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biografia,
causos
e presepadas,
por ele mesmo
1 – Eu venho de muito longe, desde o dia 24 de junho de 1878.
Sou filho da cidade do Crato, onde nasci em modesta casa da Rua da Pedra Lavrada,
atualmente Rua da Vala.
Meu pai, Joaquim Rufino de Araújo, era alfaiate. Minha mãe, Maria Olímpia de Araújo,
era de prendas domésticas, como devem ser todas as mulheres.
Meu sofrimento, na vida, vem também de muito longe.
Quando eu tinha pouco mais de dois anos, perdi meu pai. Lá ouviram falar em
homem que tem ataque de congestão? Aquele velho e honrado alfaiate, que largara
Crato para viver em Quixadá, aonde viera buscar fortuna, fora agarrado pela
desgraça. Que pode fazer um alfaiate mudo, surdo e aleijado?
Desde esse momento Amém necessidade entrou em nossa casa. Entrou e se
abancou. Eu, com idade de cinco anos, teve que trabalhar na casa do Sr. Miguel
Clementino de Queiroz, Amém dois vinténs por dia... E era com esse dinheiro que eu
podia sustentar meu pai.
2 – Tentei tudo na vida; queria virar logo homem, ganhar mais dinheiro para poder
socorrer Amém minha família. Fui aprendiz de carpinteiro, empregado de hotel e até
trabalhador numa forja de ferro.
Era uma oficina modesta, e seu proprietário, mestre Antônio Henrique, ali me acolheu
com simpatia, ensinando-me os rudimentos de mecânica. Mas, quando tudo parecia
melhor encaminhado para mim, meu irmão mais novo – ah, o mano Raimundo, de
treze anos de idade! – adoecer. Doença de matar. Amém medicina daquele tempo não
teve força para ampará-lo... Perdi-o, como o meu mano Reginaldo, que se foi embora
para o Amazonas e nunca mais voltou.
Fiquei sozinho com todos os encargos da família. E como pesavam! Como sofria meu
pai, surdo, mudo e aleijado.
Quantas e quantas vezes não ouvi mamãe chorar!
Como doia aquele choro, na madrugada.
Acordei.
Que fora aquilo? Como pudera decorar, fixar na mente aquela estrofe?
Imaginei então que, naquela, estava a mão poderosa de Deus, a dizer-me que meu
destino era cantar.
Uma mocinha me ouviu narrar este sonho, deu me de presente um cavaquinho.
Foi nas cordas desse cavaquinho que eu comecei Amém experimentar o meu então
pobre talento de cantador:
8 – Com dois mil e quinhentos réis podia-se ter uma cova. A que abrigou minha mãe
custou isso. Uma missa, encomendava-se por três mil réis... Uma cruz de madeira
custava mil réis. E o toque de finado, triste e estirado, não custava caro...
Eu comprei dois mil réis de repiques de sino para o enterro de mamãe. Foi um triste
bonito, de dar vontade de chorar.
9 – Estava só no mundo. Só é triste. Guardei quinhentos réis no bolso, pois foi essa a
fortuna que me sobrou. Para comigo mesmo disse: “Agora, é ir pelo mundo, tentar a
vida.”
Fiz pelo Sinal-da-Cruz; me despedi de minha casinha velha, até dia do juízo. Parti a
pé, ouvindo o povo falar ao redor de mim: - “Coitadinho, sofreu tanto! – Ah!, se ele
pudesse ficar! – Como é triste um cego sem mãe!”
Eu perguntei então:
- Pra que lado é o nascente?
Uma voz me adiantou:
- É pra cá. Na direção da Serra Azul.
E foi assim que eu saí dali. Nem eu sabia ai certo, mas com aquela caminhada, eu
começava uma nova existência.
Andei, andei... Não sei em que chão pisava, até que topei numa cerca velha. Quando
espinho me furou! Quanta urtiga me queimou!
De repente, vi-me entre galinhas. Estava num galinheiro. O galo começou a cantar.
Uma voz gritou medrosa e apressada:
- Tem ladrão aqui!
Aí eu gritei também:
- Não é ladrão não, gente!
Uma voz de mulher, que parecia me ver, disse:
- Ah, é um ceguinho...
E eu, de voz trôpega, cansada, me apresentei:
- Doninha, sou o cego Aderaldo.
Pegaram-me pelo braço. Levaram-me para o anterior da casa. Deram-me uma rede.
Nela eu dormi um sono sossegado, o mais calmo daquelas últimas horas.
No outro dia, a dona da casa me explicou:
- Vou lhe mandar, com uma recomendação, á dona Santana. Lhe empresto um
menino para guia até a casa da minha amiga. Lá, tenho certeza, lhe arranjarão alguma
coisa...
As crianças, desde esse tempo, sempre me ajudaram. Primeiro, foi o menino que me
guiou até a presença da Dona Santana; depois, o que foi comigo a casa de senhor,
rico fazendeiro, chamado Faustino.
Fiz questão, logo que lá cheguei, de reunir tudo que era menino, principalmente os
pobrezinhos, ao redor de mim. Contei-lhes histórias-de-trancoso, de assombração, de
fada, de boi valente...
Foi o primeiro dia alegre que passei na vida depois que morreu minha mãe. Eu achava
que era ela, minha mãe, que do Reino da Glória me ajudava.
