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1.a Edição
Rio de Janeiro
2010
Semear Publicações
Impresso no Brasil
ISBN:
D213c
D’Araujo Filho, Caio Fabio
O Caminho do Discípulo / Caio Fabio D`Araújo Filho ; Transcri-
ção de Dora Ramos; Revisão de Dora Ramos, Lígia do Amaral A.
Madruga e Adriana Ribeiro D’Araújo -- Brasília: 2010. 224p.
ISBN:
1. Discípulo. 2. Ensinamentos de Jesus. 3. Estudo bíblico – Discí-
pulo. 4. Discipulado. 5. Teologia. 6. Cristianismo. I. Título
Editora: Semear
CDU: 248.48
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Sumário
Apresentação 5
Introdução 7
3. A confissão do discípulo 49
4. Se alguém quer 61
O texto que você tem em mãos não foi escrito por mim, mas por mim
foi inteiramente falado.
Essa afirmação precisa ser feita para que você entenda as razões de sim-
plicidade, improviso e oralidade – elementos esses sempre presentes em uma
obra que não foi escrita. Especificamente, neste caso, ela foi objeto de trans-
crição e de copidesque.
Devo dizer também que este livro também é o resultado de espontanei-
dade total. Sim, pois tudo o que aqui você lerá nasceu de anos e anos de
caminhada com Deus, com a Palavra e com os irmãos de fé. Porém, não
escrevi uma única linha de esboço a fim de falar qualquer das mensagens
aqui transcritas.
Portanto, é um texto existencial; ou seja, ele retrata a minha experiência
com Deus na alegria de seguir a Jesus, o meu Senhor e Mestre.
Assim, posso dizer que este livro é um derrame de meu amor, da minha
fé e da consciência pessoal do significado do Evangelho para a vida humana;
e isso a partir da única vida humana na qual o Evangelho pode fazer sentido
e bem a mim: a minha própria vida.
Digo isto porque o Evangelho não é para ninguém antes de ser para mim.
E não afetará ninguém para o bem que eu possa celebrar como valor do
Evangelho se antes o Evangelho não for o bem maior da minha vida.
Desse modo, o que você lerá não é uma “teoria bíblica” acerca do Dis-
cipulado de Jesus; porém, muito antes de ser isso, trata-se da minha experi-
ência existencial com Jesus, andando com Ele na alegria e na tristeza desde
julho de 1973.
O livro tem tons repetitivos [...] que decorrem, em algumas ocasiões, do
fato de que eu sempre me sinto na obrigação pedagógica de, a cada novo
capítulo (originalmente aulas dadas todas as quartas-feiras, transmitidas ao
vivo pela Vem e Vê TV), renovar a memória das pessoas “presentes” aos estu-
dos do Caminho do Discípulo.
Assim, ofereço a você esses muitos anos de vida em Jesus e de experiências
Nele, no chão da presente existência, como um presente de amor; pois sei,
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de todo o coração, que o que você tem nas mãos é Evangelho de Jesus; é Ca-
minho do e para o Discípulo; e, sobretudo, trata-se do meu testemunho que
diz: “Nesses quarenta anos de jornada o que mais vejo é a maravilha de tal
Caminho sobremodo excelente; visto ser ele totalmente praticável por todo
aquele que se disponha a fazê-lo”.
Este é também o primeiro volume de uma série sobre o mesmo tema,
uma vez que continuo fazendo, todas as quartas-feiras, a mesma jornada
pelo Evangelho com aqueles que se reúnem para ouvir a Palavra aqui na
minha casa.
Abra o coração. Leia com carinho. Reflita com simplicidade. Confira
com a Palavra. Siga com verdade! Sei que se você fizer isso sua vida nunca
mais será a mesma!
Decida, portanto, se você deseja mesmo ler, porque, de fato, seja para
o bem ou para o mal, se você iniciar, jamais ficará livre do que está sendo
proposto a todos nós.
Que o Espírito Santo ilumine você agora!
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Introdução
Paulo está dizendo aqui que nós recebemos não o espírito do cosmo ge-
mente, não o espírito da natureza das coisas, mas o Espírito do Deus vivente,
para que possamos discernir aquilo que, de graça, já nos foi dado. E ele pros-
segue dizendo que disto também falamos, não com palavras ensinadas pela
sabedoria humana, ou pela filosofia, ou pela psicologia, ou pela antropologia,
ou pelas ciências do homem; nem com palavras ensinadas pela teologia, ou
por qualquer sabedoria humana, porque todas essas coisas nada mais são do
que sabedorias, presunções humanas. São fruto da árvore do conhecimento
do bem e do mal. Não importa se é ciência genética ou teologia. É apenas
sabedoria do homem.
Ora o homem natural (homem almal, almático, psychi-
kos) não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque
lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se
discernem espiritualmente.
Ora, Paulo escreve aos irmãos que se reuniam na cidade de Corinto. O tex-
to de Atos 18 nos apresenta o contexto histórico. Ele chegou à cidade e encon-
trou um casal – Priscila e Áquila – que o acolheu. Na companhia deles, Paulo
começou a anunciar o Evangelho, primeiro aos judeus de Corinto que era
uma cidade portuária extremamente importante da Grécia e que fazia divisão
comercial entre os mares Egeu e Adriático. Uma cidade extremamente devassa,
com o templo de Afrodite erigido no cume da montanha, na Acrópole de Co-
rinto, com culto aos deuses estabelecido pela via da mediação sexual intensa. E
por ser portuária, era cidade de marinheiros, de movimentos multiculturais e
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de pessoas desenraizadas que chegavam ao lugar somente querendo dar umas
lambidas, provar guloseimas, dar uma aliviada no tédio provocado pelos mares
ou pelo cansaço das rotas comerciais. Essa cidade, pelo que ela se transformou,
veio a se tornar verbo grego. Corintianizar significava, de fato, qualquer coisa
que se relacionasse a um bacanal, a algo que falasse dos devaneios sexuais mais
soltos. Era o espírito presente na cidade de modo geral.
Então Paulo chega e começa a pregar na sinagoga. Depois de alguns dias,
começa a sofrer resistência e é expulso. Ao sair, o principal da sinagoga, Cris-
po, creu na palavra pregada por Paulo e fez sua escolha de tornar-se discípulo
de Jesus. Saiu com Paulo, abandonou a sinagoga e foram para uma casa vizi-
nha à sinagoga. Paulo não era uma pessoa politicamente correta. Não tinha
a ética de geografia religiosa que os pastores de antigamente tinham – aquela
etiqueta de respeitar, quando já havia uma igreja em algum lugar, outra seria
aberta em um local mais distante e não ao lado. Paulo não estava preocupado
com isso. Expulso da sinagoga, ele somente facilitou as coisas para quem
quisesse vir com ele. Foi para a casa de um homem chamado Tício Justo, que
era temente a Deus, e a casa era contígua à sinagoga. Suscitou ódio em todos.
E o chefe da sinagoga foi junto.
E o texto, em Atos 18, diz que Paulo persuadia as pessoas. Essa palavra
“persuadir” aparece três vezes em relação a esse fato. Palavra essa que significa
apologia, persuasão intelectual poderosa, de modo que esmagava o argumen-
to contrário. É o sentido do termo usado, tamanho era o rolo compressor
da pregação de Paulo. As pessoas não tinham como argumentar. E o ódio
crescia. Ainda mais quando ouviam o ex-chefe da sinagoga cantando do lado
de lá. Um ano e seis meses foi o tempo ali. E o grupo crescia.
Havia outro chefe da sinagoga chamado Sóstenes. Ele era um delator, um
pit bull. Era o síndico de prédio que se frustrou porque não foi escolhido. Era
um contador frustrado, um auditor que não teve a oportunidade, um promo-
tor de justiça que nunca conseguiu acusar alguém que chegasse à condenação.
Esse era o espírito de Sóstenes. Magoado e machucado, um dia ele resolveu
acabar com Paulo. Agarrou-o e o levou perante o pró-consul da Acaia – Gálio
– e fez acusação formal. Gálio, depois de ouvir as acusações, perguntou: Essa
não é uma acusação religiosa? Tem algo a ver com o Império Romano? Ele
transgrediu alguma lei romana? É uma questão judaica dos livros de Moises? É
isso? Então, não tem nada a ver comigo. Podem sair da minha corte.
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Quando Sóstenes viu que a causa entrava em estado de falência, retirou-
se. E as pessoas que foram com ele, apoiando-o, para ver o fim de Paulo, ao
verem aquilo, frustradas e zangadas, agarraram Sóstenes na saída do tribunal
e o espancaram. Foi um corredor polonês. Paulo ficou mais alguns dias entre
eles e depois se retirou.
O texto que lemos é endereçado a esse ambiente, onde se tem um
grupo chamado secular, na sociedade mais ampla de Corinto, extrema-
mente frouxo, livre – do ponto de vista de qualquer que fosse o critério
de comportamento melhorado –, entregue ao hedonismo, ao prazer, às
pulsões do desejo contínuo, e que ainda misturava o culto ao prazer com
o culto aos deuses, de modo que sexo e divindade estavam sacralizados
como uma possibilidade presente, contínua e normal, de um lado. De
outro lado, havia uma comunidade de judeus amargurados, presentes. E
ainda havia uma nascente comunidade de discípulos, que ouvia a palavra
há um ano e meio. A carta nos fala de três tipos de seres humanos. Paulo
diz que quando esteve entre eles, estava em fraqueza, vinha de problemas
anteriores e de ameaças. Quando chegou, foi levado para situações de
hostilidade, fora expulso, seu coração sentira medo. Foi então visitado
por uma consolação de Deus durante uma visão à noite, que dizia: Paulo,
não temas, porque eu tenho muita gente nessa cidade. Então, seu coração
se animou a continuar.
Paulo, então, afirma: Vocês viram que eu estive em fraqueza, por isso,
quem creu em Jesus não creu pela argumentação filosófica que eu fiz.
A minha persuasão não era para esmagar filosoficamente a mente das
pessoas; era tão-somente o anúncio do Evangelho. Não tinha relação
com lógicas ou sabedorias humanas. Era o rolo compressor da verdade.
E foi assim que eu estive entre vocês – pregando a palavra. E o que eu
compartilhei com vocês não foram invenções minhas; foram coisas reve-
ladas que nunca antes tinham subido à mente de ninguém, nunca antes
tinham sido vistas ou ouvidas por ninguém. Não foi produto de qual-
quer elaboração humana ou filosófica. Ao contrário, eu falei daquilo que
está para além da capacidade humana de produzir com a própria mente
ou com seus próprios recursos. O que eu disse foi revelação de Deus. O
que eu recebi como revelação do Espírito eu compartilhei: o Evangelho
puro e simples.
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E Paulo continua: Vocês viram que o que aconteceu como reação, como
ódio, como hostilidade, como prisão, como ameaça, que tudo que eu en-
frentei naquele período – entendam agora – é porque o homem natural,
psíquico, almático, que vive na cidade de Corinto, sem Deus, é apenas um
ser que responde às pulsões da alma, do corpo; da química orgânica, ou dos
surtos mentais; dos cultos aos deuses dos valores falsos, ou dos desejos proje-
tados como fantasia, e que são buscados como se fossem capazes de realizar
alguma coisa. O homem natural, o homem do instinto, que habita em volta
de vocês, me ouve e diz: O que esse homem está dizendo é loucura. E para
esse homem é loucura mesmo. Ele não tem o software1 do espírito. Ele está
parado em um estágio que é apenas superior ao do chimpanzé, mas não tem
consciência de um humano tomado pelo Espírito de Deus. Está apenas con-
tido nas limitações daquilo que, quando se eleva, vai no máximo ao teto da
capacidade de discernimento intelectual; não passa disso. E como estamos
falando de coisas de Deus, ele se estagna nesse teto de si mesmo, porque
quando se trata de Deus, vem de Deus a revelação. Não será o homem que
construirá a escada desse acesso sozinho. Por isso, para tanta gente, o que eu
falei foi loucura.
Há também entre vocês o homem pneumático, o homem espiritual, o
homem que teve a chama do espírito acesa pela palavra, e que não reagiu
a ela apenas com os impulsos que pudessem brotar de pulsões ou de anta-
gonismos do coração. Não. Houve entre vocês aqueles que, em tendo sido
expostos à luz do Evangelho, deixaram-se iluminar; e amaram a luz que re-
ceberam, e foram iluminados nos seus espíritos, e transcenderam a dimensão
do homem apenas psíquico, apenas almático, apenas psicológico, apenas im-
pressionável por discursos, ou falas, sinais, manifestações sobrenaturais, ou
apenas por sua própria capacidade mental e intelectual. Houve, entre vocês,
aqueles que discerniram que, se é de Deus, a viagem somente pode ser feita
pela fé. Não como algo que façamos com as emoções da alma, mas como algo
que somente pode ser atingido se o voo for feito no espírito. E o espírito se
levanta para essa conexão em Deus somente se for pela fé, em confiança, em
entrega que não faz da própria mente teto para nada; que viaja com a mente
até onde a mente pode ir, mas onde a mente para, nem por isso o indivíduo
1. Programa de computador
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para, porque a viagem da fé no espírito transcende o limite da própria mente.
Esses discerniram. Conferiram coisas espirituais com coisas espirituais, estão
crescendo, progredindo. Não estão parados.
E Paulo vai além: Mas também entre vocês, além do homem psíquico,
e do homem pneumático, eu também encontrei o homem carnal. O ho-
mem somente orgânico, o discípulo amestrado, aquele indivíduo que já não
é apenas entregue a pulsões imediatas do que o instinto produz, das pulsões
largadas e soltas da alma, mas que também não se tornou ainda o homem
pneumático – aquele indivíduo que já deu preferência, prioridade e razão
àquilo que se estabelece como revelação de Deus na sua palavra, e que é para
ser colhido, comido, absorvido no espírito. Ele dá razão a Deus mesmo que
na sua mente pare o processo de entender, porque o caminho inteiro é de fé.
Aí esse homem diz: Aqui eu paro, mas nem por isso fico; eu continuo porque
sigo crendo e confiando.
Vi, entre vocês, o boneco de carne, o homem carnal, que saiu da sinagoga
e disse que é discípulo de Jesus. Já não se pode mais dizer que ele é um ser
apenas completamente do instinto, porque ele já tem algum discernimento,
alguns lampejos, mas também não se pode dizer que ele se entregou à luz
do espírito, ou que o desejo dele é seguir dando razão a Deus em tudo e se
submetendo, pela fé, à palavra da vida. Não. Ele está como um ser mutante
no meio do caminho. Já não é o homem natural, mas ainda não se tornou o
homem espiritual. Esse homem é um boneco de carne andante, um discípu-
lo orgânico. É o que Paulo diz. Esse homem é alma vivente, por isso ele diz
gostar de reunião onde o fogo cai. E isso não é sintoma de homem espiritual.
É sintoma de homem carnal.
No meio evangélico, isso é louvável. Igrejas são divididas pela carnalida-
de. Aquele homem que aparece somente no dia em que o fogo estiver caindo
é o homem carnal. Ele não discerne as coisas espirituais. No máximo, ele
está sujeito às impressões dos sentidos. A diferença é que os seus sentidos
dele impressionados pelas coisas supostamente de Jesus. Mas ainda nem é
por Jesus.
Ele ficaria feliz se eu colocasse a mão sobre a cabeça de alguém e essa
pessoa estrebuchasse. Aí ele diria: Meu Deus, o fogo começou a cair. Ale-
luia! E eu seria o Caio Hinn. Esse homem se tornou um otário de Deus,
enganado por todos, seguindo todo vento de doutrina. Se tiver um arrepio
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– especialmente na semana do carnaval, o inconsciente dele ainda tem as
memórias de tempo de mais agitação de samba no pé –, ele já aproveita
o carro alegórico. Mas é apenas um boneco de carne. Discípulo do orga-
nismo. É ainda um ser sob as leis de Pavlov, debaixo das perspectivas do
comportamento. Ele quer que alguém diga: Não ponha o pé ali, pois ali
o chão é amaldiçoado, coloque aqui. Ele quer um chão marcado, porque
ainda é apenas um ser orgânico. O máximo que entende de Deus é que
ser de Deus é ser domesticado. Por isso ele arranja os álibis para a sua
indomesticabilidade. Então ele diz: Eu sei que já precisava estar melhor
de comportamento, mas não consegui ainda porque são anos e anos de
pau que nasce torto morre torto. Mas já estou tendo a coragem de achar
que posso desentortar. E se acha o máximo em ser um boneco de carne de
Deus. Um organismo batizado, que come hóstia, ou pão de ceia, ou bebe
vinho de eucaristia.
Paulo disse: Eu não vos pude falar como a homo psychikos, ou como a
homens espirituais, homo pneumatikōs; ao contrário, eu falei como a homens
carnais. Vocês são máquinas carnais, orgânicas, caminhando sob condicio-
namento. O Evangelho não passou da crosta da moralidade; ainda habita o
superego. Não entrou no espírito, não se plantou no íntimo, ainda está na
camada do “pode ou não pode”, nos conflitos do comportamento, não se
fez verdade na essência do ser gerando consciência. Por isso, eu dei a vocês
apenas leite. Vocês estão no Molico, no Ninho básico, no Nestogeno. No
Nan, o leite mais infantil. Vocês são gente do Nan para sempre. Discípulos
do Nan. Bonecos de carne. Para o “ser Nan”, o coral2 lhe cai muito bem, já
tem a escadaria própria, não tem para onde sair, já está tudo predefinido. E
do que o homem carnal precisa é de predefinição; do contrário, como ele não
tem consciência própria, fica perdido.
Paulo fala, então, dos sintomas que evidenciam que Corinto está cheia
de homem natural. Existem alguns homens espirituais, mas, em relação aos
de Corinto, ele estava falando apenas com bonecos orgânicos, discípulos do
comportamento, e não com seres que têm consciência pessoal em Deus. Os
sintomas são evidenciados no fato de que superabundam os ciúmes, as in-
vejas, as contendas, as intrigas, os ódios, as raivas, as demandas, as cobiças,
2. Não tenho nada contra corais. Meu filho é maestro e cantor de coral.
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os caprichos, as venetas, os partidos, as partições, as divisões, as preferências
infantis. Todas essas coisas que se manifestam entre os de Corinto.
E qual é a relação com a nossa realidade? O que isso tem a ver conosco hoje?
O fato é que, aqui entre nós, há o homem natural, há o homem carnal e há
alguns homens espirituais. Entre nós há pessoas que não passaram do cami-
nho do chimpanzé. É um símio que evoluiu, um mamífero domesticado, um
animal intelectualizado, é uma aberração da natureza que recebeu diploma de
alguma coisa e que caminha, todos os dias, com a certeza e impressão de ser
superior ao resto da criação, ao resto da natureza, apenas porque tem a capa-
cidade de construir prédios, de fazer cálculos matemáticos precisos. Por isso
pensa que se tornou um homem. No entanto, não passa ainda de um homo
psychikos, de um indivíduo que, se o dia amanhecer legal, quem sabe ele fique
bem; mas se alguma coisa de ruim acontecer, ele estará destruído para sempre.
Se alguém disser que ele é amado, ele sai dizendo que é o máximo; mas se
outra pessoa disser que ele é um zero à esquerda, ele se torna o que disseram
a ele. É apenas um ser sujeito às pulsões e manifestações do ambiente. Nada
nele é maior do que o que o cerca. Nada nele transcende aquilo que o impac-
ta. Nada nele é uma âncora que o deixe fixo em um chão de vida. Ele quer ser
discípulo porque Jesus é poderoso. Esse homem não passou ainda da fase do
boneco de carne. É daquele tipo que diz que é de Jesus e não de Buda, porque
Buda nunca curou nem uma mosca, e Jesus curou muita gente, até ressuscitou
pessoas de entre os mortos. É aquela fase de quem tem mais poder, de quem é
o Hércules, de quem levanta mais peso. Maomé não conseguiu. Jesus ganhou
a olimpíada dos deuses. Por isso ele é discípulo de Jesus. Mas esse é somente o
indivíduo da olimpíada. Ele diz que é de Jesus e não mais dos espíritos e dos
guias que ele seguia antes, porque os outros guias não conseguiram desassom-
brar a casa dele, por exemplo. E ele foi a uma reunião de poder e nunca mais
a casa estalou. Essa é a profundidade, essa é a consciência, esse é o nível. O
que vai continuar a se manifestar dentro dele é o que antes se manifestava. A
assombração parou do lado de fora, mas continua do lado de dentro. Ele se
compara com todos, inveja, se molesta com o sucesso dos outros, se angustia
com o que terceiros possam pensar dele, deixa-se conduzir o tempo todo pe-
las emoções, ou simplesmente por aquilo que, no seu modo de ver, seja um
caminho um pouco melhor, ainda que não seja vida de Deus no coração. Ele
perde a chance de virar um ser do espírito.
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E o que é um homem pneumático, espiritual? É aquele indivíduo que
tomou a decisão, em Deus, de que não mais será joguete das suas emoções
e que terá uma profunda desconfiança acerca de suas próprias emoções. Vai
colocar, diariamente, seus processos mentais diante da luz da verdade revela-
da no Evangelho. E se esses processos mentais forem condizentes com a ver-
dade do Evangelho, ele os acolhe; mas se estiverem em rota de colisão com o
Evangelho, ele desiste deles. O homem espiritual é aquele que discerne, que
não se deixa levar por impressões imediatas; ao contrário, ele vê coisas espi-
rituais com coisas espirituais, ele vê se o todo faz sentido com o espírito do
Evangelho, com o que Jesus ensinou, que é amor, é alegria, é paz, é verdade,
é justiça, é graça, é reconciliação, é perdão de Deus para conosco e de nós
para com todos os homens. O homem espiritual é aquele que não vê possibi-
lidade de que qualquer coisa que não seja vida de Deus em nele, não seja fé
no coração, e que o que não seja ‘entranhamento’ do amor nosso em Deus e
de Deus em nós, tenha sentido. Ele não se deixa iludir por impressões e nem
por aparências, e desiste de tudo que signifique manifestação de ascendência
sobre os outros pela via das posições e das visibilidades. Ou seja, ele não diz:
Ah, o meu grande sonho é ser levita na casa do Senhor! Não, ele não diz isso
porque quem diz isso é o homem carnal. Quem de fato quer adorar e cantar
não diz isso. A única diferença entre você e o levita na casa do Senhor é que
ele está lá na frente, no palco, e você não. Para o homem carnal o ambiente
é do lado de fora. Não é o coração.
Paulo disse que não falara a eles como homens naturais, pois eles já ha-
viam passado dessa fase, mas também não pôde falar como a espirituais.
Falou como se estivesse falando a criancinhas, a gente do leite, a quem não
podia fazer um desafio ou chamar para uma consciência superior, porque eles
dormiam enquanto ouviam. O indivíduo já começa dormindo.
Eu quero insistir para que você faça a viagem completa; que não pare no
limbo e nem se contente com o fato de já não ser apenas animal vivente,
homem almal, psíquico, homem psicológico, o homem que apenas vive das
emoções. É necessário coragem para fazer a viagem completa, e ao final deste
estudo sobre o caminho do discípulo, ou você terá virado símio, homem
natural mesmo, somente a alminha vivente, parente de capivara; ou então
você terá se tornado o homem espiritual. E o boneco de carne no meio do
caminho vai apanhar até não suportar.
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Sabemos como será a nossa vida se ousarmos andar no caminho do dis-
cípulo sem enganos, sem rodeios. Não é para cantar “manso e suave Jesus
está chamando”, que dá aquela acalmada, sentimos uma emoção, e então
pensamos que a viagem será gostosa e que vamos colocar nosso pé na es-
teira móvel automática. E que depois será somente abrir os olhos e pronto.
Não. Há que se caminhar. Um passo depois do outro com muita disposição
de andar, porque a nossa vocação é para o homem natural, porque somos
seres de uma ambiência espiritual falida dentro de nós. Somos gente muito
entupida, muito doente. Mas o chamado do Espírito de Deus é para que
nos tornemos gente do espírito, gente que não se abala, que sabe celebrar
o nascimento tanto quanto sabe celebrar a morte; gente que aprende a vi-
ver porque já aprendeu a morrer há muito tempo; que já não teme mais
nada porque não teme a morte, não teme amar, não teme crer, não teme se
entregar e confiar. E, então, vai se instalando em nós um software de uma
consciência no espírito cada vez mais aguda, e vamos nos ‘desabestalhando’,
deixando de ser ‘lesinhos’, começando a ter consciência, a juntar as coisas, a
pensar. Mas não pensar como quem esgota os recursos da mente, mas como
o indivíduo que aprende a pensar no espírito. Pensar no espírito não é pensar
com o cérebro; é não ter teto para as limitações impostas pela lógica. Pensar
no espírito é quando esbarramos na lógica e ainda assim temos as promessas
de Deus asseguradas como afirmação de algo que podemos não entender por
inteiro, mas nos está dito que é – porque a Palavra de Deus assim garante
–, e não ficamos estancados por nosso próprio limite. Ao contrário, pensar
no espírito, andar no entendimento em fé, nos põe para além de nós, pois é
somente quando, em fé, vamos para além de nós é que saímos desse estado
que em nós está contingenciado: ou de homem natural ou de homem carnal.
Porque o chamado para ser um homem espiritual é uma anomalia em relação
à natureza das coisas à nossa volta.
Por isso é que Jesus falou do caminho largo e do caminho estreito. O ca-
minho largo é o caminho do homem natural, do homem carnal. É onde cabe
tudo. O indivíduo vai se estiver sentindo, ou não vai se não estiver sentindo.
Ele ama porque simpatiza, ou odeia porque antipatiza. Ele gosta porque acha
que pode ter algum proveito, ou não gosta se não vai aproveitar nada. Ele se
dá bem se recebe cócegas de bem-estar, e é capaz de se sentir profundamente
mal se o outro trouxer estiletes de provocação que o deixem em estado de
desconforto. Aí o mundo se acaba.
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O chamado é para ir além. É para chegar naquele momento da vida em
que, ainda que todas as coisas conspirem de modo contrário, o coração diz
como em Habacuque 3:17, 18:
Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na
vide; o produto da oliveira minta, e os campos não
produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas
do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me
alegro no Senhor, exulto no Deus da minha salvação.
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1. Quem dizeis que eu sou?
Os discípulos já vinham andando com Jesus há algum tempo, até que che-
garam a este momento da estrada, da jornada, do caminho. Alguns haviam
chegado logo no primeiro momento. Foram convidados por amigos, irmãos,
sócios, para dar uma olhada no que estava acontecendo. Ficaram. Outros
foram separados do grupo e, em número de 12, passaram a ser chamados de
apóstolo, que significa enviado, mensageiro, portador de um recado.
No novo Testamento, esse é um apóstolo. Não é aquele ser com um
anel enorme de bispo ou com uma mitra na cabeça e nem com báculo
na mão. E nem tampouco esse ser bruxuleante e macumbado com o po-
der de amaldiçoar os que não contribuírem financeiramente, deixando-os
sob profunda desgraça até que se arrependam e dizimem para o bolso do
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Quem dizeis que eu sou?
Não existem geografias fixas nem ambientes que sejam únicos, porque,
para ser discípulo de Jesus é necessário segui-lo nos veios, nos singramentos,
nos cortes, nos canais; nas trincheiras, vales, penhascos, planuras, planícies e
planaltos; nas regiões abissais. Ele diz: Onde quer que eu esteja indo, aí será
o caminho do discípulo. Por isso, venha e veja.
Portanto, não estamos falando de algo que acontece em um lugar de
reuniões. Estamos falando de algo que somente pode acontecer um dia de-
pois do outro, de modo consciente e lúcido, entre a hora em que se acorda
e a hora em que se dorme. Mas também de modo inconsciente e aberto à
palavra, até quando se dorme. É algo para o todo da vida, sem interrupção,
sem férias, sem dias santos para santificarem os caprichos do nosso egoísmo,
da nossa mesquinharia. É um convite para toda hora, para todo o tempo. É
uma jornada sem paranoia e sem neurose, porém de renovação automática,
constante, da mente; de suspeição permanente a respeito das mudanças sutis
e desviadoras do nosso próprio pensamento em relação ao Evangelho. De
modo que todo dia, muitas vezes por dia, teremos de trazer os pensamentos,
as emoções, as opiniões, as fixações dos desejos, ao crivo do Evangelho, à
palavra da vida.
Então, esse é o grupo que vem andando com Jesus. E em Mateus 16:1-12
se diz que Jesus inicia fazendo a eles uma advertência em relação aos fariseus
e aos saduceus. Cuidado com eles.
Os saduceus eram, em geral, oriundos da classe sacerdotal de Israel e for-
mavam também um partido político de centro-direita, aliado sempre com
Herodes e com as linhagens herodianas, consequentemente, com os roma-
nos. Porque interessava a eles a manutenção do seu próprio poder como
controladores do templo em Jerusalém, como também do ofício, do rito, da
arrecadação. Era onde rolava a grana. Era onde os fariseus queriam estar: Na-
quele ambiente religioso de muito controle, de muita sobriedade sacerdotal,
de muita pompa, de muita manifestação de importância e de imponência.
Uma elite política que se relacionava com os poderosos que controlavam o
país. Tanto os pró-consules romanos indicados quanto aqueles que fossem,
eventualmente, os reis postiços de Israel, como os Herodes conseguiram ficar
durante um período de, praticamente, cem anos.
