagem privada, particular. Ele fez questão
166
Da Transfiguração à Glória Excelsa

de ser seletivo. Não foi algo contingencial, houve uma determinação. O


critério foi dele. Podemos dizer que seria de afinidade – porque esses três
aparecem com mais regularidade na maioria das coisas –, mas pode ser
que tenha sido um critério também de maturidade, ou tenha sido apenas
de simplificação, porque eram três que não haveriam de brigar entre si; ou
qualquer outra coisa, porque aquela moçada ali era complicada. Eu não
sei qual foi o critério, eu somente sei que aqui há um princípio. Qual é o
princípio? É que nem todo discípulo que acabou de saber o significado de
tomar a cruz e seguir percebe, de modo direto, o significado da transcen-
dência, da glória, da transfiguração.
Podemos associar transfiguração à glória porque nós lemos na segunda
epístola de Pedro: “Porque quando nós estávamos com Ele no monte santo”
– referindo-se à transfiguração – “nós ouvimos da Glória Excelsa a voz que
dizia: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”. Foi por isso que
a transfiguração virou, no nosso linguajar, Glória Excelsa. Porque foi a voz
que veio da Glória Excelsa, que veio de Deus, que impactou Pedro e o en-
cheu da certeza de Glória. E tudo o mais que ele diz, naquela epístola, se fun-
damenta nessa esperança de Glória, de Glória, de Glória. Ele repete o tempo
todo que para passar por tribulações é preciso carregar essa alegria de Glória,
essa certeza de Glória, da eternidade; essa visualização, esse discernimento do
significado, que transcende a toda contingência, a toda circunstância; a toda
dor imediata, a toda renúncia, a todo exercício de perdão, a toda e qualquer
luta, a qualquer que seja a construção da existência. Transcendemos a isso,
quando dizemos: “Pai, nas tuas mãos eu entrego o meu espírito”.
Ele os leva em particular porque nem todos têm a mesma experiência de
igual modo, da mesma forma. As consciências têm as suas gradualidades de
percepção. Houve um pessoal que precisou ainda ficar lá embaixo, experi-
mentando outra sorte de experiência de Deus, que neste caso, era com o dia-
bo. Era uma experiência de Deus com o diabo, na expulsão de um demônio
que se tornara renitente, a noite inteira. Esses, por algum desígnio divino,
ficaram experimentando aquilo.
Deve ter sido melhor a transfiguração – pensamos. Porque estamos sempre
achando que a grande onda foi a transfiguração. Mas a grande onda é estar onde
Jesus nos colocou. A grande onda é não querer se oferecer para entrar na fila; é fu-
rar a fila dos três que foram convidados para ser o D'Artagnan da transfiguração.
167
O Caminho do discípulo

Os três mosqueteiros são quatro: os três da transfiguração e mais eu. E como


sou o D’Artagnan dessa entrada, tenho de ir. Não posso ficar de fora, tenho
que ser um deles. Mas Jesus também não dá explicações. Ele não disse que ia
subir com alguns a um alto monte, e não disse que iria se transfigurar diante
deles. Jesus nunca deu satisfação de nada, como continua não dando, e con-
tinuará sem dar. Nós vamos sempre ficar perguntando: Quem conhecerá os
caminhos do Senhor? E a resposta é: Ninguém. Sempre será assim.
Então, Ele não explicou; ao contrário, depois de ter acontecido, disse:
“Não contem nada a ninguém até que o Filho do Homem ressuscite de entre
os mortos”. Porque a esperança e a experiência da Glória de Deus não são
apenas os elementos que nos mantêm motorizados, existencialmente, para
irmos levando a cruz todo dia, enquanto todo dia negamos a nós mesmos;
mas elas são esse poder de transcendência que projeta a nossa existencialida-
de para além dos elementos contingenciais e nos catapulta em perseverança
para cada vez mais adiante, conforme Romanos 5. Mais do que isso, temos,
nessa experiência e nessa esperança da Glória de Deus, a certeza de que isso
precisa se tornar uma experiência da nossa intimidade.
Primeiro, nem todo mundo está no mesmo nível de percepção das coisas.
O que eu estou dizendo está sendo entendido de modo diferente por pessoas
diferentes. Assim também como há pessoas que não estão entendendo, há
pessoas que estão entendendo, e alguns vão levar semanas para começar a
entender. Aí, de repente, um diz: heureca!
Então, cada um de nós está numa fase da caminhada. Alguém, hoje, está
tendo um momento estilo Tiago, João e Pedro: está vendo, discernindo algu-
mas coisas! Para outros é um tempo de quem está lá no vale, dizendo: Meu
Deus, quanto mais transfiguração, mais assombração me aparece! Então, de-
pende. Como também é possível que alguém esteja no cenário, ou entrando
na percepção, mas as ambiguidades não o abandonaram no processo. Ob-
serve que a narrativa de Lucas, paralela à de Mateus 17, nos diz que Pedro,
Tiago e João estavam premidos de sono, mas conseguiram ficar acordados
para ver a transfiguração. Alguém pode imaginar uma situação dessas? Nem
Jesus, Moisés e Elias seguraram os caras acordados! Já imaginou o tamanho
desse torpor que bateu no momento da transfiguração? E nós ficamos pen-
sando que transfiguração é um lugar de purpurina! Houve de tudo ali; basta
juntarmos os pedaços em Mateus, Marcos e Lucas.
168
Da Transfiguração à Glória Excelsa

De acordo com o texto de Marcos, Pedro tomou a palavra, enquanto


Moisés e Elias conversavam com Jesus. Já imaginaram isso? Jesus conver-
sando com Moisés e Elias, e Pedro pedindo a palavra? E ele vem com aque-
la sua sinceridade extraordinária: Senhor, grande ideia, façamos aqui três
tendas; uma será para ti, outra para Moisés, e a outra para Elias. O texto de
Mateus diz: Se tu quiseres, eu faço. E o texto de Lucas diz que Pedro deu
essa ideia depois que Moisés e Elias tinham se retirado. Nada atípico em se
tratando de Pedro.
No primeiro caso, coragem para interromper? Pelo amor de Deus, o que
não faltava a ele era coragem para interromper até Moisés e Elias conversan-
do com Jesus! E coragem para também dizer: Vamos simplificar essa história
inteira de ficar saindo por aí levando essa cruz. Por que não paramos por aqui
mesmo? Faremos três tendas. Uma será tua, outra de Moisés, outra de Elias.
E aí, oh, para tudo aqui, fica essa coisa maravilhosa, quem quiser ver, venha.
Vira um Vaticano de três tendas. Que coisa maravilhosa! E a gente ainda
pede, até, para ver se tem um repeteco noturno; vira show de luzes noturnas,
vira show de imagem e som.
Porque o seu rosto resplandecia como o sol, as suas vestes resplandeciam
como a luz – de acordo com Mateus. De acordo com Marcos, como nenhum
lavandeiro da Terra poderia lavar; e de acordo com Lucas, resplandeceram e
ficaram transfiguradas. Então, é a mesma História, dita com palavras diferen-
tes. Mas o fato é que as reações que encontramos a essa mesma experiência são
distintas. É o que eu estou querendo ressaltar. Por exemplo, nesse ambiente
aqui, se cada pensamento falasse alto neste momento, o que aconteceria?
Nós estamos diante daquela situação em que o caminho de cada um de
nós, para que seja sadio, precisa nos conduzir à construção da esperança da
Glória em nós, à consciência do Reino em nós. Essa é uma construção com-
pletamente particular, individual, subjetiva, gradual. As nossas percepções,
em diferentes estágios, serão estas.
Já pensaram se os nossos pensamentos se tornassem audíveis, de repente?
O que aconteceria? Nossos pensamentos revelariam onde cada um de nós
está em relação à compreensão da mesma coisa que está sendo dita aqui.
Tem uns levando numa direção; outros, em outra; outros, talvez em direção
alguma; outros, apenas querendo saber, provavelmente, qual o benefício que
terá hoje do que está ouvindo.
169
O Caminho do discípulo

Mas o que fica para nós como significado de lição dessa entrada na cons-
ciência do Reino, que é esse passo, que é essa percepção da Glória, que é o
que vai nos animar a negarmo-nos a nós mesmos, a tomarmos a cruz e a
seguirmos sempre – como Pedro ressaltou na segunda epístola – é aquela voz
que nós ouvimos no monte santo, que veio da Glória Excelsa; que nos anima
e nos animará para sempre a passar por todas as tribulações; que é o que nos
faz gloriarmo-nos na esperança da Glória de Deus, e não apenas isso, mas
também nas próprias tribulações. É o mesmo poder e é a mesma força.
Então, diante disso, precisamos saber que, quanto mais profundamente
mergulharmos na consciência do significado da Glória de Deus e no nosso
chamado eterno para a Glória – para não passarmos pela morte antes de
vermos a manifestação do poder do Reino de Deus, que é o que gera o poder
para irmos vivendo esse convite de Jesus todos os dias –, menos temos de nos
comparar uns com os outros, porque cada um está em fase diferente dessa
percepção; ela é particular; é absolutamente particular.
Pedro, Tiago e João foram levados para o monte, mas não vemos nenhu-
ma alusão ao que Tiago e João tenham dito. Somente ao que Pedro disse. E
ainda há uma desculpa que lemos no Evangelho de Marcos – um Evangelho
escrito, provavelmente, a partir das memórias de Pedro, e é uma explicação
de Pedro sobre o que aconteceu com ele – que diz: Porque, em razão da per-
plexidade, ele não sabia o que dizer.
Então, se o Evangelho de Marcos é oriundo das confissões de Pedro, ali
temos uma nesga de sua explicação pessoal: “Olha, desculpem, mas a bo-
beira foi fruto de perplexidade. Sabem aquele bobo que fica absolutamente
chocado com o que está vendo, e aí fala aquela bobagem? Foi o meu caso.
Desculpem, mas foi isso que aconteceu, foi susto de Glória que provocou
um besteirol santificado.” A sequência dessa leitura vai nos apresentar uma
quantidade enorme de temáticas que serão abordadas mais à frente.
Esse aspecto da existencialidade, da particularidade do processo, da indivi-
dualidade da apropriação da revelação da consciência do Reino, é uma coisa que
não acontece em série. Todos estamos ouvindo as mesmas coisas, assim como na-
quela noite, naquele monte, todos três viram a mesma coisa, mas, provavelmen-
te, pelo que vemos de interpretação na primeira epístola de Pedro, tenha tido
nele um tipo de impacto diferente. Sua ênfase foi a voz vinda da Glória Excelsa,
que dizia: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo, a ele ouvi”.
170
Da Transfiguração à Glória Excelsa

Não sabemos qual a força desse impacto em João, que estava lá tam-
bém. Vemos declarações extraordinárias dele: “No princípio era o Verbo, e
o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”. Não sabemos se foi naquela
noite, se foi naquela hora, se oito dias depois, se uma semana depois, que
João teve sua internalização por uma outra via, o que viria fazê-lo dizer
mais adiante: O que temos visto, o que pegamos, o que sentimos, o que
os nossos olhos perceberam, o que os nossos ouvidos ouviram, isso é o que
vos damos a conhecer.
Cada um tem seu modo de internalizar essa experiência. Talvez João te-
nha feito uma viagem mais subjetiva do que Pedro. A ênfase de Pedro foi na
“voz que ouvimos no monte santo, e que nos veio da Glória Excelsa”. É a
ênfase numa voz.
João enfatiza a mistura de uma experiência crescente. Cada um com os
seus meios, seus recursos, sua personalidade, sua percepção, sua capacidade
de apreensão, de discernimento, de leitura, vai fazendo a viagem particular.
E o texto diz: Ele foi transfigurado diante deles. E mais do que isso: “O
seu rosto resplandecia como o sol e suas vestes tornaram-se brancas como a
luz”. Quais as implicações disso na consciência do discípulo? É a experiên-
cia de poder crescer no discernimento da visualização da Glória de Deus na
face de Cristo, que seria como Paulo haveria de dizer em II aos Coríntios
3: 18. Ou o significado de “seu rosto resplandecia e suas vestes se tornaram
como a luz”. O que isso tem a ver com meu modo de vestir? O que isso tem
a ver com a suposta dicotomia cristã entre matéria e espírito? O que isso
tem a ver com o gnosticismo remanescente entre nós, que ainda diz que as
coisas do espírito é que são as elevadas e as coisas materiais são quase que
realidades permeadas por uma graça maior de Deus, porque parece que são
perversas em si mesmas? E as implicações disto na nossa mente, no nosso
modo de dividir o mundo entre secular e sagrado, nas perguntas idiotas,
que as pessoas me fazem: Pastor, é pecado ouvir música do mundo? Ou:
Será que temos de ouvir música gospel? Ou: Será que posso ler somente
livro de crente? Faz mal isso? Faz mal aquilo?
Ora, se fosse assim, Jesus tinha de estar vestido com veste de um sa-
cerdote do templo em Jerusalém, da descendência de Levi. Mas ele está
vestido é com a roupa dele mesmo. A mesma com a qual ia ao cemitério,
voltava do cemitério, curava doentes, se molhava na tempestade. A mesma.
171
O Caminho do discípulo

O Novo Testamento faz questão de dizer que era somente uma e tecida de
cima abaixo em uma única tessitura. É a única particularidade: a inteireza
dessa vestimenta; sem costura. No mais, era para o que desse e viesse. É essa
mesma que fica transfigurada mais do que a luz!
Quais as implicações disso para nossa espiritualidade no mundo real?
Quais as implicações disso em relação a que tipo de consciência espiritual
iremos desenvolver sobre geografias santificadas e geografias não santificadas,
se é que elas existem? Estilos de vestir de Deus e estilos de vestir que não são
de Deus. Modos de ser, de personalidade, de cultura que seriam de Deus e
modos culturais que não são de Deus.
São todas questões que ficam bem na nossa cara quando ficamos sabendo
que Ele se transfigurou diante deles; que as suas roupas não eram branqui-
nhas como em filme de Hollywood da década de 30, nem de 40, nem de 50,
com aquele Jesus falando, aquela voz empostada, daquele locutor, de um Cid
Moreira romântico e piedoso. Não. As roupas dele eram sujas mesmo.
Nem Deus veste três anos e três meses a mesma roupa sem que ela fique
suja. Dormindo no chão, é carrapato, é sujeira. Tem de entrar num riozi-
nho de vez em quando, dar uma esfregada, espremer. Era somente uma.
Pelo menos é o que se diz, e que era uma túnica tecida de cima abaixo. O
que era estiloso nela é que não tinha costura. Por isso é que os guardas qui-
seram dividir, jogaram dados para ver quem é que ficava com ela, lançaram
sorte. Mas era suja. Estava mais para marrom do que para qualquer outra
cor. É por isso que dá um susto em Pedro, Tiago e João, porque aquela
roupa, suja, Marcos diz – lembrando Pedro – que ficou mais alva do que
nenhum lavandeiro da Terra conseguiria lavar. Olha como é que ela estava
precisando de lavagem mesmo. É! E não era fosforescente, não eram as
vestes do Benny Jesus. Não eram. Era uma roupa suja, e o milagre foi tão
grande na roupa dele que nenhum lavandeiro da terra conseguiria lavar. E
mais do que isso, ficou alva como a luz!
E o rosto? Tem uma narrativa que diz: “Brilhava como o sol na sua
força”. Qual a implicação disso, do ponto de vista cultural, do vestir, do
mundo real, de até aonde vai a espiritualidade, o que ela pervade, o que
ela penetra, o que ela inclui? Se houvesse duas dracmas no bolso da túni-
ca, elas seriam santificadas? Ou seria a única área da roupa que Deus não
estaria abençoando? Ou, se elas estivessem separadas para um dízimo, será
172
Da Transfiguração à Glória Excelsa

que aquela área específica teria, no medidor de irradiação de bênçãos, uma


intensidade maior? São perguntas que o discípulo tem de aprender a res-
ponder para ele mesmo, para ser curado de um monte de esquizofrenias,
ambivalências, ambiguidades, contradições; de psicoses, de dicotomias, de
divisões de mundo, de pacotes de filosofia que são de fato entre nós, hoje,
exatamente da Nova Era, mas que praticamos como piedade cristã, sem
nem saber ou discernir.

Para refletir
1. O que é a esperança da glória de Deus na vida do discípulo?
2. Qual é a relação da experiência da Glória de Deus e a esperança da Glória com
a nossa intimidade?
3. Quais as implicações da transfiguração na consciência do discípulo?
4. Quais as implicações da transfiguração em relação a que tipo de consciência
espiritual vamos desenvolver sobre geografias, usos, costumes santificados e geo-
grafias, usos, costumes não santificados?
5. O que o discípulo tem de aprender depois da transfiguração? O que resta?

Anotações

173
O Caminho do discípulo

174
13. Olhar para a Glória de Deus todos
os dias

O último capítulo foi uma transição. Passamos pelo momento em que


vimos sobre “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” e fomos até o outro mo-
mento em Mateus 16:21-22, quando Jesus inicia outra etapa do ensino com
o tema da cruz. E ainda, quando ele diz, em Mateus 16:28, que alguns não
passariam pela morte até ver o Filho do Homem no seu reino. E em Mateus
17:1: “Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro e aos irmãos Tiago e
João e os levou, em particular, a um alto monte”. Em Lucas 9:28: “Cerca
de oito dias depois de proferidas estas palavras”. Depois vem a narração da
transfiguração. Marcos, capítulo 9, diz que entre eles havia alguns, não todos,
que de maneira alguma passariam pela morte até que vissem a manifestação
do reino, ou o reino se manifestar em poder. São designações diferentes.
Alguém poderia dizer que algo falhou, pois os discípulos passaram pela
morte e o Filho do Homem não veio. Na realidade, Jesus não estava dizendo
nada relacionado à sua volta, à parousia, àquela aparição que todo olho verá e
que ele descreve nos Evangelhos. Não era disso que ele falava. Ele falava de algo
subjetivo. Por isso é que ele diz que dentre todos seus discípulos apenas alguns
não veriam a morte até ver o Filho do Homem vir na sua glória, no seu reino.
Ora, quando o Filho do homem vier, não importa se alguém já foi ou se
está vivo, o fato é que, tanto os vivos quanto os mortos – não importando o
estado ou condição –, todos estaremos no mesmo estado de glória e de encon-
tro com o Senhor nos ares. Por isso ele está falando de modo subjetivo. É para
alguns. E por isto Lucas não tem o pudor de interpretar o fato de que quando
Jesus disse o que disse, ele se referia ao que ele haveria de demonstrar logo a
seguir, apenas para alguns – Pedro, Tiago e João –, e os levaria ao alto monte.
Provavelmente, deve ser o monte Hermon. Vimos, no capitulo 16:13,
que Jesus seguia em direção à Cesareia de Filipe, que fica no pé do monte
Hermon. Quando ele diz “Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui
se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam
vir o Filho do Homem no seu reino”, ele estava se referindo ao que ele iria
mostrar como avant-première da sua glória para aquele grupo específico, e
não para o grupo todo. Somente para alguns.
175
O Caminho do discípulo

E Lucas não nos deixa dúvida a esse respeito quando vincula essas pa-
lavras de Jesus à narrativa subsequente: a transfiguração. Ele mostra que a
transfiguração era o cumprimento dessa promessa, a manifestação dessa sub-
jetividade, a expressão do reino de Deus chegando para esse grupo particular
e específico de discípulos.
Qual é a intenção de Jesus? Vimos que ele está vindo de uma primeira de-
terminação: estabelecer a pedra angular, a pedra de esquina: “Tu és o Cristo,
o Filho do Deus vivo”.
O segundo momento do ensino de Jesus é: A minha cruz é a sua cruz. Se
alguém quer vir, não somente não pode brigar com a minha cruz, mas tem
de tomar a sua cruz e seguir. É a mesma caminhada.
E no terceiro momento ele diz: Vou introduzi-los à consciência do reino
e da glória.
Do ponto de vista existencial e psicológico, não poderia ser de outra for-
ma, porque ninguém suporta o significado do negar a si mesmo, do tomar
a cruz, com as implicações que isso carrega. E não é possível seguir a Jesus
sem que isso tenha uma profunda relação com o impacto gerado no coração
acerca da glória de Deus em nós, da transcendência. Caminhar com Jesus no
chão da terra sem a esperança da glória é um projeto irrealizável.
Por isso Paulo diz, em I Coríntios 15, que se a nossa esperança em Cristo
se limita apenas a esta vida, nós nos tornamos os mais infelizes de todos os
homens. Discipulado, seguir Jesus, ser do Evangelho, somente acontece se o
indivíduo fizer disso a viagem como um todo, entendendo que caminhar no
Evangelho somente faz sentido se for, antes, filho da ressurreição.
Se antes não nos tornarmos seres conscientes do chamado eterno, da vo-
cação eterna, da vida eterna em nós, da abolição do medo da morte, da des-
truição da fobia do morrer; se não entrar em nós essa iluminação de glória
que faça com que não andemos na terra temendo pela própria morte física,
mas, pelo contrário, sem nenhum problema, mas com a questão já totalmen-
te resolvida, sabendo que somos habitados pela eternidade; se não for assim,
não nos tornaremos discípulo.
Isso é o que faz com que cada despedida de alguém que se ame não nos
deixe aleijados, destruídos, porque, por amor, devemos olhar para aquela
pessoa e ver que toda dor que sentimos é apenas nossa, fruto da nossa carên-
cia, do nosso egoísmo, do modo de amar possessivo, finito, mortal. Porque
176
Olhar para a Glória de Deus todos os dias

se amarmos mesmo aquela pessoa que partiu não vamos dizer que estamos
tristes por causa dela; estaremos tristes por nossa causa. Do contrário, esta-
ríamos dizendo que não cremos na eternidade; ou estaríamos dizendo que
estar com Deus não é bom.
Isso que parece jogo de palavras, que parece brincadeira, é coisa muito
séria. Ninguém cresce, ninguém amadurece, ninguém se torna homem ou
mulher sem vencer essa etapa. Caso contrário, o caminho com Jesus passa a
ser um caminho de um saduceu – aquele sacerdote do partido político que
fornecia sacerdotes que não acreditavam em anjo, nem em espírito, nem em
ressurreição, nem em transcendência alguma. Era apenas um caminho ético.
Ora, seguir Jesus apenas como ética é uma desgraça. É melhor seguir a Lei
de Moisés. É mais leve.
Seguir Jesus tem de ser uma pulsão de amor. E, para ser uma pulsão de
amor, Jesus não pode ser apenas um mestre que nos inspira a mente. Se ele
for somente um mestre que nos inspira a mente, sinceramente ele não está
com toda essa bola na nossa vida. O que faz essa revolução toda é o fato de
que eu creio que ele ressuscitou dentre os mortos, de que ele é Deus. É Deus
que se encarnou entre nós e ressuscitou de entre os mortos. O Evangelho de
Jesus é a única leitura que tem, de fato, de ser feita de trás para frente.
Foi a partir da ressurreição que ele pôde nascer de uma virgem. Se tivesse
nascido de uma virgem, mas tivesse morrido e ficado morto, ele não seria
o cumprimento daquilo. Ele poderia ter feito qualquer outra coisa, mas se
tivesse sido parado pela morte cairia na categoria de um bom caminho, de
um cara do bem. Seria uma filosofia. A mais dramática, a mais apaixonada, a
mais suicida de todas em relação a se dar em amor para os outros, em entrega,
em perdoar sempre. Seria somente uma decisão de pessoas que se encaixam
naquele tipo de esforço existencial, que é olho por olho, dente por dente.
Quem aguenta isso por muito tempo? Isso mata as pessoas. Transforma-
as em seres legalistas, pedrados, endurecidos, enrijecidos. As contradições
vão aparecendo e essas pessoas vão se tornando cínicas; e o cinismo vai de-
senvolver uma grande hipocrisia, que vai diluindo-as. Então, passam a viver
do self, do si mesmo, sem nenhuma cruz, sem nenhuma negação, restando
apenas o discurso, mas sem nada dentro de si.
A única realidade que alimenta a alegria de dizer “Tu és o Cristo, o Filho
do Deus vivo”, que alimenta a alegria de negar a si mesmo, de tomar a cruz e
177
O Caminho do discípulo

segui-lo é a esperança da glória de Deus, é a certeza da transcendência, é en-


trar nesse ambiente da eternidade. E é por isso que Jesus, depois de fazer essa
viagem anterior, leva alguns dos discípulos para esse ambiente da eternidade,
para essa avant-première do reino, essa pílula, esse holograma de glória, essa
shekinah concentrada. Leva-os, mas não a todos, ensinando-nos que nem
todos vão entrando em cada uma dessas dimensões no mesmo momento,
assim como na primeira vez, quando foi somente Pedro quem disse “Tu és o
Cristo, o Filho do Deus vivo”. Pedro entrou primeiro naquela dimensão, por
isso Jesus disse: “Bem-aventurado tu és, Simão Barjonas”
Por outro lado, na hora em que Pedro foi repreendido, foi somente ele
e não todos. Jesus disse somente a ele: “Arreda, Satanás”. É tudo muito
particular. Cada um tem seu crescimento. A construção de um discípulo é
um trabalho artesanal de Deus na nossa vida. Mas quando nós chegamos
naquela etapa da cruz, vemos que o convite se abre a todos. “Se alguém
quer, vem”. Por quê? Porque ninguém é obrigado a vir. Mas uma vez que o
indivíduo diz que quer, ele se coloca em uma outra posição; na posição de
quem diz: “Eu quero”.
Dentre os que disseram “eu quero” existem aqueles que disseram isso por
eco: eu quero, eu quero, eu quero, eu quero... Como em muitos lugares.
Existem também os que disseram por influência. Respeito tanto Fulano,
e como ele já levantou a mão dizendo “eu quero”, eu também quero. Não
entendo muito não, mas quero.
E existem aqueles que disseram apenas por causa da insegurança. Se
todos estão dizendo “eu quero”, então não é uma coisa ruim. Não tenho
tanta certeza se eu quero, mas enquanto eu decido, ganho um tempo para
pensar; então eu quero.
E há ainda aqueles que disseram “eu quero” de verdade, sabendo o que
queriam. Naquele grupo dos doze, não por uma predileção, mas, provavel-
mente, por causa de uma consciência instalada, de algum nível de percepção
a mais, de um passo além da compreensão, Jesus escolhe alguns – Pedro,
Tiago e João –, leva-os ao alto monte e transfigura-se diante deles.
Não é somente o caminho da confissão de que Jesus é o Cristo, o ca-
minho que nos coloca no discipulado, negando a nós mesmos, tomando
a nossa cruz e seguindo-o, que nos traz alegria de gozo para prosseguir em
perseverança a existência inteira. Há necessidade também do vislumbre da
178
Olhar para a Glória de Deus todos os dias

glória de Deus. E esse vislumbre é crescente. Alguns levam aquele impacto


do tipo Paulo, que recebe um pé no peito, um pisão da Graça, um atropela-
mento, mas isso é uma raridade. A maioria vai sendo iluminada, de luz em
luz, de percepção em percepção. E é absolutamente essencial que a entrada
nesse mundo de percepção de glória, de eternidade, comece a nos envolver,
porque sem essa percepção não haverá o ânimo para se enfrentar o resto da
viagem. Jamais haverá.
Isso é absolutamente coerente com a sequência do Evangelho que, depois
da cruz, leva para a glória e para a transfiguração; e com a sequencia histórica
da nossa vida. Porventura não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na
sua glória? É o que Jesus pergunta aos dois discípulos no caminho de Emaús.
Essa também é a sequencia de tudo o mais. Primeiro padecemos, vivemos
a experiência da peregrinação, depois entramos na glória. Nunca será inver-
tido. Será sempre assim. E é assim o caminho existencial. Para que façamos
o caminho da decisão do “negar a si mesmo e tomar a cruz”, precisamos ser
introduzidos na consciência da glória; do contrário, não haverá o motor exis-
tencial para fortalecer essa jornada. O ânimo existencial vem da certeza de
que não estamos contingencializados. Não estamos contidos nem limitados
por nosso corpo, por esse tempo, por esses anos, por esse período. Já somos
entes da eternidade. A eternidade está dentro de nós, nos habita. Já passamos
da morte para a vida. Somos indivíduos que vamos viver eternamente.
E se vamos viver eternamente, qual é a morte que tememos? E se não
tememos morte alguma, o que mais temeremos? E não tememos a morte
porque cremos no amor de Cristo, em quem estamos seguros, prometidos
e garantidos. E se é o amor de Jesus que está dentro de nós, internalizado,
plantado, não existe o medo, porque onde há esse perfeito amor todo medo
é lançado fora. E se todo medo é lançado fora, o que é que surge dentro de
nós a não ser um desassombro enorme para viver? Então, negar a si mesmo é
privilégio, tomar a cruz é alegria, perdoar sempre é a nossa bênção, enxergar
sempre o melhor nos outros é a luz do nosso olhar, fazer pontes de fraterni-
dade entre as pessoas é a nossa missão de filhos de Deus: “Mulher, eis aí o teu
filho; filho, eis aí tua mãe”. Tendo sede e vir a pedir água é uma condição da
verdade da nossa realidade. Negar-se a aceitar algo que não seja necessário à
nossa realidade é um exercício da nossa consciência. “Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste” é algo que podemos dizer sem blasfêmia; ou seja,
179
O Caminho do discípulo

fazendo a pergunta do limitado, dentro da própria eternidade, beijado por


Deus; porque estamos dizendo “Deus meu” crendo que está tudo consuma-
do e, portanto, encontrando descanso total e justificação absoluta; e dizendo
todos os dias: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
Isso tudo é animado, sempre, se dentro de nós tiver entrado a consciência
da glória de Deus. Do contrário, se o nosso mundo for o Distrito Federal, se
as nossas esperanças para essa vida têm a ver com a gata que encontramos,
com o novo emprego, com a nova casa ou com o carro novo... Se as espe-
ranças forem essas, eu sinto muito, mas estaremos despedidos. Como dizia
o Woody Allen, na década de 80, vá para casa, cubra bem a cabeça, feche
tudo, fique bem no escuro, fique gemendo e tenha a mais profunda crise de
angústia. Porque é o que resta.
O mundo vai ficar um espetáculo? Estamos sonhando com nossos tata-
ranetos cheios de chips para todo lado? E nosso sonho de consumo? É um
mordomo androide em casa que sirva para outras coisas nas horas vagas?
Qual a nossa preocupação? O aquecimento global? A subida do nível das
águas? A manifestação da besta da terra e do mar? Quais são as nossas espe-
ranças? É antes de dar um último suspiro encontrar a princesa ou o príncipe
encantado? Morrer amanhã, mas, hoje, poder beijar a princesa encantada? É
esse o nosso negócio? Se essa é a nossa esperança, então somos parte dos seres
que estão fadados a ser os mais infelizes de todos os homens.
Seguir a Jesus somente será possível se formos tomados pela mão. E que seja
uma disposição e uma vontade de cada um. Que cada um desenvolva uma par-
ticularidade com Jesus, que cada um seja um Tiago, um João, um Pedro; todos
teremos de entrar nesse ambiente, nessa percepção. Porque seis dias depois, no
processo, toma Jesus consigo. É Jesus quem toma consigo. Não sou eu não.
Eu somente sou o contador da história. Agora, se alguém quer ser um dos que
entrarão e que, antes de morrer, já aqui na terra, quer ter o privilégio de ver o
reino, de negar a si mesmo e tomar a sua cruz, em vez de dizer: Ai, meu Deus,
os seus mandamentos são penosos, terá de dizer: Os seus mandamentos não
são penosos. O amor é fácil. É tudo de bom. Perdão é tudo de melhor. Miseri-
córdia é tudo de sadio. Longanimidade é tudo de resistente. Autocontrole é o
maior poder. Para que isto aconteça, esse motor de glória tem de estar dentro
de cada um. É como eu disse: Precisamos ser tomados por Jesus para essa di-
mensão. Ele vai chamar quem no coração quiser. Temos apenas de querer.
180
Olhar para a Glória de Deus todos os dias

