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Reflexões sobre Meio Sol Amarelo

de Antônio Meurer

Já faz um tempo que venho tentando me desconstruir, em muitos sentidos. Sempre


gostei de ler, e até pouco tempo eu tinha a literatura como um oráculo impenetrável, como se
apenas a leitura de clássicos merecesse a minha atenção (sim eu sei, isso ė bem elitista).
Minha última leitura foi ​Os Miseráveis​, a obra máxima do Victor Hugo, o clássico dos
clássicos (ainda vou fazer uma resenha sobre) e só então, depois de ler aquele calhamaço, me
dei conta que, pra minha vergonha, nunca havia lido uma ficção científica, um livro escrito
por uma mulher...Sabe fiquei pensando em como temos os mesmos referenciais do que é
bom, do que é literatura, arte, enfim. Foi quando no meu aniversário ganhei do meu
namorado, o incrível livro ​Meio Sol Amarelo da Chimamanda Ngozi Adichie. Já havia
ouvido falar sobre ela (trabalhei durante 9 meses numa livraria no centro do Rio) mas
confesso que não tinha a noção do quão incrível ela é, e do que ela representa, acho que
estava muito preocupado com os mesmos ícones, as mesmas leituras clássicas de sempre. E
quando abri as primeiras páginas tive a certeza de que estava diante de uma literatura
completamente diferente de tudo que já tinha lido.
Vamos então a resenha:
O livro, dividido em 4 partes, narra a vida de três personagens distintos, que se
interligam no mesmo conflito: ​Ugwu​, o rapaz simples de uma aldeia, ​Olanna​, a moça rica
filha de uma das famílias mais influentes da Nigéria, e ​Richard​, um jornalista britânico, um
dos únicos personagens brancos, que sonha em escrever um livro sobre o artesanato
nigeriano.
A primeira parte se passa no início dos anos 60. Logo de na primeira página,
conhecemos Ugwu, que acabou de conseguir um emprego para cuidar da casa de Odenigbo,
um professor universitário da cidade de Nsukka. Ugwu é um rapaz muito inocente, que teve
de abandonar a escola muito cedo, e fica fascinado com a montanha de livros na casa de seu
Patrão. Devido uma construção social, quase de castas, ele se colocando numa posição de
inferioridade em relação à Odenigbo e seus amigos, que várias vezes lotam sua sala de estar
para beber e conversar sobre política, vivendo numa bolha academicista e elitista que não
enxerga nada além de suas teorias sociais e suas teses de doutorado .
Depois nos é apresentada Olanna, uma moça linda, muito inteligente, que não entende
muito bem seus privilégios de classe, mesmo namorando Odenigbo, que parece se intitular
revolucionário, e com quem vai morar junto logo no início da trama. Ela tem uma relação
difícil com sua irmã gêmea Kainene, que é o oposto dela; segura de si comandando as várias
empresas da família, mas também sem nenhuma consciência de classe. Usando o poder para
acumular riquezas e conseguir mais contratos milionários de um governo já muito corrupto.
E por fim temos Richard, o jornalista que namora Kainene, e que tem a clássica
síndrome do branco salvador. Embora ele queira muito aprender sobre a cultura local, bem
como o idioma local, e​ le de início acredita conhecer mais a história daquele povo, do que eles
mesmos. Isso fica muito evidente quando numa cena ele vai visitar uma tribo, onde foram
encontrados vasos de corda. Ao conversar com o sacerdote da tribo, ele questiona a
capacidade dos ancestrais de poderem ter técnica o suficiente para fazer aquele vaso. O
racismo estrutural fica muito evidente nas narrativas do ponto de vista de Richard, e todos os
personagens brancos.
E assim a gente tem essas três pessoas, mais Odenigbo e Kainene, que vão formando
uma colcha de retalhos mostrando a vida comum, e até banal, das pessoas em uma Nigéria
pronta para em guerra civil. É aí começa a segunda parte do livro, que se passa no fim do
anos 60, começando com a proclamação da Guerra da Nigéria-Biafra. É surreal, pois nunca
tinha ouvido falar nessa guerra, na escola ou em qualquer lugar. Simplesmente não nos
importamos que há menos de 50 anos, o mundo teve uma das guerras mais cruéis, e com um
dos maiores números de mortos, mais de um milhão, vítimas sobretudo da fome. A guerra
aconteceu pois uma parte da Nigéria, da etnia Ibo, após sofrer uma série de atentados de
outras etnias, resolveu tomar a sua independência, criando assim o estado de Biafra. Porém
não era vantajoso para nenhum país europeu ou os Estados Unidos a ascensão de países
africanos, por isso vão apoiar pesadamente a Nigéria contra a Biafra, que irá, praticamente
dizimar aquela população.
Imagine então todos esse personagens lutando por suas vidas no meio dessa guerra,
entre a fome e a doença. É tudo muito insano pois foi real. Mas um dos grandes méritos da
Chimamanda, é colocar tudo isso em segundo plano, atrás das vidas de cada um dos
personagens. Me incomodou, de início, o modo como a ela vai relatando os horrores da
guerra, tudo tão seco e rápido. Victor Hugo teria escrito duas páginas sobre cada morte,
enquanto ela realiza em um parágrafo. Até pensar que na verdade essa é a intenção do livro.
Normalizamos a violência, e todo o caos que passamos, normalizamos a fome, e a ignorância
como se fossem produtos naturais da humanidade. E não são. Para a grande maioria de nós,
cada morte nas periferias do Brasil, e do mundo é apenas isso, um parágrafo solto e perdido,
que lemos e estamos prontos para continuarmos nossa vida banal.
Dentro da minha vida de privilégios, por seu um homem branco, de classe média,
cada página foi um tapa na cara, um choque de uma realidade, de uma história desconhecida.
Chimamanda com certeza se tornou uma das minhas escritoras favoritas, e com certeza vou
ler mais livros dela, pois percebi, o mundo que existe por aí, mas que continua tão
desconhecido para nós, dentro da nossa visão histórica tão limitada e pré-fabricada pela
Europa e pelos Estados Unidos.

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