Você está na página 1de 84

A Grande

Jornada

Renata Noronha
A Grande
Jornada

Renata Noronha

1
Prefácio

Quem se atreveria ressurgir das cinzas? Nesse livro a resposta se encontra nas primeiras páginas de
uma história nada romântica

Com um único e mais genuíno objetivo de deixar prospector um pouco dessa brasa que queima a
alma daquele que escolheu morrer para renascer, Renata teve tanta sensibilidade em trazer
ressignificados da sua história de vida que certamente se identificar com essa leitura é só o começo
da aventura.

Esse livro talvez seja apenas o primeiro de uma série best-seller daquelas que inspira e emociona.

A Sara desse livro me mostrou exatamente o que sempre vi nos olhos e na alma da Renata. A
essência. E sabemos o processo, para toda essência uma busca da própria identidade, e aí que a
jornada começa…..

Se cabe parabéns pra escritora nesse prefácio, eu diria: VOCÊ É INCRÍVEL!

Se cabe uma pergunta para os leitores dessa obra: VOCÊ ESTA PRONTO?

Daiana Pantaleão

2
Capítulo 1
Numa pequena vila sem nome, no interior da província de Ronamov do Reino de Espéria, vivia Sara,
uma jovem que levava uma vida muito simples. É uma moça bonita de longos cabelos claros, quase
brancos, grandes olhos verdes que tudo observam com a curiosidade comum da idade. Ela sentia,
dentro de seu coração que sua vida está prestes a mudar de uma forma drástica. Mesmo sempre
ouvindo de seus amigos e familiares que é só um desejo por aventuras normal para sua idade, ela
sabia que é mais que isso, que em breve não iria mais passear pelo campo de flores que cerca sua
vila, nem ouviria o canto daqueles pássaros, nem iria mais ao curral comunitário cuidar dos animais,
como fazia todos os dias. Uma chama ardia em seu coração e lhe diz que seu destino em breve
mudará.

Todos ali a consideram uma sonhadora, sempre cantarolando, perdida em seus devaneios. Seu
fascínio pelas plantas, flores, frutos e suas diversas utilidades, o tempo que passa observando o céu,
ou o riacho que forma o lago que abastece a vila com água, o quanto ela se encanta com o fogo da
lareira ou das fogueiras, tudo que desperta o seu interesse traz um julgamento dos que a cercam e é
muito comum ouvir de algumas senhoras mais tradicionais dizerem “Se a Sara não mudar seu jeito
aluado de ser não encontrará casamento…”

Mas Sara não se abalava, ela sabia que sua vida não se resumiria em acordar, cuidar dos animais, da
casa, da roupa e da comida de sua família, como as outras mulheres da vila. Ela não se via como mais
uma a nascer, crescer e morrer ali. Essa certeza veio depois que começou a ter o mesmo sonho todas
as noites: ela se via de frente a um pássaro de fogo gigante e ele obedecia aos seus comandos. Ela
sabia das histórias sobre os ogros, dragões, orcs e dos espíritos das sombras do reino. Já ouvira
muitas vezes como magos e bruxas lutavam contra eles na busca de livrar o reino desses monstros
que a todo custo tentavam dominar os habitantes de Espéria. Porém nas histórias não existiam
pássaros de fogo, mas ela sabia que seu sonho era um sinal de mudanças.

Sua avó, Mariah, temia o que o destino reservava para a menina. Ela mal tinha deixado a infância e
ainda sonhava acordada. Não se concentrava nos afazeres domésticos, nas lições de tecelagem e
culinária, só queria entender como a vida acontecia, fazia perguntas que nenhuma outra jovem fazia
sobre as estações do ano, sobre as plantas e suas utilidades. Ninguém ali tinha as respostas que tanto
buscava, pois todos se preocupavam com sua rotina, 3 seus afazeres e suas vidas simples. Mas Mariah
sabia que aquilo era pouco para sua neta e rogava a Divindade que colocasse os pés de Sara de volta
no chão.

3
No meio do inverno daquele ano chegou a vila a bruxa Gaya, que viera para as festividades
preparatórias para a primavera, A Festa da Entrada da Primavera. Era uma mulher alta de pele e
cabelos mais escuros, olhos amarelados, com uma autoridade e mistério que deixam a todos com um
misto de medo e admiração. Era sabido que quando uma bruxa do Círculo Superior vinha para as
celebrações algo muito especial estava para acontecer. E a vila nunca tinha recebido um membro do
Círculo Superior em suas festividades, sempre um mago ou uma bruxa recém-ordenada é que vinham
a pequena vila esquecida nas profundezas de Ronamov. Ninguém sabia o que esperar de uma visita
tão ilustre.

Todos na vila fizeram de tudo para que a Festa da Entrada da Primavera fosse a melhor de toda a
história para causar uma boa impressão a Gaya. A agitação e ansiedade eram tão grandes que quase
se podia tocá-las no ar. As mulheres teciamos mais lindos tapetes para o altar, buscavam as mais
deliciosas receitas de pães e bolos, os homens procuravam a melhor caça que a floresta pudesse dar,
construíram a mais bela fogueira cerimonial que já se viu na pequena vila. E quando Gaya vinha
inspecionar os preparativos, poucos tinham a coragem de erguer o rosto em direção a ela, mas
ninguém lhe olhava nos olhos.

Em uma das inspeções Sara esteve presente, estava temerosa como todos, mesmo assim sua
curiosidade a fez olhar nos olhos de Gaya, foi então que algo muito diferente tocou a ambas, uma
energia que era desconhecida e despertou na bruxa curiosidade sobre aquela jovem sonhadora.
Mariah percebeu o que havia e reprendeu Sara:

-Demonstre mais respeito por um membro do Círculo Superior, menina! - Dirigindo-se a Gaya,
completou – Perdoe-a, senhora, é uma aluada, vive no mundo dos sonhos....

-Não há o que perdoar, Mariah. Deixe que mate sua curiosidade…. - disse com uma ternura peculiar.

Mas aquela energia que sentiu ao olhar nos olhos de Sara não saiu dos pensamentos da velha bruxa,
algo tão grandioso, tão desconhecido. Em todos os seus anos servindo a magia natural nunca tinha
sentido algo tão poderoso, no entanto, esses mesmos anos a ensinaram que em momentos assim o
melhor a fazer é deixar a natureza seguir seu curso, pois a Divindade tem seus propósitos e não são
todos eles que é dado permissão que sejam conhecidos dos humanos.

Alguns dias se passaram e o momento tão aguardado chegou, a Festa da Entrada da Primavera,
quando a grande fogueira seria acessa para chamar de volta ao mundo o calor para derreter a neve e
fazer o solo novamente fértil para uma colheita prospera. Os últimos preparativos deixavam a todos
ocupados, correndo para lá e para cá num frenesi e alegria pulsante. Essa era a festividade preferida
de Sara quando a grande fogueira era acessa e ela podia admirar as chamas que trazia vida de volta a
terra, o calor que emanava delas, o crepitar da lenha.... Ela amava tudo aquilo, e como seus recentes
sonhos com o misterioso pássaro de fogo, sua vontade de ver a grande fogueira da primavera era
maior que nunca.
4
Ao anoitecer, todos os habitantes da vila foram ao local da cerimônia para fazer seus pedidos de
renovação da vida. Os anciãos tomaram seus lugares de honra junto a fogueira ainda apagada e
formaram um círculo ao seu redor e atrás deles os outros habitantes aguardavam ansiosos o
momento que Gaya entraria no círculo para iniciar a cerimonia. Então o som dos tambores começou,
os anciãos batiam seus pés no chão no mesmo compasso para despertar a terra de seu longo sono de
inverno. Mariah tentava encontrar Sara em meio aos outros participantes, ela sentiu a energia
pulsante entre a jovem sonhadora e a alta sacerdotisa dias antes e se preocupava, afinal era sua
responsabilidade manter Sara nos trilhos. Nesse momento, com um lindo vestido amarelo-ouro
coberto por uma capa negra com bordados prateados que lembrava o céu estrelado de uma noite sem
lua, abrindo caminho pela multidão, Gaya tomava parte da cerimônia. O poder que emanava dela
eletrizava todos os presentes. Sara a vê, maravilhada com tanta beleza, poder e autoridade. E a
cerimonia começava.

Os cânticos antigos despertavam a terra, e clamavam por boas colheitas, novas ninhadas de animais
para repor os que não suportaram o frio e por mais um ano de prosperidade para a pequena
comunidade. Gaya cantava com eles, separando as ervas rituais para serem queimadas e afastarem os
monstros e espíritos das sombras da pequena vila. Ela sentia que algo grandioso aconteceria essa
noite, a vibração das vozes somadas aos tambores e aos pés dos anciãos batendo na terra era a mais
intensa que jamais sentira. Quando foi convocada a ir a uma aldeia sem nome escondida no interior
de Espéria não entendeu o motivo, mas com sua experiência aprendeu a não questionar a Divindade e
nesse momento sabia que todas as suas dúvidas mais profundas seriam respondidas, só não sabia
como.

Então, o mais velho patriarca, Petrus, trouxe o fogo para dar sequência aos rituais e o entregou ao
jovem que foi o escolhido para acender a fogueira ritual. Quando as chamas já estavam altas se fez
silêncio e a voz profunda de Gaya podia ser ouvida de qualquer ponto, pois nem os animais,
domesticados ou selvagens, faziam qualquer barulho. As antigas orações foram recitadas e as ervas
jogadas ao fogo na ordem milenar que foi ensinada pelos primeiros estudiosos da magia da natureza,
e quando a última delas foi jogada ao fogo os olhos da bruxa tomaram para si a tonalidade alaranjada
das chamas ao mesmo tempo que o calor e a energia do fogo incendiaram seu espírito e sua voz ficou
etérea dizendo:

– Há entre vós uma jovem que precisa iniciar uma jornada. Sua viajem trará dores e alegrias, mas
acima de tudo trará um grande aprendizado a todos! Seu destino será revelado a cada passo que der
na estrada e seu coração arderá quando o encontrar. Essa jovem é a mais pura de todas as jovens de
Espéria e tem em suas mãos a sorte de muitos que cruzarão seu caminho. Será reconhecida por seus
cabelos tão brancos e imaculados quanto sua alma!

5
Ninguém acreditava que uma profecia poderia surgir ali, um lugar esquecido por todos os poderosos.
Pairava no ar a dúvida: sobre quem Gaya falava? Apenas Mariah e Sara sabiam que a jovem que tinha
os cabelos mais claros da vila era ela. Seus olhares se cruzaram, Sara orgulhosa por seu destino e
Mariah temendo o que poderia acontecer com sua única neta.

6
Capítulo 2
Depois de concluída a cerimônia da Festa da Entrada da Primavera era o momento do grande
banquete, quando todos da vila se juntavam para saborear as delicias preparadas com o que foi
partilhado. Segundo a tradição, cada família da vila teria que doar algo para a preparação do grande
banquete, fosse um cervo de uma caça recente até o próprio trabalho, o importante era manter unido
o povo através das doações para que o espírito de comunidade continuasse. E com a presença de um
dos membros do Círculo Superior nas comemorações todos doaram o seu melhor e até mais do que o
de costume.

Enquanto todos comiam e bebiam, as crianças corriam ao redor da fogueira brincando alegres
sabendo que poderiam voltar a circular livremente pela aldeia já que o frio iria em bora. E pequenas
rodas de conversa se formavam, todos tentando entender o aviso de Gaya. “Quem será que deve
partir?” era a primeira coisa que discutiam, depois todos confabulavam sobre o motivo dessa partida e
um medo começou a tomar conta de todos. E se não descobrissem quem era a jovem e ela não
partisse? A vila toda seria punida? A maioria acreditava que sim.

Outros grupos se perguntavam porque ali num lugar esquecido por todos haveria de se receber uma
profecia? Como um membro daquele lugar poderia ter uma missão? Eles acreditavam em seus
corações que o aviso não era direcionado a eles, afinal quem iria se lembrar de um lugar que nem
nome tem?

E no meio dessa atmosfera de grandes dúvidas, Gaya refletia, tentava relembrar com o máximo de
exatidão as palavras que saíram de sua boca sem nenhum controle de sua mente ou corpo. Era a
primeira vez, em tantos anos servindo a magia natural que de sua boca saiam palavras proféticas. Ela
já virá muitos de seus companheiros do Círculo Superior fazerem profecias, mas ela nunca tinha sido
agraciada com essa experiência, tanto que se julgou incapaz ou até indigna de fazê-lo. Mas essas
crenças nunca a limitaram em suas atividades, conhecia muito bem a si mesma e seu papel na teia da
vida. Tudo que havia sentido, a força divina despertando dentro de si, ouvir o som das palavras que
não passaram pelo crivo da mente antes de serem proferidas eram muito novos para ela.

As coisas estavam fazendo sentido aos poucos, o motivo do oráculo ter designado um membro do
Círculo superior para os confins de Espéria, a jovem que foi a única da vila a ter a coragem de olhar
em seus olhos. Ela se divertira com essa atitude dos aldeões, há tempos não sentia o respeito
temeroso da população mais distante da capital, se soubessem quão comum ela era…. E aquela
jovem…. tinha algo diferente nela, uma energia, uma força que ela não sabia explicar. Era visível que a
menina acabara de sair da infância, deveria ter por volta de 11 anos, talvez 12, não mais que isso. E as
palavras foram " Será reconhecida por seus cabelos tão brancos e imaculados quanto sua alma!" Não
havia ali menina com cabelos mais claros que os dela. Que todos festejassem, não era esse o
momento de abordar a jovem ou Mariah sobre o assunto. Ficaria para a manhã seguinte.
7
Do outro lado da fogueira Mariah não tirava as palavras de Gaya da cabeça. Como poderia permitir
que Sara saísse rumo ao desconhecido? Sua menina era tudo que havia sobrado de sua família….
Depois que o pai de Sara morreu durante a temporada de caça, assistiu sua filha definhar aos poucos
consumida pela tristeza deixando o bebe de 2 anos sob sua responsabilidade. Como perder sua filha
novamente?

Ao seu lado Sara estava muito feliz, iria finalmente viver a aventura que sentia em seu coração.
Poderia ir em busca de seu destino, poderia conhecer novas pessoas, ter novas experiências e
descobrir onde estava aquele pássaro de fogo que via em seus sonhos. Sabia que se tratava dele, de
encontrá-lo.

A festa seguiu até alta madrugada, todos se fartaram com as delicias preparadas e com a alegria que a
primavera trazia consigo. Na manhã seguinte, Gaya foi até a casa simples de Mariah e Sara, precisava
falar com a menina e prepará-la para sua jornada. Sara não tinha conseguido dormir com a excitação
que sentia e ouviu os passos firmes da bruxa na neve fina que cobria o gramado em frente à sua casa
e abriu a porta mesmo antes que Gaya batesse:

– Por favor, entre senhora!

-Gratidão, criança! Sua avó já se levantou?

-Ainda não, mas não sei se dormiu. Ouvi o barulho da palha de sua cama a noite toda

-Imagino que ela esteja preocupada…. E você, Sara? Entendeu o que houve ontem à noite?

-Sim! Devo partir e viver uma aventura.

-Exatamente! Mas nem só alegrias a esperam….

O olhar de Sara ficou mais sério, não havia pensado em todas as dores que poderia viver, mas a
sombra logo se foi e a empolgação com a jornada voltou a alegrar seus pensamentos. A bruxa
percebeu esse lampejo de lucidez na jovem e se compadeceu da preocupação de Mariah, uma menina
tão inocente que desconhecia os perigos de uma jornada com destino incerto. “Que a Divindade a
proteja, criança!” Foi o único pensamento que lhe ocorreu.

Nesse mesmo instante Mariah saiu do aposento intimo com dor no olhar, Gaya sentiu sua dúvida, seu
medo, sua perda. Não havia nada a se fazer, a força das palavras da profecia era muito forte para que
não fosse cumprida, Sara precisava iniciar seu caminho e ela estava ali para isso, certificar-se que sua
partida não tardasse.

8
Mesmo envolta em medo e preocupação, a anciã não se opôs a partida de Sara e passaram o dia com
os preparativos da viajem. Mariah com a praticidade necessária, providenciando provisões e a
bagagem para a viajem de Sara, mesmo sem saber quanto tempo demoraria. Gaya, por sua vez,
instruía a jovem com informações sobre o território do reino, mapas e locais que poderia conseguir
ajuda mais facilmente e quais deveria evitar, pelo menos no princípio.

Ninguém imaginou que seria Sara a jovem da profecia. Alguns sentiram inveja, outros, raiva, a
maioria sentiu alívio. Não teriam mais que se preocupar com as conversas confusas da menina, ou
instruir suas filhas e filhos a não levarem em consideração o que ela dizia. Sem contar que não
teriam mais que fazer o trabalho que ela deixava para trás para poder “entender as plantas” como
dizia.

Para tranquilizar o coração da avó de Sara, a bruxa se ofereceu para iniciarem a jornada juntas. E ao
amanhecer seguinte partiram.

– Que a Divindade sempre te acompanhe, minha neta querida!

Tiveram um dia agradável juntas, nem o resquício do frio do inverno que permeia os primeiros dias
da primavera tirou a felicidade do coração de Sara. Conversaram muito, a bruxa ia contando detalhes
do vasto território do reino de Espéria, explicava as diferenças das culturas das diversas aldeias e
cidades que existiam nas províncias e a jovem se maravilhava com a expectativa de tudo o que viveria
em sua viajem. Mesmo quando pensava sobre o motivo dessa jornada não sentia medo, pois em seu
íntimo sabia que a resposta viria quando encontrasse o enorme pássaro de fogo que povoava seus
sonhos. Ao anoitecer, Gaya indicou uma hospedaria para que a jovem passasse a noite:

– Seguirei viajem, minha criança, estou acostumada a longos trajetos sem descanso, mas você deve
repousar.

Sara entrou no salão da hospedaria sem saber o que encontraria, porém só havia um grupo sentado
em uma mesa conversando. Um homem alto moreno de grandes olhos negros, uma mulher vestindo
um vestido vermelho queimado que realçava sua pele clara e seus olhos cor de mel, e uma jovem,
pouco mais velha que ela escondida sobre o capuz azul-escuro de seu manto. Ao cruzar seu olhar com
o deles sentiu uma simpatia imediata pelos três e decidiu sentar-se na mesa próxima. Sabia que era
com esse grupo de estranhos que sua jornada começaria de fato

9
Capítulo 3
Aquele grupo já viajava junto a algum tempo, se conheciam bem e se protegiam dos perigos da
estrada. Ralf e Surita vinham da mesma cidade, Vandroy, saíram de lá juntos. Não eram um casal,
mas havia um afeto entre eles desde jovens por isso partiram juntos. Buscavam um lugar melhor para
viver seus sonhos de juventude. Surita sonhava em ser curandeira, já Ralf só queria poder entender
seu lugar no mundo e descobrir novos prazeres.

