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R. J. Rushdoony
BOM DIA,
AMIGOS
Volume 1
Copyright © 2017, de Mark R. Rushdoony
Publicado originalmente em inglês sob o título
Good Morning, Friends – volume 1
pela Chalcedon / Roos House Books,
P.O. Box 158, Vallecito, Califórnia, 95251, EUA.
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
Editora Monergismo
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br
1a edição, 2020
Todas as citações bíblicas foram extraídas da Versão Almeida Revista e Atualizada (ARA), salvo
indicação em contrário.
Conteúdo
1. Deus
2. O Deus de Abraão, Isaque e Jacó
3. A Trindade
4. A bondade de Deus
5. O seu Deus está morto?
6. Providência
7. A Palavra de Deus
8. Os decretos de Deus
9. Emanuel (Salmo 46)
10. O ofício profético de Cristo
11. O ofício sacerdotal de Cristo
12. O ofício real de Cristo
13. A Cruz
14. As perguntas mais fáceis
15. O poder da ressurreição
16. Criação e o Criador
17. À sua imagem
18. O fim principal do homem
19. Preservando a superfície
20. O apelo
21. A aliança
22. O desejo de morrer
23. Autoilusão (Tiago 1.14)
24. Atalhos
25. Pecado
26. Vocação eficaz
27. Santificação
28. Adoção
29. Marcas
30. O que é a fé?
31. Fé salvadora
32. Do arrependimento para a vida
33. O significado da pureza
34. O processo educacional de Deus
35. “Não se turbe o vosso coração”
36. “Que poderá fazer o justo?”
37. Responsabilidade
38. Obediência (Efésios 6)
39. “Mais bem-aventurado é”
40. “Espera com paciência nele”
41. O hábito da autojustificação
42. Quem é infalível?
43. “O Senhor dirige”
44. “Sacudido no crivo”
45. Aquele que andou em trevas
46. A chave de entendimento
47. Quando Deus pede
48. Não há vagas
Sobre o autor
1. Deus
15 de junho de 1954
Bom dia, amigos. Vez por outra, nossos filhos nos surpreendem com uma
pergunta simples, mas de escopo vasto, e nos deixam à procura de respostas.
Uma dessas perguntas é: “Quem é Deus?” ou “o que é Deus?”. Como
responderemos a essa pergunta, tanto a nós mesmos quanto a nossos filhos?
Afinal, o que é Deus? A pergunta não é nova. Há muito tempo, no monte
Horebe, um pastor chamado Moisés recebeu a ordem de voltar ao Egito e
libertar seu povo do cativeiro. Moisés hesitou diante da ordem divina,
dizendo que o povo questionaria sua autoridade. “Que lhes direi?”,
questionou, “se me perguntarem seu nome, isto é, a definição do Deus que
me envia?” “Deus disse a Moisés: Eu sou o que sou. Disse mais: Assim dirás
aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós outros” (Êx 3.14). Como Deus
definiu-se ou nomeou-se a Moisés? Como o autoexistente e autossuficiente.
Deus não apelou a nada que conhecemos para declarar-se a si mesmo:
Simplesmente afirmou: Eu sou o que sou.
Como Deus se revela a nós? O primeiro modo como Deus se revela a nós é
por meio da natureza, isto é, por meio de toda a criação. Tudo dá testemunho
dele, e nada faz sentido se separado dele. Como diz Paulo: “Porque os
atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua
própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo,
sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são,
por isso, indesculpáveis” (Rm 1.20). Mas, porque estão em rebelião contra
Deus, os homens preferem mudar a verdade de Deus em mentira (Rm 1.25) e
adoram a si mesmos, em lugar do criador. Portanto, embora Deus se revele na
natureza na medida em que o homem é indesculpável, o homem rejeita este
conhecimento e não lhe admitirá a existência.
Bom dia, amigos. Na reserva indígena em que passei oito anos e meio antes
de vir para Santa Cruz, havia um ancião cuja vida e experiência limitava-se
àquela área. Como resultado, as únicas árvores que ele conhecia eram
pinheiros, juníperos, cedros, choupos, salgueiros, álamos tremedores e que
tais, árvores da região, nenhuma delas grandiosa. Pode-se imaginar seu
desgosto quando, alguns anos atrás, ele ouviu um missionário falar sobre as
grandes sequoias na encosta da Sierra, descrevendo uma árvore em particular
como tão grande que um carro, ou até mesmo um ônibus, poderia atravessar o
centro oco daquela sequoia viva. O velho índio levantou-se e saiu
imediatamente, comentando do missionário: “Esse homem é o maior
mentiroso que já vi”.
Agora, antes de rir daquele homem idoso, seria melhor lembrar-nos de nossa
própria tendência a duvidar do que está além de nossa experiência. Tendemos
a limitar o possível ao que sabemos e ao que cremos que seja possível.
O que tudo isso quer dizer? Simplesmente o seguinte: para adorar a Deus
devemos adorá-lo como o Deus Triúno; devemos vê-lo, não meramente no
que ele faz por nós, mas como Deus mesmo; Pai, Filho e Espírito Santo, a
Trindade três vezes santa, cuja adoração é a única adoração verdadeira.
Gloriar-se no Senhor não pode significar gloriar-se no que ele faz por nós,
pois então o que adoramos seria a nós mesmos e nossa gratificação, nossa
satisfação. Gloriar-se no Senhor significa gloriar-se nisto, em que ele é o
Senhor, “a única origem de todo o ser; dele, por ele e para ele são todas as
coisas” (Confissão de fé de Westminster, cap. 2.2).
Moisés queria ver a glória de Deus, e Deus declarou que sua glória não era
sua majestade como tal, mas, antes, a sua bondade: “Farei passar toda a
minha bondade diante de ti”. A bondade de Deus é a sua glória. A bondade
de Deus não é a sua benevolência nem sua disposição a ouvir nossas orações.
Se Deus houvesse de dar-nos tudo quanto pedimos, fosse um milhão de
dólares ou um ambiente transformado, afirmar-se-ia não a sua bondade, mas
apenas a sua indulgência. A bondade de Deus é a sua glória; no entanto, essa
bondade muitas vezes é desagradável do nosso ponto de vista, e é desafiador
às nossas almas aceitá-la quando envolve problemas, tristeza e fardos.
Se nossa vida está oculta com Cristo em Deus, então de fato conhecemos a
sua bondade. Conhecemos a glória de sua graça e onipotência, e sabemos,
então, a medida de sua graça e o significado de sua glória.
E isso significa viver para ele, cuja única vontade é nossa paz, e o único a
quem pertence o poder, o domínio e a glória.
5. O seu Deus está morto?
7 de setembro de 1954
O deus morto de muitos modernos é um ideal lindo, mas o Deus vivo e Pai de
Jesus Cristo é nosso refúgio eterno, socorro bem presente na angústia. O
Deus vivo não nos deixa desamparados, sozinhos e amedrontados em nossa
perplexidade e carência. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de
graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai”
(Jo 1.14). O Deus vivo e todo-poderoso manifesta seu cuidado para conosco
por meio da encarnação, pela qual o Deus Filho se fez homem e vivenciou
todas as provações humanas e venceu o pecado e a morte.
Esta é a confiança que temos no Deus vivo. Sabemos que ele é capaz, que faz
todas as coisas bem, e que podemos descansar e regozijar-nos em sua
onipotência.
Bom dia, amigos. De vez em quando, alguém tenta dizer-me que tudo é inútil,
porque toda a vida é determinada pelos políticos, pela hereditariedade, pelo
ambiente, pelos capitalistas, pelos sindicatos ou por alguma outra coisa.
Naturalmente, um ministro tem de ser polido, então nem sempre posso dizer
exatamente o que sinto dessas opiniões, embora sempre afirme a
responsabilidade humana em oposição a essas desculpas.
Nesta manhã, gostaria de tentar responder àquela pergunta: quem controla as
coisas, afinal? Quem ou o que, em última análise, puxa as rédeas e faz as
coisas funcionarem? A maioria das ideias sobre o assunto são tão velhas
quanto o homem e podem ser resumidas em duas filosofias da Grécia antiga,
o epicurismo e o estoicismo. Os epicureus diziam que o universo é regido
pelo acaso, não por um propósito. Para eles, não há um significado real na
vida, e o homem é pequeno demais para dar qualquer propósito a ela. Os
estoicos diziam que o destino rege todas as coisas, e o homem está
claramente desamparado diante do destino. A maioria de nossas ideias, hoje,
pode ser resumida sob uma dessas filosofias: acredita-se que acaso e destino
regem todas as coisas.
É a isto que se opõe a doutrina cristã da providência. A fé na providência é
uma afirmação da crença em que há um propósito em todas as coisas, que
Deus opera em todas as coisas e por meio delas para conduzi-las a seu fim
determinado. A providência envolve a preservação de todas as coisas
tomando em consideração o plano divino, a concorrência ou cooperação de
Deus em cada acontecimento, de modo que em momento algum ele está
ausente ou sem o controle, e, finalmente, seu governo em cada coisa e
acontecimento.
Podemos crer na providência? Bem, se não crermos na providência, não
podemos crer em mais nada. Há um propósito criativo no trabalho em todas
as coisas, a vontade de Deus para aquela criatura ou criação. Quando entrei
em meu carro nesta manhã, eu o fiz com um propósito, um propósito
específico. Quando Deus criou, criou com um propósito — não de modo
vago —, e todas as coisas revelam aquele propósito.
Agora, voltemos nossa mente para outra coisa por alguns minutos, antes de
prosseguir nessa discussão da providência. Dois sábados atrás, quando devia
estar trabalhando nos retoques finais de meus sermões de domingo, fui
atraído por um livro sobre aranhas e passei um tempão folheando-o. Um item
em especial chamou-me a atenção. Foi feito um censo de aranhas num
gramado em Sussex, Inglaterra, e este mostrou uma incrível população de
mais de 2 ¼ milhões de aranhas por acre. Nesta base, estima-se que a
população de aranhas da Inglaterra e do País de Gales é de 2 1/5 bilhões, o
que, no mínimo, come anualmente uma população de insetos cujo peso é
maior do que o de toda a população humana da Inglaterra e de Gales. Se as
aranhas não destruíssem tais insetos, os homens não poderiam sobreviver.
Isso já é interessante, mas ocorreu-me mais uma coisa, e considero um fato
ainda mais tremendo. Os insetos que essas aranhas comem também têm seu
propósito designado, e o cumprem apenas para manter-se dentro dos limites e
da utilidade para as aranhas. Por sua vez, as aranhas são reprimidas por outras
criaturas, os pássaros, por exemplo. Assim, cada um faz seu trabalho e tem
algum obstáculo sobre si a fim de preservar o equilíbrio da natureza.
Tudo isso fala não de acaso ou destino, mas de projeto, propósito e
providência, e esse projeto e propósito alcançam também os mais ínfimos
detalhes da criação. A Escritura nos diz que até os cabelos de nossa cabeça
estão contados. Nosso Senhor declara que não pode cair um pardal sem o
consentimento de nosso pai que está nos céus; e o Senhor falou a Jó de seu
prazer na criação.
Há um propósito vasto e grandioso em toda a criação, e qualquer noção de
acaso diante dele parece flagrante estupidez. A Escritura afirma que o
controle providencial de Deus é sobre todo o universo, sobre o mundo físico
e a criação bruta, sobre a relação entre as nações, sobre o nascimento, a vida e
a morte do homem, sobre seu sucesso ou fracasso exterior, sobre coisas
aparentemente acidentais ou insignificantes, sobre a proteção do justo, o
suprimento das necessidades do povo de Deus em resposta à oração, e a
exposição e punição dos maus.
Portanto, a resposta à pergunta “Quem controla as coisas?” é “Deus em sua
providência”. À alegação de que tudo é inútil e que não há sentido na vida, a
resposta é que tudo tem um propósito, e há um sentido em tudo, mas nada é
compreensível, sejam as aranhas, sejam os homens, a menos que comecemos
com Deus. É ele quem dá significado a toda a vida. Retire-se a fé nele, e não
se terá nada; tudo se torna definitivamente inútil. Isso se aplica não apenas à
vida à nossa volta, mas também a nós mesmos. Nossa vida só tem significado
à luz de Deus e de seu propósito para nós: se abandonamos a ele e a seu
propósito para nós, abandonamos a sanidade da vida com significado. Crer
em Deus é crer na providência, e crer na providência é crer que nossa vida
tem propósito e direção mesmo apesar de nós mesmos e de nossas falhas, e
que Deus trabalha ao mesmo tempo em nós para aquele fim determinado e
glorioso.
Como o declara a Confissão de fé de Westminster:
Pela sua muito sábia providência, segundo a sua infalível presciência e
o livre e imutável conselho da sua própria vontade, Deus, o grande
Criador de todas as coisas, para o louvor da glória da sua sabedoria,
poder, justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e
governa todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a
maior até a menor. (Cap. 5:1)
E como disse nosso Senhor (Mt 10.29-31): “Não se vendem dois pardais por
um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai.
E, quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados. Não
temais, pois! Bem mais valeis vós do que muitos pardais”.
7. A Palavra de Deus
8 de junho de 1954
Bom dia, amigos. Gostaria de discutir nesta manhã algo de que o mundo
nunca careceu: palavras. A maioria de nós tem problema com as palavras,
porque ouvimos demais e falamos demais.
Algum tempo atrás, abordamos parcialmente o significado da linguagem.
Vimos que, para muitas culturas pagãs, magia e discurso estão estreitamente
relacionados e muitas vezes se identificam entre si. As palavras têm um poder
irrevogável sobre tais pessoas e podem até matar. Um curandeiro fala, e um
homem morre porque foi condenado por aquela palavra. Isso à primeira vista
parece muito distante de nós. Dizemos que um nativo que morre por uma
palavra é vítima do poder de sugestão e insistimos que tal magia é
superstição. No entanto, o motivo por que falamos demais é que acreditamos
no mesmo tipo de poder mágico das palavras. Cremos que dizer fará as coisas
acontecerem e assim falamos quando nossa consciência nos diz que o silêncio
é o caminho da sabedoria. Estamos mais prontos a falar que a trabalhar, e
pomos mais fé nas palavras do que em Deus, porque estamos muito mais
dispostos a falar que a orar.
Por que somos assim? Isso remonta ao velho Adão em todos nós, a nosso
pecado original. A tentação no Jardim do Éden foi a seguinte: “Como Deus,
sereis conhecedores [ou determinadores] do bem e do mal” (Gn 3.5). O
homem foi tentado a ser como Deus, cuja palavra soberana e onipotente cria e
recria todas as coisas. Disse Deus: “Haja luz, e houve luz” (Gn 1.3). Nosso
Senhor disse: “Quero, fica limpo!” (Mt 8.3), e a lepra desapareceu. Sendo
Deus, a palavra dele é poderosa e criativa.
