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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS
Introdução aos Estudos Literários – Professor Samuel Titan Jr.

Lívia Ferreira de Paula


Nº USP 13652520

Análise Literária de Madame Bovary – Gustave Flaubert

Quando analisamos o contexto histórico do lançamento de Madame Bovary e nos


colocamos no lugar dos seus receptores, é fácil entender o motivo que levou os
leitores e a sociedade da época a reagirem com tamanho espanto, escandalizados com
a proposta de Gustave Flaubert ao apresentar sua respectiva obra.

Madame Bovary se inicia com um panorama inicial da vida de Charles Bovary,


acompanhando a sua trajetória desde os tempos de estudante. Muito quieto e sério,
sua trajetória de vida é marcada pela mediocridade. Um homem mediano, com uma
vida igualmente desinteressante. Seu único atrativo, talvez, fosse o fato de ser médico,
e mesmo esta alcunha lhe fora concedida sem grandes méritos. Foi esse cargo que o
levou a conhecer Emma Rouault, durante o atendimento e acompanhamento de um
fazendeiro local. Acostumado com a figura caquética de sua esposa, Charles foi
construindo, desde a primeira visita, certa admiração pela jovem Emma, moça
atraente de belos olhos castanhos. Então, quando sua esposa falece, o viúvo não
enfim, levemente pressionado pelo pai de Emma, pede a mão da jovem Emma em
casamento. E é no final da narrativa deste casamento, adentrando na vida do casal,
que o narrador praticamente descarta o acompanhamento acerca da personagem
Charles Bovary e nos apresenta uma nova perspectiva: a perspectiva de Emma, agora,
Bovary.

Emma Bovary toma para si as atenções da narrativa e nos faz compreender a razão do
título da obra levar o seu nome. Se na primeira parte nós não sabemos nada sobre sua
personalidade, tendo em vista que nem ao menos nos fora dada a oportunidade de
presenciar a notícia do pedido de casamento durante a conversa com seu pai, nas
partes subsequentes ela nos é praticamente entregue em uma bandeja de prata um
tanto quanto caótica.

A personalidade intrigante de Emma é a principal polêmica da obra, e nos é


apresentada, de forma a nos espantar sutilmente, tal qual uma alfinetada na ponta do
dedo, no final do capítulo V com um breve parágrafo reflexivo.
“Antes de casar, ela julgara ter amor; mas como a felicidade que deveria ter
resultado daquele amor não viera, ela deveria ter-se enganado, pensava. E
Emma procurava saber o que se entendia exatamente, na vida, pelas palavras
felicidade, paixão, embriaguês que lhe haviam parecido tão belas nos livros”

Emma Bovary é uma personagem, acima de tudo, idealizadora. Esse traço de


personalidade não se aplica somente à idealização do amor. Ela idealizava a vida em
um contexto geral; seu casamento, a casa onde morava, o comportamento do marido,
a construção da família (daí sua decepção pelo nascimento de Berta, que pelas
idealizações da mãe, deveria ter sido um menino) e todas as demais noções cotidianas
ao seu redor. No entanto, a sua reação perante as adversidades opostas àquilo que ela
planejara, sugere também uma personalidade amarga, egocêntrica, imatura e
extremamente ambiciosa.

Um dos pontos mais interessantes na obra, e um dos mais polêmicos, é a relação de


Emma com a Igreja. Claro, em 1857 qualquer referência ao clero devia ser muito bem
elaborada e nem um pouco contrária à perfeição imaculada de uma entidade
amplamente respeitada. Flaubert se preocupou muito pouco com estes aspectos ao
elaborar o capítulo VI (bem como diversos outros trechos ao longo da obra).

“Quando fez treze anos, seu pai levou-a pessoalmente à cidade, para interná-la
no convento. Hospedaram-se num albergue no bairro Saint-Gervais 25 onde
tiveram, ao jantar, pratos pintados, que representavam a história da Srta. de
La Vallière. Todas as explicações sob a forma de legendas, cortadas cá e lá
pelos arranhões das facas, glorificavam a religião, as delicadezas do coração e
as pompas da Corte.”

Nesta apresentação da tenra juventude de Emma, nos é revelado que a moça havia
freqüentado o convento. E o primeiro sutil incômodo ao leitor se faz perante a
descrição dos pratos usados no jantar. As legendas das artes que adornavam a louça
glorificavam a religião, as delicadezas do coração e as pompas da Corte contribuíam para uma
idealização (desta vez por parte da sociedade) da Igreja, do comportamento feminino e da
burguesia, que certamente foi sendo desconstruída ao longo da narrativa e incitando a
escandalização perante aos costumes da época.

