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BÁRBARA PRINCE
Editorial
ROBERTO JANNARELLI, VICTORIA REBELLO
&
ISABEL RODRIGUES
Comunicação
MAYRA MEDEIROS, PEDRO FRACCHETTA &
GABRIELA BENEVIDES
Preparação
GIOVANA BOMENTRE
Revisão
TÁSSIA CARVALHO & KARINA NOVAIS
Textos de
SOPHIA ABRAHÃO
LORENA PORTELA
MARCELA SOALHEIRO
RENATA COLASANTE
FOLHA DE ROSTO
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
SEGUNDA PARTE
Í
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
Í
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
AS TANTAS – E NEM TANTAS – EMMAS ENTRE NÓS
O REENCONTRO COM EMMA ATRAVÉS DAS PÁGINAS E DAS
TELAS
A COMICIDADE EM EMMA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PÁGINA DE DIREITOS AUTORAIS
APRESENTAÇÃO
por
Sophia Abrahão
Sou muito grata a Jane Austen e à obra que nos deixou. Estamos falando
de uma britânica que, em pleno século XIX, defendeu através de seus livros a
independência e emancipação das mulheres. Irônica e sagaz, a autora sempre
encontrou maneiras de criticar as estruturas sociais vigentes, ao mesmo
tempo que produziu obras que até hoje influenciam o mundo literário.
Em seus livros, Austen nos mostra que mesmo as personagens mais
empoderadas estavam submetidas a uma estrutura de dominação masculina e
a um sistema repleto de crenças patriarcais. Ao mesmo tempo, é um deleite
observar como elas sempre encontram jeitos de transformar a própria
realidade. São mulheres com vontades, desejos e opiniões que desafiam os
padrões impostos da época.
Se ainda hoje nos parece disruptivo ver mulheres como protagonistas da
própria história, se isso ainda nos atinge e inspira, podemos imaginar como
essas abordagens foram revolucionárias na época em que foram escritas!
Emma não foge à linha, é uma protagonista forte e que evolui com suas
falhas. Mas, diferente de outras heroínas da autora, é uma menina rica e
privilegiada, e o universo do livro evidencia como essa superioridade social
atinge todos ao redor dela. A nossa protagonista é repleta de controvérsias,
mas são justamente essas imperfeições que a tornam tão cativante.
O livro ironiza e critica a divisão e o contraste entre as camadas da
sociedade presentes naquele contexto, e reafirma a quase nula possibilidade
de mobilidade social dos personagens, com exceção do matrimônio. Mas
Emma não precisa de um casamento para se estruturar ou para conquistar
segurança e estabilidade: ela é rica, bela, dona de si e admirada pelos que
estão ao redor. Emma é, portanto, livre
—
não está acostumada com regras ou
restrições.
Paralelo a isso, ela genuinamente quer ajudar aqueles que julga
precisarem de sua atenção, mas acaba por tutelá-los, chegando a atuar na vida
afetiva deles como uma espécie de cupido. Essas atitudes nos revelam o
quanto aquela burguesia encara o mundo sob uma ótica completamente
destacada da realidade, e como essa influência que exercem sobre seus
“inferiores” pode tornar as relações extremamente nocivas a quem não goza
de riquezas e regalias. Vislumbramos, então, uma sociedade em que pessoas
de uma classe social mais elevada se sentem aptas a protagonizar não só sua
própria história, como a de todos ao seu redor.
E esta foi a ousadia de Austen: criar uma personagem com defeitos e com
quem por vezes é difícil se identificar. A autora inclusive achava que Emma
não seria carismática aos olhos dos leitores, ledo engano. Emma, com todas as
suas complexidades, se tornou alguém real, uma personagem deliciosa de
acompanhar e muito interessante de analisar. Nossa heroína evolui durante a
história e é delicioso vê-la amadurecer.
Espero que, ao ler o romance, você torça para que Emma se torne a
protagonista também da sua vida, leitor. Tenho certeza de que vai se
surpreender com o quanto ela, com todas suas questões e
desacertos, é capaz
de encantar.
SOPHIA ABRAHÃO
é atriz, apresentadora e cantora. Nascida em São Paulo,
estreou na TV aos 16 anos e desde então não parou mais. Sophia tem diversas
novelas, filmes e peças no currículo, além de uma série internacional.
Apresentou o Vídeo Show por dois anos na Rede Globo e teve seu primeiro
álbum indicado ao Grammy Latino. Sophia Abrahão também tem três livros
publicados em parceria com as escritoras Carolina Munhoz e Camila Fremder.
A sua alteza real
o príncipe regente,
esta obra é,
por permissão de sua alteza real,
muito respeitosamente
dedicada,
pela humilde,
devotada
e zelosa súdita
de sua alteza real,
A autora.
CAPÍTULO I
1
. As refeições das classes mais altas na época consistiam em um desjejum
às 9 ou 10 horas, uma refeição leve no meio do dia, o jantar por volta das 16
ou 17 horas e uma ceia mais tardia. No entanto, começava uma moda entre as
classes mais refinadas, especialmente em Londres, de jantar mais tarde.
CAPÍTULO II
4
. Os Relatórios de agricultura
eram pesquisas promovidas pelo British
Board of Agriculture, associação fundada em 1793, sobre o estado da
agricultura em cada condado; os Excertos elegantes
eram uma antologia de
escritos de autores renomados (um volume em prosa saiu em 1783 e um de
poesia, em 1789); O vigário de Wakefield
(1766), de Oliver Goldsmith, era
um dos romances mais populares à época e retratava a vida rural; e O
romance da floresta
(1791), de Ann Radcliffe, e Os filhos da abadia
(1796),
de Regina Maria Roche, eram romances góticos.
CAPÍTULO V
CHARADA
5
. Adivinhas eram um passatempo popular, e se publicavam livros com
enigmas de diversos tipos. Havia quatro tamanhos de livros; o quarto era o
segundo maior deles. Na época, a encadernação de livros ocorria
separadamente da impressão, de modo que alguém poderia levar seus
próprios papéis para serem encadernados. Cifras eram letras entrelaçadas,
enquanto troféus consistiam em figuras ornamentais ou simbólicas; ambas
apareciam como decoração em papéis.
6
. Alusão ao poema “Written by a lady, whose maid had set her chimney on
fire”, do dramaturgo David Garrick (1717–1779), que será citado novamente
mais adiante.
7
. Trata-se das partes de uma palavra em inglês. A primeira é “woe” (pesar),
a segunda é “man” (homem) e a resposta é “woman” (mulher).
8
. A charada se refere às palavras “court” (corte) e “ship” (navio), que juntas
formam “courtship” (cortejo).
9
. Referência a Sonho de uma noite de verão
, do dramaturgo inglês William
Shakespeare (1564–1616).
10
. Celebrada no dia 29 de setembro, era uma das datas usadas como ponto
de referência do ano. Neste momento do romance, é meio de dezembro.
11
. A resposta oficial da charada é “limpador de chaminés”, mas outra
interpretação a via como uma piada sobre sífilis e prostituição.
CAPÍTULO X
12
. Um xelim equivalia a doze pence
.
13
. Peça pequena que cobria a parte inferior do corpete de um vestido e
podia ter padrões e bordados elaborados.
CAPÍTULO XI
O sr. Elton agora devia ser deixado por conta própria. Não estava
mais ao alcance de Emma supervisionar a felicidade dele ou
apressar as suas atitudes. A vinda da família da irmã estava tão
próxima que, primeiro em expectativa e depois na realidade,
tornou-se o principal objeto de seu interesse; e durante os dez dias
da estadia deles em Hartfield, não podia ser esperado — ela mesma
não esperava — que pudesse realizar qualquer coisa além de uma
assistência ocasional e fortuita aos enamorados. Eles poderiam
avançar rapidamente, se quisessem; entretanto, teriam de avançar,
de um jeito ou de jeito, quisessem ou não. Ela nem sequer desejava
ter mais tempo livre para dedicar a eles. Há pessoas que, quanto
mais se faz por elas, menos fazem por si mesmas.
O sr. e a sra. John Knightley, por terem se ausentado de Surry
durante mais tempo que o habitual, estavam despertando, é claro,
um interesse maior que o costumeiro. Até aquele ano, todas as
longas férias desde seu casamento foram divididas entre Hartfield e
a Abadia de Donwell, mas todos os dias festivos daquele outono
foram ocupados com banhos de mar para as crianças, e portanto
fazia muitos meses que não eram vistos regularmente por seus
parentes de Surry, ou vistos de qualquer forma pelo sr. Woodhouse,
que não podia ser persuadido a ir até Londres, mesmo em prol da
pobre Isabella, e que, consequentemente, agora antecipava com
alegria e ansiedade aquela visita excessivamente curta.
Ele pensou muito nos males da jornada para ela e contemplou
longamente a fadiga de seus próprios cavalos e do cocheiro, que
trariam parte do grupo na segunda metade do caminho. Porém, suas
preocupações eram desnecessárias — os vinte e cinco quilômetros
foram alegremente percorridos, o sr. e a sra. John Knightley, seus
cinco filhos e um número apropriado de babás chegaram todos a
Hartfield em segurança. A alegria e agitação de uma chegada como
essa, os muitos indivíduos a serem cumprimentados, recebidos,
encorajados, dispersados e acomodados de formas variadas,
produziram um barulho e confusão que os nervos dele não teriam
suportado por nenhuma outra causa, nem suportariam muito mais
mesmo por esta. Mas os hábitos de Hartfield e os sentimentos do pai
eram tão respeitados pela sra. John Knightley que, apesar da
solicitude materna que a levava a desejar ver seus pequenos
entretidos, e garantir-lhes sem qualquer atraso todas as liberdades e
cuidados, todas as comidas e bebidas e qualquer tempo para dormir
e brincar que pudessem desejar, as crianças nunca tinham
permissão de incomodar muito o avô, fosse pessoalmente, fosse por
qualquer agitação causada por aqueles encarregados de seus
cuidados.
A sra. John Knightley era uma mulher delicada, bonita e
elegante, com modos gentis e discretos e uma disposição
notavelmente amável e afetuosa; dedicada à família, era uma esposa
devota, uma mãe protetora, e tão ternamente afeiçoada ao pai e à
irmã que, se não fossem aqueles laços mais elevados, um amor mais
caloroso poderia ter parecido impossível. Ela não conseguia
enxergar defeitos em nenhum deles. Não era uma mulher de
raciocínio forte ou qualquer rapidez e, tendo essa semelhança com
o pai, herdara muito da constituição dele — sua saúde era delicada,
tomava cuidados excessivos com os filhos, tinha muitos temores e
nervos sensíveis, e era tão apegada ao seu próprio sr. Wingfield na
cidade quanto o pai era ao sr. Perry. Eles eram parecidos também
no temperamento benevolente e no hábito enraizado de ter
profunda consideração por todos os velhos conhecidos.
O sr. John Knightley era um homem alto, cavalheiresco e muito
inteligente. Estava subindo na carreira e era doméstico e respeitável
em seu caráter privado, mas tinha modos reservados que impediam
que fosse sempre agradável, e às vezes cedia ao mau humor. Não era
um homem de mau temperamento, nem se irritava em demasia com
frequência que justificasse uma reprimenda, mas o temperamento
não era seu ponto forte — e, com uma esposa tão reverente, era
impossível que quaisquer defeitos naturais não fossem exacerbados.
A doçura extrema do temperamento dela prejudicava o dele. Ele
possuía toda a clareza e a agilidade mental que faltavam a ela, e
podia às vezes agir de modo descortês ou falar uma palavra ríspida.
Não era um grande favorito de sua bela cunhada. Nada errado nele
escapava a ela. Emma se revoltava rapidamente contra as pequenas
ofensas cometidas em relação a Isabella, que a própria Isabella
nunca sentia. Talvez tivesse relevado mais se os modos dele fossem
lisonjeiros à irmã de Isabella, mas ele a tratava como um irmão ou
amigo, calmo e gentil, sem elogios e sem cegueira, mas de forma
alguma oferecendo elogios a ponto de fazê-la ignorar o que era, aos
seus olhos, o maior defeito de todos: a falta de tolerância respeitosa
para com o pai dela. Nesse quesito, ele nem sempre tinha a
paciência que se poderia desejar. As idiossincrasias e inquietações
do sr. Woodhouse às vezes o provocavam a ponto de expor uma
objeção racional ou uma réplica mordaz igualmente imprópria. Não
acontecia com frequência, pois o sr. John Knightley tinha uma
grande consideração pelo sogro, e em geral uma forte noção do
respeito que lhe devia, mas para o gosto de Emma já eram vezes
demais, especialmente porque precisava suportar a dor da
expectativa, ainda que a ofensa não ocorresse. Entretanto, no início
de cada visita ele não demonstrava nada exceto os sentimentos mais
adequados, e, aquela estadia precisando ser tão curta, era possível
esperar que transcorresse com cordialidade imaculada. Não fazia
muito tempo que eles tinham se sentado e se acomodado quando o
sr. Woodhouse, com um balançar melancólico da cabeça e um
suspiro, chamou a atenção da filha para a triste mudança ocorrida
em Hartfield desde que ela visitara pela última vez.
— Ah, minha querida! — disse ele. — A pobre srta. Taylor! É tão
doloroso!
— Ah, decerto, senhor — exclamou ela com simpatia imediata
—, como deve sentir a falta dela! E a querida Emma também! Que
terrível perda aos dois! Eu senti tanto por vocês dois. Não consigo
É
imaginar como aguentam viver sem ela. É uma mudança triste, de
fato. Mas espero que ela esteja bem, senhor.
— Até que bem, minha querida… espero… até que bem. Sei
apenas que o local é toleravelmente adequado a ela.
Nesse ponto, o sr. Knightley perguntou discretamente a Emma se
havia quaisquer dúvidas quanto aos ares de Randalls.
— Ah! Não, nenhuma. Eu nunca vi a sra. Weston melhor em
minha vida, nunca a vi tão sadia. Papai só está expressando a
própria tristeza.
— O que honra muito a ambos — foi a elegante resposta.
— E o senhor a vê com uma frequência suficiente? — perguntou
Isabella no tom lamentoso de que o pai gostava especialmente.
14
. Cidade em Essex, ao nordeste de Londres, na época um balneário
famoso.
15
. Discursos ardentes de denúncia. A palavra vem dos discursos do grego
Demóstenes contra Filipe da Macedônia, no século IV a.C.
CAPÍTULO XIII
É
— É o tempo de Natal — observou o sr. Elton. — Apropriado à
estação, e podemos nos considerar extremamente afortunados por
não ter começado ontem e impedido o jantar de hoje, o que seria
muito provável, pois o sr. Woodhouse dificilmente se aventuraria a
sair se houvesse muita neve no chão. Mas agora não importa. Esta é
a estação ideal, de fato, para encontrar os amigos. No Natal, todos
convidam os amigos, e as pessoas não se incomodam nem mesmo
com o tempo mais inclemente. Uma vez, devido à neve, fiquei preso
na casa de um amigo por uma semana. Nada poderia ter sido mais
agradável. Fui apenas por uma noite, e só consegui sair sete noites
depois.
O sr. John Knightley parecia não compreender onde estava o
prazer nisso, mas apenas disse em um tom frio:
— Não tenho qualquer desejo de ficar preso uma semana em
Randalls devido à neve.
Em outro momento, Emma poderia ter se divertido com a
conversa, mas ficara pasma demais com o bom humor do sr. Elton
para ter outros sentimentos. Harriet parecia ter sido praticamente
esquecida diante da expectativa de uma reunião agradável.
