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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA

Maria Clara Silva Araujo Souza


Nº usp: 13649092
Período: Matutino (1º horário - FLT0124-202-2022)

Emma em Tostes:
As promessas do século XIX em Madame Bovary

Trabalho de aproveitamento apresen-


tado à disciplina de Introdução aos
Estudos Literários II, ministrada pelo
professor Samuel Titan Jr., para obten-
da nota semestral.

São Paulo
Dezembro, 2022
EMMA EM TOSTES: AS PROMESSAS DO SÉCULO XIX EM MADAME BOVARY
Maria Clara Silva Araujo Souza, 13649092
Madame Bovary: Costumes de província ou Madame Bovary: Moeurs de province, o
romance francês do século XIX de Gustave Flaubert, introduz o tema do mundo provinciano
em seu subtítulo – Moeurs de province – e a personagem, Madame Bovary, é posta em
primeira instância no título do romance. A província e Emma Bovary são os protagonistas do
romance de Flaubert que levam ao desenvolvimento de vários fios que se entrelaçam para
formar a trama romanesca. Nesse universo provinciano e sem grandes acontecimentos, a
heroína do romance é apresentada no capítulo 2, como a terceira Madame Bovary: não a
primeira, que é a mãe de Charles Bovary, muito menos a segunda, sua falecida esposa.
Cabe pontuar que o gênero do romance, por definição, apresenta um caráter
biográfico e um apetite enciclopédico ao se debruçar sobre um ambiente e desejar abordá-lo
em sua totalidade, como é o caso da província de Madame Bovary. A gênese do gênero é
datada a partir da publicação da primeira e da segunda parte de Dom Quixote de la Mancha.
A obra de Cervantes evidencia a zona de contato (BAKHTIN, 1998) com que o romance
trabalha, isto é, os acontecimentos narrados estão localizados no universo espacial, temporal
e linguístico próximo, assim como as discussões éticas e morais. Comparativamente, o
romance se opõe à epopeia, que está preocupada com o passado remoto – por vezes o tempo
mitológico –; no romance, essa distância é encurtada. Em Dom Quixote, o protagonista é um
pequeno fidalgo que idealiza romances de cavalaria, porém, é constantemente aterrado na
realidade por seu companheiro de viagem, Sancho Pança. Verifica-se similaridade com
Madame Bovary no que tange o conflito entre a concepção da personagem principal e a
perspectiva do mundo real, além disso, os traços biográficos e enciclopédicos anteriormente
citados ocorrem, de forma geral, em uma pequena cidade, com um protagonista tão pequeno
e insignificante quanto, em um tempo próximo ao leitor e sem a elevação da linguagem.
Madame Bovary: Costumes de província, sob essa perspectiva, pode ser entendida
como uma biografia da protagonista, Emma, que adota a província como espaço de
desenvolvimento dos fatos narrados. O romance é, em certa medida, mundano, uma vez que
trata de assuntos do mundo, não mais de temas divinos ou inspirados pela Musa como os
poemas épicos de Homero. Ainda contrapondo esses gêneros, é evidente que o percurso épico
demonstra um sistema de valores e os reafirma, enquanto as ações das personagens
romanescas não tem relação com valores éticos exemplares e são passíveis de
questionamentos. É justamente por isso que Emma Bovary é vista de forma muito ambígua
pelos leitores com o passar do tempo, para muitos, uma personagem desprezível, para outros,
como representativa da desconstrução da imagem do feminino no século XIX1.
Aventura romanesca é, inevitavelmente, a história do fracasso do protagonista:
Madame Bovary consiste na história de uma mulher com ambições românticas e eróticas que
são frustradas no mundo real, contrapondo a ilusão à realidade. Um universo de valores
subjetivos, desse modo, é exposto a partir das personagens para ilustrar o desencontro entre o
herói (ou heroína, no caso de Emma) e o mundo real. Os leitores, portanto, assumem a
posição de espectadores da decepção. A estrutura linear é abalada pela forma geral da
aventura romanesca, porque o elemento de tentativa e fracasso é adicionado e o desejo de
progressão é reconduzido constantemente ao ponto zero. Nessa perspectiva, visualiza-se no
romance a promessa como movimento inicial e a demonstração narrativa de como o mundo
não sustenta os seus convites, passível à decepção do protagonista.
Nesse ínterim, por se tratar de um romance, a essência de Madame Bovary é
constituída a partir de uma série de episódios que dialogam entre si e possibilitam a totalidade
da narrativa. Apesar de não se esgotar em uma ou duas cenas, o recorte do capítulo 5 da
primeira parte do romance (p. 42) possibilita uma visão panorâmica do desenvolvimento das
linhas de força da obra em questão. Nesse episódio, Emma e Charles, recém-casados, chegam
a Tostes e são expostas as primeiras impressões de Emma ao ambiente. Destaca-se o primeiro
parágrafo do capítulo para uma análise mais atenta:
A fachada de tijolos situava-se exatamente no alimento da rua ou,
antes, da estrada. (...) à direita havia a sala, isto é, o aposento onde se
comia e vivia. (...) Do outro lado do corredor achava-se o consultório de
Charles, pequena peça de uns seis passos de largura, com uma mesa, três
cadeiras e a poltrona da escrivaninha. (...) Os tomos do Dictionnaire des
sciences medicales, não cortados, (...). pátio onde se encontrava a
estrebaria, uma grande pela em mau estado que possuía um forno e que
servia agora de depósito (...) (p.42)
Aquilo que se apresenta aparentemente como uma descrição da moradia dos Bovary,
após uma leitura pormenorizada, possibilita a percepção de determinado juízo de valor ditado
pelas perspectivas de uma das personagens presentes que guia todo o romance. Constata-se
uma quebra de expectativas da protagonista pela construção narrativa na descrição do
ambiente: uma casa na beira da estrada que, em vez de uma sala, possui um local onde “se
comia e se vivia”; um relógio com a cabeça de Hipócrates enfeita o recinto; o consultório de
1
Há linhas de pesquisa que adotam o arquétipo de Emma Bovary em contraposição à mulher
idealizada pela sociedade francesa, algumas referências estarão na bibliografia. Nesse sentido,
interliga-se uma visão feminista ao romance de Gustave Flaubert.
Charles é, na verdade, do tamanho de seis passos de largura, com uma mesa, três cadeiras e
uma escrivaninha; os livros sequer têm seu tomos cortados, indicando o espiríto pouco
intelectual do marido; o cheiro de refogado penetra as paredes assim como se escuta os
pacientes da cozinha. Nota-se uma oposição entre a grandeza que aquele ambiente poderia
apresentar – ou melhor, o que Emma esperava que fosse – e o que de fato é.
Os recursos narrativos grifados buscam demarcar uma espécie de retorno ao ponto de
partida, isto é, ocorre uma progressão e logo em seguida uma quebra desta pela descrição
frustrante do que antes era idealizado. Outro caso nesse mesmo capítulo está no fim do §4:
“Enfim, seu marido, sabendo que ela gostava de passear de carro, encontrou um pequeno boc
de segunda mão que (...) chegava-se a assemelhar-se quase a um tílburi.” (p. 43) Apesar das
melhorias possíveis de realizar no boc, ele apenas se aproximava de um tílburi, o objeto de
desejo real e idealizado.
Essa construção narrativa marca, sobretudo, o ponto de vista adotado pelo narrador: o
de Emma. Dessa forma, a construção da própria protagonista é intermediada por aquilo que o
leitor depreende a partir da adoção do seu ponto de vista na continuidade do romance.
Inicialmente, pouco se sabe sobre Emma, apenas que foi interna no colégio de Rouen, porém,
à medida que a narrativa avança, o mundo é apresentado pelos olhos dessa leitora de
literatura sentimental. As promessas do século XIX às mulheres – o casamento por amor e a
felicidade conjugal – estão no horizonte de Emma Bovary e vão guiar suas ações e
pensamentos no decorrer do romance, como é o caso da cena da chegada do casal a Tostes.
Há um conflito na ficção quanto a presença do autor e o ponto vista que é estabelecido
dentro da história. O foco narrativo, no romance, pode se dar por intermédio das lentes de um
ou de várias das personagens, definido como onisciência seletiva múltipla. (FRIEDMAN,
2002). A modernidade dá margem para o desenvolvimento de romances nos quais as
impressões das personagens são focalizadas e, em Madame Bovary, Flaubert decide pelo
apagamento de suas impressões pessoais, julgamentos e comentários.
