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Contents

Prólogo
A Retomada
O Inevitável
Lutando
Arriscando
Potranca
Cowboy de Araque
Acusada
Explorando
Pressionada
Sem Saída
A Carona
O Impostor
Sabotagem
Algo Mais
Rebelando-se
Sadismo
Protetor
Luz no Final do Túnel
Determinada
Confissão
A Verdade
Explodindo
A Disputa
Não Foi um Sonho
História Repulsiva
Avançando o Sinal
Quem Manda em Quem?
Capturada
Encenando
Entrada Triunfal
Vulnerável
A Festa
Desistindo
Despedindo-se
Vitorioso?
A Negociação
O Fim
O Sim
Acertando as Contas
A Revelação
Epílogo
Continua...
agradecimentos
About The Author
Books By This Author
O COWBOY
Série Bem-Vindo ao Jogo
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de
19/02/1998.
Nenhuma parte desse livro, sem autorização prévia da autora por
escrito, poderá ser reproduzida ou transmitida, seja em quais forem
os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação
ou quaisquer outros.
Esta é uma obra fictícia, qualquer semelhança com pessoas reais
vivas ou mortas é mera coincidência.
Revisão: NEIDE MENDES
Capa:
Sinopse
Jogar é o que os Bennett fazem de melhor. Kaíque não
tem nada que o caracterize como um Bennett, a não ser o
sobrenome. O belo cowboy, de sotaque arrastado e o vocabulário
peculiar do mineiro, achou que usando seu "talento" conseguiria as
terras da Laura, que herdou uma fazenda em uma cidade do Sul de
Minas, entre as das empresas Bennett, com facilidade – ledo engano.
O homem forte, criado entre os peões, quando recebeu a
missão dos poderosos da família Bennett, não contava que
encontraria uma mulher valente que o desafiaria a jogar: uma
potranca – segundo ele.
“— Capaz?! Ninguém me disse que era uma mulher, muito
menos que era linda. Cacete, agora fodeu!”
Laura fez uma promessa ao pai, em seu leito de morte, e vai
lutar, com todas as forças, para cumpri-la. Seu pai a preparou para
ser uma fazendeira forte, que não dependa de homem nem um.
Diante de um monte de dívidas, ela não tem outra escolha, a não ser
jogar com seu adversário: o cowboy de araque – segundo ela.
“— Você me subestima, cowboy de araque. Fui criada no
meio do gado e dos cavalos. Tenho prêmios de laço comprido. Eu
me garanto.”
Isaac Bennett, o fundador das empresas, tem uma vida
obscura e a investigadora Gabrielle, tem como meta de vida –
desmascará-lo. Ela segue os passos da família e quer cumprir seu
objetivo, doa a quem doer. Até a própria pele.

Nesse jogo, quem pode mais? Só lendo para saber.

A vida é um jogo? Será que seu pensamento continuará o


mesmo ao final das histórias? Bem-vindo ao jogo!
Prólogo
∆∆∆

Com toda sua imponência, ele ergueu-se de sua poltrona


de veludo vermelha e, a passos firmes, veio em minha direção. O
desespero ocupou o lugar do prazer. Calafrios cortaram minha
espinha dorsal, causando um tremor incontrolável em meu corpo.
A primeira vez que o vi, fiquei encantada. Os olhos de um azul
escuro, filetados de preto; rosto anguloso, com marcas fortes
masculinas; cabelos claros e espessos, com vários fios prateados no
meio. O corpo, coberto com um terno sofisticado, esguio e forte. Sua
altura corroborava com sua altivez.
Lá estava eu, completamente envolvida com um homem
poderoso. Todos ao seu redor o serviam. Fui mergulhando fundo.
Criada na periferia de São Paulo, sempre me destaquei entre
minhas amigas. Minha altura, estrutura óssea e beleza, foram fatores
cruciais na minha tomada de decisão. Não poderia ficar ali, em um
lugar sem perspectiva alguma de crescimento.
Acostumada a ouvir que eu tinha o estereótipo de modelos
famosas, acreditei e decidi buscar novas oportunidades. Morando
com meus avós, já que meus pais faleceram quando eu ainda era
bebê, não me surpreendi quando não me apoiaram. Deixaram claro
que, a partir do momento que eu entrasse naquela “vida fácil” –
segundo eles –, não poderia voltar para casa. Era minha única chance
de ser alguém na vida, até, conhecê-lo...
O calor do seu corpo fez com que eu segurasse a respiração.
Até mesmo seu cheiro embrulhava o meu estômago, o mesmo cheiro
que, um dia, me enfeitiçou. Rente a mim, esticou o braço e ofereceu a
mão para eu pegar. Engoli em seco e aceitei, levantando-me. Ele
puxou-me ao seu peito e afundou o rosto em meus cabelos.
— Trouxe algo pra você — sussurrou ao meu ouvido e eu
estremeci.
Eu sabia o que era...
— Estou bem — menti, na tentativa de me desvencilhar dele.
Cada vez mais, estar com ele me provocava náuseas.
Sua risada sarcástica reverberou pelo cômodo. Ele sabia...
— Você mente muito mal, minha querida, seu corpo implora
pelo que tenho aqui — comemorou e retirou o saquinho do bolso.
Virou-se e caminhou até a poltrona em que eu estava –
levando-me com ele. Puxou a mesa de centro para perto e me sentou
em seu colo. Abriu o saquinho e colocou a “farinha” sobre o tampo de
vidro. Alcançou sua carteira no bolso interno do paletó e tirou um
cartão de crédito. Sem me tirar do colo, fez duas carreiras com o pó.
Ali, diante de mim, estava o que o meu corpo implorava. Eu
precisava resistir, com todas as forças, mas não conseguia. Ele sabia
disso, pois foi a maneira que encontrou de me manter em seu cativo.
Lentamente, sua mão macia, de quem nunca precisou pegar no
pesado, com as unhas muito bem-feitas, guardou o cartão de volta na
carteira e retirou sua nota preferida de um dólar. Enrolou-a e me
ofereceu, com um largo sorriso – expondo o dente de ouro.
Meu coração retumbava no peito; as mãos tremiam. Segurei
os lábios nos dentes e cerrei os olhos com força. Queria sumir dali.
Mas para onde eu iria? Tinha deixado tudo para trás. E, junto dele,
vivia no meio do luxo, cercada de tudo que uma mulher deseja,
porém, com um preço muito alto.
Mesmo que meu íntimo gritasse que eu precisava resistir, até
porque, nunca fui forçada a nada, meu corpo inclinava-se por
necessidade para a carreira sobre a mesa.
Sentindo uma lágrima escorrer pelo canto do olho, peguei a
nota de um dólar de sua mão e inclinei o corpo. Aspirei a carreira
toda – com suas mãos apertando minha cintura.
Aprumei-me de volta e pendi a cabeça para trás – terminando
de absorver o que tanto desejei o dia todo.
— Boa menina — murmurou e começou a tirar meu vestido.
Rapidamente, a adrenalina me dominou, a sensação de poder,
de confiança, me deixou eufórica. Olhei para ele e voltei a enxergar o
mesmo de quando o conheci. Virei-me em seu colo e o ajudei a me
despir. Tudo ficou mais fácil.
A Retomada
∆∆∆
Gabrielle

— O que conseguiu de informação? — questionei,


Andressa – aflita.
Meses já se passaram e nada do velho colocar os pés no
Brasil. Já tentei vários caminhos para o cercar – sem sucesso. Tenho
que admitir: Isaac Bennett é muito bem assessorado.
Andresa tem sido de grande ajuda. A garota quer mesmo se
vingar do Narciso, principalmente, agora, que saiu em todas as capas
de revistas e destaques na internet, que o caçula está de casamento
marcado. Precisei segurá-la, caso contrário, colocaria tudo a perder.
— Está cada vez mais difícil, Gabi, meus contatos dentro da
Bennett estão com medo. Acham que estou querendo aprontar
alguma com o Lucca, de certa maneira, sim, mas... — Respirou
fundo.
Ponderei sua fala e aguardei uns minutos. Alguns meses
lidando com a Andressa foram suficientes para conhecê-la bem. A
garota é sensível, estou tendo que ter muito jogo de cintura. Toda
direta, acostumada a lidar com homens brutos, nunca tive muito
“saco” para frescuras. Entretanto, no momento, Andressa é a minha
única carta na manga.
— Andressa... — comecei e parei, elaborando a frase
seguinte. — Você não pode dar bandeira, loira — descontraí um
pouco.
Por incrível que pareça, aos poucos, estou pegando uma certa
intimidade com ela e, de certo modo, uma pequena afinidade.
Ouvi sua respiração pesada na linha. Depois que a notícia do
casamento do Lucca foi publicada, Andressa tem andado mais
chorosa do que o normal. Eu ficaria com dó, não fosse a falta de
“inteligência” dela em se envolver com a pessoa errada. Por isso, que
continuo sozinha.
Depois de uma fungada, Andressa decidiu continuar:
— Não sei se é verdade, mas minha fonte deixou escapar que
Isaac Bennett está no Brasil, escondido — soltou a frase de uma vez
e meu corpo endureceu imediatamente.
— Explica isso direito, Andressa. Como você me diz isso só
agora? — vociferei – ficando em pé, prontamente.
— Foi pra isso que liguei, Gabi. Poxa... — fungou novamente
— estou fazendo tudo o que posso — lamuriou-se.
Pensei em continuar repreendendo-a, afinal, se não tivesse
ficado se lamentando e fosse logo direto ao assunto, nem estaríamos
conversando mais. No entanto, estava prestes a perdê-la, decidi
pegar leve.
— Tudo bem, loira. Você está certa — considerei e voltei a me
sentar. — Vamos descobrir onde o velho está se escondendo —
garanti – apertando as unhas na palma da mão.
— Sim, eu sei que vamos...

Já tinha tomado, praticamente, todo o café da cafeteira da


copa, isso porque não gosto dele, imagine se gostasse? O chão do
distrito estava desgastado, de tanto que eu andava de um lado para o
outro, buscando uma maneira de entrar na Bennett. Se eu tivesse
Bento do meu lado, as coisas ficariam muito mais fáceis. Só que ele
não facilita para mim, tenho que encontrar uma maneira, sem ele.
Sentei na minha cadeira e abracei a xícara de café –
esquentando as mãos. O outono chegou e a cidade cinza começava
a ficar gelada. Tomei um gole do café e fiz uma careta. Meu
estômago azedou. Vi, por cima da borda da xícara, João Pedro se
aproximando.
— O que está tramando? — perguntou de cara, sentando-se
na beirada da minha mesa.
Dei de ombros e continuei tomando o café, como se não
tivesse entendido seu questionamento.
— Gabi, eu te conheço. Você pensa que me engana —
continuou e eu permaneci calada. — Sabe que também não engana o
Bento, não é mesmo?
— Me erra, João — retruquei baixinho e levantei – pela
milésima vez.
Caminhei até a copa sentindo João me seguindo. Lavei a
xícara e a coloquei no escorredor – ignorando completamente meu
parceiro.
— O que aconteceu com a gente? — inquiriu, mudando o tom
de voz – chamando minha atenção.
— Como assim?
— Quando deixou de confiar em mim?
Desviei o olhar e umedeci os lábios. Como explicar-lhe que não
quero ser protegida? Que nossa parceria pode prejudicar seu
emprego?
— Eu confio em você, só não quero... — Inclinei a cabeça para
trás e bufei.
— Não quer que eu fique te controlando — concluiu a frase no
meu lugar.
Voltei a olhá-lo e ficamos alguns segundos em um jogo de
quem pode mais.
— Também — concordei, por fim.
Passamos um tempo quietos, analisando as reações dos
nossos corpos. A verdade é que queria poder contar com o meu
parceiro. Formamos uma bela dupla, mas, infelizmente, João Pedro,
ultimamente, vem descordando dos meus métodos.
— E sua ficante? — mudei de assunto, deixando o clima mais
ameno.
Dessa vez, foi ele quem bufou e fez um gesto com as mãos de
que já era.
Joguei a cabeça para trás e gargalhei.
— É, acho que vamos morrer sozinhos.
— Fale por você, cara pálida — censurou-me e foi saindo da
copa – em direção às nossas mesas.
Me acomodei novamente atrás da minha mesa e abri o laptop,
com uma ideia na cabeça. Depois de algumas pesquisas na internet,
soube como eu conseguiria uma reunião com o atual CEO da Bennett.
O tão falado, Henry. Todos falam dele com receio, na verdade, medo.
Só que a mim, ele não assusta. Tenho certeza de que aquela corja é
tudo farinha do mesmo saco. Um fruto não cai longe do seu pé. Se o
pai está fugindo de mim, vou pressionar os filhos.
Fiz algumas ligações e, como eu esperava, estava com a faca
e o queijo na mão. Só precisaria convencer o Bento a me dar suporte,
pois teria que ir como investigadora na empresa e não como uma civil.
Com algumas anotações nas mãos, fiquei em pé e caminhei
confiante para a sala do meu “chefe-padrinho”. Bati de leve à porta e
a entreabri. Bento ergueu os olhos, de alguns papéis, e fez sinal com
a cabeça para eu entrar. Não esperei que me oferecesse, sentei-me
à sua frente e aguardei que sua atenção estivesse totalmente voltada
a mim.
— Dessa vez você demorou — iniciou, depois de me escrutinar
por longos minutos.
Não é novidade o fato de ele ler minha mente. Claramente ele
já sabia que o assunto era relacionado aos Bennett.
— Soube, por uma fonte segura, que o Isaac Bennett está no
país — comuniquei, sem titubear. Porque, embora ele não concorde
com minha forma de ver a situação, também quer colocar o velho
atrás das grades.
— Imagino que essa sua fonte não queira ser identificada —
deduziu – largando os papéis e arrastando o corpo para a ponta da
cadeira.
Meneei a cabeça confirmando. Seus olhos estreitaram-se e eu
não perdi tempo em continuar aproveitando que, pelo menos, ele
estava me ouvindo.
— Andei pensando... — Baixei a cabeça e respirei fundo. Um
passo em falso e Bento não me deixaria continuar. — Ergui a cabeça
e sua atenção estava redobrada, em mim. — O velho é muito safo,
tenho que ir por outro caminho.
Bento recostou-se novamente na cadeira e ficou pensativo, por
alguns segundos. Não me atrevi a interromper. Sei o quanto ele
precisa digerir uma informação, antes de tomar alguma decisão.
— Estou ouvindo — afirmou e eu sorri.
— Há tempos que sabemos que a Bennett financia o tráfico de
drogas, só não temos provas, ainda — iniciei e Bento franziu a testa,
calando-me.
— Enquanto não temos provas, não sabemos nada, Gabrielle
— corrigiu-me e eu bufei. A expressão de censura que me lançou foi
um aviso de que eu teria que ir com calma. Ergui a mão em rendição.
— Você está certo, mas, para descobrirmos se é verdade,
precisamos investigar — esclareci e ele balançou a cabeça em
concordância. — Como não refutou minha fala, dei continuidade. —
Preciso que me ajude a falar com o atual CEO da empresa. Vou
pressioná-lo — cuspi de uma vez e fiquei observando sua postura.
Bento ficou em pé e foi para a janela. Enfiou as mãos nos
bolsos da calça jeans e ficou se balançando nos calcanhares. Não me
movi. Após alguns eternos minutos, ele virou-se e ficou de frente para
mim. Me escrutinou e encheu o peito de ar, antes de expor sua
decisão.
— O que tem em mente? — questionou-me.
Meus lábios abriram-se involuntariamente. Quase soquei o ar
de felicidade.
— Então, preciso de uma reunião com o Henry, estando cara a
cara, minhas chances serão maiores. Conseguirei intimidá-lo.
Bento riu sarcasticamente e voltou a sentar-se. Apoiou os
cotovelos na mesa e cruzou os dedos da mão.
— Acho que você bebeu antes de vir trabalhar — ironizou. Só
icei as sobrancelhas em resposta. — Primeiro, baseado em que vou
conseguir te enfiar dentro daquela maldita empresa, Gabrielle?
Boatos? — Fui responder, ele levantou o indicador para que eu me
calasse. — Segundo, e não menos importante, estamos falando do
mesmo Henry? O que te faz pensar que vai conseguir intimidar o
cara? Tudo o que sabemos dele é que segue fielmente os passos do
pai.
Dei de ombros e fiz um bico com o lábio inferior – sentindo um
calafrio cortar minha espinha dorsal. Não poderia, de maneira alguma,
demonstrar fraqueza ao Bento, caso contrário, ele simplesmente
mandaria eu esquecer aquela ideia. Aprumei-me, criei coragem de
insistir e persisti:
— Se não tentarmos, nunca vamos saber se podemos seguir
por esse caminho, onde há fumaça, há fogo — perseverei e inspirei
uma grande quantidade de ar.
Bento voltou a me estudar com seus olhos estreitados.
Esfregou as mãos no rosto e alcançou o telefone da mesa. Discou
para alguém e, enquanto aguardava que atendessem, ficamos na
nossa habitual batalha de olhares. Ele me testa, o tempo todo.
— Bom dia — cumprimentou a pessoa na linha, com sua voz
intimidante. — Quero agendar uma reunião com o Henry.
Quase caí para trás, ao entender do que se tratava a reunião.
Como assim? Ele nem hesitou. Bento explicou o motivo da reunião à
pessoa que, provavelmente, não lhe deu a resposta que ele queria,
pois, seu tom de voz passou de intimidante para agressivo – diria que,
assustador.
— Olha só, Emanuela, é o seu nome, não é mesmo? —
Esperou que a pessoa confirmasse e continuou: — Estou sendo
educado e querendo apenas conversar, mas se o seu chefe quiser
dificultar, consigo um mandado e coloco essa empresa de cabeça pra
baixo — ameaçou – vociferando. Até mesmo eu, acostumada com
ele, engoli em seco – sentido pena da coitada do outro lado da linha.
Claro que Bento conseguiu um horário com o CEO da Bennett,
no mesmo dia, inclusive. Mesmo que suas ameaças fossem vazias,
sua postura altiva faz com que as pessoas acreditem que ele vá
cumpri-las.
Bento colocou o telefone no gancho e me olhou sério.
— Vou com você — comunicou e eu refutei imediatamente.
— Acha que não sou capaz?
— É pessoal, Gabrielle. Não deveria nem concordar com uma
coisa dessas. Posso me prejudicar por sua causa.
— Sabe que tenho razão, se alguém não tiver coragem de
seguir em frente, essa família vai continuar destruindo vidas —
argumentei.
Seu peito subiu e desceu com vigor. Ele meneou a cabeça e
fez um sinal para eu sair da sala. Antes que ele desistisse, fiquei em
pé e me apressei em sair. Ainda na porta, virei o corpo e o olhei
firme.
— Obrigada, não vai se arrepender — agradeci – aliviada.
— Assim eu espero — murmurou e voltou sua atenção aos
papéis novamente.
§§§§
Estive muitas vezes na Bennett, mas nunca consegui subir na
diretoria. Estar ali, diante do meu pior pesadelo, me fez hesitar. Não
fosse minha determinação em acabar com aquela família podre, teria
voltado para trás.
Assim que coloquei os pés para fora do elevador, meu coração
galopou no peito, ao ver o nome imponente cravado na parede. Nome
esse que me assombra desde que ainda estava no ventre da minha
mãe. Recordar de tudo o que ela passou, pelas coisas que aquele
velho misógino a fez viver, revirou meu estômago. Senti o amargo da
bílis queimar minha língua.
Recuperando a determinação, ergui o tronco, empinei o queixo
e caminhei, sem titubear, até a suntuosa mesa da secretária do CEO.
— Olá, tenho um horário marcado com o Henry — adiantei-me
e a garota mediu-me dos pés à cabeça, com expressão assustada.
— Ah... sim... — gaguejou um pouco — achei que seria o
senhor Bento que viria.
— Estou a mando dele — expliquei, mesmo que fosse uma
completa mentira. Mas a garota não precisava saber desse detalhe.
— Aguarde um minutinho, vou falar com o senhor Henry.
Assenti e me sentei. O lugar tinha vidros para todos os lados.
Fiquei pensando como alguém tinha alguma privacidade. Alisei a
poltrona confortável e observei o quanto de luxo tinha ali. Não
consegui discernir se era moderno ou clássico. Ao mesmo tempo que
tudo parecia tão conservador, tudo era muito tecnológico.
Ainda, admirando o ambiente, dei um pequeno pulo, quando
percebi a figura imponente à minha frente. Levantei-me rapidamente e
estendi a mão – segura.
— Olá, sou a Gabrielle, vim a mando...
— Eu sei quem você é — interrompeu-me e eu mordi a língua
para não o xingar. Tentei ser educada, indo contra tudo o que meu
corpo estava sentindo, e o imbecil vem com sua arrogância pra cima
de mim.
— Que ótimo, assim podemos ir direto ao assunto — respondi
friamente, recolhendo minha mão, até, porque, ele não tirou as suas
do bolso de sua calça de alta costura.
Seu olhar intenso me escrutinou, por alguns segundos. Assim
como sua secretária, mediu-me dos pés à cabeça. Olhei para o meu
corpo, à procura de alguma coisa errada, assim que seu rosto se
contorceu.
— Qual o problema de vocês, aqui? — censurei-o e ele abriu
um sorriso que chegou a arrepiar os pelos da minha nuca, de tão
maldoso.
O cara tem uma beleza estonteante e, para piorar, a
arrogância dele e prepotência, o deixa mais bonito. Não fosse o fato
de ser um Bennett e..., chacoalhei a cabeça e desvencilhei o
pensamento que quis dominar minha mente.
— Nunca vi uma mulher bonita como você, vestida como um
macho. Que botas horrorosas — desdenhou, apontando para o meu
corpo.
— Tss... tss... tão “agradável” como o pai, machista idiota —
retruquei e peguei o distintivo, querendo acabar logo com aquela
porcaria que estava começando a me desestabilizar.
O Inevitável
∆∆∆
Kaíque

— M as sô que trem mais sufocante — reclamei para o


motorista que me levava à sede da empresa da minha família.
Mesmo depois de anos, indo a São Paulo, não me acostumei
com o ritmo maluco do lugar. Se eu pudesse, mandaria outra pessoa
no meu lugar, mas nunca foi uma opção. Com o senhor Isaac fora só
ficou pior.
Afrouxei a maldita gravata e quase a arranquei, não fosse o
fato de estarmos chegando e eu souber que cutucaria a onça com
vara curta. Henry é tão, ou mais conservador que o nosso pai, para
essas bestagens.
— Chegamos, senhor Bennett, assim que terminar sua reunião
levarei o senhor de volta ao aeroporto — comunicou o senhor
simpático.
— Uai! Cê sabe que vai demorar um tiquim, não é mesmo? —
testei o senhor, para ter certeza de que eu poderia deixar aquele
lugar no mesmo dia. Só de pensar em passar a noite, pinicou meu
pescoço.
— Eu sei, senhor, não se preocupe, estarei à sua disposição
— garantiu o motorista.
— Cê num arreda o pé daqui. Quero cascar fora o mais rápido
qui eu puder, desse lugar arroiado. — Bati em seu ombro e desci do
carro luxuoso, sentindo falta da minha Dodge RAM[1]. E, ainda mais,
do meu manga-larga.
Meu melhor companheiro e amigo, Sansão, conhece todos os
meus segredos. Sabe exatamente onde me levar, quando monto em
seu lombo e percebe que meu humor não está dos melhores.
Adentrei as portas giratórias e os olhares curiosos dos
paulistas, metidos a bestas, se voltaram para mim. Não entendo o
motivo de estranharem minha maneira de se vestir, já que, hoje em
dia, tudo é moda. Gostaria que ignorassem o fato de eu ser um dos
herdeiros daquele império e me deixassem em paz com minhas botas
e meu cinto de fivela dourada. Estar de blazer e gravata já era um
grande avanço. Só os coloco quando sou obrigado a estar na sede
da empresa. Mas não abro mão das minhas calças jeans agarradas
nas coxas. Sorte a deles não estar munido do meu chapéu, o que, por
sinal, me faz sentir pelado.
Depois de cumprimentar o pessoal da entrada, aguardei, num
mundarel de gente, que um dos elevadores chegasse ao térreo.
Arrochei mais um pouco a gravata, torcendo para que aquela tortura
terminasse de uma vez.
— Bom dia, senhor Bennett — cumprimentou uma garota
simpática, não parecendo fazer parte do restante das pessoas ao
meu redor.
— Dia — respondi e a encarei, franzindo a testa, tive a
impressão de a conhecer.
— Sou a Valentina — apresentou-se e estendeu a mão para eu
pegar.
Ah, claro, a noiva do Lucca. Eu sabia que a conhecia.
— Aqui, estou começando a entender por que Lucca si
amarrou — diverti-me, estendendo a mão para cumprimentá-la.
Ela inclinou a cabeça para o lado e algumas linhas de
expressão se formaram em sua testa – demonstrando que não tinha
entendido.
— Cê num parece sê intojada como esse povo daqui, não —
esclareci e um sorriso sincero enfeitou seu rosto singelo.
Aproximei meu rosto do ouvido dela e falei baixinho:
— Confessa, cê num é daqui, não é mesmo?
A garota se afastou um pouco e ajeitou a postura, limpando a
garganta. Quando ia responder, a porta do elevador se abriu e
adentramos, junto a multidão que estava ao nosso redor. Dentro
daquela caixa de aço asfixiante, não tive a oportunidade de continuar
a conversa com minha futura cunhada. Gostei da garota, me
lembraria de parabenizar meu meio-irmão.
Faltando alguns andares para o meu destino, Valentina
desembarcou e acenou para mim, com o mesmo sorriso sincero de
antes. Sorri de volta e também acenei.
Depois do que me pareceu uma eternidade, finalmente, estava
botando os pés na diretoria da empresa.
— Dia, Emanuela — cumprimentei a secretária do Henry e fui
entrando – sabendo que me esperavam na sala de reuniões.
Emanuela respondeu e veio logo atrás, com seu inseparável
aparelho nas mãos. Um troço onde ela anota tudo. Fico me
perguntando se não seria muito mais fácil usar papel e caneta.
De longe, pude ver Henry e Lucca em uma conversa calorosa,
como sempre. Os dois nunca se deram, na verdade, nenhum de nós.
Mérito do senhor Isaac Bennett que faz questão de nos colocar uns
contra os outros. Porém, acho que pelo fato de os dois serem os
únicos a trabalharem no mesmo prédio, a briga é muito mais intensa.
Isso porque Lucca deixa para lá, muita coisa, Henry parece ter como
meta atazanar a vida do mais novo.
— Você é um troglodita — xingou Lucca e ficou de costas para
o Henry, passando as mãos pelos cabelos. A coisa deveria estar bem
feia, para o Lucca estar alterado daquela maneira.
— Acha que, só porque colocou um anel no dedo de uma
qualquer, pode bancar o responsável — rebateu Henry e foi nesse
momento, que tive que me fazer presente.
Lucca virou-se bruscamente e partiu para cima do Henry, de
punho fechado.
— Eiraaa!! — gritei e fiquei entre os dois. — Mas qui diabo qui
tá acontecendo aqui?
— Esse cara precisa trepar — vociferou, Lucca – tentando
passar por cima de mim e chegar ao Henry.
— Quer ser idiota, tudo bem, mas colocar o nome da empresa
em risco, a conversa muda de figura — rebateu, Henry – sem alterar
sua postura prepotente – com um sorriso sarcástico no canto dos
lábios.
— Quando foi que coloquei o nome da empresa em risco,
porra! — berrou, Lucca e se desvencilhou de mim – indo até as
vidraças da sala.
— Oiá, só, cês tão pelejano por algo qui nem aconteceu?
Henry fez uma careta e sua atenção voltou-se a mim.
— Cara, sério, tem que aprender a falar. Esse seu vocabulário
é vergonhoso. Graças a Deus que não assumiu a cadeira do CEO.
Fico imaginando o que nossos parceiros pensariam de tamanha falta
de... — Entortou mais ainda o rosto e fez um gesto com as mãos. —
Nem sei como definir esse seu vocabulário — censurou-me, mais uma
vez.
Lucca se virou e soltou um sorriso amargo – balançando a
cabeça – indignado.
— Valentina tem razão, você precisa de ajuda, Henry, vá se
tratar — disse e foi saindo da sala. Já na porta, virou-se e falou
comigo: — Desculpe-me, Kaíque, passe na minha sala, antes de
voltar pra casa.
Esperei que Lucca pegasse uma certa distância e encarei
Henry. O assunto que tinha que tratar com ele não era nada
agradável. Se, normalmente, conversar com Henry já é complicado,
depois de um bate-boca com Lucca, seria muito pior.
— Espero que tenha boas notícias — iniciou, Henry – abrindo o
botão de seu paletó e sentando-se. Apontou a cadeira ao seu lado e
me sentei, também.
— O trem tá trapaiado — respondi e o encarei, vendo sua
feição se contorcer. Henry encheu o peito de ar e soltou, aos poucos.
— Rapaz, desse jeito cê vai tê um treco. Duvido qui chegue aos
cinquenta — alertei-o e pensei que seria fuzilado pelo seu olhar. Ergui
as mãos e recuei o tronco – rendendo-me.
— Kaíque, fala pra mim que essa sua fala ininteligível quer
dizer que conseguiu alguma negociação — prosseguiu e eu neguei
com a cabeça. — Não estou acreditando que terei que ir até lá para
resolver isso. Vocês têm que servir para alguma coisa nessa
empresa, caralho! — vociferou e ficou em pé. Foi até as vidraças e
colocou as mãos nos quadris.
Não me movi, tentando não entrar no jogo dele. Afinal, jogar
baixo é o que Henry faz de melhor. De todos nós, é o único que segue
à risca o que o senhor Isaac impõe, sem questionar.
Após alguns minutos, Henry virou-se, novamente. Ficou de
frente a mim, sem se sentar. Fez um gesto com as mãos para que eu
continuasse.
— Véi — comecei e a careta que o Henry fez, quase me fez
parar. Bufei e, ignorando sua censura, segui: — Já pelejei e o
proprietário não arroxa. Num sei mais o qui fazer — confessei,
porque eu realmente já tinha tentado de tudo.
— Já foi pessoalmente?
— Não, mas mandei os melhores e...
— Esse é o tipo de negócio que não se manda ninguém,
Kaíque — interrompeu-me e eu só acenei.
Discutir não resolveria. Sem contar que eu já tinha pensado
como ele. Só precisava criar uma estratégia e era para isso que
estava ali. Tendo que aguentar sua arrogância. Porque, uma coisa é
certa: Henry é o melhor de todos nós para negociar. Ele, com toda a
certeza, teria uma saída.
— Cê tá certo — concordei e me ajeitei na cadeira. — Daqui
mesmo, vou zarpá pra lá. Tem base, qui vamos perdê um negócio
desses? Vô dexá nu jeito.
Achei que Henry se animaria com a minha determinação, mas
sua expressão continuava de censura.
— Vou morrer e não me acostumar com esse seu estilo. Quem
consegue entender o que você fala? Não marque nada, que
estejamos juntos, já imaginou? Tss... Tss... — Balançou a cabeça. —
Que ridículo — murmurou e eu fiquei ponderando se deveria revidar.
Por fim, achei melhor expor o que eu tinha em mente, assim poderia
sair logo dali.
Travamos uma batalha de olhares, por uns instantes. Bufei e
revirei os olhos – desistindo.
— O qui cê sugere? — perguntei e seu rosto se transformou.
Foi como dar um pirulito a uma criança.
— Você tem que encontrar um ponto fraco e partir para cima
— sugeriu e eu ergui as sobrancelhas.
— Uma prosa num é melhor? — argumentei.
— Com quem acha que está tentando negociar, Kaíque? O
cara é um fazendeiro, sabe muito bem o quanto as terras dele valem.
Acha mesmo que uma conversa furada vai convencê-lo? Acabou de
me dizer que já mandou os melhores. Seguramente, o cara não quer
vender. Só que não temos opção, sabe disso, não é mesmo?
Aquiesci. Nesse ponto, Henry tinha razão. Por anos que
mantínhamos nossos negócios em Belo Horizonte, porém, as
fazendas de gado e aves, no Sul de Minas, pois a região de BH tem
muitos morros, não é muito propícia.
Nossa maior fazenda de gado fica em Pouso Alegre, contudo,
mesmo que ela seja grande, não está atendendo a demanda da
empresa. Precisamos expandir. De todo o espaço em volta, apenas
uma está entre nós. As demais já negociamos. Essa fecha o cerco.
— Marque uma reunião com o prefeito, mostre o quanto
queremos investir na cidade. Eu sei que a cidade está em plena
expansão, já se tornou um polo industrial, ele terá interesse que a
Bennett tenha uma filial lá — instruiu, Henry.
Cocei a barba por fazer e analisei sua sugestão.
— Acha qui o prefeito pode convencer o dono a nos vender?
— Deixa de ser lerdo, Kaíque. Tem que fazer o cara comer na
sua mão, assim ele vai te dar alguma informação para usar contra o
fazendeiro turrão — esclareceu e eu franzi a testa.
— Ainda acho qui uma prosa seria melhor — retruquei
baixinho.
— Se acha que não tem colhões para assumir, volte para BH e
deixa que eu vou. Garanto que só volto para cá com a fazenda
comprada — ameaçou e eu fiquei em pé – praticamente rosnando.
— Agora cê me ofendeu, cabra — redargui e Henry abriu um
sorriso satisfeito.
— Assim está melhor — comemorou. — Antes de ir até o
prefeito, vá ao banco. Faça o mesmo, mostre o quanto de dinheiro
vamos colocar lá. O banco é um bom lugar para descobrir se a
pessoa tem rabo preso. É só encontrar o ponto fraco, Kaíque. Depois
que tiver essa informação, teremos o cara em nossas mãos.
Dependendo do tamanho da merda, podemos pagar muito menos do
que estamos oferecendo.
— Cê tá querendo matar o cara, é isso?
Henry deu de ombros e ergueu apenas uma sobrancelha.
— Estamos tentando pela maneira fácil, ele quer complicar, vai
se ferrar, deveria saber a potência que somos — sentenciou, sem o
menor remorso. Vendo minha expressão de descrença, continuou: —
Bem-vindo ao mundo dos negócios. Como você acha que a Bennett
cresce?
Nunca fui muito a favor dos métodos que a Bennett usa para
fazer negócios, mas não tenho autonomia para modificar. Tento agir
diferente, no entanto, quando sai do meu controle, sou obrigado a
seguir ordens.
Usar o ponto fraco de uma pessoa, para fazer com que ela nos
venda suas terras, já não é uma tática que aprovo. Baixar o valor,
deixando a pessoa refém, é quase que dizer que ela está morta –
falida, é muito pior.
Respirei fundo e meneei a cabeça – me aprumando para rapar
fora.
— Dexá comigo — garanti, mais para mim, do que para o
CEO da Bennett.
Lutando
∆∆∆
Laura

Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Quanto


meu pai foi paparicado naquele banco? Assim que as coisas
funcionavam? Você só é útil quando tudo está indo bem?
— Desculpe-me, Laura, não tenho mais o que fazer — repetiu
o gerente, sentado à minha frente.
Tive vontade de levantar-me e enfiar a mão na cara dele. Só
que as coisas ficariam muito piores, sem contar que me levariam
presa.
Bufei e abri o sorriso mais sarcástico de todos.
— Deixa-me ver se entendi — comecei e cerrei os dentes,
controlando a raiva que dominava meu corpo. — Quer dizer que meu
pai socou dinheiro no seu rabo todos esses anos e agora, que
preciso, você me diz que não tem mais o que fazer? — berrei e as
pessoas em volta voltaram suas atenções para mim.
O gerente deu-lhes um sorrisinho sem graça e fez um gesto de
que estava tudo sob controle. Ergui o rosto e lancei um olhar
demoníaco na mesma direção que o gerente tentava amenizar o
clima. Imediatamente, cada um foi voltando suas atenções para outra
coisa.
— Melhor falar mais baixo — pediu, Emanuel, completamente
sem jeito. Estreitei os olhos e o encarei firme, por longos minutos. —
Laura... — suspirou — não tem um porquê de não te ajudar. Que
motivo eu teria?
— Vai saber, vocês são todos interesseiros, agora que não
tenho nada a oferecer...
— Sabe quantos empréstimos seu pai pegou. E sabe,
também, o que ele fez com o dinheiro. Já negociei todos eles, não
tem mais como negociar, muito menos, pegar outros. Se eu mover
uma palha a mais, vou ser mandado embora. Tenho família, não
posso me arriscar — despejou de uma vez e eu joguei meu corpo no
encosto da cadeira – sentindo um misto de sensações.
Como a vida da gente pode mudar do dia para noite? Eu, nos
meus trinta anos, tendo que lidar com problemas desse porte. Por
mais que sempre estivesse ao lado do meu pai, não passou pela
minha cabeça que ele viesse a faltar e eu ter que assumir tudo
sozinha.
— Não consegue, pelo menos, estender os prazos? — insisti,
porque não tinha a menor ideia de onde tiraria dinheiro para pagar as
próximas parcelas.
Perder as terras estava fora de cogitação, era tudo o que eu,
minha irmã e minha mãe tínhamos. A vida do meu pai estava ali.
Lutou, até o final, para que ficássemos com as terras.
— Laura, seu pai estendeu essas parcelas várias vezes. Como
eu te disse, não tem mais nada que eu possa fazer — repetiu sua
recusa e eu quase comecei a chorar, porque não sabia mais o que
fazer.
— Esse ano vai ser melhor, você sabe disso — prossegui. —
Tenho toda uma estrutura montada e já estou produzindo, não na
mesma quantidade, mas consegui manter a fazenda ativa. Só não
consigo manter essas parcelas nesses valores.
— E os carros que o seu pai saiu desfilando pela cidade?
Fechei os olhos e balancei a cabeça.
— Confiscados — murmurei.
— Em algum lugar o dinheiro que o seu pai pegou tem que
estar, Laura.
— Ele investiu na fazenda, Emanuel, o problema foi a doença
que deu no gado, você sabe disso. Perdemos quase todo o rebanho.
Sabe que foi por isso que ele teve um enfarto. Quantas vezes tenho
que repetir essa merda? Não vê que está me matando aos poucos?
Faz só quatro meses. — As últimas palavras saíram embargadas.
A expressão do gerente amenizou um pouco. Ele estendeu sua
mão por cima da mesa e deu uma batidinha no dorso da minha.
— Melhor você vender a fazenda — falou baixinho, consciente
de qual seria minha reação.
Puxei a mão e fechei a cara.
— Nunca! — afirmei e fiquei em pé – num rompante. — Se
aquele povo, daquela empresa, aparecer novamente na fazenda, vou
pegar minha espingarda — avisei e virei-me, batendo em um muro de
músculos.
— Eita, égua! — exclamou o homem que trombei.
Ergui o rosto lentamente e quase tive o mesmo que meu pai:
um enfarto. Não era ninguém menos do que o infeliz de quem eu tinha
acabado de falar.
Por mais que eu já tivesse pesquisado a respeito do infeliz,
não esperava que fosse tão... grande... cheiroso e... lindo... meu
Deus! Meus olhos estavam na altura do seu peito. A camisa, com
alguns botões abertos, deixou sua pele bronzeada exposta. Baixei o
olhar e quase saí correndo, com medo de sucumbir ali mesmo, antes
mesmo de ele fazer qualquer contato. O cara usava uma calça jeans
tão justa que pude medir cada centímetro de suas coxas e pior do
seu... engoli em seco e voltei meu olhar para o seu rosto. Claro que
tinha um sorriso maroto ali. Ele tirou o chapéu e inclinou o corpo em
reverência – com o canto dos lábios erguidos.
A pessoa à minha frente era simplesmente um dos herdeiros
da maior empresa alimentícia do país. Nunca tinha se dado o trabalho
de tirar sua bunda da cadeira e ir pessoalmente, sempre foram seus
capangas. Se estava ali, o interesse tinha aumentado. Eu precisava
pensar em uma estratégia. Ele tinha que entender que eu não
venderia, independentemente, da oferta.
Não sou qualquer uma, nunca saí do lado do meu pai. Tenho
capacidade de lutar e vencer. Nem pensar que vou me desfazer da
única coisa que meu pai nos deixou. Toda a nossa história está
naquelas terras.
— Idiota, olha por onde anda — vociferei e o empurrei.
— Ei, potranca, num fui eu quem virou de uma vez, não —
defendeu-se e eu cerrei os dentes e os punhos ao lado do corpo.
Ele podia ser bonito, gostoso e ter muito dinheiro, mas não me
ganharia na conversa. Minha família é muito mais importante para
mim. Meu pai me ensinou que nunca devemos confiar nos homens,
eles pensam com a cabeça de baixo, quando veem uma mulher
bonita.
— Potranca é sua mãe — falei mais alto do que antes e ele
recuou o corpo, fazendo uma expressão de que não estava
entendendo meu comportamento. — Quem você pensa que é, pra
chegar aqui querendo mudar tudo, botando banca? — completei, ele
olhou para o gerente e balançou a cabeça – confuso.
— Oiá só, moça bonita, num sei qui bicho te mordeu, mas eu
num sô culpado, não.
— Aí que você se engana, você é o maior culpado pelo meu
dia estar uma merda! — berrei e o empurrei com força – tirando-o da
minha frente. A passos largos e pesados, fui saindo da agência – com
todas as pessoas me observando.
§§§§
Estacionei minha D20[2] vermelha e desci, batendo a porta com
força.
— Bom dia, Emílio — cumprimentei o rapaz que cuida da
avicultura.
— Dia, dona Laura.
— Como estamos com os suprimentos? — fiz a pergunta
diária, com medo da resposta.
— Pra hoje, ainda temos, agora... — baixou a cabeça e coçou
a nuca – desconcertado.
Meu pai foi um exímio fazendeiro, um excelente administrador.
Enquanto estava vivo, nunca tivemos falta de nada. Os empregados o
adoravam. Ainda não consigo entender como ele foi tão ousado em
querer expandir demais e perdeu a mão. Mesmo que a doença do
gado tenha sido o fator principal do fracasso, ainda assim, foi pego
muito dinheiro no banco. A única vantagem é que temos uma estrutura
ótima, não fossem as dívidas, com pouco dinheiro conseguiríamos
voltar a crescer.
— Tudo bem, Emílio, vamos dar um jeito, sempre demos, não
é mesmo? — garanti ao garoto e bati de leve em seu ombro.
Emílio foi criado na fazenda, seus pais são nossos vizinhos.
Assim que completou dezesseis anos, meu pai o contratou e, desde
então, cuida da fazenda como se fosse dele. Hoje, com vinte e um,
tornou-se um rapaz robusto e cobiçado pelas garotas da cidade.
Antes de seguir, dei uma olhada no celeiro e vi que o garoto
tinha razão, a ração das aves só daria para o dia. Fechei os olhos e
respirei fundo. Continuei a conferência e quase me desesperei, o sal
do gado não estava muito diferente.
— Dona Laura — chamou-me, Joaquim – responsável pelo
gado.
— Bom dia, Joaquim, imagino que vá me dizer que precisamos
de sal — adiantei-me e ele só meneou a cabeça confirmando. — Não
se preocupe, vou dar um jeito — assegurei e sorri de lábios fechados.
Não sei o que eu faria sem Joaquim e Emílio. Tanto um quanto
o outro, levam a fazenda com muita garra. Sempre estiveram ao lado
do meu pai e, agora, são imprescindíveis para mim.
Joaquim é um pouco mais velho do que Emílio, tem quase
minha idade – vinte e sete. No entanto, me respeita da mesma
maneira. Ele é bem tímido, diferente do Emílio, que tem fama de
pegador, ele quase não sai. Seus familiares moram no Nordeste,
desde que chegou na cidade, meu pai arrumou uma casinha para ele
morar na fazenda.
Continuei meu caminho para dentro de casa, me preparando
para problemas maiores.
— Bom dia, Elisa.
— Bom dia, dona Laura — respondeu Elisa – olhando-me
sobre os ombros, enquanto mexia algo que preparava no fogão.
Puxei uma cadeira e sentei-me – alcançando a garrafa de café.
Cortei um pedaço de bolo de fubá e comecei a comer. Afinal,
sabendo o que enfrentaria no banco, não tinha conseguido comer
nada, antes de sair.
— Mirela não quis ir para a escola, dona Laura, eu insisti —
comunicou, Elisa e parei de mastigar – fechando os olhos.
— Obrigada, Elisa, vou conversar com ela. — Deixei metade
da fatia de bolo que havia cortado e empurrei a caneca com o café
para o meio da mesa.
Levantei-me fui para o quarto da minha irmã, ver qual era a do
dia. Percorri o longo corredor do casarão. Uma casa cheia de
cômodos, antiga, assim como os móveis. Embora meu pai tivesse
investido na fazenda, não destinou nada à casa. Não que os móveis
sejam ruins, tudo de madeira de lei, mas a modernidade passou bem
longe.
Cheguei na porta do quarto da minha irmã e parei, ponderando
se batia ou entrava e decidi entrar. Como eu esperava, escuro total –
tudo fechado. Neguei com a cabeça e puxei o ar com força,
controlando minha vontade de gritar com ela.
Abri a janela e deixei os raios de Sol invadirem o quarto. Fui
até a cama e sentei-me na beirada.
— Bom dia, mocinha — falei baixinho – tirando o cobertor de
seu rosto.
— Hummmm, sai — retrucou e virou-se para o outro lado.
— Mirela, não quero ser rude com você — avisei e peguei no
seu ombro, virando-a novamente para mim.
— Pare de me encher, saco — continuou, já chorando, como
vinha acontecendo desde que perdemos o nosso pai.
Ergui o cobertor.
— Vai mais pra lá — pedi e ela se afastou. Deitei ao seu lado
e a puxei para o meu peito – beijando o topo de sua cabeça.
Mirela é a rapa do tacho, temos quinze anos de diferença.
Sempre foi muito mimada por todos nós, principalmente pelo meu pai.
Há quatro meses que venho segurando a peteca. Nem todos os dias
tenho a paciência de conversar, porque sobrou tudo para mim.
— Pequena... — comecei e engoli em seco, tentando não
chorar junto com ela —, eu não vou conseguir sozinha — confessei.
Passamos um tempo em silêncio – ouvindo o som de nossas
respirações.
— Me desculpa — murmurou e eu beijei novamente o topo de
sua cabeça.
— Preciso que me ajude — acrescentei e ela fez que sim com
a cabeça. — Não quero que perca o ano de estudo — prossegui.
— Eu sei, vou me esforçar.
— Promete?
— Prometo.
— Preciso de mais uma coisa — continuei e ela ergueu o rosto
para me olhar. — Elisa não consegue dar conta dessa casa sozinha.
Mirela fez uma careta e concordou.
— Vou tentar.
— É um começo.
Elisa é jovem, irmã gêmea de Emílio, assim como o irmão, foi
criada com a gente. No começo, sua mãe quem cuidava da casa,
mas sua artrose a impediu de continuar e Elisa assumiu o posto, com
apenas dezoito anos.
A abracei mais forte e beijei sua testa, antes de me levantar. O
próximo destino era o quarto da minha mãe – uma rotina cruel que se
instalou nos últimos quatro meses.
Bati na porta, com a esperança de que teria uma resposta.
Infelizmente, como todos os dias, nada. Entrei e enfrentei outra
escuridão. Abri apenas uma folha da janela, para que eu pudesse
enxergar. Assim como no quarto da minha irmã, sentei-me na beirada
da cama e fiquei olhando para o rosto abatido da minha mãe.
— Bom dia, mama — cumprimentei com um sorriso de canto.
— Oi, meu amor. — Sua voz quase não saiu.
— Que tal um passeio, hoje? — sugeri e ela negou. —
Mama... — suspirei — daqui uns dias, não vai mais conseguir sair
dessa cama.
Disse, sabendo que esse dia já tinha chegado, pois, tirando o
dia do funeral e a missa de sétimo dia do meu pai, ela não saiu da
cama. Sua aparência está cada vez pior. Perdeu muitos quilos e as
olheiras tomaram conta de sua face.
— Conseguiu alguma coisa no banco? — desviou o assunto,
sem me responder.
— Estou cuidado de tudo, mama, não se preocupe — continuei
garantindo algo que eu não tinha a menor ideia de como resolver.
Mas, do que adiantaria dizer a ela a real situação? Só faria com que
piorasse sua condição.
Ela pegou na minha mão, com seus dedos magros e gelados,
e a apertou de leve.
— Não sei o que seria da gente sem você, minha filha. —
Meneei a cabeça. — Tenho certeza de que vai conseguir, sem que
precisemos sair daqui, confio em você. Sabe o quanto esse lugar é
importante pra nós, não é mesmo?
— Claro, mama — afirmei e engoli em seco – forçando um
sorriso.
— Seu pai tinha muito orgulho de você, filha. Sabia que deixava
as terras em boas mãos — completou e senti um calafrio cortar
minha espinha. Precisei me controlar para não demonstrar o quanto
toda aquela pressão só estava pirando as coisas para mim.
— Eu sei que sim, mama. Bom, tenho que cuidar da fazenda
— avisei e fiquei em pé. — Depois do almoço, podemos dar uma
volta, topa?
— Vamos ver — respondeu e eu meneei a cabeça, sabendo
que não aconteceria.
Saí do quarto e fui para o escritório que era do meu pai. Sentei
na suntuosa cadeira e apoiei os cotovelos sobre a mesa, afundando o
rosto entre as mãos.
— Deus, me dá uma luz — choraminguei.
Comecei a revirar os papéis, em busca de uma saída. Para
piorar a situação, meu pai nunca gostou de computador. Fui até o
arquivo e decidi abrir gaveta por gaveta, analisando as pastas dos
clientes e fornecedores. Eu tinha que encontrar uma saída, pelo
menos, para aquele dia.
Depois de muito tempo conferindo os papéis, cheguei à
conclusão de que tinha que apelar aos fornecedores. Não tínhamos
dívidas com eles. Se comprasse um lote grande e parcelasse,
conseguiria fôlego. Em um mês, seguramente, teria o dinheiro da
primeira parcela. Só tinha que convencê-los.
Peguei o telefone e comecei a saga das ligações. Usaria todos
os argumentos possíveis, mas conseguiria. Eu precisava confiar no
meu tino, afinal, minha mãe e irmã dependiam de mim para continuar.
Sem contar os três últimos funcionários que sobraram. Eram
prioridades, sem eles não teria como eu caminhar..., sozinha.
— ... entendo, mas posso garantir que minha produção
consegue pagar a primeira em trinta dias.
— Precisamos de uma entrada, Laura — insistiu o rapaz e eu
mordi a língua para não mandar ele para o lugar onde não pega Sol.
— Tudo bem, muito obrigada.
Depois de muitas recusas, finalmente, encontrei um fornecedor
que aceitou me vender sem entrada. Não foi a quantidade que eu
queria, mas dava, pelo menos, até a metade do mês. Joguei o corpo
na cadeira, apoiei a cabeça no encosto e fechei os olhos – aliviada.
— Um dia de cada vez, você consegue, Laura — falei para
mim mesma.
Arriscando
∆∆∆
Gabrielle

Cada sala que eu entrava daquela maldita empresa


embrulhava meu estômago. Ter que ficar sentada em frente ao cara
mais arrogante e prepotente que eu conheci, ficaria marcado como
um dos piores dias da minha vida.
— O que vai ser? Vai me deixar plantada aqui até eu criar
raízes? — instiguei o CEO da Bennett, assim que ele colocou o
telefone no ganho.
Era a milésima ligação que o cara fazia. Certamente queria
que eu desistisse. Só que ele não tinha ideia de com quem estava
lidando. Se soubesse um terço dos meus objetivos, de acabar com a
família dele, não perderia o seu precioso tempo me enrolando.
Novamente, o sorriso sarcástico demandou seu rosto, em um
sinal claro de provocação.
Cruzei os braços e me acomodei na confortável cadeira –
erguendo as sobrancelhas.
— Está com pressa, detetive? — incitou-me e eu sorri.
— Dois podem jogar esse jogo — alertei-o e seu rosto ficou
sério.
— Tudo bem, vamos acabar logo com isso, como pôde ver,
tenho coisas muito mais importantes para me preocupar.
— Ótimo — concordei e arrastei o corpo para a beirada da
cadeira – apoiando os cotovelos no tampo da mesa. — Onde está o
seu pai? — fui direta, assim ele não teria como elaborar uma mentira.
— Fora do país, mas não sei onde — respondeu de prontidão.
— Sabe que é mentira — rebati e sua expressão foi, no
mínimo, curiosa.
Por um instante, achei que ele não soubesse do que eu falava,
mas logo me lembrei de que ele era o todo poderoso Henry,
claramente, sabia de todos os passos do pai.
— Não sei do que você está falando e, também, não tenho que
dar satisfação do paradeiro do meu pai. Se foi pra isso que veio... —
Ficou em pé e me encarou.
Não me movi e sorri novamente – vendo o quanto era fácil
desestabilizar a pessoa que me daria o que eu precisava.
— Vai me dizer que não sabe das falcatruas do velho? —
continuei incitando – adorando ver as mudanças na expressão do
homenzarrão à minha frente.
— Se, velho, está se referindo ao dono da maior empresa
alimentícia do país, deduzo que você não seja muito inteligente —
advertiu-me e cerrei os dentes, contento-me.
Forcei um sorriso, demonstrando algo que eu realmente não
estava sentindo. Estava longe de me sentir segura. Sentia uma linha
de suor escorrer pelas minhas costas, mesmo que o clima estivesse
agradável.
— Honestamente? — prossegui e ele se aproximou mais,
afastando o paletó e colocando as mãos nos quadris. Caramba o
cara é bonito pra cacete! Quase chacoalhei a cabeça para
desvencilhar o pensamento impróprio, no momento errado. — Não
dou a mínima para o que você deduz — completei e ele ergueu o
canto dos lábios.
— Você é atrevida — comentou e voltou a se sentar.
Aguardei que se acomodasse e fiquei pensando do que eu
poderia acusar a empresa para que o CEO me desse crédito. Mesmo
que Bento tivesse me alertado, que não tinha encontrado nada que
pudesse provar, eu tentaria.
Desde o momento em que Andressa me disse que o velho
estava no país e tive a ideia de atacar a empresa, para que ele
saísse da toca, venho elaborando várias teorias, todas baseadas em
boatos, infelizmente. Mas, sempre acreditei que, onde há fumaça há
fogo.
— Tem minha atenção, detetive — avisou-me e afastou a
cadeira para trás, cruzando as pernas – deixando o tornozelo de uma
perna sobre o joelho da outra – com uma postura completamente
altiva.
— Desde quando sua empresa transporta cocaína escondida,
em seus caminhões, junto com as cargas de alimentos? — lancei de
uma vez.
Imediatamente, Henry ficou em pé e se aproximou de mim,
como um gigante – com o dedo em riste no meu nariz. Institivamente,
recuei o tronco para trás e afundei as unhas nas palmas das mãos.
— Que porra pensa que está fazendo? Acha que pode entrar
na minha empresa e nos acusar de um absurdo desses? Ponha-se
para fora daqui, agora! — berrou e apontou a porta de sua sala.
Quando pensei em revidar, a porta foi aberta bruscamente e
entrou mais um Bennett, para minha infelicidade, ou felicidade, talvez.
— O que está acontecendo aqui? — questionou, Lucca –
franzindo e cenho.
— Essazinha deve ser a tal que o pai comentou — respondeu,
Henry – como se eu não estivesse ali.
Lucca chegou mais perto, inclinou a cabeça para o lado e me
analisou com um sorriso maroto nos lábios.
— Já gostei de você — disse – alargando o sorriso.
Entortei os lábios e neguei.
— Não estou aqui para que vocês gostem de mim, Narciso —
rebati e fiquei em pé – ajeitando a jaqueta de couro.
O infeliz na minha frente inclinou a cabeça para trás e
gargalhou.
— Narciso? Sério? Preciso contar essa para a Valentina, ela
vai gostar — repudiou, atiçando minha raiva.
— Não sei o que Andressa vê em você — escapou.
A expressão do Lucca mudou imediatamente, junto com a do
irmão. No mesmo instante, vi que tinha feito merda.
— Agora estou entendendo, como eu previa, de profissional
você não tem nada. Seguramente, está aqui por uma vingança da
trepada desse idiota — vociferou, Henry.
Mesmo com a ofensa direcionada ao Lucca, não fez com que
mudasse o foco para o irmão. Tanto um, quanto outro, ficaram me
encarando, com expressões assassinas.
— Está muito enganado — defendi-me — sou muito boa no
que faço e, enquanto não desmascarar todos vocês, não vou
sossegar — lancei, completamente alterada.
— Do que ela está nos acusando? — perguntou Lucca, ao
irmão, sem tirar os olhos de mim.
— Disse que transportamos drogas escondidas.
— Tem provas? — inquiriu, Lucca.
Engoli em seco.
— Vou conseguir — afirmei e já fui pegando minhas coisas
para ir embora.
— Manda um recado pra sua amiga — interrompeu-me, Lucca
– segurando-me pelo braço. — Se chegar perto da Valentina, não
respondo por mim. — Puxei o braço e saí da sala.
Potranca
∆∆∆
Kaíque

M eio atordoado, sem entender nada, sentei no mesmo


lugar em que a potranca estava sentada. Ainda acompanhei sua
saída da agência – galopando. A égua era tão brava quanto meu
Sansão, quando alguém queria me fazer alguma maldade, alguém
precisava domá-la. Virei para o gerente, que permanecia com uma
expressão de espanto, e sorri.
— Qui diabos acabou de acontecer aqui? Quem é a égua
desenfreada? — questionei de cara, para tentar entender o porquê
das palavras agressivas direcionadas a mim.
O gerente deu um sorriso forçado e umedeceu os lábios com a
língua. Afrouxou um pouco a gravata – desconcertado. Enruguei a
testa e arrastei o corpo para a beirada da cadeira.
— Rapaz, a moça bonita ti deixou nervoso — comentei e ele
respirou fundo.
— Essa é a dona das terras que sua empresa está tentando
comprar — comunicou e eu gelei de imediato.
Capaz?! Ninguém me disse que era uma mulher, muito
menos que era linda. Cacete, agora fodeu!
Me aprumei na cadeira e fiquei sério, nem pensar que poderia
demonstrar qualquer hesitação na frente do gerente. Tinha certeza de
que ele seria a pessoa a me fornecer a informação certa, para que eu
pudesse pressionar a potranca. No entanto, se antes de conhecê-la,
já não tinha gostado da ideia de trabalhar com os pontos fracos,
imagine depois?
Ponderei se seria a melhor opção levantar informações sobre
ela, só pioraria para o meu lado. E o pior que eu não tinha opção, se
não resolvesse a situação, Henry entraria no jogo, e ele não entra em
um jogo para perder.
— O qui ela queria, tava numa gastura[3], só!? — indaguei,
iniciando o processo de investigação.
O gerente deixou os lábios em uma linha fina e estreitou os
olhos – me estudando.
— Não posso passar informações de outros clientes, é
confidencial.
Foi minha vez de encará-lo. Voltei meu corpo para a beirada da
cadeira e apoiei um o cotovelo no tampo da mesa – coçando a barba.
Tirei meu chapéu e passei a mãos pelos cabelos mais compridos do
que o normal.
— Aqui, num quero prejudicar o cê, não, mas vô tê qui ti
lembrá o quanto temos de dinheiro na sua agência?
Não me senti bem jogando na cara do camarada o quanto
somos importantes, mas, assim como ele, eu, também não tinha
escolha.
Vi o pomo de Adão do gerente subir e descer. Ele limpou um
pouco a garganta e olhou de um lado para o outro – verificando se
alguém prestava à atenção em nós. Chegou com o corpo para frente
e fez um sinal para eu me aproximar. Nossos rostos estavam bem
próximos quando ele começou a cochichar:
— Ela está enrolada com as dívidas da fazenda.
— Ê, lasqueira, agora o trem ficou cabuloso pro lado da moça
bonita — expressei-me espontaneamente e balancei a cabeça –
pensando o quanto a moça sofreria.
— Faz pouco meses que ela perdeu o pai e ele tinha pego
muitos empréstimos aqui na agência — continuou relatando, o
gerente.
Meneei a cabeça – pensativo.
— E cadê esse dinheiro? — inquiri, torcendo para não precisar
matar a moça bonita, como Henry esperava que eu o fizesse.
— Enterrado na fazenda — esclareceu — o problema é que
uma doença matou mais da metade do rebanho deles — completou e
fechei os olhos – jogando o corpo na cadeira.
— Mas qui desgraceira — comentei e me calei novamente.
— Pois, é. Quando o pai viu o tamanho do problema, teve um
enfarto e morreu — concluiu e cerrei os dentes – negando com a
cabeça.
Fiquei um tempo quieto, com muitas coisas rondando meus
pensamentos. Por mim, procuraria outra fazenda, ou tentaria ajudá-la,
de alguma maneira, mas não dependia somente de mim. Eu teria que
pensar em uma estratégia, sem precisar passar a real condição da
moça ao Henry.
— Aqui, por que ela não qué vender a fazenda, então, já qui
num consegue pagá as dívidas?
— Foi o que eu disse pra ela, mas... — suspirou — tem toda
uma história de família e tal, enfim, não sei mais como ajudá-la.
Assenti e voltei a colocar a cabeça para pensar. Depois de uns
minutos, continuei a investigação.
— Num tem ninguém qui ajuda a moça?
Emanuel baixou a cabeça – absorto. Quando achei que teria
que repetir a pergunta, ele desembuchou mais desgraceira.
— Desde o dia que o pai morreu, sua mãe não saiu da cama,
entrou em uma depressão profunda. Sua irmã é muito nova, tem só
quinze anos, só resta os empregados. — Respirou fundo e me olhou
sério. — Os três que sobraram — completou e eu prensei um lábio no
outro, sem ter a menor ideia de como sair da situação.
Depois de saber toda a história da moça, me arrependi de ter
ido pessoalmente resolver a situação. Antes eu tivesse ficado
ignorante dos fatos, seriam só negócios e ponto.
— Aqui, pro bem da moça é melhor qui venda logo di vez
essas terras, uai!
— Acha que eu não sei disso?
— Escute bem o qui vai fazê — alertei e o gerente anuiu. —
Vai fazê jogo duro com a moça — prossegui — ficá veiáco quando
ela voltar.
— O que tem em mente? — inquiriu, preocupado.
— Faz sua parte, qui o resto eu dô conta — garanti e fiquei em
pé – colocando o chapéu e ajeitando a fivela do cinto. — Inté —
despedi-me de Emanuel – batendo na aba do chapéu.
§§§§
Sou nascido e criado em Minas, meu pai, embora seja um
grande filho da puta, sempre amparou os filhos, nunca renegou
nenhum – pelo menos, é o que sabemos. Tenho um grande apego ao
lugar de onde vim, por mais que eu ainda esteja no meu estado, estou
muito longe de casa. Achei que resolveria a questão, da compra da
fazenda, rapidamente e voltaria à minha rotina. Ledo engano.
Estar com os animais e cuidando da fazenda é o meu prazer,
mesmo que eu nunca tenha precisado cumprir essa função. No
entanto, é o que me faz feliz.
Entrei com a camionete alugada na fazenda e estacionei
próximo à sede, nada humilde. O lugar é amplo, muito bem cuidado,
com muitos empregados. Se tivesse que dizer, sem consultar os
registros, não saberia. Além da casa da sede, temos uma vila dentro
da fazenda, com várias casas para eles. Poucos têm acesso à casa
grande, apenas quem tem o serviço diretamente ligado a ela.
Temos a fazenda há muito tempo, mas não tínhamos a
intenção de expandir, até que Pouso Alegre se tornou um polo
industrial. Comprar mais terras na redondeza de BH seria burrice, já
que não são tão apropriadas para criação de gado.
Desci do carro e me estiquei todo, inclinando o pescoço para
um lado e, em seguida, para o outro, ouvindo os estalos. Sentia uma
necessidade insana de dar uma cavalgada, depois de um dia tão
conturbado. Pensava, seriamente, em buscar Sansão, a única coisa
que me prendia era o fato de que o deixaria estressado, tirando-o de
seu habitat.
— Boa tarde, senhor Bennett — cumprimentou um dos
empregados – parando ao meu lado, certamente, ficando à minha
disposição.
Mesmo que a vida toda eu estive cercado de pessoas ao meu
dispor, nunca os tratei como meus subordinados. Tenho uma relação
de amizade, com a maioria, só aqueles que não tenho muito contato,
que não.
— Tarde — respondi e coloquei minha mão em seu ombro –
apertando-o. — Como se chama, rapaz?
— Pedro, senhor.
— Aqui, Pedro, vamo combiná uma coisa, nada di senhor, tá
certo?
— Tá certo. Como quer que eu chame o senhor?
— Só Kaíque, tá muito bom.
— Não sei se dou conta, mas vou tentar.
— Cê consegue — assegurei e sorri. — Vamo vê os cavalos
qui tem por aqui, vô dá umas voltas nas redondezas.
Acenei para um pessoal que estava na varanda da casa,
provavelmente, esperando que eu entrasse para me servir. Meu
interesse estava no estábulo. Eu precisava encontrar um
companheiro, seguramente, passaria mais tempo do que o previsto
na fazenda. Sem contar que, pelo andar das coisas, Henry não
aceitaria que parássemos tão cedo. Se a cidade estava em
crescimento, teríamos que acompanhar. Uma filial da empresa, foi o
que ele disse. Era melhor eu começar a me acostumar com o lugar.
No trajeto até o estábulo, fui questionando Pedro sobre as
pessoas que eu conviveria. Pedindo dicas para que, o tempo que
estivesse ali, fosse agradável. Que todos pudessem me ver como eu
sou, não como a mídia gosta de pintar os Bennett, colocam todos no
mesmo pacote, comparando-nos com o nosso pai. Deveriam saber
que ele só nos deu o nome e garantiu que todos estivessem na
empresa da família, mas pai nunca tivemos, talvez, por um período
curto de tempo, o Henry.
— Senh... — começou e parou, limpando a garganta. — Esse
aqui é o melhor que temos — alisou a crina de um manga-larga como
o Sansão. Sorri e fiz o mesmo que ele – ganhando a confiança do
cavalo.
O bicho reconheceu meu amor e logo estava se
desmanchando aos meus toques.
— Ei, amigão, vamo dá um rolê? — conversei com o animal,
que logo me respondeu – enfiando a cabeça na minha mão. — Como
é o nome dele?
— Apollo.
— Combina contigo, amigão — elogiei e bati de leve em seu
lombo. — Sela ele pra mim, vô dá um passeio.
— Às ordens, patrão. — Mal terminou de falar, já estava
tirando o cavalo da baia.
Enquanto o rapaz arrumava o cavalo para eu dar umas voltas,
cuidei de estudar o lugar. Foram poucas vezes que estive na fazenda,
e, em todas, com muita pressa. Se tinha que passar um tempo ali,
precisava garantir que estaria tudo em ordem.
Nunca fui uma pessoa de ficar atrás de uma mesa, muito
menos trancado dentro de casa, meu lugar é no meio da fazenda,
orientando e, às vezes, até botando a mão na massa. Têm muita
gente, mas têm muito serviço. Só quem já esteve em uma fazenda,
para saber do que estou falando. Se não acompanhar de perto, o
negócio desanda e toma uma proporção sem tamanho. Não tem
quem consiga consertar depois.
— Pronto — anunciou o rapaz. — Vou pegar o meu pra ir junto.
Estiquei o braço e o impedi de continuar o caminho.
— Num carece, não. Vô só. — Abri um sorriso de canto,
demonstrando ao rapaz que não tinha nenhum problema com ele.
Não tinha como explicar-lhe que sempre me virei sozinho e me
acostumei com a independência.
Pedro pareceu um pouco decepcionado, mas concordou e me
entregou as rédeas do bicho.
Logo eu estava montado no lombo do animal, tocando da
forma certa nele, com as botas e controlando as rédeas. Saí da
fazenda e comecei a seguir pela estrada de terra, pegando uma
grande distância, rapidamente. Não foi preciso muito para que eu e o
Apollo nos entendêssemos.
— Ei, amigão, cê gosta disso, não é mesmo? — comentei com
o meu novo companheiro e o cavalo deu uma pequena empinada,
tomei aquilo como um sim.
Ao longe, avistei um lago e comecei a puxar a rédea para que
ele diminuísse.
— Vamo se refrescar, amigão — avisei e o cavalo foi parando
aos poucos.
Desci do lombo do bicho e me aproximei da água cristalina,
puxando-o comigo. Agachei para lavar o rosto e Apollo aproveitou
para beber água. Enquanto me lavava, comecei a ouvir gemidos.
Ergui-me e vasculhei em volta com o olhar. Não muito longe de nós, vi
um bezerro dentro da água e uma pessoa tentando ajudá-lo.
— Amigão, acho qui vamo ter que botá a mão na massa.
Verifiquei que caminho poderia me levar até o local e segui por
ele, puxando Apollo pela rédea.
Conforme fui me aproximando, consegui ver a real situação.
Aparentemente, o bezerro estava com uma pata afundada na beirada
do lago e a pessoa tentava tirá-lo, sozinha. Não tinha como distinguir
se era mulher ou homem, tamanho era a quantidade de barro que
cobria a pessoa. Até porque, de onde eu estava, só conseguia ver
suas costas.
Bem perto, amarrei o Apollo em uma árvore, para que ele
pudesse ficar na sombra e descansar um pouco. Tinha exigido demais
do animal. Andei devagar, tentando entender o que realmente estava
acontecendo.
— Que merda! — reclamou a pessoa. Me pareceu muito
familiar a voz. — O que foi que deu em você pra entrar aí? Agora,
não tenho a mínima ideia de como vou te tirar, daí.
— Muuuuuuuuuuuu... — O gemido do bezerro estava cada vez
mais sofrido. Apressei o passo.
— Assim num vai conseguir, não — alertei a pessoa que
estava fazendo tudo errado.
O rosto da pessoa que cuidava do bezerro virou-se
bruscamente em minha direção, e foi naquele momento, que tive
certeza de que conhecia a voz.
— Era só o que me faltava — retrucou e passou o antebraço
pela testa – fazendo um rastro de barro no seu rosto.
Prendi os lábios para não rir, porque, mesmo que eu fosse uns
bons centímetros maior que a potranca, ela, seguramente, me daria
uns tabefes.
Ignorei sua rejeição à minha presença e tratei de me agachar,
para estudar a melhor forma de tirar o bezerro dali.
— Num pode deixá que venham pra cá, não, moça —
censurei-a, já sabendo como ajudaria o bicho.
— E porque acha que estou aqui? Ele fugiu, inteligente —
vociferou e cruzou os braços, me encarando.
Ergui o rosto e a estudei, daquele ângulo, debaixo para cima, a
moça era mais bonita ainda, mesmo estando coberta de barro. A
calça jeans marcava suas curvas e a camiseta grudou no corpo, não
deixando muito para minha imaginação. Os cabelos pretos e curtos,
na altura do queixo, as deixavam mais sexy.
Aqueles olhos verdes claros, com os contornos mais escuros,
me escrutinavam e os lábios desenhados se torciam, descontente
com a minha presença.
Peguei no lugar certo da pata do bezerro e a puxei com força,
liberando o animal do cativo.
— Muuuuuuuuuu... — gritou o animal e tentou sair dali, mas
não conseguiu.
— Melhor chamá o veterinário — avisei, enquanto ajudava o
bicho a se movimentar. Como ela não respondeu, voltei a olhá-la e
encontrei uma expressão fechada.
Sem que eu pudesse impedir, a moça veio até mim e começou
a tirar o animal das minhas mãos.
— O que pensa que está fazendo? — grunhiu.
Eu a olhei com o canto dos lábios erguidos.
— Cê é sempre nervosinha, assim? — provoquei – segurando
em seu antebraço, impedindo que tocasse no bezerro.
— Não preciso de você — rateou e puxou o braço.
Alarguei o sorriso e, ignorando sua malcriação, voltei a cuidar
do bicho, afinal, estava machucado.
— O bicho num vai conseguir ir sem ajuda — repeti e ela se
aproximou novamente.
— Deixa que eu levo.
Me afastei e cruzei os braços – assistindo, de camarote, ela
tentar. Se não tinha conseguido tirar a pata do bicho, como o levaria
sozinha?
Ela começou a empurrar o animal, na tentativa de ele sair da
água, mas o bicho não estava conseguindo, empacou como uma
mula.
— Muuuuuuuuu....
— Que cacete! — praguejou.
Me fingi de morto.
— Ai, merdaaaaaaaa...
Instintivamente, corri para acudir a moça, que tinha
escorregado e ido de cara no barro.
— Ê, lasqueira — exclamei, no momento que senti meu pé
escorregar. Em um nano segundo, estava de bunda ao lado da moça.
— Muuuuuuuuuu.... — berrou mais alto, o bezerro.
Cowboy de Araque
∆∆∆
Laura

— Aqui, moça — estendeu a mão e eu ergui o rosto, tomado


de barro. Ele olhou para nós dois e caiu na gargalhada. Inclinou o
corpo para frente e segurou a barriga, de tanto que ria.
Foi subindo um ódio em mim. Não sabia do que eu mais tinha
raiva: de ver o quanto o cara era bonito e divertido, ou de saber o real
motivo de ele estar ali – sanguessuga.
Quando conseguiu parar, eu o encarava – inexpressiva. Não
queria demonstrar o quanto aquilo tudo estava começando a me
deixar confusa. O melhor a fazer era se livrar logo do indivíduo.
Deixar bem claro para ele que nada do que fizesse ou dissesse me
convenceria a vender as terras da minha família.
— Você é mais imbecil do que eu imaginava — lancei meu
veneno e comecei a me levantar.
Pela primeira vez, vi seu rosto ficar sério. Antes que eu
pudesse agir, sua mão firme segurou meu braço novamente – dessa
vez, bem mais forte. Respirei fundo e olhei dentro de seus olhos. Pior
coisa que eu poderia ter feito.
O olhar dele era magnético, simples assim. Não saberia dizer
se era pelo verde penetrante das íris ou a forma que me escrutinava
– passando a língua pelo lábio inferior.
— Aqui, moça, até entendo qui cê tá com problemas, mas
num pode ser tão potranca, assim, com as pessoas qui nem
conhece. — Tentei puxar o braço novamente e ele pegou mais firme.
Estava a ponto de gritar, mesmo que ninguém fosse me ouvir, quando
ele continuou: — Tô aqui, no meio do barro, porque ti ajudei, de bom
grado, como cê agradece? — Içou as sobrancelhas e foi minha vez
de rir – completamente de nervoso.
Eu já nem sabia mais o porquê estava nervosa. Só uma
certeza eu tinha: estava embarreada, de joelhos, com a única pessoa
que eu desejaria não ter conhecido. Seria muito mais fácil pensar que
o cara era um playboy que só pensava em desfilar com seus carros e
cavalos que custavam milhões.
— Quantas que caíram nesse seu papinho? Nós dois sabemos
por que está aqui, não é mesmo? Um Bennett não faz nada de bom
grado. Vocês são todos uns mercenários, que não estão nem aí para
ninguém — descarreguei de uma vez e puxei bruscamente meu braço
– ficando em pé.
Eu tinha que pensar em como faria para ajudar o bezerro a
voltar. Nem pensar que eu deixaria que ele me ajudasse, seria mais
uma coisa para ele usar contra mim. Na certa, diria que eu não tenho
como manter uma fazenda ativa, já que logo ele descobriria que não
temos um veterinário e o da cidade não viria me socorrer, pois...
enfim, teria que encontrar uma saída.
Enquanto eu tentava me limpar um pouco, ele ficou em pé e fez
o mesmo que eu. Um silêncio bem-vindo ocupou os minutos seguintes.
Achei que ele fosse continuar a me espezinhar, mas não aconteceu.
Ele bateu com os dedos na aba do chapéu e se virou – deixando-me
com a boca entreaberta.
Puta merda! Que traseiro é esse? Que droga de calça
apertada era aquela? E as coxas? Isso não vai dar certo, Laura! As
coisas já não estavam nada boas para o meu lado, se eu me
permitisse ser atraída por ele, só pioraria. E, sem sombra de dúvida,
ele incentivaria, afinal, era tudo o que ele precisava para conseguir as
minhas terras. Pensando bem, deve ter sido esse o intuito da
empresa de enviar um dos herdeiros, ao invés de seus capangas,
como estava acontecendo.
— Muuuuuuuuuuuu...
O mugido dolorido do bezerro me trouxe de volta à situação,
que eu não tinha a mínima ideia de como solucionar.
— Você tinha que vir para esses lados sozinho? Agora, olha aí,
como vou te ajudar? — repreendi o animal e me agachei – pegando
em sua pata – provocando um mugido mais alto do animal.
Olhei de novo na direção do Bennett, ponderando se o
chamava para me ajudar, ou não. Ele estava montando em seu cavalo
– imponente. Para o meu desespero, ou alívio, logo ele saiu
galopando – deixando-me sem saída. Bom, eu não poderia culpá-lo,
já que eu mesma o expulsei dali.
— Vem aqui — chamei e comecei a arrastar o bezerro.
Arrastei o animal por poucos metros e ouvi alguém me chamar.
Comecei a acenar compulsivamente, para quem quer que fosse que
estivesse vindo me salvar. Quando reconheci o Joaquim, meus
ombros caíram de alívio.
— Eita, dona Laura, por que não chamou a gente? Pelo jeito
esse bicho te deu um trabalhão.
— Nem te conto — respondi e me afastei, para que ele
pudesse assumir o posto. — Vou na frente, pedir para o Emílio vir te
ajudar. — Joaquim concordou e eu acelerei o passo, na medida que
foi possível, já que eu tinha barro por toda a parte.
§§§§
Acordei sentindo-me péssima, meu corpo doía tanto que
parecia que um caminhão tinha passado por cima de mim. Uma fresta
de luz, proporcionada por uma pequena abertura da cortina, foi o
suficiente para eu pular da cama.
— Merda... merda... merda... — praguejei e já fui sentando-
me em frente a uma penteadeira – do século XVIII – que fica em
frente à minha cama.
Nessas horas que vejo o quanto minha decisão de manter os
cabelos curtos, foi certa. Passei uma escova neles, rapidamente. No
banheiro, não foi diferente. Seguramente, alguns dentes não foram
bem escovados, tamanha a velocidade que os escovei.
— Bom dia, Elisa — cumprimentei, assim que me sentei para
comer algo, na verdade, engolir.
— Bom dia, dona Laura.
Achei a cara da moça esquisita. Alcancei o bule de café e
enchi minha caneca de ferro esmaltada – mais um item de séculos
passados. Para todos os lugares que eu olhava, pensava o quanto a
fazenda precisava se atualizar. Meu pai nunca deixou que eu fizesse
qualquer mudança. Nem preciso dizer o porquê, não tinha como fazer,
depois que ele se foi.
— Está com algum problema, Elisa? — Se eu pudesse, não
perguntaria, mas eu era a única responsável por tudo ali.
— Sabe que é, dona Laura, estou com vergonha de dizer isso
pra senhora — iniciou e apertou o pano que enxugava a louça nas
mãos.
— Que isso, agora? Vergonha? Desde quando tem isso entre
a gente?
— É que... — Limpou a garganta. — O povo da cidade tá
falando umas coisas que me deixaram com medo.
A caneca da minha mão parou na metade do caminho da boca.
Respirei fundo e decidi não tomar o café, certamente, me engasgaria.
— O que é que te assustou?
— A senhora não vai ficar zangada comigo?
— Claro que não, Elisa — assegurei à moça, segurando-me
para não surtar, antes de ela me dizer o que a incomodava.
— É que eu tenho o Pedrinho, sabe o quanto custa sustentar
uma criança, não é mesmo, dona Laura? — Consenti e estreitei os
olhos, cruzando os braços. Não queria ficar numa postura altiva, mas
aquela conversa começava a me deixar enfezada. Se tinha uma coisa
que eu valorizava e nunca tinha deixado faltar nada, era para meus
funcionários. — O Pedro me disse que o patrão dele chegou e que...
— Pode parar por aí, Elisa — interrompi-a, levantando-me
bruscamente – provocando um barulho alto da cadeira de madeira
arrastando pelo chão de cimento queimado vermelho. Não ia deixar
que me falasse qualquer coisa que se referisse aquele cowboy de
araque.
Elisa e Pedro começaram a namorar cedo. Para o azar, ou
sorte, sabe-se Deus como esse povo pensa, logo ela engravidou e
teve o Pedrinho. Enquanto Elisa trabalha com a gente, Pedro trabalha
na fazenda vizinha, a bendita fazenda dos Bennett.
— Eu sabia que a senhora ia ficar zangada comigo —
defendeu-se e encolheu-se um pouco.
— Melhor não termos essa conversa, Elisa. Estou atrasada, já
devia estar tirando leite das vacas.
Não esperei que me dissesse qualquer outra coisa, virei-me e
saí – batendo as botas no chão.
Com apenas duas pessoas me ajudando com os trabalhos da
fazenda, eu tive que assumir muita coisa. Tirar o leite das vacas é um
deles. Eu sei que dessa maneira nunca vou crescer, mas tenho que
tentar. Embora não seja muito, fornecemos leite para algumas
pessoas da cidade, é desse dinheiro que consigo manter o salário
dos três em dia. O trabalho de Emílio com as galinhas, é de grande
valia. Temos uma avicultura grande, tudo bem que somente um terço
dela está sendo usado, mas consigo pagar as rações das aves e do
gado. E, por fim, Joaquim tenta manter o pouco de gado que nos
sobrou vivos.
Eu sei que, assim que conseguirmos que esses bois cheguem
no peso que os compradores exigiram, e eu consiga aplicar as
vacinas corretamente, o dinheiro que vai entrar, vou quitar algumas
parcelas no banco.
Temos alguns bezerros, bem menos do que deveria, mas estou
confiante de que vamos conseguir manter as coisas em ordem com
eles.
— Como estão minhas garotas, hoje? — conversei com as
vacas que me aguardavam ansiosas.
— Muuuuuuu... Muuuuuu...
— Eu sei, eu sei, calma que vou aliviar vocês.
Entrei na sala de ordenha e me sentei em frente a primeira da
fila. Mesmo que seja um trabalho que não tive escolha, gosto muito.
Meu prazer é estar no meio da fazenda – foi a maneira que fui criada.
Até mesmo para estudar foi complicado, meu pai já não
achava uma boa ideia, afinal, na cabeça dele, se tinha conseguido
tudo sem estudo, por que eu teria que estudar? Eu nunca pensei
como ele, mas não gostava de ter que deixar a fazenda para ir à
escola. Minha sorte foi a persistência da minha mãe. Por fim, me
formei em administração de empresas. Meu pai gostou da ideia,
embora nunca tenha deixado eu me envolver na administração da
fazenda – infelizmente.
Perdida em pensamentos, estava quase terminando meu
serviço, ouvi passos se aproximando.
— Dona Laura — chamou-me Joaquim.
— Estou aqui, Joaquim — gritei, sem sair do lugar, ainda
faltava um pouco da última vaca.
— Eu disse para esse senhor...
— Senhor não, rapaz, num sô véio assim, não.
Não precisei erguer o rosto para saber de quem era a voz. Só
não esperava que o meu corpo reagisse daquela maneira. Um calafrio
cortou minha espinha e as batidas do meu coração aumentaram
consideravelmente.
Permaneci de cabeça baixa, concentrada no que eu fazia,
fazendo o exercício de inspirar e expirar, na esperança de o meu
corpo não me denunciar. Seria assim, dali para frente? O cowboy de
araque estava determinado.
Acusada
∆∆∆
Gabrielle

— Olá, estranha — cumprimentou, João Pedro – sentando-


se na beirada da minha mesa.
Tirei os olhos da tela do computador e o olhei – sorrindo.
— Oi, estranho — entrei no jogo.
Eu sabia a que João Pedro se referia. Há um tempo que eu
vinha agindo por conta própria, sem contar nada para ele. Nunca foi
assim, até que ele começou a agir como o Bento.
— Vamos almoçar naquele restaurante de sempre? Pelos
velhos tempos? — convidou e eu meneei a cabeça confirmando,
precisávamos de uma trégua. Meu parceiro sempre esteve ao meu
lado, tinha que reconhecer.
Faz uns dias que fui na maldita empresa dos Bennett e, desde
então, não toquei mais no assunto com meu chefe. Bento me conhece
e sabe da minha determinação, no entanto, sabe, também, que eu
não sou burra. Por mais que eu me arrisque, na maioria das vezes,
controlo-me para não perder a cabeça e todos os anos que lutei
serem perdidos.
Falando nele... Parece um imã. Bento aproximou-se da minha
mesa e ficou nos olhando, com as mãos nos bolsos da calça –
passando a língua pela gengiva superior.
— Bom dia, chefe — descontraiu João Pedro – percebendo a
cara de poucos amigos. Não que normalmente fosse diferente, mas
tem dia que parece um pior.
Bento não se deu ao trabalho de verbalizar a resposta –
apenas um meneio de cabeça – sem tirar os olhos de mim. Bom,
estava claro que o alvo era eu.
— Na minha sala — foi só o que ele disse e nos deu as costas.
João Pedro me olhou e fez um sinal com as mãos no pescoço,
como se eu fosse perdê-lo. Ergui-lhe o dedo do meio e fiquei em pé –
acatando as ordens do meu padrinho-chefe.
Entrei na sala e sentei-me de frente à mesa do Bento. Ele já
me esperava em sua confortável cadeira. Sua expressão estava mais
amena – comum, também. Na frente dos outros, ele age como se não
se preocupasse comigo, mas sei que é apenas uma casca.
— Pretende me dizer qual foi a merda que fez lá na Bennett?
— iniciou e cheguei a me encolher. Não achei que ele tocaria no
assunto.
Dei de ombros.
— Fiz o que combinamos, algumas perguntas sobre o velho,
mais nada — menti, é claro. Ele tinha colocado o dele na reta para
conseguir a reunião.
Seus lábios se contorceram – formando um bico. Depois de
uma profunda respiração, negou com a cabeça e trouxe o corpo para
frente – apoiando os cotovelos no tampo da mesa.
— Isso tudo já passou dos limites...
— Não começa — interrompi-o e ele ergueu o indicador.
— Fico me perguntado, quando é que você vai se dar conta de
que está perdendo anos da sua vida por causa dessa merda, e pra
quê?
Fiquei em pé e virei-me, enfiei as unhas nas palmas das mãos,
sentindo o sangue ferver nas minhas veias. Levei um dos punhos à
boca e mordi os nós dos dedos – cerrando os olhos.
— Sabia que ela vai precisar de transplante? — falei baixinho –
com a bílis à garganta.
— Mais um motivo para você mudar o foco. Deveria estar
focada na saúde dela e não nessa maldita vingança, que nós dois
sabemos que não vai dar em nada.
Voltei meu corpo na direção dele e me espalmei no tampo da
sua mesa – deixando os rostos muito próximos.
— Não fala uma merda dessas para mim, caralho! Minha mãe
sempre foi meu foco — vociferei e fiquei ereta.
Quando fui me virar para sair, sua voz grossa me impediu.
— Não terminei.
Apertei novamente as unhas nas palmas das mãos e o olhei
firme.
— Henry fez uma queixa contra você.
Paralisei.
— Filho da puta! — murmurei e aguardei que continuasse.
— Ligou diretamente na corregedoria, querem que eu tire seu
distintivo, até que investiguem os fatos — relatou e virou as palmas
das mãos para cima.
Sentei-me novamente e esfreguei as mãos no rosto –
indignada.
— Você não vai fazer isso, vai? — perguntei, esperançosa.
Foi a vez de ele dar de ombros.
— Eu te avisei, Gabrielle, está acima de mim.
— Me chamou aqui para tirar meu distintivo? — Engoli em
seco e o olhei com desespero.
— Eu não, mas... — apontou para a porta e meu corpo
estremeceu.
Os dois armários escolheram o momento certo de chegarem.
— Bom dia — cumprimentaram e foram entrando.
Tanto eu como Bento, meneamos a cabeça em resposta. Eu
poderia até tentar, mas tenho certeza de que minha voz não sairia,
estava transtornada. Esperava qualquer atitude do projeto de CEO da
Bennett, menos essa. Eu sempre soube que brincava com fogo, mas
dessa vez, acho que errei os cálculos. Tudo dependia do tipo de
queixa que tinha sido feita.
Bento ficou em pé e eu o segui, por instinto.
— Acomodem-se — ofereceu Bento, saindo detrás de sua
mesa e apontando o sofá que fica em sua sala.
Aguardamos que sentassem e fizemos o mesmo. Pela parte
de vidro da porta da sala, só se via cabeças tentando entender o que
acontecia ali dentro.
— Você deve ser a Gabrielle — iniciou um deles e eu assenti –
umedecendo os lábios com a língua. Mostrar insegurança nunca é a
melhor saída, no entanto, só em pensar que eu poderia, além de
perder o meu distintivo, ir presa, minha segurança foi a nível zero.
Esfreguei as mãos no jeans das pernas e controlei minha
respiração. Eu podia ouvir as batidas do meu coração.
— Essa acusação não tem fundamento e...
— Você tirou o distintivo dela, como foi ordenado? — cortou,
bruscamente, a fala de Bento.
Bento o encarou sério e ergueu as sobrancelhas – em um sinal
claro de que não estava concordando com tudo aquilo.
— Como eu imaginei — censurou — deixa que resolvemos isso
— assumiu e voltou sua atenção para mim. Era o meu fim.
Explorando
∆∆∆
Kaíque

Apollo seria um ótimo companheiro, enquanto eu estivesse


fora de casa. Isso foi uma grande conquista para mim. Ficar longe de
Sansão é como estar faltando uma parte do meu corpo, nossa
relação sempre foi muito estreita.
Logo no meu primeiro dia, eu soube que minha passagem por
ali seria interessante. Torcia para que não fosse estressante. Embora
eu faça parte da diretoria de uma megaempresa, procuro manter
minha vida tranquila.
Quando as pessoas, que pedi que cuidassem da compra da
fazenda em Pouso Alegre, voltaram para Belo Horizonte com várias
recusas, achei que era só uma questão de saber conversar, apertar
os botões certos. Isso porque não tinha conhecido a potranca.
Seguramente, a negociação não seria nada fácil.
— Como foi a caminhada, patrão — questionou Pedro,
pegando a rédea do cavalo das minhas mãos – assim que desci do
lombo do bicho.
— Divertida — brinquei e ajeitei o chapéu. — Vô pra dentro e
mi lavar. — Apontei para o meu corpo e ele entendeu. E o melhor:
não fez perguntas. Estar coberto de barro desperta a curiosidade das
pessoas.
Por todo o trajeto, até a casa grande da fazenda, fui
admirando a organização do lugar. Já estava marcada uma reunião,
com o administrador dela, para o dia seguinte. Morador de uma das
casas da vila construída dentro da fazenda.
— Tarde — cumprimentei a senhora que cozinhava algo no
fogão, assim que botei os pés na cozinha.
A mulher limpou as mãos em seu avental e inclinou o corpo
para frente.
— Num carece disso não, minha senhora — censurei-a e me
aproximei, colocando a mão em seu ombro. — Qual sua graça?
— Antônia, senhor.
— Pode mi chamá de Kaíque.
— Sim, patrão.
— Consigo um banho? — perguntei e apontei para o meu
corpo – sorrindo.
— Agora, mesmo. Vou chamar minha filha pra ajudar o senhor
— comunicou e saiu andando. Não soube se era para segui-la ou
esperar, como estava muito sujo, preferi esperar.
A cozinha, em estilo rústico, cheirava muito bem. Na certa,
Antônia preparava o jantar. Conferi as horas em meu relógio de pulso
e tive certeza de era o jantar – eram quase seis da tarde.
— Aqui, patrão, Penha vai ajudar o senhor a se acomodar —
avisou a senhora e afastou-se para o lado, dando passagem para a
filha.
Ergui as sobrancelhas e fiquei um pouco sem ação, no primeiro
momento. Era uma mulher muito bonita, sim, estava esperando uma
garotinha.
Ela se aproximou, segura de si, e estendeu a mão para mim.
— Boa noite, senhor, como minha mãe disse, sou a Penha,
responsável pela organização da casa.
Assenti, continuei calado e estendi a mão – ponderando se
comentava que ela era muito bonita para estar ali.
— Quantos anos cê tem, moça? — escapou da minha boca –
colocando para fora o que passava pela minha cabeça.
— Isso importa?
— Uai! Mas é claro qui sim.
— Menina, que falta de respeito é essa com o patrão? —
repreendeu sua mãe e eu ergui a mão – em sinal de que estava tudo
bem.
— Vinte e sete, PATRÃO!
Sorri.
— Nó! Nesse lugar só tem moça brava? — descontraí e a
moça acabou dando um sorrisinho de canto.
— Me acompanhe, PATRÃO. — A cada vez que dizia patrão,
acentuava a palavra – provocando um sorriso involuntário nos meus
lábios.
Fiz o que a moça pediu. Seguimos por um longo corredor,
cheios de portas abertas. A casa poderia abrigar um exército, de tão
grande. Perdi a conta da quantidade de quartos que passamos.
Fiquei me perguntando por que daquilo, afinal, quem morava ali? Pelo
que eu sabia, cada funcionário tinha sua própria casa na vila da
fazenda.
No final do corredor, a moça abriu uma porta e apontou para
dentro, dei uma espiada e fiquei impressionado, era enorme. Tudo
rústico e de muito bom gosto.
Minha suíte em BH é bem confortável, mas nunca me
preocupei com luxo. Minha “adorável” mãe – bem no estilo do meu pai
–, todas as vezes que se dispôs a me visitar, criticou. Sua fala foi
sempre a mesma: “Filho, você fica tanto tempo com esses cavalos
que seu quarto é quase um estábulo. Tanto dinheiro, pra quê?”
Entrei no espaço enorme – admirado.
— Cês gostam de luxo, por aqui — desdenhei e recebi uma
carranca em resposta.
— Só cumprimos ordens, PATRÃO!
— Pode desmontar essa sua cara feia, moça, eu num tô aqui
pra reclamar di nada, não. Só achei o trem bem chique.
Ela entortou os lábios e foi até a cama enorme, pegou uma
toalha felpuda e me entregou.
— A banheira está pronta, se demorar muito a água vai esfriar.
Não sei como é onde você mora, mas aqui, a noite começa a esfriar.
Pode colocar sua roupa suja no cesto do banheiro, a arrumadeira
amanhã leva pra lavar. Enquanto o senhor estava fora, o Pedro trouxe
suas coisas, já estão arrumadas naquele armário. — Apontou para
um armário grande no canto da suíte. — O jantar é sempre servido
às seis e meia, em ponto. Se quiser comida quente, esteja lá —
ordenou e virou-se.
Pensei em pegar em seu braço e fazê-la voltar, mas achei
melhor não. A moça podia interpretar de outra maneira, não queria ter
problemas com funcionários. Concordei, mesmo que ela já estivesse
saindo e fechando a porta.
Parado, no meio do quarto, olhei a banheira gigante, próxima
da janela e decidi acatar a sugestão da moça.
Comecei a me despir e me dei conta de que tinha entrado na
casa com as botas toda embarreada, talvez fosse esse o problema
da moça comigo. O tapete de couro de boi aos meus pés estava
muito sujo, imaginei que tinha deixado um rastro por onde passei.
Balancei a cabeça – indignado comigo mesmo.
— Cê tem qui aprender a sê mais cuidadoso, Kaíque —
repreendi-me e tirei o chapéu – jogando-o em cima da cama.
§§§§
— Filha, cê não pode falar daquela maneira com o patrão, não.
— Mãe, você sabe como são esses Bennett, acham que
podem tudo.
— E podem, filha. São os donos de tudo isso aqui.
Assim que ouvi a conversa, parei e me escondi, chegando na
cozinha.
Depois do banho, não tive forças de voltar à cozinha e jantar, o
cansaço me derrubou. Dormi não era nem oito da noite. Agora, pela
manhã, tomei outro banho, dessa vez no chuveiro mesmo, e segui o
cheiro bom de café.
— Olha a desfeita que fez com a senhora, ontem à noite, teve
que ficar aqui, até dez horas, esperando a boa vontade dele. Nem se
deu o trabalho de sair do quarto e dizer que não ia jantar.
Foi nesse momento que decidi me mostrar, fazendo questão
que soubessem que eu tinha ouvido a conversa.
— Dia — cumprimentei e me sentei à mesa de madeira de lei
enorme, da cozinha. — Desculpa, Antônia, por ontem — desculpei-me
e alcancei o bule – enchendo minha caneca de café. — O cheiro tá
bom!
As duas ficaram me olhando, sem dizer nada.
— Vou cuidar da vida — avisou a moça brava e foi saindo.
— Num sô um Bennett cheio di frescura, não, moça — avisei e
ela deu uma paradinha, mas não se virou – continuou seu caminho –
deixando-nos sozinhos.
A senhora me olhava com uma expressão apreensiva.
— Perdão, patrão, ela é um pouco malcriada, já pelejei pra ela
melhorá — justificou-se.
Sorri e estiquei o braço, tocando na mão da senhora.
— Num si importa com isso, não — amenizei e dei uma
batinha no dorso de sua mão. — Tô varado di fome.
— Oh, meu Deus, vamo resolver isso agora, mesmo.
A senhora começou a colocar uma coisa mais gostosa que a
outra em cima da mesa: pão de queijo, queijo fresco, bolo de fubá,
bolo de cenoura com cobertura de chocolate, requeijão, pão de sal,
arroz doce, broa de milho, bolinho de chuva, biscoito de polvilho, etc.
— Ré! Assim vou mi acostumá e num querer ir embora daqui
— elogiei e ganhei um sorriso enorme dela.
— Que bom que gostou, patrão. O que o senhor quer para o
almoço?
Dei de ombros, porque minha boca estava ocupada. Depois de
saborear as delícias da minha terra, levantei-me e ajeitei o chapéu na
cabeça. Minha missão era bem complicada, eu tinha que começar a
amansar a fera da fazenda vizinha. Henry esperava, ansioso, para
atacar. Eu só tinha uma opção: conseguir comprar.
— Num si preocupa com o almoço, não. Tenho uma prosa
custosa com a potranca ao lado. Num sei si vô comer aqui —
comuniquei e a senhora enrugou a testa, sem entender muito bem o
que eu quis dizer. Eu não daria explicações. Bati com a ponta dos
dedos na aba do chapéu e saí.
Ainda era muito cedo, na fazenda tudo começa antes de
clarear o dia. Ao longe, via os primeiros raios de Sol aparecerem. A
moça brava tinha razão, à noite esfriou bem e continuava friozinho.
— Dia, Pedro — cumprimentei o rapaz que já estava na ativa.
— Dia, patrão, seu cavalo está pronto — avisou-me.
— Gradecido, mas vô de carro, mais tarde, talvez. — Pedro
anuiu e continuei meu caminho.
Entrei com a camionete na fazenda da potranca e comecei a
analisar os detalhes. A começar pela casa, tudo estava se
deteriorando.
A casa era tão, ou maior, do que a da minha fazenda, no
entanto, claramente precisava de manutenção. Embora, tanto a
minha, quanto a dela, fossem de madeira, enquanto a minha tinha um
verniz muito bem aplicado e cuidado, aquela, à minha frente, estava
com a tinta toda descascada.
Desci do carro, fechei a porta e ajeitei o chapéu. Arrumei a
fivela do cinto e comecei a caminhar. Diferente da recepção da minha
fazenda, não parecia ter ninguém, para me atender.
— Dia, senhor — cumprimentou um rapaz.
— Dia.
— Posso ajudar o senhor?
— Espero qui sim — brinquei. — Cadê sua patroa?
O rapaz me olhou desconfiado e apontou para um lado da
fazenda. Olhei na direção que apontava e ergui as sobrancelhas.
— Tirando leite das vacas, senhor.
— Bom — comentei — Mi leva, então.
— É que ela num gosta, sabe, que a gente leve estranho pra
dentro da fazenda.
— Vamo logo, rapaz, num tem essa comigo, não, já conheço a
fera — avisei e comecei a andar, esperando que o rapaz me guiasse.
Não precisamos andar muito para chegar em uma sala de
ordenha. Inevitavelmente comparei com as salas de ordenha de
nossas fazendas. Obviamente que as ordenhas não eram mais feitas
manualmente, muito menos, por algum dono de fazenda. Se a moça
estava precisando se prestar a esse trabalho, é porque a situação
estava pior do que eu imaginava.
Rastreei em volta, antes de entrarmos na sala, e vi poucos
bois no pasto. O curral, embora bem montado, precisava de reparos.
Fiquei me perguntando onde o pai da moça tinha colocado todo o
dinheiro que tinha pego no banco. Não me pareceu que tinha sido ali.
— Dona Laura — chamou o rapaz.
Laura, então é esse o nome da moça.
— Estou aqui, Joaquim — gritou de onde estava.
— Eu disse para esse senhor...
— Senhor não, rapaz, num sô véio assim, não — interrompi o
moço.
Olhei para ela, por cima da divisória baixa que nos separava, e
senti algo que me assustou um pouco. Algo que se eu deixasse
crescer, complicaria mais ainda o cumprimento da minha tarefa. Meu
coração deu uns pequenos saltos e um calorão subiu dos meus pés
até o pescoço. Aos trinta e cinco anos, sentir coisas que
adolescentes sentem, não combina comigo.
A potranca era bonita mesmo, vendo-a ali, envolvida em algo
que sempre gostei, fazendo o que sempre apreciei, despertou uma
admiração que não deveria. Estava claro a força que ela tinha. Eu não
estava entrando em um jogo com um adversário fraco. Laura era a
adversária perfeita para apimentar o jogo. Se fosse preciso apelar
para esse lado, mesmo indo contra meus princípios, eu iria até o fim.
Henry não pensaria duas vezes para usar isso a seu favor, antes dele,
seria eu.
Vamos ver quem ganha esse jogo, moça bonita!
Pressionada
∆∆∆
Laura

— Dia, dona Laura — cumprimentou o filho de uma égua,


com um sorriso sacana enfeitando seu rosto.
Ele estava me provocando, não tinha outra explicação. Só não
entendia o porquê, afinal, nossa relação, ou melhor, a falta dela, não
era nada boa.
— O que faz aqui? — rebati de imediato, encarando-o séria.
— Aqui, dona Laura — acentuou o dona de propósito — tô di
boa, num quero caçá confusão, não. Só quero um dedinho de prosa
com a dona — terminou de falar e ergueu apenas uma sobrancelha –
claramente me desafiando.
— Não tenho nada pra conversar com você. — Voltei a tirar o
leite da vaca, estava quase no final, não ia parar meu trabalho para
dar atenção a ele. Principalmente, porque não daria em nada àquela
conversa.
Quando menos esperei, o homenzarrão estava adentrando o
espaço onde eu trabalhava. Pegou um banco igual ao que eu estava
sentada e arrastou para o meu lado. Não parei o que fazia, nem ergui
o rosto, até porque, se o fizesse, na certa, ele perceberia o quanto
me afetava sua presença.
Não precisou que ele chegasse muito perto para eu sentir o
cheiro inebriante de... macho. Aquele cheiro que te desestabiliza. Ele,
com certeza, tinha acabado de sair do banho, o cheiro de sabonete
caro, misturado com o da sua pele, estava me embebedando.
— Cê sabe qui tem máquina qui faz isso, não é mesmo, dona
Laura? — falou bem pertinho do meu pescoço – provocando um
escolher involuntário do meu corpo, pude sentir o calor de seu hálito.
— Pare de me chamar de dona Laura — berrei, virando-me
bruscamente para ele, o arrependimento veio na velocidade da luz,
nossos narizes ficaram a um milímetro de distância, uma respirada
mais forte – nos tocaríamos.
Engoli em seco e segurei a respiração, com medo de ser eu a
responsável por tocar nele. Temia a reação do meu corpo, caso
aquilo acontecesse, novamente. No riacho e no banco, tudo foi muito
rápido, mesmo nos tocando, pude me desvencilhar sem maiores
estragos.
O danado sorriu e umedeceu os lábios, sem se mover.
— Do qui quer qui te chame, moça bonita? — sussurrou e
levou a mão até os fios de cabelos que cobriam meus olhos. Afastou-
os e ficou me olhando dentro dos olhos – segurando os fios dos meus
cabelos entre os dedos.
Ali, onde quase não tinha espaço entre nós, explorei cada linha
que riscava sua íris. O verde de seus olhos me fez sentir nadando em
águas cristalinas, mesmo que o contorno deles fosse escuro, parecia
que eram transparentes, apenas a pupila se destacava no centro.
Lutava para não ter aquelas sensações, mas foi inevitável sentir uma
percepção de conforto e... segurança.
— Ainda precisa de mim, dona Laura? — Joaquim tirou-me do
transe, graças a Deus! Aquele cowboy de araque estava ali com
apenas um propósito: tirar as terras da minha família. Terras essas
que estavam a seis gerações na família Ferreira.
Fiquei em pé rapidamente. A vaca assustou-se e o banco caiu
para trás. Ele estreitou os olhos e cruzou os braços – me
escrutinando. Esticou as pernas para frente e não parou de me olhar.
Respirei fundo. Peguei uma presilha no bolso da calça jeans e prendi
os fios de cabelos que quase me levaram a perdição.
— Pode ir, Joaquim — dispensei meu funcionário. — Está
acostumado a ter todas aos seus pés, não é mesmo? — falei para o
invasor, assim que ficamos sozinhos. Agachei e peguei a vasilha cheia
de leite. — Caiu do cavalo, porque a potranca aqui não vai cair na sua
lábia — continuei falando, enquanto levava a vasilha para o
refrigerador.
Não olhei para ele, mas sentia seu olhar me queimando. Eu
não andava, marchava pelo espaço que, naquele momento, parecia
muito pequeno para nós dois. Eu buscava controle e quase não
encontrava, tentava não ofegar ao falar, mas estava difícil. Tinha
certeza de que ele estava adorando aquela cena patética que eu lhe
proporcionava.
— Ah, caceteeeeeee!!!! — praguejei, no momento que todo o
leite de uma das vasilhas virou em cima de mim.
Se me perguntassem como, eu não saberia responder, mas
em questão de minutos, o cowboy de araque estava ao meu lado,
ajudando-me a equilibrar as vasilhas, para que eu não terminasse de
derrubá-las. Fiquei sem coragem de olhar nos olhos dele.
Quando ele chegou no ambiente, embora eu tivesse tomado
banho, antes de sair de casa, já tinha suado litros, ordenhando as
vacas. Enquanto ele cheirava muito bem. Depois do meu descontrole
– o segundo na frente dele –, eu literalmente passei a feder.
— Obrigada — agradeci baixinho e dei as costas para ele – na
intenção de correr para o primeiro chuveiro disponível.
— Num é qui a potranca sabe agradecê — provocou.
Estanquei no lugar, cerrei os punhos e os dentes –
preparando-me para o embate.
— Vamos esclarecer as coisas — comecei – assim que fiquei
de frente para ele. — Você não é bem-vindo na minha fazenda.
— Fazenda? — Olhou de um lado para o outro. — Num tô
vendo nenhuma aqui — menosprezou, com um sorriso irônico.
Meu sangue agitou-se nas veias. Senti como se estivesse
dentro de um liquidificador, tal meu furor.
Estiquei o braço e apontei para a saída.
— Fora daqui — gritei.
O sorriso dele ficou maior ainda. Com poucos passos, estava
muito próximo de mim.
— Oia, só, dona Laura, num queria sê eu a ti lembrar, não,
mas o trem tá cabuloso pro seu lado. Se eu fosse...
— Mas não é e fim de papo. Agora — apontei novamente a
saída —, seja cavalheiro e se retire daqui.
Ele chegou bem pertinho de mim e me mediu dos pés à
cabeça – fungando.
— Tá numa nhanca, só — destilou seu veneno, com sarcasmo.
Antes que eu pudesse revidar, emendou: — Cê tem até amanhã pra
aceitá a oferta, senão, vai cair pela metade — advertiu e saiu
andando – deixando-me de queixo caído.
Cruzei os braços e entortei os lábios, admirando o traseiro
delicioso do cowboy de araque. Idiota! Pensa que me assusta.
De longe, fiquei analisando as diferenças gritantes entre nós. A
começar pela minha camionete com vinte anos de uso, ao lado da
dele, parecia uma carroça. A tinta vermelha do capô já estava quase
toda descascada do Sol, os pneus, tão desgastados que estava
vendo a hora de acontecer algum acidente naquelas estradas de
terra, a aderência no chão, praticamente zero.
— Uau! Quem é essa delícia?
Olhei com a cara fechada para Mirela e estreitei os olhos.
— Foi para isso que resolveu sair da cama? Ficar secando os
homens? Não acha que está muito nova pra isso?
Ela ergueu as mãos em rendição.
— Quem tava secando quem? Limpa a baba, maninha.
Fiz um gesto com as mãos de deixa pra lá e continuei meu
caminho – ignorando o fato de estar dando a maior bandeira de que o
cowboy de araque estava causando em mim.
§§§§
Perdida nos papéis, buscando, pela milésima vez, uma forma
de lidar com todo os problemas que meu pai deixou e preservar o
patrimônio da família, alguém bateu na porta.
— Entra — falei alto.
— Dona Laura, tamo com problema — comunicou Emílio e eu
bufei.
— Se cada vez que a palavra problema for citada, nessa
fazenda, eu ganhar um real, rapidinho vou enriquecer. — O rapaz
ficou sem saber se prosseguia ou não com o assunto. —
Desembucha, Emílio.
— O bezerro fujão, dona Laura, carece de um doutor — disse
e deu uma encolhida, sabendo do maior problema que tínhamos:
veterinário. — As vacinas, também, dona Laura, já era pra ter dado
no gado, junto com o remédio di verme.
Fechei os olhos e afundei o rosto entre as mãos.
— O que eu faço, Emílio? — perguntei, sabendo que ele não
teria a resposta. Senti uma laranja enorme tampando minha glote.
Mas, não poderia demonstrar fraqueza, precisava encontrar uma
saída.
— Oia, só, eu sei que a senhora vai taiá o sangue, mas... —
Respirou fundo. Ergui a cabeça e o encarei. — O homem rico qui
teve aqui, ele pode ajudar, tem mais de um doutor na fazenda dele.
Não o deixei continuar, levantei o dedo e neguei
veementemente com a cabeça.
— Fora de cogitação.
— Então vamo tê que chamar o rapaz da cidade.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come – pensei,
desacorçoada.
— Vou lá dar uma olhada no bezerro. — Fiquei em pé e fui
saindo, sem me preocupar com a bagunça que estava a mesa.
Com poucos passos, pude ouvir os berros do animal, gemi de
desespero. Não poderia deixar o bicho naquele sofrimento, mas com
que cara eu chegaria no Umberto depois do que aconteceu? Sem
contar que ele, seguramente, não me receberia. Os outros
veterinários da cidade têm a agenda lotada, principalmente, para
mim. A notícia de que estamos falidos já se espalhou por quilômetros.
E, se doeram pelo Umberto. Entrei no cercado onde estava o bezerro
e me sentei ao seu lado.
— Muuuuuuuuu...
— Por que você tinha que ir para aqueles lados? Agora, como
vou resolver isso? — choraminguei ao bicho, alisando sua cabeça.
— Vamo tê que dá um tiro na cabeça dele, dona Laura.
Fechei os olhos e segurei os lábios entre os dentes – negando.
De que adiantaria atirarmos na cabeça do animal, se os demais
precisavam de vacina e remédios, também. Eu teria que encontrar
uma solução, ou melhor, um veterinário.
Levantei-me e bati a mão na bunda, limpando os fenos que
ficaram grudados, e estufei o peito.
— Vou resolver isso, agora mesmo — garanti e fui andando.
— O que eu faço com o bicho, dona Laura?
— Tente acalmá-lo, vou na cidade e só volto quando conseguir
um veterinário.
Precisei falar a frase bem alto, para o meu cérebro entender
melhor do que o Emílio. Honestamente, eu nem sabia como, mas
tinha que cumprir com aquela promessa.
Entrei rapidamente em casa, calcei as botas e cruzei uma
bolsa pequena no corpo.
— Não me espere para o almoço — avisei à Elisa, sem
maiores explicações.
Sem Saída
∆∆∆
Gabrielle

— Temos uma denúncia grave contra você, detetive.


Ele não precisava repetir, claramente eu estava ciente da
situação.
— Pode ir direto ao ponto? — pressionei, recuperando a
firmeza da voz e deixando minha postura ereta.
— Como quiser. — Abriu uma pasta que, até então, eu não
tinha reparado estar em suas mãos e pegou alguns papéis. — O
CEO...
— Ele não é o CEO — interrompi-o, na esperança de amenizar
a importância do arrogante Henry Bennett.
O homem me olhou sério e ignorou minha interrupção.
— Como eu dizia, o senhor Henry Bennett, atual CEO da
empresa da família, a acusa de injúria, artigo 140 do código penal,
contra a empresa dele.
Apertei tanto as unhas nas palmas das mãos que, certamente,
estavam completamente escoriadas. Olhei para o Bento, ele apertou
o maxilar e meneou a cabeça. Naquele momento, tive certeza de que
tinha ido longe demais, mesmo com todos os avisos do Bento.
Qualquer consequência – dali para frente – teria que enfrentar
sozinha.
— Ele tem prova? — indagou, Bento – levantando-se.
— Testemunha.
— Tss... Tss... — Ri de nervoso e bufei. — Outro Bennett
idiota, isso não é testemunha — resmunguei e recebi um olhar
enviesado do Bento.
— Consta nos autos do processo que Emanuela, sua
assistente, testemunhou.
Fechei os olhos e travei os dentes.
— Filhos da puta — murmurei.
— Como? — questionou meu inquisidor.
— Gabrielle, controle-se, porra! — rateou Bento, entredentes.
— Bom, você conhece o procedimento, enquanto é
investigada, fica suspensa do trabalho. Preciso do seu distintivo e seu
revólver.
Contra minha vontade, fiquei em pé e tirei minha Glock da
cinta, entregando-a.
— O distintivo, por favor — insistiu, estendendo a mão.
Respirei fundo e concordei, entregando o que me pediu.
— Vou comunicando seu sargento do andamento do processo.
Acho que não preciso lembrá-la de que não pode sair da cidade.
— E por que não? Não cometi nenhum crime — refutei de
imediato.
— Até que prove o contrário, cometeu sim. Está bem claro no
artigo 140, pode pegar de um a seis meses de prisão.
Assenti e me calei. O olhar de Bento me fuzilava.
— Ela vai ficar na cidade — assegurou, Bento.
— A qualquer momento, o juiz pode chamá-la, esteja
disponível, se tiver amor à sua profissão. Sabe que se pisar na bola
pode perder esse distintivo pra sempre, não é mesmo?
É sério, que o cara vai ficar me ameaçando?
Fui abrir a boca para responder sua ameaça à altura, Bento
segurou-me pelo braço e apertou forte – um pequeno gemido
escapou do meu peito.
— Ela sabe e vai fazer tudo certo. — Mais uma vez, Bento
falou por mim.
— Sendo assim, nosso trabalho está feito aqui. Até mais,
sargento — cumprimentou Bento e o outro meneou a cabeça.
Os dois olharam para mim e nem se deram o trabalho de
pronunciar alguma palavra, apenas um aceno de cabeça. Imbecis.
Acompanhamos, com os olhos, até que saíssem do
departamento. Havia um silêncio estrondoso por todos os lados. Perdi
completamente a coragem de olhar para o Bento, já sabia que viria
sermão e dos grandes.
— O que foi aquilo? — João Pedro perguntou aproximando-se
de nós.
Dei de ombros e desviei o olhar. Senti uma mistura de
sentimentos: vergonha, arrependimento, raiva e... medo.
— Agora entende o significado da palavra pare, Gabrielle? —
vociferou, Bento.
Ignorei-o e fui até minha mesa. A caixa que eu tinha retirado
minhas coisas, há pouco dias, continuava no canto. A peguei
novamente e voltei a colocar meus pertences dentro dela. Todos me
olhavam sem entender nada, obviamente que eu não ficaria dando
explicações.
— Voltem todos ao trabalho — berrou Bento e, rapidamente,
cada um estava em sua mesa – ocupando-se de suas obrigações –
exceto, João Pedro.
Ele sentou-se na beirada da minha mesa, como de costume,
apoiou a mão na perna e me encarou. Bento já conhecia o nosso
esquema – não interferiu – voltou à sua sala.
— Qual foi a merda que você fez, dessa vez, Gabi? — iniciou
e eu fiquei com vontade de bater nele e, ao mesmo tempo, de
afundar o rosto em seu peito e chorar. Porque ele, dentre todas as
pessoas, era a que mais me entendia.
— Estou fodida — confessei e continuei guardando meus
pertences na caixa.
— Isso eu já percebi, só não sei o porquê.
— Os filhos das putas dos Bennett — praguejei e taquei um
objeto dentro da caixa – provocando um barulho grande. Os olhos se
voltaram para mim.
— Você foi lá sem mim? — Assenti. — Isso está acabando
com a sua vida, com sua carreira. Quando é que vai acordar,
caralho!? — Bateu com força no tampo da mesa e se levantou – indo
para o seu canto.
Terminei de organizar meus pertences, com a garganta
raspando. Sentia a língua pesada na boca. Queria poder sair dali e
voar no pescoço do primeiro Bennett que aparecesse na minha frente.
— Estou indo — avisei meu parceiro, assim que passei pela
sua mesa.
— Vou te levar.
— Ainda sei dirigir.
— Eu sei, mas combinamos de almoçar juntos.
— Tudo bem, então carrega essa caixa que está pesada —
amenizei um pouco, abrindo um sorriso forçado.
Acenei de leve para os meus colegas e descemos as escadas
– mudos.
— Gabi — chamou-me a sargento durona dos policiais civis.
Olhei e ela continuou: — Estou do seu lado. — Sorri e assenti.
A Carona
∆∆∆
Kaíque

— Como é que é? — gritou Henry na linha, afastei o


aparelho do ouvido e fiz uma careta.
Protelei em fazer a ligação, mas não adiantou, Henry estava
interessado demais no negócio para não acompanhar de perto – ele
mesmo ligou.
— Sei o qui tá pensando — prossegui — qui tá nu jeito, mas
num tá não. A moça é teimosa igual mula. Vai pelejá até o fim.
— Acha que estou preocupado com isso? Problema é dela —
continuou vociferando na linha.
Alguém precisa fazer meu irmão mais velho buscar ajuda.
Depois das merdas que a mulher dele fez, ficou insuportável de se
lidar.
— Oiá só, Henry, mais um bocadinho de tempo, consigo. Tá
cabuloso, mas amanso a fera... eu acho. — A última parte falei mais
para mim do que para ele.
— Espero que sim, Kaíque. Se eu tiver que sair daqui para
resolver isso, vou passar por cima de quem precisar, mas consigo.
Estamos atrasados com esse negócio. Sabe que tempo é dinheiro,
não é mesmo?
Respirei fundo e cocei a nuca. O chapéu pinica minha cabeça,
cada vez que penso no Henry agindo à maneira dele. Conhecendo a
história da moça, não quero me impor. Mesmo que eu não consiga
entender por que não vende logo a terras e se livra das dívidas.
— Dexá comigo, a moça tá no papo.
— Ok, Kaíque, espero que não me decepcione.
— Henry — chamei, antes que ele desligasse.
— Pode falar.
— Cê qué botá dinheiro na cidade?
— Já disse que sim, por que a pergunta?
— O prefeito daqui assuntou o gerente da fazenda, pra
conseguir apoio na Expoagro.
— Por mim, tudo bem, precisa consultar o Lucca, ele que cuida
dessa parte.
— Vô prosear com ele, então.
Ouvi um longo suspiro na linha e pensei em aconselhar meu
irmão a procurar ajuda, mas desisti logo em seguida.
— Terminou, Kaíque? Porque é muito difícil conversar com
você, esse seu sotaque e vocabulário são horríveis.
Segurei a língua para não mandar ele à merda, não é muito do
meu perfil, Henry consegue despertar o pior de mim, acho que de
todos. Apenas me despedi.
Pensei em ligar para o Lucca, mas preferi ir até a cidade e
conversar com o prefeito para saber dos detalhes do evento. Na
certa, Lucca me faria vários questionamentos.
§§§§
Andando devagar pelas ruas da cidade, analisava o lugar que,
embora, relativamente pequeno, tem um grande potencial, tanto no
agronegócio como na indústria. Sem contar as universidades que
trazem muitas pessoas para o local. A visão do Henry em investir no
lugar não estava errada – quando está? – O cara pode ser
insuportável, mas muito bom no que faz.
Dei seta para entrar na rua de paralelepípedos, em direção à
prefeitura, e diminui a velocidade, para ter certeza de que enxergava
certo.
— Ê, lasquera, o qui a potranca faz por aqui?
Toda imponente, Laura descia de sua camionete deteriorada.
Encostei a camionete alugada, da mesma marca e modelo que a
minha, e fiquei observando de longe. Suas pernas compridas, dentro
das calças jeans surradas, botas de cano baixo e camiseta regata
branca. A moça não temia nada, qualquer um podia ver. O queixo
erguido e a postura ereta não demonstravam nenhum tipo de
insegurança. Só quem conhecesse a história acreditaria que estava
quebrada. Lidando com um monte de problemas, sozinha.
— Ré, a danada é gostosa pra caralho! — Eu parecia um
tonto, babando no traseiro da potranca. Falava sozinho no carro e
tentava controlar as reações do meu corpo, ajeitando a frente da
minha calça. Tirei o chapéu e arrumei os cabelos para trás, os fios
quase batendo no meu ombro, precisava procurar um barbeiro na
cidade e dar um jeito naquilo. A barba não estava muito diferente –
começando a ficar espessa.
Laura entrou na agropecuária, no qual o melhor veterinário da
cidade era o proprietário. Depois de ter uma reunião com o gerente
da fazenda, consegui me inteirar de tudo – principalmente no que
estava ligado ao agronegócio.
Decidi estacionar o carro e ir até o local. Embora a fazenda
tenha seus próprios veterinários, com a expansão, que certamente
aconteceria, teria que contratar mais profissionais. A família Bennett
não se contenta com pouco, temos que ter os melhores. Não
entramos em um jogo para perder, claro que eu prefiro não ser
cretino no processo, mas... se não tiver outro jeito.
Entrei no estabelecimento enorme e logo encontrei um canto
para passar desapercebido. De onde estava, consegui ouvir a voz da
potranca, não parecia nada feliz.
— ...não achei que fosse misturar as coisas, Umberto —
atacou-o, quase gritando.
— Baixa o tom de voz dentro da minha loja.
— O quê? Está preocupado com o que vão pensar? Não
deveria, todos dessa maldita cidade já sabem o que aconteceu —
continuou, Laura – elevando mais ainda a voz.
O tal Umberto pegou no braço dela e sussurrou algo em seu
ouvido – tentando puxá-la para dentro de seu escritório. Meu instinto
foi querer sair dali e defendê-la, mas não precisou, rapidamente se
desvencilhou do homem e ficou no meio da loja de braços abertos.
— O queridinho de vocês, que se diz protetor dos animais, vai
deixar meu bezerro morrer, por capricho — berrou, chamando à
atenção de todos que estavam ali.
— Pessoal, me desculpem, ela está descontrolada. Vem
Laura, vamos conversar lá dentro — insistiu o moço.
— Não vou com você a lugar algum, ainda não entendeu isso?
O cara não sabia mais o que fazer, seu rosto estava cada vez
mais pálido. Comecei a sentir pena dele.
Sem pensar muito, saí do meu esconderijo e peguei a potranca
pelo braço – arrastando-a para fora da loja. Ela se debatia como um
animal.
— Me solta, seu cowboy de araque, quem pensa que é? —
gritava, enquanto passávamos pela porta da loja.
Na calçada, soltei seu braço e a encarei, colocando as mãos
nos quadris.
— Cê tá fazendo papel de ridícula, tem base?
— Não é da sua conta! — vociferou e virou-se, marchando
pela calçada. A segui até sua camionete. — O que é isso, agora? Vai
me seguir? Não vou vender minhas terras pra vocês, vou ter que
desenhar pra vocês entenderem?
Bufei e ri sem humor. A ficha da moça ainda não tinha caído.
Ela não tinha como manter àquela fazenda.
Não disse nada, aguardei que entrasse no carro e desse
partida, ou melhor, tentasse...
— Eheim... eheim... eheim...
Ergui as sobrancelhas e segurei para não rir, aparentemente, a
moça estava no limite. Ou me bateria, ou começaria a chorar,
nenhuma das duas coisas, eu conseguiria lidar bem.
— Essa porra!! — gritou e começou a socar o volante da
camionete. Encostou a testa nele e fiquei sem saber se poderia me
aproximar.
Após uns minutos, quando percebi que tinha se acalmado,
encostei na porta da camionete e apoiei os antebraços na janela
aberta. Ela continuava com a testa encostada no volante – com a
respiração alterada.
— Vem, moça bonita, vô dá uma carona pro cê — ofereci e
esperei a recusa.
Alguns segundos se passaram, sem que ela tivesse qualquer
reação. Meus dedos coçaram para irem até seus cabelos curtos e
fazer um cafuné. Tive vontade de abrir a porta e pegá-la no colo, até
o momento que ela ergueu os olhos e me fulminou.
— Está adorando isso, não é mesmo?
Apontei para o meu peito e recuei o tronco – franzindo o
cenho.
— Tô tentando ti ajudar, potranca! — defendi-me de imediato.
— Eu sei qual seu interesse em me ajudar.
Respirei fundo e meneei a cabeça.
— Uai! Se prefere assim, moça. Vamo tratá di negócio, então.
Seu tempo acabou, metade do valor, agora — joguei a real, afinal,
Henry já tinha determinado. Não teria outro jeito de ser a primeira
oferta, o financeiro não liberaria o dinheiro.
Ela desviou o olhar e deu de ombros.
— Poderia ser o dobro que não mudaria minha decisão.
— Capaz, dexá di sê teimosa, muié. Num tá vendo que num
vai consegui pagá aquele mundaréu di dívida?
— E o que vão fazer? Me expulsar da fazenda? Acha que
vocês têm esse direito?
— A gente, não, mas o banco, sim.
Ela enfiou o rosto entre as mãos e fez algo que eu nunca
esperaria: desembestou a chorar.
— Etâ, ferro, para com isso, moça. — Me aproximei
novamente e, dessa vez, abri a porta e fiz o que tive vontade desde o
primeiro momento que cheguei perto daquele carro: levei minha mão à
sua cabeça e comecei a fazer cafuné. — Vem, vô ti levá pra casa.
Ela não recusou, acho que por falta de opção.
§§§§
Nossas fazendas ficam a trinta quilômetros da cidade, sendo
dez deles de terra. Durante os quinze primeiros quilômetros, esperei
que ela dissesse alguma coisa, mas não aconteceu. Mesmo naquela
situação, continuava com uma postura altiva.
Logo que entramos no meu carro, ela já não chorava mais.
Ajeitou os cabelos curtos atrás das orelhas e ficou olhando pela
janela.
— Aqui, moça, a gente pode tê uma prosa, sem furdunço?
Ela virou o rosto para mim e ficou me encarando. Apesar de eu
estar com a atenção voltada para a estrada, sentia seus olhos me
queimando.
— Ok, já que você insiste, e está sendo... hum... deixa-me
ver...
Olhei de esguelha e ela estava batendo com o indicador na
têmpora – com uma expressão irônica.
— Cê nunca baixa essa pose?
— Interesseiro... é isso, estava tentando encontrar a definição
do que você é, principalmente quando age tão solidário.
Fiz uma careta, entortando o nariz.
— Cê encasquetou com essa disgrama, num sô assim não,
moça.
Um sorriso sarcástico enfeitou seu lindo rosto.
— Me prove, então, porque eu não consigo acreditar que um
Bennett não tenha apenas interesse nas pessoas. Vocês se
aproveitam de todos, esperam a oportunidade certa para dar o bote.
— Capaz, num vim aqui mi aproveitá de ti, não. Só tô
querendo comprar as terras. Cê nem consegue mais mantê a fazenda
di pé.
Ela estreitou os olhos e cerrou os dentes.
— Você está vendo, como quer ter uma conversa comigo? Não
vou vender as terras.
— Por causa di quê?
— Prometi ao meu pai.
Respirei fundo e assenti.
— Num queria, mas vô tê que ti avisá, num vamo desisti
desse negócio, não. Se num for por bem, vai sê por mal.
Laura cruzou os braços e me fuzilou. Virei o rosto e dei de
ombros, erguendo as sobrancelhas. Pelo menos, eu estava sendo
sincero com ela.
— E o que pretende fazer?
— Aqui, ainda dá tempo di cê voltá atrás.
— Não me respondeu.
— Uai! Vamo esperá o banco ti tomá a terra e comprá no
leilão.
Mal acabei de pronunciar as palavras, ela estava abrindo a
porta do carro. Tive que frear rapidamente, se não a potranca
desceria com o carro em alta velocidade.
— Cê, tá doida, muié? Assim cê vai si matá. — Parei o carro e
desci correndo atrás dela. Ainda faltava uns cinco quilômetros para
chegarmos. — Eira, potranca, para aí, ainda falta muito pra chegá.
— Me deixa em paz, seu imbecil. Não preciso de você, de
ninguém — gritou e ergueu o dedo do meio – de costas pra mim.
Parei e neguei com a cabeça, não ia adiantar continuar, ela
não entraria mais no meu carro. Voltei à camionete e fui andando
devagar, ao lado dela.
— Ô, potranca, posso saber o que tava fazendo na cidade?
Cê tava falando daquele bezerro que tirei do riacho?
— Não é da sua conta.
— Se o bicho vai morrê, é da minha conta sim. Vô pedi pro
Francisco dá uma olhada nele. — Avisei e arranquei com o carro –
deixando-a entre uma nuvem de poeira.
O Impostor
∆∆∆
Laura

— Filho de uma égua — praguejei e inclinei o corpo –


colocando as mãos nos joelhos. — Cof... cof... cof... imbecil.
Eu não conseguia ver um palmo à frente do nariz. Tive que
esperar que ele pegasse uma boa distância e a nuvem de terra
baixar, para continuar o meu caminho.
— Aquela merda de camionete tinha que quebrar bem hoje?
Andava e praguejava. Senti as pernas moles e me lembrei de
que já passava das quatro da tarde e eu só tinha tomado o café da
manhã. O pior é que nem sabia como faria para trazer meu carro
para a fazenda, porque, seguramente, me cobrariam o olho da cara
para arrumar e eu não tinha de onde tirar dinheiro.
Ao longe, avistei a entrada da minha fazenda e acelerei o
passo. Fui pegar meu celular para ver se tinha sinal e...
— Caceteeeeee, mais essa pra completar meu dia. Deixei a
bolsa no carro daquele imbecil.
Entrei marchando na fazenda e já pude ouvir o mugido de dor
do bezerro. Levei as mãos à cabeça e puxei os cabelos com força.
Era certo, eu perderia o bezerro. Não deixaria o bichinho sofrendo
daquele jeito. Pediria aos meninos que dessem um tiro na cabeça
dele.
Antes de entrar na casa, fui direto ao curral. Não deveria me
surpreender, mas...
Nem precisei me aproximar muito para ver a camionete
imponente do cowboy de araque estacionada perto do curral.
Respirei fundo e me prepararei para enfrentá-lo novamente.
O pior é que, embora eu sinta uma raiva enorme dele, meu
corpo reage de forma totalmente oposta. Cada vez que ele se
aproxima, um calor no meio das minhas pernas me tira o fôlego.
Preciso de um controle fora do normal, para que ele não perceba.
Ele tinha que ficar se fazendo de bom moço? O que foi aquele
cafuné? Foi necessário um esforço estrondoso para que eu não me
jogasse em seus braços.
Há quanto tempo que não tenho ninguém para me ajudar?
Para me fazer um carinho...
Me passar segurança...
Me fazer sentir mulher novamente.
— Patrão, o bezerro ficou muito tempo sem remédio, não sei
se vou conseguir salvá-lo — comunicou o rapaz que examinava o
animal.
Me aproximei devagar – calada. Eu sei que não tive muitas
opções, mas o animal não tinha culpa. Abracei o corpo e cheguei
mais perto. O Bennett estava agachado ao lado do bezerro e o
acariciava. Senti um pouco de inveja do bicho.
Kaíque sentiu minha presença e ergueu o rosto. O canto de
seu lábio içou-se. Fechei a cara.
— O que está acontecendo aqui? — me impus, para ele não
achar que podia invadir minha terra e fazer as coisas sem minha
autorização.
— Baixa a crina, aí, potranca. Viemos salvá seu bezerro.
O rapaz que eu já conhecia, era veterinário da fazenda dele.
Mais um que só estava ali porque o Bennett levou, porque, também,
tinha tomado as dores do Umberto.
— Não pedi sua ajuda — retruquei, mesmo contra à vontade,
somente para mantê-lo longe de mim. Não estava gostando do que
sentia ao seu lado.
“Amor é para os fracos” –, dizia o meu pai. Ele nos deixa
cegos e fazemos coisas pela emoção. No fim, só perdemos.
— Tss... tss... quanta arrogância — murmurou o veterinário e
me aproximei.
— O que disse? — perguntei, agachando-me ao seu lado.
O Bennett pegou no meu braço e me puxou para cima.
— Deixá ele fazê o trabalho dele. Depois é só me agradecê.
Pode sê com um jantar. Tá certo que eu duvido que ocê consiga fritar
um ovo.
Puxei meu braço com força e, quando fui me desvencilhar,
senti uma tontura gigante. Procurei algo para me apoiar e só
encontrei o peito de aço do cowboy de araque. Não tive opção, ou
era aquilo, ou me esborracharia no chão.
— Me solte, seu bruto — gritei e ele me segurou com mais
força, apertando-me em seu peito. Pegou em meu queixo e fez-me
olhar dentro de seus olhos verdes. Meu coração deu uma pequena
cambalhota no peito. Segurei a respiração e o encarei, prensando um
lábio no outro.
— Cê tá doente? Quase se estabacou no chão. Num fosse eu
ti segurá.
— Estou bem... me solte.
— O qui cê tem?
Fechei os olhos e respirei fundo. Claramente ele seria um
páreo difícil.
— Só preciso comer, se me soltar, é claro — ironizei e ele
afrouxou um pouco o aperto – sem me soltar.
— Francisco, termine o serviço, vô levá a moça pra dentro.
— Me solte, não preciso disso.
— Faz o que ela pede, patrão, ela não vale a pena, não.
Em questão de segundos, estava me soltando dos braços do
cowboy e voando no veterinário. O empurrei para trás, fazendo-o cair
sentado – espalmando as mãos para não cair de costas.
— Cuidado com o que fala, está na minha propriedade —
berrei e saí marchando, em direção à casa.
Ouvi o Bennett falar alguma coisa para ele, mas não consegui
entender. Obviamente que ele não me deixaria em paz, rapidamente
estava ao meu lado.
— Ganho um rango di pagamento? — indagou, assim que
emparelhou comigo. Queria dar um berro na orelha dele, mas
oferecer comida a ele, além de ser uma forma de agradecimento, o
teria mais tempo comigo.
Chacoalhei a cabeça, para desvencilhar o pensamento. Se me
deixasse levar por aquele caminho, seria sem volta. Eu só tinha a
perder. Umas horas de prazer não valeria a perda que minha família
teria.
Continuei andando, sem responder. Acredito que meu silêncio o
incentivou a continuar me seguindo.
— Entre — convidei-o, abrindo a porta da cozinha. Elisa estava
perto da pia e arregalou os olhos ao nos ver entrar. — Elisa, será que
pode ajeitar as coisas para almoçarmos? — A garota não desviava o
olhar do Bennett, com a boca aberta e a mão em frente a ela. —
Elisa?
— Ah, claro, me desculpe, Laura. Agora mesmo.
O exibido abriu um largo sorriso e se aproximou dela. Tirou o
chapéu e pegou em sua mão, colocando-a entre as dele.
— Prazer, moça bonita, sou o Kaíque. — Inclinou-se e beijou o
dorso da mão.
Bufei e revirei os olhos – indignada. Só podia ser um Bennett,
mesmo. Eles são famosos por serem galantes. Óbvio que com
interesse.
— Chega disso, sente logo aqui, antes que eu desista de
deixar você comer. — Puxei-o pelos ombros.
Ele me lançou um olhar malicioso e eu estreitei os olhos.
Chegou bem pertinho do meu ouvido e sussurrou:
— Tá com ciúme, potranca?
Dei uma cotovelada em seu abdômen. Seu gemido chamou à
atenção de Elisa. Antes que ela dissesse algo, meu olhar a fez
entender que era melhor ficar calada.
O restante do almoço foi silencioso. Apenas alguns elogios do
Bennett à Elisa, fazendo-a corar.
— Parece qui já ti conheço — comentou ele, enquanto tomava
um gole do suco.
— Sim, o senhor foi lá na vila, eu tava com o Pedrinho dando
uma voltinha.
Ele franziu o cenho.
— Cê mora na minha fazenda?
— Ela é esposa do Pedro, seu servo fiel — desdenhei.
— Interessante, gostei di sabê disso.
Não entendi muito bem o que ele quis dizer, mas não tive
tempo de pedir esclarecimentos. Minha mãe adentrou a cozinha e eu
saltei imediatamente da cadeira – indo ao encontro dela. Há meses
que ela não saía do quarto.
— Mãe, está tudo bem? — indaguei e peguei em seu braço –
ajudando-a a sentar-se.
O Bennett ficou em pé e foi até ela – com uma expressão
preocupada.
— Tarde, senhora — cumprimentou-a e estendeu a mão.
O sorriso complacente que ela lhe deu, deixou-me confusa.
Fiquei na dúvida, ela sabia quem era aquele impostor todo gentil?
Sabotagem
∆∆∆
Gabrielle

Nos acomodamos ao fundo do restaurante que estávamos


acostumados a almoçar. João Pedro sentou-se à minha frente e
pegou em minha mão – beijando-a.
Não nos falamos no trajeto, ainda não tinha conseguido digerir
tudo o que tinha acontecido pela manhã. Minha cabeça trabalhava à
velocidade da luz, tentando encontrar uma maneira de acabar com
aquela maldita família.
— Eles não podem sair impunes, João — verbalizei
exatamente o que passava pela minha cabeça.
Escrutinei a reação do meu amigo diante das minhas palavras,
antes que ele se manifestasse. Seu pomo de Adão subiu e desceu e
os lábios ficaram espremidos, um no outro, na certa, ponderando se
deveria, ou não, expor sua opinião.
— Acho que não preciso te dizer o quanto não gosto disso
tudo — disse, por fim. Puxei a mão e cruzei os braços – encarando-o
com os olhos estreitados. Ele ergueu as mãos em forma de rendição.
— Vamos esquecer isso, por enquanto.
Concordei e alcancei o cardápio. Folheei a pasta umas três
vezes, sem vontade de comer nada. Meu apetite nunca foi dos
melhores, depois da infeliz manhã que tive, ele estava muito pior.
— Vou pedir uma salada — avisei e empurrei a pasta para o
meio da mesa.
João negou e chamou o garçom.
— Dois “Virado à paulista” — pediu, fui querer falar algo, ele
esticou o braço e segurou minha mão – impedindo-me. — Duas águas
com gás.
— João, não estou com fome — censurei-o e ele apertou
meus dedos – carinhosamente.
— Está sim, só não se deu conta disso, ainda. A hora que
chegar seu prato preferido vai mudar de ideia imediatamente.
Sorri e meneei a cabeça. Algumas amizades são verdadeiras.
Quando me questionam como não há nada entre nós, além de
amizade, sempre respondo a mesma coisa: “Não vamos estragar
algo tão verdadeiro.” E não minto na resposta. Tudo bem que não
consigo me relacionar com ninguém, a comparação é inevitável.
— Me conta, como está sua vida amorosa — questionou-me
com um riso meio debochado. Franzi o nariz e bati em sua mão, que
ainda segurava a minha.
— Palhação, sabe muito bem que não tenho tempo para essa
bobagem — esquivei-me e desviei o olhar.
— Esse é o seu problema, Gabrielle, continua se sabotando —
repreendeu-me, obrigando-me a o olhar enviezadamente.
— Não disse que mudaria de assunto? Você, melhor do que
ninguém, conhece os meus propósitos.
— O fato de conhecer não quer dizer que eu concorde. —
Puxei novamente a mão e quase me levantei. — Pode ficar brava o
quanto quiser, Gabi. Alguém precisa fazer você acordar. Quantos
anos já se sabotou? Percebeu que já trintou e nada mudou?
Abri a boca para responder e fui interrompida por uma
Andressa nada discreta.
— Gabiiii, que bom que te achei — berrou e passou os braços
pelo meu pescoço, quase me tirando o ar.
Não entendo como a garota pode ser tão expressiva,
principalmente já me conhecendo. Sabe que detesto essas
demonstrações calorosas, ainda mais em público.
— Chega, Andressa — censurei-a, tirando seus braços do meu
pescoço.
— Nossa, nem um oi para sua parceira?
Revirei os olhos e vi o sorriso malicioso do João. Os olhos
dele, claramente, foram para o decote dela, que não deixava nada
para a imaginação.
Sem convite, Andressa puxou uma cadeira e sentou-se ao meu
lado.
— Ah, oi. — Andressa cumprimentou meu parceiro, esticando
a mão.
— Olá — respondeu João, mordendo o canto dos lábios. Fiz
uma careta e senti náuseas. Ele segurou a mão dela e não soltava.
— Então, Andressa, o que quer comigo, afinal? — A fiz olhar
para mim, obrigando-a a soltar a mão do meu parceiro. Aquela
combinação não seria legal – pelo menos era o que eu pensava.
Andressa respirou fundo e prendeu o lábio inferior nos dentes.
— Preciso da sua ajuda.
— Tenho certeza de que sim.
— Credo, Gabi, você é muito chata, quanto venho te ajudando
e você está sempre me colocando pra escanteio.
— Fala logo o que quer, pretendo continuar meu almoço com
meu amigo.
João Pedro se remexeu na cadeira, visivelmente, incomodado
com o fato de eu não esclarecer as coisas. Eu sabia que ele se
segurava para não perguntar.
— Você viu as últimas notícias? Ele vai mesmo se casar com
aquela caipira, não podemos deixar.
Apontei para o meu peito e recuei o tronco.
— Nós? Enlouqueceu? Estou pouco me lixando se o Narciso
vai se casar ou não, só quero botar aquela corja na cadeia.
Até aquele momento, João não tinha se envolvido, mas quando
entendeu do que se tratava, não titubeou em interferir:
— Olha só, Andressa seu nome, não é mesmo? — Ela
assentiu, já com os olhos marejados. — Por causa dessa maldita
família, estou sem parceira, sabe-se lá por quanto tempo. Não tente
piorar as coisas, se a Gabi chegar perto deles, vai pra cadeia, espero
que ela tenha consciência disso.
Andressa arregalou os olhos e colocou a mão em meu braço,
com uma expressão complacente.
— Oh, amiga, o que aconteceu? Não me disse que tinha
entrado em contato com eles.
— Tss... tss... bem-vinda ao clube. Ela tem essa mania de
querer resolver tudo sozinha, agora está aí, na merda. — A voz do
João demonstrava, nitidamente, o quanto ele estava puto com toda
àquela situação.
— E agora, amiga? O quer que eu faça?
— Nada, Andressa, enquanto aquele velho asqueroso não
aparecer, não podemos continuar com o nosso plano.
Ela concordou e calou-se. Por alguns minutos, um silêncio
estranho dominou nossa mesa. Quem o quebrou foi o garçom,
trazendo nossos pratos e bebidas.
— Pode dividir o meu prato com ela? — perguntei ao rapaz,
mas Andressa negou veemente.
— Tá maluca, mulher, não como essa comida cheia de
calorias, não. Pode me trazer uma salada e um frango grelhado, por
favor.
Olhei para o meu amigo e o canto de seu lábio estava
levantado. Seus olhos estavam vidrados na Andressa. Senti um
inconveniente incômodo. Detesto pensar que alguém possa machucar
meu amigo e Andressa, sem sombra de dúvida, machucaria. A garota
só tem olhos para aquele idiota do Bennett.
Passamos um tempo conversando de coisas aleatórias. João
Pedro e Andressa se apresentaram corretamente. Os dois,
indiscutivelmente, estavam se flertando. Cada flertada trocada, era
um sorriso amarelo meu que eles tinham como resposta. Controlava-
me para não evidenciar estar com ciúme, mesmo que, infelizmente,
foi o que concluí estar sentindo.
— ...sério? Não acredito que frequenta aquele bar, estou lá
todos os finais de semana. Como não vi um gato como você dando
sopa?!
Depois dessa, fui obrigada a revirar os olhos. Levantei-me
rapidamente.
— Preciso usar o banheiro. — Os dois assentiram e nem
perceberam o quanto aquela troca de indiretas maliciosas estava me
irritando.
Cheguei ao banheiro e espalmei as mãos na pia – olhando-me
fixamente no espelho.
As olheiras estavam fundas. Os ossos da clavícula saltados,
deixando os vãos ao lado do pescoço fundos. Os cabelos loiros
presos em um rabo de cavalo mal feito. As unhas das mãos comidas.
Virei as palmas delas para cima e senti um nó na garganta, ao ver as
escoriações intensas.
— É, Gabrielle, acho que você precisa ouvir seu parceiro e
parar de se sabotar — falei com meu reflexo e fechei os olhos – na
tentativa de fazer com que meu cérebro assimilasse aquelas palavras.
Se para vencer eu precise recuar alguns passos, eu farei. Dois
para frente e um para trás. Desistir jamais.
Algo Mais
∆∆∆
Kaíque

Olhei a mulher frágil e fiquei sem saber como agir. Para


piorar as coisas, ela me olhava com admiração, me deixando, tanto
quanto sua filha, confuso. Pelo pouco que eu sabia da história da
família: ela estava doente e sua aparência não deixava dúvidas.
— Dona Inês, por que não me chamou para te ajudar? — A
funcionária delas veio até nós e arrumou os cabelos da senhora.
— Estou bem, querida, não se preocupe.
— Elisa, faz um prato de comida pra ela, por favor. Vou ajudá-
la. — Laura não sabia o que fazer pela mãe e aquela cena cortou
meu coração. Minha vontade era ir ao banco e quitar todas as dívidas
da família, assim Henry não teria nada para deixá-las como refém.
De repente, todo aquele joguinho que começava a se instaurar
entre nós, perdeu completamente a graça. Coloquei o chapéu na
cabeça e comecei a me ajeitar para ir embora. Meus planos de
pressioná-la foram por água abaixo. Sentia-me muito mal.
— Er... então, vô indo — avisei e fui me virando.
— Não, rapaz — impediu-me a senhora e eu recuei um passo,
voltando minha atenção a ela. — Obrigada.
Franzi o cenho e não entendi.
— Uai! Pelo quê?
— Eu sei que está ajudando minha filha.
Laura bufou e negou – com um sorriso sem humor no rosto.
— Acho que precisa sair mais daquele quarto, mama.
— Eu sei do que estou falando, filha, não vai demorar pra você
chegar a mesma conclusão.
Minha cabeça deu uma volta de trezentos e sessenta graus.
Laura tinha razão, mas a senhora, com toda a certeza, falava de algo
a mais, que ninguém naquele ambiente, além dela, tinha
conhecimento.
— Gradecido, mas sua filha tem razão.
— Só eu sei o que meu marido fez com o dinheiro e foi por
isso que ele teve um enfarto — revelou e, sincronizados, arregalamos
os olhos – praticamente gememos com a informação. — Não vai
demorar muito pra minha filha descobrir e chegará à conclusão de
que precisa da sua ajuda.
— Mama, do que está falando?
— Não, filha, não agora, no momento... cof... cof... cof...
— Mama...
— Me leve para o quarto.
Rapidamente, Laura pegou nos braços de sua mãe para ajudá-
la. Cheguei mais perto e tentei ser útil, mas recebi um olhar fulminante
em resposta. Bati na aba do chapéu e me retirei, com mil coisas
passando pela minha cabeça.
§§§§
Ao voltar à minha fazenda, dispensei a companhia de Pedro e
pedi que trouxesse o Apollo, eu precisava cavalgar para encontrar
uma forma de convencer Laura a me vender a fazenda, sem que eu
precisasse usar o jogo que os Bennett estão acostumados. Porque,
sem sombra de dúvida, eu ganharia. Está em nosso sangue, quando
se trata de jogar, nós somos os melhores.
Desci do cavalo e o prendi em um tronco, indo em direção ao
riacho que divide nossas fazendas. O mesmo que encontrei a
potranca tentando salvar o bezerro.
Quando encontrei o riacho, não tinha ideia de que ele quem
dividia nossas fazendas. Ao saber, imediatamente, quis conhecer o
nosso lado. Descobri que, diferente do lado de lá, o lugar é
maravilhoso. Muito bem cuidado, com chalés para hóspedes – como
se a casa da sede já não fosse grande o suficiente.
Um deck de madeira nos leva até o meio do lago, com canoas
disponíveis para um passeio. Dois moinhos d’água deixam o lugar
charmoso.
Cheguei à ponta do deck e cruzei as mãos na nuca, estralando
meu pescoço de um lado para o outro. Rastreei o outro lado do
riacho e fiquei pensativo – observando como o lado de lá estava sem
cuidados. Não sei quanto tempo fiquei ali, ouvindo apenas a água que
passava pelos moinhos e os pássaros que sobrevoavam por ali. Até
que meu celular me tirou dos meus devaneios.
Vi o nome no visor e hesitei em atender, a verdade é que, se
eu tivesse opção, não o faria.
— Henry — cumprimentei e ouvi um grunhido do outro lado.
— Papai está de volta — comunicou e eu estremeci,
lembrando-me de que desobedecemos a suas ordens.
— Ê, lasquera.
— Pegue o jatinho da empresa e venha para São Paulo,
reunião amanhã no primeiro horário. Ele quer todos os filhos.
— Êta, ferro, na certa, o alvo sou eu. — Cocei a nuca e fechei
os olhos, prevendo o embate.
— É irmão, antes fosse só você, papai está muito bravo com
nós três. Lucca foi tentar falar com ele e não deu muito certo.
Demorei um tempo para responder, digerindo as informações
que Henry despejava.
Somente Henry chama o nosso pai de papai, o cara sente-se
exclusivo, por ser o mais velho e por sua mãe ter sido a única casada
com o senhor Isaac Bennett.
— Véi, si num tem opção — afirmei e, antes que eu pudesse
me despedir, ou coisa parecida, percebi que Henry já tinha desligado.
Bufei e chacoalhei a cabeça – indignado. — Cê precisa de uma
mulher, cara! — falei para a tela do celular.
Guardei o aparelho no bolso da calça jeans e voltei ao cavalo.
§§§§
Se tem um lugar que eu odeio é a capital de São Paulo. Sinto
como se estivesse em uma caverna cheia de fumaça – sufocando. E
a pior parte é que preciso ser uma pessoa que não sou –
engravatadinho.
— Maldita gravata — praguejei dentro do carro que me levava
à empresa. O motorista, acostumado a me pegar no aeroporto, olhou
pelo retrovisor e deu uma risadinha.
O carro parou em frente ao prédio espelhado e respirei fundo.
Logo a porta foi aberta para que eu saísse. Fora do carro, agradeci o
motorista e ajeitei o chapéu na cabeça. Se querem que eu use
gravata tudo bem, agora, querer que eu tire minhas botas, chapéu,
jeans e cinto de fivela dourada, já é pedir demais. Principalmente que
minhas fivelas são prêmios de rodeios que participei. Sim, adoro
rodeios, me especializei na modalidade de laço comprido – sou o
melhor.
De queixo erguido, adentrei ao prédio imponente das indústrias
Bennett. Como em todas as vezes, as pessoas pararam o que faziam
para me olharem. Como resposta, bati na aba do chapéu e sorri.
Os homens sempre fazem cara de desprezo ao me olharem,
no entanto, as mulheres demonstram claramente que estão
admirando. Os lábios entreabertos provocam reações inapropriadas
no meu corpo. Não me faço de esnobe, aproveito para distribuir
sorrisos e piscadas.
Parei em frente às portas dos elevadores e logo senti uma
mulher se aproximar, praticamente encostando-se em mim. Olhei de
esguelha e a danada passou a língua pelos lábios – me olhando como
se eu fosse um pedaço de bolo de chocolate. Sorri de lado e desviei
o olhar. Não fosse o que me esperava no último andar, aproveitaria
para tirar o atraso.
Desde o dia em que cheguei em Pouso Alegre, não tive com
mulher alguma. A potranca tem roubado minha atenção, e só ali, que
me dei conta. A verdade é que a mulher é um pedaço de mal
caminho. E aquela braveza toda só desperta mais ainda meu
interesse. Além, é claro, de sua determinação. Não gosto de mulher
fútil, minha mãe já é o suficiente na minha vida – no quesito futilidade.
— Dia — cumprimentei a secretária do andar que,
rapidamente, se pôs em pé – direcionando-me à sala de reuniões.
A mesa enorme estava rodeada dos diretores da empresa,
sendo, em sua maioria, meus irmãos. Diferente do Henry, fui até cada
um deles e os cumprimentei. Apenas Henry e o senhor Isaac que
ainda não compunham a mesa, certamente, discutindo o assunto da
reunião.
— Lucca. — Bati de leve no ombro do caçula e o garoto sorriu
em resposta.
De todos, Lucca é o que mais gosto. Embora esteja ao lado de
Henry, trabalhando na cidade sufocante, consegue manter-se leve –
descolado.
— Kaíque — cumprimentou de volta e nos sentamos lado a
lado. — Sabe que o velho vai pegar pesado com a gente, não é
mesmo?
Assenti e tirei o chapéu – ajeitando meus cabelos para trás.
Ainda não tinha encontrado uma barbearia em Pouso Alegre, ou
melhor, não tinha nem procurado, para poder cortar os cabelos e
fazer a barba. Sendo assim, os cabelos estavam chegando aos
ombros e a barba espessa. Sem sombra de dúvida, Henry e o senhor
Isaac me recriminariam, mas, quando não faziam?
O prazer deles é arrumar intriga, não interessa qual,
principalmente o senhor Isaac. Não pode ver os filhos
confraternizando que arruma qualquer jogo para que possam se
enfrentar. Segundo ele, faz parte do processo de sermos mais fortes
e competitivos no mercado. Por isso a indústria Bennett é a maior e
melhor no que faz.
— E o casório? — perguntei ao meu irmão, o sorriso de
satisfação dominou seu rosto. — Eira, cê tá gamado nela — brinquei
e Lucca alargou mais ainda o sorriso.
— Você tem razão, Valentina virou meu mundo de ponta
cabeça. Não vejo a hora de fazê-la só minha.
— Uai! Tá esperando o quê, rapaz?
Lucca deu de ombros e respirou fundo.
— A gente só trabalha, Valentina assumiu o departamento de
marketing e não quer que as pessoas pensem que é por estar
comigo, sabe. Afinal, sou o diretor do departamento.
— Aqui, fala pra ela qui num importa, dexá as pessoas falá o
qui quisé.
— Já falei, irmão, mas a garota é um pouco teimosa — falou e
ergueu o canto dos lábios – um sinal claro de orgulho.
Uma ideia me ocorreu e despejei de uma vez, antes que eu
pensasse nos prós e contras. Porque, assim que começasse a
reunião, muita coisa poderia fazer com que eu mudasse de ideia.
— Oiá só, na fazenda de Pouso Alegre tem um lugar bem
jeitado, por que cês num casa lá?
Lucca pensou um pouco e, antes que pudesse responder,
Henry entrou na sala – acompanhado de sua fiel escudeira e o senhor
Isaac Bennett. Em conjunto, ficamos em pé, seguindo piamente o que
a tradição da empresa exige.
Nosso pai chegou à ponta da mesa e abriu um largo sorriso –
deixando seu dente de ouro exposto. Isaac Bennett tem uma postura
imponente, aparenta bem menos do que seus sessenta e cinco anos.
Ele gosta de bater no peito e dizer que seus filhos herdaram dele a
beleza. Não querendo ser presunçoso, somos realmente todos bem-
apessoados.
— Bom dia, família Bennett — cumprimentou-nos e cada um
assentiu, uns mais acalorados, outros mais tímidos.
Os diretores que não são filhos dele sempre os recepcionam
melhor – declaradamente: puxando o saco.
— Podem se sentar — ordenou, Henry. — Pronta, Emanuela?
A secretária confirmou, ajeitando seu tablete para iniciar as
anotações da reunião.
Nos sentamos e o patriarca manteve-se em pé.
— Primeiramente, quero dizer que voltei para ficar — iniciou e
ouvi Lucca bufar ao meu lado. De todos nós, o que mais desafia o
nosso pai é o caçula. Ele não concorda com praticamente nada do
que o senhor Isaac faz. Vi o olhar fulminante que Henry lançou em
nossa direção. — E, antes de anunciar a decisão que tomei, quero
esclarecimentos de quem foi a ideia de desobedecer às minhas
ordens?
Gemi no lugar. Mesmo sabendo que ele não deixaria passar,
esperava que ele entendesse que foi o melhor para empresa.
— Foi minha — pronunciou-se Lucca. Fechei os olhos e meneei
a cabeça, se eu não fizesse nada, o garoto ia levar toda a culpa
sozinho, não seria justo.
— Nossa. — Fiquei em pé e Lucca fez o mesmo. — Num tô
preparado pra assumir um trem tão importante, desse — esclareci e
Lucca foi tentar falar, fiz um sinal para que deixasse comigo.
— Filho meu tem que estar preparado para qualquer cargo
nessa empresa. Consegue domar um boi bravo e não consegue
administrar uma empresa? — vociferou, Isaac Bennett.
Respirei fundo e ponderei a resposta. Não tive tempo, pois
Lucca adiantou-se:
— Você é tão cego, que não consegue ver o quanto foi melhor
para a empresa? — inquiriu e, naquele momento, pensei que os olhos
do nosso pai fossem saltar para fora.
— Olha como fala comigo, moleque petulante!
— Não acabou de dizer que filho seu tem que estar preparado
para tudo? Não tenho medo de você — continuou Lucca e a tensão
foi estabelecida – como era de se esperar.
— Lucca, dexá qui eu dô conta — amenizei e pedi que meu
irmão se sentasse. Contra vontade, o caçula sentou-se. — Henry é a
pessoa certa pra esse trem andar nos trilhos — limitei-me a dizer,
apenas essas palavras, e me sentei.
Quando se trata de Isaac Bennett, não adianta querer vencer
em argumentos. Ele sempre vai encontrar uma maneira de ter razão.
Um silêncio amedrontador instaurou-se na sala. O patriarca
estreitou os olhos e travou o maxilar – olhando diretamente para mim
e o Lucca. Mantive-me firme. Depois de um tempo, no qual ninguém
teve coragem de falar, Isaac Bennett sentou-se.
— Henry colocou-me a par de tudo o que aconteceu na
empresa, na minha ausência. Vejo que meu filho mais velho pode,
perfeitamente, assumir meu posto, quando preciso. Já os demais...
A intenção dele era provocar e, nem todos, estavam dispostos
a aceitar a provocação, principalmente, Lucca.
— Que bom que chegou a mesma conclusão que nós —
desdenhou, com uma cara de deboche.
— Sinto vergonha em ver o quanto estão confortáveis com
essa situação — prosseguiu e dei uma cotovelada em Lucca para que
ele parasse, mas não adiantou.
— Quando é que vai entender que não queremos assumir essa
responsabilidade, senhor Isaac? Se fosse tão inteligente como se
julga, saberia que, além de preparo, precisa ter perfil para esse
cargo. E, acima de tudo, a pessoa tem que aspirar estar aí.
— Tem um nome para isso: frouxisse — rebateu nosso pai.
— Acha que estou preocupado com o que você acha?
— Deveria, afinal, a empresa é minha.
Lucca soltou uma gargalhada debochada.
— Por que não pensou nisso, antes de sair fazendo filhos?
— Chega, Lucca, já passou dos limites — vociferou Henry,
ficando em pé. — Papai... — iniciou e, não passou desapercebido, o
quanto todos nós reviramos os olhos e gememos com o tratamento
de Henry com o velho. — Sabe que sempre estive do seu lado, mas,
nesse caso, eu acho que eles têm razão.
Arregalamos os olhos, desacreditando na ousadia de Henry em
descordar do pai – pela primeira vez.
— Eu sei que você é o mais preparado, filho, mas o que vai
ser deles?
— Como pode ser tão tapado?! — murmurou, Lucca, dei outra
cotovelada nele.
— Uma empresa precisa que todos os departamentos estejam
alinhados, e, cada um em seu setor, vem demonstrando resultado —
seguiu Henry, nos surpreendendo mais ainda.
Comecei a ficar preocupado, qual seria o preço dessa defesa?
Isaac Bennett olhou fixamente ao Henry e pediu que ele voltasse a se
sentar.
— Tudo bem, vamos discutir sobre isso, Henry. Confio em
você, se está me dizendo, vou dar a eles o benefício da dúvida. Mas,
não é só sobre isso que quero falar, hoje.
Foi audível o alívio que sentimos. Lucca remexeu-se em seu
lugar e eu o olhei de esguelha, pedindo que desse uma trégua.
— Gostei da ideia — cochichou e eu franzi o cenho, sem
entender. — Vou convencer a Valentina, quando pode ser?
— Ah, o casório — respondi baixinho. Lucca anuiu. Dei de
ombro. — Cê qui sabe. — Lucca sorriu e eu fiquei feliz. Ao contrário
do nosso pai, buscamos uma união entre nós. Mesmo que a única
coisa que nos une seja o próprio que quer nos colocar uns contra os
outros.
Voltamos nossa atenção ao CEO da empresa, que falava e
falava sem parar, como se o mundo girasse ao seu redor. A
prepotência dele é assustadora, principalmente quando me lembrei de
que, seguramente, ia querer uma posição quanto a compra da
fazenda de Pouso Alegre. Eu não podia nem dar um prazo.
— ... a investigadorazinha foi colocada em seu lugar. Henry
garantiu que ela fique bem longe de nós.
— Do que ele está falando? — indaguei Lucca.
— Ele esconde algo, deve ser bem ruim, pra ter fugido.
Gabrielle é o nome da investigadora, tiraram o distintivo dela, mas eu
vou atrás. Quero saber o que esse hipócrita está escondendo da
gente.
— Lucca... num caça chifre na cabeça de cavalo — alertei
meu irmão e ele só deu de ombros.
— Pena que ela se aliou à Andressa, não sei como posso
chegar nela sem que a Valentina arranque minhas bolas — comentou
sorrindo e eu meneei a cabeça – sabendo que ele não desistiria.
— Tem algo que queiram compartilhar com a mesa? — inquiriu
Henry, que tinha a palavra – explicando como tinha conseguido tirar o
distintivo da investigadora.
Ergui a mão em rendição e Lucca sorriu em deboche.
Rebelando-se
∆∆∆
Laura

Passei a noite me virando na cama. Não fosse a condição


da minha mãe estar pior, a colocaria na berlinda. Ela não deixou
dúvidas de que nos esconde algo muito obscuro.
— Laura, posso ir com a camionete pra escola? — Mirela
perguntou, entrando afobada na cozinha.
Ergui os olhos e a encarei séria. Verifiquei as horas no relógio
de parede e soube que, mais uma vez, ela estava atrasada.
— Ficou maluca, Mirela? Você só tem quinze anos, garota.
— E daí, todo mundo sabe que eu dirijo.
— Todo mundo, menos a polícia. E você dirige por aqui, não na
cidade.
Mirela sentou-se com uma caneca de chocolate quente e,
enquanto tomava, ficou me olhando pela borda.
Minha irmã, depois que meu pai faleceu, passou por várias
fases e a que ela está entrando, certamente, é a pior: rebeldia
completa. Meu pai a mimava e, agora, acha que pode fazer o que
quiser, sem punição.
— Então não vou — decretou, desafiando-me com o olhar.
— Essa não é uma opção — respondi altiva.
— Você não manda em mim.
— Ah, não? Quem é que manda, então?
— A mamãe, oras — desdenhou e ficou em pé – levando sua
caneca para pia.
Elisa deu espaço para ela passar e ficou observando nossa
interação nada agradável.
Ela ameaçou sair da cozinha, fiquei em pé e a segurei. Trouxe
seu corpo para bem perto de mim.
— Escuta aqui, não pensa que vai dar uma de rebelde, agora,
não, garota! Estou dando minhas tripas pra manter esse lugar em pé,
deveria estar ajudando e não atrapalhando — disse entredentes,
olhando dentro de seus olhos.
O canto de seu lábio ergueu-se e senti meu sangue ferver.
Afundei os dedos em seu braço.
— Aiiiiiiiii... Me solta! — gritou e eu não soltei. — Mãe, essa
cavala está me machucando — continuou gritando.
— Mirela! Cala a boca, quer que a mamãe tenha um enfarto?
Ela puxou o braço da minha mão e ficou massageando o lugar.
— Se ela tiver um enfarto, vai ser por sua causa, não minha —
retrucou e eu ignorei.
— Vamos, vou te levar pra escola — ofereci e ela negou com a
cabeça. — Não me faça te arrastar até o carro, garota — ameacei e
ela bufou – pegando sua mochila. Saiu marchando na minha frente e
entrou na camionete – batendo a porta com força.
Abri a porta da camionete e parei. Ao longe, avistei Emílio
vindo correndo e gritando meu nome. Esperei que se aproximasse.
— Dona Laura — cumprimentou ofegante. Colocou as mãos
nos joelhos e ergueu o indicador – pedindo que eu aguardasse um
minuto. — Sumiram alguns bois — comunicou e eu gelei.
Temos terras o bastante para que eles fiquem dentro da nossa
propriedade. Sem contar que, tem pouquíssimos – sobrando mais
espaço ainda.
— Como assim, Emílio? Você conferiu certo?
Ele concordou e engoliu em seco.
— Percorri toda a fazenda a cavalo e nada.
— Quantos sumiram?
— Sete.
— O quê? Sete? Não brinca com isso, Emílio. Estou contando
com esse gado pra pagar parte das dívidas. Como deixou sete deles
fugirem? Verificou as cercas?
O rapaz foi ficando branco e Mirela desceu do carro, chegando
perto e intrometendo-se:
— Não precisa ser muito inteligente pra saber que duas
pessoas sozinhas não conseguem cuidar desse tanto de terra.
Olhei de viés.
— Se pode dirigir, pode trabalhar, acha que estou explorando
os meninos? Arregace as mangas e faça alguma coisa — vociferei e
bati a porta da camionete – indo em direção ao estábulo.
— Sua cavala! — gritou Mirela.
No tempo em que a fazenda estava em pleno vapor,
mantínhamos vários cavalos, no entanto, com tudo o que aconteceu,
consegui manter apenas dois. Sendo um de uso somente meu.
Emílio veio atrás de mim. Fui até a baia do Zeus. Dei esse
nome a ele no primeiro rodeio que ganhei a medalha de ouro no laço
comprido. Meu cavalo me entende. Formamos uma ótima dupla.
— O que vai fazer, dona Laura? — indagou Emílio, às minhas
costas – enquanto eu selava meu cavalo.
— Vou procurar esses bois, não posso me dar ao luxo de
perdê-los.
— Mas já fiz isso.
— Não duvido, mas quero ver com meus próprios olhos.
— Vou com a senhora, então — avisou e já foi para a outra
baia selar o outro cavalo.
Não esperei que ele terminasse, montei no lombo do cavalo e
saí em disparada. Assim que me aproximei do gado, confirmei que
Emílio tinha razão. O fato de termos poucos bois, conseguimos contar
rapidamente. Respirei fundo e fiquei olhando para os animais, sem
saber o que fazer.
— Dona Laura, tem uma parte da cerca caída, acho que
escaparam por lá — comunicou Emílio, emparelhando comigo.
O olhei fuzilando-o. Controlei minha vontade de esganar o
rapaz. Não podia descontar meus problemas nele. Principalmente, por
nunca ter saído do meu lado. Enchi o peito de ar e desviei o olhar –
elaborando a melhor frase:
— Por que não me avisou que tinha cerca quebrada, Emílio?
— Desculpa, dona Laura, só vi hoje, quando dei falta do gado.
Assenti – fechando os olhos. Como culpá-lo? Mirela tem razão
quanto ao tamanho das terras. É humanamente impossível que os
meninos consigam verificar tudo sozinhos.
— Tudo bem, Emílio, vamos dar um jeito. — Eu queria
acreditar que sim, mas estava cada vez mais difícil de continuar
sendo otimista.

“— Filha... — Meu pai pegou na minha mão e eu me


aproximei. — Eu confio em você.
— Para, pai — repreendi e controlei as lágrimas que
começaram a se empossar na base dos meus olhos.
— Ouça, filha...
— Não quero ouvir nada, pai. O senhor vai sair daqui em
pleno vigor, ouviu?
Um sorriso sem humor arrastou pelos seus lábios.
— Só me promete uma coisa? — Apertei um lábio no outro e
assenti. — Independente do que aconteça, não vai vender a
fazenda?
— Pai...
— Promete, filha. Eu fiz essa promessa ao meu pai e quero
que faça para mim. Está na nossa família a seis gerações.
Engoli em seco e confirmei.
— Quero ouvir, filha.
— Prometo, pai. Mas vamos conseguir reerguer juntos aquela
fazenda, somos bons no que fazemos, não somos? — Sorri e
apertei sua mão.
Ele sorriu, um sorriso que não chegou aos olhos.”

Passei as costas das mãos pelos olhos, enxugando as


lágrimas que não consegui segurar, funguei e limpei a garganta.
— Bom, vamos ver como está a cerca — disse e saí
galopando. Esperando que Emílio me seguisse.

Infelizmente, Emílio estava certo, o gado tinha escapado pela


cerca caída. E o pior é que, mesmo que tivéssemos visto antes, não
tinha a mínima ideia de onde conseguiria dinheiro para arrumá-la. O
trecho era muito grande. Eu e o Emílio erguemos os mourões que
estavam ali e esticamos o arame farpado, mas uma parte estava
muito quebrada, certamente por ter sido pisoteada pelo gado.
Levei Zeus até o estábulo, coloquei feno e enchi o balde de
água dele. Emílio chegou logo atrás e fez o mesmo com o outro
cavalo.
Olhei a pilha de feno e encolhi o abdômen, daria, no máximo,
para mais uns três dias. Eu tinha que fazer alguma coisa, caso
contrário, quebraria a promessa que fiz ao meu pai.
Peguei uma escova e comecei a escovar meu cavalo. Senti
quando Emílio se aproximou, o olhei e esperei que dissesse alguma
coisa.
— Por que não pede ajuda ao moço da fazenda ao lado?
— Nem pensar, o que ele quer não posso dar. — Desviei o
olhar e continuei a escovar o cavalo.
— Talvez, o gado tenha ido pra fazenda dele.
Parei com a escova e respirei fundo. Não tinha pensado nisso.
Provavelmente, era o que tinha acontecido, afinal, nossas terras são
vizinhas.
Larguei a escova e saí da baia.
— Você tem razão, Emílio.
Não esperei que ele dissesse mais nada. Estava determinada.
Contra minha vontade, teria que ir até a fazenda inimiga conferir se
meus bois estavam por lá. Minha sorte é que o gado deles é
marcado.
Caminhei em direção à camionete e, de longe, vi que não
estava lá. Apressei o passo, sentindo meus músculos endurecerem.
Rastreei o local, na esperança de Mirela só tê-la mudado de lugar.
— Você não fez isso, Mirela — resmunguei para mim mesma,
no momento em que vi que ela tinha ido à escola com o carro.
Cerrei os punhos ao lado do corpo e fechei os olhos –
meneando a cabeça. Mais um problema que eu teria que lidar, como
se não bastasse os que eu já tinha.
Esfreguei as mãos no rosto e voltei ao estábulo. Emílio
continuava lá, limpando o lugar.
— O que aconteceu, dona Laura?
— Mirela... — Mordi o lábio inferior e balancei a cabeça. —
Ela pegou o carro.
— Lascou! — Emílio ergueu a mão – se desculpando. Fiz um
gesto de que estava tudo bem. Comecei a selar o cavalo novamente
Não tive outra opção, a não ser pegar o Zeus. Teria que ir à
fazenda vizinha a cavalo e pedir a Deus que Mirela não fosse pega na
cidade, dirigindo. Ou, melhor, que ela voltasse inteira.
— É, pai, cada dia que passa, fica mais difícil de cumprir a
promessa que te fiz — murmurei, enquanto cavalgava em direção à
fazenda do impostor.
Um impostor que estava conseguindo mexer comigo. Por mais
que eu quisesse ficar imune a ele, bastava um sorriso de canto,
naquela boca carnuda, que meu corpo me traía.
Sadismo
∆∆∆
Gabrielle

M eus olhos abriram-se sozinhos, mesmo que só há três


horas eu tivesse conseguido dormir. Verifiquei as horas e tentei dormir
novamente, afinal, por que eu levantaria cedo? Respirei fundo e virei
para o outro lado, colocando o travesseiro na cabeça.
— ... ai meu Deus... filha, corre...
Dei um pulo da cama e corri para fora do quarto. O que eu
temia estava diante dos meus olhos.
— O que aconteceu, pai? — Agachei ao lado do corpo
desfalecido da minha mãe, nos braços do meu pai.
— Ela vem piorando, filha. Me ajude, temos que levá-la ao
hospital.
Pegamos minha mãe com cuidado, levamos ao carro e a
colocamos no banco de trás.
— Estou bem... — murmurou, abrindo os olhos com
dificuldade.
— Fica quietinha, mãe — pedi com a voz embargada. Alisei
seu rosto com as costas da mão e beijei sua testa. — Vou cuidar de
você, mãezinha — prometi e ajeitei sua cabeça no meu braço. —
Pode ir pai.
— Filha, vai pro hospital de pijama? — questionou meu pai.
Fechei os olhos e meneei a cabeça. Minha mãe ameaçou
levantar-se e eu a impedi.
— Para com isso, Gabrielle — repreendeu-me, recuperando a
força. — Não preciso ir pro hospital, vocês estão exagerando. Só tive
uma queda de pressão.
— Por que é tão teimosa, mãe? Vamos te levar e fim de papo.
Ela sentou-se com dificuldade e me encarou – estreitando os
olhos.
— Me recuso a sair com você desse jeito. Já se olhou no
espelho, Gabrielle Mantovani? Vão achar que a doente é você, não
eu.
Sorri sem vontade e peguei em sua mão – me arrependendo
de imediato. Ela virou minha palma e arregalou os olhos. Puxei
rapidamente a mão e cerrei os punhos.
— Vou entrar e me arrumar, para podermos ir — desconversei
e fui saindo do carro. Não estava preparada para falar sobre aquilo
com a minha mãe.
Minha mãe sempre foi minha melhor amiga, poucas vezes lhe
escondi as coisas, no entanto, depois que ela ficou doente, evito
aborrecê-la com os meus problemas.
§§§§
— ... o fato de ela ter sido dependente química piora muito a
situação — comunicou o médico e me encolhi no canto – afundando
as unhas nas palmas das mãos.
— Filho da puta, quando eu pôr minhas mãos em você, vou
acabar com cada pedacinho seu — praguejei, enquanto saía da sala
onde o médico examinava minha mãe.
Na hora, veio a história nojenta que minha mãe me contou...

“O calor do seu corpo fez com que eu segurasse a


respiração. Até mesmo seu cheiro embrulhava o meu estômago, o
mesmo cheiro que, um dia, me enfeitiçou. Rente a mim, esticou o
braço e ofereceu a mão para eu pegar. Engoli em seco e aceitei,
levantando-me. Ele puxou-me ao seu peito e afundou o rosto em
meus cabelos.
— Trouxe algo pra você — sussurrou ao meu ouvido e eu
estremeci.”

Aquele desgraçado a deixou em cativo e saiu impune. Acabou


com a saúde da minha mãe. Cada vez que me lembro do que ele foi
capaz de fazer, tenho vontade de torturá-lo, arrancar-lhe unha por
unha, até aprender a valorizar as mulheres. Com essa historinha de
Sugar Daddy, alicia meninas ingênuas, que não tem suporte da família
– deixando-as viciadas e presas a ele.

“Sentindo uma lágrima escorrer pelo canto do meu olho,


peguei a nota de um dólar de sua mão e inclinei o corpo. Aspirei a
carreira toda – com suas mãos apertando minha cintura.”

Ele aproveitou o fato de a minha mãe não ter o apoio dos avós
– que a criou, já que seus pais faleceram quando ainda era bebê. O
velho sabia que ela não tinha para onde ir. Pode até ser que esse
negócio funcione com outros empresários, mas com ele, a intenção é
outra. Sem contar que ele faz sexo com elas.

“Rapidamente, a adrenalina me dominou. A sensação de


poder, de confiança, me deixou eufórica. Olhei para ele e voltei a
enxergar o mesmo de quando o conheci. Virei-me em seu colo e o
ajudei a me despir. Tudo ficou mais fácil.”

Eu tenho que encontrar uma maneira de provar que ele destrói


a vida dessas meninas e como. A tortura psicológica é sádica. Mas
como, se ele sumiu? E, para piorar, toda testemunha que
conseguimos, ele dá um jeito de tirar do caminho. A influência que ele
tem é o bastante para deixá-lo absolvido.
Sentei na cadeira da sala de espera e afundei o rosto entre as
mãos. Sentia todos os nervos do meu corpo pularem. Meus olhos
ardiam com a falta de descanso. As mãos latejavam com as
escoriações abertas. Como podiam me pedir para parar? Não fui
capaz de continuar ouvindo o médico.
Senti uma mão em meu ombro e ergui os olhos para o meu
pai.
— Filha... — suspirou — ela vai ficar internada. Precisa de um
transplante urgente, o médico... — respirou fundo e sentou-se ao meu
lado — ele não deu muita esperança. O organismo dela está muito
deteriorado, talvez... — Engoliu em seco, fechou os olhos e inclinou a
cabeça para trás. — Talvez ela não resista a uma cirurgia complicada
dessas. Fora o fato de que precisamos encontrar um rim
compatível...
Fiquei em pé bruscamente.
— O meu, certamente, é. — Não esperei meu pai continuar. A
passos largos, voltei ao consultório do médico – determinada a salvar
minha mãe.
Se for preciso, vou ao inferno, mas te encontro, velho
asqueroso! Como se pressentisse, meu celular tocou e vi que era
Andressa. Uma esperança bem-vinda atingiu meu peito.
— Fala que tem uma notícia boa pra mim — disparei, antes
mesmo de cumprimentá-la.
— Ele voltou, Gabi!
Protetor
∆∆∆
Kaíque

Remexi-me dentro do jatinho – incomodado. Lidar com Isaac


Bennett não é uma tarefa fácil, entretanto, quando acrescentamos um
Henry arrogante, a coisa fica muito pior. Não sei dizer como consegui
mais tempo para lidar com a potranca. Não pude usar o fato de sua
mãe estar muito doente, pois só pioraria.
Afivelei o cinto de segurança, assim que o piloto anunciou que
começaria o processo de aterrisagem. Respirei fundo e me preparei
para colocar meu plano em prática. Mesmo contra tudo o que
acredito, terei que pressioná-la. Os Bennett não deixam brechas, se
eu vacilar, ela terá muito mais problemas.
Fora do jatinho, avistei minha RAM e meu sorriso foi
involuntário. Estava claro que eu passaria muito mais tempo do que
eu previ, na cidade. Pedi que trouxessem minha camionete e meu
manga-larga: Sansão.
Apressei meus passos, precisava chegar logo à fazenda, até
aquele momento, não tinha ideia do quanto sentia falta do meu cavalo.
— Chefe — cumprimentou Pedro – batendo na aba do chapéu.
— Noite — respondi – pegando a chave da camionete e indo
para o lado do motorista.
Não demorou muito para estarmos na estrada, em direção à
fazenda. Olhei para o céu e senti algo estranho, como se ali fosse
meu lugar. As cores alaranjadas do crepúsculo aquiesceram meu
coração. Chacoalhei a cabeça e desvencilhei os pensamentos. Não
podia me apegar ao lugar. Assim que eu encostasse Laura na
parede, certamente, me odiaria. Ficar ali só me torturaria.
— Como tão as coisas, por aqui? — questionei Pedro.
— Mais ou menos. — O olhei de esguelha – esperando que
continuasse. — Uns bois da dona Laura passaram pro nosso lado e
ela quis caçá confusão.
Franzi o cenho.
— Uai! Cês num devolveram?
— Sim, mas... — suspirou — ela encasquetou que quebramos
a cerca.
Balancei a cabeça e bufei.
— Alguém precisa domar aquela potranca — comentei
sorrindo. Vi quando Pedro enrugou a testa – sem entender o que eu
tinha dito. Não dei maiores explicações. — Vô pedi pra arrumá a
cerca — concluí.
Entrando na fazenda já vi um movimento de pessoas na
varanda da casa.
— Está acontecendo alguma coisa. — Pedro mal terminou a
frase e já estava abrindo a porta – aflito.
Eu podia entender o rapaz, afinal, tem um filho pequeno. Só
que, quando olhei direito, quem ficou aflito foi eu. Aprumei a visão,
para ter certeza do que via. Desci rapidamente da camionete,
sentindo meus nervos endureceram.
— Disgrama, o que a potranca faz aqui a essa hora? Ela tá...
chorando? Porra!
Praticamente corri em direção às pessoas. Laura não estaria
ali, naquele estado, por causa de uma cerca, seguramente, algo
muito grave tinha acontecido.
— Qui diabos tá acontecendo aqui? — Nem me dei ao
trabalho de cumprimentar.
Todos me olharam assustados, sem saber o que dizer. Laura
limpou o rosto com as costas da mão e ergueu o queixo – deixando
claro sua determinação. Ergui o canto dos lábios e cruzei os braços –
aproximando-me dela. Seus olhos arregalaram-se e o movimento de
engolir em seco não me passou desapercebido.
— Preciso da sua ajuda — falou baixinho.
Sorri e balancei a cabeça. Cheguei mais perto e ela deu um
passo atrás.
— Num entendi — provoquei.
Ela limpou a garganta e deu outro passo atrás.
— Não dificulta as coisas, cowboy de araque — atacou-me e
meu sorriso alargou-se.
— Aqui, si qué minha ajuda, vai tê que sê mais humilde. —
Descruzei os braços e dei outro passo em sua direção.
— Vamos pessoal. — Antônia foi desvencilhando as pessoas.
Aproveitei que estávamos sozinhos e dei mais alguns passos
em direção à potranca. Só parei quando suas pernas bateram na
mureta baixa da varanda.
Institivamente, levei minha mão até os fios de cabelo que
tampavam seus olhos e os coloquei atrás de sua orelha. Meu toque a
fez estremecer e eu senti-me vitorioso, afinal, não era só eu que
estava mexido.
Muito perto dela, inclinei o corpo até seu ouvido.
— Do que precisa? — sussurrei e seus ombros se encolheram.
Sorri e voltei a olhá-la. A profundeza verde de seus olhos provocou
algo assombroso dentro de mim. Afastei-me um pouco e tirei o
chapéu – passando as mãos pelos cabelos.
Olhos verdes envoltos em sobrancelhas franzidas me
escrutinaram um tempo – enviando sinais perigosos ao meio das
minhas pernas.
— Minha irmã — iniciou e engoliu em seco — pegou meu
carro, saiu cedo e não voltou até agora — esclareceu e eu assenti.
— Já procurou?
— Claro que sim — rebateu agressiva —, acha que eu viria
aqui, antes de tentar de tudo?
Sorri novamente – balançando a cabeça. A potranca tem o
sangue quente – do jeito que eu gosto.
— Foi na delegacia?
Ela negou e espremeu um lábio no outro.
— Estou com medo, vão me culpar, ela só tem quinze anos.
Pensei que... — Respirou fundo. — Talvez, se você fosse... com sua
influência...
Ergui as sobrancelhas e a olhei com cara de deboche.
— Então, vô lá e molho a mão do delegado?
— Não foi isso que eu disse.
— Não? Explique.
Ela baixou o olhar e, com a ponta de um dos pés, esfregou o
piso.
— Se falar com ele, vai soltar minha irmã, não precisa dar
dinheiro, tenho certeza. O delegado não vai querer se meter com um
Bennett.
Me aproximei novamente e peguei em seu queixo – erguendo-
o.
— Então sabe qui ela tá lá. — Laura prendeu o lábio inferior
nos dentes e confirmou. — Certo, vamo lá!
Antes que a moça se desse conta do quanto tinha aberto a
guarda, peguei em sua mão e a levei comigo até a camionete. Abri a
porta do passageiro e a ajudei entrar.
Andamos um pedaço da estrada em silêncio. Havia uma tensão
opressora dentro do carro. O peito de Laura subia e descia com
intensidade. Não podia olhar para ela, seus lábios entreabertos
estavam me desconcentrando da estrada.
Meu corpo não estava muito diferente. Não queria dar atenção
ao que a potranca provocava em mim, mas estava fugindo do meu
controle. Minha missão era ficar imune a ela e usar a sua fraqueza ao
meu favor. Só que eu estava sentindo-me impotente.
— Como tá sua mãe? — perguntei, tentando amenizar o clima.
Laura deu de ombros e continuou olhando pela janela.
— Na mesma.
Silêncio novamente. Meu tempo estava acabando. Estava ali,
diante do meu problema e não tinha a menor ideia de como solucioná-
lo. Sabia que, dentro do prazo de Isaac Bennett, teria que resolver.
Mas como?
— Laura... — iniciei e ela me olhou. — Pensou na minha
proposta?
— Quando vai entender que não vou vender?
— Seus bois vão morrê tudo, nem vacina cê tá dando neles.
— Não é da sua conta.
— Deixá de sê teimosa, potranca! Aceita logo, antes qui o
valor caia mais.
— Vou conseguir uma grana boa no rodeio que vai ter na
ExpoAgro — comunicou e desviou o olhar.
Ri completamente sem humor. Do que ela estava falando?
— Que moda cê tá inventando? Sabe qui é perigoso, num é
mesmo?
— Diferente de você, não sou uma patricinha me passando por
cowgirl.
Abri o maior sorriso que pude e parei o carro no acostamento.
Virei o corpo para ela – colocando uma perna embaixo de mim.
— O que pensa que está fazendo?
— Cê num proseia comigo, vô aproveitá que agora qué falá.
A potranca cruzou os braços e entortou os lábios – deixando-
me mais do que duro. Um gemido escapou do meu peito –
involuntariamente. Ajeitei a frente do meu jeans apertado e me mexi
no lugar. Os olhos dela foram diretamente para onde me incomodava.
Sorri, quando seu rosto ficou como um tomate maduro.
Laura voltou seus olhos aos meus e ergui apenas uma
sobrancelha.
— Num precisa sentir vergonha — diverti-me.
— Você é mesmo muito idiota — atacou-me e desviou o olhar.
Aproximei-me e peguei em seu rosto – virando-o de volta para
mim.
— Aqui, potranca, cê precisa relaxá.
— Me solta — sussurrou, com a respiração alterada.
Alisei seu rosto com as costas da mão, admirando a maciez.
— Cê é uma potranca de raça — comentei baixinho.
— Essa é sua maneira de me elogiar?
Dei de ombros.
— Sabe quanto vale uma potranca de raça?
Fui empurrado com força e sorri.
— Vai me levar à delegacia, ou vamos ficar parados no meio
da estrada?
Estreitei os olhos e fiquei encarando-a por alguns instantes.
— Que história é essa de rodeio? — inquiri, realmente
preocupado. Não podia deixar que se matasse para pagar as dívidas.
— Você me subestima, cowboy de araque. Fui criada no meio
do gado e dos cavalos. Tenho prêmios de laço comprido. Eu me
garanto.
A informação foi minha tábua de salvação. A oportunidade de
resolver a questão da compra da fazenda. Jogar, isso que eu faria,
afinal, nós, Bennett, somos os melhores.
— Certo, então vô te desafiá.
— Como assim?
— Cê qué jogar? — sugeri e ela só deu de ombros. — Vamo
competi no laço comprido. Se você ganhá de mim fica com a
fazenda. Agora... se eu...
— Feito — concordou de imediato – estendendo a mão para
oficializar o nosso acordo. — Só tem mais uma coisa — prosseguiu,
puxando a mão, antes que eu pegasse. Assenti e fiz um gesto que
terminasse. — Se eu ganhar, além de me livrar de você, quero que
convença o gerente do banco a renegociar as dívidas.
Empurrei as bochechas com a língua – enquanto ponderava a
proposta.
— Combinado. — Estiquei novamente a mão e ela pegou
confiante. — Cê num sabe onde tá se metendo, potranca — avisei e
sorri – sem soltar sua mão.
— Digo o mesmo, cowboy de araque.
§§§§
Entramos na delegacia e, assim que eu disse meu nome, o
delegado nos atendeu.
Sentamos em frente sua mesa, o homem não sabia o que
fazer para me agradar – aquilo me irritou demais. Claro que ser um
Bennett têm muitas vantagens, mas é difícil distinguir as verdadeiras
intenções das pessoas.
— Senhor Bennett...
— Kaíque — corrigi-o – ficando sério.
Ele limpou a garganta e riu sem graça.
— Não sabia que estavam bem. — Fez um gesto entre mim e
a Laura.
— Uai! Isso é da sua conta?
— Não... — Limpou a garganta novamente. — Desculpa, só
que... sabe... as pessoas falam. — Não respondi, esperei que ele
entendesse que estava ali para outra finalidade. — Imagino que
vieram buscar a garota.
— Sabe qui num podia deter uma garota de quinze anos, num
é mesmo? — acusei-o, sem titubear. Mesmo sabendo que a garota
estava errada, tinha que ter uma vantagem sobre ele.
— Claro... claro..., mas é que... nossa... não foi minha intenção
prendê-la, só queria... protegê-la — justificou-se rapidamente.
— Numa cela? — rebateu Laura.
— Não... claro que não... ela não está na cela. Ficou em uma
sala.
— Nó, que grande diferença — desdenhou Laura – começando
a se alterar.
— Aqui, por que num ligou pra Laura? — pressionei-o.
— Eu ia ligar... — gaguejou — é que... na correria...
— Besteira — rateou Laura – bufando. — Só está falando
comigo porque o Kaíque está aqui.
O delegado ficou roxo – sem saber onde colocar as mãos.
Levantou-se, de repente, e nos pediu licença.
Laura balançava as pernas e espremia as mãos no colo.
Estiquei o braço e coloquei a mão em sua coxa – me arrependendo
de cara. O calor de sua pele, mesmo coberta com o jeans, queimou
minha mão. Engoli em seco e a olhei – umedecendo os lábios. A sua
reação foi muito parecida com a minha. Puxei uma boa quantidade de
ar pelas narinas e os soltei pela boca. Laura abriu a boca para falar
algo e foi impedida pela entrada de sua irmã – acompanhada do
delegado.
Seu salto foi brusco.
— Mirela... meu Deus, quer me matar do coração? — Abraçou
a irmã e beijou sua testa.
A garota começou a chorar e afundou o rosto no peito da
Laura.
— Não está brava comigo? — questionou entre lágrimas.
— Claro que estou, mas primeiro tenho que saber se você está
bem.
Eu e o delegado ficamos observando a interação das duas –
mudos. Tive uma breve demonstração do quanto Laura seria uma boa
mãe – diferente da minha que me vê como uma moeda de troca.
— Vamos ter que deixar o carro preso — comunicou o
delegado e Laura me olhou desesperada.
— Qual é a multa? — questionei e o homem franziu o cenho.
— O carro está com o documento todo atrasado — advertiu e
Laura baixou o olhar – envergonhada.
— Certo, amanhã eu resolvo isso e venho pegá o carro. Agora,
vamo embora. — Fui até a porta e fiz um gesto para as duas
passarem. — Inté, delegado — despedi-me – batendo na aba do
chapéu.
Meu lado protetor estava falando mais alto do que o
negociador. Precisava tomar à rédea da situação o mais breve
possível, antes que fosse tarde.
Luz no Final do Túnel
∆∆∆
Laura

— Joaquim, preciso de você pra eu treinar — comuniquei


meu funcionário. Ele parou o que fazia e me olhou curioso. — Me
inscrevi na modalidade de laço comprido — esclareci e ele
compreendeu que era sobre a feira famosa da cidade.
— Já faz tempo, dona Laura, tem certeza?
— Não confia em mim?
— Só estou preocupado.
— Não precisa. Ajeita um bezerro e leva pro local onde
treinamos. Vou selar o Zeus e já estou indo. — Receoso, Joaquim
saiu para fazer o que eu pedia.
O tempo não seria problema, é como andar de bicicleta. Só
um pouco de treino e estaria pronta para garantir a promessa que fiz
ao meu pai. Daria o sangue, porque seria minha última chance.
Se o Bennett acha que tem vantagens sobre mim, não imagina
o quanto está enganado.
Galopei, com meu fiel companheiro, até o local preparado para
treinar e desci para ajudar Joaquim a organizar melhor. Afinal,
ficamos muito tempo sem usar aquele espaço. Não podia deixar meu
ajudante sozinho com a tarefa.
Em pouco tempo, já estava de volta ao Zeus com laço em
punho. Joaquim, como nos velhos tempos, me ajudaria a treinar. Já
tínhamos nosso esquema.
Depois de umas três tentativas sem sucesso, desci do cavalo
e passei as costas da mão pela testa suada. A franja estava grudada
na pele.
— Não sei se é uma boa ideia — insistiu Joaquim.
— É o primeiro dia — respondi ofegante.
Joaquim assentiu – com uma expressão preocupada.
— Ainda precisa de mim?
— Não, por hoje é só. Vou devagar.
Não queria que a expressão do meu funcionário me
assustasse, mas a verdade é que sim, não seria tão fácil como eu
tinha imaginado. Mas, qual opção eu tinha?
Montei no meu cavalo e voltei para casa. Ao me aproximar,
avistei minha camionete e... Respirei fundo.
— Logo pela manhã, não — resmunguei para mim e puxei um
pouco a rédea de Zeus, para que ele diminuísse a marcha.
Mesmo um pouco distante, vi Kaíque conversando com a
Mirela e ela se desmanchando para ele. Balancei a cabeça e desci do
cavalo. Levei Zeus ao estábulo e o coloquei em sua baia.
— Ei, amigão, está com sede, né!? — Enchi o balde de água e
verifiquei o feno do animal.
Sem perceber, estava tomando mais tempo que o necessário
dentro do estábulo. Não queria admitir, mas sabia o porquê. Quem
sabe ele fosse embora, antes que eu tivesse que encará-lo?
— Nossa, acho que precisamos de mais um ajudante por aqui
— verbalizei o que passava pela minha cabeça – observando o
quanto estava sujo e desorganizado, o lugar.
Peguei uma pá e a carriola e comecei a retirar os estercos. Foi
a melhor decisão que tomei, naquele momento. Certamente, ficaria
por horas ali dentro. Eu mal terminei de pensar, meu corpo
estremeceu...
— Precisa de ajuda, potranca?
A voz grave dele era tudo o que eu menos precisava, muito
menos, sua ajuda. Cada vez mais, punia mentalmente meu corpo
pelas reações indesejadas, todas as vezes que ele se aproximava.
Continuei o que fazia, sem o olhar. Jamais eu demonstraria o
quanto ele estava mexendo comigo. Era exatamente o que ele
procurava – minha fraqueza. Uma brecha e eu perderia tudo, pior,
minha família perderia tudo.
— Eu dou conta — respondi sem o olhar.
Kaíque ignorou minha recusa e pegou outra pá.
— Cê tem um animal bem jeitado — comentou, enquanto fazia
carinho no Zeus. O danado do cavalo não ficou imune aos encantos
do cowboy de araque. — Como chama essa belezura?
— Zeus — limitei-me a dizer. Em momento algum, ergui meu
rosto. Temia ver aquele rosto bonito. O cheiro já era o suficiente para
me desestabilizar.
— Ô, garoto, num acha qui sua dona me deve um
gradecimento? — perguntou ao cavalo, com aquele corpo enorme
muito perto de mim.
Eu estava inclinada e só via seus pés. Aos poucos, fui me
erguendo e seguindo o caminho de suas pernas grossas. Por que ele
tinha que usar aqueles jeans tão apertados?
Puxei o ar dos pulmões um pouco mais forte do que eu queria,
ao conferir, mais uma vez, o quanto ele tinha tudo muito grande... tudo
mesmo.
Assim que cheguei no seu rosto, tive vontade de bater nele, ou
melhor, em mim mesma. O sorriso de satisfação estava estampado
nos lábios desenhados. Soltei o ar, estreitei os olhos e fiz uma careta.
— Não seja por isso, veio aqui para que eu te agradecesse,
obrigada. — Encostei a pá na parede e coloquei uma das mãos na
cintura – o encarando.
— Às ordens, potranca. — Bateu na aba do chapéu, ainda
com aquele sorriso de canto. — Dexá eu ti ajudá — avisou e não
esperou minha confirmação.
Eu tenho que admitir: o cowboy de araque é um touro. Seus
músculos fortes roubaram minha atenção. Me vi, a cada segundo, o
admirando. Quase não produzi. Até porque, sentia as pernas
amolecidas. Não sabia se era do esforço que tinha feito naquela
manhã, ou a presença dele. Provavelmente, as duas coisas.
Limpei o suor da testa, desgrudando os cabelos, e me
encostei no batente da porta larga – observando Kaíque empurrar a
última viagem da carriola, até o lugar onde colocamos o esterco –
para ser usado como adubo na horta.
Ele parecia tão melhor do que eu, mesmo tendo praticamente
assumido todo o trabalho pesado.
Fui criada para ser forte e ter total controle da minha vida, sem
terceirizar nada a ninguém, principalmente aos homens. Meu pai
sempre dizia:
“Filha, não seja tola em achar que os homens podem mandar
em você. Seja forte e mantenha o controle de sua vida.”

Ele nunca me poupou do trabalho pesado da fazenda. Tinha


certeza de que eu assumiria o controle, precisava que eu estivesse
preparada. Talvez, Umberto tenha razão, quando diz que meu pai me
tornou uma pessoa fria. Segundo ele, eu tenho o dom de afastar os
homens de mim. Sou arredia como um cavalo sem domar. Enfim, não
tem como consertar o que aconteceu entre a gente.
— Kaíque, você pode me levar para a cidade? — Mirela
perguntou, aproximando-se.
— Como é que é? — questionei de cara.
A garota deu de ombros.
Enquanto Kaíque entrou para guardar a carriola, fiquei
encarando minha irmã – com uma carranca.
— O que foi, Laura? Qual o problema?
— Qual o problema? Você nem foi para a escola hoje, garota,
tá pensando que vai ficar por isso mesmo o que fez ontem? Pode ir
para o seu quarto, vai ficar de castigo por uma semana. Só sai de lá
para ir à escola — vociferei e apontei à casa.
— Não vou mesmo, já disse que não manda em mim —
rebateu altiva.
Respirei fundo e ponderei, para não pegar no braço da garota
e carregá-la a força. Não faria um espetáculo ao Kaíque. Pedir para
ele tirar Mirela da delegacia já fora o ápice.
— Entre, Mirela, por favor — pedi, entredentes.
Ela ergueu as sobrancelhas e negou. Percebendo que eu não
faria nada com o Kaíque por perto, voltou-lhe a atenção assim que
ele ficou ao meu lado.
— Então, me dá uma carona? — insistiu e ele fez algo que eu
não esperava.
— Capaz! Sua irmã tem razão, garota. Num foi legal o que fez.
O olhei com cara de espanto. Mirela soltou os ombros e saiu
resmungando.
— Eu te odeio — gritou, de costas para nós.
Acompanhei o seu trajeto até que entrasse em casa – de
braços cruzados, evitando olhar para o Kaíque – que permanecia ao
meu lado. Depois de alguns intermináveis segundos, ele quebrou o
silêncio.
— Tá tudo certo com o delegado — comunicou e eu assenti,
sem me virar.
Silêncio novamente. Incrível como as palavras somem quando
estou ao lado dele.
— Obrigada — pronunciei, por fim. Mesmo que já tivesse
agradecido, não sabia mais o que dizer, só queria que aquele
momento acabasse logo. Meu corpo era uma massa rígida.
— Bom, vô indo, então. — Assenti novamente, puxando o ar
dos pulmões com dificuldade. Ele foi saindo e parou. Virou para mim
e me encarou – sério. — Vai mesmo competir comigo?
— Claro que sim — esquivei-me de imediato.
— Sabe qui é perigoso, num é mesmo?
— Se preocupa em me vencer — desafiei-o e ele percorreu as
partes internas das bochechas com a língua – me escrutinando. Não
consegui tirar os olhos de sua boca. Imaginar o movimento de sua
língua dentro da minha boca, fez meu corpo dar uma estremecida.
Fiz um rápido movimento de fechar os olhos e espremer um
lábio no outro – tentando não demonstrar minha fragilidade.
— Como quiser, potranca — concluiu e bateu na aba do
chapéu em despedida.
Só quando ele já tinha pego uma boa distância, que consegui
soltar o ar que segurava. Meus ombros desabaram.
— Dona Laura — chamou-me Emílio e eu virei rapidamente na
direção de sua voz. Agradecendo-o, mentalmente, por me tirar do
transe – transe chamado Kaíque.
Logo estava envolvida com os afazeres da fazenda, buscando
soluções paliativas, já que para tudo faltava o essencial: dinheiro. No
entanto, estava com minha esperança renovada, o dinheiro do rodeio
me daria um grande fôlego. E, de praxe, Kaíque faria o gerente do
banco renegociar as dívidas.
Sorri, pensando que tinha encontrado a luz no final do túnel,
mesmo que ainda estivesse bem distante. Eu sabia o que fazer.
— ...não pode passar dessa semana, as vacinas, dona Laura.
— Oi?
Emílio franziu o cenho e me olhou desconfiado. Meus lábios
ainda tinham uma sombra de sorriso. Bati em seu ombro e deixei o
sorriso dominar de vez meu rosto.
— Não se preocupe, Emílio — confortei-o e saí – deixando-o
confuso.
Determinada
∆∆∆
Gabrielle

— Precisamos fazer uma bateria de exames para saber


como está sua saúde, e o principal: você precisa ser compatível.
Fazia quase uma hora que eu estava sentada defronte ao
médico responsável pela minha mãe. Ele me explicava cada detalhe
de como proceder para que eu pudesse ser a doadora do rim. Ao
mesmo tempo em que eu prestava atenção nele, verificava – a cada
instante – as horas, em meu relógio de pulso. Estava determinada a ir
atrás do velho asqueroso.
— Entendi, doutor. Quando podemos começar? — inquiri –
aflita. Apertei os punhos – cravando as unhas nas palmas.
O médico me analisou por uns instantes, antes de responder.
Ficou em pé e deu a volta em sua mesa – ficando de pé ao meu lado.
Seguiu a agitação frenética das minhas pernas e franziu o nariz.
Sem que eu percebesse, estava muito próximo. Antes que eu
pudesse impedir, pegou em minhas mãos e as abriu – arregalando os
olhos ao ver as escoriações.
— Você faz acompanhamento psicológico? — indagou, sem
titubear. Confirmei e ele estreitou os olhos – duvidando. — Quanto
tempo que não aparece por lá? — Dei de ombros. Ele meneou a
cabeça. — Venha aqui, vamos cuidar disso.
O segui calada. Queria poder gritar e sair correndo dali, mas,
pensar que minha mãe estava no mesmo corredor, correndo risco de
morte, fez com que eu não o questionasse. Eu sabia que teria que
fazer sacrifícios – por ela, qualquer coisa.
Depois de um longo tempo – tive a impressão de que o médico
fazia de propósito –, minhas mãos estavam com curativos horrorosos.
Durante todo o tempo, o doutor conversava comigo, tentando
compreender o real motivo de toda aquela ansiedade. Não dei
indícios algum de que fosse outra coisa, a não ser o fato da condição
da minha mãe. Embora, não fosse de tudo mentira, afinal, a condição
dela era só consequência do que o asqueroso lhe tinha feito.
— Posso ir? — questionei com um sorriso forçado –
escondendo a agitação que havia dentro de mim. O médico anuiu.
— Amanhã cedo, começaremos os exames. Preciso que venha
em jejum — avisou e eu balancei a cabeça em concordância.
A passos largos, fui até o quarto onde estava minha mãe. Bati
de leve na porta e entrei devagar. Meu pai cochilava na cadeira ao
lado da maca – segurando uma das mãos dela. O corpo, que um dia
foi tão desejado pelos homens, mais parecia um esqueleto em cima
da cama.
Os cabelos, que um dia fora de um loiro brilhante, estavam
ralos – espalhados pelos travesseiros – sendo a maioria branco.
Mesmo que minha mãe ainda fosse relativamente jovem, sua
aparência o deixava uns dez anos mais velha.
Engoli em seco e me aproximei. Segurei o lábio inferior nos
dentes e alcancei sua mão livre – apertando-a de leve. Ele virou
lentamente o rosto em minha direção e sorriu de canto.
— Minha filha — sussurrou — estou bem.
Neguei veemente – não conseguindo mais segurar o choro.
Beijei sua testa – deixando seu rosto molhado com minhas lágrimas.
— Você vai ficar bem, eu prometo — garanti – com os lábios
colados à sua pele.
Ela pegou em minha mão e ficou olhando o curativo –
pensativa.
— Filha...
— Estou bem, mãezinha. — Puxei a mão e fiquei ereta. —
Preciso dar uma saída, vai ficar bem?
— Seu pai está comigo.
— Eu sei, só que... — suspirei — tudo bem. — Beijei
novamente sua testa e me virei para sair. Não consegui continuar,
pois sua mão segurou meu antebraço.
— Por favor... — suplicou, sabendo o que eu tinha em mente.
Porque ela tem esse poder.
— Não vou desistir — afirmei e seus olhos encheram-se de
lágrimas.
— Por mim...
— É por você mesmo...
§§§§
Estacionei o carro em uma rua paralela e “acampei” em frente
ao prédio espelhado, na Paulista. Aproveitei que ficaria ali um bom
tempo e decidi comer alguma coisa, já era quase noite e eu não tinha
comido nada.
Sentei em uma das mesas de um Food Truck gracioso, bem
em frente ao meu alvo.
— Seja bem-vinda, quer que eu sugira, ou prefere o cardápio?
— perguntou uma linda moça – com um sorriso encantador.
Provavelmente, a dona, pela postura.
— Oi... er... — Fiquei um pouco perdida, não esperava aquela
recepção tão calorosa – em meio ao caos que é a capital paulista.
— Eu sou a Ágatha, nunca te vi por aqui, está passeando? —
continuou e apontou à cadeira ao meu lado.
Fiz um gesto de que podia sentar-se.
Queria achar aquilo estranho e, vamos combinar – era mesmo
–, mas ela tinha algo acolhedor, como se quisesse nos colocar no
colo e resolver nossos problemas. Será que era assim com todo
mundo?
Estendi a mão para cumprimentá-la e logo a puxei de volta –
constrangida com o curativo. Até pensei em tirá-lo, porém, como
explicaria ao médico no dia seguinte?
— Gabrielle — respondi e baixei os olhos. Ela me lia com
facilidade – isso me incomodava.
De repente, Ágatha ficou em pé.
— Já sei — disse sorrindo. — Tenho um combo aqui que é a
sua cara — comentou e entrou em sua graciosa Kombi.
As cadeiras estavam todas ocupadas, umas três jovens
serviam os clientes e Ágatha distribuía simpatia a todos. Fiquei
observando sua interação e senti-me mais aliviada – sua
complacência era comum.
Voltei minha atenção à porta do edifício. Sabia que o velho não
sairia andando por ali, no entanto, a saída da garagem era ao lado.
Eu conhecia seu carro e seu motorista – eu conheço tudo sobre ele.
— Prontinho — avisou Ágatha e colocou um prato apetitoso em
minha frente. — É tudo natural e o suco é especialidade da casa, não
vou contar o que tem nele, é segredo — confessou e deu piscadela.
Sorri e aceitei. Fiquei aliviada por algum cliente a chamar, não
queria correr o risco de ela desviar minha atenção do meu alvo. Não
sairia dali sem enfrentar o causador de todas as dores da minha mãe.
Confissão
∆∆∆
Kaíque

— Eita, que eu gostei por demais dessa notícia —


comemorei, assim que Lucca me contou sobre a decisão. — Eu sabia
que a Valentina num era entojada.
— Você tem razão, irmão. Achei que seria difícil convencê-la,
mas ela pulou de felicidade quando sugeri — contou Lucca, radiante.
— Então, quando vai sê?
— Duas semanas, é o que precisamos, consegue preparar as
coisas por aí?
— Dexá comigo, rapaz. — Lucca começou a se despedir e eu
o impedi: — Aqui, Henry e o senhor Isaac tão sabendo?
— Não se preocupe com isso, Kaíque. Com eles eu sei lidar.
Se não quiserem ir, será um favor.
Assenti, mesmo que Lucca não pudesse ver, uma tristeza
bateu em mim, assim que encerramos a ligação.
Desde pequeno, fui criado no meio dos peões da fazenda,
porque minha mãe nunca se preocupou em fazer o seu papel. Não
tenho outra família, a não ser o pessoal da fazenda de BH, porque
ela só faz curtir a vida, viajando pelo mundo e namorando cada dia um
cara diferente. Só me teve para garantir sua liberdade financeira.
Pode parecer bobeira, mas um dos meus maiores sonhos é ter
uma grande família. Daquelas que se reúnem aos finais de semana,
enchendo a casa de vida. Quero casar-me e ter muitos filhos.
Quando Lucca ligou e aceitou meu convite de casar-se na
fazenda de Pouso Alegre, meu coração pulou de felicidade, afinal,
tenho muitos irmãos e nunca tivemos intimidade. Minha esperança é
que possamos estar todos reunidos, quebrando esse ciclo de
disputas que o nosso pai nos colocou a vida toda.
Entrei na cozinha da casa e dei de cara com a governanta mal-
humorada, bonita, mas bem emburrada.
— Dia — cumprimentei – tirando o chapéu.
A moça meneou a cabeça e virou-se. Dona Antônia deu de
ombros – desculpando-se:
— Ela está com problemas, filho — justificou-se pela moça
— Num esquenta, tô costumado — amenizei. — Tem um
cafezinho quentinho?
— É claro, acabei de fazer. — Prontamente, a senhora me
serviu.
Sentei-me em uma das cadeiras da cozinha.
— Vô levá minhas coisas pra um dos chalés — comuniquei a
senhora que franziu o cenho imediatamente.
— É por causa da Penha? Posso conversar com ela, patrão.
— Num carece. Gosto de ficá sozinho — esclareci, embora a
cara emburrada da garota estivesse realmente me incomodando. —
Meu irmão vai casá lá, vô aproveitá pra organizá tudo.
— Não se preocupe, vou pedir pra um dos meninos levar as
coisas do senhor pro melhor chalé. Todos os dias, Penha vai cuidar
pra que esteja tudo em ordem. Qual hora o senhor quer que a gente
leva as refeições?
Sorri, balançando a cabeça. A senhora estava acostumada a
seguir ordens. Ainda não me conhecia, para saber que eu não queria
nada daquilo. O pessoal da fazenda é minha família, nada de
cerimônias.
— Pode deixá qui venho comer aqui — comuniquei e fiquei em
pé – levando a xícara até a pia. Me aproximei da senhora e beijei sua
testa – surpreendendo-a. — Cês são como da família, num carece
toda essa preocupação em me agradá.
O sorriso genuíno que recebi de volta aquiesceu meu coração.
A senhora assentiu e foi minha vez de ser surpreendido – puxou-me
para um abraço apertado.
— Sinta-se em casa, filho — confortou-me e alisou meu rosto.

Desde o dia em que Sansão chegou, não tive tempo de


conversar com o meu amigo. Provavelmente, estava estressado, por
ter viajado e estar em um local diferente. Principalmente, por seus
colegas de baias não o conhecerem. Em geral, eles demoram um
tempo para fazerem amizade.
Entrei no estábulo e já consegui ouvir sua agitação. Pedro
conversava com ele, mas pelo que se via de longe, não estava
funcionando.
— Dia, Pedro — cumprimentei e fui entrando na baia. — Ô,
meu companheiro, perdão — Vamo dá uma volta — O cavalo enfiava
a cabeça nas minhas mãos e soltava gemidos de satisfação.
— Patrão, uma moça veio procurar o senhor ontem —
comunicou Pedro, enquanto eu selava o Sansão.
— Ela disse o qui queria?
— Disse que é do seu interesse.
Franzi o cenho e parei o que fazia – encarando meu ajudante.
— Só isso?
— Ela vai voltar hoje.
Assenti e montei no cavalo. Precisava dar atenção ao meu
companheiro, depois pensaria a respeito.

Em pouco tempo, estava galopando com o animal. O prazer do


meu cavalo é dar o máximo dele. Diminuí o ritmo, ao me aproximar do
lago que divide as minhas terras das da potranca.
— É, amigo, tenho algumas coisas pra ti contá — iniciei a
habitual conversa com o meu cavalo – meu confidente. — Tá vendo
aquele lugar ali? — Apontei para o lado da fazenda que minha família
tanto almeja. — Tem uma potranca muito gostosa, cara — confessei
e sorri. O cavalo reagiu à minha fala. Alisei seu pescoço. — Num é
procê, não. É uma potranca humana.
Respirei fundo e fiquei observando os poucos animais
circulando por lá.
— Acho qui tô me enrabichando, meu amigo — suspirei —
num posso, sabe. Tenho qui expulsá a moça di lá e num tô sabendo
lidá com isso, não.
Esfreguei as mãos no rosto e senti o peito apertado. O fato é
que eu já estava envolvido, mesmo que não quisesse admitir. Teria
que fazer uma escolha, assumir e lutar por ela, ou seguir com o plano
da família. O problema é que, nem Henry e, muito menos, o senhor
Isaac, aceitaria qualquer coisa, a não ser a compra da fazenda.
— Tô fodido, Sansão!
O rodeio é a opção que eu encontrei para vencê-la e deixá-la
sem saída. Afinal, foi ela quem me desafiou. Tudo bem que fui eu
quem propus o jogo, porque é o que sei fazer melhor: jogar. No
entanto, esperava que ela recuasse.
Me preparava para voltar à fazenda, um carro parou ao meu
lado e abriu o vidro.
— Olá, você é o Bennett? — Uma moça bonita, mas com uma
aparência abatida, perguntou.
— Quem qué saber? — esquivei-me, pois senti uma coisa
estranha – foi instintivo.
— Acho que vai querer ouvir o que tenho a dizer.
Estreitei os olhos e fiquei a escrutinando. Como não esbocei
nenhuma reação ao que me disse, a moça decidiu sair do carro. Se
seu rosto tinha aspecto de doente, seu corpo não deixava dúvidas.
Desci do cavalo e o amarrei em um tronco perto do lago,
assim ele poderia se refrescar, enquanto eu conversava com a moça.
— Coloca seu carro mais perto, vamo sentá e conversá —
convidei-a, apontando os chalés que estavam próximos.

Acomodados, em uma das mesas de alvenaria perto do deck,


tirei o chapéu e sinalizei para que a moça iniciasse.
Ela pigarreou e tomou um gole de água, de uma garrafa que
carregava desde que saiu do carro.
— Me chamo Ana.
— Kaíque. — Estendi a mão e nos cumprimentamos
corretamente.
A moça baixou um pouco o olhar, antes de continuar – estava
nervosa.
— Sou irmã da Laura — cuspiu de uma vez.
Recuei com o tronco e franzi o cenho. Laura só tinha uma irmã:
Mirela. Essa era mais velha que a Laura – sua aparência a
denunciava.
— Ê, lasquera. — Cocei a nuca e ri sem humor.
— Nosso pai — suspirou — sempre soube. Nunca me deixou
desamparada. Ele... — Parou e engoliu em seco. Fechou os olhos e
espremeu um lábio no outro. Após uns segundos, claramente,
buscando controle, prosseguiu: — Precisei de uma cirurgia muito cara
e ele... — Puxou uma longa lufada de ar e parou. Estava com
dificuldade de respirar.
— Cê tá bem?
A moça ergueu a mão pedindo um tempo e meneou a cabeça.
Fiquei analisando seus traços, enquanto se recuperava. Ela realmente
era irmã de Laura, os olhos eram iguaizinhos. A única diferença era a
docilidade, que obviamente Laura não mostrava.
— Meu pai tinha certeza de que o ano seria produtivo, pegou
vários empréstimos e... — Negou com a cabeça. — Fiquei muito ruim.
Foi necessário muito dinheiro... — A moça enfiou o rosto entre as
mãos e começou a soluçar.
Fiquei sem saber o que fazer. Seu corpo franzino e muito
magro chacoalhava. Tinha medo de me aproximar e ela se assustar.
— Moça, qué mesmo continuá com isso? Qué que eu ligue pra
alguém?
Mais uma vez, ela ergueu a mão pedindo que eu aguardasse.
Ficou ereta e respirou fundo.
— Estou bem — afirmou —, a culpa é minha. — Entortei os
lábios, sem entender nada. — O enfarto dele. Praticamente todo o
dinheiro foi usado comigo. Para piorar, o gado teve problemas e... o
resto você sabe.
Meneei a cabeça e, então, comecei a ligar os pontos. O dia
em que a mãe da Laura disse a ela que precisaria de mim. Ela, com
toda a certeza, já conhecia a história. O peso de tudo isso está nas
costas dela. Por isso, a depressão. Meu peito apertou mais ainda,
em pensar o quanto tudo isso só ficava pior.
— Qui furdunço — comentei e passei a língua pela parte
interna das bochechas. Sem saber o que a moça queria comigo. —
Por que tá me contando isso?
A moça tomou o restante da água e me olhou séria.
— Tenho direito à fazenda.
Claro, essa hora ia chegar, só não sabia onde me encaixava na
trama.
— E... — Gesticulei para que esclarecesse.
— Quero vender minha parte pra vocês — comunicou.
Ri de nervoso. A moça não tinha ideia do quanto era
complicado.
— Num é assim, não, moça. Cê tem uma parte muito pequena.
Pensa comigo, a mãe tem cinquenta por cento, as filhas os outros
cinquenta. Sendo assim, cê tem dezesseis por cento. Ou seja, num é
isso qui os Bennett qué. A gente qué tudo — esclareci e ela meneou
a cabeça – compreendendo.
— Já fiz essas contas, mas acho que se eu pressionar, vai
facilitar. Quero me juntar a vocês.
Estreitei os olhos e mastiguei um pouco os lábios, controlando
o instinto protetor que me tomou no momento. Não podia acreditar
que as coisas só complicavam para mim. Pensar em mais uma
pessoa pressionando a Laura, fazia meu peito doer. Queria
chacoalhar a potranca e pedir que deixasse de ser teimosa, assim
sofreria menos. Mas sabia que não resolveria nada.
— Aqui, moça, num quero sê grosseiro contigo, não, mas... —
Cheguei com o corpo mais perto da mesa e ela recuou um pouco. —
Já tô cuidando disso.
— Não é o que estão dizendo.
Ergui as sobrancelhas e a encarei – demonstrando claramente
que aquela conversa não estava nos levando a nada.
Fiquei em pé e coloquei meu chapéu.
— Era só isso?
A moça levantou-se e concordou.
— Achei que você fosse mais inteligente — desdenhou e virou-
se.
Mordi o lábio inferior e fiquei a observando, enquanto
caminhava de volta ao seu carro. Se ela quisesse pressionar a família
de seu pai, era um direito dela, eu só não queria fazer parte disso.
Esperei que arrancasse com o carro e voltei ao meu cavalo.
Na certa, estava indo requerer o que era seu, pois foi em direção à
fazenda da potranca.
Em seguida, passei um longo tempo, cavalgando e me
confidenciando com o meu companheiro. O dia do rodeio estava
próximo e eu temia que o pior pudesse acontecer. Buscava uma
forma de persuadir Laura sem que precisasse colocá-la em perigo,
porque, por mais que me dissesse que era boa no laço comprido,
verifiquei na cidade e soube que fazia muito tempo que ela não
competia.
— É, meu companheiro, acho qui, dessa vez, meus encantos
de cowboy num vão resolvê, não. — Bati de leve no pescoço do
bicho e puxei um pouco a rédea para que diminuísse a marcha, assim
que entramos de volta à fazenda.
A Verdade
∆∆∆
Laura

O suor escorria em bicas nas minhas costas, enquanto


ajudava os “meninos” a mudar o gado de local. Pelo menos, pasto
tínhamos de sobra, afinal, todo aquele espaço para pouquíssimo
gado era uma vantagem.
Zeus estava tão cansado quanto eu. Paramos um pouco no
lago e deixei que o cavalo se refrescasse. Sentei na beirada da água
e fiquei avaliando se entrava ou não. Até que o calor acabou falando
mais alto. Olhei de um lado para o outro e não vi ninguém. Os
“meninos” já tinham voltado à fazenda. Não pensei duas vezes,
arranquei a camiseta e o jeans e entrei – somente de lingerie.
Passei um tempo ali, percebendo, mais uma vez, o quanto
aquele lugar era tudo para mim – para nós. Com a esperança
renovada, relaxei na água.
Prestes a sair da água, avistei de longe uma pessoa
amarrando um cavalo perto da água – do lado da fazenda vizinha.
Estreitei os olhos e estremeci, ao reconhecer aquele corpanzão.
Institivamente, abracei meu corpo e afundei na água – ficando
somente com a cabeça de fora.
Ia me virar para sair e parei, assim que uma mulher se juntou
ao cowboy de araque. Não devia, mas tive uma sensação de posse.
Queria correr na direção deles e marcar território. Aguardei um
pouco, para ver o que fariam, mesmo que temesse o pior.
Sentaram-se em uma das mesas perto do deck chique que
eles têm na fazenda. Me aproximei, procurando me esconder e não
fazer barulho. Apesar de estar longe, um movimento em falso, Kaíque
me veria.
Ao me aproximar, vi quando a moça enfiou o rosto entre as
mãos – parecendo chorar. Franzi o cenho e fiquei sem entender,
quando Kaíque ficou em pé bruscamente e, em seguida, a moça fez o
mesmo – indo embora.
Antes que ele pudesse sentir minha presença, mergulhei de
volta ao Zeus e vesti rapidamente minha roupa – galopando de volta à
fazenda. Meu coração parecia uma ervilha. Respirava com
dificuldade.
— O que eu queria? Lindo e rico como ele, claro que teria uma
pessoa em sua vida — resmunguei ao Zeus e o cavalo gemeu em
resposta. Não sei de que forma, mas preciso controlar meus
impulsos, meu cavalo sofre quando sofro.
Diminui o ritmo, conforme fui chegando em casa. Estava quase
lá e vi um carro diferente estacionado.
Emílio veio correndo e eu parei.
— Dona Laura — ofegou — tem uma mulher querendo falar
com a senhora.
Assenti e desci do cavalo – entregando a rédea ao meu
ajudante. Caminhei a passos largos até a pessoa que me esperava
na varanda.
No momento em que a moça se virou para mim, pensei que
teria um treco. Um vento, não sei de onde, me arrepiou toda. Coisa
boa aquela pessoa não trazia.
— Me procura? — questionei de imediato.
A mulher ergueu o rosto e me olhou fixamente nos olhos –
outra sensação horrível – aqueles olhos eram tão... tão familiar.
— Olá, eu sou a Ana — apresentou-se, estendendo a mão –
com um sorriso amarelo. Ela parecia triste ou... doente.
Observei sua roupa e seu corpo franzino, reconhecendo-a –
era a mesma que estava com o Kaíque no lago. Umedeci os lábios e
endureci o corpo. Meus instintos davam um sinal de alerta.
Aceitei a mão estendida da tal Ana. Sua mão tremia e parecia
uma pedra de gelo. Apontei para a porta da cozinha e esperei que a
mulher fosse à minha frente.
Nos acomodamos em volta da mesa e pedi que Eliza nos
servisse um café.
— Sou toda ouvidos — iniciei.
Os olhos da mulher pareciam cansados e muito, mas muito
mesmo, familiar. Cada vez que eu a olhava todos os pelos do meu
corpo se arrepiavam.
— Faz um tempo que queria vir falar com você — começou e
parou instantaneamente – arregalando os olhos em direção à porta
que dá acesso aos outros cômodos da casa.
Virei-me e dei de cara com a minha mãe, em posição de
ataque. Levantei-me rapidamente e fui até ela.
— Mama, o que faz aqui? Está sentindo-se bem?
Me ignorando, completamente, desvencilhou-se das minhas
mãos e seguiu em direção a mulher sentada. Ana ficou em pé e
recuou um pouco – a cor de seu rosto desapareceu.
— O que pensa que está fazendo? — inquiriu minha mãe e a
mulher engoliu em seco.
— Elas precisam saber...
— Eu te avisei — continuou minha mãe e eu me aproximei,
sem entender absolutamente nada.
— Não é justo — defendeu-se Ana.
— O que é justo pra você? Meu marido morrer por sua causa?
Dei uns passos para trás e bati em Mirela, que entrava na
cozinha, tão confusa quanto eu.
— Meu Deus, não faça isso — implorou Ana, com o rosto
lavado de lágrimas.
— Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? —
inquiriu Mirela.
— Vão pro quarto de vocês, a conversa aqui é entre mim e
essa mulher que não tem amor no coração. Por causa dela, vocês
perderam o pai de vocês — vociferou dona Eleonor.
Desde que meu pai tinha nos deixado, foi a primeira vez que vi
minha mãe altiva. Ela malmente tinha saído do quarto. Uma força do
além tinha acabado de dominar seu corpo.
— Por favor... — suplicou Ana, engasgando-se com as
lágrimas. — Eu já me cul... po o su...fi...ciente.
Dona Eleonor foi prensando a mulher na pia, cada passo que
minha mãe dava para frente, Ana dava para trás – não tinha mais
para onde correr.
Honestamente, não tinha a mínima ideia de como agir. Seja lá
o que fosse que Ana tivesse ido nos contar, ela tinha razão quanto a
termos o direito de saber. Por esse motivo, não recuei, nem Mirela.
Quando vi o desespero de Ana e a determinação da minha
mãe, soube que teria que intervir. Pela postura da minha mãe,
cheguei a acreditar que ela poderia agredir fisicamente a mulher. Me
aproximei.
— Mama. — Peguei em seus ombros e a fiz me olhar. Tive
medo do que tinha no fundo de seus olhos: ódio.
Por mais que eu saiba que minha mãe é forte, nunca imaginei
que tal ira pudesse dominá-la.
— Falei pra vocês saírem daqui — rebateu e tentou
desvencilhar-se de mim. A segurei firme e ergui apenas uma
sobrancelha – deixando claro de que não sairia dali, antes de
entender o que estava acontecendo.
— Se acalme.
— Eu avisei a essa mulher que não era pra colocar os pés
aqui.
— Elas têm o direito de...
— Cala sua boca e suma da minha casa — berrou minha mãe
– soltando-se das minhas mãos.
Respirei fundo e balancei a cabeça.
— Chega! — rugiu Mirela e nos voltamos a ela – em conjunto.
— Que palhaçada é essa? Quantos anos vocês têm? Depois, eu que
sou a criança!
Um grato silêncio dominou o ambiente. Elisa, percebendo que
o clima estava tenso, pediu licença e se retirou. Ficamos nos olhando
por alguns instantes, até minha mãe baixar a guarda e cair sentada na
cadeira. Corri até o filtro de barro e enchi um copo de água.
— Beba, mama, vai se sentir melhor. — Enquanto ela se
acalmava, fiz um sinal para que as outras duas se sentassem. Me
acomodei ao lado da minha mãe e coloquei uma de suas mãos sobre
minha perna – segurando-a firme. — Vamos lá, Ana, o que tem de tão
importante pra nos dizer?
Ana enxugou os resquícios de lágrimas de seu rosto e puxou
uma boa quantidade de ar.
— Sou irmã de vocês — falou sem rodeios.
Uma risada amarga escapou do meu peito.
— É algum tipo de brincadeira? — questionei, ainda sorrindo.
Meu peito se apertou tanto que tinha dificuldade de respirar.
O olhar da minha mãe e o aperto que deu em meus dedos,
foram esclarecedores – era verdade.
Mirela não esperou a mulher continuar, levantou-se
bruscamente – fazendo a cadeira cair para trás.
— Eu te odeio, por isso — Mirela gritou, apontando para a
minha mãe. Antes que eu pudesse reagir, ela saiu chorando da
cozinha e logo ouvirmos a batida forte da porta de seu quarto.
Enchi o peito de ar e o soltei devagar – buscando sensatez.
Minha vontade era de gritar, também, mas alguém precisava ter
equilíbrio ali.
— Tudo bem... — suspirei — acho que preciso de explicações.
Apertei a mão da minha mãe, que continuava sobre minha
perna, assim que Ana começou a falar. Cada detalhe que Ana
contava, meus nervos endureciam. Ela, claramente, buscava a melhor
maneira de expor a verdade.
Em dado momento, depois de tantas coisas que nos foram
ocultadas, soltei a mão da minha mãe e fiquei em pé – andando de
um lado para o outro na cozinha. O som da minha respiração era
exasperado. A tensão do ar poderia ser cortada.
Parei em frente a Ana e espalmei a mesa. Seu tronco recuou
um pouco.
— Está me dizendo que meu pai escondeu isso da gente a vida
toda?
Sua cabeça foi para frente e para trás – confirmando.
— Ele não queria magoar vocês — defendeu-o.
— E por que magoaria?
As duas se entreolharam e comecei a entender melhor a
situação.
— Quantos anos você tem? — questionei, para ter certeza de
que minha teoria estava certa.
— Trinta e oito.
Ergui as sobrancelhas e ri de nervoso.
— Claro, ele te traiu. — Apontei para a minha mãe. Ela
apertou um lábio no outro e fungou. — Não pretendia nos contar, não
é mesmo?
— Foi um deslize, filha, nunca mais aconteceu. Seu pai foi tão
maravilhoso pra vocês, não queria... — suspirou —, manchar a figura
dele.
Meneei a cabeça e estreitei os olhos.
— Sabotando outra pessoa?
— Não... não foi assim que aconteceu.
— Não, então como foi, mama? Porque assim que a senhora
bateu os olhos em Ana se transfigurou.
Dona Eleonor tentou pegar minha mão e eu puxei. Não podia
acreditar no que estava acontecendo. Por que tudo teimava em
desabar na minha cabeça? Quando é que alguma coisa boa iria
acontecer?
— Filha... por favor...
— Laura — chamou-me Ana. — Seu pai nunca me deixou
desamparada — esclareceu.
— Mas... — Ergui uma sobrancelha. Ela deu de ombros e
baixou o olhar. — Como eu imaginei, nunca deixou que se
aproximasse.
Fiquei de costas para elas e esfreguei o rosto com as duas
mãos.
— Tente entender, filha...
— Eu já entendi — respondi ríspida – ficando de frente para
minha mãe. — Ele te traiu e você revidou, proibindo que Ana se
aproximasse da gente. Percebe que ele teve um enfarto por conta
dessa merda toda?
O olhar da minha mãe foi de horror. Ela levou a mão em frente
à boca e negou com a cabeça – com lágrimas escorrendo de seus
olhos.
— Não foi assim... — engasgou-se — eu sou a vítima, não ele.
Sentei novamente na cadeira, só que longe da minha mãe. Mil
coisas passavam pela minha cabeça. Principalmente, o fato de, se,
talvez, meu pai pudesse ter esclarecido tudo, ele ainda estaria vivo.
Demoraria um tempo para aceitarmos, mas, tenho certeza de que,
juntos, poderíamos enfrentar melhor a situação.
— O que você quer? — questionei Ana.
Ela deu de ombros e desviou o olhar.
— Só o que é meu por direito.
Sorri completamente sem humor e balancei a cabeça.
— Dívidas?
Ela me olhou nos olhos e, aí sim, vi por que eram tão familiares
– olhos do meu pai e... os meus.
— Não, se vender as terras — desembuchou de vez o real
objetivo de estar ali.
Inclinei a cabeça e encostei a testa no tampo da mesa. Cruzei
as mãos em minha nuca e senti uma vontade imensa de desaparecer.
Inevitavelmente, as lágrimas vieram. Precisei de um controle
descomunal para não gritar de desespero. Cada vez mais, ficava
difícil de cumprir com a promessa feita ao meu pai. Ele me preparou
para assumir o seu lugar, confiou a mim a nossa família. Não podia
desapontá-lo.
Senti uma mão alisar meus cabelos e ergui os olhos. Minha
mãe estava em pé, ao meu lado.
— Eu disse que precisaria do Kaíque — lembrou-me de sua
atitude estranha quando Kaíque esteve em nossa casa.
Fiquei em pé novamente e me aproximei da Ana.
— Agora a ficha caiu — exclamei e ela franziu o cenho. —
Estava na fazenda do Kaíque, hoje pela manhã, estão
mancomunados, não é mesmo? Aquele cowboy de araque, filho de
uma puta — praguejei e a moça negou veemente.
— Filha...
— Não, mama, você não está entendendo, os dois estão
tramando contra a gente. E a senhora dizendo que vou precisar dele.
Comecei a tatear os móveis da cozinha – buscando a chave da
minha camionete.
— Isso não ficar assim — grunhi e já ia saindo quando a Ana
me impediu.
— Ele quase não me deixou terminar de fazer a proposta —
advertiu e eu parei à porta.
— Como assim?
— Ele foi meio... sei lá... protetor, acho — elucidou.
Assenti e voltei para perto da mesa – lembrando-me de que
Kaíque tinha ficado em pé bruscamente. Em seguida, Ana tinha saído
chorando.
Olhei para minha mãe e um sorriso satisfeito demandava seu
rosto.
Não poderia me apegar àquele fiozinho de esperança. Porque,
afinal, Kaíque tinha um único objetivo: comprar as terras. Ele faria de
tudo para que eu cedesse, pois é assim que os Bennett funcionam.
Jogam para vencer e, na maioria das vezes, vencem.
Comigo não, cowboy de araque. Morro, mas cumpro o que
prometi ao meu pai.
Explodindo
∆∆∆
Gabrielle

Praticamente joguei o dinheiro no balcão e saí em


disparada, assim que o bico do carro do velho asqueroso apontou na
saída da garagem do prédio imponente.
Acenei à Ágatha e, por um triz, ela não veio atrás de mim.
Percebi que sabia, não sei como, o porquê de eu estar ali. Senti seu
olhar me acompanhar, até que entrei na frente ao carro do meu alvo.
O motorista franziu o cenho e aguardou que eu me
aproximasse de sua janela.
— Quero falar com o seu chefe — avisei e o homem abriu um
sorriso sarcástico.
— Jura? — desafiou-me.
Tentei apertar os punhos e praguejei baixinho, pelas ataduras
impedirem de eu afundar as unhas nas palmas.
Cruzei os braços e o encarei, sem sair do lugar.
— Eu sei que ele está aí atrás. — Apontei com a cabeça à
parte de trás do carro todo filmado com películas escuras. Na certa,
o carro era blindado.
— Se não sair, vai acabar se machucando, moça — advertiu-
me e foi minha vez de sorrir ironicamente.
— Quer mesmo fazer isso na frente da empresa? Um
telefonema e a imprensa toda estará aqui — ameacei, mesmo que
não tivesse a mínima ideia de para quem ligar. Naquele momento, me
arrependi de não ter pedido para Andressa me acompanhar, ela,
certamente, saberia.
O motorista ia dizer alguma coisa, o vidro de trás começou a
descer.
Assim que aquele dente dourado despontou na janela, minhas
pernas amoleceram. Eu lutava, e como lutava, para não sentir nada
daquilo quando estava perto dele – era mais forte do que eu.
— Ora... ora... quem temos aqui, a investigadorazinha —
desdenhou e alargou o sorriso. — Ah, me esqueci, você perdeu o
distintivo.
Uma linha fina de suor escorreu entre meus seios. Suspirei e o
desafiei com um sorriso, o mais sarcástico que consegui.
— Vou acabar você, pode ter certeza — ameacei,
entredentes.
— Estacione o carro — determinou ao motorista — primeiro,
vou sair, estou curioso para conhecer os planos dessa garota.
Ele, obviamente, não estava me dando crédito.
Me afastei um pouco e esperei que o velho saísse do carro.
Todo imponente, ajeitou seu paletó e gravata; ergueu o queixo e se
aproximou. Meu corpo reagiu de imediato. Controlava a respiração.
— Me conta, como é que vai acabar comigo... como é mesmo
seu nome? — divertiu-se e eu avancei pra cima dele — ficando muito
rente ao seu rosto, embora ele fosse uns dez centímetros maior do
que eu.
— Ana Maria, refresca sua memória?
O velho ficou pálido e recuou uns dois passos. Fechou o botão
do paletó e fez sinal para seus armários se aproximarem.
— Chame a polícia, essa moça não pode se aproximar de
nenhum de nós — ordenou a um de seus seguranças e eu avancei
para cima dele – com socos.
— Seu filho da puta, desgraçado. Minha mãe está morrendo
por sua causa — eu gritava e o esmurrava.
Rapidamente, os seguranças vieram para me deter. Não me
intimidei, comecei a chutar e cuspi na cara do velho asqueroso.
Ele limpou meu cuspe, quando os seguranças conseguiram me
afastar dele. Se aproximou do meu rosto e o contornou com o
indicador e sussurrou, jogando seu hálito nojento no meu rosto:
— Você é tão bonita quanto ela, podia se dar bem comigo.
Sem pensar duas vezes, cuspi novamente. Ele pegou o mesmo
lenço que tinha limpado o rosto anteriormente e o limpou novamente –
com um sorriso irônico.
— Eu vou te matar — berrei, quando ele virou as costas.
— Leve essa louca para a delegacia — ordenou aos armários.
Comecei a me debater e, de repente, uma voz fez os caras
afrouxarem o aperto nos meus braços.
— Soltem ela.
Me chacoalhei, soltando-me, e respirei fundo, olhando
diretamente ao Narciso. Sem entender por que ele tinha me ajudado.
Vasculhei o local e percebi que tinha dado um pequeno
espetáculo. Baixei a cabeça e fechei os olhos – buscando controle.
Se minha mãe soubesse o que eu tinha acabado de fazer, morreria de
vergonha.
— Venha comigo. — Ergui os olhos e vi que Ágatha me pegava
pelos braços e me arrastava para sua Kombi.
Deixei que me tirasse dali, sem coragem de levantar a cabeça.
— Vocês não têm o que fazer? — Ouvi quando Lucca vociferou
e veio logo atrás da gente.
Ágatha me acomodou em uma das cadeiras, em uma mesa um
pouco escondida. Foi até seu estabelecimento e voltou com uma
garrafa de água. A colocou na minha frente e sentou-se, também.
Surpreendendo-me, o próximo a sentar-se foi o Lucca. Olhei
para ele e franzi o cenho. Ele ergueu as mãos em rendição.
— Só quero entender — justificou-se.
— Gabi seu nome, não é? — questionou Ágatha. Confirmei,
tomando água. — Seja qual for o problema que tem com o Bennett
pai e, acredite, eu sei que tem, agindo assim só vai piorar a situação
— aconselhou-me a moça, demonstrando o quanto era sensata.
Meneei a cabeça em concordância e baixei o olhar. Olhando
para as minhas mãos enfaixadas, lembrei que tinha deixado minha
mãe em uma cama de hospital. A voz do meu parceiro ecoou em
meus ouvidos, advertindo-me do quanto eu estava me sabotando;
tudo isso, em questão de segundos, me fez sentir-se um lixo.
— Você tem razão, eu perdi a cabeça, não deveria ter vindo —
pronunciei e me levantei. A mão dela segurou meu antebraço. A olhei
e seu olhar foi complacente. Sentei-me novamente.
— Pode desabafar, Gabi — incentivou-me e eu neguei,
olhando diretamente ao Bennett sentando à mesa.
— Não se preocupe, Gabi, Lucca odeia o pai tanto quanto
você — explicou Ágatha.
Ri de nervoso e balancei a cabeça.
— Duvido, não tem ninguém nesse mundo que possa odiá-lo,
tanto quanto eu — resmunguei.
A Disputa
∆∆∆
Kaíque

A cidade estava em polvorosa. Fazia muito tempo que eu


não via tanta gente vestida à caráter.
Quando o prefeito me pediu patrocínio da feira, não achei que
fosse tão importante e, muito menos, tão grandiosa.
Desci da camionete e dei uma boa olhada nas ruas – repletas
de pessoas animadas. Toda a região estava ali, seguramente.
— Patrão, o prefeito quer falar com você — comunicou Pedro
e apontou com a cabeça em direção ao local onde estava a comissão
organizadora do evento. Consenti e segui para o local.
Assim que as pessoas me avistaram, pararam o que faziam e
abriram um grande sorriso – efeito Bennett. O que o dinheiro não faz,
não é mesmo?
— Tarde — cumprimentei-os, estendendo a mão a cada um
deles.
Depois de muita babação de ovo, sentei-me em frente ao
prefeito.
— O qui manda? — questionei-o.
— O que é isso, chefe, quem manda aqui é você — adulou e
eu ri forçosamente.
Embora esteja acostumado com esse tipo de tratamento, fico
incomodado. É bem complicado de sabermos quem realmente gosta
da gente. Talvez, seja por isso, que Laura esteja me desestabilizando.
A potranca não faz questão alguma de me bajular, muito pelo
contrário, o que puder fazer para me atacar, ela põe em prática.
— Bennett, o prefeito vai fazer a abertura do evento e, como
você é o maior patrocinador, queremos que faça um discurso em
seguida — sugeriu o assessor do prefeito.
Cocei a barba, que decidi mantê-la, mesmo depois de
encontrar uma boa barbearia, e ponderei a questão.
— Sabe qui vô competi?
— Sim, sabemos.
Assenti e respirei fundo.
— Si é tão necessário, uai. Vamo fazê esse trem, aí! — Que
opção eu tinha, afinal. É o tipo de coisa que um Bennett não tem
como fugir.
Passei mais um tempo com a comissão, acertando todos os
detalhes, pois a feira iniciaria naquela tarde. A modalidade do laço
comprido seria logo no primeiro dia.
§§§§
Não entendia o porquê de estar ansioso, embora soubesse
que Laura tinha grande participação nisso.
Sou um cara controlado, tento não levar as coisas tão a sério,
mesmo que eu saiba que a maioria precisa ter seriedade. Busco uma
maneira de descontrair, assim a vida não fica tão chata. O peso do
nome Bennett já é o bastante para deixar a vida complicada.
Parado, atrás do prefeito, junto com a comissão organizadora,
no meio da arena, onde aconteceria as modalidades do rodeio, ouvia,
assim como toda a plateia, o discurso do prefeito.
Meus olhos percorriam cada rosto que estava ali, na busca
insana por ela. Ao mesmo tempo em que meu peito se enchia de um
orgulho idiota, por uma pessoa que eu nem sequer tinha intimidade,
também recebia umas batidas descompassadas, em pensar que algo
poderia acontecer-lhe.
A coragem de Laura é algo que eu aprecio em uma mulher, no
entanto, o desespero em pagar as contas a tirou de seu cerne.
Certamente, foi esse o motivo que a fez se inscrever nessa disputa
perigosa.
Me certifiquei de pesquisar. Todos me disseram que ela é
muito boa, sem sombra de dúvida, porém faz muito tempo que não
compete.
Como um imã, meus olhos avistaram a potranca – pronta para
montar. Um sorriso de canto dominou meus lábios. Bati na aba do
chapéu, assim que nossos olhos se cruzaram. Mesmo de longe,
consegui ver um desafio estampado em sua postura. Laura meneou a
cabeça – séria.
— Agora, com vocês, nosso maior patrocinador — anunciou o
prefeito – tirando-me do meu transe.
Antes de tomar o lugar do prefeito, vi a careta que Laura fez e
balançou a cabeça – desaprovando.
— Tarde, pessoal — falei ao microfone — quem tá animado,
aí? — Um grito em uníssono estrondou a arena. — Eita, trem bom.
Vamo si diverti, pessoal. Tô aqui pra isso, e vocês? — Outro grito de
agitação. — Então, chega de enrolação, vamo começá logo esse
trem, uai!
As pessoas ficaram em pé e uma salva de palmas retumbou
na arena. Acenei e caminhei em direção ao meu cavalo. Logo iniciaria
a modalidade que eu competiria e... Laura, também.
Pedro me esperava com Sansão. Agradeci meu ajudante e
levei Sansão para perto de onde entraríamos.
Não muito longe, estava Laura com um de seus ajudantes e
seu cavalo. Ela não olhava para mim, mas eu sabia que tinha me
visto. Sorri.
— Pedro, vô cumprimentá minha adversária.
Meus passos foram certeiros. Rapidamente, estava ao lado da
mulher mais corajosa e... gostosa, que eu conheci. Cheguei por trás,
só o ajudante dela me viu. Fiz um sinal para que não dissesse nada.
Fiquei bem próximo da potranca, enquanto conversava com seu
cavalo.
— Ainda dá tempo — sussurrei ao seu ouvido.
Seu corpo endureceu e os pelos de seus ombros expostos
arrepiaram-se.
Laura estava vestida para matar, essa foi a única definição que
encontrei. Calça jeans justa, regata branca, cinto com uma fivela
dourada – provavelmente ganhada de alguma competição –, botas de
cano alto e chapéu.
A potranca tem um corpo esculpido, nada... simplesmente
nada, fora do lugar. Para piorar a situação, sua postura altiva só faz
com que meu corpo tenha reações inapropriadas, sempre que estou
ao seu lado. E os olhos... ela pensa que me espanta, entretanto, me
atrai.
Laura virou-se e ficamos a milímetros de distância. Ergui uma
sobrancelha e umedeci os lábios – contendo a vontade de atacar
aquela boca carnuda.
Seus olhos foram subindo do meu peito até os meus,
demorando-se um tempo maior nos meus lábios. Inevitavelmente, o
canto do meu lábio se ergueu.
— Gosta do qui vê? — provoquei e ela tentou recuar –
batendo as costas em seu cavalo.
— O que quer aqui, cowboy de araque? — Tentou me afastar,
espalmando meu peito.
O toque de suas mãos causou um reboliço no meu peito.
Como se tivéssemos pego em um fio desencapado, os dois
estremeceram. Ela tentou tirá-las e eu as segurei, imediatamente –
mantendo o seu calor em minha pele, mesmo que tivesse o tecido da
camisa xadrez entre nós.
— Quero tê certeza di qui num vai si machucá — esclareci
exatamente o que estava sentindo.
Foi a vez de ela umedecer os lábios e meus olhos ficarem
vidrados naquele movimento.
Nossos estados estavam muito parecidos, o pesar de nossas
respirações era a prova disso.
Laura segurou o lábio inferior entre os dentes e olhou dentro
dos meus olhos.
— Por que se preocupa? — murmurou.
Dei de ombros.
— Num sei — confessei e respirei fundo.
— Estou bem — afirmou e tirou as mãos de mim. Dessa vez,
deixei. Porque aquilo não estava certo, me envolver com a minha rival
só complicaria mais ainda minha situação na empresa.
Caminhei de volta ao meu cavalo com o peito apertado. A falta
de controle da situação me provocou uma frustração irritante. Detesto
pensar que poderia evitar algo e não ter feito nada.
— É, meu amigo, agora é com a gente. — Alisei-lhe a crina e,
quando pensei em montá-lo, ouvi o nome da Laura nos autofalantes.
Foi inevitável o retumbar do meu coração. Seu eu pudesse, a
impediria. Não queria parecer um babacão que acha que as mulheres
não são capazes de esportes violentos, mas meu instinto me impedia
de não me sentir protetor.
— Porra, potranca, cê nem teve tempo di treiná — resmunguei
e meneei a cabeça, vendo Laura passar por nós, em direção à arena.
Deixei meu cavalo com o Pedro e fui para a beirada da
arquibancada. Sem perceber, apertava os punhos e cerrava os
dentes.
Esfreguei as mãos no rosto e aguardei o sinal para que Laura
pudesse sair com o cavalo e laçar o bezerro. Assim que a buzina
gritou e os portões foram abertos, pensei que meu peito explodiria.
Laura, muito segura de si, como profissional, mostrou a todos
a que veio. O locutor gritava seu nome e de seu cavalo e a
arquibancada quase veio a baixo.
— Essa é daqui. Nossa vaqueira — soou nos autofalantes a
voz do locutor orgulhoso.
— Vai... vai... vai... — gritava o público.
Laura estava com a corda pronta para laçar o bezerro...
— BUM... BUM... — bombas e...
— Ihihihihi — relinchou o cavalo e ficou com as duas patas da
frente no ar.
Laura soltou a corda e se firmou na rédea do cavalo. Mais
bombas...
— Porra!!! — vociferei e já fui invadindo a arena.
Foi o limite para o cavalo que há muito não participava de
eventos. Mesmo com Laura tentando domá-lo, ele começou a dar
coices e a empinar.
Corri em direção a ela e outros fizeram o mesmo, mas não deu
tempo. Laura caiu.
— Segura ele — ouvi gritos e me desesperei.
O cavalo saiu em disparada quando os homens se
aproximaram. Tinha muita gente ali dentro, não conseguia chegar, fui
empurrando as pessoas. Achei que meu coração fosse escapar do
peito e minhas pernas cederem, assim que vi o porquê de a
arquibancada ter ficado em pé pedindo que segurasse o cavalo;
Laura tinha ficado com a perna presa e ele a arrastava pela arena.
— Caralho, cambada, faz alguma coisa — berrei e fiz sinal
para o Pedro trazer Sansão. Não adiantaria tentar correr, não
acompanharia o cavalo dela.
Pedro entrou com Sansão e montei rapidamente no animal.
— Vamo, meu amigo — apressei o cavalo e, em questão de
minutos, estava pegando as rédeas do cavalo da Laura.
Segurei o bicho e respirei fundo. Pulei do meu cavalo e corri
até ela. Não me deixaram tocá-la. Os paramédicos já estavam de
prontidão.
Tirei o chapéu e passei a mão na nuca ensopada. A visão dela
era desesperadora. Tinha muito sangue por toda parte.
Imediatamente, a imobilizaram e a colocaram na maca, com um
respirador. Laura estava desmaiada.
— Porra, devia tê impedido. Eu sabia, caralho! — bradei
enquanto andava em círculo, ao lado das pessoas que a socorriam.
Um silêncio amedrontador tomou conta das arquibancadas
abarrotadas.
Tentei entrar na ambulância para acompanhar, mas sua irmã
apareceu em pânico e a deixei ir com a Laura.
— Meu Deus, Laura, você é muito teimosa — chorou Mirela e
se acomodou ao seu lado, segurando uma de suas mãos.
Corri até minha camionete e me preparei para seguir a
ambulância.
§§§§
A sala de espera parecia muito menor. Tinha uma pequena
multidão ali. Eu andava de um lado para o outro sem saber como agir,
afinal, era por minha causa que ela estava lá.
Não tinha coragem de olhar para as pessoas, senti-me um
intruso. E, pior, culpado.
— Ela faria de qualquer maneira, minha filha é muito teimosa.
Senti a mão fria da senhora no meu antebraço. A olhei de
esguelha e meneei a cabeça.
— Eu pressionei — admiti, sem ter coragem de olhar nos seus
olhos.
Eu sabia o quanto a mulher estava debilitada, depois da morte
do marido. A quantidade de problemas que ficou para elas e, de
brinde, uma filha fora do casamento. Ver a mulher ali, cortava meu
coração. Não queria ser o que trazia mais problemas. No entanto, o
que tinha feito desde que cheguei à cidade?
As portas duplas da sala se abriram e o médico que cuidava
de Laura entrou. Todos ficaram em pé e esperaram a fala do
profissional.
Conhecendo a mãe e irmã de Laura, ele ignorou as outras
pessoas e foi até elas. Colocou uma das mãos da mulher entre as
dele e fechou um pouco olhos. Aquele gesto foi o bastante para eu
praticamente ter um ataque do coração.
— Porra... — murmurei entredentes.
— Como ela está? — questionou sua mãe, com uma calma
admirável.
— Estável — disse e parou, segurando os lábios nos dentes.
Por que ele não desembuchava logo? — Ela bateu a cabeça muitas
vezes, está com uma contusão cerebral.
Esfreguei as mãos no rosto e praguejei baixinho. Era o que eu
temia.
— O que isso quer dizer? — apressou Mirela, tão
desesperada quanto eu. Sorte a minha que a irmã estava ali.
— Ela está sedada, vai ficar na unidade de terapia intensiva e
vamos observar. O cérebro está inchado, pode ser, que teremos que
abrir e aliviar essa pressão.
Arregalei os olhos e me aproximei.
— Cê tá falando qui vai tê que abrir a cabeça dela? — inquiri
exasperado.
O médico franziu o cenho e olhou de mim par a sua mãe, sem
entender nada. Admirei o fato de ele não me conhecer.
Provavelmente, só trabalhava.
— É um amigo da família — esclareceu a mãe da Laura.
Ouvi um bufar atrás de mim e olhei de supetão. Era o
veterinário que vi discutindo com a Laura. Enruguei a testa e voltei a
atenção ao médico. Depois, eu tentaria entender o que tinha sido
aquela reação.
O médico me olhou fixamente e esclareceu.
— Como expliquei, vamos observá-la, mas... — suspirou e
encolheu os ombros. — A possibilidade é grande.
Coloquei as mãos nos quadris, baixei a cabeça e a balancei
veemente – completamente indignado.
Não esperei mais nada, ficar ali dentro estava tirando minha
capacidade de respirar.
Sem aviso prévio, saí em disparada pelos corredores do
hospital. Eu teria que fazer algo, só não tinha ideia do quê. Como
pude deixar que Laura se colocasse em uma situação daquelas por
causa de dinheiro?
— Porra, Kaíque, cê vacilou legal! — Bati na têmpora com a
palma da mão.
Não Foi um Sonho
∆∆∆
Laura

— Vai... vai... vai...


— Bum... Bum...
— Calma Zeus... Sou eu, amigão...
— Segura ele...
— Ihihihih...
— Para Zeus... Zeus... Aiiiii...
— Segura ele...
Tum... tum... tum... tum...

Me mexi e uma dor intensa me fez desistir de continuar. Tentei


abrir os olhos e... “Uau, não consigo.” Sentia como se minhas
pálpebras estivessem coladas. Mais uma tentativa e... aiiiiiiii!
Apertei os olhos e forcei minha mente. Não conseguia entender
o que estava acontecendo.
— Vai pra casa, Mirela. Dexá qui cuido dela. — “Acho que
estou sonhando, é a voz do cowboy de araque?”
— E se ela acordar?
— Eu ligo na hora.
Silêncio.
Respirei fundo. Queria poder abrir os olhos e saber o que
estava acontecendo.
Algo me puxava para baixo. Tentava me recompor, mas...
Preciso dormir.

— Num pode esperar mais um pouco?


— Faz dias e ela continua igual.
— Mais um dia.
Forçava as pálpebras para cima sem sucesso algum. Eu
insistia em achar que era a voz do Bennett. Mas como isso seria
possível? Será que ele finalmente tinha conseguido minhas terras? De
quem é a outra voz? E o que ele pede para esperar mais um dia? O
rodeio.... Aiiiiiii!
Todas essas questões pairavam sobre minha cabeça e eu não
conseguia verbalizar, pior... nem abrir os olhos. As tentativas de uma
coisa, ou outra, só fazia aumentar uma dor insuportável na minha
cabeça. Ou melhor, em toda parte do meu corpo.
Mais uma busca desesperadora de me virar e... “Que dor
miserável é essa?”
— Ei, potranca, pode me ouvir?
Parei imediatamente com as tentativas. Sim, eu podia ouvi-lo.
Só não compreendia onde estávamos e o que tinha acontecido. Cada
vez mais, acreditava ser um sonho, ou pior, um pesadelo.
Relaxei o corpo e soltei a respiração, pelo menos, acho que fiz
esses movimentos.
— Me perdoa... — continuou Kaíque e eu endureci o corpo
novamente. Senti seu calor em uma das minhas mãos. Acho que ele a
colocou entre as suas. — Devia tê impedido você.
Uma tentativa desastrosa de umedecer os lábios deixou-me
mais frustrada. Era como se eu não tivesse controle do meu corpo. O
cérebro comandava e os membros não obedeciam. “Será que eu
morri?”
Ao mesmo tempo em que pensei, lembrei-me das histórias dos
antigos fazendeiros. Eles diziam que quando morremos, saímos do
corpo e ficamos nos vendo. Seguindo essa teoria, eu estava viva,
porque não via nada, só sentia. Muita dor, por sinal.
— Sabe, potranca... — Detive os pensamentos e me
concentrei na fala do cowboy de araque. — Quando vi cê machucada
daquele jeito... — suspirou — pensei qui meu coração fosse saltá do
peito.
Não fazia sentido algum, para mim, o que Kaíque falava.
Machucada? Eu realmente estava sentindo dor, mas, certamente me
lembraria, se algo tivesse acontecido comigo. Eu precisava acordar, o
mais rápido possível. Tinha um rodeio para ganhar, era minha última
chance de cumprir a promessa que fiz ao meu pai.
— Num quero admiti — prosseguiu e me concentrei
novamente em sua voz. Embora fosse um sonho, estava gostando de
ver o cowboy de araque mexido. — Mas... — suspiros novamente —
tô enrabichado por você, potranca.
Endureci os nervos novamente. “O que ele quis dizer com
isso?” Sorri, mesmo que meus lábios não se moveram. Comecei a
entender o que acontecia. Como não tinha coragem de admitir que
estava me apaixonando pelo Kaíque, sonhava que fosse o contrário.
Claro, o subconsciente da gente está sempre nos pregando peças. A
gente sonha com coisas que não podemos ter na vida real.
“Bom, já que estou sonhando, vou aproveitar. Pensar que é
ele quem está apaixonado por mim, afaga meu ego.” Soltei de vez o
corpo e deixei fluir meus desejos mais íntimos. Sonhar nunca foi
proibido.
Um movimento indicou que o corpanzão tinha ficado em pé.
Logo em seguida, sua mão começou a alisar meu rosto. Seu
perfume... “Hum ainda bem que meu sonho está completo, consigo
até sentir o cheiro inebriante dele.”
— Cê é muito linda — sussurrou tão perto do meu rosto que
pude sentir o calor de seu hálito.
Aquilo parecia tão real. Os pelos do meu corpo começaram a
se arrepiar. “Será que vou ter um sonho erótico? Ai, meu Deus,
preciso acordar. Como vou me controlar ao lado do cowboy de
araque, depois?”
— Eu preciso tanto ti beijá...
Ele... “Meu Deus!” Senti os lábios grossos do Kaíque
encostarem nos meus. Eu tentava, a todo custo, reagir. Aproveitar
que meu sonho estava me possibilitando coisas que nunca poderiam
acontecer na vida real, mas não conseguia me mexer nenhum
milímetro.
Queria enfiar a língua na sua boca e sentir a dele percorrer a
minha. Enfiar as mãos naqueles cabelos aloirados que quase se
encostavam em seus ombros. Roçar meu rosto naquela barba
deliciosa..., mas... nada... Continuava sentindo seus lábios roçando
nos meus e seus dedos alisando meu rosto e não me movia. “Que
droga de sonho é esse, que não deixa eu aproveitar, merda!?”
— Como ela está?
Kaíque se afastou rapidamente, deixando-me completamente
frustrada.
— Na mesma.
— Se não melhorar, vamos ter que fazer uma intervenção
cirúrgica — comunicou uma pessoa.
Apertei os olhos e, com uma força do além... gemi... acho que
gemi.
— Aiiiiiii...
— Laura, ela tá voltando, doutor. — Kaíque pegou na minha
mão novamente e voltou a ficar com a respiração no meu rosto. —
Potranca, fala comigo.
Uma fresta dos meus olhos foi aberta e, imediatamente a
fechei, soltando outro gemido. A luz era insuportável.
— Fecha as persianas — pediu Kaíque. Sua voz estava um
pouco eufórica.
Estava começando a achar que aquilo não era um sonho. Se
fosse, na certa, não estaria sentindo tanta dor. “Será que até os
meus sonhos estão me sacaneando”
— Pronto, potranca, pode abri os olhos — murmurou Kaíque,
como se quisesse que somente eu o ouvisse. Mas só eu o ouvia,
afinal, tudo aquilo não estava acontecendo. Assim que eu conseguisse
abrir os olhos, tudo acabaria – inclusive aquela dor insuportável.
Lentamente, fui abrindo os olhos. O lugar tinha pouca claridade
o que facilitava que eu seguisse com a missão. A primeira coisa que
vi foi seu sorriso. Estava diferente do habitual. Normalmente, Kaíque
usa o sorriso para me provocar. Naquele momento, parecia um
sorriso de admiração e... alívio.
Aos poucos, escrutinei seu rosto. Os olhos estavam...
marejados? O verde parecia mais escuro. Ele não se afastou e nem
parou de alisar meu rosto.
— Isso, Laura, volte pra nós.
“Pra nós!? Tá, chega né, já posso acordar? Tá muito estranho
isso. Meu subconsciente está viajando na maionese. Quando Kaíque
ficaria rendido dessa maneira?”
Mais esforço... Respiração profunda...
— Quero... — Engoli em seco. — Á... gua — pedi, com uma
força fora do comum.
— Precisamos sentá-la, não pode tomar água de uma vez,
depois de dias desacordada. Vamos devagar. — Alguém falou às
costas do Kaíque. O cowboy assentiu, sem tirar os olhos de mim.
“Dias desacordada?”
— Vamo divagar, tudo bem? — Falava comigo como se eu
fosse um bebê.
Queria poder ver onde eu estava e quem falava com o Kaíque,
mas ele não me soltava. Seus olhos estavam fixos nos meus. Eu não
conseguia reagir.
A cama começou a subir lentamente e Kaíque foi me ajudando
e se acomodar. Examinei o local e logo entendi... estava em um
hospital. Só não entendia como tinha ido parar ali. A última coisa que
me lembrava era de estar treinando com Sansão na minha fazenda. O
rodeio estava chegando e precisava que, tanto meu cavalo, como eu,
estivéssemos preparados. “Será que me machuquei na fazenda?
Mas como? Sansão está tão habituado com tudo aquilo.”
Uma enfermeira entrou no quarto com um copo na mão e um
canudo. Pediu licença ao Kaíque que, declaradamente, não gostou.
A moça cuidadosa me ajudou a tomar a água e, assim que
terminei, consegui ver de quem era a voz que falava com o Kaíque –
Nicolau – médico do hospital da cidade. Comecei a me preocupar.
Nicolau é um dos melhores neurologistas da região. Amigo da
nossa família. Ele tem a mesma idade que eu. Passou em um
concurso do estado e foi transferido para a cidade. Assim que
chegou, fez amizade com o meu pai e começou a frequentar a nossa
casa.
Para ele estar cuidando de mim, é porque meu estado não
devia ser nada simples. Só designam ele para complicações
relacionadas à cabeça e graves.
— Olá, vaqueira — cumprimentou-me com seu característico
sorriso.
Na medida do possível, sorri de volta. Provavelmente, nada
tinha se movido na minha face.
Nicolau pegou em minha mão e alisou o dorso dela.
— Como se sente?
Antes que eu tentasse responder, Kaíque deu a volta e pegou
minha outra mão – olhando diretamente nos olhos do médico. Nicolau
sorriu de lado e voltou a me olhar.
— Acho qui ela num consegue falá. Dexá qui vô ficá aqui e ir
divagar com ela — interrompeu Kaíque e eu o olhei de esguelha –
tentando entender quais eram suas reais intenções.
— Tô... — comecei e parei – fechando os olhos lentamente —
com dor — concluí e soltei o corpo na cama.
Cada movimento que eu fazia precisava de um esforço
descomunal. Sentia-me como se tivesse corrido em uma maratona.
— Vai passar logo, a enfermeira vai aumentar um pouco a
dose dos analgésicos. Precisamos fazer alguns exames...
— Não... ela num tá boa pra isso, não. Dexá ela si achá
primeiro — censurou Kaíque, interrompendo o médico.
Os dois travaram uma batalha de olhares. Até que Nicolau
concordou – enfiando as mãos no bolso do jaleco.
— Tudo bem, vou esperar você se sentir um pouco melhor. Já
ligou para a família dela? — perguntou ao Kaíque e ele estreitou os
olhos – desafiando-o.
— Vô fazê isso agora mesmo — avisou e tirou o celular do
bolso – chacoalhando na frente do médico.
Aquilo estava parecendo uma disputa de “mijada”. Só não
estava conseguindo associar a nada, afinal, por que o Kaíque agia
como se fosse meu dono? O que eu perdi?
A enfermeira saiu e o médico foi logo atrás – deixando-me
sozinha com o Kaíque. Ele virou de costas e falou baixinho ao
telefone. Deduzi estar falando com a Mirela.
Queria fazer milhões de perguntas e, principalmente, me impor.
Se continuasse naquela inércia, ele acharia que eu estava
concordando com aquela atitude de homens da caverna. Que, aliás,
não conseguia entender de onde tinha surgido.
Tudo bem que, em geral, cowboys acham que podem agir
como “ogros”, mas ele nem é um cowboy de verdade, não é mesmo?
Ou é?
Meu corpo reagiu institivamente, assim que ele terminou a
ligação. Senti um calor da ponta dos meus pés até o pescoço. Eram
sensações confusas. Ao mesmo tempo em que sentia dor, sentia
moleza, porque, provavelmente, os analgésicos começavam a fazer
efeito, e... tremor... calor... batidas aceleradas no coração... suor.
Kaíque sentou-se na beirada da maca, muito próximo do meu
rosto e pegou minha mão. Seu polegar começou a roçar meu punho e
um arrepio cortou minha espinha dorsal. Eu tinha acabado de tomar
água e, mesmo sabendo que tinha que ir devagar, sentia a boca
secar.
Ele tinha a cabeça baixa e sua respiração estava um pouco
alterada.
— O que... acon... te... ceu? — pronunciei com dificuldade.
Kaíque fechou os olhos e balançou a cabeça. Abriu novamente
os olhos e me olhou fixamente. Trouxe sua mão até meu rosto e, com
as costas dela, acariciou-o.
— Me perdoa — suplicou e eu estreitei os olhos.
“Não foi um sonho. Ele... — Engoli em seco e estremeci. —
Kaíque me beijou.”
História Repulsiva
∆∆∆
Gabrielle

— Você tem certeza do que está me dizendo? — indagou


Lucca – com uma expressão de nojo.
— Claro que tenho, só não consegui provar, ainda — afirmei, e
o cara se jogou no encosto da cadeira – passando as mãos pelos
cabelos.
Fiquei olhando para ele e o admirando. Os Bennett sabem ser
bonitos. Não fosse por isso, talvez minha mãe não tivesse caído nas
garras do velho asqueroso. Tem a questão do dinheiro, também, sem
contar o poder que eles têm.
Tentei fechar os punhos e me frustrei. Se eu pudesse,
arrancaria aquelas ataduras e jogava-as a quilômetros de distância.
— Nossa, isso é muito nojento, Lucca. Dessa vez, seu pai foi
longe demais — comentou Ágatha – pegando na mão do amigo por
cima da toalha que cobria a mesa de plástico.
— Mas esse negócio está na moda — pronunciou Lucca,
depois de um tempo pensativo.
— Infelizmente. — Bufei.
— Não é tão ruim, tenho amigas que gostam e estão
arrumando a vida — argumentou Ágatha.
Dei de ombros e baixei o olhar.
— Não quero ser preconceituosa e nem retrógada, mas... —
suspirei — não sei os demais, mas o velho asqueroso, sem sombra
de dúvida, não cumpre com as regras da brincadeira. Ele... — Engoli
em seco e segurei os lábios nos dentes – para não chorar.
— Tudo bem, já entendemos, não é mesmo, Lucca —
ponderou Ágatha – se mostrando uma ótima pessoa.
Eu tive certeza, assim que ela veio me recepcionar em seu
estabelecimento. Conheço as pessoas pelo olhar, o dela é
complacente e sincero.
— Desculpe-me insistir, Gabrielle, mas preciso só recapitular.
— Lucca estava muito sério. Mesmo não convivendo com ele, sempre
que o vejo, pessoalmente ou estampado nas mídias, o sorriso faz
parte de seu rosto. Aquiesci e ele continuou. — Sua mãe era da
periferia, contra a vontade dos avós, procurou essa tal agência,
correto? — Confirmei com a cabeça e alcancei a garrafa de água que
Ágatha, gentilmente, deixou à minha frente. — Eles disseram que ela
não tinha as exigências necessárias para ser modelo e a ofereceram
essa oportunidade única. — Enquanto bebia água, confirmava às
palavras do Lucca. — Ela foi morar em uma das mansões do meu pai
e lá tinha todas as mordomias e, semanalmente, recebia um valor
considerável em dinheiro. Inclusive, essa foi a principal razão de ter
aceitado a oferta. Precisava se firmar na capital.
Queria pedir que ele parasse, porque sentia que, a qualquer
momento, teria um colapso. A repulsiva história da minha mãe é o
meu tendão de Aquiles.
— Lucca... acho que... — tentei expor o que sentia e parei.
— Você está bem? — questionou Ágatha e afirmei, arrumando
minha postura.
— Continua — pedi e o rapaz não perdeu tempo. Eu
compreendia sua ânsia em saber a verdade.
— Bom, pelo seu relato, meu pai começou a promover muitas
festas e persuadia sua mãe...
— Não só ela — o corrigi —, todas as garotas que estavam na
mansão. — Ele concordou e respirou fundo, antes de continuar.
— Ele as persuadia a darem atenção aos amigos dele. —
Confirmei. — No começo, não envolvia sexo. — Lucca parou e
balançou a cabeça indignado. — Velho nojento, filho da puta —
praguejou com um riso irônico nos lábios. — Moralista do caralho.
— Calma, Lucca — amenizou Ágatha – apertando de leve a
sua mão sobre a mesa.
Lucca tomou um gole de sua água.
— Aos poucos, foi oferecendo drogas a elas, segundo sua
mãe, para conseguirem dar a atenção necessária a ele e seus
amigos, elas aceitaram.
Foi a gota d’água para mim. Tinha suportado tempo demais.
Levantei-me de supetão e comecei a inspirar e expirar. Meu peito
chegava a doer, tal a velocidade da minha respiração. Parecia que
alguém tentava me enforcar. Não dava mais, eu precisava sair dali o
quanto antes.
Antes que pudessem me impedir, corri sem olhar para trás.
Avançando o Sinal
∆∆∆
Kaíque

Eu sei que não poderia ter avançado o sinal com Laura


inconsciente, mas não me segurei. Vê-la tão frágil mostrou-me o
quanto estou envolvido com a potranca. Por mais que eu tente
explicar para mim mesmo que não é uma boa escolha, ao lado dela,
esqueço-me de tudo.
Nunca achei que sentiria tanta culpa. Assim que Laura foi
internada, fiz tudo que pude para ficar com ela. Eu precisava me
redimir de alguma maneira. Como sua mãe está debilitada e Mirela só
tem quinze anos, tive bons argumentos.
Foram os três dias mais sufocantes da minha vida. Fui do céu
ao inferno várias vezes. Queria poder fazer mais, no entanto, ter
paciência foi o máximo que esteve ao meu alcance.
Após Laura acordar, tudo mudou, ela tomaria suas próprias
decisões. E foi exatamente o que aconteceu. Como se nunca
tivéssemos nos conhecido, pediu que sua irmã ficasse com ela e me
dispensou – sem hesitar.
— Tem certeza disso? — inquiriu Mirela, com vários vincos na
testa.
— Capaz, mas é claro qui tenho — afirmei sorridente.
Laura, finalmente, estava de alta. Mesmo que ela tenha me
afastado, permaneci por perto e atento. Assim que recebeu alta,
preparei tudo e fui buscá-la. Sua irmã estava receosa, na certa, ouviu
poucas e boas sobre mim. Independentemente, de Laura gostar ou
não, não a deixaria sozinha naquele momento. Quem cuidaria dela,
afinal, na casa dela, ela que cuida de todos.
Abri a porta do quarto e dei de cara com a potranca,
terminando de se arrumar.
— Dia — cumprimentei e me aproximei.
Ela parou o que fazia e me encarou, sem responder. Dei mais
uns passos, até estar bem próximo do seu rosto. Vi quando segurou a
respiração – sorri. Adoro saber o quanto a afeto. Sei que Laura me
afasta porque não quer admitir o quanto já estamos envolvidos.
Levei uma das mãos até o seu rosto pálido e o alisei. Ela
retraiu o corpo e engoliu em seco.
— Tá pronta? — sussurrei sorrindo.
Laura franziu a testa e olhou por cima do meu ombro –
procurando por alguém.
— Não vou com você — rebateu de imediato.
Ergui apenas uma sobrancelha e olhei para trás. Voltei meu
olhar para ela e fiz uma expressão para que ela entendesse que não
era uma opção.
— Si num quiser durmir mais uma noite aqui — ressaltei e dei
de ombros.
A potranca cruzou os braços e empinou o queixo. Sua reação
só complicou as coisas. Foi como se tivesse enviado um sinal claro ao
meu “amigo” que era hora de entrar em ação.
Com poucos passos, estava encurralando-a. Laura espalmou a
parede às suas costas e espremeu um lábio no outro.
— Aqui, cê tá me devendo um beijo — diverti-me vendo seu
rosto virar um tomate.
Não sei o que deu em mim. Acho que meu cérebro congelou e
não conseguiu enviar comandos nítidos ao meu corpo. Só o que eu
queria e fazia era avançar para cima dela. Encostei o quadril em seu
corpo e esfreguei.
A respiração dela ficou completamente alterada, seu olhar
estava fixo no meu e seus lábios eram um convite aos meus.
Visivelmente, Laura me dava permissão. Eu sabia que sua mente
estava lutando contra, mas seu corpo que estava no domínio.
Antes que eu pudesse cair em si, ataquei seus lábios
entreabertos. Uma das minhas mãos foi para sua lombar e a apertou
contra mim. A outra, afundou-se em seus cabelos curtos, deixando-a
em cativo.
Invadi sua boca com minha língua e achei que meu pau
romperia a calça. Laura amoleceu e correspondeu. Uma dança
gostosa de nossas línguas nos enlouquecia. Em instantes, minhas
mãos percorriam cada pedaço, de sua pele, exposto.
Mergulhei uma mão em sua regata e alcancei o bico de seu
seio por baixo do sutiã. O gemido que escapou de nossos peitos foi a
prova de que não conseguiríamos mais nos controlar. Arrastei a boca
pelo seu maxilar chegando até o lóbulo de sua orelha.
— Cê é gostosa pra caralho, potranca — murmurei ofegante.
Laura tentou me empurrar com as duas mãos. Me afastei um
pouco e a olhei nos olhos. Seu peito subia e descia
descontroladamente. Tinha um lindo rubor em sua face. Nem parecia
a mesma potranca que conheci. Naquele momento, estava entregue...
minha.
Inclinei o corpo até ela e arrastei o nariz pelo seu pescoço –
absorvendo o cheiro de mulher forte que Laura tem. Tudo nela é
firme. Não tem nada de florzinha e baunilha em Laura. Isso me deixa
à beira do abismo.
— Se vai me levar, acho bom se apressar — avisou-me,
desvencilhando-se de mim.
Deixei que se afastasse, não era o lugar adequado para
continuarmos. O importante é que tinha quebrado a primeira barreira.
Dali em diante, seria bem mais fácil.
Enquanto me recompunha, analisei seu traseiro na calça jeans
apertada. Senti uma vontade imensa de enfiar a mão nele. Chacoalhei
a cabeça e respirei fundo. Ajeitei a frente da calça e tratei de pegar a
pequena mala que Mirela tinha levado para a irmã.
Nos entreolhamos e condescendemos. Abri a porta e fiz um
gesto para que ela saísse primeiro.
Nos corredores do hospital, algumas pessoas a
cumprimentaram e Laura, na medida do possível, foi educada.
Embora não tenha dado um sorriso aberto a ninguém. A potranca
realmente precisa ser domada.
Abri a porta do passageiro da minha camionete e a ajudei a
subir. Coloquei sua mala na parte de trás e assumi o volante do carro.
Antes de dar partida, virei o corpo em sua direção e a olhei
fixamente. Laura olhava pela janela, tentando me ignorar.
— Aqui, potranca, acho qui vamo tê qui conversá.
Ela olhou para mim e estreitou os olhos.
— Já sei que não ganhei a competição, só preciso de mais
alguns dias, vou tentar outras coisas — defendeu-se rapidamente, e
eu franzi o cenho – trazendo o tronco para trás.
— Num era disso qui eu falava — esclareci.
Ela voltou a cruzar os braços e ficar na defensiva.
— Não?
— Claro qui não, uai!
— Então, o que quer conversar, cowboy de araque?
Abri o meu melhor sorriso e me aproximei. Descruzei seus
braços e peguei uma de suas mãos. Beijei o dorso dela. Com os
lábios colados à sua mão, continuei:
— Pode sair da defensiva comigo, potranca.
— Como, se a única coisa que você quer são as minhas
terras? Eu conheço bem os Bennett — rebateu – puxando a mão.
Voltou a olhar pela janela – esfregando as mãos nas pernas.
— Num vô negar qui sim, quero suas terras, mas agora... —
suspirei — quero você, também — confessei, antes que eu pensasse
nas consequências.
Ela virou-se bruscamente para mim e engoliu em seco.
Umedeceu os lábios e esfregou as mãos no pescoço.
— Não sei o que isso quer dizer — falou baixinho e baixou o
olhar – respirando com dificuldade.
— Quer dizer isso qui ouviu, uai!
Peguei em seu queixo e a fiz me olhar. Ela umedeceu os lábios
e eu gemi institivamente. Controlar meu pau começava a ser um
desafio. Sem aviso prévio, o felizardo se impunha, a ponto de doer.
— Sabe que não podemos — respondeu, por fim.
— Aqui, tô pelejano pra mi controlá, num quero nem sabê si
podemos, ou não — desembuchei de uma vez. Não tinha mais como
esconder.
Ela ficou me escrutinando por um tempo que me pareceu uma
eternidade. Eu não sabia se podia, ou não, avançar o sinal, como fiz
dentro do hospital. Uma coisa é agirmos por impulso, outra é de caso
pensado. Laura não é uma mulher que aceita qualquer coisa imposta.
É o que mais me atrai nela.
— Eu sei o que está fazendo, Bennett — continuou.
Sorri sem humor. Não, ela não sabia, se soubesse, já estaria
embaixo de mim, aproveitando o que sei fazer de melhor: satisfazer
uma mulher.
— Sabe? E o qui é? — As palavras saíram muito baixas.
Arrastei o corpo para mais perto dela e coloquei minha mão
em sua nuca. Com o polegar fazia círculos em sua pele e a
respiração dela alterou-se imediatamente.
— Está... — engoliu em seco e respirou fundo — usando seu
talento... — olhou para o meu pau e ergueu as sobrancelhas — para
me amolecer, até conseguir o que quer. Conheço bem o jogo dos
Bennett.
Ela não deveria ter lançado aquele olhar para o meio das
minhas pernas, foi como apertar um botão de start. Meu controle,
simplesmente, escapou das minhas mãos.
Agindo, completamente, por desejo peguei sua mão e a levei
para o meu pau. Laura arregalou os olhos e segurou os lábios nos
dentes. Inicialmente, tentou puxar a mão, apertei-a contra ele e seu
peito quase tocou no meu, tal o descontrole de sua respiração. Os
vidros do carro começaram a se embaçar.
— Acho qui tô conseguindo meu objetivo — aticei e ela travou
os dentes – apertando meu pau por cima da calça. Alarguei o sorriso.
Inclinei o corpo e mordisquei seu queixo. Arrastei os lábios até sua
orelha. — Vô ti mostrá meu talento, mas não aqui.
Não adiantaria explicar-lhe que não fazia parte do plano levá-la
para cama. A verdade é que, quando vim para Pouso Alegre, não
tinha a menor ideia de que enfrentaria uma potranca gostosa pra
caralho.
Desvencilhei-me dela e voltei a assumir a direção do carro. Dei
partida e saí em disparada. Eu precisava, desesperadamente, ter a
Laura. Passou a ser meu principal objetivo. Ela tinha razão quanto a
não podermos, mas, naquele momento, não pensaria nisso. Depois,
eu lidaria com a questão da compra da fazenda. Porque,
seguramente, o fato de o seu corpo não resistir ao meu, não era
garantia de nada.
Nossas terras não ficam tão distantes da cidade e, como
estava em uma velocidade alta, logo estava entrando na minha
fazenda.
— O que está fazendo? — questionou Laura, me olhando de
supetão.
Coloquei minha mão em sua perna e dei um pequeno aperto.
— Num si preocupa, vô ti levá pro meu chalé.
Ela empurrou minha mão e ergueu o queixo.
— Enlouqueceu, cowboy?
A olhei de esguelha e sorri de canto.
— Não mais de araque?
— Não brinca com coisa séria, Kaíque. Pare o carro —
ordenou e eu, obviamente, não obedeci.
Quando ela ameaçou abrir a porta, travei. Porque, certamente,
a potranca pularia com o carro andando.
— Kaíque, não estou brincando, pare essa merda.
Ignorei, estávamos chegando no chalé. Assim que
descêssemos, se ela quisesse, era só ir embora, mas precisava
tentar.
Parei o carro e destravei a porta, Laura pulou imediatamente.
Correu através do deck e ficou parada, de braços cruzados. Esperei
um pouco, para ver o que ela faria. Após uns minutos, ela sentou na
beirada. Lentamente, caminhei até ela e me sentei ao seu lado.
— Você consegue ver tudo daqui — comentou olhando
diretamente para as suas terras.
— Sim e cê, também.
Passamos um tempo em silêncio, aproveitando o som dos
passarinhos e da água que circulava nos moinhos ao lado do deck.
— Por que está fazendo isso? — perguntou, com a voz
embargada.
Não respondi de imediato, porque não sabia como expor o que
sentia. Para falar a verdade, nem eu sabia o porquê. Por todo tempo,
só tive relacionamentos rasos, assim que as mulheres demonstravam
seus reais interesses, o meu acabava. Laura é a primeira mulher que
o interesse maior é meu. E quando digo interesse, não me refiro às
terras dela.
— Acreditaria em mim? — perguntei olhando-a. Ela deu de
ombros. — Eu num queria — confessei — e num posso. Mas... —
suspirei — num tô sabendo lidar com isso, não. — Me abri
completamente.
Laura ficou em pé de supetão e eu fiz o mesmo. Não esperava
a reação que teve.
— Vou embora — avisou-me, se virou e correu.
Não podia deixar, se ela fosse, teria que começar tudo de
novo. Só que forçar não era uma opção.
Corri atrás dela e segurei seu braço. Uma corrente elétrica
passou pelos nossos corpos, no momento em que nos tocamos
novamente. Juntos, estremecemos e respiramos fundo.
— Preciso de você — supliquei e ela prendeu o lábio inferior
nos dentes.
Quem Manda em Quem?
∆∆∆
Laura

M eu corpo implorava que eu cedesse e minha mente


berrava para que eu fugisse. A luta do meu desejo contra a minha
razão me enlouquecia. Eu torcia para que ele desistisse, que me
soltasse e nunca mais voltasse a me tocar, porque, em toda a minha
vida, nunca senti tanto desejo.
O relacionamento de anos com Umberto deixou-me
acomodada. Eu sabia, assim que ele me disse que queria casar-se e
formar uma família, que tinha que recuar. Não era o que eu queria
para mim. Tudo muito confortável e convencional. Nada que fizesse
meu peito explodir, como Kaíque estava fazendo.
Kaíque foi dando passos em minha direção e eu travei no
lugar. Não adiantava continuar fugindo, o cowboy de araque tinha
conseguido o queria: me domar. A constatação, ao mesmo tempo em
que me assustava, me atiçava. A promessa velada em seu olhar
enviava chamas para todas as partes do meu corpo. Sentia-me
fervendo.
— Kaíque... — suspirei, assim que ele me puxou pela cintura
contra seu corpo.
Não tinha uma parte sequer que não estivesse dura nele. As
veias de seus antebraços saltavam e o maxilar se contraia, de tanto
que ele se controlava. Temia não conseguir corresponder ao poder
que ele demonstrava ter. Seguramente, era um touro bravo na cama.
Só de passar tal pensamento pela minha cabeça, minhas pernas
amoleceram.
— Potranca... — sussurrou e atacou meus lábios.
Não recuei, muito pelo contrário, meus lábios facilitaram o
caminho de sua língua para dentro da minha boca. Já conhecia o que
ele era capaz de fazer; a intensidade de seus beijos.
Fui amolecendo, ao passo que sua boca foi engolfando a
minha. Mesmo se eu tentasse, não conseguiria sair do cativo de seus
lábios. Uma força, muito maior do que eu seria capaz de conter, me
atraia até ele.
Quando menos percebi, Kaíque empurrava a porta de um dos
chalés com os pés. Sua boca percorria meu rosto em todas as
partes, escorregando pelo pescoço. Meu fôlego estava chegando ao
fim e ele continuava ávido.
— Cristo... — gemi e tentei me desvencilhar – sem sucesso.
Se o homem já é forte em seu estado normal, com os
hormônios em ebulição, seria impossível segurá-lo.
— Eita, que Ele não tá aqui agora, não, mulher — brincou e foi
me empurrando para dentro do chalé.
Da mesma maneira que abriu a porta, a fechou. O estrondo fez
meu corpo dar um pequeno salto. Queria que tivesse tido o efeito na
minha mente, para que eu pudesse agir com a razão e fugir dali. Eu
sabia que as consequências do que estava prestes a fazer seriam
horríveis. Entretanto, controlar minha libido tornou-se a tarefa mais
difícil naquele momento.
Se só de sentir o seu cheiro de “macho” meu centro se
contorcia, tê-lo, ali, todo para mim, com a boca atacando meu corpo,
fez o meio das minhas pernas se encharcar.
Kaíque colocou meu rosto entre suas mãos e me olhou dentro
dos olhos – ofegante.
— Num quero forçá nada — declarou e fiquei com medo de
desistir.
Talvez, fosse melhor ele forçar, assim eu não deixaria minha
razão atrapalhar os planos do meu corpo. Chacoalhei a cabeça,
desvencilhando o pensamento idiota que tive. Lembrei-me, na hora,
dos conselhos do meu pai:

“Só faça o que tiver vontade, filha, seja tão forte quanto os
homens. Não deixe que eles te dominem, em momento algum.”
Foi naquele momento, que me decidi. Os homens não fazem
sexo porque sentem desejo, por que não fazer o mesmo? Só porque
sou mulher? Nunca! Eu saberia lidar com as consequências, afinal,
meu pai me criou para ser uma mulher forte.
Sorri e tirei as mãos do Kaíque do meu rosto. Pegando-o de
surpresa, com as duas mãos, o empurrei para cima da cama.
— Ê, lasquera, agora vai — divertiu-se e apoiou o corpo nos
cotovelos – admirando-me descaradamente.
Me aproximei e abri mais as pernas grossas dele. Fiquei no
meio delas e, lentamente, fui tirando as minhas peças de roupa – sem
me desviar dos olhos dele.
O cowboy de araque ofegava como se tivesse feito horas de
exercícios físicos.
— É isso que você quer? — aticei e fui arrastando a calça
jeans pelas pernas.
— Caralho, mulher, assim cê mi mata — disse e sentou-se na
cama, empurrei seu tronco de volta.
— Fica quietinho — ordenei e ele sorriu, o sorriso de
provocação que está acostumado a me lançar.
Só de lingerie, de joelhos na lateral do corpo dele, fui subindo.
Com o meio das minhas pernas em frente seu rosto, ergui seu queixo
e o fiz me olhar.
— Qui cê tá arrumano, potranca?
— Vou te mostrar quem manda em quem — avisei e ele
alargou o sorriso.
— Tô doido pra sabê.
Seu corpo foi empurrado novamente, até ficar completamente
rendido a mim. Inclinei-me e comecei a desabotoar sua camisa, botão
por botão. O danado colocou as mãos atrás da cabeça e ficou com
uma cara de moleque sapeca.
Os pedaços de pele de seu peito começaram a despontar e eu
quase sucumbi, precisei ter um controle gigante para não demonstrar.
Queria poder apertar uma perna na outra, na tentativa de conter o
formigamento que havia se instalado no meio delas.
Sem controle da minha libido, assim que todos os botões da
camisa foram abertos, fui até a trilha de pelos que adentrava sua
calça e passei a língua. O cowboy se contorceu e soltou um gemido
gutural.
Ergui o rosto e engatinhei até seu ouvido.
— O que foi, cowboy, não aguenta? — sussurrei em
provocação.
Pega de surpresa, Kaíque me virou bruscamente e ficou como
um touro sobre mim. Sua resposta à minha provocação foi sua calça
jeans apertada ser tirada às pressas e jogada longe. Fez o mesmo
com a camisa, terminando de tirá-la. Foi minha vez de soltar um
gemido constrangedor, ao ver seu membro estourando dentro da box.
— Quem é qui num guenta, agora, hein? — devolveu a
provocação, passando a mão pelo seu pênis – todo orgulhoso.
Engoli em seco e umedeci os lábios. Kaíque se inclinou sobre
mim e passou o nariz no meio dos meus seios. Olhando diretamente
nos meus olhos, enfiou as mãos às minhas costas e desabotoou o
sutiã. A peça foi atirada em algum canto do chalé. Pensei que meu
coração estouraria os meus tímpanos, assim que um dos bicos dos
meus seios foi abocanhado. O cowboy o saboreava como se fosse
seu prato preferido.
— Puta merda, cowboy — reclamei e me contorci.
Seu olhar subiu até o meu e, com os lábios presos ao outro
bico do seio, sorriu de canto. O filho de uma égua sabe satisfazer
uma mulher, antes mesmo de concluirmos o ato, eu já tinha certeza.
Kaíque fez uma carreira, com sua boca, do meu pescoço até a
entrada da minha calcinha. Segurei a respiração quando contornou,
com o polegar, a parte interna do elástico.
— A hora qui eu entrá aqui, cê num vai querê qui eu saia mais.
Ninguém mais vai ti satisfazê — gabou-se com o sorriso mais maroto
que eu tinha visto na vida.
Até pensei em empurrá-lo e mostrar que comigo era diferente,
mas não tive tempo. O touro bravo arrancou minha calcinha com tanta
força que escutei o estralar do tecido, na certa, tinha destruído a
coitada. Virou-me de costas pelas pernas e tascou um tapão na
minha bunda.
— Seu... — comecei e tentei me virar. Suas mãos me
impediram.
— Tava com vontade di fazê isso faz tempo — revelou e
começou a beijar onde tinha batido.
— Nunca mais faça isso — repreendi-o e respirei fundo,
quando suas mãos me colocaram de quatro e sua boca atingiu em
cheio meu sexo. — Aiiiiii... — gritei e cerrei os olhos com força.
— Guenta, potranca, tô só começando — avisou e deitou-se
de costas embaixo de mim. Olhei para baixo e não pude conter o
gemido que escapou do meu peito. A visão dele daquele ângulo era
de matar, se já não estivesse, literalmente, de quatro, ficaria sem
titubear.
Com uma habilidade de profissional, sua língua trabalhava na
parte suplicante do meu corpo. Apertei o lençol e segurei os lábios
nos dentes.
— Aiiiii... cacete, cowboy... eu... — Ele tinha que diminuir o
ritmo. Desde que larguei o Umberto e, com todos os últimos
acontecimentos da minha vida, fazer sexo seria um luxo.
Ignorando completamente minha súplica, acrescentou ao
trabalho de sua língua dois dedos dentro de mim.
— Ah! Puta merda... assim... não... vou... durar.... Ahhhhhh!
— berrei, no momento que Kaíque decidiu me segurar com as duas
mãos e abocanhar minha vagina. Ele não se contentou só com a
língua, precisou senti-la inteira.
Comecei a sentir o formigamento e o calor subindo pelas
minhas pernas, eu ia...
— Nãoooooo... — reclamei, assim que o filho de uma égua
tirou a boca dos meus lábios inferiores e se arrastou para fora da
cama.
Joguei meu corpo na cama e afundei o rosto no travesseiro –
frustrada. Não tive muito tempo de curtir minha indignação. Fui pega
novamente pelas pernas e virada de frente. Arregalei os olhos e
entreabri os lábios – o danado tinha tirado a box e massageava seu
membro, como se fosse um troféu.
A expressão dele era de um predador. Só que eu nunca fui
uma presa fácil. Se ele pensou que seria da maneira dele, tinha se
enganado redondamente.
Antes que ele pudesse me atacar novamente, sentei-me na
cama e arrastei o corpo até a beirada. Coloquei as duas mãos em
sua bunda deliciosa a as apertei, com a força do tesão que estava
sentindo.
— Potranca... — advertiu-me e pegou meus cabelos pela nuca
com força – erguendo meu rosto para ele.
Umedeci os lábios e ergui uma sobrancelha.
— Vou te mostrar o que posso fazer. — Não esperei uma
réplica.
Inclinei meu rosto até o membro ereto e passei a língua no
líquido pré-ejaculatório da ponta e o olhei novamente – engolindo o
seu sabor.
— Porra! — praguejou e forçou minha cabeça para o seu
pênis.
Ele não precisava levar-me até o seu amigo, eu já salivava de
ânsia por estar com ele todo na minha boca.
Passei a língua por toda a extensão grossa, sentindo as veias
pulsarem na minha língua. O cowboy estava no limite, tanto quanto
eu. Com a ajuda de uma das mãos, iniciei um processo de entrar e
sair da minha boca, a outra, levei até suas bolas e, junto,
massageava-as.
— Caralho... mulher, num vai dá, não — reclamou e me puxou
pra cima.
Ficamos com os rostos muito próximos. Limpei os cantos dos
meus lábios e sorri.
— Arregou? — aticei e ele voltou a me segurar forte pelos
cabelos da nuca.
Inclinou minha cabeça para trás e enfiou a boca no meu
pescoço. Claramente, estava descontrolado. Pegou na minha cintura,
me apertou contra ele e deu chupão no meu ombro.
— Merda, Kaíque — reclamei e o empurrei. — O que está
querendo?
— Ti marcar, uai, já qui agora é minha potranca — disse, todo
confiante.
Cheguei bem pertinho do seu rosto e abri um sorriso
sarcástico.
— Vai sonhando, cowboy de araque.
Minha boca foi atacada e nossas línguas não deram a menor
importância para as palavras, entraram em sintonia novamente.
Nossos corpos queriam mais, muito mais. As falas eram irrelevantes.
Kaíque foi me empurrando com seu corpanzão até minhas
pernas encostarem na beirada da cama. Não tinha mais como correr,
deixei ir longe demais. Dali para frente, eu nem sabia se o Kaíque não
teria razão, porque o cowboy estava conseguindo provocar coisas
estranhas em mim. Devo admitir que deliciosas, mas, assustadoras.
Meu corpo cedeu, mais rápido do que eu gostaria. Ele me
jogou na cama e veio por cima, beijando cada pedaço de pele. Seus
beijos se misturavam com pequenas mordidas, que, às vezes, saíam
mais fortes. Ele deixaria várias marcas no meu corpo. Marcas de
tesão, de um momento no qual nenhum dos dois estava conseguindo
se controlar.
Kaíque esticou-se um pouco e alcançou a gaveta da pequena
cômoda ao lado da cama. Tirou uma fileira de camisinhas e jogou em
cima da cama.
— Caramba, está preparado — brinquei e forcei um sorriso. A
verdade é que não fiquei confortável com aquilo.
Mesmo que tivesse consciência de ser casual – machucou.
Capturada
∆∆∆
Gabrielle

— Porra, Gabi, o que pretende com isso!? — vociferou


Bento – andando de um lado para o outro em sua sala.
Óbvio que minha atitude sem pensar trouxe consequências. O
velho asqueroso ligou para a polícia e foram atrás de mim.
Sorte a minha que o Bento pediu para assumir o caso, não sei
como deixaram, sabendo do nosso envolvimento.
Por muito tempo, conseguimos esconder que ele é meu
padrinho, praticamente, segundo pai, mas, com a minha obsessão em
acabar com a família Bennett, ficou evidente a sua preocupação
comigo. Até porque, mesmo que ele esteja estressado o tempo todo,
se controla para falar com a equipe, coisa que não faz comigo.
— Você viu como ela está — gritei de volta e fiquei em pé – às
costas dele.
Me assustei com o fogo que saía de suas íris, no momento em
que ele se virou e cerrou os dentes à minha frente.
— Sério que está me perguntando isso? — respondeu
entredentes. Foi uma ofensa perguntar sobre minha mãe, ele, mais do
que ninguém, acompanha de perto o problema dela.
Suas mãos estavam nos bolsos da frente da calça jeans – sinal
claro de alerta. Bento, a qualquer momento, explodiria. Pior, eu seria
o motivo. Pode crer, ninguém quer ser o motivo para que ele exploda.
Dei uns passos para trás e engoli em seco.
— Senta aí e me escuta, porra! — ordenou – com o dedo em
riste no meu nariz.
Concordei, fiz o que mandou e aguardei ele sentar-se em sua
cadeira. Sua língua passava pelas partes internas de suas bochechas
e sua respiração estava alterada. Ele ficou na ponta da cadeira e
apoiou os cotovelos na mesa. Esfregou as duas mãos no rosto e
bufou.
— O queria que eu fizesse? — defendi-me. — Por que vocês
não conseguem me entender? — A última frase quase não saiu. Meus
nervos pulavam e o nó gigante na garganta me sufocava.
Bento me encarou e estreitou os olhos.
— Você é mais inteligente do que isso, Gabi. — Dei de ombros
e desviei o olhar. — Sabe que vou ter que te prender, não sabe?
Arregalei os olhos e neguei com a cabeça.
— Não pode fazer isso — murmurei.
Ele abriu os braços e riu ironicamente.
— Que opção você me deu?
Fiquei em pé e ele fez o mesmo.
— Tenho que fazer uns exames no hospital — avisei e ele
concordou com a cabeça.
— João Pedro vai te acompanhar.
Franzi o cenho.
— Você está brincando, comigo?
— Achei que preferiria seu amigo — desdenhou e eu respirei
fundo.
— Estou presa mesmo?
— Deveria conhecer melhor a lei, Gabrielle.
Cruzei a bolsa no corpo e abri a porta, dando de cara com o
meu parceiro – de prontidão.
Entortei os lábios e revirei os olhos.
— Vamos lá, estressadinha — amenizou João Pedro.
Ergui o queixo e comecei a marchar em direção à saída. Todos
os outros do departamento me olhavam de esguelha – calados. Eles
me conhecem, sabem muito bem que voo neles, se ouvir algum
comentário maldoso.
Já estávamos na porta, quando Bento chamou meu parceiro.
Esperamos ele se aproximar.
— Se eu souber que não foi profissional, por serem amigos,
vou te dar uma suspensão — alertou e João aquiesceu – sério. Bufei.
— Só me faltava essa, agora — retruquei e João Pedro pegou
no meu braço – carregando-me para a saída.
Ele não me soltou, até estarmos na calçada. Caminhamos até
sua viatura e entramos. João Pedro virou o corpo para mim e passou
as mãos pelos cabelos.
— Meu Deus, Gabi, não percebe a merda que está fazendo,
porra!? Estou ficando apavorado, até onde você pretende ir?
— Até eu saber que não sobrou nenhum pedacinho daquele
velho asqueroso — destilei meu veneno e a expressão do João foi de
pânico. Meu amigo sabia que eu não desistiria.
Encenando
∆∆∆
Kaíque

Franzi o cenho e observei a expressão de decepção da


Laura. Fiquei um pouco confuso, afinal, a potranca não precisou falar
o que estávamos fazendo ali, suas atitudes foram claras.
— Tudo bem, potranca?
Deixei as camisinhas de lado e voltei a me deitar sobre ela,
apoiando o peso do meu corpo nos cotovelos.
Laura não me deixou capturar o que seus olhos me diriam,
virou o rosto para outra direção. Peguei em seu queixo e a fiz me
olhar. Ela umedeceu os lábios e sorriu de canto, voltando a ficar com
a expressão de mulher matadora.
— Vou ter que assumir essa bagaça de novo? — desafiou-me.
Sorri e rocei nossos narizes. Esse pequeno ato, fez meu
coração dar um salto colossal no meu peito.
Não queria...
Não podia...
Seria arriscado demais.
Tinha que aproveitar a deixa da Laura, fazer como ela:
aproveitar o momento. Depois, lidaríamos com as consequências.
Esfreguei meu corpo no dela e devorei seus lábios. Um gemido
sofrido escapou de seu peito, acionando, novamente, meu lado
animal. Enfiei a língua em sua boca e, enquanto a dança deliciosa de
nossas línguas se instaurava, desci uma mão entre nossos corpos.
Outro gemido, agora em uníssono – assim que meus dedos
encontraram a carne pulsante entre as suas pernas. Um breve
movimento para que minha mão estivesse completamente molhada.
Ela estava pronta – sem sombra de dúvida.
Sentir seu corpo contorcendo-se embaixo de mim, apertou
todos os botões do meu cérebro. Endurecia meus nervos e controlava
o desejo, caso contrário, me atolaria nela sem piedade.
Abandonei seus lábios carnudos e ergui um pouco o tronco.
Laura tinha rubor convidativo nas bochechas e sua boca estava
inchada. Aquele olhar, que não se decidia entre ser matador ou
submisso, piorava, consideravelmente, a minha capacidade de
controlar meus instintos.
— Vô entrá em você — avisei, ofegante. Mesmo que eu
quisesse continuar me divertindo – provocando-a. Fiquei de joelhos e
destaquei uma camisinha da fileira. Com os dentes, sem tirar os olhos
dela, rasguei o pacote. Laura umedeceu os lábios quando fui colocar
o preservativo. — Qué fazê isso? — Estendi a camisinha a ela e seu
sorriso confirmou minhas suspeitas.
A potranca sentou-se e ficou com o rosto muito próximo do
meu membro. Pegou o preservativo e me olhou – com um sorriso de
leoa. Antes de fazer o serviço, abocanhou-o novamente, deixando-me
à beira do precipício.
— Porra, Laura, bota logo esse trem, sô! — reclamei –
controlando-me. Temia que, a qualquer momento, minha razão desse
vazão total ao meu desejo.
O olhar dela ficava cada vez mais perigoso. De propósito,
lentamente, a potranca deslizou o preservativo pelo meu pênis.
Mal deu tempo de estar com o “bicho” todo encapado, peguei
em seus braços e a joguei na cama. Estiquei-os acima da cabeça,
cruzei nossos dedos e fitei seus olhos. Estava ali, declaradamente, o
convite. Não esperei mais.
— Caralho! — gemi sem controle, sentindo Laura apertada e
totalmente pronta para mim.
Ela fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás soltando
palavrões. Sorri e me senti muito mais do que satisfeito. Ela foi feita
pra mim. Respirei fundo e voltei a me concentrar no ato em si, sem
devaneios. Não precisava ser muito inteligente para saber que nunca
daria certo.
— Puta merda, cowboy, vai... vai... — implorou, cruzando as
pernas nas minhas costas e me apertando contra ela.
Acelerei como pude o ritmo, chegando muito próximo do meu
limite.
— Num vô consegui segurá, potranca — avisei e, num
rompante, ela inverteu nossas posições.
— Vai sim, porque eu determino quando, não você — imperou
e espalmou o meu peito – mantendo-me sob seu domínio.
— Por mim, potranca, sou todo seu — rendi-me, torcendo para
que ela continuasse mostrando o seu poder. Laura, com suas atitudes
de mulher mandona, estava só complicando, cada vez mais, nossa
situação.
Laura encaixou-se em mim e eu cruzei os braços atrás da
cabeça, deixando que fizesse o serviço completo. Mesmo que meus
dedos coçassem para apertar aquele traseiro delicioso, enquanto
subia e descia sobre meu pau. Nada mais me atrai em uma mulher do
que sua ousadia.
— Ohhh... agora... cowboy... vem... — gritou e aumentou seu
ritmo.
Nem que ela não ordenasse, o gozo veio colossal. Um urro
reverberou do meu peito. Senti cada pedaço do meu corpo se esvair,
uma sensação deliciosamente desesperadora. Queria fugir e, ao
mesmo tempo, segurar Laura para que pudesse sentir tudo aquilo de
novo, dia após dia. Eu estava fodido, simplesmente, isso.
O corpo da potranca se desmanchou em cima de mim.
Ficamos um bom tempo respirando com dificuldade. Tinha um silêncio
barulhento no chalé. Nenhum dos dois queria sair daquela posição e
olhar no olho do outro. Encarar a realidade era algo que adiávamos
inconscientemente.
Levei meus dedos até suas costas e fiquei alisando a linha de
sua coluna vertebral.
Ela não se mexia...
Eu tinha medo de respirar mais forte.
— Amanhã é casamento do meu irmão mais novo — comentei,
tentando desmanchar aquele clima horroroso. Sabia que, assim que
Laura recuperasse o fôlego, sairia dali sem deixar vestígios.
— Hum... o da mídia? — perguntou, ainda sem sair do lugar. O
calor do seu corpo aquecia – muito mais do que o meu –, aquecia
minha alma.
Sorri e concordei. Lucca é a cara da empresa. O cara tem
panca de playboy, mas, só quem o conhece, sabe que o garoto é
gente boa.
— Tenho um bocado de coisas pra jeitar — continuei com o
assunto. Laura ergueu o rosto e me encarou – franzindo o cenho.
— Como assim? Ele não mora em São Paulo?
— Vai casá aqui.
Ela levantou-se rapidamente e começou a pegar as peças
espalhadas pelo chalé.
Sentei na beirada da cama e segurei seu antebraço.
— Ei, potranca, o qui foi?
— Nada, preciso ir embora, Mirela e minha mãe devem estar
preocupadas.
— Num tão, não. Elas sabem qui tá comigo.
Ignorando-me, puxou o braço e continuou o que fazia. Em
questão de minutos, estava pronta para ir embora.
Abriu a porta e parou, eu continuava no mesmo lugar – com o
coração apertado. Querendo, de alguma maneira, mantê-la comigo.
— A gente se vê por aí, cowboy. — Falou e foi saindo.
— Laura — chamei e ela ficou no lugar.
— Pode mi ajudá?
Seus olhos se voltaram para mim e uma expressão de
interrogação me fez sorrir.
— Depende, acho que já te ajudei bastante hoje — desdenhou,
como se o que tivéssemos feito fosse meramente sexo.
Ela sabia...
Eu sabia...
Nenhum dos dois admitiria.
— Cê tem razão, mas é outra ajuda — entrei no jogo, porque
não demonstraria o quanto ela estava me desestabilizando. Até
porque, não tinha pensado em como lidar com os Bennett, com
relação à fazenda dela.
Fiquei em pé e arrastei a calça pelas pernas, sem me
preocupar em colocar a cueca, subi o zíper e deixei o botão aberto.
Ergui o rosto e vi a face de Laura corar. Seus olhos estavam
acompanhando todos os meus movimentos.
Com poucos passos, estava enfiando as mãos em seus
cabelos. Não pedi permissão, afundei minha língua em sua boca e a
apertei em meu corpo.
Eu não estava saciado...
Ela queria mais...
Nenhum dos dois pediria.
Laura ofegou e me empurrou um pouco. Desgrudei nossos
lábios e encostei a testa na dela.
— Sente isso? — Peguei sua mão e levei ao meu peito. O
retumbar do meu coração me ensurdecia. Queria mentir, mas estava
difícil demais.
Ela tirou rapidamente a mão e se afastou.
— Do que precisa, Kaíque? — perguntou, cabisbaixa.
A resposta estava na ponta da língua: você. Mas o que eu
realmente disse foi o conveniente.
— Vem na festa e traz Mirela e sua mãe — convidei de
supetão, na esperança de pensar em alguma coisa. Talvez, Lucca me
ajudasse a encontrar uma saída, conhecendo-as.
Não queria perturbar meu irmão com esses assuntos, no dia
do casamento dele, mas não sabia mais o que fazer.
— Por que me quer aqui? Sou a vilã da história.
— Lucca é um cara legal e Valentina, também — afirmei e dei
de ombros. A verdade é que eu queria tê-la ao meu lado, só não
queria admitir.
— Vou ver se consigo — disse e foi saindo. Encostei no
batente da porta e fiquei observando seu rebolado.
— Vai atravessá o lago nadano? — ironizei.
Laura parou e cruzou os braços – me encarando.
— É só pedir, potranca — provoquei e ela ergueu o queixo.
— Você foi me buscar no hospital, tem que fazer o serviço
completo — falou alto e, quando fui responder, Pedro parou ao lado
dela.
— Tarde, dona Laura — cumprimentou-a. Ela sinalizou sem
desmanchar a carranca. — Patrão, precisamos de você na fazenda
— avisou meu funcionário.
— Pedro, leva a dona Laura pra casa dela — pedi e me virei.
Não esperei a réplica da potranca. Eu tinha muito o que fazer com os
preparativos do casamento. Todos chegariam, inclusive os noivos.
Contratamos tudo do bom e do melhor: decoração, buffet,
fotos e filmagem. A imprensa já estava organizando seus apetrechos.
Porque, mesmo que a Valentina não tivesse ficado muito feliz, seu
casamento seria divulgado nas revistas de fofocas. Lucca sempre se
preocupou em divulgar a empresa, não perderia essa oportunidade.
Entrada Triunfal
∆∆∆
Laura

Voltamos à estaca zero. Acho que pior, porque, mesmo eu


não querendo admitir, Kaíque mexeu com cada grama da minha
mente.
Não tive coragem de contar à minha mãe, nem à Mirela, sobre
meu deslize. Sinto medo e... vergonha. Minha mente está uma
baderna completa. Para completar, nessa manhã, chegou a intimação
da filha bastarda do meu pai, ela entrou com pedido de participação
nos bens. A audiência está marcada.
Com o papel em mãos, sentada na antiga cadeira do meu pai,
não sabia como dar a notícia à minha mãe. Aquilo, certamente,
terminaria de destruí-la.
— Tá sabendo do festão que vai ter lá no Kaíque? — Mirela
entrou no escritório falando – toda empolgada.
Às vezes, queria inverter os papéis, minha irmã parece tão
alheia a tudo o que acontece à sua volta. Depois que Kaíque a tirou
da delegacia e ficou sabendo que temos uma irmã bastarda, nunca
mais chorou. Foi como se tivesse apertado delete para o fato de
fazer poucos meses que perdemos nosso pai.
Tanto eu, quanto Mirela, sempre fomos muito apegadas ao
nosso pai. Mas, seguramente, Mirela sentiu-se traída e decidiu parar
de chorar por ele. Por um lado, foi bom, não aguentava mais a revolta
dela, no entanto, estou com medo dessa nova Mirela. Sua confiança
me assusta. Não tem maturidade para lidar com as coisas.
— Sim — limitei-me a dizer, voltando a atenção à intimação.
— Ele não te disse nada? — insistiu e eu respirei fundo.
— Sim, Mirela. — Não queria dizer que tinha nos convidado.
Ela viraria uma sarna, até irmos.
Mirela se jogou na cadeira em frente à mesa estrondosa – do
século passado –, lambendo um pote de iogurte. Fiquei observando
sua falta de preocupação. Eu, na idade dela, já tinha conhecimento de
todos os negócios da família. Provavelmente, a culpa é minha e do
meu pai, ela ser tão imatura.
— O que quer dizer sim?
— Sim, quer dizer que ele me disse, não foi o que me
perguntou? — esquivava-me enquanto podia. Sabia que ela não
deixaria passar.
— Ele te convidou, não foi? Eu conheço o Kaíque, não faria
uma desfeita dessa com a gente.
Cruzei os braços e encostei-me na cadeira – erguendo as
sobrancelhas.
— Você o conhece, é?
Mirela deu de ombros e sorriu – convencida de que tinha a
maior de todas as intimidades com o nosso vizinho. Involuntariamente,
senti meu estômago dar uma pontada, não queria, mas era inevitável,
sabia que o foco do Kaíque era comprar a fazenda, e se ele partisse
para cima da minha irmã? Imatura e com os hormônios em ebulição...
Chacoalhei a cabeça – desvencilhando as merdas que passavam por
ali.
— Ele é gente boa, só você não percebe isso, até a mamãe
concorda comigo — prosseguiu e soltei o ar que nem tinha notado
que segurava.
— Ok, Mirela, terminou sua defesa? Tenho um monte de
coisas pra fazer — dispensei-a sem prolongar o assunto.
— Claro que não terminei, ele convidou ou não a gente?
Bufei e balancei a cabeça. Se eu mentisse, seria pior, assim
que Mirela encontrasse com ele, ia querer saber o porquê de não ter
sido convidada. Ela tinha razão, Kaíque não deixaria de nos convidar.
Mesmo que por interesse.
— Sim, convidou, satisfeita?
Em um nanosegundo, Mirela estava pulando pelo escritório,
com os braços para cima.
— Se não venho perguntar, ficaríamos aqui, sua tonta!?
— Ficaríamos? Eu vou continuar aqui — avisei e fiquei em pé –
empurrando minha irmã para fora do cômodo.
— Mas, não mesmo. Vai, agora mesmo, colocar seu melhor
vestido. Sabe aquele cáqui com azul, da cor dos seus olhos? É com
ele que vai. Vai deixar o cowboy de quatro por você — divertiu-se,
ignorando completamente minha tentativa de tirá-lo do local.
Mirela inverteu os papéis. Pegou no meu braço e foi me
empurrando em direção ao meu quarto.
§§§§
Cheguei à entrada da fazenda vizinha e avaliei se deveria ou
não continuar. Tinha uma fila de carros, um mais luxuoso do que o
outro. Se tivesse que contar, não conseguiria, a quantidade de
seguranças falando em seus headphones.
Entrei na fila de carros e suspirei.
— Vamos voltar, Mirela — anunciei e já fui engatando ré na
camionete.
Mirela colocou a mão em cima da minha.
— Pare de ser covarde.
Virei o rosto e ri ironicamente.
— Covarde!? Tem certeza de que escolheu a palavra certa?
Não vê que não fazemos parte desse mundo, garota? Abra os olhos.
— Eu não falava – gritava e gesticulava com o dedo em riste no nariz
dela.
Mirela segurou meus braços e ficou com o rosto bem pertinho
do meu.
— C.O.V.A.R.D.E! — repetiu pausadamente. — Não quer
admitir que se apaixonou por ele. Fica com essa idiotice de uma
promessa ridícula que fez para um homem que estava
CAGANDOOOO pra gente!
Soltou meus braços bruscamente e cruzou os dela – fazendo
um bico. Ouvi uma buzina e fechei os olhos – balançando a cabeça.
Enquanto discutia com a Mirela, uma fila de carros se formou atrás de
nós. Sair dali seria bem mais complicado.
Engatei primeira e segui – mordendo os lábios.
— Não pode ser tão ingrata, Mirela — prossegui, depois de
um tempo ponderando no que ela tinha dito do nosso pai.
— Ah, não, é? Ele pensou na mamãe, na família que ele tanto
pregava que era o que mais importava, antes de sair trepando por aí?
— cuspiu, completamente alterada.
Virei subitamente e arregalei os olhos.
— Mirela!
— O que foi? Só porque ele morreu, não tenho que sentir nojo
do que ele fez?
— Faz muito tempo, Mirela, a gente nem existia — defendi-o,
mesmo que, lá no fundo, sentia-me traída, também. Mas não podia
deixar que isso mexesse como a minha cabeça.
— Está me dizendo que tudo bem, o fato de nós não
existirmos? Tudo bem ele ter magoado a mamãe? Tudo bem ela estar
depressiva depois que descobriu toda essa merda? Tudo bem aquela
vaca querer pegar o que é da nossa família por SEIS GERAÇÕES!!!
Como ele adorava gritar para todos os ventos? — Mirela estava
totalmente alterada, ela gritava e soluçava junto.
Engoli em seco e me arrependi de ter falado sobre aquilo
naquele momento, era o pior momento. Estiquei o braço, alcancei a
sua mão e apertei de leve. Mirela fungou e virou o rosto para a janela.
— Tudo bem, pequena, a gente vai superar, prometo. — Eu
precisava acalmá-la. Precisava ser forte, porque, afinal, quem seria?
Ela olhou para mim e concordou.
A fila parecia não ter fim. Conforme nos aproximávamos, meu
coração disparava. Temia não conseguir lidar com as coisas que
estavam acontecendo comigo. Ficou muito claro, tanto para mim,
quanto para o Kaíque, que o que fizemos foi meramente sexo – para
suprir um desejo crescente entre nós. Mas... talvez... meu coração
não estivesse concordando.
Tentei baixar um pouco mais o vidro da camionete, assim que
paramos na entrada, meu braço só faltou cair, a manivela não ajudava
e o vidro estava torto.
— Espera um pouquinho — avisei o segurança que ficou me
olhando impassível.
Com as duas mãos, fui deixando-o reto, ao mesmo tempo que
dava voltas na manivela. Ouvi um ruído estranho, olhei para trás,
Mirela ria baixinho, as lágrimas escorriam de seus olhos, de tanto que
ria da minha cara.
— Está engraçado pra você?
Ela deu de ombros e colocou a mão na boca – contendo-se.
Senti o suor escorrer pelas minhas costas. Sem paciência,
fechei os punhos e comecei a esmurrar o vidro para baixo, com um
estrondo, ele abriu totalmente, na verdade, caiu no vão da porta.
Ajeitei a postura e sorri.
— Prontinho — disse e o segurança franziu o cenho.
— Nome, por favor — perguntou, descrente de que meu nome
estaria em sua lista de gente podre de rica.
— Laura e Mirela Ferreira — respondi confiante.
O segurança vasculhou em sua lista, uma, duas, três...
Respirei fundo e já me preparei para invadir o local e dar na cara do
Kaíque.
— Não estou encontrando.
Fechei os olhos e suspirei.
— Olha direito, meu filho — gritou Mirela, esticando o corpo
por cima do meu.
Estava prestes a sair do carro, um Kaíque maravilhosamente
vestido, chegou.
— Pode dexá entrá, são minhas convidadas — autorizou o
segurança. — Desculpa, meninas, num passei seus nomes, essa lista
é dos convidados do Lucca e da Valentina.
Meus nervos já estavam em frangalhos. Na certa, o vestido
grudava nas costas, pelo esforço em tentar abrir o vidro e a
expectativa de entrar. Não tive muita reação.
Com toda aquela espera, eu tinha desligado o carro e tinham
feito outra fila paralela, para que os convidados pudessem entrar, ou
seja, deviam estar me adorando.
Sorri e dei partida no carro.
— Enhem... enhem... enhem...
— Pega, cacete — praguejei e quase voei no pescoço do
Kaíque, dali de dentro mesmo.
O filho de uma égua estava com o um sorriso debochado no
rosto.
Tentei mais uma vez.
— Enhem... enhem... enhem...
Mirela, impaciente, abriu a porta e desceu. Passou pelo
Kaíque e deu um beijo em sua bochecha.
— Obrigada por nos convidar — agradeceu e caminhou para
dentro da fazenda, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— Desculpa, não consigo fazer ela pegar — falei o óbvio.
Kaíque se aproximou e eu segurei o ar instantaneamente. Seu
cheiro consegue me desestabilizar totalmente.
O cowboy de araque estava vestido como um verdadeiro rei
do gado. Não achei que fosse possível Kaíque ficar mais lindo. Na
certa, fazia parte dos padrinhos, não acho que ele vestiria um terno
tão comportado como aquele. Era a primeira vez que o via sem suas
botas, cinto de fivela e chapéu – tirando, é claro, o dia que o vi nu.
Seus cabelos úmidos e a barba cerrada conseguiram tirarem o meu
foco. Senti as pernas amolecidas e a linha de suor nas minhas costas
ficou mais intensa.
Ele abriu a porta e esticou o braço – oferecendo a mão para
que eu pegasse, não tive escolha – a não ser aceitar.
Desci do carro e ele me puxou para o seu peito. Cheirou meus
cabelos e roçou os lábios na minha têmpora.
— Cê tá linda, potranca — sussurrou e sorri de canto, sem que
ele visse, é claro. Nunca eu admitiria estar gostando.
Desvencilhei-me dele o olhei séria.
— E agora? — indaguei, apontando com a cabeça para o
carro.
Ele não respondeu, colocou os dedos na boca e deu um
assovio agudo, como um cachorrinho adestrado, Pedro chegou
rapidamente.
— Pedro, leva essa geringonça lá pra dentro — ordenou e
Pedro balançou a cabeça.
Eu nem podia reclamar de como ele se referiu ao meu carro,
porque, naquele momento, minha vontade era tacar fogo nele.
Kaíque dobrou o braço e fez um sinal com a cabeça para eu
entrelaçar o meu no dele, aceitei e fiz o que me pediu, assim poderia
enfrentar melhor aquela gente esnobe.
Caminhamos em direção à festa. O lugar estava
maravilhosamente lindo. Olhava de boca aberta. Nunca fomos pobres,
mas nunca fomos podres de ricos. Por mais que eu já tivesse
frequentado lugares requintados, aquilo estava acima de qualquer
coisa que eu já tinha visto.
— Num achei que cê conseguia ficá mais bonita, potranca —
disse, exatamente o que pensei dele, quando o vi. Novamente, sorri
de canto.
— Você, também, não está nada mal — brinquei e o cutuquei
com o meu cotovelo.
Meu vestido era longo, no entanto, na frente tinha uma fenda
que chegava até as coxas. Bem acinturado, valorizando minhas
curvas. Na cor cáqui com nuances de azul, da cor dos meus olhos,
como Mirela disse. Usava botas de cano alto, colar e brincos com
pedras da cor do azul do vestido, o colar acompanhava o decote
nada modesto, a manga três quartos o deixou mais elegante.
Nos aproximamos e meu coração deu uma pequena parada,
ao ver muitos Bennett – no mesmo local.
Vulnerável
∆∆∆
Gabrielle

O médico me olhava de esguelha – ressabiado. Embora ele


soubesse que sou policial, a presença de João Pedro o deixou
encabulado.
— João é o meu parceiro — esclareci, mesmo que ele não
tivesse pedido explicação.
O médico olhou para João que respondeu com seu sorriso
encantador.
— Como estão suas mãos? — indagou-me pegando-as. Dei
de ombros e respirei fundo.
— Pode tirar essas ataduras? Estão me incomodando.
Ele ergueu as sobrancelhas e ficou me olhando sério.
— Deixa-me trocá-las, assim posso analisar com cuidado.
Não era função dele fazer aquilo, nunca foi, na verdade.
Enquanto ele tirava as faixas de uma das minhas mãos, observei o
cuidado que estava tendo comigo. Até aquele momento, não tinha
percebido o quanto ele era novo, provavelmente, da mesma idade
que eu. Aspirei um pouco mais forte, absorvendo seu perfume suave.
Seus cabelos pretos estavam muito próximos do meu rosto, consegui
analisar sua espessura; cor; cheiro; quantidade; milimetricamente.
Meu olhar desviou-se um pouco para suas mãos, à procura de
uma aliança – nada. Ergui os olhos e João tinha uma sobrancelha
erguida, me escrutinando. O filho da mãe me conhece muito bem.
Assim que as ataduras foram eliminadas, senti o toque sedoso
da mão do médico. Puxei, um pouco mais forte, o ar dos pulmões.
Minha reação provocou um erguer no canto dos lábios do João.
Estreitei os olhos – em aviso, ele ergueu as mãos em rendição e saiu
da sala, que tinha a porta aberta.
Voltei minha atenção às nossas mãos. Fiz uma careta ao
verificar a condição nada boa das minhas. O médico ergueu o rosto e
ficamos com nossos narizes muito próximos. Foi a vez de ele puxar o
ar com mais força. Fiquei ereta e sorri sem graça.
— Como está doutor? — perguntei tentando amenizar o clima
esquisito.
— Kauê — sussurrou. Enruguei a testa e ele sorriu de lábios
fechados. — Pode me chamar de Kauê.
— Ah! — Sorri, também.
Há quanto tempo não me sentia desconcertada? E nem era
uma flertada. Talvez, como eu estava em um momento de fragilidade,
começava a ver coisas que não existiam.
O médico, certamente, estava sendo educado, já que
passaríamos muito tempo juntos. Só naquela manhã, já fazia horas
que estávamos ali. Como ele mesmo tinha dito, eu tinha passado por
uma bateria de exames. Confirmando minha compatibilidade, eu seria
a doadora do rim para salvar a vida da minha mãe.
— Não posso tirar as ataduras, Gabrielle, precisa cicatrizar
mais — alertou, enquanto cuidava das feridas, antes de voltar a
enfaixar minhas mãos.
— Gabi.
— Como? — inquiriu, erguendo o rosto.
— Pode me chamar de Gabi.
Meu Deus! O que deu em mim? Não estava me
reconhecendo. Nunca fui de flertar com ninguém – nem tive tempo
para isso. Tenho uma dificuldade enorme em confiar nas pessoas,
principalmente, nos homens. Eu sei que não sou muito justa com os
homens que estão ao meu redor, afinal, eles não têm culpa, se o
velho conseguiu estragar minha cabeça.
— É justo — disse com um sorriso mais largo.
— Podemos ir? — João Pedro interrompeu o momento,
voltando à sala, me lembraria de agradecê-lo depois. Se tem uma
coisa que odeio nessa vida é sentir-me vulnerável. A vulnerabilidade
me destruiria e, pior, a vida da minha mãe.
— Sim — confirmou o médico, terminando os curativos.
Desci da maca em que estava sentada e alcancei minha bolsa,
passando-a pelo meu corpo. Fiz uma careta, assim que caiu a ficha.
Eu não estava indo para minha casa. Estava presa.
— Ai, cacete! — praguejei mais alto do que deveria.
— Algum problema? — questionou Kauê – preocupado.
Fingi sentir tontura e apoiei as mãos na maca – baixando a
cabeça.
A Festa
∆∆∆
Kaíque

M esmo que eu quisesse evitar não conseguiria, o sorriso


satisfeito dominou meu rosto. Andava, pelo espaço decorado, com a
Laura atrelada ao meu braço, sentindo-me o homem mais sortudo da
festa.
Podia ter um bando de esnobes ali, arrogantes e hipócritas,
mas ninguém era como ela. Laura não consegue esconder o que
sente, seus olhos são literalmente o espelho de sua alma. Ela não
tem medo de expor o que pensa. Não se preocupa com o que as
pessoas estão achando de suas atitudes. Sua postura altiva e sua
confiança, afastaram qualquer um que tivesse pensado em
menosprezá-la.
O fato de estar comigo ajudou bastante, também.
Nos aproximamos de Lucca e enchi o peito. Queria que ele
conhecesse Laura, certamente veria o mesmo que eu. Esperava que
pudesse pensar comigo em como sair daquele bico de sinuca.
— Lucca, essa é a Laura — apresentei-os e Lucca, galante
como é, pegou a mão dela e beijou o dorso, fazendo uma referência.
— Lisonjeado, dama — pronunciou com seu sorriso galante.
— Nossa, um Bennett educado — divertiu-se Laura, olhando
diretamente para mim.
Joguei a cabeça para trás e gargalhei.
— Num sô educado, potranca?
— Acha que alguém que me chama de potranca está sendo
educado? — perguntou ao meu irmão e ele ergueu as sobrancelhas
em sinal de concordância.
— Bom, acho qui si ele ti conhecesse como eu, ia concordar
comigo — provoquei e ela me deu um soco no ombro.
Foi a vez do Lucca cair na risada.
— Seja bem-vinda, Laura. Valentina vai gostar de te conhecer.
— Lucca continuava sendo um gentleman, como só ele sabe ser.
— Tá ansioso, garoto? — Peguei em seu ombro e dei um
pequeno aperto.
— Meu coração está quase saindo pela boca — confessou
Lucca, levando a mão ao peito – fazendo um drama com a
expressão.
Gostei de ver o sorriso que a atitude dele provocou em Laura.
Queria que ela se soltasse, porque, desde o momento em que
entramos, estava tensa. Eu sabia que, na cabeça dela, estava em
território inimigo. Até certo ponto, ela não estava errada, mas
encontraria uma maneira de reverter aquela situação.
Cumprimentamos mais alguns convidados e senti-me aliviado
ao saber que o senhor Isaac e o Henry não tinham confirmado a
presença.
— Enrico — cumprimentei meu irmão. — Qui bom qui veio.
— Kaíque — respondeu tímido. — Lucca insistiu.
Assim como eu, Lucca tenta, a todo custo, que nos juntemos.
Embora vivamos distantes um dos outros, temos um pai em comum e
uma empresa bilionária para administrar. Não queremos nos tornar
um Isaac Bennett – sanguessuga.
Enrico mora em Curitiba, é bem diferente da maioria de nós,
todo tímido. Muitos o chamam de nerd, porque sua área é a da
tecnologia. Aos trinta e dois anos, já fez alguns cursos superiores e
tem até doutorado.
— Essa é Laura, minha... — Olhei-a e não soube como
apresentá-la ao meu irmão. Lucca conhecia a história então não
precisei rotular.
— Amiga — adiantou-se Laura e esticou a mão para ele.
Ele anuiu, esticou a mão e arrumou os óculos no rosto –
baixando o olhar. Me pareceu com vergonha de olhar o decote da
potranca. Tudo bem, vamos combinar, ela não teve muita piedade de
nós. Não fosse a calça de “engravatadinho” que eu estava usando,
teria problemas com os meus costumeiros jeans justos.
Apresentei Laura a mais algumas pessoas e a levei para as
cadeiras, onde aconteceria a cerimônia. Mirela acenou, mostrando um
lugar ao seu lado. A garota já tinha se enturmado com um pessoal da
idade dela.
— Vô tê qui participá da cerimônia, Lucca fez questão —
avisei e ela entendeu.
Virei-me e ela pegou no meu braço – impedindo-me. Olhei-a
por cima do ombro.
— Obrigada — agradeceu – constrangida.
Sorri e balancei a cabeça.
§§§§
— Eu, Valentina Gonçalves, aceito ser sua esposa, te amar, te
honrar, ser sua companheira. Prometo aceitar que seu rosto está
estampado em cada página da internet que eu abro... — Lucca sorriu
e as pessoas da plateia, também. — Aguentar seu ego gigante e
ajudar você a entender que, a partir de agora, só eu posso tocar em
você... — Mais risadas na plateia. Enquanto Valentina falava, Lucca
se desmanchava. Seu rosto demonstrava o quanto a admirava. — ...
prometo me segurar, caso alguma fã venha pedir autógrafo, desde
que não te toque, é claro. — Valentina estava tirando boas risadas
dos convidados. Tudo bem que, se eu fosse o Lucca, ficaria esperto.
A garota se mostrava um pouquinho possessiva.
— Eu, Lucca Bennett, aceito ser seu esposo, te amar, te
honrar, ser seu companheiro. Prometo te dar umas aulas de direção,
principalmente, saber ler as placas de trânsito. — Valentina estreitou
os olhos e todo mundo voltou a rir.
Antes que ele continuasse, ela pegou de volta o microfone.
— Eu tenho culpa que, na minha cidade, quem tá entrando no
balão que tem preferência — defendeu-se e Lucca sorriu largamente.
— Prometo te ensinar que o nome certo é rotatória —
continuou e as risadas na plateia foram maiores. Mesmo que
Valentina mantivesse a testa franzida, Lucca continuou provocando-a.
— Prometo arrumar um lugar para abrigar a Penélope, porque a
coitada passou da hora de se aposentar.
Algumas pessoas perguntavam, umas para as outras: “Quem é
Penélope?”, eu sorria. O casal era divertido, incontestavelmente.
Estava muito bom para ser verdade. Os olhares dos noivos
foram para o final das cadeiras que acomodavam os convidados e os
segui com o meu. Estremeci. Lá estavam as pessoas mais
indesejadas: Isaac e Henry Bennett – parecendo dois políticos
insuportáveis.
Sem serem convidados, atravessaram o tapete vermelho que a
noiva tinha entrado e se acomodaram no palco – ao nosso lado.
Respirei fundo. Instintivamente, meus olhos foram para a Laura. A
potranca estava pálida.
O senhor Isaac ergueu as sobrancelhas e apontou com a
cabeça para que Lucca continuasse. Meu irmão limpou a garganta e
riu nervosamente. Vi quando Valentina fez um sinal para que ele
deixasse para lá e se concentrasse.
O clima, que anteriormente estava descontraído, ficou tenso.
O juiz de paz terminou a parte burocrática e pediu que os
noivos se beijassem.
— Um minuto — interrompeu o “todo poderoso”.
Lucca e eu nos entreolhamos, preparando-nos para o ataque.
Isaac Bennett não estava ali à toa. Ele caminhou até onde estavam os
noivos e se apossou do microfone que estava próximo. Respirei fundo
e cerrei os punhos ao lado do corpo. O histórico do relacionamento
de Lucca e o nosso pai não é bom.
— Então, o meu pequeno atrevido resolveu se amarrar —
desdenhou, olhando diretamente ao Lucca – que tinha uma expressão
assassina. Claramente, Valentina o controlava. Deu mais uns passos
e pegou na mão da Valentina. Pensei que Lucca fosse voar no velho.
Um olhar de Valentina e ele se controlou. — Bem-vinda ao jogo, minha
pobre garota — pronunciou com uma arrogância de assustar até
mesmo o presidente da república. — Prepara-se para jogar como
uma Bennett, porque não aceito ninguém fraco usando meu nome.
— Chega, pai! — intercedeu Lucca e foi tirando o microfone da
mão dele.
— Pode deixar, Lucca. — Valentina afastou um pouco o marido
e pediu o microfone ao sogro. O velho abriu um largo sorriso e o
entregou. — Obrigada por ter vindo à cerimônia, sogro — ironizou
com um sorriso sarcástico no rosto. — Mesmo que não tenha se
dado ao trabalho de me conhecer direito — prosseguiu —, posso te
garantir que estou preparada para enfrentar qualquer coisa pelo seu
filho, até mesmo, você. — Ele tentou falar, ela ergueu o indicador, em
aviso que não tinha acabado. — Eu amo seu filho, e jogarei, se for
preciso, para estar com ele.
O velho escancarou o sorriso, mostrando seu dente de ouro
amedrontador e bateu palmas. Olhou para a plateia e fez um gesto
com as mãos para que ficassem todos em pé. Assim que todos o
obedeceram, ele tomou o microfone da mão dela.
— Essa é minha nora — gabou-se e a puxou para um abraço.
Lucca avançou nele e tirou rapidamente os braços do pai de
volta da esposa. Eu estava muito perto e pude ouvir meu irmão
ordenar-lhe entredente:
— Nunca mais encoste essas suas mãos nojentas nela. Pensa
que eu não sei o que faz com as mulheres?
O velho arregalou os olhos e soltou-se rapidamente da nora.
Arrumou seu paletó estrondosamente caro e se afastou. Fiquei sem
entender nada. Lucca sabia de algo que não tinha compartilhado com
ninguém. Algo muito forte, para colocar o velho em seu lugar.
Os noivos caminharam pela passarela acompanhados de
aplausos. Começaram os cumprimentos e fotos.
Corri os olhos pelo espaço à procura dela, de repente, senti
uma necessidade insana de protegê-la. Se Valentina, que estava ao
lado deles na empresa, e não tinha nada que o velho pudesse
ameaçá-la, ele quase massacrou, imagine o que faria com a Laura?
Só de pensar, cerrei os punhos e dentes.
A procurei e não a achei, comecei a me arrepender de tê-la
convidado. Ele não podia saber que ela estava ali. Ao longe, avistei
Laura em pé, na beirada do deck, com os braços envoltos no corpo.
Sorri instintivamente e fui até ela.
Passei os braços em volta de seu corpo pelas costas e senti
Laura respirar fundo. Beijei o topo de sua cabeça.
— Ei, potranca, num vai comê, não? — descontraí, já que ela
estava ali, tinha que fazer com que parecesse normal. Não queria
demonstrar o quanto estava apavorado.
Eles não viriam apenas para o casamento do Lucca,
certamente, aproveitaram a oportunidade para resolver a questão da
compra da fazenda.
Laura virou o rosto para mim e ficou me olhando por uns
instantes. Achei que meu coração fosse pular do peito.
— Tô fodido — deixei escapar o que passava pela minha
cabeça. Um sorriso de canto desenhou seus lábios.
— Espero que eu não seja o motivo — divertiu-se – sem se
desvencilhar de mim. Estranhei, afinal, a potranca é muito arisca.
— Uai, qual outro motivo eu teria? — entrei na brincadeira,
aproveitando o máximo aquela aproximação.
— Como posso ajudar, cowboy?
— Acho qui consegui. — Ela franziu o cenho. — Ti amansá na
cama. — Laura enfiou o cotovelo no meu abdômen e eu gemi,
recuando um pouco para trás.
Ficamos um tempo quietos, olhando o lago. Ouvíamos o som
das pessoas ao longe e a água passando pelos moinhos. Apertei
mais meus braços em volta dela e beijei sua têmpora. Para falar a
verdade, não sabia o que dizer-lhe.
— Laura... — comecei devagar.
— Hum.
— Preciso qui mi ajude — implorei, porque, se ela
colaborasse, tudo ficaria mais fácil.
— Não vou vender a fazenda — respondeu de cara e foi
tirando meus braços dela.
Virou seu corpo para mim e me encarou. Respirei fundo e
peguei em seus ombros, fazendo-a me olhar nos olhos.
— Eles num vão desisti, vão passá por cima di nós dois.
Ela deu de ombros e baixou os olhos. Assim que os ergueu
novamente, empalideceu e engoliu em seco – olhando por cima dos
meus ombros. Virei o rosto e vi o motivo.
— Não vai me apresentar, filho? — Não esperou eu ter reação,
até porque, fiquei atônito. — Meus filhos têm essa péssima mania de
se enrabichar e não me contarem — ironizou e foi pegando a mão da
Laura, sem permissão. Contraí o abdômen, lembrando-me das
palavras do Lucca. — Isaac Bennett, linda. Qual a sua graça?
Laura, arisca como é, puxou a mão e fechou a cara. Deu uns
passos para trás e estufou o peito.
— Laura Ferreira.
Fechei os olhos e meneei a cabeça, a merda estava feita. O
velho, imediatamente, somou dois mais dois e soube quem era ela.
Abriu um sorriso maléfico e me olhou. Balançou a cabeça e nos
deixou.
Coloquei as mãos nos quadris e baixei a cabeça – meneando-
a. Depois de alguns segundos, que pareceram horas, finalmente, me
pronunciei:
— Desculpa — murmurei, sem ter coragem de encará-la.
— Tudo bem... — suspirou — vou embora — avisou e saiu.
Não sei quanto tempo fiquei ali, esperando a festa começar a
acabar para eu pegar o Lucca. Meu irmão tinha algo contra o nosso
pai, isso poderia ser uma maneira de pressioná-lo. Sentia-me muito
mal em querer atrapalhar o casamento do meu irmão, mas meu
tempo tinha acabado.
§§§§
Eu tinha um sorriso forçado no rosto. A maioria das pessoas
que estava ali eu não conhecia. O fato de saber que Laura tinha ido
embora deixou-me um pouco aliviado. Tive medo da capacidade do
meu pai, de piorar tudo.
— Kaíque. — Virei o rosto em direção a voz que me chamava
e meus nervos endureceram – Henry. — Vamos conversar, papai nos
espera. — Papai, esse cara é ridículo.
— Tem qui sê agora? — Eu ainda não tinha tido uma
oportunidade de falar com o Lucca.
— Agora — determinou e saiu andando. Sem opção, o segui.

Isaac Bennett tinha escolhido uma mesa um pouco afastada.


Sua postura não negava que se acha o rei do mundo. Provavelmente
seja, afinal, seu dinheiro compra tudo e todos. Infelizmente, no nosso
país, é difícil algo que não se compre com dinheiro.
Me acomodei de frente ao dois e me preparei para o embate.
Tinha que criar uma tática rápida, para despistá-los. Se eu ganhasse
tempo, depois, junto com o Lucca, traçaria um plano mais elaborado.
Naquele momento, só o que eu precisava era de tempo.
O que mais meu pai quer em um Bennett? Capacidade de
jogar e ganhar. Coragem, força. Se eu quisesse convencê-lo não
poderia, de maneira alguma, demonstrar fraqueza, caso contrário, ele
passaria como um rolo compressor pela Laura. Não mediria esforços.
Compraria até o presidente da república, mas tiraria a fazenda dela.
— Então, vejo que está íntimo da roceira. Aliás, gostosa pra
caralho a garota — iniciou o velho, apertando todos os botões do
meu cérebro. Tive que ser muito forte, vendo-o falar com um olhar
malicioso de Laura. Calma, Kaíque, aproveite a deixa.
Sorri maliciosamente, como ele, e ergui as sobrancelhas.
— Ê, lasquera, cê tem razão, a potranca é gostosa pra
caralho. Qué vê na cama, a bicha é uma leoa. — O sorriso de
satisfação que surgiu nos lábios deles mostrou-me que eu estava no
caminho certo. — Mais um pouco e a potranca vai tá na minha. A
fazenda já é nossa.
A estratégia funcionou, a expressão do velho não deixou
dúvidas, o problema é o que veio a seguir. Ouvi um som estranho às
minhas costas e um sorriso vitorioso surgiu nos lábios de Henry.
Virei-me e vi Laura com a mão na boca e os olhos marejados.
Desistindo
∆∆∆
Laura

Nunca corri tão rápido na minha vida.


Eu preciso parar...
Eu preciso ser forte...
Não posso me entregar...
Fugir é a pior opção...
Volte, Laura, e encare a situação de frente, mostre que não é
qualquer uma. Mostre que quem foi usado foi ele.
Queria muito, mas muito mesmo, que o tempo voltasse. Que
meu pai estivesse vivo. Ele saberia como lidar com toda essa
situação. Jamais deixaria que alguém me rebaixasse.
Parei no meio da estrada de terra, inclinei o corpo para frente
e apoiei as mãos nos joelhos – ofegante. Fiquei alguns minutos
recuperando o fôlego. Estava decidida, eu voltaria lá e faria o maior
barraco. Colocaria àqueles Bennett no lugar deles. Deixaria bem claro
que não cederia. Enquanto eu tiver como lutar, nenhum deles vai
conseguir um grama de terra minha. Vão ter que me esperar cair.
Ergui o corpo e respirei fundo. Limpei as malditas lágrimas do
rosto com as costas das mãos – pronta para voltar. Virei-me e
estanquei no lugar. Lá vinha ele, em todo seu vigor, em cima de seu
cavalo. Aguardei que chegasse perto.
Ele parou ao meu lado, com uma expressão de
arrependimento. Nenhum dos dois falou. Após alguns minutos,
excruciantes, ele desceu de seu cavalo. Caminhou até uma árvore
próxima e o amarrou. Acompanhei cada movimento dele, passando
milhões de coisas na minha cabeça.
Kaíque virou-se e, mesmo um pouco longe, senti o magnetismo
de seu olhar. Meu corpo tremia e meus nervos doíam. Travei o
maxilar e, a cada passo seu – em minha direção, apertava os punhos
ao lado do corpo.
— Por que tava lá, ainda, porra!? — indagou entredentes e foi
como jogar gasolina no fogo – explodi.
Voei nele com murros em seu peito.
— Idiota... imbecil... quem você pensa que é? Não percebe
que eu só queria trepar com você? Trouxa... bundão... covarde!!!
Kaíque me esperou descarregar a raiva nele, sem se mover.
Ficou me olhando sério, com os braços largados ao lado do corpo.
Não tinha mais forças...
Não queria mais lutar...
Queria sumir...
Eu não podia cair...
Mas caí!
Senti as pernas amolecerem e as malditas lágrimas voltaram
como enxurradas..., não aguentei mais.
Enfiei o rosto entre as mãos e deixei vir...
Deixei que meu peito parasse de doer..., nem que fosse por
alguns minutos...
Me permiti ser apenas uma mulher frágil..., nem que fosse por
alguns minutos...
Senti os braços dele me envolverem...
Me permiti ser abraçada...
Afundei meu rosto em seu peito e o abracei..., me permiti ser
acariciada nos cabelos..., nem que fosse por alguns minutos.
— Eu... te... odei... o — balbuciei entre lágrimas.
— Eu sei.
Kaíque me apertou mais em seu peito e esperou que eu me
reconstruísse. Não sei quanto tempo ficamos ali. Sua mão não deixou
de alisar meus cabelos. Um beijo tenro foi depositado no topo da
minha cabeça.
Espalmei seu peito e o empurrei – afastando-me. Fiquei de
costas e abracei o corpo – olhando para o nada. Não estávamos tão
distantes, o barulho da festa era uma lembrança do que tinha
acabado de acontecer.
— Eu tinha qui ganhá tempo — justificou-se atrás de mim.
Não respondi de imediato. Precisava de um momento para
digerir tudo aquilo. Claro que era mentira. Ele jogava dos dois lados,
ficou claro isso para mim. Só que eu sempre soube do jogo deles.
Estão acostumados a ganhar e fazem qualquer coisa para isso.
— Não me procure mais, espere o banco tomar minhas terras
e as compre no leilão — decretei, virando-me de frente para ele.
Ele travou o maxilar e negou veementemente com a cabeça.
— Num faz isso, Laura — rogou, pegando em meu antebraço.
Estreitei os olhos e o encarei.
— Cansei do seu jogo.
— Só quero ti ajudá — continuou, sem me soltar.
Ri de nervoso e balancei a cabeça.
— Jura? Trepando comigo pra me convencer a te vender as
terras? Vocês têm um jeito estranho de ajudar as pessoas.
— Sabe qui num foi isso qui aconteceu.
— Não? Estou confusa, porque foi exatamente isso que eu
acabei de ouvir.
Kaíque respirou fundo e fechou um pouco os olhos.
— Laura... — suspirou. Puxei o braço de sua mão. —
Precisava qui eles acreditassem.
— Por quem você me toma, Kaíque? Acha que eu sou tão
burra assim? Você está aqui só pra comprar minhas terras. Agora
vem com esse papinho de que está do meu lado. — Cheguei bem
pertinho do rosto dele e falei pausadamente: — N.Ã.O S.O.U
B.U.R.R.A!
O próximo movimento dele me pegou completamente
desprevenida.
Kaíque me puxou, com uma das mãos na minha lombar e a
outra na minha nuca, atacou ferozmente meus lábios.
Inicialmente, tentei empurrá-lo, mas meu corpo cedeu.
Me permiti sentir...
Me permiti saborear sua língua...
Me permiti gozar de sua intensidade...
Nem que fosse por alguns minutos..., os últimos.
Kaíque desconectou sua boca da minha, juntou um pouco de
cabelos em minha nuca e inclinou minha cabeça para trás. Ficamos
nos olhando por longos minutos. Achei que meu coração fosse me
ensurdecer. Engoli em seco e ele sorriu de canto.
— É disso qui tô falando — constatou, pegando minha mão e
colocando em seu peito, que estava como o meu.
Recuperei a razão a tempo. Ri com ironia e fui tirando suas
mãos de mim.
Ajeitei meus cabelos e a roupa. Olhei diretamente nos seus
olhos, controlando o desejo de voltar para aqueles braços
incrivelmente acolhedores.
— Tchau, Kaíque. — Virei-me e comecei a caminhar em
direção à minha fazenda. — Vou enviar um guincho pra pegar minha
camionete — avisei sobre os ombros.
Mirela daria um jeito de voltar para casa, ela já estava bem
grandinha para eu ter que me preocupar. A verdade é que todos
estavam bem grandinhos, eu não tinha mais força para carregá-los.
§§§§
Os próximos dias foram os piores. Tudo vinha como uma
avalanche.
— Tudo bem — respondi cansada, ao juiz.
Era uma mesa grande e oval de mogno. A sala dava eco.
Sentia um frio fora do comum.
De frente estava minha irmã bastarda e sua advogada. Ao meu
lado, o antigo advogado do meu pai. Estava tão velho que eu nem
sabia como tinha conseguido chegar até ali. Mas eu não tinha dinheiro
para pagar outro. Aliás, nem ele. Só veio em consideração aos anos
de amizade com minha família. Por mim, já declarava que era minha
irmã e ponto, mas a parte burocrática é inevitável. Sem contar, que
minha mãe e Mirela exigiam um exame de DNA.

Lá fora, na calçada do tribunal, o advogado me lançou um


olhar complacente. Sorri de canto e passei a mão em seu ombro.
— Vai dar tudo certo — confortei-o, mesmo sabendo que
todas as minhas cartas na manga tinham acabado.
Depois dos últimos acontecimentos, voltei ao banco só para
constar o que já sabia: nada se podia fazer. Duas parcelas já
estavam atrasadas. O gerente, mais uma vez, tentou me convencer a
vender as terras. Nem me dei ao trabalho de responder – fui embora.
Parada na calçada do tribunal, decidi atravessar a rua e entrar
no estabelecimento do Umberto. Não tinha mais ninguém a quem
recorrer. Pelo menos ele, talvez, pelo tempo que estivemos juntos, me
socorreria.
As pessoas pararam suas compras e ficaram me olhando –
seguindo meus passos até o balcão.
— Oi — cumprimentei a atendente, que me olhava receosa. —
Umberto está? — Ela assentiu e engoliu em seco. — Pode chamá-lo?
Dedilhava os dedos no balcão e batia a ponta do pé no chão,
ansiosamente. Não queria olhar para as pessoas que me secavam
pelas costas. Sabia o que se passava pela cabeça delas. Só que não
tinha mais forças de brigar. Todas minhas energias tinham sido
sugadas.
Umberto se aproximou com uma expressão confusa. Fiquei
ereta e sorri forçosamente – não estava ali para brigar.
— Laura — cumprimentou temeroso.
— Oi, podemos conversar?
Ele olhou para trás e me olhou de volta. Coçou a nuca e baixou
o olhar.
— Não sei se é uma boa ideia.
— Por favor — implorei baixinho.
Ele me olhou hesitante.
— Seja rápida, estou ocupado.
Olhei para trás e para os lados, tinham muitos curiosos,
fingindo consultar preços, esperando para ouvir nossa conversa.
— Pode ser no seu escritório?
Ele negou rapidamente. Franzi o cenho. Ergui o rosto por cima
de seu ombro e avistei o problema – Cibele. Ri e balancei a cabeça.
— Claro que não — ironizei.
— Queria que eu ficasse em celibato? — censurou-me de
imediato. Ergui as mãos em rendição.
— Pode ser ali no canto, então?
Umberto aceitou e fez um gesto com a cabeça para irmos.
Esperei que as pessoas percebessem que eu precisava de um pouco
de privacidade, até começar a falar.
— Me desculpe — comecei.
— Pelo quê?
— Por tudo.
Ele colocou as mãos nos quadris, baixou a cabeça e a meneou
– com um riso nervoso nos lábios. Voltou a me olhar, com uma
expressão de mágoa.
— Você não tem ideia o que tá me pedindo, Laura. Não tem
noção do quanto eu sofri. — Fui tentar me defender, ele levantou o
indicador – me calando. — Sabe o que é você estar com uma pessoa
e fazer planos para o resto da sua vida? Planejar um futuro brilhante,
com tudo de melhor pra ela. Deslumbrar uma família. E aí... —
Alargou o riso, que de nervoso passou a ser irônico. — Chuááá... Um
oceano de água fria é jogado em você.
— Eu nunca...
— F.E.C.H.A A B.O.C.A — ordenou, cerrando os dentes.
Espremi os lábios, um no outro. — Agora você vai me ouvir, Laura.
Não quer conversar? Aguente firme, você mesmo disse que é forte
como um touro. Vai me ouvir, você aguenta, eu sei que sim.
Segurei o ar e travei o maxilar. Eu não poderia deixar que as
malditas lágrimas voltassem. Não ali, na frente dele e de uma plateia
intrometida. Eu tinha que me manter firme. Não tinha mais a quem
recorrer.
— Desculpa — sussurrei, sentindo uma laranja na garganta.
Eu precisava tanto do meu pai...
Eu precisava tanto de ajuda...
Eu precisava tanto de força...
Eu precisava tanto descansar.
Fazia dias que eu só trabalhava na fazenda. Dia após dia,
tirando leite antes dos primeiros raios de Sol apontarem. Alimentando
as aves. Limpando o estábulo. Arrumando cercas caídas. Correndo
atrás de fornecedores para não deixar meus bichos sem ração, milho,
sal, feno...
— É só isso que tem pra me dizer? Desculpa? Acha que
apaga os anos que fiquei com você, adaptando minha vida em cima
da sua? Pra quê? Com o casamento marcado, você falar, com toda
sua arrogância e frieza, que não foi feita pra ser mulher de ninguém?
Que nunca vai ser mãe? Acha que só desculpa basta?
Neguei e baixei o olhar. Não tinha pensado daquela maneira.
Não achei que o tinha magoado tanto.
— Devia ter te avisado antes — murmurei de cabeça baixa.
— Que era arrogante e fria? — provocou e eu ergui o olhar
marejado para ele. Dei de ombros.
— Não sei mais o que te falar — confessei, porque não tinha
absolutamente mais nada que eu pudesse fazer ou falar.
Ele ficou me escrutinando um tempo e forçou um sorriso
irônico.
— O que quer de mim?
— Preciso de ajuda.
— Não sei como eu poderia ajudar.
— Vou perder meu rebanho, não tenho como vaciná-los. Não
tenho mais dinheiro pra comprar alimento pra nenhuma criação —
descarreguei de uma vez.
— Acho que está colhendo o que plantou, Laura.
Eu segurava para não despencar ali, na frente dele e de muitas
pessoas que esperavam por isso. Nem sei como ainda conseguia
engolir a saliva. Parecia que passavam agulhas pelas minhas
amídalas.
— Vai me ajudar? — insisti.
— Vou ver — disse e foi saindo. Baixei o olhar e comecei a
inspirar e expirar, buscando me recompor. Não podia sair dali daquela
maneira. No meio do trajeto, Umberto voltou. Levantei a cabeça e
uma esperança tomou conta de mim. Ele me ajudaria. Não foi como
eu pensei. Ele colocou o dedo em riste no meu rosto e foi minha
queda total: — Você merece tudo o que está passando.
Meu corpo cedeu...
Não fui forte o suficiente...
Desculpa, pai...
Não tenho mais forças.
Umberto me deixou, sem olhar para trás. Apoiei os cotovelos
no balcão e afundei o rosto entre as mãos. Não me preocupei com a
plateia. Deixei que desfrutassem da minha derrota.
Chorei...
Chorei tudo o que não tinha chorado desde o funeral do meu
pai...
Chorei o que não tinha feito, enquanto fui forte para minha mãe
e... para minha irmã.
Braços me envolveram e eu não tive forças de empurrá-los. Na
certa, era alguém para me tirar dali. Estava atrapalhando o
andamento do comércio.
Só me dei conta de que eram os braços mais acolhedores que
eu já tinha conhecido, quando me virou e colocou minha cabeça em
seu peito.
Seu cheiro...
Seu toque...
Sua voz...
— Tô aqui, potranca.
Despedindo-se
∆∆∆
Gabrielle

— Deite-se aqui. — Kauê me guiou até a maca e me


ajudou a se deitar.
Acamada, olhei para o João Pedro parado na porta. Seus
olhos estavam apertados e os braços cruzados. Tinha os lábios
contorcidos – entendendo exatamente o que eu estava fazendo. Dei
de ombros e sorri de canto – sem que o médico pudesse ver.
— Ela está em jejum, por causa dos exames — explicou o
médico ao João Pedro, que continuava me olhando. — Acho que
poderia trazer algo pra ela comer, talvez, ela possa ir, depois de
comer — continuou.
João Pedro lançou-lhe um sorriso amarelo e confirmou com a
cabeça – nos deixando novamente.
— Obrigada — agradeci ao médico, querendo dizer-lhe que
precisava ficar por ali.
Kauê se aproximou da maca e colocou minha mão entre as
dele.
— O que está acontecendo, Gabi?
— Além do fato de minha mãe estar gravemente doente?
— Tem mais coisa — afirmou, sem soltar minha mão.
Baixei o olhar e fiquei pensativa.
— Posso ficar com a minha mãe? — pedi, sem explicações.
Kauê entendeu minha mensagem. Sabia que eu não diria, mas
não insistiu. Apenas assentiu. Respirou fundo e abriu a boca para
dizer algo...
— Pronto, um croissant e um café pra madame — brincou
João Pedro, voltando ao quarto.
Ele olhou para minha mão entre as do médico e ergueu uma
sobrancelha. Puxei rapidamente a mão e forcei um sorriso.
— Traz aqui, estou morrendo de fome — desconversei.
Ataquei o croissant com os dois me olhando. — Vão ficar me
olhando?
— Há quanto tempo que não come, Gabi? — questionou o
médico e João bufou atrás dele.
Kauê olhou para ele franzindo o cenho.
— Essa aí — João Pedro apontou para mim — é a pessoa
que mais se sabota. Se alguém não cuidar dela, logo vai se destruir.
— Exagerado — comentei, com a boca cheia.
Kauê ficou me analisando um tempo. Tomei uma golada do
café e desviei o olhar do dele. Começava a me incomodar. Ele,
certamente, conseguia me ler. Isso não é legal.
— Podemos ir? — apressou João, olhando em seu relógio de
pulso.
— Melhor a Gabrielle ficar em observação — comunicou Kauê
e eu segurei para não abrir um sorriso.
João Pedro enrugou a testa e me olhou. Mantive-me
inexpressiva.
— Não era só falta de comer? — insistiu João.
— Acho que me enganei, a pressão dela está alterada —
mentiu o médico.
Pela expressão do meu parceiro, eu sabia que ele tinha
entendido tudo. Sorte a minha que não questionaria. Ele só meneou a
cabeça.
— Ok, ela só não pode sair daqui sem mim, doutor. Não sei se
ela disse, mas...
— Não faça isso. — O interrompi.
Os dois me olharam.
Kauê, rapidamente, captou a mensagem. Não foi preciso
palavras. Ele pegou no ombro do João e deu um leve aperto.
— Ela não vai sair, pode confiar — garantiu e João nos deixou.
Amassei o guardanapo e joguei dentro do copo vazio, coloquei-
o na mesa ao lado da maca. Kauê permanecia ali, me analisando.
Respirei fundo.
— Então, posso ir ficar com a minha mãe?
Ele abriu o jaleco e colocou as mãos nos quadris. Uau! Pernas
grossas. Fui pega no ato. Ergui o rosto e ele sorria de canto.
— Você é encrenca, né!? — constatou, ergui as sobrancelhas
e virei as palmas das mãos para cima.
Kauê sorriu e apontou com a cabeça para a porta. Mais do
que depressa, desci da maca e o acompanhei. Tudo o que eu
precisava era ficar com a minha mãe. Ela, seguramente, traria
conforto para minha alma.
— Ela está em uma sessão de hemodiálise — explicou Kauê,
quando paramos em frente ao elevador.
— Tudo bem. — Enquanto aguardávamos o elevador chegar,
eu mudava o peso de uma perna para outra; mexia os dedos das
mãos; mordia os lábios...
— Gabi, se continuar assim, vou ter que aplicar um
tranquilizante em você — avisou Kauê, olhando-me sério.
— Tá tudo bem, estou acostumada, não se preocupe —
justifiquei-me, gesticulando para que ele desistisse daquela ideia
absurda.
Sorte a minha que as portas da caixa de aço abriram-se. Ele
fez um gesto para eu entrar primeiro. Me acomodei entre as pessoas
que estavam ali dentro e ele ficou logo à frente – conversando com
uma enfermeira – todo simpático.
O sorriso dele é meio confuso, um singelo com toque de
maroto, talvez. Ou, minha mente é que estava conturbada demais e
estava vendo coisas onde não existiam.
Assim que chegamos no andar, ele fez o mesmo gesto
cavalheiro para eu sair primeiro. Sorri e passei por ele. Queria dizer-
lhe que de dama eu não tenho nada. Que estou habituada com
“brutas montes” que falam palavrões o tempo todo. Mas estragaria
todo o meu momento “menininha”.
Pelo vidro, avistei minha mãe sentada junto de outras pessoas,
recebendo o tratamento. Ela estava muito abatida, sem aquele seu
brilho característico. Por vezes, a acompanhei às sessões de
hemodiálise, ela nunca se entregou. Só que... o quadro à minha frente
estava diferente.
Seus olhos estavam fechados e a cabeça apoiada no encosto
da cadeira confortável. Sentei-me ao seu lado, alcancei sua mão que
não tinha o cateter e acariciei.
— Meu amor — sussurrou, sem abrir os olhos.
— Oi — respondi baixinho e beijei o dorso de sua mão.
— Ainda sem o distintivo?
Ri e ergui os olhos ao Kauê, que estava nos observando em
pé. Ele só ergueu uma sobrancelha em entendimento.
— Não vamos falar disso, como você está? — desconversei.
— Já estive melhor.
Sua réplica fez meu coração ficar do tamanho de uma ervilha.
Nunca, em todo o tempo que minha mãe esteve doente, ela se
queixou.
— Mãezinha... — suspirei, engolindo as lágrimas que queriam
cair. — Vai ficar tudo bem — assegurei e Kauê baixou um pouco a
cabeça e saiu.
Durante os próximos minutos, alisei a mão gelada e fina da
minha mãe.
— Seu pai precisa dormir, Gabi. Converse com ele.
Ela continuava na mesma posição e parecia fazer um esforço
gigante para falar. Respirei fundo.
— Pode deixar — murmurei. — Sabe — continuei — hoje fiz os
exames, tenho certeza de que serei compatível.
— Hum.
Queria tanto que ela ficasse feliz...
Queria tanto que ela estivesse me dando broncas...
Queria tanto que ela me olhasse e continuasse sendo forte...
Queria tanto... ah... como eu queria!
Deitei minha cabeça no encosto da cadeira e fiquei observando
as luzes brancas do teto. Não larguei a mão da minha mãe. Parecia
cada vez mais gelada.
— Gabi.
Ergui-me bruscamente e arrastei o corpo para a beirada da
cadeira.
— Estou aqui, mãezinha.
— Promete uma coisa pra mim?
— Qualquer coisa.
Ela pensou um pouco. Umedeceu os lábios secos e apertou de
leve meus dedos.
— Esqueça aquela família. — Abriu devagar os olhos e virou
um pouco o rosto na minha direção. Concordei, porque eu não
poderia verbalizar uma promessa que não cumpriria. — Filha... —
Umedeceu novamente os lábios. — Ele tentou me destruir e eu não
deixei, Gabi. Não posso deixar que faça isso com você.
Um sorriso amargo surgiu nos meus lábios.
— Ele te destruiu, mãezinha. A diferença é que você é forte e
se levantou. Não vou deixar que ele saia impune.
— Filha, você já tem trinta anos e não conseguiu. Sabe que ele
tem poder e dinheiro pra se safar.
— Se a justiça não der jeito eu mesma dou.
Não sei se foi a melhor opção ter confessado minha vontade à
minha mãe. Sua expressão se modificou e seus olhos encheram-se
de água.
— Gabi...
— Mãezinha, não quero que se preocupe com isso, ok?
— Você é minha maior riqueza, filha. Não me importo com o
que ele fez lá trás, eu tenho você...
— Tá bom, mãezinha. Agora, fique quietinha.
Ela voltou a posição anterior e tivemos mais alguns minutos de
calmaria. Até ela começar novamente.
— Promete, filha. — Não respondi. — Gabi...
— Mãe, não quero mais falar disso.
Seus olhos cansados se voltaram para mim novamente.
— Quero ter certeza de que você ficará bem.
— Eu tenho você mãezinha, sempre estou bem.
Ela negou com a cabeça e sorriu sem abrir os lábios.
— Eu vou embora, filha. Chegou minha vez, eu sinto.
Dei um pulo, ficando em pé.
— Pare com isso. Nem brinca com uma coisa ridícula dessa —
repreendi-a. Aproximei meu rosto do dela e o alisei com as costas da
mão. — Você é linda, jovem, tem a mim, o papai, ainda vai viver
muito.
Outro sorriso que não chegou aos olhos.
— Preciso que me prometa, Gabi — insistiu.
Inclinei a cabeça para trás e fechei os olhos com força. Nem
era mais uma laranja que tinha na minha garganta, era uma melancia.
Uma lágrima idiota escorreu no canto do meu olho e eu a enxuguei de
imediato.
— Se eu prometer, você vai parar com essa conversa besta?
— perguntei, assim que voltei a encará-la novamente.
— Só quero ter certeza de que ele não vai te destruir, filha.
— Sou forte, mãezinha. Ele não tem como me machucar mais.
— Levei a mão ao peito e fiz um sinal de arrancar o coração. — Olha
o que ele fez com o meu coração. A prova disso está aqui à minha
frente.
— Gabi... pode cha... mar... não estou...
Pi... pi... pi... pi... o aparelho ligado ao seu coração começou a
gritar e eu fiz o mesmo, atrás de uma enfermeira.
Vitorioso?
∆∆∆
Kaíque

M eu humor não estava dos melhores nos últimos dias.


Desde o dia do casamento do Lucca, as coisas mudaram.
Todo aquele jogo tinha acabado para mim. Cheguei a pensar
em ir embora e deixar Henry assumir dali para frente. No entanto, se
fizesse isso, ele destruiria a Laura. Só de passar a possibilidade na
minha cabeça, sentia um instinto assassino me tomar.
Não achei que sentiria o que vinha sentindo, com a falta dela.
Como me pediu, não a procurei mais. A solução, por hora, era
esperar que o banco tomasse as terras e aí, entraríamos em ação.
Era a pior solução de todas, mas não tinha o que eu fazer, estava
acima de mim.
Meus dias eram trabalhar na fazenda, como sempre gostei de
fazer, e cavalgar. Passava horas sentado na beirada do deck do lago
que separa nossas terras. O barulho da água passando pelos
moinhos era relaxante. Lá no fundo, eu sabia que estava ali na
esperança de vê-la. Mesmo que de longe.
Disfarçadamente, questionava Pedro sobre como estavam as
coisas na fazenda de Laura, já que sua esposa trabalha lá. A
resposta dele, cada vez mais, me assustava:
“Dona Laura está se matando de trabalhar. Elisa disse que ela
quase não come e, quando não está fazendo as coisas da fazenda,
está trancada no escritório do pai.”
Por mais que Laura seja forte, eu tinha a impressão de que
estava prestes a cair. Meu peito doía em pensar que boa parte era
por nossa causa. Provavelmente, se não tivesse pressionado o
gerente do banco, ele daria um jeito de ajudá-la.
A caminho da cidade, sozinho na minha camionete, buscava
maneiras de contornar a situação. Passou pela minha cabeça vender
algumas propriedades que estavam no meu nome, desvinculadas da
empresa, para pagar as dívidas da Laura. Mas não tinha certeza se
resolveria o problema, afinal, a empresa encontraria outra maneira de
pressioná-la. A fazenda dela é a única que está entre as nossas.
Estacionei perto da agência bancária, estava certo de que me
sentaria com o gerente e tentaria convencê-lo do contrário do que
tinha dito inicialmente. Porém, para minha surpresa, vi a “geringonça”
parada ali perto. Meu coração deu alguns pulos imediatamente. A
potranca já tinha se enraizado em mim.
Vasculhei ao redor à procura dela e não a vi. Fui até a praça e
fiquei pensando onde ela poderia estar. Não precisei matutar muito.
Laura saiu do tribunal e conversava com um senhor meio encurvado.
De longe, me pareceu que os dois tinham algum tipo de intimidade.
Laura passou a mão em seu ombro e ele a deixou.
Escondi-me atrás de uma árvore da praça – sem perdê-la de
vista. Laura estava vestida formal. Tirando o dia da festa, estava
sempre de jeans, regata e botas. Diferente do que eu via. Vestia saia,
camisa social e calçava sapatos de saltos. Meu “amigo” deu sinal de
vida, quando a potranca atravessou a rua e vi seu traseiro na saia
apertada.
Quase corri até ela, impedindo-a de entrar naquele lugar de
novo.
— Eita, ferro, mas qui porra, potranca! — praguejei e não
perdi tempo em segui-la.
Como da outra vez, entrei na espreita e fiquei entre as
prateleiras abarrotadas de produtos agrícolas. O lugar cheirava a
ração e couro. Ao fundo, a avistei aguardando no balcão.
Estrategicamente, fui me acomodando – ela não podia me ver.
O dono do lugar apareceu e vi quando o peito dela se estufou.
Algo muito sério tinha entre os dois. De onde estava, não conseguia
ouvir direito o que falavam. Diferentemente da outra vez, Laura falava
baixinho.
Mudaram de lugar, favorecendo-me. Parecia que todo mundo
que estava ali dentro queria ouvir a conversa, porque um estrondoso
silêncio se instaurou no ambiente.
— Me desculpe — começou Laura.
Prestei atenção à postura dela, se mostrava completamente
derrotada. Nem parecia a mesma pessoa que eu conhecia. O cara
começou a tratá-la com muito desprezo. Precisei travar os punhos ao
lado do corpo, e me segurar. Minha vontade era tirá-la de lá, como
tinha feito da outra vez. Não aguentava vê-la sofrendo, era como se
estivessem enfiando uma estaca no meu peito.
— ...com o casamento marcado, você falar, com toda sua
arrogância e frieza, que não foi feita pra ser mulher de ninguém?
Que nunca vai ser mãe? Acha que só desculpa basta?
Como? Eles iam se casar? Porra!
Senti o maxilar estalar, de tanto que o apertava. Queria não ter
ouvido tudo aquilo, preferiria ficar na ignorância. Saber que ela o tinha
dispensado pelos mesmos motivos que eu a queria: ser minha mulher
e constituir uma família – com filhos.
Chacoalhei a cabeça e me concentrei na cena novamente,
porque, o que veio a seguir, destruiu minha potranca.
— Você merece tudo o que está passando.
Estremeci com a maldade da frase dita com tanta certeza.
Qual de nós tem o direito de julgar o quanto alguém é merecedor de
qualquer sofrimento? Principalmente do sofrimento de perder um pai?
Deixei de lado qualquer que fosse o sentimento que tinha tido
naqueles minutos e me concentrei nela. Assim que o imbecil se
distanciou, Laura desabou. Rapidamente, a envolvi em meus braços.
Ali, ela estaria segura – sempre.
— Tô aqui, potranca — garanti, apertando-a no meu peito.
Fui saindo com ela, ignorando os olhares vitoriosos das
pessoas. Estava quase na porta, ouvi meu nome.
Virei-me, sem tirar o rosto da Laura do meu peito. Era o tal
Umberto. Claro que saberia meu nome.
— Sim — respondi seco.
— Ela não vale seu esforço — destilou mais veneno e eu ergui
o canto do lábio num riso forçado.
— Aqui, num conheço a história toda, só o qui ouvi agora, mas
di uma coisa tenho certeza: nada ti dá o direito de dizer o qui ela
merece ou não.
Ele ergueu as sobrancelhas e deu de ombros.
— Quem avisa, amigo é.
— Num quero seu aviso, muito menos sê seu amigo.
Virei-me novamente e saí, com Laura aos prantos no meu
peito. Ela me abraçava tão forte, que quase me tirava o fôlego.
Fui carregando-a até minha camionete. No fim das contas, nem
me lembrava mais o que tinha ido fazer na cidade.
Acomodei-a no lado do passageiro, dei a volta e sentei em
frente ao volante. Um passar de olhos ao redor, avistei algumas
pessoas nos olhando e cochichando. Coisa irritante de cidade de
interior, as pessoas adoram cuidar da vida dos outros. As encarei e,
rapidamente, se dissiparam.
Liguei a camionete e saí. Até aquele momento, não tinha
reparado o quanto estava tenso. Só ali, apertando o volante, que
percebi. As veias dos meus antebraços estavam saltadas e as juntas
dos dedos esbranquiçadas. Mordia o lado de dentro das bochechas e
minha respiração estava alterada.
Não sabia o que mais tinha mexido comigo: ver a Laura sendo
humilhada ou saber que ela não queria a mesma coisa que eu.
Anos lidando com mulheres, reflexo da minha mãe:
interesseiras. Que me dariam quantos filhos eu quisesse, desde que
mantivesse suas vidas com todo o luxo possível. No entanto, nunca foi
o que procurei.
Quero algo que nunca tive: uma família. Daquelas que se
reúnem para as refeições; que saem de férias juntos; que se ajudam
nas dificuldades; que comemoram juntos as conquistas.
Pude ver, o pouco tempo que convivi com a Laura, que ela
aprecia as mesmas coisas. Basta ver o quanto está lutando para
manter um patrimônio da família. O quanto se preocupa com sua mãe
e irmã. Ouvir àquelas palavras da boca de seu ex, e ver que ela não
negou, destruiu algo que nem eu mesmo sabia que tinha construído
dentro de mim. Já na estrada, fui tirado dos meus devaneios.
— Você venceu — disse Laura e eu a olhei subitamente.
Nenhum de nós tinha pronunciado qualquer palavra. O ar de
dentro do carro era denso. Por mais que eu quisesse tentar amenizar,
como estava acostumado a fazer, não conseguiria. Boa parte daquela
densidade escapava do meu peito.
— Uai, di qui trem cê tá falando? — questionei, enrugando a
testa. Porque eu realmente não tinha captado a mensagem.
— Pode pedir para os seus advogados me procurarem —
continuou e eu inspirei uma boa quantidade de ar, tentando lidar com
aquela informação.
Não deveria estar espantado, afinal, qual era o meu objetivo?
Eu sabia que, mais dia, menos dia, conseguiríamos. Os Bennett não
jogam para perder. Mas não tinha ideia do quanto seria difícil ganhar
aquele maldito jogo.
Fui diminuindo a velocidade e entrei em um recuo da estrada,
às margens de uma plantação de café.
Desliguei o motor do carro e mastiguei o lábio inferior, quase
arrancando sangue. Que merda que eu faria dali para frente? Se tudo
o que me motivava nos últimos meses era minha interação com ela?
Achei que demoraria mais tempo. Inconscientemente, esperava que
Laura encontrasse uma maneira de me vencer. Sabia que era
impossível, entretanto, era uma forma de estar ali – com ela. Se
estava acabado, eu teria que voltar para a minha vida. Mas...
— Cê tá desistindo? — indaguei, virando meu rosto a ela.
Laura esfregava as mãos nas pernas e sua respiração
oscilava. Ela não me olhava, mesmo assim, conseguia ver os lábios
tremerem.
Virei o corpo todo na direção dela e me aproximei. Peguei em
seu queixo e a fiz me encarar. Seus olhos estavam inchados. Uma
pontada muito doída no meu peito me provocou um gemido baixo.
Aquilo era muito difícil. Não achei que veria a potranca se entregar.
— Não sei como... — Baixou a cabeça e balançou – engolindo
em seco. — Vou falar pra minha mãe... e... Mirela... Meu Deus! —
Afundou o rosto entre as mãos.
Cerrei os olhos e os dentes – sem ter a mínima ideia de como
agir. Alguns instantes de um silêncio que ensurdecia e Laura ergueu
novamente seus olhos para mim. Eu continuava estático.
— Eu posso ajudar — pronunciei baixinho, porque era o
mínimo que eu podia fazer. Não a deixaria sozinha.
Ela riu de nervoso e negou com a cabeça.
— Por que não está comemorando, cowboy?
Umedeci os lábios e fiquei um tempo olhando diretamente nos
olhos dela – buscando aquela Laura que o veterinário tinha descrito.
Não a vi. Só enxerguei a minha potranca.
— Por que acha qui eu num tô comemorando, Laura?
Ela deu de ombros e fez um bico com o lábio inferior –
baixando olhar. Não respondi com palavras. Fiz o que meu coração
mandou. Peguei sua mão e levei ao meu peito.
— Sente isso? — sussurrei e seus olhos ficaram um tempo no
lugar onde estava sua mão.
Aos poucos, foi subindo o olhar – chegando nos meus. Sorri e
estendi a mão – tirando os fios de cabelos que cobriam seus olhos.
— O que está fazendo, Kaíque? — murmurou, com a voz
embargada.
— O qui acha qui tô fazendo?
— Me destruindo — declarou e eu fiz uma careta.
Ela tirou a mão do meu peito e eu baixei o rosto.
Eu precisava dela...
Ela não entendia...
Eu não queria recuar.
Mais um estrondoso silêncio, por uma eternidade.
Ergui o rosto e ela continuava me escrutinando.
— Foi só sexo, cowboy — desdenhou e deu uma batidinha no
meu antebraço, com um riso forçado nos lábios.
— Acredita nisso? — desafiei-a.
— Não precisa dizer que não foi, que está apaixonado por mim
e blá... blá... blá. — Fez um gesto com a mão de abre e fecha, em
frente ao ouvido. — Porque já conseguiu o que queria, Kaíque. Agora,
eu tenho que pensar pra onde vou levar minha família e começar de
novo. Eu sei que sua empresa não vai pagar o que minha fazenda
vale, mas, pelo menos, vou conseguir pagar boa parte das dívidas e
tentar comprar uma casa pra minha mãe. Talvez, sei lá... — Deu de
ombros. — Em outro lugar, uma cidade menor.
— Num faz isso, Laura — murmurei, controlando a vontade de
pegá-la e dar uma sacudida.
— Isso o quê?
— Tentá sê o qui aquele imbecil disse.
— Acha que ele mentiu?
— Não, acho qui, com ele, cê foi tudo aquilo, comigo não.
A peguei de surpresa. Laura não esperava que eu a
defendesse. Ela sabia que eu estava certo. Ficamos numa guerra de
olhares, por alguns minutos.
— Está apaixonado por mim? — questionou. Dei de ombros.
— Foi o mais próximo qui cheguei do amor — confessei e
ergui o canto dos lábios.
A Negociação
∆∆∆
Laura

Será que existe realmente amor verdadeiro? Hoje,


lembrando-me das falas do meu pai, no qual ele deixava bem claro
que eu não deveria confiar nos homens, entendo o porquê. Ele era
homem e agia como o pior cretino entre todos eles.
Mesmo não querendo nutrir a mágoa no meu coração, naquele
momento, com o Kaíque olhando dentro dos meus olhos, esperando
uma reação, senti, além de mágoa, ódio do meu pai.
Incentivada por ele, tive aquelas atitudes frias com o Umberto.
Meu pai vivia me dizendo:

“— Se ele te ama, vai te aceitar como você é. Pra que casar,


filha? Você não foi feita pra ser de ninguém. Seja forte, mostre que
tem que ser do seu jeito.”

Fico pensando no quanto ele foi egoísta. Não se preocupava


com os meus sentimentos. Agora, diante de um novo desafio, sinto-
me completamente desnorteada. Não sei nem discernir o que o
Kaíque disse sobre chegar perto do amor. Porque não me permiti
sentir amor.
— O que sugere?
Kaíque abriu um sorriso satisfeito. Baixei o olhar e umedeci os
lábios. Eu já tinha pensado em várias possibilidades, não encontrei
nenhuma saída.
— O qui sente por mim? — devolveu a pergunta que eu tinha
feito anteriormente.
Ergui os olhos ao rosto dele – que aguardava minha resposta,
sério. Suspirei.
— Não sei explicar — declarei e ele ergueu o canto dos lábios.
— Tenta.
— Ao mesmo tempo que... — ponderei —, quero te matar. —
Ri e balancei a cabeça – desviando um pouco o olhar. Kaíque pegou
em meu queixo e virou meu rosto para ele. Manteve sua mão ali e os
olhos fixos nos meus. Eu não tinha escapatória, de alguma maneira,
ele tinha me desarmado. — Quero me jogar nos seus braços —
confessei e engoli em seco.
O seu sorriso, que tinha começado tímido, alargou-se nos
lábios. Um sorriso que ele já tinha me mostrado em pequenos
momentos, diferente do maroto habitual – singelo, romântico, talvez?
Lentamente, ele contornou meu maxilar; meus lábios; minhas
sobrancelhas – com seu polegar. Acompanhando com o olhar. Aquele
ato deixou-me apavorada. Queria que ele apenas me ajudasse e
parasse de derrubar todas as minhas muralhas. Um calafrio cortou
minha espinha dorsal.
— Kaíque...
— Shiiii... — Colocou o indicador em frente aos meus lábios.
Em um rápido movimento, pegou-me pela cintura e levou-me
até o seu colo. Prendi o lábio inferior nos dentes e parei de respirar
por uns instantes. Não tinha a menor ideia do que se passava pela
cabeça dele. Antes, eu achava que sua intenção era comprar minhas
terras, agora...
— O que está fazendo, Kaíque?
Sem me responder, ajeitou minhas pernas ao redor de seu
corpo, deixando-me em cima de seu membro maciço. Um gemido
involuntário me escapou e ele riu.
— Si solta, potranca — sussurrou, com a boca colada ao meu
ouvido. Respirei fundo e passei os braços pelo seu pescoço –
deixando nossos rostos a milímetros de distância. — Cê é bonita
demais — murmurou e roçou nossos narizes. Continuei estática. —
Feita pra mim — acrescentou e eu franzi o cenho.
— Nunca vou ser de ninguém, cowboy — esclareci, para ele
não achar que estava lidando com uma tonta.
— É por isso mesmo, que é feita pra mim, uai! Cê tem força, é
ousada... — suspirou —, num quero mulher fútil ao meu lado. Num
quero sê dono di ninguém, quero uma companheira. Qui lute comigo,
qui me apoie. Qui... — Respirou fundo e riu de nervoso. — Qui forme
uma família comigo. — A última frase saiu hesitante de seus lábios e
mais baixa do que as outras.
Enruguei a testa e estreitei os olhos. Passei um tempo
digerindo as palavras dele, com Kaíque me analisando. Seus dedos
alisavam a pele do meu braço.
— O que está tentando me dizer? — inquiri, com medo da
resposta.
— Do qui tem medo, Laura? — Desviei o olhar. — Num foge.
Voltei meu olhar a ele.
— De me machucar.
— Num entendo, você é qui arrasou com o coração do rapaz
— brincou e eu ergui as sobrancelhas em aviso.
— É isso que pensa?
— Foi isso qui ouvi. — Cerrei os dentes e comecei a querer
sair do seu colo. — Num vai fugir, não, potranca. É só explicar qui
bagaça aconteceu, porra!
Soltei os ombros e bufei.
— Sei lá... — Dei de ombros. — Ficou... conveniente...
comum. Nunca senti, sabe... — Levei a mão ao peito e prendi o lábio
nos dentes.
Kaíque lançou-me o sorriso mais lindo de todos. Meu coração
disparou e eu tive certeza, naquele momento, de que ele tinha razão:
com ele seria diferente. Ele me faz sentir. Com ele, não sinto medo.
Uma de suas mãos apertou-me ao seu corpo e a outra foi para
minha nuca. Um olhar e ficou claro do que precisávamos.
Não sei em qual momento perdi completamente a compostura.
Antes que eu pudesse achá-la novamente, segui o conselho dele: me
soltei.
O cowboy atacou meus lábios vorazmente. Enfiou sua língua
na minha boca e apertou minha cabeça na dele. Seus dedos juntaram
uma porção de cabelos da minha nuca e me mantiveram em cativo.
— Porra! — praguejou e puxou um pouco meu lábio inferior
com os dentes.
Encostamos nossas testas – ofegantes. Fui abrir a boca e não
pude continuar. Kaíque me beijou novamente, um pouco mais calmo.
Soltou meus cabelos e desceu as mãos para minhas coxas expostas.
Vestia uma saia justa que já estava embolada na minha cintura.
— Cê tá facinho... facinho... — divertiu-se. Dei um tapa em
seu ombro e, antes que eu pudesse me defender, perdi o fôlego.
Seus dedos invadiram minha calcinha e foram diretamente para
minha entrada, que obviamente estava mais do que molhada.
— Uou, cowboy! — protelei, com a respiração alterada.
Ele não perdeu tempo em me convencer do contrário, ou se
divertir mais com minhas reações, apenas me afastou para trás e
abriu o zíper de sua calça jeans. Segurei em seus ombros e olhei
para baixo – na expectativa.
Habilidosamente, o cowboy de araque abaixou um pouco a box
e deixou seu membro pulsante pular para fora. Institivamente, aspirei
forte e segurei o ar, sem ter coragem de olhá-lo.
— Senta nele, potranca. Vem cavalgar no seu cowboy, vem —
instigou-me – vangloriando-se.
Como eu rejeitaria, se tudo o que mais queria era repetir a
dose?
Com a sua ajuda, encaixei-me em seu membro, o contato de
pele com pele provocou um gemido gutural no peito do homenzarrão.
Dei um jeito de arrancar os sapatos dos meus pés e os apoie
no banco, ao redor de seu corpo. Ele ficou me analisando com um
sorriso maroto. Vê-lo me admirando, aprovando minha ousadia,
incentivou-me a continuar.
Com sustentação nos pés, dei o meu melhor.
— Tá gostando, cowboy? — aticei, enquanto subia e descia
em seu mastro rígido.
— Ê, lasquera, potranca gostosa do caralho. — Suas mãos
estavam em minha cintura – facilitando meus movimentos.
Não dei trégua. Fechei os olhos e aumentei os movimentos.
— Caralho... num vai dá, não! Porra, potranca...
Sorri e continuei – olhando diretamente em seus olhos.
Formigamento... calor... contração nos músculos... respiração
acelerada...
— Eu vou gozarrrrrr.... Ahhhh... caceteeeee!!! — berrei e tentei
parar. Senti suas mãos me conduzindo, para que eu não parasse.
— Porraaaaa... — O grunhido dele veio em seguida.
Seus braços se soltaram ao lado do corpo e sua cabeça
despencou no encosto do banco. Joguei os braços de volta em seu
pescoço e apoiei a testa no vão de seu pescoço.
Se tivesse que determinar qual respiração estava mais
alterada, seria difícil. Nossos peitos pareciam que explodiriam. Queria
poder nunca sair dali. Porque, certamente, tinha encontrado meu
lugar, mesmo que não quisesse admitir.
Depois de muitos minutos, fomos nos recompondo. Eu
continuava com a testa em seu corpo – absorvendo o seu cheiro
másculo. Uma linha de suor escorreu em seu pescoço e senti-me um
pouco selvagem, quando ergui o rosto e lambi.
— Eita, ferro, assim vô tê qui ti comê di novo — reclamou – se
remexendo.
Continuávamos encaixados. Sorri e me mexi, também.
— Cê tem bala na agulha? — provoquei, encarando-o.
— Qué vê?
Claro que ele tinha. Uma bagunça total se instaurou ali. O
cheiro de sexo tinha invadido o carro. Nem precisei sair de cima dele.
Continuamos de onde paramos, como se ele não tivesse acabado de
me preencher com seu líquido cremoso.
Kaíque tomou à frente e me conduziu. Junto aos meus
movimentos, erguia seu corpo e não foi preciso muito para estarmos
ofegantes e satisfeitos novamente. Dessa vez, saí de cima dele e me
joguei no banco do passageiro. Minhas pernas estavam uma meleca
só.
Ficamos com nossas cabeças sobre os encostos dos bancos e
os olhos fechados. Há muito que eu não fazia sexo, sentia-me
esgotada. Quando foi que gozei duas vezes seguidas? Nunca!
— Aqui, tem um rolo de papel higiênico no porta-luvas —
avisou-me – sem se mover.
Respirei fundo e peguei o rolo de papel. Enrolei uma boa
quantidade na mão e comecei a me limpar. Eu precisava mesmo é de
um banho, mas tinha que dar um jeito de chegar decentemente na
fazenda.
Terminei de me limpar e Kaíque continuava largado em seu
banco. Sorri.
— Te derrubei, cowboy? — brinquei e ele me olhou com uma
sobrancelha erguida.
— Precisa di muito pra mi derrubá, potranca — gabou-se
sorrindo.
Enrolei novamente uma boa quantidade de papel nas mãos e
comecei a limpá-lo. Estava concentrada na tarefa quando vi seu
“amigo” ganhando vida novamente. Levantei o rosto e o olhei séria.
— Num posso fazer nada. Eu disse qui num é fácil mi
derrubá.
Sorri e balancei a cabeça, terminando de limpá-lo.
Recompostos, um silêncio estranho invadiu o espaço.
Estávamos em uma plantação de café, afastados da “civilização”. O
som externo era só da natureza. E o interno só de nossas
respirações.
— Vô cuidar dos seus bichos — iniciou e eu virei o rosto para
ele. — Vô pagá suas dívidas — continuou e eu franzi o cenho. —
Vamo ganhá tempo.
— De que adianta, só vou mudar de credor — constatei e ele
me escrutinou por um tempo – empurrando a língua na parte interna
das bochechas.
— A gente pode casá — desembuchou e eu recuei o tronco –
entortando o nariz.
— Cê tá louco?
— Uai, acabei de fazer você urrar duas vezes, achei qui tinha
gostado — divertiu-se sorrindo como um moleque travesso.
— Como se casar fosse só sexo — desdenhei – cruzando os
braços e meneando a cabeça.
Kaíque aproximou-se e pegou meu queixo – virando meu rosto
para ele.
— Aqui, o qui a gente fez num foi só sexo — sussurrou.
Inclinou o rosto e alcançou meu lábio inferior com os dentes. O puxou
e, em seguida, passou a língua.
Fiquei sem saber o que fazer, porque meu corpo reage de
forma estranha com ele. Pareço uma adolescente idiota.
— Está me propondo casamento só pra ficar com as minhas
terras?
— Não, só pra ficar com você.
Ele continuava segurando meu queixo – olhando fixamente
dentro dos meus olhos.
— E as terras?
— Já qui num qué vendê, num vai precisá. A gente casa e
vamo trabalhá junto. Tenho muita terra pra gente cuidá.
Umedeci os lábios e passei um tempo pensativa.
— As terras continuariam sendo da minha família? — insisti.
— Sim, só qui usada pela empresa da minha família.
— Então seria uma negociação, não um casamento? — Por
mais que estivesse começando a gostar da ideia, saber que ele só
queria ficar comigo para usufruir das terras, fez meu peito se apertar.
Kaíque riu sem humor e balançou a cabeça. Colocou meu rosto
entre suas mãos.
— Quero você, Laura, não suas terras. Só tô tentando unir as
coisas.
O Fim
∆∆∆
Gabrielle

Eu buscava insanamente que àquela dor saísse do meu


peito. Corria desesperadamente pelas ruas movimentadas da capital
paulista. A garoa fina e o céu cinzento combinavam com o que tinha
dentro de mim. As lágrimas inundavam meu rosto e eu não tinha a
menor ideia de como parar. Sem perceber, estava de frente ao prédio
espelhado e suntuoso da empresa maldita.
Entrei pelas portas giratórias e pulei as catracas – sem me
identificar. Antes que pudessem me alcançar, entrei no primeiro
elevador – que estava com a porta aberta. Soquei o botão do último
andar e me sentei no chão. Enfiei o rosto entre as mãos e gritei, gritei
com todas as minhas forças.
Depois de uma eternidade, as portas abriram-se. Eu estava
em posição de ataque. Disparei pelo andar, com a recepcionista
correndo atrás de mim. Queria ter pego meu revólver, que tenho em
casa. Ali mesmo, eu daria fim a todo o meu tormento.
As pessoas dos “aquários” ficaram em pé rapidamente.
Cegamente, segui em direção à sala do chefão – ele era o meu alvo.
Claro que a sua sala não estava exposta como as outras, uma
persiana impedia que eu visse quem estava dentro. Chutei a porta e
meus braços foram presos nas minhas costas imediatamente.
— ME SOLTA, PORRA! — gritei para quem quer que fosse
que me inibia de chegar até o responsável por arrancar minha alma.
— Calma, por favor, vem comigo. — Não precisei me virar
para saber que era o Narciso que me segurava. Sua voz era baixa e
ele tentava me conter.
— EU VOU MATAR VOCÊ, SEU FILHO DA PUTA,
DESGRAÇADO! — berrei, me debatendo nos braços do Lucca.
O velho ficou em pé e logo Henry chegou à sala – ficando ao
lado do pai. Os dois me olhavam com os olhos arregalados.
— Não faça isso, vão acabar com você. — Lucca insistia em
tentar me parar – com a voz baixa e calma.
— Ela mor... reu..., ela... morreu..., morreu..., morreu. — Meu
corpo cedeu. Caí de joelhos e enfiei o rosto nas mãos novamente.
Meu corpo chacoalhava.
— Vem comigo. — A voz do Lucca era mansa. Ele estava
agachado, tentando me colocar em pé.
Não sei explicar como cheguei à sala dele. Ele me sentou em
uma poltrona confortável e pediu que me trouxessem um copo de
água. Sem olhá-lo, tomei a água e respirei fundo.
— Preciso ir — avisei e fiquei em pé.
Tinham três “armários” na porta da sala – aguardando para me
escoltarem até a saída.
— Está tudo bem, podem deixar — ordenou Lucca e pegou no
meu braço, me carregando até o elevador.
Ele entrou comigo e foi quando ergui o rosto e franzi o cenho.
— Me conta o que aconteceu — esclareceu —, vou te ajudar.
Umedeci os lábios e meneei a cabeça. Comecei a entender o
porquê de a Andressa ser apaixonada pelo Narciso.
Saímos do elevador e percebi que estávamos na garagem.
— Você não precisa fazer isso — avisei-o e ele negou com a
cabeça.
— Eu quero. Vamos, vou te levar. Pelo seu estado, acho que
não está de carro.
Confirmei e ele fez um gesto para que eu o seguisse.
Entramos em um carro esportivo – bem a cara dele.
— Para onde vamos? — perguntou, assim que se acomodou
atrás do volante.
Dei o nome do hospital, o qual ficava muito próximo dali.
Parados em um semáforo, Lucca me olhou e eu sabia que tinha que
lhe dar uma explicação.
— Ela se foi — murmurei e cerrei os olhos – sentindo as
lágrimas virem novamente.
— Meus sentimentos — desejou e pegou em minha mão –
apertando-a de leve.
— Não sei o que fazer — confessei e me desmanchei.
— Vou te ajudar — garantiu e eu quase sorri, porque ninguém
poderia me ajudar.

