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Uma coletânea de mensagens de rádio

R. J. Rushdoony

BOM DIA,
AMIGOS
Volume 1
Copyright © 2017, de Mark R. Rushdoony
Publicado originalmente em inglês sob o título
Good Morning, Friends – volume 1
pela Chalcedon / Roos House Books,
P.O. Box 158, Vallecito, Califórnia, 95251, EUA.
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
Editora Monergismo
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br
1a edição, 2020

Editor: Felipe Sabino de Araújo Neto


Editor assistente: Fabrício Tavares de Moraes
Tradução: William Campos da Cruz
Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto
Capa: Chalcedon Foudation

Proibida a reprodução por quaisquer meios,


salvo em breves citações, com indicação da fonte.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da Versão Almeida Revista e Atualizada (ARA), salvo
indicação em contrário.
Conteúdo
1. Deus
2. O Deus de Abraão, Isaque e Jacó
3. A Trindade
4. A bondade de Deus
5. O seu Deus está morto?
6. Providência
7. A Palavra de Deus
8. Os decretos de Deus
9. Emanuel (Salmo 46)
10. O ofício profético de Cristo
11. O ofício sacerdotal de Cristo
12. O ofício real de Cristo
13. A Cruz
14. As perguntas mais fáceis
15. O poder da ressurreição
16. Criação e o Criador
17. À sua imagem
18. O fim principal do homem
19. Preservando a superfície
20. O apelo
21. A aliança
22. O desejo de morrer
23. Autoilusão (Tiago 1.14)
24. Atalhos
25. Pecado
26. Vocação eficaz
27. Santificação
28. Adoção
29. Marcas
30. O que é a fé?
31. Fé salvadora
32. Do arrependimento para a vida
33. O significado da pureza
34. O processo educacional de Deus
35. “Não se turbe o vosso coração”
36. “Que poderá fazer o justo?”
37. Responsabilidade
38. Obediência (Efésios 6)
39. “Mais bem-aventurado é”
40. “Espera com paciência nele”
41. O hábito da autojustificação
42. Quem é infalível?
43. “O Senhor dirige”
44. “Sacudido no crivo”
45. Aquele que andou em trevas
46. A chave de entendimento
47. Quando Deus pede
48. Não há vagas
Sobre o autor
1. Deus
15 de junho de 1954

Bom dia, amigos. Vez por outra, nossos filhos nos surpreendem com uma
pergunta simples, mas de escopo vasto, e nos deixam à procura de respostas.
Uma dessas perguntas é: “Quem é Deus?” ou “o que é Deus?”. Como
responderemos a essa pergunta, tanto a nós mesmos quanto a nossos filhos?
Afinal, o que é Deus? A pergunta não é nova. Há muito tempo, no monte
Horebe, um pastor chamado Moisés recebeu a ordem de voltar ao Egito e
libertar seu povo do cativeiro. Moisés hesitou diante da ordem divina,
dizendo que o povo questionaria sua autoridade. “Que lhes direi?”,
questionou, “se me perguntarem seu nome, isto é, a definição do Deus que
me envia?” “Deus disse a Moisés: Eu sou o que sou. Disse mais: Assim dirás
aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós outros” (Êx 3.14). Como Deus
definiu-se ou nomeou-se a Moisés? Como o autoexistente e autossuficiente.
Deus não apelou a nada que conhecemos para declarar-se a si mesmo:
Simplesmente afirmou: Eu sou o que sou.

Como compreenderemos esta definição? A primeira e mais importante ideia


é a seguinte: Deus recusou-se a definir-se a si mesmo; em vez disso, revelou-
se a si mesmo. Sua definição, Eu sou o que sou, é na verdade a rejeição de
uma definição. Definir algo é limitá-lo, estabelecer fronteiras e compreender
seu território e natureza. Isso nenhum homem pode fazer com Deus, pois,
para definir ou compreender a Deus, o homem teria de ter uma mente igual à
de Deus. Todo sistema doutrinário ou de pensamento que nos dá um deus que
podemos entender nos dá um deus existente apenas na imaginação do
homem, não na realidade. Quando tornamos Deus compreensível ou
inteligível, fazemo-lo menor que o homem, e tal pensamento sempre torna
homem e o universo incompreensíveis e, em última análise, divinos. Assim, a
primeira e mais importante ideia em nosso pensamento acerca de Deus deve
ser este: que Deus está além do entendimento humano, que Deus recusa-se,
quando lhe perguntam seu nome ou definição, a fazer mais do que afirmar
sua autossuficiência e sua autoexistência: Eu sou o que sou.
A segunda coisa que vemos quando examinamos a resposta de Deus é esta:
embora Deus recuse-se a definir-se, ele se revela. Portanto, a medida que
conhecemos a Deus é a medida que ele revela de si mesmo. Nosso
conhecimento de Deus, portanto, não depende de nossa compreensão, mas da
autorrevelação dele. O impacto imediato desta situação é que o homem
jamais pode provar a existência de Deus e que todos os argumentos a favor
da existência de Deus são vaidade e provas falsas. O único Deus que o
homem pode provar por seu raciocínio é um deus menor que o homem e,
portanto, não é Deus, pois Deus é conhecido, não por nossa descoberta ou
reconhecimento, mas por sua autorrevelação. Porque é nosso criador, tanto
nós como todas as coisas ao nosso redor são compreensíveis à luz dele. Não é
a nossa mente, mas a pessoa dele que é a chave de todas as coisas. É tolice
tentar prova-lo à parte de quem não há fato.

Como Deus se revela a nós? O primeiro modo como Deus se revela a nós é
por meio da natureza, isto é, por meio de toda a criação. Tudo dá testemunho
dele, e nada faz sentido se separado dele. Como diz Paulo: “Porque os
atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua
própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo,
sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são,
por isso, indesculpáveis” (Rm 1.20). Mas, porque estão em rebelião contra
Deus, os homens preferem mudar a verdade de Deus em mentira (Rm 1.25) e
adoram a si mesmos, em lugar do criador. Portanto, embora Deus se revele na
natureza na medida em que o homem é indesculpável, o homem rejeita este
conhecimento e não lhe admitirá a existência.

Como resultado, Deus se revela a nós de uma segunda forma, na pessoa de


Jesus Cristo. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de
verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14).
“Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é
quem o revelou” (Jo 1.18).

Entretanto, nosso conhecimento da autorrevelação de Deus na natureza e em


Jesus Cristo é dependente de um terceiro aspecto da autorrevelação de Deus,
a saber, as Escrituras. A medida em que aceitamos a Bíblia e a tomamos
como base exclusiva de todos os nossos pressupostos e pensamentos também
é a medida em que o vemos na criação e em Cristo. Desse modo, tudo revela
Deus a nós porque reconhecemos todos os fatos criados como parte da
revelação de Deus ao homem. Prostramo-nos diante de Deus e ouvimo-lhe a
palavra, em vez de prostrar-nos diante do homem e da palavra deste. “De
sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Rm 10.17, ARC).

Assim, a resposta à pergunta “O que é Deus?” é a seguinte: Deus é o que ele


diz que é em sua autorrevelação, e nunca o que o homem entende que ele
seja. Portanto, nas palavras do Catecismo Maior, quando este resume a
Escritura:

Deus é Espírito, em si e por si infinito em seu ser, glória, bem-


aventurança e perfeição; ele é todo-suficiente, eterno, imutável,
insondável, onipresente, todo-poderoso, onisciente, totalmente sábio,
santo, justo, misericordioso e gracioso, longânimo e abundante de
bondade e verdade. (CMW R:7)

Porventura, desvendarás os arcanos de Deus ou penetrarás até à


perfeição do Todo-Poderoso? Como as alturas dos céus é a sua
sabedoria; que poderás fazer? Mais profunda é ela do que o abismo;
que poderás saber? A sua medida é mais longa do que a terra e mais
larga do que o mar. (Jó 11.7-9)

Lembrai-vos das coisas passadas da antiguidade: que eu sou Deus, e


não há outro, eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; que desde
o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a antiguidade, as
coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho
permanecerá de pé, farei toda a minha vontade. (Is 46.9-10)
2. O Deus de Abraão, Isaque e Jacó
22 de junho de 1954

Bom dia, amigos. Na semana passada, abordamos a resposta de Deus ao


pedido de Moisés de uma definição ou de um nome de Deus. Descobrimos
que a resposta de Deus foi simplesmente esta: “Eu sou o que sou”. Deus
recusou-se a definir-se a si mesmo; em vez disso, revelou-se a si mesmo.
Deus, o ser autossuficiente e autoexistente, está além da compreensão do
homem, pois para entender a Deus e abarcá-lo, teríamos de ter a mente de
Deus. A medida em que conhecemos a Deus é a medida em que ele se revela,
pois Deus é conhecido, não por nossa descoberta ou reconhecimento, mas por
sua autorrevelação. Nosso conhecimento de Deus, portanto, não depende de
nosso entendimento, mas de sua autorrevelação.
Ele se revela a nós de três formas: na natureza, em Jesus Cristo e na Bíblia.
Ele nos encontra no lugar em que declara que será encontrado, não num lugar
escolhido por nós. Portanto, quando disse a Moisés “Eu sou o que sou”, Deus
não só se recusou a definir-se, mas declarou também que se revelaria, não
conforme o desejo de Moisés, mas segundo sua própria vontade. “E Deus
disse mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O Senhor, o Deus de
vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me
enviou a vós; este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de
geração em geração” (Êx 3.15, ARC).
Deus, portanto, deixou duas coisas claras a Moisés: Primeiro, afirmou-se
como o único Deus verdadeiro, eterno, autodependente e inteiramente livre;
Eu sou o que sou, esta é a minha natureza para sempre. Segundo, declarou
que seu memorial se fez conhecido de geração em geração, e este memorial
revelou sua natureza e seu nome: Jeová, Eu sou o que sou.
O que é este memorial que Deus deixou a todas as gerações, o que
definitivamente nos inclui, para dar testemunho de seu nome e de sua
natureza? Segundo suas próprias palavras, ele era “O Deus de Abraão, o
Deus de Isaque e o Deus de Jacó”.
Eis uma expressão que encontramos repetidas vezes nas Escrituras. Alguns
anos atrás, quando eu era bem mais jovem, ficava me questionando sobre esta
frase: parecia-me um modo pobre de descrever a Deus. Afinal, quanto bem
havia em Abraão, Isaque e Jacó para que Deus descrevesse a si mesmo a
todas as gerações denominando-se o Deus deles?
Levando em conta o Senhor e seus mandamentos, esses homens eram
tristemente falhos. Abraão carecia de coragem moral em algumas ocasiões e
estava disposto a render sua vida a outro homem a fim de salvar a própria
pele, e seu filho Isaque mostrou-se igualmente fraco. Abraão meteu-se numa
confusão lamentável com Hagar e Ismael e foi incapaz de agir de modo
resoluto ou vigoroso. Isaque favoreceu e mimou um filho vadio e dividiu a
família. Jacó enganou o pai e foi enganado pelas esposas, pelo cunhado e
pelos filhos. Sua família viveu uma longa série de escândalos.
O fato de Deus revelar-se a todas as gerações como Jeová, o Deus de Abraão,
Isaque e Jacó, à primeira vista, parece um tipo muito estranho de
autorrevelação. No entanto, é precisamente neste memorial que o
encontramos revelado em poder e verdade. Não havia, nesses três homens,
nada de bom. A única coisa boa em qualquer deles era isto – que o Senhor os
chamou das trevas, fez deles seu povo, identificou seu propósito redentor
com o nome deles, e assim os abençoou. A única coisa boa, portanto, acerca
de Abraão, Isaque e Jacó era o Senhor. Que o Senhor os tenha redimido e
operado neles e através deles não era nada senão pura graça. Nenhum dos três
tinha nenhum direito diante de Deus: Deus tinha todo direito sobre eles e, no
entanto, em sua graça e misericórdia, fez deles seu povo, e a si mesmo o
Deus deles.
Deus se declara o Deus deles porque assim anuncia a todas as gerações que é
este o modo como lida conosco. Somos salvos, não por nossa inteligência ou
por nosso entendimento, não por nossas boas obras ou bons pensamentos, não
por algo que possamos ser ou fazer, mas pela pura e soberana graça de Deus.
Abraão, Isaque e Jacó não encontraram a Deus: Deus os encontrou. Este é seu
memorial a todas as gerações: que aquele que é eterno e autossuficiente faz
de si mesmo também o Deus de homens moribundos. Aquele que está
elevado nas alturas e infinitamente além de nós se mostra muito próximo. O
Deus independente entra em aliança com os homens e opera neles e por meio
deles. E o Deus destes pecadores é também o nosso Deus. É assim que Deus
se revela a nós, como o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó,
e também como o nosso Deus. Depois de declarar-se completamente livre,
Deus então passa a demonstrar tanto sua liberdade quanto sua natureza ao
chamar três homens cujo único mérito era a graça de Deus.
Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados
muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de
nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do
mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do
mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes
do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada
as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus.
Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de
Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção, para que, como
está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. (1Co 1.26-31)
Este é meu memorial de geração em geração. (Êx 3.15)
3. A Trindade
27 de julho de 1954

Bom dia, amigos. Na reserva indígena em que passei oito anos e meio antes
de vir para Santa Cruz, havia um ancião cuja vida e experiência limitava-se
àquela área. Como resultado, as únicas árvores que ele conhecia eram
pinheiros, juníperos, cedros, choupos, salgueiros, álamos tremedores e que
tais, árvores da região, nenhuma delas grandiosa. Pode-se imaginar seu
desgosto quando, alguns anos atrás, ele ouviu um missionário falar sobre as
grandes sequoias na encosta da Sierra, descrevendo uma árvore em particular
como tão grande que um carro, ou até mesmo um ônibus, poderia atravessar o
centro oco daquela sequoia viva. O velho índio levantou-se e saiu
imediatamente, comentando do missionário: “Esse homem é o maior
mentiroso que já vi”.

Agora, antes de rir daquele homem idoso, seria melhor lembrar-nos de nossa
própria tendência a duvidar do que está além de nossa experiência. Tendemos
a limitar o possível ao que sabemos e ao que cremos que seja possível.

Temos outra fraqueza. Tendemos a interessar-nos pelas coisas somente por


causa de sua relação conosco. Tendemos a interessar-nos pelas pessoas
somente pelo que representam para nós, em vez de pelo que são em si
mesmas. O dinheiro delas, às vezes, mas com muito mais frequência a
personalidade delas, o contexto delas, nossas opiniões e interesses em
comum, essas coisas nos unem e nos mantêm unidos. No entanto, se a pessoa
fica doente, desamparada e afastada de nossa vida cotidiana, o laço
imediatamente começa a romper-se. Sentimos pena da pessoa, mas a maioria
de nós acha cada vez mais difícil manter o contato a menos que também
estejamos passando por uma experiência similar. O homem dá sentido às
coisas à medida que as vivencia e, de modo semelhante, as destitui de sentido
à medida que se tornam remotas e inexpressivas para ele. Eis o egoísmo
básico e a pecaminosidade se revelando.

Como cristãos, tendemos a fazer exatamente a mesma coisa em relação a


Deus. Só estamos ligeiramente interessados em Deus tal como ele é, o Deus
triúno, mas estamos muitíssimo interessados em Deus em sua relação
conosco. Queremos pensar em Deus exclusivamente sob a ótica da nossa
salvação e do cuidado providencial, sob a ótica do que ele pode fazer por nós,
sob a ótica de nossa experiência dele, em vez de tomá-lo ele mesmo como
referência. É fácil despertar o interesse das pessoas por temas como “O que
Deus pode fazer por você” ou “Como obter a felicidade pela fé”, mas falar a
respeito da Trindade é distante e irrelevante para elas. Assim como algumas
pessoas estão interessadas em nós somente pelo que temos, e como
consequência não nos conhecem de fato, assim também muitas pessoas que
se interessam por Deus em sua relação com o homem na verdade jamais
veem a Deus como ele é.

Deus, tal como é em si mesmo, é o Deus Triúno — Pai, Filho e Espírito


Santo, cada um igualmente Deus, completo e absoluto, três pessoas, mas um
só Deus, cada um possuindo a essência divina indivisível em todo poder e
perfeição. Deus se revela como um Deus que é triúno. Isso está além de nossa
experiência e imaginação, embora possamos ver indícios de seu significado
na criação; o mundo é uno, mas vário, um mundo com uma existência e lei
comum, embora contenha uma variedade impressionante de formas, sem que
nada desfigure a unidade. De fato, a multiplicidade e a variedade da criação
fala do modo mais eloquente de sua unidade, derivada do Criador.

Deus é completo em si mesmo e é triúno desde a eternidade. A criação não


era uma necessidade ou carência da parte de Deus, e Deus, portanto, não se
exaure em seu relacionamento com a criação; ou seja, há mais em Deus do
que o relacionamento, assim como há mais em nós do que nosso contato com
as pessoas durante o curso de um dia. Se as pessoas não têm interesse em ver-
nos ou conhecer-nos além de nosso relacionamento com elas, então não nos
conhecem mais do que conhecemos um garçom que aparece, tira nossos
pedidos, serve-nos e se vai. Porque Deus é nosso Criador, toda a criação o
revela, e todo o seu cuidado conosco manifesta sua natureza, mas o próprio
Deus, que em sua tri-unidade está além de nossa imaginação, em seu ser está
além de nossa experiência. Porque ele é Criador, todas as coisas têm
significado e são compreensíveis à luz dele mesmo, e ele é mais do que
podemos compreender ou abarcar.

O que tudo isso quer dizer? Simplesmente o seguinte: para adorar a Deus
devemos adorá-lo como o Deus Triúno; devemos vê-lo, não meramente no
que ele faz por nós, mas como Deus mesmo; Pai, Filho e Espírito Santo, a
Trindade três vezes santa, cuja adoração é a única adoração verdadeira.
Gloriar-se no Senhor não pode significar gloriar-se no que ele faz por nós,
pois então o que adoramos seria a nós mesmos e nossa gratificação, nossa
satisfação. Gloriar-se no Senhor significa gloriar-se nisto, em que ele é o
Senhor, “a única origem de todo o ser; dele, por ele e para ele são todas as
coisas” (Confissão de fé de Westminster, cap. 2.2).

Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o


poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade
vieram a existir e foram criadas. (Ap 4.11)

O Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens e o dá a quem quer.


[...] Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e,
segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores
da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?
(Dn 4.25, 35)

E não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo


contrário, todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele
a quem temos de prestar contas. (Hb 4.13)

Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento


de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os
seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi
o seu conselheiro? (Rm 11.33-34)

Grande é o Senhor nosso e mui poderoso; o seu entendimento não se


pode medir. (Sl 147.5)
4. A bondade de Deus
2 de agosto de 1954

Bom dia, amigos. Todos nós temos um problema constante na compreensão


de Deus, porque nos aproximamos dele com a nossa ideia do que ele deve
ser, em vez de com a declaração dele mesmo de como ele é. Queremos que
Deus tenha determinadas características a fim de preencher nossa ideia de seu
ser, mas ele se recusa a atender às nossas expectativas e declara: “Eu sou o
que sou”.

Um homem assim, que se aproximou de Deus esperando ter seu desejo


atendido, foi Moisés. Como líder do povo escolhido e porta-voz indicado por
Deus, ele tinha uma comunhão com o Senhor de natureza profunda e rara.
Como resultado, pediu em certa ocasião: “Rogo-te que me mostres a tua
glória” (Êx 33.18). A glória de Deus, como Moisés sem dúvida a imaginava,
era algo que ultrapassava muitíssimo a glória de reis e impérios, e de toda a
criação. A magnificência e a glória assombrosa da criatura e da criação
ficariam mudas diante da glória de Deus.

Em certo sentido, isso era verdade. O Senhor disse a Moisés: “Não me


poderás ver a face, porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá”
(Êx 33.20). Nenhum homem pode ver a Deus tal como ele é e viver, pois
Deus é um fogo consumidor para o pecador, e o homem, em carne, é incapaz
de ver e compreender o Deus infinito e absoluto que é espírito. Assim,
Moisés descobriu um lugar oculto na fenda de uma rocha e daquela posição,
coberto pela força protetora de Deus, viu as costas, isto é, o reflexo da glória
de Deus.
Mas, sob outro aspecto, Moisés teve seu desejo de ver a glória de Deus
supreendentemente atendido. O pedido foi simplesmente: “Rogo-te que me
mostres a tua glória”. E assim Deus retorquiu: “Farei passar toda a minha
bondade diante de ti e te proclamarei o nome do Senhor; terei misericórdia de
quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu me compadecer”
(Êx 33.19).

Moisés queria ver a glória de Deus, e Deus declarou que sua glória não era
sua majestade como tal, mas, antes, a sua bondade: “Farei passar toda a
minha bondade diante de ti”. A bondade de Deus é a sua glória. A bondade
de Deus não é a sua benevolência nem sua disposição a ouvir nossas orações.
Se Deus houvesse de dar-nos tudo quanto pedimos, fosse um milhão de
dólares ou um ambiente transformado, afirmar-se-ia não a sua bondade, mas
apenas a sua indulgência. A bondade de Deus é a sua glória; no entanto, essa
bondade muitas vezes é desagradável do nosso ponto de vista, e é desafiador
às nossas almas aceitá-la quando envolve problemas, tristeza e fardos.

Se a bondade de Deus não é a sua benignidade e definitivamente não é


indulgência, então é o quê? Deus declarou que sua bondade proclamaria o seu
nome, Eu sou o que sou, o ser eterno, e também que ele seria gracioso e
misericordioso a todos a quem lhe aprouvesse ser gracioso e misericordioso.
A glória de Deus é a sua bondade, e a sua bondade é seu ser. A glória e a
bondade de Deus é esta: dele, por ele e para ele são todas as coisas, e tudo
tem significado e propósito somente tomando-o em consideração. Como diz o
salmista: “O Senhor é bom para todos, e as suas ternas misericórdias
permeiam todas as suas obras. [...] Em ti esperam os olhos de todos, e tu, a
seu tempo, lhes dás o alimento. Abres a mão e satisfazes de benevolência a
todo vivente” (Sl 145.9, 15-16).

A bondade de Deus é sua glória, e sua soberania, propriedade e controle


absolutos são o coração de sua bondade. Jó disse a seus amigos que toda a
criação testifica o poder absoluto do Todo-Poderoso e seu controle total de
todas as coisas:

Mas pergunta agora às alimárias, e cada uma delas to ensinará; e às


aves dos céus, e elas to farão saber. Ou fala com a terra, e ela te
instruirá; até os peixes do mar to contarão. Qual entre todos estes não
sabe que a mão do Senhor fez isto? Na sua mão está a alma de todo ser
vivente e o espírito de todo o gênero humano. (Jó 12.7-10)

Toda a natureza testifica a soberania de Deus, testifica que ele é o Senhor.


“Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das
suas mãos” (Sl 19.1). A bondade de Deus é esta: que o governo está em seus
ombros, que todas as coisas estão em suas mãos, e ele faz todas as coisas
bem. A bondade de Deus é a sua soberania, pela qual vivemos, não segundo
nossos próprios atos, mas segundo seu propósito criativo e para sua glória;
nos movemos, não apenas por decisão nossa, mas em sua graça e
misericórdia e por meio delas; e existimos, não por nós mesmos, mas por
meio dele e para sua glória.

Se nossa vida está oculta com Cristo em Deus, então de fato conhecemos a
sua bondade. Conhecemos a glória de sua graça e onipotência, e sabemos,
então, a medida de sua graça e o significado de sua glória.

Isso levanta uma pergunta pertinente a nós: se a glória de Deus é a sua


bondade, e a sua bondade é a sua soberania, o que é a bondade do homem? É
buscar a glória de Deus ao manifestar sua graça e bondade, e manifestar a
soberania dele submetendo-se a seu domínio.

Isso quer dizer deixar de preocupar-se com o dia de hoje e de amanhã. Dê


glória a Deus: Ele ainda é o soberano.
Isso quer dizer mostrar amor e misericórdia para com todos ao mesmo tempo
que ele a manifesta a nós.

E isso significa viver para ele, cuja única vontade é nossa paz, e o único a
quem pertence o poder, o domínio e a glória.
5. O seu Deus está morto?
7 de setembro de 1954

Bom dia, amigos. Há ocasiões em que todos temos o desejo de fazer a


alguém uma pergunta indiscreta. Sentimos que é necessário acabar com a
tensão e que o pensamento honesto é necessário. E então falamos
abertamente. Bem, tenho uma pergunta desse tipo nesta manhã. Não tenho
nenhuma intenção de ser desrespeitoso ou irreverente; pergunto com toda
humildade e honestidade: O seu Deus está morto?

Muitas vezes, tenho a impressão de que, para todos os efeitos práticos, as


pessoas adoram a um Deus que não existe ou que está morto. E amiúde os
homens falam e pregam acerca de um Deus que soa doce e belo, mas que, na
verdade, é completamente impotente para ajudar-nos e inútil em nossas lutas.
De fato, ao ouvir alguns homens falar, parece que a mesa está invertida e que
é Deus quem precisa de nossa ajuda e cooperação, e não nós que carecemos
de sua ajuda e salvação. Falo com toda reverência e piedade quando digo que
a única coisa decente a fazer com tal deus é dar-lhe um sepultamento sincero
e silenciosamente esquecê-lo. Não há sentido em adorar um Deus que não
nos criou, não pode sustentar-nos, não nos salva e não é nada para nós senão
um belo ideal. Teríamos então menos igrejas estorvando o cenário e muito
mais cristianismo honesto.

Pois o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus das Escrituras, é muito


diferente das divindades anêmicas e sem vida que muita gente tenta adorar.
Ele nos criou do nada e nos sustenta por sua graça. Ele nos salva de modo
sobrenatural, cerca-nos com seu propósito e providência sobrenaturais e dá-
nos uma salvação que é real, sobrenatural e eterna. Este Deus vivo nunca é
dependente de nós: em vez disso, a cada momento somos total e inteiramente
dependentes dele.

O deus morto de muitos modernos é um ideal lindo, mas o Deus vivo e Pai de
Jesus Cristo é nosso refúgio eterno, socorro bem presente na angústia. O
Deus vivo não nos deixa desamparados, sozinhos e amedrontados em nossa
perplexidade e carência. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de
graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai”
(Jo 1.14). O Deus vivo e todo-poderoso manifesta seu cuidado para conosco
por meio da encarnação, pela qual o Deus Filho se fez homem e vivenciou
todas as provações humanas e venceu o pecado e a morte.

O Deus vivo, então, enviou o Espírito Santo às nossas vidas, a fim de se


manifestar em nós e por meio de nós. Deus não só se manifesta em nós, mas
se manifesta em nós e através de nós em todos os acontecimentos e coisas
neste mundo por sua providência, de modo que tudo está preordenado a seu
fim determinado.

Se adoramos a um Deus morto, nossa vida é cheia de futilidade e desperdício.


Nada parece funcionar direito. Os ideais que recebemos do púlpito parecem
lindos, mas tudo se mostra inclinado a perverter nossa fé e a zombar dela.
Este é o espírito inevitável de toda fé falsa.

No entanto, se nossa fé estiver no Santo de Israel, o Deus trino, então


sabemos que não há desperdício em nossa vida e em nossa experiência. Tudo
tem um lugar e um propósito preordenados. “Sabemos que todas as coisas
cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são
chamados segundo o seu propósito” (Rm 8.28). Sabemos disso porque o
Espírito Santo assim nos assegura. Quando estamos em meio a provações e
caminhos confusos, ele nos aquece o coração ao garantir-nos que está no
controle e que os resultados estão em suas mãos.
Em 8 de agosto de 1529, Lutero e sua esposa estavam doentes, esmagados
por disenteria, dores no nervo ciático e uma dezena de outros males. Lutero
disse: “Deus tem-me tocado de modo tremendo, e tenho sido impaciente: mas
Deus sabe melhor do que nós qual é o fim disso. Deus nosso Senhor é como
um tipógrafo, que pressiona as letras, a fim de que aqui as leiamos assim;
quando estivermos impressos, na vida por vir, entenderemos tudo de modo
claro e cristalino. Enquanto isso, temos de ter paciência”.

Esta é a confiança que temos no Deus vivo. Sabemos que ele é capaz, que faz
todas as coisas bem, e que podemos descansar e regozijar-nos em sua
onipotência.

O único tipo de cristianismo real e verdadeiro é o cristianismo sobrenatural, a


fé que a Escritura nos apresenta no Deus Criador, Sustentador e Redentor.
Esta fé bíblica não elimina nossos problemas. De fato, ela nos diz que Deus
não raro os aumenta. Mas, embora não elimine nossos problemas, ela
responde a eles e nos dá a vitória em Cristo e por meio dele.

Podemos orar a um Deus vivo, confiantes em que podemos pedir e receber,


porque ele é um Deus que ouve a oração e que muda as coisas. Adorar
qualquer outro tipo de Deus é tolice e perda de tempo. Não importa o quanto
a fé possa ser nobre, ela será supersticiosa se não for real, se o Deus adorado
é fútil e irrelevante. Nosso Deus, porém, é hábil, onipotente e todo-poderoso:
céus e terra estão cheios da majestade de sua glória.