— Podemos contar com uma lareira excelente — continuou ele
— e com o máximo de conforto. Pessoas encantadoras, como o sr. e
a sra. Weston… A sra. Weston está, de fato, além de qualquer elogio
possível, e ele é exatamente o tipo mais valorizado de homem, tão
hospitaleiro e um grande apreciador da companhia dos amigos…
Será um grupo pequeno, mas os grupos seletos talvez sejam os mais
agradáveis. A sala de jantar do sr. Weston não acomoda
confortavelmente mais do que dez pessoas; de minha parte, eu
preferiria, sob tais circunstâncias, ter dois a menos do que dois a
mais. Acho que a senhorita concordará comigo — virando-se com
um ar suave para Emma —, acho que certamente terei a sua
aprovação, embora o sr. Knightley, talvez por estar acostumado às
grandes festas de Londres, possa não compartilhar de nossos
sentimentos.
— Não sei nada sobre grandes festas de Londres, senhor. Nunca
janto fora.
É
— É mesmo? — perguntou o sr. Elton, em um tom de surpresa e
pena. — Eu não fazia ideia de que trabalhar com a lei implicava
uma escravidão tão cruel. Bem, senhor, chegará a hora em que será
recompensado por tudo isso, quando terá pouco trabalho e muitos
divertimentos.
— O primeiro deles — respondeu John Knightley, enquanto
percorriam o caminho que levava à casa — será encontrar-me a
salvo de volta em Hartfield.
CAPÍTULO XIV
O sr. Woodhouse logo ficou pronto para o seu chá e, após tomá-
lo, estava bastante pronto para voltar para casa, de modo que suas
três companheiras precisaram se esforçar ao máximo para distraí-lo
da hora tardia antes que os outros cavalheiros aparecessem. O sr.
Weston era loquaz e sociável, e nada propenso a separações
precoces de qualquer espécie, mas por fim o grupo na sala recebeu
um acréscimo. O sr. Elton, com um humor excelente, foi um dos
primeiros a entrar. A sra. Weston e Emma estavam sentadas em um
sofá. Ele foi até elas de imediato, praticamente sem qualquer
convite, e sentou-se entre as duas.
Emma, que também se sentia de bom humor graças à atividade
mental propiciada pela expectativa da chegada do sr. Frank
Churchill, estava disposta a relevar o comportamento impróprio
recente e ficar tão satisfeita com ele quanto antes. E quando o
primeiro assunto que ele abordou foi Harriet, dispôs-se a ouvir com
os sorrisos mais amigáveis.
Ele professou estar extremamente ansioso quanto à bela amiga
dela — a bela, adorável, amável amiga dela. Emma recebera mais
notícias? Tinha ouvido algo sobre ela desde que chegaram a
Randalls? Ele estava muito ansioso; precisava confessar que a
natureza da enfermidade o alarmava consideravelmente. E
prosseguiu neste estilo por algum tempo, de modo muito correto,
sem ouvir as respostas, mas muito alerta ao terror de uma dor de
garganta, e Emma se solidarizou com ele.
Contudo, por fim pareceu ocorrer uma guinada perversa;
pareceu, de repente, que ele temia a dor de garganta mais por conta
dela
do que de Harriet — que estava mais ansioso para que ela
escapasse da infecção do que para que não houvesse infecção
alguma. Começou, com muita franqueza, a insistir que ela evitasse
visitar o quarto da enferma por enquanto — a insistir que
prometesse a ele
não se pôr em tamanho perigo até que ele tivesse
falado com o sr. Perry e ouvido a opinião dele. E embora Emma
tentasse rir das preocupações e conduzir o assunto de volta ao rumo
apropriado, não havia fim à extrema solicitude dele. Ela se
aborreceu. A aparência — não havia como se enganar — era
exatamente a de alguém enamorado por ela, em vez de por Harriet;
uma inconstância, se verdadeira, das mais desprezíveis e
abomináveis! E ela teve dificuldade em controlar sua irritação. Ele
virou-se à sra. Weston para implorar sua assistência. Ela não o
apoiaria? Não acrescentaria sua voz à dele, para induzir a srta.
Woodhouse a não visitar a escola da sra. Goddard até estarem
seguros de que a doença da srta. Smith não era infecciosa? Ele não
ficaria satisfeito sem uma promessa — ela não lhe emprestaria sua
influência para extraí-la?
— Tão escrupulosa com os outros — continuou ele — e tão
descuidada consigo mesma! Ela queria que eu ficasse em casa hoje,
cuidando do meu resfriado, mas não promete evitar o perigo de uma
garganta ulcerada para si mesma! Isso é justo, sra. Weston? Julgue
por nós. Eu não tenho direito a protestar? Sei que terei seu gentil
apoio e auxílio.
Emma viu a surpresa da sra. Weston — e sentiu que deveria ser
grande — com um discurso que, em palavras e modos, outorgava a
ele o direito de tomar um interesse especial por ela; quanto à
própria Emma, estava irritada e ofendida demais para pensar em
qualquer resposta imediata. Só conseguiu lançar-lhe um olhar, mas
foi um olhar que ela pensou que restauraria o juízo dele — e então
deixou o sofá, sentando-se ao lado da irmã e dedicando a ela toda
sua atenção.
Ela não teve tempo para descobrir como o sr. Elton encarou a
reprimenda, tão rapidamente outro assunto surgiu, pois o sr. John
Knightley entrou na sala após examinar o tempo lá fora e relatou
que o chão estava coberto de neve, e que ela caía depressa, impelida
por um vento forte, concluindo com as seguintes palavras para o sr.
Woodhouse:
— Este se provará um começo emocionante de seus
compromissos invernais, senhor. É algo novo para o seu cocheiro e
cavalos, abrir caminho através de uma nevasca.
O pobre sr. Woodhouse ficou calado de consternação, mas todos
os outros tinham algo a dizer: todos estavam ou surpresos ou não
surpresos, e tinham perguntas a fazer ou conforto a oferecer. A sra.
Weston e Emma tentaram sinceramente apaziguá-lo e desviar sua
atenção do genro, que perseguia seu triunfo sem muita
consideração.
— Muito admirei sua resolução, senhor — disse ele —, de
aventurar-se num tempo desses, pois é claro que viu que logo
nevaria. Todos devem ter antecipado a neve. Eu admirei o seu
espírito, e ouso dizer que chegaremos muito bem em casa. Mais
uma ou duas horas de neve não vão deixar a estrada intransponível,
e há duas carruagens; se uma
empacar na parte erma das terras
comunitárias, haverá outra à mão. Arrisco dizer que estaremos
seguros em Hartfield antes da meia-noite.
O sr. Weston, com um triunfo de outro tipo, confessava que
sempre soube que nevaria em algum momento, mas não dissera
uma palavra para não deixar o sr. Woodhouse desconfortável e
oferecer um pretexto para a partida dele. Quanto ao fato de haver
alguma quantidade de neve caída ou que provavelmente cairia e
poderia impedir o retorno deles, era só uma brincadeira; ele receava
que não encontrariam nenhuma dificuldade. Desejava que a estrada
estivesse intransponível para que pudesse manter todos eles em
Randalls, e com a maior boa vontade garantiu que cada um poderia
ser acomodado e pediu à esposa que concordasse com ele — quanto
a poderem, com um pouco de engenhosidade, alojar todos —, o que
ela mal conseguiu fazer, consciente de que havia apenas dois
quartos livres na casa.
— O que fazer, minha querida Emma? O que fazer? — foi a
primeira exclamação do sr. Woodhouse, e tudo que conseguiu falar
por um tempo. Era para ela que se voltava em busca de conforto, e
as garantias que ela ofereceu de segurança, sua exposição da
excelência dos cavalos e de James e do fato de estarem cercados de
amigos, o reanimaram um pouco.
O alarme da filha mais velha era equiparável ao seu. O horror de
estar presa em Randalls enquanto os filhos estavam em Hartfield
desenrolava-se vivamente em sua imaginação, e, considerando que a
estrada agora seria percorrível para pessoas aventureiras, mas em
uma condição que não admitia atrasos, estava ansiosa para que
decidissem se o pai e Emma permaneceriam em Randalls enquanto
ela e o marido partiriam imediatamente, através de todos os
possíveis acúmulos de neve que poderiam impedi-los.
— É melhor chamar a carruagem imediatamente, meu amor —
disse ela. — Arrisco dizer que conseguiremos chegar, se partirmos
agora; e, se encontrarmos uma situação muito ruim, eu posso sair e
andar. Não tenho medo algum. Eu não me importaria em caminhar
metade do caminho. Posso trocar os sapatos, sabe, assim que chegar
em casa, e não é o tipo de coisa que me deixa resfriada.
— É mesmo? — respondeu ele. — Então, minha cara Isabella, é
a coisa mais extraordinária do mundo, pois em geral tudo lhe deixa
resfriada. Voltar a pé para casa! Está usando belos sapatos para
caminhar, ouso dizer. Já será ruim o bastante para os cavalos.
Isabella se virou para a sra. Weston em busca de aprovação do
plano. A sra. Weston só pôde aprovar. Isabella então consultou
Emma, mas Emma não podia abandonar inteiramente sua
esperança de que todos conseguiriam partir, e eles ainda estavam
discutindo a questão quando o sr. Knightley, que tinha deixado a
sala logo após o primeiro anúncio de neve feito pelo irmão, voltou e
disse a eles que saíra de casa para examinar e podia garantir que
não haveria a menor dificuldade em voltar para casa quando
quisessem, fosse naquele momento ou dali a uma hora. Ele tinha
ultrapassado o portão — avançado um pouco na estrada de
Highbury — e a neve não excedera um ou dois centímetros, em
muitos lugares mal sendo suficiente para embranquecer o chão.
Alguns flocos caíam no momento, mas as nuvens se dispersavam e
tudo indicava que logo pararia de nevar. Ele tinha falado com os
cocheiros e ambos concordaram que não havia nada a temer.
Para Isabella, o alívio desse anúncio foi grande, e não foi menos
bem-vindo a Emma, por conta do pai, que imediatamente se
tranquilizou o máximo que sua constituição nervosa permitia.
Entretanto, o alarme criado não poderia ser aliviado de modo a
permitir-lhe qualquer conforto enquanto continuasse em Randalls.
Estava convencido de que não havia perigo atual em voltar para
casa, mas nenhuma garantia o persuadia de que era seguro
permanecer e, enquanto os outros se alternavam entre argumentos
e sugestões, o sr. Knightley e Emma resolveram a questão em
algumas frases breves:
— Seu pai não ficará tranquilo, por que você não vai?
— Estou pronta, se os outros estiverem.
— Devo tocar o sino?
— Sim, por favor.
Então o sino foi tocado e as carruagens, solicitadas. Mais alguns
minutos e Emma esperava ver um companheiro inconveniente ser
deixado em sua própria casa, onde recuperaria a sobriedade e o
juízo, e o outro recobrar o bom humor e a felicidade com o final
daquela difícil visita.
As carruagens vieram, e o sr. Woodhouse, sempre o foco de
atenção nestas ocasiões, foi cuidadosamente acompanhado pelo sr.
Knightley e o sr. Weston, mas nada que eles dissessem podia evitar
uma renovação de seu alarme à vista da neve que tinha caído de
fato, e a descoberta de uma noite muito mais escura do que ele se
preparara para enfrentar. Receava que teriam uma péssima jornada.
Receava que a pobre Isabella não gostaria dela. E a pobre Emma
estaria na carruagem de trás. Ele não sabia o que era melhor fazer;
eles deveriam se manter juntos o máximo possível. James foi
consultado e recebeu ordens de seguir muito devagar e esperar a
outra carruagem.
Isabella entrou atrás do pai, e John Knightley, esquecendo que
não pertencia ao grupo, seguiu a esposa com muita naturalidade, de
modo que Emma descobriu, ao ser acompanhada até a segunda
carruagem e seguida para dentro pelo sr. Elton, que a porta seria
fechada atrás deles sem objeções e que fariam o trajeto tête-à-tête
.
Não teria sido nada além de um momento desconfortável e, antes
das suspeitas do dia, seria até um prazer; ela teria falado com ele
sobre Harriet, e a distância de pouco mais de um quilômetro teria
parecido metade disso. Agora, porém, ela preferiria que não tivesse
acontecido. Acreditava que ele tinha bebido demais do bom vinho
do sr. Weston, e tinha certeza de que iria querer falar disparates.
Para contê-lo o melhor possível com seus próprios modos, ela se
preparou imediatamente para falar com calma e gravidade
calculadas sobre o tempo e a noite, mas mal tinha começado — mal
tinham eles passado pelo portão e começado a seguir a outra
carruagem — quando ela viu seu assunto ser interrompido, sua mão
tomada e sua atenção exigida, e o sr. Elton declarando um amor
apaixonado por ela: valendo-se da preciosa oportunidade para
declarar sentimentos que já deveriam ser bem conhecidos,
esperando — temendo — adorando — pronto para morrer se ela o
recusasse, mas lisonjeando-se ao pensar que seu apego ardoroso,
seu amor inigualável e sua paixão sem paralelos não poderiam
deixar de exercer algum efeito e, em suma, muito determinado a ser
seriamente aceito assim que possível. Era mesmo verdade. Sem
escrúpulos — sem desculpas — sem qualquer reserva aparente, o sr.
Elton, apaixonado por Harriet, professava seu amor a ela.
Emma
tentou impedi-lo, mas foi em vão; ele estava determinado a
continuar e dizer tudo. Por mais furiosa que estivesse, o momento
da declaração a levou à decisão de conter-se quando respondesse.
Ela sentia que metade daquela sandice deveria ser por conta da
embriaguez e esperava que só pertencesse àquela hora. Assim, com
uma mistura de seriedade e jocosidade que esperava se adequar
melhor ao estado meio embriagado dele, ela respondeu:
— Estou estupefata, sr. Elton. Isso, a mim
! O senhor esquece o
seu lugar. Toma-me pela minha amiga. Ficarei muito feliz em
entregar qualquer mensagem à srta. Smith, mas não fale nada mais
do gênero para mim,
eu lhe peço.
— Srta. Smith! Uma mensagem à srta. Smith! O que ela pode
querer dizer com isso? — E ele repetiu as palavras dela com um
tom tão seguro e uma aparência de espanto tão soberba, que ela
logo foi obrigada a responder:
— Sr. Elton, essa conduta é muito extraordinária! E só posso
justificá-la de uma forma: o senhor não está no controle de si ou não
conseguiria falar nem comigo, ou sobre Harriet, dessa forma.
Recobre-se o suficiente para calar quanto ao assunto e farei o meu
melhor para esquecer.
Mas o sr. Elton só tinha bebido vinho suficiente para animar-se,
não para confundir seu intelecto. Sabia perfeitamente o que estava
dizendo e, após protestar contra a suspeita dela declarando-a muito
insultuosa, e mencionar brevemente seu respeito pela srta. Smith
como sua amiga, mas reconhecendo sua surpresa com o fato de esta
senhorita sequer ser mencionada naquela conversa, retomou o
assunto de sua própria paixão e estava muito ansioso por uma
resposta favorável.
À medida que atribuía menos daquilo à embriaguez, Emma
pensava mais na inconstância e na audácia dele e, com menos
esforços para manter a educação, respondeu:
— É impossível para mim continuar duvidando. O senhor se
exprimiu muito claramente. Sr. Elton, minha perplexidade está
além de qualquer coisa que eu possa expressar. Após presenciar seu
comportamento com a srta. Smith no último mês, as atenções que
eu tive o hábito diário de observar, dirigir-se a mim desta maneira…
é uma volubilidade de caráter, de fato, que eu não julgava possível!
Creia, senhor, estou muito, muito longe de sentir-me contente por
ser o objeto de tais declarações.
— Céus! — exclamou o sr. Elton. — O que está dizendo? A srta.
Smith! Eu nunca pensei na srta. Smith em toda a minha existência,
nunca dei qualquer atenção a ela exceto como sua amiga, e nunca
me importei se estava viva ou morta, exceto como sua amiga. Se ela
imaginou o contrário, seus próprios desejos a enganaram, e sinto
muito… profundamente… mas a srta. Smith, de fato! Ah, srta.
Woodhouse! Quem pode pensar na srta. Smith quando a senhorita
está por perto! Não, palavra de honra, não houve nenhuma
volubilidade de caráter. Sempre pensei apenas na senhorita.
Protesto contra a acusação de que dediquei qualquer atenção a
outra pessoa. Tudo que falei ou fiz, nas últimas semanas, tinha como
único objetivo indicar minha adoração à senhorita. Não pode
duvidar seriamente dela! Não — em um tom que pretendia ser
insinuante —, tenho certeza de que viu e me compreendeu.
Seria impossível dizer o que Emma sentiu ao ouvir isso — de
todas as sensações desagradáveis que já tivera, foi a maior. Ela
estava completamente atônita e não conseguiu dar uma resposta
imediata; e como dois momentos de silêncio foram amplo
encorajamento para o humor otimista do sr. Elton, ele tentou tomar
a mão dela de novo enquanto exclamava jubilosamente:
— Encantadora srta. Woodhouse, permita-me interpretar esse
silêncio significativo. Ele revela que a senhorita me compreendeu há
muito tempo.
— Não, senhor — exclamou Emma —, não revela nada do tipo!
Muito longe de tê-lo entendido há tempos, eu estive completamente
enganada a respeito de seus sentimentos até este momento. Quanto
a mim, sinto muito que o senhor tenha nutrido quaisquer
sentimentos; nada poderia estar mais distante dos meus desejos; o
seu apego a minha amiga Harriet, sua corte a ela, pois corte parecia
a mim, me deu o maior prazer, e venho muito sinceramente
desejando-lhe sucesso, mas se supusesse que não era ela o motivo
que o atraía a Hartfield, certamente teria pensado que era um
equívoco tornar suas visitas tão constantes. Eu devo acreditar que o
senhor nunca buscou se recomendar particularmente à srta. Smith?
Que nunca pensou seriamente sobre ela?
— Nunca, madame — exclamou ele, afrontado por sua vez. —
Nunca, eu lhe garanto! Eu
, pensar seriamente sobre a srta. Smith!
A srta. Smith é uma garota muito boa, e eu ficaria feliz de vê-la em
um casamento respeitável. Desejo-lhe muito bem e, sem dúvida, há
homens que não objetariam a… todos têm o seu nível, mas quanto a
mim, não estou, creio, desesperado a esse ponto. Não preciso
recorrer à srta. Smith por medo de não realizar uma aliança à
minha altura! Não, minhas visitas a Hartfield foram apenas pela
senhorita, e o incentivo que recebi…
— Incentivo! Eu, incentivar o senhor! Enganou-se inteiramente
se supôs que agi assim. Eu o via apenas como o admirador de minha
amiga. Em nenhuma outra luz poderia ser para mim mais do que
um conhecido. Sinto muitíssimo, mas é bom que o engano termine
aqui. Se o mesmo comportamento continuasse, a srta. Smith
poderia ter criado uma ideia incorreta de suas expectativas,
provavelmente não estando ciente, mais do que eu estava, da grande
desigualdade da qual o senhor fala. Mas, desta forma, a decepção é
apenas do senhor e, confio, não será duradora. Não tenho quaisquer
planos de me casar no momento.
Ela estava furiosa demais para falar outra palavra, e o modo
como se expressou foi decidido demais para convidar uma súplica;
e, neste estado de ressentimento crescente e mortificação mútua
profunda, eles tiveram de continuar juntos por mais alguns minutos,
temendo que o sr. Woodhouse os tivesse confinado ao ritmo de uma
caminhada. Se não houvesse tanta raiva, sentiriam um desconforto
extremo, mas emoções tão francas não deixaram espaço para os
pequenos zigue-zagues de embaraço. Sem saber quando a
carruagem virou na alameda da casa paroquial ou quando parou,
eles se encontraram, subitamente, na porta da casa dele, e o sr.
Elton saiu antes que trocassem outra sílaba. Emma sentiu então que
era indispensável desejar-lhe boa noite. O cumprimento foi
retribuído, fria e orgulhosamente, e, tomada por uma irritação
indescritível, ela foi então levada a Hartfield.
Lá foi recebida, com o maior prazer, pelo pai, que tremia ao
pensar nos perigos de uma jornada solitária saindo da alameda da
casa paroquial — virando uma esquina em que ele não suportava
pensar, e em mãos estranhas, um cocheiro comum qualquer, em vez
de James. Mas o retorno dela era aparentemente só o que faltava
para fazer tudo correr bem, pois o sr. John Knightley, agora
envergonhado de seu mau humor, era todo gentilezas e atenções, e
tão particularmente solícito em garantir o conforto do pai dela, que
— ainda que não disposto a acompanhá-lo em uma tigela de mingau
— admitiu estar ciente de ser um alimento muito benéfico, e o dia
se concluiu em paz e conforto para todos do pequeno grupo, exceto
ela mesma. Sua mente nunca experimentara tamanha perturbação,
e precisou esforçar-se muito para parecer atenciosa e alegre até que
a hora de separação usual permitiu-lhe o alívio de uma reflexão
solitária.
CAPÍTULO XVI
16
. O termo aimable
, em francês, com o sentido de gentil, encantador ou
charmoso, é contrastado com a palavra amiable
em inglês, que, além de se
referir a um comportamento agradável, também trazia o sentido histórico de
gentileza e benevolência.
CAPÍTULO I
tão bem. Ela sempre diz, quando a carta é aberta pela primeira vez:
“Ora, Hetty, acho que agora você vai ter trabalho para desvendar
todo esse riscado”. Não é, mãe? E então eu respondo que tenho
certeza de que ela conseguiria ler sozinha, se não tivesse ninguém
para ler cada palavra para ela; tenho certeza de que se debruçaria
sobre a carta até compreender cada uma delas. E de fato, embora os
olhos da minha mãe não estejam tão bons quanto já foram, ela
ainda consegue enxergar incrivelmente bem, graças a Deus!, com a
ajuda de óculos. É uma bênção tão grande! Os olhos da minha mãe
são muito bons, de fato. Jane sempre diz, quando está aqui: “Tenho
certeza, vovó, de que deve ter tido olhos muito fortes para enxergar
desse jeito, e depois de fazer tantos bordados também! Só posso
esperar que meus olhos resistam tão bem”.
Tudo isso, falado extremamente depressa, obrigou a srta. Bates a
parar para tomar um fôlego, e Emma comentou algo muito educado
sobre a excelência da caligrafia da srta. Fairfax.
— A senhorita é muitíssimo gentil — respondeu a srta. Bates,
com profunda satisfação —, a senhorita, que é tão escrupulosa e que
escreve de maneira tão bonita também. Tenho certeza de que os
elogios de mais ninguém poderiam nos dar tanto prazer quanto os
da srta. Woodhouse. Minha mãe não escuta bem, está um pouco
surda, sabe. Mãe — dirigindo-se a ela —, a senhora escutou o
comentário gentil que a srta. Woodhouse fez sobre a caligrafia de
Jane?
E Emma teve a chance de ouvir seu próprio elogio tolo repetido
mais duas vezes antes que a idosa conseguisse entendê-lo. No meio-
tempo, ela ponderava a possibilidade de, sem parecer muito rude,
escapar da carta de Jane Fairfax, e estava quase decidida a se retirar
imediatamente sob alguma desculpa improvisada quando a srta.
Bates se virou novamente para ela e capturou sua atenção.
— A surdez da minha mãe é muito leve, entende, não atrapalha
quase nada. Só de erguer a voz e falar alguma coisa duas ou três
vezes, ela já consegue me ouvir, mas, é claro, está acostumada com
a minha voz. Mas é sempre impressionante como ela ouve Jane
melhor do que eu. Jane fala de um jeito tão distinto! Mas ela não vai
encontrar vovó mais surda do que dois anos atrás, o que não é
pouca coisa na idade da minha mãe, e, de fato, já se passaram dois
anos, sabe, desde que ela esteve aqui. Nunca passamos tanto tempo
sem vê-la e, como eu comentei com a sra. Cole, mal saberemos
como aproveitar sua presença o bastante agora.
— Estão esperando a srta. Fairfax em breve?
— Ah, sim, semana que vem.
— É mesmo? Deve ser um enorme prazer.
— Obrigada, a senhorita é muito gentil. Sim, semana que vem.
Todos ficaram tão surpresos, e todos dizem as mesmas coisas
amáveis. Tenho certeza de que ela ficará tão contente de ver seus
amigos em Highbury quanto eles ficarão de vê-la. Sim, sexta ou
sábado; ela não pôde confirmar qual porque o coronel Campbell vai
querer a carruagem para si em um dos dois dias. Foi tão gentil da
parte deles providenciar transporte para o trajeto todo! Mas eles são
sempre assim, sabe. Sim, sim, na próxima sexta ou sábado. Foi isso
que ela escreveu. É o motivo de ela ter escrito fora de época, como
dizemos, pois, no curso comum das coisas, não teríamos recebido
notícias dela antes da próxima terça ou quarta-feira.
— Sim, imaginei. Receava que haveria poucas chances de ouvir
qualquer novidade da srta. Fairfax hoje.
— A senhorita é tão amável! Não, não teríamos ouvido nada, se
não fosse pela circunstância particular desta visita iminente. Minha
mãe está encantada! Pois ela deve ficar conosco por três meses, pelo
menos. Três meses, ela diz, definitivamente, como terei o prazer de
ler para a senhorita. A questão é que, entende, os Campbell vão
para a Irlanda. A sra. Dixon persuadiu o pai e a mãe a visitá-la
imediatamente. Eles não pretendiam viajar antes do verão, mas ela
está muito impaciente para vê-los de novo, pois, até se casar,
outubro passado, nunca ficou longe deles por mais de uma semana,
de modo que deve ser muito estranho estar em… reinos diferentes,
eu ia dizer, mas na verdade são países diferentes,
19
e por isso ela
escreveu uma carta muito urgente para a mãe (ou o pai, não lembro
qual, mas veremos logo mais na carta de Jane)… e escreveu em
nome do sr. Dixon assim como no dela para insistir que fossem
imediatamente, e os dois os encontrariam em Dublin e os levariam
de volta para sua propriedade no campo, Baly-craig, um lugar lindo,
eu imagino. Jane ouviu falar muito sobre a beleza do lugar pelo sr.
Dixon, quer dizer, não sei se ouviu de outras pessoas também, mas
era muito natural, sabe, que ele gostasse de falar do próprio lar
enquanto cortejava a futura esposa, e como Jane sempre caminhava
com eles, pois o coronel e a sra. Campbell eram muito rígidos e não
deixavam a filha caminhar apenas com o sr. Dixon, e eu não os
culpo de forma alguma, é claro que ela ouviu tudo que ele poderia
ter contado à srta. Campbell sobre seu próprio lar na Inglaterra. E
acho que ela nos escreveu que ele tinha mostrado a elas alguns
esboços do lugar, paisagens que ele mesmo desenhou. Creio que é
um rapaz muito amável e charmoso. Jane estava animada para ir à
Irlanda, após ouvir a sua descrição do lugar.
Neste momento, uma suspeita inventiva e empolgante surgiu na
cabeça de Emma em relação a Jane Fairfax, este charmoso sr.
Dixon, e o cancelamento da visita à Irlanda, e ela disse, com o
propósito insidioso de descobrir mais:
— A senhorita deve se sentir muito afortunada por a srta. Fairfax
poder visitá-las em tal época. Considerando a amizade estreita entre
ela e a sra. Dixon, não poderiam ter esperado que ela fosse escusada
de acompanhar o coronel e a sra. Campbell.
— É verdade, é verdade, de fato. Era exatamente isso que
sempre tememos, pois não teríamos gostado de tê-la tão longe de
nós, por meses a fio, sem poder nos visitar se algo acontecesse. Mas,
a senhorita entende, tudo acabou da melhor forma. Eles (o sr. e a
sra. Dixon) querem excessivamente que ela vá com o coronel e a
sra. Campbell, garanto à senhorita, nada poderia ser mais gentil ou
insistente do que o convite conjunto
deles, diz Jane, como a
senhorita vai ouvir logo mais; o sr. Dixon não parece de forma
alguma relutante em suas atenções. Ele é um rapaz muito
charmoso. Desde o serviço que prestou a Jane em Weymouth,
quando estavam em uma festa à beira da água e, por um giro súbito
de alguma coisa entre as velas, ela teria caído ao mar
imediatamente, e praticamente já estava caindo, se ele não tivesse,
com a maior presença de espírito, agarrado o seu vestido (não
consigo nem pensar nisso sem tremer!), desde que ouvimos a
história desse dia, sempre tive a maior afeição pelo sr. Dixon!
— Mas, apesar de toda a urgência da amiga e seu próprio desejo
de conhecer a Irlanda, a srta. Fairfax prefere devotar seu tempo à
senhorita e à sra. Bates?
— Sim, e inteiramente por vontade própria, por escolha própria;
e o coronel e a sra. Campbell pensam que ela está certa em agir
assim, é o que recomendariam; e, na verdade, particularmente
desejam
que ela inspire o seu ar natal, dado que não tem estado tão
bem nos últimos tempos.
— Fico preocupada em ouvir. Creio que eles julgaram com
sabedoria. Mas a sra. Dixon deve estar muito decepcionada. A sra.
Dixon, até onde sei, não tem nenhum grau notável de beleza
pessoal; não pode, de forma alguma, ser comparada à srta. Fairfax.
— Ah, não! A senhorita é muito gentil por dizer tais coisas, mas
certamente não. Não há como compará-las. A srta. Campbell
sempre foi muito comum, mas extremamente elegante e amável.
— É claro.
— Jane pegou um resfriado forte, coitadinha!, no dia 7 de
novembro (como vou ler para a senhorita), e não melhorou desde
É
então. É muito tempo, não é, para um resfriado persistir? Ela não
mencionou antes porque não queria nos alarmar. Tão típico dela!
Tão atenciosa! Porém, ela está tão mal que seus gentis amigos, os
Campbell, pensam que é melhor vir para cá e inspirar um ar que
sempre lhe faz bem, e não têm dúvidas de que três ou quatro meses
em Highbury vão curá-la por completo. E é certamente muito
melhor que ela venha para cá em vez de ir para a Irlanda, se não
está bem. Ninguém poderia cuidar dela como nós.
— Parece-me o arranjo mais desejável do mundo.
— Então ela deve chegar na próxima sexta-feira ou sábado, e os
Campbell deixam a cidade a caminho de Holyhead na segunda-feira
seguinte, como a senhorita descobrirá pela carta de Jane. Tão
repentino! A senhorita poderá imaginar, srta. Woodhouse, como
fiquei alvoroçada com tudo isso! Se não fosse pelo infortúnio da
doença dela… mas receio que a veremos mais magra e muito
indisposta. Devo contar à senhorita que circunstância mais
desafortunada aconteceu em relação a isso. Sempre faço questão de
ler as cartas de Jane para mim mesma primeiro, antes de as ler em
voz alta para minha mãe, sabe, por medo de que haja qualquer coisa
que possa aborrecê-la. Jane deseja que eu faça assim, e sempre faço;
então comecei hoje com minha cautela usual, mas, tão logo cheguei
à menção de que ela estava mal, exclamei muito assustada: “Céus!
A pobre Jane está doente!”, e minha mãe, estando alerta,
compreendeu tudo, ficando infelizmente muito alarmada.
Entretanto, quando continuei lendo, descobri que não era tão ruim
quanto tinha imaginado a princípio, e agora eu faço pouco caso da
doença para ela não se preocupar muito. Mas não sei como pude
abaixar a guarda desse jeito! Se Jane não melhorar logo,
chamaremos o sr. Perry. Nem pensaremos na despesa; ele é muito
generoso e gosta tanto de Jane que, ouso dizer, nem iria querer
cobrar nada pela visita, mas não podemos aceitar uma coisa dessas,
sabe. Ele tem uma esposa e uma família para sustentar, e não pode
ficar cedendo o seu tempo. Bem, agora que lhe dei um indício do
que Jane escreveu, vamos passar para a carta dela e tenho certeza
de que ela contará a própria história muito melhor do que posso
contar por ela.