Então, Jesus diz: Cuidado com os saduceus, acerca de quem o Novo Tes-
tamento diz ser um grupo que não cria em nada. Não criam em anjos, em
24
Quem dizeis que eu sou?
que ainda vai reunir todos no monte do Templo e dizer: Escolham hoje a
quem vocês servem – ao Senhor, ou aos romanos? E o Senhor vai disciplinar
quem pensar diferente. Muita gente tem essa expectativa de que o Senhor
é Elias. E tem de chegar com arsenais melhorados e mais fortalecidos, não
pode ser uma bolinha de fogo para destruir o altar, tem de ser uma bola nu-
clear para acabar com os romanos. Outros dizem ser Jeremias, por esse tom
de pregação profética sobre a destruição do Templo e por não dar a menor
importância para os significados das construções e nem para o poder que os
judeus conseguem arregimentar nos conluios com os romanos. O Senhor
está sempre avisando e dizendo que os dias são maus e que se não houver
conversão todos perecerão. Por isso, as pessoas dizem que o senhor se parece
com Jeremias, anunciando o exílio, o cativeiro, ou uma desgraça. Deve ser
Jeremias andando entre nós. Carregando um choro ambulante por Israel. E
há ainda os que dizem ser o senhor qualquer um dos profetas.
E Jesus diz: Mas agora eu quero saber o que vocês, os enviados, os após-
tolos, os discípulos, esses que eu estou enviando para pregar, dizem quem
eu sou. Olhem bem e digam quem eu sou, mas não deem uma resposta
evangélica.
E qual seria essa resposta? Ah, o Senhor é filho de Maria. E ela era vir-
gem quando o Senhor nasceu. E vieram anjos e cantaram; vieram magos do
Oriente. O Senhor nasceu em Nazaré.
Não, a pergunta de Jesus não era sobre genealogia, currículo ou pedigree.
A pergunta era simples: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Quem sou eu para
vocês? E Pedro tomou a palavra e disse: Tu és o Cristo, o Messias, o prometi-
do, aquele enviado que viria da tribo de Judá. És a promessa cumprida a Davi
de que, da sua descendência, viria aquele cujo reino é eterno. Tu és o eco do
grito de Miquéias de que viria o Cristo, cujas origens eram de antes da funda-
ção dos tempos. Tu és o sonho de Isaías, o amor e a paixão de Deus entre os
homens, o Messias, o enviado inteiro de Deus. Tu és o Filho de Deus, que em
Israel equivalia a dizer: Tu és Deus. Porque, de acordo, com Caifás, o sumo
sacerdote que julgou Jesus no final, a acusação que prevaleceu para o decreto,
a sentença final de morte, foi esta: Ele se diz Filho de Deus, fazendo-se a si
mesmo igual a Deus. Esta era a interpretação judaica.
Portanto, quando Pedro disse “Tu és o Messias”, até ali estava tudo bem.
Ainda que alguém não concordasse, era uma esperança de Israel que alguém
27
O Caminho do discípulo
o fosse. Mas ele vai mais além. Ele pega Miquéias e afirma que o Messias, de
fato, é eterno. E Jesus disse que ele era feliz. Simão, tu és um homem bem-
aventurado, porque não foi carne nem sangue, não foi intelecto, teologia,
junção de imagens, não foi concatenação, nem a capacidade de elucubrar,
não foi a filosofia, nem a autoiluminação, não foi a autogenialidade, não foi
nada disso quem to revelou estas coisas.
Discernir o que Pedro discerniu é impossível pela teologia, pela filosofia.
E os teólogos tinham de ser honestos, como os sacerdotes judaicos, e dize-
rem que, de fato, era um escândalo afirmar que, quem quer que fosse, fosse
Deus. Os teólogos tinham de admitir que, por nenhuma teologia se chegaria
à conclusão de que aquele que estava ali – com um metro e setenta, mais ou
menos, moreno ou claro, cabelos grandes ou curtos, com cheiro de macho –
era Deus. Não dava. Pela teologia não dava. Seria a idolatria dos sentidos, de
acordo com Israel: “Ouve, ó, Israel, o Senhor nosso Deus”.
Não apareceu com nenhuma aparência, ninguém viu nada. Imagine che-
gar alguém aqui e dizer:“Eu e o pai somos um”. Pela teologia é heresia. Pela
filosofia é loucura. O criador do cosmo e de tudo o que existe vai virar um
carinha deste tamanho andando entre nós, compactando o Eterno, no tem-
po e no espaço, dialogando com os homens? Loucura! Não existe tal coisa.
Por qualquer que seja o meio, a via, não existe tal coisa.
Pedro, não foi carne e nem sangue que to revelaram essas coisas, mas meu
Pai que está nos céus. Porque isso vem somente por revelação do Pai, não
vem por cogitação humana, nem por elucubração e nem por qualquer outra
coisa ou outro meio.
E se alguém diz: Não, eu nunca tive esse problema, eu já nasci crendo. Eu
diria que esse é um grande equívoco seu. Ninguém nasce crendo. Ninguém.
Nenhum de nós. Porque carne e sangue não produzem isso. Genética, berço,
nada produz isso. Pai e mãe não geram isso. Não nasce da carne e nem da
vontade do homem. Nasce somente do Espírito.
Então, ser discípulo de Jesus é algo que começa com a invasão do so-
brenatural na nossa vida. Do contrário, se é discípulo do cristianismo, dos
evangélicos, dos católicos, dos espíritas kardecistas que leem o evangelho
antes da sessão começar. Discípulo de qualquer coisa, menos de Jesus. E é
impossível ser discípulo de Jesus sem conhecer Jesus. Nesse caso, não é disci-
pulado de Jesus, mas presépio de discipulado, que é o que a religião oferece
28
Quem dizeis que eu sou?
que deixam de existir somente quando a alma for estuprada pela bondade de
Deus, pela revelação de Deus, quando for emprenhada pela Graça que diz
sem medo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
Essa não é uma declaração para os outros e nem para fora. Não é uma
tentativa marqueteira de divulgar Jesus. É um cara a cara com Deus, dizendo:
Para mim, Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Depois ele mesmo iria dizer,
quando muitos o abandonaram: “Não quereis vós também retirar-vos”? E
Pedro respondeu: “Para quem iremos? Somente Tu tens as palavras da vida
eterna...”.
Discipulado somente começa quando se instala dentro de nós o “somente
tu” em relação a Jesus. Sem o “somente tu”, em relação a Jesus, não há disci-
pulado. Com “também tu”, ou “tu maior que os demais”, ou “tu melhor que
os outros”, ou “tu superior aos outros”; ainda que tenha “os outros”, mas não
“tu”, com Jesus é “somente tu” e nada mais.
O discipulado está plantado em nós quando começa a confissão de quem
ele é, e vai se concluindo todo dia com as afirmações que vamos fazendo
contra todos os dissabores, contra os choques, contra os escândalos, contra
tudo que não se entende de imediato, contra tudo que nos parece ser uma
manifestação de esticamento do nosso ser, mas ainda assim permanecemos
dizendo: Para quem, para quê e para onde se para mim “somente tu”? A
primeira coisa, portanto, é que o caminho do discípulo começa somente
quando existe essa revelação que explode no nosso interior.
Paulo falou a respeito deste momento-revelação com algumas figuras de
expressão bem interessantes. Primeiro ele associa esse “somente tu” de Deus
na vida dele, essa luz que chega, que ilumina, com a criação do mundo. Por-
que ele andava pela estrada de Damasco, quando uma luz brilhou do céu.
Quando ele veio a escrever, posteriormente, a respeito disso, fala de um Deus
que, das trevas, disse: “Haja luz”. E houve luz e fez resplandecer em mim a
iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo Jesus. O
que aconteceu comigo, quando essa revelação chegou, era como a terra no
princípio, sem forma e vazia. Existente, mas não vivente. E a palavra de Deus
chegou e Deus disse: “Haja luz”. E de ente existente passei a ente vivente,
afirma Paulo.
Outra imagem que ele usa é a de um coração represando, resistindo: en-
tão superabundou, então transbordou, explodiu a Graça de Deus. E a pa-
30
Quem dizeis que eu sou?
lavra grega que ele usa é justamente aquela que designa o arrebentamento
de uma represa que estava contendo aquilo tudo e arrebentou, estourou. A
Graça prevaleceu.
A terceira imagem é a de um parto, quando ele diz, em I Coríntios 15,
que – diferentemente dos demais apóstolos que tinham encontrado Jesus,
enquanto ele andava por aqui – ele veio a encontrá-lo como um nascido fora
de tempo, fora de hora, quando Jesus já não estava. E Paulo diz que nasceu
como um nascido fora de hora usando um termo que designava um parto
difícil, de uma criança em sofrimento, de uma mãe que não conseguia dar à
luz e precisava da ajuda de parteiras que arrancassem a criança com as garras,
com fórceps, puxando para fora.
Para Paulo fora um nascimento provocado por trauma, por arrancamento de
Deus para fora. Essa imagem, juntamente com muitas outras, mostra uma coisa
que, na mente de Paulo – à semelhança do que deve existir na mente de qualquer
outro discípulo – não se inicia esse caminho sem que se seja invadido pela reve-
lação. Se não for assim, ninguém nasce. É ato de Graça amorosamente estúpida.
É Graça forçando a resistência, que arrebenta a represa. É luz que chega e vitaliza
uma terra sem magma, sem pulsão, uma terra pedrada, rochosa, uma terra que
não produzia vida. Sem essa luz, sem essa Graça, não há criação, nada acontece.
A primeira coisa que precisamos fazer, iniciando essa jornada, é perguntar
de quem somos discípulos. Somos discípulos das muitas catequeses? Precisa-
mos muito estar junto com os outros crentes, porque, se ficarmos um pouco
afastados perderemos a fé? Você é do tipo que se converteu e rompeu com
todas as amizades, com o chamado mundo, senão jamais iria caminhar na fé?
Daquele tipo que se ficar exposto a pensamentos muito diferentes se sente
muito angustiado porque parece que as convicções estão sendo roubadas?
Você é do tipo que fica desesperado quando alguém diz alguma coisa sobre
Jesus que possa parecer que, na mente dele, Jesus se tornará menos desejável?
Ou do tipo que sente uma obrigação enorme de afirmar para si mesmo que
crê nas coisas porque, lá no fundo, não tem certeza da maioria delas? Ou ain-
da do tipo que treme todinho quando vê na internet um link que relativize
a Bíblia como Palavra de Deus, Jesus como Filho de Deus, a fé como meio
único de vida com Deus? É assim?
Se alguém é desse tipo, eu digo que é um discípulo de crenças, de doutri-
nas. Por isso fica tão nervoso quando qualquer coisa chega, aparentemente,
31
O Caminho do discípulo
questionando os pressupostos das suas crenças, dos dogmas nos quais está
amparado. E aí, o coração claudica, balança, se aflige, se perturba. E alguém
me escreve dizendo: Você tem algum artigo que me ajude a não ficar nesta
dúvida? Mas o que ele quer dizer é: Ajude-me, estou para perder a fé!
Alguém aqui é desse tipo? Se é assim, tem muita vela na sua vida. Tem muita
luz de neon, lamparina de terceiros, mas a luz não acendeu aí dentro. Sabe por
quê? Porque a maioria dos discípulos que eu conheço se abala profundamente
com o que os outros pensam Imaginem um Pedro evangélico, andando por aí,
ouvindo aquela conversa do povo? É Elias? Não. É João. Eram primos. Eles até
se parecem. Ele é ousado como João. Não há registro, no Evangelho, de Pedro,
por exemplo, gritando, discutindo. Ele somente ouviu. E repetiu: “Uns dizem
que tu és João Batista, outros dizem que tu és Elias; outros, que és Jeremias ou
algum dos profetas”. Veja que Jesus começa perguntando o que os outros pen-
sam. Depois é que ele pergunta aos discípulos: O que vocês pensam?
O discipulado não começa enquanto as vozes dos outros não deixam de
nos perturbar. Enquanto o que os outros pensam nos perturbam, é porque
não recebemos ainda a luz final que, para começar, tem de ser recebida.
O paradoxo do discipulado é que ele não começa sem que a luz final co-
mece, sem que haja essa realidade final no começo. O discipulado não começa
se ele já não começar acabado, no sentido de que já está definido: Tu és. O
resto é processo em nós. Enquanto o que os outros pensam ou dizem nos per-
turbar demais, o caminho do discipulado não se fincou no coração.
Para refletir
1. Você está satisfeito com o que entende de Jesus?
2. Qual é a razão de Jesus dizer para se ter cuidado com saduceus e fariseus?
3. Que tipo de fé tem o saduceu?
4. Que tipo de fé tem o fariseu?
5. Quais as três imagens que Paulo usa para falar do momento-revelação que dá
início ao caminho do discipulado?
6. Avalie o seu coração e, verdadeiramente, responda: Quem é Jesus para você?
7. De quem você é discípulo?
32
2. A loucura de ser discípulo
Imaginem! Com que coração, com que mente, com que percepção, ou com
que compreensão de fatos alguém poderia chegar à conclusão de que aquele que
estava diante dele era Deus encarnado, era o Cristo de Deus? E na consciência
judaica – para não falar da fé de Jesus, apenas da fé dos judeus – essa afirma-
ção significava aquilo que o sumo sacerdote Caifás, posteriormente, veio a usar
como critério final para determinar que Jesus era o herege dos hereges. Porque
dizer, ou aceitar que alguém diga, que você é o Filho de Deus – de acordo com
a interpretação mais ortodoxa – era fazer-se a si mesmo igual a Deus. De modo
que, quando Pedro diz “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, ele está catapul-
tando aquele moço de trinta e poucos anos de idade para a direita do trono de
Deus nas alturas, o todo-poderoso. Um serzinho do tamanho dele, parasitaria-
mente do tamanho de Pedro, amebinha na Galileia, de repente, é Deus.
Ser discípulo de Jesus é uma impossibilidade humana. Uma possibilidade
humana é ser discípulo de Buda; isso é totalmente possível. Não se faz nenhu-
ma ruptura radical. Apenas se aceita disciplinas radicais. Não se tem de dar
nenhum grito e nem fazer uma afirmação dessas que tornem toda lógica, todo
bom-senso, toda compreensão, toda capacidade de raciocínio completamente
anulados. Não existe a possibilidade de alguém ser discípulo, de fato, de Jesus
se isso não for uma revelação do Espírito Santo, se isso não chegar ao indiví-
duo como um constrangimento superior a toda lógica, a toda opinião, a todo
bom-senso, a toda possibilidade filosófica de compreensão, porque, de fato,
estará diante de algo totalmente impossível aos sentidos. Discípulo de Jesus
que consegue justificar a sua adesão visceral ao caminho de Jesus como sendo
uma coisa racional não entendeu ainda nada.
Às vezes, ouço alguém dizer: Sou discípulo de Jesus porque sou muito inte-
ligente e tenho todas as razões do mundo para ser seu discípulo. E eu respon-
do: Interessante! Eu nunca consegui chegar a essa conclusão, porque eu tenho
todas as razões do mundo para não ser discípulo de Jesus. O que ele me ensina
bate de frente com minha natureza instintual o dia inteiro. Ele diz para dar a
outra face, e eu quero meter a outra mão na cara. Ele diz para não resistir ao
inimigo, e meu instinto quer atropelá-lo. Ele diz para eu não me vingar, mas
tudo em mim quer se levantar. Ele diz que não é para julgar, mas eu já tenho
um software de perversidade rodando em mim, julgando o dia inteiro. Ele diz
que é para não cobiçar, mas o meu coração vive como um buraco negro, quase
todos os dias engolindo, monstruosamente, tudo que entra pelos olhos.
36
A loucura de ser discípulo
Ele nos diz que o grande segredo da vida é praticar a fé da maneira mais
singela, simples, íntima, amorosa, profunda e discreta diante de Deus, no
secreto, e que as demais coisas são manifestações dessa experiência de amor,
como fruto da fé, no todo da vida; mas que nós não devemos, sob hipótese
alguma, manifestar isso como uma bandeira que se transforme numa cara,
num gesto, numa interpretação, numa performance, que é algo que trabalha
contra toda nossa paganidade psicológica, que necessita ser vista, ser afirma-
da, ser reconhecida, ser aplaudida. Necessita que os outros digam: Este, sim,
é o melhor! Este encontrou o caminho!
Isso para falarmos apenas nos seus ensinos que batem de frente, o tempo
todo, contra essa natureza arruinada. Mas ainda vem o pior de tudo. Pois
sobre seu ensino, alguns podem simplesmente ouvir e dizer: É extremamente
superior a mim, mas eu sei que está certo. Pena que eu não sou assim, mas
eu dou razão ao ensino desse profeta Jesus. Seu ensino até que aceitamos. O
difícil é ele. Ele é que é insuportável. Ele é quem diz: “Aquele que comigo
não ajunta, espalha. Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao
Pai senão por mim”. Isso é uma desgraça! Para com isso de que ninguém vem
ao pai senão por mim!
Então, o problema é ele. É Jesus. É o que ele diz de si. É o lugar de con-
vergência total no qual ele se coloca. É o seu exclusivismo megalomaníaco.
É essa capacidade dele de dizer: “Eu e o Pai somos um. Quem vê a mim, vê
o Pai. Como dizes tu mostra-nos o Pai? Tu não crês que o Pai está em mim
e eu estou no Pai”? Isto é chocante. Ele diz que quem não crer nele não tem
a vida eterna em si mesmo.
A quem quiser resolver o problema da sua existencialidade de maneira
absoluta, ele diz: Creia em mim, coma de mim, beba de mim, porque sem
mim nada podeis fazer. Então, o problema, mais do que seu ensino, é ele.
É o lugar onde ele se coloca, dizendo que todas as coisas nos céus e na terra
giram e se revolvem em torno desse eixo que ele significa, que ele represen-
ta. Aí é onde está a loucura, o escândalo.
Agora veja se eu não tenho razão. Se não foi mais fácil, para mim, nas-
cer neto da mãe Velhinha, que já era presbiteriana, e que desde cedinho
me ensinava: Repete, meu filho, “O Senhor é meu pastor, nada me falta-
rá”. Minha mãe ensinando também com os puxões de orelha, em nome
de Deus, de vez em quando. Uma palavra que vazava aqui e ali o tempo
37
O Caminho do discípulo
Essa palavra de Jesus chega a esse homenzinho que fez uma viagem que
Sócrates não faria sozinho, que Platão não faria sozinho, que Zenão, Epi-
curo, sábios e rabinos de Israel jamais fariam sozinhos. Jesus simplesmente
diz que é bem-aventurado o homem que fez uma declaração que homem
nenhum por si só a faz.
Paulo diz, em I Coríntios 12:3, que ninguém diz que Jesus Cristo é o
Senhor se não for pelo Espírito Santo. E com isso ele está dizendo que é
impossível alguém, apenas como uma construção oral, abrir a boca e dizer
38
A loucura de ser discípulo
que Jesus Cristo é o Senhor sem que isso seja pelo Espírito Santo. O que ele
diz é que nenhum coração verbalizará, com fé, essa confissão se isso não for
uma emulação do Espírito Santo; do contrário, jamais será algo verdadeiro. A
menos que seja algo do Espírito de Deus, é loucura. O Evangelho desestimula
qualquer tipo de declaração sobre Deus que não tenha sido revelação acolhida
no coração. Se o fizermos, sem que creiamos, é loucura. É loucura até dizer
que Jesus é Deus. Não diga. Fica melhor para você. Jesus não tem nenhum
problema se alguém não diz que ele é Deus porque não crê que ele seja Deus.
Horrível é dizer que ele é Deus quando não crê que ele seja Deus.
Bem-aventurado, Simão, porque não foi carne nem sangue que to reve-
laram, porque carne e sangue não chegam a essa conclusão. Ela é absoluta-
mente idiota, implausível, impossível, absurda. Para podermos dizer que o
homem Jesus – que encarnou e viveu entre nós, que era um homem do nosso
tamanho, com todas as manifestações da própria humanidade – era também
Deus, somente como revelação do Espírito Santo.
A outra hipótese é a lavagem cerebral. Aí é coisa de seita, de maluco, que
ficou condicionado, repetindo: É filho de Deus, é filho de Deus. E mui-
tas pessoas já passaram por isso. Mas isso não produz nada. Gera somente
uma mente doente, neurótica, nervosa, que vai, irremediavelmente, surtar na
maioria das vezes. No entanto, dizer que ele é o Filho de Deus e afirmar isso
com o coração cheio e pleno de fé somente pela revelação do Espírito. Por
outra via nenhum de nós chega a essa conclusão.
A primeira advertência que Jesus fez em Mateus 16, em relação a esses
discípulos, foi a de que eles deveriam se acautelar da doutrina, do fermento,
da influência dos saduceus e dos fariseus. Os saduceus, significando aquele
projeto de espiritualidade feita apenas de rito, de religião, de forma, porque
os saduceus não criam nem em anjo, nem em espírito, nem em ressurreição,
nem em vida eterna. Era aquela manifestação de uma fé ética, na fraternida-
de, nos interesses imediatos e no projeto político que eles tinham.
Jesus disse: Cuidado, porque antes de o indivíduo estar com o coração
totalmente atolado da convicção de que Jesus é Deus, uma das primeiras
tentações é achar que qualquer pessoa, para começar a segui-lo, tem de
logo sair dizendo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Não, isso é de-
pois na jornada. Esses discípulos já estavam andando com Jesus há algum
tempo. E Jesus não pregou para eles. Ele não chegou dizendo: Olha, eu
39
O Caminho do discípulo
Entre nós não acontece nada sem que nos assentemos para tratar do
assunto. Jesus não chamava ninguém para conversar. “Segue-me”, era o
chamado dele. Vem comigo, porque, até quando eu me assentar, eu estarei
andando. Vem comigo, porque quando eu me assentar, você se assentará
comigo. Então, se você se assentou comigo, você não se assentou, você
me seguiu. E eles vieram e o seguiram por razões diferentes. Mas isso não
estava implantado dentro deles desde o início. Eles não diziam: Poxa, eu
aceitei Jesus. Eu sei que ele é o Filho de Deus. Aleluia! Não. Eles foram
caminhando, tateando. Curas, milagres, choques, sustos, reviravoltas. E
eles comiam, bebiam, dormiam, acordavam – como João diz – “expostos
ao Verbo da Vida, à Palavra encarnada”.
E eles vão em direção à Cesareia de Filipe, no norte do país, uma cidade
pagã, construída por Herodes Filipe em homenagem a César, o imperador,
concorrendo com a cidade de Cesareia Marítima, lá na costa mediterrânea,
que fora construída por Herodes, o Grande. Jesus começa a lhes dizer para
terem cuidado com a doutrina e com o fermento dos fariseus e dos saduceus.
Ele diz: Vocês, à semelhança deles, correm o risco de se tornarem gente ape-
nas das formas; correm o risco de se tornarem pessoas apenas farisaicas, das
regras; e, depois de um tempo, vão perder a pureza dessa fé que se conecta
com o Deus eterno e que crê que tudo de Deus possa vir. E com o tempo
podem perder a alegria de uma caminhada que se alimenta da sinceridade;
podem ir se transformando em pessoas performáticas, apenas para consumos
externos – como os fariseus –, perdendo todo o sentido da vida. Isso impreg-
na e cresce numa sutileza enorme que pode destruir toda a construção dessa
viagem. É aí, depois disso, que ele faz a pergunta: “Quem dizem as multidões
que eu sou”? E ouve as respostas. “Mas vós, continuou ele, quem dizeis que
eu sou”? E ouve de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
No entanto, passou um tempo de caminhada para que se aprofundasse
neles a consciência de quem Jesus era. Eles tinham chegado como muitos de
nós chegamos. Alguns por fascinação – porque Jesus era fascinante. Mesmo
que para eles não fosse Deus, era fascinante. Era carismático como ninguém.
Era agradável como ninguém. Outros chegavam por mera sedução, ou por
interesse, perplexos. E outros, por razões pragmáticas. Ele cura e é bom ficar
ao lado de quem cura. É bom ficar ao lado de quem diz uma palavra e as
coisas acontecem. Outros chegaram simplesmente por construção teológica
41
O Caminho do discípulo
e análise política. Roma é o diabo. Ora, se Roma é o diabo, deve ter chegado
o tempo da visita de Deus aos homens. Se é mesmo Deus quem visita, eu não
sei, mas que é um profeta que ele vai mandar, certamente. Jesus apareceu e
eles disseram: Vamos ver, não custa nada!
Outros chegaram por interesses um pouco mais distantes. Talvez até te-
nha sido o caso de Judas Iscariotes, que pode ter imaginado que se alguma
coisa nova fosse acontecer em Israel seria pela via daquele homem. Precisaria
estar presente na hora em que esse grande movimento de reviravolta e mu-
dança de poder se instalasse em Jerusalém. Ele deve ter cantado: “Eu quero
estar com Cristo quando a luta se travar...”. Isso cabe na boca de gente boa e
também cabe na boca de Judas.
Então, as razões para o seguirem podem ter sido as mais diversas e foram.
Há ainda os que foram por gratidão. Mais ou menos como acontece ainda
hoje. A maioria de nós também segue caminhando com Jesus por razões mui-
to chulas. Muito pagãzinhas. E Jesus sabe. Pedro andou com ele – todos eles
andaram – um ano e tanto, e Jesus sem nenhuma pressa. Pedro, você já acei-
tou Jesus como seu salvador? Se Jesus fosse evangélico, pelo amor de Deus,
seria um horror! Ainda bem que ele não era. Jesus sabe como nós somos.
E a primeira coisa que eu pediria é que nós esquecêssemos essa falsa ideia
do que é um discípulo. Nós somos todos candidatos. Candidatos no cami-
nho do discipulado. Herdamos um bocado de coisas, já encontramos um
pacote meio formatado, pronto, feito. Toda pessoa, mental e razoavelmente
sadia, tem “uma” fé. Faz bem, é um eixo mental, auxilia na autoajuda. Qual-
quer coisa. É um risco dizer que não se tem Deus; afinal de contas, com tanta
esquina macumbada, é melhor mesmo, na hora de fazer gol, nos benzermos.
Na hora de perder também. Nós nos benzemos em qualquer caso. É de ben-
zimento em benzimento que nós vamos, mesmo quando não nos benzemos.
Mas Jesus sabe. Assim como sabia quando estava entre eles.
Veja que a palavra não foi tomada unanimemente pelos apóstolos. Não se
diz que o grupo dos doze, a uma só voz, cantou: “Tu és o Cristo, o Filho do
Deus vivo”! Não. Foi somente um. Pode até ser que os outros onze tivessem
a mesma coisa a dizer, mas não disseram. Houve quem dissesse ser João Ba-
tista. Explica para mim se é ou se não é, com isso colocando a culpa numa
pesquisa de opinião em algum lugar. Outros dizem ser Elias. E Jesus olha e
diz: Interessante! E outros ainda dizem ser Jeremias. E vocês, o que dizem?
Silêncio... E foi Pedro quem disse: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
42
A loucura de ser discípulo
Quem acha que é discípulo acabado está acabado mesmo. Discípulo acaba-
do é um discípulo falido. O caminho do discipulado é um caminho aberto,
cotidiano, de construção em construção. Como diz a Palavra, de glória em
glória, de fé em fé. E é assim que se vai num processo infindo.
A advertência original de Jesus foi: Tenha cuidado para que, nesse proces-
so, não entre o ceticismo dos saduceus nem a performaticidade oca e vazia
dos fariseus; e para que ninguém se torne uma pessoa impressionada com a
opinião dos outros, nem do povo, nem com interpretações a meu respeito.
Nesse processo, a única coisa que pode fincar e firmar você é a revelação do
Pai acerca de quem eu sou. Mas a revelação do Pai acerca de quem eu sou
não é a revelação do Pai acerca de quem você é. Jesus quer que aprendamos
isso. Porque Pedro podia dizer apenas quem Jesus era. O que Pedro não sabia
ainda dizer é quem ele próprio era.
O caminho do discípulo é um caminho onde quanto mais se discerne
quem Jesus é, mais avulta a percepção de quem nós não somos em rela-
ção a ele, de que somos de maneira dessemelhante dele, diferente dele.
Quanto mais eu o percebo, mais a minha autopercepção se mostra tão
diferenciada da dele. E isso não abisma nada entre mim e ele; apenas cria
a percepção da realidade que vai me fazer, dia a dia, me entregar mais e
dar mais razão a Deus.
De maneira bastante enfática, eu queria deixar uma palavra a mais. Que-
ria apenas que se prestasse atenção, de todo coração, no significado de se
estar no caminho andando com ele e na gradualidade dessa percepção. O
discípulo, frequentemente, pensa que as conquistas do discipulado são coisas
que nele se instalam gerando quase que a impossibilidade de que ele venha a
equivocar-se novamente acerca de Jesus. Mas não é assim. Nós podemos abrir
a boca hoje para dizer a coisa mais verdadeira possível sobre ele, e amanhã
abrirmos a boca para fazer as negações mais radicais daquilo que nós mesmos
havíamos afirmado como a realidade central da nossa convicção e da nossa
fé. O caminho do discípulo pode, subitamente, nos colocar nessa variação
que diz “Tu és o Cristo”, e depois ouve “Arreda, Satanás”. Porque o que pode
salvar a mente do discípulo é apenas a revelação do Pai. “Bem aventurado és,
Simão Pedro, porque não foi carne e não foi sangue quem to revelaram, mas
meu Pai que está nos céus.” Arreda, Satanás, tu és para mim pedra de trope-
ço, porque não cogitas das coisas de Deus e, sim, das dos homens”.