Ralf vinha de uma família complicada, seu pai nunca ficava muito em casa pois trabalhava numa feira
itinerante, sua mãe era muito amargurada com a ausência do marido e seu irmão mais novo tinha
alguma doença que ele não entendia muito bem. Sempre teve que se virar sozinho, ajudar a mãe no
trato da casa e nos cuidados com o irmão. Viva sempre em busca de ganhos e prazeres imediatos
para tentar tirar de sua cabeça os pensamentos ruins que tinha sobre si e sua vida. Acabou se
tornando um homem triste que se escondia atrás de uma falsa felicidade. Tinha ideias mirabolantes
para mudar de vida e acabava aplicando pequenos golpes para conseguir realizá-las, sem sucesso em
nenhum.

Surita era de uma família grande, quarta filha entre nove irmãos. Seu pai trabalhava muito para
sustentar a todos da melhor forma possível, era muito controlador e austero, exigindo que os filhos
também trabalhassem e, acima de tudo, fossem sempre honestos em seus negócios. Sua mãe era
muito bondosa, tratava a todos com carinho, mas era distante, sempre tentando mostrar aos outros
ser mais rica do que de fato era, para ela as aparências eram muito importantes. Surita em sua
juventude, viu a possibilidade de ser rica como a mãe sonhara ao conhecer Ian, um garoto de uma
família de melhores condições que a sua e ter um romance secreto com ele. Sua decepção veio
quando seus pais receberam o convite de apadrinhar seu casamento com Jasbel, também de uma
família rica. E pensar que ela deixou a oportunidade de iniciar seus estudos como curandeira por
influência de Ian que dizia que ela não precisaria trabalhar quando partilhassem a vida.

Munidos de suas decepções, Ralf e Surita decidiram deixar Vandroy juntos, para buscarem seus
sonhos. Sempre foram vizinhos e partilhavam seus segredos, imaginavam que juntos conseguiriam
desbravar Espéria e reivindicar à vida tudo que lhes foi tomado, mas essa jornada foi muito cruel com
eles deixando profundas marcas em suas vidas, entristecendo a alma da mulher e afastando cada vez
mais o homem das virtudes da sua.

Foi numa temporada em Tartus que conheceram a pequena Iduna, uma órfã que acabara de ser
expulsa do lar que vivia e se recusava a voltar a orfanato. Ela fala muito pouco de si ou de seu
passado. A verdade é que nem ela mesma conhecia sua origem, apenas lembrava de todos os castigos
que sofria simplesmente por querer se expressar, ser feliz e alegre como todas as crianças, mas as

10
regras do orfanato não permitiam o que lhe trouxe muitos traumas e não gostava de lembrar ou falar
deles. A vida, de uma forma muito dura, a ensinou a falar pouco e observar muito, o que trazia a ela
um ar de muito mistério eu se completava com a capa e capuz que sempre usava para esconder as
cicatrizes dos castigos físicos aos quais foi submetida.

O casal sentiu um afeto muito grande pela menina e decidiu levá-la em sua viajem, com a promessa
que nunca mais ela seria ferida novamente e passaram a ser seus protetores. Viajam juntos há quase
dois anos, quando seus caminhos os levaram aquela hospedaria em Ronamov. Estavam sentados
planejando seus próximos passos quando a porta do salão se abriu e entrou a jovem Sara com seus
olhos curiosos e seus cabelos quase brancos. Os três não esperavam que alguém também estivesse de
passagem por um lugar tão distante da capital na época das festividades da primavera. Há tempos não
participavam de quaisquer celebrações a Divindade, suas dores os afastara desse lado da vida, mesmo
que em voz alta negassem, não acreditavam mais que a Divindade se lembrasse deles no alto de seu
trono majestoso.

Quando a jovenzinha se sentou na mesa próxima a deles, sentiram algo diferente na sua postura, Ralf
logo notou sua pouca bagagem e sabia que não poderia tirar proveito dela, Surita viu em seus olhos a
esperança de uma vida feliz igual a que tinha em sua mocidade e Iduna sentiu algo que há muito não
sentia por ninguém que não fosse Ralf ou Surita, afeição. Foi a mulher que iniciou a conversa:

– O que uma menina tão bonita faz viajando sozinha nesse frio?

-Estou iniciando uma busca….

– Pelo que? - Perguntou Ralf

– Ainda não sei ao certo, só que quero muito encontrar! - Nem para Mariah ela tinha contado o real
motivo de aceitar a viajem da profecia, e no seu coração sentia que ninguém entenderia que sua
busca foi profetizada de forma tão enigmática.

– Se junte a nós – propôs Surita – não é seguro viajar sozinha….

– Posso mesmo? - Entusiasmou-se Sara

– Claro! - Emendou o homem.

Iduna deu de ombros, aprendeu a duras penas a não demonstrar seus sentimentos, mas abriu espaço
para Sara senta-se entre ela e Surita, concordando com seus protetores.

11
- Agradeço muito, nunca sai de minha aldeia antes, será bom ter companhia.

– Eu sou Ralf, essa é Surita e a menina por baixo do capuz é Iduna, ela não é de falar muito, mas você
se acostuma. - Disse entre risos

– Me chamo Sara.

– E pra onde você está indo, Sara? - Perguntou Surita

– Para onde a Divindade me levar....

– Então iremos para o sul! Em breve a temporada de feiras itinerantes por lá, podemos conseguir
algumas moedas, com sorte até ouro. - A mente de Ralf já trabalhava num novo plano para ganhar a
vida. - Agora precisamos descansar, amanhã bem cedo partimos.

Na manhã seguinte, antes mesmo do sol despontar no horizonte, os quatro companheiros partiram
rumo ao sul, a frente ia os mais velhos seguidos pelas jovens. Durante o caminho Ralf e Surita
contavam histórias sobre suas juventudes e aventuras e Sara se maravilhava com tudo. Ela ainda não
tinha malicia para ver as dores escondidas em suas palavras e imaginava que poderia, em algum
tempo, ter tantas aventuras divertidas para contar quanto eles.

Surita partilhava seu interesse e conhecimento pelas plantas e suas propriedades curativas,
despertando em Sara mais curiosidade em aprender sobre o assunto. Ralf lhe ensinava mais sobre
sonhar em ser maior que os outros e como obter todo o jubilo que a vida pode nos dar. Iduna apenas
observava tudo e passava a amar sua jovem companheira de jornada como irmã. Sara sentia-se a
cada dia mais pertencente a uma família.

Demoraram 2 meses para chegar ao sul de Espéria. Nesse período passaram por muitas vilas, aldeias
e cidades, mostrando a Sara quão pequena era sua terra natal e quanto Gaya tinha razão sobre a
diversidade existente no reino. Conheceu lugares nos quais as pessoas não comiam carne, pois
acreditavam que a vida era sagrada demais para ser tirada, em outros viu grupos que se dedicavam
com tal afinco ao culto da Divindade que mais os afastava do real ensinamento que trazia, também
conheceu pessoas tão afastadas da magia natural que só se preocupavam consigo e seus bens
materiais. Isso sem contar as paisagens tão diferentes da floresta que cercava sua pequena vila, com
vegetação baixa e muitas flores, outras de cores mais escuras e raízes a mostra.

Ao chegarem na província de Froster a paisagem trazia um novo elemento, muros. Sara nunca tinha
visto esse tipo de construção e ficou encantada, até se informada por Iduna, em um dos raríssimos
momentos que falava, que eles estavam ali para proteger a população dos orcs que habitavam a

12
província. Entraram na quarta cidade murada pela qual passaram, Cotune. Dentro de seus muros não
havia silêncio, eram muitas pessoas andando para lá e para cá, numa corrida sem fim a lugar
nenhum, parecendo perdidas numa realidade estranha, não se olhava para o lado, todos com muita
pressa, Sara não entendia para que.

Caminharam mais para o centro do lugar, onde ficavam as hospedarias mais baratas, pois tinham
apenas algumas moedas de cobre consigo. Ralf tinha planos de conseguir mais moedas de cobre e
prata, mas sonhava era com as de ouro e quando falava das possibilidades que teriam quando as
tivesse era possível ver o olhar de cobiça dele e incredulidade de Surita. Se instalaram num pequeno
quarto próximo ao estábulo de uma hospedaria feia, escura e com uma mistura peculiar de odores.
Mais do que depressa o homem começou a se preparar par iniciar seus negócios na feira do dia
seguinte. As jovens não sabiam o que ou como ele trazia o dinheiro para eles, Iduna por desinteresse
e Sara por não entender o que ele fazia, apenas sabia de Surita desaprovava. A mulher tinha outras
formas de contribuir com o bem-estar de todos, além de cuidar de suas necessidades como uma
grande matriarca, sempre arrumava algum trabalho para uma família ou algum comercio local. Dizia
que era mais seguro assim do que do jeito que Ralf fazia. As meninas acabavam ajudando nos
afazeres das hospedarias em troca de mais tempo de hospedagem do que as moedas que tinham
podia custear.

Na manhã seguinte cada um partiu em busca de cuidar de concluir seus planos, Ralf foi a feira, Surita
já tinha visto uma placa em uma padaria local que precisava de ajudante na cozinha e iria se
candidatar a vaga, Iduna ficaria no quarto cuidando de seus pertences e Sara andaria pela cidade
para conhecer melhor o local e seu povo. Em suas andanças chegou ao perímetro da cidade, bem
próximo ao muro foi ondem viu um menino com seus 7 anos de pele muito clara, como a sua, cabelos
e olhos preto vestindo nada mais que trapos chorando sozinho:

– O que houve? - Perguntou a jovem

– Fome! Estou com fome, faz 2 dias que não consigo comer nada – respondeu o garoto.

Aquilo cortou o coração de Sara. Como podiam deixar um menino tão inocente e indefeso sozinho.
Decidiu levá-lo até seus companheiros e propor que o ajudassem. Mesmo com medo da reação dos
outros, convidou o garoto a ir com ela até a hospedaria, proposta que foi aceita rapidamente. No
caminho de volta conversaram muito, riram mais ainda. O menino era Agner, filho de pai
desconhecido e sua mãe tinha morrido no ultimo inverno o deixando a própria sorte.

Surita logo se compadeceu da história do menino e quis ajudá-lo, Ralf ficou desconfiado, não gostava
da ideia de mais uma boca para alimentar e Iduna não demonstrou seu sentimento. Mesmo assim,
Abner foi acolhido pelo grupo. Pode se banhar e trocar suas roupas por limpas depois de muito
tempo. Jantaram juntos, partilhando um pão que Surita recebeu como pagamento pelo seu dia de
trabalho com uma sopa de legumes que a hospedaria dava aos seus hóspedes.
13
Uma semana depois de Agner se juntar ao grupo, Ralf voltou da feira muito agitado, dizia que o dia
seguinte seria decisivo na vida de todos, pois estava para concluir um negócio que poderia fazê-los
todos muito ricos, estava eufórico com a possibilidade. Surita não acreditava nenhum pouco que os
planos de seu amigo de infância dariam certo e já se preparava para uma saída às pressas de Cotune,
como sempre acontecia quando Ralf chegava daquele jeito. Iduna não esboçava nenhuma reação,
sempre perdida em seus pensamentos, Sara e o menino nada entendiam, mas a alegria do homem os
contagiava em sua pureza o que fez com que aquela noite se transformasse em uma grande festa no
pequeno quarto.

O dia seguinte começou com sua rotina normal, Ralf encontraria seus novos sócios, Surita foi a
padaria, não sem antes instruir as três crianças que não saíssem da hospedaria naquele dia, pois
pressentia que algo muito ruim pudesse acontecer. Agner começou a ficar impaciente no quarto e
Sara resolveu levá-lo ao salão para se distrair com os outros hóspedes enquanto Iduna iria para a
cozinha iniciar seu trabalho para mantê-los na hospedaria. Pouco depois do meio da tarde, a mulher
entrou afobada no salão procurando por Sara e o pequeno.

– Vamos já para o quarto! Sara, vá chamar Iduna na cozinha, precisamos partir imediatamente de
Cotune, Ralf já está juntando nossas coisas.

-Sim, Surita! - A urgência da mulher assustou a menina

Sara não encontrou sua jovem amiga em parte alguma e retornou ao quarto com o semblante triste.

– Iduna sumiu

– Como assim “sumiu”? - Perguntou Ralf, enquanto colocava um manto em Abner – Não levante esse
capuz, garoto, nem se sua vida dependa disso!

– Sumindo, fui em todos os cantos da hospedaria e não a encontrei em parte alguma.

– Não podemos esperar por ela!

– Você sabe se ela conheceu alguém, Sara? Fez algum amigo que não conhecemos? - Perguntou Surita
preocupada – também vestindo Sara

– Não, ela sempre está na cozinha quando não está aqui. Você sabe como ela é, não gosta de pessoas.

– Partiremos sem ela! - Disse o homem com aspereza, para disfarçar a tristeza – Não podemos
demorar, você bem sabe Surita!

– Sim, eu sei… - respondeu com muita tristeza – Que a Divindade tenha piedade de sua pobre alma!
14
E os quatro partiram, sem saber onde estava ou que seria feito de Iduna, todos escondidos sob seus
capuzes, andando rápido se esgueirando pelos becos. Ouviram gritos ao longe, era a guarda que
chegava a hospedaria procurando um grupo de viajantes chefiado por um homem moreno. Enquanto
corriam para fora dos muros da cidade, o alívio de Ralf era palpável e as lagrimas de Sara por Iduna
eram incontroláveis.

15
Capítulo 4
Durante dias após a partida de Cotune o grupo demonstrava o quanto os últimos acontecimentos
abalaram a todos. Ralf sempre taciturno, pensativo, distante, com o semblante preocupado. Não
parava de pensar e analisar o que dera errado em seu negócio. Em sua mente tudo parecia tão certo,
tão perfeito que não tinha como dar errado. Tudo foi milimetricamente calculado, pensado a
exaustão. Como seus sócios não viram que a oportunidade que tinham nas mãos era a mais incrível e
traria grandes lucros a todos. Sua falta de aceitar suas imperfeições e fazer autocritica impedia que
visse o quanto era mirabolante seu plano e geraria dúvidas e receios em quem se associasse a ele.

Surita estava sempre calada, o que não era normal, muito triste, sempre arrumando desculpas para se
afastar dos outros e chorar sozinha a falta que sentia de Iduna. Aquela jovem foi a primeira a
despertar na mulher os sentimentos da maternidade. Ela sempre quis ser mãe, mas os caminhos e
escolhas que fez não lhe deram filhos de sangue, mas nutria pelos jovens companheiros de viajem um
amor maternal e com sumiço misterioso de Iduna uma grande dor tomou conta de seu coração, a
única coisa que ameniza sua dor e observar Sara e Agner, já que os considerava seus filhos. Tudo o
que queria agora era protegê-los de qualquer mal que pudesse afligi-los, assim não sentiria mais essa
dor tão profunda em seu coração.

Sara não entendia muito bem o que estava acontecendo, apenas uma tristeza muito grande em seu
coração pela partida inesperada de Iduna. Considerava sua amiga um presente da Divindade para
partilharem a jornada que tinha a sua frente, confiava naquela menina tão calada, tanto que
planejava contar a ela sobre a profecia do início da primavera, algo que não tinha confiado a
ninguém depois que deixou sua terra natal e agora esse presente tinha sido arrancado de suas mãos.
Via Ralf se distanciar cada vez mais de todos, sempre pensativo, resmungando consigo mesmo sem
saber o que se passava em sua cabeça e seu coração. Surita, por sua vez estava sempre perto dos mais
jovens protegendo e cuidado com zelo e amor que enchiam o coração da jovem de carinho e, ao vê-la
chorando pelos cantos, também surgia um senso de responsabilidade para que a mulher não sofresse
ou se decepcionasse novamente.

Agner era muito jovem e pouco convivera com Iduna, não sentia tanto sua partida. Apenas
aproveitava a oportunidade que recebera de ter novamente uma família. Tudo o que o garoto queria
com aquelas pessoas ele tinha, imaginava que agora sua vida seria boa.

Em seu caminho passaram por cidades e vilas, mas não quiseram se instalar em nenhuma, estavam
todos tão envolvidos em suas dores e pesares que não tinham o mínimo intuito de interagir com
pessoas de fora do seu grupo. Acontece que Surita não se sentia bem, ela tentava disfarçar, se fazia de
forte, mas não tinha tanta força para caminhar, seu apetite já não era o mesmo e o pouco brilho que
tinha em seus olhos estava se apagando. Sem falar na tosse, começou com episódios noturnos que
faziam com que suasse muito, então não tinha mais um período do dia que não tossisse muito.
16
– Precisamos cuidar de você, Surita! Vou conversar com Ralf para procurarmos o curandeiro da
próxima cidade que passarmos. - Preocupava-se Sara

Com muita relutância, Ralf aceito o pedido da jovem e 2 dias depois chegaram a Langdy, uma cidade
próxima a capital da província de Froster. Lá tinham muitos recursos disponíveis para se sustentarem
e cuidar de Surita. Encontraram uma estalagem que os abrigasse em troca de serviços. Era uma
construção muito antiga, escura, úmida e frequentada por viajantes pobres, prostitutas e malandros.
O dono do lugar se comoveu com a situação daquela família maltrapilha que chegou procurando
abrigo e trabalho. Percebeu o quanto a matriarca estava doente, não acreditava em sua recuperação,
mas não podia deixar os jovens sem um teto e permitiu que ocupassem o quarto anexo ao celeiro que
era usado como deposito de moveis quebrados.

Ralf se encarregou de tornar o lugar habitável, limpou e organizou o que lá havia. Eram mesas,
cadeiras e uma única cama. Improvisou, da melhor maneira que pode um colchão de palhas frescas
sobre essa cama para o repouso de Surita. Com uma mesa velha fez uma cama para Sara e Abner não
ficarem diretamente no chão frio e pudessem se aquecer com o calor um do outro. Limpou a lareira
que há muito não era usada e fez lenha de algumas cadeiras podres. Era um lugar muito precário,
mas tinha que servir. Logo Surita estaria bem e partiriam rumo a capital.

Assim que se acomodaram, Sara buscou o curandeiro local. Era um homem mais velho, mas não um
ancião, com olhos perspicazes e sábios, os cabelos começando a apresentar uma tonalidade mais
branca, bem barbeado com um porte difícil de decifrar, era um misto de arrogância e simplicidade
muito interessante de observar. Vestia calças de um bege claro com algumas manchas de sangue que
se notava as tentativas de limpar e uma camisa branca muito limpa, devia ser quarada a cada
lavagem. Depois de conversar e examinar a doente longamente, chamou Ralf de canto para dar seu
parecer. Como todos os estranhos ao grupo, acreditava se tratar de uma família com laços
sanguíneos:

– O caso é mais sério que imaginei quando sua filha me relatou, senhor. - Disse o velho curandeiro –
sua mulher está com a tosse sangrante, caso não cuidemos logo poderá morrer. Deixarei alguns
elixires e chás para seu tratamento e venho vê-la de novo em uma semana.

– Uma semana? Não esperava ter que ficar por aqui tanto tempo… - respondeu o homem já aflito, não
gostava de se sentir preso.

– Ah, meu senhor, com toda certeza será bem mais do que uma semana. Se sua esposa conseguir
vencer essa tosse, demorará alguns meses para poder voltar para a estrada.

