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Universidade Do Estado Do Rio De Janeiro

Centro De Educação E Humanidades


Instituto De Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras
Curso: Fazeres literários do século XXI: tensões e
avanços - Versão III, desdobramentos na pandemia
Professora: Dra. Maria Aparecida Andrade Salgueiro

Ana Carolina Spalla Magalhães do Carmo

A pluralidade de representatividades e a fuga dos estereótipos em Girl,


Woman, Other de Bernardine Evaristo

Rio de Janeiro
2022
A pluralidade de representatividades e a fuga dos estereótipos em Girl, Woman,
Other de Bernardine Evaristo

1 INTRODUÇÃO

Bernardine Evaristo, aos sessenta anos, em seu oitavo livro publicado, deixou sua
marca na história ao se tornar a primeira mulher negra e a primeira pessoa negra britânica
a receber o prêmio Booker em 2019 com seu livro Girl, Woman, Other – traduzido no
Brasil pela Companhia das Letras com nome Garota, Mulher, Outras.
O romance premiado conta a história de onze mulheres negras e uma pessoa trans
não-binária e negra, no qual a cada capítulo há a mudança de narrador e de ponto de vista.
Variando de uma menina de dezenove anos à uma mulher de noventa e três anos que já
viveu muita coisa, mas ainda tem o que descobrir na vida. A seguir encontra-se a
apresentação do livro em português brasileiro que está presente no site do Grupo
Companhia Das Letras:

Garota, mulher, outras é um verdadeiro marco da ficção britânica. O romance


causou furor quando publicado: venceu o Booker Prize em 2019, foi aclamado
por nomes como Barack Obama, Roxane Gay, Ali Smith e Tom Stoppard e
incluído nas listas de melhores livros do ano por veículos como The Guardian,
Time, The Washington Post e The New Yorker. A forma, por si só, não é nada
convencional: trata-se de um gênero híbrido, composto de versos livres e sem
pontos-finais. O resultado é uma dicção singular e envolvente, que prende o
leitor da primeira à última página.
O pano de fundo dessas histórias é uma Londres dividida e hostil, logo após a
votação do Brexit: um lugar onde as pessoas lutam para sobreviver, muitas
vezes sem esperança, sem que as suas necessidades sejam atendidas e sem que
sejam ouvidas. Nesse ambiente opressor, as vozes de Garota, mulher, outras
formam um coro e levantam reflexões poderosas sobre o machismo, o racismo
e a estrutura da sociedade.
"Brilhante, inventivo." - Sunday Times
"O livro mais envolvente que li o ano todo. (...) Este romance é uma aula sobre
contar histórias. Absolutamente inesquecível." - Roxane Gay
"Garota, mulher, outras mudou meu jeito de pensar." - Tom Stoppard
"Bernardine Evaristo pode tirar qualquer história de qualquer tempo e
transformá-la em algo vibrante, com vida." - Ali Smith (GRUPO
COMPANHIA DAS LETRAS, 2020)

Assim, vê-se o impacto do livro na contemporaneidade. Ao longo do trabalho


serão abordadas algumas questões referentes a vida das personagens, o espelho que essas
personagens são em meio a sociedade contemporânea - trazendo uma real
representatividade - e a fuga dos estereótipos que podem ser dados a mulheres, pessoas
negras e pessoas LGBTQIA+ na literatura e na mídia.

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2 AS PERSONAGENS E SUAS CARACTERÍSTICAS

Para o melhor entendimento do porquê há tanta representatividade em Girl,


Woman, Other, é necessário falar sobre os diferenciados perfis que estão presentes na
obra e isso será melhor dividido nas próximas seções.