— Receio que estejamos com pressa — disse Emma, olhando
para Harriet e começando a se levantar. — Meu pai nos espera. Eu
não tinha intenção de me demorar; pensei que não poderia ficar
mais de cinco minutos, quando entrei na casa. Só entrei porque não
podia passar pela porta sem perguntar sobre a saúde da sra. Bates,
mas fui tão agradavelmente detida! Agora, porém, devemos desejar
um bom-dia à senhorita e à sra. Bates.
E nenhuma tentativa de detê-la foi bem-sucedida. Ela voltou à
rua — feliz porque, embora muito tivesse sido imposto sobre si
contra sua vontade, embora ela tivesse de fato ouvido todo o
conteúdo da carta de Jane Fairfax, tinha conseguido escapar da
carta em si.
17
. Os bailes e outros entretenimentos em Bath eram organizados e
presididos por um mestre de cerimônias.
18
. Como o valor de postagem de cartas era calculado pelo número de folhas,
as pessoas procuravam aproveitar ao máximo o espaço de cada folha.
Frequentemente faziam isso escrevendo duas vezes na mesma página —
primeiro escreviam na horizontal e depois viravam a folha e sobrepunham as
linhas anteriores com novas linhas perpendiculares.
19
. Até 1801, formou-se o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, mas os
países ainda eram considerados separados. O lapso pode indicar que a obra se
passa logo no início do século ou só retratar a idade da srta. Bates ou sua
lentidão em absorver as mudanças políticas.
CAPÍTULO II
Jane Fairfax era órfã, a filha única da filha mais nova da sra.
Bates.
O casamento do tenente Fairfax, do … regimento de infantaria,
com a srta. Jane Bates tivera seus dias de fama e prazer, esperança e
interesse, mas agora nada restava exceto a recordação melancólica
da morte dele em combate no exterior, sua viúva soçobrando logo
em seguida à tuberculose e ao luto, e aquela garota.
Por nascimento, ela pertencia a Highbury, e quando, aos três
anos, após perder a mãe, tornou-se a propriedade, a
responsabilidade, o consolo e a queridinha da avó e da tia, parecia
ter tudo para se estabelecer ali, aprendendo apenas o que os meios
muito limitados poderiam propiciar e crescendo sem vantagens de
conexão ou aperfeiçoamentos ao que a natureza lhe dera: uma
figura agradável, um bom discernimento, e parentes gentis e bem-
intencionadas.
Mas os sentimentos solidários de um amigo do pai mudaram o
seu destino. Este homem era o coronel Campbell, que por muito
tempo havia estimado Fairfax como um excelente oficial e um rapaz
muito merecedor, e que, ademais, tinha com ele uma dívida pelas
atenções que lhe dispensou durante uma febre tifoide severa e que
acreditava terem salvado a sua vida. Ele jamais esqueceu esses
favores, ainda que alguns anos tivessem se passado da morte do
pobre Fairfax, antes que seu próprio retorno à Inglaterra lhe
permitisse tomar qualquer providência. Quando retornou, procurou
a criança e passou a cuidar dela. Era um homem casado, com uma
única filha viva, uma garota de idade próxima à de Jane, e Jane
tornou-se convidada deles, fazendo-lhes longas visitas e se tornando
uma favorita de todos. Antes de completar nove anos, a grande
afeição da filha por ela e seu próprio desejo de ser um verdadeiro
amigo se uniram para inspirar a oferta do coronel Campbell de
encarregar-se de toda a educação dela. A proposta foi aceita, e desde
então Jane pertencia à família do coronel Campbell e morava com
eles o ano todo, visitando a avó apenas de vez em quando.
O plano era que ela fosse criada para educar os outros, uma vez
que as poucas centenas de libras que ela herdara do pai tornavam a
independência impossível. Mais do que isso estava além das
capacidades do coronel Campbell, pois, embora sua renda, entre o
estipêndio do exército e outras ocupações, fosse considerável, esta
fortuna era moderada e seria inteiramente herdada pela filha. No
entanto, ao fornecer uma educação a Jane, ele esperava propiciar os
meios para uma subsistência respeitável no futuro.
Tal era a história de Jane. Ela tinha caído em boas mãos, sempre
recebera toda a gentileza dos Campbell e tivera uma educação
excelente. Em constante contato com pessoas sensatas e bem-
informadas, seu coração e discernimento tinham recebido todas as
vantagens da disciplina e do aperfeiçoamento, e uma vez que a
residência do coronel Campbell ficava em Londres, todas as outras
habilidades tinham sido perfeitamente desenvolvidas com tutores de
primeira classe. Suas propensões e capacidades eram em igual
medida merecedoras de tudo que aquela amizade poderia
proporcionar, e aos dezoito ou dezenove anos ela era, na medida em
que alguém tão jovem pode ser considerada para o cuidado de
crianças, inteiramente apta ao ofício de instrução, exceto que era
amada demais para ser separada da família. Nem o pai nem a mãe
promoveriam tal separação, nem a filha a suportaria. O dia terrível
foi adiado. Foi uma decisão fácil quando ela ainda era muito jovem,
e assim Jane permaneceu com eles, partilhando, como uma segunda
filha, de todos os prazeres racionais da sociedade elegante e de uma
mistura judiciosa de domesticidade e divertimentos, com o único
infortúnio sendo o futuro e as sugestões sóbrias de seu próprio
discernimento sagaz, que a lembravam que tudo aquilo logo
chegaria ao fim.
20
. Referência, não inteiramente precisa, ao Salmo 16.
CAPÍTULO IV
21
. Do latim “patriotismo”, aqui indicando a devoção à terra natal.
CAPÍTULO VII
22
. Jogo de cartas para duas pessoas.
CAPÍTULO VIII
23
. A principal fabricante de pianos da época, onde foi inventado o piano de
cauda.
24
. Do francês, “exagerado, excessivo”.
CAPÍTULO IX
25
. Johann Baptist Cramer (1771–1858) era um compositor popular. As
músicas irlandesas seriam da série Moore’s Irish Melodies, publicada entre
1807 e 1815 pelo poeta Thomas Moore (1779–1852).
26
. Canção irlandesa tradicional escrita por lady Caroline Keppel (c. 1734–
1769), que se casou com o coronel Robert Adair apesar da desaprovação da
família.
CAPÍTULO XI
A sra. Elton foi vista pela primeira vez na igreja: contudo, ainda
que a devoção pudesse ser interrompida, a curiosidade não seria
satisfeita apenas por ver uma esposa num banco de igreja, e teria
que ser saciada nas visitas de cortesia que deveriam ser feitas, nas
quais se decidiria se ela era mesmo muito bonita, um pouco bonita,
ou se não era nada bonita.
Emma sentiu, menos por curiosidade do que por orgulho e
decoro, que não deveria ser a última a oferecer seus cumprimentos,
e fez questão de que Harriet fosse consigo, para que o pior acabasse
o quanto antes.
Ela não poderia entrar naquela casa de novo ou estar na mesma
sala que, três meses antes, lograra acessar com um ardil astuto para
amarrar as botas, sem recordar.
Mil pensamentos irritantes
acorreriam à memória — elogios, charadas e terríveis gafes. E só
podia supor que a pobre Harriet também estivesse recordando.
Contudo, ela se comportou muito bem; estava só um pouco pálida e
calada. Naturalmente, a visita foi breve, e reduzida por tanto
constrangimento e preocupação que Emma não se permitiu formar
uma opinião conclusiva sobre a dama, e de forma alguma pôde
expressar sua impressão, além de comentar vagamente que ela “se
vestia com elegância e era muito agradável”.
A verdade era que não gostou dela. Não estava com pressa de
encontrar defeitos, mas suspeitava que não tivesse elegância —
havia desinibição, mas não elegância. Emma tinha quase certeza de
que, para uma jovem, uma desconhecida, uma mulher recém-
casada, ela estava à vontade demais. Sua figura era bela, o rosto não
era feio, mas nem feições, nem ares, nem voz, nem modos eram
elegantes. Emma esperara que teria ao menos tais qualidades.
Quanto ao sr. Elton, os modos dele não pareceram… mas não,
ela não proferiria qualquer palavra precipitada ou espirituosa
quanto aos modos dele. Já era uma cerimônia desconfortável
receber visitas após o casamento, e um homem precisava de muita
graça para superá-la. A mulher tinha uma vantagem, com a
assistência de belas roupas e o privilégio da timidez, mas o homem
só podia se apoiar em seu bom senso e, quando ela considerava
como o pobre sr. Elton era peculiarmente azarado por estar na
mesma sala com a mulher com que tinha acabado de se casar, a
mulher com quem desejara se casar e a mulher com quem fora
esperado que se casasse, precisava estender-lhe o direito de ser tão
pouco espirituoso, tão afetado e tão constrangido quanto quisesse.
— Bem, srta. Woodhouse — disse Harriet, quando elas saíram da
casa. E depois de esperar em vão que a amiga dissesse algo, com um
suspiro suave: — Bem, srta. Woodhouse, o que achou? Ela não é
encantadora?
Houve pouca hesitação na resposta de Emma.
— Ah, sim. Muito. É uma mulher muito simpática.
— Acho que é bonita, muito bonita.
— Muito bem-vestida, de fato; seu vestido era de uma elegância
impressionante.
— Não fico nem um pouco surpresa por ele ter se apaixonado.
— Ah, não! Não há motivo para surpresa. Ela tem uma fortuna
considerável, foi uma sorte ele a ter conhecido.
— Eu arriscaria dizer — retomou Harriet, suspirando de novo —
que ela é muito afeiçoada a ele.
— Talvez seja, mas não é o destino de todo homem casar-se com
a mulher que mais o ama. A srta. Hawkins talvez desejasse um lar
próprio e pode ter pensado que essa seria a melhor proposta que
receberia.
— Sim — concordou Harriet ardorosamente —, a senhorita tem
razão, ninguém poderia receber uma proposta melhor. Bem, desejo-
lhes a felicidade, de todo o coração. E agora, srta. Woodhouse, acho
que não vou mais me incomodar por vê-los. Ele é tão superior
quanto sempre, mas, estando casado, sabe, é diferente. Não, de fato,
a senhorita não precisa temer, agora posso sentar-me e admirá-lo
sem grandes sofrimentos. Saber que ele não se desperdiçou é um
conforto tão grande! Ela parece uma mulher tão agradável,
exatamente o que ele merece. Que criatura feliz! Ele a chama de
“Augusta”. Que encantador!
Quando a visita foi retribuída, Emma formou uma opinião mais
decisiva. Nessa ocasião, pôde ver mais e julgar melhor. Como
Harriet não estava em Hartfield e o pai estava presente para
conversar com o sr. Elton, ela teve um quarto de hora para falar
com a dama, e pôde dedicar toda sua atenção a ela — e aquele
quarto de hora a convenceu por completo de que a sra. Elton era
uma mulher vaidosa, extremamente satisfeita consigo mesma e que
superestimava sua própria importância; que pretendia brilhar e ser
muito superior, mas com modos adquiridos em uma má escola,
atrevidos e presunçosos; que todas as suas ideias se originavam de
um único conjunto de pessoas e um único estilo de vida; e que, se
não era tola, era ignorante, e sua companhia certamente não faria
bem algum ao sr. Elton.
Harriet teria sido uma esposa melhor. Ainda que não fosse sábia
ou refinada, ela o teria conectado com pessoas que eram. Mas a srta.
Hawkins — como era lícito supor com base em sua arrogância
confiante — era a mais refinada em sua família. O grande orgulho
da aliança era o cunhado rico que morava perto de Bristol, e sua
casa e carruagens que por sua vez eram o orgulho dele.
O primeiro assunto após se sentarem foi Maple Grove — “a
propriedade do meu cunhado, o sr. Suckling” — e uma comparação
entre Hartfield e o local. Os gramados de Hartfield eram pequenos,
mas bonitos e bem-cuidados, e a casa era moderna e bem-
construída. A sra. Elton pareceu muito favoravelmente
impressionada pelo tamanho da sala, a entrada e tudo que podia ver
ou imaginar. Era muito parecida com Maple Grove, de fato! Ela ficou
impressionada com a semelhança! Aquela sala tinha o mesmo
formato e dimensões que a sala de estar matinal em Maple Grove, o
cômodo preferido da irmã dela. A opinião do sr. Elton foi
requisitada. Não era extraordinariamente semelhante? Ela quase
podia imaginar que estava em Maple Grove.
— E a escadaria… sabe, quando entrei, observei como a
escadaria era parecida, situada exatamente na mesma parte da casa.
Não consegui evitar uma exclamação de surpresa! Eu lhe garanto,
srta. Woodhouse, que me é um grande prazer recordar de um local a
que sou tão extremamente parcial quanto Maple Grove. Passei
muitos meses felizes lá! — exclamou com um leve suspiro sentido.
— Um lugar charmoso, sem dúvida. Todos que o veem ficam
impressionados com sua beleza, mas, para mim, foi mais que um lar.
Quando você se mudar, como eu, vai entender como é encantador
encontrar qualquer coisa parecida com o que foi deixado para trás.
Eu sempre digo que é um dos males do matrimônio.
Emma deu a resposta mais curta possível, mas foi o suficiente
para a sra. Elton, que só queria falar ela mesma.
— É tão parecido com Maple Grove! E não só a casa; os
gramados, eu lhe asseguro, pelo que pude observar, são muito
semelhantes. Os louros de Maple Grove crescem na mesma profusão
que os daqui, e estão posicionados da mesma forma, logo atrás do
jardim. E peguei um vislumbre de uma árvore grande e bonita, com
um banco próximo, que me recordou imediatamente uma de lá!
Meu cunhado e minha irmã ficarão encantados com este lugar. As
pessoas que têm jardins extensos sempre ficam satisfeitas com
qualquer lugar no mesmo estilo.
Emma questionava a veracidade desse sentimento. Tinha a
impressão de que pessoas com jardins extensos se importavam
muito pouco com os jardins alheios, mas não valia a pena contestar
uma crença tão arraigada, e portanto ela respondeu apenas:
— Quando vir mais do condado, receio que a senhora vá pensar
que superestimou Hartfield. O Surry é cheio de belezas.
— Ah, sim! Estou bem ciente disso. É o jardim da Inglaterra,
sabe. O Surry é o jardim da Inglaterra.
— Sim, mas não podemos confiar apenas nessa distinção. Muitos
condados, eu acredito, são chamados de jardim da Inglaterra, assim
como Surry.
— Não, creio que não — retrucou a sra. Elton, com um sorriso
muito satisfeito. — Nunca ouvi nenhum outro condado além deste
ser chamado assim.
Emma calou-se.
— Meu cunhado e minha irmã nos prometeram fazer uma visita
na primavera ou, no mais tardar, no verão — continuou a sra. Elton.
— Será nossa chance de explorar. Enquanto estiverem conosco,
arrisco dizer que vamos explorar muito. Eles terão a sua barouche-
landau
27
, é claro, que carrega quatro pessoas perfeitamente, e
contando ainda a nossa
carruagem, poderemos explorar as
diferentes belezas muito bem. Eles não viriam de cabriolé, creio,
nesta época do ano. De fato, quando a hora se aproximar, vou
recomendar enfaticamente que venham com a barouche-landau
,
será muito preferível. Quando as pessoas visitam um belo condado
como este, sabe, srta. Woodhouse, é natural que desejem conhecer
o máximo possível dele, e o sr. Suckling gosta muito de explorar.