No entanto, apesar das críticas sociais explícitas, a parte mais intrigante do capítulo VI é a
relação da própria Emma com o convento e suas figuras. Seria de se esperar que uma moça
romântica e sonhadora desde tão cedo não ficasse muito satisfeita em enclausurar-se em um
convento, seguindo as normas castas de um ambiente religioso e impedida pelos ideais
conservadores de ceder aos seus desejos, seja em mente, seja em carne. Mas não é isso que
acontece, e podemos comprovar no início do terceiro parágrafo.
“Longe de aborrecer-se, a princípio, no convento, ela comprazia-se na
companhia das irmãs que para diverti-la a conduziam à capela onde se
penetrava, vindo do refeitório, por um longo corredor.”

É quando nos é apresentado um novo fato, uma nova visão dessa resignação.

“Vivendo, pois, sem nunca sair da tépida atmosfera das aulas e entre aquelas
mulheres de tez branca, com o terço e sua cruz de cobre, ela entorpeceu-se
docemente ao langor místico que se exala dos perfumes do altar, do frescor das
pias de água benta ou do reflexo dos círios.”

De primeiro momento, fica claro o fascínio de Emma pelo ambiente. Sua relação com
as formas e cores ao seu redor, a tez branca das mulheres, o terço e a cruz de cobre, e
com as experiências sensoriais, os perfumes do altar, o frescor das pias de água benta
e o reflexo dos círios, nos dá uma ideia de que essa fase de sua vida é, provavelmente,
a consolidação dessa personalidade idealizadora. Também, nos mostra que essa
idealização é de certa forma flexível, e transcende os limites carnais.

“Em lugar de acompanhar a missa, olhava em seu livro as vinhetas piedosas


debruadas de azul e amava a ovelha doente, o sagrado coração trespassado de
flechas agudas ou o pobre Jesus que cai, caminhando, sobre sua cruz. Tentou,
por mortificação, permanecer um dia inteiro sem comer. Procurava em sua
cabeça alguma promessa que pudesse cumprir. Quando ia confessar-se,
inventava pequenos pecados a fim de ficar lá mais tempo, de joelhos na
sombra, de mãos juntas, com o rosto na grade sob o murmúrio do padre. As
comparações de noivo, de esposo, de amante celeste e de casamento eterno
que se repetem nos sermões provocavam-lhe no fundo da alma doçuras
inesperadas.”

O fascínio de Emma pela perfeição implicada através da figura de Jesus Cristo lhe
tocou a alma. O gesto de sacrifício, de acordo com as escrituras, é a maior das provas
de amor, e a Emma percebeu isso, tanto que fazia tentativas de mortificação na ânsia
de retribuir. Essa relação sugere que talvez esta tenha sido o estopim para que a moça
começasse a procurar sempre por mais entre os mortais. Afinal, a religião lhe alcançou
a alma e o espírito e só iria até aí. Mas e quanto à carne? Aos desejos do seu coração?
O divino era perfeito, então deveria procurar pela perfeição também no mundo
terreno.

O relacionamento da jovem senhorita Rouault com a perfeição divina e a sua pré-


disposição a uma personalidade ácida contribuíram, e muito, para as ações e
sentimentos da adulta madame Bovary. Não fora algo despertado pelo casamento ou
por Charles Bovary propriamente dito. Ainda no capítulo VI, vemos:
“Precisava retirar das coisas uma espécie de vantagem pessoal; e rejeitava
como inútil tudo o que não contribuísse ao consumo imediato de seu coração,
pois seu temperamento era mais sentimental do que artista e ela procurava
emoções e não paisagens.”

Estes sentimentos foram cultivados por anos de leitura de romances, intensificados no


convento com a aparição da solteirona, que providenciava livros com estas temáticas à
moça. Livros que consolidaram ainda mais a idealização de um homem perfeito, um
relacionamento perfeito, uma vida perfeita.

“Eram somente amores, amantes, senhoras perseguidas que desmaiavam em


pavilhões solitários, postilhões assassinados em todas as pousadas, cavalos
que eram mortos em todas as páginas, florestas sombrias, tumultos do
coração, promessas, soluços, lágrimas e beijos, barcos ao luar, rouxinóis nos
arvoredos, cavalheiros corajosos como leões, doces como cordeiros, virtuosos
como ninguém pode ser, sempre bem vestidos e que choram como urnas.”

Ainda, idealizava a si mesma, amparada pelas diversas heroínas de leituras históricas.


Mulheres fortes, admiradas pelas suas virtudes, tais como Mary Stuart, Joana d’Arc,
Heloise, Agnès Sorel, Ferronnière e Clémence Isaure. Um ponto curioso, no entanto,
mas que nos traz certo sentido à trama, é que estas mesmas mulheres possuem um
traço em comum, citado no trecho como “mulheres ilustres e infelizes”. A própria
Emma se identifica como uma mulher ilustre, que merece mais do que lhe é oferecido,
e infeliz, por ter uma vida monótona e tediosa, que não compreende suas
expectativas.