Ralf, embora muito decepcionado, ia a feira da cidade todos os dias tentar ganhar algum dinheiro,
Sara se dividia entre o cuidado da sua companheira de jornada e o trabalho na estalagem, Agner
17
pedia dinheiro pelas ruas para poder ajudar a custear os elixires e chás que o curandeiro
recomendava que Sara tomasse. Os ânimos entre eles não estavam nada bons com esses
acontecimentos.

As notícias sobre a recuperação de Surita não era animadoras, ela não melhorava nem piorava o que
deixava Ralf cada dia mais e mais distante, saía muito cedo e voltava tarde da noite, quando voltava.
Sara estava muito sobrecarregada com todo o trabalho que precisava assumir, amadureceu antes do
esperado para sua idade e quase não sonhava com o pássaro de fogo ou se recordava da profecia. O
vazio que se instalou em seu coração após a partida de Iduna só aumentava fazendo com que pouca
alegria restasse em seu coração.

Três meses depois no início do tratamento um sinal de esperança começou a surgir, as crises de tosse
de Surita não eram tão frequentes, não havia mais secreção e ela já conseguia cuidar do quarto que
ocupavam, diminuindo um pouco o trabalho de Sara.

Ela ficava encantada com a sabedoria do curandeiro e da forma como Sara se empenhava em cuidar
dela. Passou a desejar que Sara se tornasse uma curandeira já que ela já abandonara esse sonho
muito tempo atrás.

Na visita seguinte o curandeiro deu a melhor de todas as notícias:

– Surita está fora de perigo. Só precisa reestabelecer suas forças e recuperar o peso que a tosse levou
com ela. Agradeçam a Divindade por ela não ter sangrando, caso contrário dificilmente teria a mesma
sorte.

Naquela mesma noite, Sara ouviu a conversa entre Ralf e a convalescente depois que pensaram que as
crianças tinham dormido:

– Há quanto tempo me conhece, Surita?

– Praticamente toda a vida...

– Então deve imaginar o quanto tem sido penoso para mim estar aqui preso todo esse tempo. Agora
que você está melhor partirei. Você tem Sara e Agner para te acompanharem na sua jornada, chegou
a hora de eu seguir a minha sozinho.

– Mas como cuidarei deles sozinha, é muita responsabilidade...

– Sara já não é nenhuma criança e ama muito você, vi isso durante sua doença. Agner crescerá e se
tornar um homem e será seu protetor. Minha decisão está tomada e não tem mais volta. Parto antes
do amanhecer
18
Surita se viu só com duas crianças sob sua responsabilidade e não sabia o que fazer. Enquanto não
recobrasse suas forças não teria como sustentá-las. Sara, por sua vez, sentia mais uma vez a dor do
abandono de uma pessoa importante para ela. Nunca tinha imaginado que sua jornada lhe traria
tamanhas dores e se perguntava o que a Divindade tinha contra ela que permitia tamanho sofrimento.
Tão jovem via que era tão responsável pelo bem-estar dos companheiros quanto a Surita, não podia
permitir que ela sofresse mais e precisava proteger Abner das dores do mundo. Era uma carga muito
pesada para seu jovem coração.

19
Capítulo 5
O dia começou mais triste que o normal naquele frio quarto da hospedaria. Surita tentava explicar a
Sara e Abner a partida de Ralf. O menino não se abalou tanto a princípio e a jovem, tendo ouvido os
acontecimentos da noite anterior, não se chocou mais do que já o fizera.

– Precisamos continuar juntos. - Decretou Surita – precisamos nos proteger e apoiar para
conseguirmos passar por isso.

– Sim, Surita! - Respondeu Sara com um sorriso vazio.

Optaram por permanecer em Langdy por tempo indeterminado. Surita estava cansada da estrada,
queria um pouco de paz. Acreditava que se trabalhassem duro poderiam ter sua própria moradia em
um lugar com mais conforto a todos e lutou com todas as suas forças para recuperar-se e voltar a
trabalhar.

Algumas semanas depois da partida de Ralf já estava em condições de procurar trabalho, passou a
andar com Abner pela cidade em busca dessa oportunidade que não tardou a aparecer. Uma taberna
do outro lado da cidade precisava de uma nova ajudante de salão. Então servia as mesas com cerveja,
vinho e pão. O lugar era frequentado pela elite da cidade o que lhe rendia boas gorjetas. Pôde então
tirar Abner das ruas novamente e colocá-lo na escola da cidade para, pelo menos, saber ler, como ela
e Sara já sabiam.

Sara, no entanto, continuava a trabalhar na cozinha da hospedaria para garantir o teto sobre suas
cabeças. Durante suas atividades sempre se pegava pensando em uma vida melhor para si e sua
família, já não via Surita e Abner como meros companheiros de viajem tudo o que tinham passado
juntos os unira de uma forma diferente. Se sentia responsável por eles assim como Surita.

Em seus devaneios se via trabalhando como curandeira, algo que até então não tinha se passado por
sua cabeça, porém o amor de Surita pela profissão que não conseguiu seguir unido ao seu
encantamento com o poder de plantas, ervas e raízes acendeu aquela chama dentro da jovem. Ver o
trabalho do velho curandeiro durante a doença de sua protetora e o lucro que se poderia ter com a
profissão faziam os olhos de Sara brilharem. Mas ela sabia que era um caminho para poucos, muita
dedicação e estudos eram necessários e ela teria que parar de trabalhar para isso. Talvez não fosse
possível conseguir esse objetivo, mesmo acreditando ser a única forma de sair daquela vida difícil que
levava.

Assim os dias se seguiam, as duas mulheres se dividindo entre o trabalho e o cuidado do garoto. O
dono da hospedaria, Satinder, se compadecia da luta daquela família, especialmente após o abandono
de Ralf, desde que o vira pela primeira vez não o julgava digno de uma mulher e filhos tão bons e
20
quando partiu só confirmou que era um homem fraco que não reconhecia a preciosidade que tinha
nas mãos. Passou então a ajudar aquelas pessoas, sentindo uma necessidade de protegê-las. Muitas
vezes, sem que as crianças soubessem, dividiu os custos do tratamento de Sara, pois o curandeiro
cobrava caro pelo tratamento, ou dava um pouco a mais de comida para que Sara levasse aos outros e
não lhes faltasse uma refeição decente. Fazia vista grossa quando o garoto, em suas brincadeiras,
quebrava ou derrubava algo pela sua propriedade.

Satinder era um homem viúvo e sem filhos e em seu íntimo adotou aquela família que tanto lutava
para sobreviver. Passou a se aproximar mais de Surita, a quem via como uma filha, para que ao
menos ela pudesse dividir com alguém mais velho as preocupações e responsabilidades para com os
filhos. Sabia que muito era partilhado entre ela e Sara, mas uma moça tão jovem não deveria ter que
se responsabilizar tanto, se preocupar tanto. Muitas vezes, depois que os pequenos dormiam, sentava
com a mulher para uma caneca de cerveja e uma conversa.

Era um momento que Surita gostava muito, podia dividir suas preocupações e anseios com alguém
mais maduro e vivido, ter conselhos e algumas orientações. Seu pai sempre foi distante dos filhos e
teve pouco afeto dele, acabou encontrando no dono da hospedaria um amigo e confidente. Partilhava
com ele suas preocupações com as crianças, o futuro delas, da família, acontecimentos do trabalho e
ouvia os de Satinder também. Se apoiavam e cuidavam.

Foi numa dessas conversas que Surita contou algo a Satinder que há uns dias não saía de sua cabeça:

– A Sara me confessou que tem sonhado em ser curandeira.

– Ouvi algumas vezes ela falar sobre isso com a cozinheira, mas não achei que fosse realmente sério.

– Mas é. Ela me disse que quer muito conseguir seguir esse caminho e eu sei como é ter esse sonho.
Meu pai não tinha como me ajudar com os estudos e minha mãe precisava que eu ajudasse com meus
irmãos. Sem falar que Ian não permitiria…

– Imagino o quanto foi ruim pra você ter que abandonar esse sonho.

– Sim, muito. Por isso que não quero que Sara faça o mesmo…

– Gostaria de poder ajudar.

Satinder, na verdade, queria custear os estudos de Sara, mas sabia que Surita não permitiria,
orgulhosa como era. Passou então a arquitetar uma forma de ajudar nessa empreitada, mas como
justificar para Surita que a menina não iria mais trabalhar na cozinha. Acabou percebendo que a
única forma era falar com Sara e ter nela uma cúmplice. Quando a jovem ouviu a proposta de
21
Satinder ficou eufórica. Ela poderia estudar no mesmo horário que trabalhava e Surita não saberia e
ele continuaria sem cobrar a hospedagem

– Desde que você não cobre para cuidar de mim quando eu ficar velho. - Disse e meio a risadas

Era perfeito! Agora ela iria aprender mais sobre as plantas, como sempre quis, e poderia tirar sua
família daquela vida sofrida. Em poucas semanas ela poderia começar os estudos e essa possibilidade
tornou seus dias mais leves e felizes, depois de muito tempo de tristeza, Sara voltou a sentir o calor da
felicidade em seu coração ferido.

Quando faltava uma semana para seu plano com Satinder se concretizar ocorreu uma invasão de
uma tribo de orcs na cidade. Sara nunca tinha visto aqueles monstros, apenas ouvira estórias a seu
respeito. Eram criaturas de um marrom claro, com mais de dois metros de altura, pesados, com
barrigas redondas que tornavam seu andar desengonçado, cabeças muito redondas com grandes
olhos vermelhos, nariz largo e bocas muito pequenas para o tamanho deles. Pareciam, inicialmente,
inofensivos, mas tinham uma força imensa e um ódio dos humanos que era impossível saber de onde
vinha. Entraram destruindo tudo o que viam pela frente com socos e chutes, alguns carregavam
pedaços de tronco de árvores que usavam como arma.

Alguns magos e bruxas da cidade saíram em busca de defendê-la com a guarda da cidade. Pouco
puderam fazer, eram muitos orcs reunidos para o contingente disponível na cidade. Fazia tantos anos
que os orcs não atacavam que se desarmaram contra eles. E mais da metade da cidade foi destruída,
levariam anos para reconstruir tudo, sem falar nas centenas de vidas que se perderam entre cidadãos
e soldados. Até um mago acabou morrendo no combate.

Durante o ataque Surita só queria encontrar as crianças, fugiu da taverna se esgueirando pelas ruas,
fugindo do trajeto dos orcs, desviando de estilhaços e escombros pelo caminho. Conseguiu chegar a
hospedaria minutos depois dos orcs partirem e se deparou com a construção destruída, não sobrara
nada de lá. A mulher caiu de joelhos aos prantos, um desespero sobre humano caiu sobre ela. As
crianças estavam lá dentro e agora não sobrara nada, tudo virou pó e nunca mais os veria novamente.

Então, ela vira a cabeça para o lado e vê os dois correndo em sua direção, eles se abraçam e entre
lágrimas, Surita diz com alívio:

– Meus filhos! Vocês estão bem!

– Estamos, Surita, o sr Satinder nos escondeu no porão dos fundos quando ouviu o barulho e saiu
para descobrir se eram os ogros ou os dragões que tinham voltado e não voltou. Agora que o barulho
acabou vim procurá-lo. - Contou Sara entre lágrimas

– E onde ele está?


22
– Debaixo de uma pedra enorme, mas não respira mais...-respondeu Abner.

Em menos de duas horas, Sara viu seu lar e seu sonho serem destruídos pela força dos orcs.

23
Capítulo 6
Sem ter onde morar e tendo perdido o pouco que tinham, resolveram deixar Langdy após quase um
ano vivendo lá. Retornar a estrada deixou Surita desanimada, não estava em seus planos. Decidiu
partir para o centro do reino, assim teria menos possibilidade que seu caminho e o de Ralf se
cruzassem. Nutria grande mágoa por ter sido deixada por ele.

Voltaram a ser só eles e o caminho incerto. Não havia destino, plano ou objetivo concreto sobre o que
fazer, a sobrevivência era a única coisa que os movia em frente. Andavam o máximo que conseguiam
tentando encontrar um lugar que pudessem os abrigar. Abner já não era um menino, se sentia
responsável por proteger suas companheiras, sentia um amor imenso por Surita, como sentira por
sua mãe no passado. Queria, assim como Sara, aliviar o fardo que ela mesma se infringira. Planejava
trabalhar também quando tivessem um lar novamente.

Sara ainda nutria o sonho de se tornar curandeira e observava todas as plantas e ervas no caminho
com o intuito de saber identificar as diferenças mais sutis que pudessem apresentar. Acreditava que
isso a ajudaria quando iniciasse seus estudos. Mesmo nos momentos mais difíceis, quando começava
a duvidar que conseguiria, Surita dizia que eles dariam um jeito e ela realizaria seu sonho. Ajudar a
jovem a se tornar curandeira era para a alma da mulher uma forma de realizar o seu próprio sonho.

Depois de três semanas caminhando, avistaram uma pequena propriedade isolada. Finalmente
poderiam passar pelo menos uma noite abrigados do frio, ter uma refeição decente e não ter medo de
ataque de algum monstro. Foram até a pequena casa que ficava no centro do terreno cercado por
alguns cabritos. Parecia ser uma construção antiga, malcuidada, o telhado de palha precisava de
reparos, a madeira da porta estava podre. Parecia abandonada, a única coisa que sinalizava que havia
moradores, além dos animais, era a fumaça que saia da chaminé.

Quando bateram, quem abriu foi um ancião. Um homem com poucos cabelos brancos ainda presos a
cabeça, com a pele muito enrugada, com alguns dentes faltando em seu sorriso amistoso, trajando
roupas surradas com as barras desgastadas e rasgadas. A imagem que viram causou, a princípio,
grande medo nos três, mas a vontade de uma noite de paz os fez ficar.

– Em que posso ajudar? - Disse o velho

– Gostaríamos de abrigo por uma noite, estamos cansados de dormir ao relento, senhor. - Disse
Surita.

– Pois entrem, não tenho muito a oferecer, mas o teto pode ser compartilhado. - Disse sorrindo.

24
O interior da casa não era mais bem cuidado do que o exterior. Havia poeira, lixo e sujeira por toda a
parte. O cheiro também não era muito agradável, havia moscas por todo o lado. No único cômodo
anexo não era diferente. As mulheres se propuseram a arrumar tudo em troca do abrigo, mas o velho
não permitiu, disse que em breve tudo seria resolvido e que elas não precisavam se preocupar. Tudo
que ele precisava como pagamento era a companhia de pessoas e não animais, mesmo que por uma
noite. Na lareira havia um pequeno caldeirão com o que parecia ser água fervendo.

– Estava pronto para começar a fazer um ensopado, se realmente querem me ajudar, vocês poderiam
ir até a velha horta pegar alguns vegetais para acompanhar a carne de cabrito. Aproveito e preparo
um chá para nós.

Andando pelo terreno, tiveram dificuldade de encontrar a horta, a grama era alta, muitas ervas
silvestres tomaram conta do terreno tão malcuidado quanto a casa. Mais à esquerda do local
encontraram um quadrado de uns 2 metros quadrados com algumas cebolas, cenouras, rabanetes e
muito mato. Colheram o que foi possível dali e retornaram a casa. Lá sentiram um cheiro adocicado
no ar, que despertou o apetite de Abner imediatamente, queria provar o que provocava aquele cheiro.
O velho, que não dizia seu próprio nome, estava despejando no caldeirão alguns pedaços de carne
com pedaços do que parecia ser fígado. Pegou os vegetais trazidos e com cortes rápidos os picou
grosseiramente e também jogou no caldeirão. Não parecia saber bem o que fazia. Surita imaginou
que devido à idade avançada não enxergava muito bem e se propôs a ajudá-lo, mas ele negou.

O odor agradável vinha de um pequeno bule, viram então o ancião picar e macerar com maestria
algumas ervas desconhecidas e adicionar cuidadosamente, observando a proporção de cada uma com
uma exatidão estranha, o que deixou Sara desconfiada. Mas o alívio na expressão de Surita e o
encantamento de Abner não permitiram que ela dividisse com eles sua estranheza da situação.
Apenas quarenta minutos depois estavam a mesa para a primeira refeição quente que teriam depois
do ataque dos orcs a Langdy.

O velho os serviu com uma porção do ensopado e uma caneca de chá. Sentou-se com eles, mas não
comeu. Abner mais do que depressa bebeu todo o conteúdo da caneca, aquele cheiro era muito
convidativo. Surita começou a comer, estava péssimo, mas seu estômago clamava por algo diferente
de frutas. Quando Sara aproximou de seu nariz a caneca notou um odor familiar, parecia o elixir que
dava a sua mãe adotiva quando tinha muita dor e se lembrou das palavras do curandeiro: “Esse elixir
é feito com beladona, um potente sedativo, a dose errada poderá matar uma pessoa”, mais do que
depressa gritou:

– Surita, não beba o chá! Precisamos fazer Abner vomitar o que bebeu rápido, é beladona, me lembro
do cheiro. Esse velho quer nos matar!

25
O homem gargalhava de modo insano. A mulher correu para colocar seus próprios dedos no fundo
da garganta do garoto e ele vomitou quase tudo o que bebera. Sara olhava indignada para ele.

– Muito esperta você, minha jovem. Vejo que tem o dom para lidar com ervas. Há muito aguardo
quem tenha a coragem de bater a minha porta, mas, em centenas de anos de espera, ninguém se
atreveu a chegar aqui. Muitos entraram na propriedade, porém davam meia volta ao notar o quanto é
decrepita, como eu.

– Por que o senhor faz isso? - Perguntou a jovem incrédula.

- No passado fui um mago com grandes poderes, porém meus companheiros não conseguiam ver o
futuro como eu via. Com nosso conhecimento poderíamos acabar com os monstros e tomar todo o
reino de Espéria para nós e obrigar o povo a lutar para expandir o território. Poderíamos dominar
todo o mundo. - Um lampejo de ambição maquiavélica percorreu o olhar do velho que gelou a
espinha das mulheres – Até que o Círculo superior tomou conhecimento dos meus planos e não
concordou com eles. Disseram que estávamos aqui apenas para ser uma ponte entre a Divindade e os
homens. Não entendiam que somos melhores, superiores, uma evolução da espécie destinada a
dominar os mais fracos. Então fizeram um feitiço contra mim, me condenando a passar toda a
eternidade aqui, jogado na miséria e com essa forma física, assim, com pouca energia vital eu não
poderia “fazer mal a mais ninguém” como disseram

– Você é um monstro! - decretou Surita.

– Não! Eu sou o futuro! E com a energia vital de vocês poderei retornar a minha velha forma e poder.
Concretizarei meus planos.…

– Corra Sara! - Disse a mulher pegando Abner no colo e se dirigindo a porta.

Eles saíram da casa e quando aquele velho se aproximou da porta um campo de energia se formou e
o impediu de passar pelo batente.

– Voltem aqui, esse feitiço não me deixa sair da casa. Preciso da energia vital de vocês para… - a porta
bateu magicamente, impedindo que ouvissem o que o velho dizia.