44
A loucura de ser discípulo
Se o indivíduo vai a Jesus achando que está lhe fazendo um favor, eu lhe
digo: Deixe de ser bobo, meu irmão. Ele não precisa de adulação de ninguém.
Não o busque por qualquer outra coisa. É um chamado para se atolar em Deus,
mas por mais que se tenha chegado e ainda esteja nesses processos relativos – de
nunca se dar, nunca se derramar, nunca se entregar –, eu quero lhe dizer: Jesus
sabe. Ele está dando um tempo. Aquele dia foi a vez de Pedro dizer o que disse.
Houve ocasiões em que outros disseram outras coisas. Houve ocasiões
em que outros não disseram nada, mas bancaram tudo, como quando todo
mundo correu, mas as mulheres, que quase nada disseram, tudo disseram
ficando ali. Ou como João, que não correu como os demais, mas até se es-
condeu na saia de Maria para chegar bem pertinho, viu que Jesus sabia de
tudo e que não houve questões a respeito. Aquele dia era apenas o dia de
Pedro. Mas existe o dia de todos nós e de cada um nessa jornada. E Jesus sabe
disso. Eu não sei em que ponto da viagem você está. Às vezes, chegamos e
vamos ficando por razões muito superficiais e pequenas. Ou por causa do pai
que admiramos, ou da mãe que queremos bem, ou do irmão mais velho que
se converteu e está firme lá, resgatou a família... Por Jesus o meu irmão se
tornou o primogênito espiritual da casa; eu sou muito grato a Deus por isso,
então eu vou com ele. Ou é pelo maridão legal, ou pelo namorado ou namo-
rada novo. Ela se encantou com ele, que é discípulo de Jesus – somente Jesus
para fazer uma pessoa tão maravilhosa. Eu vou lá. E aí é aquele discipulado
não pela fé, mas por outras coisas.
Tem ainda aquela pessoa que se envolve com tudo. Aquele cara que é fla-
menguista em todas as direções. Se tiver um batuque, ele balança a bandeira;
se tiver banda, ele está dançando; não quer saber quem morreu, ele quer é
chorar. Tem muita gente assim. Vai visitar um amigo na fazenda e o amigo
diz que a associação de moradores está com programa para ajudar os pobres
dessa beira de estrada, logo ele diz: Conta comigo, estou dentro. Tenho de
ajudar nessa boa causa.
Ele faz a mesma coisa na igreja, na reunião, seja lá onde for. Se alguém diz
que ali é o gazofilácio, ele diz: Já aluguei esse cara – o Pastor – por duas horas
falando comigo, então, o mínimo que eu posso fazer é deixar uma contribui-
ção. Eu sou um cara do bem e quero ficar bem; afinal de contas é para Jesus.
Pelo menos dez reais tenho de dar, é para Jesus. Então, as razões pelas quais
as pessoas ficam são as mais diversas. E Jesus sabe disso.
46
A loucura de ser discípulo
Quando alguém diz que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, está
querendo dizer o quê, com isso? Que ele é mais um dentre vários? Que ele
é o mais legal no meio de muitas pessoas espiritualmente meio equivalente?
Ou significa o que começava a significar para Pedro? Que, de fato, ele não
seguia um líder, nem um mestre, nem um guru, nem um iluminado, nem
um profeta, nem a mente mais brilhante, nem o espírito mais elevado, nem
o maior curador de todos os tempos, nem tampouco o mais paranormal? Às
vezes, se leva um bom tempo na jornada para adquirir essa consciência. Mas,
cuidado, pois mesmo quando essa consciência entra em nós, ela não chega
para nos isentar, nos blindar, nos bloquear, nos fechar para a possibilidade de
que possamos viajar para fora dessa percepção por qualquer que seja o nosso
surto. A afirmação que Jesus fez sobre o que tinha acontecido no coração
de Pedro, não tendo sido processada com o devido cuidado e calma, logo a
seguir o fez pensar que aquela revelação o habitava, que morava nele, que era
dele, que lhe pertencia, e que qualquer coisa que procedesse da sua cabeça
tinha de ser oráculo de Deus, palavra de Deus. E é nessa hora que ele ouve,
da mesma boca de Jesus: “Arreda, Satanás”.
O caminho do discípulo, frequentemente, acontece entre a revelação
e a repreensão de Deus. De um lado, a revelação: Bem-aventurado tu és.
De outro lado, a repreensão, porque, muito facilmente, o discípulo mis-
tura o que lhe é dado por revelação com o que lhe sobe à cabeça como
cogitação. Pedro, um dia, recebeu revelação e ficou achando que todos
os seus pensamentos bondosos acerca de Deus e de Jesus seriam também
revelação, porque ele estava com o coração bondoso em relação a Jesus.
Ao ouvir Jesus dizer que iria para Jerusalém, que iria sofrer, ele disse: Não,
de jeito nenhum. Está pensando o quê? Não sou um discípulo desses que
somente assistem. Estou aqui para carregar o piano; de jeito nenhum, isso
não vai acontecer.
O que o discípulo de Jesus precisa aprender é que nossa bondade, nosso
amor, nossos melhores pensamentos e intenções não bastam. A questão não
é o que Pedro defendia. Ele defendia a vida de Jesus, impedindo uma ação
mortal, tirânica; uma causa que qualquer ativista social abraçaria imediata-
mente. A causa de Pedro daria para fundar um partido político, daria para
animar todos os Martins Luther Kings desse mundo. Vamos defender Jesus
contra Roma, contra o Sinédrio. Vamos defender!
47
O Caminho do discípulo
Para refletir
1. O que você pode dizer sobre quem é o discípulo?
2. Quais são os ensinamentos de Jesus que batem de frente com a nossa natureza
arruinada?
3. Qual é a loucura, o escândalo, de Jesus?
4. Qual é a loucura, o escândalo, do discípulo?
5. Quais as várias possibilidades de se dizer: “Jesus Cristo é o Senhor”?
6. Por que se acautelar do fermento e da doutrina dos fariseus e dos saduceus?
7. O quanto você está desligando ou ligando os ensinos de Jesus na sua vida?
8. O quanto você tem sido motivado por cogitação sua ou por revelação de Jesus a
você sobre Ele mesmo e, depois, sobre você mesmo?
Anotações
48
3. A confissão do discípulo
3. Enternecido, comovido.
4. www.caiofabio.net
50
A confissão do discípulo
até professor de seminário, um Ph.D. Pode até virar pastor de igrejas que
remuneram muito bem, mas não será ainda discípulo de Jesus. Porque o
discípulo de Jesus é aquele indivíduo que foi acometido pelo surto de Deus
na vida. Não dava para olhar para um rapaz de trinta anos de idade, macho,
honesto, galileu, carpinteiro, sincero, sem grandes expectativas na vida, e,
simplesmente, dizer: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, significando
dizer – de acordo com a interpretação do sumo sacerdote Caifás – que
quem assim declarasse teria blasfemado. E Jesus assim se declarava – de
acordo com os próprios judeus, que fizeram daquilo o mote condenatório
no seu julgamento, dizendo que ele se dizia Filho de Deus –, fazendo-se,
portanto, igual a Deus. Por esta conclusão do Sinédrio, o que Pedro estava
dizendo era: Tu és Deus! E é uma afirmação tão louca e tão inconcebível
alguém olhar para outro ser humano e dizer: Antes de qualquer coisa ser, tu
eras. Isso somente acontece como revelação do Pai que está no céu.
O discípulo, portanto, nasce somente quando é engravidado pela com-
pulsão celestial. Quando no seu coração não há mais retorno; rompeu todas
as barreiras, a dimensão profética ficou para trás, o sábio e grande mestre foi
superado; quando o jesus guru foi abandonado e o jesus semideus foi posto
de lado. Quando qualquer outra versão possível de Jesus foi descartada e o
indivíduo simplesmente diz: Tu és o meu Deus! Tu és o Eterno diante de
mim! O Cristo do Deus vivo!
Essa não é a declaração que é feita simplesmente quando alguém a ver-
baliza publicamente. Ela é feita somente quando ela é feita! Não é feita, por
exemplo, quando o pregador que deseja encher o tablado de pessoas aceitan-
do a Jesus, insistentemente, repete: Quem quer aceitar a Jesus levante agora
uma de suas mãos; citando, a partir daí, o texto de Jesus: “Portanto, todo
aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante
de meu Pai, que está nos céus; mas aquele que me negar diante dos homens,
também o negarei diante do meu Pai, que está nos céus”.
Nesse ponto, o indivíduo entra em pânico: Pelo amor de Deus! É diante
dos homens. E, lá na frente, o pastor continua, dizendo: Olha que eu estou
dando a chance. E o indivíduo está ali dizendo: Jesus, será que eu tenho que
ir mesmo? Então ele vai. Sem saber por que está indo, constrangido, não que-
ria ir, não desejava, não entendeu por que foi. Foi porque era um perigo não
ir. Era arriscado demais não ir. Lá na frente, dizem: Hoje, quarenta e nove
51
O Caminho do discípulo
Afinal, o que foi que a igreja tentou fazer nos últimos mil e setecentos
anos, exceto nos trezentos primeiros? Antes de Constantino se tornar o sal-
vador do cristianismo havia uma igreja. Depois disso, não! E essa igreja dos
últimos mil e setecentos anos que chamamos de cristianismo, essa religião
multifacetada, de fato não fez outra coisa nesse tempo todo além de tentar
salvar a Deus.
É Pedro cogitando: De maneira nenhuma! É o sucessor. Nesse sentido,
cada papa se tornou sucessor do Pedro que ouviu dizer de Jesus: Arreda, Sa-
tanás! Eles se tornaram sucessores dessa versão. Porque sempre foi: De modo
nenhum! Toca fogo! Acende a brasa! Churrasca o indivíduo! Chicoteia!
Na realidade, essa síndrome é o que está presente nessa igreja de discí-
pulos que se entendem como oráculos andantes de Deus no mundo. Que
se dois ou três ou quatro deles se reunirem, e se forem doze então, o nú-
mero será extraordinário. Em doze, até Deus aceita mudanças em qualquer
desígnio eterno. Se doze se reunirem, os céus tremem e o inferno também.
Não foi isso que nos ensinaram ultimamente? Isso é uma grande falácia!
Evangelho é Evangelho. Seja Deus verdadeiro e eu, mentiroso; mas a pala-
vra de Deus não seja alterada.
Uma das grandes tentações é ser oráculo. Já que o indivíduo recebeu
revelação, parece que ela se instalou e então ele se tornou seu gestor. E aí as
cogitações passam a ser oráculos. E se esse indivíduo for ordenado pastor,
bispo, apóstolo ou qualquer uma destas coisas, ele passa a ser voz de Deus,
inquestionável, em qualquer momento, em qualquer hora. Sem saber que
ele saiu do Bem-Aventurado és tu, Simão Barjonas, rapidinho, para se tornar
objeto gritante do Arreda Satanás! Mas ele não ouve. Ele não ouve e continua
dizendo: Eu acho que o diabo está me tentando! É Jesus dizendo: Arreda,
Satanás! E ele dizendo: Está amarrado! Nem Jesus mais é reconhecível. Ele
agora é o dono do oráculo!
Nesse caminho, frequentemente, o indivíduo pode sofrer a tentação
e surtar, sabendo que recebeu a revelação ouvindo as palavras que dizem
“Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que
to revelaram, mas meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus”. O indivíduo
ouve isso e surta, como temos visto acontecer.
54
A confissão do discípulo
Há muitas pessoas pensando que a pedra é Pedro. Não somente na igreja ca-
tólica, romana. E o protestantismo, entre outras coisas, se insurgiu contra a igre-
ja católica por essa coisa de pedreira, perguntando: Quem é pedra? Quem é?
A Igreja Católica diz que Pedro é a pedra. E os exegetas protestantes retru-
cam: Não, a pedra não é Pedro, porque o texto grego sugere uma derivação
do aramaico, onde Cefas é pedacinho, fragmento de pedra. E a pedra não
pode ser fragmento, lasquinha. E daí vem a discussão. Parece coisa de meni-
no. E alguns até usam umas mitras na cabeça e uns báculos na mão, discutin-
do sobre quem é a pedra. Quem é a pedra? A pergunta não procede.
Então eu pergunto: Quando Pedro foi pedra? Ele foi pedra na casa de Cai-
fás? Foi uma pedra rolando pela ladeira. Foi no dia do Pentecostes? Foi uma
pedra queimada sem saber de onde o fogo vinha. Foi pedra angular e decisiva
quando? Na casa de Cornélio? Ora, ele já estava convencido, visitado, angeli-
zado, depois o Espírito Santo cai sobre eles e a última coisa é: Nós ainda va-
mos negar água a esses a quem o Senhor já batizou, como nós, no princípio?
Onde é que estavam as chaves na mão de Pedro nesse Reino de Deus?
O que ele saiu abrindo? Que porta ele abriu? Nem a da cadeia ele abriu.
Um anjo é quem foi lá tirá-lo. Olhem para o livro de Atos dos Apóstolos e
digam onde é que Pedro abriu as portas dizendo: É por aqui! Onde é que
ele foi pedra de alguma esquina? Há somente uma pedra, uma rocha, que
Paulo diz que é uma pedra andante que seguia os israelitas no deserto. Há
somente uma pedra de esquina, uma pedra angular. Uma pedra sobre a qual
se encontra refúgio e segurança eterna; e ai de quem sobre ela cair, porque
esse é esmiuçado e vira pó. Não há uma segunda pedra. Não há uma pedra
de adendo. Não há uma pedra que se transforme num cristal teológico do
cristianismo. A pedra é somente uma: Jesus Cristo.
Se alguém quiser a pedra, essa é a confissão de que Jesus é Deus. Mas essa
confissão em si não é magicamente a pedra; ela é poderosa somente como
rocha porque Jesus é a rocha. Do contrário, o que seria tal confissão? Então
não precisa recorrer a lugar nenhum.
Alguém que não tenha ficado idiotado pelas cogitações teológicas, lendo
com simplicidade o Evangelho – e quanto mais simplicidade, mais luz –,
perceberá, sem titubeio, que a pedra é uma só, aquela sobre a qual a vida do
discípulo é erigida. A Rocha da segurança do ser é Jesus e somente ele. Fora
dele não existe estabilidade em absolutamente mais nada.
55
O Caminho do discípulo
Cesareia era uma cidade que tinha sido construída por Herodes Filipe em
homenagem a César, para fazer um contraponto político à cidade de Cesareia
Marítima, construída no litoral de Israel, também dedicada a César e erigida
por Herodes, O Grande, antecessor de Herodes Felipe. Uma cidade absolu-
tamente pagã dentro de Israel.
Israel, conforme o livro de Juízes, em alguns lugares e geografias, não
conseguiu ficar de todo livre das populações anteriores, que o precederam
quando o povo veio do Egito trazido por Josué e entrou na campanha de
tomar a terra. Um dos lugares que os descendentes de Jacó não conseguiram
tomar foi o norte do país, onde ficava a meia tribo de Dã, nas nascentes do
rio Jordão. Eles conseguiram sujeitar os moradores da terra a trabalhos força-
dos, mas não conseguiram expulsá-los de todo.
A localização de Cesareia de Filipe no sopé do monte Hermon, na nascente
do Jordão, que é uma geografia histórica de presença humana das mais antigas
do planeta, sempre foi pagã e o é até hoje. No tempo de Josué, eles encontra-
ram ali toda sorte de cultos. Culto aos deuses cananeus, aos deuses mesopo-
tâmios. Ali, havia uma densidade forte de presença mística, que depois veio a
se tornar realidade nos escritos bem posteriores do chamado livro de Enoque,
que nos diz que aquele complô de anjos, descrito no Gênesis, do capítulo
quatro até o seis, no dilúvio, teria se encontrado naquele afã desesperador de
possuir as filhas dos homens, de ter sexo com as mulheres. Naquele desespero,
os Benai Elohim, os filhos de Deus, queriam os melhores protótipos genéticos
para gerar aqueles que vieram a ser os gigantes que dominaram a Antiguidade,
os nephilins. Nesse texto, encontramos o remanescente desse grupo presente
no ambiente do monte Hermon, na literatura apocalíptica de Enoque.
A Bíblia faz referência também ao fato de que um dos últimos gigantes
remanescente desse tempo, Ogue, rei de Basã, morava ali nas imediações. O
monte Hermon carregava essa simbolização de presença de rebelião angeli-
cal. A presença de Ogue, rei de Basã, e de muitos outros, era uma marca no
imaginário e uma presença arquetípica na percepção judaica, e o é até hoje,
seja como lenda ou como mito.
E Jesus está indo com eles justamente para um lugar que era e continua a
ser um dos lugares mais pagãos de Israel, com nichos dedicados aos deuses des-
de a Antiguidade, nos dias de Jesus com um cenário que era exatamente corres-
pondente a qualquer cenário pagão de Roma ou da Grécia. Era a arquitetura, o
panteão; eram os deuses, as adorações, os ofícios, os cultos. Tudo isso.
57
O Caminho do discípulo
Interessante é que Jesus decide levantar a questão “quem sou eu” e afir-
mar que não foi o discípulo quem descobriu isso – foi o Pai quem o revelou
– para logo depois dizer: Se alguém quiser ser meu discípulo negue-se a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Ele faz isso não na direção de Jerusalém.
Podia ter feito no templo, com os levitas louvando. Era um lugar muito mais
adequado. Mas não, é na direção de Cesareia de Filipe. É na direção da ido-
latria. É na direção da multiplicidade dos deuses. É na direção da pluralidade
dos cultos. É na direção da diversidade das percepções. Da não unanimidade.
Na direção do mundo como ele é.
A caminho, no processo, é que tudo isso acontece, e Jesus fala ao discípu-
lo que disse “Tu és meu Deus” que ele fez isso não por autopercepção, mas
por revelação do Espírito Santo. E que agora esse discípulo é um cidadão
do Reino. Nasceu de novo! A chave do reino está com ele, que entra e sai e
acha pastagem. Não como um poder pessoal, mas como uma graça de Deus.
A ele é dito que pode caminhar em absoluta segurança porque as portas do
inferno não prevalecerão contra ele. Aqui está dito contra a igreja. Mas quem
é a igreja senão você, eu, os discípulos? Está pensando que é aquele prédio?
Aquele CNPJ, CGC? Igreja é gente. É somente essa igreja que Jesus conhe-
ce. Ele está falando de mim e de você. De discípulos. E as portas do inferno
não prevalecerão. A pedagogia é tão extraordinária que ele diz isso levando o
pessoal para o meio da Sapucaí. Não é uma sugestão de programas. É apenas
a pedagogia da libertação.
Eu sou o Cristo, o Filho do Deus vivo. Esta declaração cabe na direção da
casa de César, dos ídolos, em qualquer lugar; na porta do inferno, dentro do
inferno, em qualquer ambiente. Não andarão como quem se acovarda. Não
serão indivíduos da evasão, da fuga, da alienação, do medo, das geografias
proibidas, dos pânicos, dos terrores, do hoje estou salvo, hoje não estou sal-
vo, hoje obedeci a Deus porque fui a um lugar que é um CEP5 consagrado.
Ou, hoje eu estou numa situação ruim porque eu passei por um lugar que é
um CEP desconsagrado.
Jesus acaba com tudo isso e diz que se o discípulo não for sal da terra ele
não tem valor. Se essa luz não puder ser mais poderosa do que os deuses de
Cesareia de Filipe, ela não serve para nada. Se o caminho dessa fé for um
58
A confissão do discípulo
Para refletir
1. O que é “fermento dos fariseus e dos saduceus” na nossa vida?
2. Quem recebe ou pode receber – como foi dito a Pedro – as chaves do reino dos
céus?
3. O que significa receber as chaves?
4. Quem é o discípulo? O que identifica alguém como discípulo?
Anotações
60
4. Se alguém quer
Jamais! Você nasceu para ser cabeça e não cauda. E esse mesmo pessoal decretava,
em nome do Senhor, que esta cruz virou relíquia, virou decoração numa mansão
que o Senhor está lhe preparando. É mais ou menos assim que a coisa ficou no
nosso meio.
Existe aqui uma deliberação pedagógica de Jesus de dizer que há uma eta-
pa sendo concluída e que o caminho do discipulado segue agora para entrar
no coração do seu significado. Porque o coração do seu significado prático,
existencialmente trazido para a vida, transcende a declaração que diz “Tu és
o Cristo, o Filho do Deus vivo” e nos leva para a implicação disso que ele
descreve com termos e construções pesadas.
Depois, quando ele anunciou que o entendimento do discipulado, do
discípulo, tinha de ser sobre o significado da cruz, não somente a de Jesus,
mas a cruz de qualquer discípulo – ao que Pedro reagiu –, ele escreveu no
quadro-negro da história qual era a proposta da aula:
Jerusalém, Cruz. Morte e Ressurreição.
Este é o tema. Pedro se levantou, apagou e disse: Este aqui, não. O Se-
nhor me desculpe, mas não, o negócio é para o reino, Jesus. O Senhor me
deu as chaves do reino, não as chaves de tumba, de mausoléu. Eu, pelo me-
nos, estou fora se for para abrir isso.
Observe como a melhor revelação de um discípulo ainda é mera estupidez.
E Jesus, a partir daí, diz a seus discípulos – discípulo, aquele que aceita a
disciplina do Mestre, aquele que diz: Eu quero andar conforme Jesus diz que
a vida é –: “Se alguém quer vir após mim...”
É nesse contexto que Jesus faz o convite a seus discípulos. Isso tinha aca-
bado de acontecer. O clima é este. Pedro dizendo: Cruz, não. Jesus dizendo:
“Arreda, Satanás”. E ele prossegue afirmando até para o próprio Pedro que
tinha acabado de declarar coisas maravilhosas.
Vejam como tudo é no caminho mesmo, como o passo daqui não me
garante o passo dali. Aquele que diz: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”,
no dia seguinte pode dizer: “De modo nenhum, Senhor”! E ouvir de volta:
“Arreda, Satanás”. Isso acontece porque não existe discípulo acabado, com-
pleto. Esse caminho termina quando termina. E somente termina quando eu
me torno semelhante a Jesus. E eu me tornarei semelhante a ele quando eu o
vir como ele é. E eu somente o verei como ele é quando eu já não estiver mais
63
O Caminho do discípulo
Aquilo que um dia Jesus disse acerca do que Pedro dissera – “Bem-aven-
turado és” –, se virar uma obsessão mecanicista, deixa de ser aquilo que um
dia foi num instante de verdade. Porque essa declaração somente se consubs-
tancia, se incorpora, se faz válida se, desse tempo em que entendemos isso
em diante, aceitarmos que, assim como o caminho de Jesus levou à cruz, o
caminho do discípulo também leva à cruz. Não à cruz de Cristo, expiatória,
substitutiva, salvadora, redentora, solidária, cósmica, transcósmica, erguida
antes da fundação do mundo e manifesta na história. Não. Essa é única, ini-
gualável. Mas ele fala da minha, que ele simboliza chamando-a de cruz, por
bondade de transferência de signo de graça, de privilégio transferível para o
discípulo; mas a minha não é como a dele. Existe a minha porque há a dele.
Se não houvesse a dele não haveria nem cruz de graça para mim.
A minha e a sua não carregam nenhum poder meritório, salvador, re-
dentor, não faz transferência de bem espiritual para ninguém. É apenas um
privilégio meu e seu, e ele a descreve, dizendo que cruz é essa. E não é a so-
gra, com certeza. Sogra é no máximo fardo, jugo, mas não é a cruz. Nem é o
marido, nem a esposa, nem os filhos desobedientes, nem a igreja que alguns
suportam. Ele diz qual é essa cruz. A minha e a sua. E ele diz descrevendo o
processo inteiro do caminhar: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se
negue, tome a sua cruz e siga-me”.
O processo inteiro começa numa decisão completamente pessoal, porque
existe a diferença entre o Jesus do povo e aquele que se dirige a nós com a
questão: “Mas vós, o que dizeis que eu sou”? De fato, o que nós temos diante
de nós é o convite, e temos de decidir se aceitamos, se queremos. Se não for
alguma coisa absolutamente sua, intestinal, visceral, que habite a intimidade
mais recôndita do seu ser, que seja a decisão mais arraigada dentro do seu
próprio interior e daquilo que você chama de eu, se não for assim, não co-
meça nada. Ninguém pode querer por você.
Não é um conceito de transferência, não é um benefício transferível; não
se pega por osmose, não se passa em família, não carrega um contágio efetivo
que realize a coisa somente por andar nas proximidades.
Fazer isso sem decidir no coração apenas produz indivíduos cínicos e
impermeáveis. Por isso é que Jesus começa dizendo: “Se alguém quer...” E
não adianta teologizar, usar a herança presbiteriana – seja ela qual for – para
fugir da luta.
65
O Caminho do discípulo
Se alguém quer ser meu discípulo, diz Jesus, o indivíduo tem de tomar
consciência de que existe uma montanha de impressões sobre si que precisa
ser jogada fora. O discípulo tem de encarar os fatos e fazer a viagem “após
mim, olhando para mim, tendo a mim como sua única referência, dando-me
razão em tudo” – é o que Jesus está dizendo. E ainda que, de forma sofrida,
tenhamos de dizer: O Senhor tem razão. Mesmo não gostando das razões
de Deus, como Abraão, que não achou nada gostoso, nada delicioso, nem
foi cheio de gozo, nem de gáudio, nem falando em línguas ou profetizando,
andando para o monte Moriá. Não. Ele foi gemendo, mas foi. E quando viu
o monte, chamou os servos e disse: “Ficai aqui, e eu e meu filho, tendo ido
e adorado, voltaremos para junto de vós”. Mas ele não disse: Aleluia, nós so-
mos os levitas do monte Moriá! Não era essa adoração panaca. Era adoração
que se adora com dor, com perplexidade, sem entender nada, mas dizendo:
Tu és Deus, e, contra tudo o que eu sinto, eu vou. Isso é o após mim.
“Se alguém quiser vir após mim”, então, saiba que há um carro alegórico
na sua vida, imenso, que vai ter de ser quebrado todinho para então aparecer
esse serzinho que até hoje, talvez, não tenha tido a chance de olhar, nem de
relance, e que é você.
O caminho do discípulo é o caminho das abençoadas desilusões e das
eternas verdades. O caminho do discípulo vai reduzindo a vida ao pouco que
seja necessário, ambicionando chegar o dia em ele diga: Basta-me uma coisa
somente. Esse é o Caminho.
Olhe para dentro de você e pergunte se, de fato, você quer esse Caminho.
No Evangelho é assim. Temos de querer. E não é o nosso dinheiro em
qualquer gazofilácio que mede a determinação do nosso querer. São as deci-
sões de andar após Ele. De dizer: Eu dou razão ao Evangelho na minha vida.
Não temos de fazer uma reflexão secundária de como vamos tratar o nosso
inimigo. Jesus já disse como é que ele tem de ser tratado. Não temos de fazer
reflexão secundária e nem ponderar com Deus o tamanho das nossas raivas,
das nossas justiças ofendidas, dos nossos direitos aviltados, e que, portanto,
temos direito a uma instância superior de vingança. Ir após ele é simplesmen-
te entrar em todos os buracos com Jesus, sair de todos os buracos com Jesus,
visitar todos os cemitérios com Jesus; é sofrer na presença de Jesus, ver a re-
velação da nossa incoerência na presença dele, enquanto somos disciplinados
pelo Evangelho, dando lugar à disciplina, que não é cacete de diácono, nem
69
O Caminho do discípulo
Para refletir
1. Aonde leva o caminho do discípulo?
2. Qual é a diferença da cruz de Jesus Cristo para cruz do discípulo?
3. Qual é a decisão pessoal que faz começar o caminho da cruz para o discípulo?
4. Faça uma análise da frase: “desilusão é uma bênção”. Você concorda? Por quê?
5. O que é o “si mesmo”?
6. Do que vive o “si mesmo”?
7. Qual é a diferença entre o eu real e o eu falsificado?
8. Por que é impossível seguir a Jesus sem negar o si mesmo?
9. Qual é a referência do discípulo durante a caminhada?
10. O que se entende por “reflexão secundária”?
11. Você quer ir após Jesus?
12. O que é que mede a determinação do seu querer?
Anotações
70
5. Tomar a cruz – a morte do si mesmo
Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.
Um discípulo que anda pela cabeça dos outros jamais será discípulo de
Jesus. Para ser discípulo de Jesus tem de haver a decisão no coração de que
Jesus é único, exclusivo e absoluto.
O que os outros dizem é o que os outros dizem. O que os outros dizem
vira religião, vira seita, vira denominação, vira doutrina, vira grupo específi-
co, vira ênfase, vira qualquer outra coisa, mas não é Evangelho. Evangelho é
a totalidade do nosso compromisso, e, em descobrindo, discernindo, perce-
bendo o que seja a palavra de Deus em Jesus, acolher aquilo sem discussão.
Quando Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, vi-
mos que isso não nasce dentro de nenhum homem como produto apenas
da reflexão e da mente. A menos que ele seja pagão de pensamento; e, nesse
caso, Jesus para ele será apenas um ídolo como qualquer outro. Há os que o
fazem de gesso, de pau, de pedra, de ouro, ou de qualquer outro material; e
há aqueles que o fazem de gente.