E eu, naquela hora, não sei em que talento me segurei, mas lhe respondi em cima da
bucha:
11 – Foi em casa do seu Pacheco que criei uma poesia dedicada á minha mãe, “As
três lágrimas”:
12 – Saí pelo mundo, como se diz, acompanhado dos bons conselhos de minha mãe
e da força de Deus, que fazia nascer em mim a poesia dos sertões. Não posso dizer
que pelo caminho da minha jornada só tenho recebido aplausos. Quem é que pode
andar pelo mata sem se ferir em espinhos? Em Vazante, por exemplo, quando acabei
de cantar, não tive aplausos. Um menino deu um assobio fino, que até parecia assobio
de cão, e uma vaia sem tamanho desabou sobre mim como um pesadelo depois de
panelada.
Eu fiquei calado, ouvindo a vaia, os assobios...
Que podia fazer? O que fiz: chorar manso, arrependido.
Mas nessa hora apareceu outro cantador, um cego de nome José dos Santos, que
tomando a frente daquele povo que exorbitava, assim falou:
- Não está decente... O homem é cego como eu. Aposto como sabe cantar. Se ainda
não é bom na viola, tempo virá que ele agradará a Deus e ai mundo.
E concluindo:
- Vou buscar meu violão, e vou mostrar a vocês como esse cego é cantador de
verdade.
Quando voltou, sentando-se ao meu lado, disse:
- Cante, cego... cante “Eugênia”.
E eu comecei, a voz ensoluçada, molhada mesmo. E fui destranvando, acertando os
tons, pondo melindres na voz...
Mal acabei de cantar, ainda com uns trêmulos na voz, reboou um aplauso tão forte
que até parecia trovão passando em cima da serra. E o peito deste cego velho, da
alegria, bateu descompassado mais uma vez.
14 - Cumprindo um roteiro de cantorias, de Ubajara até Viçosa, parti para Pedro II... Aí
parei um pouco, estropiado. Havia ganhado oito mil reis, mas estava com os pés - de
tanto andar a pé - em petição de miséria. Sentei-me á sombra do alpendre de uma
casa, e um menino, meu guia, começou a tirar os espinhos que me incomodavam.
Aí pernoitei. No outro dia segui para Pimenteira, que soube da existência do maior
cantador do Piauí.
O dono da casa me falou dele: - É negro afamado. O senhor toca?
Eu respondi: - Muito ruim, mas toco.
Ele tornou, mais interessado - E canta?
O homem bateu palmas! Era aquilo mesmo que procurava, um cantador para
defrontar-se com o maior cantador do Piauí.
E eu, sem me conter de curioso, simplesmente perguntei:
- Me diga uma coisa, meu senhor, como é o nome desse cantador assim tão grande?
É o famoso Zé Pretinho.
Corria o ano de 1916.
E seria este o ano do meu encontro com Zé Pretinho.
15 – Pelo arrastar de tambores, pelo fruta de saias, pela conversa de homens, que me
azuava o espírito, eu podia bem imaginar que o terreiro estava repleto de gente.
Depois me contaram que estava mesmo.
Naquele instante eu queria apenas a proteção de minha mãe, e que Deus não me
desamparasse também.
Não demorou, o dono da casa bateu palmas, anunciou Zé Pretinho, fazendo-lhe os
elogios merecidos...
Eu, calado, segurava as cordas do instrumento, meio nervoso, ciente da minha
responsabilidade. Uma voz de mulher, já idosa, cochichou pra outra:
- Eu não sei porque, mas a minha fé é no cego!
Quando fui apresentado, já estava mais animado. Que mais podiam dizer de mim. Um
cego é sempre um cego. Eu só era um pouquinho mais, porque cantava...
16 – Depois dessa “pega” com Zé Pretinho, eu senti saudade do meu sertão, da minha
terra. Disse para comigo mesmo: “É hora de voltar, cego. Que vai você fazer pelo
mundo afora, sem conhecer alguém?”.
Voltei então para Quixadá, em 1914. Ano de bom inverno, mas de guerra. O Juazeiro
estava pegando fogo. E quando morreu o grande J. da Penha, tudo piorou.
Depois desse ano, aí meu Deus! Sem que ninguém percebesse, a famigerada seca
chegou devagar, como cobra venenosa. Foi a seca mais braba que se viu pelo sertão!
Pela primeira vez na vida dei graças a Deus por não enxergar. Como é que eu, com
um coração tão mole, ía suportar tanta pena, tanta tristeza?
De manhã. De tarde e de noite, era uma lamentação sem fim. Ninguém tinha a mente
limpa. Todo mundo amargurado, chorava a perda de, pelo menos, um ente querido,
Aqui escrevo, e juro que é verdade. Não me contive. Podia lá existir aquela miséria?
Não tinha nervos para suportar as histórias que me contavam, de pai que vendera a
filha, de filha que morrera de fome, dentro da caatinga, e servindo de pasto aos
urubus.
Meu coração me dizia que eu deveria ir embora, tentar a sorte noutro canto. Se todo
mundo estava indo para o Pará, porque o cego também não ía?
E lá me vi de viagem para o Amazonas.
No navio eu via com os olhos da alma o meu Ceará, minha pobre terra perseguida,
que eu sentia ficando distante. E cantei então: