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RESENHA CRÍTICA SOBRE O LIVRO

Sobre Analíse e desenvolvimento.

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola relata a infância e


adolescência de Maya, especificamente dos 7 aos 16 anos. Com
isso temos uma perspectiva sobre a vida de uma menina negra
entre as décadas de 1930 e 1940, que acaba se refletindo na
situação de diversas outras crianças negras mesmo período. Por
mais que a escravidão já tivesse acabado, o racismo assolava
fortemente a população negra colocada à margem pelos brancos,
principalmente por meio de leis específicas para as “pessoas de
cor”.

Um dos pontos essenciais tratados na narrativa de Maya diz


respeito à desestrutura familiar, era comum que os filhos pequenos
fossem criados pelas avós e não pelos seus próprios pais. Maya e
seu irmão Bailey são abandonados pelos pais e passam por anos
sem ter nenhuma notícia deles, e nem sabem ao certo o motivo do
abandono. Essas crianças são criadas pela avó paterna e pelo tio
avó, mas são enviadas de trem sozinhas da Flórida para o Sul.

Momma, a vó paterna das crianças, é uma mulher de referência na


comunidade por ter um mercado e ajudar sua comunidade, inclusive
emprestando dinheiro aos poucos brancos que viviam  naquela
região. Entretanto ela é uma mulher extremamente rígida e
religiosa, ela faz questão de criar os netos estritamente sob os
princípios cristãos, e esse aspecto traz uma grande consequência
para um acontecimento doloroso na vida da Maya. O tio avô Willie é
um homem que sofre preconceito de duas formas: tanto por ser
negro, tanto por ter uma deficiência física que o deixa manco. Ele
não tem esposa, nem filhos, e também compartilha dos mesmos
princípios que sua irmã viúva.

A narrativa descreve o cotidiano nessa comunidade: a escola, a


igreja e o mercado da família. Maya não tem “preguiça” de contar os
pormenores das tarefas que realizava na infância e das brincadeiras
com seu irmão, a pessoa que ela mais tem convivência e apego,
uma relação de muita cumplicidade e amor. Quando a gente pensa
que a narrativa vai seguir contando sobre a rotina diária, muda
completamente para acontecimentos que exigem pausas para que
o leitor possa assimilar as experiências traumáticas de Maya.

Quando Maya tinha 8 anos e Bailey 9 eles vão passar um tempo com a mãe
na Flórida. Eles estão receosos porque fazia muito tempo que não viam os
pais, Maya retrata que nem mesmo lembrava de como eles eram. Levados
pelos pais de carro seguem na jornada de volta para a casa da mãe, e
Bailey se encanta por ela facilmente, enquanto Maya demonstra ainda suas
fragilidades por não se sentir bonita, de não gostar de seus traços por ser
negra e pelo seu cabelo crespo.

Porém a experiência é muito mais terrível, Maya começa a ser abusada pelo
padrasto e acaba sendo estuprada por ele, com apenas 8 anos. A garota é
ameaçada por ele e sua mãe descobre e o denuncia. Traumatiza com a
experiência, Maya precisa depor num julgamento, é exposta e tem a sua
palavra contrariada pelo tribunal. Como ela tinha muito medo do que tinha
acontecido, ela mente no tribunal dizendo que tinha sido estuprada mais de
uma vez. O padrasto não fica muito tempo na cadeia e depois é encontrado
morto. Aquela criança se sente culpada, ainda mais por ter mentido, e
segundo as crenças de que ela foi criada, ela tinha pecado e seus atos
levaram a morte de um homem. Por isso, de volta à casa de Momma, Maya
não é a mesma e não consegue lidar com uma experiência tão traumática, a
garotinha que adorava ler, contar histórias e brincar, fica por mais de um
ano sem falar com ninguém, e é a literatura que salva Maya dessa
escuridão claustrofóbica. Acho que o título do livro, Eu sei por que o
pássaro canta na gaiola, me parece vir justamente dessa sensação de
estar preso e sua voz apenas para si.

Na maioria dos casos, as vítimas nos casos de abusos sexuais são julgadas
e culpadas pelo o que aconteceu. Infelizmente até os hoje há inúmeras
crianças que sofrem abuso de pessoas muito próximas a elas, não
conseguem denunciar e vivem anos dessa maneira porque não encontram
segurança ou confiança em alguém que acredite nelas. É terrível, é muito
triste e desolador. Tudo é narrado de uma maneira tão crua que é
impossível ficar alheio ao sentimento de culpa, desespero e dor que a
autora relata. E sim, pode servir de gatilho para quem tem sensibilidade
sobre o assunto.

Aos quinze anos Maya vai passar as férias de verão com o pai e sua
madrasta, que mais parece uma irmã mais velha devido à pouca idade da
garota. O pai de Maya costuma ir até o México para comprar condimentos
culinários o que na verdade é uma desculpa para curtir a farra com as suas
amantes. Numa dessas viagens ele resolve levar a filha e aqui vemos o
quanto o pai é irresponsável e não dá nenhuma segurança à garota.
Bêbado, ele abandona Maya sozinha, num país estrangeiro, a garota
resolve dirigir sem mesmo saber e acaba batendo o carro, o que não traz
nenhuma fatalidade. Entretanto, ao voltar para a casa do pai Maya acaba se
envolvendo numa briga com a madrasta que na verdade não gostava
nenhum pouco de dividir o marido. Durante a briga ela corta Maya que
precisa fugir para que nada de mais grave ocorra, e mesmo com a ajuda do
pai ela resolve ir embora, morando num ferro velho por um mês com outros
jovens de rua.

É curioso notar que o movimento e a locomoção de um lugar para o outro é


um ponto constante em toda a narrativa e significa não só a instabilidade
física, mas também emocional e psicológica dessas crianças que não têm
uma base familiar que condicione os princípios básicos de sobrevivência. E
esse ciclo vicioso que persegue os negros desde à escravidão e se repete
na vida de Maya quando ela engravida aos 16 anos e o pai da criança foge
para não ter que lidar com as responsabilidades.

A maneira, e repito mais uma vez, crua que Maya descreve sua primeira
relação sexual consensual e que resulta numa gravidez prematura e
indesejada, e com seus princípios cristãos um aborto jamais poderia ser
considerado uma opção , reflete muito nas suas experiências anteriores e
também a descoberta da sua sexualidade. Até me arrisco a dizer que por
ser um livro de memórias e reflexões, que essa frieza também é o reflexo
dos abandonos que a autora sofreu ao longo da vida, principalmente nesse
período crucial de formação de um indivíduo.

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