Deixaram o terreno o mais rápido que puderam e quando encontraram um local seguro foram ver
como Abner estava. Sua respiração era pesada, com num sono profundo, mas não parecia morrer.
Mesmo assim, um medo terrível se apossou de Surita. Não queria perder de novo alguém que lhe
fosse caro. Apesar desse sentimento, precisava ser prática, juntou alguns gravetos para uma fogueira,
pediu que Sara buscasse água e coletasse alguns frutos para se alimentarem. Improvisou um colchão
de folhas secas para o menino e ali ficou, velando seu sono.
26
Abner dormiu por três dias e três noites, ao despertar parecia bem, apenas um pouco abatido. Sara
deu um pouco de água a ele, pedindo que tomasse divagar. A dose de beladona que seu corpo
absorveu não foi suficiente para matá-lo, mas lhe roubou alguns dias e muita energia. Comeu alguns
frutos que a jovem lhe deu para acalmar o estômago provavelmente inflamado pela droga ingerida e
preparou, de forma improvisada, um caldo de raízes fortalecedoras para que se reestabelecesse
rápido. Durante o tempo que cuidou da mãe doente aprendeu algumas coisas com o curandeiro e foi
o momento de pôr seu conhecimento a prova

Surita ficou encantada com a firmeza e sabedoria da jovem. Sentiu o potencial que ela realmente
tinha para ser uma grande curandeira e, nesse momento, decidiu que não mediria esforços para que
Sara conquistasse esse grande objetivo de vida.

27
Capítulo 7
Depois do envenenamento pelo velho mago, Abner não parecia bem, seu apetite diminuiu muito,
cansava-se muito rápido, estava pálido. Parecia que sua energia estava se esgotando, isso intrigava
muito Sara e preocupava Surita. A mulher se desdobrava em cuidados com o menino que emagrecia a
olhos vistos e, com isso, o ritmo que viajam era cada dia menor.

Mesmo sem conhecimento, Sara ficava tentando se lembrar de todos os odores do chá que o menino
tomou para tentar reconhecer algo além da beladona, mas não conseguia. Sabia muito pouco dos
efeitos das ervas para cura e nada sobre seus efeitos mágicos. Isso a frustrava muito a garota, pois
queria ver seu irmão adotivo bem. Seu coração começava a se revoltar contra a vida e seus ataques a
ela e sua família, desde que saíra de sua terra natal teve poucos momentos de paz e felicidade. Passou
a acreditar que o mundo e a Divindade lhe deviam algo, pois sempre teve boa índole, fazia tudo com
boa vontade, seguindo os ensinamentos de sua avó, Mariah.

Com o arrastar dos dias pela estrada, sua revolta começou a afetar seu relacionamento com Surita. A
mulher tentava com muito custo manter o ânimo e a alegria de sua família, mas era muito difícil de
lidar com o mal humor de Sara e a debilidade crescente de Abner. Escondia suas preocupações o
melhor que podia, algumas coisas dividia com a jovem depois que Abner adormecia, outras guardava
em seu coração. Acreditava que Sara a culpava por tudo que estavam sofrendo e, muitas vezes, sentia-
se injustiçada pelas atitudes da menina.

Segundo um dos mapas que Sara ganhara de Gaya, estavam a pouco mais de uma semana de viajem
da cidade mais próxima, isso deu um animo a mais nos viajantes. Poderia voltar a ter um lar e uma
vida melhor. Até que se depararam com um acampamento de ogros. Eram criaturas um pouco mais
inteligentes que o orcs, mais organizados, de estatura mais semelhante à de um humano, sua pele era
de um azul quase verde, com orelhas engraçadas, proporcionalmente gordos, diferente dos orcs não
eram desengonçados e possuíam armas mais letais como machados e flechas. Ali deveria ter pelo
menos 30 criaturas com barracas, carroças e alguns animais semelhantes a cavalos.

Pareciam vir de alguma cidade, estavam agitados. Surita ficou apavorada, já tinha presenciado alguns
ataques de ogros em suas viagens e sabia o quanto eles eram violentos. Diferentemente do que se
acreditava, não comiam carne humana, mas escravizavam pessoas para os mais diversos fins, desde o
trabalho de cozinha e trato com seus animais medonhos, até servirem de escudos em batalhas.
Mesmo aterrorizada como estava, procurou por abrigo para si e seus filhos. Acabou encontrando uma
gruta onde poderiam ficar, mas não por muito tempo, pois era fria e escura, não poderiam acender
qualquer tipo de fogo para não chamar atenção daquela tribo.

Sara, que nunca tinha visto esses monstros, também ficou assustada. Sabia que se caíssem nas mãos

28
deles não sobreviveriam por muito tempo, especialmente Abner que continuava definhando. Mas uma
vez a vida pregava uma peça nela, sua revolta com tudo e a sensação de abandono e solidão só
aumentava. Não podia perder mais nada de valioso para ela, precisava proteger sua nova família, pois
não suportaria não os ter em sua jornada. Apesar de seu comportamento mais agressivo, sentia
necessidade do amor e da aprovação deles, especialmente de Surita. Não queria fazer nada que
pudesse lhe causar mais sofrimento do que já vivera.

Não sabiam quanto tempo teriam que permanecer escondidas. Deixaram suas roupas reservar para
proteger Abner do frio. Ouviam os barulhos e gritos do acampamento. Surita pedia com fervor para a
Divindade afastar aqueles seres de perto deles. Sara saiu em busca de algum alimento, se esgueirando
entre algumas árvores e arbustos, descobriu algumas raízes, porém não tinha como cozinhá-las, um
pouco mais a frente encontrou árvores frutíferas o que trouxe alívio para seu estômago e coração.
Comeu alguns dos frutos ali mesmo e levou outros para a gruta. Contou a matriarca onde os
encontrara para poderem se revezar na busca pelo alimento.

No terceiro dia de esconderijo, a jovem ficou encarregada de buscar os frutos. No caminho que
normalmente fazia até o pomar avistou dois ogros caminhando, pareciam que também iam até lá.
Desviou um pouco seu caminho para se esconder atrás de uma grande rocha que viu ao longe.
Parecia que finalmente a sorte lhe sorria, pois ao redor pedra encontrou algumas ervas que sabia
serem fortificantes, pois o curandeiro dava a Surita quando ela precisava restabelecer sua energia
para combater a tosse sangrenta. Coletou algumas, poderia macerá-las com algumas pedras da gruta
e dar a Abner. Ficou ali por cerca de 2 horas, até os ogros partirem de volta ao acampamento e ela
poder coletar alguns frutos.

Quando voltou, encontrou Surita desesperada com sua demora. Explicou-lhe o que tinha acontecido e
sobre as ervas que encontrou. Mais do que depressa, as mulheres procuraram os materiais
necessários para providenciar o remédio para o garoto com a chama da esperança novamente acesa
em seus corações. Deram pequenas porções da mistura que Sara fizera para ele, apesar do desejo de
Surita de dar tudo de uma vez para que a cura viesse rápido. A jovem se lembrava que não poderia
exagerar para não sobrecarregar o coração do menino.

No início da noite, Abner já parecia mais forte, não precisava mais de tantas roupas para se sentir
aquecido. Foi quando os sons vindos do acampamento ficaram mais intensos, os ogros se preparavam
para partir, finalmente. Pelas histórias que Sara tinha ouvido quando criança, esses monstros
contavam com a proteção das Sombras e por isso só viajam a noite. As Sombras eram as criaturas
mais temidas do reino, pois atacavam a mente das pessoas, trazendo à tona seus medos mais
profundos.

Na manhã seguinte, só ouviam o cantar dos pássaros e o som do vento nas árvores ao seu redor.
Surita saiu da gruta para verificar se os monstros tinham partido. Encontrou o local onde acamparam
29
vazio e destruído. Contou a marca de, pelo menos, sete fogueiras, carcaça de mais de 50 animais dos
mais diversos tipos e dejetos espalhados por todo o perímetro que ocuparam. O caminho parecia
seguro novamente.

Com a notícia, Sara voltou até onde encontrou as raízes, sabia que elas trariam mais força a Abner.
Coletou o máximo que pode e voltou para a gruta, onde Surita preparava uma fogueira próximo a
entrada para poderem assar o alimento. Mais um dia de descanso e boa comida e poderiam seguir
em direção a Vaustre.

O percurso até a cidade foi mais tranquilo, com Abner cada dia mais forte, novamente com brilho no
olhar, a cor retornando a sua face, o apetite mais voraz que o habitual. Já próximo ao seu destino
viram algumas propriedades que se erguiam fora dos seus muros de Vaustre com algumas avarias,
com plantações destruídas. Sabiam que era obras dos ogros que cruzaram seu caminho. Sentiram que
todos ali, incluindo eles, precisavam recomeçar. O que poderia trazer oportunidade de moradia e
emprego a eles.

30
Capítulo 8
Vaustre era uma cidade menor que Langdy, pertencia a província de Salastru, que fazia divisa com
Froster e ficava mais ao interior do reino de Espéria. A cidade vivia de sua agricultura e dos viajantes
que passavam por ela rumo a capital do reino que se encontrava a leste da província. Seus habitantes
já se habituaram aos ataques de orcs e ogros, por estarem localizados em um dos caminhos
alternativos para a capital.

Quando entraram na cidade, os viajantes viram as mais diversas construções serem reerguidas. A
população de Vaustre unia forças para, mais uma vez, colocar a cidade em pleno funcionamento.
Ouviam os cidadãos agradecendo por não terem sido atacados pelos dragões, que destruíam com seu
hálito de fogo e queimavam tudo. Mais uma vez a Divindade os protegera de tamanha destruição. Sara
deu de ombros, como poderiam agradecer uma desgraça daquele tamanho, não percebiam que tinha
sido esquecidos e deixados à própria sorte assim como ela e seus companheiros?

Logo encontraram o que parecia ser uma hospedaria, estava sendo também reconstruída. Viram uma
senhora baixinha de cabelos brancos e algumas marcas do tempo na pele coordenando o trabalho de
cinco homens que erguiam uma nova parede no que outrora foi um estábulo. Ela se vestia com
roupas simples de cores vibrantes em tons de vermelho e laranja. Foi Surita que tomou a iniciativa de
falar com ela:

– Bom dia, senhora!

– Bom dia! Infelizmente ainda não tenho como hospedar ninguém, como vê estamos terminando de
arrumar o que aquela horda de ogros destruiu mês passado.

– Vimos esses monstros na estrada a caminho daqui.

– Então imagina que não tenho como ajudá-los…

– Na verdade, eu e meus filhos buscamos abrigo em troca de trabalho. Podemos ajudar a senhora no
que precisar.

Olhando para eles, Karin viu o quanto estavam emagrecidos e com aparência abatida e se
compadeceu deles. Lembravam muito sua filha e netos que morreram cinco anos antes, no último
ataque de dragões a cidade. Desde então não tinha muita ajuda nos cuidados da hospedaria e decidiu
ajudar aquela pobre família.

– Sejam bem-vindos, então. Meu nome é Karin. - Disse estendendo a mão

31
– Eu sou Surita, essa é Sara e esse Abner.

Juntos entraram na velha hospedaria, a anciã os levou até uma pequena construção nos fundos do
terreno. Era uma casa que foi separada por uma parede para formar duas habitações independentes.
A da direita era ocupada pela idosa e a outra estava vaga. Era uma pequena sala com uma lareira na
qual se podia cozinhar e dois pequenos quartos, todos com móveis antigos, mas muito bem cuidados.
Na sala havia uma mesa quadrada com cadeiras, um banco mais afastado e algumas almofadas no
chão. Nos quartos tinhas uma cama com um pequeno baú em cada. Era o melhor lugar que
conseguiram desde que se juntaram em Cotune.

Passaram então a ajudar Karin em tudo na hospedaria, Abner e Surita se encarregaram da limpeza e
organização dos quartos no piso superior e Sara ajudava Karin com o salão e a cozinha. Os dias se
passaram tranquilos e um afeto crescia entre os quatro. Pacientemente, a anciã ensinava ao garoto o
trato da horta e do galinheiro. Sara buscava por algumas sementes no pequeno comércio local para
poderem oferecer maior diversidade de pratos e sabores aos futuros hóspedes e Surita fazia reparos
nas roupas de cama e toalhas das mesas.

Em menos de um mês reabriram a hospedaria, e todas as moedas que recebiam eram revertidas em
melhorias para os hóspedes. Novo enxoval, mais animais e vegetais para incrementar a cozinha. A
fama da comida de Sara se espalhava pela cidade e cada vez mais pessoas viam provar seus pães,
ensopados, bolos e sucos. A jovem fazia o que parecia ser mágica com suas misturas. Eram tantas
pessoas que procuravam a hospedaria apenas para comer, que logo tiveram que contratar uma
ajudante para Sara. Eram tempos de paz para todos.

A amizade entre Karin e Surita crescia e se tornaram confidentes. Em uma de suas conversas a
mulher contou a anciã sobre o sonho da filha adotiva em se tornar curandeira e o quanto ela queria
poder realizá-lo. Confessou que guardava todas as moedas que ganhava como gorjeta no intuito de
poder pagar o dote de aprendiz para Sara iniciar seus estudos, especialmente depois de assistir a suas
habilidades com as ervas e sua dedicação nos cuidados com Abner quando foi envenenado pelo velho
mago meses antes.

A idosa se comoveu com a história contada por Surita e no dia seguinte logo que o sol nasceu saiu
antes que os outros tivessem acordado. Mesmo não sabendo onde estava Karin, começaram a lida do
dia, Sara foi a cozinha preparar o desjejum dos hóspedes, enquanto Abner cuidava dos animais e da
horta e Surita preparava o salão. No meio da manhã Karin voltou com uma expressão de
contentamento no rosto e chamou os três para uma conversa na cozinha:

– Sou uma grande amiga de uma das curandeiras mais antigas de Vaustre e fui ter uma conversa com
ela eu aceitou iniciar o treinamento de Sara em troca de algumas refeições. Você, minha jovem,
precisa ir até a casa dela ainda hoje.
32
– Nossa, Karin! Não tenho palavras para agradecer… - disse Sara abraçando-a – e a você também,
Surita. Tenho certeza que você que contou meu sonho para ela.

– Com dedicação nesse novo aprendizado, Magna acredita que em três ou quatro meses você poderá
partir para a escola da capital da província e concluir seus estudos. Até lá podemos juntar mais
moedas para o dote que a escola exige.

Naquela tarde, Sara foi até a casa da curandeira, era uma construção pequena, mas muito bonita.
Caiada de amarelo com algumas trepadeiras de um verde muito vivo subindo pelas paredes, uma
porta de topo arredondado com entalhes de flores. Quando bateu, uma senhora alta, com cabelos
brancos mesclados aos poucos fios negros que restavam, algumas rugas ao redor dos olhos verdes,
com roupas de cores mais sóbrias dos que as que Karin costumava usar e um semblante que
misturava altivez e simplicidade que fez com que a jovem se recordasse de Gaya.

Logo foi convidada a entrar, era uma sala mais ampla e iluminada do que parecia vendo a casa de
fora, com uma bancada repleta de vidros com muitas ervas secas em seu interior, próximo a janela
havia um móvel que lembrava uma pequena escada larga com 4 pavimentos todos com vasos de ervas
frescas, da lareira se estendia um fogão com caldeirões de tamanhos variados. No outro extremo do
aposento havia uma mesa retangular com cadeiras que não combinavam entre si, mas davam um
charme especial ao ambiente, duas poltronas perpendiculares entre si e uma velha cadeira de
balanço. Era possível ver ao fundo uma passagem com uma cortina de contas que dava privacidade ao
que parecia ser o quarto de Magna.

A curandeira explicou a Sara que daria o conhecimento básico que ela precisaria para iniciar seus
estudos, já que pela sua idade poderia iniciar na escola de curandeiros em uma turma mais avançada
e isso encurtaria o seu tempo de aprendizado. Ela deveria passar o dia todo com Magna e ajudá-la a
preparar as ervas e elixires, as misturas dos chás e acompanharia alguns atendimentos que deveria
fazer. Também seria instruída sobre os deveres éticos que precisava seguir. Tudo aquilo fez com que o
coração de Sara pulasse de alegria, não via a hora de começar.

Foram dias muito cansativos e prazerosos para a menina-moça. Aprendia o nome e as propriedades
de cada planta e erva que havia, as misturas e as proporções adequadas para cada sintoma. Conheceu
doenças que nunca sonhara que existia, como identificá-las pelos relatos de quem procurava ajuda e
como tocar em cada pessoa e o que buscar nesse exame.

Saía muito cedo de casa e voltava a noite, passou a conviver pouco com sua família e Karin, mas
ninguém reclamava, percebiam a alegria na voz de Sara quando contava sobre seus novos
conhecimentos. Aprenderam a aproveitar o tempo que tinham juntos. O coração de Surita se enchia
de orgulho e encanto a cada palavra que a jovem dizia, essa conquista era um pouco dela também e
dividiam com alegria esses momentos.
33
A dedicação de Sara foi tão intensa, que em três meses estava pronta para ir à escola de curandeiros
de Pamador, a capital da província. Magna então mandou uma carta ao diretor de lá contando sobre
sua aprendiz, seus avanços e sua dedicação. Duas semanas depois a resposta chegou, a jovem poderia
iniciar seus estudos no início do outono, o que significava que deveria partir na próxima semana.

34
Capítulo 9
Há dois dias de chegar a Pamador, Sara recordava seus últimos momentos em casa. Abner estava
feliz, pois finalmente teria um quarto só seu. Surita preparava sua bagagem, tinham comprados
roupas novas, Karin tricotou um novo xale e doou algumas peças do enxoval da hospedaria. Quando
partiu com a caravana, sua última visão foi das mulheres em um semiabraço acenando a ela e o
garoto ao lado delas. Sabia que demoraria a vê-los de novo. Seu consolo era que poderiam se
corresponder e que quando voltasse daria uma vida melhor a todos.

Pamador era uma cidade impressionante, com muitas pessoas indo e vindo, a cidade tinha um padrão
rosado nas paredes das construções que eram dos mais variados tamanhos. O vozerio estava em toda
parte e pessoas de todos os tipos andavam pelo comércio. A escola de curandeiros era uma grande
construção ao sul da cidade, ocupava pelo menos metade da longa extensão do muro da região. Com
paredes altas que escondiam 5 pavimentos de salas de aula, laboratórios e dormitórios, ao centro
estava o grande pátio que era visto por todos os corredores internos. No centro de tudo a grande
estufa abrigava as mais variadas ervas, plantas e frutos, capazes de produzir os melhores remédios e
os piores venenos que se tem notícia.

Chegando ao portão de entrada, Sara se juntou a outros novatos, a maioria mais jovens do que ela.
Pareciam ter a mesma idade que tinha quando deixou sua terra natal anos antes. Percebeu que sua
temporada como aprendiz de Magna poupou muitos anos de estudo. Um curandeiro poderia demorar
até dez anos para estar pronto a partir e trabalhar por conta própria e se mantivesse seu nível de
comprometimento e dedicação, levaria menos tempo que os outros. Foram recebidos por alunos que
estavam prestes a se formar e conduzidos a um grande salão com grandes mesas postas paralelas a
um tablado onde se encontrava a maior mesa que Sara já tinha visto e a mais bonita também, os
entalhes das pernas da mesa traziam representações das estações do ano e sua influência sobre a
vegetação e a lateral como a lua podia fazer o mesmo. Era magnífico o quanto se podia entender do
poder curativo das plantas só de se observar aquela mesa.

O diretor surgiu de uma porta lateral. Conrald era um homem maduro, aparentava ser alguns anos
mais jovem do que Magna, a julgar pela quantidade bem menor de cabelos brancos que contrastavam
com seus cabelos amarelo-escuro. Era dono de grandes olhos marrons que se moviam rapidamente
sobre todos os novatos, parando um tempo levemente mais longo seu olhar sobre Sara. Vestia-se de
forma sóbria, como Magna, com tons de marrom e bege se sobrepondo em uma calça de corte reto,
uma túnica larga sobre a qual pendia um colete desamarrado. Postou-se a frente de todos e disse:

– Bem-vindos, novatos! É com grande alegria que os recebemos dentro de nossa escola para
partilharmos nossos conhecimentos sobre os males que afligem o corpo dos seres humanos e a
melhor maneira de curá-los. Lembro a todos que, diferente da cidade escola de Mirad, aqui não
lidamos com magia, demônios ou feitiços. Tudo o que fazemos está provado por centenas de anos de
35
estudos e conhecimento que pode ser repetido à exaustão com os mesmos resultados. Por isso é
proibido a qualquer curandeiro do reino de Espéria a prática da magia ou feitiçaria, mesmo que com
boas intensões. Agora os alunos sêniores os conduzirão aos seus dormitórios e ao anoitecer os
aguardamos para o banquete de recepção dos novatos.

Sara foi, com as outras poucas meninas do grupo, conduzida ao dormitório destinado a elas. Era
apenas um corredor com aproximadamente quinze quartos. Cada quarto tinha duas camas com seus
respectivos baús e duas mesas de estudos. Haviam cinco quartos vagos e suas companheiras foram
destinadas em pares a cada um deles. Ao final da divisão a estudante sênior que as acompanhava
indicou a Sara um quarto que já tinha uma ocupante. Ela não estava ali, mas pode observar sua
manta cuidadosamente dobrada sobre os pés da cama de lenções alvos, com uma grande almofada a
cabeceira, sobre o baú pousava uma outra manta mais pesada de tricô e sobre a mesa de estudos
alguns livros enfileirados no canto direito e algumas penas sobressalentes a esquerda.

– Você ficara com a vaga de Corina, uma garota que desistiu recentemente de concluir os estudos
para viver um grande amor, quanta bobagem! - Disse a moça a sua frente revirando os olhos. - Meu
nome é Rubia, a propósito, e estou disponível para te ajudar no que for preciso, novata.

– Sara! Meu nome é Sara!

– Sim, claro! Sara.

Sara não entendeu aquela postura petulante de Rubia, optou por relevar, afinal agora poderia viver
seu sonho e nada atrapalharia. Tinha sido instruída na carta de admissão que deveria procurar o
diretor depois de se instalar, então tratou de afastar aqueles pensamentos de sua cabeça para se
apressar em cumprir o que tinha sido solicitado. Arrumou cuidadosamente seus pertences no baú.
Não eram muitos, algumas saias em tons de marrom e bege, túnicas brancas e 3 espartilhos em tons
de verde, tudo escolhido com cuidado sob as orientações de Magna. Também ajeitou suas mantas
sobre a cama e se espantou ao notar que também tinha uma almofada em sua cabeceira, era a
primeira vez que teria tal luxo.

Tudo pronto, se dirigiu a sala do diretor seguindo as indicações de algumas placas que haviam nas
paredes. Em seu caminho notou estudantes indo e vindo pelos corredores, os aromas mais diversos se
espalhavam pela escola alguns ela reconhecia com facilidade, outros, no entanto eram completamente
desconhecidos. Chegou a uma porta de madeira simples com os dizeres “DIRETOR” entalhados na
madeira. Bateu. A porta se abriu e uma voz grave a convidou para entrar.

A sala ampla tinha estantes nas paredes laterais repletas de livros do mesmo tamanho, formato e cor.
Na parede oposta a porta uma grande janela que parecia dar visão para a rua e a sua frente uma
grande mesa com muitos papéis dispostos sobre ela, uma cadeira de encosto alto e mais duas
36
cadeiras mais simples postas à sua frente. Uma grande e antiga tapeçaria cobria todo o perímetro da
mesa. Sentado na cadeira alta estava o diretor e segurando a porta para que entrasse, um dos alunos
mais velhos. Conrald segurava uma folha em suas mãos e sem tirar os olhos dela indicou uma
cadeira para a jovem enquanto o jovem fechava a porta atrás de si.

Depois de alguns poucos momentos, o homem colocou a folha sobre a mesa e olhou nos olhos da
jovem:

– Então você é a Sara? - A menina acenou com a cabeça – Magna foi uma aluna exemplar em nossa
escola, estava aqui há 4 ou cinco anos quando cheguei. Ela descreve maravilhas sobre você nessa
carta e eu não pude deixar de conferir seu potencial, inda mais com essas referências.

– Muito obrigada, senhor!

– A maioria aqui considera você velha para iniciar seus estudos. Honestamente eu também, apesar
disso vou te dar uma chance, minha jovem. Durante a próxima semana será submetida a uma série
de teste sobre o seu conhecimento e assim veremos se pode já iniciar nas turmas mais avançadas,
como está escrito em sua carta de recomendações. Você terá acesso irrestrito a biblioteca, caso
queira. Começaremos a manhã, estarei te esperando na primeira hora aqui mesmo. Hoje poderá se
familiarizar com nossa propriedade.

– Muito obrigada novamente, senhor!

Sara saiu da sala preocupada. Magna nunca aplicara testes, apenas perguntava algumas coisas
enquanto trabalhavam juntas, estudava os livros que a mestra tinha e apenas isso. Sem saber muito
bem por onde começar, foi para a biblioteca. Relembrar alguns detalhes da teoria seria muito bom e
mais tarde iria a estufa para ver o que conseguiria reconhecer. Estava ansiosa e apreensiva, não sabia
o que esperar dos testes.

No final da tarde, retornou ao dormitório com alguns livros consigo e papéis, penas e tinta. Sua
companheira de quarto já estava lá. Era uma jovem de sua idade, talvez pouco mais velha, com a pele
morena, cabelos e olhos negros, rosto e nariz afilado e um semblante amistoso. Se cumprimentaram
e Sara notou um olhar curioso da jovem. Descobriu que se chamava Jussana, vinha do extremo sul de
Espéria para estudar em Pamador que era considerada a segunda melhor escola de curandeiros do
reino, perdendo apenas para a escola da capital geral.

Jussana contou que há dias corria um boato de uma novata mais velha que viria para estudar. Todos
estavam curiosos sobre qual seria sua turma, se vinha de outra escola, o quanto já tinha de
conhecimento. Sara contou-lhe sobre suas experiências nos cuidados de Surita e Abner, seu trabalho
com Magna e sobre os testes que passaria.
37
– Se é mesmo o sr. Conrald que vai aplicar os testes tenha muito cuidado, ele é muito rigoroso e não
admite erros tolos.

Sara, que já estava nervosa, chegou a sentir náuseas. Chegou a pensar em desistir, não se sentia
capaz de cumprir qualquer teste, especialmente com esse rigor. Mas não podia decepcionar sua
família que tanto sacrifício fizera para lhe dar essa oportunidade, ou sua mestra que colocara sua
reputação em jogo por ela. Tinha que enfrentar e fazer o seu melhor. Tratou de abrir os livros e
começar, precisava estar pronta para a manhã seguinte, mesmo sem saber o que deveria fazer
primeiro.

Estava a porta da sala do diretor junto com o primeiro raio de sol. A pontualidade da jovem
surpreendeu o diretor, que a convidou a entrar e sentar numa mesa de estudos colocada ali
especialmente para ela. Seu primeiro teste era para escrever uma carta para sua família contanto as
primeiras impressões da escola, isso causou estranheza em Sara, parecia que só queriam saber se
ela era capaz de escrever.

Foram uma sucessão de textos escritos naquele dia, sobre si mesma, as ervas que já conhecia e suas
propriedades, descrever as doenças que ajudou Magna a tratar com seus principais sintomas, e
coisas assim. No segundo e terceiro dia dos testes mais textos, tanto q sua mão formigava ao final do
dia, sendo necessária massagem com um tônico fortalecedor que aprendera a fazer. No quarto dia
respondeu uma série de perguntas de forma oral e escrita elaboradas por todos os professores da
escola. Era muito exaustivo. Nos dois dias que se seguiram foram testes práticos na estufa e
laboratórios, precisava mostrar que sabia reconhecer as ervas, sabia com cultivar cada uma com
suas particularidades e o preparo de elixires, tônicos e chás.

No último dia de testes foi levada ao dormitório dos alunos mais novos, um dos garotos tinha
amanhecido indisposto. Caberia a Sara conversar com ele, examinar, propor e preparar seu
tratamento. Um frio percorreu sua espinha, ela nunca tinha feito nada sozinha, sempre Magna
conduzia as conversas e exames, permitia alguns apartes da jovem, mas nunca a deixou totalmente
responsável por um doente. Imaginando que seria tachada de fraude, respirou fundo e pensou: “farei
o meu melhor! Não vou decepcionar ninguém!” E começou a falar com o menino.

Ao final da conversa e exame, notou que algo que o menino teria ingerido o deixou adoecido, mas
não era grave. Foi a estufa acompanhada pelo diretor, coletou três ervas, com duas preparou um chá
para acalmar o estômago do seu doente e com a restante fez um emplastro para que os vapores
medicinais trouxessem sua vitalidade de volta. Questionada sobre suas escolhas, respondeu:

– Acredito, que de forma imprudente, o menino ingeriu uma pequena quantidade de erva-da-nevoa
que o deixou assim nauseado e sem forças. Sorte ter sido pouco, pois em altas doses ele poderia ter
morrido, já que o principal efeito é a perda de força vital. Estou preparando um chá com hortelã
38
bravo com um pouco de calmantita e um tônico de cacodila para ajudar a recobrar as forças.

No final do dia o garoto passava bem. Conrald se surpreendeu muito com a garota, pois ele próprio
tinha salpicado uma mísera quantidade se erva-da-nevoa no jantar no menino. Só estudantes
seniores seriam capazes de detectar os sintomas. O que a colocava numa turma do quinto ano, era
surpreendente! Agora, a luta do diretor seria para que os alunos a aceitassem….

39
Capítulo 10

Sara teve um começo muito difícil na escola de curandeiros, sua experiência como aprendiz lhe dera
um tipo de conhecimento que a maioria dos estudantes poderia experimentar no último ano se sua
formação, ser aprendiz de um profissional já habilitado. A teoria sobre as ervas, feitios que cada uma
exigia era muito enfadonha, a prática era o que deixava tudo mais fácil. Imaginar sintomas e conversas
com doentes era muito complicado, ouvi-los é que fazia tudo se conectar. Perceber a sutileza de aromas
harmoniosos ou desarmônicos, sentir a diferença quando cada erva era acrescentada a uma mistura
dava mais vida a ela. Sara já vivenciara todas essas práticas que seus colegas apenas liam, o que dava a
ela mais facilidade de aprender.

Isso somado a sua simplicidade e humildade a isolou dos outros, não conseguia fazer grandes amigos
entre os estudantes. Tinha alguma intimidade apenas com Jussana. Como quem trocava conhecimentos
e algumas confidências. Convivia mais com a criadagem da escola. Cozinheiras, arrumadeiras, mas
seus preferidos eram os jardineiros. Eles lhe contavam e mostravam detalhes tão escondidos em cada
planta que nem os grandes mestres conheciam. Aprendia a reconhecer as ervas desde o desabrochar
da terra, a época do ano que eram mais comuns e a temperatura certa a serem plantadas e colhidas
para poder extrair mais de suas propriedades.

Conseguia resultados tão impressionantes nos testes teóricos que em 6 meses passou para a turma a
frente da sua, podendo já iniciar a prática. Com os novos colegas não foi mais fácil, pois apresentava
uma destreza e precisão digna de profissionais. Com isso sua fama de “sabe-tudo” estava em todos os
corredores do local e assim como os boatos sobre sua origem e como chegara até ali. O jeito mais
reservado de Sara não ajudava em nada e ela sentia-se cada dia mais só. Sentia falta de casa, das
conversas da cozinha da hospedaria de Karin, dos conselhos de Magna, no carinho de Surita, até das
pequenas discussões com Abner.

Foram dois anos muito conturbados, a jovem muito se questionava sobre o que fizera chegar até ali. Em
sua terra natal nunca tinha pensado em ser curandeira. Mariah sempre a incentivava a seguir seu
coração e ser natural, sua curiosidade pelas ervas sempre foi grande, assim como sobre outras questões

40
que observava quando se sentava a beira o lago e observava a vida correr em seu fluxo natural. Sentia
uma energia pairando no ar. Quando conheceu Surita foi que começou a se encantar pela arte da
cura, o encantamento com que a mulher falava sobre o assunto despertou nela esse olhar sobre as
plantas que antes não era tão clara. Ter participado do tratamento de sua mãe adotiva e Abner fez a
chama crescer, mas será que era esse mesmo o seu caminho?

Por mais que procurasse não via outro, mas aquela sensação de vazio estava lá. Parecia que nada no
mundo iria preenchê-lo novamente. Sentir-se tão só apenas piora a sensação e cada vez mais Sara se
isolava. Nem as cartas que recebia com notícias de casa a animavam, apenas aumentavam a sensação
terrível de solidão que era muito bem escondida em suas respostas para que não deixassem ninguém
mais, além dela mesma, sentir essa dor.

Para amenizar a solidão passou a ajudar os novatos em seus estudos. Passava a eles seu
conhecimento e experiências, assim poderia conversar com outras pessoas e não só com seus livros.
Ajudá-los a entender uma mistura difícil ou ensinar um pequeno truque que facilitava a memorização
e, principalmente, ver que isso fazia a diferença para aqueles pequenos estudantes dava algum alívio
a seu sofrimento e sensação de abandono.

No entanto, quando não estava nas aulas ou com os jovens alunos, estava estudando em seu quarto,
na biblioteca ou pelos jardins da escola. Num desses passeios avistou uma bolinha branca que parecia
feita de pelos por baixo de um arbusto de azulões. Curiosa como era foi investigar e eis que uma
pequena gatinha se espreguiça preguiçosamente e a olha com seus grandes olhos amarelos. Aquele
olhar derreteu o coração da jovem estudante que a pegou com delicadeza e a bichana logo se aninhou
em seu colo.

Sara levou-a a seu dormitório, deu um pouco de água e a deixou dormir sobre sua almofada de
cabeceira. Observá-la trouxe-lhe muita paz. Esperava que a gatinha não resolvesse partir, mas
também entendia que ela era um ser livre e deveria fazer suas próprias escolhas. Jussana também se
encantou com o bichinho, mas não acreditava que ele ficaria.

Nos dias que se seguiam, sempre que Sara voltava para seu quarto depois das aulas lá estava a sua
bolinha de pelos esperando para se enroscar em suas pernas e dormir em seu colo enquanto
estudava. Então a jovem resolveu dar um nome a sua nova companheira, Genevive. Esse pequeno ser

41
passou a fazer seus dias mais alegres e com mais sentido. Motivou mais Sara a se dedicar aos estudos e ao
seu aprendizado. Não entendia como um ser tão pequeno poderia mudar tanto seu interior.

Assim sua estadia na escola ficou mais leve e feliz, pois sempre que podia Genevive a seguia pelos jardins e
despertava o sorriso a muito esquecido por Sara. Essa nova amizade afastou ainda mais os outros
estudantes, eles não entendiam a dedicação da garota a seu animalzinho. Felizmente, nada disso podia
afetar Sara, pois a motivação para viver e continuar sua jornada tinha, finalmente, voltado a seu coração.
Ver aqueles olhos amarelos olhando para ela com amor e admiração mudara em definitivo seu coração
dolorido. O ano seguinte passou com muito mais alegria e fluidez.

Nas últimas semanas do verão foi chamada a sala do diretor.

– Boa tarde, Sara! Como você está?

– Boa tarde, senhor. Estou bem e o senhor? Como tem passado?

– Envelhecendo... -disse Conrald, no que ele realmente tinha razão. Seus cabelos já estavam com mais fios
brancos do que os amarelos e mais marcas se somavam ao redor de seus olhos já mais cansados. - Mas
não foi por isso que pedi que viesse. Sei que seus dias aqui não foram fáceis, mas você tem sido uma aluna
exemplar.

– Muito obrigada, senhor. - Respondeu a jovem sem nenhum entusiasmo na voz. Não se via tão brilhante
quanto diziam ser. Ela sabia que poderia ser melhor do que era, que deveria se dedicar mais para ser uma
curandeira melhor e assim honrar todo o sacrifício que sua família adotiva fazia por ela, sempre
mandando novas roupas, alguns instrumentos e até poucas moedas para que pudesse viver ali.

– Então? O que me diz? - A voz grave do diretor a tirou de seus devaneios…

– Perdão? Desculpe senhor, me perdi em pensamentos por um instante. O que dizia?

– Eu e os professores dos alunos seniores conversamos e acreditamos que está preparada para iniciar seus
estudos como aprendiz oficial da escola. A partir do início do outono você fara parte da turma do último
ano de nossa escola, atenderá os doentes que nos procurarem sob a supervisão direta de um dos
professores e poderá concluir seus estudos no fim da primavera.

Era a melhor notícia que tinha desde que encontrara Genevive. Estava exultante de alegria e também com
receio pois significava que em meses seria uma curandeira habilitada e poderia trabalhar por sua conta e
ter a vida que sempre sonhou. Voltou correndo para seu quarto para contar a novidade as suas únicas
amigas. Jussana, mesmo com uma ponta de inveja, celebrou a conquista de Sara, já a gatinha gostou da
bagunça, mas não entendia nada do que estava acontecendo, mas ver a alegria de sua tutora a deixava feliz.
42
Grannus foi o professor destinado a orientar o grupo de estudantes seniores ao qual Sara pertencia.
Era um homem grande, quase gordo, com uma vasta barba e cabelos encaracolados de tonalidade
avermelhada que se uniam de tal forma que não era possível identificar onde um começava e ou
outro terminava. Sempre usava calças pretas e túnicas bege. Tinha um olhar duro em seus olhos
marrom claro. Tinha fama de ser um professor muito exigente. Mas nada disso intimidou Sara, que
via com grande contentamento a possibilidade de voltar para casa.

Ela dedicou-se como nunca aos estudos. Cumpria com zelo as tarefas que lhe eram destinadas.
Conversava com calma e carinho com as pessoas que buscavam ajuda na escola, mesmo que fosse só
para ter com quem conversar, afinal entendia bem dessa necessidade. Naqueles meses de
atendimento, notou que a maioria das doenças se manifestavam a partir de um estado mental ou
emocional ruim e quando foi questionar Grannus sobre isso teve uma resposta mais dura do que a
que esperava:

– Você anda praticando magia, filha? Quem qual livro leu que as doenças são provocadas por
emoções? Só aqueles loucos dos magos acreditam nisso! Aqui provamos que os males que afligem o
corpo têm origem no corpo e somente nele. Não quero mais ouvir um sopro sobre esse assunto para
não me decepcionar mais com você, Sara.