Se alguém olha para Jesus e diz: Eu creio que tu és Deus, mas diz isso
sem que tenha havido no coração a revelação do Espírito Santo que assente
no seu interior o significado absoluto disso; ou que signifique apenas tu és
Deus do meu pedaço; tu és Deus do meu país; tu és Deus dos cristãos; tu és
Deus dos que te acham legal; tu és o Deus da Terra; tu és o Deus da nossa
galáxia, isso não significa nada. Significou, sim, quando Pedro disse “Tu
és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. O tamanho da loucura e da blasfêmia
do ponto de vista humano foi tão grande porque aquilo significava que,
naquele ser que estava diante dele, havia o adensamento de todas as coisas
pertinentes a Deus, já que Deus não é tempo, não é espaço, não é massa,
não é volume. Deus é Espírito.
Esse discernimento vem por revelação do Espírito Santo, não nasce no
monte Olimpo, Sócrates não o produziu, Platão não o elaborou, teologia
alguma o fabrica. Para ser real e verdadeiro, tem de ser, de fato, trabalho e
revelação do Espírito de Deus no coração do ser humano. Saber isso, receber
essa revelação, não nos torna oráculos andantes de Deus. Porque o mesmo
Pedro que disse essas coisas, em momentos posteriores, disse uma loucura
imensa, pela qual veio a ser repreendido com “Arreda, Satanás”. Nos capítu-
los anteriores, estudamos as implicações variadas disso tudo.
Jesus – tendo visto que os discípulos haviam confessado que ele era o
Cristo, o Filho do Deus vivo – inicia, de modo decisivo, uma segunda etapa.
72
Tomar a cruz – a morte do si mesmo
Em Mateus 16:21 está dito que foi depois dessas coisas, depois daqueles
acontecimentos, claramente fazendo uma transição pedagógica. Uma vez
que isso estava posto, esclarecido, ele passou adiante introduzindo a questão
do convite a segui-lo. É quando ele anuncia a cruz. É quando Pedro se in-
surge contra a ideia da cruz. Pedro tinha assimilado que Jesus era o Cristo,
o Filho do Deus vivo, mas não tinha ainda assimilado que o caminho do
Cristo, do Filho do Deus vivo, e de qualquer discípulo seu, era o caminho
da cruz. Era outra loucura para Pedro, que tinha recebido revelação do Pai.
Ele usou a sua conjectura e a sua elaboração e chegou à conclusão estúpida
de que o melhor a fazer seria repreender Jesus por estar dizendo que estava
caminhando para a cruz.
Então, se conhecido estava que Jesus era quem era, havia chegado o mo-
mento de ficar conhecido quem o discípulo era. Uma coisa é quando eu
recebo revelação de quem Jesus é. Isso me salva, isso me ilumina. Outra coisa
é quando a revelação de quem Jesus é transforma-se no significado a respeito
de quem eu sou chamado para ser. Porque na hora em que eu recebo reve-
lação de quem Jesus é, passa a ser apenas uma questão de tempo, pois, em
sequência, ato contínuo, eu vou ter de me deparar com o fato de que saber
quem Jesus é demanda de mim um compromisso com quem eu devo ser,
com quem eu fui chamado para ser, com quem eu sou, do ponto de vista de
Deus. E esse é o chamado do discípulo.
O discípulo não é chamado para inventar ou para entrar num caminho
inumano. Ao contrário, ele é chamado para mergulhar no caminho mais
humano que existe. O discípulo é chamado para deixar a inumanidade e a
desumanidade do caminho, que caracteriza a existência humana antes de um
homem se tornar um discípulo.
O discípulo não é o vip da jornada humana, não é o indivíduo que deci-
diu ir para a última classe do vagão, que, do ponto de vista de Deus, seja a
primeira. Não. O discípulo é apenas o indivíduo que entendeu que, se Jesus
é Deus e se ele crê nisso, a implicação disso é simples.
Eu tenho de me perguntar: Sendo Jesus quem é, como é que eu devo
ser? E a resposta é simples: Se ele é quem ele é e se eu fui feito à imagem e
semelhança de Deus, tudo quanto em mim não se pareça com Jesus é uma
dessemelhança a ser curada. Porque o meu chamado é para a semelhança
com ele, é para a conformação com ele, é para ir transformando a minha
73
O Caminho do discípulo
que não seja leão, girafa, hipopótamo ou qualquer coisa do planeta, é extrater-
restre: anjo, diabo, demônio. Esses poderes estão aí, com os nomes que quei-
ram dar a eles. Todos os dias aumentando o volume de engano, exacerbando
no interior humano a fantasia, gerando, em conluio com a produção perversa
dos seres humanos, os aparatos, os sistemas, os modos, as formas, as trocas,
os relacionamentos mais adoecidos que se possa pensar, conceber, imaginar.
É nessa direção insaciável que esse volume perverso de poder maligno anda,
tentando se alimentar o dia inteiro, à nossa volta. É essa coisa aí que Jesus diz
que tem de morrer. Você acha ruim? Pelo amor de Deus! É a mesma coisa que
dizer: Negue o diabo e siga-me. Se alguém quiser ser meu discípulo, negue o
diabo e siga-me.
É difícil entender que o si mesmo termina sendo a coisa mais diabólica no
processo, porque é o si mesmo que nos descola do eu real. Somente com o eu
real existindo em nós, de fato, é que seremos alguém em Deus.
“Negue-se a si mesmo e dia a dia tome a sua cruz e siga-me”. Há textos
que dão ênfase, em Marcos e Lucas, no dia a dia. Tome a sua cruz e siga-me:
dia a dia. O processo do dia a dia é duplo: é tanto do negar-se a si mesmo
como do tomar da cruz. Porque não existe hiato entre o negar a si mesmo e
o tomar da cruz. Nega-se a si mesmo à medida que vamos tomando a cruz. E
quanto mais eu tome a cruz, menos o si mesmo crescerá em mim. E quanto
menos eu desejo tomar a cruz, mais o si mesmo aumentará em mim. Por isso,
é dia a dia, tanto uma coisa quanto outra.
Não há um dia de férias para o si mesmo. O si mesmo não pode ter
sossego. O si mesmo quer renascer, ele tem um poder extraordinário, ele
é um rabo de lagartixa. Mesmo cortado, fica estremecendo, e, se deixar,
cresce outro no lugar. O si mesmo tem de ser podado todo dia, toda hora.
O si mesmo tem de ser objeto de uma confrontação diária, porque ele
existe para fazer conformação com o mundo, conformação com o aeon,
com o sistema, com o espírito desse engano. O si mesmo se conecta, faz
interface com isso, de modo natural; seu software foi programado lá, ele
roda e fala em conectividade total. Por isso, o si mesmo tem de morrer.
E somente se inicia esse processo quando, no dia a dia, tomamos a cruz.
Porque se todo dia não olharmos para o self como potencial de regene-
ração perversa em nós, creia, ele se regenerará para o mal, em nós. Por
isso, é todo dia.
77
O Caminho do discípulo
Dia a dia equivale a “não vos conformeis com este século, antes, trans-
formai-vos pela renovação da vossa mente”. É um processo cotidiano. Paulo
chama de culto racional, porque é a relação da razão do Espírito, da razão
produzida pelo Evangelho, da razão produzida como consciência e mente de
Cristo em nós. Tem de ser todos os dias uma relação dessa razão espiritual,
dessa inteligência espiritual do Evangelho, perguntando, confrontando, dis-
secando, examinando as produções do nosso ser viciado no self e não naquilo
que Deus chama de eu, em nós. É toda hora. Porque o vício é muito grande.
E nós nos esquecemos o tempo todo.
É por isso que a religião é uma coisa tão confortável para a maioria
das pessoas. Quanto mais religioso o indivíduo se torna, mais ele associa a
experiência de Deus a um encontro como este. Então, como ele não quer
ter muito tempo, ele procura logo um encontro onde ele ache que caiba
tudo. Onde dê para ele plantar bananeira, virar lagartixa, dançar como um
pai de santo convertido. Um encontro que dê a ele a chance de ver todos
os milagres, ainda que sejam fajutos, de ouvir todos os gritos, que tenha
até ‘anja’ dançando no palco, e trombeta tocando, assim ele terá um pacote
de duas horas de presépio de Deus; depois irá embora dizendo: Bom, eu
acho que tive minha experiência com o Sagrado, nesta semana. E, assim,
ele não precisa dia a dia negar-se a si mesmo, tomar a sua cruz e segui-lo,
porque ele transferiu tudo isso para esse pacotão, para esse presépio de
outras ilusões do mundo.
Isso é tão ilusão do mundo quanto o mais alienante show que a Broadway
possa produzir. É esse, do presépio, do palco, e que ainda envolve Deus na
história! Tudo o que envolve Deus, não sendo verdade, é um engano pior do
que qualquer engano dito em nome do diabo.
Eu vou repetir, para que não se esqueçam nunca mais: Tudo que envolve
Deus, o nome de Deus, não sendo verdade, é engano pior do que o pior
engano feito em nome do diabo. O pior engano não é o do diabo. O pior
engano é o do diabo feito em nome de Deus! E aí a pessoa entra numa des-
sa; confunde o convite para seguir a Jesus todo dia com frequência a algum
lugar onde ela tenha essa experiência de catarse, e sai dali dizendo: Eu acho
que encontrei o sagrado; senti uma arrepiada enorme; houve um momento
em que vibrei. E aí, essa pessoa fica isenta de ter de, dia a dia, olhar para
dentro de si, tomar a cruz e carregar.
78
Tomar a cruz – a morte do si mesmo
cruz é a cruz de Jesus, exceto pelo fato de que a dele salva todos os homens
e todas as coisas e já estava pré-ordenada desde antes dos tempos eternos,
a nossa é um chamado existencial para ser. No entanto, assim como era a
dele, assim é a nossa. Começa tudo com aceitar o fato de que morremos
para o mundo e o mundo morreu para nós. Isso é tomar a cruz, é o que
Paulo diz, escrevendo aos gálatas.
Qual é o mundo que morreu para nós? É o oceano Atlântico? É o Pacífico?
É a natureza linda e maravilhosa? É o encontro bom com o ser humano? É o
beijo sadio, o abraço gostoso, o encontro verdadeiro, o amor que seja amor?
Não! O mundo que Paulo diz que morreu para nós em Cristo é o mundo do si
mesmo, que é o diabo, como eu descrevi acima. Então, para que se inicie esse
processo de deixar que o si mesmo vá morrendo, matar o si mesmo, negar o
si mesmo, precisamos ter um eu. Porque quem quer ser meu discípulo – diz
ele – tem de querer. E, querendo, tem de negar-se a si mesmo, o que implica
uma vontade pessoal dupla: a que diz eu quero, e a outra que faz, negando o
si mesmo. Portanto, não existe nenhum eu implicado nisso aí. Existe algo que,
não sendo eu, parece que quer ser eu e faz tudo para ser eu, sem ser. É isso que
temos de ter dupla vontade de fazer morrer em nós, tomando a cruz. Que não
é diferente da de Jesus.
Olhe a cruz de Jesus. Ele foi levado e crucificado. E ele olhou lá de cima
e viu as pessoas cumprindo aqueles ritos da morte, os soldados romanos, e,
fora os soldados romanos, os que falavam um monte de bobagens sem saber
de nada; e ele disse: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
Tomar a cruz não é somente aceitar essa sentença de morte, como Jesus
que ainda nem tinha chegado à cruz quando disse o que disse, em Mateus
16, e já ia andando sabendo que é; mas, à medida que se vai encontrando a
experiência factual, se vai discernindo quais são os elementos da cruz de Jesus
presentes na nossa.
Tomar a cruz significa, entre outras coisas, discernir que o mundo é o
mundo. O que é ilusão e o que é engano. Discernir que o meu self é pro-
duzido pelo amontoamento desses volumes de ilusão. Discernir tudo o que
já discernimos, quando encontramos a estupidez, quando encontramos o
ódio gratuito, quando encontramos a antipatia que não se explica, quan-
do encontramos a disposição canina de fazer mal; quando encontramos a
alienação organizada para produzir algo malévolo, como liquidar alguém;
80
Tomar a cruz – a morte do si mesmo
E o sintoma é quando dizem: Oh, eu era do mundo, agora não sou mais do
mundo; não canto mais música do mundo, não vejo o mundo, não sei o quê
do mundo. Tudo agora é gospel. Aleluia, aleluia, aleluia!
E quanto mais reativo ele diz que é ao mundo, mais do mundo ele é,
porque somente fica livre do mundo quem diz: “Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem”. Esse está livre. Centurião não tem mais poder sobre
ele. Ninguém vai ter. A lança do centurião pode até doer; não doeu em Jesus
porque ele já tinha morrido. A chicotada dói, tudo dói, mas o centurião não
tem poder de nos tornar seu escravo, porque ele está perdoado, não sabe o
que faz, coitado. Eu é que estou livre. Chicoteado e livre; desprezado e livre;
seja como for, livre.
Tomar a cruz não significa nenhuma dificuldade ou vergonha de admitir
a nossa humanidade. Em nenhuma das suas dimensões. Jesus disse: “Deus
meu, Deus meu, por que me desamparaste”? Tomar a cruz é ter a coragem de
fazer salmos para Deus com a verdade do nosso ser. O salmo que Jesus estava
citando era o 22, que se transformou no seu salmo, porque naquela hora era
dele a experiência do desamparo.
O discípulo não tenta convencer Deus com a mentira. Ele afirma a ver-
dade. “Meu coração está profundamente triste até a morte. Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste”? Ele não tem medo de falar com Deus. No
tomar da cruz, ele experimenta o significado da impressão do desamparo.
Ninguém vai fugir disso.
Assim como não há um tomar de cruz, nem um caminho de discípulo que
vá vencendo o si mesmo e gerando esse eu fortalecido que não seja pelo perdão,
que não comece perdoando a vida, também não haverá nenhum caminho con-
sequente se houver negação da realidade da existência. Quando dói, dói. Eu
não preciso, ao dar uma topada, ou ao arrancar uma unha, fingir que não está
doendo nada. Não. Jesus não sorriu em cada pregada que deram nele. Ele não
recebeu o dom do sorriso na cruz, a bênção de Toronto. Era dor mesmo.
O discípulo tem de saber que ele, tomando a cruz, vai passar por cami-
nhos solitários, de desamparo; vales de sombra da morte; perplexidades. Vai
encontrar o absurdo a sua frente. Vai sentir, às vezes, tanta dor, ou vai ficar
tão chocado com o absurdo, ver tanta loucura, se sentir tão impotente, em
alguns momentos, que seu coração vai dizer: “Deus meu, Deus meu, por que
me desamparaste”? Eli, Eli, Lemá sabactani!
83
O Caminho do discípulo
Para refletir
1. Olhe para o seu coração e sonde: O que há nele que seja fermento dos fariseus,
dos saduceus ou de Herodes?
2. Como é o processo de dia a dia negar-se a si mesmo e tomar a cruz?
3. O que é tomar a cruz?
4. O que você aprendeu sobre tomar a cruz X nossa humanidade?
5. A quem, ainda, você não concedeu o seu perdão?
6. O quanto seu coração quer dizer: Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que
fazem?
Anotações
84
6. Tomar a cruz – Ele levou sobre si
o pecado de nós todos
negado por nós, como um ato de volição nossa, e que precisa ser determina-
ção do indivíduo –, não pode haver, nessa hora, aquela oração que diz: Oh,
Senhor, me dê vontade de querer. Que geralmente é o que fazemos quando
não queremos fazer. Oh, Senhor, dispõe meu coração para te agradar, é o que
a pessoa diz quando não está querendo correr atrás da verdade.
Aquele que sabe não transfere para Deus, embora saiba que tudo provém
de Deus, que tudo é graça divina e que não depende de quem quer, nem de
quem corre, mas de Deus usar de misericórdia para conosco. Quem sabe
qual é a palavra da verdade não fica fazendo essa oração, simplesmente aceita
o que Jesus diz.
E Jesus não está dizendo: Se Deus quiser, havendo alguém com algum inte-
resse de, quem sabe, tornar-se meu discípulo – e se a bondade extrema de Deus
se derramar sobre ele, de modo que ele, que tem apenas esse lampejozinho de
vontade, apesar de não estar muito decidido, venha a se tornar uma pessoa tão
turbinada de desejo de fazer a vontade do Senhor –, aí, então, ele vai conseguir
negar-se a si mesmo, tomar a sua cruz e se tornar um dos meus discípulos. Jesus
não disse isso. Ele simplesmente disse: Se alguém quiser, se for decisão sua.
Jesus avaliou bem essa questão da decisão que o discípulo tem de ter. Ele disse
que é semelhante a um rei que, sabendo da vinda de outro rei contra ele, munido
de um exército de 20 mil pessoas, enquanto ele tem apenas 10 mil, tem de veri-
ficar se há como enfrentar o contingente adversário ou não. Do contrário, Jesus
disse que é melhor ser esperto e mandar uma comissão diplomática e negociar
termos de rendição, a partir para uma guerra que ele não vai dar conta.
Disse a mesma coisa de um homem que iria construir uma torre. Começou
a construir, mas não calculou se com aquela quantidade de pedras, tijolos e
outros materiais ia conseguir chegar ao final da torre. Sendo assim, Jesus disse
que é melhor não começar; não terá a vergonha eterna de ficar o tempo todo
anunciando que é, quando não é; anunciando a disposição de alguma coisa
que nunca se tornou verdade. É apenas parte de um enredo sem compromisso
e sem radicalidade. Então, quando ele diz se alguém quer, a primeira coisa que
ele faz é mandar negar o self. Esta decisão é a mesma que diz: Agora eu entendo
a diferença entre o que seja eu e o que seja meu falso eu, meu self, meu si mes-
mo, com todos os valores a ele agregados, formando esse produto fantasioso,
esse fetiche de ego, que é o meu eu. Então, já sei o que Deus chama de eu e sei
também que existe a chance do eu sadio.
86
Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos
correr atrás do vento. E é mesmo. Porém, não acaba aí. Quem fica aí, fica
morto, mergulha em depressão profunda, perde o sentido de todas as coi-
sas. Apenas mergulha nos gostos amargos de tudo quanto seja sem sentido
daquilo que chamamos de vida. É apenas uma constatação que destrói,
mas não constrói.
Por isso Jesus diz que tem de negar a si mesmo. É o lado negativo disso,
discernir o self e negá-lo. Mas, de outro lado, ele diz que tem de tomar a
sua cruz e segui-lo. De um lado negamos; do outro, tomamos. Tem uma
ação que é de discernimento consciente, volitivo, decisivo, intenso, resol-
vido, que diz: Eu não sou isso. Não é possível que Deus tenha me chamado
para me adornar com dejetos. Eu não sou isso; eu fui chamado para a glória
de Deus. Portanto, até por saber quem Deus é, que Ele é a cara de Jesus – e
eu sou antitético em relação a isso –, o que eu chamo de eu não pode ser o
eu que Deus me fez para ser. Isso é o si mesmo, que tem de morrer.
Mas aí vem a ação de tomar a cruz. No último capítulo, vimos algumas
dimensões desse tomar a cruz. Eu disse que a nossa cruz não é diferente
do significado de tomar a cruz para Jesus, exceto por uma razão. A cruz
dele salva o mundo inteiro; a nossa não salva nem a nós mesmos. A nossa
é um exercício de tomar a cruz para a construção do ser que já está salvo
em Cristo e que somente será moldado se fizermos o caminho dele nesta
via, nesta existência. Do contrário, neste mundo caído, somente cresce
joio em nós, somente cresce self. Não cresce, espontaneamente, em nós, o
eu, segundo Jesus. Esse tem de ser energizado pela palavra da vida dentro
do nosso coração.
Então, se é assim, a coisa mais sensata a fazer é pensar, de saída – antes
de mergulhar em muitas outras coisas a respeito do mesmo tema –, sobre o
que Jesus disse quando estava na cruz. Porque aquelas declarações de Jesus
açambarcam um significado bastante amplo do que significa tomar a cruz
para mim mesmo.
Tomar a sua cruz era equivalente a dizer: tome a sua cadeira elétrica,
tome a sua sentença de morte, aceite que o self terminou seus dias. Agora que
começamos a ser discípulos de Jesus, que aceitamos a morte do si mesmo, o
tomar da cruz vai ter de significar um dilatamento interior, espiritual, exis-
tencial, para deixar surgir uma consciência nova, que é a mesma que brota
das declarações que Jesus faz na cruz.
88
Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos
Jesus não há muita coisa a ser aprendida. Na verdade, existem poucas, e essas
são para ser aplicadas. Por isso, se alguém quer ser meu discípulo, disse Jesus,
a si mesmo se negue – negue o si mesmo – e tome a sua cruz. E a primeira di-
mensão dessa cruz diz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
Eu gostaria que você, que está desejoso de ser discípulo, pensasse, nesse
momento, quais são as pessoas sobre quem você não consegue nem dizer:
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. São aquelas pessoas acer-
ca de quem você diz: Pai, não perdoa não, porque o safado sabe, Senhor.
Trata dele, trata bem.
Vi uma bispa pela televisão, no Rio de Janeiro, dizendo: “Você vai ver que
o Senhor vai se vingar. Espera, a mão de Deus está vindo aí e vão quebrar
todos os inimigos, aleluia”! Essa é discípula do si mesmo, não tem nada a ver
com Jesus. Está falando o nome de Jesus, mas não tem nada a ver com Ele.
Ele nem passou aí, não sabe o que é isso. Ele diria: Olhe, nem te conheço
ainda e nem poderia dizer que tenho muito prazer, porque o que você está
dizendo é um terror.
Veja quem são aqueles sobre quem você nem consegue dizer: “Pai, per-
doa-lhes, porque não sabem o que fazem”, ou o que falam, ou o que dizem a
meu respeito, ou o que pensam sobre mim, como me interpretam, como me
divulgam. Se você não puder passar por essa pessoa não tem discipulado. É
melhor parar por aqui e pensar bem sobre o assunto.
Minha vontade é ver nascerem alguns discípulos. Então, a primeira coisa
antes de prosseguirmos, e nós não vamos prosseguir se não passarmos daqui,
é saber quem são as pessoas acerca das quais não conseguimos nem mesmo
dizer: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
E mais do que isso, eu pergunto: Dentro da sua cabeça existe algum
compartimento que foi criado de modo tão ilusivo e sutil que faz você pensar
que há pessoas para amar e perdoar e outras que você não precisa odiar, mas
também não precisa amar? Tem? Geralmente quando o indivíduo se vicia em
reuniões cristãs ele fica com esse tipo de doença. A humanidade a ser amada
é aquela que ele encontra para cantar, bater palmas, cultuar, fazer oração jun-
tos. Esses são seus irmãos, o mundo a ser amado. Quem está fora desse grupo
é um pessoal que se vai levando, se der; e se não der, o indivíduo atropela.
E que o Senhor me abençoe e me guarde porque eu sou um bom dizimista,
aleluia! Não tem geografia do silêncio, de sombra nesse chão.
90
Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos
92
Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos
apesar dele. O paraíso é o destino dele, não por causa dele, mas por causa da-
quele que levou sobre si as iniquidades de nós todos e é por isso que ele anda
pacificado. E é por isso que ele nunca une a sua voz aos clamores blasfemos
desta vida, às vozes que aviltam a Deus, que trazem acinte a Deus, às vozes
que trazem demandas a Deus – “se tu és, faze por ti e por nós”.
Para o discípulo, Deus nunca é tratado como: Se tu és, então me pro-
va. Para o discípulo, Deus é, Jesus é, com cruz, sem cruz, pendurado ou
deitado. Cabeça para baixo ou para cima; o que importa é que ele é. E o
discípulo nele é lembrado no paraíso. O paraíso sabe do discípulo todo dia;
o discípulo é contado no paraíso como um dos cidadãos de lá. O paraíso o
conhece, embora ele ainda não o conheça. Mas aquele que entrou nele por
nós diz “Olhe, quando chegar o teu dia” ou “Hoje mesmo estarás comigo
no paraíso”.
E mais que isso, o discípulo vai descobrindo, à medida que caminha,
que o paraíso não é somente um lugar transcendente, mas é também um
lugar existencial. Onde se está com Jesus, aí vai virando o paraíso. O paraíso
é em nós também. Jesus em nós não é a esperança da glória? Jesus em nós é
presença antecipada e crescente das consciências do paraíso e da glória. Não
se faz um discípulo sem a transcendência do paraíso ou sem a imanência do
paraíso. Ele tanto nos transcende e nos motiva como é imanente em mim
e gera em mim as pulsões do desejo eterno que nos remetem na direção
daquilo que nos aguarda.
Temos ainda as outras declarações para meditar sobre elas: “Deus meu,
Deus meu, por que me desamparaste”? “Tenho sede”. “Mulher, eis aí o teu
filho”. “Está consumado”. “Nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” “Tenho sede”, signi-
ficando dizer que tenho sede de beber água. Discípulo precisa aprender sobre
sua humanidade. Discípulo que não respeita sua humanidade vai se perder
no caminho. Esqueça o seu batismo, o primeiro, o segundo, o décimo, o que
fez nas águas do rio Jordão, Jordãozinho ou Tietê.
Desejo que você estabeleça um lugar de perdão. Que do alto da cruz – o
lugar onde você está crucificado com Cristo, perdoado em Cristo, justificado
em Cristo, eternamente resolvido nele – você possa olhar para cima, junto
com ele, e dizer: Pai, perdoa meu pai, minha mãe, perdoa meu ex-marido, que
me magoou tanto, perdoa minha ex-mulher que me traiu, minha noiva, que
94
Tomar a cruz – Ele levou sobre si o pecado de nós todos
Para refletir
1. O que pode energizar, dar vida ao eu? E quando ele passa a existir?
2. Quais são as pessoas sobre as quais você não consegue dizer: “Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem”?
3. O que você vai fazer com este ensino de Jesus para sua vida no Caminho de ser
discípulo de Jesus?
4. “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso“- De que forma essa palavra pacifica o
seu coração?
Anotações
96
7. Tomar a cruz – a humanidade do
discípulo
Tenho Sede!
Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?
desses dois mecanismos, não como uma mecânica, mas como um mecanis-
mo que rode como um software de consciência permanente. Dia a dia temos
de ver quais são as tentativas de reinvenção do si mesmo em nós. Sutis, mas-
caradas, renitentes, intensas, perseverantes, como uma tentativa da morte.
De outro lado tem de haver o mesmo querer, a mesma disposição de to-
mar a cruz, que passa todo dia pelo benefício de retomar a desilusão a nosso
respeito e saber que sozinhos somos apenas o homem que diz: “Desgraçado
homem que sou!” Quem nos livra do corpo dessa morte é aquele que levou
sobre si todas as nossas iniquidades e as nossas dores; ainda que no nosso
engano do self, o reputássemos por aflito, ferido de Deus e oprimido, porque
é assim que o self interpreta alguém que se entrega como cordeiro de Deus
que tira o pecado do mundo.
Mas ele levou sobre si a iniquidade de nós todos. E compreender que o
castigo que nos traz a paz estava sobre ele e pelas suas pisaduras fomos sara-
dos é a compreensão essencial do discípulo no tomar da cruz.
Quando Jesus disse que o discípulo deve tomar a sua cruz, ele não estava
falando do carma pessoal de qualquer um e de cada um. Jesus estava falando
de um projeto de existência, de um caminho consciente, de uma jornada,
uma peregrinação que tem de ser marcada pela cruz.
A maneira mais simples de entendermos isso seria olhando aquelas
declarações que Jesus fez na cruz; porque são as declarações do crucifi-
cado, daquele que estava levando a cruz, que era a minha e era a dele.
Foi ele quem levou a minha e a de todos nós na dele para nos ensinar o
significado da nossa.
Vimos também que a primeira decisão de alguém que quer ser discípulo,
que quer “tomar a cruz” é aprender a perdoar. “Pai, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem”. Sem perdão ninguém se torna discípulo de Jesus. Não
existem meios, nem malabarismos, nem batismos, nem trezentas correntes,
nem qualquer que seja a tentativa ou barganha, nem amizade com o arcanjo
Miguel, que nos torne discípulo de Jesus sem perdão.
Podemos ser discípulos de Jesus estando culpados. Não podemos ser dis-
cípulos de Jesus estando culpados por não perdoar. Jesus tem discípulos cul-
pados, mas não tem nenhum que seja culpado por não perdoar, porque, se
não perdoar, não pode ser discípulo. Para ser discípulo tem de ser discípulo
que perdoa, para que a misericórdia venha sobre ele; para que ele, por exercer
100
Tomar a cruz – a humanidade do discípulo
desamparaste?”, dizendo isso de uma maneira tão próxima que dá para ver
a cara do Pai, tocando nariz com nariz, beijando-lhe a boca.
“Deus meu, Deus meus, por que me desamparaste?” é uma pergunta de
desamparo que ecoa como um abraço e um beijo. O discípulo precisa saber
que, quando Deus é Pai, ele é meu Deus, e todo sentimento pode ser expres-
so, toda dor de alma pode ser confessada. Quando Deus é Deus meu, ele é
meu Pai e nenhuma dor será amargura, nenhuma confissão de absurdo será
blasfêmia, nada será juízo quando Deus é meu e é meu Pai.