Ainda que Flaubert se aproxime de Balzac – o autor de A Comédia Humana (La
comédie humaine) – em termos de narrativas sobre eventos cotidianos de uma burguesia
provinciana submersos a um determinado contexto, os comentários do narrador balzaquiano
são de tom moralizante e há uma aproximação entre o leitor e as personagens como, por
exemplo, na seguinte passagem das páginas iniciais de O Pai Goriot:
[...] Assim farão vocês, vocês que seguram este livro com uma mão
branca, que afundam numa poltrona macia dizendo a si mesmos: talvez isto
me divirta. Depois de ler os secretos infortúnios do pai Goriot, jantarão com
apetite, debitando sua insensibilidade ao autor, taxando-o de exagerado,
acusando-o de poesia. Ah! Pois fiquem sabendo: este drama não é uma
ficção, nem um romance. All is true, ele é tão verdadeiro que todos podem
reconhecer seus elementos em si mesmos, talvez em seu coração. (p.18)
Assim como no capítulo 5 da primeira parte de Madame Bovary, no parágrafo que
sucede essa espécie de conversa com o leitor em Pai Goriot é feita uma descrição relativa ao
ambiente que a história se passa, contudo, diferente do romance flaubertiano, Balzac realiza
uma descrição analítica e guiada pelo narrador, emitindo comentários como “Nenhum bairro
de Paris é mais horrível, nem, digamos, mais desconhecido.”(p. 19). Gustave Flaubert, por
sua vez, opta por não emitir opinião sobre os acontecimentos, seu papel é limitado aos
eventos, pois tem como base a confiança na verdade da linguagem (AUERBACH, 2002). Isso
fica evidente no capítulo 5 da primeira parte, uma vez que as impressões de Emma são o que
direcionam o aparecimento do cenário e das outras personagens, tanto que o leitor conhece o
andar de cima da residência no §3, apenas quando “Emma subiu para os quartos” (p. 42).
Assim, Flaubert está limitado pela linguagem e é fiel a ela de modo que suas impressões são
apagadas do romance dando destaque à personagem principal.
Embora o romance seja narrado na 3º pessoa, o princípio épico da objetividade é
deixado de lado na narrativa romanesca. Isso, tradicionalmente, começa em Dom Quixote,
pela representação do mundo desencantado, sendo aprofundado por Flaubert em Madame
Bovary por intermédio reflexão do desencantamento de Emma perante o mundo provinciano,
pequeno e insuficiente para cumprir suas expectativas. Sendo assim, o romance, por sua falta
de objetividade, perde para os meios da indústria cultural e aborda aquilo que o relato não
consegue dar conta (ADORNO, 2003). Ainda, segundo Adorno, o romance tradicional (e,
portanto, Madame Bovary) tem um caráter de palco italiano do teatro burguês, ou seja, utiliza
da técnica da ilusão pela qual “o narrador ergue uma cortina e o leitor deve participar do que
acontece, como se estivesse presente de carne e osso”.
A partir disso, a exibição da casa é guiada por Emma. Retomando o §3 do capítulo em
questão, o leitor, como se fosse um espectador de uma peça, assiste a entrada de Emma pelo
recinto, sua observação dos detalhes do quarto conjugal, a “cama de acaju uma alcoba de
cortinado vermelho” (p. 42), a caixa de conchas sobre a cômoda e, mais importante, um
“jarro de buquê de flores de laranjeira, amarrado com fitas de cetim branco” (p. 42). Esse
detalhe, que em uma descrição objetiva poderia ser pontuado de forma nua e crua como o
buquê de noiva da falecida esposa de Charles, é um dos elementos que surge na cena e ganha
destaque a medida que toma forma na percepção de Emma, tanto que “Era um buquê de
noiva, o buquê da outra!” (p. 42) é uma passagem do parágrafo que confunde a voz do
narrador com a da protagonista. Nesse momento, é exposto um dos devaneios de Emma ao
ver o buquê da falecida senhora Bovary ainda no jarro.
Ao mesmo tempo em que a personagem se encontra em uma reflexão interna, Charles
é descrito, nos parágrafos seguintes, como feliz e despreocupado com a nova esposa,
diferente dela, está apaixonado. Esse contraste é muito latente nas cenas que há uma
demonstração de carinho entre o casal, a qual é quase sempre unilateral ou Emma força-se a
corresponder. Os sentimentos de indiferença, tédio e desprezo começam a se desenhar nesse
capítulo.
Pontua-se, ainda, que o tempo empregado reforça a subjetividade do foco narrativo. O
modo verbal empregado de forma majoritária no romance é observado também neste
capítulo: o pretérito imperfeito. Isso, em primeira instância, representa o tempo arrastado da
província (MORRETO, 2007). Além disso, cabe salientar que o tempo na narrativa é ditado
pela linguagem e depende dela, sendo necessário considerar, para pensar sobre a influência
do tempo, o ponto de vista e a distância do narrador já discutidos anteriormente. Segundo
Benedito Nunes (1995), o pretérito perfeito, o imperfeito e o mais-que-perfeito, por causa do
distanciamento e o curso livre, implicam uma narração. Por conseguinte, destaca-se que o
tempo da linguagem é distinto do tempo real, ou seja, o mundo narrativo tem sua orientação
centrada no presente verbal. Ainda, o pretérito imperfeito, visto em Madame Bovary salienta
os aspectos de fundo (NUNES, 1995) de modo que o tempo em que se narra e situações de
locução possuem uma relação direta na atribuição do sentido. É evidente, no entanto, que
sendo um romance, Madame Bovary está sujeito a flexibilidade temporal, tanto que nota-se a
presença do pretérito perfeito e mais-que-perfeito no episódio discutido.
Percebe-se, também, que os aspectos relativos à ambientação e ao espaço são cruciais
nesse capítulo por se tratar da introdução tanto de Emma quanto do leitor a casa de Tostes.
Assim, ainda que a moldura aparente ser o foco, não há descritivismo cansativo, uma vez que
se trata de uma ambientação reflexiva, ou seja, guiada pela personagem (DIMAS, 1987). A
ausência de diálogos nessa cena e o gosto pelo discurso indireto no romance de Flaubert
demonstram que há um comprometimento com o ritmo narrativo.
Antes do fim do capítulo, a protagonista percebe que a felicidade prometida não viera
e que os livros que a introduziram a compressão idealizada de felicidade, paixão e
embriaguez romântica não estavam presentes naquele casamento tedioso e provinciano. Ao
passo que o capítulo 5 é o início da desilusão de Emma, o último capítulo da primeira parte
do romance marca decisivamente o descumprimento das promessas do século XIX. A
condução do enredo é linear de modo que o capítulo 9 apresenta Emma após o baile na casa
do Visconde, acontecimento que ela julga como importante em meio ao tédio da província. O
capítulo inicia com os devaneios da protagonista em torno de maravilhas que julga próprias
de um universo distante daquele que vive – a província. Para tanto, Paris surge como um
horizonte em que a felicidade e o Visconde se encontram.
[...] Ele estava em Paris agora: longe! Como era essa Paris?
Que nome imenso! Emma o repetia para si mesma a meia voz, para
sentir prazer; ele soava a seus ouvidos como o sino de uma catedral!
Brilhava a seus olhos até na etiqueta de seus potes de pomada. (p.63)
Diante disso, ela mergulha em uma obsessão por esse quadro parisiense: passeia pela
capital da França com um mapa, assina jornais, conhece novas modas, bons alfaiates e a
cultura, lê Balzac e George Sand a mesa enquanto Charles come e fala consigo, sempre tendo
o Visconde em mente. Emma vive na capital francesa sem nunca ter deixado Tostes e se
afasta cada vez mais da realidade e de tudo que próximo (e provinciano):
Paris, mais vasta que o oceano, cintilava, pois aos olhos de
Emma numa atmosfera vermelha. [...] Quanto ao resto do mundo,
achava-se ele perdido sem um olhar preciso e como se não existisse.