2.1 Amma, Yazz e Dominique

Amma é apresentada no primeiro capítulo e acaba por ser a personagem que une
todas as outras, direta ou indiretamente, ao final da obra. Ela é uma mulher negra com
ascendência escocesa-nigeriana e ganense, é cisgênero, nasceu nos anos 60, relaciona-se
com mulheres, é não-monogâmica e possui atualmente duas parceiras. Amma tem uma
filha, Yazz, com um de seus melhores amigos gays. Além disso, Amma tem os roteiros e
produções de diversas obras teatrais em seu currículo e irá, pela primeira vez, estrear uma
peça no National Theatre, o que mostra o sucesso de sua carreira.
Yazz tem dezenove anos e é apresentada ainda no primeiro capítulo por ser filha
de Amma. A jovem está na faculdade e no segundo capítulo é trazida a sua visão de vida,
de sua relação com sua mãe, com seu pai, com seus amigos e de sua maneira de estar no
mundo enquanto uma mulher cisgênero, negra, hétero e da Geração Z que foi criada por
uma mãe progressista.
Dominique é quem vemos no terceiro capítulo. Ela é mencionada e conhecemos
um pouco de sua personalidade nos capítulos anteriores por ter sido melhor amiga e
codiretora, juntamente com Amma, da companhia de teatro que fundaram na juventude.
A amiga de Amma se apaixona por uma mulher norte americana e se muda para os
Estados Unidos com a namorada. Apesar de Dominique ser uma mulher entendida pela
sociedade como forte e empoderada, ela acaba passando por um relacionamento abusivo
de anos com essa mulher americana com quem ela se envolveu. Dominique é uma mulher
negra, cisgênero, lésbica, de ascendência afro-guianense e indo-guianense, e está na
mesma faixa etária de Amma. Além de ser amiga de Amma, ela é também madrinha de
Yazz.

2.2 Carole, Bummi e LaTisha

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Carole é uma mulher cisgênero, heterossexual, negra e filha de pais nigerianos
que foram para Londres a procura de melhores oportunidades de emprego. Carole, após
sofrer um trauma na adolescência e não ver sentido em mais nada na vida, decide se
aplicar na escola com a ajuda de sua professora, Shirley, para alcançar um lugar de
prestígio em seu futuro. A jovem conseguiu se tornar vice-presidente em um banco em
Londres e se tornou noiva de um homem londrino branco contra o gosto de sua mãe. O
que se entende de Carole é que a personagem tenta se afastar de suas raízes para se
adequar aos padrões da sociedade londrina branca e alcançar um lugar de respeito na
sociedade.
Bummi é uma mulher nigeriana cisgênero negra que imigrou para a Inglaterra
com o marido em busca de melhores oportunidades de emprego para ele e de vida para
sua família. Ela tem muito orgulho de suas raízes e tenta sempre manter contato com os
costumes de sua nação, como a culinária. Bummi mantém o sotaque de seu país - que é
expresso pela escrita de Evaristo - e diz que sua filha, Carole, deve se casar com um
homem nigeriano negro para manter a força nigeriana de sua família. Quando Bummi
conhece o homem branco londrino ao qual Carole se casa, ela gosta dele e percebe que
ele incentiva sua filha a ser mais como ela é do que como esperam que ela seja.
LaTisha é uma mulher negra, cisgênero, com ascendência de Santa Lúcia e
Montserrat, que estudou com Carole. A jovem teve seu primeiro filho na adolescência,
possui três filhos com pais diferentes, um deles foi fruto de violência sexual e a jovem se
tornou mãe solo das três crianças antes dos vinte e um anos. LaTisha tornou-se gerente
do supermercado em que trabalha desde que largou a escola, objetiva tornar-se gerente
um dia e gostaria de encontrar sua antiga colega, Carole, para mostrar que deu um jeito
em sua vida e não é mais a arruaceira que era quando não era digna da amizade de Carole.

2.3 Shirley, Winsome e Penelope

Shirley é uma mulher negra cisgênero e heterossexual com ascendência de


Barbados. Foi professora de LaTisha e Carole, tentou sempre incentivar as alunas a
estudarem e a se aplicarem aos estudos, não funcionou com LaTisha, mas Shirley apoiou
e mentoreou os estudos de Carole. Sabendo que a jovem chegou em local de grande
prestígio, Shirley sente ingratidão por parte de sua ex-aluna que nunca lhe agradeceu.

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Além disso, a professora possui também um desenrolar dramático em sua vida familiar
na qual ocorrem traições de sua mãe com seu marido. E sua melhor amiga é Amma, apesar
de Shirley ser homofóbica.
Winsome é mãe de Shirley, é de Barbados, e é uma mulher cisgênero negra e
heterossexual que já está na casa dos 80 anos e é bisavó. Winsome se casou com seu
marido após mal conhecê-lo pois ele a proporcionava segurança e teve que segui-lo pela
Inglaterra a procura da oportunidade de trabalho que o esposo queria. A mulher, apesar
de casada, viveu parte de sua vida sozinha, e enfrentou muito racismo como uma mulher
negra nos anos 50 na Inglaterra. Uma das histórias conturbadas na vida de Winsome é
que ela teve um caso por algum tempo com o marido de sua filha e o caso com o genro
despertou em si um desejo sexual que ela não sabia possuir.
Penelope é uma mulher cisgênero, de pele clara, e adotada por um casal branco
de ascendência inglesa e sul-africana. Penelope é xenofóbica e acredita que as verdadeiras
pessoas civilizadas são apenas as brancas. Ao descobrir que é adotada seu mundo muda
por completo e ela promete achar conforto para si no seu futuro emprego e família que
ela própria iria criar. Após dois casamentos e divórcios Penelope se sente fracassada e
tem como único apoio sua filha e seu netos, que ainda são pequenos. Sua filha, Sarah,
revela que ela e a família vão mudar de país e Penelope vê sua felicidade sumindo, já que
também não se sente realizada em seu trabalho como professora.

2.4 Megan/Morgan, Hattie e Grace

Morgan é uma pessoa trans não-binária e pansexual que atende pelos pronomes
elu e delu. Elu nasceu em corpo biologicamente feminino e foi criade em família
conservadora. Durante seu amadurecimento, Morgan, batizade originalmente como
Megan, viveu apenas sabendo sobre questões que sua família queria que soubesse e apesar
do não reconhecimento em seu próprio corpo e rejeição a estereótipos femininos, foi
apenas ao final da adolescência que elu se rebelou, fez tatuagens e saiu de casa. Ao buscar
acolhimento e tentar saber sobre outros aspectos da vida através da internet elu encontra
Bibi, uma mulher trans que viria a ser sua namorada por anos após o auto entendimento
de Morgan.

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Hattie tem noventa e três anos e é uma mulher negra de pele clara, cisgênero e que
já tem tataranetos. Hattie teve dois filhos de pele mais escura que ela - que se casaram
com pessoas brancas a fim de embranquecer sua família - e teve que aprender o o que
seus filhos provavelmente passariam. Uma das histórias que se interligam com a de Hattie
é que ela é bisavó de Morgan e foi a única pessoa da família que aceitou sua
transexualidade. Além disso, Hattie teve uma filha na adolescência e seu pai levou a bebê
à força para adoção.
Grace é mãe de Hattie e a história é contada a partir da mãe inglesa de Grace que
a gera junto com um marinheiro etíope, sendo Grace negra, mestiça, cisgênero e
heterossexual. Grace torna-se órfã aos 8 anos e vai para um lar para meninas onde é criada
e educada. Sendo uma mulher negra na Inglaterra Grace sofria com o racismo em todos
os lugares. Ela casou-se com um homem inglês branco que demonstrava ser uma boa
pessoa e, quando teve Harriet, Grace já estava em depressão pós parto devido aos bebês
anteriores que não vingaram. Seu marido não a entendia e fazia pressão psicológica em
Grace alegando que ela não estava cumprindo seu papel. Após perceber que sua prole
enfim vingaria sua depressão passou e com o início de seu amor por Hattie voltou também
o amor de seu marido por Grace e a mulher viveu sua vida plenamente, sentindo apenas
falta de sua mãe que morreu tão nova.
Como pôde ser observado com a descrição do perfil de cada personagem, que
abarca características raciais, ancestrais, de gênero, de orientação sexual e políticas, há
uma vasta gama de diversidade em um perfil que é facilmente e erroneamente lido pela
sociedade como apenas “mulheres negras” ou, ainda mais geral e até mesmo incorreto:
mulheres.
Tendo listado as características de cada personagem, torna-se necessário também
observar os contextos em que estão inseridos e a profundidade de suas histórias.

3 COMPLEXIDADE IDENTITÁRIA E INTERSECCIONALIDADE

Ao entendermos o contexto em que cada personagem está inserida, é fundamental


refletirmos sobre o que realmente é representatividade e botarmos em cheque o quanto a
visibilidade é realmente aplicada nas formas midiáticas e na literatura não apenas

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contemporânea, mas ao longo do tempo. Para refletir sobre a representatividade se colocar
como algo de fundamental importância em todas as esferas, citamos Dalcastagnè (2021):

Ao interromper suas atividades e abrir um romance, o leitor busca, de alguma


maneira, conectar-se a outras experiências de vida. Pode querer encontrar ali
alguém como ele, em situações que viverá um dia ou que espera jamais viver.
Mas pode ainda querer entender o que é ser o outro [...]. O romance, enquanto
gênero, promete tudo isso a seus leitores [...]. Portanto, a promessa de
pluralidade do romance, um sistema de “representações de linguagens”,
nos termos de Bakhtin (1988 [1975], p. 205), envolve não só personagens e
narradores(as), mas também seus(-suas) leitores(as) e autores(as).
Reconhecer-se em uma representação artística, ou reconhecer o outro
dentro dela, faz parte de um processo de legitimação de identidades, ainda
que elas sejam múltiplas. Daí o estranhamento quando determinados
grupos sociais desaparecem dentro de uma expressão artística que se
fundaria exatamente na pluralidade de perspectivas. (DALCASTAGNÈ.
2021, p. 110, grifo nosso)

Com isso em mente, abordaremos a análise de representatividade de Dalcastagnè


(2021) que analisa o contexto brasileiro da representatividade racial, de gênero, etária e
de diversidade sexual nos principais romances brasileiros publicados pelas editoras
centrais no cenário brasileiro entre 1965 e 1979, entre 1990 e 2004, e entre 2005 e 2015.
Dalcastagnè diz em seu resumo que

Os dados mostram que o romance brasileiro contemporâneo privilegia a


representação de um espaço social restrito. Suas personagens são, em sua
maioria, brancas, do sexo masculino e das classes médias. Sobre outros
grupos, imperam os estereótipos. As mulheres brancas aparecem como
donas de casa; as negras, como empregadas domésticas ou prostitutas; os
homens negros, como bandidos. As mudanças ao longo do tempo, embora
não estejam ausentes, não são de grande monta. Assim, o campo literário [...]
tende a reproduzir os padrões de exclusão da sociedade brasileira.
(DALSCATAGNÈ. 2021, p. 109, grifo nosso)

Olhando para Girl, Woman, Other, vemos um cenário diferente do abordado por
Dalcastagnè. Bernardine Evaristo traz outra realidade para a literatura britânica e de
língua inglesa em 2019. Apesar das personagens principais se encaixarem em diferentes
rótulos nas diferentes esferas, suas personalidades não são fragmentadas, há múltiplas
características de personalidade abordadas, e essas não são retratadas de maneira
estereotipadas. A interseccionalidade trazida por Evaristo em seus personagens, faz com
que eles representem com êxito a complexidade do ser humano e não se tornem
personagens rasos, estereotipados e caricatos.
Um dos exemplos em que pode ser vista a complexidade humana e das relações é
a passagem na qual Amma fala de Shirley como tendo sido a primeira amiga que ficou

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sabendo de sua sexualidade e nunca a julgou, sempre apoiou. Enquanto isso, do outro
lado, temos a versão de Shirley que conta os conflitos internos e preconceitos que a
personagem manteve ao longo das décadas de amizade com Amma. Porém, ser
preconceituosa e não concordar com a orientação sexual de sua amiga, não as levou a
uma discussão, afinal as personagens são mais que apenas uma sexualidade e um
preconceito, chegando ao ponto de que Amma não sabe o que Shirley realmente pensa.

Shirley nunca disse uma palavra negativa sobre a sexualidade de


Amma, dava cobertura quando ela faltava às aulas e ouvia com avidez as
histórias dos jovens do teatro—o cigarro, os amassos, as bebedeiras, a
atuação—nessa ordem, e mesmo quando os caminhos delas se dividiram
depois da escola, Shirley lecionando, Amma no teatro, elas mantiveram a
amizade
[...]
Amma se assumiu lésbica para Shirley aos dezesseis anos o que de
início foi bem nojento
pareceu uma traição à amizade das duas embora Shirley nunca tenha
deixado os sentimentos verdadeiros dela transparecerem porque não queria
magoar Amma
[...] (EVARISTO, 2019, posição 410)

São também apresentados diversos pontos de vista em relação a hereditariedade.