Assim a aprendiz passou a guardar essas observações só para si, até que, com o passar dos dias se
esqueceu completamente delas e passou a ser mais objetiva no trato com os doentes. Em seu íntimo
não gostava daquilo, sentia diminuir um pouco seu amor pela arte da cura. Algumas vezes, um ou
outro caso mais complexo que conseguia resolver devolvia um pouco do encantamento de Sara pelo
ofício e isso mantinha o equilíbrio que precisava para seguir em frente.

43
Capítulo 11
Na viajem de volta a Vaustre as recordações de seus últimos dias na escola povoavam os pensamentos
de Sara. Lembrava-se do teste final, quando teve que fazer todo seu atendimento de cura sob os olhos
atentos de Conrald e dos quatro professores mais velhos. Trouxeram a ela uma mulher de meia idade,
semblante triste, olhar baixo, com os ombros encurvados. Seus cabelos dourados presos em uma
trança para tentar disfarçar que não eram mais tão bem cuidados, a roupa desbotada mostrava sinais
de desleixo.
Durante a conversa inicial, a doente relatava que não tinha energia para suas tarefas rotineiras, seu
apetite variava entre uma fome exagerada e uma completa falta de vontade de comer. Relatava que
suas roupas ficavam mais largas a cada mês, suas regras estavam irregulares, sentia sono o tempo
todo o que lentificava a execução dos afazeres domésticos. Sara examinou seu pescoço com cuidado e
não notou nada errado, esperava sentir aquela bola característica do mal de desfalecimento, doença
que atacava mais a mulheres. Sentiu sua barriga e seus batimentos do peito também não encontrou
nada anormal. Decretou que o sangue da mulher estava fraco e ela precisava de um elixir vitalizante
além de chás de erva-doce feitos em panelas de ferro fundido e em algumas semanas estaria bem.

Depois de entregar a mulher um frasco do elixir em cinco pequenos sacos de vime com a erva-doce,
foi inquerida pelos professores sobre o feitio do elixir vitalizante e o que poderia deixar o sangue de
um doente fraco. Respondeu mecanicamente as perguntas que foram feitas, pois o olhar triste da
doente não saia de sua cabeça. No fundo de sua alma, sabia que uma grande tristeza causava sua
doença, mas não poderia sonhar em falar isso em voz alta

Passou com louvor no teste e dois dias depois arrumava seus pertences para voltar para casa. Em um
saco de couro colocou suas roupas e mantas, no outro os livros, facas e colheres medidas. Amarrou-os
cuidadosamente juntos para poder colocá-los sobre um dos ombros. Com orgulho atou a cintura o
símbolo que a partir de agora era uma curandeira habilitada: um cordão trançado de couro do qual
pendiam três pequenas cabaças. Pegou Genevive em seus braços, deu um abraço em Jussana e olhou
para seu quarto pela última vez. Sabia que nunca mais retornaria aquele lugar.

Ao chegar na hospedaria que servia de lar para sua família foi recebida com festa. Surita a abraçava e
beijava seu rosto incansavelmente, Abner se tornara um homem-feito, até barba o rapaz tinha. Magna
mantinha seu ar magistral, mesmo com a idade pesando em seus ombros. Karin precisava de uma
bengala para caminhar e parecia não entender muito bem o que estava acontecendo a sua volta.

– Já faz um ano que a memória dela começou a flutuar e a cada dia está mais esquecida. Nos dias
bons conversa comigo fazendo as mesmas perguntas sobre mim e Abner, nos ruins me xinga
repetindo aos quatro cantos que estou tentando roubar a hospedaria dela. - Contou Surita, mostrando
seu cansaço pela primeira vez.

44
– Por que não me contou nas cartas, mãe?

– Não queria te preocupar, querida. Além do mais, Magna já me disse que pouco podemos fazer, é a
velhice chegando com sua loucura, então apenas tento deixá-la confortável.

Aquilo partiu o coração de Sara, sabia que a loucura de velhice quando chegava não ia mais embora,
não havia erva no mundo que revertesse essa doença. Teriam que se acostumar com essa situação.

Levou seus pertences ao seu velho quarto, colocou Genevive sobre sua nova cama. Era espantoso
como a gata tinha crescido, já ocupava metade de uma almofada de cabeceira. A bichana andou e
cheirou toda a palha que servia de colchão, rodou sobre si mesma e se aninhou para uma soneca. A
curandeira refém formada sorriu. Era bom mantê-la por perto e assim continuar tendo um sentido
para sua jornada.

Sentou-se na beirada da cama e um lampejo de um sonho antigo veio a sua memória: o pássaro de
fogo. Fazia muito tempo que não pensava nele. O sonho dera lugar ao sono sem sonhos dos últimos
anos. Aquela lembrança apertou seu peito, há muito esquecera o real motivo de ter iniciado nessa
jornada e pensar nesse sonho de infância fez o vazio querer tomar forma em seu coração. Genevive
sentiu a mudança de humor de sua tutora e pulou em seu colo em busca de carinho para tentar tirar
aquele sentimento ruim da alma de Sara e, mais uma vez, conseguiu.

Os primeiros dias foram preguiçosos, Surita não deixava com ela fizesse nada na hospedaria e não
tinha trabalho como curandeira ali. Passava a maior parte do tempo fazendo companhia a Karin ou
caminhando pela cidade, sempre seguida de perto por sua bola de pelos tão amada. Aquela rotina
entediava Sara, estava acostumada estar sempre em movimento.

No anoitecer do oitavo dia que estava em casa, recebeu a visita de Magna. A agora anciã parecia muito
feliz e pediu para conversar em particular com a jovem curandeira.

– Recebi uma solicitação de Mystra para ir trabalhar lá, pois o velho Milo, curandeiro da aldeia,
sucumbiu a tosse sangrenta.

– Que a Divindade o receba em sua paz.

– Sim, sim… estou velha, Sara. Gosto daqui, da minha casa, meus amigos. Pensei em indicar você ao
cargo.

– Seria maravilhoso!

– Ótimo, vou amanhã mesmo enviar uma carta avisando que você irá para lá…
45
– Surita vai ficar chateada. Ela contava que eu ficasse em casa por mais tempo.

– Minha querida, está mais do que na hora de você retomar seu caminho sozinha. Sei que sua mãe vai
entender, mesmo que doa. Ela já se habituou a estar sem sua presença, foram quase quatro anos com
você fora. Durante esse tempo conversei muito com ela sobre seu futuro. Surita sabe que você agora é
uma mulher e deve seguir seu caminho...

Sara desejava isso desde que iniciou seus estudos e finalmente chegou a hora de começar sua vida.
Sabia que seria difícil, mas não poderia adiar mais. E Mystra ficava a um dia e meio de viajem, seria
mais fácil de estar por perto da família, ajudar no que precisassem e ter os conselhos de Surita que
eram tão preciosos, apesar de muitas vezes contrários ao pensamento da jovem.

Depois de um período de preparação curto, e uma viajem bem agradável, Genevive e Sara chegaram
em seu novo lar. Era uma casa pequena de um único pavimento. Lembrava um pouco a de Magna,
com a ampla sala com lareira e fogão e um quarto mais reservado. Como o curandeiro anterior não
tinha família, todos os seus livros e instrumentos ficaram à disposição da jovem. Eram caldeirões,
frascos de vidro, punhais, colheres, até uma balança. Os moveis pareciam antigos, mas eram bem
conservados. A bancada alta, uma mesa de estudos próxima a ela, um banco e duas poltronas largas
tudo feito em madeira sem nenhuma decoração. No quarto uma cama com um baú e uma porta, que
causou estranheza em Sara que resolveu abri-la.

A jovem curandeira ficou maravilhada com o que viu, era um jardim com uma pequena estufa ao
fundo. Nele as mais diversas ervas e plantas eram cultivadas. Na estufa além de alguns vasos de
tamanhos variados encontrou outra bancada com tesouras de poda, punhais e pás para lidar com a
terra. Era maravilhoso! Genevive estava explorando o jardim e quando viu que sua tutora tinha
voltado para o interior da casa pulou pela janela num miado manhoso.

– Ah, gatinha! Aqui poderemos ser felizes, vou deixar tudo com o nosso jeitinho e você vai ver que
teremos uma vida boa.

Logo os primeiros doentes começaram a procurar a ajuda de Sara, mas a aldeia era pequena e muito
simples o que não permitia muitos ganhos financeiros, mas o prazer de ajudar aquelas pessoas e vê-
las bem depois de seguirem suas orientações não tinha preço que pudesse pagar. Ganhava muitos
presentes desde pães, bolos, xales e mantas até patos e galinhas, isso ajudava em sua sobrevivência,
mas não tinha o luxo que imaginou quando Surita falava de como seria sua vida como curandeira.
Conformou-se, era feliz assim, pelo menos na maior parte do tempo.

A vida seguia pacata. Sara dividia seu tempo entre o cuidado dos doentes, de Genevive e o trabalho no
jardim. Passou a perceber que o seu humor influenciava o crescimento das plantas e ervas que
cuidava, não bastava apenas seu conhecimento. Se num dia mais desanimado ou triste podasse ou
46
plantasse algo o tamanho das folhas e frutos era um pouco menor do que quando fazia em dias que
se sentia alegre. Notou diferença nas cores, sendo mais ou menos vibrantes e na quantidade de
extrato que conseguia para a produção de suas receitas. Essas observações a intrigavam, mas
pareciam muito místicas e não podia se aprofundar nesse campo. Porém começou a deixar esse
trabalho mais delicado para os momentos que estava mais feliz, se furtando da melhora que lidar
com o jardim trazia quando estava mais triste.

Cerca de dois anos depois que se instalara em Mystra uma grande novidade chegou a aldeia um
grupo de artistas mambembes. Por se tratar de um local muito pequeno e sem recursos não era
comum a visita dessas pessoas, eles apenas passavam por lá a caminho de Vaustre, Pamador ou
qualquer outra cidade maior. No entanto, aquele grupo se instalou nos arredores da aldeia e tinha
planos de permanecer por ali algum tempo fazendo algumas apresentações e produzindo um
espetáculo maior para apresentar na feira da capital geral, Féta.

Todos ficaram muito curiosos para conhecer aquelas pessoas. Era uma família de cinco pessoas: uma
anciã, um casal de meia idade, um jovem e um garoto. Eles viviam em duas carroças e uma tenda que
usavam para dormir e guardar seus pertences, cozinhavam em fogueiras que mantinham acessa todo
o tempo. Ocupavam seu tempo com costura, fabricação de utensílios estranhos e marionetes.

Sara ouviu algumas histórias sobre aqueles artistas, diziam que a mulher poderia ser uma bruxa que
se desviou do caminho da magia da natureza. Outros contavam que eram foras da lei disfarçados
fugindo da guarda real. Tudo porque não acreditavam que a aldeia poderia receber qualquer coisa
boa, por menor que fosse. As histórias despertaram a curiosidade da curandeira que decidiu que
quando se apresentassem iria vê-los e tirar suas próprias conclusões.

Estava voltando de uma visita a um dos doentes que acompanhava com Genevive andando ao seu lado
quando ouviu a voz de um rapaz:

– É muito bonita e muito jovem para ser curandeira. - Decretou ele

Ao olhar para o local de onde partira o som Sara pode ver um homem pouco mais jovem do que ela,
com cabelos marrom claro a altura dos ombros, olhos escuros vestindo uma calça preta, túnica
branca e colete vermelho. Ele tinha uma marca no lado esquerdo do rosto que parecia de uma ferida
antiga que não foi cuidada como deveria, mas isso não roubava completamente seu encanto. Tinha
um jeito galante e sedutor de olhar para ela, como nunca até então tinha sido olhada.

Como de costume, Sara deu de ombros e seguiu seu caminho, não era de dar conversa a estranhos,
mas aquele olhar não saiu de sua cabeça e, sempre que pensava nele entrava mais fundo em seu
coração.

47
Capítulo 12
Sara nunca tinha sido cortejada e por isso sempre se julgou indigna de ter um relacionamento
romântico. Quando estava saindo da infância os garotos sempre faziam piadas com ela, nunca
entendeu muito bem o motivo, porém não impediu que passasse a sentir-se feia e desajeitada.
Optou por não priorizar isso em sua vida. Na escola de curandeiros as coisas não melhoraram em
nada, era alvo de risadinhas as escondidas e os outros alunos cochichavam quando passava, o que
sempre acreditou ser sobre sua aparência e seu jeito mais reservado de ser.

Ter recebido aquele olhar fez um sentimento desconhecido se apropriar dela, algo que ela tinha
deixado enterrado dentro de si e despertou como um urso quando termina o período de
hibernação. Era boa aquela sensação, sentir-se admirada e desejada. Queria mais daquilo, sentir
aquele olhar sobre si que fazia com que sentisse a admiração de um homem por ela.

Finalmente a apresentação aconteceria e Sara poderia ver aquele jovem de novo, mesmo que a
distância. Não acreditava que ele iria se lembrar dela, muito menos olhar para ela. Se contentava
em vê-lo. Acreditava que isso faria com que sua vida voltasse ao normal.

Uma carroça foi colocada na praça da aldeia, um tablado de madeira se estendia do interior até
um metro pela lateral afora, uma cortina bordô gasta mostrava o limite entre o interior e o
exterior do veículo que servia de palco. Uma pequena tenda foi erguida em sua traseira e
impedindo que qualquer um visse os preparativos dos artistas. O primeiro a surgir da cortina foi
um homem de meia idade com um bigode negro de pontas curvadas para cima. Os cabelos curtos
e grisalhos semiescondidos por um chapéu cilíndrico com abas curtas preto. Vestia uma calça
listrada de amarelo queimado com vermelho vinho, uma túnica branca e um casaco preto. Ele
apresentou a “Trupe Ferriz” chamando cada um pelo nome. Primeiro foi Aila, uma mulher alta de
cabelos mesclados em branco e negro, olhos espertamente pretos, vestindo uma saia bordo com
uma túnica amarelo queimado e um espartilho preto. Depois veio Dalibor o garoto de cabelos
dourados e olhos escuros vestia calças pretas e túnica branca. Em seguida a anciã Agnes que
estava sentada em um banco baixo a frente do palco com cabelos tão brancos que era impossível
saber qual foi sua cor na juventude, olhos marrons com uma saia cinza escuro e túnica branca,
segurava um cesto pequeno, onde os donativos poderiam ser colocados. Por último veio o jovem
Arvid, hoje com os cabelos presos por um pedaço de tecido preto assim como suas calças e túnica.

A apresentação começou com um show de mágica do casal formado por Hakon, o chefe da trupe, e
Aila. Depois uma série de piruetas e malabares feitos pelo pequeno Dalibor e por último uma
apresentação de marionetes conduzida por Arvid com auxílio de Aila, agora também toda vestida
de negro. A história que os bonecos contavam falava sobre o amor de um casal era
constantemente atacado por uma bruxa, até que no final a força do amor vencia a megera e os
bonecos podiam seguir felizes. Sara imaginou que alguns beijos jogados pelo boneco vinham em
48
sua direção.

Depois dos aplausos, quando a multidão já se dissipava, Sara pegou Genevive nos braços se virou em
direção a sua casa quando sentiu uma mão segurar com delicadeza em seu braço

– Vai mesmo fugir assim, bela curandeira?

– Fugir? Eu? Não, estou a caminho de casa.

– Sem nem me dizer sua impressão sobre o show?

– Foi ótimo, gostei muito e…

– Mesmo dos beijos que o atrevido do Draco te mandou?

– O boneco?

– Só não o chame assim perto dele, pode ferir seus sentimentos. Ele é muito sensível.

Sara riu. Era divertido conversar com Arvid. Juntos caminharam até a porta da pequena casa da moça
que nem percebeu que já estava ali. Despediram-se com a promessa de um novo encontro para que o
jovem pudesse conhecer melhor a pequena vila e a história daquela belíssima curandeira.

Faltando poucas horas para o pôr do sol, o jovem bateu a porta de Sara para poderem caminhar pela
aldeia. Ela lhe contou sua história, desde quando começou a ter um sonho estranho que a fez iniciar
sua jornada por Espéria, mas não se sentiu segura ainda para falar sobre o que era o sonho, mesmo
assim depois de Mariah ele foi o primeiro a saber sobre o assunto. Contou seu encontro com Surita,
Ralf e Iduna. Sobre o sumiço repentino da jovem e o quanto se magoou com aquilo. A partida de Ralf
e tudo o mais que vivera até ali. Sentia-se muito bem contando sobre si para Arvid, era quase natural
falar com ele. Quando notaram o sol estava quase totalmente posto e a lua já despontava no céu.

Passaram a fazer essas caminhadas todos os dias e assim Sara também conheceu a história do jovem
Arvid. Era filho de Hakon e Aila, irmão de Dalibor e neto de Agnes. Passavam a vida percorrendo os
caminhos do reino para se apresentar e conseguirem sobreviver. Mas Agnes já não conseguia passar
muito tempo na estrada pois sentia muitas dores nas juntas, então Hakon achou que ali em Mystra
poderiam fixar moradia e participar das feiras das cidades maiores ali próximas. Acreditava que ali a
anciã estaria segura enquanto eles poderiam viajar pelas cidades e participar de algumas feiras. O
jovem parecia não gostar muito do plano, mas não tinha poder de decisão. Sara se prontificou a
ajudar Agnes com as dores, mas foi desencorajada já que ela acreditava apenas na magia dos magos e
bruxas. Apesar de não terem encontrado nenhum pelo caminho para saber se eram capazes de curá-
49
la ou não, a velha senhora não permitia que qualquer curandeiro chegasse perto dela.

Quando Sara perguntou sobre sua cicatriz, contou que quando criança era muito arteiro e caiu
quando tentava escalar uma árvore, como estavam longe de qualquer cidade, sua mãe fez o melhor
que pode com o pouco que sabia e mesmo assim ou talvez por isso ficou com uma marca tão
evidente.

Uma grande amizade começou a se formar entre os jovens. Quando a curandeira não estava entretida
com seus afazeres se encontrava com Arvid escutando sobre suas aventuras pelo reino. Ele lhe
contava como se metia e saia de pequenas enrascadas, a destruição que vira após ataques de orcs em
vária cidades e como muitas vezes sua família conseguiu escapar das mãos dos ogros. Omitiu apenas
suas aventuras românticas, pois era um sedutor nato. Dividiam confidências e sonhos. Sara percebia
a imaturidade do artista, mas isso não impedia que se encantasse com suas histórias e
principalmente com o jeito que olhava para ela ou pronunciava seu nome. Ele parecia mais melódico
na voz de Arvid e aquecia seu coração apaixonado.

Sara também frequentava o acampamento sempre que possível, onde era muito bem recebida.
Passava horas conversando com Aila e Hakon, eles eram grandes admiradores da magia natural e
ensinavam a jovem o pouco que sabiam sobre como utilizar as ervas e plantas para praticar pequenos
encantamentos. A jovem passou a olhar seu jardim de outra forma e perceber o quão pouco sabia
sobre as propriedades das plantas. Falaram também sobre as Sombras e seu intento de conquistar o
reino e o boato que existia em alguns lugares mais longínquos sobre uma antiga promessa que
poderia derrotá-los, mas ninguém sabia exatamente sobre o que se tratava e acabavam especulando o
que poderia ser.