A sala de espera do hospital estava cheia. Meu pai,


certamente, tinha comunicado as pessoas. Assim que entrei, com
Lucca me acompanhando, o franzir da testa das pessoas foi quase
que simultâneo.
Andressa foi a primeira a vir ao meu encontro. Olhou por cima
do meu ombro, diretamente para sua paixonite e respirou fundo.
Provavelmente ponderou, porque, rapidamente, se recompôs e me
abraçou.
— Sinto muito, Gabi — consolou-me e me apertou em seu
peito. — Estou aqui, pra o que você precisar — assegurou.
Não tive forças de responder. Esperei que me soltasse e
meneei a cabeça em agradecimento.
O próximo que me colocou em seus braços foi João Pedro.
Com ele, minhas forças minaram completamente. Senti as pernas
vacilarem. Afundei o rosto em seu peito e ele me carregou até uma
cadeira vazia. Sentaram, ele de um lado e a Andressa, do outro.
Falavam comigo baixinho e eu soluçava. Mesmo completamente
atordoada, percebi uma interação muito íntima entre eles. Por isso,
Andressa estava meio afastava e não ficou tão abalada com a
presença do Lucca.
Ergui os olhos e dei de cara com Bento, visivelmente abalado.
Seu maxilar se contorcia. Ele estendeu o braço – oferecendo sua mão
para que eu pegasse. Eu precisava dele, mais do que de qualquer
outra pessoa que estava ali dentro – até mesmo, do meu pai.
Fiquei em pé e me joguei em seus braços. Seu corpo tenso me
apertou.
— Vou pegar ele, prometo — sussurrou, com a boca colada
ao meu ouvido.
— Quero ele morto — declarei entre lágrimas e ele negou,
sem tirar meu rosto de seu ombro.
— Eu também... — assumiu —, mas não queremos passar o
resto da vida vendo o Sol nascer quadrado, não é mesmo?
Afastei o tronco e o olhei nos olhos.
— E agora? Minha vida acabou, não tenho mais motivos pra
continuar. — Nem sei como ele entendeu o que eu disse, minha voz
falhava e estava muito baixa.
— Você é forte, não vai me decepcionar — confortou-me e
fez-me deitar o rosto em seu ombro novamente. — Vou cuidar de
tudo, vai pra casa, tome um banho e esteja pronta.
Ergui o rosto novamente e fiquei o olhando, analisando se
deveria ou não seguir sua sugestão. Muitas coisas passaram pela
minha cabeça, naquele momento. Seria uma maneira de eu pensar o
que fazer, quais seriam os meus próximos passos.
— E meu pai?
— Estava muito abalado, precisou sair.
— Certo.
Ainda interagindo com Bento, Lucca se aproximou.
— Já sabem onde ela vai ser sepultada? Posso cuidar disso —
prontificou-se e Bento riu de nervoso.
Colocou-me um pouco de lado, mantendo o braço em meu
ombro – como um pai protegendo a filha. Estendeu a mão ao Lucca.
— Bento — cumprimentou-o.
Lucca sorriu de canto e aceitou sua mão.
— Lucca...
— Eu sei quem você é, só não sei o que está fazendo aqui —
interrompeu-o brutalmente. Lucca recuou um pouco e eu intercedi,
antes que a coisa complicasse.
— Tudo bem, Bento. Ele está sendo legal — afirmei e Bento
me encarou por alguns minutos – lendo-me. Ele, melhor do que
ninguém, me conhece. Soube, depois de alguns segundos, que eu já
tinha interagido com o Narciso em outros momentos.
— Ok — respondeu, por fim. — Muito obrigado, mas tenho
tudo sob controle — garantiu e Lucca meneou a cabeça.
— Bom, então, meus sentimentos, de novo. Assim que estiver
melhor, me procure, isso não vai ficar assim — certificou-se e
assentimos.
Bento esperou que o Bennett saísse da sala para me colocar
na berlinda.
— Vai me explicar isso? — Dei de ombros.
Antes que ele insistisse, João Pedro e Andressa se
aproximaram – de mãos dadas. Não achei que aquilo fosse mexer
comigo, principalmente, naquele momento, mas, infelizmente, senti
uma pontada no peito. Queria ficar feliz por eles, mas a verdade é
que foi o contrário que aconteceu.
— Vamos dar um jeito nisso, prometo — garantiu João, me
apertando em seu peito.
O Sim
∆∆∆
Kaíque

— Pode sentar na sala, vou chamá-las — indicou Laura –


envergonhada.
Eu podia entendê-la, afinal, tanto a casa, quanto os móveis,
estavam deteriorados. Precisando urgentemente de uma boa
reforma.
— Dia — cumprimentei a esposa do meu funcionário.
— Bom dia, senhor Kaíque.
— Capaz, qui cê vai mi chamá di senhor.
A garota sorriu de canto e baixou o olhar.
— Bom, vou lá — comunicou Laura e me deixou com a moça.
Me acomodei em uma das cadeiras da cozinha.
— Tem um cafezinho dos bom, aí?
— Claro, acabei de passar.
A moça ficou toda perdida e eu sorri. Assim que se aproximou,
peguei em sua mão.
— Num carece disso não, moça. Tá tudo bem — acalmei-a.
Eu sabia o motivo de toda aquela apreensão. Só que ela não tinha
ideia do quanto a potranca já estava domada.
Ela me entregou uma caneca de lata com café até metade.
— Aqui, acabei de tirar esses pães de queijo do forno.
Cheguei a fechar os olhos e gemer, só de sentir o cheiro do
café junto com o pão de queijo. Enquanto Laura não voltava, devorei a
sexta com pães de queijo que a moça colocou na minha frente.
Meu sorriso demandou todo o meu rosto, no momento em que
minha potranca voltou à cozinha. Incrivelmente mais linda. Embora eu
ame sua ousadia e raça, naquele momento, senti-me um pouco
primitivo. Seu olhar era apreensivo, estava visivelmente vulnerável.
— Oi, Kaíque. — Mirela veio até mim e fiquei em pé,
imediatamente. A garota tinha uma expressão de felicidade.
— Oi, garota. — Abracei-a e baguncei seus cabelos.
— Bom dia, rapaz. — A mãe da Laura parecia um pouco
melhor do que a última vez que a tinha visto. Veio até mim e eu
também a abracei. Fiquei com medo de machucá-la. Seu corpo
estava muito magro. — Eu sabia — disse, afastando o tronco e
alisando meu rosto. Me controlei para não parecer um homenzarrão
chorão. Mal sabia ela que um dos meus maiores sonhos era ter uma
mãe que me olhasse daquela maneira – com admiração. — Seja
bem-vindo, filho.
Sorri e olhei para a Laura. Ela tinha um sorriso tímido nos
lábios e lágrimas empossadas na base dos olhos.
— Tô feliz — verbalizei o que sentia no peito e recebi sorrisos
em resposta.
— Minha filha também, mesmo que ela seja durona e não
queira demonstrar — afirmou a mãe e vi Laura baixando a cabeça e
sorrindo.
— Eu sei — garanti, sem tirar os olhos da minha potranca. —
Aqui, cheguei dando prejuízo. Comi tudinho o pão de queijo —
descontraí e fomos nos sentando em volta da mesa.
— Depois te mando a conta — brincou Laura.
— Filha, o que é isso? — repreendeu a mãe. Ergui a
sobrancelha e sorri.
Passamos um tempo conversando sobre a audiência que Laura
tinha comparecido pela manhã. A mãe, cada vez que tocava no
assunto, ficava transtornada.
— Bom, si ela é mesmo irmã de vocês, num é melhor acabar
di vez com esse trem? — sugeri e a mãe negou.
— Mãe, o Kaíque tem razão — insistiu Laura.
— Acabar como, filha? Não temos nem pra nós, como vamos
dividir com ela?
— Mais isso num é mais problema, uai! Num é mesmo,
potranca?
Laura ficou pálida e umedeceu os lábios. Baixou a cabeça e
respirou fundo.
— Vai me dizer que vão se casar? — Mirela foi a primeira a
entender a situação. Nosso silêncio foi a confirmação à garota. Ela
ficou em pé imediatamente e puxou a irmã com ela. Começou a pular
na cozinha e fez com que Laura a acompanhasse. — Eu sabia... eu
sabia... — gritava e dançava.
— Pare com isso, Mirela — repreendeu Laura – sorrindo.
Cruzei os braços e estiquei as pernas – admirando minha
mulher. Sim, a mais linda de todas – feita para mim. Laura tentava
conter a irmã, mas, lá no fundo, era o que tinha vontade de fazer. Sua
repreensão não estava firme o suficiente.
Após o momento de euforia da Mirela, as duas sentaram-se
novamente.
— Então... — começou Laura e parou. Me olhou e segurou o
lábio inferior nos dentes, sem saber o que dizer.
— A gente vai casá, a Mirela tem razão — soltei de uma vez e
o sorriso da mãe foi o que fez Laura relaxar.
A mãe esticou a mão e alcançou a minha.
— Você é um bom rapaz, eu soube desde o começo.
Laura bufou e fez uma careta.
— Num concorda, potranca?
— Ainda não, depois de um quilo de sal, vou saber — afirmou
sorridente e eu soube que era provocação.
— Vai arriscá? — aticei.
Mediu-me dos pés à cabeça.
— O material vale a pena — divertiu-se, passando a língua
pelos lábios.
Inclinei a cabeça para trás e gargalhei.
— Aqui, vou resolvê essa situação com a bastarda —
assegurei e as expressões foram de indagação. — Vô comprá a
parte dela. Depois qui a gente casá, assim será nossa.
— Quando estão pensando em se casar? — inquiriu a mãe –
assustada. Acho que não esperava que os planos fossem rápidos.
— Num tem tempo sobrando — esclareci —, pode sê mês
vem, num pode, potranca?
Laura ficou em pé e foi até a janela. Aguardamos que ela
digerisse a informação e virasse novamente para nós.
— Acho que o Kaíque está certo, não temos tempo sobrando
— explicou e a mãe franziu o cenho.
— Por que está parecendo uma negociação esse casamento?
— inquiriu e Laura ficou sem graça. Olhou para mim – esperando que
eu consertasse a situação.
Não tinha melhor opção de explicar do que demonstrar.
Levantei-me e fui até ela. A puxei para mim e peguei em seu queixo –
fazendo-a fixar o olhar no meu.
— Eu amo sua filha — declarei sério – sem desviar o olhar do
dela. — Num é um negócio, apesar di qui vai facilitá as coisas.
Laura sorriu, um sorriso que eu ainda não conhecia – de
entusiasmo.
— Isso nós já entendemos — continuou a mãe —, e você,
filha? É o que quer?
Nós continuávamos com nossos corpos juntos e seu rosto
preso à minha mão. Ergui uma sobrancelha e o canto dos lábios.
Esperando a resposta dela. Eu não tinha a menor dúvida de que a
potranca sentia o mesmo por mim, só tinha minhas dúvidas se teria
coragem de admitir.
Ela engoliu em seco. Contornei seu rosto com o polegar e
depositei um beijo tenro em seus lábios. Senti seu corpo estremecer.
— Relaxa, potranca — sussurrei, aproximando minha boca de
sua orelha. Ajeitei seus cabelos atrás da orelha e encostei a testa na
dela. — Num precisa dizer, eu sei — falei baixinho, para que ela
entendesse que atitudes valem muito mais do que palavras. Que eu
estava muito seguro das minhas escolhas.
— Sim — disse, por fim. — É isso que eu quero — garantiu e
respirou fundo.
Sorrimos juntos. Enfiei a mão entre seus cabelos da nuca e a
trouxe para os meus lábios. Eu sabia que sua irmã e mãe estavam
nos olhando, mas não me importei. Só queria que ela se sentisse
segura. Mostrar que estava dando o passo certo. Que juntos nos
completaríamos.
Passei a língua pelos seus lábios e, em seguida, afundei a
língua. Apertei os cabelos de sua nuca e controlei minha vontade de
pegá-la e levá-la para o primeiro quarto que eu encontrasse.
— Cowboy... — suspirou e me empurrou de leve.
Eu não podia afastá-la do meu corpo de cara, passaria
vergonha. Meu “amigo” estava bem alegre, praticamente, estourando
a calça jeans.
— Minha potranca — murmurei sorrindo – sem me afastar.
Acertando as Contas
∆∆∆
Laura

Eu sorria sem motivo algum. Meu coração teimava em


disparar a cada instante. Em toda a minha vida, não me lembro de
sentir-me tão feliz.
Fui até o estábulo para fazer algo que ainda não tinha tido
coragem. Selei o Zeus e saí cavalgando, sem comunicar ninguém da
minha decisão. Assim que comecei a ver as pontas das cruzes
aparecendo, meu coração ficou apertado.
A última vez que estive naquele lugar foi no sepultamento do
meu pai. Não voltei, nem mesmo para conferir se o trabalho que
contratei para cuidarem da lápide tinha ficado bom.
Amarrei Zeus em uma árvore próxima a entrada e adentrei ao
cemitério. Olhei em volta e me dei conta de que estava sozinha.
Respirei fundo e me preparei para a conversa que teria com ele.
Tinha chegado o momento do acerto de contas.
Antes de me sentar, analisei o trabalho bem-feito na lápide.
Estava tudo bem cuidado. Alisei a foto, que eu mesma escolhi, e uma
lágrima involuntária caiu. A enxuguei rapidamente e suspirei. Me
acomodei e, olhando nos olhos dele, decidi colocar para fora o que
me afligia – por dias.
— Oi, pai — iniciei baixinho —, faz tempo, né... — Um caroço
na garganta quis me impedir de continuar. Inclinei a cabeça para trás.
Após uns instantes, prossegui: — Estou chateada com você —
confessei de imediato, porque era o que mais me incomodava. —
Sabia que você me estragou para os homens? Achei que estava
fazendo o melhor por mim, que se preocupava, mas... — Parei
novamente, ponderando as palavras, por mais que estivesse
chateada, sempre tive um enorme respeito pelo meu pai. — Por que
fez isso com a mamãe? Poxa, pai, ela ainda não se recuperou.
Pôr para fora o que guardava, por tanto tempo, me
desestabilizou. Afundei o rosto entre as mãos e deixei que as
lágrimas dominassem meu rosto. Ser forte o tempo todo é cansativo.
Em algum momento, eu precisava me permitir desabar. Desabafar e
expor a minha indignação.
Engoli em seco e me recompus. Limpei as lágrimas com as
costas da mão.
— Agora eu entendo, sabe. Você tinha medo de que os
homens fossem cretinos comigo, como você foi com a mamãe —
despejei, antes de pensar no depois, porque, certamente, me puniria
em verbalizar-lhe àquelas palavras cruéis. — Encontrei alguém —
continuei —, pode ser que ele seja cretino, também, mas... —
suspirei —, me apaixonei.
Olhei para o céu e um filme passou pela minha cabeça, desde
o momento em que trombei no muro de músculos, que é o corpo do
Kaíque, dentro da agência do banco. Tirando o dia em que ele,
literalmente, arrancou um pedaço do meu coração, naquela conversa
nojenta com o seu pai e irmão mais velho, em todos os momentos, foi
muito atencioso comigo.
Kaíque faz questão de dizer o quanto sou importante para ele,
que não quer ser meu dono e sim meu companheiro.
— Acredito nele, pai. Acho que você ia gostar dele. — Sorri.
— Ele fala como você, arrastado e com esse vocabulário muito
nosso, daqui de Minas.
Alisei novamente a foto do meu pai. Beijei a ponta dos dedos e
depositei no rosto dele.
— Sinto sua falta — sussurrei. Lágrimas novamente. Segurei o
lábio inferior e funguei. — Consegui, pai, não da maneira que você
esperava, mas mantive a fazenda na nossa família. — Sorri
novamente, lembrando-me do quanto Kaíque estava empenhado em
deixar tudo em ordem.
Desde o dia em que eu disse sim, ele está correndo atrás de
tudo. Já quitou as dívidas no banco, reatou com os fornecedores e
meu pequeno rebanho já está vacinado. Até mesmo a questão com a
minha meia irmã, Kaíque já está adiantando. Só não concretizou,
porque quer fazer após o casamento. Ele faz tudo para me deixar
segura.
— Eu te perdoo, pai, e espero que entenda a mamãe e a
Mirela, por estarem chateadas com você. Com o tempo, talvez, elas
também consigam te perdoar. — Ajeitei os vasos de flores artificiais
que foram colocados ali. — Agora, preciso ir. — Fiquei em pé e,
antes de me virar, beijei novamente as pontas dos dedos e depositei
no rosto dele. — Farei o possível pra voltar mais vezes.
§§§§
De longe, avistei uma movimentação de pessoas na fazenda.
Dei uma batidinha com a bota no lombo do Zeus para que ele
acelerasse.
Estreitei os olhos para ter certeza de que estava enxergando
direito. Kaíque carregava um móvel pesado, junto com uma equipe de
homens, que carregavam outras peças.
Me aproximei e puxei a rédea do Zeus. Chegando perto do
meu cowboy, perdi completamente a linha de raciocínio, assim que vi
as gotas de suor espalhadas pela sua pele.
Kaíque tirou o chapéu e limpou a testa com a beirada da
camiseta – deixando seu abdômen trincado à mostra. Puxei o ar mais
forte e cerrei os dentes.
— Que merda é essa, Laura? — repreendi-me imediatamente.
Não fosse minhas pernas estarem impedidas de serem fechadas,
com toda a certeza, estaria as espremendo.
— Ei, potranca, tava ti esperando, mas cê demorô, então
começamos — esclareceu e eu franzi o cenho.
— Começaram o quê? — questionei enquanto descia do
cavalo. Entreguei as rédeas ao Emílio, que estava próximo, e
caminhei até o Kaíque.
Ele não respondeu. Primeiro, me comeu com os olhos,
principalmente meus seios fartos que a regata quase não os
escondia. Sorri e passei os braços pela sua cintura. Antes de
qualquer coisa, fiz o que tive vontade – desde o momento em que o vi
– funguei seu pescoço e passei a língua pelas gotas de suor.
— Eita, porra, assim vô tê qui pegá minha potranca e levá pro
meio desse mato — atiçou e eu sorri – ainda com a boca em sua
pele.
— Sua potranca? — questionei, afastando o tronco e olhando
em seus olhos. Ele contornou meu rosto com o polegar.
— Assim como sou seu cowboy... de araque — divertiu-se,
com o canto do lábio erguido.
Kaíque colocou meus cabelos atrás da orelha e ficamos nos
admirando por alguns segundos.
— Patrão, esse vai? — interrompeu, Pedro.
Olhamos para o rapaz e Kaíque se deu conta de que eu
precisava de uma explicação.
— Pode pôr no baú — ordenou e voltou sua atenção para mim.
— Desculpa por invadi sua casa, mas falei com sua mãe — começou
e eu meneei a cabeça. — Acho qui você vai querê continuá morando
na sua fazenda.
— Sim.
— Então... — Deu de ombros e desviou o olhar. — Vamo dá
um jeito nela.
— Por que está levando os móveis?
— Precisam de uma reforma, ou, se quisé, a gente pode
comprá outros.
Avaliei por um tempo as peças que estavam sendo carregadas
para um caminhão. Eram todas de madeira, seria uma pena descartá-
las, mas poderíamos manter algumas estrategicamente.
— Tem razão, elas precisam de uma reforma. Mas a casa
toda precisa. — Ri sem graça.
— Sim, por isso, qui vão pra minha casa, hoje — comunicou,
como se fosse a coisa mais normal do mundo.
— Sua casa? Como assim?
— Laura, desculpa, mas sua casa precisa, praticamente,
demoli. Num tem como fazê isso com vocês aí dentro.
Virei o rosto em direção a casa e comprovei o que ele dizia.
Voltei-lhe minha atenção e confirmei com a cabeça.
— Patrão... — Outra pessoa o chamou.
— Tenho que ir, potranca. Arruma as coisas, mais tarde venho
pegá vocês.
Kaíque fez um sinal para o seu funcionário esperar e me
apertou em seu corpo. Mesmo que eu não quisesse admitir, estava
me acostumando muito rápido com aquele carinho. Ao lado dele,
sinto-me outra pessoa. Uma que não tem restrições em sentir.
Meus lábios foram capturados pelos dele...
Nossas línguas entraram em sincronia...
Os corações dispararam...
As mãos apertaram as partes dos corpos...
A intensidade do beijo nos provocou gemidos.
— Cowboy... — Alguém precisava conter o momento, nenhum
dos dois estava disposto a pagar pelas consequências de uma
exposição daquelas.
Ele se afastou um pouco e respirou fundo.
— Num consigo mi segurá com você, potranca.
Meus lábios exibiram um sorriso satisfeito. Pensei em
aproveitar um pouquinho mais de seus lábios e fui impedida pelo seu
celular. Kaíque tirou o aparelho do bolso e fez uma careta.
— Tenho qui atendê — avisou e me soltou. — Henry —
cumprimentou o irmão e eu estremeci.
Umedeci os lábios e abracei o corpo. Mesmo que Kaíque
estivesse comigo, que nos casaríamos, o irmão e o pai dele, me
assustavam. Senti-me inferiorizada com os olhares deles.
— Atentado? — exclamou Kaíque e coçou a nuca – aflito. —
Vô, agora mesmo — afirmou e desligou o aparelho. O guardou no
bolso traseiro da calça jeans e me olhou – meneando a cabeça. —
Desculpa, tenho qui ir pra São Paulo. Meu pai sofreu um atentado.
Coloquei a mão no peito e esfreguei. Uma sensação muito ruim
passou por mim. Abri um sorriso complacente e fui até ele.
— Ei, tudo bem, não tem que me pedir desculpas — amenizei
e alisei seu rosto.
— Eu volto logo — garantiu.
— Foi grave?
— Parece que sim.
— Sinto muito, vou ficar bem. Vai lá, eu cuido de tudo por aqui
— assegurei e ele sorriu – me puxando para os seus braços.
— Cê foi feita pra mim, Laura. Eu sei qui vai cuidá di tudo.
Antes de entrar em sua camionete, Kaíque me beijou
novamente. Um beijo tenro e confortante, uma promessa de que tudo
acabaria bem. De que eu estava segura com ele.
A Revelação
∆∆∆
Gabrielle

Eu não queria pensar em nada...


Não queria que minha razão dominasse minhas emoções...
Não queria acreditar que aquilo estava acontecendo...
E que as consequências fossem tão desastrosas.
Adentrei ao hospital cabisbaixa, tinha medo de que as pessoas
soubessem o que tinha dentro da minha mente.
O corpo da minha mãe ainda não tinha sido liberado. Vasculhei
o local em busca do Bento, do meu pai e dos outros – nada.
— Oi, sabe me dizer onde estão os familiares da Ana Maria
Mantovani? — questionei à enfermeira que cruzava comigo no
corredor.
Ela me reconheceu e abriu um sorriso complacente.
— Saíram todos — comunicou e eu franzi o cenho.
— Desculpa, sabe me dizer se foram juntos? — A coitada ficou
pensativa e aí me dei conta de que obviamente ela não teria aquela
informação. — Desculpe, vou ver o que aconteceu.
— Não, sem problemas. Olha só, acho que não foram juntos.
— Obrigada — agradeci, sorrindo de leve.
Continuei meu caminho, com a intenção de encontrar o Kauê,
certamente ele me ajudaria. Estava quase chegando à sala que ele
costumava atender, um alvoroço no final do corredor – saindo do
elevador –, chamou minha atenção.
— Sala de cirurgia, com urgência — gritou o médico próximo a
maca que carregavam.
Mesmo a alguns metros de distância, pude ver muito sangue. A
maca foi se aproximando e eu fui congelando.
Não pode ser...
O destino não seria tão irônico assim.
— Moça, abre espaço, por favor — berrou o mesmo médico e
meus pés não obedeceram ao comando do meu cérebro.
É ele, puta merda..., aqui não, cacete! Tinham que trazer para
o mesmo lugar que estou, porra!?
— Ei, moça, atenção, você está obstruindo a passagem —
repreendeu-me um enfermeiro – nervoso.
Encostei-me na parede e acompanhei à corrida com a maca,
no qual estava o corpo inerte e ensanguentado do velho asqueroso.
— Gabi?
Ergui o rosto e, sem pensar, passei os braços pelo pescoço do
Kauê. Ele endureceu o corpo e manteve as mãos ao lado do corpo.
Me afastei – sem graça.
— Desculpe — suspirei —, estou... — chacoalhei a cabeça,
buscando a palavra certa.
— Entendo — respondeu, sorrindo de canto. — Está tudo
bem?
Balancei a cabeça confirmando.
— Sabe se vai demorar para liberarem minha mãe?
— Vou verificar e venho te falar.
— Obrigada.
Com poucos passos, estava na sala de espera do andar.
Sentei-me em um canto e me dei conta do quanto tremia. Minha boca
estava completamente seca. Esfreguei as mãos nas pernas e soltei o
ar várias vezes – inspirando e expirando.
Bento parou na porta e olhou para dentro, assim que me viu,
veio até mim, um pouco desconcertado. Franzi o cenho.
— Tudo bem? — indaguei.
— Acho que não, né! Já que estou esperando o corpo da
minha melhor amiga ser liberado — ironizou e eu bufei.
Sentou-se ao meu lado e respirou fundo.
— Onde você foi? — Ele me olhou sério e levantou uma
sobrancelha. Ergui as mãos em rendição.
Ficamos em silêncio, por alguns minutos, e logo meu pai
também entrou na sala. Nossa interação não foi muito diferente.
Nenhum dos dois me disse onde foram.
Fiquei em pé, fui até a máquina de café e decidi jogar um
pouco de cafeína no meu sangue. Enquanto a máquina trabalhava, o
próximo a entrar na sala foi João Pedro – tão desconcertado quanto
os outros dois.
João Pedro se aproximou de mim e ficou calado.
— Tudo bem? — fiz a mesma pergunta, na esperança de ter
uma resposta diferente das outras – não aconteceu. Ele apenas deu
de ombros e foi se juntar aos outros dois.
Tomei meu café de costas para eles. Eles conversavam
baixinho e eu não fiz questão de ouvir. Minha concentração estava no
velho asqueroso. Não sabia como falar-lhes sobre o que tinha
presenciado a pouco.
— O corpo foi liberado, mas temos outro problema. — Kauê
entrou na sala anunciando. Virei-me na direção dele e engoli seco. Eu
temia qual seria sua próxima fala.
— Como podemos ajudar? — Bento tomou à frente – ficando
em pé.
Kauê olhou para mim e eu segurei o ar com mais força.
— Parece que vocês têm alguma ligação com a família Bennett
— prosseguiu e eu apertei as unhas nas palmas das mãos.
Quando fui tomar banho, aproveitei para arrancar aquelas
faixas ridículas.
Kauê olhou diretamente para as minhas mãos e soube a
resposta. Estreitou os olhos e aguardou um de nós se manifestar.
— Acho que te passaram informação errada — respondeu
Bento, por fim. — E o que isso importa, nesse momento?
Olhando diretamente nos meus olhos, Kauê continuou:
— Estamos com Isaac Bennett na sala de cirurgia, precisando
de sangue, urgente. O problema é que não estávamos preparados
para essa emergência e não temos no banco de sangue o tipo
necessário. Precisamos de um dos filhos, antes que percamos ele.
Apertei mais ainda as unhas nas mãos e estanquei no lugar.
Estava difícil até para respirar. Kauê não desviou o olhar de mim –
desconfiado.
— Continuo sem entender como podemos ajudar — insistiu,
Bento – me avisando com o olhar para eu não abrir a boca.
— Viram um dos filhos dele chegando com a Gabrielle mais
cedo — explicou, Kauê – virando-se para o Bento.
Vi o maxilar do meu chefe-padrinho se contorcer. Ele passou a
língua pelos dentes, entortou os lábios.
— Certo, já entraram em contato com a família dele?
— Sim, mas estão todos longe, não sei se podem chegar a
tempo. Só não conseguiram falar com o mais novo, que é exatamente
o que esteve aqui. O celular dele está desligado. Pensei que, talvez, a
Gabrielle tivesse outra maneira de contatá-lo.
Neguei com a cabeça e um gemido involuntário escapou do
meu peito.
Bento fechou os olhos e balançou a cabeça – indignado.
— A Gabi pode ajudar — adiantou-se meu pai – se
aproximando do médico.
Arregalei os olhos e balançava a cabeça insistentemente para
que ele não fizesse o que estava pretendendo. Conhecendo o senso
de moralidade do meu pai, assim que ele abriu a boca, eu tive certeza
de que seria o meu fim.
— Ah, que bom, consegue pedir para o seu amigo correr aqui?
— animou-se Kauê, alheio ao que realmente acontecia ali.
— Ela mesma vai doar sangue — assegurou meu pai – sem
titubear.
A facada final...
Meu coração se dilacerou.
Cerrei os olhos e senti as lágrimas inundando meu rosto.
— Merda, pai — praguejei entredentes.
Inclinei o corpo e coloquei as mãos nos joelhos. Inspirava e
expirava numa frequência acelerada. Meu peito doía com as
pancadas do coração na caixa torácica.
Precisei de alguns minutos para me recuperar. Ergui o corpo
novamente. João Pedro tinha uma mão em frente aos lábios e os
olhos arregalados – compreendendo exatamente a razão de tudo.
Kauê me olhava assustado e Bento só meneava a cabeça –
sem acreditar do que meu pai tinha acabado de fazer. Não tinha mais
volta.
— Me acompanhe — determinou Kauê, sem pedir explicações.
O segui ainda sentindo as lágrimas escorrerem pelo meu rosto.
Eu sabia que meu pai estava certo, mas não achei que esse momento
chegaria tão cedo, ou melhor, tinha esperança de que ele nunca
chegasse.
Enquanto me preparavam para tirarem o sangue, Kauê
permaneceu ao meu lado – calado. Não demorou muito para
começarem a tarefa.
— É por isso que se pune tanto? — perguntou, apontando
para as minhas mãos. Umedeci os lábios e não respondi. — Ele não
sabe, não é mesmo?
— Por mim, nunca saberia, eu o odeio, agora, mais ainda. —
Mantive minha cabeça no encosto da cadeira e os olhos fechados.
Não queria ter que encarar o médico que tinha o poder de ler minha
mente.
— Você está salvando a vida dele.
— Que ironia — desdenhei —, preferia que ele morresse. — O
médico não respondeu. Continuou ao meu lado calado. — O que
aconteceu com ele?
— Foi baleado. Meus colegas estão tentando de tudo, mas,
provavelmente, se sobreviver, vai ficar sem os movimentos dos
membros inferiores.
Abri os olhos e o olhei de supetão.
— Paraplégico?
— Sim, ele levou vários tiros, inclusive... — Parou um pouco e
ficou constrangido. — Deram dois tiros no pênis dele. Estão achando
que é coisa de homem traído — contou baixinho.
Levei a mão em frente aos lábios e segurei para não rir. Não
fosse trágico, seria cômico.
— Prontinho — avisou a enfermeira, depois de tirar uns
quinhentos litros de sangue do meu corpo.
Me recompus e esperei um pouco, tive medo de levantar-me
de uma vez. Sem contar, que não queria ter que enfrentar as
pessoas. Salvar a vida do meu... do velho asqueroso, me custaria
muito caro.
— Obrigada por ficar comigo — agradeci ao Kauê que sorriu
de canto e fez um gesto com a cabeça para voltarmos à sala de
espera.

De volta à sala, não encontrei todos – somente João Pedro.


Bento e meu pai foram cuidar da liberação do corpo da minha mãe.
Sentei ao lado do meu parceiro, sem ter coragem de o olhar
nos seus olhos. Ele tinha uma expressão de decepção.
— Eu não podia te contar — falei baixinho.
— Tudo bem.
— Não está tudo bem, João. Eu sei que está chateado
comigo.
— Sério? Acha que estou chateado com você?
— Não tá?
— Eu tô puto da vida com você, Gabrielle. Todo esse tempo
me fazendo de trouxa — esbravejou e ficou em pé.
João Pedro andava na sala de um lado para o outro, passando
as mãos pelos cabelos.
— Cara, saber que eu fui cúmplice das suas loucuras, Gabi,
ele é seu pai, porra!
Levantei-me de supetão e enfiei o indicador no peito dele.
— ELE NÃO É MEU PAI! — gritei, afundando o dedo. — UM
ESPERMATOZOIDE NÃO FAZ DELE MEU PAI, CARALHO!!!
Foi nesse exato momento que Henry e Lucca entraram na sala
– com as testas franzidas.
Senti como se tivessem retirado todo o oxigênio da sala. Engoli
em seco e encarei os dois que me olhavam espantados.
— Isso é verdade? — questionou Lucca, aproximando-se.
Henry estava em posição de ataque. Confirmei e engoli em seco. —
Porra! — praguejou e meneou a cabeça – com um riso forçado. — Eu
devia ter ligado os pontos.
— É mentira dela, uma aproveitadora — grunhiu Henry, atrás
do Lucca.
Apertei as unhas nas mãos e cerrei os dentes. Senti meu
corpo ferver. Afastei Lucca com a mão e fiquei defronte ao idiota.
— Bem que eu queria que fosse mentira. Tenho vergonha de
ter o sangue dessa família imunda. Seu pai é asqueroso, nojento. Por
isso, atiraram no pênis dele. Pelo menos, agora, não vai mais poder
foder meninas inocentes. Bom, pelo jeito, nem andar mais — cuspi,
olhando diretamente para o Henry.
— Sabe que vou te colocar atrás das grades, não é mesmo?
— É mesmo? — Abri os braços e sorri ironicamente. — Tá
esperando o quê? — aticei.
Ele entortou o nariz e seus olhos faiscaram. O cara tem uns
bons metros a mais do que eu. Por mais ódio que eu sinta dessa
família, não posso negar a beleza deles. Henry consegue ser mais
bonito ainda do que o Lucca.
Com poucos passos, Henry estava a milímetros de mim. Não
recuei. Ergui o queixo e o desafiei. Não tinha mais nada a perder.
— Como teve coragem de tentar matar seu próprio pai? —
sussurrou, inclinando o rosto para o meu ouvido.
O empurrei com as duas mãos.
— Está me acusando?
— Estou constatando, esqueceu-se de que esteve na minha
empresa ameaçando-o de morte?
Respirei fundo.
— Prove.
— Pode ter certeza de que vou — garantiu e ficou ereto.
Arrumou seu paletó caro. Passou a mão pelos ombros – como se
estivesse limpando-os. Revirei os olhos. — Não pense que vou aceitar
essa historinha de irmã sem um exame de DNA.
Ri com vontade. Até aquele momento, eu me sentia suja por
ser uma Bennett, vendo a arrogância do Henry, outro sentimento
surgiu dentro de mim...
— Logo estarei com ele pra esfregar na sua cara, mas... —
Abri mais ainda meu sorriso. — Vou ter que fazer parte da diretoria,
quem sabe até mesmo tirar você do trono de CEO? — provoquei-o e
vi Lucca sorrir – satisfeito.
Claramente, eu tinha um aliado.
— Tá pra nascer a mulher que vai ganhar de mim nos negócios
— gabou-se Henry – aumentando consideravelmente meu desejo de
vencê-lo.
— O desafio está lançado. Vamos ver quem ganha esse jogo
— alertei e ele virou-se – saindo da sala.
§§§§
Debrucei no caixão e fiquei um bom tempo sentindo, pela
última vez, a textura da pele dela.
— Descansa, mãezinha..., tenho certeza de que os anjos estão
festejando, esperando sua chegada. — Lavei o rosto dela com
lágrimas. Beijei sua testa e continuei: — Eu sei que você estará
cuidando de mim lá de cima. E, desde já, peço desculpas pelo
trabalho que vai ter. — Sorri e alisei seu rosto tenro. — Prometo que
vou te dar orgulho, vai demorar um pouco, porque agora tenho uma
missão importante, mas... — Funguei e segurei o soluço. — Um dia,
mãezinha, quem sabe, até netos vou te dar. Já aviso, de antemão,
que é uma possibilidade praticamente remota. — Sorri novamente. —
Vou cuidar do papai, fiquei tranquila. Agora, vai fazer o que sempre
fez: brilhar.
Dei o último beijo em sua testa e me afastei. Assim que a
tampa do caixão foi deitada, soube que eu nunca mais seria a
mesma.
Epílogo
∆∆∆
Kaíque

O atentado sofrido pelo meu pai atrapalhou nossos planos


para o casamento. Por um lado, foi bom, pois conseguimos terminar a
reforma na fazenda da Laura. Conhecendo-a, sabia que só se sentiria
segura em seu território.
Henry mudou o foco da compra da fazenda: está determinado
a acabar com a nossa irmã. Ainda não descobriram quem atacou meu
pai. Ele, depois de um bom tempo no hospital, está sendo tratado em
casa. Os tiros o deixaram paraplégico, uma situação irreversível,
segundo os médicos.
Enquanto todos estavam concentrados em meu pai, Laura e eu
organizamos tudo. Pedi para os advogados da empresa redigirem um
pré-nupcial, porém para segurança da Laura. Não quero que ela
encare nosso casamento como uma negociação. Quanto a compra da
parte da Ana, irmã dela, já acertamos tudo.
Os advogados redigiram um contrato de arrendamento da
fazenda da Laura. Não pedi permissão ao Henry e sei que ele vai virar
um leão quando souber.
No fim das contas, a chegada da Gabrielle à família, está
sendo vantajosa para a maioria de nós. Principalmente, nós, que
adoramos ver a cara de decepção do Henry e do meu pai quando
receberam o resultado do DNA. Eles terão muito o que fazer, por um
bom tempo, nem vão procurar saber como ficou a situação da
fazenda, após meu casamento.
Hoje, depois de três meses do sim, enfim, vamos nos casar.
Não será nada grandioso. Apenas o pessoal das duas fazendas e, da
família, só o Lucca e a Valentina. Laura preferiu assim e eu não me
opus.
Contratamos os mesmos organizadores do casamento do
Lucca, a diferença é que pedimos uma decoração rústica, sem
frescuras. A cerimonia será no mesmo lugar que foi a do meu irmão.
Ajeitando a gravata “Bolo Tie”, com um cavalo no centro e o
final do cordão de couro com ponteiras douradas – Laura que me
presenteou –, em meu chalé, ouvi uma pessoa colocando os bofes
para fora no chalé ao lado.
Ajeitei o blazer, o cinto com fivela dourada e decidi ver o que
acontecia no chalé vizinho, até porque, era onde Laura se arrumava.
Parei em frente a porta e bati.
— Quem é — questionou Mirela.
— Abre, Mirela, sou eu — ordenei.
— Não pode entrar, Kaíque — avisou e eu bufei.
— Num vô saí daqui, quero vê a Laura.
Ninguém falou nada por um tempo e logo o som de alguém
vomitando chegou aos meus ouvidos, novamente.
— Abre, Mirela — insisti, batendo com mais força na porta.
A porta foi escancarada e as pessoas dentro do chalé me
olharam assustadas. Tinha uma equipe para arrumar a Laura. Meneei
a cabeça em cumprimento e fui direto ao banheiro.
Parei na porta e estremeci. Laura estava somente de lingerie
ajoelhada em frente ao vaso sanitário, enquanto sua mãe a ajudava
com seu cabelo.
— Qui porra tá acontecendo aqui? — inquiri e já fui agachando
ao lado da minha potranca.
Peguei no queixo dela e a fiz me olhar. Estava pálida e
respirava fundo. Um sorriso de canto surgiu em seu lábio e eu franzi o
cenho – sem entender.
— Não era pra você saber assim — disse Laura, limpando o
canto dos lábios com as costas da mão.
— Vou deixar vocês conversarem — comunicou a mãe e nos
deixou – fechando a porta.
Continuei estático, olhando-a, esperando um esclarecimento.
— Você vai ser papai, cowboy de araque — contou-me com
um sorriso maravilhoso.
É impossível descrever o que eu senti naquele momento. As
pernas amoleceram imediatamente. Caí de bunda no chão e a puxei
para cima de mim.
Afundei meu rosto na curva de seu pescoço e desabei a
chorar.
Se chorar é fraqueza, sou o homem mais bundão de todos...
Se deixar as emoções dominarem a razão é loucura, sou o
louco mais feliz do mundo...
Se sentir que está no lugar certo, com a pessoa certa, te deixa
vulnerável, me tornei um Bennett frágil.
Até aquele momento, não sabia o que era sentir felicidade de
verdade. Saber que eu teria minha tão sonhada família. Que teriam
pessoas que me amam me esperando a cada final de dia, fez meu
coração estourar no peito.
— Ei, cowboy, não achei que fosse se desmanchar assim —
brincou Laura, colocando meu rosto entre suas mãos.
— Eu te amo, potranca, agora, muito mais.
Para completar minha felicidade, Laura fez o que ainda não
tinha tido coragem.
— Eu, também te amo, cowboy.
Ela estava sentada em meu colo, com uma perna de cada
lado. Meu rosto continuava dentre suas mãos. Alisei suas costas e
sorri. Fui tentar um beijo ela se afastou.
— Minha boca tá com gosto de vômito.
Caímos na gargalhada e logo estávamos em pé, com ela
enxaguando a boca com um produto forte. Fiquei ao seu lado o tempo
todo.
— Posso beijar a noiva? — brinquei e ela fez melhor do que
responder – pulou em meu pescoço e atacou meus lábios.
A potranca sabe ser gostosa. Em segundos, estava com as
pernas cruzadas em minha cintura e eu a apertava à parede. Afastei
a calcinha e enfiei dois dedos em sua entrada molhada. Um gemido
alto escapou dela.
— Shiiii... tem um monte di gente aqui — sussurrei rindo.
— Não pode fazer isso, cowboy, sabe que não vou conseguir
ficar quieta — falou baixinho.
— Quero dexá você bem leve pro casório.
Antes que ela me impedisse, fiz o que meu coração mandou.
Continuei com os dois dedos dentro dela e, com o polegar, iniciei um
movimento circular na parte pulsante de seu centro. A potranca
encostou a testa em meu ombro e se soltou. Não demorou muito,
para eu sentir seu corpo estremecer. Meu ombro sentiu toda a sua
intensidade, com a mordida que ela tascou ali. Cheguei a gemer de
dor.

Embora estivesse tudo programado, não sabia que Laura


chegaria montando seu cavalo. Seu vestido branco era simples e a
combinação das botas e chapéu a deixou irresistível.
Bem próximo ao palanque, montado para o juiz de paz, ela
desceu do Zeus e entregou as rédeas ao seu ajudante. O vestido não
era muito comprido – facilitando que fizesse tudo sozinha. Mirela
aguardava ao lado e a entregou um buquê de flores do campo.
Imponente e sorridente, Laura chegou até mim. Toda sua
valentia me provoca, cada vez mais, admiração.
— Minha potranca — murmurei com um sorriso bobo.
— Meu cowboy de araque — respondeu no mesmo tom e
passou o braço pelo meu.
Lucca e Valentina estavam no altar, junto da Mirela e da mãe
da Laura.
Ouvimos com atenção o juiz e, assim que ele autorizou a beijar
a noiva, praticamente ataquei os lábios da minha mulher. Nos
afastamos e, mesmo que tivéssemos combinado que não teria votos,
decidi colocar para fora o que me preenchia de felicidade.
— Pessoal, quero dizer algumas palavras — comuniquei e
todos voltaram suas atenções ao altar. Laura ergueu as sobrancelhas
em aviso. Dei de ombros e sorri. De frente para ela, peguei em suas
mãos e, olhando em seus olhos, iniciei. Nada ensaiado, deixaria meu
coração me guiar. — Num pensei qui um dia acharia uma mulher qui
mi completa. — Parei e analisei o que tinha dito. — Melhor, qui mi
transborda. Laura foi feita pra mim. — Ela foi falar eu neguei com a
cabeça. — Ela tá doidinha pra dizer qui num é di ninguém, pessoal.
— Todos começaram a rir. — E num é mesmo, Laura é minha
companheira; minha confidente; minha cúmplice de tudo.
O sorriso de admiração, aquele que ultimamente dominava o
seu rosto, estava de ali – me presenteando.
— Essa mulher mi fez o homem mais feliz do mundo —
continuei. A puxei para mais perto e alisei seu ventre. — Vamos ter
um cowboyzinho ou uma potranquinha. — Um ohhhhh na plateia nos
encheu de alegria. Nossos olhos institivamente ficaram cheios de
lágrimas. — Eu amo essa potranca, gostosa pra caralho — gritei e
passei os braços em suas pernas – pegando-a no colo. Laura soltou
um gritinho e passou os braços pelo meu pescoço.
Atravessei a passarela com ela no colo, recebendo arroz na
cabeça. No final, a coloquei no chão e ela pediu a atenção de todos.
— Ao que parece, estamos fazendo votos, né cowboy de
araque? — Mais risadas. — Só quero dizer que o Kaíque estragou
todos os meus planos de permanecer solteira. — Sorriu e alisou meu
rosto. — Eu amo esse homem, mais do que eu gostaria. — Fiz um
bico com o lábio inferior e ela o pegou com seus dentes. Nos
abraçamos e aspirei seu cheiro confortante. Laura se afastou e
encerrou seu discurso. — Não achei que me sentiria tão feliz como
estou me sentindo. — Passou a mão em seu ventre e o olhou. — Já
te amamos, muito — conversou com sua barriga e eu coloquei minha
mão sobre a dela. Nos olhamos e sorrimos – sem tirar nossas mãos
de nosso bebê.

A festa decorreu como o planejado. Passamos boa parte do


tempo dando atenção às pessoas. Laura quase não comeu e franzia
o nariz para os quitutes que os garçons ofereciam.
Finalmente, conseguimos nos sentar. Lucca e Valentina nos
esperavam em uma mesa reservada, um pouco afastada das outras.
Eles tinham um sorriso diferente em seus rostos.
— O qui mi conta di novo, irmão? — Peguei em seu ombro e
dei um leve aperto. Ele olhou para sua esposa e alargaram mais o
sorriso. — Num vai mi dizer qui cê embuchou ela, também? —
brinquei e recebi um tapa no ombro, da Laura.
— Kaíque, deixa de grosseiro. Desculpa, cunhada, ele não tem
muito modos — desculpou-se com a Valentina que continuou sorrindo.
— Tudo bem, eu sei que ele está brincando. Mil vezes seu
marido do que o Henry — confessou e entortou os lábios.
Caímos na gargalhada juntos.
— Então, num respondeu — insisti ao Lucca.
— Sim, Kaíque, Valentina, também está grávida.
— Ê, lasquera, agora qui o velho tem um troço — diverti-me –
batendo palmas.

A verdade é que o estigma da família Bennett estava se


desmoronando. Os filhos de Isaac Bennett – tirando o Henry, que se
casou com uma interesseira e logo o largou, levando sua filha –,
estavam escolhendo as mulheres certas. Mulheres fortes que não têm
medo de enfrentar o “todo poderoso”.

Fim
Continua...
∆∆∆

A “Série Bem-Vindo ao Jogo” será composta por cinco


livros, no qual, cada um, contará a vida de um dos filhos da família
Bennett. Embora sejam livros independentes, estarão interligados
pela presença da investigadora Gabrielle que vai tendo sua história
exposta e completamente desvendada no último.

Nos próximos livros teremos pedaços da vida desse lindo


casal. Embora a história central será sobre a vida de outro Bennett.

Qual será o próximo irmão?

E Gabrielle, vai mesmo deixar de ser investigadora para fazer


parte da diretoria das empresas Bennett?

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Você gostou? Deixe sua avaliação, é muito importante para


mim.

Até o próximo livro.

A vida é um jogo? Será que seu pensamento continuará o


mesmo ao final das histórias? Bem-vindo ao jogo!
[1] Camionete – Dodge 2500 LARAMIE 2021.

[2] Camionete D20 - Chevrolet


[3] Nervosa
agradecimentos

Primeiramente a Deus, sem Ele, nada disso aconteceria. Ao meu


esposo, que me apoia em tudo. À minha mãe que, além de me apoiar,
é minha revisora e beta. E, não menos importante, às minhas
parceiras, sem elas meu caminho ficaria muito mais difícil.

“Ter talento para criar uma história não é o suficiente para


que a mesma tenha vida. Você, leitor, é o responsável pela
sobrevivência de nossas histórias.”

Anny Mendes
About The Author
Anny Mendes

Paulista – nascida em Santo André – SP, apaixonada pela cidade de


São Paulo.

Incentivada pela mãe, assim que aprendeu a ler passou a viajar nas
histórias. Os livros tornaram-se seu vício.

Pedagoga, enquanto dedicou-se a ensinar, alimentou a esperança de


um dia poder fazer o que sempre sonhou – escrever.

Em agosto de 2016, conseguiu organizar sua vida e deu início ao seu


primeiro livro. A história fluiu livremente, soltando da gaiola o que ficou
preso por anos.

Divide seu tempo em ensinar, ler e escrever. Nas horas vagas assiste
a filmes e séries, além de namorar o esposo, que tanto ama.
Books By This Author
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OS ROMANCES DA AUTORA ANNY MENDES VÊM RECHEADOS
DE MISTÉRIOS E CENAS QUE FAZEM SEU CORAÇÃO DISPARAR.
UMA PITADA DE CENAS APIMENTADAS DEIXAM AS HISTÓRIAS
MAIS ATRAENTES.

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