Podemos dividi-los em três grupos principais: quem sente extremo orgulho de sua
ascendência, quem faz o possível para esconder sua ascendência e origem, e, quem é
relativamente indiferente quanto a sua ascendência. Nos dois primeiros grupos,
Bernardine nos mostra a dualidade que pode ocorrer mesmo dentro de uma mesma casa,
Bummi e Carole - mãe e filha - veem sua ascendência de maneiras diferentes. Enquanto
Bummi fala com um inglês que não é o padrão para a Inglaterra, sempre que possível
relembra sua terra natal e faz as culinárias de sua origem; Carole tenta se tornar cada vez
mais europeia ao vestir-se, portar-se e falar de maneira cada vez mais britânica e parece
tentar apagar sua origem, pois, até mesmo um de seus pratos nigerianos favoritos ela passa
a não gostar.
Outro aspecto que Evaristo traz para sua obra é a reflexão sobre o feminismo, sua
divulgação e o conhecimento popular geral acerca do assunto que, mesmo na “era da
informação”, pode ser escasso e incorreto. Isso é representado no livro através de Morgan
que não sabia sobre opiniões e questões além das quais sua família apoiava.

ei, isso é “Introdução ao Feminismo”, na verdade, por onde foi que


você andou, Megan? com a cabeça nas nuvens?
é, acho que sim, vivendo no mundo-dos-meus-pais, não me xinga,
aliás, só curiosa

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ah, uma alma sensível, vou pegar leve com você daqui pra frente, mas
dá uma pesquisadinha, sério
Megan descobriu que o feminismo era gigante agora, como isso podia
ter passado batido por ela? (EVARISTO, 2019, posição 4564)

De encontro a essas questões e diversas outras que são levantadas na obra,


Evaristo afirma, em uma entrevista, que nem tudo se trata de raça e questiona se uma
princesinha negra e rica que frequenta a Eton é mais oprimida do que uma pessoa não-
binária que vive em situação de pobreza e é marginalizada. Evaristo finaliza o trecho
refletindo que aos poucos estamos começando a nos tornar conscientes do que é a
interseccionalidade:

“It's not all about race," Anglo-Nigerian writer Bernardine Evaristo told
Spanish journalist Leticia Blanco [...]
“Is a rich black princess who goes to Eton more oppressed than a non-binary
white person who lives in poverty and is marginalized? Little by little we are
beginning to become aware of what intersectionality is,” she reflected. (AL
DÍA. 2020)

Viver no mundo contemporâneo em que todos estão conectados e presentes em


múltiplos espaços nos torna cada vez mais conscientes que a complexidade do ser humano
vai muito além de apenas um “setor” de sua vida, personalidade ou aparência. Helena
Hirata cita a tradução da definição de Sirma Bilge para interseccionalidade:

A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender


a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de
um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos
grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero,
classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque
interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos
sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua
interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (BILGE,
2009, p. 70 apud HIRATA, 2014, p. 62-63)

Portanto, o entendimento das personagens da obra pela visão interseccional é


complexo e mostra as várias camadas existentes ao analisar e julgar uma pessoa ou
personagem. Personagens profundos dão a possibilidade ao leitor de uma maior
identificação e de se sentirem representados, afinal, com problemas mais profundos e que
abarcam diferentes setores da vida, assim como no mundo real, o leitor pode ver um
espelho de si.

4 REPRESENTATIVIDADE VAZIA VS REPRESENTATIVIDADE


VERDADEIRA

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Conforme apresentado nas seções anteriores, há diversos perfis de mulheres e
pessoas ao longo de Girl, Woman, Other. Com isso, é inescapável abordar a questão da
representatividade e o que realmente significa haver representatividade. Pode ser posto
em cheque, constantemente, se há uma verdadeira representação da realidade nos locais
- sejam eles filmes, livros, séries, cargos empresariais, etc - ou se há apenas uma
representatividade vazia.
O termo “representatividade vazia” está em voga em meio as pessoas que se
interessam pelo assunto nas redes sociais e isso nos leva a questionar quando ele deve ser
aplicado. Djamila Ribeiro (2016) fala sobre essa questão:

Eu concordo muito com a Angela Davis quando ela fala sobre representação
[...] a representatividade é importante mas reconhecer a importância dela
não pode significar não reconhecer seus limites [...] não basta ser negro e
não basta ser mulher. Muitas vezes você tem uma pessoa negra ocupando
um lugar de poder importante mas reproduzindo lógicas que vão contra
a população negra. Você pode ter mulheres ocupando espaços importantes
só que reproduzindo uma lógica conservadora e que vai contra as
revindicações históricas dos movimentos feministas. Eu acho que é muito
importante a gente ter pessoas negras nesses espaços, mas entendendo que isso
ainda é um começo, acho que é um avanço, tem que ser comemorado, mas eu
acho que ainda é um avanço muito ainda no campo do simbólico, porque
concretamente a gente precisa de muito mais ações pra ter mais pessoas negras
lá pra gente inclusive conseguir ultrapassar as estruturas, porque também não
basta ter vária pessoas negras num espaço sendo que a juventude negra tá
morrendo [...] (RIBEIRO, 2016, grifo nosso)

No trabalho “Revista Applause: A Comunidade LGBT+ em Pauta” também é


falado sobre essa questão:

A comunidade LGBT+ ainda carece de uma representatividade verdadeira


na mídia, sendo tratada de forma séria e responsável, e não por meio de
estereótipos caracterizados como melindrosos e promíscuos sexualmente,
o que claramente não condiz com a realidade e ainda pode vir a estimular
atos de preconceito e violência contra essa parcela da população
(CARDINALLI, M. A. et al. 2016, p 2, grifo nosso)

Um dos exemplos sobre o que pode tornar uma representatividade vazia é haver a
presença de determinado grupo minoritário, mas em papéis estereotipados, como ao ter
uma personagem negra em uma novela que é empregada doméstica, tem muitos filhos e
só sabe falar o português não-padrão, informal. Evaristo aborda isso no capítulo de Amma
ao falar sobre sua época de jovem adulta em que ela e Dominique tentavam conseguir
grandes papéis, mas só havia espaço para elas em personagens estereotipados:

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elas se conheceram nos anos 80 num teste para um longa-metragem
ambientado numa prisão feminina (o que mais?)
as duas estavam cansadas de ser colocadas em papéis como escrava,
empregada, prostituta, babá ou criminosa
e ainda assim não conseguir o trabalho
[...]
Amma era mais baixa, com quadris e coxas africanos
material perfeito para uma garota escrava, um diretor lhe disse quando
ela entrou na sala de teste para uma peça sobre a Emancipação
ao que ela deu meia-volta e foi embora
por sua vez um diretor de elenco disse a Dominique que ela estava
desperdiçando o tempo dele ao aparecer para um teste para um drama vitoriano
quando não havia nenhuma pessoa negra na Grã-Bretanha da época
ela disse que havia, o chamou de ignorante antes de também sair da
sala
no caso dela, batendo a porta (EVARISTO, 2019, posição 100)

Além das características físicas, da personalidade e de particularidades das


personagens, outra maneira que podemos notar uma efetiva representatividade é na escrita
da Evaristo, que possui um estilo próprio. A Fusion Fiction, termo cunhado pela autora
para sua escrita em Girl, Woman, Other, porta-se ora como prosa, ora como verso e não
pontua ou divide linhas e parágrafos de maneira canônica. A escrita decolonizadora de
Evaristo não utiliza vírgulas para inserir pausas e divide as frases nas linhas de acordo
com a ênfase e o efeito que a autora quer causar no interlocutor. Nos exemplos a seguir
pode ser observada a engenhosidade da autora ao dividir as palavras da frase em
diferentes linhas para dar o efeito desejado e reforçar o sentido da frase com a cadência e
fazendo o leitor sentir de maneira mais intensa o feito das palavras:

onde as roupas dela tinham ido parar?


depois
o
corpo
dela
não
era
mais
dela

pertencia
a
eles
e ela, que amava números, se tornou incapaz de contar
não podia contar, não queria
sentindo partes de corpos estranhos sobre e dentro de partes do corpo
dela que eram muito privadas,
[...]
depois que minutos ou horas ou dias ou anos ou várias vidas se
passaram, aquilo parou
você ficou implorando por isso, e, aliás, você estava ótima

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depois eles foram embora
e
ela
também. (EVARISTO, 2019, posição 1811)

Pode-se perceber, portanto, que com a inclusão de diversas personagens


complexas com os mais diferentes estilos de vida, Evaristo explorou algumas das
inúmeras realidades para mulheres negras como: uma mãe solo de três filhos, sem
formação, que trabalha em um emprego considerado como inferior, que foi violentada;
há também um exemplo de mulher negra que, apesar de também ter sido violentada, com
ajuda, muito estudo e impulsionamento conseguiu chegar num cargo de prestígio; há uma
professora negra que é entendida como ríspida e insensível mas que tem questões próprias
e se realiza ao ver seus alunos sendo casos de sucesso; e diversos outros perfis que foram
expostos na seção dois deste trabalho.