Exploramos King’s-Weston duas vezes no verão passado, desse jeito,
com muito prazer, logo que eles adquiriram sua primeira barouche-
landau
. Imagino que vocês façam muitas excursões desse tipo aqui,
srta. Woodhouse, todo verão.
— Não, não na região. Estamos a uma distância considerável das
belezas mais marcantes que inspiram o tipo de excursões de que a
senhora fala, e somos um grupo muito tranquilo, mais inclinado a
ficar em casa do que a fazer passeios de lazer.
— Ah! Não há nada como ficar em casa para experimentar o
verdadeiro conforto. Ninguém poderia ser mais dedicada ao lar do
que eu. Meu nome era quase um sinônimo para domesticidade em
Maple Grove. Selina sempre dizia quando ia a Bristol: “Não consigo
tirar essa moça de casa. Terei de ir sozinha, embora odeie ficar
presa na barouche-landau
sem uma companheira, mas acredito que
Augusta, por vontade própria, jamais iria além da cerca do parque”.
Ela disse isso muitas vezes, mas eu não defendo o isolamento
completo. Pelo contrário, creio que é muito ruim se isolar por
completo da sociedade, e que é muito mais aconselhável se envolver
com o mundo a um grau adequado, sem viver nele muito ou pouco.
Entendo perfeitamente sua situação, entretanto, srta. Woodhouse —
acrescentou, com um olhar para o sr. Woodhouse. — A saúde do seu
pai deve ser um grande empecilho. Por que ele não visita Bath? Sim,
deveria ir. Permita-me recomendar Bath à senhorita, garanto-lhe
que fará bem ao sr. Woodhouse.
— Meu pai já tentou mais de uma vez, mas não viu nenhum
benefício, e o sr. Perry, cujo nome imagino ser desconhecido à
senhora, não acredita que seria mais proveitoso agora.
— Ah! Que pena, pois eu lhe garanto, srta. Woodhouse, as águas
propiciam um alívio esplêndido. Em minha vida em Bath, vi muitas
provas disso! E é um lugar tão animado que não poderia deixar de
melhorar o humor do sr. Woodhouse, que, pelo que entendo, às
vezes fica um pouco deprimido. Quanto aos benefícios a você
,
acredito que não preciso me demorar neles. As vantagens de Bath
para os jovens são reconhecidas por todos. Seria uma apresentação
charmosa para você, que viveu uma vida tão reclusa, e eu poderia
imediatamente garantir-lhe algumas das melhores companhias do
lugar. Uma palavra minha lhe asseguraria uma multidão de contatos,
e minha amiga íntima, a sra. Partridge, a dama com quem sempre
me hospedo em Bath, ficaria encantada em prestar-lhe todas as
atenções e seria a melhor pessoa possível com quem sair em
público.
Era quase mais do que Emma podia suportar sem ser descortês.
Ficar em dívida com a sra. Elton pelo que ela chamava de
apresentação
— sair em público sob a tutela de uma amiga da sra.
Elton, provavelmente alguma viúva vulgar e espalhafatosa que, com
a ajuda de um pensionista, talvez conseguisse se sustentar! A
dignidade da srta. Woodhouse de Hartfield tinha realmente
afundado!
Contudo, conteve as censuras que poderia fazer e só agradeceu a
sra. Elton com frieza, explicando que uma viagem a Bath estava fora
de questão e que ela não estava perfeitamente convencida de que o
lugar seria mais benéfico a ela do que ao pai. E então, para evitar
mais revolta e indignação, mudou de assunto por completo.
— Eu não perguntei se a senhora gosta de música pois nessas
ocasiões a reputação de uma dama geralmente a precede, e
Highbury a conhece há muito tempo como uma extraordinária
pianista.
— Ah, não! Devo protestar contra essa ideia. Uma pianista
extraordinária! Estou muito longe disso, eu lhe asseguro. Considere
que a informação vem de uma fonte muito parcial. Eu aprecio a
música profundamente, apaixonadamente, e meus amigos dizem
que não sou destituída de gosto, mas de resto, palavra de honra,
meu desempenho é medíocre
no máximo. Você, eu bem sei, toca
encantadoramente. Asseguro-lhe que foi a maior satisfação, conforto
e prazer para mim saber que estava para entrar em uma sociedade
musical. Não posso viver sem música de jeito nenhum. É uma
necessidade absoluta para mim e, tendo sempre estado acostumada
a uma sociedade muito musical, tanto em Maple Grove como em
Bath, seria um sacrifício enorme privar-me dela. Falei isso
abertamente ao sr. E. quando ele estava me contando sobre meu
futuro lar e expressando seu receio de que o isolamento seria
desagradável. Sabendo com o que eu estava acostumada, a
inferioridade da casa também foi, é claro, motivo de apreensão.
Quando ele falou dessa forma, eu disse sinceramente que estava
disposta a abandonar o mundo
, festas, bailes, peças, pois não tinha
medo da reclusão. Abençoada com tantos recursos internos, o
mundo não era necessário para mim. Eu poderia viver muito bem
sem nada disso. Para aqueles que não têm recursos, é outra história,
mas os meus me tornam muito independente. Quanto a cômodos
menores do que eu estava acostumada, nem cheguei a pensar nisso.
Esperava estar à altura de qualquer sacrifício desse tipo.
Certamente estava acostumada a todos os luxos em Maple Grove,
mas garanti a ele que duas carruagens ou cômodos espaçosos não
eram necessários à minha felicidade. “Porém”, eu disse, “para ser
sincera, não acho que consigo viver sem uma sociedade um pouco
musical. Não exijo mais nada, mas sem a música a vida seria
insuportável para mim.”
— Não podemos supor — disse Emma, sorrindo — que o sr.
Elton hesitaria em garantir à senhora que há uma sociedade muito
musical em Highbury, e espero que não pense que ele exageraria a
verdade mais do que poderia ser perdoado, considerando-se o
motivo.
— Não, de fato, não tenho quaisquer dúvidas nesse sentido.
Estou encantada em me encontrar numa vizinhança como esta.
Espero que façamos muitos concertos juntas. Eu estava pensando,
srta. Woodhouse, que nós duas deveríamos fundar um clube de
música e promover encontros semanais regulares na sua casa, ou na
nossa. Não seria um bom plano? Se nós
tomarmos a iniciativa, creio
que não faltarão apoiadores. Algo dessa natureza seria
particularmente desejável para
mim
, como um incentivo para
continuar praticando, pois mulheres casadas, sabe… Há um triste
histórico contra elas, de forma geral. Têm uma grande tendência a
abandonar a música.
— Mas a senhora, que tanto a aprecia, certamente não vai correr
esse risco.
— Espero que não, mas quando olho ao redor estremeço. Selina
abandonou a música por completo, nem encosta mais no
instrumento, embora tocasse tão belamente. E o mesmo pode ser
dito da sra. Jeffereys… Clara Partridge, quero dizer, e as duas
Milman, agora a sra. Bird e a sra. James Cooper, e muitas outras que
nem consigo contar. Palavra, é suficiente para nos assustar. Antes eu
ficava brava com Selina, mas agora começo a entender que a
atenção de uma mulher casada tem muitas demandas. Acredito que
passei meia hora esta manhã só falando com a governanta.
— Mas todas as exigências desse tipo — disse Emma — logo
serão tão corriqueiras que…
— Bem — disse a sra. Elton, rindo. — Veremos.
Emma, vendo-a tão determinada a negligenciar a música, não
tinha mais o que dizer, e após uma breve pausa a sra. Elton
escolheu outro assunto.
— Nós passamos em Randalls para fazer uma visita — disse ela
— e encontramos os dois em casa. Parecem ser pessoas muito
simpáticas. Gostei muito deles. O sr. Weston parece uma criatura
excelente; já é um favorito comigo, eu lhe garanto. E ela
parece tão
boa, realmente… tem algo de tão maternal e gentil, que nos
conquista de imediato. Foi sua preceptora, acredito, não?
Emma estava quase perplexa demais para responder, mas a sra.
Elton mal aguardou a confirmação antes de continuar.
— Sabendo disso, fiquei espantada ao ver como ela é elegante!
Mas é realmente uma dama.
— Os modos da sra. Weston — disse Emma — sempre foram
particularmente refinados. Seu decoro, simplicidade e elegância
seriam o melhor exemplo possível para qualquer moça.
— E quem você acha que apareceu enquanto estávamos lá?
Emma não fazia ideia. O tom dela sugeria algum conhecido de
longa data, mas como poderia adivinhar?
— Knightley! — continuou a sra. Elton. — Knightley em pessoa!
Não foi uma sorte? Pois, como ele não estava em casa quando
passamos no outro dia, eu nunca o tinha visto antes, e, é claro, por
ser um amigo tão íntimo do sr. E., eu estava muito curiosa a seu
respeito. “Meu amigo Knightley” foi mencionado tantas vezes que eu
estava muito impaciente para conhecê-lo, e preciso fazer justiça ao
meu cara sposo
28
ao dizer que ele não precisa ter vergonha do seu
amigo. Knightley é um perfeito cavalheiro. Gostei muito dele. Creio
que é um homem muito distinto, de fato.
Por sorte, era hora das despedidas. Eles se retiraram e Emma
conseguiu respirar de novo.
Que mulher insuportável!
, foi sua reação imediata. Pior do que
eu imaginava. Absolutamente insuportável! Knightley!
Inacreditável! Knightley! Nunca o viu antes na vida e o chama de
Knightley! E descobriu que ele é um cavalheiro! Uma arrivista
vulgar, com o seu “sr. E.” e o seu “
cara sposo”, e todos os seus
recursos, e os seus ares de presunção grosseira e refinamento
barato.
Descobrir que o sr. Knightley
de fato é um cavalheiro!
Duvido que ele retribuirá o elogio e que julgará que ela é uma
dama. Inacreditável! E propor que nós duas fundássemos um
clube musical! Seria de imaginar que somos amigas do peito! E a
sra. Weston! Espantada que a pessoa que me criou seja uma
dama! Só fica pior. Nunca vi tamanho atrevimento. Muito pior do
que eu esperava. Harriet seria insultada por qualquer
comparação. Ah! O que Frank Churchill diria, se estivesse aqui?
Como ficaria furioso e entretido! E cá estou eu, pensando nele de
novo. É sempre a primeira pessoa em que penso! Como eu me
pego em flagrante! Frank Churchill entra constantemente em
meus pensamentos!
Esse discurso loquaz correu por seus pensamentos e, quando o
pai enfim se recuperou da agitação da partida dos Elton e ficou
pronto para falar, ela estava razoavelmente capaz de prestar
atenção.
— Bem, minha querida — ele começou deliberadamente —,
considerando que nunca a vimos antes, ela parece uma dama muito
bonita e arrisco dizer que gostou muito de você. Fala depressa
demais… tem uma pressa que fere um pouco os ouvidos. Mas
acredito que sou melindroso nesse sentido; não gosto de vozes
estranhas, e ninguém fala como você e a srta. Taylor. No entanto,
ela parece ser uma moça muito atenciosa e bem-comportada, e não
tenho dúvidas de que será uma boa esposa para ele. Embora ache
que o sr. Elton não devesse ter se casado. Eu me desculpei o melhor
que pude por não ter feito uma visita a ele e à sra. Elton na feliz
ocasião e disse que esperava que seria
possível no verão. Mas devia
ter ido antes. Não visitar uma noiva é muito negligente. Ah, só
mostra como sou um triste inválido! Mas não gosto daquela curva
antes da alameda da casa paroquial.
— Eu diria que suas desculpas foram aceitas, senhor. O sr. Elton
o conhece.
— Sim, mas uma moça… uma nova esposa… Eu devia ter
oferecido meus cumprimentos, se possível. Foi muito relapso.
— Mas, querido papai, se o senhor não aprova matrimônios, por
que estaria tão ansioso em oferecer cumprimentos a uma
noiva
?
Não deveria ser uma preocupação para o senhor.
Se der tanta
atenção a eles, vai incentivar as pessoas a se casarem.
— Não, minha querida, eu nunca incentivei ninguém a se casar,
mas sempre gosto de demonstrar a consideração devida a uma
dama. Uma noiva, em especial, não deve ser esnobada.
Reconhecidamente, deve-se mais a ela.
Uma noiva, como você sabe,
minha querida, sempre tem a precedência, quem quer que sejam os
outros.
— Bem, papai, se isso não é um incentivo para o casamento, não
sei o que seria. E nunca teria esperado que o senhor sancionasse
tamanhas tentações para a vaidade de pobres moças como nós.
— Minha querida, você não está me compreendendo. É mera
questão de educação e boas maneiras, não se trata de incentivar as
pessoas a se casarem.
Emma calou-se. O pai estava ficando nervoso e não conseguia
entendê-la.
Sua mente retornou às ofensas da sra. Elton, que
ocuparam seus pensamentos por um longo, longo tempo.
27
. Um tipo de carruagem novo à época, para quatro pessoas com um teto
que podia ser dobrado para que os passageiros observassem a paisagem.
28
. A sra. Elton pretende dizer “caro esposo”, em italiano, mas erra o gênero
do adjetivo.
CAPÍTULO XV
29
. Citação de um poema popular do século XVIII, “Elegia escrita em um
cemitério rural”, de Thomas Gray (1716–1771), que trata de pessoas de
talento condenadas à obscuridade em função de sua posição humilde.
CAPÍTULO XVI
É
— Não me admira — disse o sr. Knightley. — É pequena demais,
falta-lhe força. Parece a letra de uma mulher.
A declaração não foi aceita por nenhuma das damas, que o
defenderam contra a difamação vil. Não, não lhe faltava força de
forma alguma. Não era uma caligrafia larga, mas muito nítida e
muito forte. A sra. Weston não teria uma carta para apresentar?
Não; ela tinha recebido uma carta muito recentemente, mas após
responder a guardara.
— Se estivéssemos na outra sala — disse Emma —, onde fica a
minha escrivaninha, tenho certeza de que poderia encontrar um
exemplo. Tenho um bilhete dele. Não se lembra, sra. Weston, de
encarregá-lo de escrever em seu nome um dia?
— Ele escolheu dizer que tinha sido encarregado…
— Bem, bem, eu tenho esse bilhete, e posso mostrá-lo após o
jantar para convencer o sr. Knightley.
— Ah! Quando um jovem galante como o sr. Frank Churchill
escreve para uma bela dama como a srta. Woodhouse — disse o sr.
Knightley secamente —, é natural que ele faça o seu melhor.
O jantar foi servido. Antes de ser chamada, a sra. Elton já estava
a postos e, antes que o sr. Woodhouse a alcançasse para pedir a
honra de acompanhá-la à sala de jantar, já ia dizendo:
— Devo ir primeiro? Fico muito envergonhada de sempre ter a
precedência.
A insistência de Jane em coletar suas próprias cartas não tinha
passado despercebida a Emma. Ela ouvira e vira tudo, e sentia certa
curiosidade para saber se a caminhada úmida da manhã tinha
rendido uma carta. Suspeitava que sim
, que não teria sido tão
resolutamente realizada sem a total expectativa de notícias de
alguém muito querido, e que não tinha sido em vão. Pensou que
Jane tinha um ar de felicidade maior que o usual — um brilho tanto
em compleição como em humor.
Ela poderia ter feito alguma pergunta quanto à expedição e o
custo das correspondências com a Irlanda — estava na ponta da
língua —, mas se conteve. Estava decidida a não proferir qualquer
palavra que ferisse os sentimentos de Jane Fairfax, e elas seguiram
as outras damas para fora da sala, de braços dados, com uma
aparência de afeição altamente apropriada à beleza e graça de cada
uma.
CAPÍTULO XVII
31
. Himeneu era o deus grego dos casamentos, e “vestir seu manto cor de
açafrão” era um modo poético de referir-se ao matrimônio.