Apesar das atitudes pouco louváveis da personagem ao longo da obra, percebe-se que
há certo equilíbrio entre caráter e condições. Uma menina simples do campo que
moldou seu modo de ver o mundo a partir dos romances que lia. Histórias que sempre
se mostravam mil vezes mais interessantes que a sua própria e que por vezes
prometiam felicidade eterna com o casamento e a constituição de uma família. Uma
mulher frustrada, decepcionada com a vida de casada e com o seu próprio núcleo
familiar.

Finalmente, depois da morte da mãe e de certos caprichos atendidos pelo pai, a


personalidade final de Emma, personalidade esta que se seguirá até o final da trama,
se pronuncia contra a realidade daquele momento.

“Aquele espírito positivo em meio a seus entusiasmos, que amara a igreja pelas
flores, a música pelas palavras das romanças e a literatura por suas excitações
passionais, insurgia-se diante dos mistérios da fé, assim como se irritava ainda
mais contra a disciplina que era algo de antipático à sua constituição. Quando
seu pai a retirou do internato a ninguém desagradou sua partida. A superiora
pensava mesmo que ela se tornara, nos últimos tempos, pouco reverente para
com a comunidade.”

A construção da personagem Emma consolidou-se, de fato. Uma personagem


ambiciosa, que jamais se contentava com seu atual estado e sempre almejava o
diferente, o melhor, entediava-se rapidamente com o rotineiro.

Fora embora do convento, voltou para o campo. Quando acostumou novamente com
a vida no campo, sentiu falta do convento. O capítulo VI encerra-se com um parágrafo
marcante, o qual demonstra a posição de mulher infeliz assumida por Emma,
injustiçada, com ares de vitimismo – até a chegada de Charles Bovary.

“Porém, a ansiedade de um novo estado ou talvez a excitação causada pela


presença daquele homem bastara para fazer-lhe acreditar que possuía, enfim,
a paixão maravilhosa que até então era considerada como um grande pássaro
de plumagem rósea planando no esplendor dos céus poéticos; — e não podia
imaginar, agora, que aquela calma em que vivia fosse a felicidade com que
sonhara.”

Este último trecho traduz perfeitamente a relação de Emma com o mundo, e nos dá
um panorama de como e por quais motivos a personagem conduz a sua trajetória até
seu trágico destino.

No entanto, apesar de ser uma personagem perfeitamente suscetível às críticas, nos


faz perceber um aspecto frágil do ser humano. O quanto somos sensíveis à monotonia,
o quão longe podemos ir para suprir as nossas necessidades e o quão egoístas
podemos ser para garantir o próprio conforto.

Para sustentar esta tese por meio da visão da Emma, Flaubert se utiliza de contrastes.
O contraste entre a expectativa (livros) e a realidade, entre a vida no campo (calmaria)
e a vida na cidade (agitação), o contraste entre o marido Charles Bovary (monótono) e
os outros homens (emocionantes). Também faz-se notar o fato de que o narrador da
história apresenta certa flexibilidade narrativa. É como se este dançasse por entre as
personagens, explicitando os pensamentos e ações que julga ser relevante a cada
momento da mesma forma que os oculta propositalmente, como pode-se notar pelo
seu afastamento durante a conversa de Emma com o pai acerca do casamento e com a
exposição da opinião do Rodolphe quanto aos presentes dados pela mesma. Também
há momentos em que ele enuncia seus próprios pensamentos sobre determinada
situação. Este comportamento colabora para que, durante a leitura, mudemos
constantemente de opinião sobre a figura de madame Bovary, alternando
frequentemente entre a indignação e a pena.
Outro artifício apresentado para instigar o choque no leitor, especialmente os da
época, é o fato de que há certa inversão de papéis no comportamento das
personagens. Por diversas vezes, Emma Bovary se sobressai perante o marido Charles
Bovary para tomar decisões. É ela quem escolhe o hotel para hospedagem, onde e
como os passeios e encontros serão feitos. Mais do que dentro da relação, Emma
Bovary toma as rédeas de seu destino. Ela ouve seus desejos e as suas necessidades, e
toma as próprias decisões para saciá-los; sendo estas moralmente corretas ou não.
Tanto ela passa esta posição de auto-suficiência e independência que o seu próprio
suicídio torna-se uma comprovação. Ela não aceita a possibilidade de admitir o que fez
ao próprio marido, então não vê outra saída para lidar com as dívidas que ela mesma
criou que não a própria morte.

Madame Bovary é e sempre será uma obra polêmica, seja pelo contexto histórico
contrastante com o seu enredo, seja por expor de forma crua e direta as nuances da
humanidade que os grandes heróis românticos não tem, ou melhor, fingem não
possuir.

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