5 CONCLUSÃO

Bernardine Evaristo em sua oitava obra, Girl, Woman, Other, utiliza da presença
das doze personagens principais e dos personagens secundários com as mais diversas
características para escrever uma obra rica em diversidade, pluralidade de corpos, saberes,
representatividades e fuga dos estereótipos mais frequentes para os mais diferentes perfis.
Como apontado por Dalcastagnè (2021) em seu resumo da análise dos romances
brasileiros com o recorte previamente já apresentado “As mulheres brancas aparecem
como donas de casa; as negras, como empregadas domésticas ou prostitutas; os homens
negros, como bandidos.” e Evaristo nos traz outra realidade.
Além das representatividades de gênero, sexualidade, raça, nacionalidade, e
classes sociais, Girl, Woman, Other traz também outros aspectos que permeiam a vida
dessas personagens, mas que não puderam ser abordados aqui: uma mulher que para
conseguir dinheiro para erguer seu negócio e sustentar sua filha e a si mesma que foi
obrigada a ter relações sexuais com seu pastor para que o mesmo a emprestasse o dinheiro
necessário; mulheres que tiveram experiências sexuais com outras mulheres em algum
ponto de sua vida de maneira casual; a luta exponencialmente maior de uma mulher negra
filha de imigrantes em comparação com um homem branco europeu de classe média; os
abusos que mulheres tem que aguentar e tentar se precaver de qualquer modo para não

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passarem por violência sexual, mas que pode acabar acontecendo mesmo assim; a solidão
da mulher negra; e outros diversos tópicos.
O impacto social de uma obra como essa, em que há tanta pluralidade, ser
reconhecida por um dos principais prêmios mundiais de literatura traz grande esperança
para a população que almeja ver mais de si na literatura e também aos perfis que se
encaixam em posições de privilégio social, mas que almejam experienciar outras
vivências através da literatura. Pois, como é dito por Dalscastagnè (2021): “Reconhecer-
se em uma representação artística, ou reconhecer o outro dentro dela, faz parte de um
processo de legitimação de identidades, ainda que elas sejam múltiplas.”

REFERÊNCIAS

Companhia das Letras. Um romance surpreendentemente atual e engenhoso sobre


identidade, raça e sexualidade, vencedor do Booker Prize em 2019. 2020.
Disponível em: <https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14850>.
Acesso em: 26 mar. 2022.
TV Boitempo. Djamila Ribeiro: Representatividade no feminismo negro. 2016.
Disponível em<https://www.youtube.com/watch?v=8Sni41OkZnE>. Acesso em: 8 mar.
2022.
EVARISTO, Bernardine. Garota, mulher, outras. Companhia das Letras, 2020.
Edição do Kindle.
GARCÍA, Beatriz. Bernardine Evaristo Blowing up the clichés about racism: The
author of Girl, Woman, Other was the first black writer to win the Man Booker Prize.
2020. Disponível em: <https://www.aldianews.com/culture/books-and-authors/its-not-
all-about-race?device=mobile>. Acesso em: 21 fev. 2022.
DALCASTAGNÈ, R. Ausências e estereótipos no romance brasileiro das últimas
décadas: Alterações e continuidades. Letras de Hoje, v. 56, n. 1, p. e40429, 11 jun.
2021.
HIRATA, H. Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das
relações sociais . Tempo Social, [S. l.], v. 26, n. 1, p. 61-73, 2014. DOI:
10.1590/S0103-20702014000100005. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/84979. Acesso em: 26 abr. 2022.
CARDINALLI, M. A. et al. Revista Applause: A Comunidade LGBT+ em Pauta. Anais
do Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste. São Paulo. 2016
Disponível em: <https://portalintercom.org.br/anais/sudeste2016/expocom/EX53-0204-
1.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2022.

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