32
. Birmingham era uma das maiores cidades da Inglaterra no período, em
função da expansão da indústria. No entanto, a atividade industrial não era
tão respeitada quanto áreas como o comércio ou a atividade bancária.
CAPÍTULO I
33
. Termo cunhado pela autora.
CAPÍTULO IV
34
. Produzidas na cidade balneária de Tunbridge Wells, ao sul de Londres, as
caixas podiam ser feitas de madeira envernizada ou pintadas de cores vívidas
com decorações.
CAPÍTULO V
35
. Referência ao poema “The Task”, de William Cowper (1731–1800). Nessa
passagem, ele fala sobre visões imaginadas ao encarar o fogo.
CAPÍTULO VI
38
. Na verdade, Jane trabalharia para a sra. Smallridge, não para a sra.
Suckling. Esta troca é provavelmente uma confusão da parte da srta. Bates.
CAPÍTULO IX
39
. Referência a um poema na obra O vigário de Wakefield
, já mencionada
anteriormente.
CAPÍTULO X
É
missão extraordinária. É impossível exprimir a nossa surpresa. Ele
veio falar com o pai sobre um assunto… Para anunciar sua afeição…
Ela parou para respirar. Emma pensou primeiro em si mesma,
depois em Harriet.
— Mais do que uma afeição, na realidade — continuou a sra.
Weston. — Um noivado. Um noivado definitivo. O que você dirá,
Emma… o que dirão todos quando ficarem sabendo que Frank
Churchill e a srta. Fairfax ficaram noivos, ou, melhor dizendo, que
estão noivos há muito tempo!
Emma até se sobressaltou e exclamou, horrorizada:
— Jane Fairfax! Por Deus! Você está brincando! Não pode estar
falando sério!
— Sua surpresa é justificada — replicou a sra. Weston, com os
olhos ainda afastados, falando depressa para que Emma tivesse
tempo para se recobrar. — Sua surpresa é justificada. Mas é
verdade. Existe um acordo solene entre eles desde outubro, firmado
em Weymouth e mantido em segredo de todos. Alma alguma sabia
disso exceto eles mesmos, nem os Campbell, nem a família dela,
nem a dele. É tão surpreendente que, embora eu esteja convencida
por completo do fato, ainda me parece impossível. Mal consigo
acreditar. Achei que o conhecesse.
Emma mal ouviu o que ela falava. Sua própria mente estava
dividida entre duas ideias: suas próprias conversas anteriores com
ele sobre a srta. Fairfax e a pobre Harriet, e por um tempo ela só
conseguiu exprimir sua surpresa e pedir repetidas confirmações.
— Bem — disse ela por fim, tentando se acalmar —, essa é uma
circunstância sobre a qual precisarei refletir por ao menos meio dia
antes de conseguir compreender. Quê? Noivos durante todo o
inverno, antes que qualquer um dos dois viesse a Highbury?
— Noivos desde outubro, em segredo. Eu fiquei profundamente
magoada, Emma. O pai dele também. Há uma parte
da conduta dele
que não podemos perdoar.
Emma ponderou por um momento e então respondeu:
— Não fingirei que não
a compreendo e, para conceder-lhe todo
o alívio ao meu alcance, asseguro que as atenções dele comigo não
tiveram o efeito que você teme.
A sra. Weston ergueu os olhos, com medo de acreditar, mas o
semblante de Emma estava tão firme quanto suas palavras.
— Para que tenha menos dificuldade em crer na minha alegação
de total indiferença presente — continuou ela —, eu confessarei,
além disso, que houve um período, logo quando nos conhecemos,
em que eu gostava dele e estava muito disposta a apegar-me; não,
até já tinha me apegado, e como o sentimento veio a cessar talvez
seja um mistério. Mas, por sorte, acabou. Já há algum tempo, pelo
menos três meses, eu não tenho mais sentimentos por ele. Pode
acreditar em mim, sra. Weston. Essa é a pura verdade.
A sra. Weston a beijou com lágrimas de alegria e, quando
recuperou a fala, garantiu que essa declaração lhe fazia mais bem do
que qualquer outra coisa no mundo poderia.
— O sr. Weston ficará tão aliviado quanto eu — disse ela. —
Nesse ponto, estávamos profundamente infelizes. Era o nosso maior
desejo que vocês se afeiçoassem um ao outro, e estávamos
persuadidos de que era o caso. Imagine como nos sentimos por sua
conta.
— Eu escapei, e o fato de ter escapado pode ser motivo de grata
surpresa para você e para mim mesma. Mas isso não absolve a ele,
sra. Weston, e devo dizer que o acho muito culpado. Que direito
tinha ele de chegar entre nós, com afeições e confiança
comprometidas e modos tão
descomprometidos? Que direito tinha
de se esforçar para agradar, como certamente se esforçou, para
distinguir uma moça com atenções insistentes, como decerto fez,
enquanto pertencia a outra? Como ele poderia, sabendo os danos
que poderia causar? Como poderia saber que não fazia com que eu
me apaixonasse por ele? Foi muito impróprio, muito impróprio
mesmo.
— Considerando algo que ele disse, minha querida, eu imagino
que…
— E como ela
pôde suportar esse comportamento! Quanta
compostura! Ver atenções recorrentes prestadas a outra mulher,
bem na frente dela, e não se ressentir… É um grau de placidez que
não consigo nem compreender nem respeitar.
— Houve mal-entendidos entre eles, Emma, ele contou tudo a
nós. Não teve tempo para entrar em detalhes; ficou só por um
quarto de hora, e num estado de tamanha agitação que nem sequer
aproveitou todo o seu tempo aqui, mas disse especificamente que
houve mal-entendidos. A crise atual, de fato, parece ter sido
causada por mal-entendidos, que possivelmente decorreram da
conduta imprópria dele.
— Conduta imprópria! Ah, sra. Weston, essa é uma censura
muito branda! Sua conduta passou muito, muito além da
impropriedade! Isso o rebaixou… Não sei nem dizer quanto o
rebaixou em minha opinião. É tão diverso de como um homem
deveria ser! Não há nada daquela integridade honesta, da lealdade
estrita à verdade e aos princípios, do desdém a engodos e a
mesquinharias que um homem deveria demonstrar em todas as
instâncias da vida.
— Não, querida Emma, agora eu devo tomar a parte dele, pois,
embora tenha errado neste caso, eu o conheço há tempo suficiente
para confirmar que tem muitas, muitas qualidades e…
— Céus! — exclamou Emma, sem ouvir. — E a sra. Smallridge!
Jane estava prestes a assumir um posto de governanta! Como ele se
pôde permitir essa indelicadeza terrível? Como pôde deixá-la se
comprometer, sequer deixá-la cogitar tal medida?
— Ele não sabia nada sobre isso, Emma. Desse ponto, posso
absolvê-lo completamente. Foi uma resolução privada dela, que não
comunicou a ele, pelo menos não de forma a aparentar convicção.
Ele disse que, até ontem, ignorava os planos dela. Eles lhe foram
revelados subitamente, não sei como, creio que por alguma carta ou
mensagem, e quando descobriu o que ela estava fazendo, que
pretendia ir embora, ele decidiu agir de imediato, admitiu tudo ao
tio, jogou-se à mercê da generosidade dele e, em suma, pôs fim a
essa dissimulação abominável que vem se estendendo há tanto
tempo.
Emma começou a escutar com mais atenção.
— Eu devo receber notícias dele em breve — continuou a sra.
Weston. — Ele me disse, ao partir, que escreveria logo, e falou de
um jeito que parecia prometer muitos detalhes que não teve tempo
de dar. Vamos esperar, portanto, por essa carta. Talvez traga fatores
extenuantes. Pode tornar muitas coisas inteligíveis e perdoáveis que
agora não conseguimos entender. Não sejamos severas, não
tenhamos pressa em condená-lo. Sejamos pacientes. Devo continuar
a amá-lo e, agora que estou satisfeita quanto a um ponto, o mais
importante, espero sinceramente que tudo termine bem e estou
disposta a acreditar que será o caso. Ambos devem ter sofrido muito
sob todo esse sigilo e dissimulação.
— Os sofrimentos dele
— respondeu Emma secamente — não
parecem ter-lhe causado muita dor. Bem, e como o sr. Churchill
encarou a revelação?
— De modo muito favorável ao sobrinho; deu seu consentimento
sem grandes protestos. Considere o efeito que uma semana teve
naquela família! Enquanto a pobre sra. Churchill estava viva,
imagino que não havia qualquer esperança, uma chance sequer, mas
assim que os restos mortais dela foram enterrados na cripta familiar
o marido foi persuadido a agir da forma oposta à que ela teria
exigido. Que benção, quando a influência indevida não sobrevive ao
túmulo! Foi preciso muito pouco para obter seu consentimento.
Ah!
, pensou Emma. Então ele teria feito o mesmo por Harriet.
— Foi tudo resolvido ontem à noite, e Frank partiu logo ao
amanhecer. Parou em Highbury, na casa das Bates, imagino, por um
tempo, e então veio para cá, mas estava com tanta pressa de voltar
para junto do tio, a quem agora é mais necessário do que nunca,
que, como eu lhe disse, só pôde ficar conosco por um quarto de
hora. Estava muito agitado, muito mesmo, tanto que parecia uma
criatura completamente diferente do normal. Não bastasse todo o
resto, sofreu um choque ao encontrá-la tão enferma, pois não tinha
qualquer suspeita de sua condição e nos pareceu muito abalado.
— E você acredita mesmo que o noivado foi levado adiante em
completo segredo? Os Campbell, os Dixon, nenhum deles sabia?
Emma não conseguiu falar o nome Dixon sem corar de leve.
— Não, ninguém. Ele afirmou categoricamente que nenhuma
alma viva além dos dois sabia.
— Bem — disse Emma —, imagino que aos poucos vamos nos
reconciliar com a ideia, e desejo felicidade a eles. Mas sempre
pensarei que foi uma conduta abominável. O que foi, exceto um
sistema de hipocrisia e enganos, espionagem e traições? Chegar
entre nós com declarações de franqueza e sinceridade, enquanto
estavam mancomunados em segredo e julgando a todos! Cá ficamos
nós o inverno e a primavera toda, completamente enganados,
imaginando tratar com igual verdade e honra duas pessoas em nosso
meio que estavam se comportando, comparando e julgando
sentimentos e palavras que nunca deveriam ter sido ouvidos por
ambos. Eles terão de lidar com as consequências, se ouviram falar
um do outro de uma forma não inteiramente amável!
— Quanto a isso estou muito tranquila — respondeu a sra.
Weston. — Tenho certeza de que nunca falei nada sobre um ao
outro que ambos não poderiam ter escutado.
— Você tem sorte. Seu único lapso ficou confinado aos meus
ouvidos, quando imaginou que certo amigo nosso poderia estar
apaixonado pela dama.
— É verdade. Mas, como sempre tive uma opinião muito positiva
da srta. Fairfax, não poderia, devido a qualquer lapso, ter falado mal
dela. E quanto a falar mal dele, creio que estou a salvo disso.
Nesse momento, o sr. Weston apareceu a uma curta distância da
janela, claramente espiando. A esposa lhe lançou um olhar que o
convidou a entrar e, enquanto ele se aproximava, acrescentou:
— Agora, minha querida Emma, peço-lhe que fale e se comporte
de modo a apaziguar o coração dele e deixá-lo satisfeito com a
união. Vamos tirar o melhor proveito da situação, e, de fato, quase
tudo pode ser dito em favor dela. Não é uma união que trará
vantagens, mas se o sr. Churchill não se incomoda com isso, por que
nós deveríamos? E pode ser uma circunstância muito afortunada
para ele, para Frank, isto é, ter se apegado a uma garota com a
abundante firmeza de caráter e de bom senso que sempre lhe
atribuí, e ainda estou disposta a atribuir, apesar desse grande desvio
do decoro. E como a situação dela pode amenizar mesmo um erro
desses!
— Muito, de fato! — exclamou Emma, com sinceridade. — Se
uma mulher pode ser desculpada por pensar apenas em si mesma, é
em uma situação como a de Jane Fairfax. Quanto a isso, quase
podemos dizer que o “mundo não é seu, nem as leis do mundo”.
40
Ela foi sorridente ao encontro do sr. Weston quando ele entrou,
exclamando:
— Palavra, o senhor me pregou uma bela peça! Foi uma
estratégia, suponho, para atiçar a minha curiosidade e exercitar o
meu talento de adivinhação. Mas realmente me assustou. Pensei que
tinham perdido metade de sua propriedade, no mínimo, e eis que
descubro que, em vez de ser uma questão de condolências,
demanda felicitações. Eu o parabenizo, sr. Weston, de todo coração,
pela perspectiva de ter como nora uma das moças mais adoráveis e
talentosas da Inglaterra.
Um ou dois olhares trocados com a esposa o convenceram de
que tudo estava bem, como esse discurso proclamava, e o efeito
benéfico no humor do sr. Weston foi imediato. Seus ares e voz
recobraram a efervescência usual; ele apertou a mão dela com
entusiasmo e gratidão, e começou a discutir o assunto de tal forma
que ficou evidente que só lhe faltavam tempo e persuasão para
julgar que o noivado não era uma má notícia. Suas companheiras
sugeriram apenas o que poderia aliviar a imprudência ou suavizar as
objeções e, depois que tinham discutido a questão juntos e que ele a
discutiu novamente com Emma, no caminho de volta a Hartfield, o
sr. Weston estava perfeitamente reconciliado com a situação e quase
pensava que era a melhor coisa que Frank poderia ter feito.
40
. Referência a uma citação de Romeu e Julieta
, de William Shakespeare.
O verso original diz: “Não é teu amigo o mundo, nem as leis do mundo”.
CAPÍTULO XI
[À sra. Weston.]
Minha cara senhora,
Windsor — julho
Essa carta não podia deixar de tocar Emma. Ela foi levada,
apesar de toda sua determinação ao contrário, a fazê-la toda a
justiça que a sra. Weston tinha previsto. Assim que chegou ao seu
próprio nome, a leitura tornou-se irresistível; cada linha relacionada
a si mesma era interessante, e quase todas agradáveis; e quando
esse charme cessou, o interesse ainda se manteve devido ao retorno
natural de sua antiga estima pelo autor e uma atração muito forte
que todo retrato do amor teria para Emma naquele momento. Ela
não parou até terminar e, embora fosse impossível não sentir que o
rapaz se comportara mal, tinha errado menos do que ela supunha —
e havia sofrido, e sentia muito, e estava tão grato à sra. Weston e tão
apaixonado pela srta. Fairfax, e ela mesma estava tão feliz, que não
conseguiu ser severa e, se ele tivesse entrado na sala, ela teria
tomado suas mãos com a cordialidade de sempre.
Ela ficou com uma impressão tão boa da carta que, quando o sr.
Knightley veio de novo, pediu que ele a lesse. Tinha certeza de que a
sra. Weston desejava que seu conteúdo fosse divulgado,
especialmente a alguém que, como o sr. Knightley, tinha visto tantos
motivos de culpa na conduta dele.
— Ficarei feliz de examiná-la — disse ele —, mas parece longa,
então a levarei comigo esta noite.
Isso seria impossível. O sr. Weston visitaria no fim da tarde e ela
precisaria devolvê-la.
— Eu preferiria conversar com você — respondeu ele —, mas,
como parece ser uma questão de justiça, vou ler.
Ele começou — e parou quase imediatamente para dizer:
— Se me tivessem apresentado uma das cartas desse cavalheiro
para a sogra alguns meses atrás, Emma, eu não a aceitaria com
tamanha indiferença.
Ele leu mais um pouco, em silêncio, e então, com um sorriso,
observou:
— Humph! Uma abertura muito elogiosa. Mas é o jeito dele. O
estilo de um homem não deve ser a regra para outro. Não seremos
severos. — Um pouco depois, acrescentou: — Será natural para
mim falar minha opinião em voz alta enquanto leio. Ao fazê-lo,
sentirei que estou próximo a você. Assim não será uma perda de
tempo tão grande, mas se você não gostar da…
— De forma alguma. Fale abertamente.