Aliás, mais as coisas eram próximas, mais seu pensamento se
afastava delas; Tudo o que a rodeava imediatamente, campo
entediante, pequenos-burgueses imbecis, mediocridade da existência,
parecia-lhe uma exceção no mundo, um acaso singular em que ela se
achava presa, enquanto do outro lado estendia-se, à perda de vista, a
imensa região das felicidades e das paixões. (p. 64)
Sob essa perspectiva, a noção do enclausuramento no mundo provinciano, algo que
começou a se estabelecer com sua chegada em Tostes, parece se intensificar ao Emma ter
como comparativo o baile. Os sentimentos de Emma de desprezo pela província, pelo marido
e tudo que envolve esse espaço que julga menor e insignificante, são cada vez mais intensos
ao ponto que “Desejava ao mesmo tempo morrer e morar em Paris” (p. 65). A ambição de
Emma contrasta com a comodidade de Charles e a relação matrimonial é visualizada
sobretudo pela perspectiva da Madame Bovary. O desejo da esposa de ter o nome Bovary
“exposto nas livrarias, repetido nos jornais, conhecido por toda França” (p. 66) era visto por
Charles, após lhe contar um episódio de humilhação que a enfurece, como um enaltecimento
de si, mas tudo que Emma sente é vergonha da falta de ambição do marido.
Em termos de espaço, existe uma contraposição entre Tostes e Paris. A ambientação
continua a ser guiada pela perspectiva de Emma e, portanto, quando se trata de Tostes, é tudo
irrelevante e menor, enquanto Paris é idealizada. Isso é similar ao procedimento estético do
capítulo 5 da primeira parte, no qual a idealização entra em conflito com a observação da
protagonista do ambiente: a rua que é uma estrada, a sala como o espaço que se come e se
vive, o “quase tílburi”, entre outros elementos já citados.
A protagonista espera por um acontecimento, porém, como é próprio da província e o
foco do romance é justamente o cotidiano sem muitas ações, nada ocorre. Ela se sente
aborrecida, sufocada, abandona a música, a costura e negligencia a casa. O estado interno de
Emma é cada vez mais deplorável, sua insatisfação com a vida em Tostes é latente e a
situação é apresentada ao leitor por intermédio do estado de alma de Emma, tal qual já foi
debatido acerca da passagem do capítulo 5. É curioso que o ponto culminante da aflição de
Madame Bovary ocorre durante um evento rotineiro e normal: durante as refeições. O
parágrafo que leva Auerbach (2002) a conclusões acerca do estilo de Flaubert e o foco da
cena, tem pouco menos de 10 linhas, enfatiza-se que ao mesmo tempo que o quadro é
apresentado pela visão da protagonista, ela integra esse quadro e situa-se no centro
(AUERBACH, 2002). Por exemplo:
[...] toda a amargura da existência parecia-lhe servida em seu prato e,
com a fumaça do cozido, ela sentia do fundo de sua alma como outras lufadas
de enfadado. Charles comia lentamente; ela mordiscava algumas avelãs ou,
então, apoiada no cotovelo, divertia-se fazendo, com a ponta da faca, alguns
riscos no oleado. (p. 69)
A descrição é gráfica ao mesmo tempo que, linguisticamente – ou seja, por meio dos
recursos narrativos –, a personagem é apresentada. De forma geral, o romance Flaubertiano
utiliza desse modo de narrar e, por isso, estabelecer um paralelo entre o capítulo que introduz
a vida em Tostes e aquele que contém a saída de Emma desse espaço não é difícil, uma vez
que esses episódios estão costurados no tecido da narrativa. Ainda que abandone Tostes ao
fim da primeira parte do romance, a protagonista está imersa numa ilusão inalcançável que só
lhe provoca decepções, por esse motivo, ela irá sempre voltar ao ponto de partida.
O tema do romance não se esgota nesse episódio, como anteriormente mencionado.
Todavia, desenha-se o adultério quase que inevitável da protagonista dado a sua condição de
desespero perante o tedioso casamento com esse – quase – médico sem ambições em uma
casa que fica a beira do que poderia ser uma rua, mas é uma estrada, com um lugar onde se
come e vive – não uma sala – e mais ou menos um tílburi que ganha de presente do marido.
Além disso, outras linhas de força do romance – os devaneios de Emma, sua idealização da
realidade, insatisfação com a vida, o adultério, a oposição entre a cidade grande e a província
– guiam ao final trágico da personagem e da narrativa, que não se termina com sua morte,
entretanto, gira em torno dela.