O meu coração tem de confessar essa vontade de experimentar a glória


de Deus. Podemos imaginar a seguinte situação e a seguinte cena que é Je-
sus chegando e dizendo a seus discípulos: “Eu vos digo que há alguns aqui
que de maneira nenhuma passarão pela morte sem que vejam o Filho do
Homem no seu reino”. E então um indivíduo andou para longe, outro viu
a pedra, comentou sobre as pedras do caminho, e outro disse: Que é isso
aqui? Ah, esse cálice me lembra um dos milagres da Galileia, Jesus, que o
Senhor fez.
Talvez Pedro, Tiago e João tenham ficado bem juntinhos, esperando,
aguardando, com o coração expectante. Nós não sabemos. Eu não duvidaria,
porque esses três foram capazes de muita cara de pau para chegar mais junto.
Lembram disso? Chegaram a falar à mãe deles para pedir a Jesus. E ela pe-
diu. Somente não disse quem ficaria à direita e à esquerda. Mas que fossem
os dois filhinhos dela do lado de Jesus. Então, ambição por esse negócio do
Reino de Deus eles tinham. Não sabiam bem o que era, mas tinham. O fato
é que são esses indivíduos que Jesus toma consigo.
O convite é: Vem e segue-me. A introdução nisso acontece somente
se o mesmo que disse vem e segue-me me tomar e me levar. E você diz:
Ah, então isso depende dele. Basta eu ficar bem aqui na minha. Nunca
é assim. Nunca foi e nem será. Estão pensando que Paulo foi escolhido
para levar aquela cacetada que levou porque estava absolutamente à von-
tade: Se Deus quiser alguma coisa comigo, ele que venha? Paulo era o
antiadorador mais apaixonado que existia no mundo. A contradição de
amor, a angústia de amor e de fascinação que Jesus exercia sobre ele era
tão poderosa que Paulo transformou aquilo tudo em ódio persecutório
desesperado. Mas, de fato, não havia ninguém mais apaixonado. Vem Je-
sus e pula em cima dele. Você me queria? Olhe eu aqui! É para me seguir,
não é para me perseguir. É para me obedecer.
Então essas realidades se instalam em nós por causa desse casamento.
É Jesus quem toma, e toma a quem quer, a quem tem no coração esse
desejo. Porque, de fato, essa é a viagem mais libertadora de todas. Na
carta aos Hebreus está dito que Jesus veio ao mundo nos livrar, dentre
tantas coisas, de duas: destruir aquele que tem o poder da morte, a saber,
o diabo; e livrar aqueles que, pelo medo da morte, estavam sujeitos à
escravidão por toda a vida.
181
O Caminho do discípulo

É somente quando alguém, de fato, tem a percepção da glória, quando a


transfiguração entra, quando a transcendência, quando o rosto de Cristo se
descontingencializa que vamos vendo a glória do chamado. É quando o vis-
lumbre do cenário eterno começa a entrar em nós e a alimentar nossa alma.
É aí que começa a grande pulsão de alegria que vai fazer a jornada se tornar
o mais fascinante projeto de vida em qualquer momento da existência e para
sempre. Mas é uma viagem que cada um terá de fazer. É intransferível.
Entre comigo nesse ambiente! Suba! Que ambiente é este?
É o que veremos daqui para a frente. É esse ambiente, são os significados
dessa ambiência que precisam ser transferidos para dentro de nós. Porque,
conquanto essa seja a transfiguração para Pedro, Tiago e João, ela não se
circunscreve somente a eles. Em II Coríntios 3:18 Paulo diz: ... E todos
nós - não somente Pedro, Tiago e João -, agora, com os rostos desvendados;
não como Moisés, que cobria o rosto; mas com o rosto para fora somos cha-
mados a olhar a face de Jesus, a glória de Deus na face de Cristo, para que,
pela contemplação dessa transfiguração todos os dias, dessa transcendência
eterna, dessa majestade, sejamos transformados e nos tornemos à semelhan-
ça de Jesus, pelo trabalho constante do Espírito Santo que vai acrisolando,
dando forma, mexendo na nossa semelhança, gerando uma conformação de
semelhança com Jesus no coração, na nossa mente. E isso somente acontece
se olharmos para a glória de Deus todos os dias. É uma viagem que requer
vontade de fazer. E para cada um de nós ela vai ter manifestações diferentes.
Mas temos de ter essa disposição interior de fazê-la.
Eu não tenho nenhuma receita a lhes dar. Nenhuma. Toda e qualquer
receita é mentira e falácia. Vocês já sabem disso. Esse milagre acontece so-
mente se for particularizado. Cada um com o rosto desvendado. Cada um no
particular da vida. Cada um com a disposição de dizer: Jesus, eu quero entrar
contigo nesse ambiente. Se há alguns que verão, eu quero ser um deles.
Ambição espiritual é uma das coisas que estão em estado de morte entre
nós. Hoje a fé está vinculada à palavra usar. Usar a fé. A fé virou instru-
mento utilitário. Fé já não é mais a certeza de coisas que se esperam, a
convicção de fatos que se não veem. Fé é um instrumento de apropriação
débita ou indébita, de qualquer modo. Quem tem fé é o mais esperto, é o
malandro da vida. Muitos acham que Deus honra a todo malandro que,
tendo fé, entende que é melhor dar 10% e ganhar 90% do que não dar
182
Olhar para a Glória de Deus todos os dias

10% e ter o resto comido pelo devorador, pelo gafanhoto. Então, no meio
dessa gafanhotada as pessoas vão esticando a vida sem nenhum significado,
com medos e pânicos, sem nada acontecendo da graça de Deus dentro de si
e com esse agravante horroroso. O que elas têm não é fé. Elas têm fé como
instrumento de macumba, como uma mídia, como um despacho; mas não
é fé que se manifesta na busca de relação com Deus, de quem tem ambição
espiritual. As ambições dessa fé fétida, terrena, animal são todas ambições
caracterizadas pelo que seja ambição humana. Então, é fé para comprar
aquela casa, é fé para derrotar um adversário que me molesta no Senhor
– porque eu sou cabeça não sou cauda –, é fé porque bem-aventurados os
humildes de espírito.
E mais do que isso. É uma fé de contabilidade, de matemática, é uma fé
que pode registrar em livro. Dia tal comprei um carro; aquela gravata tão
sonhada, aquele sonho que minha melhor amiga tinha e que eu nunca pude
comprar, e o Senhor me abençoou e eu realizei esse sonho. Isso, na verdade,
é a realização de uma inveja. Essa é a fé dos nossos dias. É o Deus cupido. O
Senhor me abençoou e eu consegui a garota que eu queria. Essa é a fé que se
encontra hoje.
Se disserem que a mãe está com câncer, não importa se ela tem 98 anos
ou 38, com essa fé esse indivíduo está perdido. É fé-de-grana, é fé-de-casa.
Essa é a fé-de-hoje. E o cacófato é proposital. Fé demais não cheira bem. É
essa a fé. Essa fé ferra. Não faz nada, além disso. Não coloca ninguém sobre a
morte, sobre a doença. Essa fé diz que Deus é bom somente se ele curar. Mas
ela não ensina, com alegria e devoção, a perguntar: “Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Então, para que haja fé tem de haver transcendência, transfiguração. Tem
de haver o nosso redimensionamento para além do imediato, porque o ime-
diato não nos anima ao amor, ao perdão. O imediato não nos faz essa terapia.
Quem perde a percepção do que está para além jamais terá o poder de negar-
se a si mesmo, de tomar a cruz e seguir com aquela alegria que se alimenta
todo dia da eternidade. Eu não sei como as pessoas conseguem viver sem a
eternidade. Existir é o que elas conseguem. Um dia, no entanto, chega-se a
um ponto em que tudo vai virando um fastio, e vai-se perdendo a empolga-
ção nas coisas sem significado. É quando a esperança da glória de Deus entra
em nós que encontramos o tesouro mais valioso.
183
O Caminho do discípulo

E quando encontramos a pérola de grande valor ganhamos a disposição


de vender tudo e comprar aquele campo. De negar a si mesmo, de tomar a
cruz, de viajar para dentro da glória. E é essa viagem para dentro da glória,
com todas as suas dimensões simbólicas e arquetípicas, que é preciso apren-
der a discernir, durante esses dias e esse tempo, de uma maneira muito par-
ticular e muito íntima.
Essa viagem toda demandará uma vontade ambiciosa de dizer: Senhor,
me inclui nessa.
Então, no final, temos de aprender mesmo é que a síntese de tudo é
somente uma: Jesus, conforme termina a transfiguração. Essa será a nossa
viagem. Por enquanto, a maioria de nós ainda precisa saber o que Moisés
estava conversando com Jesus, o que Elias estava dizendo, que conluio é
esse que Lucas diz que eles tinham acerca da cruz. O que eles, Moisés,
Elias e Jesus, falavam acerca da cruz? O que Moisés significa para mim?
O que Elias significa para mim? O que Elias e Moisés, sem Jesus, têm de
significado para mim? Como Moisés e Elias têm de se reconciliar em Jesus
e na cruz, que é a consumação de todas as coisas? É a conversa que Moisés
e Elias, em nós, têm de ter com Jesus sobre a cruz. Hoje o coração ainda
precisa de muita cenografia.
Jesus os levou e seu rosto brilhava como o sol na sua força; a roupa ficou
mais alva como nenhum lavandeiro na terra as poderia alvejar; ficou mais alva
que a luz; e uma nuvem luminosa os envolveu. Imaginem que cenografia!
Depois vem a voz do Pai, dizendo: “Este é o meu Filho Amado, a ele ouvi”.
Aquela voz não era como a voz épica de Hollywood; não era tipo James
Taylor; ninguém iria entender. Não tem de ser estilo Cid Moreira. Não. Era
a voz do Pai. O Pai falando. E o que sobra disso tudo? O Pai acaba com a
cenografia toda. E quando eles abriram os olhos, a ninguém mais viram.
Somente a Jesus.
A grande viagem é quando fica somente Jesus. A grande glória é somente
Jesus. Vamos ver onde isso vai crescer em nós, na nossa mente. De fato, para
quem acompanhar, será uma viagem de reorganização mental, espiritual, de
valores, de significados. Não fiquem achando que estou me delongando; sem
essa introdução, tudo o que eu viesse a dizer depois teria menos significado.
Porque agora, estabelecida essa âncora do nosso interesse, tudo o mais vai se
vincular a ela e ganhar significado.
184
Olhar para a Glória de Deus todos os dias

E que âncora é essa?


Nós queremos ser arremessados, com ambição espiritual, para além
do véu. Queremos entrar nesse ambiente. Queremos recuperar a percep-
ção do transfigurado, do transcendente, da oração, do milagre, da nuvem
luminosa, da voz de Deus, da palavra que fala, da nossa própria perple-
xidade ante as manifestações de Deus. Queremos recuperar o desejo de
Deus em nós.
Vejo muitos dizendo que querem saber a vontade de Deus para então fa-
zer essa vontade em suas vidas, mas a maioria não tem nem o desejo de Deus,
que é o desejo de o conhecermos. Algumas pessoas querem saber o caminho,
perguntando: O que eu faço? E eu respondo: Mas para que você quer saber?
Primeiro você tem de conhecer a Deus, conhecer a Jesus e dizer: “Tu és o
Cristo, o Filho do Deus vivo”. Ter levado umas broncas: Sai daí, diabo! Tem
de aceitar e querer negar a si mesmo, tomar a cruz e segui-lo. Tem de ter a
ambição espiritual, dizendo: Se tem alguém que pode ver algo, Senhor, eu
não estou trabalhando contra; me inclui nessa, por favor, porque eu quero
ter percepções, visões, discernimentos, compreensões, vislumbres, eu quero
ter glória em mim. Quero poder, como Paulo , dizer:
Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus
por meio de nosso Senhor Jesus Cristo; por intermé-
dio de quem obtivemos igualmente acesso, pela fé,
a esta graça na qual estamos firmes; e gloriamo-nos
na esperança da glória de Deus. E não somente isso,
mas também nos gloriamos nas próprias tribulações,
sabendo que a tribulação produz perseverança; e a per-
severança, experiência; e a experiência, esperança.

Somente aprendemos a nos gloriar nas tribulações se antes tivermos


aprendido a nos gloriar na esperança da glória de Deus, e se formos um ser
da eternidade, uma pessoa que venceu a morte em Cristo, que está para além
da calamidade, que não tem mais pena de si, que não está esperando que a
vida seja muito fácil para que Deus prove o seu amor por ela. Precisamos ser
alguém que se tornou aquele indivíduo Habacuque de alma, que diz: “Ainda
que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide, e o produto da oliveira
minta e nos campos não haja mantimentos, todavia eu me alegro no Senhor,
no Deus da minha salvação”.
185
O Caminho do discípulo

E se não aprendermos a fazer isso todo dia teremos muitos dias horríveis
na vida. Dias quase insuportáveis. Temos de aprender que basta a cada dia
o seu próprio mal. Cada dia traz seu mal, sua luta maior, menor, grandiosa;
mínima, escrachada ou sutil. E o que me aguarda é uma sucessão de não sei
o quê. De tapas e de beijos, de abraços e de empurrões, de honras e de des-
prezos, de acolhimentos e de rejeições.
Alguém espera qualquer outra coisa dessa existência? Espera um trata-
mento vip, diferencial? A morte é de todos, exceto se ouvirmos antes o soar
da última trombeta e estivermos em Cristo. Com que idade, eu não sei, mas
todo mundo vai morrer, todo mundo vai sentir dor, todo mundo já sofreu,
todo mundo vai sofrer ainda. Ninguém tem de saber do que e nem como.
Jesus disse: exultem, ergam a cabeça, a vossa salvação se aproxima. O tem-
po todo Jesus disse que a salvação para essa contingência é a glória de Deus;
a transcendência. O tempo todo. “No mundo tereis aflições”. É uma certeza.
“Mas tende bom ânimo, eu venci o mundo”. Venceu como? Vencendo a
morte. Ressuscitando, abrindo a porta da eternidade.
Por isso, o viver é Cristo e o morrer é lucro mesmo. E isso vai fazer de
nós pessoas que ficam perguntando que dia o Senhor nos levará? Não. Sim-
plesmente nos deixa livres para viver. Porque nós não estamos esperando
a eternidade; a eternidade já está em nós. Estamos vivendo a vida eterna.
Já. Hoje. Quando este corpo deixar de existir é esta mesma vida que estará
continuando. Não será outra vida. Será em crescência absurda em amor, em
graça. O galardão do ser é o discernimento do amor eterno. Então, o que
pode me acontecer?
Quando Paulo pergunta quem poderá nos separar do amor de Deus, ele
está falando é disso. Eu já estou lá. Quem está falando com você é um ente da
vida eterna, que não tem apenas essa promessa. Já tem essa habitação. Já pas-
sei em Cristo. Ora, se é assim, morte já não é mais um bicho, não é mais uma
questão, não é mais um debate. A única questão é vida. Seja na morte, seja na
vida. Tudo é vosso, e vós de Cristo e Cristo de Deus. Acabou essa conversa.
“Onde está, ó, morte, a tua vitória? Onde está, ó, morte, o teu aguilhão”? Já
era. Não tem mais esse papo. Eu estou livre para o que vier.
Então, enquanto estamos neste mundo, a vida é Cristo. É abundância
em Cristo, é alegria em Cristo, é a vontade do Evangelho. E na hora em
que partirmos? É lucro, é consumação de tudo. E Paulo diz que ele bem
186
Olhar para a Glória de Deus todos os dias

que gostaria de estar com Cristo que, particularmente para ele, seria infi-
nitamente melhor, mas, por causa dos irmãos, ele preferia continuar com
eles. Que é mais ou menos a mesma coisa que falamos em ralação a filhos
e netos.
Quando a gente se desencana em relação à morte, se desencana mesmo.
Ficamos totalmente livres para dizer: Eu peço ao Senhor somente que me dê
mais tempo aqui para cuidar desses queridos, que eu ainda sinto que precisam,
mas se o Senhor achar que está na hora de me levar, sei que o Senhor cuidará
deles. Estamos livres. E quanto mais a liberdade da fobia da morte se instala
em nós, mais alegria de viver, de existir, temos, porque já somos a eternidade
no tempo. Esse já é o nosso estado. Acabou essa conversa. E é desse poder que
todas as demais coisas vão se irradiar como resistência dentro de nós.
Somos desafiados a meditar nessas coisas para isso se transformar em um
corpo de entendimento, de compreensão, em algo que fique instalado dentro
de nós, não apenas na nossa mente, mas que se transforme em um pacto de
glória de Deus na nossa vida.

Para refletir
1. Qual tem sido a sua motivação para seguir a Jesus?
2. Você quer ser levado a ver a glória de Deus? Quer ser tomado por Jesus? Para
quê? Por quê?

Anotações

187
O Caminho do discípulo

188
14. O encontro com a Glória de
Deus

Lemos em Mateus 17: 1-8:


Seis dias depois, toma Jesus consigo a Pedro e aos ir-
mãos Tiago e João e os leva em particular a um alto
monte. E foi transfigurado diante deles; o seu rosto
resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se
brancas como a luz. E eis que lhes apareceram Moisés
e Elias, falando com ele. Então, disse Pedro a Jesus:
Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três
tendas; uma será tua, outra para Moisés, outra para
Elias. Falava ele ainda, quando uma nuvem luminosa
os envolveu; e eis, vindo da nuvem, uma voz que dizia:
Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo;
a ele ouvi. Ouvindo-a os discípulos, caíram de bru-
ços, tomados de grande medo. Aproximando-se deles,
tocou-lhes Jesus dizendo: Erguei-vos e não temais! En-
tão, eles, levantando os olhos, a ninguém viram, senão
só a Jesus.