Entendeu que esses seres eram temidos pois podiam manipular a mente das pessoas despertando
neles seus maiores medos e dores. Acabavam endurecendo o coração de quem cruzasse sem caminho
ao ponto de transformarem seus alvos em novos seres sombrios sem mesmo a pessoa perceber. Sara,
que já tinha medo deles pelo pouco que sabia, pois em sua terra era consideram de mal agouro falar
deles, ficou apavorada com essas novas informações.

Sempre que tinha essas conversas com o casal de artistas, Sara via o pássaro de fogo em seus sonhos.
Na maioria das vezes não tinha certeza que sonhara mesmo com ele, mas aquela sensação de que um
dia o veria de fato voltou a povoar seu coração, com o crescente amor por Arvid.

Não conseguia falar sobre seus sentimentos por ele então demonstrava levando ovos de suas galinhas
e patos, algumas raízes para poderem comer e até pães e bolos que ganhava como pagamento pelo
seu trabalho. Mas não sentia ser suficiente, então decidiu que ajudaria a velha Agnes a não sentir
mais dor. Sabia que estava sendo muito difícil para todos ter que viajar deixando-a sem saber se
ficaria bem, Aila confessara a jovem que as apresentações não rendiam muito mais pois iam sempre
50
as mesmas cidades nos últimos seis meses e não sabiam mais como inovar no show para atrair o
público de volta.

Começou a levar suas ervas curativas e preparar alguns chás para a anciã. Ensinou a todos com
prepará-los para que tomasse pelo menos duas doses diárias. Foi ganhando a confiança de Agnes e a
convenceu a fazer alguns escalda-pés para relaxar os músculos e aplicar alguns emplastros quando as
crises eram muito fortes. Assim semana após semana as dores foram se acalmando.

Cinco dias antes de completar três meses que estava tratando de Agnes, Sara acordou cedo para
visitar uma moça da aldeia que tinha dado à luz no dia anterior e encontrou Draco sentado à sua
porta segurando um envelope. Dentro dele havia um bilhete

“Nossa vida é na estrada, não temos parada. Agradeço o que fez por minha avó, pois assim podemos
fazer o que mais amamos: viajar em busca do nosso público. Deixo Draco com você, minha linda Sara,
para que nunca se esqueça de mim. Arvid”

51
Capítulo 13
Aquele foi um duro golpe no coração de Sara. Pegou o boneco com carinho e o levou até o seu quarto
e o colocou sentado em cima do baú, parecia que ele lhe olhava com tristeza por ter sido deixado para
trás. Não conseguiu segurar as lágrimas, Genevive a vendo tão triste pulou em seu colo e passava
delicadamente a cabeça em seu rosto, parecia querer enxugá-las. No fundo sabia que não aconteceria
nada além de amizade entre Arvid e ela, afinal a imaturidade do jovem era nítida e sua dependência
dos pais para tomar decisão a incomodava muito.

Sara teve que amadurecer rápido quando Surita adoeceu e assumiu a responsabilidade de cuidar de
Abner e do lar improvisado que tinham. Quando a mãe adotiva se recuperou começou a dividir com
ela os cuidados da família, e ambas se apoiavam muito uma na outra, era verdade, gostava de ouvir as
opiniões de Surita para tomar as suas decisões, mas não se sentia dependente dela. Como curandeira
aumentou suas responsabilidades para com outras pessoas que dependiam de seu conhecimento para
ter uma vida mais saudável. Sem falar nos cuidados com Genevive que fizeram com que ficasse um
pouco mais racional. Tudo isso, ela sabia que dificultaria um relacionamento com uma pessoa que
não queria crescer. Porém nada disso minimizou a dor de mais um abandono.

Nas semanas que se seguiram, a jovem curandeira não fez nada além de trabalhar. Queria evitar de
pensar na forma covarde que Arvid a deixara, sem nem ao menos olhar em seus olhos. Estava tão
cega pela dor que não notou os vultos que apareciam na frente de sua casa ou em seu jardim. Essas
presenças tornaram sua casa um pouco mais escura e fria, mas também não notou essa mudança.

Seu humor andava tão taciturno que começou a se incomodar muito com um lindo pássaro que
passou a frequentar seu jardim. Não queria ele lá, acreditava que ele destruiria suas ervas e plantas,
mas o pobre animalzinho só queria um lugar para poder se abrigar e poder cantar. Sara brigava com
ele, o espantava sempre que o via. Via sua beleza, ouvia seu lindo canto, mas ainda assim não aceitava
muito bem sua presença. O pássaro por sua vez insistia em estar ali, muitas vezes entrava sorrateiro
no quarto e pousava perto de Draco para poder brincar com Genevive, apesar de improvável eram
bons amigos. A gatinha muitas vezes encobria a presença do pássaro para que ele não dormisse ao
relento.

Sara se rendeu aos encantos daquela linda ave de plumagem cor-de-rosa, e passou a cuidar dela
como cuidava de Genevive e Draco, até lhe deu o nome de Thyri e improvisou um poleiro para ela
poder dormir no quarto com eles. Buscava por frutos e sementes para ela e se alegrava com seu
canto. Esperava que, assim como Genevive, se habituasse com a vida doméstica e não voasse para
longe.

A aparência da jovem já estava melhor, ela aprendeu a disfarçar sua tristeza rotineira. Parecia que
tudo estava voltando ao seu lugar, até receber uma carta de Surita contando que as condições de
52
Karin estava cada dia pior e Magna acreditava que ela não resistiria por muito tempo.

Todo o tempo que esteve longe de Vaustre trocava cartas constantemente com Surita. Se mantinham
informadas uma sobre a vida da outra. Desde que Abner tinha se casado, Surita se dividia entre os
cuidados com a hospedaria e os de Karin. A loucura da velhice tomara conta de sua mente por
completo, tinha esquecido como andar ou falar. Sara sabia que Surita não estava só nessa missão,
pois Abner e sua esposa, Brigith, trabalhavam com ela na hospedaria e Magna a orientava nos
cuidados com Karin, mas a sua mãe sempre exagerava.

Preparou-se para a viajem para casa, queria estar perto da família nesse momento. Temia não chegar
a tempo de ver Karin com vida e não sabia o que seria de Surita, como não eram parentes da anciã
talvez tivesse que deixar a hospedaria. Pensava também em Abner, como faria para sustentar sua
família? Eram muitas preocupações e sua cabeça não estava na estrada por isso, novamente, não
notou os vultos que acompanhavam seu caminho.

Quando chegou na hospedaria os ânimos não estavam muito bons. Abner estava saindo da cozinha e
quando viu Sara foi abraçá-la.

– Que bom que pode vir!

– Não poderia deixá-los numa situação tão difícil.

– Venha, Surita vai gostar de vê-la.

Foram para as casas anexas no fundo da propriedade. Entraram na casa que a mãe adotiva ocupava e
Sara deixou ali sua bagagem e seus companheiros. Não conseguiu deixar nenhum em casa, acomodou
Draco em sua antiga cama. Genevive se aninhou próximo a ele e Thyri estava na janela. Abner sentiu
que sua irmã não era mais aquela moça alegre de antes, percebeu que os anos foram mais cruéis com
ela do que ambos gostariam, achou melhor conversarem sobre isso em outro momento.

Na casa de Karin o ambiente era mais triste, mesmo parecendo improvável. Magna estava sentada na
cama ao lado da anciã, parecia muito mais velha do que realmente era. Estava estampada em seu
rosto a dor de cuidar de uma grande amiga em seus últimos dias. Surita não tinha uma aparência
melhor, em pé na cabeceira da cama, parecia que a dias não dormia, se lavava ou comia. Ao ver Sara
foi ao seu encontro para um longo abraço.

– Bom ver você, minha filha. Pena ser num momento tão triste.

A velha curandeira olhou para sua aprendiz e foi então que a jovem entendeu a gravidade do que
estava acontecendo. Karin teria no máximo mais um dia. Era tudo muito doloroso e sofrido. Sentia-se
53
mais uma vez punida, apenas não sabia que mal tão grande fizera para a Divindade permitir que
passasse por tantas provações. Desde o desaparecimento de Iduna sentia que não era tão querida pela
Divindade e os acontecimentos que se seguiram apenas confirmavam isso.

Sara aproximou-se de Karin, sua respiração era fraca, a pele pálida e seu semblante muito sereno.
Sentiu o odor adocicado de beladona com o toque acre de papoula. Sabia que juntas essas ervas
aliviavam a dor e causam um sono profundo para que o doente fizesse sua passagem em paz.

– Conheço esse olhar, mas aqui você é da família e não a curandeira. Sabe que é questão de tempo,
então cuide dos vivos – sussurrou Magna apontando Surita com um discreto movimento de cabeça.
Sara concordou.

– Mãe, vem, vamos pra casa. Qualquer coisa a Magna nos avisa.

Conduziu a mulher para casa. Preparou um banho morno e colocou um pouco de camomila para que
relaxasse. Enquanto Surita ficava imersa no tonel fumegante a jovem preparou um caldo reforçado
com raízes diversas, alguns legumes e sua alquimia de temperos. Penteou os cabelos da mãe, como
costumava fazer quando a vida era mais fácil, trançou-os com maestria, já eram mais brancos do que
marrons. Sentiu o sorriso pálido se formar no rosto da protetora e se compadeceu dela.

As duas sentaram juntas para a refeição, sentiam falta desses momentos juntas. Ficaram em silêncio
apenas sentindo a presença familiar e a cumplicidade que sempre houve entre elas. De repente um
miado chama a atenção, Genevive tinha despertado, também estava com fome. A gatinha se roçou nas
pernas das duas, como que as acalentando. Thyri veio voando e pousou na cadeira de Sara, comeu
algumas migalhas de pão que lhe foram oferecidas e começou um cantar.

Depois de convencer a mãe a dormir um pouco, garantindo que a acordaria se algo acontecesse, Sara
foi para o seu quarto, pegou Draco em um abraço, a macies do boneco a confortava muito. Genevive
se deitou ao seu lado e Thyri pousou em seu ombro e assim as lágrimas a tanto tempo guardadas
caíram. Lagrimas por tudo e por nada, por todos e por ninguém, em última instância, por si mesma.
Sempre teve que ser forte, sempre teve que estar pronta para derrotar o mundo, sempre teve que lutar
e estava cansada, exausta. A luta era eterna, sentia que seu destino seria sempre esses diversos ciclos
de sofrimento e dor, não queria mais viver assim, mas o que fazer?

Perdida em sua dor nem viu Abner entrar, sentiu seu abraço e chorou mais. Chorou até as lágrimas
secarem, até a dor ser a velha e suportável conhecida.

– Você se casou muito jovem.

– Você se tornou curandeira muito cedo.


54
Eles riram, como quando se conheceram e brincavam juntos. Assim o coração de Sara sentiu que
tudo ficaria bem, era difícil saber como ou quando, só ficaria bem. O momento de paz foi muito curto,
ouviram a porta da casa se abrir e encontraram Magna na sala.

– Ela se foi…

55
Capítulo 14
Depois do funeral de Karin, Sara optou por ficar mais alguns dias com sua família. Estava preocupada
com o destino deles, sentia que, em seu íntimo, Surita também estava. Não contavam com o último ato
de bondade e amor da anciã.

Magna foi até a hospedaria três dias após o funeral com um envelope lacrado com cera. Encontrou a
família reunida no salão da hospedaria para o desjejum, desde a passagem de Karin não receberam
novos hóspedes. Ela ficou feliz por todos estarem ali para a notícia.

– Quando os primeiros sinais da falha de memória começaram a aparecer, Karin me procurou em


segredo me pedindo para ajudá-la a proteger o futuro de vocês. -Disse em tom grave – a ajudei a fazer
uma carta testamento e torná-la oficial. Tome Surita, é você quem deve ler.

Surita, mais envelhecida do que nunca, iniciou a leitura:

"Minha querida amiga,

Entendo que já estou envelhecendo e em breve não saberei mais quem você ou seus filhos são. Sei
também que mesmo sem as lembranças que tenho de vocês, meu amor por todos continuará
existindo em minha alma.

Não tenho mais uma família de sangue, porém a vida me presenteou com vocês e sou muito grata a
Divindade por estarem me acompanhando no crepúsculo da minha vida. Sendo você, Surita, o mais
próximo de uma filha que possuo, deixo para você a hospedaria que reconstruímos juntas, assim seu
lar e seu sustento estarão garantidos por toda sua vida.

Com amor,

Karin"

Foi impossível a todos naquela sala conterem as lágrimas por uma alma tão amorosa como a de
Karin. O choro se transformou em riso, afinal não havia mais o medo de ficarem sem um teto e um
emprego. Sara se sentiu aliviada, por mais que amasse Surita e estivesse disposta a levá-la para
Mystra, não precisar fazer isso era muito bom. Tantos anos longe a fizeram construir seus próprios
hábitos e rotinas que não mais se igualavam aos da mãe e a convivência poderia ser muito difícil.
Manteriam o contato por cartas e estar presente quando fosse de fato necessário.

Com a notícia recebida logo cedo, Sara foi preparar suas coisas para partir em paz, queria pegar a
caravana da tarde. Ao entrar em seu quarto percebeu que Genevive e Thyri estavam agitadas, até
56
Draco estava jogado sobre a cama de uma forma que ela nunca deixaria, parecia que alguém tinha
mexido com ele. “Estou ficando muito medrosa!” Foi o pensamento que teve, não seria possível que
alguém entrasse ali sem passar pela hospedaria.

Não notou as sombras estranhas no jardim da frente ou na sala da casa, não suspeitou em momento
algum que era seguida desde sua casa por uma força maligna que ampliava seus sentimentos
negativos. Apenas sentia que o vazio de sua existência estava ali fazia mais tempo do que gostaria. Já
nem sabia mais dizer quando ele tinha começado, ele só estava ali. Nem seu trabalho ocupava esse
espaço como acontecia na escola de curandeiros. Só uma coisa diminuía esse sentimento, seus
companheiros Genevive, Draco e Thyri.

Cada um deles, a seu modo completavam um pouco de sua vida dando algum significado a sua
existência. Sentia que o caminho do curandeirismo já não fazia sentido, sempre sentiu que Surita fez
com que ela realizasse o sonho que ela mesma não conseguiu realizar e por isso não via mais tantos
se entusiasmar com a profissão. Ainda gostava de curar as pessoas, ajudá-las num momento de dor e
sofrimento e já tinha dedicado tanto tempo aquilo que como mudar de rumo agora? Isso estava fora
de cogitação, terminaria seus dias fazendo algo que não amava tanto, mas trazia poucos momentos de
realização.

Na única noite que passaria na estrada teve um sonho. Há muito já não sonhava, esse sonho então
nem se lembrava que um dia tinha existido. O pássaro de fogo voltou a visitá-la. Não se lembrava o
quanto ele era bonito e o seu encantamento diante deles. Durante esse momento, Genevive e Thyri
sentiram que aquela energia ruim que sempre estava perseguindo Sara se distanciou, puderam ter
uma noite de paz.

Durante o trajeto da tarde, os vultos estranhos voltaram a estar ao redor da caravana tornando o
humor de Sara novamente triste e sem ânimo de viver. Parecia que algo tinha roubado por completo
sua energia, o lampejo de vida que o sonho trouxe se dissipou sem que ela soubesse o motivo.

Ao anoitecer, já em casa, recebeu a visita de sua vizinha, Cléo, uma mulher pouco mais velha que
Sara, com cabelos de um loiro avermelhado muito particular e grandes olhos azuis, se vestia de
maneira modesta com saia azul escura com uma túnica num tom mais claro. Não tinham uma
amizade profunda, mas se ajudavam quando necessário. Conversaram um pouco sobre si mesmas,
compartilhando novidades corriqueiras. Antes de deixar a casa da curandeira deixou o nome de todos
que procuraram sua ajuda enquanto esteve fora. Percebeu que teria longos dias de trabalho pela
frente.

Nos dias que se seguiram tinha tantas pessoas para reavaliar e novos doentes para ver que as horas
do dia eram poucas para tantas tarefas. Sua cabeça estava tão ocupada que continuava sem notar as
sombras ao seu redor. Acreditava que seu humor irritável e triste se devia ao cansaço. Dormia pouco,
acordava antes do sol nascer e dormia tarde da noite. Nem mesmo a alteração de seu jardim com
57
plantas menores, cores mais apagadas e menor quantidade de frutos fez Sara notar que havia algo
estranho acontecendo ao seu entorno.

As pessoas percebiam seu isolamento e postura menos gentil que o usual, mas sua competência e os
resultados de seus tratamentos continuavam intactos, isso já era o suficiente para aquela
comunidade, então ninguém se incomodava em procurar saber se a curandeira precisava de alguma
ajuda, mesmo que só para ouvir o que afligia seu coração. Eram seus companheiros que ouviam as
reclamações intermináveis, as explosões de raiva e toda a flutuação do humor de Sara. Algumas
noites o sonho com o pássaro de fogo voltou, o que dava a jovem mulher pelo menos um dia de paz,
no entanto o sonho era tão raro que não aliviava seu sofrimento.

Semanas passavam agravando a tristeza e melancolia da casa, Thyri já não cantava tão alegremente
quanto antes, Genevive estava mais arisca do que o costume. As sobras tomaram conta deixando o
ambiente mais escuro e frio. Sussurros eram ouvidos em alguns cantos da casa, não era possível
ouvir o que era dito e aqueles momentos perturbavam Sara, ela sabia que algo estava errado, mas não
sabia o que tão pouco como resolver.

Aquela manhã começou como de costume, a vida seguia seu curso normal. Sara foi ao jardim interno
tentar pelo quarto dia consecutivo colher algumas ervas que teimavam em não chegar ao ponto
correto, quando sentiu uma brisa diferente, estava muito quente para aquela hora do dia. Não se
incomodou e a brisa se foi. Continuou seu trabalho concentrada e percebeu que algumas sombras do
que pareciam ser nuvens passavam muito rápido e em círculos por cima de sua casa. Incomodada
olhou para o alto e os viu.

Três grandes lagartos voadores rodopiavam sobre a vila. Eram fascinantes, estavam alto no céu.
Conseguiu ver suas cores, um vermelho, outro azul e o terceiro era negro e parecia ser maior que os
outros. Seu bailado no ar hipnotizou a moça, eles subiam e desciam numa sincronia encantadora.
Quando o dragão negro vou bem baixo, Sara pode ver com nitidez suas escamas reluzentes e ele
subiu fazendo um barulho que lembrava um grito misturado com um pio muito agudo. A vila toda
tremeu.

Os três se revezaram subindo e descendo naquele bailado, o povo da vila gritava pelas ruas e praça,
despertando a curandeira de seu encantamento. Entrou rapidamente na casa, encontrou sua gata, seu
boneco e sua ave apavorados embaixo da cama, colou-os na cesta que levara ao jardim e correu para
fora a tempo de escapar da primeira rajada de fogo que partiu da boca do dragão vermelho
exatamente sobre sua casa. Por onde corria mais rajadas de fogo a acompanhavam queimando tudo
pelo caminho. As pessoas corriam sem rumo sem saber para onde ir, todos estavam atordoados.