E o discípulo precisa saber que ele será colocado em situações dessa na-
tureza muitas vezes na existência, quando o que o assolará e o que sobre ele
se abaterá será a sensação de desamparo. E ali era um desamparo que se con-
jugalizava com quantidades e situações múltiplas de vínculos que ele tinha
e que não estavam presentes além daquilo que, do ponto de vista teológico,
nós sabemos, sobretudo por Isaías, acerca da sua vicariedade e de ele estar
levando sobre si o pecado de nós todos, e – como Paulo diz – não sendo
pecado fazer-se pecado por nós.
Além desse significado, que está para além de tudo, aquele “Deus meu,
por que me desamparaste?” também conta a história humana desse salvador,
único mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem, experimen-
tando, com todas as consequências espirituais, a própria cruz, como poder
vicário sobre todos nós e sobre o mundo inteiro, com diz João. Mas, ao mes-
mo tempo, é sua a experiência, e ele a sente como desamparo, como angús-
tia, como inferno existencial. E com isso ele diz que nem todo discípulo será
poupado de passar pelo vale da sombra da morte, para aprender a não temer
mal nenhum, porque vai aprender a dizer “porque tu estás comigo”.
Há alguém aqui que pensa que viverá como o pai de Sidarta, o pai de
Buda, que tentou criá-lo até a adolescência sem conseguir provar, nem expe-
rimentar o mal? Não há nenhum mal mais profundo do que esse que assola
as comunidades fechadas para o mal.
Vocês viram o filme “A Vila”? Vira doença, o bicho.
Não existe a alternativa de não experimentar o mal. Jesus disse: “Pai, eu
não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal”. E o melhor lugar
para ser livre do mal é no mundo. O pior lugar para ser livre do mal é na eva-
são do mundo, no ajuntamento dos neuróticos e paranoicos sobre o mundo,
formando um monastério. Aí a macumba é o dia a dia. O mal se instala ali
105
O Caminho do discípulo
como nunca. É igual igreja, que quanto mais fechada, quanto mais unidos
são os irmãos, mais diabolicamente há a mistura da fofoca. Quanto mais eles
não se largam, mais eles se devoram. Mas têm de ter comunhão, comunhão...
Pensando que serão livres do mal, vão virando o próprio mal.
Vamos sendo forçados a crescer na vida. Sendo forçados a nos gloriar nas
próprias tribulações, sabendo que sem “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” acontecendo na alma humana, sem essa tribulação não se
gera perseverança, não se gera experiência, não se gera esperança e nem se
gera aquela segurança que já não mais se confunde, porque o amor de Deus
é derramado nos nossos corações.
É no “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” que vamos
aprendendo a servir a Deus por nada, por coisa nenhuma, sem nenhum es-
pírito de recompensa, sem barganhas. Servindo a Deus por Deus. Não estou
entendendo o desamparo, mas o Senhor é meu Deus.
E mais além, nesse tomar da cruz, o discípulo vai ter de aprender o signi-
ficado de relacionalidade transanguínea, transrracial, transcultural, transétni-
ca, transpolítica e transpartidária, ou trans qualquer coisa.
Ali, do alto da cruz, ele vê a sua mãe Maria e vê, ao lado dela, João, um
dos discípulos. Maria teve muitos outros filhos depois de Jesus, como nos
dizem os Evangelhos. Dois deles escrevem nos livros do Novo Testamento.
Tiago, líder da igreja em Jerusalém, e Judas, que escreveu uma epistolazinha
que é uma súmula da epístola de Pedro; é uma pílula da de Pedro. Então,
Jesus teve outros irmãos e irmãs, que eram filhos de Maria. Jesus foi o primo-
gênito de Maria até o fim. Não tinha nem um irmão dele ali. Todos estavam
fora. Se não fosse por amor a Jesus, que fosse pelo menos por amor à mãe,
mas que a moçada estivesse lá.
E Jesus disse que filho é quem fica junto da mãe e mãe é quem fica junto
do filho. “Mulher, eis aí o teu filho; filho, eis aí tua mãe”. E daí em diante
João a levou para casa.
E com isso Jesus reafirmou a presença de vínculos familiares transanguíneos,
transcendendo a todos esses elementos e afirmando o potencial da capacidade
essencial, de todo ser humano, de se fazer pai de outro ser humano, de se fazer
filho de outro ser humano, de se fazer membro da família de Deus entre os
humanos. Estava afirmando o potencial essencial que existe no coração de cada
discípulo de experimentar a realização da promessa de Jesus, quando disse, res-
106
Tomar a cruz – a humanidade do discípulo
pondendo aos que haviam dito: “Senhor, por causa do teu nome nós deixamos
pai, mãe, família, mulher, casa, bens, propriedades, e te seguimos”.
E ele diz: Em verdade, em verdade eu te digo que ninguém que te-
nha deixado pai, mãe, família, mulher, casa, bens, propriedades, para
me seguir, por amor de mim e por amor ao reino de Deus, não receba,
já nesta vida, neste mundo, neste tempo, mães, irmãos, família, casas,
bens, propriedades, com perseguições. E com isto ele não estava falando
de aquisição de casa, bens, propriedades. Não, não estava se referindo a
abrir-se uma ONG para a terceira idade. Não era nada disso. Ele estava
falando no amor de Deus, na penetração desse amor na consciência do
discípulo, no significado da cruz, na morte do si mesmo, com todo o
poder asfixiante que ele tem de querer nos fazer, de modo pagão, amar
somente o nosso próprio sangue, a nossa mesma carne, não como algo
que devemos fazer para honrar pai e mãe, mas como algo que fazemos
porque nosso coração é egolátrico e concentrado em si mesmo para
amar o que não consideramos nosso. Ninguém quer dilatar o coração
para amar além.
E Jesus pergunta: Você está se sentindo órfão, discípulo? Pode ser que
sua mãe esteja do seu lado. Você chora tanto pelos filhos que não estão aqui
e não tem coração para enxergar os filhos que aqui estão. Fica confinando a
sua felicidade ao quadrado familiar estabelecido pelo si mesmo, em vez de
quebrar essas fronteiras, abraçar o que seja amor fraterno, filial, paterno,
materno – genuínos e verdadeiros.
O discípulo nem discute sobre adoção. Ele se sabe intrinsecamente
adotado. Por isso, para ele, não existe o ídolo do sangue, não existe o
totem do sobrenome, não existe o poder da herança genética, não existe
obsessão pela transmigração do genoma, do gene, para que ele se per-
petue numa espécie de transmigração de DNA. Essa jamais será uma
obsessão do discípulo. Ele está interessado em parir corações, em acolher
e não ter medo de ser acolhido, em não brigar contra o amor. Isso faz
parte do tomar a cruz.
Finalmente, para que você tenha isso bem claro. Temos a humanidade do
discípulo e os caprichos do si mesmo. Veja o que pode ajudar você a fazer a
distinção.
107
O Caminho do discípulo
Para refletir
1. Você pode identificar as tentativas diárias que o si mesmo faz para crescer em você?
2. Por que se tem de ter coragem para tomar a cruz?
3. O que você entende pela expressão “tomar a cruz”? Qual é a origem da minha cruz?
4. Quais são os passos que se caminha nessa cruz?
5. Quais são suas sedes? Que água você escolhe para matar cada uma delas? Ou,
qual é a sede diária do discípulo e que Jesus reconhece na sua humanidade?
6. O que leva o discípulo a dizer com confiança: “Deus meu, Deus meu por que
me desamparaste”?
7. Quais são os laços que a cruz pode criar entre os discípulos?
108
8. Tomar a cruz – cancelado o
escrito de dívidas
Está consumado!
Vimos que não é possível ser discípulo se o indivíduo não estiver com os
sentidos abertos. Diferentemente dos saduceus e fariseus que pediam sinal
do céu, não é possível ser discípulo mantendo no coração o fermento dos
fariseus e dos saduceus – de um lado é a hipocrisia dos fariseus; do outro, a
religiosidade cética dos saduceus –, que não se abre para a transcendência e
nem para a experiência da realidade espiritual.
Jesus disse que para ser discípulo o indivíduo não pode ficar impressio-
nado com a opinião de terceiros, com o que os outros dizem; ele tem, por
revelação, de discernir que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, e todas
as implicações disso. O fato de alguém ter essa revelação – como foi o caso
de Pedro – não o impede de ter cogitações perversas. A seguir, foi também
Pedro repreendido com “Arreda, Satanás, tu não cogitas das coisas de Deus,
mas das dos homens”.
A introdução do tema igreja – Eclésia, os chamados para fora –, foi feita
enquanto Jesus ia no caminho, viajando da Galileia para a região da Cesareia
de Filipe, porque igreja é uma comunidade andante, hebreia, que tem de
estar sempre pisando no chão único do Evangelho, no caminho que enfrenta
a realidade da vida. Se ela enfrenta as portas do inferno, por que não andará
no chão da vida e do mundo? O chamado do todo para o ajuntamento dessa
comunidade de consciência, aconteceu pela primeira vez também em Mateus
16. É um anúncio feito a discípulos, porque igreja somente existe se ela for
feita de discípulos. Se os membros não forem discípulos, ela é um clube, uma
igreja entre aspas. Se os que dela participam forem discípulos, ela é igreja, e as
portas do inferno não prevalecerão contra ela.
Propositalmente, Jesus escolheu fazer este anúncio da inserção deste
corpo de sal da terra e luz do mundo justamente numa das cidades mais
pagãs de Israel, pagã desde sempre – e nunca deixou de ser –, que é a região
do Hermon, nas nascentes do Jordão, a Cesareia filipal, cheia dos nichos e
109
O Caminho do discípulo
dos deuses. E ele anuncia que igreja não tem de estar separada, mas inserida
no mundo. Isso acontece na direção da paganidade, porque para ser igreja
de Deus não pode ser sal no saleiro; tem de ser sal na terra, e onde a terra
for mais insípida tanto mais ela deve se inserir, se fazer presente, necessária,
dando gosto à existência.
O convite ao discipulado explícito, em Mateus 16:24, é claro: “Então, dis-
se Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue,
tome a sua cruz e siga-me”. Se é uma condicional; precisa ser fruto de uma
escolha, e o indivíduo tem a alternativa de não querer ser discípulo.
Discipulado, em João, nos Capítulos 15 e 17, é descrito como amizade de
Jesus. “Vós sois meus discípulos se fazeis o que eu vos mando. Se fazeis o que
eu vos mando, eu não vos chamo servos, eu vos chamo amigos”.
O caminho para a amizade de Deus é o caminho do discipulado, que é uma
alternativa. “Quereis vós porventura também retirar-vos“? É a pergunta que
Jesus faz de vez em quando. Se o pessoal vai ficando blasé7, ele começa a per-
guntar: Por que vocês não pensam em dar uma volta, em tirar férias, qualquer
coisa? Mas se é para ser meu discípulo, é para se engajar, porque ninguém que
tenha posto a mão no arado e olha para trás é digno do reino de Deus.
Existe a alternativa de não ser discípulo, de não segui-lo, de não obedecê-
lo. E existe a alternativa de se fazer de conta que se é alguma coisa dele sem
que se seja, que é o que a maioria acaba escolhendo. Vestem-se com os figu-
rinos, com as indumentárias, fazem parte do elenco, entram para o teatro,
aprendem o jargão do gueto, descobrem os jogos de poder, ataviam-se com
as simbolizações, fazem parte dos ritos. Então são membros da igreja que tem
endereço, CPF, registro, são sócios beneméritos. Participam, sustentam e,
dependendo do lugar, votam, decidem, põem, gritam, fazem o que querem.
Mas se não obedecerem a Jesus, eu lhes digo, poderiam estar em outros
lugares. Talvez o Lyons Clube do Brasil e o Rotary tenham menos fofoca,
sejam ambientes mais finos. Ou a Maçonaria, com seus ritos sofisticados e
antigos, porque, espiritualmente falando, é tudo igual. Para ser igreja tem
de ser discípulo, tem de obedecer ao mandamento de Jesus: “Vós sois meus
amigos, se fazeis o que eu vos mando. Já não vos chamo servos, porque o ser-
vo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque
tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer”.
7. Profundamente entediado de tudo, na realidade ou por afetação.
110
Tomar a cruz – cancelado o escrito de dívidas
112
Tomar a cruz – cancelado o escrito de dívidas
E nós temos que ver o Mel Gibson esfolá-lo mais do que Tiradentes que
foi esquartejado. Lembram-se dos pregadores de antigamente, das campa-
nhas de evangelização? Eram campanhas de santa inquisição do calvário.
Eram campanhas para saber qual evangelista era o mais habilidoso em des-
crever as torturas físicas de Jesus. O evangelista dramatizava tudo. Até falar
no tipo de madeira da cruz, no peso, nos espinhos grandes, na coroa tecida.
Era uma tortura tremenda para ver se o pessoal ficava com pena de Jesus.
Ele morreu por você. Passou esse sofrimento todo por sua causa. Dá até a
impressão de que o sofrimento de Jesus foi aquele.
Aquilo ali não foi o sofrimento de Jesus, aquilo ali foi a cenografia da
crucificação. Sofrimentos físicos como aquele havia todo dia em Israel, nos
dias de Jesus. De Norte a Sul viam-se cruzes espalhadas, porque os romanos
faziam isso com regularidade, e deixavam o indivíduo morrer – dois, três
dias – ali, para ser exemplo. O que mais havia no tempo de Jesus era cruz.
Ele não inventou uma, não inaugurou uma. A dele não tinha grife especial.
Era comum. Era cruz.
Então ele diz: “Se alguém quer vir após mim”. Não adiante de mim, não
achando que eu estou carente e necessitado, não tentando me vender e criar
discípulos emocionais da carência eterna de Deus, como se estivesse fazendo
favores divinos. Não. Ao contrário. Tem de ser atrás de mim. Tem de andar
por onde eu for. Caminho que eu não faço discípulo não conhece. Caminho
que eu não escolho, discípulo corre risco neles. Tem de ser “após mim”.
“A si mesmo se negue”. Estudamos a diferença entre o eu verdadeiro e o
eu falsificado, fantasiado, que é fruto de toda essa coletânea multifacetada
que nós já vimos nos capítulos anteriores. Tome a sua cruz. E cada um tem a
sua. Estudamos as várias implicações da cruz, até que chegamos ao ponto em
que afirmei que qualquer que seja a cruz de cada um, nela, todavia, precisam
estar presentes os mesmos elementos constitutivos do conteúdo da cruz de
Jesus. Existem aspectos da cruz de Jesus que são somente dele para nós; o
que diz respeito a nos expiar, nos redimir, nos reconciliar com Deus. Todos
os demais aspectos dizem respeito a nós na horizontalidade dos vínculos,
no expiar a culpa do irmão, no redimir o próximo, na criação de pontes
e construções reconciliadoras para que sejamos chamados filhos de Deus.
Iniciamos o estudo nas sete declarações que Jesus fez na cruz como sendo os
elementos pivotais para definir a nossa consciência do que seja levar a nossa
113
O Caminho do discípulo
“Está consumado” ao qual ele se refere – não com as mesmas palavras, mas
descrevendo o mesmo conteúdo –, antes de chegar nesse momento ápice
da descrição, ele diz: “Ninguém vos engane, ninguém vos enrede com vãs
filosofias, com os rudimentos desse mundo”. Com pensamentos vãos, com
argumentações, com suposição de gnoses, de conhecimento secreto que
gere autoelevação.
Com a expressão “vãs filosofias”, ele já se referia, especialmente, ao
movimento gnóstico, que queria entrar no ambiente da fé produzindo
uma salvação pelo autoconhecimento e pelos conhecimentos secretos,
não compartilhados com o povo nem com o mundo. Ele dá ênfase nisso
e daí parte para a Lei. Quando fala de vãs filosofias, está falando daquele
público que lia, que se deixava impressionar com os últimos pensamen-
tos, últimos achados, última viagem, último livro reflexivo, última cogi-
tação. Ele parte daí e vem para o ambiente da Lei, dizendo: Não entrem
nessa de vãs filosofias, nem na de autossalvação pela Lei; coisas do am-
biente bem judaico daqueles dias.
Um romano, por exemplo, não precisava ouvir essa mensagem da
Lei de Moisés. O romano não tinha absolutamente nada a ver com a Lei
de Moisés. Não adiantava vir com uma instrução do Velho Testamento
para um romano. Paulo, quando pregava aos romanos, aos gregos, não
levantava argumentação de Abraão, de Davi ou dos Salmos. Ele somen-
te dizia que Jesus tinha vivido entre nós assim, fazendo o bem em toda
parte, curando, expulsando o diabo; morreu na cruz e ressuscitou dos
mortos. Você crê? Quem crê, vem para cá; quem não crê, fica aí. Vamos
embora.
Mas para o judeu – e naquele ambiente havia judeu também – tinha
de ter um argumento na Lei, que era o ambiente central, pivotal. E acabou
tornando-se um argumento pivotal e central também para o cristianismo,
que ficou judaizante. Nós que éramos gentios, gastamos a maior parte do
tempo discutindo essas questões judaicas da Lei. E ele diz: A Lei também
morreu na cruz, como ele já havia dito em Romanos 10:14: “Porque o fim da
Lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê”. Quando Paulo dizia isso,
ele estava dizendo: Está consumado.
Em Colossessens 2: 13- 16, Paulo diz:
117
O Caminho do discípulo
Para refletir
1. Releia todo o capítulo e escreva o significado que essas palavras têm na cruz do
discípulo:
121
O Caminho do discípulo
»» Mulher, eis aí o teu filho; Filho, eis aí a tua mãe. (João 19: 26, 27)
Anotações
122
9. Tomar a cruz – livre da fobia da
morte
Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!
grupo, uma casta, uma categoria especial. Qualquer ser humano que, tendo
ouvido, tendo acolhido, faz parte do grupo com todas as possibilidades de
provar e de conhecer. Mas precisa querer.
Refletimos, seriamente, sobre essa questão da vontade e dos nossos vícios
de transferência de vontade para Deus, das nossas orações adoecidas, o tem-
po todo dizendo: Senhor, faz-me querer. Isso justamente para que nunca se
tome decisão nenhuma acerca da própria existência. São todos mecanismos
evasivos que vemos a toda hora sendo utilizados. Mais do que isso, o convite
ao discipulado que eu posso particularizar, inventar, patentear, como minha
versão de discipulado, não produz nada!
Jesus disse: “Se alguém quer vir após mim”. É um convite que põe o
indivíduo no caminho. É um vir, é um movimento; o resultado é seguir; é
um caminho hebreu. A palavra hebraica carrega esse significado andante,
caminhante, mutante, na estrada, aprendendo, provando.
No entanto, o indivíduo precisa saber que ele não tem a prerrogativa de
inventar seu próprio caminho de discipulado. E nem de formatar seu próprio
Jesus. Estamos lidando com uma realidade absoluta: “Se alguém quer vir após
mim”. E não existe nenhuma garantia de que isso vá se realizar como bem,
como Evangelho, como boa nova, como saúde, como libertação do ser dessa
multidão de construções de eus fantasiosos, de selfs fantasmagóricos. Para que
a libertação aconteça, para que a realidade e a verdade se casem com a graça,
gerando o ser cada vez mais próximo do eu real, é preciso que sigamos após ele e
desistamos das nossas fantasias de autofabricação de evangelhos personalizados,
porque não há nenhuma promessa de que o fantasiar dos nossos caprichos un-
gidos de religiosidade batizada em nome de Jesus vá fazer algum bem a nós.
Vimos o significado do negar a si mesmo, do si mesmo; as diferenciações
entre os selfs categorizados de maneira junguiana, por exemplo, e a definição
do self segundo o Novo Testamento. Vimos como a perversão do eu profun-
do quer crescer em nós à medida que o esvaziamento de irrealidades e de fan-
tasias vão dando lugar à experiência da verdade. No tomar da cruz, vimos o
significado visceral da consciência disso como benefício particular, e falamos
da psicose básica acerca da qual Paulo faz menção em Romanos 7, que tem
de ser o primeiro tomar da cruz de consciência em fé do discípulo. Também
vimos que não faz sentido falar no tomar da cruz inventando qualquer que
seja a imagem ou ideia de cruz como em geral a religião costuma fazer.
124
Tomar a cruz – livre da fobia da morte
Eu disse que nós tínhamos uma única cruz referencial. Porque o que não
faltava nos dias de Jesus era cruz. A história nos mostra que, especialmente
durante o curto período de Pôncio Pilatos, a cruz era comum. Pôncio Pila-
tos foi um indivíduo cruel, brutal. A história começou a saber disso depois
que foi encontrada a documentação que comprova a sua existência, 40 anos
atrás, em Cesareia de Filipe, na costa mediterrânea de Israel. E de lá para cá,
há uma quantidade enorme de informações sobre ele, inclusive sobre suas
brutalizações naquele período anterior à crucificação, quando havia, muitas
vezes, cerca de 500 pessoas crucificadas, por dia, em todo o estreito territó-
rio de Israel. Eles andavam a pé da Judeia para a Galileia, da Samaria para
a Judeia, para o Norte e para o Sul do país, vendo cruz o tempo todo. Os
crucificados não morriam com a rapidez com a qual Jesus morreu. Em geral,
a asfixia era lenta. Podia durar um, dois dias. O indivíduo mal crucificado
e resistente fisicamente poderia resistir na cruz por quase três dias. Era uma
morte extremamente lenta. Isso tudo numa mente religiosa, alegórica, ser-
viria para bilhões de viagens que o indivíduo quisesse fazer. Mas nós não
estamos nos negócios dos caminhos viajantes e, sim, das factualidades. E a
única cruz referencial que temos, a única que vale a pena ser entendida é a do
“Negue-se a si mesmo...”.
Jesus está nos chamando para tomar a nossa cruz e segui-lo. Significa
segui-lo na sua própria cruz, no seu próprio conteúdo e significado de cruz.
Havia uma dimensão da cruz de Jesus cujo significado se aplica a nós e que
é absolutamente para além de nós, que nos transcende, que nunca será nos-
so, porque nós habitamos a dimensão do limite e da finitude. É o benefício
que vem da vicariedade total de Jesus para com o universo, os multiversos
e todas as existências. Mas é dele para lá. Somos beneficiários. Não temos
o poder de torná-la um benefício que nasce em nós para o próximo. No
entanto, os demais elementos daquela cruz, especialmente os designados
pelas sete declarações que Jesus fez ali, são o conteúdo, são os elementos
que constituem o significado da nossa visão do que seja levar a nossa cruz
e segui-lo no caminho.
Depois chegamos à declaração que diz: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito. E tendo dito isto, expirou”. Essa declaração é o elemento absoluta-
mente constitutivo da minha cruz, da sua cruz, da jornada humana como
discípulo de Jesus.
125
O Caminho do discípulo
É uma leitura que eu quero fazer de trás para frente. Ou seja, começando
no fim, na última declaração, no último suspiro, que é no expirar, que é no
morrer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Porque essa é a inesca-
pabilidade da experiência de todos nós. Em primeiro lugar, o discípulo que
não aprender a inescapabilidade dessa hora terá vivido enganado por toda a
sua existência. Segundo, o discípulo que não discernir que o que nos quali-
fica todo dia para viver é a libertação total do medo de morrer, também não
vai aprender a ser discípulo.
Alguns acham que quando eu falo de libertação total do medo de morrer
estou de brincadeira, mas não estou não. De fato e de verdade. O escritor de
Hebreus nos diz que dentre as coisas que Jesus veio fazer como bem espiritual
para aquele que, discernindo, acolhe em fé, uma delas é destruir aquele que
tem o poder da morte, a saber, o diabo, o esquizofrenizador de seres e que
divide tudo; e também que ele veio para destruir aquele que em nós instila,
infiltra, infunde, oprime o poder da morte, o medo da morte, a fobia da
morte, em razão da qual nós vivemos escravizados a vida inteira.
A fobia da morte é uma das pulsões mais primais, mais presentes, pro-
vavelmente a mais intrínseca. Uma pulsão essencial, uma sensação de con-
tagem regressiva que todos têm, que é o motor da maior parte das nossas
ansiedades. Algo em nós conta regressivamente a nossa existência de modo
inconsciente e vamos tentando dar significados pontuais a essa contagem re-
gressiva. E não a experimentamos com a intensidade angustiante, na maioria
das vezes, somente na infância, enquanto o peso opressor da potestade do
futuro não se instalou como angústia na mente infantil; enquanto o ser ain-
da carrega aquela existencialidade recomendada por Jesus, que diz que cada
dia é apenas aquele dia, como, em geral, é com as crianças. Mas em algumas
crianças isso começa a acontecer antes, pelo encontro antecipado com morte
de pessoas muito queridas.
A maioria de nós faz parte do grupo de pessoas filhas de gerações que foram
protegidas de defuntos. E também protegem seus filhos e netos dos defuntos.Eu
venho de uma terra, o Amazonas, onde era privilégio ficar em volta do morto.
Era não somente um dia de comer muito bolo, tomar muito café, mas também
de conversar a noite inteira, coisa extremamente interessante. Um Halloween
sem susto. Os vizinhos se reuniam, contavam histórias do morto; o morto res-
suscitava de tanta história que se contava dele. No Amazonas, naquele tempo,
126
Tomar a cruz – livre da fobia da morte
era melhorado nas histórias. Todos repintavam o indivíduo. Ele ficava uma ma-
ravilha. As crianças achavam tudo aquilo normal.
Mas há crianças que acordam para a significação da morte quando a or-
fandade bate forte mesmo e se estende para a família maior, onde não há uma
tia ou avó, um vínculo essencial para dar aquele abraço que recompõe. Daí,
inicia-se, antecipadamente, a contagem regressiva para a morte, pela respon-
sabilidade que é emulada pela necessidade da sobrevivência.
Na adolescência, quando se mistura com a explosão hormonal da ado-
lescência e mais as crises existenciais da época, a contagem regressiva vai se
transformando em comichão ansioso que é quando bate um frenesi incon-
trolável naquele ser, que vai se tornando um vulcão de desespero querendo
devorar e engolir o mundo inteiro. Na realidade, isso se transforma em um
buraco negro. Tudo que bate ali, naquele horizonte do buraco negro, é cha-
mado e sugado para o lado de dentro. E então apelidamos isso, na adoles-
cência, de “minha necessidade de curtir”, de “não posso perder essa”, enfim,
de qualquer coisa.
Depois os estágios mudam e vamos reapelidando essa ansiedade, rebati-
zando-a de muitas responsabilidades, muitos deveres, muitos cursos a fazer,
muitos alguéns a nos tornar, muitas obrigações a atender. Muitas coisas. Nós
transferimos e mudamos o marco, repintando a placa dessa ansiedade. Mas,
de fato, é a fobia da morte, latente. É o medo constante de morrer. É o re-
lógio disparado na contagem regressiva que diz ao indivíduo que ele está em
franco processo de degenerescência, ao mesmo tempo em que vem a fantasia
que diz, não somente uma coisa, mas bilhões delas, que atribuem, como
obrigação de significação existencial, que ele vá se tornando, aparentando e
mostrando coisas que, de um lado, exacerbam a ansiedade e, de outro, bati-
zam a ansiedade, de modo que a questão básica, o elemento causal, que é a
fobia da morte latente, fica dissimulado.
Então, quando o discípulo genuinamente diz: “Pai, nas tuas mãos entrego
meu espírito” – quando isso acontece sinceramente em fé –, é porque a fobia
da morte foi desconstruída dentro dele; a fobia da morte que se alimenta do
obscuro, do medo, do pânico, do nada ou de um tudo pavoroso, ou de coisa
alguma. Nessa hora é que o discípulo ganha a convicção absoluta de que o
caminho não é um algo, nem quem sabe “um alguém”, nem um nirvana, onde
não se sabe que existe. Ao contrário, para além desse morrer, desfeita a fobia,
127
O Caminho do discípulo
o que se sabe que há é a mão do seu Pai. E que ele não é adoecido como o pai
terreno que talvez alguém tenha tido. É o Pai. Caímos nas mãos dele, somos
nas mãos dele, existimos nele. Uma vez que essa consciência nos atinja e em
nós se instala em fé verdadeira – e isso não é utopia –, quando começamos a
caminhar em fé e a crescer nela, a passar pelos getsemânis da existência e nela
perseverar, vamos vendo como, de fato, a libertação do ser em relação à contin-
gencialidade da morte é crescente. Chega-se ao ponto em que “o viver é Cristo
e o morrer é lucro mesmo”, como Paulo diz.
Paulo chegou a dizer, sem ufania nenhuma: “Para mim é infinitamente
melhor, eu bem que preferia...”, de tão densamente real que se tornara. Ele
disse: “Eu não vou ainda somente pelo benefício que a minha presença
possa trazer para vocês e pelo que os dons da graça de Deus na minha vida
ainda possam trazer sobre alguém, alguns ou muitos; porque, por mim, a
minha convicção é que olhos nunca viram e ouvidos nunca ouviram e que
nunca subiu ao coração de homem algum o que Deus tem reservado para
aqueles que o amam”.
Então, quando o discípulo diz: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espí-
rito”, em fé, ele está declarando a libertação da fobia mais essencial, mais
molestadora, mais pervertedora de caminhos, mais indutora de fantasias,
mais destruidora do olhar limpo, claro e simples, mais fabricadora de ne-
cessidades inexistentes de eus que não correspondem a quem de fato ele
é. Quando o discípulo diz isso ele sai das outras mãos. Fica livre dessa
multidão de mãos que o agarravam. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito”.– Essa foi a última declaração de Jesus e a declaração que ele fez
durante toda a sua existência.