Neste capítulo quero começar a falar sobre o fato de o caminho do discí-


pulo ser um caminho da espiritualidade plena, total e integral.
O discípulo vem da consciência de quem Jesus é, e em razão dessa cons-
ciência ele toma a decisão de andar com Jesus, de se deixar formar e se trans-
figurar na pessoa de Jesus. E Jesus, uma vez que coloca diante deles o desafio
de negar-se a si mesmo, tomar a cruz e segui-lo, leva-os à experiência da
transfiguração, mostra-lhes a Glória Excelsa, descortina diante deles o sig-
nificado do que os aguarda. Faz uma avant-première do Reino de Deus; dá-
lhes uma pílula de experiência, uma percepção extra e momentânea daquele
significado e das suas múltiplas dimensões.
Ao fazer isso, ele inicia o caminho novo com esses discípulos, e então vão
se acentuando e se aprofundando os sinais, as marcas e os significados do que
a espiritualidade do discípulo deveria conter. O discípulo diz “Tu és o Cristo,
189
O Caminho do discípulo

o Filho do Deus vivo” e assume essa loucura. Ele carrega a cruz e toma consci-
ência do mundo imenso de fantasias que constitui o seu self, o seu si mesmo;
nega isso e abraça a cruz com as suas implicações e segue a Jesus. E esse é um
ato de vontade: se alguém quer.
E Jesus descortina diante deles essa percepção do excelso, do eterno, do
maior. Introduz alguns elementos que são importantíssimos para eles, no
momento, e haveriam de ser importantíssimos para quem quer que tenha
tido os olhos abertos, no curso desses últimos dois mil anos, para perceber o
significado da verdadeira espiritualidade, da verdadeira consciência de expe-
rimentar Deus, sendo seu discípulo.
Essa é a questão. O que significa experimentar Deus, já que eu tenho esse
background10 afirmado até aqui? E já que eu tenho isso, como é a espirituali-
dade desse ser que emerge dessa consciência? O que deverá ir se afirmando,
solidificando, referenciando, definindo nele?
A primeira coisa que quero afirmar tem a ver com a transfiguração de
Jesus diante de Pedro, Tiago e João, quando ele lhes mostra a cara da Glória
de Deus.
Paulo vem a falar depois desse acontecimento – a transfiguração – dizen-
do que ele se transformou em um fenômeno universal: é para qualquer que
seja o discípulo. Não mais apenas para Pedro, Tiago e João; não mais em
particular, mas agora para todos, como ele diz aos Coríntios.
Na Segunda Carta aos Coríntios, no capítulo 3, vejam a alusão que Paulo
faz aos mesmos elementos da transfiguração contidos em Mateus 17 e das
outras manifestações sinônimas, sinópticas, idênticas, em Marcos e em Lu-
cas. Há semelhança da presença de Moisés na transfiguração com o que Pau-
lo fala na carta aos Coríntios, quando diz que a carta que ele escrevia não era
como a de Moisés – que foi escrita em pedras –, mas escrevia na nova era do
Espírito de Deus, da ação do Evangelho no íntimo de todo ser humano que
deseja. Quando ele diz que agora é inscrita no coração de cada um, já começa
a fazer a comparação com Moisés. Afirma que isso é assim porque nós não
estamos diante do monte Sinai; estamos diante do Jesus transfigurado.
A visão do monte Sinai como está em Hebreus, repetindo o Êxodo de
Deuteronômio, foi uma visão assombrosa e aterradora: “Disseram a Moisés:

10. Conhecimento, experiência, prática.

190
O encontro com a Glória de Deus

Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não fale Deus conosco, para que não
morramos”.
E Moisés, quando desce do monte, coloca um véu sobre a face. Suposta-
mente, era para não ofender os sentidos visuais dos filhos de Israel, que viam
seu rosto resplandecente, fulgurante, iluminado.
Paulo, no entanto, diz que aquele véu que foi posto na face de Moisés
foi mantido não porque o seu rosto refulgisse, mas porque o fulgor do seu
rosto agora se desvanecia. Aquilo que um dia foi posto para não ofuscar os
sentidos dos outros, depois de um tempo passou a ser usado por Moisés para
que os outros não percebessem que a luz já não brilhava, já não estava, já
desvanecera. A purpurina da Lei acabara.
Então, Paulo faz essas comparações o tempo todo em II aos Coríntios 3,
especialmente nos versos 2 e 3:
Vós sois a nossa carta, escrita em nosso coração, co-
nhecida e lida por todos os homens, estando já ma-
nifestos como carta de Cristo, produzida pelo nosso
ministério, escrita não com tinta, mas pelo Espírito do
Deus vivente, não em tábuas de pedra, mas em tábuas
de carne, isto é, nos corações.

Percebem a comparação com Moisés o tempo todo? Vejam o que diz


ainda o mesmo texto até o verso 12:
E é por intermédio de Cristo que temos tal confiança
em Deus; não porque, nós mesmos, sejamos capazes
de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo
contrário, a nossa suficiência vem de Deus, o qual nos
habilitou para sermos ministros de uma nova aliança,
não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas
o espírito vivifica.
E se o ministério da morte (que era o das tábuas de Pe-
dra, de Moisés e da letra), gravado com letras em pedras,
se revestiu de glória (da Sua glória), a ponto de os filhos
de Israel não poderem fitar a face de Moisés, por causa
da glória do seu rosto, ainda que desvanecente, como
não será de maior glória o ministério do Espírito! Por-
que, se o ministério da condenação foi glória, em muito

191
O Caminho do discípulo

maior proporção será glorioso o ministério da justiça.


Porquanto, na verdade, o que, outrora, foi glorificado
(que era Moisés, a Lei), neste respeito, já não resplande-
ce (virou sombra, é vela posta diante do sol!), diante da
atual sobreexcelente glória (da transfiguração, do Jesus
glorificado, do Jesus ressuscitado, do Jesus assentado à
direita de Deus). Porque se o que se desvanecia teve sua
glória (que era a Lei, Moisés, o monte Sinai), muito
mais glória tem o que é permanente. Tendo, pois, tal
esperança, servimo-nos de muita ousadia no falar.

E Paulo está sendo de uma ousadia absurda no falar. Porque ele está di-
zendo que Moisés já era - com todas as letras. E aquela glória virou glorinha,
perto da Glória Excelsa! E a Glória de Moisés era desvanecente; essa aqui é
crescente. Moisés cobria o rosto; nós tiramos todo o véu da cara, e somos
chamados a enfiar a cara para dentro da glória de Deus.
“Tendo, pois, tal esperança, servimo-nos de muita ousadia no falar. E
não somos como Moisés, que punha véu sobre a face, para que os filhos de
Israel não atentassem para a terminação do que se desvanecia”. Depois de um
tempo, nem Moisés queria mostrar a desvanecência da sua própria glória, e
manteve o véu na face, embora ele cobrisse apenas o que já não era.
“Mas os sentidos deles se embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando
fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece (espiritualmente
falando, sobre a visão deles), não lhes sendo revelado que, em Cristo, é remo-
vido”. Em Cristo, todo véu é removido, é rasgado; começando pelo véu do
santuário, que foi rasgado em duas partes, de alto abaixo. É com a cara para
fora que andamos em Jesus, no Evangelho.
“Quando, porém, algum deles se convertem ao Senhor, o véu lhe é retira-
do. Ora, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liber-
dade”. Aí não há véu, aí somente vale o que é. O que não é não precisamos
nem esconder, porque é melhor apresentar o que, não sendo, seja verdade e
realidade, do que fazermos de conta acerca de qualquer coisa que não seja a
verdade do nosso ser.
Portanto, liberdade para abrir os olhos, liberdade para colocarmos a cara
para fora, liberdade para ser levados por Jesus a esse lugar onde se diz: “E ele
se transfigurou diante deles”. Sem medo e sem véu.
192
O encontro com a Glória de Deus

Moisés deixou todo mundo lá em baixo. Jesus não levou todos com ele,
mas levou três, que já estavam preparados para ver. E apresentou diante deles
aquilo que não apareceu a Moisés no monte Sinai.
No monte Sinai era clangor de trombeta, era fogo ardente, chamejante,
eram nuvens grossas, densas e escuras. Era pavor, tinha um som lancinante e
apavorante. E o povo lá em baixo, desesperado, dizendo: A gente vai morrer,
vira para lá, Deus!
Aqui, não. É o Pai. Jesus leva gente normal com ele. Sobe. E não disse
nada, simplesmente transfigurou-se diante deles. Aconteceu. Sem prepara-
ção, sem coisa alguma. Sem véu, sem nenhuma necessidade de o indivíduo
se preparar para ver a Glória de Deus.
Quando chega o dia, quando a hora chega ela simplesmente se manifesta
conforme o desígnio de Deus. No entanto, isso agora se tornou mais do que
uma experiência tópica e momentânea e de data marcada. Ela pode ter, e
terá, tantas caras quantas Deus desejar; assustando-nos.
Mas o que Paulo descreve não é um encontro tópico com a Glória de
Deus. A Glória de Deus é Cristo. Quando nos encontramos com Jesus,
encontramos com a Glória de Deus, assim como, no fim da narrativa da
transfiguração, desaparece tudo e ficando somente eles e Jesus. Essa é a
Glória de Deus.
Paulo nos introduz num processo gradual de transfiguração o que para
Pedro, Tiago e João foi uma experiência de data, de um dia, foi tópica, foi
espaço-temporal, foi geográfica, foi testemunhável. Foi tão chocantemente
palpável que Pedro queria fazer três tendas. De repente começou e de repente
acabou. E nenhum deles levou uma caixinha com um souvenir de transfigu-
ração para abrir de vez em quando e se inspirar. Guardaram na memória e no
coração, como Pedro guardou.
Em sua segunda epístola, Paulo faz alusão ao dia e hora no chamado
monte da transfiguração, quando diz: “... pois ele recebeu, da parte de Deus
Pai, honra e glória, quando pela Glória Excelsa lhe foi enviada a seguinte
voz: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”. Então, esta é uma
experiência tópica e arquetípica.
A que Paulo descreve é a transfiguração nossa de cada dia, é o caminho nosso
na direção do monte Hermon todos os dias, contemplando Jesus. Nós não so-
mos pessoas do monte Sinai. Como diz o livro de Hebreus, nós temos chegado
193
O Caminho do discípulo

ao monte de Sião. Nós temos chegado à incontável assembleia dos santos e dos
anjos e dos primogênitos arrolados nos céus, à igreja dos primogênitos. Nós
temos chegado é a essa introdução que está toda presente na transfiguração.
Pedro Tiago e João entram nessa assembleia arquetípica dos primogênitos
ressuscitados, das igrejas dos santos arrolados nos céus porque lá estão Jesus,
Moisés, Elias, Pedro, Tiago e João, representantes arquetípicos de dimensões
variadas, de momentos distintos da história da consciência humana e da
percepção de Deus no mundo. E é acerca disso que o escritor de Hebreus
está aludindo quando diz: “Nós temos chegado ao Monte de Sião”. Ele não
estava falando do monte Sião em Jerusalém, mas do monte Sião espiritual,
da assembleia dos santos, dos anjos glorificados, da igreja dos primogênitos
arrolados nos céus. É desse ambiente dentro do qual nós estamos todos sen-
do introduzidos.
E a transfiguração é arquetípica em relação a mostrar os desenhos básicos
dessa catedral invisível e extraordinária dentro da qual nós todos estamos
sendo colocados, postos, fazendo parte dela.
“E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando como por espelho
a Glória do Senhor”. E não é esse espelho modernoso do século 21, que
nos mostra melhor do que olhando com o próprio olho para nós mesmos.
Espelho, na Antiguidade, era um bronze polido, que dava − como se diz lá
no Norte – “malmente” uma impressão; ajeita o cabelo para lá, ajeita para
cá, mas longe de nitidez. Era aquele espelho da Antiguidade. Que ninguém
se engane pensando que era espelho moderno. Vemos tudo em parte, ainda.
Quanto mais crescemos em amor, mais vamos chegando à plenitude, ao que
é perfeito. Mas enquanto o amor não for perfeito em nós, seremos em parte.
Quanto menos amor, mais partidos e diminuídos estaremos. Quanto mais
amor, mais completos estaremos. Mas amor absoluto somente no dia em que
nos tornarmos como Jesus. Antes desse dia chegar, nós o contemplamos.
Levou-os Jesus a um alto monte e transfigurou-se diante deles. A trans-
figuração está posta diante de nós. Todo dia. E nós, agora com o rosto des-
vendado, contemplando, como por espelho – ainda não vemos com nitidez,
mas temos vislumbres da Glória do Senhor –, vemos o que nos está reservado
nele. Embora “olhos nunca tenham visto, ouvidos nunca tenham ouvido,
nunca tenha subido ao coração de homem algum o que Deus tem reservado
para aqueles que o amam, Deus no-lo tem revelado pelo Espírito.”
194
O encontro com a Glória de Deus

De modo que não vimos a plenitude de nada, mas todo dia podemos
ser introduzidos na parcialidade de uma percepção nova da Glória, que nos
ilumina, que nos incandesce, que nos transforma.
À medida que vamos fazendo o exercício da contemplação mais profun-
da, vamos metendo a cara desassombradamente para dentro deste Santo dos
Santos e vendo o rosto do Senhor; quanto mais cremos em Jesus dizendo:
“Quem me vê a mim, vê o Pai”; quanto mais mergulhamos no Evangelho e
na Palavra, mais seremos transformados à semelhança do Senhor.
E quanto mais transformados à semelhança dele, mais o espelho ganha
nitidez para nós. E quanto mais nitidez, mais nos assemelhamos a ele, por-
que é pela percepção de quem ele é que iremos nos tornando à sua seme-
lhança. Daí a insistência de se crescer na Graça e no conhecimento de Jesus.
Como Paulo aconselha: Que nos dilatemos, para que compreendamos qual
é a altura, a profundidade, a largura, a extensão do amor de Cristo. Então,
quanto mais vamos entrando, mais o processo de transformação de glória em
glória, na própria imagem do Senhor, vai acontecendo.
O chamado é para crescermos nessa contemplação que nos permite ver
o espelho mais nítido, e a glória do Senhor vai nos transformando todo dia.
E é obra dele, é obra do Espírito em nós. Esse é o nosso chamado, a nossa
transfiguração cotidiana.
Compare com o texto de Mateus 17, um cenário arquetípico. Temos
Moisés e Elias; temos Jesus, temos o Pai; temos Glória – Shekinah –, a nu-
vem luminosa; temos a Palavra vinda do céu: “Este é o meu Filho amado, em
quem me comprazo”. Temos uma maquete da comunidade dos discípulos;
temos, enfim, essas coisas presentes que são manifestações completamen-
te arquetípicas daquilo que constitui a nossa consciência em fé: nós somos
gente do Pai, somos gente do Filho, somos gente do Espírito Santo. A nossa
consciência de pecado decorre da Lei de Moisés, que avultou o nosso pecado;
a nossa esperança de salvação decorre dos profetas, que falaram daquele que
haveria de vir; e a nossa salvação se corporifica, se encarna, em Jesus, que
completa todas as coisas. Então, esses elementos constituem a nossa própria
percepção de quem nós somos em Deus, no mundo.
Em Jesus tudo ganha sua completude e, mais que isso, a partir daí, temos
uma descrição maravilhosa do significado da espiritualidade que o discípulo
é chamado a praticar no mundo.
195
O Caminho do discípulo