“Tributai ao Senhor, filhos de Deus, tributai ao Senhor glória e força. Tributai


ao Senhor a glória devida ao seu nome, adorai o Senhor na beleza da
santidade. Ouve-se a voz do Senhor sobre as águas; troveja o Deus da glória;
o Senhor está sobre as muitas águas. A voz do Senhor é poderosa; a voz do
Senhor é cheia de majestade. A voz do Senhor quebra os cedros; sim, o
Senhor despedaça os cedros do Líbano. Ele os faz saltar como um bezerro; o
Líbano e o Siriom, como bois selvagens. A voz do Senhor despede chamas de
fogo. A voz do Senhor faz tremer o deserto; o Senhor faz tremer o deserto de
Cades. A voz do Senhor faz dar cria às corças e desnuda os bosques; e no seu
templo tudo diz: Glória! Senhor preside aos dilúvios; como rei, o Senhor
presidirá para sempre. Senhor dá força ao seu povo, o Senhor abençoa com
paz ao seu povo” (Sl 29).
6. Providência
27 de abril de 1954

Bom dia, amigos. De vez em quando, alguém tenta dizer-me que tudo é inútil,
porque toda a vida é determinada pelos políticos, pela hereditariedade, pelo
ambiente, pelos capitalistas, pelos sindicatos ou por alguma outra coisa.
Naturalmente, um ministro tem de ser polido, então nem sempre posso dizer
exatamente o que sinto dessas opiniões, embora sempre afirme a
responsabilidade humana em oposição a essas desculpas.
Nesta manhã, gostaria de tentar responder àquela pergunta: quem controla as
coisas, afinal? Quem ou o que, em última análise, puxa as rédeas e faz as
coisas funcionarem? A maioria das ideias sobre o assunto são tão velhas
quanto o homem e podem ser resumidas em duas filosofias da Grécia antiga,
o epicurismo e o estoicismo. Os epicureus diziam que o universo é regido
pelo acaso, não por um propósito. Para eles, não há um significado real na
vida, e o homem é pequeno demais para dar qualquer propósito a ela. Os
estoicos diziam que o destino rege todas as coisas, e o homem está
claramente desamparado diante do destino. A maioria de nossas ideias, hoje,
pode ser resumida sob uma dessas filosofias: acredita-se que acaso e destino
regem todas as coisas.
É a isto que se opõe a doutrina cristã da providência. A fé na providência é
uma afirmação da crença em que há um propósito em todas as coisas, que
Deus opera em todas as coisas e por meio delas para conduzi-las a seu fim
determinado. A providência envolve a preservação de todas as coisas
tomando em consideração o plano divino, a concorrência ou cooperação de
Deus em cada acontecimento, de modo que em momento algum ele está
ausente ou sem o controle, e, finalmente, seu governo em cada coisa e
acontecimento.
Podemos crer na providência? Bem, se não crermos na providência, não
podemos crer em mais nada. Há um propósito criativo no trabalho em todas
as coisas, a vontade de Deus para aquela criatura ou criação. Quando entrei
em meu carro nesta manhã, eu o fiz com um propósito, um propósito
específico. Quando Deus criou, criou com um propósito — não de modo
vago —, e todas as coisas revelam aquele propósito.
Agora, voltemos nossa mente para outra coisa por alguns minutos, antes de
prosseguir nessa discussão da providência. Dois sábados atrás, quando devia
estar trabalhando nos retoques finais de meus sermões de domingo, fui
atraído por um livro sobre aranhas e passei um tempão folheando-o. Um item
em especial chamou-me a atenção. Foi feito um censo de aranhas num
gramado em Sussex, Inglaterra, e este mostrou uma incrível população de
mais de 2 ¼ milhões de aranhas por acre. Nesta base, estima-se que a
população de aranhas da Inglaterra e do País de Gales é de 2 1/5 bilhões, o
que, no mínimo, come anualmente uma população de insetos cujo peso é
maior do que o de toda a população humana da Inglaterra e de Gales. Se as
aranhas não destruíssem tais insetos, os homens não poderiam sobreviver.
Isso já é interessante, mas ocorreu-me mais uma coisa, e considero um fato
ainda mais tremendo. Os insetos que essas aranhas comem também têm seu
propósito designado, e o cumprem apenas para manter-se dentro dos limites e
da utilidade para as aranhas. Por sua vez, as aranhas são reprimidas por outras
criaturas, os pássaros, por exemplo. Assim, cada um faz seu trabalho e tem
algum obstáculo sobre si a fim de preservar o equilíbrio da natureza.
Tudo isso fala não de acaso ou destino, mas de projeto, propósito e
providência, e esse projeto e propósito alcançam também os mais ínfimos
detalhes da criação. A Escritura nos diz que até os cabelos de nossa cabeça
estão contados. Nosso Senhor declara que não pode cair um pardal sem o
consentimento de nosso pai que está nos céus; e o Senhor falou a Jó de seu
prazer na criação.
Há um propósito vasto e grandioso em toda a criação, e qualquer noção de
acaso diante dele parece flagrante estupidez. A Escritura afirma que o
controle providencial de Deus é sobre todo o universo, sobre o mundo físico
e a criação bruta, sobre a relação entre as nações, sobre o nascimento, a vida e
a morte do homem, sobre seu sucesso ou fracasso exterior, sobre coisas
aparentemente acidentais ou insignificantes, sobre a proteção do justo, o
suprimento das necessidades do povo de Deus em resposta à oração, e a
exposição e punição dos maus.
Portanto, a resposta à pergunta “Quem controla as coisas?” é “Deus em sua
providência”. À alegação de que tudo é inútil e que não há sentido na vida, a
resposta é que tudo tem um propósito, e há um sentido em tudo, mas nada é
compreensível, sejam as aranhas, sejam os homens, a menos que comecemos
com Deus. É ele quem dá significado a toda a vida. Retire-se a fé nele, e não
se terá nada; tudo se torna definitivamente inútil. Isso se aplica não apenas à
vida à nossa volta, mas também a nós mesmos. Nossa vida só tem significado
à luz de Deus e de seu propósito para nós: se abandonamos a ele e a seu
propósito para nós, abandonamos a sanidade da vida com significado. Crer
em Deus é crer na providência, e crer na providência é crer que nossa vida
tem propósito e direção mesmo apesar de nós mesmos e de nossas falhas, e
que Deus trabalha ao mesmo tempo em nós para aquele fim determinado e
glorioso.
Como o declara a Confissão de fé de Westminster:
Pela sua muito sábia providência, segundo a sua infalível presciência e
o livre e imutável conselho da sua própria vontade, Deus, o grande
Criador de todas as coisas, para o louvor da glória da sua sabedoria,
poder, justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e
governa todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a
maior até a menor. (Cap. 5:1)
E como disse nosso Senhor (Mt 10.29-31): “Não se vendem dois pardais por
um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai.
E, quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados. Não
temais, pois! Bem mais valeis vós do que muitos pardais”.
7. A Palavra de Deus
8 de junho de 1954

Bom dia, amigos. Gostaria de discutir nesta manhã algo de que o mundo
nunca careceu: palavras. A maioria de nós tem problema com as palavras,
porque ouvimos demais e falamos demais.
Algum tempo atrás, abordamos parcialmente o significado da linguagem.
Vimos que, para muitas culturas pagãs, magia e discurso estão estreitamente
relacionados e muitas vezes se identificam entre si. As palavras têm um poder
irrevogável sobre tais pessoas e podem até matar. Um curandeiro fala, e um
homem morre porque foi condenado por aquela palavra. Isso à primeira vista
parece muito distante de nós. Dizemos que um nativo que morre por uma
palavra é vítima do poder de sugestão e insistimos que tal magia é
superstição. No entanto, o motivo por que falamos demais é que acreditamos
no mesmo tipo de poder mágico das palavras. Cremos que dizer fará as coisas
acontecerem e assim falamos quando nossa consciência nos diz que o silêncio
é o caminho da sabedoria. Estamos mais prontos a falar que a trabalhar, e
pomos mais fé nas palavras do que em Deus, porque estamos muito mais
dispostos a falar que a orar.
Por que somos assim? Isso remonta ao velho Adão em todos nós, a nosso
pecado original. A tentação no Jardim do Éden foi a seguinte: “Como Deus,
sereis conhecedores [ou determinadores] do bem e do mal” (Gn 3.5). O
homem foi tentado a ser como Deus, cuja palavra soberana e onipotente cria e
recria todas as coisas. Disse Deus: “Haja luz, e houve luz” (Gn 1.3). Nosso
Senhor disse: “Quero, fica limpo!” (Mt 8.3), e a lepra desapareceu. Sendo
Deus, a palavra dele é poderosa e criativa.
O homem, em sua rebelião e pecado, constitui-se a si mesmo como seu
próprio Deus e tenta determinar todas as coisas. E o homem em rebelião tenta
justificar a si mesmo. Toda a linguagem, portanto, está contaminada pelo
pecado e pelo desejo de autojustificação. Isso é verdade, em parte, até mesmo
para o cristão, em quem o velho Adão nunca morre. Portanto, a palavra do
homem jamais é digna de confiança; nunca é inteiramente livre do pecado e
da autojustificação e sempre tende a gravitar em direção a duas coisas:
pecado e autojustificação. Nossa disposição a falar e não a orar é prova desse
fato: tentamos ser como Deus e, portanto, estamos mais dispostos a recorrer
às palavras que à oração; basicamente, a nós mesmos, e não ao Senhor.
É por esta razão que a revelação de Deus jamais pode ser deixada nas mãos
dos homens para ser manuseada conforme a palavra do homem. Deus fala a
nós diretamente e sem nenhum intermediário contaminado na Escritura, na
Bíblia. Qualquer tentativa de interferir na objetividade da palavra da Bíblia é
uma tentativa de destruí-la. Se dizemos que a Bíblia é o registro da revelação
de Deus e não a própria revelação, confiscamos-lhe a objetividade. Se a
Bíblia simplesmente contém a palavra de Deus em vez de ser a Palavra de
Deus, então temos de caçar por toda a Bíblia a fala de Deus e imaginar se ela
realmente está ali, já que, afinal, a Bíblia é um livro completamente humano.
Remover a segurança de uma Bíblia infalível é destruir a fé cristã, subverter a
palavra de Deus e colocar a palavra do homem em seu lugar.
Se, no final das contas, temos de pôr a palavra de Deus em algum lugar na
Bíblia em meio a muitos dados aleatórios, então somos juízes —
autonomeados, mas ainda assim juízes — de Deus. Se a palavra de Deus é
palavra de Deus somente quando a reconhecemos como tal, então nosso deus
e autoridade básica e suprema é nosso julgamento e razão, não o Deus da
Escritura. Deus e Sua Palavra não podem ser julgados por homem algum:
eles é que nos julgam. Se insistirmos em dar à nossa mente o direito de julgar
a palavra de Deus, declaramos que somos a autoridade máxima e que
somente o que alcança nossa inteligência tem o direito de existir!
Basicamente, a questão é de quem é a palavra fidedigna: minha ou de Deus?
Os catecismos perguntam acerca da Escritura:
B.C. P. 2: Que regra Deus nos deu para nos orientar quanto ao modo de
glorificá-lo e gozá-lo?
R. A Palavra de Deus, que se encontra nas Escrituras do Antigo e do
Novo Testamentos, é a única regra para nos orientar quanto ao modo de
glorificá-lo e gozá-lo.
B.C. P. 3: Qual é a coisa principal que as Escrituras nos ensinam?
R. A coisa principal que as Escrituras nos ensinam é o que o homem
deve crer acerca de Deus, e o dever que Deus requer do homem.
C.M. P. 4: Como pode ser demonstrado que as Escrituras são a Palavra
de Deus?
A. As Escrituras se manifestam como a Palavra de Deus por sua
majestade e pureza, pela harmonia entre todas as suas partes e pelo
propósito do seu conjunto, que é dar toda a glória a Deus; pela sua luz e
pe1o poder que possuem para convencer e converter os pecadores e
para edificar e confortar os crentes para a salvação. O Espírito de Deus,
porém, ao dar testemunho, pelas Escrituras e juntamente com elas, no
coração do homem, é o único capaz de persuadi-lo completamente de
que elas são realmente a Palavra de Deus.
A Escritura é nosso mestre fidedigno. Nas palavras de Paulo: “Pois tudo
quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela
paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rom.
15.4).
8. Os decretos de Deus
29 de junho de 1954

Bom dia, amigos. Nesta manhã, gostaria de falar dos decretos de Deus. O que
são eles? Quando dizemos que Deus decreta algo, o que queremos dizer? O
Catecismo Breve responde assim:
R. 7: Os decretos de Deus são o seu eterno propósito, segundo o conselho da
sua vontade, pelo qual, para a sua própria glória, ele predestinou tudo o que
acontece.
À primeira vista, parece algo muito distante de nossa vida, mas, na verdade,
tem um significado e uma aplicação que alcança cada fibra e nervo da sua
vida e da minha.
Numa palavra, ele nos diz isto: que o Senhor é Deus e que é Deus quem
governa todas as coisas, não o acaso. Você e eu nos sentamos e tentamos
planejar a vida. Estimamos tanto tempo para o trabalho e tanto tempo para o
lazer. Fazemos nosso orçamento, planejamos nossas finanças e decidimos
que certa quantia terá de ser separada mensalmente para os pagamentos,
deixando-nos com uma soma específica de dinheiro para os demais
propósitos. Honesta e sinceramente tentamos planejar a vida, mas,
evidentemente, o problema é que os planos não são perfeitos. Imprevistos
acontecem, coisas sobre as quais não temos controle, e nem nosso tempo nem
nosso dinheiro se mostram como nossos. Doenças ou despesas extras
destroem nosso planejamento e, às vezes, anos de esperança. E então
começamos a planejar e a esperar tudo de novo. Isso tem seu valor; dá-nos
pequenas vitórias que seriam impossíveis sem planejamento, mas sempre
sabemos que jamais teremos controle sobre todos os fatores em nossa vida,
em nosso trabalho e no mundo. Planejamos, mas acontecimentos fora do
nosso controle continuamente nos impelem a mudar e a ajustar o
planejamento.
Se os planos de Deus fossem como os nossos, boa parte da criação de Deus
teria ficado fora de seu controle, movendo-se ao acaso. O acaso seria mais
importante que Deus, porque os planos de Deus estariam sujeitos ao acaso se
os acontecimentos se impusessem a seus planos. Sabemos que não é assim:
não há acaso neste mundo. Como declarou Tiago, irmão de nosso Senhor, no
concílio de Jerusalém: “Diz o Senhor, que faz estas coisas conhecidas desde
séculos” (At 15.18). O plano de Deus é o plano perfeito: não deixa nada ao
acaso, e nem o homem nem os acontecimentos, mas somente Deus controla o
curso do plano.
O que isso significa para nós? Suscita, naturalmente, algumas perguntas
sobre como reconciliar o decreto de Deus e a liberdade e a responsabilidade
humanas. Tais questões não podem ser respondidas: nossa mente não é capaz
de apreender todas as suas implicações. A única coisa que sabemos, no
entanto, é que acreditar num Deus que tem pleno controle dá sentido a cada
momento e a cada ato em nossas vidas. Nada que nos acontece é sem sentido
ou sem significado. O mundo não está desgovernado, nem Deus está fora do
posto de capitão. Ele tem controle pleno e absoluto. Isso quer dizer que há
um propósito para todas as coisas que a fé e a paciência podem discernir e em
que podem confiar.
Cada um de nós sofre as coisas e passa por provações e tribulações que
testam tremendamente o nosso espírito. A vida seria sem sentido e cruel se só
pudéssemos crer que essas coisas são sem sentido e os atos aleatórios.
Todavia, se podemos crer, como a Escritura nos pede que creiamos, todas
essas coisas são parte do decreto de Deus e têm um significado sob a ótica
dele; então sabemos que nada é sem sentido ou desperdiçado seja em nossa
vida, seja em toda a criação. Sabemos, portanto, que há um propósito eterno
em todas as coisas e por trás delas, e nossa força está em confiar em Deus e
em suas obras. Isso nos permite dizer: embora não saiba por que essas coisas
me aconteceram, creio no amor e no propósito que está por trás delas e que as
trazem até mim. Porque o Senhor planejou isto, sei que seu propósito é sua
glória eterna e meu fortalecimento e satisfação nele. Podemos dizer, junto
com Paulo: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que
amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm
8.28).
9. Emanuel (Salmo 46)
30 de novembro de 1954

Bom dia, amigos. Todo ano, do Dia de Ação de Graças até o Natal, a
Sociedade Bíblica Americana promove um programa de leitura bíblica diária,
incentivando as pessoas a ler as Escrituras todos os dias. Trata-se de um
programa valiosíssimo. “Uma intenção vaga de ler a Bíblia não leva a nada
até que você realmente faça um início diário”.
Nossa leitura bíblica de hoje é o salmo 46, o salmo que inspirou o grande
hino de Lutero “Castelo Forte é nosso Deus”. O salmo diz assim:
Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem-presente nas
tribulações. Portanto, não temeremos ainda que a terra se transtorne e
os montes se abalem no seio dos mares; ainda que as águas tumultuem
e espumejem e na sua fúria os montes se estremeçam. Há um rio, cujas
correntes alegram a cidade de Deus, o santuário das moradas do
Altíssimo. Deus está no meio dela; jamais será abalada; Deus a ajudará
desde antemanhã. Bramam nações, reinos se abalam; ele faz ouvir a sua
voz, e a terra se dissolve. O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus
de Jacó é o nosso refúgio. Vinde, contemplai as obras do Senhor, que
assolações efetuou na terra. Ele põe termo à guerra até aos confins do
mundo, quebra o arco e despedaça a lança; queima os carros no fogo.
Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus; sou exaltado entre as nações, sou
exaltado na terra. O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó
é o nosso refúgio. (Sl 46.1-11)
A data e a autoria deste salmo nos são desconhecidas, mas uma coisa se
destaca com toda clareza: O salmo foi escrito num período de crise
internacional, guerra e desastres naturais tremendos. Ouvimos que “Bramam
nações, reinos se abalam”. Terremotos assustadores acrescentam-se a essas
agitações políticas, para dar um quadro geral de um mundo completamente
instável. Os terremotos eram tais que as montanhas se abalavam nos mares, e
estes rugiam e irrompiam num ímpeto de tempestade e tremores. As outras
montanhas pareciam como que arrastadas pelas enchentes ou tremores
contínuos. Não só o mundo do homem e as nações, mas todo o fundamento
sob os pés dos homens era instável. Os homens chegavam a se perguntar se a
vida continuaria ou se haveria algum sobrevivente a tal combinação de
desastres gigantescos.
O estado de ânimo deles estava talvez como o de muitas pessoas hoje, que
sentem que cada dia parece levar o mundo cada vez mais fundo num horror
gigantesco e deixar o chão cada vez menos estável sob os pés do homem.
Mas, em meio a todos esses horrores, ouvimos a voz da fé anunciar no salmo
46:
Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem-presente nas
tribulações. (v. 1)
Portanto, não temeremos ainda que a terra se transtorne e os montes se
abalem no seio dos mares. (v. 2)
O refrão do salmo dá a razão desta confiança: O Senhor dos Exércitos está
conosco. Deus está conosco, este é o brado exultante. Este refrão nos dá em
substância um dos nomes de Jesus Cristo, a Segunda Pessoa da Trindade: este
nome é Emanuel, que quer dizer “Deus conosco”. Para o profeta Isaías e um
remanescente profundamente perturbado com a decadência moral da nação,
nada parecia mais solitário do que o seu grupo. Eles estavam, assim sentiam,
sozinhos num mar de maldade. Para eles, Deus não só deu a promessa de
enviar seu Filho, mas um nome desse Filho que descreve o Deus trino em sua
relação com seu povo, Emanuel, Deus conosco. É esta fé que o salmo 46
declara e celebra.
E esta mesma fé é nossa força e alegria, pois nosso Deus não é um Deus
distante, mas mais próximo de nós do que nós mesmos. Nós nos sentimos
sozinhos na privacidade da dor, do desejo e da esperança de nosso coração,
mas Deus vê mais em nós do que vemos em nós mesmos, e ele nos ama,
apesar de todo o nosso pecado e de nossas faltas. Assim, no pleno sentido da
palavra, ele é de fato Emanuel, Deus conosco.
Em contraste com as enchentes do mundo, as torrentes destruidoras,
enfurecidas, o salmista fala de “um rio, cujas correntes alegram a cidade de
Deus” (v. 4). A cidade de Deus é sua igreja, seu povo, e o rio silencioso que
os alimenta e sustenta é a presença de Deus entre seu povo. Este é o fato
decisivo: não a desordem das nações e da natureza, mas o Deus Altíssimo
que governa e dirige o curso da história. Deus não é um Deus distante,
indiferente ao apelo de seu povo e alheio a toda a história humana. Ele é
Emanuel, Deus conosco, e nos convoca e ordena que deixemos de afligir-nos.
Ele declara: “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus; sou exaltado entre as
nações, sou exaltado na terra” (v. 10).
O Deus que falou essas palavras tinha apenas um punhado de crentes judeus
em todo o mundo daqueles dias, mas declarou veementemente a conversão
dos pagãos, e sua exaltação em todo o mundo. Essas coisas estão se
realizando agora. Sua promessa é que se cumprirão em seu Reino eterno. Sua
garantia é que cada passo está sob seu governo providencial e que, em todo o
caminho, ele é nosso Emanuel, Deus conosco.
Podemos, portanto, cantar com alegria junto com o salmista: “O Senhor dos
Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio” (v. 11).
10. O ofício profético de Cristo
19 de outubro de 1954

Bom dia, amigos. Um dos fatos mais tristes acerca de nossa fé é que
muitíssimos crentes são demasiado ignorantes das coisas de Deus e, ainda
assim, estão satisfeitos em sua ignorância. Se um cidadão americano dissesse
que tudo que sabe sobre Eisenhower é que ele tem algum tipo de trabalho no
governo em Washington, nós o consideraríamos um completo ignorante e um
americano pobre. Ora, muitos cristãos são igualmente ignorantes acerca de
Jesus Cristo e de sua posição no governo divino.
Nesta manhã, começaremos um estudo dos ofícios de Cristo. Em primeiro
lugar, precisamos analisar brevemente a pergunta: quem é Jesus Cristo? A
resposta da Escritura é claríssima e sem hesitação: o homem que caminhou
pelas veredas da Palestina alguns séculos atrás era um homem plenamente
humano e, ao mesmo tempo, divino, divindade de divindade, “duas naturezas
distintas, e uma só pessoa”. Essa mesma pessoa que vive hoje e é nosso
Senhor e Deus, e nosso único Redentor.
O Breve catecismo de Westminster faz duas perguntas a este respeito e nos dá
respostas claras e específicas:
P. 23: Que ofícios Cristo exerce como nosso redentor?
R. Cristo, como nosso redentor, exerce os ofícios de profeta, sacerdote
e rei, tanto no seu estado de humilhação como no de exaltação.
P. 24: Como Cristo exerce as funções de profeta?
R. Cristo exerce as funções de profeta ao nos revelar, pela sua Palavra e
pelo seu Espírito, a vontade de Deus para a nossa salvação.
A partir daí, o ofício profético de Cristo fica mais claro. Jesus Cristo é a
revelação de Deus para nós, por meio de quem chegamos a conhecer a
vontade de Deus na medida em que nos é necessário conhecer. Em suma, por
meio de Cristo conhecemos a Deus.
Uma das afirmações fundamentais da Escritura é que nenhum homem jamais
viu a Deus nem ninguém jamais poderá vê-lo. Deus está além de nosso
pensamento ou imaginação: nossa mente limitada não pode começar a
apreender o significado da ideia de Deus. Deus não é um homem como nós,
mas é um espírito infinito, eterno e imutável. O homem teria de ser Deus para
conseguir compreender a Deus, e isso definitivamente nós não somos. Não
podemos entender verdadeiramente nem a nós mesmos: como podemos
esperar compreender a Deus?
Este predicado do homem é respondido por Deus em Cristo. Como declarou
João: “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai,
é quem o revelou” (João 1.18). Jesus Cristo é Deus encarnado, a segunda
pessoa da Trindade manifesta em carne. Como disse Jesus a Filipe: “Quem
me vê a mim vê o Pai” (João 14.9). Em Jesus Cristo vemos, conhecemos e
encontramos o próprio Deus. Assim, Jesus Cristo, como profeta, fala em
nome de Deus, não em visão e só às vezes como os profetas do Antigo
Testamento, mas de modo pleno e completo.
A imagem de Deus conforme a qual o homem foi criado consiste em
conhecimento, justiça, santidade e domínio. Em Cristo, o homem é
restaurado ao reino do verdadeiro conhecimento. Visto que Deus é o Criador
e Sustentador de todas as coisas, e visto que “todas as coisas foram feitas por
intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez” (João 1.3), está claro
que nada neste mundo tem significado à parte de Deus, seu criador e seu
propósito. Não podemos entender a terra, o sol, a lua e as estrelas, nem as
árvores e flores senão à luz de Deus, o Criador e propósito criativo.
Tampouco podemos entender nossa própria vida à parte do Senhor e de sua
vontade. Em Cristo, então, somos restaurados ao verdadeiro conhecimento.
Ele se tornou nossa sabedoria. Como profeta verdadeiro e final, a plena voz
de Deus, ele fala em nome de Deus a nós, e jamais podemos saber algo
verdadeiramente a menos que o saibamos nele.
Cristo fala a nós em seu ofício profético por meio de sua Palavra, a Bíblia, e
pelo Espírito Santo. O Espírito Santo, “o Espírito da verdade”, nos guia ao
entendimento de sua Palavra e, assim, “a toda a verdade” (veja João 16.13).
Porque Cristo é a plenitude de Deus, o Pai, nenhum cristão verdadeiro pode
crer em revelações novas ou adicionais. A Escritura é plena e completa na
revelação de Deus e de sua vontade conforme esta é necessária à nossa
salvação. Em Cristo, temos a revelação completa, temos a fala completa e
final de Deus, e nada pode a pode melhorar, nem lhe ser acrescentado ou
subtraído. Nas palavras da Escritura:
Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos
pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem
constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo.
(Hb 1.1-2)
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade,
e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai. (João 1.14)
11. O ofício sacerdotal de Cristo
9 de novembro de 1954
Bom dia, amigos. Algumas semanas atrás, começamos a examinar a obra de
Cristo como mediador entre Deus e o homem. Vimos que Cristo foi e é nosso
mediador “tanto no estado de humilhação quanto de exaltação” como profeta,
sacerdote e rei.
Nesta manhã, refletiremos sobre Cristo como nosso grande sumo sacerdote.
Em primeiro lugar, o que era um sacerdote? Um sacerdote era um
representante dos homens diante de Deus, alguém que se aproximava de
Deus por meio do sacrifício a fim de interceder por seu povo. Era o
representante do povo, ou embaixador, por assim dizer, diante de Deus. Era,
portanto, o exato oposto de um profeta. Um profeta é um representante de
Deus diante dos homens, um sacerdote é um representante dos homens diante
de Deus.
A obra do sacerdote era dupla: primeiro, oferecer sacrifício a Deus e,
segundo, fazer intercessão a Deus em favor dos homens. O sacrifício,
portanto, era fundamental a toda a função sacerdotal; uma porção
considerável da Bíblia está preocupada exclusivamente com o sacrifício, e
nada ali pode ser verdadeiramente compreendido à parte do sacrifício.
Primeiro, não há adoração sem sacrifício. Aquele a quem sacrificamos e pelo
que sacrificamos — eis o nosso verdadeiro Deus. Se sacrificamos
primeiramente visando a nós mesmos e nossos objetivos, então somos o
nosso próprio deus. Não há adoração sem sacrifício, e o sacrifício indica a
natureza e a área de nossa fé e vida.
Segundo, não é possível aproximar-se de Deus senão pelo sacrifício. O
sacrifício com o qual devemos aproximar-nos dele é de nós mesmos. Mas
qualquer coisa que não um sacrifício puro e imaculado é ofensa a Deus. O
único sacrifício aceitável a ele é um sacrifício santo. O homem não pode
oferecer-se como sacrifício a Deus porque é impuro e pecaminoso. Além
disso, porque somos pecadores por natureza e nossa adoração básica é uma
adoração de nós mesmos, nossa vontade e nosso desejo, estamos sob a
condenação de Deus e sob a sentença judicial de morte. Mas Deus, em sua
misericórdia, nos provê uma saída, dando-nos tanto um sacerdote perfeito
quanto um sacrifício perfeito, Jesus Cristo, que, como nosso grande sumo
sacerdote ofereceu-se a si mesmo como sacrifício imaculado a Deus. Deus foi
encarado no sacrifício mediante o ritual do Antigo Testamento, que tipificava
Cristo, e agora e até ao fim dos tempos por Jesus Cristo, nosso sumo
sacerdote. Como membros de Jesus Cristo, estamos na presença de Deus:
inocentes, porque ele é inocente; retos porque ele é reto; justos porque ele é
justo. Quando, pela fé, nos tornamos membros de seu corpo místico, sua
natureza nos é imputada na justificação e nos é dada progressivamente na
santificação.
Terceiro, porque agora somos membros de Jesus Cristo, somos capazes de
fazer um sacrifício aceitável de nós mesmos por meio dele. Apresentamos
nossos corpos como sacrifício vivo diante de Deus e lhe pedimos que destrua
nossa natureza e faça de sua natureza inteiramente a nossa.
Assim, o sacrifício e a expiação constituíram a primeira obra de Cristo como
sacerdote. Sua segunda tarefa é a de intercessor. Cristo intercede diariamente
por nós diante de Deus, ao mediar nossas orações e necessidades. O Deus
Filho pleiteia a nossa causa diante de Deus, enquanto o Deus Espírito Santo
pleiteia a causa de Deus conosco (veja Berhkof, p. 401). Do mesmo modo, o
Espírito Santo nos mantém sempre atentos às reivindicações de Deus sobre
nós, e de seus mandamentos, de modo que Cristo intercede por nós diante de
Deus. Nas orações intercessórias de Cristo no Novo Testamento, vemo-lo
orar pelos eleitos que ainda não foram a ele para que fossem levados a um
estado de graça, pelo perdão diário dos pecados de seu povo, por sua proteção
nas tentações, por sua santificação, por sua caminhada em intimidade com
Deus, por suas necessidades diárias e por sua herança final e perfeita no céu.
Este é o fato glorioso do ofício sacerdotal de Cristo. Isso quer dizer que nós,
que pela fé somos membros de seu corpo místico, temos uma voz no próprio
coração e na mente de Deus, uma voz eficaz que “[vive] sempre para
interceder por [nós]” (Hb 7.25).
Nas palavras do Catecismo maior de Westminster:
P. 44: Como Cristo exerce as funções de sacerdote?
R: Cristo exerce as funções de sacerdote por ter uma vez se oferecido
em sacrifício sem mácula a Deus, para ser a reconciliação pelos
pecados do seu povo, e ao fazer contínua intercessão por ele.
12. O ofício real de Cristo
16 de novembro de 1954
Bom dia, amigos. Estamos examinando, nestas últimas semanas, o ofício de
Cristo, nosso Redentor, tanto em seu estado de humilhação quanto de
exaltação, como profeta, sacerdote e rei.
Cristo exerce o ofício de profeta ao revelar-nos, por sua Palavra e Espírito, a
vontade de Deus para nossa salvação.
Cristo exerce o ofício de sacerdote em sua oferta definitiva em sacrifício para
satisfazer a justiça divina e reconciliar-nos com Deus e ao fazer intercessão
contínua por nós.
Nesta manhã, trataremos de seu ofício régio como nosso Redentor. Segundo
o Breve catecismo de Westminster, “Cristo exerce as funções de rei ao nos
sujeitar a ele, ao nos governar e nos proteger, bem como em conter e subjugar
todos os seus e os nossos inimigos” (BCW R.26).
Assim, vemos que Cristo, nosso Rei, tem uma tarefa tríplice. A primeira é
sujeitar-nos a ele. Esta não é uma tarefa pequena. Tendemos a satisfazer-nos
por nós mesmos. Estamos prontos para todas as mudanças, exceto a
fundamental, aquela que afeta nosso ego e nossa própria existência. Estamos
dispostos a aceitar a Deus e seus caminhos desde que ele nos aceite a nós e
nossos caminhos. Dizemos-lhe: “Sou teu, ó Senhor, mas seja feita a minha
vontade”. Queremos Deus, mas muitas vezes segundo nossos próprios
termos, e não os dele. Precisamos ser quebrados e dobrados à vontade de
Deus, mas, em vez disso, ansiamos por dobrar o Todo-Poderoso à nossa
vontade. Não é maravilhoso que Cristo Rei tenha de sujeitar-nos a fim de
governar-nos?
Seu Reino sobre nós tem origem não no ato da criação, mas no ato da
redenção. Ninguém é cidadão de seu Reino em virtude do status como
homem, mas somente pelo status como homem redimido. O Reino de Cristo
é um Reino espiritual, não natural. O Reino é presente e futuro ao mesmo
tempo. Reina sobre nosso coração hoje e impõe-se no curso inteiramente
providencial de toda a história. É também futuro pelo fato de que culminará
num Reino grandioso e eterno em que habitará a justiça. E nenhum homem
tem parte nesse Reino se não tiver sido sujeitado por Cristo.
A segunda tarefa de Cristo Rei é governar-nos e proteger-nos. Quando somos
sujeitados por Cristo, somos governados e protegidos por ele. A função de
um rei é proteger sua propriedade, e Cristo Rei protege sua propriedade e o
faz sem falta. Ele nos protege, em primeiro lugar, de nós mesmos, pois não
temos inimigo mais mortal do que nossa própria natureza. Contra nosso
coração inconstante e pés vacilantes, temos a defesa segura de Cristo Rei. Ele
também nos protege ao corrigir-nos em nossos pecados e ao preservar-nos e
apoiar-nos em nossas provas e tentações. Ele nos governa ao reger
diariamente todas as nossas ações e fazê-las cooperarem para o bem. Ao
governar-nos e proteger-nos, ele se manifesta como nosso Rei.
A terceira tarefa de Cristo Rei é conter e subjugar todos os inimigos — seus
e nossos. O mundo, a carne e o diabo são, por sua vontade soberana, contidos
e subjugados. Uma área de sua conquista é o universo. Cristo é Rei do
universo e continuará como seu Rei até o fim dos tempos. Então, segundo
Paulo em 1 Coríntios 15.24-28, acontecerá uma mudança na economia
divina:
E, então, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando
houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder.
Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos
debaixo dos pés. O último inimigo a ser destruído é a morte. Porque
todas as coisas sujeitou debaixo dos pés. E, quando diz que todas as
coisas lhe estão sujeitas, certamente, exclui aquele que tudo lhe
subordinou. Quando, porém, todas as coisas lhe estiverem sujeitas,
então, o próprio Filho também se sujeitará àquele que todas as coisas
lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos.
O reinado de Cristo sobre o universo terminará quando a vitória total for
atingida e o inimigo final, a morte, for destruído. Então o reinado voltará a
Deus Pai, a fim de que Deus seja tudo em todos. O propósito do Reino de
Cristo sobre o universo é redentivo, redimir a humanidade e restaurar o
reinado original do homem sobre a criação. O homem foi criado para ter
domínio sob Deus, e Cristo restaura este domínio do homem sobre o
universo. Seu reinado sobre os redimidos é eterno, e a nova criação
intensifica sua glória e dimensão.
É assim que Cristo exerce o ofício de um rei ao nos sujeitar a ele, ao nos
governar e nos proteger, bem como ao conter e subjugar todos os seus e os
nossos inimigos. Ele é de fato o Rei dos reis e Senhor dos senhores.
13. A Cruz
18 de setembro de 1956
Bom dia, amigos. Peça a qualquer grupo de cristãos que cite seus hinos
favoritos, e a probabilidade é que um alto percentual desses hinos esteja
relacionado com a cruz. À primeira vista, parece curioso que os cânticos mais
alegres tratem de um emblema de morte e vergonha. Pois a cruz era muito
claramente um instrumento de morte e vergonha, representando o castigo
brutal e deplorável reservado pelo Império Romano aos criminosos. No
entanto, é nesta cruz que nos gloriamos, a cruz de Cristo, a cruz vazia, que
representa sua vitória sobre a morte e sobre o pecado.
O que a cruz de Cristo representa para nós, e por que é nossa fonte de alegria
e nossa glória? Em primeiro lugar, representa a vitória de Cristo por amor a
nós. Jesus Cristo, Deus de Deus, tornou-se homem de homem, plenamente
divino e plenamente humano. Como aquele sem pecado, ofereceu a Deus
uma perfeita obediência em nosso lugar. Como portador do pecado, sofreu o
castigo de morte por nossa causa, morrendo como um criminoso na cruz.
Como Filho de Deus, levantou-se dos mortos e tornou-se a nascente de uma
nova humanidade, uma nova raça humana, constituída de todos os que o
aceitam como Salvador, a quem ele dá a vitória sobre o pecado e a morte. A
cruz, portanto, significa para nós salvação e vida nova em Cristo Jesus.
Significa fazer parte da nova humanidade e entrar numa vida de realização e
esperança.
Em segundo lugar, a cruz representa para nós algo central em nossa
experiência interior e em nosso crescimento espiritual. Nascemos na velha
humanidade de Adão, nossa natureza é pecar e nosso destino é morrer.
Quando aceitamos a Cristo pela fé como nosso Salvador, morremos
judicialmente para o velho Adão. Entretanto, a vida subsequente em Cristo
requer nossa santificação, o aspecto negativo do que envolve a mortificação
do velho Adão em nós. Em linguagem clara, isso quer dizer que morremos
para nossas esperanças e planos segundo a carne, e morremos também para
nossas pretensões, a fim de viver para Cristo e reconhecer somente as
esperanças e planos dele, e somente as pretensões dele. A cruz significa que
estamos constantemente morrendo para o velho Adão em nós e sendo
ressuscitados para o novo homem, Jesus Cristo. Nunca há em Adão uma
esperança para a qual morremos que não seja satisfeita com a ressurreição de
uma esperança maior em Cristo. Nunca há em Adão um plano ou pretensão
de que abrimos mão sem encontrar mediante a ressurreição de Cristo um
plano mais verdadeiro e uma pretensão substancial. Assim, a cruz representa
derrota constante, rendição e morte para nós e, ao mesmo tempo, vitória
crescente, poder e ressurreição. A cruz, portanto, é um símbolo adequado de
nossas esperanças e alegrias, e um verdadeiro tema de cânticos cristãos, visto
que encarna a essência de nossa salvação.
Em terceiro lugar, também significa a decisão inescapável da vida. Ninguém
pode escapar da cruz. Ou o sujeito carregará a cruz de sua natureza
pecaminosa com todas as suas mentiras e frustrações, ou carregará a cruz
gloriosa e vitoriosa de Cristo. Os homens desejam uma vida boa, uma vida
nobre, mas pode-se muito bem afirmar que “quando não há cruz, não há
coroa”, quando não há Cristo, não há vitória. Ou aceitamos a cruz
vivificadora de Jesus Cristo, ou nos encontramos progressivamente oprimidos
e esmagados pela cruz mortífera de nossa própria natureza. Que cruz vamos
carregar?
Jesus, minha cruz tenho tomado,
A tudo deixo e sigo a ti;
Carente, desprezado, abandonado
Serás meu tudo a partir daqui:
Cesse toda a insensata ambição
Tudo que busquei, esperei ou conheci
Por mais rica seja minha condição
Deus e o céu são o que possuí!
(Henry Francis Lyte, “Jesus, I My Cross Have Taken”, 1825)