O sr. Knightley voltou à leitura com muita alegria.
— Ele brinca aqui sobre a tentação — disse ele. — Sabe que está
errado e não apresenta nenhum argumento racional. Péssimo. Ele
não deveria ter ficado noivo. “A propensão do pai.” Ele é injusto
com o sr. Weston. O otimismo dele foi uma bênção em todos os seus
esforços corretos e honrados, mas o sr. Weston mereceu cada
conforto atual antes de tentar obtê-los… É verdade, o rapaz não
veio até a srta. Fairfax estar aqui.
— E eu não esqueci — disse Emma — como você tinha certeza
de que ele poderia ter vindo antes, se quisesse. Você se abstém
generosamente de mencionar, mas estava coberto de razão.
— Não fui inteiramente imparcial em meu julgamento, Emma.
Ainda assim, creio que, mesmo se você
não estivesse envolvida no
caso, eu ainda teria desconfiado dele.
Quando alcançou a menção à srta. Woodhouse, foi obrigado a ler
tudo em voz alta: tudo que se relacionava a ela, com um sorriso, um
olhar, um balançar de cabeça, uma ou duas palavras de
concordância ou desaprovação, ou simplesmente de amor, conforme
o exigido. Concluiu, porém, com seriedade e após um momento de
reflexão:
— Foi muito ruim, mas podia ter sido pior. Ele fez um jogo muito
perigoso. Deve muito à sorte pela sua absolvição. Não considerou
racionalmente os próprios modos em relação a você. Sempre foi
enganado pelos próprios desejos e atentou a pouco mais que sua
própria conveniência. Chegar a pensar que você tinha descoberto o
segredo dele! É natural, com a própria mente cheia de intrigas, que
ele suspeite disso nos outros. Mistério, sutileza… como eles
pervertem a mente! Minha Emma, tudo isso não prova cada vez
mais a beleza da verdade e da sinceridade que empregamos um com
o outro?
Emma concordou, mas ruborizou por conta de Harriet, uma
questão para a qual ela não podia dar uma explicação honesta.
— É melhor continuar — sugeriu ela.
Ele prosseguiu, mas logo parou de novo para dizer:
— O piano! Ah! Foi um ato de um rapaz muito, muito jovem,
jovem demais para considerar se a inconveniência do presente não
poderia exceder o prazer propiciado por ele. Um plano juvenil, de
fato! Não compreendo que um homem deseje dar qualquer prova de
afeto a uma mulher sabendo que ela preferiria não a receber, e ele
sabia que a srta. Fairfax teria impedido o envio do instrumento, se
pudesse.
Depois disso, ele prosseguiu sem parar por um tempo. A
confissão de Frank Churchill sobre ter se comportado de maneira
vergonhosa foi a primeira coisa que inspirou mais que uma breve
palavra.
— Concordo perfeitamente com o senhor — foi o comentário
dele. — Comportou-se de maneira muito vergonhosa. Nunca
escreveu uma frase mais verdadeira. — E após ler o que se seguia
imediatamente, sobre a base do desentendimento deles e a
persistência dele em agir em oposição direta ao senso de decoro de
Jane Fairfax, ele fez uma pausa mais longa para comentar. — Ele
agiu terrivelmente. Levou-a a se colocar, por ele, em uma situação
de extrema dificuldade e desconforto, e seu principal objetivo
deveria ter sido evitar que ela sofresse desnecessariamente. Ela deve
ter precisado lidar com muito mais do que ele, ao envolver-se num
relacionamento secreto. Ele deveria ter respeitado até escrúpulos
irracionais, se houvesse algum, mas os dela eram todos razoáveis.
Devemos pensar na única falha dela e lembrar que tomou uma
decisão errada ao consentir com o noivado, e assim poderemos
aguentar a ideia de que tenha sofrido tamanha punição.
Emma sabia que ele estaria chegando ao passeio a Box Hill e
ficou desconfortável. Seu próprio comportamento fora tão
impróprio! Ela estava profundamente envergonhada e um pouco
receosa do próximo olhar dele. Tudo foi lido, porém, com firmeza e
atenção, sem o menor comentário. E exceto por um olhar breve,
desviado de imediato por medo de magoá-la, ele não parecia ter
nenhuma lembrança de Box Hill.
— Não se pode dizer muito quanto à delicadeza dos nossos caros
amigos, os Elton — foi a próxima observação dele. — Os
sentimentos dele são naturais. Quê! Resolveu romper com o sr.
Churchill por completo! Sentiu que o noivado seria uma fonte de
arrependimento e infelicidade para ambos… e o dissolveu. O quanto
isso revela sobre o modo como ela encarou o comportamento dele!
Bem, ele deve ser extraordinariamente…
— Não, não, continue. Você verá como ele sofre.
— Espero que sim — respondeu o sr. Knightley friamente,
retomando a leitura. — Smallridge! Do que se trata isso? Do que ele
está falando?
— Ela havia aceitado uma posição de governanta para os filhos
da sra. Smallridge, uma querida amiga da sra. Elton e vizinha de
Maple Grove. Aliás, me pergunto como a sra. Elton está suportando
a decepção.
— Não diga nada, minha querida Emma, enquanto me instiga a
ler, nem sobre a sra. Elton. Só mais uma página. Logo concluirei.
Que carta longa o homem escreve!
— Gostaria que estivesse mais disposto a ser gentil com ele.
— Bem, ele de fato demonstra muitos sentimentos. Parece ter
sofrido ao encontrá-la doente e não tenho dúvidas de que é
afeiçoado a ela. “Mais enamorados do que nunca.” Espero que ele
continue a sentir o valor dessa reconciliação por um longo tempo.
Seus agradecimentos são muito abundantes, mil e dez mil… “mais
feliz do que eu mereço”. Bem, aqui ele admite a verdade. “A srta.
Woodhouse me chama de filho da fortuna.” Foram essas as palavras
da srta. Woodhouse, é mesmo? É uma bela conclusão. E cá está a
carta. O filho da fortuna! Esse era o seu nome para ele, então?
— Você não parece tão satisfeito com a carta quanto eu fiquei,
mas ainda assim, ao menos espero, deve pensar melhor dele agora.
Faço votos para que isso o ajude a subir em sua estima.
— Sim, certamente. Ele tem grandes defeitos, defeitos de
imprudência e falta de consideração, e estou tentado a concordar
com a opinião de que é provável que ele esteja mais feliz do que
merece. No entanto, sem dúvida é apegado à srta. Fairfax, e como
logo, esperamos, terá a vantagem de estar constantemente com ela,
estou disposto a crer que seu caráter vai melhorar e adquirir do dela
a firmeza e delicadeza de princípios que lhe faltam. Agora, deixe-me
falar com você sobre outro assunto. Tenho os interesses de outra
pessoa no coração e não consigo mais pensar em Frank Churchill.
Desde que a deixei esta manhã, Emma, minha mente está ocupada
com uma questão.
O assunto se seguiu; na linguagem direta, cavalheiresca e sem
afetações que o sr. Knightley usava até com a mulher por quem
estava apaixonado, expôs o dilema de como pedir-lhe em casamento
sem prejudicar a felicidade do pai dela. A resposta de Emma estava
na ponta da língua desde a primeira palavra. Enquanto o querido pai
vivesse, qualquer mudança de situação seria impossível para ela. Ela
nunca o deixaria. Só parte dessa resposta, entretanto, foi admitida.
A impossibilidade de abandonar o pai, o sr. Knightley sentia com a
mesma intensidade que ela, mas com a inadmissibilidade da outra
mudança não podia concordar. Ele vinha refletindo profunda e
atentamente; primeiro esperara convencer o sr. Woodhouse a se
mudar com ela para Donwell; quisera acreditar que seria factível,
mas tudo que sabia sobre o sr. Woodhouse não permitiu que se
enganasse por muito tempo, e admitiu que essa transferência
certamente seria um risco que não deveriam correr em relação ao
conforto do pai dela, quem sabe até à vida. O sr. Woodhouse, tirado
de Hartfield! Não, ele sentiu que não deveriam tentar. Já o plano
que tinha surgido ao sacrificar o anterior, ele confiava que a querida
Emma não acharia objetável em nenhum sentido: era que ele
mesmo fosse recebido em Hartfield; enquanto a felicidade do pai —
em outras palavras, a sua vida — exigisse que Hartfield continuasse
sendo o lar dela, seria também o dele.
A ideia de todos se transferirem a Donwell já cruzara fugazmente
a mente de Emma. Como ele, ela cogitou e rejeitou o plano, mas
aquela alternativa não lhe ocorrera. Ela estava ciente da imensa
afeição que a proposta evidenciava. Sentia que, ao deixar Donwell, o
sr. Knightley sacrificaria boa parte de sua independência de horas e
hábitos; ao viver constantemente com o pai, e numa casa que não
era a sua própria, haveria muito, muito a ser tolerado. Prometeu
pensar a respeito e o aconselhou a não pensar mais nisso, mas ele
estava convencido de que nenhuma reflexão alteraria seus desejos
ou sua opinião. Assegurou-lhe que tinha deliberado longa e
calmamente; tinha se esquivado de William Larkins a manhã toda
para manter seus pensamentos para si.
— Ah, há uma dificuldade que não resolvemos! — exclamou
Emma. — Tenho certeza de que William Larkins não vai gostar nada
disso. Você precisa obter o consentimento dele antes de pedir o
meu.
Ela prometeu, porém, pensar na proposta, e praticamente
prometeu pensar com a intenção de julgá-la uma boa ideia.
É digno de nota que Emma, sob os muitos pontos de vista pelos
quais começava agora a considerar a Abadia de Donwell, em
nenhum momento tenha se preocupado com qualquer prejuízo para
o seu sobrinho Henry, cujos direitos como herdeiro tinham sido
antes tenazmente considerados. Ela deveria ter pensado na possível
diferença que isso faria ao pobre garoto, mas só deu um sorrisinho
descarado e consciente, e divertiu-se ao detectar a real causa da
aversão violenta à ideia de o sr. Knightley se casar com Jane Fairfax,
ou qualquer outra mulher, e que na época ela tinha imputado
completamente a uma amável solicitude de irmã e tia.
Quanto à proposta de se casarem e continuarem em Hartfield,
quanto mais a contemplava, mais agradável se tornava. As
desvantagens pareceram diminuir e as vantagens para ela própria,
aumentar. O bem mútuo compensaria cada prejuízo. Que
companheiro ela teria nos tempos de ansiedade e tristeza à sua
frente! Que parceiro para realizar todos aqueles deveres e cuidados
que o tempo tornaria mais melancólicos!
Ela teria ficado perfeitamente contente não fosse pela pobre
Harriet, mas cada benção para si mesma parecia envolver e
aumentar os sofrimentos da amiga, que agora seria excluída até de
Hartfield. Da família encantadora que Emma assegurava para si, a
pobre Harriet deveria, por mera cautela caridosa, ser mantida a
distância. De qualquer forma, ela sairia perdendo. Emma não podia
lastimar a ausência futura dela por imaginar qualquer redução ao
seu próprio conforto. Nesse grupo, Harriet seria mais um peso
morto, mas à moça desafortunada parecia uma necessidade cruel
ela ser constringida a tal punição desmerecida.
Com o tempo, é claro, o sr. Knightley seria esquecido pela amiga
— isto é, suplantado —, mas não se podia esperar que isso
acontecesse muito rápido. O sr. Knightley em si não faria nada para
auxiliar a cura, não como o sr. Elton fizera. Sempre tão gentil e
sensível, tão verdadeiramente atencioso com todos, nunca
mereceria ser menos adorado do que no momento, e era demais
esperar que mesmo Harriet pudesse se apaixonar por mais de três
homens em um mesmo ano.
CAPÍTULO XVI
41
. Referência a “A lebre e muitos amigos”, fábula de John Gay (1685–
1732).
CAPÍTULO XVII
42
. Referência ao romance Adelaide e Theodore
(1783), da escritora
francesa Madame de Genlis (1746–1830). A baronesa adota sua sobrinha, a
condessa d’Ostalis, e a educa. Depois, se aproveita dessa experiência para
educar a filha Adelaide.
CAPÍTULO XVIII
43
. O anfiteatro Astley’s, fundado em 1768, é considerado o primeiro circo
moderno e seus atos incluíam acrobacias em cavalos, palhaços, equilibristas,
animais treinados, entre outros.
CAPÍTULO XIX
Adaptações de Emma
– retornando e reencontrando
Recentemente, os intervalos entre novas versões deste romance, e, por
consequência, de novas adaptações audiovisuais de
Emma
se encurtam
progressivamente. Dentre as novas versões de
Emma
, estão algumas das
produções que mais impactaram toda uma geração de adoradores da
personagem. Logo após o sucesso de
As patricinhas
, mais dois longas foram
lançados: aquele estrelado por Gwyneth Paltrow
(1996) e a versão estrelada
por Kate Beckinsale (1996). Mais recentemente, há uma versão em que Emma
é interpretada por Romola Garai na minissérie televisiva realizada pela BBC
(2009), uma versão brasileira, na qual “Ema” é interpretada por Agatha
Moreira em uma telenovela (2018) e, finalmente, o longa-metragem estrelado
por Anya Taylor-Joy, lançado em 2020.
As diferentes versões de um repertório ficcional, da narrativa de uma
mesma personagem, por exemplo, podem construir intertextualidades em
uma mesma geração de espectadores, complexificando o debate sobre
alterações e reconhecimentos. Esse é o caso de quando Emma é reencontrada
como uma adolescente privilegiada em
As patricinhas de Beverly Hills
. O
filme oferece uma oportunidade de reencontro com uma Emma Woodhouse
contemporânea, e os efeitos dessa adaptação na cultura pop são complexos e
duradouros.
As patricinhas
integra o coletivo de adaptações que atravessa a
memória cultural de Austen dos limites do fim do século XX diretamente para
o século XXI. A protagonista, Cher, é uma jovem adolescente rica, moradora
de Beverly Hills, bairro luxuoso de Los Angeles. É, portanto, uma Emma
transposta para o contemporâneo, cujas preocupações giram em torno da
sociabilidade de uma juventude privilegiada e superficial, temas que espelham
questões abordadas por Austen no romance, mas de outra perspectiva.
Um sucesso de público e crítica, o filme se torna referência da cultura pop
e da estética da década de 1990, além de se firmar como sátira bem-
humorada dos filmes adolescentes e de comédias românticas da época. Trinta
anos após seu lançamento,
As patricinhas
se tornou um dos mais importantes
pontos de entrada na memória espiralada de Austen – isto é, um primeiro
encontro com a autora e sua obra, deixando uma marca fundamental tanto na
forma como faz uma apropriação leve de uma das heroínas mais polêmicas de
Austen, como nas escolhas de trilha sonora, de arte e figurino que fazem
referências à estética dos videoclipes que estavam nas telas da MTV na
mesma época.
Para entender a circulação sinérgica de
As patricinhas
e de
Emma
no
cenário do entretenimento, é interessante mencionar que a atriz que fez Cher
no filme, Alicia Silverstone, estrelou também uma série de clipes narrativos
da banda Aerosmith, das músicas “Crying” e “Amazing”, ambas de 1993, e
“Crazy”, de 1994, trabalhos pelos quais ficou conhecida e que,
posteriormente, motivariam a escalação dela como protagonista em
As
patricinhas
. Parte do figurino usado por Alicia nos clipes, como as saias
plissadas de cintura alta de colegial, as roupas quadriculadas e as camisas
brancas masculinas de botão, foi incorporado ao filme, em referência aos
clipes, conforme afirmam os autores Linda Troost e Sayre Greenfield no
capítulo “Watching ourselves watching”, no livro
Jane Austen in Hollywood
(2001). O público jovem que assistiu ao surgimento de Alicia na MTV também
era o público-alvo da adaptação da narrativa de
Emma
para o
contemporâneo, tornando-se reconhecedores das referências de figurino que,
posteriormente, teriam influência na moda e na memória cultural de Austen.