Por exemplo, qual é o significado desse corpo resplandecente? Por exem-


plo, nos dias de Jesus, para os judeus, era blasfêmia total a Glória de Deus ter
tomado conta de um homem. Para os gregos, que determinavam boa parte
do pensamento filosófico daqueles dias, era loucura. E entre os gregos filo-
sóficos, o grupo que mais perturbou a fé no Evangelho foram os gnósticos,
para quem era algo extremamente impensável imaginar que aquele corpo de
carne e de sangue, matéria, pudesse ficar pervadido da Glória de Deus e ser a
própria expressão da Glória de Deus. Porque, no gnosticismo, a matéria era
sempre má, e apenas o espírito, bom.
Roupa. Roupa é artesanato, é cultura. Roupa é arte, roupa é produção
humana. Essa roupa iluminada, glorificada, diz o quê, para nós, sobre a Gra-
ça de Deus, sobre a produção humana, a cultura humana? Eu não sei se
vocês estão me percebendo. O que essa roupa glorificada diz? Ela foi feita
por alguém, o tecido veio de algum lugar, foi comprado em algum canto, foi
tecido de algum modo, ainda que se dissesse que a de Jesus que era muito es-
pecial, tecida de alto abaixo, sem costura, sem emenda. Mas não era feita de
um material transgaláctico. Veio da terra, ou da ovelha, veio de algum lugar;
mãos humanas a teceram, uma arte, um engenho. Ou você está pensando
que veio o Espírito Santo sobre a costureira e ela fez tudo para Jesus com uma
linha que o anjo Gabriel trouxe?! O que isso nos diz?
Eu fico ouvindo essa conversinha de: “Eu posso ouvir música que não
seja gospel”? Isso me faz pensar em: “Todas as coisas me são lícitas, nem
todas me convêm”. Aquela roupa me diz que todas as coisas absolutamente
importantes, convenientes da produção humana, da cultura humana, podem
ficar cheias da luz da Glória de Deus. E quais são as implicações disso para a
espiritualidade do discípulo?
Mais do que isso, vemos a nuvem que vem e se ilumina. Nuvem é água,
em outro estado; é H2O, em outro estado. É natureza, é ambiente. É algo
que vemos no Velho Testamento guiando o caminho do povo de Israel du-
rante o dia, é manifestação da Presença de Deus sobre Maria. “Uma nuvem
do Altíssimo te envolverá e tu darás à luz um filho”. Mas é uma nuvem,
é natureza. É clima glorificado. Fala a mesma coisa que aqueles peixes –
aquelas tilápias, provavelmente − comidos por Jesus depois que ressuscitou
de entre os mortos. Ele não somente já tinha feito um braseiro e coloca-
do uns peixes sobre ele, mas também pedira que os discípulos trouxessem
196
O encontro com a Glória de Deus

alguns dos peixes que tinham acabado de apanhar; e eles colocaram, os


peixes assaram e eles comeram. E Lucas repete, significativamente, no livro
de Atos dos Apóstolos, que eles comeram e beberam com Jesus depois que
ele ressuscitou de entre os mortos.
Para onde foram aquelas tilápias? No gnosticismo, elas tinham de ser
tilápias espirituais, o corpo de Jesus tinha de ser espiritual, tinha de ser fan-
tasmagórico. Agora, sair do mar da Galileia e entrar pela boca da carne que se
tornou incorruptível e glorificada, serem comidos e entrarem em Glória?! O
que isso diz para um discípulo? Para um cara que fica perguntando: Eu bebo
essa cerveja? Eu não bebo essa cerveja? Não sei, meu irmão, se você beber
como gente bebe, tudo bem; se beber como um idiota bebe, então o idiota
é você; cambaleie e caia e se arrebente todo. Se não tiver moderação, tudo
será um problema para você. Mas se andar na medida certa, se a sua túnica
não for uma tanguinha, para ver se choca Moisés e Elias na transfiguração,
vai transfigurar. Se a sua intenção não é sair por aí agredindo o mundo, mas
andando com boa consciência, tudo em você será luminoso, toda cara sua
será a glória de Deus, toda semente será milagre, toda chuva será epifania,
tudo será Glória de Deus. E esses aspectos incidem sobre todas as dimensões
da nossa vida, da nossa caminhada.
E todos nós, na nossa transfiguração existencial, com o rosto desvendado,
contemplando a glória do Senhor como por espelho, somos transformados
dia a dia, de glória em glória, na imagem do Senhor, pelo Espírito. É a mes-
ma coisa. Uma é a viagem narrativa do Evangelho, descritiva, histórica. A
outra é uma viagem existencial – II Coríntios, capítulo 3 – falando daquele
fenômeno que se manifestou historicamente, com Jesus, agora como um
fenômeno existencial para todos nós.
No final, quando a fé cresce, cresce e cresce, fica somente Jesus. E é aí que
nós todos vamos chegar, com a Graça de Deus.
Então, estou indo de introdução em introdução, porque simplesmente
não dá para entrar direto nos tópicos do que eu pretendo tratar sem essas
introduções. Sem elas, ficamos simplesmente sem as amarrações que vão nos
ajudar a compreender, a perceber e a nos posicionar no mundo; sem neuro-
ses, sem paranoia, numa confiança de caminho com Jesus que constrói gente
glorificada e não gente endoidecida, enlouquecida, desconstruída, fragmen-
tada, adoecida, como em geral se vê; porque o que muitos seguem não é
197
O Caminho do discípulo

Jesus, o que se pratica não é Evangelho, o que se anuncia não é Palavra de


Deus. O resultado, portanto, não sendo um convite que nos leve até a glória
de Jesus, será um convite que nos levará para o pé do monte Sinai.
E no pé do Monte Sinai somente existe pânico, medo, culpa, angústia,
terror, desespero, e um deus apavorante, que é o que em geral povoa a ima-
ginação, a consciência e a percepção dos cristãos, que até hoje continuam
com um véu de Moisés na face. Não conseguem tirar essa coisa de cima de
si, para iniciarem o processo da viagem para o monte Sião, para a assem-
bleia dos santos, para a igreja dos primogênitos arrolados no céu, para esse
lugar pleno, transcendente de glória, para essa penetração do ser no Reino
de Deus, como consciência que vai transformando esse ser todo dia, se não
estancar o processo.
A transfiguração descrita em Mateus 17 é uma narrativa de um dia,
uma noite. A nossa é a trajetória da nossa existência, de glória em glória,
até nos tornarmos semelhantes a ele, no dia em que, em plenitude, o vir-
mos como ele é.
Em nome de Jesus.

Para refletir
1. Qual é a relação da transfiguração cotidiana com o negar-se a si mesmo, com o
tomar a cruz ?
2. Quando é que o discípulo se encontra com a Glória de Deus?
3. Como todas as coisas da produção humana podem ficar cheias da luz da Glória
de Deus?
4. O que sobra após a transfiguração de acordo com o relato de Mateus?
5. Como se aplica a transfiguração descrita por Paulo – “a transfiguração de
cada dia”?

198
15. A consciência do que é Reino de
Deus e as três tendas

Não se mede, obviamente, coisa alguma por presença em lugar algum. O


que se está dizendo desde o início é que o caminho do discípulo é para quem
quer. “Se alguém quer” é o que Jesus inicia dizendo. E se a pessoa não quiser,
não há meios de que isso se instale nela. Ela pode ficar aprisionada, virar um
bonsai de igreja, pode ser amestrada, domesticada, confinada aos ambientes
de uma moral estreita, pode se jactar de alguma ética que ela chame de supe-
rior, pode qualquer coisa, mas dentro dela não há um discípulo.
Um discípulo é alguém em quem se instalaram coisas mais profundas,
além de exterioridades. É alguém em quem se instalou uma consciência que,
simplesmente, faz o indivíduo tomar aquela decisão radical que, sem o amor
de Deus como pulsão, não é possível.
Estamos falando sobre o caminho do discípulo. A viagem é longa, eu es-
tou trabalhando em cima de todas as pressuposições que já foram afirmadas
e repetidas.
O primeiro fundamento que já vimos é marcado pela confissão: Tu és o
Cristo, o Filho do Deus vivo. Com milhões de implicações.
O segundo é definido pela decisão de tomar a cruz e seguir.
E o terceiro fundamento já vimos que implica abraçar a transcendência
do chamado. Foi quando entramos na transfiguração.
O texto da transfiguração, em Mateus 17, nos introduz ao significado do
que seja a verdadeira consciência de espiritualidade que um discípulo deve
ter e possuir. Eu descrevi as implicações, o significado, os tópicos do que
seriam as implicações de: “e o seu rosto ficou iluminado como o sol”, “suas
vestes mais brancas do que a luz”, e “a nuvem luminosa”, “Moisés e Elias”.
Tudo isso faz parte da descrição de uma espiritualidade histórica, porque
inclui Moisés, Elias, Jesus, inclui os discípulos. Se eu fosse dispensacionalis-
ta, eu diria: inclui a Lei, pega os profetas, o Salvador, a igreja. Mas eu não
gosto dessas descrições, fica tudo muito enquadradinho. A minha missão
é desenquadrar. Não é dispensação, é História: Moisés, Elias, Jesus. Pedro,
Tiago e João, ou seja, eu. Em Pedro, Tiago e João estou eu, como parte dessa
199
O Caminho do discípulo

consciência presente de seres humanos que, na História, ganharam o privi-


légio de conhecer e confessar o nome do Messias, que está designado, e que
é Jesus, o Cristo, ressuscitado de entre os mortos. Estou eu, aqui. Isso, junto
com aqueles elementos naturais a que me referi.Quer dizer, homens simples
são introduzidos, sem nenhuma preparação, à realidade da glória de Deus.
Jesus, ao se manifestar − o seu rosto brilha como o sol, suas vestes ficam
glorificadas −, traz imensas implicações filosóficas a espiritualidade. Veremos
isso a partir de coisas pequenas até chegarmos às grandes.
No meio cristão, quase sempre o que seja extremamente belo é tentador. A
fé cristã – quando eu digo fé cristã, é a fé dos homens, a fé desenvolvida no pro-
cesso histórico, não o Evangelho – tem um problema enorme com o elemento
estético. E aqui está Deus com a cara de fora, absolutamente iluminado. Um
problema enorme com vestimentas. E aqui está Deus com as suas vestimentas.
O que é absolutamente humano, sendo transcendido e glorificado.
E eu disse ainda que se ele estivesse com moedas no bolso, se ali um
bolso houvesse, tudo estaria glorificado. Ou seja, existe uma manifestação
completamente holística, integral, de espiritualidade, que santifica todos os
elementos da vida. Na transfiguração, o que se está dizendo é o que Paulo
veio a discernir e a afirmar em I Coríntios 3:22, 23: “Porque tudo é vosso,
seja a vida, seja a morte, sejam as coisas presentes, sejam as coisas por vir,
tudo é vosso e vós de Cristo, e Cristo de Deus.”
Quando Jesus ressuscitou de entre os mortos e comeu e bebeu com os
seus discípulos e depois atravessou paredes, para onde foram as tilápias co-
midas? Para onde foram os vinhos bebidos? Ganharam o mesmo destino das
roupas dele na transfiguração, entraram em glória. Vejam como tudo fica
maior. Aí, de fato, se entende que todas as coisas são puras para os puros.
Todas as roupas me são lícitas, nem todas me convêm. Todas as comidas me
são lícitas, nem todas, necessariamente, me farão bem. Mas todas as coisas
são santificadas pela ação de Graças.
Então, o que temos aqui, na realidade, é a manifestação de uma espiritu-
alidade integral. A roupa é roupa, aqui neste texto, pois trata-se da produção
da cultura humana, que é representação do trabalho humano, do artesanato,
da manufatura. Aquilo que é labor, que é criatividade, que é inventividade,
que é talento, que é dom, que é exercido com amor, é glorificado simbolica-
mente, arquetipicamente, nessas vestes de Jesus que se transfiguram!
200
A consciência do que é Reino de Deus e as três tendas

Essa nuvem luminosa, que vem e envolve a todos, mostra o destino glo-
rioso de toda a criação, que como nós – diz Paulo, em Romanos 8 – geme
esperando igualmente o dia da redenção!
Então, nem só de Moisés e de Elias vive o homem. Moisés e Elias são fi-
guras de referência na revelação; um, trazendo a Lei; o outro, como ícone dos
profetas, os dois fazem parte da minha consciência espiritual, mas, no final da
narrativa, quando cessa o elemento cênico inteiro da transfiguração, em Ma-
teus 17, fica somente Jesus. No fim, o alvo absoluto de toda espiritualidade é
nos fazer como Jesus, é nos tornar um Jesus. O que Jesus quis dizer, quando
disse: “Eu neles, ó Pai, e Tu em mim e eles em nós”? Ele propôs essa fusão.
De modo que o nosso destino é a cristificação total. Hoje você está vendo
a minha absoluta relatividade, um dia você me verá Cristo. E um dia cada
um será Cristo, porque o chamado dele é para que nos transformemos de
glória em glória, com a cara para fora, contemplando a Jesus, sem medo.
Aformoseando-nos no espírito, na alma, no ser, conforme ele, até sermos
absorvidos por ele, nos tornando exatamente como ele é; porque haveremos
de vê-lo como ele é. Essa é a promessa do Evangelho, essa é a minha, é a sua
vocação. É a de todos nós. Mas não é uma vocação religiosa, nem é uma
espiritualidade religiosa.
Eles estão num monte: o Hermon. Quando o visito, sempre que vou a Is-
rael num período de frio, como em Janeiro, gosto de ir lá para cima mesmo,
para os teleféricos, onde tem esqui na neve. Ou seja, esse lugar é na Terra.
É tão real no tempo-espaço e na geografia que faz fronteira com o Líbano e
com a Síria. E tem 2.300 metros de altitude. Qualquer geografia do mundo,
nessa consciência de espiritualidade de Jesus, onde ele está ensinando aos
seus discípulos, se torna uma geografia santificada. Não existem lugares que
sejam mais santos porque tenham se tornado diferentes de outros lugares.
Todos os lugares são lugares santos. Ao Senhor pertence a Terra e toda a sua
plenitude, o mundo e tudo o que nele há.
A samaritana já tinha ouvido a resposta a respeito disso quando pergun-
tou a Jesus onde era o lugar que se deve adorar? “Mulher, em verdade eu te
digo que no monte Gerezim, aqui em Samaria – que é o monte dos montes,
santificado para vocês −, nem no monte Sião, em Jerusalém é o lugar onde
se deve adorar. Deus é espírito, e importa que os Seus adoradores O adorem
em espírito e em verdade”.
201
O Caminho do discípulo

Voltando, no entanto, ao que eu dizia, nem só de Moisés e Elias, nem so-


mente de informação histórica da revelação vive a nossa alma. Ela também vive
de pão, de roupa, de nuvem, de natureza, de chuva, ela vive dos elementos. E
o que Jesus está dizendo, implicitamente, quando suas vestes se transfiguram, é
que a produção das mãos humanas, da cultura humana, da inteligência humana,
do talento humano, do amor humano, está destinada à glória, à transfiguração.
Não apenas nós, mas também o que de nós procede em amor, como diz o Apo-
calipse, quando afirma que as folhas da árvore da vida são para cura dos povos!
Depois que o inferno for extinto e tudo jogado no lago de fogo, se diz que
os povos da Terra sobem à Nova Jerusalém, que as folhas da árvore da vida
são para a cura dos povos. E mais do que isso; se diz que as nações trarão a
ele, ao Cordeiro, à luz eterna, à sua glória, as suas produções. Ou seja, a veste
vai continuar sendo transfigurada para sempre.
Quando isso entra na mente, quando sabemos que, da produção humana
à natureza, tudo está destinado à glória, isso muda a nossa consciência, da
dimensão ecológica à dimensão espiritual mais subjetiva. Colocar o pé na
natureza é ver glória na natureza, como diz o Salmo 29 ao descrever aquela
tempestade maravilhosa, extraordinária, maviosa; sim, porque parece uma
orquestra sinfônica a descrição do Salmo 29 sobre aquela tempestade. Des-
creve os elementos, os relâmpagos, os trovões, o dilúvio, o ribombar de Deus,
as corças dando cria nas covas, os cedros sendo rachados por raios no Líbano,
as folhas sendo lavadas, as árvores desfolhadas e renovadas, os desertos tre-
mendo, a natureza sendo sacudida. O Salmo termina: “E nesse templo, tudo
diz: Glória!” Nesse grande templo, tudo diz: Glória!
Ou seja, de um lado, essa transfiguração como descrição da espiritualida-
de do discípulo nos coloca um pé no chão do monte Hermon e nos faz ver a
glorificação da natureza – nuvem luminosa e que o destino de tudo é Glória.
Ao mesmo tempo em que nos diz que a nossa própria produção feita em
amor está destinada à glória, assim como estamos destinados à glória.
Quando sabemos disso, o mundo ganha outra percepção para nós. Aca-
ba o secular e o sagrado, acaba esse besteirol de música gospel, espiritual
e música sacra. Secular quer dizer uma coisa que dura um século. Unica-
mente isso! É somente no meio evangélico que tem essa história de secular.
Se eu chegar numa universidade e disser “isso aqui é secular”, alguém vai
dizer: Não, tem somente dez anos, não tem cem anos! No meio evangélico
202
A consciência do que é Reino de Deus e as três tendas