Ilustrativamente, vejamos alguns elementos pivotais.
Quando Jesus é tentado depois de 40 dias sem comer e sem beber –
“Transforme essas pedras em pães” –, o que ele disse foi: “Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”, dizendo: “Nem só de pão viverá o homem, mas de
toda palavra que sai da boca de Deus”.
Quando é levado ao pináculo do templo e o tentador diz: “Atira-te abai-
xo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito para que te
guardem”, o que Jesus respondeu mesmo foi: “Pai, nas tuas mãos entrego
o meu espírito”, porque a tentação foi: “Se tu és o filho de Deus atira-te
daqui”. É uma tentativa de fragilizar a autoimagem, de desviar o curso da
128
Tomar a cruz – livre da fobia da morte
própria natureza e de instilar dúvidas sobre sua própria essência. E o que ele
disse foi: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, quando respondeu:
Não tentarás o Senhor teu Deus”.
Quando é levado a um alto monte e a ele são oferecidos todos os reinos
do mundo sem cruz, sem a escolha da vereda estreita, do caminho do amor,
da vitória que não estupra, que não desembainha a espada, que não esmaga,
que é a vitória da vida e da graça de Deus, quando essa é a proposta satânica,
ele diz: “Arreda, Satanás”, significando dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego o
meu espírito”, a minha confiança está em ti.
Filipenses 2:5-8:
Tende em vós aquele sentimento que houve também
em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de
Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus;
antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de
servo, tornando-se em semelhança de homens; e reco-
nhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou,
tornando-se obediente até a morte e morte de cruz.
quanto a ele concernia em relação a Deus não tinha a ver com o fazer de
um sacrifício ou de sacrifícios. O que o escritor de Hebreus está dizendo é
que o que Deus queria mesmo do encarnado não eram sacrifícios nem ho-
locaustos. O que se está dizendo, na sequência, é que aquele que se encarna
diz: Eu sei que no teu livro está escrito a meu respeito, cumpra-se em mim
toda a tua vontade.
A conclusão de tudo isso é: Na encarnação, o prazer de Deus não era no
sacrifício do encarnado, o prazer de Deus era na disposição dele de cumprir
toda a sua vontade, dizendo: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
No Evangelho de Marcos, nas narrativas anteriores à crucificação, é in-
teressante ver a quantidade de vezes em que Marcos usa a palavra entregar,
mostrando, insistentemente, que o caminho de Jesus – quando inicia a de-
terminação de que ele será levado à cruz – é um caminho marcado pelo signo
da entrega. Entrega, entrega, entrega. No capítulo 14:10, Judas tramou para
entregar Jesus; no verso 11, ...buscava ele uma boa ocasião para o entregar;
em 15:1, ...levaram-no e o entregaram a Pilatos; em 15:10, ...lho haviam
entregado; em 15:15, ... entregou-o para ser crucificado
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” é uma decisão que a maioria das
pessoas pensa ser uma declaração a ser dita imediatamente anterior ao morrer.
Eu vou guardar a minha para a última hora. Mas se o seu marido passar mal,
se começar a ficar pálido, e for ficando cada vez pior, com os olhos macerados,
e começar a dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, você vai inter-
romper, gritando: Para com isso, meu bem! Porque isso de entregar o espírito
a Deus ninguém quer. Se o indivíduo puder adiar para toda a eternidade, ele
adia. Adia para sempre. Ele não quer entregar nem na hora da morte;– ele gos-
taria de adiar para sempre –, imagine se ele quer se entregar vivo!
A luta é para não entregar nas mãos do Pai. A pessoa diz: Olha, pai, meu
espírito eu entrego na última hora, mas enquanto não chega essa hora, eu sou
dono da minha alma, das minhas emoções, das emulações, dos desejos, das
pulsões, das compulsões. Sou dono das taras, até dos meus desejos à revelia,
até no que não mando eu sou dono. Eu adoro o meu surto, amo perder o
controle. Então, um dia eu te entregarei o meu espírito. Por enquanto, eu
sou essa água viva pulsante, esse ente psíquico pulsante, divorciado de uma
consciência e de compromissos com a busca do que seja verdade em mim, a
partir da verdade absoluta que eu tenho do sentido da vida expresso por ti.
130
Tomar a cruz – livre da fobia da morte
Tudo isso somente faz sentido se formos discípulos. Se não, nossa primei-
ra pergunta é a de Pilatos: O que é a verdade? A tua? A minha? A do fulano?
De quem? E voltamos ao papo de sempre. É por isso que tudo o que Jesus
está dizendo é para gente que quer vir após ele. Quem não quer não precisa
gastar um minuto ouvindo nada. Até o conceito de verdade é uma questão
de absoluta desnecessidade de discussão, a menos que, por revelação – como
aconteceu com Pedro, que disse: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, no
contexto antecedente do que já estudamos –, o indivíduo tenha recebido a
certeza dessa loucura. Porque, de fato, assumir que Jesus é Deus é um desva-
rio absoluto e um surto total da religião. Não será assim se for revelação da
Palavra e do Espírito Santo.
Por isso Paulo diz que é loucura, e o próprio Jesus diz, afirmando a seus
discípulos que muitos quiseram saber discernir e não puderam: “Graças te
dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e
entendidos, e as revelaste aos pequeninos; sim, ó Pai, porque assim foi do teu
agrado”. Um apocalipse, um tirar de véu na simplicidade, um discernir. Do
contrário, não sendo discípulo, não existe essa conversa de dizer: “Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito”. É algo que se adiaria para sempre – se pudésse-
mos –, até que chegássemos à experiência da falência física, pelo pânico, pela
fobia profunda que toma conta do coração da maioria absoluta das pessoas.
Precisamos entregar ao Pai a mente, a consciência, abrindo mão de uma
quantidade enorme de coisas que podem chegar e parecer agregamento a
nós, mas que são, de fato, apenas pesos de fantasias que vão acabar descons-
truindo nosso próprio ser. Deveríamos tomar a decisão de caminhar dia a
dia, dizendo cumpra-se em mim a tua vontade. Nas tuas mãos entrego o
meu espírito. É decisão após decisão. Eu quero ser uma pessoa de consciência
renovada todos os dias na disposição de que em tuas mãos, Pai, eu entrego
o meu espírito.
Do ponto de vista da antropologia bíblica, não existe dimensão humana
última, mais essencial, mais profunda do que o espírito. Encontramos uma
visão de tricotomia do ser humano na Bíblia – corpo, alma, espírito. Corpo,
como organicidade que iria, de maneira muito básica, do hardware do cé-
rebro ao todo do organismo e suas complexidades. A alma, como aparelho
psíquico. E o espírito, como algo que transcende a isso, que está para além
do elemento pulsional que habita a alma.
131
O Caminho do discípulo
Para refletir
1. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” – o que significa essa palavra na cruz
do discípulo?
2. Do que se alimenta a fobia da morte?
3. De acordo com o texto citado de Hebreus, podemos dizer que o prazer de Deus
não era no sacrifício. Avalie sua vida diante disso: o quanto seu coração tem
prazer na vontade de Deus?
4. Porque esta palavra de Jesus “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” deve ser
a primeira e não a última da nossa cruz? O que isso significa?
134
10. Quem quer ser meu discípulo?
Que adianta a ele ganhar o mundo inteiro, gerando apenas uma persona,
apenas um 3D, um holograma, uma projeção de um ser irreal, que apenas
coopta, que apanha, toma, apreende, rouba, captura, toma posse daquilo que
o mundo diz que é vida, e ele, na ilusão do mundo, diz ser alguém, e toma
isso como significado e sentido da sua existência? E Jesus pergunta: O que
vai adiantar isso tudo se essa pessoa, no processo, inevitavelmente já perdeu a
sua alma? Não tem alma que sobreviva a essa mentira. É uma falsificação do
eu muito grande, a falência do que quer que tenha sido resquício de um ser
nessa pessoa. Porque o Filho do Homem há de vir na glória do seu Pai. Eu
gosto disso - na glória do seu Pai.
O indivíduo vê uma aurorazinha boreal e fica todo bobo, assiste o History
Channel, o programa Universo, com aqueles efeitos especiais maravilhosos, e
fica deslumbrado. Vê um monte de Água Viva no fundo do mar com efeitos
fosforescentes e bioluminosos, polvos miméticos e brilhantes que parecem
assombrações interplanetárias extraordinárias e fica embasbacado. Imagine
ver o Filho do Homem na glória do Pai! Eu não vou dizer que esta eu quero
ver, porque esta eu já estou vendo. Já estou assentado num lugar de onde,
mesmo que eu não veja, eu sei que verei.
O Filho do Homem virá, na glória do seu Pai, com os seus anjos, com
esses entes todos de dimensões distintíssimas estranhas e diferentes, com es-
sas criaturas de outras dimensões espirituais, esses mensageiros de Deus. E,
então, ele retribuirá a cada um segundo as suas obras. É interessante que ele
está falando aqui de retribuição numa perspectiva extremamente positiva. Às
vezes, ouvimos falar na vinda do Senhor para retribuir a cada um segundo as
suas obras e fica bem clara a intenção de julgamento bom e mal daquilo que
vai glorificar uns e destruir outros. Aqui não. Retribuição aqui é retribuição;
o equivalente a tudo o que jogamos fora de nós mesmos.
O que Deus está dizendo é que tudo isso que pensamos estar jogando
fora – e que muita gente diria que é vida –, tenha certeza, é o arremesso
do que não é vida. O que vai sobrar é vida genuína, crescente, que não
está acabada. Andamos para frente, para trás; três passos adiante, um atrás,
retomamos o caminho – aprendemos. Há momentos de mais estabilidade
e há momentos de fragilidade; mas não se pode parar. Não podemos deixar
de seguir, de ir após, nem de pensar que o dia de ontem transferiu crédito
para o dia de hoje. É preciso negar a si mesmo, praticar a cruz e segui-lo
145
O Caminho do discípulo
todos os dias. Não perdê-lo de vista. Não arranjar o álibi das distrações
feitas em nome de Jesus, que impedem, de fato, aquela caminhada simples
que, prioritariamente, o segue.
Eu não quero ter nenhum serviço ou ministério praticado na minha vida
que não me seja posto por Jesus. Não quero dom que Jesus não me dê. O
melhor de mim, a melhor versão de mim serei eu todinho em Jesus.
O que eu estou dizendo a vocês, com todo o meu coração, é que nós, a
vida inteira, seremos aquelas pessoas que precisaremos dizer:
Esquecendo das coisas que para trás ficam e avançando
para aquelas que diante de mim estão, eu prossigo para
o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em
Cristo Jesus. (Fp. 3:13, 14)
Esse chamado para segui-lo se traduz em poder dizer todo dia: Estou
combatendo um bom combate. Hoje é o dia de completar mais um passo
dessa carreira. É um dia de guardar mais carinhosamente o depósito da fé.
Paulo diz: “Não que eu julgue, irmãos, haver obtido a perfeição, ao contrá-
rio, eu esqueço para trás, prossigo para o alvo”. E conclui: “Ora, todos nós
que somos perfeitos, tenhamos esse entendimento”.
De um lado, a consciência de Jesus me faz constatar a inacababilidade da
minha existência, no curso na terra, neste corpo de morte, de ambivalências
e de ambiguidades. De outro lado, não gera nem espaço para acomodação.
É para praticar, negar a si mesmo, tomar a cruz, desenvolver a salvação com
temor e tremor; é para prosseguir, para querer, é para buscar as coisas exce-
lentes. Além disso, é uma consciência que existe não na tensão, mas no pa-
radoxo, no “está consumado”, que fez a sua síntese na cruz, que é a seguinte:
De um lado eu não sou perfeito. De outro lado, eu já sou perfeito.
Então, a minha não-perfeição não vai ganhar poder de destruir o meu
levantar, porque quando a minha não-perfeição não está justificada pelo fato
de que em Cristo eu já estou aperfeiçoado, ela é uma não-perfeição que so-
mente carrega a negatividade da culpa e da desistência. Mas quando eu sei
que estou aperfeiçoado em Cristo, a minha não-perfeição não me deixa um
cínico; gera em mim o ânimo de quem se levanta todo dia e diz: Vamos lá.
O dia de ontem se foi e as misericórdias do Senhor se renovaram hoje.
Eu quero dar passos novos hoje; é assim que eu vou caminhar. Então ele diz:
“Vem e siga-me”. E vamos ver que o caminho nos leva em muitas direções.
146
Quem quer ser meu discípulo?
Para refletir
1. “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue”. Expresse com suas palavras
o ensino de Jesus nessa frase.
2. O que para você significa salvar a vida ou perder a vida? O que significa para
Jesus?
3. “Se alguém quer vir após mim, dia a dia tome a sua cruz e siga-me” (conforme
Lucas 9:23). O que significa a expressão dia a dia?
Anotações
147
O Caminho do discípulo
148
11. A esperança da Glória com
certeza em fé
Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro e aos irmãos Tiago e João, e
os levou, em particular, a um alto monte. E foi transfigurado diante deles; o
seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como
a luz. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele. Então, disse
Pedro a Jesus: Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três tendas;
uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias. Falava ele ainda, quando
uma nuvem luminosa os envolveu; e eis, vindo na nuvem, uma voz que dizia:
Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; a ele ouvi. Ouvindo-a
os discípulos, caíram de bruços, tomados de grande medo. Aproximando-se
deles, tocou-lhes Jesus, dizendo: Erguei-vos e não temais! Então, eles, levan-
tando os olhos, a ninguém viram, senão Jesus.
A pergunta inicial é: O que toda essa conversa sobre discipulado tem a ver
com essa manifestação epifânica, extraordinária, chocante, única, singular e
pirotécnica? Do ponto de vista espiritual, o assunto era a cruz, e, de repente,
eles chegam ao alto desse monte e há essa epifania.
Quando Jesus acabou de dizer “Tome a sua cruz e siga-me”, ele introduziu
a vinda do Filho do homem, após falar da loucura que é ganhar o si mesmo,
149
O Caminho do discípulo
que é feito do pacotão de ganhar o mundo inteiro, que é aquela absorção fanta-
siosa de que o mundo é o que é, é o que faz alguém, é o que catapulta alguém,
é o que legitima alguém, então, que adiantava ganhar esse si mesmo fantasioso
e perder a sua alma?
O Filho do Homem vem na sua glória, com seus anjos, e então re-
tribuirá a cada um conforme as suas obras. E ele diz que entre vós há
alguns que, de modo algum, passarão pela morte sem que vejam o Filho
do Homem no seu reino.
Mas alguém poderia dizer: Falhou, não é? Porque todos eles morreram
e o Filho do homem não veio no seu reino. Essa é a primeira conclusão a
que chegamos. A segunda conclusão vem como pergunta: Qual é a conexão
entre o desafio, o convite para segui-lo e o fato de Jesus levar os discípulos a
esse lugar alto? Provavelmente, esse lugar alto era o monte Hermon, pois eles
estavam chegando à cidade de Cesareia de Filipe, que fica no pé desse monte,
que é o ponto mais alto daquela região, fronteira com Israel, Líbano e Síria e
com todos os seus significados bíblicos. O Salmo 133 – o salmo da fraterni-
dade – fala de como é bom viverem unidos os irmãos, pois é como o orvalho
do Hermon, que se derrama sobre Jerusalém. Tudo aquilo que acontece: a
geleira que desce, que escorre, que forma o Jordão, o mar da Galileia, até a
sequidão de Judá, até Jerusalém – lugar ermo e seco – é beneficiada pelo Her-
mon. E o que o salmo diz é: Se há irmandade, se há irmãos, uns não podem
prescindir dos outros. Imagina Jerusalém sem o orvalho do Hermon!
A necessidade um do outro é essencial, é fundamental. O monte Hermon
também fazia parte do imaginário judaico. Era relacionado a uma rebelião de
anjos, aquela lá de Gênesis, capitulo 6, que diz que os filhos de Deus possu-
íram as filhas dos homens e geraram nelas seres alienígenas, aqueles gigantes
da Antiguidade, que despotizaram o mundo antigo, que se hibridizaram com
humanos, que desfiguraram o caminho humano.
Foi uma intervenção de natureza genética de desconstrução, de descons-
tituição humana, de tal modo que o livro de Gênesis diz que, por esta razão,
por tamanha decadência, corrupção e degeneração, e pela inviabilidade de
continuidade da existência humana naquela circunstância, veio a catástrofe
do dilúvio, que Pedro interpreta como salvação. E de fato foi. Do contrário,
não sabemos se a humanidade teria chegado aqui. E se tivesse chegado, talvez
fosse da maneira mais vampiresca e desumana que se pudesse imaginar.
150
A esperança da Glória com certeza em fé
O livro de Enoque registra essa ocorrência, não como algo que diga que
foi assim que aconteceu. Estou apenas dizendo que, no imaginário judaico,
inclusive no imaginário dos apóstolos e dos contemporâneos do Evangelho, o
Hermon também carregava essa significação místico-arquetípica dessa queda
de anjos. Ali diz que os vigilantes – aqueles anjos que geraram Nephilins com
as mulheres – reuniram-se na sua confraria de rebelião sobre o monte Hermon.
Isso fazia parte do imaginário, do pensamento daquela geração também.
É para esse monte que Jesus os leva, conversando com eles pelo caminho.
Pouco antes ele dissera: “Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui
se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam
vir o Filho do homem no seu reino”. O texto de Lucas 9, similar a esse de
Mateus, diz, ato contínuo:
Cerca de oito dias depois de proferidas estas palavras,
tomando consigo a Pedro, João e Tiago, subiu ao
monte com o propósito de orar. E aconteceu que, en-
quanto ele orava, a aparência do seu rosto se transfigu-
rou e suas vestes resplandeceram de brancura. Eis que
dois varões falavam com ele: Moisés e Elias, os quais
apareceram em glória e falavam da sua partida, que ele
estava para cumprir em Jerusalém. Pedro e seus com-
panheiros achavam-se premidos de sono; mas, conser-
vando-se acordados, viram a sua glória e os dois varões
que com ele estavam. Ao se retirarem estes de Jesus,
disse-lhe Pedro: Mestre, bom é estarmos aqui; então,
façamos três tendas: uma será tua, outra, de Moisés, e
outra, de Elias, não sabendo, porém, o que dizia. En-
quanto assim falava, veio uma nuvem e os envolveu; e
encheram-se de medo ao entrarem na nuvem. E dela
veio uma voz, dizendo: Este é o meu Filho, o meu
eleito; a ele ouvi. Depois daquela voz, achou-se Jesus
sozinho. Eles calaram-se e, naqueles dias, a ninguém
contaram coisa alguma do que tinham visto.
153
O Caminho do discípulo
Qual é o processo?
Sou justificado. Tenho diante de mim a esperança da glória de Deus, na
qual eu me glorio. Vida eterna, imortalidade, não no sentido de que esse cor-
po mortal continua vivendo, mas no sentido de que eu passo da morte para
a vida. A morte acabou. Somente fica sabendo da morte quem não morreu
ainda. Quem já morreu não a nota mais, não se vincula mais a ela. Nosso
egoísmo é que nos faz transformar a morte em luto eterno.
Alguém tem dúvida de que eu amo meus filhos visceralmente? Assim que
o Lucas morreu, em março de 2004, eu fiquei 20 dias fechado em meu quar-
to. Senti todas as dores que a alma consegue sentir. Depois desse período, eu
me levantei e falei: Agora eu vou pregar todos os dias, até o final do ano. E
vou chorar quieto e sozinho. Por quê? Vocês olham para mim e veem luto?
Nós começamos o Caminho da Graça em Brasília poucos meses depois.
Eu não sentia dor? Ah, você não tem ideia das saudades que eu sentia! Mas
eu sempre soube que era somente meu egoísmo, a pequenez do vermezinho,
a visceralidade do ventre paterno querendo que o filho sepulte o pai. Era
somente a ambição pela ordem natural das coisas, porque, se eu exercesse a
minha consciência em Cristo por um segundo, toda a minha lágrima rolaria
doce. Como rolou. Por quê? Porque eu não perdi filho nenhum. Ele está
em glória. Indizível. Se alguém perguntasse a ele se quer voltar, ele diria que
de jeito nenhum. E se me perguntassem: Se o Senhor lhe desse o poder de
trazê-lo dos mortos você traria? Eu tenho dito e repito: Eu não faria a ele tal
mal, jamais! O nosso luto é o melhor e mais bondoso egoísmo, mas é. É a
nossa incapacidade de transcender, de ver a glória, de ver que a morte já não
existe, que tudo é nosso em Cristo. Sentimos falta da pessoa e gostaríamos
de manter essa pessoa amada, porque falta em nós a esperança da glória de
Deus. Falta o discípulo ver a transfiguração, a transcendência.
É por isso que depois de dizer que na terra é assim que será a cruz, ele
os leva para a experiência da percepção da transcendência, da glória, por-
que, para tomar a cruz todo dia e segui-lo precisamos fazer isso tomados
da esperança da glória de Deus, senão nos tornamos um saduceu cristão,
que é aquele indivíduo que não crê em espírito, em anjo, em ressurreição,
em coisa alguma, mas acha o maior barato seguir a Jesus, porque dá status
de gente boa na terra. Se fizer direitinho, vira até um Dalai Lama do seu
bairro. A maioria dos cristãos nem é discípulo e nem tem esperança da
154
A esperança da Glória com certeza em fé
glória. É por isso que são tão infelizes. A maioria nem é discípulo e nem é
levada pela esperança e alegria eterna do reino. Sentimos dor ao ouvir isso,
mas é verdade. E Paulo disse que assim seria. Que se a nossa esperança em
Cristo se reduzir apenas a esta vida, nós nos tornamos os mais infelizes dos
homens. Porque estamos entregando a vida a um projeto que não carrega
eternidade. Que não venceu a morte em nós. Que não nos libertou da
contagem regressiva desgraçada do findar da existência – como a maioria
dos que não têm esperança vive – e, pior, nos agrava com aquele estado que
Jesus disse que é pior do que o primeiro, porque nos coloca diante desse
arquétipo de cruz, de vida eterna, de perdão, de culpa, de graça, que não é
internalizada, não é crida, não é vivida, mas fica latente como uma culpa
não resolvida, porque não é absorvida.
Não é à toa que as psicologias desenvolvidas no planeta terra tenham
procedido todas do berço judaico-cristão. As correntes mais importantes.
A freudiana é judaica, a junguiana é protestante. São os dois modelos. No
ocidente judaico cristão, uns estão cheios de lei e outros cheios de vida eterna
com medo da morte. Leis, culpas e pesos acumulados em séculos e séculos de
construções mentirosas.
Gerou-se uma sociedade cheia de pânico, apavorada, necessitada de uma
ciência que lide com essas angústias latentes que estão espalhadas por aí. Não
se encontra essa incidência no oriente, na Índia. Não se encontra essa neces-
sidade, nesse nível, no mundo árabe, e nem nas comunidades primitivas e
distantes. É uma doença produzida pela cultura judaico-cristã, que teve de
inventar os sacerdotes curadores dessa enfermidade produzida por esse volu-
me. E que volume é esse? É o volume da infelicidade, da não transcendência,
da falta de ressurreição, de uma existência sem alegria da vida eterna, que faz
com que se continue a sofrer a morte, seja nossa ou dos outros, com uma
dor radicalmente pagã, que se perpetua dentro de nós, dando testemunho da
nossa desesperança, da nossa falta de certeza de transcendência e da nossa fal-
ta de amor pela eternidade. É isso que o desespero enlutado, que as orações
angustiadas de filhos pedindo a Deus para preservar a mãe de 99 anos estão
revelando – essa falta de consciência e de certeza da glória.
Os espíritas kardecistas estão anos-luz adiante de muitos cristãos que
eu conheço. Esses cristãos estão falando em salvação, em vida eterna, em
Jesus, mas borrados de medo de tudo que eles dizem que está resolvido.
155
O Caminho do discípulo
um demônio que não queria sair, e um pai chato que ainda ficava dizendo
que nós não tínhamos fé. Nós não expulsamos o demônio porque deu tanta
raiva do pai que a vontade foi de matá-lo, para depois expulsar o demônio.
E ele ainda reclama com Jesus, queimando nosso filme. E vocês? Onde esta-
vam? No acampamentozinho gostoso lá no alto? Num piquenique? O que
houve? Imaginem a cara dos três descendo com esse mistério. Uma das piores
tentações é aprender a viver com o reino em silêncio, sem fazer do reino uma
propaganda.
“Está dentro em vós. Não vem com visível aparência”. Aquilo ali foi so-
mente uma maquete, uma construção arquetípica. Estamos diante de algo
que nos exige silêncio – não contem nada para ninguém -, mas que termina
sendo o nosso projeto existencial, porque temos de passar muito mais tempo
carregando o reino em silêncio, no coração; não o declarando a todas as pes-
soas, em todos os lugares, para que ele não perca o sentido.
Outra coisa singela que Jesus ensina nisso tudo é a necessidade de que
cada experiência existencial, espiritual, seja levada para o interior, selada em
silêncio, até que ela se decante, profundamente, em nós, e ganhe suas pro-
fundidades e suas próprias raízes. Acho extremamente perigoso quando vejo
pessoas que nem entenderam ainda o que viram, o que experimentaram, o
que perceberam e vão logo contando para todo lado.
Meu pai, seis anos antes de partir para o Senhor, teve uma experiência
de arrebatamento espiritual. O que mais me impressionou sobre a verdade
do significado, da seriedade, da autenticidade de tudo aquilo foi que três
meses depois ele não tinha conseguido contar para ninguém. Ficou comigo
três dias na floresta tentando contar e não conseguia. E quando se dispôs a
contar, começou a chorar e simplesmente falou: Sabe o que o nosso irmão
Paulo disse lá em II Coríntios 12, quando ele foi ao terceiro céu e voltou de
lá dizendo que não era lícito referir? Pois é, aconteceu comigo. Mas o nosso
irmão Paulo estava enganado. Eu perguntei: Como, pai? E ele: Não é que
não seja lícito referir. É lícito. Mas é irreferível. Eu nem tenho como dizer.
Se eu tentar dizer o que experimentei, vou blasfemar na descrição. Vou jogar
lama na glória. Eu somente preciso que você saiba que é glória indizível. Eu
não tenho nada além disso para dizer.
É algo que vai descendo, aprofundando, entrando, criando raízes no co-
ração. Se você abrir em II Pedro 1:16-21, lerá:
157
O Caminho do discípulo
Estou dizendo que é para não chorar? Não. Jesus chorou diante de um
amigo. Chorar faz bem, é um processo humano, faz bem à alma. Mas eu
posso chorar todas as mortes sem lamentar nenhuma delas. Eu tenho direi-
to à saudade, à vontade de abraçar, de sentir o cheiro, mas sem nenhuma
lamentação, porque o meu amor se gratifica na felicidade eterna de quem
eu amo. E eu mesmo estou livre dessa neurose, dessa fobia desgraçada da
morte. Eu não morro mais. Acabou esse papo. Tão certo como vive o Se-
nhor. A glória já é minha em Jesus Cristo, nosso Senhor. Sem que a glória
se instale, discípulo nenhum carregará alegremente a sua cruz.
Para refletir
1. Quais são os caminhos do segue-me?
2. Qual é o processo do seguir, de acordo com Romanos 5: 1-5
3. Porque este texto de Romanos não se aplica ao saduceu?
4. O que é essencial que o discípulo tenha, como certeza de fé, para continuar
seguindo?
5. Quais são as consequências da falta de consciência, da falta de certeza da glória
na vida daquele que se diz discípulo?
Anotações
161
O Caminho do discípulo
162
12. Da Transfiguração à Glória
Excelsa
No capítulo anterior, eu afirmei que não é possível tomar a cruz sem a intro-
dução, na consciência, da Glória de Deus. Porque se não carregarmos a trans-
cendência todos os dias, fica impossível tomar a cruz. A cruz é uma possibilidade
somente para quem repete com Jesus a sua afirmação aos discípulos que cami-
nhavam de Jerusalém para Emaús, que é uma afirmação-questão: “Porventura
não convinha que primeiro o Cristo padecesse e, então, entrasse na sua Glória”?
Quando Jesus fez essa pergunta, ele estabeleceu não somente a pedagogia
de Mateus 16 – primeiro, vem a cruz, depois é que vem a Glória da transfi-
guração –, mas muito mais do que isso; ele estabeleceu a pedagogia da cruz
para ele, a ressurreição ao terceiro dia e todas as demais coisas, assim como
estabeleceu o mesmo princípio existencial que é repetido o tempo todo nos
Evangelhos, nas Cartas de Paulo e no todo do Novo Testamento: “Porque
para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem
ser comparados com a glória a ser revelada em nós”.
Jesus disse para ter cuidado com o fermento dos fariseus e dos saduceus.
Não dá para ser discípulo de Jesus levando dentro de si os conteúdos, as fer-
mentações e as doenças dos fariseus e dos saduceus. Depois vêm os herodia-
nos. Os fariseus viviam da autossatisfação de sua própria ética: moralidade,
justiça própria e legalismo. Os saduceus, dos ritos no Templo, da alegria e do
orgasmo estético que o rito sacerdotal lhes dava. Aquela satisfação estética,
ritual, porque eles faziam parte da classe sacerdotal – a maioria deles – e labu-
tavam por uma sociedade judaica de ética imediata, ritual e sacerdotal, mas
sem transcendência. Eles não criam nem em espírito, nem em anjo, nem em
ressurreição. Então, não criam na esperança da Glória de Deus. Significando
dizer que não acreditavam que existisse qualquer coisa que os transcendesse.
Ora, se não dá para ser discípulo carregando o fermento dos fariseus e dos
saduceus, e nem a satisfação midiática de poderes ao alcance da mão – que é
o fermento de Herodes, a sedução política −, também não dá, sob hipótese
alguma, para levar a cruz sem que tenhamos dentro de nós a transcendência
da consciência em fé acerca da Glória de Deus.
163
O Caminho do discípulo
Mas o que fica para nós como significado de lição dessa entrada na cons-
ciência do Reino, que é esse passo, que é essa percepção da Glória, que é o
que vai nos animar a negarmo-nos a nós mesmos, a tomarmos a cruz e a
seguirmos sempre – como Pedro ressaltou na segunda epístola – é aquela voz
que nós ouvimos no monte santo, que veio da Glória Excelsa; que nos anima
e nos animará para sempre a passar por todas as tribulações; que é o que nos
faz gloriarmo-nos na esperança da Glória de Deus, e não apenas isso, mas
também nas próprias tribulações. É o mesmo poder e é a mesma força.
Então, diante disso, precisamos saber que, quanto mais profundamente
mergulharmos na consciência do significado da Glória de Deus e no nosso
chamado eterno para a Glória – para não passarmos pela morte antes de
vermos a manifestação do poder do Reino de Deus, que é o que gera o poder
para irmos vivendo esse convite de Jesus todos os dias –, menos temos de nos
comparar uns com os outros, porque cada um está em fase diferente dessa
percepção; ela é particular; é absolutamente particular.
Pedro, Tiago e João foram levados para o monte, mas não vemos nenhu-
ma alusão ao que Tiago e João tenham dito. Somente ao que Pedro disse. E
ainda há uma desculpa que lemos no Evangelho de Marcos – um Evangelho
escrito, provavelmente, a partir das memórias de Pedro, e é uma explicação
de Pedro sobre o que aconteceu com ele – que diz: Porque, em razão da per-
plexidade, ele não sabia o que dizer.
Então, se o Evangelho de Marcos é oriundo das confissões de Pedro, ali
temos uma nesga de sua explicação pessoal: “Olha, desculpem, mas a bo-
beira foi fruto de perplexidade. Sabem aquele bobo que fica absolutamente
chocado com o que está vendo, e aí fala aquela bobagem? Foi o meu caso.
Desculpem, mas foi isso que aconteceu, foi susto de Glória que provocou
um besteirol santificado.” A sequência dessa leitura vai nos apresentar uma
quantidade enorme de temáticas que serão abordadas mais à frente.
Esse aspecto da existencialidade, da particularidade do processo, da indivi-
dualidade da apropriação da revelação da consciência do Reino, é uma coisa que
não acontece em série. Todos estamos ouvindo as mesmas coisas, assim como na-
quela noite, naquele monte, todos três viram a mesma coisa, mas, provavelmen-
te, pelo que vemos de interpretação na primeira epístola de Pedro, tenha tido
nele um tipo de impacto diferente. Sua ênfase foi a voz vinda da Glória Excelsa,
que dizia: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo, a ele ouvi”.
170
Da Transfiguração à Glória Excelsa
Não sabemos qual a força desse impacto em João, que estava lá tam-
bém. Vemos declarações extraordinárias dele: “No princípio era o Verbo, e
o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”. Não sabemos se foi naquela
noite, se foi naquela hora, se oito dias depois, se uma semana depois, que
João teve sua internalização por uma outra via, o que viria fazê-lo dizer
mais adiante: O que temos visto, o que pegamos, o que sentimos, o que
os nossos olhos perceberam, o que os nossos ouvidos ouviram, isso é o que
vos damos a conhecer.
Cada um tem seu modo de internalizar essa experiência. Talvez João te-
nha feito uma viagem mais subjetiva do que Pedro. A ênfase de Pedro foi na
“voz que ouvimos no monte santo, e que nos veio da Glória Excelsa”. É a
ênfase numa voz.
João enfatiza a mistura de uma experiência crescente. Cada um com os
seus meios, seus recursos, sua personalidade, sua percepção, sua capacidade
de apreensão, de discernimento, de leitura, vai fazendo a viagem particular.
E o texto diz: Ele foi transfigurado diante deles. E mais do que isso: “O
seu rosto resplandecia como o sol e suas vestes tornaram-se brancas como a
luz”. Quais as implicações disso na consciência do discípulo? É a experiên-
cia de poder crescer no discernimento da visualização da Glória de Deus na
face de Cristo, que seria como Paulo haveria de dizer em II aos Coríntios
3: 18. Ou o significado de “seu rosto resplandecia e suas vestes se tornaram
como a luz”. O que isso tem a ver com meu modo de vestir? O que isso tem
a ver com a suposta dicotomia cristã entre matéria e espírito? O que isso
tem a ver com o gnosticismo remanescente entre nós, que ainda diz que as
coisas do espírito é que são as elevadas e as coisas materiais são quase que
realidades permeadas por uma graça maior de Deus, porque parece que são
perversas em si mesmas? E as implicações disto na nossa mente, no nosso
modo de dividir o mundo entre secular e sagrado, nas perguntas idiotas,
que as pessoas me fazem: Pastor, é pecado ouvir música do mundo? Ou:
Será que temos de ouvir música gospel? Ou: Será que posso ler somente
livro de crente? Faz mal isso? Faz mal aquilo?
Ora, se fosse assim, Jesus tinha de estar vestido com veste de um sa-
cerdote do templo em Jerusalém, da descendência de Levi. Mas ele está
vestido é com a roupa dele mesmo. A mesma com a qual ia ao cemitério,
voltava do cemitério, curava doentes, se molhava na tempestade. A mesma.
171
O Caminho do discípulo
O Novo Testamento faz questão de dizer que era somente uma e tecida de
cima abaixo em uma única tessitura. É a única particularidade: a inteireza
dessa vestimenta; sem costura. No mais, era para o que desse e viesse. É essa
mesma que fica transfigurada mais do que a luz!
Quais as implicações disso para nossa espiritualidade no mundo real?
Quais as implicações disso em relação a que tipo de consciência espiritual
iremos desenvolver sobre geografias santificadas e geografias não santificadas,
se é que elas existem? Estilos de vestir de Deus e estilos de vestir que não são
de Deus. Modos de ser, de personalidade, de cultura que seriam de Deus e
modos culturais que não são de Deus.
São todas questões que ficam bem na nossa cara quando ficamos sabendo
que Ele se transfigurou diante deles; que as suas roupas não eram branqui-
nhas como em filme de Hollywood da década de 30, nem de 40, nem de 50,
com aquele Jesus falando, aquela voz empostada, daquele locutor, de um Cid
Moreira romântico e piedoso. Não. As roupas dele eram sujas mesmo.
Nem Deus veste três anos e três meses a mesma roupa sem que ela fique
suja. Dormindo no chão, é carrapato, é sujeira. Tem de entrar num riozi-
nho de vez em quando, dar uma esfregada, espremer. Era somente uma.
Pelo menos é o que se diz, e que era uma túnica tecida de cima abaixo. O
que era estiloso nela é que não tinha costura. Por isso é que os guardas qui-
seram dividir, jogaram dados para ver quem é que ficava com ela, lançaram
sorte. Mas era suja. Estava mais para marrom do que para qualquer outra
cor. É por isso que dá um susto em Pedro, Tiago e João, porque aquela
roupa, suja, Marcos diz – lembrando Pedro – que ficou mais alva do que
nenhum lavandeiro da Terra conseguiria lavar. Olha como é que ela estava
precisando de lavagem mesmo. É! E não era fosforescente, não eram as
vestes do Benny Jesus. Não eram. Era uma roupa suja, e o milagre foi tão
grande na roupa dele que nenhum lavandeiro da terra conseguiria lavar. E
mais do que isso, ficou alva como a luz!
E o rosto? Tem uma narrativa que diz: “Brilhava como o sol na sua
força”. Qual a implicação disso, do ponto de vista cultural, do vestir, do
mundo real, de até aonde vai a espiritualidade, o que ela pervade, o que
ela penetra, o que ela inclui? Se houvesse duas dracmas no bolso da túni-
ca, elas seriam santificadas? Ou seria a única área da roupa que Deus não
estaria abençoando? Ou, se elas estivessem separadas para um dízimo, será
172
Da Transfiguração à Glória Excelsa
Para refletir
1. O que é a esperança da glória de Deus na vida do discípulo?
2. Qual é a relação da experiência da Glória de Deus e a esperança da Glória com
a nossa intimidade?
3. Quais as implicações da transfiguração na consciência do discípulo?
4. Quais as implicações da transfiguração em relação a que tipo de consciência
espiritual vamos desenvolver sobre geografias, usos, costumes santificados e geo-
grafias, usos, costumes não santificados?
5. O que o discípulo tem de aprender depois da transfiguração? O que resta?
Anotações
173
O Caminho do discípulo
174
13. Olhar para a Glória de Deus todos
os dias
E Lucas não nos deixa dúvida a esse respeito quando vincula essas pa-
lavras de Jesus à narrativa subsequente: a transfiguração. Ele mostra que a
transfiguração era o cumprimento dessa promessa, a manifestação dessa sub-
jetividade, a expressão do reino de Deus chegando para esse grupo particular
e específico de discípulos.
Qual é a intenção de Jesus? Vimos que ele está vindo de uma primeira de-
terminação: estabelecer a pedra angular, a pedra de esquina: “Tu és o Cristo,
o Filho do Deus vivo”.
O segundo momento do ensino de Jesus é: A minha cruz é a sua cruz. Se
alguém quer vir, não somente não pode brigar com a minha cruz, mas tem
de tomar a sua cruz e seguir. É a mesma caminhada.
E no terceiro momento ele diz: Vou introduzi-los à consciência do reino
e da glória.
Do ponto de vista existencial e psicológico, não poderia ser de outra for-
ma, porque ninguém suporta o significado do negar a si mesmo, do tomar
a cruz, com as implicações que isso carrega. E não é possível seguir a Jesus
sem que isso tenha uma profunda relação com o impacto gerado no coração
acerca da glória de Deus em nós, da transcendência. Caminhar com Jesus no
chão da terra sem a esperança da glória é um projeto irrealizável.
Por isso Paulo diz, em I Coríntios 15, que se a nossa esperança em Cristo
se limita apenas a esta vida, nós nos tornamos os mais infelizes de todos os
homens. Discipulado, seguir Jesus, ser do Evangelho, somente acontece se o
indivíduo fizer disso a viagem como um todo, entendendo que caminhar no
Evangelho somente faz sentido se for, antes, filho da ressurreição.
Se antes não nos tornarmos seres conscientes do chamado eterno, da vo-
cação eterna, da vida eterna em nós, da abolição do medo da morte, da des-
truição da fobia do morrer; se não entrar em nós essa iluminação de glória
que faça com que não andemos na terra temendo pela própria morte física,
mas, pelo contrário, sem nenhum problema, mas com a questão já totalmen-
te resolvida, sabendo que somos habitados pela eternidade; se não for assim,
não nos tornaremos discípulo.
Isso é o que faz com que cada despedida de alguém que se ame não nos
deixe aleijados, destruídos, porque, por amor, devemos olhar para aquela
pessoa e ver que toda dor que sentimos é apenas nossa, fruto da nossa carên-
cia, do nosso egoísmo, do modo de amar possessivo, finito, mortal. Porque
176
Olhar para a Glória de Deus todos os dias
se amarmos mesmo aquela pessoa que partiu não vamos dizer que estamos
tristes por causa dela; estaremos tristes por nossa causa. Do contrário, esta-
ríamos dizendo que não cremos na eternidade; ou estaríamos dizendo que
estar com Deus não é bom.
Isso que parece jogo de palavras, que parece brincadeira, é coisa muito
séria. Ninguém cresce, ninguém amadurece, ninguém se torna homem ou
mulher sem vencer essa etapa. Caso contrário, o caminho com Jesus passa a
ser um caminho de um saduceu – aquele sacerdote do partido político que
fornecia sacerdotes que não acreditavam em anjo, nem em espírito, nem em
ressurreição, nem em transcendência alguma. Era apenas um caminho ético.
Ora, seguir Jesus apenas como ética é uma desgraça. É melhor seguir a Lei
de Moisés. É mais leve.
Seguir Jesus tem de ser uma pulsão de amor. E, para ser uma pulsão de
amor, Jesus não pode ser apenas um mestre que nos inspira a mente. Se ele
for somente um mestre que nos inspira a mente, sinceramente ele não está
com toda essa bola na nossa vida. O que faz essa revolução toda é o fato de
que eu creio que ele ressuscitou dentre os mortos, de que ele é Deus. É Deus
que se encarnou entre nós e ressuscitou de entre os mortos. O Evangelho de
Jesus é a única leitura que tem, de fato, de ser feita de trás para frente.
Foi a partir da ressurreição que ele pôde nascer de uma virgem. Se tivesse
nascido de uma virgem, mas tivesse morrido e ficado morto, ele não seria
o cumprimento daquilo. Ele poderia ter feito qualquer outra coisa, mas se
tivesse sido parado pela morte cairia na categoria de um bom caminho, de
um cara do bem. Seria uma filosofia. A mais dramática, a mais apaixonada, a
mais suicida de todas em relação a se dar em amor para os outros, em entrega,
em perdoar sempre. Seria somente uma decisão de pessoas que se encaixam
naquele tipo de esforço existencial, que é olho por olho, dente por dente.
Quem aguenta isso por muito tempo? Isso mata as pessoas. Transforma-
as em seres legalistas, pedrados, endurecidos, enrijecidos. As contradições
vão aparecendo e essas pessoas vão se tornando cínicas; e o cinismo vai de-
senvolver uma grande hipocrisia, que vai diluindo-as. Então, passam a viver
do self, do si mesmo, sem nenhuma cruz, sem nenhuma negação, restando
apenas o discurso, mas sem nada dentro de si.
A única realidade que alimenta a alegria de dizer “Tu és o Cristo, o Filho
do Deus vivo”, que alimenta a alegria de negar a si mesmo, de tomar a cruz e
177
O Caminho do discípulo
10% e ter o resto comido pelo devorador, pelo gafanhoto. Então, no meio
dessa gafanhotada as pessoas vão esticando a vida sem nenhum significado,
com medos e pânicos, sem nada acontecendo da graça de Deus dentro de si
e com esse agravante horroroso. O que elas têm não é fé. Elas têm fé como
instrumento de macumba, como uma mídia, como um despacho; mas não
é fé que se manifesta na busca de relação com Deus, de quem tem ambição
espiritual. As ambições dessa fé fétida, terrena, animal são todas ambições
caracterizadas pelo que seja ambição humana. Então, é fé para comprar
aquela casa, é fé para derrotar um adversário que me molesta no Senhor
– porque eu sou cabeça não sou cauda –, é fé porque bem-aventurados os
humildes de espírito.
E mais do que isso. É uma fé de contabilidade, de matemática, é uma fé
que pode registrar em livro. Dia tal comprei um carro; aquela gravata tão
sonhada, aquele sonho que minha melhor amiga tinha e que eu nunca pude
comprar, e o Senhor me abençoou e eu realizei esse sonho. Isso, na verdade,
é a realização de uma inveja. Essa é a fé dos nossos dias. É o Deus cupido. O
Senhor me abençoou e eu consegui a garota que eu queria. Essa é a fé que se
encontra hoje.
Se disserem que a mãe está com câncer, não importa se ela tem 98 anos
ou 38, com essa fé esse indivíduo está perdido. É fé-de-grana, é fé-de-casa.
Essa é a fé-de-hoje. E o cacófato é proposital. Fé demais não cheira bem. É
essa a fé. Essa fé ferra. Não faz nada, além disso. Não coloca ninguém sobre a
morte, sobre a doença. Essa fé diz que Deus é bom somente se ele curar. Mas
ela não ensina, com alegria e devoção, a perguntar: “Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Então, para que haja fé tem de haver transcendência, transfiguração. Tem
de haver o nosso redimensionamento para além do imediato, porque o ime-
diato não nos anima ao amor, ao perdão. O imediato não nos faz essa terapia.
Quem perde a percepção do que está para além jamais terá o poder de negar-
se a si mesmo, de tomar a cruz e seguir com aquela alegria que se alimenta
todo dia da eternidade. Eu não sei como as pessoas conseguem viver sem a
eternidade. Existir é o que elas conseguem. Um dia, no entanto, chega-se a
um ponto em que tudo vai virando um fastio, e vai-se perdendo a empolga-
ção nas coisas sem significado. É quando a esperança da glória de Deus entra
em nós que encontramos o tesouro mais valioso.
183
O Caminho do discípulo
E se não aprendermos a fazer isso todo dia teremos muitos dias horríveis
na vida. Dias quase insuportáveis. Temos de aprender que basta a cada dia
o seu próprio mal. Cada dia traz seu mal, sua luta maior, menor, grandiosa;
mínima, escrachada ou sutil. E o que me aguarda é uma sucessão de não sei
o quê. De tapas e de beijos, de abraços e de empurrões, de honras e de des-
prezos, de acolhimentos e de rejeições.
Alguém espera qualquer outra coisa dessa existência? Espera um trata-
mento vip, diferencial? A morte é de todos, exceto se ouvirmos antes o soar
da última trombeta e estivermos em Cristo. Com que idade, eu não sei, mas
todo mundo vai morrer, todo mundo vai sentir dor, todo mundo já sofreu,
todo mundo vai sofrer ainda. Ninguém tem de saber do que e nem como.
Jesus disse: exultem, ergam a cabeça, a vossa salvação se aproxima. O tem-
po todo Jesus disse que a salvação para essa contingência é a glória de Deus;
a transcendência. O tempo todo. “No mundo tereis aflições”. É uma certeza.
“Mas tende bom ânimo, eu venci o mundo”. Venceu como? Vencendo a
morte. Ressuscitando, abrindo a porta da eternidade.
Por isso, o viver é Cristo e o morrer é lucro mesmo. E isso vai fazer de
nós pessoas que ficam perguntando que dia o Senhor nos levará? Não. Sim-
plesmente nos deixa livres para viver. Porque nós não estamos esperando
a eternidade; a eternidade já está em nós. Estamos vivendo a vida eterna.
Já. Hoje. Quando este corpo deixar de existir é esta mesma vida que estará
continuando. Não será outra vida. Será em crescência absurda em amor, em
graça. O galardão do ser é o discernimento do amor eterno. Então, o que
pode me acontecer?
Quando Paulo pergunta quem poderá nos separar do amor de Deus, ele
está falando é disso. Eu já estou lá. Quem está falando com você é um ente da
vida eterna, que não tem apenas essa promessa. Já tem essa habitação. Já pas-
sei em Cristo. Ora, se é assim, morte já não é mais um bicho, não é mais uma
questão, não é mais um debate. A única questão é vida. Seja na morte, seja na
vida. Tudo é vosso, e vós de Cristo e Cristo de Deus. Acabou essa conversa.
“Onde está, ó, morte, a tua vitória? Onde está, ó, morte, o teu aguilhão”? Já
era. Não tem mais esse papo. Eu estou livre para o que vier.
Então, enquanto estamos neste mundo, a vida é Cristo. É abundância
em Cristo, é alegria em Cristo, é a vontade do Evangelho. E na hora em
que partirmos? É lucro, é consumação de tudo. E Paulo diz que ele bem
186
Olhar para a Glória de Deus todos os dias
que gostaria de estar com Cristo que, particularmente para ele, seria infi-
nitamente melhor, mas, por causa dos irmãos, ele preferia continuar com
eles. Que é mais ou menos a mesma coisa que falamos em ralação a filhos
e netos.
Quando a gente se desencana em relação à morte, se desencana mesmo.
Ficamos totalmente livres para dizer: Eu peço ao Senhor somente que me dê
mais tempo aqui para cuidar desses queridos, que eu ainda sinto que precisam,
mas se o Senhor achar que está na hora de me levar, sei que o Senhor cuidará
deles. Estamos livres. E quanto mais a liberdade da fobia da morte se instala
em nós, mais alegria de viver, de existir, temos, porque já somos a eternidade
no tempo. Esse já é o nosso estado. Acabou essa conversa. E é desse poder que
todas as demais coisas vão se irradiar como resistência dentro de nós.
Somos desafiados a meditar nessas coisas para isso se transformar em um
corpo de entendimento, de compreensão, em algo que fique instalado dentro
de nós, não apenas na nossa mente, mas que se transforme em um pacto de
glória de Deus na nossa vida.
Para refletir
1. Qual tem sido a sua motivação para seguir a Jesus?
2. Você quer ser levado a ver a glória de Deus? Quer ser tomado por Jesus? Para
quê? Por quê?
Anotações
187
O Caminho do discípulo
188
14. O encontro com a Glória de
Deus
o Filho do Deus vivo” e assume essa loucura. Ele carrega a cruz e toma consci-
ência do mundo imenso de fantasias que constitui o seu self, o seu si mesmo;
nega isso e abraça a cruz com as suas implicações e segue a Jesus. E esse é um
ato de vontade: se alguém quer.
E Jesus descortina diante deles essa percepção do excelso, do eterno, do
maior. Introduz alguns elementos que são importantíssimos para eles, no
momento, e haveriam de ser importantíssimos para quem quer que tenha
tido os olhos abertos, no curso desses últimos dois mil anos, para perceber o
significado da verdadeira espiritualidade, da verdadeira consciência de expe-
rimentar Deus, sendo seu discípulo.
Essa é a questão. O que significa experimentar Deus, já que eu tenho esse
background10 afirmado até aqui? E já que eu tenho isso, como é a espirituali-
dade desse ser que emerge dessa consciência? O que deverá ir se afirmando,
solidificando, referenciando, definindo nele?
A primeira coisa que quero afirmar tem a ver com a transfiguração de
Jesus diante de Pedro, Tiago e João, quando ele lhes mostra a cara da Glória
de Deus.
Paulo vem a falar depois desse acontecimento – a transfiguração – dizen-
do que ele se transformou em um fenômeno universal: é para qualquer que
seja o discípulo. Não mais apenas para Pedro, Tiago e João; não mais em
particular, mas agora para todos, como ele diz aos Coríntios.
Na Segunda Carta aos Coríntios, no capítulo 3, vejam a alusão que Paulo
faz aos mesmos elementos da transfiguração contidos em Mateus 17 e das
outras manifestações sinônimas, sinópticas, idênticas, em Marcos e em Lu-
cas. Há semelhança da presença de Moisés na transfiguração com o que Pau-
lo fala na carta aos Coríntios, quando diz que a carta que ele escrevia não era
como a de Moisés – que foi escrita em pedras –, mas escrevia na nova era do
Espírito de Deus, da ação do Evangelho no íntimo de todo ser humano que
deseja. Quando ele diz que agora é inscrita no coração de cada um, já começa
a fazer a comparação com Moisés. Afirma que isso é assim porque nós não
estamos diante do monte Sinai; estamos diante do Jesus transfigurado.
A visão do monte Sinai como está em Hebreus, repetindo o Êxodo de
Deuteronômio, foi uma visão assombrosa e aterradora: “Disseram a Moisés:
190
O encontro com a Glória de Deus
Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não fale Deus conosco, para que não
morramos”.
E Moisés, quando desce do monte, coloca um véu sobre a face. Suposta-
mente, era para não ofender os sentidos visuais dos filhos de Israel, que viam
seu rosto resplandecente, fulgurante, iluminado.
Paulo, no entanto, diz que aquele véu que foi posto na face de Moisés
foi mantido não porque o seu rosto refulgisse, mas porque o fulgor do seu
rosto agora se desvanecia. Aquilo que um dia foi posto para não ofuscar os
sentidos dos outros, depois de um tempo passou a ser usado por Moisés para
que os outros não percebessem que a luz já não brilhava, já não estava, já
desvanecera. A purpurina da Lei acabara.
Então, Paulo faz essas comparações o tempo todo em II aos Coríntios 3,
especialmente nos versos 2 e 3:
Vós sois a nossa carta, escrita em nosso coração, co-
nhecida e lida por todos os homens, estando já ma-
nifestos como carta de Cristo, produzida pelo nosso
ministério, escrita não com tinta, mas pelo Espírito do
Deus vivente, não em tábuas de pedra, mas em tábuas
de carne, isto é, nos corações.
191
O Caminho do discípulo
E Paulo está sendo de uma ousadia absurda no falar. Porque ele está di-
zendo que Moisés já era - com todas as letras. E aquela glória virou glorinha,
perto da Glória Excelsa! E a Glória de Moisés era desvanecente; essa aqui é
crescente. Moisés cobria o rosto; nós tiramos todo o véu da cara, e somos
chamados a enfiar a cara para dentro da glória de Deus.
“Tendo, pois, tal esperança, servimo-nos de muita ousadia no falar. E
não somos como Moisés, que punha véu sobre a face, para que os filhos de
Israel não atentassem para a terminação do que se desvanecia”. Depois de um
tempo, nem Moisés queria mostrar a desvanecência da sua própria glória, e
manteve o véu na face, embora ele cobrisse apenas o que já não era.
“Mas os sentidos deles se embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando
fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece (espiritualmente
falando, sobre a visão deles), não lhes sendo revelado que, em Cristo, é remo-
vido”. Em Cristo, todo véu é removido, é rasgado; começando pelo véu do
santuário, que foi rasgado em duas partes, de alto abaixo. É com a cara para
fora que andamos em Jesus, no Evangelho.
“Quando, porém, algum deles se convertem ao Senhor, o véu lhe é retira-
do. Ora, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liber-
dade”. Aí não há véu, aí somente vale o que é. O que não é não precisamos
nem esconder, porque é melhor apresentar o que, não sendo, seja verdade e
realidade, do que fazermos de conta acerca de qualquer coisa que não seja a
verdade do nosso ser.
Portanto, liberdade para abrir os olhos, liberdade para colocarmos a cara
para fora, liberdade para ser levados por Jesus a esse lugar onde se diz: “E ele
se transfigurou diante deles”. Sem medo e sem véu.
192
O encontro com a Glória de Deus
Moisés deixou todo mundo lá em baixo. Jesus não levou todos com ele,
mas levou três, que já estavam preparados para ver. E apresentou diante deles
aquilo que não apareceu a Moisés no monte Sinai.
No monte Sinai era clangor de trombeta, era fogo ardente, chamejante,
eram nuvens grossas, densas e escuras. Era pavor, tinha um som lancinante e
apavorante. E o povo lá em baixo, desesperado, dizendo: A gente vai morrer,
vira para lá, Deus!
Aqui, não. É o Pai. Jesus leva gente normal com ele. Sobe. E não disse
nada, simplesmente transfigurou-se diante deles. Aconteceu. Sem prepara-
ção, sem coisa alguma. Sem véu, sem nenhuma necessidade de o indivíduo
se preparar para ver a Glória de Deus.
Quando chega o dia, quando a hora chega ela simplesmente se manifesta
conforme o desígnio de Deus. No entanto, isso agora se tornou mais do que
uma experiência tópica e momentânea e de data marcada. Ela pode ter, e
terá, tantas caras quantas Deus desejar; assustando-nos.
Mas o que Paulo descreve não é um encontro tópico com a Glória de
Deus. A Glória de Deus é Cristo. Quando nos encontramos com Jesus,
encontramos com a Glória de Deus, assim como, no fim da narrativa da
transfiguração, desaparece tudo e ficando somente eles e Jesus. Essa é a
Glória de Deus.
Paulo nos introduz num processo gradual de transfiguração o que para
Pedro, Tiago e João foi uma experiência de data, de um dia, foi tópica, foi
espaço-temporal, foi geográfica, foi testemunhável. Foi tão chocantemente
palpável que Pedro queria fazer três tendas. De repente começou e de repente
acabou. E nenhum deles levou uma caixinha com um souvenir de transfigu-
ração para abrir de vez em quando e se inspirar. Guardaram na memória e no
coração, como Pedro guardou.
Em sua segunda epístola, Paulo faz alusão ao dia e hora no chamado
monte da transfiguração, quando diz: “... pois ele recebeu, da parte de Deus
Pai, honra e glória, quando pela Glória Excelsa lhe foi enviada a seguinte
voz: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”. Então, esta é uma
experiência tópica e arquetípica.
A que Paulo descreve é a transfiguração nossa de cada dia, é o caminho nosso
na direção do monte Hermon todos os dias, contemplando Jesus. Nós não so-
mos pessoas do monte Sinai. Como diz o livro de Hebreus, nós temos chegado
193
O Caminho do discípulo
ao monte de Sião. Nós temos chegado à incontável assembleia dos santos e dos
anjos e dos primogênitos arrolados nos céus, à igreja dos primogênitos. Nós
temos chegado é a essa introdução que está toda presente na transfiguração.