Dois exemplos, mais recentes, ilustram essas permanências da adaptação:
o primeiro, o fato de alguns estilistas terem retomado os figurinos de
As
patricinhas
em desfiles e coleções, quase duas décadas depois, como
Alexander Wang, em 2014, e Dolce & Gabbana, em 2015. O segundo exemplo
é o clipe da música “Fancy”
da cantora de rap Iggy Azalea, que dialoga com as
referências articuladas por
As patricinhas
e com a estética videoclipada e o
ambiente televisivo jovem. O clipe não só se apropria do figurino, mas
também reencena diversas sequências que sobrevivem na memória cultural e
nas repetições do ambiente digital. Os conhecedores e reconhecedores da
adaptação, suas cenas e seus figurinos, hoje já não fazem parte do público
jovem, mas seguem participando da cultura pop e estabelecendo os laços
intertextuais importantes para a recepção dessas apropriações recentes da
obra de Austen. Já o público jovem, aquele que não necessariamente conhece
o filme de 1995, ou ainda o seu texto fonte, tem a oferta de uma nova
experiência que, talvez, funcione para eles como um ponto de entrada.
Emma
se tornou parte da cultura pop, desafiando as fronteiras do tempo e
dos espaços da narrativa ficcional. Sua travessia por diversas gerações pode
ser compreendida, justamente, pelo engajamento e pela identificação que ela
promove ao costurar certas narrativas com os dilemas atuais dos seus leitores
e espectadores, o que garante energia renovada a cada versão. As
protagonistas de romances literários clássicos atuam como alicerces na
memória cultural que vêm ao auxílio de cada nova geração de leitores e
espectadores como referências para questões típicas do amadurecimento, dos
desafios dos amores românticos e das amarguras da vida adulta. Cada geração,
entretanto, tem contextos sociopolíticos e culturais que atravessam seu
tempo, o que significa que cada ciclo de retomadas dessas protagonistas pelos
produtos da mídia deve se atualizar para contemplá-los nos seus processos de
criação.
Os diálogos intertextuais que os produtos do audiovisual comercial
realizam ao adaptar essas narrativas clássicas em movimentos repetidos,
portanto, fazem parte de estratégias de fidelização de um certo público
conhecedor e (re)conhecedor. Emma ganha novos contornos, tem um carisma
renovado, atualiza suas questões à luz dos tempos nos quais vai caminhar.
Suas novas conquistas vão se acumulando e ela, a cada nova incursão por
nossa memória, explora mais uma camada afetiva.
A esse circuito incessante, podemos adicionar este livro. Ele nos dá, mais
uma vez, a oportunidade de retornar, de reencontrar e de colocar os prefixos
de repetição no campo do afeto e da articulação de memória de
Emma.
Seja
nas telas, pelas ruas de Beverly Hills, pelo interior do Brasil, pelos lagos do
interior da Inglaterra ou pelas páginas
deste livro, Emma e sua autora
permanecem relevantes no cenário contemporâneo. Elas nos inspiram, nos
geram as mais profundas angústias e intensas paixões, nos fazem viajar,
imaginar e sonhar.
São mulheres que resistem à passagem implacável do
tempo, seja na nossa memória, nas páginas escritas e lidas ou em suas tantas
versões nas telas. São elas que nos fazem retornar ao prazer de cada
reencontro e ansiar
pelo próximo.
MARCELA SOALHEIRO
é doutora em Comunicação Social pela PUC-Rio
(2022) com a pesquisa:
Adaptação literária na cultura da convergência:
clássicos e a memória cultural
. É professora do curso de Cinema e
Audiovisual da ESPM-Rio.
A COMICIDADE EM EMMA
por
Renata Colasante
Ninguém além da própria autora poderia ter definido tão bem seu estilo,
que viria a torná-la uma das mais famosas escritoras de todos os tempos.
Entretanto, sua recusa em escrever romances sérios não se aplicava aos temas
tratados pela autora em sua obra, mas sim à forma de abordá-los.
Por muito tempo, Jane Austen foi acusada pela crítica de ter ignorado os
grandes eventos históricos de seu tempo, tais como a ascensão da burguesia,
as revoluções liberais que ocorreram na segunda metade do século XVIII,
entre as quais estão a Revolução Francesa, as Guerras Napoleônicas
e a
Revolução Industrial. Contudo, conforme argumenta o sociólogo galês
Raymond Williams (1984)
, os assuntos sobre os quais Austen escreve são tão
ou até mais importantes do que retratar essa grande corrente da história. O
que ela nos oferece é a história social das famílias proprietárias de terras na
virada do século XVIII na Inglaterra, fazendo desse tópico o foco principal e a
estrutura de seus romances. Portanto, as pessoas de quem ela ri, como afirma
na carta, pertencem à mesma classe social em que ela se insere: os
proprietários de terras cultivadas, um dos setores da complexa classe média
inglesa. E essa escolha das personagens é cuidadosamente planejada: “três ou
quatro famílias em um vilarejo rural é a coisa exata a se trabalhar”
2
, disse
Austen à sobrinha em carta enviada em 18 de setembro de 1814. É
importante compreender aqui, como explica o crítico literário britânico Terry
Eagleton (2005)
, que Jane Austen não escreveu sobre a família em vez da
sociedade. Em sua época, a família era a sociedade ou, ao menos, um dos
principais setores dela. Eagleton afirma ainda que no século XVIII poucas
centenas de famílias concentravam um quarto das terras cultivadas na
Inglaterra.
Em seus romances, Austen não se ocupa tanto dos processos emocionais e
psicológicos envolvidos nas relações humanas. Como argumenta Williams, ela
está mais preocupada em explorar de que maneira as condutas dos indivíduos
se adequam às normas sociais. Podemos acrescentar a isso uma preocupação
com as rendas advindas do cultivo da terra e a posição
social do indivíduo,
elementos essenciais de todas as relações projetadas e desenvolvidas em seus
romances. Williams
explica que muito do interesse e da ação contidos nos
romances de
Austen
residem nas mudanças provocadas pelo aumento ou
diminuição nas fortunas das famílias proprietárias de terras
—
tanto de modo
geral, quanto na forma como isso afeta a mobilidade social.
Encontramos exemplos disso em todas as obras de Austen, e a descrição
desse aspecto da história social inglesa não é uma tarefa fácil. As personagens
de Austen não vivem em um ambiente social estático, e sim em um momento
da história em que o dinheiro está mudando de mãos, sobretudo nessa
camada da sociedade. Propriedades e fortunas não são apenas herdadas, mas
também vêm do comércio, das colônias, dos lucros de ações militares, e essas
novas rendas são transformadas em casas, propriedades rurais e posição
social. O capitalismo agrário mistura-se com as camadas médias da sociedade,
e essa mudança traz consigo diversas contradições,
transformando-se na fonte
de muitos dos problemas nas condutas humanas que os romances
dramatizam.
Jane Austen é precisa em suas descrições do melhoramento da terra, um
processo criado por essas mudanças na sociedade e que fez parte da
Revolução Agrária. De acordo com Williams, o melhoramento ocorreu de duas
formas diferentes, ambas refletidas nos romances. Há o melhoramento do
solo, das plantações e da produção numa agricultura com base no trabalho.
Por outro lado, há o melhoramento das residências, dos jardins, do paisagismo
construído artificialmente, no qual muita da fortuna crescente foi empregada.
Dessa forma, consolidou-se também o melhoramento e a expansão de uma
classe social existente.
Em seus romances, podemos identificar uma associação direta entre o
melhoramento das terras e o melhoramento da sociedade.
O narrador
distante, frio e objetivo nos mostra como uma grande fortuna não se
transforma automaticamente em boas condutas, e utiliza um tom um tanto
crítico numa tentativa de moralização da sociedade.
Eagleton afirma que, para Austen, a base de toda conduta correta é o
discernimento verdadeiro, que, por sua vez, depende de conseguir ver as
coisas da forma como são, e a autora de modo algum subestima a dificuldade
de conseguir esse intento. Uma prova desse desafio é que quase todas as
heroínas de Austen, e esse grupo inclui Emma, iniciam o romance falhando e
aprendem através das experiências, adquirindo discernimento e aprimorando
sua visão do mundo e da vida em sociedade. A visão da autora sobre essa
sociedade é aquela de alguém que a analisa de dentro, uma vez que ela
mesma fazia parte dessa camada social.
“Uma heroína de que ninguém além de mim mesma vai gostar muito.”
Nenhuma personagem de Jane Austen suscita opiniões tão diversas por
parte do público leitor quanto Emma. Amada por uns e odiada por outros,
Emma é indubitavelmente uma das mais complexas personagens do universo
austeniano, e o romance que leva o nome da personagem, uma das maiores
criações da literatura inglesa.
É essencial ressaltar, contudo, que a
ambiguidade de sentimentos que o leitor experimenta ao percorrer a obra e
acompanhar a trajetória de sua heroína não se dá ao acaso. Ao contrário, foi
cuidadosamente lapidada por Jane Austen para que assim o fosse. Em
A
Memoir of Jane Austen
(1870), seu sobrinho James Edward revela ao público
uma célebre declaração
atribuída à autora sobre o romance que acabara de
iniciar: “Vou criar uma heroína de que ninguém além de mim mesma vai
gostar muito”
4
. O plano pode parecer um tanto cruel
para a pobre Emma,
que estava ainda em concepção. Entretanto, em se tratando de Austen, a
ironia está presente até mesmo em suas declarações pessoais, e o plano
perverso para com sua nova personagem só se concretiza se o leitor
descuidar-se e esquecer-se de seu papel no jogo da ironia. Sim, é um
mecanismo um tanto complexo.
Emma
exige, talvez mais que qualquer outro
romance de Austen, que o leitor esteja sempre atento e aprecie a sutil, cômica
e complexa ironia tecida nas tramas da obra.
O escritor inglês Reginald Farrer (2000)
argumenta que, devido à
complexidade em sua leitura, o leitor iniciante no universo de Jane Austen
não deve tomar
Emma
como seu primeiro romance. Ele acrescenta que esta é
uma obra que pode ser apreciada de forma ainda mais plena após diversas
leituras: somente depois de ter assimilado o enredo é que o leitor poderá
apreciar mais profundamente o encanto e as sutilezas do romance. Ele
poderá, então, perceber as múltiplas complexidades da trama e descobrir que
cada frase estabelece sutis referências a pontos passados ou futuros na
narrativa. Logo,
Emma
é uma obra cuja compreensão é renovada a cada nova
leitura. E cada nova leitura traz consigo novas percepções de sua genialidade.
Ainda que o leitor não tenha conhecimento da dedicação e cuidado que
Jane Austen devotava à escrita de seus romances, é necessário desconfiar se é
real seu desejo de criar uma heroína antipática ao público leitor. Não gostar
de Emma é acreditar na galhofa da escritora, é cair em uma armadilha, é não
perceber a comicidade do texto. Finalmente, não gostar de Emma é perder-se
em meio à intricada ironia da obra. E o grande desafio de Austen foi criar uma
personagem que se afasta, mais do que qualquer outra de suas protagonistas,
das imagens de perfeição que a autora tanto rejeitava, e ao mesmo tempo
fazê-la ser tão adorada quanto suas outras heroínas.
Austen cumpre o objetivo de forma magistral, e os três parágrafos iniciais
do romance não nos deixam dúvidas quanto ao que encontraremos mais
adiante. Segundo Farrer, acompanhamos em
Emma
a gradual humilhação da
soberba da heroína, que acontece através de uma sucessão de desastres
provocados por ela mesma, todos graves em efeito, mas apresentados pelo
viés da comicidade. Diz ele que a própria Emma jamais deve ser levada a
sério, e portanto o absurdo de suas ações, seu esnobismo e sua falta de
discernimento causarão indignação somente àqueles que não perceberem
isso. Emma é uma personagem divertida. Conservar afeição por uma
personagem, não devido a seu charme, mas ao desafio de seus defeitos, é o
objetivo do desafio cômico.
Litz (1965)
afirma que o movimento básico de
Emma
parte da alienação e
chega ao autoconhecimento, indo da ilusão à realidade. Ao longo da
narrativa,
Emma será exposta às demais personagens, incluindo Frank Churchill e o sr.
Knightley. Para tanto, a personagem terá de passar por uma série de
adversidades que farão com que conheça a verdade, num caminho muito
semelhante ao que percorreu Elizabeth Bennet, em
Orgulho e preconceito
.
Esse processo da reforma íntima das personagens principais está presente
em quase todas as obras de Austen, e evidencia um problema que a autora
resolve com maestria através de sua técnica. Se falhasse, o leitor poderia não
torcer por um final feliz, tampouco se interessar pela regeneração da
personagem, ou ainda a narrativa poderia tornar-se inaceitável ou
inverossímil.
Para que o leitor possa compreender e perceber os erros da
heroína, ele deve manter uma distância emocional sem se voltar contra ela.
Além disso, caso não consiga ver suas falhas através da tessitura irônica
presente em todas as linhas, não conseguirá aproveitar a comédia da forma
como foi escrita. Jane Auste
n precisa tratar sua criação com objetividade e
subjetividade, entrar no íntimo do leitor para inspirar simpatia e ainda assim
permanecer distante para dirigir o riso e os aspectos cômicos.
Apesar de Emma ter tudo para ser feliz — inteligência, beleza, dinheiro,
amor —, seu orgulho e falta de limites são uma ameaça a sua própria
felicidade. Mas, quando compreendemos que cada plano dela é um fio na
trama inconscientemente construída por ela mesma e que o fim será
desastroso, retoma-se o equilíbrio e a reprovação dissolve-se novamente em
riso. Assim, a cada momento, alternamo-nos entre a indignação e o
encantamento para com a protagonista, até que finalmente vejamos sua
altivez ser desconstruída e chegar a um fim. Contudo, a reforma da
personagem ocorre a tempo de salvá-la de um final trágico, o que destoaria do
tom de comédia da obra. Com o desabrochar de suas boas qualidades, Emma
está finalmente pronta para unir-se ao seu verdadeiro amor.
RENATA COLASANTE
é graduada em Letras pela Universidade Metodista de
Piracicaba (2000). Possui mestrado e doutorado em Estudos Linguísticos e
Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo, tendo dedicado suas
pesquisas na pós-graduação aos romances e cartas de Jane Austen. Foi
professora universitária de Literatura Inglesa por 20 anos e hoje atua
profissionalmente como tradutora.
1
. Tradução livre nossa do original em inglês: “I could not sit seriously down
to write a serious Romance under any other motive than to save my Life, & if
it were indispensable for me to keep it up & never relax into laughing at
myself or other people, I am sure I should be hung before I had finished the
first Chapter. — No — I must keep to my own style & go on in my own Way;
And though I may never succeed again in that, I am convinced that I should
totally fail in any other.” (AUSTEN; LE FAYE, 2011, p. 326).
2
. Tradução livre nossa do original em inglês: “three or four Families in a
Country Village is the very thing to work on” (AUSTEN; LE FAYE, 2011, p.
287).
3
. As datas dessas obras são aproximadas.
4
. Tradução livre nossa do original em inglês: “I am going to take a heroine
whom no one but myself will much like.” (AUSTEN-LEIGH, J. E., 1882
)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A933e
Austen, Jane
Emma / Jane Austen ; ilustrações por Brunna Mancuso ; tradução por Isadora
Prospero. – Rio de Janeiro : Antofágica, 2022.
Formato: e-book
ISBN: 978-65-86490-75-6
Antofágica
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1a
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