O homem, em sua rebelião e pecado, constitui-se a si mesmo como seu
próprio Deus e tenta determinar todas as coisas. E o homem em rebelião tenta
justificar a si mesmo. Toda a linguagem, portanto, está contaminada pelo
pecado e pelo desejo de autojustificação. Isso é verdade, em parte, até mesmo
para o cristão, em quem o velho Adão nunca morre. Portanto, a palavra do
homem jamais é digna de confiança; nunca é inteiramente livre do pecado e
da autojustificação e sempre tende a gravitar em direção a duas coisas:
pecado e autojustificação. Nossa disposição a falar e não a orar é prova desse
fato: tentamos ser como Deus e, portanto, estamos mais dispostos a recorrer
às palavras que à oração; basicamente, a nós mesmos, e não ao Senhor.
É por esta razão que a revelação de Deus jamais pode ser deixada nas mãos
dos homens para ser manuseada conforme a palavra do homem. Deus fala a
nós diretamente e sem nenhum intermediário contaminado na Escritura, na
Bíblia. Qualquer tentativa de interferir na objetividade da palavra da Bíblia é
uma tentativa de destruí-la. Se dizemos que a Bíblia é o registro da revelação
de Deus e não a própria revelação, confiscamos-lhe a objetividade. Se a
Bíblia simplesmente contém a palavra de Deus em vez de ser a Palavra de
Deus, então temos de caçar por toda a Bíblia a fala de Deus e imaginar se ela
realmente está ali, já que, afinal, a Bíblia é um livro completamente humano.
Remover a segurança de uma Bíblia infalível é destruir a fé cristã, subverter a
palavra de Deus e colocar a palavra do homem em seu lugar.
Se, no final das contas, temos de pôr a palavra de Deus em algum lugar na
Bíblia em meio a muitos dados aleatórios, então somos juízes —
autonomeados, mas ainda assim juízes — de Deus. Se a palavra de Deus é
palavra de Deus somente quando a reconhecemos como tal, então nosso deus
e autoridade básica e suprema é nosso julgamento e razão, não o Deus da
Escritura. Deus e Sua Palavra não podem ser julgados por homem algum:
eles é que nos julgam. Se insistirmos em dar à nossa mente o direito de julgar
a palavra de Deus, declaramos que somos a autoridade máxima e que
somente o que alcança nossa inteligência tem o direito de existir!
Basicamente, a questão é de quem é a palavra fidedigna: minha ou de Deus?
Os catecismos perguntam acerca da Escritura:
B.C. P. 2: Que regra Deus nos deu para nos orientar quanto ao modo de
glorificá-lo e gozá-lo?
R. A Palavra de Deus, que se encontra nas Escrituras do Antigo e do
Novo Testamentos, é a única regra para nos orientar quanto ao modo de
glorificá-lo e gozá-lo.
B.C. P. 3: Qual é a coisa principal que as Escrituras nos ensinam?
R. A coisa principal que as Escrituras nos ensinam é o que o homem
deve crer acerca de Deus, e o dever que Deus requer do homem.
C.M. P. 4: Como pode ser demonstrado que as Escrituras são a Palavra
de Deus?
A. As Escrituras se manifestam como a Palavra de Deus por sua
majestade e pureza, pela harmonia entre todas as suas partes e pelo
propósito do seu conjunto, que é dar toda a glória a Deus; pela sua luz e
pe1o poder que possuem para convencer e converter os pecadores e
para edificar e confortar os crentes para a salvação. O Espírito de Deus,
porém, ao dar testemunho, pelas Escrituras e juntamente com elas, no
coração do homem, é o único capaz de persuadi-lo completamente de
que elas são realmente a Palavra de Deus.
A Escritura é nosso mestre fidedigno. Nas palavras de Paulo: “Pois tudo
quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela
paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rom.
15.4).
8. Os decretos de Deus
29 de junho de 1954
Bom dia, amigos. Nesta manhã, gostaria de falar dos decretos de Deus. O que
são eles? Quando dizemos que Deus decreta algo, o que queremos dizer? O
Catecismo Breve responde assim:
R. 7: Os decretos de Deus são o seu eterno propósito, segundo o conselho da
sua vontade, pelo qual, para a sua própria glória, ele predestinou tudo o que
acontece.
À primeira vista, parece algo muito distante de nossa vida, mas, na verdade,
tem um significado e uma aplicação que alcança cada fibra e nervo da sua
vida e da minha.
Numa palavra, ele nos diz isto: que o Senhor é Deus e que é Deus quem
governa todas as coisas, não o acaso. Você e eu nos sentamos e tentamos
planejar a vida. Estimamos tanto tempo para o trabalho e tanto tempo para o
lazer. Fazemos nosso orçamento, planejamos nossas finanças e decidimos
que certa quantia terá de ser separada mensalmente para os pagamentos,
deixando-nos com uma soma específica de dinheiro para os demais
propósitos. Honesta e sinceramente tentamos planejar a vida, mas,
evidentemente, o problema é que os planos não são perfeitos. Imprevistos
acontecem, coisas sobre as quais não temos controle, e nem nosso tempo nem
nosso dinheiro se mostram como nossos. Doenças ou despesas extras
destroem nosso planejamento e, às vezes, anos de esperança. E então
começamos a planejar e a esperar tudo de novo. Isso tem seu valor; dá-nos
pequenas vitórias que seriam impossíveis sem planejamento, mas sempre
sabemos que jamais teremos controle sobre todos os fatores em nossa vida,
em nosso trabalho e no mundo. Planejamos, mas acontecimentos fora do
nosso controle continuamente nos impelem a mudar e a ajustar o
planejamento.
Se os planos de Deus fossem como os nossos, boa parte da criação de Deus
teria ficado fora de seu controle, movendo-se ao acaso. O acaso seria mais
importante que Deus, porque os planos de Deus estariam sujeitos ao acaso se
os acontecimentos se impusessem a seus planos. Sabemos que não é assim:
não há acaso neste mundo. Como declarou Tiago, irmão de nosso Senhor, no
concílio de Jerusalém: “Diz o Senhor, que faz estas coisas conhecidas desde
séculos” (At 15.18). O plano de Deus é o plano perfeito: não deixa nada ao
acaso, e nem o homem nem os acontecimentos, mas somente Deus controla o
curso do plano.
O que isso significa para nós? Suscita, naturalmente, algumas perguntas
sobre como reconciliar o decreto de Deus e a liberdade e a responsabilidade
humanas. Tais questões não podem ser respondidas: nossa mente não é capaz
de apreender todas as suas implicações. A única coisa que sabemos, no
entanto, é que acreditar num Deus que tem pleno controle dá sentido a cada
momento e a cada ato em nossas vidas. Nada que nos acontece é sem sentido
ou sem significado. O mundo não está desgovernado, nem Deus está fora do
posto de capitão. Ele tem controle pleno e absoluto. Isso quer dizer que há
um propósito para todas as coisas que a fé e a paciência podem discernir e em
que podem confiar.
Cada um de nós sofre as coisas e passa por provações e tribulações que
testam tremendamente o nosso espírito. A vida seria sem sentido e cruel se só
pudéssemos crer que essas coisas são sem sentido e os atos aleatórios.
Todavia, se podemos crer, como a Escritura nos pede que creiamos, todas
essas coisas são parte do decreto de Deus e têm um significado sob a ótica
dele; então sabemos que nada é sem sentido ou desperdiçado seja em nossa
vida, seja em toda a criação. Sabemos, portanto, que há um propósito eterno
em todas as coisas e por trás delas, e nossa força está em confiar em Deus e
em suas obras. Isso nos permite dizer: embora não saiba por que essas coisas
me aconteceram, creio no amor e no propósito que está por trás delas e que as
trazem até mim. Porque o Senhor planejou isto, sei que seu propósito é sua
glória eterna e meu fortalecimento e satisfação nele. Podemos dizer, junto
com Paulo: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que
amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm
8.28).
9. Emanuel (Salmo 46)
30 de novembro de 1954
Bom dia, amigos. Todo ano, do Dia de Ação de Graças até o Natal, a
Sociedade Bíblica Americana promove um programa de leitura bíblica diária,
incentivando as pessoas a ler as Escrituras todos os dias. Trata-se de um
programa valiosíssimo. “Uma intenção vaga de ler a Bíblia não leva a nada
até que você realmente faça um início diário”.
Nossa leitura bíblica de hoje é o salmo 46, o salmo que inspirou o grande
hino de Lutero “Castelo Forte é nosso Deus”. O salmo diz assim:
Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem-presente nas
tribulações. Portanto, não temeremos ainda que a terra se transtorne e
os montes se abalem no seio dos mares; ainda que as águas tumultuem
e espumejem e na sua fúria os montes se estremeçam. Há um rio, cujas
correntes alegram a cidade de Deus, o santuário das moradas do
Altíssimo. Deus está no meio dela; jamais será abalada; Deus a ajudará
desde antemanhã. Bramam nações, reinos se abalam; ele faz ouvir a sua
voz, e a terra se dissolve. O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus
de Jacó é o nosso refúgio. Vinde, contemplai as obras do Senhor, que
assolações efetuou na terra. Ele põe termo à guerra até aos confins do
mundo, quebra o arco e despedaça a lança; queima os carros no fogo.
Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus; sou exaltado entre as nações, sou
exaltado na terra. O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó
é o nosso refúgio. (Sl 46.1-11)
A data e a autoria deste salmo nos são desconhecidas, mas uma coisa se
destaca com toda clareza: O salmo foi escrito num período de crise
internacional, guerra e desastres naturais tremendos. Ouvimos que “Bramam
nações, reinos se abalam”. Terremotos assustadores acrescentam-se a essas
agitações políticas, para dar um quadro geral de um mundo completamente
instável. Os terremotos eram tais que as montanhas se abalavam nos mares, e
estes rugiam e irrompiam num ímpeto de tempestade e tremores. As outras
montanhas pareciam como que arrastadas pelas enchentes ou tremores
contínuos. Não só o mundo do homem e as nações, mas todo o fundamento
sob os pés dos homens era instável. Os homens chegavam a se perguntar se a
vida continuaria ou se haveria algum sobrevivente a tal combinação de
desastres gigantescos.
O estado de ânimo deles estava talvez como o de muitas pessoas hoje, que
sentem que cada dia parece levar o mundo cada vez mais fundo num horror
gigantesco e deixar o chão cada vez menos estável sob os pés do homem.
Mas, em meio a todos esses horrores, ouvimos a voz da fé anunciar no salmo
46:
Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem-presente nas
tribulações. (v. 1)
Portanto, não temeremos ainda que a terra se transtorne e os montes se
abalem no seio dos mares. (v. 2)
O refrão do salmo dá a razão desta confiança: O Senhor dos Exércitos está
conosco. Deus está conosco, este é o brado exultante. Este refrão nos dá em
substância um dos nomes de Jesus Cristo, a Segunda Pessoa da Trindade: este
nome é Emanuel, que quer dizer “Deus conosco”. Para o profeta Isaías e um
remanescente profundamente perturbado com a decadência moral da nação,
nada parecia mais solitário do que o seu grupo. Eles estavam, assim sentiam,
sozinhos num mar de maldade. Para eles, Deus não só deu a promessa de
enviar seu Filho, mas um nome desse Filho que descreve o Deus trino em sua
relação com seu povo, Emanuel, Deus conosco. É esta fé que o salmo 46
declara e celebra.
E esta mesma fé é nossa força e alegria, pois nosso Deus não é um Deus
distante, mas mais próximo de nós do que nós mesmos. Nós nos sentimos
sozinhos na privacidade da dor, do desejo e da esperança de nosso coração,
mas Deus vê mais em nós do que vemos em nós mesmos, e ele nos ama,
apesar de todo o nosso pecado e de nossas faltas. Assim, no pleno sentido da
palavra, ele é de fato Emanuel, Deus conosco.
Em contraste com as enchentes do mundo, as torrentes destruidoras,
enfurecidas, o salmista fala de “um rio, cujas correntes alegram a cidade de
Deus” (v. 4). A cidade de Deus é sua igreja, seu povo, e o rio silencioso que
os alimenta e sustenta é a presença de Deus entre seu povo. Este é o fato
decisivo: não a desordem das nações e da natureza, mas o Deus Altíssimo
que governa e dirige o curso da história. Deus não é um Deus distante,
indiferente ao apelo de seu povo e alheio a toda a história humana. Ele é
Emanuel, Deus conosco, e nos convoca e ordena que deixemos de afligir-nos.
Ele declara: “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus; sou exaltado entre as
nações, sou exaltado na terra” (v. 10).
O Deus que falou essas palavras tinha apenas um punhado de crentes judeus
em todo o mundo daqueles dias, mas declarou veementemente a conversão
dos pagãos, e sua exaltação em todo o mundo. Essas coisas estão se
realizando agora. Sua promessa é que se cumprirão em seu Reino eterno. Sua
garantia é que cada passo está sob seu governo providencial e que, em todo o
caminho, ele é nosso Emanuel, Deus conosco.
Podemos, portanto, cantar com alegria junto com o salmista: “O Senhor dos
Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio” (v. 11).
10. O ofício profético de Cristo
19 de outubro de 1954
Bom dia, amigos. Um dos fatos mais tristes acerca de nossa fé é que
muitíssimos crentes são demasiado ignorantes das coisas de Deus e, ainda
assim, estão satisfeitos em sua ignorância. Se um cidadão americano dissesse
que tudo que sabe sobre Eisenhower é que ele tem algum tipo de trabalho no
governo em Washington, nós o consideraríamos um completo ignorante e um
americano pobre. Ora, muitos cristãos são igualmente ignorantes acerca de
Jesus Cristo e de sua posição no governo divino.
Nesta manhã, começaremos um estudo dos ofícios de Cristo. Em primeiro
lugar, precisamos analisar brevemente a pergunta: quem é Jesus Cristo? A
resposta da Escritura é claríssima e sem hesitação: o homem que caminhou
pelas veredas da Palestina alguns séculos atrás era um homem plenamente
humano e, ao mesmo tempo, divino, divindade de divindade, “duas naturezas
distintas, e uma só pessoa”. Essa mesma pessoa que vive hoje e é nosso
Senhor e Deus, e nosso único Redentor.
O Breve catecismo de Westminster faz duas perguntas a este respeito e nos dá
respostas claras e específicas:
P. 23: Que ofícios Cristo exerce como nosso redentor?
R. Cristo, como nosso redentor, exerce os ofícios de profeta, sacerdote
e rei, tanto no seu estado de humilhação como no de exaltação.
P. 24: Como Cristo exerce as funções de profeta?
R. Cristo exerce as funções de profeta ao nos revelar, pela sua Palavra e
pelo seu Espírito, a vontade de Deus para a nossa salvação.