Aos pés da cruz de Cristo


Meu lugar tomo de bom grado —
A sombra duma rocha imensa
Sobre um solo fatigado;
Um abrigo no deserto,
Um descanso na longa via,
Do sol que queima a pele
E do fardo pesado de um dia.
(Elizabeth C. Clephane, “Beneath the Cross of Jesus”, 1868)
14. As perguntas mais fáceis
8 de setembro de 1953
Bom dia, amigos. Sei que esta é uma hora inoportuna da manhã,
especialmente depois de um feriado, para começar a fazer perguntas, mas
gostaria de tratar de algumas perguntas fáceis por alguns minutos nesta
manhã. Não gosto de perguntas fáceis, porque geralmente são as mais difíceis
de responder. São fáceis de fazer, mas respondê-las é outra história. As
crianças podem perguntar sobre quase qualquer coisa debaixo do sol, e
podemos lembrar de ter feito as mesmas perguntas anos atrás — mas ainda
não sabemos as respostas.
É possível resumir a maioria dessas perguntas de respostas difíceis numa
única palavra: por quê? Por que Deus faz as coisas do modo como faz? Por
que tenho de sofrer como tenho sofrido? Por que tenho de passar pelas coisas
que estão diante de mim? Por que isto tinha de acontecer comigo? Não
podemos deixar de fazer essas perguntas. Cristo, como homem perfeito e
representativo, fez essa pergunta em nosso lugar na cruz, quando, em sua
agonia de morte, bradou: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”
(Mt 27.46). “Deus meu, Deus meu, por quê?”, ele perguntou isso por todos
nós enquanto estava morrendo em nosso lugar. E essa ainda é a nossa
pergunta.
Alguns de nós, nesta manhã, estamos fazendo a pergunta com mais
intensidade que outros, não estamos? À medida que enfrentamos este
problema ou a provação nos confronta, nossa alma se estreita pela
perspectiva, e bradamos: por quê? Se Cristo fez essa pergunta como nosso
representante, isso nos dá o direito de fazê-la também. Ele tinha toda razão
em fazer essa pergunta. Ele foi um homem perfeito e sem pecado e, no
entanto, sofreu como nenhum homem, antes ou depois. “Era desprezado e o
mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer;
e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não
fizemos caso” (Is 53.3). Ele sofreu, mas sem pecado. Nós sofremos,
geralmente por causa de nossos pecados, de nossa precipitação, de nossa
cegueira. Por que temos de sofrer?
Aquele que era Deus encarnado sofreu como homem representativo por nossa
causa. Deus nada pede de nós que ele mesmo não esteja disposto a suportar
como homem. Assim, na pessoa de seu Filho, a segunda pessoa da Trindade,
Jesus Cristo, Deus foi tentado, sofreu, esteve só e morreu. Em nosso lugar,
ele fez a pergunta: “Deus meu, por que me abandonaste” e em nosso lugar ele
a respondeu com a própria vida. O resultado é o seguinte: Se Deus estava
pronto para morrer na cruz por nós na pessoa de seu Filho, ele decerto fará
mais do que abandonar-nos. Mais que isso, ele cuidará de nós, e nos dá a
certeza e a segurança: “De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te
abandonarei” (Hb 13.5). De modo que podemos dizer confiantemente: “O
Senhor é o meu auxílio, não temerei; que me poderá fazer o homem?” (Hb
13.6). Nem sempre podemos compreender por que Deus faz as coisas de
certo modo ou por que permite ou ordena que certas nos aconteçam, mas
sempre podemos entender isto: ele nos ama e não nos abandonará sem
consolo.
Quando Cristo bradou “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”,
isso significava o seguinte: aquele que se fez pecado por nós tomou sobre si o
nosso castigo e deu-nos sua vida e santidade. Portanto, aqueles que cremos
nele jamais seremos abandonados novamente por Deus, mas estamos
eternamente com ele, agora e no mundo por vir. Enquanto Deus é Deus,
jamais podemos ser abandonados. Podemos estar em grande dificuldade,
podemos estar em problemas bem reais, podemos não conseguir ver nenhuma
luz na estrada à nossa frente, mas jamais somos abandonados. Ainda é fácil
perguntar: “Por quê?”, mas Deus tem uma resposta difícil a essa pergunta na
cruz, a resposta de sua própria vida. A única resposta que podemos dar à
mesma pergunta fácil é entregar nossa vida àquele que é a resposta. Então,
mesmo em nossas dificuldades, temos a confiança de sua presença e
orientação. Nas palavras de um homem:
Não sei por que Deus me trouxe aqui,
lugar de lágrimas, dor e sofrimento.
A cruz que mais temia está por vir.
Vem a hora de buscar alento.

Não sei por que caminhos mais brandos


Me estão vedados, pois que orei tanto.
Só sei que ontem Ele tomou meu fardo
e pôs em mim um novo canto.

Conduziu e abençoou-me de um jeito novo;


Duvidar de sua bondade já não ouso.
Aquele que me abençoou outrora
Abençoará minha família também agora.
(Poema de RJR)

Deus tem um modo misterioso


De maravilhas operar
Ele acalma a tempestade
E caminha sobre o mar.
(William Cowper, “God Moves in a Mysterious Way”, 1773)
15. O poder da ressurreição

13 de abril de 1954
Bom dia, amigos. Tempos atrás, no Domingo de Ramos, um homem
entrou em Jerusalém montado num jumentinho, cumprindo deliberadamente
uma profecia de centenas de anos para declarar-se o rei divino, não só de
Israel, mas do universo. Ele era o Filho de Deus e, assim se declarando,
entrou no Templo na segunda-feira, fazendo-lhe uma limpeza dos hipócritas e
fraudulentos, como um senhor divino que vem reivindicar sua propriedade.
Já que estamos numa manhã de terça-feira, vamos olhar brevemente o
que aconteceu naquela terça-feira da semana santa, muito tempo atrás. Este
foi o último dia do ministério público de Jesus, um dia de debate público com
os fariseus, ensino de parábolas e discussões com os discípulos sobre o fim
dos tempos e o fim do mundo. Um ponto é de especial interesse: nos versos
conclusivos de Mateus 22, nosso Senhor usou um salmo de Davi para provar,
a partir do testemunho daquele rei, a preexistência do Filho de Deus. Assim,
duas coisas se destacam na alegação de Jesus acerca de si mesmo. Em
primeiro lugar, ele declarou que sempre foi, que teve uma existência eterna e
infinita que era idêntica com a vida de Deus. Em segundo lugar, declarou que
todo o propósito de sua permanência na terra podia resumir-se na cruz, que
ele, de fato, veio para dar a vida em resgate de muitos, para libertá-los do
poder do pecado e da morte.
Esses dois pontos são importantes: retire-os e você não terá nenhum
Jesus que possa ser identificado com o homem que viveu na Galileia e foi a
Jerusalém para morrer. Aquele homem alegava ser Deus encarnado e
declarava que sua morte mudaria a natureza do homem. Declarou, e seus
discípulos testemunharam, que se levantaria dentre os mortos no mesmo
corpo com que foi crucificado. Ou as declarações daquele homem estavam
certas ou ele era um pobre tolo digno de pena ou de cadeia, não de adoração.
Não podemos recriá-lo para adequar-se a nós: temos de ser recriados para
adequar-nos a ele.
Se o aceitamos com base no que diz de si mesmo, descobrimos cada
vez mais que nele temos poder sobre o pecado. Este é um fato óbvio que só
os voluntariamente cegos podem negar. A segunda parte de nossa vitória em
Cristo não é tão óbvia, entretanto: a nossa vitória sobre a morte. Digamos do
seguinte modo: se Jesus Cristo morreu por nós para libertar-nos do poder do
pecado e da morte, então ele morreu a morte que nós tínhamos de morrer,
como rebeldes contra Deus. Assim, a pena está paga. Ora, podemos fazer a
pergunta que nos vem naturalmente à mente: se ele morreu por nós, por que
temos de morrer? Afinal, todos nós ainda havemos de enfrentar a morte.
Somos livres do poder do pecado, o que podemos reconhecer, mas ainda
morremos por tudo isso. Por que também temos de morrer? A resposta é
claríssima: nossa morte não é um castigo ou punição pelo pecado, mas “uma
abolição do pecado e uma passagem para a vida eterna” (Kuyper, p. 99; ver
também o Catecismo de Heidelberg, P. 42).
Enquanto estamos neste mundo, nunca somos inteiramente livres do
poder do pecado e do poder da morte. Há em nós o velho Adão, com sua
perversidade permanente. Ao nosso redor, há a tensão constante de um
mundo que constantemente tenta cometer suicídio enquanto clama por mais
vida. Vemos tudo mudar e, no entanto, continuar na mesma — contaminado e
pervertido diante de Deus. Os amanhãs do mundo vêm, mas parecem só uma
concentração maior dos pesadelos dos ontens. E o homem, criado à imagem
de Deus, ouve um chamado profundo bem em seu interior e brada:
“Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?”
(Rm 7.24).
Nossa vida neste mundo, e o mundo mesmo, é um corpo de morte para
nós. Ele promete paraíso, mas nunca o pode entregar, e por essa razão é
enganoso e fraudulento. Jamais podemos encontrar aqui algo que está
alhures. Nossa verdadeira vida não é aqui: está oculta juntamente com Cristo,
em Deus. Somente quanto vemos este propósito e objetivo de vida, glorificar
a Deus e gozá-lo para sempre, vemos este mundo em sua perspectiva
adequada e somos capazes de extrair dele a alegria que ele pode dar. Já não
esperamos demais dele, mas esperamos mais do Senhor.
Voltemos agora à nossa pergunta, por que temos de morrer, já que
Cristo morreu por nós? Eis a resposta: do mesmo modo que temos morrer
para nós mesmos, assim também, afinal, temos de morrer para este mundo e
esta vida a fim de obter a plenitude da vida. Nossa morte não é uma punição
pelo pecado, mas a abolição do pecado e da morte, porque ela nos leva à vida
eterna. A morte completa o processo de desmame de nossa vida espiritual.
Em nosso tempo de vida, você e eu fomos desmamados de uma série de
coisas; a cada vez, o processo era doloroso ou cansativo, mas os resultados,
maravilhosos. É assim com a morte, que coroa nossos dias e nos dá nosso
diploma da escola do mundo e do tempo. Para os cristãos, a morte é uma
graça que leva à plenitude da vida. Portanto, podemos dizer com alegria:
Jesus Cristo ressuscitou dos mortos. Verdadeiramente
ressuscitou, e libertou-nos do corpo desta morte.
16. Criação e o Criador
20 de julho de 1954
Bom dia, amigos. Algum tempo atrás, um censo da opinião religiosa
americana revelou o fato curioso, mas sem sentido, de que cerca de 98% dos
americanos acreditam em Deus. Considero esses dados sem sentido porque a
própria pesquisa deixou claro que a palavra Deus significava coisas
diferentes para pessoas diferentes. Para alguns, não significava mais do que
uma ideia de potencialidade no universo; para outros, significava apenas a
natureza; para outros ainda, significava um ser supremo de poder muito
limitado. O que muitas pessoas chamam Deus não é nem remotamente
comparável com o que a Escritura nos revela sobre Deus.
O único Deus digno de fé é um Deus verdadeiramente hábil, um Deus
onipotente, todo-poderoso e senhor em todas e sobre todas as coisas. Não
podemos crer em tal Deus a menos que também o aceitemos como Criador. O
primeiro versículo da Bíblia nos conta que “no princípio criou Deus os céus e
a terra”. Hebreus 11.3 declara que: “Pela fé, entendemos que foi o universo
formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das
coisas que não aparecem”. A verdadeira fé envolve, portanto, a crença em
Deus como Criador.
A Escritura nos diz que nem o mundo nem nada nele é autoexistente ou
eterno, que Deus, no princípio, criou os elementos do mundo a partir do nada
e trouxe-os, imediatamente e por sua palavra soberana, à sua forma presente.
A Escritura também declara que Deus fez boas todas as coisas, e as fez para
seu próprio propósito e para sua própria glória. A criação foi obra da
Trindade — a obra de Deus Pai (1Co 8.6), do Deus Filho (Jo 1.2-3) e do
Deus Espírito (Gn 1.2; Jó 33.4); do Deus Pai por meio do Filho (Hb 1.2) e do
Deus Pai pelo Espírito (Sl 104:30).
Algumas pessoas consideram essa doutrina da criação irremediavelmente
ultrapassada e inteiramente anticientífica. Preferem acreditar em várias
hipóteses ou teorias de um universo em desenvolvimento, emergente ou em
evolução, embora essa fé tenha uma única razão por trás: ela dá uma resposta
ao problema da criação que evita a Deus. Esta é a razão fundamental para a
teoria, não a evidência.
Se não acreditamos em Deus como criador, na criação de todas as coisas a
partir do nada, imediata e completamente, pela palavra divina, não podemos
acreditar no Deus da Escritura ou ter o consolo e a fé que somente a fé bíblica
pode dar.
Por que este artigo de fé é tão importante e por que a fé bíblica é destruída
sempre que alguém tenta afirmar a fé cristã em Deus sem ao mesmo tempo
declará-lo o Criador no pleno sentido da palavra?
Enfrentemos a questão com cuidado e clareza. Se os elementos e
componentes básicos do universo sempre existiram, e se se desenvolveram
até sua forma presente com base em sua própria potencialidade, então
existem dois seres eternos e autoexistentes — Deus e o universo. Se o
universo se desenvolve a si mesmo, então está sujeito apenas a suas próprias
leis e é independente de qualquer controle externo. Deus, então, se torna
alheio ao universo e incapaz de agir sobre ele ou alterar qualquer parte dele,
porque o universo é independente dele e é seu próprio soberano. Assim, é
inútil acreditar em Deus, porque ele é alheio ao mundo e alheio a nós e a
nossos problemas. Se o universo evoluiu por si mesmo, então é uma lei em si,
e Deus é alheio a ela e inerme diante dela. Você pode acreditar em tal
universo e ainda acreditar em Deus, mas seu Deus é um Deus inerme no que
concerne às necessidades que você tem.
Por outro lado, se Deus criou todas as coisas, como nos diz o primeiro
capítulo de Gênesis, então ele é Senhor e Soberano sobre todas as coisas e
tudo depende de sua graça e providência. Assim, em vez de ser alheio a
nossas vidas, ele, nosso Criador, é aquele em quem vivemos, nos movemos e
existimos. Nossa história se move tão somente segundo os critérios dele,
conforme a criação, a providência, a regeneração e o juízo. Toda a criação e
toda a história do homem servem apenas para realizar os propósitos e
decretos de Deus. Deus, o Criador, pode falar conosco, porque somos obra de
suas mãos; Deus, o Criador, pode sustentar-nos, porque o governo está em
seus ombros, não nas mãos da criação ou da criatura. Ele pode regenerar-nos,
porque é a imagem dele que carregamos e para a glória dele; ele pode julgar-
nos, porque o único critério e propósito da história é a vontade e a glória dele.
Os motivos de Deus não estão fora dele mesmo nem dependem da criação ou
do homem, mas apenas dele mesmo. Como diz o salmista: “Não a nós,
Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua misericórdia e
da tua fidelidade. Por que diriam as nações: Onde está o Deus deles? No céu
está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.1-3).
Este Deus Criador soberano é o único Deus que pode ouvir e responder
orações, porque só ele é soberano e todo-poderoso.
Diz-nos o Catecismo maior de Westminster:
P. 14: Como Deus executa os seus decretos?
R. Deus executa os seus decretos nas obras da criação e da providência,
de acordo com a sua presciência infalível e o livre e imutável conselho
da sua vontade.
P. 15. O que é a obra da criação?
R. A obra da criação é aquela pela qual Deus, no início, pela palavra do
seu poder, fez do nada o mundo e tudo quanto nele há, para si, no
espaço de seis dias, e tudo muito bom.
“[Pois] este é Deus, o nosso Deus para todo o sempre; ele será nosso
guia até à morte” (Sl 48.14).
17. À sua imagem
6 de julho de 1954
Bom dia, amigos. Um dos fatos mais tristes a nosso respeito é que estamos
mais interessados em nós mesmos do que nas coisas mais importantes da
vida. Tendemos a estar mais dispostos a estudar psicologia, que nos fala
sobre nossos caminhos, que a estudar teologia, que trata dos caminhos de
Deus. Isso nos diz, evidentemente, que há algo errado conosco, que somos
basicamente autocentrados, mais interessados em nós que no céu e na terra.
Por que somos assim? Fomos feitos desse modo? Deus, o criador, nos fez
desse jeito? O Breve catecismo de Westminster pergunta “Como Deus criou o
homem?” (BCW P. 10) e então nos diz que fomos criados à sua imagem, em
conhecimento, retidão e santidade, com domínio. Se fomos criados conforme
a própria imagem de Deus, como nos diz a Escritura, então originalmente não
fomos criados autocentrados, fracos e pecaminosos, mas como homens e
mulheres ordenados a pensar os pensamentos de Deus, cumprir a vontade
dele e deleitar-se em seus caminhos.
A imagem de Deus no homem não é aparência física, molde ou forma, não é
a alma ou a mente do homem como tal. A imagem de Deus é conhecimento,
retidão, santidade e domínio; essas são as coisas que caracterizam a Deus: seu
conhecimento é perfeito e completo, sua retidão total, sua santidade além de
nossa imaginação e seu domínio absoluto e inabalável.
Fomos criados por Deus para exercer as funções de sua imagem sob sua
Palavra e propósito. Mas o homem rebelou-se contra Deus e tentou afirmar-
se por si mesmo. O slogan era “Cada homem é seu próprio Deus”, o que
representava uma submissão total à tentação — “Sereis como deuses” (Gn
3.5). Ora, esta é a razão por que todos somos por natureza autocentrados, por
que estamos mais interessados em nós mesmos que no resto do mundo e por
que gostamos de falar mais de nós mesmos que de Deus. Algumas pessoas
estão dispostas a falar tudo sobre seus sonhos, suas dores e anseios do
momento, seus problemas com os boletos do mês, e assim por diante, mas
pergunte-lhes sobre a fé em Deus e elas se ofenderão com a pergunta. Afinal,
dizem, minha religião é coisa de foro íntimo. Bem, isso não faz sentido para
mim. Até onde consigo enxergar, nossas dores e anseios, sonhos e boletos,
tudo isso são questões privadas, no entanto, passamos um tempão tornando-
os públicos todos os dias. Por outro lado, Deus é uma questão pública
muitíssimo importante, a única questão verdadeiramente importante, a
questão fundamental. Individual e coletivamente, permanecemos de pé ou
caímos segundo a ótica dele.
Então, por que fazemos de nós mesmos uma questão pública e de Deus um
assunto privado? Não é porque consideramo-nos mais importantes e,
inconsciente e instintivamente, vemo-nos como Deus? Sentimos que o
mundo devia ouvir e saber os detalhes de nossa vida porque a vida não seria
plena ou completa sem essa proclamação. É assim que agimos em nossa
capacidade de pequenos deuses.
Mas a tragédia é que nossa rebelião contra Deus corrompeu e fraturou a
imagem dele em nós. Jamais poderemos ter verdadeiro conhecimento de nada
a menos que comecemos com Deus como Criador. Qualquer outra tentativa
de gerar conhecimento nos dá apenas um mundo sem sentido e monstruoso, e
o conhecimento em si mesmo é uma maldição. Separados de Deus, não há
verdadeira retidão, somente santarronice, uma coisa hipócrita e
repugnantemente falsa. Quanto à santidade, é mais remota que as estrelas
para um homem separado de Deus. Toda tentativa do homem de recriar a
santidade com pompa e circunstância, mediante cultos e rituais
magnificentes, mediante a beleza e a arte, leva somente a maior zombaria e a
um fracasso ainda mais óbvio. Quanto maiores as nossas pretensões, mais
óbvia se torna a nossa fraqueza.
Quanto ao domínio, o homem claramente o perdeu. O homem já não tem
domínio sobre o mundo, sobre sua própria área de atividade ou sobre si
mesmo. O autocontrole é um grande problema público e privado. É um
problema mental também, e os homens, havendo perdido o controle de suas
vidas, acham difícil manter por um momento a sanidade e logo se rendem a
um afastamento impotente deste mundo que não se submete a eles.
Assim, a imagem de Deus no homem está claramente arruinada, obviamente
estilhaçada. O homem é incapaz de ser o que se planejou que fosse. Mas
Deus não nos deixa desamparados assim. Ele vem a nós em Cristo e recria a
humanidade caída. Pela fé em Cristo, somos regenerados à imagem de Deus,
e esta recriação será perfeita no mundo por vir. Paulo nos lembra da natureza
e do privilégio de nossa regeneração conforme a imagem de Deus, dizendo:
E vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno
conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou. (Cl 3.10)
E vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e
retidão procedentes da verdade. (Ef 4.24)
Ou não sabeis que os santos hão de julgar [ou governar, ou ter domínio
sobre] o mundo? (1Co 6.2)
18. O fim principal do homem
1 de junho de 1954

Bom dia, amigos. Pessoas diferentes em momentos diferentes propuseram


listas de momentos-chave na história, cada um segundo seus pressupostos.
Para mim, um dos grandes marcos da história é a Assembleia de
Westminster, que se reuniu em 1643 e em 1652, e cuja obra forneceu a
espinha dorsal moral e espiritual da história britânica e americana
subsequente. Um dos produtos daquela assembleia foi o Breve catecismo,
cuja primeira declaração é uma das mais bem conhecidas em toda a literatura.
À pergunta “Qual é o fim principal do homem?”, dá-se esta grande resposta:
“O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”.