Pedro Tiago e João entram nessa assembleia arquetípica dos primogênitos
ressuscitados, das igrejas dos santos arrolados nos céus porque lá estão Jesus,
Moisés, Elias, Pedro, Tiago e João, representantes arquetípicos de dimensões
variadas, de momentos distintos da história da consciência humana e da
percepção de Deus no mundo. E é acerca disso que o escritor de Hebreus
está aludindo quando diz: “Nós temos chegado ao Monte de Sião”. Ele não
estava falando do monte Sião em Jerusalém, mas do monte Sião espiritual,
da assembleia dos santos, dos anjos glorificados, da igreja dos primogênitos
arrolados nos céus. É desse ambiente dentro do qual nós estamos todos sen-
do introduzidos.
E a transfiguração é arquetípica em relação a mostrar os desenhos básicos
dessa catedral invisível e extraordinária dentro da qual nós todos estamos
sendo colocados, postos, fazendo parte dela.
“E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando como por espelho
a Glória do Senhor”. E não é esse espelho modernoso do século 21, que
nos mostra melhor do que olhando com o próprio olho para nós mesmos.
Espelho, na Antiguidade, era um bronze polido, que dava − como se diz lá
no Norte – “malmente” uma impressão; ajeita o cabelo para lá, ajeita para
cá, mas longe de nitidez. Era aquele espelho da Antiguidade. Que ninguém
se engane pensando que era espelho moderno. Vemos tudo em parte, ainda.
Quanto mais crescemos em amor, mais vamos chegando à plenitude, ao que
é perfeito. Mas enquanto o amor não for perfeito em nós, seremos em parte.
Quanto menos amor, mais partidos e diminuídos estaremos. Quanto mais
amor, mais completos estaremos. Mas amor absoluto somente no dia em que
nos tornarmos como Jesus. Antes desse dia chegar, nós o contemplamos.
Levou-os Jesus a um alto monte e transfigurou-se diante deles. A trans-
figuração está posta diante de nós. Todo dia. E nós, agora com o rosto des-
vendado, contemplando, como por espelho – ainda não vemos com nitidez,
mas temos vislumbres da Glória do Senhor –, vemos o que nos está reservado
nele. Embora “olhos nunca tenham visto, ouvidos nunca tenham ouvido,
nunca tenha subido ao coração de homem algum o que Deus tem reservado
para aqueles que o amam, Deus no-lo tem revelado pelo Espírito.”
194
O encontro com a Glória de Deus
De modo que não vimos a plenitude de nada, mas todo dia podemos
ser introduzidos na parcialidade de uma percepção nova da Glória, que nos
ilumina, que nos incandesce, que nos transforma.
À medida que vamos fazendo o exercício da contemplação mais profun-
da, vamos metendo a cara desassombradamente para dentro deste Santo dos
Santos e vendo o rosto do Senhor; quanto mais cremos em Jesus dizendo:
“Quem me vê a mim, vê o Pai”; quanto mais mergulhamos no Evangelho e
na Palavra, mais seremos transformados à semelhança do Senhor.
E quanto mais transformados à semelhança dele, mais o espelho ganha
nitidez para nós. E quanto mais nitidez, mais nos assemelhamos a ele, por-
que é pela percepção de quem ele é que iremos nos tornando à sua seme-
lhança. Daí a insistência de se crescer na Graça e no conhecimento de Jesus.
Como Paulo aconselha: Que nos dilatemos, para que compreendamos qual
é a altura, a profundidade, a largura, a extensão do amor de Cristo. Então,
quanto mais vamos entrando, mais o processo de transformação de glória em
glória, na própria imagem do Senhor, vai acontecendo.
O chamado é para crescermos nessa contemplação que nos permite ver
o espelho mais nítido, e a glória do Senhor vai nos transformando todo dia.
E é obra dele, é obra do Espírito em nós. Esse é o nosso chamado, a nossa
transfiguração cotidiana.
Compare com o texto de Mateus 17, um cenário arquetípico. Temos
Moisés e Elias; temos Jesus, temos o Pai; temos Glória – Shekinah –, a nu-
vem luminosa; temos a Palavra vinda do céu: “Este é o meu Filho amado, em
quem me comprazo”. Temos uma maquete da comunidade dos discípulos;
temos, enfim, essas coisas presentes que são manifestações completamen-
te arquetípicas daquilo que constitui a nossa consciência em fé: nós somos
gente do Pai, somos gente do Filho, somos gente do Espírito Santo. A nossa
consciência de pecado decorre da Lei de Moisés, que avultou o nosso pecado;
a nossa esperança de salvação decorre dos profetas, que falaram daquele que
haveria de vir; e a nossa salvação se corporifica, se encarna, em Jesus, que
completa todas as coisas. Então, esses elementos constituem a nossa própria
percepção de quem nós somos em Deus, no mundo.
Em Jesus tudo ganha sua completude e, mais que isso, a partir daí, temos
uma descrição maravilhosa do significado da espiritualidade que o discípulo
é chamado a praticar no mundo.
195
O Caminho do discípulo
Para refletir
1. Qual é a relação da transfiguração cotidiana com o negar-se a si mesmo, com o
tomar a cruz ?
2. Quando é que o discípulo se encontra com a Glória de Deus?
3. Como todas as coisas da produção humana podem ficar cheias da luz da Glória
de Deus?
4. O que sobra após a transfiguração de acordo com o relato de Mateus?
5. Como se aplica a transfiguração descrita por Paulo – “a transfiguração de
cada dia”?
198
15. A consciência do que é Reino de
Deus e as três tendas
Essa nuvem luminosa, que vem e envolve a todos, mostra o destino glo-
rioso de toda a criação, que como nós – diz Paulo, em Romanos 8 – geme
esperando igualmente o dia da redenção!
Então, nem só de Moisés e de Elias vive o homem. Moisés e Elias são fi-
guras de referência na revelação; um, trazendo a Lei; o outro, como ícone dos
profetas, os dois fazem parte da minha consciência espiritual, mas, no final da
narrativa, quando cessa o elemento cênico inteiro da transfiguração, em Ma-
teus 17, fica somente Jesus. No fim, o alvo absoluto de toda espiritualidade é
nos fazer como Jesus, é nos tornar um Jesus. O que Jesus quis dizer, quando
disse: “Eu neles, ó Pai, e Tu em mim e eles em nós”? Ele propôs essa fusão.
De modo que o nosso destino é a cristificação total. Hoje você está vendo
a minha absoluta relatividade, um dia você me verá Cristo. E um dia cada
um será Cristo, porque o chamado dele é para que nos transformemos de
glória em glória, com a cara para fora, contemplando a Jesus, sem medo.
Aformoseando-nos no espírito, na alma, no ser, conforme ele, até sermos
absorvidos por ele, nos tornando exatamente como ele é; porque haveremos
de vê-lo como ele é. Essa é a promessa do Evangelho, essa é a minha, é a sua
vocação. É a de todos nós. Mas não é uma vocação religiosa, nem é uma
espiritualidade religiosa.
Eles estão num monte: o Hermon. Quando o visito, sempre que vou a Is-
rael num período de frio, como em Janeiro, gosto de ir lá para cima mesmo,
para os teleféricos, onde tem esqui na neve. Ou seja, esse lugar é na Terra.
É tão real no tempo-espaço e na geografia que faz fronteira com o Líbano e
com a Síria. E tem 2.300 metros de altitude. Qualquer geografia do mundo,
nessa consciência de espiritualidade de Jesus, onde ele está ensinando aos
seus discípulos, se torna uma geografia santificada. Não existem lugares que
sejam mais santos porque tenham se tornado diferentes de outros lugares.
Todos os lugares são lugares santos. Ao Senhor pertence a Terra e toda a sua
plenitude, o mundo e tudo o que nele há.
A samaritana já tinha ouvido a resposta a respeito disso quando pergun-
tou a Jesus onde era o lugar que se deve adorar? “Mulher, em verdade eu te
digo que no monte Gerezim, aqui em Samaria – que é o monte dos montes,
santificado para vocês −, nem no monte Sião, em Jerusalém é o lugar onde
se deve adorar. Deus é espírito, e importa que os Seus adoradores O adorem
em espírito e em verdade”.
201
O Caminho do discípulo
é que secular virou outra coisa. Em Jesus não existe sacro e secular, tudo é
sacro, tudo é secular. Tudo depende de nós. O homem não foi feito para
o sábado, o sábado é que foi feito para o homem; o homem não foi feito
para o templo, o templo é que foi feito para o homem. Por isso, na ordem
de Jesus, tudo está invertido. Na ordem de Jesus, todas as coisas são puras
para os puros. É por isso que ele comete barbaridades cerimoniais, é um
transgressor cerimonial da lei judaica, e não dá a menor bola.
Ele atravessa e vai estar com porqueiros em Gadara, na terra dos pagãos,
no outro lado do mar da Galileia, onde expulsa uma legião de demônios do
homem que veio a ficar apelidado de o gadareno. Coitado, ninguém sabe o
nome dele, virou o gadareno. E gadareno virou símbolo de tudo que é desca-
cetado – não é nem de tudo que foi curado. Ficou assim o gadareno.
Mas então, ele vai à terra dos gadarenos e se junta com porqueiros. Judeu
não chegava perto de porqueiro, nem de porcos. Jesus se encontra com um
homem que vive no cemitério, que desenterra covas, que faz qualquer malu-
quice, se corta, se lanceta, se fere todo. Depois expulsa o demônio do homem
e não o manda fazer rito de purificação. Pega nele, se assenta com ele, conver-
sa com o homem; entra naquela história inteira. Os porcos se aporcalharam
todos, morreram afogados, lá no mar da Galileia. Os porqueiros entraram
em crise, pediram para Jesus ir embora. Jesus foi.
Ao chegar do outro lado, o chefe da sinagoga − Jairo −, o responsável pe-
los ritos, pelos cerimoniais, por tudo, conforme diz o texto de Marcos 5, vem
e pede para Jesus ir até sua casa porque sua filha está morrendo.
Se Jesus fosse um homem da Lei ele diria: Olha, vou na semana que vem,
porque eu cometi uma gafe cerimonial. O Pai já me perdoou, ele me enten-
deu, foi para o bem que eu fui a Gadara, pisei em um cemitério, toquei um
homem imundo e ainda convivi com porqueiros e com a porcaria toda. Mas
na semana que vem eu vou à sua casa, Jairo, porque eu vou ter de ficar uma
semana nos banhos purificatórios, vou até me mudar pra Qumran, lá com os
essênios, para me lavar, me lavar, me lavar... E vou salvar a sua filha, depois.
Mas Jesus não faz isso. Esse tipo de transgressão ele comete o tempo todo.
Ele atola a mão em leprosos. “Senhor, se tu quiseres, podes purificar-me”. E
Jesus não disse: “Quero, fica limpo”, de longe. O texto de Lucas diz “... e
Jesus estendendo a mão...”. Que dizer, ele patolou a mão na chaga e não foi
tomar banho nenhum.
203
O Caminho do discípulo
204
A consciência do que é Reino de Deus e as três tendas
Experimente ficar sem frequentar. Na igreja católica, pelo menos basta uma
batizada e já resolve; e o indivíduo desaparece para o resto da vida. Na evan-
gélica, fora da igreja não há salvação mesmo! E tem de haver confirmação
três, quatro vezes por semana, com dízimo! Senão, Deus não acredita. Esse
é o “reino de Deus”.
Todas as minhas energias são contra esse “reino de Deus”, que é império
de trevas, de mesquinharia, de apequenamento. É a esse “reino de Deus”, é
acerca dos filhos desse suposto reino de Deus que Jesus diz: “Em verdade vos
digo que publicanos e meretrizes vos precedem no Reino de Deus”. “Naque-
le dia, muitos virão do Norte, do Sul, do Leste, do Oeste e tomarão lugar à
mesa com Abraão, Isaque e Jacó, enquanto os filhos do Reino estarão fora”.
Então, a espiritualidade do discípulo é centrada na consciência do Reino.
E Jesus quis introduzi-los pela primeira vez nessa perspectiva cênica. Imagi-
nem o que é estar ali! Eles sobem... Não sabiam de nada, três bobos, subindo
atrás de Jesus, aquelas pedras de calcário, lisas, brancas, e eles subindo. De
repente, Jesus diz: Aqui está bom; vamos orar? Ele não pediu para darem
as mãos, não disse “amém, irmãos”? Jesus somente orava. Quem quisesse
ficar do lado dele, ficava; quem não quisesse, andava. Aí, ele se afastou para
orar, e Pedro, Tiago e João ficaram por ali. Lucas diz que chegou a dar sono.
Chegaram a dormir. De repente, abriram os olhos, olharam para Jesus, estava
aquele sol ao meio dia! Lucas diz que eles abriram bem os olhos para ficarem
acordados, para verem o que era aquilo! E as vestes luminosas! E aquelas
figuras: Moisés e Elias!
Jesus, Moisés e Elias! E os três pescadores, ex-sócios do mesmo barco,
olhando Moisés, Jesus e Elias conversando – Lucas diz – sobre a cruz! A con-
versa de Moisés e Elias com Jesus era a cruz. Onde a Lei seria cumprida e as
profecias se realizariam e se consumariam; onde o mundo iria acabar, como
acabou − na cruz. Nós vivemos num mundo que já acabou. Ele já era, está
julgado, está definido. Nós vivemos da energia inercial. Mas o príncipe deste
mundo já foi condenado. Essa é a conversa de Moisés e Elias com Jesus: sobre
sua partida, que ele estava para cumprir em glória, em Jerusalém.
Então, a conversa da Escritura é Cristo, e a conversa da Escritura
é a cruz.
A conversa de Elias e a conversa de Moisés são a cruz. Está consumado
mesmo!
205
O Caminho do discípulo
As três tendas. O problema é que as três tendas são poderosas. E elas têm
sido o paradigma de contingencialidade, de circunstancialidade, de confina-
mento da nossa espiritualidade e da nossa consciência.
Vamos ver as implicações dessas três tendas na nossa vida. E como essas
três tendas têm delimitado o espaço e o ambiente do Reino, da espirituali-
dade, do entendimento e da abrangência da glória de Deus em nós. Porque
o Reino de Deus está em mim. A catedral está sendo construída aqui, está
sendo construída aí. E não há lugar nenhum onde ela possa ser construída
no tempo presente a não ser dentro de mim e dentro de você. No mais, Deus
cuida de Sua própria glória. Somente não vê quem não quer. No entanto, o
mundo inteiro, a Terra toda está cheia da Sua glória. Ainda. Se não, o Disco-
very Channel não teria o canal. Ele sobrevive de quê? O que é que o National
Geographic vende? Glória de Deus. A Globo, não; vende Faustão, Caminho
da Índia. O Discovery somente vende glória de Deus. Eles descobriram que
glória de Deus é um negócio da pesada. É glória de Deus no mundo suba-
tômico, no universo maior, no macrocosmo, no fundo do mar, nos rios, nos
micróbios, nas lesmas, em tudo! Quanto mais vou vendo os intrincamentos,
as complexidades, mais eu vejo que o Salmo 29 é infinitamente maior do que
a minha consciência jamais concebeu. E no seu templo tudo diz: Glória! Isso
aí, Ele faz. Eu não tenho poder de mexer na vela do santuário cósmico; de
tocar num raio, e ver o que acontece. Eu não tenho esse poder.
Agora, aqui dentro de mim, onde eu também não tenho nenhum poder
para fazer o Reino de Deus entrar, eu tenho no mínimo a graça dele, que me
diz que Ele me deu o poder de querer, e de dizer: Venha a mim o Teu Reino;
e venha a todos nós. E que ele seja sempre uma presença em mim, porque
esse espaço interior não é a tenda; aqui é maior do que todo o cosmo fora de
mim, com todos os multicosmos, os multiversos, com toda a possibilidade
de universos paralelos. Tudo isso é mensurável, por isso é menor do que a
imensurabilidade do que Deus colocou dentro de mim. Porque eu sou es-
pírito, da natureza do meu Pai. E Ele colocou a eternidade no meu coração.
Por isso é que os céus dos céus não podem contê-lo, nem o cosmo, os multi-
cosmo e os multiversos podem servir-lhe de tenda. Ele, porém, habita com o
quebrantado e o contrito de coração.
210
A consciência do que é Reino de Deus e as três tendas
Para refletir
1. Onde deve estar centrada a espiritualidade do discípulo?
2. Como se manifesta a Glória de Deus em nós?
3. O que representam para nós a proposta de Pedro de construir 3 tendas?
4. Onde está sendo construída a catedral do Reino de Deus?
Anotações
211
O Caminho do discípulo
212
16. As três tendas ou o Deus
indisponível?
Essas três tendas nos interessam muito, por uma razão simples: elas são a
história, aqui simbolizada, de uma das nossas maiores tentações, na perspec-
tiva tanto da consciência do Reino de Deus quanto da experiência do signi-
ficado de espiritualidade, que é o que estamos vendo neste terceiro bloco do
caminho do discípulo. Neste bloco estamos falando do Reino de Deus, do
seu significado – já falamos algumas coisas – e dessa consciência espiritual
que o Reino de Deus produz, libertando-nos de lugares, libertando-nos do
passado. Moisés tem a sua utilidade que permanece apenas no que diz respei-
to ao que não caiu em caducidade. Qualquer outra coisa que tenha caído em
caducidade em razão da revelação de Deus no Evangelho está para trás. Moi-
sés está reconciliado com isso, a conversa dele é sobre a cruz. Elias está recon-
ciliado com isso, a profecia está reconciliada com o fato de que houve coisas
dela que já passaram, que já se cumpriram em Jesus. Que se projetam, mas,
como diz o Apocalipse, todo o espírito da profecia é o testemunho de Jesus.
É por isso que Elias, que é a figura arquetípica de todo esse grupo profético,
está falando com Jesus – juntamente com Moisés – acerca da cruz, acerca da
partida que Jesus estava para cumprir em Jerusalém. O papo da revelação é a
cruz, sempre; é o Cordeiro imolado desde antes da fundação do mundo.
Essa consciência nos reconcilia com o universo, com o cosmo, com as
nuvens que se tornam glorificadas e luminosas, com a materialidade de toda
criação, com todas as dimensões da vida, com a história humana; alarga a
nossa percepção. Mas a contrapartida disso são as três tendas. Ou seja, o
convite inteiro dessa espiritualidade do Reino de Deus é para o ar livre. Isso
aí é um sarau divino, com Moisés e Elias cantando a cruz. Com Glória! A
abóbada do céu, no monte Hermon! E, de repente, o cara quer tapar o céu,
cobrir tudo, prender Elias, confinar Jesus. Ou seja, é a antítese do projeto
do Reino de Deus e dessa espiritualidade imensa, total, histórica, cósmica,
ampla, livre, que goza Deus em tudo, em todas as coisas e em todos os luga-
res, sem departamentalizações, sem frações, sem dizer: isto é mais espiritual
do que aquilo. Não, ao contrário, podendo açambarcar o todo da vida com
glória, com transfiguração, porque a destinação de todas as coisas é glória.
“E todas as coisas são puras para os puros”. A antítese disso, a contrapartida
disso são as três tendas. É a grande loucura.
Então, a importância das três tendas é pelo fato de que elas são a maior
tentação que nós temos – no curso da nossa existência espiritual viajando e
215
O Caminho do discípulo
Imagine a troca que houve naqueles 430 anos! Todos esses povos tinham
seus templos, seus deuses, suas supertendas de pedra. Sem falar que o Egito
é o campeão do “para sempre”, de marcar lugar. Eu sou Quéops, eu sou
Quéfren, eu sou Miquerinos. Daqui ninguém me tira, daqui ninguém me
arranca! E é um arquétipo tentador para os hebreus. A toda hora eles di-
zem para Moisés: Olha, todos os povos têm isso, têm aquilo, somente nós
não temos. Então, eles vão, sempre reclamando do que os outros têm, do
que eles não têm. Porque eles sabiam o que havia pelo mundo, ajudaram
a construir aquelas magnificências de fixidez em pedra, que são os monu-
mentos egípcios.
Então, eles chegam à terra de Canaã com uma vontade enorme de ver
se, limpando a área, estabelecem a sua fixidez. Mas não conseguem, porque
é luta de lá, luta de cá, os inimigos vão salvando-os de se fixarem tanto. Até
que chega a hora em que eles sentem que estão naquela posição de “tudo
bem”! Então eles dizem: Façamos aqui uma tenda. Vamos fazer um templo
para o Senhor. E era uma história já velha. Igual à história de “tenhamos um
rei”, todos os povos têm! É sinal de status, de stablishment12, de fixação, de
institucionalização. E Samuel já dizia: Não façam isso.
Todos têm templo? Façamos um templo. E o pretexto é sempre espiri-
tual: a Arca da Aliança precisa descansar, precisa de repouso. Uma arca que
Deus já tinha feito com duas varas para ser carregada sempre! Até o projeto
era móvel, era para levá-la para lá e para cá! Mas eles já estavam cansados,
disseram que a Arca estava cansada. Temos de arranjar um repouso para a
Arca, coitada; já rodou para lá, rodou para cá... Era o pretexto piedoso: o
repouso da Arca. Coitada da Arca, já andou demais, façamos, não três ten-
das, façamos uma grande. Primeiro, um tabernáculo, poderoso – fizeram o
tabernáculo de Silo; depois, faremos um templão lá em Moriá. Celebrando
Abraão e Isaque vai ficar maior ainda. E se dá um descanso para a Arca.
Como se a Arca fosse descansar num templo feito por mãos humanas. Ela
acabou desaparecendo e ninguém, nem o Indiana Jones, a achou. Aí, o li-
vro do Apocalipse a faz reaparecer. Onde? João diz: Eu vi a Arca da Aliança
diante do trono de Deus, nos céus. Sim, porque se ela tiver que ter um
lugar é lá. Aqui, é para carregar.
12. Estabelecimento
217
O Caminho do discípulo
Então o templo foi derrubado, por causa do culto à fixação: as três tendas,
com um ofício fixo. Com as três tendas vêm também os sacerdotes oficiais,
os levitas, as ordens dos cultos, os ritos, as cerimônias, os dias santos, vem o
Deus de agenda. Com as três tendas surgem todos os pacotes que determi-
nam qual é o dia da graça de Deus, quando não é o dia da graça de Deus;
quando é o dia em que Deus cura, quando é o dia em que Deus não cura;
quando é o dia em que Deus não pode curar porque não queremos que ele
cure – o nome desse dia é sábado. Enfim, são as três tendas. E foi o que eles
fizeram o tempo todo. Com as três tendas, vêm também os assassinos de
profetas, os fiscais da verdade. Com as três tendas, vêm aqueles que dizem:
Ele é herege, matemo-lo. E assim mataram profetas e profetas e profetas. As
três tendas têm seu centro de poder. É e será sempre assim.
Então, aquele templo foi destruído, aquela tenda veio abaixo. Nabu-
codonosor acabou com ela. Eles voltaram. E quando voltaram, queriam,
angustiadamente, construir outro templo. Mas, aí, já não tinham mais a
Arca, que já havia sumido, ninguém sabia onde ela estava. Nem os templá-
rios a acharam. Nem o Dan Brown a encontrou até hoje. Já não a tinham
mais, então fizeram um templo merreca. Não tem Arca, mas vamos fazer
um templo; não tem Arca, mas não tem problema. Não tem mais glória.
Icabode. A glória da Arca tinha ido, “foi-se a glória de Israel”. Ficou so-
mente a memória. Não tem mais glória, mas vamos fazer um templo para
nós. Aí o templo já é “para nós”. Já não é mais o pretexto da Arca. Vamos
fazer o templo, tragam os dízimos à casa do tesouro. Aqui é a casa do tesou-
ro, aqui são as três tendas; Deus aceita dinheiro somente aqui; em qualquer
outro lugar é mal, mesmo que seja socorrendo um pobre caído à beira do
caminho. Dinheiro não pode ser colocado no altar da dor humana, somen-
te na casa do tesouro. Não tem mais Arca para repousar, mas tem sacerdote
para sustentar. É a política das três tendas.
Depois, constroem o templo de Herodes, o Grande. Todos ficam im-
pressionados com a tendona. Mestre, olhe que pedras! O indivíduo tem
de estar muito surtado para pensar que Jesus vai ficar impressionado com
a construção de Herodes, o Grande. Imagina só! Mestre, olhe que pedras,
olhe que construção! Aí Jesus disse: Vocês estão vendo? Não vai ficar pedra
sobre pedra que não seja derrubada. Aproveitou, foi derrubando até o fim
do mundo, – está Mateus 24. Começou por ali e não parou nada, até o sol
218
As três tendas ou o Deus indisponível?
Pai; esta será a era do Filho; ou: estamos entrando na era do Espírito Santo.
Ainda está tudo em era. As tendas viraram aeons, dispensações. A dispensa-
ção do Espírito - eu não sei o que é isto. Se o Espírito de Deus não estivesse
sendo dispensado o tempo todo, não haveria vida. O livro de Jó diz que toda
carne, a uma, expiraria e tudo voltaria ao pó. E o Salmo 104 diz que nós e
toda a criação, das abelhinhas até a existencialidade mais profunda, somos
revitalizados pelo Espírito Santo. “Envias sobre a Terra o teu espírito e todas
as coisas florescem e se regeneram”, diz ele. São pentecostes vegetais, como há
pentecostes animais: bichos parindo! São graças divinas! Assim como há pen-
tecostes existenciais. Tudo é obra do Espírito de Deus. A nuvem luminosa e o
rosto do Cristo resplandecente estão no mesmo ambiente da transfiguração.
Vamos juntando o pacote e veremos como tudo vai abrindo.
Fazemos três tendas em todas as outras coisas. Criamos também as três
tendas que têm a ver com “Deus, Jesus e a igreja”. A tenda da igreja ficou
imensa. A do Pai está pequena, a do Filho está média. Somente porque o
nome dele dá um certo ibope, tem uma pegada de atração e sedução, a tenda
do Filho está maiorzinha; mas, grande, mesmo, é o templo maior, é aquela
coisa enorme, aquela baleia, aquele cachalote guloso. É aquela tenda dizen-
do: Deus somente opera aqui; às quartas, quintas, sextas e domingos, nos
horários tais e tais. É a tenda. São as três tendas.
Então, vá pensando em como você já fez tantas tendas, seus encapsula-
mentos de Deus. Geralmente, essas tendas se manifestam como neurose,
como fixação. A pessoa fica com ideia fixa: três tendas. Quantas três tendas
você já seguiu? Houve o tempo em que as três tendas eram os livros do
Watchman Nee, era todo mundo cobertinho por aquelas três tendas. Juan
Carlos Ortiz – três tendas. A toda hora são os três capacetes, as três tendas.
São confinamentos. O tempo todo. E se não houver isso, o nosso paganis-
mo fica extremamente inseguro; precisamos dessas definições. Essas tendas
acabam virando tudo o que fixa. Vira Vaticano, cartório, igreja como lugar
físico, pacote doutrinário, seminário – sem o qual ninguém é ungido profeta
do Senhor, nos ambientes históricos –, vira escola de rabino, vira o que se
quiser. Três tendas são a concessão do homem ao espaço que nós achamos
seja razoável para Deus.
E três tendas são a manifestação suprema da nossa loucura. É querer
transformar Jesus, Moisés e Elias em gênios da lâmpada. Literalmente é:
220
As três tendas ou o Deus indisponível?
Para refletir
1. As três tendas são a antítese a quê?
2. Quais são os exemplos do VT da tentativa de se fazer três tendas?
3. Como é que a ideologia das três tendas prevalece?
4. Deus indisponível. Qual o significado dessa frase e o que isso causa em você?
5. Eu devo estar disponível para Deus. Como você aplica isso a sua vida?
222
Saiba como contribuir
Contribuir é algo que muda a vida da gente. Muda as referências e priorida-
des. Altera a sensação de prazer e de realização. Subjuga o poder do Diabo como
Dinheiro em nossa vida. Eleva os alvos da vida. Faz pensar nos outros; especial-
mente, muitas vezes, naqueles que nem conhecemos. E, entre outras coisas, nos
põe no caminho da generosidade e da fé que lança o pão sobre as águas para só
achá-lo depois de muito tempo... Portanto, se você deseja contribuir para aquilo
que entende ser obra da Graça de Deus para nossos dias, por favor, faça seu de-
pósito conforme a disposição do seu coração em uma das contas abaixo:
BANCO DO BRASIL
Agência: 1231-9
O CAMINHO DA GRAÇA
Conta Corrente: 22448-0
CNPJ: 07.338.110/0001-07
*Contribuição para a manutenção do ministério e para o sustento daque-
les que ajudam na divulgação da Palavra.
Comunicar depósito via e-mail para:
Ângela – angelacaminho@uol.com.br
BANCO REAL
Manutenção da VEM&VÊ TV
Agência: 0067
ELDI SERVIÇOS DE SOM E
Conta Corrente: 8751463-2
IMAGEM LTDA
CNPJ: 07.328.485/0001-96
BANCO DO BRASIL
Agência.: 4037-1
EDITORA PROLOGOS
Conta Corrente: 10000-5
CNPJ: 06.320.290/0001-37
Comunicar depósito via e-mail para:
Chico – chico@caiofabio.net
Edvaldo – edvaldo@caiofabio.net
Manutenção do site : www.caiofabio.net
Da Vem e Vê TV : http://www.vemevetv.com.br/
Da rádio www.caiofabio.net
*Contribuição para que o sinal da TV seja aberto e se mantenha assim para
todas as pessoas e o melhor funcionamento e expansão do site e da rádio.
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Diagramado por Marcos V. Braga
em Adobe Garamond Pro.