é que secular virou outra coisa. Em Jesus não existe sacro e secular, tudo é
sacro, tudo é secular. Tudo depende de nós. O homem não foi feito para
o sábado, o sábado é que foi feito para o homem; o homem não foi feito
para o templo, o templo é que foi feito para o homem. Por isso, na ordem
de Jesus, tudo está invertido. Na ordem de Jesus, todas as coisas são puras
para os puros. É por isso que ele comete barbaridades cerimoniais, é um
transgressor cerimonial da lei judaica, e não dá a menor bola.
Ele atravessa e vai estar com porqueiros em Gadara, na terra dos pagãos,
no outro lado do mar da Galileia, onde expulsa uma legião de demônios do
homem que veio a ficar apelidado de o gadareno. Coitado, ninguém sabe o
nome dele, virou o gadareno. E gadareno virou símbolo de tudo que é desca-
cetado – não é nem de tudo que foi curado. Ficou assim o gadareno.
Mas então, ele vai à terra dos gadarenos e se junta com porqueiros. Judeu
não chegava perto de porqueiro, nem de porcos. Jesus se encontra com um
homem que vive no cemitério, que desenterra covas, que faz qualquer malu-
quice, se corta, se lanceta, se fere todo. Depois expulsa o demônio do homem
e não o manda fazer rito de purificação. Pega nele, se assenta com ele, conver-
sa com o homem; entra naquela história inteira. Os porcos se aporcalharam
todos, morreram afogados, lá no mar da Galileia. Os porqueiros entraram
em crise, pediram para Jesus ir embora. Jesus foi.
Ao chegar do outro lado, o chefe da sinagoga − Jairo −, o responsável pe-
los ritos, pelos cerimoniais, por tudo, conforme diz o texto de Marcos 5, vem
e pede para Jesus ir até sua casa porque sua filha está morrendo.
Se Jesus fosse um homem da Lei ele diria: Olha, vou na semana que vem,
porque eu cometi uma gafe cerimonial. O Pai já me perdoou, ele me enten-
deu, foi para o bem que eu fui a Gadara, pisei em um cemitério, toquei um
homem imundo e ainda convivi com porqueiros e com a porcaria toda. Mas
na semana que vem eu vou à sua casa, Jairo, porque eu vou ter de ficar uma
semana nos banhos purificatórios, vou até me mudar pra Qumran, lá com os
essênios, para me lavar, me lavar, me lavar... E vou salvar a sua filha, depois.
Mas Jesus não faz isso. Esse tipo de transgressão ele comete o tempo todo.
Ele atola a mão em leprosos. “Senhor, se tu quiseres, podes purificar-me”. E
Jesus não disse: “Quero, fica limpo”, de longe. O texto de Lucas diz “... e
Jesus estendendo a mão...”. Que dizer, ele patolou a mão na chaga e não foi
tomar banho nenhum.
203
O Caminho do discípulo

Quando lemos a transfiguração, esse é o espírito que pervade esse cenário.


Em tudo, em todas as coisas, o tempo todo. E as implicações disso recaem
sobre uma dilatação enorme da nossa percepção da vida. Abre, expande.
E todas as coisas são chamadas para dentro desse novo olhar e dessa nova
percepção.
Essa consciência, essa espiritualidade do discípulo, que é holística, não
cabe nas filosofias e não cabia nas filosofias dos dias de Jesus, como não viria
a caber nas filosofias dos dias de Paulo. Por isso, os que se tornaram cristãos
gnósticos já no fim do primeiro século, início do segundo, e bastante no ter-
ceiro século, tiveram que desenvolver um Jesus que não fosse materialmente
encarnado; era uma aparência, uma imagem.
Por quê? Porque no gnosticismo a matéria é sempre má, o espírito é sem-
pre bom. Nunca uma cara de carne e de sangue, um corpo humano, mortal,
iria experimentar glória daquele jeito. Não na carne. No máximo, as luzes
do gnosticismo iluminavam o espírito; mas a carne carregava a miséria. Em
Jesus, a carne carrega glória, o rosto brilha! Porque o rosto brilhante aponta
o destino da glória do corpo ressuscitado!
O que eu estou querendo dizer é que essa espiritualidade é centrada na
consciência do Reino de Deus. Jesus disse, no contexto que antecedeu a en-
trada no texto da transfiguração: “Alguns aqui há que não passarão pela mor-
te até que vejam vir o Reino de Deus na sua glória”. E levou a Pedro, Tiago e
João para essa experiência selecionada. Ou seja, ele concentrou o significado
dessa espiritualidade na nossa percepção do que seja Reino de Deus.
O que é Reino de Deus? Reino de Deus, outra vez, para a mentalidade
religiosa, cristã, histórica, condicionada, pavlovianamente11 domesticada,
significa aquilo que é concernente aos interesses de Deus; portanto, aquilo
que é eclesiástico, de igreja, no pior sentido do termo.
O que é Reino de Deus? Para a igreja, Reino de Deus é ela. Ela é o Reino
de Deus. Nós temos 1.700 anos de história de cristianismo, doutrinando a
todo mundo que a igreja e o Reino de Deus são a mesma coisa, e, emocio-
nalmente, que igreja e Deus são a mesma coisa. Emocionalmente, porque
“fora da igreja não há salvação”. Nem da igreja católica, nem da evangélica.
11. Pavlov – cientista russo, viveu no século 19, desenvolveu a teoria do papel do
condicionamento na psicologia do comportamento.

204
A consciência do que é Reino de Deus e as três tendas

Experimente ficar sem frequentar. Na igreja católica, pelo menos basta uma
batizada e já resolve; e o indivíduo desaparece para o resto da vida. Na evan-
gélica, fora da igreja não há salvação mesmo! E tem de haver confirmação
três, quatro vezes por semana, com dízimo! Senão, Deus não acredita. Esse
é o “reino de Deus”.
Todas as minhas energias são contra esse “reino de Deus”, que é império
de trevas, de mesquinharia, de apequenamento. É a esse “reino de Deus”, é
acerca dos filhos desse suposto reino de Deus que Jesus diz: “Em verdade vos
digo que publicanos e meretrizes vos precedem no Reino de Deus”. “Naque-
le dia, muitos virão do Norte, do Sul, do Leste, do Oeste e tomarão lugar à
mesa com Abraão, Isaque e Jacó, enquanto os filhos do Reino estarão fora”.
Então, a espiritualidade do discípulo é centrada na consciência do Reino.
E Jesus quis introduzi-los pela primeira vez nessa perspectiva cênica. Imagi-
nem o que é estar ali! Eles sobem... Não sabiam de nada, três bobos, subindo
atrás de Jesus, aquelas pedras de calcário, lisas, brancas, e eles subindo. De
repente, Jesus diz: Aqui está bom; vamos orar? Ele não pediu para darem
as mãos, não disse “amém, irmãos”? Jesus somente orava. Quem quisesse
ficar do lado dele, ficava; quem não quisesse, andava. Aí, ele se afastou para
orar, e Pedro, Tiago e João ficaram por ali. Lucas diz que chegou a dar sono.
Chegaram a dormir. De repente, abriram os olhos, olharam para Jesus, estava
aquele sol ao meio dia! Lucas diz que eles abriram bem os olhos para ficarem
acordados, para verem o que era aquilo! E as vestes luminosas! E aquelas
figuras: Moisés e Elias!
Jesus, Moisés e Elias! E os três pescadores, ex-sócios do mesmo barco,
olhando Moisés, Jesus e Elias conversando – Lucas diz – sobre a cruz! A con-
versa de Moisés e Elias com Jesus era a cruz. Onde a Lei seria cumprida e as
profecias se realizariam e se consumariam; onde o mundo iria acabar, como
acabou − na cruz. Nós vivemos num mundo que já acabou. Ele já era, está
julgado, está definido. Nós vivemos da energia inercial. Mas o príncipe deste
mundo já foi condenado. Essa é a conversa de Moisés e Elias com Jesus: sobre
sua partida, que ele estava para cumprir em glória, em Jerusalém.
Então, a conversa da Escritura é Cristo, e a conversa da Escritura
é a cruz.
A conversa de Elias e a conversa de Moisés são a cruz. Está consumado
mesmo!
205
O Caminho do discípulo

Estamos em Moisés e em Elias abdicando de tudo e colocando tudo dian-


te de Jesus. E esta é a centralidade da espiritualidade do discípulo. A Escritu-
ra não é o centro da minha espiritualidade. É Jesus.
Vemos não dois grandes autores, mas dois grandes ícones de produ-
ções, tanto da Lei quanto da profecia, conversando com Jesus sobre a
consumação de tudo − a cruz. O centro do Reino de Deus é a cruz de
Jesus. E o Reino de Deus é a soberania de Deus sobre tudo quanto exista!
Não tem a ver com geografia, religião, grupo humano, étnico; não tem a
ver nem apenas com os humanos. Tem a ver com todas as coisas existentes.
Vai do fenômeno da nuvem luminosa, que aparece aqui como natureza
glorificada ou utilizada na glória de Deus, aos escaninhos mais profundos
da minha própria interioridade.
E é isto que está sendo ensinado. E quando ganhamos essa visão, a viagem
da vida é uma viagem que passa a ser, toda ela, feita no espírito, na consciên-
cia de que todas as coisas são puras para os puros, não para os impuros. Se o
coração andar puro, todas as coisas puras serão. E aí, não há distinção, tudo
faz parte do culto a Deus: nuvem, água, natureza, meu sono, meu descanso,
meu acordar, a leitura da Palavra, o seu aprendizado, a História. Todas as
coisas compõem essa percepção que vamos ganhando todos os dias e que
são os elementos que constituem essas presenças representativas e simbólicas
aqui, e que montam essa catedral de consciência espiritual que tem de nos
habitar para que andemos no caminho do discípulo alimentados pela glória
de Deus, pela transcendência.
Do contrário, não existe pulsão de discipulado feliz sem que essa trans-
cendência seja instilada, infiltrada e instalada dentro de nós. Sem que isso se
manifeste, o que sobra é a tendência humana.
Veja como a tentação humana está presente mesmo no meio desse ho-
lograma de glória, dessa abóbada de glória que estava em volta deles. Pedro
chega e diz: “Senhor, façamos aqui três tendas, uma será para ti, outra para
Moisés, outra para Elias”. A tendência humana é querer confinar Deus, sem-
pre. É querer colocar a glória no formol, é tentar colocá-la numa cristaleira;
é desejar contingenciá-la por um lugar e uma geografia; é tentar transferi-la
para fora de nós, em vez de existir dentro de nós.
Inconscientemente, a maioria de nós quer glória de Deus em algum lugar,
não dentro de nós. Glória de Deus em nós não aparece. Glória de Deus em
206
A consciência do que é Reino de Deus e as três tendas

nós não é purpurina e nem espetáculo. Glória de Deus em nós somente se


manifesta como amor, misericórdia, compaixão, verdade, justiça, longanimi-
dade, alegria, paz, reconciliação, perdão.
É por isso que, mesmo dizendo que queremos Deus e que amamos a
Deus, sempre procuramos construir a sua glória em tendas fora de nós. É
“um templo para a glória de Deus...” “Ah, eu comprei essa casa, consagrei-a.
Irmãos, venham para uma reunião de oração de consagração da nossa casa
ao Senhor. Ah, esta casa é para a glória de Deus”. São os espetaculozinhos
patéticos que eu sou forçado a ver a minha vida inteira. Tudo: “Essa mesa,
Pastor, eu trouxe de Jerusalém; está consagrada para a glória de Deus”. “Esse
óleo aqui foi ungido pelo pastor Fulano de Tal, à beira do Jordão. É um óleo
muito especial para mim; está cheio da glória de Deus”. Essa glória de Deus
está sempre em algum outro lugar. É uma torre de cristal na catedral de cris-
tal. É o templo de Salomão! É o templo de Herodes, o Grande! É a glória de
Deus. É o templo maior! É a glória de Deus!
É tudo assim. É em algum lugar, a glória de Deus. “Irmãos, vamos fazer
isto para a glória de Deus”. É sempre alguma coisa para ser feita para a glória
de Deus. A glória de Deus nunca é. Ela está sempre para ser confeccionada.
Por nós. Sempre fora de nós, sempre três tendas.
E é de três tendas que se tem vivido. O evangelista Lucas diz: “Não
sabendo, porém, o que dizia”. E Marcos: “Pois não sabiam o que dizer,
por estarem eles aterrados”. Então, Deus tem de interromper a história
de Pedro. Quando vem com essa história de vamos fazer três tendas é que
uma nuvem luminosa os envolve e dela procede uma voz que diz: “Este
é o meu Filho amado, em quem me comprazo; a ele ouvi”. E eles caem
por terra! Onde deveriam ter permanecido para sempre. Mas o Senhor
os levantou, dizendo: Não tenham medo, fiquem de pé. Quando eles se
ergueram, viram somente a Jesus.
A vocação para se querer que o Reino de Deus seja algo em algum lugar,
menos em nós, é algo que está presente o tempo todo. A vocação humana
para que o Reino de Deus não somente esteja presente em algum lugar que
não em nós, mas esteja presente como obras que façamos fora de nós, está
presente o tempo todo. O Reino de Deus como um poder que vimos e dis-
cernimos, e que gostaríamos de manipular, de confinar, de construir uma
tenda, de cobrir, de dizer é meu, está presente o tempo todo.
207
O Caminho do discípulo

A tendência é delimitar até onde o Reino de Deus estará presente em


nós, em todos nós; é assim que tem sido. A história do cristianismo é a
história da transfiguração que não deu certo. A história do cristianismo é
uma transfiguração que aceitou as tendas. A loucura de Pedro era a propo-
situra do primeiro projeto de discipulado religioso. Fazer três tendas era
começar uma religião, era estabelecer um Vaticano, era criar um trono,
era ter uma geografia central, era a institucionalização da glória, eram as
institutas, não de Calvino, mas da glória conforme Pedro. As três tendas
representam toda essa manifestação humana de tentativa de administrar
Deus. E Pedro não se curou ali.
Lemos em Atos 10 que ele é enviado à casa do centurião Cornélio, em
Cesareia Marítima. Porque embora o homem fosse um centurião romano,
era piedoso, buscava a Deus. Deus a ele se revelara através de um anjo.
Cornélio não teve nenhuma hesitação em mandar chamar Pedro, lá em
Jope. Mas Pedro precisou de visão, de revelação, de lençol descendo três
vezes e ele dizendo: De modo nenhum, Senhor, eu não como isso; vira esse
cardápio para lá. Era aquele bando de lençol com tudo o que judeu não
comia, com tudo o que não era kosher: linguiça, joelho de porco, aquela
coisa toda, baixando. Judeu baba por aquilo. Baba. Quando eu chego a Je-
rusalém, amigos judeus sempre dão um jeito de me levar para algum lugar
onde se comete uma transgressão dessas. Transgressão para eles, não para
mim. É uma maravilha, eu já nasci na transgressão, sou um gentio, um
pagão convertido ao Evangelho, sou um vira lata na Terra, Aleluia! Como
de tudo! Não tem problema.
Então, estamos diante de Pedro. De modo nenhum, Senhor, não como
isso, nunca entrou por esta boca que tu abençoaste coisa comum ou imunda.
E Deus dizendo: Come, Pedro. Não, de modo nenhum, de modo nenhum,
de modo nenhum. O cara dando um trabalho danado, porque as três tendas
não lhe saíam da cabeça. Ele já aceitava que Jesus estivesse se manifestando
lá, em Jerusalém; entre alguns discípulos, em Tel Aviv, em Jope, em outros
lugares; ali nas imediações. Mas um romano, em Cesareia, onde estava o
bordel que Herodes tinha construído – um bordel da pesada, até hoje não há
um bordel tão legal na Terra. Sim, com água quente, com saunas, com tudo
de bom, com o Mediterrâneo na sua frente, uma piscina linda! E ali em cima,
a suruba comia frouxa. E este homem era centurião dessa fortaleza, tendo
208
A consciência do que é Reino de Deus e as três tendas

revelação de Deus enquanto cuidava do bordel. Então, Deus dá uma reve-


lação para um homem desse que cuidava da segurança do bordel! Oh, Deus
doido. O homem que cuidava da segurança do bordel vê um anjo, que disse:
“Cornélio, as tuas orações foram ouvidas; e as tuas esmolas e a tua piedade,
tudo chega diante de Deus”. Do bordel para Deus! Olha como é. Vejam se
tem geografia e monte santo! Monte santo é coração puro!
Mas Pedro resiste: Não vou, não vou, não vou. Depois, é constrangido. E
vai, acompanhado de uns presbíteros de Jerusalém, que já estavam ficando to-
dos viciados em controlar apóstolo, para ver se o cara andava na linha, senão,
contavam para Tiago. Estava começando a virar igreja, o negócio. Ele vai e dá
uma explicação. Na entrada! Desnecessária: “Vós bem sabeis que a um homem
como eu, judeu, com esse pedigree, não é permitido entrar na casa de um gen-
tio”. Ah, meu irmão, pelo amor de Deus! Uma introdução patética! Na hora em
que ele começa a pregar, Jesus manda parar. Derramou logo o Espírito Santo so-
bre Cornélio; na casa de Cornélio, todo mundo falou em línguas, profetizou.
O problema é que está tudo que é gentio, pagão, assistente do bordel de
Cesareia, centurião dos perversos com mais os seus parentes, falando em lín-
guas e profetizando, como tinha acontecido com eles no cenáculo do Pente-
coste em Jerusalém. Igualzinho. Nenhuma diferença! E Pedro diz: E agora, o
que é que vamos fazer? Os caras estão falando em línguas, estão profetizando,
e nem foram batizados! Pularam a ordem! Pularam a ordem! Tinham que,
primeiro, aceitar a Jesus, como Senhor e Salvador. Depois fazer uma classe
de catecúmenos. Serem batizados depois de terem a profissão de fé toma-
da. E então, depois de batizar com água é que deve vir esse fenômeno, não
agora. Mas o que é que vamos fazer? Inverteram a ordem! Podemos negar a
água para estes, que, como nós, também receberam o Espírito Santo, como
aconteceu conosco no princípio?! Será que vamos negar o nosso batismo de
água, já que Deus derramou do Espírito Santo sobre eles? Não conseguiram
argumentar contra. Um neurônio de Pedro discutindo com o outro. A tenda
estava presente ainda. Tenda. Façamos três tendas, façamos três tendas.
Façamos três tendas é a neurose do cristianismo. É o tempo todo: Faça-
mos três tendas. Ah, o Senhor está nos abençoando, vamos erguer este lugar.
Conhecem esta expressão? Vamos erguer este lugar. É uma expressão evangé-
lica. É quase um oráculo. Significa: Nós já crescemos muito, chegou a hora
de fazer um templo. Vamos erguer este lugar.
209
O Caminho do discípulo