A partir daí, o ofício profético de Cristo fica mais claro. Jesus Cristo é a
revelação de Deus para nós, por meio de quem chegamos a conhecer a
vontade de Deus na medida em que nos é necessário conhecer. Em suma, por
meio de Cristo conhecemos a Deus.
Uma das afirmações fundamentais da Escritura é que nenhum homem jamais
viu a Deus nem ninguém jamais poderá vê-lo. Deus está além de nosso
pensamento ou imaginação: nossa mente limitada não pode começar a
apreender o significado da ideia de Deus. Deus não é um homem como nós,
mas é um espírito infinito, eterno e imutável. O homem teria de ser Deus para
conseguir compreender a Deus, e isso definitivamente nós não somos. Não
podemos entender verdadeiramente nem a nós mesmos: como podemos
esperar compreender a Deus?
Este predicado do homem é respondido por Deus em Cristo. Como declarou
João: “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai,
é quem o revelou” (João 1.18). Jesus Cristo é Deus encarnado, a segunda
pessoa da Trindade manifesta em carne. Como disse Jesus a Filipe: “Quem
me vê a mim vê o Pai” (João 14.9). Em Jesus Cristo vemos, conhecemos e
encontramos o próprio Deus. Assim, Jesus Cristo, como profeta, fala em
nome de Deus, não em visão e só às vezes como os profetas do Antigo
Testamento, mas de modo pleno e completo.
A imagem de Deus conforme a qual o homem foi criado consiste em
conhecimento, justiça, santidade e domínio. Em Cristo, o homem é
restaurado ao reino do verdadeiro conhecimento. Visto que Deus é o Criador
e Sustentador de todas as coisas, e visto que “todas as coisas foram feitas por
intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez” (João 1.3), está claro
que nada neste mundo tem significado à parte de Deus, seu criador e seu
propósito. Não podemos entender a terra, o sol, a lua e as estrelas, nem as
árvores e flores senão à luz de Deus, o Criador e propósito criativo.
Tampouco podemos entender nossa própria vida à parte do Senhor e de sua
vontade. Em Cristo, então, somos restaurados ao verdadeiro conhecimento.
Ele se tornou nossa sabedoria. Como profeta verdadeiro e final, a plena voz
de Deus, ele fala em nome de Deus a nós, e jamais podemos saber algo
verdadeiramente a menos que o saibamos nele.
Cristo fala a nós em seu ofício profético por meio de sua Palavra, a Bíblia, e
pelo Espírito Santo. O Espírito Santo, “o Espírito da verdade”, nos guia ao
entendimento de sua Palavra e, assim, “a toda a verdade” (veja João 16.13).
Porque Cristo é a plenitude de Deus, o Pai, nenhum cristão verdadeiro pode
crer em revelações novas ou adicionais. A Escritura é plena e completa na
revelação de Deus e de sua vontade conforme esta é necessária à nossa
salvação. Em Cristo, temos a revelação completa, temos a fala completa e
final de Deus, e nada pode a pode melhorar, nem lhe ser acrescentado ou
subtraído. Nas palavras da Escritura:
Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos
pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem
constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo.
(Hb 1.1-2)
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade,
e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai. (João 1.14)
11. O ofício sacerdotal de Cristo
9 de novembro de 1954
Bom dia, amigos. Algumas semanas atrás, começamos a examinar a obra de
Cristo como mediador entre Deus e o homem. Vimos que Cristo foi e é nosso
mediador “tanto no estado de humilhação quanto de exaltação” como profeta,
sacerdote e rei.
Nesta manhã, refletiremos sobre Cristo como nosso grande sumo sacerdote.
Em primeiro lugar, o que era um sacerdote? Um sacerdote era um
representante dos homens diante de Deus, alguém que se aproximava de
Deus por meio do sacrifício a fim de interceder por seu povo. Era o
representante do povo, ou embaixador, por assim dizer, diante de Deus. Era,
portanto, o exato oposto de um profeta. Um profeta é um representante de
Deus diante dos homens, um sacerdote é um representante dos homens diante
de Deus.
A obra do sacerdote era dupla: primeiro, oferecer sacrifício a Deus e,
segundo, fazer intercessão a Deus em favor dos homens. O sacrifício,
portanto, era fundamental a toda a função sacerdotal; uma porção
considerável da Bíblia está preocupada exclusivamente com o sacrifício, e
nada ali pode ser verdadeiramente compreendido à parte do sacrifício.
Primeiro, não há adoração sem sacrifício. Aquele a quem sacrificamos e pelo
que sacrificamos — eis o nosso verdadeiro Deus. Se sacrificamos
primeiramente visando a nós mesmos e nossos objetivos, então somos o
nosso próprio deus. Não há adoração sem sacrifício, e o sacrifício indica a
natureza e a área de nossa fé e vida.
Segundo, não é possível aproximar-se de Deus senão pelo sacrifício. O
sacrifício com o qual devemos aproximar-nos dele é de nós mesmos. Mas
qualquer coisa que não um sacrifício puro e imaculado é ofensa a Deus. O
único sacrifício aceitável a ele é um sacrifício santo. O homem não pode
oferecer-se como sacrifício a Deus porque é impuro e pecaminoso. Além
disso, porque somos pecadores por natureza e nossa adoração básica é uma
adoração de nós mesmos, nossa vontade e nosso desejo, estamos sob a
condenação de Deus e sob a sentença judicial de morte. Mas Deus, em sua
misericórdia, nos provê uma saída, dando-nos tanto um sacerdote perfeito
quanto um sacrifício perfeito, Jesus Cristo, que, como nosso grande sumo
sacerdote ofereceu-se a si mesmo como sacrifício imaculado a Deus. Deus foi
encarado no sacrifício mediante o ritual do Antigo Testamento, que tipificava
Cristo, e agora e até ao fim dos tempos por Jesus Cristo, nosso sumo
sacerdote. Como membros de Jesus Cristo, estamos na presença de Deus:
inocentes, porque ele é inocente; retos porque ele é reto; justos porque ele é
justo. Quando, pela fé, nos tornamos membros de seu corpo místico, sua
natureza nos é imputada na justificação e nos é dada progressivamente na
santificação.
Terceiro, porque agora somos membros de Jesus Cristo, somos capazes de
fazer um sacrifício aceitável de nós mesmos por meio dele. Apresentamos
nossos corpos como sacrifício vivo diante de Deus e lhe pedimos que destrua
nossa natureza e faça de sua natureza inteiramente a nossa.
Assim, o sacrifício e a expiação constituíram a primeira obra de Cristo como
sacerdote. Sua segunda tarefa é a de intercessor. Cristo intercede diariamente
por nós diante de Deus, ao mediar nossas orações e necessidades. O Deus
Filho pleiteia a nossa causa diante de Deus, enquanto o Deus Espírito Santo
pleiteia a causa de Deus conosco (veja Berhkof, p. 401). Do mesmo modo, o
Espírito Santo nos mantém sempre atentos às reivindicações de Deus sobre
nós, e de seus mandamentos, de modo que Cristo intercede por nós diante de
Deus. Nas orações intercessórias de Cristo no Novo Testamento, vemo-lo
orar pelos eleitos que ainda não foram a ele para que fossem levados a um
estado de graça, pelo perdão diário dos pecados de seu povo, por sua proteção
nas tentações, por sua santificação, por sua caminhada em intimidade com
Deus, por suas necessidades diárias e por sua herança final e perfeita no céu.
Este é o fato glorioso do ofício sacerdotal de Cristo. Isso quer dizer que nós,
que pela fé somos membros de seu corpo místico, temos uma voz no próprio
coração e na mente de Deus, uma voz eficaz que “[vive] sempre para
interceder por [nós]” (Hb 7.25).
Nas palavras do Catecismo maior de Westminster:
P. 44: Como Cristo exerce as funções de sacerdote?
R: Cristo exerce as funções de sacerdote por ter uma vez se oferecido
em sacrifício sem mácula a Deus, para ser a reconciliação pelos
pecados do seu povo, e ao fazer contínua intercessão por ele.
12. O ofício real de Cristo
16 de novembro de 1954
Bom dia, amigos. Estamos examinando, nestas últimas semanas, o ofício de
Cristo, nosso Redentor, tanto em seu estado de humilhação quanto de
exaltação, como profeta, sacerdote e rei.
Cristo exerce o ofício de profeta ao revelar-nos, por sua Palavra e Espírito, a
vontade de Deus para nossa salvação.
Cristo exerce o ofício de sacerdote em sua oferta definitiva em sacrifício para
satisfazer a justiça divina e reconciliar-nos com Deus e ao fazer intercessão
contínua por nós.
Nesta manhã, trataremos de seu ofício régio como nosso Redentor. Segundo
o Breve catecismo de Westminster, “Cristo exerce as funções de rei ao nos
sujeitar a ele, ao nos governar e nos proteger, bem como em conter e subjugar
todos os seus e os nossos inimigos” (BCW R.26).
Assim, vemos que Cristo, nosso Rei, tem uma tarefa tríplice. A primeira é
sujeitar-nos a ele. Esta não é uma tarefa pequena. Tendemos a satisfazer-nos
por nós mesmos. Estamos prontos para todas as mudanças, exceto a
fundamental, aquela que afeta nosso ego e nossa própria existência. Estamos
dispostos a aceitar a Deus e seus caminhos desde que ele nos aceite a nós e
nossos caminhos. Dizemos-lhe: “Sou teu, ó Senhor, mas seja feita a minha
vontade”. Queremos Deus, mas muitas vezes segundo nossos próprios
termos, e não os dele. Precisamos ser quebrados e dobrados à vontade de
Deus, mas, em vez disso, ansiamos por dobrar o Todo-Poderoso à nossa
vontade. Não é maravilhoso que Cristo Rei tenha de sujeitar-nos a fim de
governar-nos?
Seu Reino sobre nós tem origem não no ato da criação, mas no ato da
redenção. Ninguém é cidadão de seu Reino em virtude do status como
homem, mas somente pelo status como homem redimido. O Reino de Cristo
é um Reino espiritual, não natural. O Reino é presente e futuro ao mesmo
tempo. Reina sobre nosso coração hoje e impõe-se no curso inteiramente
providencial de toda a história. É também futuro pelo fato de que culminará
num Reino grandioso e eterno em que habitará a justiça. E nenhum homem
tem parte nesse Reino se não tiver sido sujeitado por Cristo.
A segunda tarefa de Cristo Rei é governar-nos e proteger-nos. Quando somos
sujeitados por Cristo, somos governados e protegidos por ele. A função de
um rei é proteger sua propriedade, e Cristo Rei protege sua propriedade e o
faz sem falta. Ele nos protege, em primeiro lugar, de nós mesmos, pois não
temos inimigo mais mortal do que nossa própria natureza. Contra nosso
coração inconstante e pés vacilantes, temos a defesa segura de Cristo Rei. Ele
também nos protege ao corrigir-nos em nossos pecados e ao preservar-nos e
apoiar-nos em nossas provas e tentações. Ele nos governa ao reger
diariamente todas as nossas ações e fazê-las cooperarem para o bem. Ao
governar-nos e proteger-nos, ele se manifesta como nosso Rei.
A terceira tarefa de Cristo Rei é conter e subjugar todos os inimigos — seus
e nossos. O mundo, a carne e o diabo são, por sua vontade soberana, contidos
e subjugados. Uma área de sua conquista é o universo. Cristo é Rei do
universo e continuará como seu Rei até o fim dos tempos. Então, segundo
Paulo em 1 Coríntios 15.24-28, acontecerá uma mudança na economia
divina:
E, então, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando
houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder.
Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos
debaixo dos pés. O último inimigo a ser destruído é a morte. Porque
todas as coisas sujeitou debaixo dos pés. E, quando diz que todas as
coisas lhe estão sujeitas, certamente, exclui aquele que tudo lhe
subordinou. Quando, porém, todas as coisas lhe estiverem sujeitas,
então, o próprio Filho também se sujeitará àquele que todas as coisas
lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos.
O reinado de Cristo sobre o universo terminará quando a vitória total for
atingida e o inimigo final, a morte, for destruído. Então o reinado voltará a
Deus Pai, a fim de que Deus seja tudo em todos. O propósito do Reino de
Cristo sobre o universo é redentivo, redimir a humanidade e restaurar o
reinado original do homem sobre a criação. O homem foi criado para ter
domínio sob Deus, e Cristo restaura este domínio do homem sobre o
universo. Seu reinado sobre os redimidos é eterno, e a nova criação
intensifica sua glória e dimensão.
É assim que Cristo exerce o ofício de um rei ao nos sujeitar a ele, ao nos
governar e nos proteger, bem como ao conter e subjugar todos os seus e os
nossos inimigos. Ele é de fato o Rei dos reis e Senhor dos senhores.
13. A Cruz
18 de setembro de 1956
Bom dia, amigos. Peça a qualquer grupo de cristãos que cite seus hinos
favoritos, e a probabilidade é que um alto percentual desses hinos esteja
relacionado com a cruz. À primeira vista, parece curioso que os cânticos mais
alegres tratem de um emblema de morte e vergonha. Pois a cruz era muito
claramente um instrumento de morte e vergonha, representando o castigo
brutal e deplorável reservado pelo Império Romano aos criminosos. No
entanto, é nesta cruz que nos gloriamos, a cruz de Cristo, a cruz vazia, que
representa sua vitória sobre a morte e sobre o pecado.
O que a cruz de Cristo representa para nós, e por que é nossa fonte de alegria
e nossa glória? Em primeiro lugar, representa a vitória de Cristo por amor a
nós. Jesus Cristo, Deus de Deus, tornou-se homem de homem, plenamente
divino e plenamente humano. Como aquele sem pecado, ofereceu a Deus
uma perfeita obediência em nosso lugar. Como portador do pecado, sofreu o
castigo de morte por nossa causa, morrendo como um criminoso na cruz.
Como Filho de Deus, levantou-se dos mortos e tornou-se a nascente de uma
nova humanidade, uma nova raça humana, constituída de todos os que o
aceitam como Salvador, a quem ele dá a vitória sobre o pecado e a morte. A
cruz, portanto, significa para nós salvação e vida nova em Cristo Jesus.
Significa fazer parte da nova humanidade e entrar numa vida de realização e
esperança.
Em segundo lugar, a cruz representa para nós algo central em nossa
experiência interior e em nosso crescimento espiritual. Nascemos na velha
humanidade de Adão, nossa natureza é pecar e nosso destino é morrer.
Quando aceitamos a Cristo pela fé como nosso Salvador, morremos
judicialmente para o velho Adão. Entretanto, a vida subsequente em Cristo
requer nossa santificação, o aspecto negativo do que envolve a mortificação
do velho Adão em nós. Em linguagem clara, isso quer dizer que morremos
para nossas esperanças e planos segundo a carne, e morremos também para
nossas pretensões, a fim de viver para Cristo e reconhecer somente as
esperanças e planos dele, e somente as pretensões dele. A cruz significa que
estamos constantemente morrendo para o velho Adão em nós e sendo
ressuscitados para o novo homem, Jesus Cristo. Nunca há em Adão uma
esperança para a qual morremos que não seja satisfeita com a ressurreição de
uma esperança maior em Cristo. Nunca há em Adão um plano ou pretensão
de que abrimos mão sem encontrar mediante a ressurreição de Cristo um
plano mais verdadeiro e uma pretensão substancial. Assim, a cruz representa
derrota constante, rendição e morte para nós e, ao mesmo tempo, vitória
crescente, poder e ressurreição. A cruz, portanto, é um símbolo adequado de
nossas esperanças e alegrias, e um verdadeiro tema de cânticos cristãos, visto
que encarna a essência de nossa salvação.
Em terceiro lugar, também significa a decisão inescapável da vida. Ninguém
pode escapar da cruz. Ou o sujeito carregará a cruz de sua natureza
pecaminosa com todas as suas mentiras e frustrações, ou carregará a cruz
gloriosa e vitoriosa de Cristo. Os homens desejam uma vida boa, uma vida
nobre, mas pode-se muito bem afirmar que “quando não há cruz, não há
coroa”, quando não há Cristo, não há vitória. Ou aceitamos a cruz
vivificadora de Jesus Cristo, ou nos encontramos progressivamente oprimidos
e esmagados pela cruz mortífera de nossa própria natureza. Que cruz vamos
carregar?
Jesus, minha cruz tenho tomado,
A tudo deixo e sigo a ti;
Carente, desprezado, abandonado
Serás meu tudo a partir daqui:
Cesse toda a insensata ambição
Tudo que busquei, esperei ou conheci
Por mais rica seja minha condição
Deus e o céu são o que possuí!
(Henry Francis Lyte, “Jesus, I My Cross Have Taken”, 1825)
13 de abril de 1954
Bom dia, amigos. Tempos atrás, no Domingo de Ramos, um homem
entrou em Jerusalém montado num jumentinho, cumprindo deliberadamente
uma profecia de centenas de anos para declarar-se o rei divino, não só de
Israel, mas do universo. Ele era o Filho de Deus e, assim se declarando,
entrou no Templo na segunda-feira, fazendo-lhe uma limpeza dos hipócritas e
fraudulentos, como um senhor divino que vem reivindicar sua propriedade.
Já que estamos numa manhã de terça-feira, vamos olhar brevemente o
que aconteceu naquela terça-feira da semana santa, muito tempo atrás. Este
foi o último dia do ministério público de Jesus, um dia de debate público com
os fariseus, ensino de parábolas e discussões com os discípulos sobre o fim
dos tempos e o fim do mundo. Um ponto é de especial interesse: nos versos
conclusivos de Mateus 22, nosso Senhor usou um salmo de Davi para provar,
a partir do testemunho daquele rei, a preexistência do Filho de Deus. Assim,
duas coisas se destacam na alegação de Jesus acerca de si mesmo. Em
primeiro lugar, ele declarou que sempre foi, que teve uma existência eterna e
infinita que era idêntica com a vida de Deus. Em segundo lugar, declarou que
todo o propósito de sua permanência na terra podia resumir-se na cruz, que
ele, de fato, veio para dar a vida em resgate de muitos, para libertá-los do
poder do pecado e da morte.
Esses dois pontos são importantes: retire-os e você não terá nenhum
Jesus que possa ser identificado com o homem que viveu na Galileia e foi a
Jerusalém para morrer. Aquele homem alegava ser Deus encarnado e
declarava que sua morte mudaria a natureza do homem. Declarou, e seus
discípulos testemunharam, que se levantaria dentre os mortos no mesmo
corpo com que foi crucificado. Ou as declarações daquele homem estavam
certas ou ele era um pobre tolo digno de pena ou de cadeia, não de adoração.
Não podemos recriá-lo para adequar-se a nós: temos de ser recriados para
adequar-nos a ele.
Se o aceitamos com base no que diz de si mesmo, descobrimos cada
vez mais que nele temos poder sobre o pecado. Este é um fato óbvio que só
os voluntariamente cegos podem negar. A segunda parte de nossa vitória em
Cristo não é tão óbvia, entretanto: a nossa vitória sobre a morte. Digamos do
seguinte modo: se Jesus Cristo morreu por nós para libertar-nos do poder do
pecado e da morte, então ele morreu a morte que nós tínhamos de morrer,
como rebeldes contra Deus. Assim, a pena está paga. Ora, podemos fazer a
pergunta que nos vem naturalmente à mente: se ele morreu por nós, por que
temos de morrer? Afinal, todos nós ainda havemos de enfrentar a morte.
Somos livres do poder do pecado, o que podemos reconhecer, mas ainda
morremos por tudo isso. Por que também temos de morrer? A resposta é
claríssima: nossa morte não é um castigo ou punição pelo pecado, mas “uma
abolição do pecado e uma passagem para a vida eterna” (Kuyper, p. 99; ver
também o Catecismo de Heidelberg, P. 42).
Enquanto estamos neste mundo, nunca somos inteiramente livres do
poder do pecado e do poder da morte. Há em nós o velho Adão, com sua
perversidade permanente. Ao nosso redor, há a tensão constante de um
mundo que constantemente tenta cometer suicídio enquanto clama por mais
vida. Vemos tudo mudar e, no entanto, continuar na mesma — contaminado e
pervertido diante de Deus. Os amanhãs do mundo vêm, mas parecem só uma
concentração maior dos pesadelos dos ontens. E o homem, criado à imagem
de Deus, ouve um chamado profundo bem em seu interior e brada:
“Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?”
(Rm 7.24).
Nossa vida neste mundo, e o mundo mesmo, é um corpo de morte para
nós. Ele promete paraíso, mas nunca o pode entregar, e por essa razão é
enganoso e fraudulento. Jamais podemos encontrar aqui algo que está
alhures. Nossa verdadeira vida não é aqui: está oculta juntamente com Cristo,
em Deus. Somente quanto vemos este propósito e objetivo de vida, glorificar
a Deus e gozá-lo para sempre, vemos este mundo em sua perspectiva
adequada e somos capazes de extrair dele a alegria que ele pode dar. Já não
esperamos demais dele, mas esperamos mais do Senhor.
Voltemos agora à nossa pergunta, por que temos de morrer, já que
Cristo morreu por nós? Eis a resposta: do mesmo modo que temos morrer
para nós mesmos, assim também, afinal, temos de morrer para este mundo e
esta vida a fim de obter a plenitude da vida. Nossa morte não é uma punição
pelo pecado, mas a abolição do pecado e da morte, porque ela nos leva à vida
eterna. A morte completa o processo de desmame de nossa vida espiritual.
Em nosso tempo de vida, você e eu fomos desmamados de uma série de
coisas; a cada vez, o processo era doloroso ou cansativo, mas os resultados,
maravilhosos. É assim com a morte, que coroa nossos dias e nos dá nosso
diploma da escola do mundo e do tempo. Para os cristãos, a morte é uma
graça que leva à plenitude da vida. Portanto, podemos dizer com alegria:
Jesus Cristo ressuscitou dos mortos. Verdadeiramente
ressuscitou, e libertou-nos do corpo desta morte.
16. Criação e o Criador
20 de julho de 1954
Bom dia, amigos. Algum tempo atrás, um censo da opinião religiosa
americana revelou o fato curioso, mas sem sentido, de que cerca de 98% dos
americanos acreditam em Deus. Considero esses dados sem sentido porque a
própria pesquisa deixou claro que a palavra Deus significava coisas
diferentes para pessoas diferentes. Para alguns, não significava mais do que
uma ideia de potencialidade no universo; para outros, significava apenas a
natureza; para outros ainda, significava um ser supremo de poder muito
limitado. O que muitas pessoas chamam Deus não é nem remotamente
comparável com o que a Escritura nos revela sobre Deus.
O único Deus digno de fé é um Deus verdadeiramente hábil, um Deus
onipotente, todo-poderoso e senhor em todas e sobre todas as coisas. Não
podemos crer em tal Deus a menos que também o aceitemos como Criador. O
primeiro versículo da Bíblia nos conta que “no princípio criou Deus os céus e
a terra”. Hebreus 11.3 declara que: “Pela fé, entendemos que foi o universo
formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das
coisas que não aparecem”. A verdadeira fé envolve, portanto, a crença em
Deus como Criador.
A Escritura nos diz que nem o mundo nem nada nele é autoexistente ou
eterno, que Deus, no princípio, criou os elementos do mundo a partir do nada
e trouxe-os, imediatamente e por sua palavra soberana, à sua forma presente.
A Escritura também declara que Deus fez boas todas as coisas, e as fez para
seu próprio propósito e para sua própria glória. A criação foi obra da
Trindade — a obra de Deus Pai (1Co 8.6), do Deus Filho (Jo 1.2-3) e do
Deus Espírito (Gn 1.2; Jó 33.4); do Deus Pai por meio do Filho (Hb 1.2) e do
Deus Pai pelo Espírito (Sl 104:30).
Algumas pessoas consideram essa doutrina da criação irremediavelmente
ultrapassada e inteiramente anticientífica. Preferem acreditar em várias
hipóteses ou teorias de um universo em desenvolvimento, emergente ou em
evolução, embora essa fé tenha uma única razão por trás: ela dá uma resposta
ao problema da criação que evita a Deus. Esta é a razão fundamental para a
teoria, não a evidência.
Se não acreditamos em Deus como criador, na criação de todas as coisas a
partir do nada, imediata e completamente, pela palavra divina, não podemos
acreditar no Deus da Escritura ou ter o consolo e a fé que somente a fé bíblica
pode dar.
Por que este artigo de fé é tão importante e por que a fé bíblica é destruída
sempre que alguém tenta afirmar a fé cristã em Deus sem ao mesmo tempo
declará-lo o Criador no pleno sentido da palavra?
Enfrentemos a questão com cuidado e clareza. Se os elementos e
componentes básicos do universo sempre existiram, e se se desenvolveram
até sua forma presente com base em sua própria potencialidade, então
existem dois seres eternos e autoexistentes — Deus e o universo. Se o
universo se desenvolve a si mesmo, então está sujeito apenas a suas próprias
leis e é independente de qualquer controle externo. Deus, então, se torna
alheio ao universo e incapaz de agir sobre ele ou alterar qualquer parte dele,
porque o universo é independente dele e é seu próprio soberano. Assim, é
inútil acreditar em Deus, porque ele é alheio ao mundo e alheio a nós e a
nossos problemas. Se o universo evoluiu por si mesmo, então é uma lei em si,
e Deus é alheio a ela e inerme diante dela. Você pode acreditar em tal
universo e ainda acreditar em Deus, mas seu Deus é um Deus inerme no que
concerne às necessidades que você tem.
Por outro lado, se Deus criou todas as coisas, como nos diz o primeiro
capítulo de Gênesis, então ele é Senhor e Soberano sobre todas as coisas e
tudo depende de sua graça e providência. Assim, em vez de ser alheio a
nossas vidas, ele, nosso Criador, é aquele em quem vivemos, nos movemos e
existimos. Nossa história se move tão somente segundo os critérios dele,
conforme a criação, a providência, a regeneração e o juízo. Toda a criação e
toda a história do homem servem apenas para realizar os propósitos e
decretos de Deus. Deus, o Criador, pode falar conosco, porque somos obra de
suas mãos; Deus, o Criador, pode sustentar-nos, porque o governo está em
seus ombros, não nas mãos da criação ou da criatura. Ele pode regenerar-nos,
porque é a imagem dele que carregamos e para a glória dele; ele pode julgar-
nos, porque o único critério e propósito da história é a vontade e a glória dele.
Os motivos de Deus não estão fora dele mesmo nem dependem da criação ou
do homem, mas apenas dele mesmo. Como diz o salmista: “Não a nós,
Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua misericórdia e
da tua fidelidade. Por que diriam as nações: Onde está o Deus deles? No céu
está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.1-3).
Este Deus Criador soberano é o único Deus que pode ouvir e responder
orações, porque só ele é soberano e todo-poderoso.
Diz-nos o Catecismo maior de Westminster:
P. 14: Como Deus executa os seus decretos?
R. Deus executa os seus decretos nas obras da criação e da providência,
de acordo com a sua presciência infalível e o livre e imutável conselho
da sua vontade.
P. 15. O que é a obra da criação?
R. A obra da criação é aquela pela qual Deus, no início, pela palavra do
seu poder, fez do nada o mundo e tudo quanto nele há, para si, no
espaço de seis dias, e tudo muito bom.
“[Pois] este é Deus, o nosso Deus para todo o sempre; ele será nosso
guia até à morte” (Sl 48.14).
17. À sua imagem
6 de julho de 1954
Bom dia, amigos. Um dos fatos mais tristes a nosso respeito é que estamos
mais interessados em nós mesmos do que nas coisas mais importantes da
vida. Tendemos a estar mais dispostos a estudar psicologia, que nos fala
sobre nossos caminhos, que a estudar teologia, que trata dos caminhos de
Deus. Isso nos diz, evidentemente, que há algo errado conosco, que somos
basicamente autocentrados, mais interessados em nós que no céu e na terra.
Por que somos assim? Fomos feitos desse modo? Deus, o criador, nos fez
desse jeito? O Breve catecismo de Westminster pergunta “Como Deus criou o
homem?” (BCW P. 10) e então nos diz que fomos criados à sua imagem, em
conhecimento, retidão e santidade, com domínio. Se fomos criados conforme
a própria imagem de Deus, como nos diz a Escritura, então originalmente não
fomos criados autocentrados, fracos e pecaminosos, mas como homens e
mulheres ordenados a pensar os pensamentos de Deus, cumprir a vontade
dele e deleitar-se em seus caminhos.
A imagem de Deus no homem não é aparência física, molde ou forma, não é
a alma ou a mente do homem como tal. A imagem de Deus é conhecimento,
retidão, santidade e domínio; essas são as coisas que caracterizam a Deus: seu
conhecimento é perfeito e completo, sua retidão total, sua santidade além de
nossa imaginação e seu domínio absoluto e inabalável.
Fomos criados por Deus para exercer as funções de sua imagem sob sua
Palavra e propósito. Mas o homem rebelou-se contra Deus e tentou afirmar-
se por si mesmo. O slogan era “Cada homem é seu próprio Deus”, o que
representava uma submissão total à tentação — “Sereis como deuses” (Gn
3.5). Ora, esta é a razão por que todos somos por natureza autocentrados, por
que estamos mais interessados em nós mesmos que no resto do mundo e por
que gostamos de falar mais de nós mesmos que de Deus. Algumas pessoas
estão dispostas a falar tudo sobre seus sonhos, suas dores e anseios do
momento, seus problemas com os boletos do mês, e assim por diante, mas
pergunte-lhes sobre a fé em Deus e elas se ofenderão com a pergunta. Afinal,
dizem, minha religião é coisa de foro íntimo. Bem, isso não faz sentido para
mim. Até onde consigo enxergar, nossas dores e anseios, sonhos e boletos,
tudo isso são questões privadas, no entanto, passamos um tempão tornando-
os públicos todos os dias. Por outro lado, Deus é uma questão pública
muitíssimo importante, a única questão verdadeiramente importante, a
questão fundamental. Individual e coletivamente, permanecemos de pé ou
caímos segundo a ótica dele.
Então, por que fazemos de nós mesmos uma questão pública e de Deus um
assunto privado? Não é porque consideramo-nos mais importantes e,
inconsciente e instintivamente, vemo-nos como Deus? Sentimos que o
mundo devia ouvir e saber os detalhes de nossa vida porque a vida não seria
plena ou completa sem essa proclamação. É assim que agimos em nossa
capacidade de pequenos deuses.
Mas a tragédia é que nossa rebelião contra Deus corrompeu e fraturou a
imagem dele em nós. Jamais poderemos ter verdadeiro conhecimento de nada
a menos que comecemos com Deus como Criador. Qualquer outra tentativa
de gerar conhecimento nos dá apenas um mundo sem sentido e monstruoso, e
o conhecimento em si mesmo é uma maldição. Separados de Deus, não há
verdadeira retidão, somente santarronice, uma coisa hipócrita e
repugnantemente falsa. Quanto à santidade, é mais remota que as estrelas
para um homem separado de Deus. Toda tentativa do homem de recriar a
santidade com pompa e circunstância, mediante cultos e rituais
magnificentes, mediante a beleza e a arte, leva somente a maior zombaria e a
um fracasso ainda mais óbvio. Quanto maiores as nossas pretensões, mais
óbvia se torna a nossa fraqueza.
Quanto ao domínio, o homem claramente o perdeu. O homem já não tem
domínio sobre o mundo, sobre sua própria área de atividade ou sobre si
mesmo. O autocontrole é um grande problema público e privado. É um
problema mental também, e os homens, havendo perdido o controle de suas
vidas, acham difícil manter por um momento a sanidade e logo se rendem a
um afastamento impotente deste mundo que não se submete a eles.
Assim, a imagem de Deus no homem está claramente arruinada, obviamente
estilhaçada. O homem é incapaz de ser o que se planejou que fosse. Mas
Deus não nos deixa desamparados assim. Ele vem a nós em Cristo e recria a
humanidade caída. Pela fé em Cristo, somos regenerados à imagem de Deus,
e esta recriação será perfeita no mundo por vir. Paulo nos lembra da natureza
e do privilégio de nossa regeneração conforme a imagem de Deus, dizendo:
E vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno
conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou. (Cl 3.10)
E vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e
retidão procedentes da verdade. (Ef 4.24)
Ou não sabeis que os santos hão de julgar [ou governar, ou ter domínio
sobre] o mundo? (1Co 6.2)
18. O fim principal do homem
1 de junho de 1954
Somos informados com toda clareza de que o homem foi feito para um
propósito e só pode ser compreendido à luz desse propósito, que é a glória de
Deus. O homem não é um fim em si mesmo, mas um instrumento a ser usado
para um propósito específico.
Visto que o fim principal do homem é glorificar a Deus, toda atividade fora
de Deus é estagnação, é um desperdício de vida e de tempo e constitui uma
morte viva. Por outro lado, toda atividade sob Deus é livre da futilidade e tem
a garantia de resultados perfeitos. Porque agora funcionamos nele e sob sua
graça, temos a segurança de que ele abençoa nossa fidelidade impotente e nos
dá a colheita. Como resultado, Paulo incita-nos a maior serviço, declarando:
“Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis e sempre
abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não
é vão” (1Co 15.58).
Há, entretanto, mais do que isso na promessa que nos foi dada quando
vivemos segundo nosso propósito criacional. Nosso fim principal não é só
glorificar a Deus, mas também gozá-lo para sempre. Esta é a dimensão mais
segura da fé cristã, uma das maneiras mais rápidas de reconhecer a verdadeira
vida no Senhor. O homem que vive segundo o propósito para o qual foi
criado conhece a alegria da realização em Cristo e a vitória de sua presença
mesmo em meio à aparente derrota.
Bom dia, amigos. Para muita gente, não só a beleza, mas toda a vida é só uma
casca. Integridade, honestidade e caráter não são mais que aparências, e a
aceitabilidade de um homem há de ser julgada à luz de sua adequação e seus
hábitos sociais.
Bom dia, amigos. Nossa leitura bíblica de hoje é Isaías 55, o grande apelo do
profeta a que os homens deixem a frustração e a insatisfação e encontrem
descanso e refrigério na graça e na misericórdia eternas de Deus.
Ah! Todos vós, os que tendes sede, vinde às águas; e vós, os que não
tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem
dinheiro e sem preço, vinho e leite. Por que gastais o dinheiro naquilo
que não é pão, e o vosso suor, naquilo que não satisfaz? Ouvi-me
atentamente, comei o que é bom e vos deleitareis com finos manjares.
Inclinai os ouvidos e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque
convosco farei uma aliança perpétua, que consiste nas fiéis
misericórdias prometidas a Davi. Eis que eu o dei por testemunho aos
povos, como príncipe e governador dos povos. Eis que chamarás a uma
nação que não conheces, e uma nação que nunca te conheceu correrá
para junto de ti, por amor do Senhor, teu Deus, e do Santo de Israel,
porque este te glorificou. Buscai o Senhor enquanto se pode achar,
invocai-o enquanto está perto. Deixe o perverso o seu caminho, o
iníquo, os seus pensamentos; converta-se ao Senhor, que se
compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em
perdoar. Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos,
nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor, porque,
assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus
caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus
pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos. Porque, assim
como descem a chuva e a neve dos céus e para lá não tornam, sem que
primeiro reguem a terra, e a fecundem, e a façam brotar, para dar
semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair
da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e
prosperará naquilo para que a designei. Saireis com alegria e em paz
sereis guiados; os montes e os outeiros romperão em cânticos diante de
vós, e todas as árvores do campo baterão palmas. Em lugar do
espinheiro, crescerá o cipreste, e em lugar da sarça crescerá a murta; e
será isto glória para o Senhor e memorial eterno, que jamais será
extinto. (Is 55.1-13)
O que o profeta Isaías ofereceu ao povo neste grande convite está claramente
afirmado no versículo 4. É o Servo Sofredor, o Messias ou Cristo de Deus,
que por sua morte trará perdão abundante a muitos. Essas são as “fiéis
misericórdias prometidas a Davi” (v. 3), isto é, as bênçãos prometidas com tal
certeza a Davi cuja plenitude é vista somente em Jesus Cristo.
Para ter essa paz de Deus, somos chamados a renunciar nossos caminhos e
nossos pensamentos. Isso, claro, é exatamente o que odiamos fazer.
Queremos acrescentar Deus ao nosso caminho, mas ele se recusa a permitir
essa situação. O homem está inclinado a protestar: por que tenho de abrir
mão dos meus caminhos e do meu pensamento? Por que não me permitem
seguir meu próprio caminho e ainda ter paz e a bênção de Deus? A resposta
de Deus é claríssima: “Porque os meus pensamentos não são os vossos
pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor,
porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus
caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos,
mais altos do que os vossos pensamentos” (v. 8-9).
Diante de tudo isso, nossa única esperança está em Deus em Cristo. Vivendo
nele, sairemos com alegria e seremos guiados em paz; a própria natureza
compartilhará de nossa felicidade (v. 12). O que antes nos era um espinheiro
se tornará um lindo cipreste, e a sarça, uma murta (v. 13), porque nossa vida
agora está num novo mundo em Cristo, a plenitude do que herdaremos no fim
dos tempos.
Isso pode realmente nos acontecer? Temos a palavra de Deus de que não
pode ser de outro modo, pois ele diz:
Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim
vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a
designei. (v. 11)
21. A aliança
31 de agosto de 1954
Bom dia, amigos. Às vezes temos o hábito de usar uma palavra ou expressão
familiar por anos sem compreender-lhe plenamente o significado. Um
exemplo de termo bíblico desse tipo é aliança. A Bíblia tem muito a dizer
sobre alianças, e as duas partes da Escritura são chamadas de Antigo e Novo
Testamentos, ou Alianças.
Portanto, Deus, em sua graça infinita, faz uma aliança com o homem. O
significado, eu acho, começa agora a ficar mais claro. O Deus da graça faz a
si mesmo irmão de sangue do homem e diz que, em sua misericórdia,
redimirá o homem e assim voluntariamente abre mão de sua vida em favor do
homem.
Jesus Cristo fez isso pelos filhos da aliança. Como nosso irmão de sangue,
tendo assumido nossa natureza na encarnação, ele cumpriu sua obrigação da
aliança ao morrer por nós e compartilhar conosco os frutos de sua vitória
sobre a morte e o pecado. A todos os que estão em aliança com ele pela fé,
ele dá uma nova natureza e uma nova vida.
Esta nova natureza, sendo sua vida em nós, significa comunhão permanente
com ele. Na última ceia, ele “tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos
discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue
da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados”
(Mt 26.27-28). Nossa participação no sacramento da comunhão significa que
nos regozijamos em nossa nova vida em Cristo. Reconhecemos que em nós
mesmos somos homens mortos, mas nele temos uma vida e herança eterna e
incorruptível.
Ora, o Deus da paz, que tornou a trazer dentre os mortos a Jesus, nosso
Senhor, o grande Pastor das ovelhas, pelo sangue da eterna aliança, vos
aperfeiçoe em todo o bem, para cumprirdes a sua vontade, operando em
vós o que é agradável diante dele, por Jesus Cristo, a quem seja a glória
para todo o sempre. Amém! (Hb 13.20-21)
22. O desejo de morrer
24 de agosto de 1954
Bom dia, amigos. Um dos fatos mais significativos acerca do homem é que
muitas vezes ele tem um desejo intenso de morrer. A vida é tão cara à maioria
de nós que é difícil compreender que alguém seja tomado pelo desejo de
morrer; no entanto, o fato tem documentação abundante na psiquiatria
moderna e em outros campos de estudo.
O pecado deve ser pago, e a expiação será feita por Jesus Cristo ou
pagaremos por ela com nosso próprio impulso autoinfligido de punição e
morte.
Quando, todavia, pela fé, fugimos desta derrota viciosa ao encontrar nossa
expiação em Jesus Cristo, somos verdadeiramente livres. Podemos, então,
dizer com o apóstolo que “para mim viver é Cristo e morrer é lucro” (Fp
1.21), porque em qualquer situação temos a bênção de sua paz e vitória. Já
não somos coagidos; agora somos guiados em paz e alegria, e o peso de nossa
culpa é retirado.
Mas vamos olhar para a casa, o seu coração e o meu. O que a autoilusão
significa em nossa vida? Hallesby (God’s Word for Today, p. 280) definiu-a
como “o pensamento que não segue a lei da lógica, mas os impulsos de
nossos caprichos e desejos”. Em todo pensamento assim, portanto, não só
tentamos mudar a realidade das coisas, mas também nossa relação com essa
realidade. Não só falsificamos o mundo em que vivemos, mas também a nós
mesmos. Mentimos acerca do que é a vida e do que nós somos. Hallesby
também chama a atenção para o fato de que “na hora da tentação se dá a
autoilusão em sua forma mais completa”. Todo pensamento desse tipo é uma
mentira, e normalmente nossas mentiras enganam em primeiro lugar a nós
mesmos. Inevitavelmente, a mentira começa a viver sua vida, e o que pode ter
começado como uma tentativa de enganar aos outros na verdade engana-o
mais que a qualquer outro. Assim, o autoiludido começa a viver a partir de
seu sonho, a trabalhar a partir de sua mentira, e o resultado é que caminha
impetuosamente no pecado e então culpa a Deus por torná-lo inevitável. Em
certo sentido, o pecado é inevitável para o autoiludido, porque para ele a vida
deixou de ser servir a Deus e tornou-se, em vez disso, a realização de seu
próprio sonho. E o sonho não permanecerá seguramente enterrado: ao
contrário, ele insiste em enterrar tudo que se opõe a sua realização na vida do
homem.
Por isso Tiago escreveu: “cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando
esta o atrai e seduz” (Tg 1.14). É nossa cobiça, nosso sonho, que nos leva à
tentação. Como disse John Donne, tentamos Satanás para tentar-nos;
colocamo-nos numa situação em que a tentação e o pecado se tornam
inevitáveis e então culpamos a Deus por colocar-nos ali.
Visto que somos tentados quando somos atraídos por nossa própria cobiça,
nossas tentações são um bom indício de nossa autoilusão. As tentações de um
homem, portanto, estão estreitamente relacionadas com seus devaneios e são
um passo a caminho de sua realização. O pecado é ativo não só na realização,
mas também na concepção, no próprio autoengano.
É por isso que a Escritura insta-nos a levar todo pensamento cativo a Cristo,
porque quando todo pensamento é levado cativo a seu mandamento, o
cumprimento não é o pecado, mas a santificação; não a tentação, mas a força;
não a fuga, mas a responsabilidade. A autoilusão entroniza nossos desejos,
mas somos ordenados, em vez disso, a entronizar a Cristo em nosso coração:
Ele nos leva, não à tentação, mas nos livra do mal e nos dá a vitória nele.
24. Atalhos
13 de março de 1956
Bom dia, amigos. Alguns anos atrás, uma mulher comentou comigo que
desperdiçou boa parte da vida à procura de atalhos para tudo. Procurava
atalhos para Deus, para a felicidade, para os desejos do coração, para todas as
coisas, e sempre terminava muito longe de seus objetivos.
Muitas vezes nossa tentação é estar contente meramente com a oração pelas
bênçãos e por felicidade. Temos tanto que pedir a Deus, e pedimos, muitas
vezes e com impaciência, desconfiando de seu atraso e de sua ausência de
resposta. Deus declarou há muito: “Eis que, hoje, eu ponho diante de vós [...]
a bênção, quando cumprirdes os mandamentos do Senhor” (Dt 11.26-27). A
condição da bênção, portanto, é um coração obediente, um coração que
procura a vontade de Deus e cada vez mais nela se deleita. Não há atalho para
a felicidade que possa eliminar a fé e a obediência.
O que jamais podemos fazer, ele faz por nós. Ao dar-nos uma segunda
natureza, sua própria vida, ele nos dá um poder maior que nós mesmos a fim
de capacitar-nos para vencer a nós mesmos. Nossa confiança como cristãos é
esta: em Cristo temos uma vida que é santa, justa e vitoriosa. Nossa segunda
natureza agora é Jesus Cristo e a vida eterna. Tendo isso como nossa herança,
podemos facilmente abrir mão daquela vida dolorosamente limitada que era
nossa vida em pecado. Quanto mais vemos a Cristo e vivemos nele, mais
fácil é morrer para nós mesmos a fim de entrar de modo mais pleno naquela
vida melhor.
