Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Emma Bovary toma para si as atenções da narrativa e nos faz compreender a razão do
título da obra levar o seu nome. Se na primeira parte nós não sabemos nada sobre sua
personalidade, tendo em vista que nem ao menos nos fora dada a oportunidade de
presenciar a notícia do pedido de casamento durante a conversa com seu pai, nas
partes subsequentes ela nos é praticamente entregue em uma bandeja de prata um
tanto quanto caótica.
“Quando fez treze anos, seu pai levou-a pessoalmente à cidade, para interná-la
no convento. Hospedaram-se num albergue no bairro Saint-Gervais 25 onde
tiveram, ao jantar, pratos pintados, que representavam a história da Srta. de
La Vallière. Todas as explicações sob a forma de legendas, cortadas cá e lá
pelos arranhões das facas, glorificavam a religião, as delicadezas do coração e
as pompas da Corte.”
Nesta apresentação da tenra juventude de Emma, nos é revelado que a moça havia
freqüentado o convento. E o primeiro sutil incômodo ao leitor se faz perante a
descrição dos pratos usados no jantar. As legendas das artes que adornavam a louça
glorificavam a religião, as delicadezas do coração e as pompas da Corte contribuíam para uma
idealização (desta vez por parte da sociedade) da Igreja, do comportamento feminino e da
burguesia, que certamente foi sendo desconstruída ao longo da narrativa e incitando a
escandalização perante aos costumes da época.
No entanto, apesar das críticas sociais explícitas, a parte mais intrigante do capítulo VI é a
relação da própria Emma com o convento e suas figuras. Seria de se esperar que uma moça
romântica e sonhadora desde tão cedo não ficasse muito satisfeita em enclausurar-se em um
convento, seguindo as normas castas de um ambiente religioso e impedida pelos ideais
conservadores de ceder aos seus desejos, seja em mente, seja em carne. Mas não é isso que
acontece, e podemos comprovar no início do terceiro parágrafo.
“Longe de aborrecer-se, a princípio, no convento, ela comprazia-se na
companhia das irmãs que para diverti-la a conduziam à capela onde se
penetrava, vindo do refeitório, por um longo corredor.”
É quando nos é apresentado um novo fato, uma nova visão dessa resignação.
“Vivendo, pois, sem nunca sair da tépida atmosfera das aulas e entre aquelas
mulheres de tez branca, com o terço e sua cruz de cobre, ela entorpeceu-se
docemente ao langor místico que se exala dos perfumes do altar, do frescor das
pias de água benta ou do reflexo dos círios.”
De primeiro momento, fica claro o fascínio de Emma pelo ambiente. Sua relação com
as formas e cores ao seu redor, a tez branca das mulheres, o terço e a cruz de cobre, e
com as experiências sensoriais, os perfumes do altar, o frescor das pias de água benta
e o reflexo dos círios, nos dá uma ideia de que essa fase de sua vida é, provavelmente,
a consolidação dessa personalidade idealizadora. Também, nos mostra que essa
idealização é de certa forma flexível, e transcende os limites carnais.
O fascínio de Emma pela perfeição implicada através da figura de Jesus Cristo lhe
tocou a alma. O gesto de sacrifício, de acordo com as escrituras, é a maior das provas
de amor, e a Emma percebeu isso, tanto que fazia tentativas de mortificação na ânsia
de retribuir. Essa relação sugere que talvez esta tenha sido o estopim para que a moça
começasse a procurar sempre por mais entre os mortais. Afinal, a religião lhe alcançou
a alma e o espírito e só iria até aí. Mas e quanto à carne? Aos desejos do seu coração?
O divino era perfeito, então deveria procurar pela perfeição também no mundo
terreno.
Apesar das atitudes pouco louváveis da personagem ao longo da obra, percebe-se que
há certo equilíbrio entre caráter e condições. Uma menina simples do campo que
moldou seu modo de ver o mundo a partir dos romances que lia. Histórias que sempre
se mostravam mil vezes mais interessantes que a sua própria e que por vezes
prometiam felicidade eterna com o casamento e a constituição de uma família. Uma
mulher frustrada, decepcionada com a vida de casada e com o seu próprio núcleo
familiar.
“Aquele espírito positivo em meio a seus entusiasmos, que amara a igreja pelas
flores, a música pelas palavras das romanças e a literatura por suas excitações
passionais, insurgia-se diante dos mistérios da fé, assim como se irritava ainda
mais contra a disciplina que era algo de antipático à sua constituição. Quando
seu pai a retirou do internato a ninguém desagradou sua partida. A superiora
pensava mesmo que ela se tornara, nos últimos tempos, pouco reverente para
com a comunidade.”
Fora embora do convento, voltou para o campo. Quando acostumou novamente com
a vida no campo, sentiu falta do convento. O capítulo VI encerra-se com um parágrafo
marcante, o qual demonstra a posição de mulher infeliz assumida por Emma,
injustiçada, com ares de vitimismo – até a chegada de Charles Bovary.
Este último trecho traduz perfeitamente a relação de Emma com o mundo, e nos dá
um panorama de como e por quais motivos a personagem conduz a sua trajetória até
seu trágico destino.
Para sustentar esta tese por meio da visão da Emma, Flaubert se utiliza de contrastes.
O contraste entre a expectativa (livros) e a realidade, entre a vida no campo (calmaria)
e a vida na cidade (agitação), o contraste entre o marido Charles Bovary (monótono) e
os outros homens (emocionantes). Também faz-se notar o fato de que o narrador da
história apresenta certa flexibilidade narrativa. É como se este dançasse por entre as
personagens, explicitando os pensamentos e ações que julga ser relevante a cada
momento da mesma forma que os oculta propositalmente, como pode-se notar pelo
seu afastamento durante a conversa de Emma com o pai acerca do casamento e com a
exposição da opinião do Rodolphe quanto aos presentes dados pela mesma. Também
há momentos em que ele enuncia seus próprios pensamentos sobre determinada
situação. Este comportamento colabora para que, durante a leitura, mudemos
constantemente de opinião sobre a figura de madame Bovary, alternando
frequentemente entre a indignação e a pena.
Outro artifício apresentado para instigar o choque no leitor, especialmente os da
época, é o fato de que há certa inversão de papéis no comportamento das
personagens. Por diversas vezes, Emma Bovary se sobressai perante o marido Charles
Bovary para tomar decisões. É ela quem escolhe o hotel para hospedagem, onde e
como os passeios e encontros serão feitos. Mais do que dentro da relação, Emma
Bovary toma as rédeas de seu destino. Ela ouve seus desejos e as suas necessidades, e
toma as próprias decisões para saciá-los; sendo estas moralmente corretas ou não.
Tanto ela passa esta posição de auto-suficiência e independência que o seu próprio
suicídio torna-se uma comprovação. Ela não aceita a possibilidade de admitir o que fez
ao próprio marido, então não vê outra saída para lidar com as dívidas que ela mesma
criou que não a própria morte.
Madame Bovary é e sempre será uma obra polêmica, seja pelo contexto histórico
contrastante com o seu enredo, seja por expor de forma crua e direta as nuances da
humanidade que os grandes heróis românticos não tem, ou melhor, fingem não
possuir.