As três tendas. O problema é que as três tendas são poderosas. E elas têm
sido o paradigma de contingencialidade, de circunstancialidade, de confina-
mento da nossa espiritualidade e da nossa consciência.
Vamos ver as implicações dessas três tendas na nossa vida. E como essas
três tendas têm delimitado o espaço e o ambiente do Reino, da espirituali-
dade, do entendimento e da abrangência da glória de Deus em nós. Porque
o Reino de Deus está em mim. A catedral está sendo construída aqui, está
sendo construída aí. E não há lugar nenhum onde ela possa ser construída
no tempo presente a não ser dentro de mim e dentro de você. No mais, Deus
cuida de Sua própria glória. Somente não vê quem não quer. No entanto, o
mundo inteiro, a Terra toda está cheia da Sua glória. Ainda. Se não, o Disco-
very Channel não teria o canal. Ele sobrevive de quê? O que é que o National
Geographic vende? Glória de Deus. A Globo, não; vende Faustão, Caminho
da Índia. O Discovery somente vende glória de Deus. Eles descobriram que
glória de Deus é um negócio da pesada. É glória de Deus no mundo suba-
tômico, no universo maior, no macrocosmo, no fundo do mar, nos rios, nos
micróbios, nas lesmas, em tudo! Quanto mais vou vendo os intrincamentos,
as complexidades, mais eu vejo que o Salmo 29 é infinitamente maior do que
a minha consciência jamais concebeu. E no seu templo tudo diz: Glória! Isso
aí, Ele faz. Eu não tenho poder de mexer na vela do santuário cósmico; de
tocar num raio, e ver o que acontece. Eu não tenho esse poder.
Agora, aqui dentro de mim, onde eu também não tenho nenhum poder
para fazer o Reino de Deus entrar, eu tenho no mínimo a graça dele, que me
diz que Ele me deu o poder de querer, e de dizer: Venha a mim o Teu Reino;
e venha a todos nós. E que ele seja sempre uma presença em mim, porque
esse espaço interior não é a tenda; aqui é maior do que todo o cosmo fora de
mim, com todos os multicosmos, os multiversos, com toda a possibilidade
de universos paralelos. Tudo isso é mensurável, por isso é menor do que a
imensurabilidade do que Deus colocou dentro de mim. Porque eu sou es-
pírito, da natureza do meu Pai. E Ele colocou a eternidade no meu coração.
Por isso é que os céus dos céus não podem contê-lo, nem o cosmo, os multi-
cosmo e os multiversos podem servir-lhe de tenda. Ele, porém, habita com o
quebrantado e o contrito de coração.

210
A consciência do que é Reino de Deus e as três tendas

Para refletir
1. Onde deve estar centrada a espiritualidade do discípulo?
2. Como se manifesta a Glória de Deus em nós?
3. O que representam para nós a proposta de Pedro de construir 3 tendas?
4. Onde está sendo construída a catedral do Reino de Deus?

Anotações

211
O Caminho do discípulo

212
16. As três tendas ou o Deus
indisponível?

O caminho do discípulo começa numa revelação. Uma revelação que não


procede da lógica da religião, não procede da lógica filosófica. Procede de
Deus, porque é absurdo. É tão absurdo que, ou ela se instala e se instila em
nós como revelação divina, ou, no máximo, ela atingirá a nossa alma como
cultura dentro da qual nós fomos criados. Neste último caso, é o Jesus do
vovô, da vovó, do papai, da mamãe; é o Jesus do pacote. Não é Jesus Senhor,
eu não sou discípulo dele, ele é apenas um ícone que representa o sagrado na
minha existência, acerca do que eu nunca pensei muito, não desejo pensar,
não há muito por que pensar, o time está ganhando, já é a quinta geração que
é assim, a gente segue juntos, e mais: Eu não sou muito dedicado não, mas
toda vez que preciso eu faço uma fezinha e as coisas melhoram.
Não é disso que eu estou falando. Eu estou falando é de ter encontrado o
absurdo, mesmo! Ter ficado cara a cara com o fato de que Jesus é Deus! É ho-
mem, como eu. Podia ter minha altura, podia ter o tipo e cor de pele que eu
e você temos. Era reconhecido em figura humana, mas subsistia em forma de
Deus, não julgou como usurpação ser igual a Deus e se encarnou; e foi obe-
diente até a morte, e morte de cruz. Isso é loucura, de um lado; escândalo, de
outro. Somente se torna uma possibilidade na impossibilidade total daquele
que, pela fé, se rendeu ao absurdo, porque foi chocado por uma revelação de
Deus que o fez dizer: Eu não entendo, mas não tenho como negar, é fato. Aí,
o processo começa.
Jesus passou do “Tu és o Cristo o Filho do Deus vivo” para “Se alguém
quer ser meu discípulo, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.
E disse, logo a seguir, “Em verdade eu vos digo que alguns dentre vós não
passarão pela morte sem que vejam o Filho do Homem no seu Reino”; ou:
“vejam o Reino de Deus no seu poder” – como diz Marcos. E cerca de seis ou
oito dias depois de proferidas essas palavras, levou-os Jesus a um alto monte
e transfigurou-se diante deles. Pedro toma a palavra e diz: “Senhor, façamos
aqui três tendas; uma será para ti, outra será para Moisés, outra será para
Elias”, não sabendo, porém, o que dizia. Cada um dos Evangelhos dá a co-
213
O Caminho do discípulo

notação da loucura da fala, da insensatez do dizer. Lucas provavelmente seja


o mais explícito, quando diz: “não sabendo, porém, o que falava”, porque era
doideira total, o que ele estava propondo. Aí vem aquela intervenção divina,
uma nuvem luminosa os envolveu e dela procede uma voz que diz: “Este é o
meu filho amado, a ele ouvi”. Então, eles caíram de bruços no chão e Jesus
mesmo vem e lhes diz: Não temam, levantem-se, ergam-se. E eles, quando
abriram os olhos e levantaram a cabeça, não viram mais a Moisés, nem a
Elias, nem a nuvem luminosa, viram somente a Jesus.
No fim, a viagem inteira do Reino é compreender Moisés, compreender
Elias, compreender a História, compreender a evolução histórica da revela-
ção de Deus, compreender o sentido daquela transfiguração para a espiritua-
lidade mais ampla da vida: de que não há dicotomia entre corpo e espírito; é
o rosto que se transfigura, a matéria não é má, todas as coisas são puras para
os puros. A roupa se transfigura, a produção cultural do homem pode ser,
toda ela, absorvida na glória de Deus, dependendo de qual seja a intenção de
cada coisa no coração. Nós vimos a liberdade que essa consciência da espiri-
tualidade do Reino de Deus produz.
Queremos pensar nessas três tendas de Pedro, nessas três tendas do pri-
meiro papa, de acordo com a igreja católica. Ele ainda foi modesto, quis
construir três tendas. Mas o pessoal fez o Vaticano! E disse que a igreja é de
São Pedro. E o pobre do Pedro ficou com a marca das três tendas. Um dia ele
quis fazer três tendas, disseram: Olha, Pedro, a gente vai te dar um Vaticano.
Se ele ressuscitasse de entre os mortos, iria pegar uma britadeira. Iriam matar
Pedro, na entrada do Vaticano, ele tentando derrubar o Vaticano: Não! Eu
não! Eu não tenho nada a ver com isso! Jamais, jamais eu faria isto. Ele talvez
até recriasse a frase “nesta boca jamais entrou coisa comum ou imunda”, que
falou em relação a Cornélio e à comida sugerida no cardápio de Deus no
“lençol das perdições”, quando disse: Não, eu não como. Talvez, então, ele
saísse com uma dessas, que lhe era extremamente próprio.
A ironia histórica, no entanto, é que o homem das três tendas ganhou o
Vaticano como prêmio de uma variante pervertida da consciência da fé que se
transformou em religião batizada de cristianismo. Acabou realizando a loucura,
piorada. E o pessoal que se diz guardião dessa verdade não faz três tendinhas,
faz logo é um Estado e dá a ele a alcunha, o batismo, o cetro de São Pedro!
Parece uma grande brincadeira, uma grande gargalhada, a história inteira.
214
As três tendas ou o Deus indisponível?

Essas três tendas nos interessam muito, por uma razão simples: elas são a
história, aqui simbolizada, de uma das nossas maiores tentações, na perspec-
tiva tanto da consciência do Reino de Deus quanto da experiência do signi-
ficado de espiritualidade, que é o que estamos vendo neste terceiro bloco do
caminho do discípulo. Neste bloco estamos falando do Reino de Deus, do
seu significado – já falamos algumas coisas – e dessa consciência espiritual
que o Reino de Deus produz, libertando-nos de lugares, libertando-nos do
passado. Moisés tem a sua utilidade que permanece apenas no que diz respei-
to ao que não caiu em caducidade. Qualquer outra coisa que tenha caído em
caducidade em razão da revelação de Deus no Evangelho está para trás. Moi-
sés está reconciliado com isso, a conversa dele é sobre a cruz. Elias está recon-
ciliado com isso, a profecia está reconciliada com o fato de que houve coisas
dela que já passaram, que já se cumpriram em Jesus. Que se projetam, mas,
como diz o Apocalipse, todo o espírito da profecia é o testemunho de Jesus.
É por isso que Elias, que é a figura arquetípica de todo esse grupo profético,
está falando com Jesus – juntamente com Moisés – acerca da cruz, acerca da
partida que Jesus estava para cumprir em Jerusalém. O papo da revelação é a
cruz, sempre; é o Cordeiro imolado desde antes da fundação do mundo.
Essa consciência nos reconcilia com o universo, com o cosmo, com as
nuvens que se tornam glorificadas e luminosas, com a materialidade de toda
criação, com todas as dimensões da vida, com a história humana; alarga a
nossa percepção. Mas a contrapartida disso são as três tendas. Ou seja, o
convite inteiro dessa espiritualidade do Reino de Deus é para o ar livre. Isso
aí é um sarau divino, com Moisés e Elias cantando a cruz. Com Glória! A
abóbada do céu, no monte Hermon! E, de repente, o cara quer tapar o céu,
cobrir tudo, prender Elias, confinar Jesus. Ou seja, é a antítese do projeto
do Reino de Deus e dessa espiritualidade imensa, total, histórica, cósmica,
ampla, livre, que goza Deus em tudo, em todas as coisas e em todos os luga-
res, sem departamentalizações, sem frações, sem dizer: isto é mais espiritual
do que aquilo. Não, ao contrário, podendo açambarcar o todo da vida com
glória, com transfiguração, porque a destinação de todas as coisas é glória.
“E todas as coisas são puras para os puros”. A antítese disso, a contrapartida
disso são as três tendas. É a grande loucura.
Então, a importância das três tendas é pelo fato de que elas são a maior
tentação que nós temos – no curso da nossa existência espiritual viajando e
215
O Caminho do discípulo

peregrinando neste mundo − quanto a não praticarmos essa experiência da


avant-première do Reino de Deus, que, aqui na transfiguração, é apresentada
de maneira simbólica e arquetípica, como já vimos antes, ao olharmos para
II Coríntios 3:18, Paulo falando da cara para fora para ser transformado de
glória em glória, mostrando que a transfiguração se existencializa sempre. A
grande tentação quanto a parar esse processo é o significado das três tendas.
Sempre foi. Sempre será.
Na realidade, as três tendas são a antítese de toda a convocação para essa
liberdade de provar Deus em todas as coisas, e elas são uma tentação que
está presente desde sempre e estará presente conosco, enquanto a jornada for
aqui. Ninguém pense que está livre das três tendas para sempre. Elas voltam,
elas são recorrentes. Seguimos na liberdade de Deus, e daqui a pouco: três
tendas. Dá aquela coisa... Vamos fazer três tendas? Está bom demais! Aleluia,
glória a Deus, três tendas! Basta ficar bom demais que o cara quer fazer três
tendas. Quando está muito ruim, ele não quer tenda nenhuma. É: Me tira
daqui, Jesus! Mas quando transfigura, dá aquele surto: três tendas! Aleluia! É
nosso! Nós vimos, vamos confinar. Desde sempre foi assim. Desde o Gênesis
é sempre essa tentativa de confinamento, de querer enquadrar Deus.
Abraão é aquele louco que sai andando sem saber para onde vai. Por
isso é o pai da fé, porque é o inquadrável. É o hebreu que vai adiante, que
vai usando somente tenda. A tenda o segue, ele não segue a tenda. A tenda
é dele, ele não é da tenda. Ele levanta e a leva; e ela obedece. Ele não diz:
Façamos aqui três tendas. Ele diz: Está bom para mim aqui, vou fazer uma
tenda. Amanhã ele diz: Não está bom para mim aqui. Farei tenda onde for
bom para mim. Mas não tem nenhum “aqui” que determine a tenda, tem
somente um homem a quem a tenda serve. Caminhando.
Mas, logo adiante, começamos a ver essa tentativa de: Vamos ver se a
gente fica em algum pedaço. Então Deus os manda para o Egito. Lá ficam
430 anos. É muito tempo. É um Brasil de existência no Egito. Se alguém
se sente brasileiro, se sente que essa terra é sua, imagine os judeus, 430 anos
no Egito. Sentiram-se em casa, ao mesmo tempo em que lá moravam os
icsus, em que os hititas também colocaram uma base poderosa lá, perto do
delta do Nilo. E hoje a arqueologia sabe que até os gregos, os pré-gregos, a
civilização minuana esteve presente lá. Hoje há achados arqueológicos que
mostram que os hebreus conviveram com icsus, hititas, egípcios e gregos.
216
As três tendas ou o Deus indisponível?