Mas o fato feliz é este: nossa salvação não repousa em nossa disposição ou
no sucesso de nossa luta interior com o pecado, mas, antes, na graça de Deus.
E isso torna nossa vitória sobre o pecado algo certo. Ela nos dá a certeza em
nossa caminhada diária, pois temos a Palavra infalível de Deus e o poder
onipotente que subscreve nossa redenção e libertação do poder do pecado.
Podemos regozijar-nos com Paulo:
Tudo isso suscita uma pergunta religiosa muito pertinente. Visto que estamos
constantemente em mudança, o que acontece se mudarmos nossa fé? Afinal,
se aqui como alhures estamos sujeitos à mudança, então um homem, que hoje
acredita ser uma pessoa salva, pode esquecer sua fé amanhã e estar
eternamente perdido. Hoje, podemos deleitar-nos na leitura da Escritura, na
oração e na adoração, mas amanhã podemos odiar essas coisas. Se somos
criaturas mutáveis, então nossa fé pode mudar e deixar-nos sem salvação.
Ora, há algumas pessoas que acreditam que é assim que as coisas se dão, que
pessoas hoje salvas amanhã podem perder-se para sempre porque mudaram a
fé. Acreditam que não há segurança em nossa fé e em nossa salvação
enquanto a morte não nos surpreenda no ato de fé. Assim, até que morra, o
homem nunca sabe se conseguirá ou não manter a fé e ser salvo.
Ora, este parece um ponto de vista lógico, mas as pessoas que o defendem se
esquecem de dois fatores essenciais. Primeiro, fazem da fé uma obra do
homem, pela qual este se qualifica para a salvação, quando, segundo a
Escritura, a fé é dom de Deus. Se nossa salvação depende de nosso ato de fé,
ou de qualquer coisa que fazemos, então a salvação é essencialmente obra
nossa e depende basicamente de nós. Desse modo, não é nada mais, nada
menos que nossas ações que nos salvam: é, em suma, o homem que se salva a
si mesmo. Dizer isso, no entanto, é negar todo o ensino e a fé cristãos e
invalidar o significado da Escritura.
Segundo, a fé não é uma obra ou uma ação do homem, mas dom de Deus.
Como o homem é instável, qualquer coisa que dependa dele certamente será
incerto. A salvação, portanto, nunca será segura, nesta vida ou na próxima, se
depender do homem. Nossa salvação é segura precisamente porque não
depende de nós, mas do Senhor. Nossa salvação não pode se tornar vazia,
porque nenhum ato do homem pode sobrepor-se a um ato de Deus. O homem
pode alterar o que o homem faz, mas o homem não pode agir contra Deus
nem pode anular os atos de Deus. Nossa salvação, portanto, é segura e
inalienável porque é o dom de Deus, e não nossa própria fé ou obra.
Vocação eficaz quer dizer que Deus nos escolhe e chama, nos justifica e
adota, nos guia à santificação e nos recebe em seu próprio ser. A mudança
que se dá com a nossa regeneração não é uma mudança humana, que em si
mesma também está sujeita à mudança: é um ato de Deus. Como disse o
Senhor:
21 de agosto de 1956
Bom dia, amigos. Uma das doutrinas mais gloriosas da Escritura é a doutrina
da adoção. É difícil compreender por que não se dedica mais atenção a um
fato tão grandioso em implicações para o homem. Ele define o
relacionamento do cristão com Deus.
[...] nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus
Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade. (Ef 1.5)
Mas é exatamente isso que Deus faz. A salvação começa com o fato grande e
glorioso do perdão dos pecados. Mas este perdão, nossa justificação, pela
qual a perfeita obediência de Cristo e a plena satisfação é imputada a nós e
recebida pela fé, é um ato judicial e não muda nossa natureza, senão pelo fato
de que a justificação de Deus inclui a fé justificadora, o fruto da regeneração.
Recebemos uma nova natureza, nascemos de novo, e isso quer dizer que
nosso perdão é acompanhado por uma natureza transformada a fim de que
agora vejamos a face de Deus em vez de fugir dele. Vê-se então esta nova
natureza desenvolver sua vocação submetida a Deus, e isso é santificação.
Mas, além disso, Deus nos recebe em sua família como filhos adotivos, um
privilégio que nunca pode ser revertido ou anulado, que faz de nós herdeiros
de toda a criação de Deus, cuidado providencial e glória futura, e nos dá a
glória de ser participantes da natureza divina. A adoção nos dá um novo
nome, o nome de Deus, a fim de que nosso coração clame a ele, pelo Espírito,
dizendo: “Aba, Pai”. A adoção nos dá a proteção e o cuidado de filhos de um
pai onipotente e perfeito. A adoção nos dá, ademais, o privilégio da disciplina
e do castigo de um pai amoroso e sábio. Para alguns, isso pode parecer um
privilégio estranho, mas na verdade constitui um dos privilégios centrais da
filiação. À parte dele, sofremos em vão e cruelmente sob as pancadas de
homens e acontecimentos. Com ele, temos a confiança de que todo o nosso
sofrimento trabalha para nosso bem e para nossa glória nele. A adoção,
portanto, é a plenitude de nossa salvação, a manifestação plena da liberdade
gloriosa de nossa salvação. Em suma, nas palavras dos teólogos de
Westminster (CMW R. 74):
“Os que confiam no Senhor são como o monte Sião, que não se abala, firme
para sempre. Como em redor de Jerusalém estão os montes, assim o Senhor,
em derredor do seu povo, desde agora e para sempre” (Sl 125.1-2).
Segundo a Bíblia, nós, todos nós, portamos isso que nos marca clara e
facilmente a todos. Podemos olhar ao nosso redor e reconhecer a vida e o
caráter de outros homens e mulheres prontamente: vemos o fingimento e a
hipocrisia: vemo-los enganarem-se a si mesmos sobre como são
maravilhosos, e temos pena de sua cegueira. A marca é demasiado clara para
que a negligenciemos. A pergunta, então, é esta: que marca portamos?
A velha canção de vaqueiro retrata todos nós seguindo para a última caçada.
No fim da trilha, o grande chefe separa as vacas que têm a sua marca e as
desgarradas. É uma boa imagem, embora seja humilhante.
Será que ele conhece bem a você e a mim? Será que ele nos chama pelo
nome?
Paulo, outrora um fariseu hipócrita que sentia que pertencia a Deus porque
guardava a lei, ia para a igreja, e sempre era zeloso pela causa, só depois
percebeu sua hipocrisia e depositou sua fé em Cristo em vez de em si mesmo,
a ponto de poder dizer honestamente: “Porque eu trago no corpo as marcas de
Jesus” (veja Gl 6.17).
A Bíblia está cheia de conversa sobre marca, às vezes traduzida como selo ou
sinal. Ela fala da marca de Caim, o assassino e errante, que fazia de sua
vontade sua lei. Ezequiel fala da marca do hipócrita, que finge ser santo e
secretamente suspira pelo pecado. E João fala da marca da besta, a marca dos
homens que se entregam pronta e facilmente a tudo neste mundo exceto a
Cristo. Sua mente e sua vida são avenidas abertas a todo tipo de trânsito,
exceto o tipo certo. Eles têm tempo para tudo, exceto o Senhor. Eles podem
dar tempo a trivialidades ao longo do ano, mas nada tão importante quanto
Deus pode levar um minuto. Estão sempre com pressa e sem nunca conseguir
fazer nada que importa, prontos para crer em qualquer coisa, exceto o que
conta. Este é o tipo de vida que marca todos nós até que a caçada de verão
nos tire do rebanho e coloque a marca de Cristo em nós. Então, pertencemos
a algo mais e nossa vida tem um propósito e leva a marca da propriedade de
Deus.
Olhemos para nossa vida e vejamos que marca é essa que está em nós.
30. O que é a fé?
10 de agosto de 1954
R.: A fé justifica um pecador diante de Deus, não por causa das outras
graças que sempre a acompanham, nem por causa das boas obras que
são os frutos dela, nem como se fosse a graça da fé, ou qualquer ato
dela, que lhe é imputado para a justificação, mas unicamente porque a
fé é o instrumento pelo qual o pecador recebe e aplica a si Cristo e a
justiça.
31. Fé salvadora
28 de agosto de 1956
A fé nos leva à união pessoal com Cristo, de modo que Cristo agora vive em
nós, e nós em Cristo. Diz Lutero:
A fé deve ser ensinada de modo puro: isto é, que tu e ele vos tornais
como uma só pessoa: de modo que podes dizer com ousadia “Sou um
com Cristo, o que significa que a justiça, a vitória e a vida de Cristo são
minhas”. E, de novo, Cristo pode dizer: “Eu sou um com aquele
pecador: ou seja, os pecados dele e a morte dele são minhas, porque ele
está unido a mim e eu a ele”. Pela fé, estamos tão unidos que nos
tornamos uma só carne, somos membros do corpo de Cristo, carne de
sua carne e osso de seus ossos: de modo que esta fé me une a Cristo de
modo mais próximo que o marido se une a sua mulher.
Mais do que isso, porque Cristo está conosco, a fé salvadora sempre tem
como sua dimensão magnificente a esperança, “aceitando as promessas de
Deus para esta vida e para a futura” (CFW 14.2). Sabemos que “a tribulação
produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência,
esperança. Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é
derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado”
(Rm 5.3-5). “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8.31). A vida
de fé é uma vida de esperança, uma vida de promessa e uma vida de
realização, porque é uma vida vivida em Cristo e na glória de seu poder
salvador.
32. Do arrependimento para a vida
3 de setembro de 1956
Quando Deus, por sua graça salvadora, regenera um homem, essa vida nova
revela-se imediatamente em arrependimento. Arrependimento, portanto, é o
fruto de uma vida transformada, o resultado da regeneração.
Bom dia, amigos. Visto que a pureza é uma exigência cristã, é importante,
para nós, entender o significado da palavra pureza conforme usada na Bíblia,
particularmente em sua língua básica, o hebraico. A palavra inglesa puro
chegou a nós via o latim purus, que quer dizer limpo, e nossa concepção
básica de pureza é matizada por essa derivação latina. Assim, quando lemos a
palavra puro na Bíblia, naturalmente tendemos a pensar à luz de seu
significado latino e inglês em vez de em sua significância bíblica. Para nós,
portanto, puro quer dizer limpo, intocado, imaculado, virginal. Para nós, é
algo enquanto ainda não estragado pela sujeira e imundícia do mundo,
intocado pelo pecado e pela tentação, e serenamente virginal em sua
existência.
Assim, quando o salmo 19.8 diz que todo “preceito do Senhor é puro”, isso
quer dizer que todo mandamento é claro — mais do que isso, esclarecedor,
como o sol (Ct 6.10).
Mais uma vez, quando 1 Reis 5.11 fala de “vinte coros de azeite [puro]”, isso
significava vinte coros de azeite batido (em vez de esmagado), sendo o azeite
extraído pela batida.
Essas poucas ilustrações são suficientes para indicar a diferença radical entre
nossa concepção inglesa comum de pureza e a doutrina bíblica da pureza. A
palavra inglesa tende a supor que pureza é uma condição inerente a certas
coisas desde o princípio; nosso pressuposto comum relaciona a palavra puro
a palavras como virginal e imaculado. Para nós, a pureza pode ser retratada
como um cordeirinho recém-nascido ou um bebezinho rosado.
Deus sabe, decerto, que somos preguiçosos e que muito de nossa atividade é
preguiçosa, cujo propósito é fugir das exigências mais básicas da vida.
Entregues à própria sorte, somos inclinados a tomar a Deus e sua Palavra de
modo casual e confortável. De imediato minimizamos a força de todas as
suas exigências e insistimos que a vontade de Deus para nós deve ser um
chamado brando e uma escala de preferência.
Nosso Senhor disse a Pedro, que se gloriava de sua força, que Satanás o
peneiraria; então, depois de peneirar, a força viria, e Pedro teria esta
responsabilidade: “fortalece teus irmãos” (Lc 22.32). Pedro, mais tarde, fez
isso, e suas cartas serviram para fortalecer a Igreja Primitiva ao prepará-la
para a realidade de tentações e provações, para a realidade do processo
educacional de Deus.
Todas essas coisas estamos prontos para entender ao lidar com nossos filhos,
mas somos relutantes em entender como Deus lida conosco. Não
reconhecemos que somos apenas crianças crescidas, e os piores bebês são
adultos. Muitas vezes nos queixamos de bebês que se recusam a ser homens
enquanto insistimos que Deus nos trate como anjos. Antes que fôssemos
desmamados e pudéssemos andar, pedimos asas e, ao nada obter, começamos
a duvidar da sabedoria de Deus. Quanto mais prontamente recebemos a
educação, mais prontamente supomos a responsabilidade e o privilégio que
vêm com ela.
A quarta pergunta veio de Judas, não o Iscariores, que queria saber como
Jesus planejava continuar com eles, mas não com o mundo. Jesus declarou
união com seu povo como um corpo e a identificação deles neste ato de
graça. Jesus sempre estará presente com seu povo porque, segundo a
promessa, ele se tornou um com eles. Consequentemente, estamos perto de
Deus porque somos membros de seu corpo.
Ele nos diz: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá
o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize” (v. 27).
36. “Que poderá fazer o justo?”
26 de outubro de 1954
Bom dia, amigos. Um salmo muito importante para esta época turbulenta é o
salmo 11. Foi escrito por Davi sob circunstâncias muito difíceis e tentadoras.
Embora muitos não o percebessem, a nação havia passado às mãos de
homens maus e inescrupulosos. O Rei Saul e seus assistentes estavam
claramente comprometidos com o mal, embora a nação continuasse como
antes, sem saber da extensão da mudança no governo. A popularidade de
Davi minguara, e sua grande vitória fora esquecida. Como resultado, muitos
consideravam sem esperança a causa de Davi, e davam-lhe um conselho
prático: fuja para os montes e salve a própria pele. Esses homens estão
mirando em você, e miram para destruí-lo. “Ora, destruídos os fundamentos,
que poderá fazer o justo?” (v. 3).