Somos informados com toda clareza de que o homem foi feito para um
propósito e só pode ser compreendido à luz desse propósito, que é a glória de
Deus. O homem não é um fim em si mesmo, mas um instrumento a ser usado
para um propósito específico.

Olhemos do seguinte modo: suponhamos que eu compre — estou fazendo


uma suposição muito exagerada aqui — um carro novo, leve-o até o fim do
píer e espere que ele funcione como um barco só porque é um bom carro. O
resultado, claro, será um fracasso completo, e acabarei sem carro nenhum. Ou
suponhamos que eu tenha que serrar alguma coisa e tente usar um martelo
para fazer o trabalho, ou tenha de martelar algo e tente usar um serrote. A
estupidez de tal confusão é evidente.

Mas esse é o tipo de coisa que estamos constantemente tentando fazer


conosco. Fomos criados para um propósito, feitos como uma ferramenta de
precisão projetada para uma função específica; no entanto, tentamos usar-nos
para tudo, exceto para aquele trabalho particular. A função para a qual Deus
nos criou é seu serviço e sua glória, e dedicar nossa vida a qualquer outra
tarefa é abusar de nós mesmos e fugir de nossa responsabilidade.

No coração da frustração do homem moderno está esta percepção: não


importa o que faça, ele não se adequa. Não consegue se encontrar em toda a
sua busca e atividade porque em todas essas coisas ele está fugindo da função
para a qual foi criado — a glória de Deus. Jamais nos encontraremos até que
primeiro tenhamos encontrado o Senhor, nem viveremos verdadeiramente até
que comecemos a viver para ele. Como disse Agostinho: “Nosso coração
permanece inquieto até que repouse em ti”.

O propósito de nossa vida, portanto, só é compreensível sob a perspectiva de


Deus, e quanto mais tentamos viver para nós mesmos, mais sem sentido e
frustrante será a nossa vida. Quanto mais vivemos para nós mesmos, menos
estamos vivos. Temos de negar a nós mesmos a fim de viver. Como disse
Jesus, temos de perder nossa vida para ganhá-la (Mt 10.39). Este é o
paradoxo no núcleo da vida, e, no entanto, está claro e compreensível quando
vemos Deus como nosso criador e reconhecemos que “dele, por ele e para ele
são todas as coisas” (Rm 11.36). Ele é a fonte de toda vida, propósito,
significado e função. Portanto, Paulo se junta a nós: “Quer comais, quer
bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co
10.31).

Visto que o fim principal do homem é glorificar a Deus, toda atividade fora
de Deus é estagnação, é um desperdício de vida e de tempo e constitui uma
morte viva. Por outro lado, toda atividade sob Deus é livre da futilidade e tem
a garantia de resultados perfeitos. Porque agora funcionamos nele e sob sua
graça, temos a segurança de que ele abençoa nossa fidelidade impotente e nos
dá a colheita. Como resultado, Paulo incita-nos a maior serviço, declarando:
“Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis e sempre
abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não
é vão” (1Co 15.58).

Há, entretanto, mais do que isso na promessa que nos foi dada quando
vivemos segundo nosso propósito criacional. Nosso fim principal não é só
glorificar a Deus, mas também gozá-lo para sempre. Esta é a dimensão mais
segura da fé cristã, uma das maneiras mais rápidas de reconhecer a verdadeira
vida no Senhor. O homem que vive segundo o propósito para o qual foi
criado conhece a alegria da realização em Cristo e a vitória de sua presença
mesmo em meio à aparente derrota.

Como gozamos a Deus? Pela obediência a ele, pela proximidade em


comunhão, por viver nele e para ele e por viver nesta grande segurança de
que nossa vida e nosso trabalho não são vãos no Senhor. Gozar a Deus é
conhecê-lo na pessoa de seu Filho Jesus Cristo e reconhecer o amor redentor
que está presente nele.

Somente quando verdadeiramente gozamos a Deus podemos verdadeiramente


gozar a vida, porque é somente então que estamos reconciliados com nós
mesmos. Deus em Cristo fez a reconciliação conosco, e nessa paz
encontramos paz com o homem e com nós mesmos. Assim temos vida, e a
temos com mais abundância, pois “Quem tem o Filho tem a vida” (1Jo 5.12).
Quando apazigua a guerra que dentro de nós constantemente ameaça a nossa
alma, ele nos dá uma vida que tem vitória e alegria. Quando o homem vive
segundo seu fim principal, o resultado é esta alegria e vitória. Nada na vida
tem algo para ele à parte do Senhor. Como declarou o salmista: “Ainda que a
minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração
e a minha herança para sempre” (Sl 73.25-26).

Qual é o fim principal do homem?


O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre.
19. Preservando a superfície
7 de fevereiro de 1956

Bom dia, amigos. Para muita gente, não só a beleza, mas toda a vida é só uma
casca. Integridade, honestidade e caráter não são mais que aparências, e a
aceitabilidade de um homem há de ser julgada à luz de sua adequação e seus
hábitos sociais.

O homem deseja viver somente na superfície das aparências; quer que o


mundo o aceite como ele parece ser. Toda a sua vida é dedicada ao cultivo de
uma aparência de sucesso em todas as suas ramificações.

Nossas palavras pessoa e personalidade provêm de persona, que quer dizer


“máscara”, e refere-se às máscaras vestidas pelos atores do teatro grego
antigo. E, de fato, a palavra ainda é pertinente, no sentido de que, para a
maioria das pessoas, sua pessoa e personalidade estão dedicadas à proposição
de que a criatura real deve ser mascarada pela pessoa que confronta a si
mesma, que age como representante público do homem interior. Este homem
interior acredita no egoísmo, por exemplo, e vive somente nesta perspectiva,
mas a pessoa que é a máscara, o representante público, piedosamente afirma
uma fé no amor, na cooperação, no altruísmo e no compartilhamento.
Queremos que o mundo aceite a máscara pública, mas queremos a satisfação
que o homem interior autocentrado exige. No entanto, não ousamos viver
abertamente, exceto com a máscara. Queremos que o mundo aceite nossa
aparência e não faça perguntas.

Este homem prefere considerar o mundo e as pessoas como parecem ser, e


não fazer perguntas embaraçosas. A vida é muito mais aceitável às avessas,
se as máscaras e hipocrisias são honradas e nenhum pretexto destruído. Claro,
este homem goza de algum leve desmascaramento, porque lhe dá uma
pseudossabedoria, uma sensação orgulhosa de que é superior porque está por
dentro do assunto. Mas a autoconsciência só acentua a hipocrisia e revela
mais claramente a fuga de toda verdade e realidade.

A natureza de todos os homens é assim revelada na aproximação de Deus.


Vivendo apenas de aparências, esperam que Deus aceite sua aparência e
justifique-os segundo ela. Em outras palavras, pedem que Deus aceite cada
homem não como são, mas como aparentam ser. Nenhum homem pode ser
justificado como é; portanto, os homens exigem que Deus aceite um
substituto deles: ou palavras, ou sabedoria, ou experiência mística, posição
racial ou coisas assim como substituto. Os homens odeiam tudo que ameaça a
aparência superficial e, portanto, apesar de suas máscaras piedosas, odeiam a
Deus porque ele destrói toda máscara e desnuda todo pecado em sua
perversidade essencial e rebelião. Porque esses homens mascarados exigem
aparências, procuram e constroem igrejas que abençoarão e aprovarão a
aparência superficial e os justificarão — e a construção de tais igrejas não
tem fim. A igreja se torna, então, uma máscara para maldade piedosa e uma
aparência usada numa tentativa de enganar a Deus e ao homem. A verdadeira
igreja, que trava guerra contra toda aparência, torna-se uma geradora de
problemas e um inimigo público de todos os homens mascarados. No entanto,
todos os esforços dos homens mascarados são inúteis. Nas palavras do
Evangelho: “O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens
amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más” (Jo
3.19).

O Senhor destrói todas as máscaras, todas as aparências, e, assim, ou as


renunciamos voluntariamente, reconhecendo que somos por natureza
pecadores e aceitando a salvação graciosa, ou elas são arrancadas de nós, para
nossa confusão, vergonha e juízo. Quando recebemos a graça salvífica,
recebemos um novo homem interior, que já não é um rebelde perverso contra
Deus, mas uma nova criatura em Cristo. Ora, nenhuma aparência superficial
pode equiparar-se à glória interior, e nossa ação feliz e nossa
responsabilidade se tornam uma revelação ao mundo daquela que é a
realidade gloriosa de nossas vidas: “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl
1.27).
20. O apelo
7 de dezembro de 1954

Bom dia, amigos. Nossa leitura bíblica de hoje é Isaías 55, o grande apelo do
profeta a que os homens deixem a frustração e a insatisfação e encontrem
descanso e refrigério na graça e na misericórdia eternas de Deus.

Ah! Todos vós, os que tendes sede, vinde às águas; e vós, os que não
tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem
dinheiro e sem preço, vinho e leite. Por que gastais o dinheiro naquilo
que não é pão, e o vosso suor, naquilo que não satisfaz? Ouvi-me
atentamente, comei o que é bom e vos deleitareis com finos manjares.
Inclinai os ouvidos e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque
convosco farei uma aliança perpétua, que consiste nas fiéis
misericórdias prometidas a Davi. Eis que eu o dei por testemunho aos
povos, como príncipe e governador dos povos. Eis que chamarás a uma
nação que não conheces, e uma nação que nunca te conheceu correrá
para junto de ti, por amor do Senhor, teu Deus, e do Santo de Israel,
porque este te glorificou. Buscai o Senhor enquanto se pode achar,
invocai-o enquanto está perto. Deixe o perverso o seu caminho, o
iníquo, os seus pensamentos; converta-se ao Senhor, que se
compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em
perdoar. Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos,
nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor, porque,
assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus
caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus
pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos. Porque, assim
como descem a chuva e a neve dos céus e para lá não tornam, sem que
primeiro reguem a terra, e a fecundem, e a façam brotar, para dar
semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair
da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e
prosperará naquilo para que a designei. Saireis com alegria e em paz
sereis guiados; os montes e os outeiros romperão em cânticos diante de
vós, e todas as árvores do campo baterão palmas. Em lugar do
espinheiro, crescerá o cipreste, e em lugar da sarça crescerá a murta; e
será isto glória para o Senhor e memorial eterno, que jamais será
extinto. (Is 55.1-13)

O que o profeta Isaías ofereceu ao povo neste grande convite está claramente
afirmado no versículo 4. É o Servo Sofredor, o Messias ou Cristo de Deus,
que por sua morte trará perdão abundante a muitos. Essas são as “fiéis
misericórdias prometidas a Davi” (v. 3), isto é, as bênçãos prometidas com tal
certeza a Davi cuja plenitude é vista somente em Jesus Cristo.

O perdão do homem sempre é incerto e imperfeito. O homem pode consolar-


nos em nossa aflição e sofrimento, ou falar à culpa e frustração de nossa alma
e incentivar-nos de modo comovente às vezes, mas o que o homem dá é
superficial e não muda nossa vida. Só nos possibilita esquecer nosso apuro
por algum tempo, somente para vê-lo voltar mais tarde com força renovada.
O verdadeiro fundamento de nossa esperança é Deus e seu Cristo, pois só ele
perdoa abundantemente e purifica por completo. Ele anulará nossa culpa e
frustração tão certo quanto a chuva cai dos céus.

Para ter essa paz de Deus, somos chamados a renunciar nossos caminhos e
nossos pensamentos. Isso, claro, é exatamente o que odiamos fazer.
Queremos acrescentar Deus ao nosso caminho, mas ele se recusa a permitir
essa situação. O homem está inclinado a protestar: por que tenho de abrir
mão dos meus caminhos e do meu pensamento? Por que não me permitem
seguir meu próprio caminho e ainda ter paz e a bênção de Deus? A resposta
de Deus é claríssima: “Porque os meus pensamentos não são os vossos
pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor,
porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus
caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos,
mais altos do que os vossos pensamentos” (v. 8-9).

Nosso pensamento é completamente incompatível com o pensamento de


Deus, e nossos caminhos com os caminhos dele. Nossa vida está
condicionada, como disse Jesus, por preocupações como estas: “O que
comeremos? O que beberemos? Com que nos vestiremos?” (veja Mt 6.25).
Nossa vida gira em torno de nós mesmos; os pensamentos e caminhos de
Deus, em torno de seu propósito eterno. Somos chamados a renunciar nossa
vida por ele a fim de que possamos viver de verdade.

Como é agora, estamos desperdiçando nossa vida, disse Isaías, gastando


dinheiro com o que não é pão (v. 2), isto é, trabalhamos por aquilo que não
satisfaz, e passamos pela vida com fome e sede de vida, mas nunca a
experimentamos.

Diante de tudo isso, nossa única esperança está em Deus em Cristo. Vivendo
nele, sairemos com alegria e seremos guiados em paz; a própria natureza
compartilhará de nossa felicidade (v. 12). O que antes nos era um espinheiro
se tornará um lindo cipreste, e a sarça, uma murta (v. 13), porque nossa vida
agora está num novo mundo em Cristo, a plenitude do que herdaremos no fim
dos tempos.

Isso pode realmente nos acontecer? Temos a palavra de Deus de que não
pode ser de outro modo, pois ele diz:

Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim
vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a
designei. (v. 11)
21. A aliança
31 de agosto de 1954

Bom dia, amigos. Às vezes temos o hábito de usar uma palavra ou expressão
familiar por anos sem compreender-lhe plenamente o significado. Um
exemplo de termo bíblico desse tipo é aliança. A Bíblia tem muito a dizer
sobre alianças, e as duas partes da Escritura são chamadas de Antigo e Novo
Testamentos, ou Alianças.

A palavra aliança na Escritura tem um significado original que significa


cortar ou dividir, e o sentido usual de aliança refere-se a uma aliança de
sangue.

No sentido estrito da palavra, refere-se a uma fraternidade de sangue entre


dois homens. Dois homens independentes e iguais, tendo grande afeição um
pelo outro, concordam em se tornar irmãos de sangue. Depois do ritual de
derramar e misturar o sangue, eles se tornam mais próximos um do outro que
em qualquer outra relação. Passam a ter uma obrigação mútua de guardar um
ao outro da deslealdade e do perigo, e de estar dispostos a abrir mão da
própria vida em favor do outro. Para um homem, ser infiel aos laços da
aliança era impensável: tornava-o um homem sem valor e proscrito. Quando
fazia uma aliança de sangue, o homem tinha, por assim dizer, uma nova
natureza: ele adentrava na vida de seu novo irmão e, daí em diante, tinha um
laço de amor que superava todos os outros laços e lhe exigia uma vida que
tivesse uma nova orientação.

Ora, obviamente, a palavra aliança em sentido estrito, requerendo duas partes


contratantes iguais e independentes, não pode aplicar-se à aliança entre Deus
e o homem, entre Criador e criatura. O Deus grandioso e infinito não pode
equiparar-se com a frágil criatura humana. No entanto, a Escritura chama o
relacionamento de Deus com o homem de aliança, mas neste caso uma
aliança de graça e promessa. Em Salmos 89.28, a palavra aliança equipara-se
a graça.

Portanto, Deus, em sua graça infinita, faz uma aliança com o homem. O
significado, eu acho, começa agora a ficar mais claro. O Deus da graça faz a
si mesmo irmão de sangue do homem e diz que, em sua misericórdia,
redimirá o homem e assim voluntariamente abre mão de sua vida em favor do
homem.

Jesus Cristo fez isso pelos filhos da aliança. Como nosso irmão de sangue,
tendo assumido nossa natureza na encarnação, ele cumpriu sua obrigação da
aliança ao morrer por nós e compartilhar conosco os frutos de sua vitória
sobre a morte e o pecado. A todos os que estão em aliança com ele pela fé,
ele dá uma nova natureza e uma nova vida.

Esta nova natureza, sendo sua vida em nós, significa comunhão permanente
com ele. Na última ceia, ele “tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos
discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue
da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados”
(Mt 26.27-28). Nossa participação no sacramento da comunhão significa que
nos regozijamos em nossa nova vida em Cristo. Reconhecemos que em nós
mesmos somos homens mortos, mas nele temos uma vida e herança eterna e
incorruptível.

Olhemos mais uma vez para o ritual primitivo da fraternidade de sangue.


Quando dois homens se tornam irmãos de sangue, os laços que os unem um
ao outro tornam-nos responsáveis também pela família do outro. Uma vez
que tivessem uma vida comum, teriam também uma família comum.
O mesmo é verdade acerca a aliança de Deus conosco. Ingressamos na
família de Deus, “[nos tornamos] coparticipantes da natureza divina” (2Pe
1.4), e compartilhamos dos mesmos privilégios da família de Deus como
filhos e herdeiros por adoção, que é nossa na aliança. Do mesmo modo,
quando, pela fé, entramos na aliança de Deus em Cristo, nossa família se
torna a família de Deus. Isso é verdade até mesmo onde somente um dos pais
é cristão, pois, como Paulo disse aos coríntios em 1 Coríntios 7, o parceiro
descrente é santificado pela esposa ou pelo marido crente, e os filhos são
considerados santos. Isso quer dizer que os filhos dos crentes estão sob a
aliança de Deus e a bênção do Espírito Santo e são contados como do Senhor
até que na maturidade rejeitem especificamente a aliança e saiam de sua
jurisdição.

Este é nosso grande privilégio em Cristo: nossos filhos nascem na família da


fé e da aliança de seu Deus. As promessas da aliança não são apenas para
nós, mas para nossos filhos e para tantos quantos o Senhor nosso Deus
chamar.

Adultos só podem entrar voluntariamente nesta aliança pela fé e confissão de


Cristo. Crianças nascem nela. Entretanto, como diz Paulo, nem todos os de
Israel são, de fato, israelitas (Rm 9.6); nem todos os filhos dos crentes são
filhos da promessa.

Vamos dar mais uma olhada no ritual primitivo de fraternidade de sangue. O


relacionamento estava sob certas leis e obrigações, e a cerimônia era
concluída pela troca de presentes. A lei da aliança é a Palavra de Deus, escrita
nas tábuas de nosso coração por meio da presença duradoura, e o dom da
aliança é o dom do Espírito Santo, as promessas e privilégios da aliança e
vida eterna. Nosso presente deve ser nossa vida como um sacrifício vivo ao
Deus da aliança, nosso tempo, nossa substância, nosso tudo.
A aliança de um Deus gracioso faz de nós, que somos pobres, cegos e
famintos, homens e mulheres que são herdeiros de todas as coisas em Cristo.
A aliança nos dá nutrição, e esta nos dá vida. Seu símbolo adequado é uma
mesa de comunhão, em torno da qual a família de Deus se reúne para receber
as dádivas da aliança.

Se não estamos desfrutando dos privilégios da aliança, é porque somos


culpados de recusar-nos a participar da mesa que nos está preparada até
mesmo na presença de nossos inimigos, como diz o salmo 23. Acheguem-se,
então, e compartilhem da riqueza do Deus da aliança.

Ora, o Deus da paz, que tornou a trazer dentre os mortos a Jesus, nosso
Senhor, o grande Pastor das ovelhas, pelo sangue da eterna aliança, vos
aperfeiçoe em todo o bem, para cumprirdes a sua vontade, operando em
vós o que é agradável diante dele, por Jesus Cristo, a quem seja a glória
para todo o sempre. Amém! (Hb 13.20-21)
22. O desejo de morrer
24 de agosto de 1954

Bom dia, amigos. Um dos fatos mais significativos acerca do homem é que
muitas vezes ele tem um desejo intenso de morrer. A vida é tão cara à maioria
de nós que é difícil compreender que alguém seja tomado pelo desejo de
morrer; no entanto, o fato tem documentação abundante na psiquiatria
moderna e em outros campos de estudo.

Os homens têm modos diferentes de mostrar esse impulso autodestrutivo.


Com alguns, vemo-lo no alcoolismo — e no abuso da bebida há este impulso
suicida latente, um desejo de afogar parte da vida ao sufocar a mente e a
consciência com álcool. Com outros, vemo-lo na jogatina. O apostador
inevitavelmente perde e sabe disso; se ganha, sente que deve continuar,
porque — informa-nos o Dr. Bergler — tem o desejo de perder, de arruinar-
se e de infligir uma punição a si mesmo. O viciado em entorpecentes, o
motorista imprudente que flerta com a morte, esses, assim como os demais,
são caracterizados pelo desejo de morrer.

Isso, evidentemente, não é normal. Dizem-nos que este impulso destrutivo é


um “desejo profundamente enraizado de autopunição”. Ora, essa é uma ideia
de máxima importância para o pensador cristão. O que os estudos modernos
revelam, tanto na psiquiatria quanto na psicossomática, é que o homem pune
a si mesmo quando sente que transgrediu ou está prestes a transgredir. Em
outras palavras, uma sensação de culpa enraizada leva as pessoas a atividades
autodestrutivas e a assumir riscos de modo imprudente, porque assim,
inconscientemente, punem-se a si mesmos pelos pecados cometidos em
pensamento, palavras e obras.
Os homens responsáveis por esses estudos em sua maioria são não cristãos e
talvez tivessem objeções a uma interpretação cristã de seus dados, mas até
mesmo eles não raro são impelidos a tomar emprestada a linguagem da
teologia para explicar esses mesmos dados.

O que este desejo de autopunição revela a nós, como pensadores cristãos?

Em primeiro lugar, dá um testemunho eloquente do fato de que o homem foi


criado à imagem de Deus. Embora tenha sido arruinada pela queda do
homem, essa imagem testemunha contra o homem e torna a punição
inevitável. O homem sabe que a pena pela transgressão da lei de Deus é a
morte e, havendo transgredido, é atormentado por um impulso mórbido. Ele
nega a Deus com os lábios, mas pune-se a si mesmo em obediência
inconsciente à ordenança divina contra o pecado. Não podemos fugir de
Deus; visto que ele nos criou, cada nervo e fibra de nosso corpo dá
testemunho dele e de sua lei contra a rebelião de nossos lábios e mente.
Podemos negar seus juízos, mas só terminaremos cumprindo-os contra nós
mesmos.

Em segundo lugar, o impulso do homem à autopunição declara enfaticamente


que o pecado deve ser expiado. Não há escape às exigências e obrigações da
justiça. A expiação deve ser feita, afirmou nosso Senhor, até o último tostão.
Qualquer homem que não encontre a redenção e libertação do poder e da
pena do pecado na pessoa e obra de Jesus Cristo estará preso na tarefa mortal
e sem esperança da autoexpiação, e o único resultado é uma autopunição vã.

O pecado deve ser pago, e a expiação será feita por Jesus Cristo ou
pagaremos por ela com nosso próprio impulso autoinfligido de punição e
morte.

Vivemos hoje em meio a uma geração coagida em direção à morte. Suas


atividades febris parecem ter este propósito comum: destruir a mente e a
memória, fugir da vida, punir o corpo e a alma, fugir, acima de tudo, da voz
interior acusatória que é a imagem de Deus no homem.

Quando, todavia, pela fé, fugimos desta derrota viciosa ao encontrar nossa
expiação em Jesus Cristo, somos verdadeiramente livres. Podemos, então,
dizer com o apóstolo que “para mim viver é Cristo e morrer é lucro” (Fp
1.21), porque em qualquer situação temos a bênção de sua paz e vitória. Já
não somos coagidos; agora somos guiados em paz e alegria, e o peso de nossa
culpa é retirado.

Como declara a Confissão de fé de Westminster:

O Senhor Jesus, pela sua perfeita obediência e pelo sacrifício de si


mesmo, que ele, pelo Eterno Espírito, ofereceu a Deus de uma vez por
todas, satisfez plenamente a justiça do Pai, tendo adquirido, não só a
reconciliação, mas uma herança eterna no reino do céu, para todos
aqueles que o Pai lhe deu. (CFW 8.5)

Cristo, com toda certeza e eficazmente, aplica e comunica a salvação a


todos aqueles para os quais ele a adquiriu; isso ele consegue fazendo
intercessão por eles e revelando-lhes na Palavra e pela Palavra os
mistérios da salvação, persuadindo-os, eficazmente, pelo seu Espírito a
crer e a obedecer, governando o coração deles pela sua Palavra e pelo
seu Espírito; vencendo todos os seus inimigos por meio de sua
onipotência e sabedoria, da maneira e pelos meios mais de acordo com
a sua admirável inescrutável dispensação. (CFW 8.8)
23. Autoilusão (Tiago 1.14)
31 de janeiro de 1956

Bom dia, amigos. Devaneios e autoilusão são características familiares de


nossa constituição humana; são uma face e uma fachada com as quais
tentamos lidar com os fatos desconfortáveis da realidade sem ofender nosso
ego. A autoilusão se manifesta não só nas representações internas à nossa
mente, mas também em seu gosto externo. O atual apetite por violência na
literatura, em periódicos e na imprensa, na arte e no entretenimento, é um
indício vital da natureza violenta e destrutiva da autoilusão do homem de
hoje. Mais que isso, é a sombra do amanhã e uma advertência urgente de que
devemos guardar o coração com toda diligência, pois dele provêm os males
da vida. Antes que tomassem a Alemanha, os nazistas foram precedidos por
uma geração cujo apetite literário era movido à violência, e os nazistas
representaram na vida o que seus pais haviam representado na autoilusão.
Antes que ocupassem o poder na Rússia e começassem seu programa de
erosão total do passado do homem, os bolcheviques foram precedidos por
niilistas, anarquistas e outros, que sonharam com um mundo e o trouxeram à
existência, o qual destruiu a eles e aos que os seguiram. Há uma correlação
no fato de a maioria dos heróis revolucionários da Rússia terem morrido
mortes violentas em prisões e campos de escravos: seus devaneios foram
levados às últimas consequências.

Mas vamos olhar para a casa, o seu coração e o meu. O que a autoilusão
significa em nossa vida? Hallesby (God’s Word for Today, p. 280) definiu-a
como “o pensamento que não segue a lei da lógica, mas os impulsos de
nossos caprichos e desejos”. Em todo pensamento assim, portanto, não só
tentamos mudar a realidade das coisas, mas também nossa relação com essa
realidade. Não só falsificamos o mundo em que vivemos, mas também a nós
mesmos. Mentimos acerca do que é a vida e do que nós somos. Hallesby
também chama a atenção para o fato de que “na hora da tentação se dá a
autoilusão em sua forma mais completa”. Todo pensamento desse tipo é uma
mentira, e normalmente nossas mentiras enganam em primeiro lugar a nós
mesmos. Inevitavelmente, a mentira começa a viver sua vida, e o que pode ter
começado como uma tentativa de enganar aos outros na verdade engana-o
mais que a qualquer outro. Assim, o autoiludido começa a viver a partir de
seu sonho, a trabalhar a partir de sua mentira, e o resultado é que caminha
impetuosamente no pecado e então culpa a Deus por torná-lo inevitável. Em
certo sentido, o pecado é inevitável para o autoiludido, porque para ele a vida
deixou de ser servir a Deus e tornou-se, em vez disso, a realização de seu
próprio sonho. E o sonho não permanecerá seguramente enterrado: ao
contrário, ele insiste em enterrar tudo que se opõe a sua realização na vida do
homem.

Por isso Tiago escreveu: “cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando
esta o atrai e seduz” (Tg 1.14). É nossa cobiça, nosso sonho, que nos leva à
tentação. Como disse John Donne, tentamos Satanás para tentar-nos;
colocamo-nos numa situação em que a tentação e o pecado se tornam
inevitáveis e então culpamos a Deus por colocar-nos ali.

Visto que somos tentados quando somos atraídos por nossa própria cobiça,
nossas tentações são um bom indício de nossa autoilusão. As tentações de um
homem, portanto, estão estreitamente relacionadas com seus devaneios e são
um passo a caminho de sua realização. O pecado é ativo não só na realização,
mas também na concepção, no próprio autoengano.

É por isso que a Escritura insta-nos a levar todo pensamento cativo a Cristo,
porque quando todo pensamento é levado cativo a seu mandamento, o
cumprimento não é o pecado, mas a santificação; não a tentação, mas a força;
não a fuga, mas a responsabilidade. A autoilusão entroniza nossos desejos,
mas somos ordenados, em vez disso, a entronizar a Cristo em nosso coração:
Ele nos leva, não à tentação, mas nos livra do mal e nos dá a vitória nele.
24. Atalhos
13 de março de 1956

Bom dia, amigos. Alguns anos atrás, uma mulher comentou comigo que
desperdiçou boa parte da vida à procura de atalhos para tudo. Procurava
atalhos para Deus, para a felicidade, para os desejos do coração, para todas as
coisas, e sempre terminava muito longe de seus objetivos.

A experiência dela é comum. As pessoas constantemente procuram atalhos, e


uma boa maneira de começar um grupo, seita ou culto religioso é oferecer um
novo atalho para Deus. Ora, todos esses atalhos têm uma característica em
comum: propõem-se a desviar e eliminar da vida toda os problemas infelizes,
todos os assuntos desagradáveis, todas as experiências tentadoras e a levá-lo,
doce e impassível, ao próprio Deus. Mas a falácia infeliz em todo
pensamento deste tipo é a seguinte: nenhum homem que tenta ser liberto da
vida pode ser levado a Deus. Somente quando enfrentamos todas as
experiências da vida podemos estar preparados para enfrentar o Deus que no-
las dá. O pecado e o sofrimento, a tragédia e a morte, essas não são coisas
que a fé religiosa pode ajudar-nos a evitar, mas, em vez disso, nos ajuda a
enfrentar. Para encontrar a Deus, portanto, devemos enfrentar a vida de modo
vitorioso, e isso não pode ser feito sem Jesus Cristo. Não há caminho para
Deus que possa eliminar Cristo sem fracassar por inteiro. Disse Jesus: “Eu
sou o caminho” (Jo 14.6), o único caminho para Deus; e disse mais: “Eu sou
a porta” (Jo 10.9), o único acesso a Deus, pois “ninguém vem ao Pai senão
por mim” (Jo 14.6). Nenhum atalho para Deus leva a lugar algum senão à
ruína, quando elimina toda a vida vivida em Jesus Cristo e com ele, o
mediador entre Deus e o homem. Nele e em sua mediação expiatória,
podemos enfrentar tudo da vida sem fugir, porque tudo é transformado, tudo
está sob a providência divina. “Todo vale será aterrado, e nivelados, todos os
montes e outeiros; o que é tortuoso será retificado, e os lugares escabrosos,
aplanados” (Is 40.4).

E quanto aos atalhos para a felicidade? Aqui, de novo, queremos vezes


demais somente um lado da vida, e insistimos em nosso direito e rejeitamos o
outro. Mas nossa capacidade de ser feliz sempre é proporcional à nossa
capacidade de receber das mãos de Deus todas as coisas da vida. As pessoas
mais verdadeiramente felizes são aquelas que podem aceitar tanto a tristeza
quanto a felicidade, e em tudo dão graças a Deus.

Muitas vezes nossa tentação é estar contente meramente com a oração pelas
bênçãos e por felicidade. Temos tanto que pedir a Deus, e pedimos, muitas
vezes e com impaciência, desconfiando de seu atraso e de sua ausência de
resposta. Deus declarou há muito: “Eis que, hoje, eu ponho diante de vós [...]
a bênção, quando cumprirdes os mandamentos do Senhor” (Dt 11.26-27). A
condição da bênção, portanto, é um coração obediente, um coração que
procura a vontade de Deus e cada vez mais nela se deleita. Não há atalho para
a felicidade que possa eliminar a fé e a obediência.

Assim, é óbvio que os atalhos não são, de maneira alguma, o caminho da


vida. A riqueza da vida está em vivê-la inteiramente submisso a Deus. O
resultado dessa vida é esclarecido pelo salmista quando declara que este
homem “é como árvore plantada junto a corrente de águas, que, no devido
tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ele faz será
bem-sucedido” (Sl 1.3). Não há promessa de imunidade à tempestade, de
proteção contra a infelicidade, luto ou tristeza. Nenhures Deus nos promete
uma vida assim neste mundo. Entretanto, a garantia claríssima é de que,
quando nossa vida está enraizada em Deus por meio de Jesus Cristo, tudo
quanto fizermos prosperará à luz do propósito eterno de Deus e de nossa
alegria eterna.

O sacramento da mesa do Senhor dá testemunho desta plenitude de vida. O


fim do sacramento é a santificação dos santos, seu crescimento no Senhor, a
bênção de toda a sua vida com a força, a alegria e a paz do Senhor. No
entanto, o caminho para este resultado abençoado é a aceitação do sacrifício
expiatório de Cristo, nossa própria morte para o velho Adão em nós, ou a
disposição de tornar-nos sacrifícios vivos em Cristo Jesus e nossa obediência
ao Senhor. Nosso Redentor afirmou-o de modo muito simples quando disse:
“Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; quem perder a vida por minha
causa, esse a salvará” (Lc 9.24).
25. Pecado
13 de julho de 1954

Bom dia, amigos. Há um assunto em que a maioria de nós alegaria muito


modestamente ser autoridade — o tema do pecado. Muitos de nós acham que
sabem muito sobre pecado, e algumas pessoas até se sentiriam insultadas se
se sugerisse que sabem pouco do assunto. No entanto, o fato estranho é que,
embora todos estejamos cheios do tema, muito poucos de nós realmente
sabem o que o pecado é. De certo modo, isso não é de estranhar. Afinal,
podemos estar cheios de torta de maçã sem saber o que aconteceu à massa,
que tipo de maçã foi usada e por quanto tempo foi assada. Se estamos cheios
de torta de maçã, não é porque sabemos tudo que há para saber sobre ela, mas
porque gostamos dela e ela nos cai bem.

A pergunta, então, nos confronta: o que é o pecado? A maioria das pessoas dá


uma resposta errada. Definem o pecado como assassinato, mentira, roubo,
adultério, extorsão, lascívia, bebedice e coisas assim. Nenhuma dessas coisas
é pecado em si mesma: são pecados, não pecado. Assim como Santa Cruz é
parte dos Estados Unidos, assim também esses pecados particulares são
fragmentos do pecado ou, até melhor, produtos do pecado. Esses pecados
individuais são frutos de uma árvore cuja vida é ampla e difusa, ao passo que
os frutos são particulares e limitados.

Você e eu podemos ser livres desses pecados individuais. Podemos ser


inocentes de assassinato, mentira, roubo e de outros pecados evidentes e
ainda ser culpados do pecado em si mesmo, podemos ser pecadores tão
sombrios quanto uma fileira de assassinos ou o corredor da morte já visto.
Pois o pecado é muito mais perigoso que pecados individuais, menos
facilmente detectado e mais profundamente enraizado.
O que, então, é o pecado em si mesmo? É ceder à tentação de ser como Deus,
conhecedor, isto é, determinador do bem e do mal. O pecado de Adão foi
tentar ser seu próprio deus, decidindo por si o que era certo e errado, e esta é
a tentação de todos nós. É mais do que nossa tentação: é nossa natureza.

O Breve catecismo de Westminster responde à pergunta “O que é pecado?”


(BCW P. 14) com a simples definição: “Pecado é qualquer falta de
conformidade com a lei de Deus, ou qualquer transgressão dessa lei”. Em vez
de deleitar-se na conformidade à lei de Deus, o pecado exige que Deus e o
homem se conformem a nós. Sentimos que somos o centro da criação e que
todas as coisas devem girar ao nosso redor. Em vez de conformar-nos à lei de
Deus, tentamos ser legisladores por nós mesmos. Assim, o pecado é mais do
que atos isolados: é nossa natureza apartada de Deus. É o velho Adão em nós
que constantemente se rebela contra Deus e se aborrece de impaciência com
os caminhos divinos porque interiormente acredita que os próprios caminhos
são superiores aos caminhos de Deus.

Você e eu podemos vencer pecados. Podemos ser vitoriosos sobre um


impulso de roubar, de mentir, de matar ou de cobiçar, mas essas pequenas
vitórias não são nada se comparadas à nossa total frustração quando
enfrentamos o problema do pecado. A este nunca podemos vencer. Vencer o
pecado por nós mesmos é como tentar elevar-nos puxando os próprios
cadarços. Somente o próprio Deus pode livrar-nos do poder e da pena do
pecado. E é exatamente isso que ele faz em Jesus Cristo.

O que jamais podemos fazer, ele faz por nós. Ao dar-nos uma segunda
natureza, sua própria vida, ele nos dá um poder maior que nós mesmos a fim
de capacitar-nos para vencer a nós mesmos. Nossa confiança como cristãos é
esta: em Cristo temos uma vida que é santa, justa e vitoriosa. Nossa segunda
natureza agora é Jesus Cristo e a vida eterna. Tendo isso como nossa herança,
podemos facilmente abrir mão daquela vida dolorosamente limitada que era
nossa vida em pecado. Quanto mais vemos a Cristo e vivemos nele, mais
fácil é morrer para nós mesmos a fim de entrar de modo mais pleno naquela
vida melhor.

Infelizmente, no entanto, o pecado em nós é persistente, e suas raízes se


estendem por todo recanto de nosso ser. Conhecemos e vivemos a nova vida
em Cristo, mas nos encontramos dispostos a morrer interiormente e, assim,
compartilhar mais plenamente dessa nova vida.

Mas o fato feliz é este: nossa salvação não repousa em nossa disposição ou
no sucesso de nossa luta interior com o pecado, mas, antes, na graça de Deus.
E isso torna nossa vitória sobre o pecado algo certo. Ela nos dá a certeza em
nossa caminhada diária, pois temos a Palavra infalível de Deus e o poder
onipotente que subscreve nossa redenção e libertação do poder do pecado.
Podemos regozijar-nos com Paulo:

Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do


pecado e da morte. (Rm 8.2)

Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé. (1Jo 5.4)


26. Vocação eficaz
22 de novembro de 1954

Bom dia, amigos. Um dos problemas que nos incomodam é nossa


instabilidade. Mesmo aqueles que se imaginam como a mais constante das
pessoas têm de levar em consideração alterações persistentes de disposição e
de gosto ao longo dos anos. As músicas que dez anos atrás tinham para nós
todo o peso do sentimento e nos tocavam profundamente, hoje podem deixar-
nos indiferentes. Nossa comida favorita de ontem dificilmente nos chama a
atenção hoje. Amigos sem os quais mal poderíamos viver, encontramo-los
hoje com uma pitada de constrangimento e uma desculpa por não os ter visto
ultimamente.

A razão para tudo isso é simples: estamos constantemente mudando — em


algumas coisas, para melhor; em outras, para pior; e, na maior dos casos, nem
para melhor nem para pior, apenas mudando. Nossa vida está intimamente
relacionada à mudança. O tempo muda tudo, e decerto não somos exceção.
Mudamos física, emocional, intelectual e espiritualmente. Chamamos de
estáveis as pessoas cujas mudanças são graduais, e não repentinas, mas, como
quer que as chamemos, elas mudam.

Tudo isso suscita uma pergunta religiosa muito pertinente. Visto que estamos
constantemente em mudança, o que acontece se mudarmos nossa fé? Afinal,
se aqui como alhures estamos sujeitos à mudança, então um homem, que hoje
acredita ser uma pessoa salva, pode esquecer sua fé amanhã e estar
eternamente perdido. Hoje, podemos deleitar-nos na leitura da Escritura, na
oração e na adoração, mas amanhã podemos odiar essas coisas. Se somos
criaturas mutáveis, então nossa fé pode mudar e deixar-nos sem salvação.
Ora, há algumas pessoas que acreditam que é assim que as coisas se dão, que
pessoas hoje salvas amanhã podem perder-se para sempre porque mudaram a
fé. Acreditam que não há segurança em nossa fé e em nossa salvação
enquanto a morte não nos surpreenda no ato de fé. Assim, até que morra, o
homem nunca sabe se conseguirá ou não manter a fé e ser salvo.

Ora, este parece um ponto de vista lógico, mas as pessoas que o defendem se
esquecem de dois fatores essenciais. Primeiro, fazem da fé uma obra do
homem, pela qual este se qualifica para a salvação, quando, segundo a
Escritura, a fé é dom de Deus. Se nossa salvação depende de nosso ato de fé,
ou de qualquer coisa que fazemos, então a salvação é essencialmente obra
nossa e depende basicamente de nós. Desse modo, não é nada mais, nada
menos que nossas ações que nos salvam: é, em suma, o homem que se salva a
si mesmo. Dizer isso, no entanto, é negar todo o ensino e a fé cristãos e
invalidar o significado da Escritura.

Segundo, a fé não é uma obra ou uma ação do homem, mas dom de Deus.
Como o homem é instável, qualquer coisa que dependa dele certamente será
incerto. A salvação, portanto, nunca será segura, nesta vida ou na próxima, se
depender do homem. Nossa salvação é segura precisamente porque não
depende de nós, mas do Senhor. Nossa salvação não pode se tornar vazia,
porque nenhum ato do homem pode sobrepor-se a um ato de Deus. O homem
pode alterar o que o homem faz, mas o homem não pode agir contra Deus
nem pode anular os atos de Deus. Nossa salvação, portanto, é segura e
inalienável porque é o dom de Deus, e não nossa própria fé ou obra.

Está e a doutrina conhecida como segurança eterna ou vocação eficaz.

Vocação eficaz quer dizer que Deus nos escolhe e chama, nos justifica e
adota, nos guia à santificação e nos recebe em seu próprio ser. A mudança
que se dá com a nossa regeneração não é uma mudança humana, que em si
mesma também está sujeita à mudança: é um ato de Deus. Como disse o
Senhor:

Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de


vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de
vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os
meus juízos e os observeis. (Ez 36.26-27)

Deste modo, nossa salvação é Deus trabalhando em nós e através de nós.


Como diz Paulo: “porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o
realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13).

O Breve catecismo de Westminster resume assim:

P. 31: O que é vocação eficaz?

R.: Vocação eficaz é a obra do Espírito de Deus, pela qual,


convencendo-nos de nosso pecado e de nossa miséria, iluminando o
nosso entendimento pelo conhecimento de Cristo·e renovando a nossa
vontade, ele nos persuade e habilita a aceitar Jesus Cristo, que nos é
oferecido de graça no evangelho.

Q. 32: De que benefícios gozam nesta vida aqueles que são


eficazmente chamados?

R.: Aqueles que são eficazmente chamados gozam, nesta vida, da


justificação, da adoção e da santificação, bem como dos diversos
benefícios que acompanham essas graças ou delas procedem.
27. Santificação
31 de julho de 1956

Os relatos conhecidos das tentativas de eremitas e monges de alcançar a


santidade revelam tanto a intensidade do esforço quanto uma frustração
permanente. Bento, para vencer as tentações do mundo do qual fugia, fez
para si uma cama de espinhos e nela rolava até que seu corpo estivesse em
carne viva, mas tão logo a dor atenuasse, ainda que por pouco tempo, ele
estava novamente à mercê de sua tentação. Cirita queimou sua carne até os
ossos a fim de vencer a luxúria, mas, depois de queimar, continuou a arder
com seu pecado. Godrico passava noite após noite num rio gelado para
acalmar seu temperamento ardente, congelando a noite toda, mas ainda sem
conseguir obter a vitória. A vitória monástica era infrutífera: substituía a
força da tentação por um corpo semimorto, e a vitória pela fuga. Os monges e
eremitas buscavam sinceramente vencer a tentação, mas fracassavam, porque
a premissa básica de sua luta não era cristã, mas pagã. Confiavam na força de
vontade, na autoconfiança, para a vitória e, assim, encontravam a derrota e
somavam pecado a pecado. A Bíblia desencoraja toda forma de
autoconfiança e a declara vã: “Tens visto a um homem que é sábio a seus
próprios olhos? Maior esperança há no insensato do que nele” (Pv 26.12).
“Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia” (1Co 10.12).

Esses homens estavam tentando santificar a si mesmos pelo próprio esforço


da vontade e, portanto, falharam. Nossa regeneração, nosso novo nascimento,
é um ato de Deus. Nossa santificação, nosso crescimento em santidade e
justiça, é o ato contínuo de Deus em nós. Nossa santificação nunca está
completa nesta vida, mas é vitoriosa. Temos a segurança de Deus de que o
pecado não terá domínio sobre aquele que foi regenerado e justificado.
Os monges do deserto encontraram frustração na busca da santidade porque
esta concepção de santificação era essencialmente negativa e humanista. Era
algo que eles alcançavam ao evitar a tentação. Estava equivocados em sua
autoconfiança assim como estavam equivocados quanto aos meios. Fugiam
de toda sociedade humana para escapar do vinho, das mulheres e da música;
mas o pior encontro não era a luta com essas coisas, mas com a própria alma.
Fugiam de pecados particulares, mas levavam o princípio do pecado em seu
próprio ser. Não eram os homens, o vinho ou as mulheres que os tentavam,
mas o próprio coração pecaminoso. Não era, portanto, uma questão de evitar
as coisas, mas de ter uma nova natureza, com a vida de Cristo em seu ser.

Em parte, a santificação significa autoconhecimento, proporcionado pela obra


do Espírito Santo em nós, pela qual nossa autoconfiança se estilhaça e nossa
confiança na graça de Deus aumenta. A santificação, deste modo, significa
crescer na verdade — no conhecimento — bem como na graça; os dois
andam de mãos dadas. Mediante a santificação, Deus aplica a nós a morte e a
ressurreição de Cristo. E ele aplica a morte de Cristo à nossa vida, expõe o
nosso velho Adão e revela-nos claramente o que somos, a fim de que pareça a
nossos próprios olhos que estamos perdendo a santidade, em vez de
ganhando-a. Nossa velha natureza e nosso pecado são crucificados e
sepultados, e isso continua até a morte, quando o velho Adão em nós,
judicialmente morto desde o momento de nossa justificação, torna-se agora
plenamente morto. No entanto, Deus também aplica a ressurreição de Cristo a
nós, pela qual somos constantemente renovados segundo o homem interior,
recriados à imagem de Deus, em conhecimento, justiça, santidade e domínio,
e firmados cada vez mais em Cristo à medida que morremos
progressivamente para o pecado. Somos santificados porque fomos
justificados.
Os teólogos de Westminster, em resposta à pergunta “O que é santificação?”
(CMW P. 75), disseram o seguinte:

Santificação é uma obra da graça de Deus, pela qual os que Deus


escolheu antes da fundação do mundo para serem santos são, nesta
vida, pela poderosa operação do seu Espírito, que aplica a morte e a
ressurreição de Cristo a eles, renovados no homem interior segundo a
imagem de Deus, tendo os germes do arrependimento que conduz à
vida, e todas as outras graças salvadoras implantadas no coração deles,
e tendo essas graças de tal modo estimuladas, aumentadas e
fortalecidas, que eles progressivamente morrem para o pecado e
ressuscitam para a novidade de vida.
28. Adoção

21 de agosto de 1956

Bom dia, amigos. Uma das doutrinas mais gloriosas da Escritura é a doutrina
da adoção. É difícil compreender por que não se dedica mais atenção a um
fato tão grandioso em implicações para o homem. Ele define o
relacionamento do cristão com Deus.

O relacionamento natural de todos os homens com Deus é o das criaturas,


criadas à imagem de Deus, mas, ainda assim, essencialmente criaturas. A
Bíblia não dá nenhum fundamento real para a crença comum na paternidade
universal de Deus. Em vez disso, ela fala apenas de um Filho de Deus, o
único Filho gerado, Jesus Cristo.

A doutrina da adoção na filiação é o grande acréscimo do Novo Testamento


ao plano da salvação e a fonte constante de alegria dos apóstolos. Versos e
versos falam deste grande privilégio.

[...] nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus
Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade. (Ef 1.5)

[...] vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho,


nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a
lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. (Gl 4.4-5)

Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos


filhos de Deus. (Jo 1.12)

Nenhuma compreensão madura do significado da salvação é possível sem


esta doutrina. O Dr. Gordon C. Clark definiu bem o significado da adoção
com uma ilustração simples. Se o governador de um estado perdoa um
criminoso culpado de crimes muito sérios, seu ato de perdão de maneira
alguma dá ao criminoso uma carta branca para todas as atividades
subsequentes. O homem, afinal, ainda é capaz de atividades criminosas
futuras e ainda está sujeito a sentenças e julgamentos futuros. Tampouco ele
dá um passo além e recebe o criminoso em sua família como um filho
adotado.

Mas é exatamente isso que Deus faz. A salvação começa com o fato grande e
glorioso do perdão dos pecados. Mas este perdão, nossa justificação, pela
qual a perfeita obediência de Cristo e a plena satisfação é imputada a nós e
recebida pela fé, é um ato judicial e não muda nossa natureza, senão pelo fato
de que a justificação de Deus inclui a fé justificadora, o fruto da regeneração.
Recebemos uma nova natureza, nascemos de novo, e isso quer dizer que
nosso perdão é acompanhado por uma natureza transformada a fim de que
agora vejamos a face de Deus em vez de fugir dele. Vê-se então esta nova
natureza desenvolver sua vocação submetida a Deus, e isso é santificação.

Mas, além disso, Deus nos recebe em sua família como filhos adotivos, um
privilégio que nunca pode ser revertido ou anulado, que faz de nós herdeiros
de toda a criação de Deus, cuidado providencial e glória futura, e nos dá a
glória de ser participantes da natureza divina. A adoção nos dá um novo
nome, o nome de Deus, a fim de que nosso coração clame a ele, pelo Espírito,
dizendo: “Aba, Pai”. A adoção nos dá a proteção e o cuidado de filhos de um
pai onipotente e perfeito. A adoção nos dá, ademais, o privilégio da disciplina
e do castigo de um pai amoroso e sábio. Para alguns, isso pode parecer um
privilégio estranho, mas na verdade constitui um dos privilégios centrais da
filiação. À parte dele, sofremos em vão e cruelmente sob as pancadas de
homens e acontecimentos. Com ele, temos a confiança de que todo o nosso
sofrimento trabalha para nosso bem e para nossa glória nele. A adoção,
portanto, é a plenitude de nossa salvação, a manifestação plena da liberdade
gloriosa de nossa salvação. Em suma, nas palavras dos teólogos de
Westminster (CMW R. 74):

Adoção é um ato da livre graça de Deus, em seu único Filho Jesus


Cristo e por amor dele, pelo qual todos os que são justificados são
recebidos no número dos filhos de Deus, trazem o seu nome, recebem o
Espírito do Filho, estão sob o seu cuidado e suas dispensações
paternais, são admitidos a todas as liberdades e todos os privilégios dos
filhos de Deus, e feitos herdeiros de todas as promessas e co-herdeiros
com Cristo em glória.
29. Marcas
7 de julho de 1953

“Os que confiam no Senhor são como o monte Sião, que não se abala, firme
para sempre. Como em redor de Jerusalém estão os montes, assim o Senhor,
em derredor do seu povo, desde agora e para sempre” (Sl 125.1-2).

De volta ao país montanhoso de onde venho, as últimas semanas foram bem


cheias. No início da primavera, o rebanho se mostra no campo assim que a
neve desaparece. Então, à medida que o verão se aproxima, e os bezerros de
pernas bambas ganham peso e ficam robustos e brincalhões, chega o tempo
da caça. De volta àquele país indiano, todos fizeram a mala e se mudaram
para as montanhas, e uma pequena aldeia de tendas brotou em algum lugar
nas montanhas, perto de uma nascente. Os meninos estavam no paraíso,
montando a cavalo até os rios Fawn, Sheep ou Summit, para alguma pescaria
de trutas, ou indo atrás de cervos ou galos silvestres nos despenhadeiros do
entorno. Perto de cada tenda havia uma fogueira na qual se assavam carne e
pão, e muitas vezes vinham convites calorosos de uma velha indiana: “Espere
um pouco e coma conosco”. Era época de caça.

Perto do curral, os vaqueiros tinham um fogo de artemísia aquecendo ferros


de marcar. Outros estavam preparando para a injeção e, conforme os bezerros
eram trazidos um a um, eram marcados na orelha, amarrados e ferrados para
sempre. Quando terminavam, e o bezerro corria balindo para sua vaca, levava
as marcas permanentes da propriedade. Um vaqueiro treinado podia agora
reconhecê-lo em qualquer lugar e, com um relance em sua orelha, pescoço ou
lombo, identificá-lo com facilidade. Agora estava marcado por toda a vida.

Segundo a Bíblia, nós, todos nós, portamos isso que nos marca clara e
facilmente a todos. Podemos olhar ao nosso redor e reconhecer a vida e o
caráter de outros homens e mulheres prontamente: vemos o fingimento e a
hipocrisia: vemo-los enganarem-se a si mesmos sobre como são
maravilhosos, e temos pena de sua cegueira. A marca é demasiado clara para
que a negligenciemos. A pergunta, então, é esta: que marca portamos?

A velha canção de vaqueiro retrata todos nós seguindo para a última caçada.
No fim da trilha, o grande chefe separa as vacas que têm a sua marca e as
desgarradas. É uma boa imagem, embora seja humilhante.

Odiamos pensar em nós mesmos como marcados. A todos os demais,


identificamos e classificamos. Marcamo-los como seguros para o comércio,
ou como defeituosos, como um bom amigo ou uma maledicência ou fofoca
com segundas intenções. Na autodefesa e com base no senso comum, temos
de discernir entre duas pessoas. Podemos confiar nelas inteiramente ou ser
ressabiados em tudo. Mas odiamos pensar em nós como classificados ou
marcados por homens e mulheres; e tendemos a rebelar-nos contra a ideia de
que Deus faz o mesmo. Mas a ideia do cristianismo é que ele faz.

Uma das coisas que costumavam surpreender-me era o modo como os


vaqueiros conseguiam reconhecer seu rebanho. Muitas vezes, via um
vaqueiro reconhecer uma vaca velha, em nada diferente a meus olhos de
qualquer outra Hereford de cara branca em centenas ou talvez milhares, e
dizer: “Aquela ali é minha: ela está seca agora. Tive-a de uma das vacas secas
que comprei”. Ou ele diria de um bezerro desgarrado e sem marca que ele
não via desde pouco depois de seu nascimento: “Aquele bezerro é meu,
nascido dessa ou daquela novilha”. Eu costumava perguntar: como você
sabe? Todas se parecem iguais para mim! Ele diria: “Eu conheço as que me
pertencem”.

Essa é uma resposta especialmente impressionante, porque a Bíblia nos diz


que Cristo diz o mesmo a nosso respeito: “Conheço as minhas ovelhas e
chamo-as pelo nome” (veja João 10.14). De outras, diz ele: “Apartem-se de
mim. Não os conheço. Vocês são estranhos a meu aprisco” (veja Mt 7.23).

Será que ele conhece bem a você e a mim? Será que ele nos chama pelo
nome?

Paulo, outrora um fariseu hipócrita que sentia que pertencia a Deus porque
guardava a lei, ia para a igreja, e sempre era zeloso pela causa, só depois
percebeu sua hipocrisia e depositou sua fé em Cristo em vez de em si mesmo,
a ponto de poder dizer honestamente: “Porque eu trago no corpo as marcas de
Jesus” (veja Gl 6.17).

A Bíblia está cheia de conversa sobre marca, às vezes traduzida como selo ou
sinal. Ela fala da marca de Caim, o assassino e errante, que fazia de sua
vontade sua lei. Ezequiel fala da marca do hipócrita, que finge ser santo e
secretamente suspira pelo pecado. E João fala da marca da besta, a marca dos
homens que se entregam pronta e facilmente a tudo neste mundo exceto a
Cristo. Sua mente e sua vida são avenidas abertas a todo tipo de trânsito,
exceto o tipo certo. Eles têm tempo para tudo, exceto o Senhor. Eles podem
dar tempo a trivialidades ao longo do ano, mas nada tão importante quanto
Deus pode levar um minuto. Estão sempre com pressa e sem nunca conseguir
fazer nada que importa, prontos para crer em qualquer coisa, exceto o que
conta. Este é o tipo de vida que marca todos nós até que a caçada de verão
nos tire do rebanho e coloque a marca de Cristo em nós. Então, pertencemos
a algo mais e nossa vida tem um propósito e leva a marca da propriedade de
Deus.

Olhemos para nossa vida e vejamos que marca é essa que está em nós.
30. O que é a fé?
10 de agosto de 1954

Bom dia, amigos. Em semanas recentes, estivemos discutindo certas


doutrinas que muitas pessoas considerariam remotas e abstratas. Uma opinião
comum diz que podemos acreditar no que quisermos, desde que tenhamos a
disposição adequada. Em outras palavras, sua religião não é importante; suas
atitudes são. Você pode ser budista ou maometano, modernista ou cristão
ortodoxo, e isso não faz diferença alguma desde que seu coração seja justo,
isto é, desde que você tenha a disposição adequada, desde que tenha fé.

Essa opinião, infelizmente, é muito popular. Ela envolve uma falência


religiosa completa e uma concepção incrivelmente absurda de fé. Afinal, o
que é fé? Em si mesma, a fé não é nada e não tem valor algum. A menos que
haja conhecimento, compreensão e apropriação da verdade por trás dela, a fé
de uma pessoa pode ser uma tolice e um estorvo.

Coloquemos o problema numa base mais simples e prática. Se creio que


tenho um milhão de dólares no banco, minha fé será uma tolice, a menos que
de fato eu tenha esse dinheiro. Toda ação baseada numa fé falsa envolve não
só tolice, mas perigo. Para mim, preencher de boa fé o cheque de uma conta
bancária inexistente é um convite a problemas sérios, não importa o quanto
minha fé seja firme. Conheço um homem bondoso, agora internado num
hospício, que acredita sinceramente que é um fazendeiro muito rico com
vastas propriedades em dois estados e muitos milhões em vários bancos. Ele
está suficientemente convicto em sua fé para convencer as pessoas disso
sempre que é liberado, com o resultado de que cheques sem fundos são
escritos, os quais voltam e redundam em seu novo confinamento. Sua fé não
torna os cheques bons, e comparar este homem e sua fé a um homem que
pode escrever cheques bons é tolice. De maneira semelhante, não podemos
equiparar um homem com fé numa falsa religião a um homem que tem a fé
verdadeira. Ter a fé como tal, ou uma disposição adequada, ou sinceridade,
não basta.

Uma fé válida deve, portanto, fundar-se em conhecimento, e o conhecimento


deve sustentar as conclusões da fé. Ter fé em Deus significa não só acreditar
que ele existe, mas conhecê-lo em sua revelação. A fé não é nada em si
mesma; homem algum jamais foi salvo graças a sua fé, mas somente pela fé,
ou por meio de sua fé. Como expressou Machen: “A fé é meramente o meio
que o Espírito Santo usa para aplicar à alma individual os benefícios da morte
de Cristo”.

Assim, a fé não é alguma qualidade da alma, uma disposição adequada ou


uma boa atitude. A fé, segundo a Bíblia, é “a substância das coisas que se
esperam” (Hb 11.1). A fé, portanto, é a apreensão real e a posse parcial agora
de coisas que, em última análise, estão além de nós. Isso quer dizer que ter fé
em Jesus Cristo é ter fé numa pessoa que está além de nós e é invisível a nós.
Ele é nossa esperança para o futuro e por toda a eternidade e, no entanto, não
o vimos ou tocamos nele. A fé verdadeira, contudo, é a substância dessas
coisas também, e significa não só conhecê-lo no futuro, mas tê-lo hoje em
nossa vida. Se temos Cristo em nossa vida em verdade e poder, não temos
sua plenitude, mas de fato temos sua substância. Ter fé em Cristo também
quer dizer ter a Cristo. Crer num céu que virá a nós também significa ter a
substância desse céu, embora não tenhamos sua plenitude hoje. Se cremos
que Deus concede paz e amor a seu povo porque ele é a nossa paz, e é amor,
então manifestamos a substância dessa paz e desse amor em nossa vida
cotidiana. Se nossa fé está num mundo ímpio ou num mundo que saiu do
controle do Todo-Poderoso, então manifestamos a substância dessa fé em
incerteza, instabilidade e preocupação.

Assim, vemos que, em primeiro lugar, a fé pressupõe conhecimento; em


segundo lugar, que é a substância das coisas que se esperam, a prova das
coisas que não se veem; e, por fim, temos de ver que a fé não “está fazendo”
coisa alguma, mas, em vez disso, recebendo algo. A fé, em si mesma a obra
de Deus em nós, quer dizer que recebemos o Senhor e sua salvação como
dádiva. A fé não é um ato de nossa parte, mas nossa recepção do ato de Deus
em Jesus Cristo.

No Breve catecismo e no Catecismo maior de Westminster, lê-se o seguinte:

P. 30: Como o Espírito aplica a nós a redenção adquirida por Cristo?

R.: O Espírito aplica a nós a redenção adquirida por Cristo operando


em nós a fé, e unindo-nos a Cristo por meio dela em nossa vocação
eficaz.

P. 72: O que é fé justificadora?

R.: A fé justificadora é uma graça salvadora, operada no coração do


pecador pelo Espírito e pela Palavra de Deus, pela qual, sendo ele
convencido do seu pecado, da sua miséria e da sua incapacidade, e das
demais criaturas, para o restaurar desse estado, ele não somente aceita a
verdade da promessa do evangelho, mas recebe Cristo e confia nele e
na sua justiça, que lhes são oferecidos no evangelho para o perdão dos
pecados, e para que a sua pessoa seja aceita e considerada justa diante
de Deus para a salvação.

P. 73: Como a fé salvadora justifica o pecador diante de Deus?

R.: A fé justifica um pecador diante de Deus, não por causa das outras
graças que sempre a acompanham, nem por causa das boas obras que
são os frutos dela, nem como se fosse a graça da fé, ou qualquer ato
dela, que lhe é imputado para a justificação, mas unicamente porque a
fé é o instrumento pelo qual o pecador recebe e aplica a si Cristo e a
justiça.
31. Fé salvadora
28 de agosto de 1956

Bom dia, amigos. A fé religiosa frequentemente é recomendada em revistas


populares como uma panaceia para os males da sociedade, e supõe-se que os
problemas e fardos do homem desapareceriam se tão somente crêssemos.
Mas crêssemos em quê? Aqui os escritores geralmente são vagos. Insistem
que a fé é a resposta, mas não especificam fé em quê. Com muita frequência,
as pessoas insistem em dizer que as diferentes igrejas e até religiões deveriam
trabalhar juntas sem tergiversar acerca de pontos de doutrina e artigos de fé.
A falácia de tal pensamento pode ser ilustrada com referência a uma liga de
futebol. Seria possível que oito equipes constituíssem uma liga se uma
insistisse em jogos com seis jogadores, outra com onze, uma banisse todas as
partidas, outra insistisse no direito de mudar as regras à vontade, enquanto
outra ainda declarasse que suas próprias regras lhes permitiam fazer o que
quisessem, desde que fossem sinceros? O resultado, claro, seria o fim do
futebol. Um conjunto de regras uniformes e comuns deve prevalecer antes
que os times possam se enfrentar, ou um único time poderá estar preparado.

De semelhante modo, a fé é sem sentido a menos que seja específica e


verdadeira; para o cristão, a fé salvadora é a verdadeira fé cristã e nenhuma
outra. Nas palavras da Confissão de fé de Westminster: “Por esta fé, um
cristão crê ser verdade tudo quanto é revelado na Palavra, pela autoridade do
próprio Deus que fala nela” (CFW 14.2). Assim, a fé nas fadas ou em falsos
deuses nunca é a fé verdadeira ou salvadora. A única fé válida é aquela que se
relaciona de modo preciso e específico com a realidade.

Portanto, a Bíblia é o meio da fé. Nas palavras de Paulo, “A fé vem pelo


ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Rm 10.17). A Bíblia nunca é o objeto
de fé, mas, em vez disso, o meio da fé. Cristo, e por Cristo o Deus triúno, é o
objeto da fé.

A fé não é simplesmente um ato da vontade, nem um ato da razão, um


assentimento ao verdadeiro ensino, mas um ato da pessoa inteira pelo qual se
rende e se submete a Cristo para a salvação. É a obra do Espírito Santo, por
meio da Palavra, fortalecida em nós pela Palavra, pelos sacramentos, pela
oração e pela caminhada cristã. A Confissão de fé de Westminster declara que
“os principais atos da fé salvadora são: aceitar e receber a Cristo e firmar-se
só nele para a justificação, santificação e vida eterna, pela virtude do pacto da
graça”.

A fé nos leva à união pessoal com Cristo, de modo que Cristo agora vive em
nós, e nós em Cristo. Diz Lutero:

A fé deve ser ensinada de modo puro: isto é, que tu e ele vos tornais
como uma só pessoa: de modo que podes dizer com ousadia “Sou um
com Cristo, o que significa que a justiça, a vitória e a vida de Cristo são
minhas”. E, de novo, Cristo pode dizer: “Eu sou um com aquele
pecador: ou seja, os pecados dele e a morte dele são minhas, porque ele
está unido a mim e eu a ele”. Pela fé, estamos tão unidos que nos
tornamos uma só carne, somos membros do corpo de Cristo, carne de
sua carne e osso de seus ossos: de modo que esta fé me une a Cristo de
modo mais próximo que o marido se une a sua mulher.

Essas lindas palavras enfatizam um aspecto importante da fé. Muitas vezes,


os homens se sentem sozinhos em sua fé, postos em circunstâncias difíceis
sob uma obrigação de viver pacificamente que limita sua resistência enquanto
aumenta seu fardo. Estar em Cristo não raro quer dizer estar à prova. Mas
isso não é tudo. Cristo está envolvido em toda a nossa vida: nunca estamos
sozinhos. Nosso fardo é o fardo dele; nosso problema é problema dele; e
nossa libertação é a libertação dele. “Portanto, não temeremos ainda que a
terra se transtorne e os montes se abalem no seio dos mares. [...] O Senhor
dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio” (Sl 46.2, 11).

Mais do que isso, porque Cristo está conosco, a fé salvadora sempre tem
como sua dimensão magnificente a esperança, “aceitando as promessas de
Deus para esta vida e para a futura” (CFW 14.2). Sabemos que “a tribulação
produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência,
esperança. Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é
derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado”
(Rm 5.3-5). “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8.31). A vida
de fé é uma vida de esperança, uma vida de promessa e uma vida de
realização, porque é uma vida vivida em Cristo e na glória de seu poder
salvador.
32. Do arrependimento para a vida
3 de setembro de 1956

Bom dia, amigos. Uma palavra bíblica muito mal compreendida é


arrependimento. Para muita gente, arrependimento quer dizer lamentar os
pecados. Contudo, pesar não é arrependimento. Muitas pessoas lamentam
seus pecados porque as consequências lhes causaram problemas, não porque
odeiem o pecado em si mesmo. O verdadeiro arrependimento significa, em
primeiro lugar, odiar o pecado; em segundo lugar, envolve uma mudança de
direção, uma meia-volta do pecado e um caminhar em direção a Deus,
confiando nele; e, terceiro, obediência ativa ao Senhor. Arrependimento e
conversão são as mesmas palavras, derivadas das mesmas declarações
bíblicas, mas conversão, em nossos dias, perdeu o significado original, que é
dar meia volta, mudar de direção, e passou, em vez disso, a equivaler a nascer
de novo.

Quando Deus, por sua graça salvadora, regenera um homem, essa vida nova
revela-se imediatamente em arrependimento. Arrependimento, portanto, é o
fruto de uma vida transformada, o resultado da regeneração.

Gordon H. Clark fala do arrependimento como um processo vitalício, um


aspecto do arrependimento que raramente levamos em conta, mas que,
todavia, é central. Muitas vezes, a ênfase no arrependimento é relegada ao
pecador recém-chegado a Cristo. Decerto, tal arrependimento é da máxima
importância. O pecador precisa ser informado de que o pecado está sob a
condenação de Deus, mas que nenhum pecado é tão grande que possa trazer
condenação ao que verdadeiramente se arrepende. Somos instados a
confessar diante de Deus, não dos homens, e de modo privado, não público.
A confissão deve ser específica, mas não precisa ser detalhada ou exaustiva.
Não é a confissão total ou exaustiva que assegura o perdão dos pecados, mas
a graça de Deus, que estende o perdão ao humilde e contrito de coração. Se
ofendemos os outros, precisamos buscar o perdão deles também, com uma
simples confissão de nossa ofensa; no entanto, mais uma vez, não é o ato de
confissão ou de seus detalhes que são valiosos, mas o coração arrependido.

Entretanto, o arrependimento não termina em nossa salvação. É um resultado


contínuo dela. Porque nossa santificação não é completa, e porque
diariamente falhamos em nossa obediência, precisamos orar diariamente em
busca de perdão. O arrependimento é um processo para a vida toda, e seu
resultado é o crescimento contínuo em graça e santidade.

Outro resultado do arrependimento é a bem-aventurança ou felicidade. Diz-


nos o salmista:

Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é


coberto. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não atribui
iniquidade e em cujo espírito não há dolo. Confessei-te o meu pecado e
a minha iniquidade não mais ocultei. Disse: confessarei ao Senhor as
minhas transgressões; e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado.
Muito sofrimento terá de curtir o ímpio, mas o que confia no Senhor, a
misericórdia o assistirá. Alegrai-vos no Senhor e regozijai-vos, ó justos;
exultai, vós todos que sois retos de coração. (Sl 32.1-2, 5, 10-11)

Felicidade é o resultado do arrependimento, porque o homem arrependido


caminha em confiança não só do perdão, mas na alegria crescente da vitória.
Pecados e tentações passados tornam-se os meios da graça presente rumo à
vitória futura. Segundo John Bunyan: “As tentações, quando as encontramos
pela primeira vez, são como o leão que ruge diante de Sansão; mas, se as
vencemos, na próxima vez em que as virmos, encontraremos um favo de mel
dentro delas”. O arrependimento para a vida, portanto, torna-se, para nós, não
só uma graça salvadora, mas uma graça sustentadora. Ele se volta para o
Senhor na confiança de seu amor e cuidado e de sua graça até a vitória em
nossa vida. Pode-se dizer, nas palavras de um cristão indiano:

Se há algum valor em mim


Este vem de ti somente
Guarda-me, ó Deus, e assim
guardas o que a ti pertence.
(Narayan Vaman Tilak, 1861-1919)
33. O significado da pureza
10 de janeiro de 1956

Bom dia, amigos. Visto que a pureza é uma exigência cristã, é importante,
para nós, entender o significado da palavra pureza conforme usada na Bíblia,
particularmente em sua língua básica, o hebraico. A palavra inglesa puro
chegou a nós via o latim purus, que quer dizer limpo, e nossa concepção
básica de pureza é matizada por essa derivação latina. Assim, quando lemos a
palavra puro na Bíblia, naturalmente tendemos a pensar à luz de seu
significado latino e inglês em vez de em sua significância bíblica. Para nós,
portanto, puro quer dizer limpo, intocado, imaculado, virginal. Para nós, é
algo enquanto ainda não estragado pela sujeira e imundícia do mundo,
intocado pelo pecado e pela tentação, e serenamente virginal em sua
existência.

Este é o significado inglês, e embora haja traços do significado de limpo em


algumas palavras usadas para pureza em hebraico, de modo geral não é seu
significado normal. Diversas palavras usadas na Bíblia são comumente
traduzidas em inglês como puro. Essas palavras significam claro, escolhido,
liberdade, batido, livre, absolvido, refinado, provado e separado.

Assim, quando o salmo 19.8 diz que todo “preceito do Senhor é puro”, isso
quer dizer que todo mandamento é claro — mais do que isso, esclarecedor,
como o sol (Ct 6.10).

O salmo 12.6 aponta claramente para o significado de puro quando declara:


“As palavras do Senhor são palavras puras, prata refinada em cadinho de
barro, depurada sete vezes”. Assim, a pureza envolve a depuração da escória
e o refinamento pelo fogo, uma separação do ser e da falsidade.
Quando Daniel 7.9 fala do Ancião de Dias cujo cabelo é como “pura lã”, ele
nos diz que seu cabelo é branco ou grisalho, ou seja, envelhecido. Mas a
palavra usada para puro, aqui, significa livre, inocente, absolvido, ideias que,
em vez de estarem associadas com a infância imaculada, como em inglês,
aqui estão associadas a idade e experiência imensas.

Mais uma vez, quando 1 Reis 5.11 fala de “vinte coros de azeite [puro]”, isso
significava vinte coros de azeite batido (em vez de esmagado), sendo o azeite
extraído pela batida.

Essas poucas ilustrações são suficientes para indicar a diferença radical entre
nossa concepção inglesa comum de pureza e a doutrina bíblica da pureza. A
palavra inglesa tende a supor que pureza é uma condição inerente a certas
coisas desde o princípio; nosso pressuposto comum relaciona a palavra puro
a palavras como virginal e imaculado. Para nós, a pureza pode ser retratada
como um cordeirinho recém-nascido ou um bebezinho rosado.

O conceito bíblico de pureza supõe, em vez disso, uma impureza original, e a


pureza vem como resultado de um processo de refinamento, seleção,
separação, limpeza, batida, depuração e libertação. Para ser pura em sentido
bíblico, uma pessoa muito provavelmente será idosa e experiente, provada no
fogo da aflição, queimada e depurada pela tentação enfrentada e por fim
vencida, batida pelas experiências até que a escória em nosso ser seja purgada
de nós, e separada de nosso ego e falsidade para uso do Senhor. Assim,
pureza não é algo que perdemos à medida que crescemos, mas algo que nos
esforçamos por obter, pela graça de Deus, ao longo das experiências difíceis
da vida e por meio das experiências da vida. Assim, em vez de ser um fato
passado, a pureza, para o cristão, é uma luta e uma depuração presentes e
uma vitória futura.

O Senhor nos escolheu, ou seja, nos purificou, na fornalha da experiência


recebida da mão do Senhor e em seu Espírito. Como disse Isaías, a palavra do
Senhor é clara a respeito de seu povo: “Eis que te acrisolei, mas disso não
resultou prata; provei-te na fornalha da aflição” (Is 48.10).
34. O processo educacional de Deus
24 de janeiro de 1956

Bom dia, amigos. Uma de nossas ilusões persistentes é a esperança de que


nossa educação pode ser um processo fácil. Porque as salas de aula hoje
muitas vezes são lindamente convidativas, os livros didáticos atraentes,
presumimos que a educação pode ser reduzida a um processo inofensivo.
Nunca funciona assim. Educação envolve, no sentido mais verdadeiro, uma
remodelação de nossa vida, e remodelar o corpo e a alma é um processo
doloroso. Deste modo, enquanto o homem tenta tornar a educação inofensiva
e ineficaz, Deus lida conosco de maneira franca e com toda a honestidade
rigorosa que a educação requer.

Deus sabe, decerto, que somos preguiçosos e que muito de nossa atividade é
preguiçosa, cujo propósito é fugir das exigências mais básicas da vida.
Entregues à própria sorte, somos inclinados a tomar a Deus e sua Palavra de
modo casual e confortável. De imediato minimizamos a força de todas as
suas exigências e insistimos que a vontade de Deus para nós deve ser um
chamado brando e uma escala de preferência.

A resposta de Deus a isso é destruir nossa complacência. Ademais, ele


permite que Satanás nos peneire como trigo (Lc 22.31). O peneiramento do
trigo é um processo árduo; o peneiramento dos homens é muito mais
rigoroso. Envolve um chacoalhão de nosso ser mais íntimo, a abertura da
vida pelo medo e pavor e um total desamparo à medida que sentem o poder
de Satanás ao redor deles. Mas nunca podemos verdadeiramente conhecer e
temer a Deus até que também tenhamos conhecido e temido Satanás. Até a
enormidade e poder do mal e do pecado se tornar vívida e real para nós, não
estamos prontos para castigar nossa autossuficiência e lançar-nos nas mãos
de Deus.

Nosso Senhor disse a Pedro, que se gloriava de sua força, que Satanás o
peneiraria; então, depois de peneirar, a força viria, e Pedro teria esta
responsabilidade: “fortalece teus irmãos” (Lc 22.32). Pedro, mais tarde, fez
isso, e suas cartas serviram para fortalecer a Igreja Primitiva ao prepará-la
para a realidade de tentações e provações, para a realidade do processo
educacional de Deus.

“O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre” (CFW


R.1). Este é nosso objetivo educacional, e antes que possa ser alcançado,
nossa autoglorificação é destruída, e todas as nossa tentativas de gozar de
outras coisas em detrimento do Senhor se tornam frustração e pesar. A mão
do Senhor deve ser vista em toda a nossa vida, e seu poder impressionante há
de ser percebido, a fim de que possamos viver na urgência não de nossas
necessidades, mas de sua vontade. Como disse Paulo: “E assim, conhecendo
o temor do Senhor, persuadimos os homens” (2Co 5.11).

Todas essas coisas estamos prontos para entender ao lidar com nossos filhos,
mas somos relutantes em entender como Deus lida conosco. Não
reconhecemos que somos apenas crianças crescidas, e os piores bebês são
adultos. Muitas vezes nos queixamos de bebês que se recusam a ser homens
enquanto insistimos que Deus nos trate como anjos. Antes que fôssemos
desmamados e pudéssemos andar, pedimos asas e, ao nada obter, começamos
a duvidar da sabedoria de Deus. Quanto mais prontamente recebemos a
educação, mais prontamente supomos a responsabilidade e o privilégio que
vêm com ela.

Moffatt traduz Hebreus 12.11 assim: “A disciplina sempre parece por um


tempo algo doloroso, não alegre; mas aqueles que são treinados por ela
colhem o fruto disso mais tarde na paz de uma vida reta”.
Se deixamos de receber o processo educacional de Deus com paz, paciência e
consagração, então a “raiz de amargura” cresce em nós até contaminar tudo
em nós e ao nosso redor. Recebemo-la, portanto, à medida que Deus a dá,
como graça e amor, e tendo-a recebido assim, recebemos também os
resultados desse dom: força, alegria e vitória em Jesus Cristo e por meio dele.
35. “Não se turbe o vosso coração”
14 de dezembro de 1954

Bom dia, amigos. Há alguns capítulos da Escritura que abrem caminho ao


coração de um número incontável de pessoas de um modo especialmente
íntimo. Uma dessas passagens é nossa leitura de hoje, João 14. Ouçamos o
que nosso Senhor tem a dizer neste capítulo:

Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim.


Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo
teria dito. Pois vou preparar-vos lugar. E, quando eu for e vos preparar
lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde eu
estou, estejais vós também. E vós sabeis o caminho para onde eu vou.
Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais; como saber o
caminho? Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a
vida; ninguém vem ao Pai senão por mim. Se vós me tivésseis
conhecido, conheceríeis também a meu Pai. Desde agora o conheceis e
o tendes visto. Replicou-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos
basta. Disse-lhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me
tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-
nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As
palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que
permanece em mim, faz as suas obras. Crede-me que estou no Pai, e o
Pai, em mim; crede ao menos por causa das mesmas obras. Em
verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim fará também
as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do
Pai. E tudo quanto pedirdes em meu nome, isso farei, a fim de que o
Pai seja glorificado no Filho. Se me pedirdes alguma coisa em meu
nome, eu o farei. Se me amais, guardareis os meus mandamentos. E eu
rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja para
sempre convosco, o Espírito da verdade, que o mundo não pode
receber, porque não o vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele
habita convosco e estará em vós. Não vos deixarei órfãos, voltarei para
vós outros. Ainda por um pouco, e o mundo não me verá mais; vós,
porém, me vereis; porque eu vivo, vós também vivereis. Naquele dia,
vós conhecereis que eu estou em meu Pai, e vós, em mim, e eu, em vós.
Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me
ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o
amarei e me manifestarei a ele. Disse-lhe Judas, não o Iscariotes:
Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao
mundo? Respondeu Jesus: Se alguém me ama, guardará a minha
palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada.
Quem não me ama não guarda as minhas palavras; e a palavra que
estais ouvindo não é minha, mas do Pai, que me enviou. Isto vos tenho
dito, estando ainda convosco; mas o Consolador, o Espírito Santo, a
quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e
vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito. Deixo-vos a paz, a
minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá o mundo. Não se turbe o
vosso coração, nem se atemorize. Ouvistes que eu vos disse: vou e
volto para junto de vós. Se me amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá
para o Pai, pois o Pai é maior do que eu. Disse-vos agora, antes que
aconteça, para que, quando acontecer, vós creiais. Já não falarei muito
convosco, porque aí vem o príncipe do mundo; e ele nada tem em mim;
contudo, assim procedo para que o mundo saiba que eu amo o Pai e que
faço como o Pai me ordenou. Levantai-vos, vamo-nos daqui. (Jo 14.1-
31)
A substância deste capítulo é a resposta do Senhor a quatro perguntas de seus
discípulos. Ele havia anunciado que os estava deixando, e estes ficaram
muitíssimo perturbados. Simão Pedro perguntou: “Senhor, para onde vais?” e
a resposta que recebeu foi que ele não o poderia seguir ainda. O Senhor
estava indo abrir caminho para as muitas moradas do Pai e dar-lhes a
plenitude de seu reino, a vida eterna.

Tomé fez a segunda pergunta: “Como podemos saber o caminho?”.


Respondeu-lhe Jesus: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem
ao Pai senão por mim”. A única forma de aproximar-se de Deus Pai é por
intermédio de Jesus Cristo. O único caminho para Deus é conhecer Jesus
Cristo. A verdade, declarou Jesus, não é algo abstrato, não uma série de fatos
aleatórios nem dados experimentais. A verdade é uma pessoa, e essa pessoa é
Jesus Cristo.

A terceira pergunta veio de Filipe, que pediu: “Mostra-nos o Pai”. A resposta


de Jesus foi uma reprimenda: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não
me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai”. Em outras palavras, Jesus
declarou que era Deus encarnado. Vê-lo era ver a Deus. Jesus é Deus em
carne, e sua própria insistência era que esta identificação com Deus era plena
e completa.

A quarta pergunta veio de Judas, não o Iscariores, que queria saber como
Jesus planejava continuar com eles, mas não com o mundo. Jesus declarou
união com seu povo como um corpo e a identificação deles neste ato de
graça. Jesus sempre estará presente com seu povo porque, segundo a
promessa, ele se tornou um com eles. Consequentemente, estamos perto de
Deus porque somos membros de seu corpo.

Nosso Senhor, portanto, declarou: “Não se turbe o vosso coração”, porque,


como membros dele, somos membros daquela vitória grandiosa e definitiva.
O príncipe deste mundo veio e não tem direito sobre nós, por causa de nossa
membresia em Cristo. A verdadeira vitória não é contra Roma, ou contra
algum inimigo humano, mas contra o velho Adão em nós, contra o pecado e a
morte. E essa a vitória Jesus Cristo obteve por nós. As pequenas coisas que
nos perturbam e incomodam estão aqui hoje e amanhã já se foram. Nenhuma
delas tem importância perante a eternidade. A verdadeira paz decorre da
vitória sobre nós mesmos, e esta vitória só é nossa em Jesus Cristo. Quando
Jesus Cristo disse aos discípulos “Não se turbe o vosso coração”, ele
imediatamente lhes disse como encontrar a paz. O que ele disse foi o
seguinte: “Credes em Deus, crede também em mim”. Quando cremos nele
segundo a Palavra, ele nos dá sua vitória, seu consolo e sua paz.

Ele nos diz: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá
o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize” (v. 27).
36. “Que poderá fazer o justo?”
26 de outubro de 1954

Bom dia, amigos. Um salmo muito importante para esta época turbulenta é o
salmo 11. Foi escrito por Davi sob circunstâncias muito difíceis e tentadoras.
Embora muitos não o percebessem, a nação havia passado às mãos de
homens maus e inescrupulosos. O Rei Saul e seus assistentes estavam
claramente comprometidos com o mal, embora a nação continuasse como
antes, sem saber da extensão da mudança no governo. A popularidade de
Davi minguara, e sua grande vitória fora esquecida. Como resultado, muitos
consideravam sem esperança a causa de Davi, e davam-lhe um conselho
prático: fuja para os montes e salve a própria pele. Esses homens estão
mirando em você, e miram para destruí-lo. “Ora, destruídos os fundamentos,
que poderá fazer o justo?” (v. 3).

Há muita gente que pronuncia o mesmo brado em nossos dias. Muitos


fizeram essa pergunta, por exemplo, durante as audições de Kefauver alguns
anos atrás. Essas audiências, e outras também, revelaram uma rede oculta e
despercebida de crime organizado em toda a nação, um governo mau por trás
de muitos governos locais. Ao nosso redor, vemos, também, indiferença às
coisas do Senhor, à Escritura e aos Dez Mandamentos. Vemos a nação em
busca da segurança, mas indiferente à verdade, mais preocupada com a
prosperidade que com a justiça. E, o pior de tudo, vemos que esses homens
não veem as condições que a cada dia ficam mais óbvias. Assim, podemos
compreender o sentimento dos amigos de Davi — bons, mas pessimistas —
que diziam: “Ora, destruídos os fundamentos, que poderá fazer o justo?”.
Para eles, a solução estava clara: fugir para os montes, salvar a própria pele e
esquecer de tudo.
A resposta de Davi a este conselho foi resoluta: “No Senhor me refugio.
Como dizeis, pois, à minha alma: Foge, como pássaro, para o teu monte?” (v.
1). Davi foi forçado por algum tempo a fugir para o monte, não para escapar
da luta por justiça, mas somente para continuá-la. Esta era sua confiança:

O Senhor está no seu santo templo; nos céus tem o Senhor seu trono; os
seus olhos estão atentos, as suas pálpebras sondam os filhos dos
homens. O Senhor põe à prova ao justo e ao ímpio; mas, ao que ama a
violência, a sua alma o abomina. (Sl 11.4-5)

Assim, Davi deu uma resposta dupla àqueles que diziam “Que poderá fazer o
justo?”. O justo, declarou ele, pode pôr sua confiança no Senhor. Isso quer
dizer que pode ter confiança na justiça segura e infalível de Deus. Os
tribunais deste mundo sempre são falhos e todos demasiado corruptos, mas a
decisão final não está nas mãos deles. Muito acima e além de todos os
tribunais deste mundo está a grandiosa e suprema corte do Deus Todo
Poderoso, e não há apelos nem recursos a seus julgamentos. E Deus odeia o
mal em todas as suas manifestações: “ao que ama a violência, a sua alma o
abomina” (v. 5). Não há triunfo para o mal, porque todas as suas vitórias
aparentes têm o juízo de Deus contra elas. “Que poderá fazer o justo?” Pode
pôr sua confiança no Senhor, que reina sozinho e que enfim confundirá toda
injustiça.

A segunda coisa que o justo pode fazer é isto: pode continuar a ser justo. É
essa a sua força e certeza de vitória. “Porque o Senhor é justo, ele ama a
justiça; os retos lhe contemplarão a face” (v. 7). A perspectiva da fé é a da
segurança e da certeza garantida. O caráter difuso e mascarado do mal é
difícil de apreender, perturbador de ver, e muitas vezes leva-nos a visões
pessimistas. Somos tentados a concordar com os bons amigos de Davi, que
perguntavam “Que poderá fazer o justo?”.
A declaração de Davi, no entanto, permanece: “Deus está com a linhagem do
justo” (Sl 14.5). O Senhor está presente entre os justos para defendê-los e
fortalecê-los. Ele transforma em bem cada derrota; coroa cada vitória com
suas bênçãos.

A história dá testemunho da graça e do poder de Deus. De novo e de novo, o


Senhor transforma nossa derrota ou problema em vitória. Que momento
sombrio para a igreja, quando, ainda em germe, era perseguida por Saulo e
obrigada a fugir para um refúgio em outras cidades. E Paulo, então chamado
Saulo, viajou com companheiros em direção a Damasco, e tinha autoridade e
ordem do sumo sacerdote para levar presos os cristãos, homens e mulheres,
até Jerusalém (veja At 9.2). Mas, naquele momento, o Senhor, em vez disso,
atou as mãos e os pés de Saulo com sua graça soberana e enviou-o para a
igreja como um novo homem.

O Senhor é zeloso dos seus; ele lembra seus filhos… Prostrai-vos


diante dele, ó poderosos. Pois o Senhor está perto.

(Felix Mendelssohn, “O Senhor zela pelos seus”, s.d.)

Descansa no Senhor, espera pacientemente nele, e ele satisfará os


desejos de teu coração… Entrega teu caminho ao Senhor, confia nele, e
não te aflijas por causa dos que praticam o mal.

(Felix Mendelssohn, “Descansa no Senhor”, 1846)


37. Responsabilidade
4 de maio de 1954

Bom dia, amigos. Vez por outra, entro em discussões com pessoas que
afirmam que suas ações não fazem nenhuma diferença, que são senhores de si
e que podem fazer exatamente o que lhes der na telha. Normalmente, essas
pessoas temem que eu lhes diga o que fazer, algo que não é da minha conta, e
dão o melhor de si para declarar sua completa independência de Deus e dos
homens.

Bem, nunca vi, no entanto, um homem que seja capaz de separar-se do


universo com algum sucesso. Por mais que tentem, ainda continuam a viver
no mesmo mundo que nós, e este é um mundo de interdependência, não de
independência. Todos os dias, dependemos uns dos outros: do açougueiro, do
merceeiro, do eletricista, do produtor de gás, do agricultor, do policial, do
carpinteiro, e mil e um outros homens no cumprimento de seus variados
deveres. Durante toda a nossa vida, dependemos uns dos outros.

Tudo isso, claro, é óbvio, então vamos avançar um pouquinho. Nossa


interdependência não se limita à vida física. Emocional e socialmente,
precisamos da presença dos outros. Há ocasiões, é claro, em que podemos
querer um pouco de isolamento, mas, basicamente, precisamos de comunhão.
O confinamento solitário é a mais severa das punições a criminosos. As
razões por que precisamos da presença de outras pessoas são diversas, mas
entre as mais importantes está a seguinte: em nosso pensamento, sentimento e
ser, jamais estamos em isolamento; somos parte de um grupo; mostramos
nossa época e linhagem, não porque somos produtos da sociedade, mas
porque a própria vida é sociedade, comunidade e interdependência.
Conversamos com os outros porque a comunicação é uma necessidade de
nossa natureza. Nós nos desenvolvemos na mesma proporção do amor que
somos capazes de dar e receber, porque nossa felicidade aumenta quando
nossa interdependência e comunhão cresce. Em todo homem, a humanidade
está presente com todo o seu potencial e todos os seus problemas. Só
podemos falar do gênero humano e da humanidade por causa dessa natureza
comum do homem que nos torna a todos semelhantes. O homem é a
sociedade, ele é a humanidade, e Deus, ao criá-lo, declarou: “Não é bom que
esteja só” (Gn 2.18). Social e emocionalmente, a vida do homem é uma vida
de interdependência. Portanto, visto que nossas vidas estão envoltas umas nas
outras, nossas ações são da máxima importância, pois não podemos viver
para nós mesmos, nem podemos limitar as consequências de nossas ações a
nós mesmos.

Como resultado, as pessoas que dizem que podem fazer exatamente o que
lhes der na telha e que a vida delas só diz respeito a elas mesmas esquecem-
se de que nossa vida é uma vida comum, uma vida compartilhada, e que em
momento algum podemos separar-nos do universo e esquivar-nos de nossa
responsabilidade diante de Deus e do homem. Tentar fazer isso é ser tão tolo
quanto o homem que alguns anos atrás saiu de Joppa para uma breve viagem
pelo Mar Mediterrâneo. Quando o barco a vela, velho e de madeira, deparou
com o mau tempo, o nativo ignorante ficou doente, e começou a cavar um
buraco embaixo de sua cama, na lateral do navio. Quando outro passageiro
ficou irritado, o pobre tolo protestou: “Que diferença faz para você? O buraco
que estou cavando está embaixo da minha cama”. A resposta óbvia, é claro,
era que o buraco afundaria o navio e a todos junto com ele.

Todo ato privado tem sua consequência social. Você e eu jamais podemos
separar-nos deste universo consequente por um único momento ou um único
ato. Somos, em cada momento de nossa vida, pessoas responsáveis, e ser
responsável é ser dependente e interdependente. Somos responsáveis por
nossos semelhantes porque nossa vida está inter-relacionada à deles, e somos
sumamente responsáveis a Deus porque ele é o único Criador, Sustentador e
Redentor. Deus não tem responsabilidade para conosco: sua relação conosco
não é de obrigação, mas de pura graça e misericórdia. Nós é que somos
responsáveis diante dele. Por essa razão, Paulo disse: “Porque nenhum de nós
vive para si mesmo, nem morre para si. Porque, se vivemos, para o Senhor
vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou
morramos, somos do Senhor. Foi precisamente para esse fim que Cristo
morreu e ressurgiu: para ser Senhor tanto de mortos como de vivos” (Rm
14.7-9). “Assim, pois, cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus” (Rm
14.12).

Isso quer dizer que somos inteiramente do Senhor e não temos autoridade
sobre nossa vida ou morte. Somos dele duplamente, em virtude da criação e
da redenção, e nossa vida é uma vida de responsabilidade e prestação de
contas.

Toda a criação revela interdependência mútua e plenitude de dependência de


Deus. Dependência total significa total prestação de contas e, portanto, Paulo
declara que todo ato que não provém da fé é pecado (veja Rm 14.23).

Por fim, ser responsável é estar em Cristo, que perfeitamente cumpriu o dever
do homem diante do homem e a obrigação do homem diante de Deus. Nele,
nossa responsabilidade diante de Deus é cumprida, e recebemos a paz e a
liberdade que vêm com uma dívida quitada. Nele, temos o poder de revelar
esta graça de Deus em nossa lida com homens e de anunciar a vida do Filho
do Homem responsável enquanto ele vive em nós. Em nós mesmos, somos
rebeldes contra todas as coisas; em Cristo, somos homens responsáveis. Esta
é a nossa força, e ele é a nossa paz.
38. Obediência (Efésios 6)
21 de dezembro de 1954

Bom dia, amigos. Nossa leitura bíblica desta manhã é Efésios 6. Paulo tem a
dizer algo que precisa ser dito com todo vigor e sem meias-palavras em
nossos dias. Eis o que ele diz:

Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, pois isto é justo. Honra a teu
pai e a tua mãe (que é o primeiro mandamento com promessa), para
que te vá bem, e sejas de longa vida sobre a terra. E vós, pais, não
provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na
admoestação do Senhor. Quanto a vós outros, servos, obedecei a vosso
senhor segundo a carne com temor e tremor, na sinceridade do vosso
coração, como a Cristo, não servindo à vista, como para agradar a
homens, mas como servos de Cristo, fazendo, de coração, a vontade de
Deus; servindo de boa vontade, como ao Senhor e não como a homens,
certos de que cada um, se fizer alguma coisa boa, receberá isso outra
vez do Senhor, quer seja servo, quer livre. E vós, senhores, de igual
modo procedei para com eles, deixando as ameaças, sabendo que o
Senhor, tanto deles como vosso, está nos céus e que para com ele não
há acepção de pessoas. Quanto ao mais, sede fortalecidos no Senhor e
na força do seu poder. Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para
poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo; porque a nossa luta
não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e
potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as
forças espirituais do mal, nas regiões celestes. Portanto, tomai toda a
armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, depois de
terdes vencido tudo, permanecer inabaláveis. Estai, pois, firmes,
cingindo-vos com a verdade e vestindo-vos da couraça da justiça.
Calçai os pés com a preparação do evangelho da paz; embraçando
sempre o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos
inflamados do Maligno. Tomai também o capacete da salvação e a
espada do Espírito, que é a palavra de Deus; com toda oração e súplica,
orando em todo tempo no Espírito e para isto vigiando com toda
perseverança e súplica por todos os santos e também por mim; para que
me seja dada, no abrir da minha boca, a palavra, para, com intrepidez,
fazer conhecido o mistério do evangelho, pelo qual sou embaixador em
cadeias, para que, em Cristo, eu seja ousado para falar, como me
cumpre fazê-lo. E, para que saibais também a meu respeito e o que
faço, de tudo vos informará Tíquico, o irmão amado e fiel ministro do
Senhor. Foi para isso que eu vo-lo enviei, para que saibais a nosso
respeito, e ele console o vosso coração. Paz seja com os irmãos e amor
com fé, da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo. A graça seja
com todos os que amam sinceramente a nosso Senhor Jesus Cristo.
Amém. (Efésios 6.1-24)

Paulo começa falando da necessidade de obediência. Essa decerto é uma


necessidade também em nosso tempo. Obediência e disciplina infelizmente
estão em falta no cenário atual. A ênfase de nossos dias está na
autoexpressão, raramente na obediência. Um psiquiatra que recentemente fez
um levantamento de 19.000 casos de menores infratores constatou que havia
um fator comum a todos esses jovens: a ausência de um verdadeiro senso de
responsabilidade. A resposta a isso, ele sentia claramente, era a disciplina
(veja Paul Mallon, The Ease Era).

A obediência, diz Paulo, é fundamental a toda sociedade piedosa. Ela começa


em casa, na vida das crianças e dos pais, cada um obediente a seu lugar e
função, e se estende a nosso trabalho e a nosso papel como cidadãos; e
também, em última análise, essencialmente a Deus. Exige-se que sejamos
obedientes, não para agradar aos homens ou proteger-nos, mas para agradar a
Deus. Exige-se que sejamos obedientes porque há diferenças de posição e
autoridade, mas, ao mesmo tempo, temos de reconhecer que, com Deus, não
há respeito de pessoas e, portanto, nenhuma posição ou autoridade dá a
homem algum mais direitos sobre os outros, mas, ao contrário, apenas mais
responsabilidade.

Obediência e disciplina são necessárias do ponto de vista humano porque nos


preparam para os conflitos da vida, e toda vida tem suas lutas e batalhas. A
vida atrelada à autoexpressão só encontra frustração na luta, mas a vida
treinada na disciplina e na obediência encontra força e paz por meio da luta.

Quando toda obediência está fundada na obediência básica a Deus e toda


disciplina é disciplina piedosa, então temos uma força que é maior do que a
força humana: É o poder de Deus.

Paulo nos incita a esse tipo de força quando diz: “sede fortalecidos no Senhor
e na força do seu poder” (v. 10). Revestir-nos de a toda a armadura de Deus
quer dizer receber sua Palavra e obedecer a ele, conhecer-lhe a salvação e
andar no Santo Espírito.

Esta fonte de nossa força não está na natureza; está somente em Deus
mediante Cristo. Precisamos desta força sobrenatural para viver, porque a
nossa luta, basicamente, é uma batalha espiritual contra forças e pessoas
demoníacas.

Para obter essa força, temos de orar, não só por nós mesmos, mas uns pelos
outros. Precisamos sentir que as necessidades de nossos irmãos e irmãs em
Cristo são nossas necessidades, e oração verdadeira significa compromisso,
tem um senso de urgência, surge em toda e qualquer ocasião, e é pela ajuda
do Espírito Santo. E esta última é central: pois a disciplina básica em nossa
vida é o poder do Espírito que habita em nós. “Pois somos feitura dele,
criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou
para que andássemos nelas” (Ef 2.10).

E assim, nas palavras de Paulo: “A graça seja com todos os que amam
sinceramente a nosso Senhor Jesus Cristo. Amém” (Ef 6.24).
39. “Mais bem-aventurado é”
10 de maio de 1955

Bom dia, amigos. Há algumas declarações na Bíblia que nos fariam muito
bem se as repetíssemos diariamente. Elas declaram sem rodeios verdades que
nossa natureza humana prefere ignorar ou considera repulsiva.

Uma dessas declarações é a afirmação de nosso Senhor: “Mais bem-


aventurado é dar que receber”. Paulo cita essas palavras em Atos 20.35, como
princípio orientador de sua própria vida e serviço e como fundamento de sua
felicidade pessoal.

Essa declaração certamente se opõe aos meus e aos seus sentimentos. No que
diz respeito à natureza humana, definitiva e inequivocamente, sente-se que é
muito mais bem-aventurado receber do que dar. Todo o nosso pensamento
sobre a felicidade está ligado a uma série de expectativas, a coisas que
esperamos receber ou que nos sejam dadas. Nossa felicidade começa, creio
eu, quando recebemos certas coisas pelas quais gastamos nosso tempo
esperando e orando. Quando conseguir isso e aquilo, dizemos a Deus e a nós
mesmos, então serei feliz, então serei capaz de servir-lo melhor, então minha
vida terá a medida de riqueza que espero. Essa é a nossa ideia de bem-
aventurança.

Ora, nosso Senhor de maneira nenhuma menosprezava o receber. Ele não faz
nenhuma tentativa de subestimá-lo ou ridicularizá-lo. A implicação clara da
afirmação é que de fato é bem-aventurado receber, e somos instados a tornar
conhecidos de Deus todas as nossas necessidades e desejos. Nosso Senhor
disse: “pedi... para que a vossa alegria seja completa” (Jo 16.24), e a Escritura
deixa claro que Deus quer que gozemos a bênção de receber, e que o próprio
Deus se deleita em receber de nós, muito embora ele não tenha necessidade
de nada que possamos oferecer.

Receber presentes de amigos e entes queridos é um deleite e uma bênção.


Receber respostas de oração é a própria bênção. De fato, é bem-aventurado
receber, declarou nosso Senhor, mas é mais bem-aventurado dar.

No fundo, no fundo do coração, todos sabemos disso. Sabemos que os


homens mais felizes, mais bem-aventurados, são aqueles mais especializados
em dar que em receber. São as pessoas a quem mais amamos e mais
apreciamos. Gostaríamos de ver o mundo povoado por tais pessoas, mas,
assim como em muitas outras coisas, queremos que as outras pessoas sejam
boas a fim de que seja mais fácil para nós ser o que somos, sem mudar.

É muito fácil reconhecer e aplicar uma verdade aos outros: precisamos


aplicá-la a nós mesmos. Para você e para mim, enquanto há felicidade em
receber, há maior felicidade em dar. Se isso não é verdade, Deus é mentiroso,
e Deus não pode mentir.

Não podemos sempre ter a bênção de conseguir o que queremos. Deus não se
obrigou a dar a você e a mim tudo que pedimos, ou fazer conosco e por nós o
que queremos. Não há, é claro, nenhum cristão tão pobre que não tenha
recebido, e com abundância, de Deus, mas muitos crentes ainda permanecem
em circunstâncias difíceis e em provação, sem resposta a seu clamor por
libertação. Durante a última guerra, muitos crentes perderam a vida, ou a
visão; muitas esposas de oração, o marido; muitos pais e mães, o único filho.
Eles oraram, e a bênção de receber lhes foi negada. E essas coisas continuam
diariamente. Do nosso lado direito estão pessoas cujas orações são
respondidas de modo maravilhoso e milagroso; do lado esquerdo estão
cristãos igualmente fiéis cujas orações não são respondidas com o
recebimento da bênção. A razão repousa na sabedoria e na providência de
Deus, que homem nenhum pode compreender ou questionar.
Mas para tudo isso está aberta essa felicidade superior, a bem-aventurança de
dar em nome e na pessoa de Jesus Cristo. Mesmo quando não temos nada
mais para dar, ainda podemos dar-nos a nós mesmos. Assim, a felicidade
nunca é uma porta fechada para nós: ela nunca depende de receber certas
coisas. Depende, em vez disso, de cumprir a vida de Cristo em nós, de dar
enquanto recebemos de Deus, com boa medida, calcada, sacudida e
transbordante.

Nesta manhã você e eu temos certas esperanças e expectativas em nosso


coração, coisas que esperamos receber, pela graça de Deus. Deus pode
conceder-nos essas coisas, pois há alegria em recebê-las. Mas você e eu
precisamos, nesta manhã e a cada manhã, “recordar as palavras do próprio
Senhor Jesus: Mais bem-aventurado é dar que receber” (At 20.35).
40. “Espera com paciência nele”
4 de janeiro de 1955

Bom dia, amigos. Recentemente, quando eu estava na casa de um casal de


amigos para a comemoração de suas bodas de ouro, eles mencionaram o
salmo 37 como passagem favorita das Escrituras. Esta é uma preferência
reveladora, e nascida da experiência cristã. Ouçamos o salmo de Davi e
compreendamos por quê:

Não te indignes por causa dos malfeitores, nem tenhas inveja dos que
praticam a iniquidade. Pois eles dentro em breve definharão como a
relva e murcharão como a erva verde. Confia no SENHOR e faze o bem;
habita na terra e alimenta-te da verdade. Agrada-te do SENHOR, e ele
satisfará os desejos do teu coração. Entrega o teu caminho ao SENHOR,
confia nele, e o mais ele fará. Fará sobressair a tua justiça como a luz e
o teu direito, como o sol ao meio-dia. Descansa no SENHOR e espera
nele, não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho,
por causa do que leva a cabo os seus maus desígnios. Deixa a ira,
abandona o furor; não te impacientes; certamente, isso acabará mal.
Porque os malfeitores serão exterminados, mas os que esperam no
SENHOR possuirão a terra. Mais um pouco de tempo, e já não existirá o
ímpio; procurarás o seu lugar e não o acharás. Mas os mansos herdarão
a terra e se deleitarão na abundância de paz. Trama o ímpio contra o
justo e contra ele ringe os dentes. Rir-se-á dele o SENHOR, pois vê estar-
se aproximando o seu dia. Os ímpios arrancam da espada e distendem o
arco para abater o pobre e necessitado, para matar os que trilham o reto
caminho. A sua espada, porém, lhes traspassará o próprio coração, e os
seus arcos serão espedaçados. Mais vale o pouco do justo que a
abundância de muitos ímpios. Pois os braços dos ímpios serão
quebrados, mas os justos, o SENHOR os sustém. O SENHOR conhece os
dias dos íntegros; a herança deles permanecerá para sempre. Não serão
envergonhados nos dias do mal e nos dias da fome se fartarão. Os
ímpios, no entanto, perecerão, e os inimigos do SENHOR serão como o
viço das pastagens; serão aniquilados e se desfarão em fumaça. O
ímpio pede emprestado e não paga; o justo, porém, se compadece e dá.
Aqueles a quem o SENHOR abençoa possuirão a terra; e serão
exterminados aqueles a quem amaldiçoa. O SENHOR firma os passos do
homem bom e no seu caminho se compraz; se cair, não ficará
prostrado, porque o SENHOR o segura pela mão. Fui moço e já, agora,
sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a sua
descendência a mendigar o pão. É sempre compassivo e empresta, e a
sua descendência será uma bênção. Aparta-te do mal e faze o bem, e
será perpétua a tua morada. Pois o SENHOR ama a justiça e não
desampara os seus santos; serão preservados para sempre, mas a
descendência dos ímpios será exterminada. Os justos herdarão a terra e
nela habitarão para sempre. A boca do justo profere a sabedoria, e a sua
língua fala o que é justo. No coração, tem ele a lei do seu Deus; os seus
passos não vacilarão. O perverso espreita ao justo e procura tirar-lhe a
vida. Mas o SENHOR não o deixará nas suas mãos, nem o condenará
quando for julgado. Espera no SENHOR, segue o seu caminho, e ele te
exaltará para possuíres a terra; presenciarás isso quando os ímpios
forem exterminados. Vi um ímpio prepotente a expandir-se qual cedro
do Líbano. Passei, e eis que desaparecera; procurei-o, e já não foi
encontrado. Observa o homem íntegro e atenta no que é reto; porquanto
o homem de paz terá posteridade. Quanto aos transgressores, serão, à
uma, destruídos; a descendência dos ímpios será exterminada. Vem do
SENHOR a salvação dos justos; ele é a sua fortaleza no dia da tribulação.
O SENHOR os ajuda e os livra; livra-os dos ímpios e os salva, porque
nele buscam refúgio. (Sl 37.1-40)

O que Davi enfrenta aqui e responde de uma vez por todas é aquele espírito
de perversidade na vida que assola a todos nós. Vemos os malfeitores
prosperar, e o justo lutar para se manter, e ficamos indignados e impacientes
com Deus. Observamos, como Davi, “um ímpio prepotente a expandir-se
qual cedro do Líbano”, enquanto nos encontramos limitados e frustrados em
coisas pequenas próximas a nós. Diante de tudo isso, “Onde está Deus, e o
que ele está fazendo?”.

Toda a nossa rebeldia é basicamente uma rebelião contra Deus. Isso não quer
dizer que devemos ficar em silêncio e inertes na presença do mal e de
condições injustas. Temos a obrigação moral de trabalhar em favor da retidão
e da justiça sob Deus. No entanto, somos chamados a “deixar a ira,
abandonar o furor”, e fazer o que fazemos com perfeita fé na providência de
Deus, a “descansar no Senhor e esperar pacientemente nele”.

O núcleo desta segurança é o seguinte:

Confia no SENHOR e faze o bem; habita na terra e alimenta-te da


verdade. Agrada-te do SENHOR, e ele satisfará os desejos do teu coração.
Entrega o teu caminho ao SENHOR, confia nele, e o mais ele fará. (v. 3-
5)

Observem o que esses versos dizem. Não há promessa de saída dos


problemas que nos confrontam, nenhuma promessa de que este mundo se
tornará uma via segura para nós. Em vez disso, eles asseguram que podemos,
se confiarmos e esperarmos no Senhor, conhecer uma paz e uma plenitude
maiores do que o mundo pode dar. Mais do que isso, os desejos de nosso
coração serão satisfeitos como resultado de duas coisas, as mesmas coisas
que nos fazem sofrer, somadas a esperar com paciência no Senhor. Na
verdade, Deus faz todas as coisas cooperarem para o bem daqueles que o
amam, que são chamados segundo seu propósito (Rm 8.28).

Então o salmo promete algo mais. Seu refrão pode ser chamado de a
promessa de que os mansos “herdarão a terra” (Mt 5.5). Quem são esses
mansos bem-aventurados de quem nosso Senhor também falou em suas bem-
aventuranças? A palavra bíblica para mansos significa dócil, subjugado.
Somos os mansos bem-aventurados quando somos subjugados por Deus, e
nossa natureza rebelde descansa no Senhor e espera pacientemente nele.

Os mansos bem-aventurados herdam o mundo nesta vida e no mundo por vir.


A vida deles tem o aroma e a qualidade da vida verdadeira aqui e agora.
Outras pessoas tentam viver e encontrar a vida, mas só a encontram numa
fuga. Os mansos bem-aventurados vivem. Então, para os mansos, o tempo só
os leva para mais perto da eternidade, e os sofrimentos da vida presente não
hão de se comparar com as alegrias da eternidade. Aos mansos, os
subjugados por Deus, pertence o Reino.

Este salmo, portanto, requer de nós quatro tarefas:

1. Não se indignar. Não se preocupar com os mistérios da providência de


Deus.

2. Confiar. Descansar no Senhor. Ele permite essas coisas para o seu


propósito e nosso bem final nele.

3. Esperar com paciência.

4. Fazer o bem.

Ao agir assim, tornamo-nos submissos a Deus. A promessa de nosso Senhor


a nós é esta: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5.5).
41. O hábito da autojustificação
11 de janeiro de 1955

Bom dia, amigos. Um dos maus hábitos que todos nós compartilhamos em
alguma medida é o hábito da autojustificação. Esta é uma fraqueza que
condenamos nos outros e reprimimos em nossos filhos, e, no entanto, nós
mesmos muitas vezes somos culpados dela. Aliás, a autojustificação é mais
que uma fraqueza: é pecado.

Em primeiro lugar, o que temos em mente quando falamos de


autojustificação? Nas palavras mais simples, autojustificação significa
desculpar-nos a nós mesmos. No entanto, envolve muito mais que uma
desculpa: envolve também a nossa crença fundamental em que o que fazemos
ser desculpável porque somos basicamente justificados por nosso estilo de
vida e por nosso modo de agir. Podemos concordar que a ação particular em
questão é questionável e até errada. Mas, quando algum pecado particular
pesa contra nós, sentimos que o prato da balança está predominantemente do
lado da justiça, porque nossa própria vida justificável sobrepuja qualquer
pecado particular. Em outras palavras, a autojustificação quer dizer que
insistimos em desculpar-nos de nossos pecados porque nos recusamos a crer
que eles dizem toda a verdade a nosso respeito: a verdade, insistimos, é algo
muito melhor e muito mais agradável, e deve ser considerada como o fator
determinante. Porque somos pessoas boas, sentimos que nossos pecados
ocasionais podem e devem ser ignorados.

Mas o que a Bíblia diz sobre nós é muito diferente. Ela declara que todos nós,
sem exceção, podemos ser descritos somente como pecadores. Nossa
natureza humana é caracterizada pela rebelião contra Deus e pelo desejo de
ser como Deus. A essência de nosso discurso não é a veracidade, mas a
hipocrisia e o desejo de sermos considerados melhores do que realmente
somos. Este é o velho Adão em nós, e o velho Adão é um farsante e
embusteiro. Sua vida consiste em máscara e fingimento: está constantemente
escondendo-se atrás de uma mentira que insiste ser verdade, e foge da
verdade, que ele chama de mentira.

A autojustificação, portanto, envolve uma negação da verdade de Deus acerca


da natureza humana, e sua acusação contra o homem.

Diante de tudo isso, o cristão deve ter uma resposta diferente. Não
precisamos justificar-nos a nós mesmos, porque fomos justificados por Deus.
Ser justificado por Deus quer dizer que aceitamos suas acusações contra nós:
reconhecemos que somos pecadores em rebelião contra Deus. Depositamos
nossa confiança não numa justiça própria imaginada, mas na justiça de Deus.

Isso quer dizer que vivemos sem ilusões acerca de nós mesmos, mas com fé
em Deus. Significa desconfiar de nós e confiar em Deus. Não vemos
necessidade de dar desculpas: admitimos o fato de nosso pecado e apontamos
para nossa liberdade e justificação em Jesus Cristo.

O pecador é assombrado pela necessidade contínua de autojustificação. Sua


vida inteira se torna envolta em hipocrisia, fingimento e evasão, numa
tentativa de convencer a si mesmo e ao mundo de que ele é basicamente um
homem bom e, por causa disso, desculpável. O cristão tem uma desculpa
melhor, uma justificação melhor, Jesus Cristo, que assume o pecado e a culpa
em nosso lugar e os cancela pela Cruz, e que nos torna membros dele, de
modo que temos, por sua presença santificadora, nossa justificação
permanente.

Quando nós, como cristãos, damos desculpas e tentamos justificar a nós


mesmos, estamos vivendo não em Cristo, mas em nós mesmos, no velho
Adão. Nossa autojustificação tola não é nada comparada à graça de Deus
contínua e permanente em Cristo. Como declara a Confissão de fé de
Westminster (Cap. 11.5): “Deus continua a perdoar os pecados daqueles que
são justificados”.

O Catecismo maior de Westminster resume a questão nestas palavras (R. 70):

Justificação é um ato livre da graça de Deus para com os pecadores, no


qual ele os perdoa, aceita e considera justa a pessoa deles diante dele,
não por qualquer coisa neles operada, nem por eles feita, mas
unicamente pela perfeita obediência e plena satisfação de Cristo, a eles
imputadas por Deus e recebidos só pela fé.
42. Quem é infalível?
18 de janeiro de 1955

Bom dia, amigos. Recentemente passei por momentos perturbadores com um


oficial do Estado cuja atitude considerei muito incômoda. O homem era um
oficial de caráter e integridade, um homem honesto e merecidamente
respeitado por seu trabalho. No entanto, senti e ainda sinto que há algo
perigoso neste homem e em homens como ele, porque ele acreditava que a lei
não se engana.

Essa atitude, claro, não é nova. A Bíblia fala da “lei dos medos e dos persas,
que se não pode revogar” (Dn 6.8), e dos “decretos feitos em nome do rei
[que] não se podem revogar” (Et 8.8). Era uma lei infalível contra a qual não
há apelo nem recurso. Essa atitude não se limitava à antiguidade. As nações
constantemente tendem a divinizar sua lei e a considerarem-se intérpretes
infalíveis da vontade divina. O comunismo marxista torna a ditadura do
proletariado a expressão da obra divina na história, enquanto em nossa
América muitas pessoas afirmam de modo blasfemo que a vontade do povo é
a vontade de Deus e que a voz do povo é a voz de Deus.

Tampouco esta afirmação de infalibilidade se limita a governos. Igrejas


também têm essa pretensão. Afirmam que Deus fala por meio do líder de sua
igreja, ou que a voz do presbitério é a voz do Espírito Santo, e fazem muitas
afirmações que direta ou indiretamente reivindicam a infalibilidade.

Todas essas atitudes, quer na igreja, quer no Estado, são extremamente


perigosas, porque o homem é pecador, e o fato mais óbvio sobre ele é sua
falibilidade, sua tendência a pecar, errar, falhar, devanear e mentir. Para o
homem, afirmar infalibilidade em alguma de suas ações ou instituições é uma
reivindicação absurda e um pecado monstruoso, porque o homem é uma
criatura que peca e morre — só Deus é infalível.

Há um traço comum a todas as pessoas que reivindicam infalibilidade, seja


para si mesmas, seja para suas instituições. Todas elas, sem exceção, ou
subestimam, ou ignoram, ou negam de modo cabal a própria palavra infalível
de Deus, a Bíblia. Defenderão a autoridade de homens enquanto negam a
autoridade da palavra de Deus. Afirmarão a supremacia de suas instituições e
passarão de largo pela supremacia exclusiva da Palavra de Deus. Lutarão com
zelo em defesa de sua infalibilidade e mentirão para defendê-la, enquanto
escarnecem e ridicularizam da Palavra infalível de Deus.

Contra tudo isso, temos de afirmar que o homem, em todas as suas atividades
e instituições, é uma criatura e um pecador nascido para morrer, e que
somente Deus é infalível e sua Bíblia é nossa autoridade. Aceitar algo menos
como nossa autoridade final é destruir todos os padrões além de nossa própria
vontade.

O homem precisa de uma autoridade final. Sem ela, ele não tem padrão. E o
homem não pode fazer de suas emoções a autoridade final, porque elas
tendem ao erro e à tolice. Tampouco pode fazer da razão ou da vontade o
árbitro da autoridade final, porque a razão e a vontade do homem estão
contaminadas e corrompidas pelo pecado. Eles têm como sua órbita os
limites estreitos do mundo restrito do homem, que ele só pode ver por meio
dos olhos do pecado. O homem jamais pode produzir autoridade: todas as
suas tentativas de fazê-lo só destruíram a autoridade e suplantaram-na pela
obstinação.

Portanto, devemos afirmar com os teólogos de Westminster na Confissão de


fé (cap. 31:4):
Todos os sínodos e concílios, desde os tempos dos apóstolos, quer
gerais quer particulares, podem errar, e muitos têm errado. Portanto,
eles não devem constituir regra de fé e prática, mas podem ser usados
como auxílio em uma e outra coisa.

Conforme ensina o Catecismo maior (R. 3 e R. 4):

As Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos são a Palavra


de Deus, a única regra de fé e prática.

As Escrituras se manifestam como a Palavra de Deus por sua majestade


e pureza, pela harmonia entre todas as suas partes e pelo propósito do
seu conjunto, que é dar toda a glória a Deus; pela sua luz e pelo poder
que possuem para convencer e converter os pecadores e para edificar e
confortar os crentes para salvação. O Espírito de Deus, porém, ao dar
testemunho, pelas Escrituras e juntamente com elas, no coração do
homem, é o único capaz de persuadi-lo completamente de que elas são
realmente a Palavra de Deus.
43. “O Senhor dirige”
5 de abril de 1955

Bom dia, amigos. De vez em quando, quando paramos brevemente para fazer
uma retrospectiva de nossa vida, percebemos que esta foi muito diferente do
que um dia esperamos. Ao examinar alguns papéis velhos, talvez deparemos
com uma foto de nós mesmos há muito esquecida, que traz de volta um
turbilhão de memórias. Percebemos o quanto éramos jovens à época e quanto
sabíamos pouco e, no entanto, como eram elevados as esperanças e o orgulho
enquanto olhávamos para o futuro. Talvez nos perguntemos: o futuro será tão
inesperado como o foi o passado? Mais que isso, estará definitivamente além
de nossa determinação e controle?

Anos atrás, tínhamos um quadro esperançoso do que seria o futuro: a hora


presente nos encontra muito diferentes daquele quadro. O amanhã nos será
tão impossível de projetar como foi o hoje?

Contudo, num sentido muito real, hoje somos o que o nosso ontem fez
conosco. Somos responsáveis e não podemos fugir da responsabilidade de
nossa situação e de nosso estado presente. Todavia, quando levamos nossa
reavaliação às últimas consequências, algo ainda nos escapa. Não somos
onipotentes, não somos todo-poderosos, e todas as nossas tentativas de
moldar nossa vida deixa algo faltando.

Muito tempo atrás, um homem enfrentou este mesmo mistério acerca de sua
própria vida. Ele começara com uma promessa esplêndida, somente para cair
numa tolice abjeta e emergir no final com uma sabedoria triste e humilde.
Olhando para trás, Salomão declarou, como diz Provérbios 16.9: “O coração
do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos”. Moffatt
traduz o texto do seguinte modo: “O homem concebe seus planos, mas o
Eterno controla o seu curso”.

Vamos examinar o significado deste versículo. “O homem concebe seus


planos”, mas com quais resultados? O planejador mais cuidadoso considera a
vida algo frustrante com que tem de lidar: muitas coisas escapam de seu
planejamento. E, mesmo no pouco que ele consegue planejar, há tantas
pendências que o planejamento é um guia certo para a frustração se o homem
não for compreensivo. Tiago, o irmão de nosso Senhor, tinha isto que dizer
sobre planejamento, conforme a tradução de Moffatt:

Agora, vocês que dizem “Hoje ou amanhã vamos para essa ou aquela
cidade; vamos passar um ano ali, empreenderemos e ganharemos
dinheiro”: vocês não sabem nada sobre o dia de amanhã! O que é a sua
vida? Vocês não passam de neblina, que aparece por um tempo e
depois some. Vocês deveriam era dizer: “Se o Senhor quiser,
viveremos para fazer isto ou aquilo”. Mas aí estão vocês, cheios de
pretensões orgulhosas! Toda essa ostentação é do mal. (Tg 4.13-16)

Sim, “o homem concebe seu plano”, mas, como é homem, não é onipotente
nem pode o homem controlar ou moldar todos os fatores de sua vida, ele não
pode controlar seu curso. Ora, isso seria deixar o homem numa situação
terrível se não houvesse nenhum controle para reger ou dominar em sua vida.
Mas, como indicou Salomão, “O coração do homem traça o seu caminho,
mas o Senhor lhe dirige os passos”. “O homem concebe seus planos, mas o
Eterno controla o seu curso.”

Porque nossa vida não se desenvolveu como planejamos, isso não quer dizer
que ela não tenha direção ou propósito. Enquanto caminhamos pela fé, como
membros de Jesus Cristo, somos parte de um plano total que faz todas as
coisas cooperarem para o bem. E, se o Senhor trouxe derrota aos seus planos
e aos meus, é somente porque ele tem algo melhor que deve e vai prevalecer.
O Senhor dirige, e seus direcionamentos são claros e infalíveis. Nas palavras
do velho hino de Samuel Rodigast:
Tudo que Deus ordena é justo:
Sua vontade santa sempre se cumprirá,
Ficarei tranquilo em tudo quanto fará.
Seguirei seguro por onde me guiar;
A ele tudo hei de entregar.
Ele é meu Deus, mas a estrada, escura;
Não cairei: sei quem me segura.

Tudo que Deus ordena é justo,


Ele nunca me enganará;
no caminho reto me conduzirá.
Sei que não me deixará;
Aceito, contente, o que ele envia.
A sua mão o meu pranto leva
Com paciência espero o fim da treva.

Tudo que Deus ordena é justo,


Embora o cálice, em que ora bebo
ao meu coração frágil pareça amargo.
Aceitarei, sem hesitar,
O fim das lágrimas quando o sol raiar.
Doce conforto encontrará meu coração,
A dor e o sofrimento extinguir-se-ão.

Tudo que Deus ordena é justo,


firmo aqui a minha posição.
Dor, carência ou morte me alcançarão
Mas não serei abandonado, não.
O cuidado de meu pai me envolverá,
Não cairei, pois ele me susterá.
Então a ele tudo hei de entregar.
(Samuel Rodigast, “Tudo que meu Deus ordena é justo”, 1675)

O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os


passos. (Pv 16.9)
44. “Sacudido no crivo”
8 de março de 1955

Bom dia, amigos. Uma das coisas que temos de ter sempre em mente, quando
lemos a Escritura, é que devemos levar Deus a sério. Se cremos apenas no
que nos agrada, então tudo que aceitamos é nossa própria palavra, porque
estabelecemos como verdade somente aquilo que nos é aceitável.

Com essa perspectiva, vejamos um versículo que diz algo que precisamos
ouvir cuidadosamente, Amós 9.9: “Porque eis que darei ordens e sacudirei a
casa de Israel entre todas as nações, assim como se sacode trigo no crivo, sem
que caia na terra um só grão”.

Este versículo, claro, lida especificamente com o tratamento de Deus para


com Israel, mas também declara um princípio do procedimento de Deus que é
igualmente verdadeiro em seu tratamento conosco. Este é o processo de
peneiramento.

Obviamente, Israel esteve nele por um tempo difícil. Ser sacudido no crivo
quer dizer ser quebrado até que o palhiço seja removido do grão e
completamente separado. Hebreus fala desse mesmo processo, declarando
que o propósito de Deus é “a remoção dessas coisas abaladas, como tinham
sido feitas, para que as coisas que não são abaladas permaneçam” (Hb 12.27).
Os apóstolos, em Atos 14.22, deixaram claro que “através de muitas
tribulações, nos importa entrar no reino de Deus”.

A maioria dos cristãos prefere pensar na vida em Cristo como toda doçura e
luminosidade. Alguns realmente tentam acreditar que o privilégio cristão é
ser liberto da tribulação. Entretanto, o propósito específico de Deus para
conosco, que somos sua semente ou grão, por assim dizer, é peneirar-nos para
que o palhiço seja separado de nós. E isso levaria uma pessoa tola e leviana a
declarar que não tem palhiço em sua vida e, portanto, não precisa de
peneiramento.

As tempestades e problemas deste mundo, os seus problemas pessoais e os


meus, são a peneira de Deus e devem ser aceitas como tais, com fé, paciência
e humildade. A história é a poderosa peneira de Deus, separando o joio do
trigo.

Mas há mais neste versículo do que a promessa de peneiramento. Com esta


promessa de tribulação vem uma declaração estranha e reconfortante: “sem
que caia na terra um só grão”.

A promessa do crivo do Senhor é uma garantia de que seremos sacudidos e


quebrados, mas com ela vem a promessa grandiosa: não haverá perdas neste
processo — só ganhos.

Ora, ambos os fatos nos parecem incríveis e talvez difíceis de acreditar; mas
pede-se que creiamos neles, primeiro, porque Deus nos peneirará, e não
podemos fugir da peneira e da sacudida que separará o joio do trigo; e,
segundo, porque Deus não permitirá que o menor entre nós caia ou sofra
permanentemente como resultado deste processo. O resultado será somente
ganho.

Em vista disso, podemos de fato concordar com as palavras de um velho hino


do século XVII:
Confia o teu caminho
a teu fiel Senhor!
Teu coração mesquinho,
com todo o seu temor:
Ao Deus onipotente
entrega-o sem tardar:
teu Criador clemente
não te há de rejeitar!

Em teu Senhor espera,


se queres seu favor;
sua obra considera,
e a tua tem valor!
Angústias desoladas
jamais te salvarão;
alcanças bens sagrados
somente em oração.

E mesmo que o demônio


nos venha a resistir
e como poder medonho
nos queira destruir,
o teu aceno basta
a fim de o subjugar,
e todo o mal afasta
o teu divino olhar.

Deus quer que não pereças


em sofrimento e mal;
fará que lhe agradeças
no Reino celestial.
Ele há de dar-te a glória,
o eterno resplendor;
e cantarás vitória
por seu divino amor!

Amém! Por ti espero,


Meu Pai e meu Senhor!
No mal não desespero,
pois tenho o teu amor.
E quando, enfim, na morte
meu trilho terminar
a ti a minha sorte,
Senhor, hei de entregar!
(Paul Gerhardt, “Befiehl du deine Wege”, 1653)[1]
45. Aquele que andou em trevas
26 de maio de 1954

Bom dia, amigos. Uma das deficiências que todos compartilhamos é a


tendência a ficar tão apegados a nossos modos e perspectiva, que não
conseguimos ver nada mais, nem mesmo quando estamos olhando. Por causa
desta falha, podemos ler uma passagem na Escritura dezenas de vezes sem
que seu significado penetre nosso coração e nossa mente: já temos tanta
certeza do que deve estar ali, que não conseguimos ver realmente o que está
diante de nós.

Uma afirmação dessas pode ser encontrada em Isaías 50.10-11: “Quem há


entre vós que tema ao Senhor e que ouça a voz do seu Servo? Aquele que
andou em trevas, sem nenhuma luz, confie em o nome do Senhor e se firme
sobre o seu Deus. Eia! Todos vós, que acendeis fogo e vos armais de setas
incendiárias, andai entre as labaredas do vosso fogo e entre as setas que
acendestes; de mim é que vos sobrevirá isto, e em tormentas vos deitareis”.

Essa é uma definição tão incomum do homem de fé que à primeira vista a


deixamos passar por completo. Quem é o homem que confia e obedece?
Isaías declara que é “aquele que andou em trevas, sem nenhuma luz”.

Há algo em nós que se rebela contra isso. Sentimos que, uma vez que cremos
no Senhor, deveríamos ser autorizados a portar certa quantidade de luz, e
alguns chegam a reivindicá-la. Todavia, quando renunciamos a isso, somos
capazes de andar em trevas. Não podemos ver além do presente. O minuto
seguinte, o dia seguinte, o ano seguinte são inteiramente trevas para nós.
Podemos ter uma fé grande o bastante para mover as montanhas, mas ainda
não podemos ver além do presente nem fazer outra coisa senão andar em
trevas.
Mais que isso, andamos em trevas quanto ao ontem e ao hoje. As aflições nos
sobrevêm, a separação cruel e repentina da morte, e não a compreendemos.
Vemos a miséria e o sofrimento que fazem murchar a imaginação e nos
perguntamos por que essas coisas tinham de acontecer. Olhamos para trás em
nossa vida e descobrimos as mesmas perguntas surgindo dentro de nós. Por
que o Senhor despertou essas esperanças e nunca as atendeu? Por que ele nos
deixou sem resposta quando clamamos em oração por algum sinal de
esperança? Por que estava tudo uma treva total e um absoluto silêncio?

Não só caminhamos em trevas, mas fomos proibidos de acender uma luz por
nós mesmos. Para nós, parece apenas senso comum, mas dizem-nos que todo
que acende uma tocha e tenta cercar-se de luz e andar naquela luz deitará em
tormentas. A mão de Deus estará contra nós se tentarmos acender uma tocha.

Qual é o significado desta passagem estranha e surpreendente? Sabemos que


andamos em trevas: por que é errado tentar andar na luz? Por que é que o
resultado inevitável de tentar acender uma tocha por nós mesmos é
sofrimento?

Andar em trevas significa isto: andar por fé. De outro lado, declarou Isaías,
tentar acender uma tocha contra as trevas é tentar andar por vista. E isso não
se pode fazer. Nenhum de nós é capaz de andar por vista. Tanto a vida agora
quanto o dia de amanhã são mistério para nós. Reivindicar a visão,
reivindicar que tenhamos uma tocha que dissolva as trevas, é reivindicar algo
que o homem não pode ter. É uma reivindicação falsa que inevitavelmente
leva ao sofrimento.

É difícil para os cristãos aceitar esta situação. Tendemos a sentir que nossa fé
deveria de algum modo inspirar uma retribuição de Deus, revelando alguns
poucos mistérios que não podemos entender por inteiro. Mas, quando Deus,
em vez disso, nos diz que o teste da fidelidade é simplesmente andar em
trevas, ficamos contrariados pela aparente injustiça de tudo isso.

Entretanto, não podemos fazer com que a fé signifique nada mais do que fé
sem transformá-la em alguma outra coisa. Precisamos, ao contrário, aceitar
humildemente nossas trevas e orar pela presença divina enquanto passamos
por elas.

E é por isso, claro, que nos pedem que andemos nas trevas. Se não fôssemos
forçados a andar somente pela fé, não alcançaríamos a mão de Deus em meio
às trevas. Não pediríamos que ele nos segurasse e conduzisse pela meia-noite
do mundo.

Andar em trevas, portanto, é andar somente pela fé. Significa que


reconhecemos que nenhum homem se basta, e nós menos ainda.

Portanto, seja agradecido pela escuridão. Deus tinha seu propósito ao


proporcioná-la, e era este: que fôssemos atraídos para junto dele. Por
natureza, tendemos a ser levados pelas circunstâncias. Mas o Senhor, por
meio das trevas, nos chama para o seu lado. Enquanto caminhamos com ele,
bem podemos dizer com John Newton:
Perigos mil atravessei
E a graça me valeu
Eu são e salvo agora irei
Ao santo lar do céu.
(John Newton, “Preciosa graça”, 1779)
46. A chave de entendimento
19 de abril de 1955

Bom dia, amigos. Uma das facetas interessantes da história humana é a


tentativa do homem de encontrar uma chave de entendimento. O homem tem
tentado, de geração em geração, tanto científica quanto filosoficamente,
compreender todas as coisas à luz de um conceito-mestre. Uma das coisas
que deram a Albert Einstein uma importância tão central em nossa geração
foi a contribuição que ele deu com um conceito-mestre. Sua teoria do campo
unificado apresentou uma interpretação do tempo, da altura, da largura e da
profundidade deste universo que permitiu que o homem fizesse vastos
avanços rumo à compreensão e ao controle da energia material. No entanto,
por mais importante que fosse a contribuição de Einstein, ela não era um
conceito-mestre verdadeiro. Na verdade, ela abrangia em certa medida o
significado de energia material, mas para o homem e para a criação há mais
do que energia material, e um conceito-mestre que não vá além não é uma
verdadeira chave de entendimento.

Em Provérbios 28.5 temos, expresso de modo muito simples, um conceito-


mestre, uma chave de entendimento, que vai além da matéria para interpretar
a própria essência da vida do homem. Eis o que Salomão disse: “Os homens
maus não entendem o que é justo, mas os que buscam o Senhor entendem
tudo”.

A primeira ideia afirmada por este provérbio é que há uma relação entre a fé
e o entendimento. A vida e o caráter de um homem são um indício de sua
capacidade de compreensão. O homem mau não pode compreender o
significado do juízo ou da justiça. As interações de Deus com o homem estão
além deste e só o confundem e desconcertam. Em outras palavras, a confusão
espiritual também envolve confusão moral e intelectual. Há uma medida em
que ficamos aquém das exigências do Senhor a nós; somos nessa mesma
medida incapazes de compreender sua interação conosco. Ficamos perplexos
e rebeldes.

A segunda ideia afirmada por Salomão é que “os que buscam o Senhor
entendem tudo”. Quando o fim de nossa vida é viver à luz da fé no único
Deus vivo, obtemos o conhecimento, em todas as situações da vida e diante
de todas as coisas, do significado de todas as coisas. Quando nossa vida
pessoal tem um fundamento divino, somos capazes de compreender as obras
de Deus. É o julgamento ou justiça de Deus que é a pedra de tropeço para o
homem natural; mas é esta mesma coisa, o julgamento e a justiça de Deus,
que proporciona uma chave de entendimento ao fiel. O que naturalmente nos
torna rebeldes, pela graça de Deus serve também para abrir os olhos de nosso
entendimento. Aquilo que aliena o mundo de Deus, nos leva para mais perto
dele. O que para o homem natural é maldição torna-se, para o crente, uma
bênção. Na fidelidade e na confiança somos abençoados, e os olhos de nosso
entendimento se abrem. Portanto, é isso que a Escritura declara quando diz
que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria. Nosso Senhor declarou:
“Se alguém quiser fazer a vontade dele [de Deus], conhecerá a respeito da
doutrina” (Jo 7.17).

Esta é a nossa chave de entendimento, fé e confiança no Senhor. De tais


crentes, João escreveu: “E vós possuís unção que vem do Santo e todos
tendes conhecimento” (1Jo 2.20). Em outras palavras, todos os crentes (toda
a igreja, em virtude de sua fé, seu Espírito Santo em nosso interior) têm um
conhecimento espiritual que os capacita a enfrentarem e interpretarem os
acontecimentos da vida e tornarem-se vitoriosos diante da adversidade.

A fé, portanto, é a chave do entendimento. Os homens que tentam andar por


vista são homens que andam às cegas. Não conseguem ver um passo adiante
ou uma hora no futuro. Mas os homens que, em vez disso, andam por fé,
andam com confiança na escuridão, sabendo que têm um guia e que todas as
coisas estão sob o controle providencial e sob o propósito de seu Senhor e
guia. Os olhos de nosso entendimento estão abertos quando abrimos mão de
nossa visão humana. Nas palavras da tradução de Moffatt de Efésios 1.17-23:

Que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai glorioso, conceda a


vocês o Espírito de sabedoria e revelação para o conhecimento dele
mesmo, iluminando-lhes os olhos do coração, para que possam
entender a esperança para a qual ele nos chamou, a riqueza de sua
herança gloriosa nos santos, e a grandiosidade extrema de seu poder
sobre nós, os crentes — um poder que opera com a força de sua
potência que ele exerceu ao ressuscitar a Cristo dentre os mortos e fazê-
lo assentar à sua direita na esfera celestial, acima de todos os
dominadores, autoridades, poderes e senhores angelicais, acima de todo
nome que se nomeia não só nesta era, mas na era por vir — ele pôs
tudo sob seus pés e colocou-o como cabeça de todas as coisas para a
igreja, a igreja que é seu corpo, preenchida por aquele que preenche o
universo por inteiro.
47. Quando Deus pede
26 de abril de 1955
Bom dia, amigos. Há ocasiões em nossa vida em que Deus nos pede coisas
difíceis. Somos impelidos a renunciar coisas que amamos, especialmente
fortes esperanças, o fruto de nosso trabalho e outras coisas que não temos
coragem de abrir mão. Todos estamos familiarizados com esse tipo de
experiência. Às vezes, parece como se a vida consistisse sobretudo num
processo de retirar coisas de nós, até que a própria vida se vá. Perdemos a
juventude e a maturidade, e todas as esperanças associadas a ambas, e às
vezes até as pequenas coisas com que nos consolamos são também tiradas de
nós.
Vez por outra estamos inclinados a imaginar e perguntar: por que Deus tira
tanto de nós? Por que ele pede um sacrifício tão contínuo?
O livro de Êxodo dá uma resposta comovente ao clamor de nosso coração.
Em Êxodo 19, vemos Israel diante do Monte Sinai, preparando-se para a
renovação da aliança feita originalmente com Abraão. Até este momento,
Deus havia demonstrado sua fidelidade: ele tomou um povo escravo no Egito
e resgatou-o, destruindo o poder do Egito; ele conduziu esse povo
milagrosamente a atravessar o Mar Vermelho como terra seca, alimentou-os
com maná no deserto e deu-lhes água que jorrou da pedra. Só depois de tudo
isso ele fez um pedido a Israel. Disse Deus:
Tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águia
e vos cheguei a mim. Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha
voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a minha propriedade
peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me
sereis reino de sacerdotes e nação santa. (Êx 19.4-6)
Daí em diante, um fato notável acerca da interação de Deus conosco fica
evidente: antes que Deus nos peça algo, ele primeiro dá muito mais do que
ele jamais há de pedir. Recebemos muito mais do que jamais se nos exigirá
que demos. Na verdade, todo o processo é de enriquecimento contínuo:
recebemos para que possamos dar e, na medida em que damos humildemente
e com fé, o pedido seguinte é precedido por uma dádiva ainda maior. Como
disse nosso Senhor: “Dai, e dar-se-vos-á; boa medida, recalcada, sacudida,
transbordante, generosamente vos darão; porque com a medida com que
tiverdes medido vos medirão também” (Lc 6.38).
Portanto, em vez de ver a vida como uma perda contínua, precisamos
considerá-la, ao contrário, como um investimento contínuo pela fé. Requer-se
de nós que entreguemos toda a nossa vida a Deus pela fé e que consagremos
a ele nossas atividades diárias, em confiança, seguros de que nossa doação de
nós mesmos é um investimento na Palavra de Deus. Nosso Senhor declarou
que aqueles que buscam salvar a própria vida a perderão, e aqueles que a
perdem por amor a ele, hão de salvá-la. Os resultados deste investimento
revelar-se-ão na eternidade. Paulo declarou: “Porque importa que todos nós
compareçamos perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo
o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo” (2Co 5.10). O texto grego
diz, de modo mais preciso, que naquele dia receberemos de volta as obras de
nossa fé. Não é meramente um receber, é um receber de volta nosso
investimento, agora com um retorno multiplicado por cem ou por mil.
A resposta ao lamento de nosso coração, portanto, é que Deus pede porque
ele já nos deu e continuará dando por toda a eternidade. Deus nos dá muito
mais do que percebemos, amiúde muito mais do que somos capazes de
receber, e pede de nós que devolvamos pela fé o investimento em sua
fidelidade.
Em vista disso, em vez de reclamar, precisamos ecoar o louvor dos santos
antes de nós e entoar a alegre canção:

Quão maravilhoso és tu, Senhor,


Tua majestade brilha com fulgor!
Teu trono de graça é um primor
Adornado e pleno de esplendor!
(F. W. Faber, “My God, How Wonderful Thou Art”, 1848)
48. Não há vagas
22 de dezembro de 1953
Feliz natal, amigos. Como esta é a semana do natal, voltemos nossa atenção
nesta manhã para a história daquela cidadezinha da Roma imperial. Dois
viajantes exaustos certa vez entraram naquela cidade ao cair da noite, depois
de uma jornada longa e cansativa. Eles não estavam ansiosos para viajar, mas
o deslocamento era uma questão de necessidade. Todo homem tinha de voltar
a seu lugar de nascimento para registrar-se no censo imperial, e ali estavam
agora, mas não havia lugar para eles na hospedaria. O único hotel da cidade
tinha uma placa de “não há vagas” — desculpe, estamos lotados — e eles não
tinham onde repousar o corpo fatigado.
Provavelmente, José deu voltas por Belém, procurando velhos amigos para
pedir um lugar para passar a noite e dizendo: “Minha esposa Maria está
prestes a ter o bebê, e não temos lugar para ficar”.
Ele sem dúvida recebeu muitas respostas amigáveis. “José, que bom te ver,
homem. Sentimos sua falta aqui em Belém. Com certeza adoraria poder
recebê-los nesta noite, mas tenho dois tios e três sobrinhos que vieram à
cidade para o registro, então estamos lotados”.
Talvez outro tenha dito: “É uma situação terrível, José. Com certeza deram
mancada com esse registro. Vocês sabem que eu os acomodaria se pudesse.
Aliás, como estão as coisas em Nazaré? As coisas andavam bem devagar aqui
até aparecer este registro, e não há comércio permanente nesse tipo de coisa”.
Outro pode ter sugerido: “Talvez você encontre alguém que tenha lugar
descendo a rua. Tenho muitos parentes na cidade para ajudar. Avise-me se
houver alguma outra coisa que eu possa fazer”.
E assim Maria e José instalaram-se à noite numa estrebaria, e ali Jesus
nasceu. Ninguém tinha lugar para o Filho de Deus, a segunda pessoa da
Trindade, quando ele veio a esta terra.
Não havia ninguém para ajudar Maria naquela noite, enquanto ela dava à luz
seu filho primogênito. José provavelmente ajudou como pôde, mas de que
serve um marido em tais circunstâncias? Em qualquer grau, quando tudo
estava terminado, Maria enrolou o bebê em panos de cueiros e deitou-o na
manjedoura.
O maior milagre do mundo aconteceu numa estrebaria, com o mundo
indiferente a ele.
Eu me pergunto se muitas vezes a mesma coisa não está acontecendo hoje
entre nós. Assim como os amigos de José, temos nossas boas desculpas. Mas
a verdade é a seguinte: não há lugar para ele na hospedaria de nosso coração.
Nossas almas são hospedarias ocupadas que não têm espaço para o Senhor.
Temos tempo para todas as outras coisas, mas tempo de menos para ele.
Dizemos: “Não podia dedicar mais uma hora à igreja ou ao estudo bíblico. Eu
realmente sou favorável ao cristianismo, mas simplesmente não tenho tempo
disponível”. Ou ainda, declaramos: “Sou a favor das missões, mas não posso
doar mais dinheiro àquela igreja. Há muitas necessidades para o meu
dinheiro, e não tenho onde encontrar um dólar sobrando em lugar algum”.
Temos boas intenções, claro, ou assim dizemos a nós mesmos e a todos os
outros, mas o fato é que nossa vida está preenchida, e assim damos as costas
ao Senhor para dar espaço às nossas trivialidades. A maioria de nós estamos
mais ocupados do que Deus quer que estejamos ou planejou que
estivéssemos. Temos tempo e lugar para tudo, menos para ele, que deveria vir
em primeiro lugar. Não temos tempo nem lugar para Jesus Cristo neste
domingo de manhã?
Podemos ser gratos por uma coisa: embora muitas vezes não haja lugar para
ele na hospedaria de nosso coração, ele sempre encontra lugar para nós.
Ele chama seus convidados e ordena a seus servos que parem os viajantes e
transeuntes para instá-los a entrar. Ele acolhe o pobre, o aleijado e o cego, e
tem homens nos caminhos e atalhos em busca de mais convidados. Nós
dizemos: “Desculpe, não há lugar”; ele diz: “mais lugares, ainda mais lugares
para vocês”. O contraste foi bem definido pelas palavras familiares do hino
de Emily Elliott, “Tu deixaste, Jesus, o teu reino de luz” (Vesper Chimes,
134).
Tu deixaste, Senhor,
Tua glória, esplendor,
Quando ao mundo quiseste descer,
Não puderam achar
Em Belém um lugar,
Num presépio Tu foste nascer.
Vem ao meu coração, ó Cristo,
Nele tenho p'ra Ti um lugar!
Vem ao meu coração, ó Cristo vem!
Nele podes p'ra sempre morar!
Hinos de adoração,
Anjos no céu Te dão,
Te rendendo excelso louvor.
Mas humilde o Senhor
Veio ao mundo de horror,
Pra dar vida ao mais vil pecador!
As raposas aqui
Covas têm para si,
E seus ninhos as aves do céus,
Só não teve um lugar
P'ra cabeça pousar
Jesus Cristo, o Filho de Deus.
Do céu vieste Jesus,
Nos trazendo Tua luz,
Que nos dá eternal salvação;
E com ódio e furor
Te cravaram, Senhor,
Sobre a cruz, donde deste o perdão!
Aleluias nos céus,
Ao Cordeiro de Deus!
Quando vier o Seu povo buscar;
Sua voz se ouvirá
E pra mim, oh! Dirá:
“Vem, Eu tenho pra ti um lugar”.
(Cristo e sua humilhação, citado aqui conforme a versão da Harpa
Cristã, hino 481)
Sobre o autor

Rousas John Rushdoony (1916-2001) foi um célebre erudito americano,


escritor e autor de mais de trinta livros. Graduou-se pela University of
California (bacharelado e licenciatura plena em Artes Liberais) e
recebeu treinamento teológico na Pacific School of Religion. Ministro
ordenado, serviu como missionário entre os índios dos povos paiute e
shoshoni e também em duas igrejas na Califórnia. Criou a Chalcedon
Foundation, uma organização educacional dedicada à pesquisa,
publicação e comunicação persuasiva do saber distintivamente cristão
para o mundo inteiro. Seus escritos no Chalcedon Report e seus vários
livros produziram uma profícua geração de crentes ativos na
reconstrução do mundo para a glória de Jesus Cristo. Ele residia em
Vallecito (Califórnia) e estava comprometido com pesquisas, palestras
e o auxílio de irmãos no desenvolvimento de programas que
colocassem a fé cristã em ação. É autor, entre outros livros, de
Cristianismo e Estado, Fundamentos da ordem social, A política da
pornografia, Esquizofrenia intelectual, Rejeição à humanidade e A
filosofia do currículo cristão.

[1]
Citado aqui conforme a versão brasileira disponível em «http://www.luteranos.com.br/conteudo/confia-o-teu-caminho».

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