Imagine a troca que houve naqueles 430 anos! Todos esses povos tinham
seus templos, seus deuses, suas supertendas de pedra. Sem falar que o Egito
é o campeão do “para sempre”, de marcar lugar. Eu sou Quéops, eu sou
Quéfren, eu sou Miquerinos. Daqui ninguém me tira, daqui ninguém me
arranca! E é um arquétipo tentador para os hebreus. A toda hora eles di-
zem para Moisés: Olha, todos os povos têm isso, têm aquilo, somente nós
não temos. Então, eles vão, sempre reclamando do que os outros têm, do
que eles não têm. Porque eles sabiam o que havia pelo mundo, ajudaram
a construir aquelas magnificências de fixidez em pedra, que são os monu-
mentos egípcios.
Então, eles chegam à terra de Canaã com uma vontade enorme de ver
se, limpando a área, estabelecem a sua fixidez. Mas não conseguem, porque
é luta de lá, luta de cá, os inimigos vão salvando-os de se fixarem tanto. Até
que chega a hora em que eles sentem que estão naquela posição de “tudo
bem”! Então eles dizem: Façamos aqui uma tenda. Vamos fazer um templo
para o Senhor. E era uma história já velha. Igual à história de “tenhamos um
rei”, todos os povos têm! É sinal de status, de stablishment12, de fixação, de
institucionalização. E Samuel já dizia: Não façam isso.
Todos têm templo? Façamos um templo. E o pretexto é sempre espiri-
tual: a Arca da Aliança precisa descansar, precisa de repouso. Uma arca que
Deus já tinha feito com duas varas para ser carregada sempre! Até o projeto
era móvel, era para levá-la para lá e para cá! Mas eles já estavam cansados,
disseram que a Arca estava cansada. Temos de arranjar um repouso para a
Arca, coitada; já rodou para lá, rodou para cá... Era o pretexto piedoso: o
repouso da Arca. Coitada da Arca, já andou demais, façamos, não três ten-
das, façamos uma grande. Primeiro, um tabernáculo, poderoso – fizeram o
tabernáculo de Silo; depois, faremos um templão lá em Moriá. Celebrando
Abraão e Isaque vai ficar maior ainda. E se dá um descanso para a Arca.
Como se a Arca fosse descansar num templo feito por mãos humanas. Ela
acabou desaparecendo e ninguém, nem o Indiana Jones, a achou. Aí, o li-
vro do Apocalipse a faz reaparecer. Onde? João diz: Eu vi a Arca da Aliança
diante do trono de Deus, nos céus. Sim, porque se ela tiver que ter um
lugar é lá. Aqui, é para carregar.

12. Estabelecimento

217
O Caminho do discípulo

Então o templo foi derrubado, por causa do culto à fixação: as três tendas,
com um ofício fixo. Com as três tendas vêm também os sacerdotes oficiais,
os levitas, as ordens dos cultos, os ritos, as cerimônias, os dias santos, vem o
Deus de agenda. Com as três tendas surgem todos os pacotes que determi-
nam qual é o dia da graça de Deus, quando não é o dia da graça de Deus;
quando é o dia em que Deus cura, quando é o dia em que Deus não cura;
quando é o dia em que Deus não pode curar porque não queremos que ele
cure – o nome desse dia é sábado. Enfim, são as três tendas. E foi o que eles
fizeram o tempo todo. Com as três tendas, vêm também os assassinos de
profetas, os fiscais da verdade. Com as três tendas, vêm aqueles que dizem:
Ele é herege, matemo-lo. E assim mataram profetas e profetas e profetas. As
três tendas têm seu centro de poder. É e será sempre assim.
Então, aquele templo foi destruído, aquela tenda veio abaixo. Nabu-
codonosor acabou com ela. Eles voltaram. E quando voltaram, queriam,
angustiadamente, construir outro templo. Mas, aí, já não tinham mais a
Arca, que já havia sumido, ninguém sabia onde ela estava. Nem os templá-
rios a acharam. Nem o Dan Brown a encontrou até hoje. Já não a tinham
mais, então fizeram um templo merreca. Não tem Arca, mas vamos fazer
um templo; não tem Arca, mas não tem problema. Não tem mais glória.
Icabode. A glória da Arca tinha ido, “foi-se a glória de Israel”. Ficou so-
mente a memória. Não tem mais glória, mas vamos fazer um templo para
nós. Aí o templo já é “para nós”. Já não é mais o pretexto da Arca. Vamos
fazer o templo, tragam os dízimos à casa do tesouro. Aqui é a casa do tesou-
ro, aqui são as três tendas; Deus aceita dinheiro somente aqui; em qualquer
outro lugar é mal, mesmo que seja socorrendo um pobre caído à beira do
caminho. Dinheiro não pode ser colocado no altar da dor humana, somen-
te na casa do tesouro. Não tem mais Arca para repousar, mas tem sacerdote
para sustentar. É a política das três tendas.
Depois, constroem o templo de Herodes, o Grande. Todos ficam im-
pressionados com a tendona. Mestre, olhe que pedras! O indivíduo tem
de estar muito surtado para pensar que Jesus vai ficar impressionado com
a construção de Herodes, o Grande. Imagina só! Mestre, olhe que pedras,
olhe que construção! Aí Jesus disse: Vocês estão vendo? Não vai ficar pedra
sobre pedra que não seja derrubada. Aproveitou, foi derrubando até o fim
do mundo, – está Mateus 24. Começou por ali e não parou nada, até o sol
218
As três tendas ou o Deus indisponível?

escurecer, a lua se transformar em sangue, a Terra inteira se ‘tissunamizar’ e


quebrar tudo; nação contra nação, desgraça, abominável da desolação. Está
morrendo tudo, fogo, enxofre. Então, vem o Filho do Homem!
Mas Pedro não estava vacinado contra essas coisas, porque ninguém está.
A nossa pulsão pagã chama fixidez de segurança. A nossa doença pagã chama
continuidade de verdade. A nossa doença pagã chama tempo e antiguida-
de de garantia de respeitabilidade e de seriedade. A nossa consciência pagã
precisa marcar significados com coisas que, construídas, se tornem maiores
do que o significado, porque passamos a dedicar a energia da nossa alma à
manutenção daquilo que apenas seria uma simbolização de uma coisa muito
mais importante, e que não pode nem mesmo ser erigida por mãos humanas.
Então, sem querer, depois de um tempo, estamos cultuando um ídolo, que
não tem cara nem de homem nem de coisa alguma que pareça com a criação
de Deus, mas é o culto nosso à nossa própria história, à nossa própria simbo-
lização, à própria tenda que construímos.
É tentação nossa construir três tendas em relação também ao que signifi-
que pensamento acerca de Deus. Isso não tem a ver apenas com as materiali-
dades; tem a ver com as arquiteturas e construções de pensamento. O que é
a Trindade do cristianismo senão a construção de três tendas para Deus? Nós
sabemos como a Escritura revela Deus. E Jesus afirma tal revelação chaman-
do a Deus de Pai; tratando a si mesmo como filho do Pai, dizendo: “Eu e o
Pai somos um”; e dizendo que enviaria o Espírito Santo, que era da parte do
Pai e que falaria e daria o que era dele “porque receberá do que é meu”. Isso
é tudo o que Jesus fala sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E aí, mistura-
se tudo, não em três tendas, mas em tenda nenhuma. Mistura-se isso tudo
na única tenda onde Deus habita. João 17 diz que a finalidade disso tudo é
para que “agora, Pai, assim como eu sou em Ti e Tu és em mim, sejam eles
em nós, porque a minha vontade é esta, é que Tu estejas em mim, eu esteja
neles e eles estejam em nós”. Esse é o templo, essa é a única tenda. Que não é
construível. Ela é relacional, é de comunhão, é o paradoxo do ser que é finito,
mas é habitado pela eternidade: ser morada do Deus Eterno! E Jesus diz que
ele e o Pai vêm e fazem em nós morada pela ação do Espírito Santo. E não
cria nenhuma departamentalização: os três são um.
Mas o cristianismo teve que fazer três tendas. Uma para o Pai, outra para
o Filho e outra para o Espírito Santo. Uns ainda dizem: Esta foi a era do
219
O Caminho do discípulo

Pai; esta será a era do Filho; ou: estamos entrando na era do Espírito Santo.
Ainda está tudo em era. As tendas viraram aeons, dispensações. A dispensa-
ção do Espírito - eu não sei o que é isto. Se o Espírito de Deus não estivesse
sendo dispensado o tempo todo, não haveria vida. O livro de Jó diz que toda
carne, a uma, expiraria e tudo voltaria ao pó. E o Salmo 104 diz que nós e
toda a criação, das abelhinhas até a existencialidade mais profunda, somos
revitalizados pelo Espírito Santo. “Envias sobre a Terra o teu espírito e todas
as coisas florescem e se regeneram”, diz ele. São pentecostes vegetais, como há
pentecostes animais: bichos parindo! São graças divinas! Assim como há pen-
tecostes existenciais. Tudo é obra do Espírito de Deus. A nuvem luminosa e o
rosto do Cristo resplandecente estão no mesmo ambiente da transfiguração.
Vamos juntando o pacote e veremos como tudo vai abrindo.
Fazemos três tendas em todas as outras coisas. Criamos também as três
tendas que têm a ver com “Deus, Jesus e a igreja”. A tenda da igreja ficou
imensa. A do Pai está pequena, a do Filho está média. Somente porque o
nome dele dá um certo ibope, tem uma pegada de atração e sedução, a tenda
do Filho está maiorzinha; mas, grande, mesmo, é o templo maior, é aquela
coisa enorme, aquela baleia, aquele cachalote guloso. É aquela tenda dizen-
do: Deus somente opera aqui; às quartas, quintas, sextas e domingos, nos
horários tais e tais. É a tenda. São as três tendas.
Então, vá pensando em como você já fez tantas tendas, seus encapsula-
mentos de Deus. Geralmente, essas tendas se manifestam como neurose,
como fixação. A pessoa fica com ideia fixa: três tendas. Quantas três tendas
você já seguiu? Houve o tempo em que as três tendas eram os livros do
Watchman Nee, era todo mundo cobertinho por aquelas três tendas. Juan
Carlos Ortiz – três tendas. A toda hora são os três capacetes, as três tendas.
São confinamentos. O tempo todo. E se não houver isso, o nosso paganis-
mo fica extremamente inseguro; precisamos dessas definições. Essas tendas
acabam virando tudo o que fixa. Vira Vaticano, cartório, igreja como lugar
físico, pacote doutrinário, seminário – sem o qual ninguém é ungido profeta
do Senhor, nos ambientes históricos –, vira escola de rabino, vira o que se
quiser. Três tendas são a concessão do homem ao espaço que nós achamos
seja razoável para Deus.
E três tendas são a manifestação suprema da nossa loucura. É querer
transformar Jesus, Moisés e Elias em gênios da lâmpada. Literalmente é:
220
As três tendas ou o Deus indisponível?

Vamos colocar aqui os três. Se vamos descer o porrete, é a hora de Moisés:


Sai, Moisés. Se é chuva, fogo, é Elias. Ou, então: Hoje eu estou tão carente,
quebrado, ninguém me entende, a igreja me abandonou; eu estou precisan-
do do gênio de Jesus. Como ele é o mais misericordioso de todos, então,
nessas horas é que precisamos de Jesus mesmo! Existencialmente, é assim
que já fizemos bilhões de vezes na vida; de acordo com a conveniência da
hora, do momento, do processo histórico. Tendas que vamos construindo o
tempo todo, tentando gerar confinamentos para Deus.
Quando achamos que determinadas práticas obrigam Deus a certas coisas
em nosso favor, é a ideologia das três tendas prevalecendo: se eu jejuar tantos
dias, se eu também, enquanto isso, colocar o joelho no milho; se eu ler o
Novo Testamento no período tal, tantas vezes – e determina uma quantidade
quase absurda de leituras –, e se eu não faltar a reunião nenhuma... Nesses dias
vou fazer uma consagração especial. Em vez de entregar o meu dízimo no final
do mês, todo dinheirinho que eu ganhar, se eu ganhar todo dia um dinheiro,
eu vou lá e vou depositar; porque eu quero demonstrar para o Senhor que
eu não fiquei nem com os juros nem com a correção monetária da espera. O
indivíduo está nessa fixação e acha que se ele fizer isso o resultado será bom,
porque, na perspectiva dele, Deus está condicionado por aquele processo. É
tenda. É confinamento. É aprisionamento. É Deus à minha disposição.
O que Pedro iria aprender é que temos de confiar para sempre no Deus in-
disponível. Eu sirvo ao Deus indisponível. Então alguém pergunta: Mas o seu
Deus é indisponível? Sim, é absolutamente indisponível em relação ao meu
capricho. Totalmente! Já me deu provas mais do que cabais disso. Eu ainda
não fiquei careca de saber e talvez não fique porque não estou fazendo teste,
já faz tempo. Mas eu sei que ele é indisponível para os meus caprichos. Eu sei
que ele é disponível apenas para a vontade dele, quando eu me alinho a ela.
Eu sei que ele responde às minhas orações quando peço segundo a sua
vontade. E pela sua graça ele não responde às minhas orações quando peço
conforme o meu capricho.
Então, eu sirvo ao Deus indisponível. Eu é que estou disponível para
ele. Preciso estar, todo dia, segundo a sua vontade. Mas tenho de me con-
tentar com o fato de que todo aquele que é nascido do Espírito é como o
vento: não sabe de onde vem, não sabe para onde vai. E não se pode dizer
com certeza absoluta que o mover de Deus é nesta ou naquela direção.
221
O Caminho do discípulo

Quando o indivíduo faz isto, como um guarda de trânsito celestial, in-


dicando o fluxo para Deus e para os anjos, numa esquina do universo do
Espírito, ele não sabe que Deus está num lugar que ele sequer imagina que
existe. Se Deus fosse na direção dele, teria entrado na tenda, teria virado
hamster. Mas Deus não entrou na tenda. A nuvem luminosa acabou com
ela. O templo não controlável pelo homem – na transfiguração represen-
tado por essa nuvem luminosa que vem e envolve todo mundo – destruiu
o assunto da tenda, porque o culto a Deus tem de ser na liberdade de nu-
vens, de vento. Não significando correr atrás do vento, mas significando a
disposição, em confiança, de continuar seguindo a Jesus. Porque quando
acaba isso tudo, qual é a visão última, qual é a escatologia da transfigu-
ração? Acabou tudo, ficou somente Jesus. E Jesus diz: sigam-me, vamos
descer o morro.
A única maneira de o reino de Deus continuar no processo de se reatua-
lizar dentro de nós sem que caiamos na fixação das três tendas é mediante o
desaparecimento de todas as impressões que nos fazem ter a vontade de con-
tingenciar o milagre, de circunstancializar o poder de Deus, de confiná-lo.
E tudo some, ficando somente Jesus. E ele está sempre dizendo: Então,
venham e sigam-me.

Para refletir
1. As três tendas são a antítese a quê?
2. Quais são os exemplos do VT da tentativa de se fazer três tendas?
3. Como é que a ideologia das três tendas prevalece?
4. Deus indisponível. Qual o significado dessa frase e o que isso causa em você?
5. Eu devo estar disponível para Deus. Como você aplica isso a sua vida?

222
Saiba como contribuir
Contribuir é algo que muda a vida da gente. Muda as referências e priorida-
des. Altera a sensação de prazer e de realização. Subjuga o poder do Diabo como
Dinheiro em nossa vida. Eleva os alvos da vida. Faz pensar nos outros; especial-
mente, muitas vezes, naqueles que nem conhecemos. E, entre outras coisas, nos
põe no caminho da generosidade e da fé que lança o pão sobre as águas para só
achá-lo depois de muito tempo... Portanto, se você deseja contribuir para aquilo
que entende ser obra da Graça de Deus para nossos dias, por favor, faça seu de-
pósito conforme a disposição do seu coração em uma das contas abaixo:

BANCO DO BRASIL
Agência: 1231-9
O CAMINHO DA GRAÇA
Conta Corrente: 22448-0
CNPJ: 07.338.110/0001-07
*Contribuição para a manutenção do ministério e para o sustento daque-
les que ajudam na divulgação da Palavra.
Comunicar depósito via e-mail para:
Ângela – angelacaminho@uol.com.br

BANCO REAL
Manutenção da VEM&VÊ TV
Agência: 0067
ELDI SERVIÇOS DE SOM E
Conta Corrente: 8751463-2
IMAGEM LTDA
CNPJ: 07.328.485/0001-96
BANCO DO BRASIL
Agência.: 4037-1
EDITORA PROLOGOS
Conta Corrente: 10000-5
CNPJ: 06.320.290/0001-37
Comunicar depósito via e-mail para:
Chico – chico@caiofabio.net
Edvaldo – edvaldo@caiofabio.net
Manutenção do site : www.caiofabio.net
Da Vem e Vê TV : http://www.vemevetv.com.br/
Da rádio www.caiofabio.net
*Contribuição para que o sinal da TV seja aberto e se mantenha assim para
todas as pessoas e o melhor funcionamento e expansão do site e da rádio.
223
Impresso pela Edelbra Gráfica
Diagramado por Marcos V. Braga
em Adobe Garamond Pro.

Você também pode gostar