O Senhor está no seu santo templo; nos céus tem o Senhor seu trono; os
seus olhos estão atentos, as suas pálpebras sondam os filhos dos
homens. O Senhor põe à prova ao justo e ao ímpio; mas, ao que ama a
violência, a sua alma o abomina. (Sl 11.4-5)
Assim, Davi deu uma resposta dupla àqueles que diziam “Que poderá fazer o
justo?”. O justo, declarou ele, pode pôr sua confiança no Senhor. Isso quer
dizer que pode ter confiança na justiça segura e infalível de Deus. Os
tribunais deste mundo sempre são falhos e todos demasiado corruptos, mas a
decisão final não está nas mãos deles. Muito acima e além de todos os
tribunais deste mundo está a grandiosa e suprema corte do Deus Todo
Poderoso, e não há apelos nem recursos a seus julgamentos. E Deus odeia o
mal em todas as suas manifestações: “ao que ama a violência, a sua alma o
abomina” (v. 5). Não há triunfo para o mal, porque todas as suas vitórias
aparentes têm o juízo de Deus contra elas. “Que poderá fazer o justo?” Pode
pôr sua confiança no Senhor, que reina sozinho e que enfim confundirá toda
injustiça.
A segunda coisa que o justo pode fazer é isto: pode continuar a ser justo. É
essa a sua força e certeza de vitória. “Porque o Senhor é justo, ele ama a
justiça; os retos lhe contemplarão a face” (v. 7). A perspectiva da fé é a da
segurança e da certeza garantida. O caráter difuso e mascarado do mal é
difícil de apreender, perturbador de ver, e muitas vezes leva-nos a visões
pessimistas. Somos tentados a concordar com os bons amigos de Davi, que
perguntavam “Que poderá fazer o justo?”.
A declaração de Davi, no entanto, permanece: “Deus está com a linhagem do
justo” (Sl 14.5). O Senhor está presente entre os justos para defendê-los e
fortalecê-los. Ele transforma em bem cada derrota; coroa cada vitória com
suas bênçãos.
Bom dia, amigos. Vez por outra, entro em discussões com pessoas que
afirmam que suas ações não fazem nenhuma diferença, que são senhores de si
e que podem fazer exatamente o que lhes der na telha. Normalmente, essas
pessoas temem que eu lhes diga o que fazer, algo que não é da minha conta, e
dão o melhor de si para declarar sua completa independência de Deus e dos
homens.
Como resultado, as pessoas que dizem que podem fazer exatamente o que
lhes der na telha e que a vida delas só diz respeito a elas mesmas esquecem-
se de que nossa vida é uma vida comum, uma vida compartilhada, e que em
momento algum podemos separar-nos do universo e esquivar-nos de nossa
responsabilidade diante de Deus e do homem. Tentar fazer isso é ser tão tolo
quanto o homem que alguns anos atrás saiu de Joppa para uma breve viagem
pelo Mar Mediterrâneo. Quando o barco a vela, velho e de madeira, deparou
com o mau tempo, o nativo ignorante ficou doente, e começou a cavar um
buraco embaixo de sua cama, na lateral do navio. Quando outro passageiro
ficou irritado, o pobre tolo protestou: “Que diferença faz para você? O buraco
que estou cavando está embaixo da minha cama”. A resposta óbvia, é claro,
era que o buraco afundaria o navio e a todos junto com ele.
Todo ato privado tem sua consequência social. Você e eu jamais podemos
separar-nos deste universo consequente por um único momento ou um único
ato. Somos, em cada momento de nossa vida, pessoas responsáveis, e ser
responsável é ser dependente e interdependente. Somos responsáveis por
nossos semelhantes porque nossa vida está inter-relacionada à deles, e somos
sumamente responsáveis a Deus porque ele é o único Criador, Sustentador e
Redentor. Deus não tem responsabilidade para conosco: sua relação conosco
não é de obrigação, mas de pura graça e misericórdia. Nós é que somos
responsáveis diante dele. Por essa razão, Paulo disse: “Porque nenhum de nós
vive para si mesmo, nem morre para si. Porque, se vivemos, para o Senhor
vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou
morramos, somos do Senhor. Foi precisamente para esse fim que Cristo
morreu e ressurgiu: para ser Senhor tanto de mortos como de vivos” (Rm
14.7-9). “Assim, pois, cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus” (Rm
14.12).
Isso quer dizer que somos inteiramente do Senhor e não temos autoridade
sobre nossa vida ou morte. Somos dele duplamente, em virtude da criação e
da redenção, e nossa vida é uma vida de responsabilidade e prestação de
contas.
Por fim, ser responsável é estar em Cristo, que perfeitamente cumpriu o dever
do homem diante do homem e a obrigação do homem diante de Deus. Nele,
nossa responsabilidade diante de Deus é cumprida, e recebemos a paz e a
liberdade que vêm com uma dívida quitada. Nele, temos o poder de revelar
esta graça de Deus em nossa lida com homens e de anunciar a vida do Filho
do Homem responsável enquanto ele vive em nós. Em nós mesmos, somos
rebeldes contra todas as coisas; em Cristo, somos homens responsáveis. Esta
é a nossa força, e ele é a nossa paz.
38. Obediência (Efésios 6)
21 de dezembro de 1954
Bom dia, amigos. Nossa leitura bíblica desta manhã é Efésios 6. Paulo tem a
dizer algo que precisa ser dito com todo vigor e sem meias-palavras em
nossos dias. Eis o que ele diz:
Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, pois isto é justo. Honra a teu
pai e a tua mãe (que é o primeiro mandamento com promessa), para
que te vá bem, e sejas de longa vida sobre a terra. E vós, pais, não
provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na
admoestação do Senhor. Quanto a vós outros, servos, obedecei a vosso
senhor segundo a carne com temor e tremor, na sinceridade do vosso
coração, como a Cristo, não servindo à vista, como para agradar a
homens, mas como servos de Cristo, fazendo, de coração, a vontade de
Deus; servindo de boa vontade, como ao Senhor e não como a homens,
certos de que cada um, se fizer alguma coisa boa, receberá isso outra
vez do Senhor, quer seja servo, quer livre. E vós, senhores, de igual
modo procedei para com eles, deixando as ameaças, sabendo que o
Senhor, tanto deles como vosso, está nos céus e que para com ele não
há acepção de pessoas. Quanto ao mais, sede fortalecidos no Senhor e
na força do seu poder. Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para
poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo; porque a nossa luta
não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e
potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as
forças espirituais do mal, nas regiões celestes. Portanto, tomai toda a
armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, depois de
terdes vencido tudo, permanecer inabaláveis. Estai, pois, firmes,
cingindo-vos com a verdade e vestindo-vos da couraça da justiça.
Calçai os pés com a preparação do evangelho da paz; embraçando
sempre o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos
inflamados do Maligno. Tomai também o capacete da salvação e a
espada do Espírito, que é a palavra de Deus; com toda oração e súplica,
orando em todo tempo no Espírito e para isto vigiando com toda
perseverança e súplica por todos os santos e também por mim; para que
me seja dada, no abrir da minha boca, a palavra, para, com intrepidez,
fazer conhecido o mistério do evangelho, pelo qual sou embaixador em
cadeias, para que, em Cristo, eu seja ousado para falar, como me
cumpre fazê-lo. E, para que saibais também a meu respeito e o que
faço, de tudo vos informará Tíquico, o irmão amado e fiel ministro do
Senhor. Foi para isso que eu vo-lo enviei, para que saibais a nosso
respeito, e ele console o vosso coração. Paz seja com os irmãos e amor
com fé, da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo. A graça seja
com todos os que amam sinceramente a nosso Senhor Jesus Cristo.
Amém. (Efésios 6.1-24)
Paulo nos incita a esse tipo de força quando diz: “sede fortalecidos no Senhor
e na força do seu poder” (v. 10). Revestir-nos de a toda a armadura de Deus
quer dizer receber sua Palavra e obedecer a ele, conhecer-lhe a salvação e
andar no Santo Espírito.
Esta fonte de nossa força não está na natureza; está somente em Deus
mediante Cristo. Precisamos desta força sobrenatural para viver, porque a
nossa luta, basicamente, é uma batalha espiritual contra forças e pessoas
demoníacas.
Para obter essa força, temos de orar, não só por nós mesmos, mas uns pelos
outros. Precisamos sentir que as necessidades de nossos irmãos e irmãs em
Cristo são nossas necessidades, e oração verdadeira significa compromisso,
tem um senso de urgência, surge em toda e qualquer ocasião, e é pela ajuda
do Espírito Santo. E esta última é central: pois a disciplina básica em nossa
vida é o poder do Espírito que habita em nós. “Pois somos feitura dele,
criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou
para que andássemos nelas” (Ef 2.10).
E assim, nas palavras de Paulo: “A graça seja com todos os que amam
sinceramente a nosso Senhor Jesus Cristo. Amém” (Ef 6.24).
39. “Mais bem-aventurado é”
10 de maio de 1955
Bom dia, amigos. Há algumas declarações na Bíblia que nos fariam muito
bem se as repetíssemos diariamente. Elas declaram sem rodeios verdades que
nossa natureza humana prefere ignorar ou considera repulsiva.
Essa declaração certamente se opõe aos meus e aos seus sentimentos. No que
diz respeito à natureza humana, definitiva e inequivocamente, sente-se que é
muito mais bem-aventurado receber do que dar. Todo o nosso pensamento
sobre a felicidade está ligado a uma série de expectativas, a coisas que
esperamos receber ou que nos sejam dadas. Nossa felicidade começa, creio
eu, quando recebemos certas coisas pelas quais gastamos nosso tempo
esperando e orando. Quando conseguir isso e aquilo, dizemos a Deus e a nós
mesmos, então serei feliz, então serei capaz de servir-lo melhor, então minha
vida terá a medida de riqueza que espero. Essa é a nossa ideia de bem-
aventurança.
Ora, nosso Senhor de maneira nenhuma menosprezava o receber. Ele não faz
nenhuma tentativa de subestimá-lo ou ridicularizá-lo. A implicação clara da
afirmação é que de fato é bem-aventurado receber, e somos instados a tornar
conhecidos de Deus todas as nossas necessidades e desejos. Nosso Senhor
disse: “pedi... para que a vossa alegria seja completa” (Jo 16.24), e a Escritura
deixa claro que Deus quer que gozemos a bênção de receber, e que o próprio
Deus se deleita em receber de nós, muito embora ele não tenha necessidade
de nada que possamos oferecer.
Não podemos sempre ter a bênção de conseguir o que queremos. Deus não se
obrigou a dar a você e a mim tudo que pedimos, ou fazer conosco e por nós o
que queremos. Não há, é claro, nenhum cristão tão pobre que não tenha
recebido, e com abundância, de Deus, mas muitos crentes ainda permanecem
em circunstâncias difíceis e em provação, sem resposta a seu clamor por
libertação. Durante a última guerra, muitos crentes perderam a vida, ou a
visão; muitas esposas de oração, o marido; muitos pais e mães, o único filho.
Eles oraram, e a bênção de receber lhes foi negada. E essas coisas continuam
diariamente. Do nosso lado direito estão pessoas cujas orações são
respondidas de modo maravilhoso e milagroso; do lado esquerdo estão
cristãos igualmente fiéis cujas orações não são respondidas com o
recebimento da bênção. A razão repousa na sabedoria e na providência de
Deus, que homem nenhum pode compreender ou questionar.
Mas para tudo isso está aberta essa felicidade superior, a bem-aventurança de
dar em nome e na pessoa de Jesus Cristo. Mesmo quando não temos nada
mais para dar, ainda podemos dar-nos a nós mesmos. Assim, a felicidade
nunca é uma porta fechada para nós: ela nunca depende de receber certas
coisas. Depende, em vez disso, de cumprir a vida de Cristo em nós, de dar
enquanto recebemos de Deus, com boa medida, calcada, sacudida e
transbordante.
Não te indignes por causa dos malfeitores, nem tenhas inveja dos que
praticam a iniquidade. Pois eles dentro em breve definharão como a
relva e murcharão como a erva verde. Confia no SENHOR e faze o bem;
habita na terra e alimenta-te da verdade. Agrada-te do SENHOR, e ele
satisfará os desejos do teu coração. Entrega o teu caminho ao SENHOR,
confia nele, e o mais ele fará. Fará sobressair a tua justiça como a luz e
o teu direito, como o sol ao meio-dia. Descansa no SENHOR e espera
nele, não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho,
por causa do que leva a cabo os seus maus desígnios. Deixa a ira,
abandona o furor; não te impacientes; certamente, isso acabará mal.
Porque os malfeitores serão exterminados, mas os que esperam no
SENHOR possuirão a terra. Mais um pouco de tempo, e já não existirá o
ímpio; procurarás o seu lugar e não o acharás. Mas os mansos herdarão
a terra e se deleitarão na abundância de paz. Trama o ímpio contra o
justo e contra ele ringe os dentes. Rir-se-á dele o SENHOR, pois vê estar-
se aproximando o seu dia. Os ímpios arrancam da espada e distendem o
arco para abater o pobre e necessitado, para matar os que trilham o reto
caminho. A sua espada, porém, lhes traspassará o próprio coração, e os
seus arcos serão espedaçados. Mais vale o pouco do justo que a
abundância de muitos ímpios. Pois os braços dos ímpios serão
quebrados, mas os justos, o SENHOR os sustém. O SENHOR conhece os
dias dos íntegros; a herança deles permanecerá para sempre. Não serão
envergonhados nos dias do mal e nos dias da fome se fartarão. Os
ímpios, no entanto, perecerão, e os inimigos do SENHOR serão como o
viço das pastagens; serão aniquilados e se desfarão em fumaça. O
ímpio pede emprestado e não paga; o justo, porém, se compadece e dá.
Aqueles a quem o SENHOR abençoa possuirão a terra; e serão
exterminados aqueles a quem amaldiçoa. O SENHOR firma os passos do
homem bom e no seu caminho se compraz; se cair, não ficará
prostrado, porque o SENHOR o segura pela mão. Fui moço e já, agora,
sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a sua
descendência a mendigar o pão. É sempre compassivo e empresta, e a
sua descendência será uma bênção. Aparta-te do mal e faze o bem, e
será perpétua a tua morada. Pois o SENHOR ama a justiça e não
desampara os seus santos; serão preservados para sempre, mas a
descendência dos ímpios será exterminada. Os justos herdarão a terra e
nela habitarão para sempre. A boca do justo profere a sabedoria, e a sua
língua fala o que é justo. No coração, tem ele a lei do seu Deus; os seus
passos não vacilarão. O perverso espreita ao justo e procura tirar-lhe a
vida. Mas o SENHOR não o deixará nas suas mãos, nem o condenará
quando for julgado. Espera no SENHOR, segue o seu caminho, e ele te
exaltará para possuíres a terra; presenciarás isso quando os ímpios
forem exterminados. Vi um ímpio prepotente a expandir-se qual cedro
do Líbano. Passei, e eis que desaparecera; procurei-o, e já não foi
encontrado. Observa o homem íntegro e atenta no que é reto; porquanto
o homem de paz terá posteridade. Quanto aos transgressores, serão, à
uma, destruídos; a descendência dos ímpios será exterminada. Vem do
SENHOR a salvação dos justos; ele é a sua fortaleza no dia da tribulação.