O estilo de Madame Bovary, embora apresente elementos próprios de Gustave
Flaubert, conversa com o “estilo sério” (MORRETI, 2003) comum a romances europeus do
século XIX. Um ponto importante a ser destacado são os enchimentos necessários se tratando
de um romance sobre acontecimentos cotidianos. Os elementos citados na análise foram
pontuados para compreensão dos fatores que dão sentido e direção ao romance, para tanto,
inúmeras passagens foram deixadas de fora. Isso demonstra uma necessidade de Madame
Bovary: o preenchimento dos espaços vazios com acontecimentos nos quais nada acontece de
fato. Para Emma Bovary, no entanto, esse cotidiano representa tudo que ela mais despreza,
porque é sinal da pequenez do mundo provinciano. Auerbach diz que “Nada ocorre, mas o
nada se tornou alguma coisa grave, obscura, ameaçadora” ao analisar a cena relativa ao
capítulo 9 já citada. Tudo é extremamente prosaico, neutro e compatível com a regularidade
da vida burguesa no século XIX. Há, em vista disso, um desencantamento do universo
narrativo refletido por esse episódios de puro enchimento: páginas e páginas em que
nenhuma ação acontece propriamente dita. Ainda, a ausência de discurso moral sobre a ação
das personagens – sobretudo o adultério de Emma – é fruto do estilo do discurso indireto, que
rendeu a Flaubert um processo, nas palavras do procurador, porque não há no livro um
personagem que possa condenar Emma. Assim, não há, em Madame Bovary, uma função
didática, em que o leitor aprende o que fazer ou não fazer.
Madame Bovary: Costumes de Província apresenta características relativas ao
romance na qualidade de gênero literário e, também, ao desenvolvimento deste na Europa do
século XIX. Destaca-se, para reforçar, as particularidades da narrativa que deixam evidentes
o efeito de Gustave Flaubert para o estilo romanesco. Podem ser elas, especialmente, o ponto
de vista guiado por Emma que se conecta à impessoalidade do narrador e tem influência no
tempo e espaço narrado, assim como no tratamento dos temas centrais do romance. A
antagonia entre o mundo provinciano e as idealizações de Emma, tratada com certo tom de
ironia, anti-romantismo e, ao mesmo tempo, impessoalidade, evidencia o percurso de
desilusão da heroína com as promessas do século XIX. Esse ambiente provinciano estreito e
feito de lugares comuns delimita um romance sobre nada ou quase nada em termos de
acontecimentos. Polêmica ao ponto de ser alvo de um processo, Madame Bovary: Costumes
de província é, portanto, uma obra de ruptura e um clássico da literatura mundial.
Bibliografia
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literatura I. São Paulo, 34, 2003.
AUERBACH, Erich. "Na Mansão de la Mole". In: "Mimesis: a representação da realidade na
literatura ocidental." 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 405-441.
BALZAC, Honoré de. O Pai Goriot. Porto Alegre: L & PM, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance: sobre a metodologia do estudo do romance. In:
Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. BERNADINI, Aurora F. et al.
4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998. p. 397-428.
DIMAS, Antonio. Espaço e romance. 2.ed. São Paulo: Editora ática S.A, 1987.
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico.
São Paulo: Revista USP, (53), 2002, p. 166-182.
NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. 2.ed. São Paulo: Editora ática S.A, 1995.
MORRETI, Franco. O Século Sério. Novos Estudos CEBRAP, v. 65, n. 1, p. 3-33, 2003.
MORRETO, Fúlvia M. L. Madame Bovary: Costumes de província. São Paulo: Editora Nova
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FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary: Costumes de província. São Paulo: Editora Nova
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Visão feminista de Emma Bovary:
DO PRADO, P. F. O ADULTÉRIO COMO POSSIBILIDADE DE ENUNCIAR
FEMINISMOS: PARALELOS ENTRE EMMA BOVARY E MOLLY BLOOM. Línguas
& Letras, [S. l.], v. 15, n. 30, 2014. Disponível em:
https://e-revista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/10393.
LARRIMORE, Whitney Dyann. The social construction of Emma Bovary—behavior and
psychology: A feminist interpretation.
TSCHERNE, Milca; INÁCIO, Alice Meira; ARAÚJO, Aline Bruna Barbosa. "DESEJOS E
CONFLITOS SOCIOCULTURAIS DE EMMA BOVARY: O DISCURSO FEMINISTA
MENIFESTO EM PENSAMENTO." Travessias Interativas 10: 146-162.

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