O SENHOR os ajuda e os livra; livra-os dos ímpios e os salva, porque
nele buscam refúgio. (Sl 37.1-40)
O que Davi enfrenta aqui e responde de uma vez por todas é aquele espírito
de perversidade na vida que assola a todos nós. Vemos os malfeitores
prosperar, e o justo lutar para se manter, e ficamos indignados e impacientes
com Deus. Observamos, como Davi, “um ímpio prepotente a expandir-se
qual cedro do Líbano”, enquanto nos encontramos limitados e frustrados em
coisas pequenas próximas a nós. Diante de tudo isso, “Onde está Deus, e o
que ele está fazendo?”.
Toda a nossa rebeldia é basicamente uma rebelião contra Deus. Isso não quer
dizer que devemos ficar em silêncio e inertes na presença do mal e de
condições injustas. Temos a obrigação moral de trabalhar em favor da retidão
e da justiça sob Deus. No entanto, somos chamados a “deixar a ira,
abandonar o furor”, e fazer o que fazemos com perfeita fé na providência de
Deus, a “descansar no Senhor e esperar pacientemente nele”.
Então o salmo promete algo mais. Seu refrão pode ser chamado de a
promessa de que os mansos “herdarão a terra” (Mt 5.5). Quem são esses
mansos bem-aventurados de quem nosso Senhor também falou em suas bem-
aventuranças? A palavra bíblica para mansos significa dócil, subjugado.
Somos os mansos bem-aventurados quando somos subjugados por Deus, e
nossa natureza rebelde descansa no Senhor e espera pacientemente nele.
4. Fazer o bem.
Bom dia, amigos. Um dos maus hábitos que todos nós compartilhamos em
alguma medida é o hábito da autojustificação. Esta é uma fraqueza que
condenamos nos outros e reprimimos em nossos filhos, e, no entanto, nós
mesmos muitas vezes somos culpados dela. Aliás, a autojustificação é mais
que uma fraqueza: é pecado.
Mas o que a Bíblia diz sobre nós é muito diferente. Ela declara que todos nós,
sem exceção, podemos ser descritos somente como pecadores. Nossa
natureza humana é caracterizada pela rebelião contra Deus e pelo desejo de
ser como Deus. A essência de nosso discurso não é a veracidade, mas a
hipocrisia e o desejo de sermos considerados melhores do que realmente
somos. Este é o velho Adão em nós, e o velho Adão é um farsante e
embusteiro. Sua vida consiste em máscara e fingimento: está constantemente
escondendo-se atrás de uma mentira que insiste ser verdade, e foge da
verdade, que ele chama de mentira.
Diante de tudo isso, o cristão deve ter uma resposta diferente. Não
precisamos justificar-nos a nós mesmos, porque fomos justificados por Deus.
Ser justificado por Deus quer dizer que aceitamos suas acusações contra nós:
reconhecemos que somos pecadores em rebelião contra Deus. Depositamos
nossa confiança não numa justiça própria imaginada, mas na justiça de Deus.
Isso quer dizer que vivemos sem ilusões acerca de nós mesmos, mas com fé
em Deus. Significa desconfiar de nós e confiar em Deus. Não vemos
necessidade de dar desculpas: admitimos o fato de nosso pecado e apontamos
para nossa liberdade e justificação em Jesus Cristo.
Essa atitude, claro, não é nova. A Bíblia fala da “lei dos medos e dos persas,
que se não pode revogar” (Dn 6.8), e dos “decretos feitos em nome do rei
[que] não se podem revogar” (Et 8.8). Era uma lei infalível contra a qual não
há apelo nem recurso. Essa atitude não se limitava à antiguidade. As nações
constantemente tendem a divinizar sua lei e a considerarem-se intérpretes
infalíveis da vontade divina. O comunismo marxista torna a ditadura do
proletariado a expressão da obra divina na história, enquanto em nossa
América muitas pessoas afirmam de modo blasfemo que a vontade do povo é
a vontade de Deus e que a voz do povo é a voz de Deus.
Contra tudo isso, temos de afirmar que o homem, em todas as suas atividades
e instituições, é uma criatura e um pecador nascido para morrer, e que
somente Deus é infalível e sua Bíblia é nossa autoridade. Aceitar algo menos
como nossa autoridade final é destruir todos os padrões além de nossa própria
vontade.
O homem precisa de uma autoridade final. Sem ela, ele não tem padrão. E o
homem não pode fazer de suas emoções a autoridade final, porque elas
tendem ao erro e à tolice. Tampouco pode fazer da razão ou da vontade o
árbitro da autoridade final, porque a razão e a vontade do homem estão
contaminadas e corrompidas pelo pecado. Eles têm como sua órbita os
limites estreitos do mundo restrito do homem, que ele só pode ver por meio
dos olhos do pecado. O homem jamais pode produzir autoridade: todas as
suas tentativas de fazê-lo só destruíram a autoridade e suplantaram-na pela
obstinação.
Bom dia, amigos. De vez em quando, quando paramos brevemente para fazer
uma retrospectiva de nossa vida, percebemos que esta foi muito diferente do
que um dia esperamos. Ao examinar alguns papéis velhos, talvez deparemos
com uma foto de nós mesmos há muito esquecida, que traz de volta um
turbilhão de memórias. Percebemos o quanto éramos jovens à época e quanto
sabíamos pouco e, no entanto, como eram elevados as esperanças e o orgulho
enquanto olhávamos para o futuro. Talvez nos perguntemos: o futuro será tão
inesperado como o foi o passado? Mais que isso, estará definitivamente além
de nossa determinação e controle?
Contudo, num sentido muito real, hoje somos o que o nosso ontem fez
conosco. Somos responsáveis e não podemos fugir da responsabilidade de
nossa situação e de nosso estado presente. Todavia, quando levamos nossa
reavaliação às últimas consequências, algo ainda nos escapa. Não somos
onipotentes, não somos todo-poderosos, e todas as nossas tentativas de
moldar nossa vida deixa algo faltando.
Muito tempo atrás, um homem enfrentou este mesmo mistério acerca de sua
própria vida. Ele começara com uma promessa esplêndida, somente para cair
numa tolice abjeta e emergir no final com uma sabedoria triste e humilde.
Olhando para trás, Salomão declarou, como diz Provérbios 16.9: “O coração
do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos”. Moffatt
traduz o texto do seguinte modo: “O homem concebe seus planos, mas o
Eterno controla o seu curso”.
Agora, vocês que dizem “Hoje ou amanhã vamos para essa ou aquela
cidade; vamos passar um ano ali, empreenderemos e ganharemos
dinheiro”: vocês não sabem nada sobre o dia de amanhã! O que é a sua
vida? Vocês não passam de neblina, que aparece por um tempo e
depois some. Vocês deveriam era dizer: “Se o Senhor quiser,
viveremos para fazer isto ou aquilo”. Mas aí estão vocês, cheios de
pretensões orgulhosas! Toda essa ostentação é do mal. (Tg 4.13-16)
Sim, “o homem concebe seu plano”, mas, como é homem, não é onipotente
nem pode o homem controlar ou moldar todos os fatores de sua vida, ele não
pode controlar seu curso. Ora, isso seria deixar o homem numa situação
terrível se não houvesse nenhum controle para reger ou dominar em sua vida.
Mas, como indicou Salomão, “O coração do homem traça o seu caminho,
mas o Senhor lhe dirige os passos”. “O homem concebe seus planos, mas o
Eterno controla o seu curso.”
Porque nossa vida não se desenvolveu como planejamos, isso não quer dizer
que ela não tenha direção ou propósito. Enquanto caminhamos pela fé, como
membros de Jesus Cristo, somos parte de um plano total que faz todas as
coisas cooperarem para o bem. E, se o Senhor trouxe derrota aos seus planos
e aos meus, é somente porque ele tem algo melhor que deve e vai prevalecer.
O Senhor dirige, e seus direcionamentos são claros e infalíveis. Nas palavras
do velho hino de Samuel Rodigast:
Tudo que Deus ordena é justo:
Sua vontade santa sempre se cumprirá,
Ficarei tranquilo em tudo quanto fará.
Seguirei seguro por onde me guiar;
A ele tudo hei de entregar.
Ele é meu Deus, mas a estrada, escura;
Não cairei: sei quem me segura.
Bom dia, amigos. Uma das coisas que temos de ter sempre em mente, quando
lemos a Escritura, é que devemos levar Deus a sério. Se cremos apenas no
que nos agrada, então tudo que aceitamos é nossa própria palavra, porque
estabelecemos como verdade somente aquilo que nos é aceitável.
Com essa perspectiva, vejamos um versículo que diz algo que precisamos
ouvir cuidadosamente, Amós 9.9: “Porque eis que darei ordens e sacudirei a
casa de Israel entre todas as nações, assim como se sacode trigo no crivo, sem
que caia na terra um só grão”.
Obviamente, Israel esteve nele por um tempo difícil. Ser sacudido no crivo
quer dizer ser quebrado até que o palhiço seja removido do grão e
completamente separado. Hebreus fala desse mesmo processo, declarando
que o propósito de Deus é “a remoção dessas coisas abaladas, como tinham
sido feitas, para que as coisas que não são abaladas permaneçam” (Hb 12.27).
Os apóstolos, em Atos 14.22, deixaram claro que “através de muitas
tribulações, nos importa entrar no reino de Deus”.
A maioria dos cristãos prefere pensar na vida em Cristo como toda doçura e
luminosidade. Alguns realmente tentam acreditar que o privilégio cristão é
ser liberto da tribulação. Entretanto, o propósito específico de Deus para
conosco, que somos sua semente ou grão, por assim dizer, é peneirar-nos para
que o palhiço seja separado de nós. E isso levaria uma pessoa tola e leviana a
declarar que não tem palhiço em sua vida e, portanto, não precisa de
peneiramento.
Ora, ambos os fatos nos parecem incríveis e talvez difíceis de acreditar; mas
pede-se que creiamos neles, primeiro, porque Deus nos peneirará, e não
podemos fugir da peneira e da sacudida que separará o joio do trigo; e,
segundo, porque Deus não permitirá que o menor entre nós caia ou sofra
permanentemente como resultado deste processo. O resultado será somente
ganho.
Há algo em nós que se rebela contra isso. Sentimos que, uma vez que cremos
no Senhor, deveríamos ser autorizados a portar certa quantidade de luz, e
alguns chegam a reivindicá-la. Todavia, quando renunciamos a isso, somos
capazes de andar em trevas. Não podemos ver além do presente. O minuto
seguinte, o dia seguinte, o ano seguinte são inteiramente trevas para nós.
Podemos ter uma fé grande o bastante para mover as montanhas, mas ainda
não podemos ver além do presente nem fazer outra coisa senão andar em
trevas.
Mais que isso, andamos em trevas quanto ao ontem e ao hoje. As aflições nos
sobrevêm, a separação cruel e repentina da morte, e não a compreendemos.
Vemos a miséria e o sofrimento que fazem murchar a imaginação e nos
perguntamos por que essas coisas tinham de acontecer. Olhamos para trás em
nossa vida e descobrimos as mesmas perguntas surgindo dentro de nós. Por
que o Senhor despertou essas esperanças e nunca as atendeu? Por que ele nos
deixou sem resposta quando clamamos em oração por algum sinal de
esperança? Por que estava tudo uma treva total e um absoluto silêncio?
Não só caminhamos em trevas, mas fomos proibidos de acender uma luz por
nós mesmos. Para nós, parece apenas senso comum, mas dizem-nos que todo
que acende uma tocha e tenta cercar-se de luz e andar naquela luz deitará em
tormentas. A mão de Deus estará contra nós se tentarmos acender uma tocha.
Andar em trevas significa isto: andar por fé. De outro lado, declarou Isaías,
tentar acender uma tocha contra as trevas é tentar andar por vista. E isso não
se pode fazer. Nenhum de nós é capaz de andar por vista. Tanto a vida agora
quanto o dia de amanhã são mistério para nós. Reivindicar a visão,
reivindicar que tenhamos uma tocha que dissolva as trevas, é reivindicar algo
que o homem não pode ter. É uma reivindicação falsa que inevitavelmente
leva ao sofrimento.
É difícil para os cristãos aceitar esta situação. Tendemos a sentir que nossa fé
deveria de algum modo inspirar uma retribuição de Deus, revelando alguns
poucos mistérios que não podemos entender por inteiro. Mas, quando Deus,
em vez disso, nos diz que o teste da fidelidade é simplesmente andar em
trevas, ficamos contrariados pela aparente injustiça de tudo isso.
Entretanto, não podemos fazer com que a fé signifique nada mais do que fé
sem transformá-la em alguma outra coisa. Precisamos, ao contrário, aceitar
humildemente nossas trevas e orar pela presença divina enquanto passamos
por elas.
E é por isso, claro, que nos pedem que andemos nas trevas. Se não fôssemos
forçados a andar somente pela fé, não alcançaríamos a mão de Deus em meio
às trevas. Não pediríamos que ele nos segurasse e conduzisse pela meia-noite
do mundo.
A primeira ideia afirmada por este provérbio é que há uma relação entre a fé
e o entendimento. A vida e o caráter de um homem são um indício de sua
capacidade de compreensão. O homem mau não pode compreender o
significado do juízo ou da justiça. As interações de Deus com o homem estão
além deste e só o confundem e desconcertam. Em outras palavras, a confusão
espiritual também envolve confusão moral e intelectual. Há uma medida em
que ficamos aquém das exigências do Senhor a nós; somos nessa mesma
medida incapazes de compreender sua interação conosco. Ficamos perplexos
e rebeldes.
A segunda ideia afirmada por Salomão é que “os que buscam o Senhor
entendem tudo”. Quando o fim de nossa vida é viver à luz da fé no único
Deus vivo, obtemos o conhecimento, em todas as situações da vida e diante
de todas as coisas, do significado de todas as coisas. Quando nossa vida
pessoal tem um fundamento divino, somos capazes de compreender as obras
de Deus. É o julgamento ou justiça de Deus que é a pedra de tropeço para o
homem natural; mas é esta mesma coisa, o julgamento e a justiça de Deus,
que proporciona uma chave de entendimento ao fiel. O que naturalmente nos
torna rebeldes, pela graça de Deus serve também para abrir os olhos de nosso
entendimento. Aquilo que aliena o mundo de Deus, nos leva para mais perto
dele. O que para o homem natural é maldição torna-se, para o crente, uma
bênção. Na fidelidade e na confiança somos abençoados, e os olhos de nosso
entendimento se abrem. Portanto, é isso que a Escritura declara quando diz
que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria. Nosso Senhor declarou:
“Se alguém quiser fazer a vontade dele [de Deus], conhecerá a respeito da
doutrina” (Jo 7.17).
[1]
Citado aqui conforme a versão brasileira disponível em «http://www.luteranos.com.br/conteudo/confia-o-teu-caminho».