Sara esbarrou em uma velha senhora que tinha fama de bruxa, mas nunca acreditou naquilo. Até
aquela mulher baixinha, com cabelos brancos como a neve e olhos profundos, lhe dizer:
58
– Saia da cidade, criança! É a você que eles querem.

– Eu? Mas por que?

– Isso eu não sei dizer, mas fuja e se esconda.

Sara só pensou em proteger sua mãe e seu irmão, então correu para a estrada oposta a Vaustre. Não
podia permitir que tamanha destruição atingisse a eles. Quando estivesse segura novamente
mandaria notícias.

No limite de Mystra encontrou um cavalo abandonado, sem pensar duas vezes montou nele e
galopou a toda a velocidade. Sua cesta com seus bens mais preciosos quase caiu de seus braços, mas
ela conseguiu atar a rédea a alça a cesta para seguir em fuga. Já tinha perdido tudo o que possuía,
não podia perder Genevive, Draco e Thyri também.

Algumas horas depois, não conseguia ver mais os dragões. Não sabia se estava longe demais para
isso ou se eles simplesmente tinham desistido do ataque. Desatou o cesto da rédea e desceu no
cavalo, todos precisavam de água e de descanso. Passou a caminhar puxando o animal exausto em
busca de uma fonte ou riacho. Não demorou a encontrar.

Sentou-se sob uma árvore, abriu e cesto e a ave e a gata logo saíram, ainda desconfiadas, mas
também sentiam muita sede. Tirou o boneco de lá também o acomodou. Aliviada por estarem todos a
salvo, chorou. Porque aqueles monstros estavam atrás dela? Isso se aquela velha bruxa falava a
verdade. O que eles queriam com ela? Não bastava o vazio que sua vida tinha se tornado? Chorou
tanto e, portanto, tempo que adormeceu.

Despertou ao anoitecer. Genevive aninhada em seu colo e Thyri sobre a cela do cavalo que pasta a
poucos metros. Precisava de abrigo para a noite. Levantou-se, seu corpo todo doía, não como sua
alma. Pegou a rédea do animal e os quatro seguiram em busca de um lugar seguro. Nem uma hora
tinha se passado e encontraram uma gruta. Sara se lembrou de quando se escondeu num lugar
muito semelhante com Surita e Abner após o encontro com aquele mago ganancioso. Novamente
passava por tempos muito difíceis.

Depois de conseguir fazer fogo próximo a entrada, saiu em busca de comida. Não que tivesse fome,
mas precisava de forças para seguir em frente e entender o que tinha acontecido com sua vida.
Encontrou alguns frutos que dividiu com Thyri enquanto Genevive saboreava um pequeno lagarto.
Não conseguiu dormir, observava o fogo em busca de respostas. Alimentava a pequena fogueira em
tempos regulares para se manter aquecida.

Já ia tarde a madrugada quando as chamas se ergueram quase a altura do teto em forma de um


59
grande pássaro. Sara fechou os olhos e levantou-se assustada. Estava tão apavorada que começou a rir
de si mesma

- Sara, Sara... Deu de ver coisas agora?

– Miau resmungou Genevive

– É, menina, devo ter cochilado sem perceber…

– Miauu... - foi a única resposta que teve.

Quando amanheceu, ajeitou-se novamente na sela do cavalo e seguiu sem rumo. Assim como anos
antes deixara sua terra natal sem saber para onde ir, apenas seguiu em frente.

60
Capítulo 15

Sara estava na estrada há mais de duas semanas, não tinha coragem de parar em lugar algum. E se a
anciã estivesse certa e os dragões foram a Mystra atrás dela? E se estivessem ainda procurando por
ela? Não era justo colocar outros povos em risco. Sem contar no fato que também não era seguro
fixar-se em qualquer lugar que fosse.

Já tinha mandado notícias pra Surita na primeira cidade pela qual tinha passado. Carregava consigo
poucas moedas de prata e cobre, assim conseguiu enviar uma carta a Vaustre dizendo estar bem e
tudo o que tinha acontecido, incluindo a fala da velha bruxa. Explicou que quando fosse seguro
mandaria novas cartas. Também comprou um pequeno caldeirão para poder cozinhar. Não se
demorou ali, mas ouviu sobre a destruição causada a vila pelos dragões e a culpa tomou seu peito.

Conseguia cobrir grandes distâncias por dia montada, mas sem saber para onde ir a viajem estava
mais penosa do que de costume. Antes tinha a orientação de Ralf ou de Surita, não precisava tomar
decisões, apenas os seguia. Agora tudo era por sua conta e tinha que pensar no bem-estar de seus
pequenos animais. A vida estava mais difícil.

Numa noite do início do verão acampou a beira de um lago. Estava bem quente, as águas amenizavam
o calor. Depois de preparar para si um peixe na brasa, adormeceu. No meio da noite abriu os olhos e
viu uma silhueta sentada do outro lado das brasas que sobravam o fogareiro que tinha construído
para cozinhar. Levantou-se assustada.

Era uma jovem mais nova que ela que usava um capuz escondendo o rosto.

– Iduna?!

– Sim, irmã.

Sara correu para abraçá-la, mas seu corpo era feito névoa fina. A curandeira não entendeu o que
estava acontecendo

- Aquele dia em Cotune, quando você não me encontrou. A pedido da cozinheira fui buscar água no
poço. Quando levantei o balde cheio me estiquei para pegá-lo, acabei me desequilibrando e cai. - As
lágrimas de Sara eram incontroláveis – demoraram três dias para encontrar meu corpo.

– Então você está…

– Morta, sim. Apenas vim tentar te ajudar.


61
– Como? Não é possível! Não se fala com os mortos. E como ter certeza que não é apenas um sonho?

– Essas respostas o seu coração e o tempo é que lhe trarão, irmã. Apenas vim lhe dizer que você não
está só como pensa. - E assim seu corpo se desfez no ar.

Ao surgirem os primeiros raios de sol no horizonte, Sara despertou. Não havia nenhum indício da
presença de Iduna no acampamento. Realmente tinha sido apenas um sonho. A dor da perda da irmã
adotiva a tanto soterrada em seu coração ressurgiu lancinante. A jovem curandeira sentiu-se como
aquela menina inocente novamente e chorou, mais uma vez, a perda de sua companheira do início de
jornada. Mesmo se lembrando das palavras de Iduna, sentiu-se mais só do que nunca em sua vida.

Assim como aquela dor, os vultos voltaram a permear o caminho de Sara. Novamente seu sofrimento
não permitia que os visse. Seu semblante tornou-se mais triste do que nunca. Acreditava que nunca
mais conseguiria ser feliz.

Seguiu sem rumo pelas estradas de Espéria. Buscava sempre por caminhos sem movimento, queria
estar só, dizia a si mesma que era para proteger os outros de um possível ataque de dragões, mas no
fundo tinha medo de se envolver com qualquer pessoa que fosse e perdê-la. Nas profundezas de seu
ser sabia que não suportaria perder mais nada na vida.

Em seu caminho ajudava alguns doentes em troca de comida, abrigo ou algumas moedas. Até que um
dia, em um estreito caminho em meio a um bosque viu ao longe um homem caído a margem. Teve
medo de se aproximar, mas seu ímpeto de ajudar quem precisasse dos seus serviços venceu. O
homem parecia ser alto, com cabelos curtos e pretos. Ao seu lado estava o que parecia ser uma
armadura e uma espada, um cavalo marrom pastava preso a uma árvore.

– Não se atreva a tocar em nada. -Disse com voz grave de quem acaba de acordar

– Desculpe-me, achei que estivesse ferido. - Respondeu Sara observando-o enquanto sentava. Ele
tinha olhos cor de mel, era belo, mas com semblante duro.

– Sou Kiske, e você?

– Sara.

– O que uma moça tão linda faz viajando sozinha?

Genevive miou indignada. Sara tinha ela, Draco e Thyri, não estava sozinha. Vendo a postura da gata,
Kiske riu. Era um grupo estranho, na verdade. Uma jovem e linda mulher viajando com uma gata, um
boneco e uma ave. A cena despertou o lado protetor no homem, não podia deixá-los seguirem
62
sozinhos. Muitos perigos estavam a solta no reino. Os boatos de que uma antiga profecia estava para
se realizar deixou as Sombras mais arrojadas, lançando os dragões em ataques a todos os cantos. Os
orcs e os ogros também estavam descontrolados.

– E para onde está indo, Sara?

– Nenhum lugar, apenas sigo pelas estradas em busca de encontrar onde não possa... - ia falar mais
do que deveria. Quem poderia acreditar que ela era perseguida por dragões?

– Onde não possa o que? Diga. - Houve uma rápida troca de olhares entre a jovem e Genevive.

– Ninguém acreditaria…

– Deixe que eu decido se acredito ou não na sua história.

Sara não entendia bem o motivo, mas confiava no belo homem a sua frente. Sentou-se e começou a
contar sua história. Ele que ouviu atentamente sobre o ataque a Mystra, o pedido da anciã, a fuga
desesperada e o sonho com a irmã perdida. Ele já tinha ouvido sobre o tal ataque e como os dragões
tinham destruído todas as construções da aldeia. Algo na fala da mulher a sua frente e os relatos que
ouvira fazia sentido. Ele só não entendia bem qual era, mas a sensação que deviria protegê-la crescia
a cada momento, a cada palavra que ouvia.

Propôs que seguissem juntos. Contou que já tinha feito parte da guarda da capital geral de Espéria e
poderia defender a todos de qualquer pessoa ou criatura que quisesse lhes fazer mal. Thyri já estava
no ombro de Kiske e ele acarinhava a pequena ave de plumagem rosa. Genevive ronronou no colo de
Sara e Draco parecia concordar também. Não havia como negar que desde que pusera seus olhos
sobre aquele guerreiro, um sentimento de segurança tomou conta do coração da jovem mulher, que
aceitou sua companhia na jornada rumo ao nada que se encontrava.

Passaram então a cavalgar juntos pelas estradas. Kiske contou que vinha de uma família grande, um
clã chefiado por sua avó, uma mulher boa e firme para manter todos juntos na propriedade que
tinham a leste do reino. Mas após a morte dela houve uma disputa desenfreada por quem seria o
novo chefe da família que acabou por dividir as terras entre os numerosos tios e tias dele. Com seu
pai já falecido e sua mãe debilitada, não sobrou nada para eles. Optou então por se juntar, ainda
muito jovem, a guarda de Féta, assim teria comida, estudo e um teto, sem disputas ou brigas.

A vida na guarda não era mais fácil do que em casa. O treinamento era exaustivo, tinha que aprender
a lutar com armas e a magia sombria que ameaçava o reino. Sua origem também não ajudou e
sempre foi mal visto pelos companheiros de armas que o julgavam um aproveitador. Cansaço de ser
humilhado e colocado nas piores missões possíveis, desistiu. Passou a vagar pelo reino usando seu
63
treinamento para proteger propriedades rurais de senhores da corte ou pequenas vilas e aldeias. Mas
não se fixava em lugar algum.

– Eu sempre senti que tinha uma missão maior para mim, apenas não encontrei ainda…

Sara conhecia muito bem essa sensação, sentira isso antes de iniciar sua jornada. Atualmente não via
um propósito em sua vida, parecia que tudo que lhe restava era se arrastar pela existência a espera da
morte. Essa sensação consumia seu ser, não era possível que a vida se resumisse em esperar pela
morte. Quando sonhava com o pássaro de fogo parecia que uma luz se acendia em sua alma, que as
coisas fariam sentido de novo, mas raramente sonhava com ele.

Durante as semanas que estavam viajando Kiske já havia notado que vultos os perseguiam, mas não
queria assustar sua nova companheira. Sempre que podia se afastava com qualquer desculpa para
descobrir quem estava ali e nada encontrava. Aquilo o preocupava. Lutar não era um problema para
ele apenas precisava saber com o que lutar. Em uma de suas buscas encontrou sinais de um
acampamento recente, pareciam muitos homens ou poucos ogros, difícil de decifrar apenas
observando o local, no entanto não tinham visto nenhuma grande caravana ou grupo nos arredores.
Os ogros viajavam pela mata e não pelas estradas. Esse conhecimento fez com que concluísse quem
os perseguia.

Ficou intrigado e seu semblante encheu de dúvidas o coração de Sara, por mais que perguntasse ele
desviava o assunto. Será que tinha confiado na pessoa errada? Seria abandonada novamente? Essas
questões perturbavam seus pensamentos a impedindo de ter noites tranquilas de sono. Num
alvorecer depois de uma noite sem sono, resolveu caminhar até o riacho, sempre se acalmava
observando as águas. Ouviu o que pareciam passos e imaginou que Kiske teria despertado também.
Foi agarrada por uma criatura alta que com uma facilidade incrível a levantou do chão. Começou a
gritar.

O guerreiro despertou ao som dos gritos de Sara, por puro reflexo pegou a espada e correu na direção
do som. Um único ogro a segurava imobilizando seus braços e mantendo seus pés longe do chão. De
onde estava conseguiria atacá-lo se surpresa. Correu em sua direção e com um golpe certeiro
transpassou a espada pelo pulmão da criatura. Sara caiu no chão e correu para trás de Kiske em
busca de proteção. Ouviram o ogro arfar:

– Eu achei, eles vão me aceitar de volta, eu achei! - O casal se olhou sem entender nada.

O guerreiro começou a virar a jovem de um lado para o outro em busca de ferimentos, seu rosto
mostrava os minutos de pavor que viveu. Percebendo que Sara estava bem ele a abraçou. Ela sentiu-se
segura como a muito tempo, entre os braços de Kiske estava finalmente em casa. Ergueu a cabeça e
64
seus olhos verdes se perderam na imensidão dos olhos do jovem guerreiro, seus lábios se tocaram em
um beijo apaixonado.

65
Capítulo 16
O amor entre o jovem casal crescia após o ataque do ogro. Kiske compartilhou com sua amada os
boatos sobre a profecia e dos vultos que os seguiam pelas estradas. Contou que quando serviu a
guarda esteve em serviço do Círculo Superior o que deu a ele algum conhecimento sobre as
movimentações dessas criaturas. Explicou a Sara que os ogros, orcs e dragões eram servos das
criaturas das sombras, sendo os dragões os mais letais e os ogros os mais perversos. Depois de ouvir
as últimas palavras do ogro ecoando em sua cabeça, o guerreiro entendeu que de alguma forma
tinham confundido Sara com o verdadeiro alvo das criaturas sombrias. Era a única explicação. Sara
concordou com ele, mas precisavam ter certeza do que estava acontecendo.

Kiske propôs de irem a Sandanez, a província mais mística do reino, onde ficava a cidade escola
Mirad. Todos que almejavam trilhar o caminho da magia, queriam se conectar mais a fundo com a
Divindade ou mesmo só entender um pouco das propriedades mágicas e leis da natureza viam a
Sandanez. Ali era possível ter todo o tipo de aprendizado, mas poucos chegavam a cidade escola, não
que o acesso fosse dificultado de alguma forma, muito pelo contrário. Infelizmente, poucos estavam
dispostos a pagar o preço de estar ali.

Chegaram a Fey, capital da província. Estava no tempo das feiras e aspirantes a magos e bruxas
circulavam, assim como os que apenas queriam tirar alguma vantagem da fé alheia. A curandeira
nunca tinha estado ali, se encantou com tantas mágicas e ilusões que viu. A atmosfera era muito
diferente. Nas barracas as ervas que tanto conhecia eram comercializadas com fins mágicos, essa
possibilidade encantava Sara. No fundo sempre sentiu que havia mais do que aprendera na escola de
curandeiros.

Caminhando pelo lugar o casal avistou um grupo sentado no chão ouvindo um homem ensinando.
Sara ficou curiosa:

– É isso, meus amigos, se você quer ter uma vida melhor, conseguir um trabalho, juntar bens e
crescer na vida, você precisa mudar seu interior. Ficar repetindo que você sofre, que nada que você
quer acontece não vai te levar a nada diferente. É preciso pensar e sentir que você consegue, que você
merece. A Divindade só entende a sua energia, se sua energia é de dor, mais dor você terá, se for de
felicidade, felicidade você terá.

Sara se interessou muito pelas palavras daquele homem, durante seu trabalho de curandeira já tinha
percebido que quanto mais otimista seu doente fosse desejando a cura, acreditando nela, melhores
resultados teria. Não imaginava que isso se aplicasse a todos os aspectos da vida. Muito menos a sua
própria, afinal estava sempre repetindo palavras de dor e cultivando emoções negativas. Resolveu
então ficar ali e ouvir mais.

66
Enquanto isso Kiske foi em busca de um lugar para ficarem, se estavam sendo alvo das Sombras,
deveriam ficar ali para ter informações e aprenderem a se proteger. Ele buscaria novas armas e novas
técnicas para poder proteger sua nova família. Encontrou uma hospedaria simples e confortável,
poderiam ficar ali até que tudo fosse esclarecido.

A jovem curandeira estava fascinada com o que tinha aprendido com o palestrante. Não imaginava o
quanto suas emoções e sentimentos influenciavam a sua vida. Passou a compreender que ela mesma
tinha causado o vazio que sentia se entregando a pensamentos e emoções que minavam sua energia.
Não que ele não estivesse mais ali, apenas uma luzinha se acendeu para uma solução daquele
sentimento tinha se acendido. Precisava aprender mais, entender mais e conseguiria sair dessa
escuridão que tomara conta de sua alma.

Empolgada, dividiu seu aprendizado com seu guerreiro que estava feliz por ver aquele novo brilho no
olhar de Sara. Kiske sentia que faltava algo a ela que ele, por mais que a amasse, não poderia dar. Era
a sensação de sentido que ele também buscava. Ver que ela tinha encontrado um caminho para
trilhar em busca desse sentido alegrava seu coração como se a descoberta fosse sua. Percebeu que
precisava dar aquela linda mulher todas as oportunidades para isso.

Foram juntos até a hospedaria enquanto Sara falava animadamente sobre o que aprendera e como
poderia mudar sua vida. Kiske via sua amada quase saltitar de felicidade pela rua, como uma criança
que tinha acabado de ganhar um presente. Durante seu tempo de serviço ao Círculo Superior ouviu
sobre essas coisas e mais além, mas nunca sentiu que era para ele aquele caminho. Acabou
entendendo que cada pessoa tem uma forma de seguir o seu destino, a sua missão. Definitivamente, o
dele não era aquele.

Todos os dias, a jovem andava pelas ruas de Fey procurando aquele palestrante, queria muito
aprender mais. Ouviu ele falar sobre energia, sobre visualizar uma vida diferente, sobre a necessidade
de abrir espaço na vida para que o novo entrasse. Aplicava todos os ensinamentos que ouvia sem
nenhuma mudança real na sua rotina. Isso não fez com que desistisse, se tantos conseguiam, ela
também iria. O sonho com o pássaro de fogo estava mais frequente o que dava a Sara a certeza que
estava no caminho certo.

Estava bem, feliz e livre dos perigos, então escreveu para Surita. Contou a mãe onde estava, o quanto
estava feliz por retomar seu caminho. Contou também sobre seu sonho com Iduna e o quanto estava
em dúvida sobre o sumiço dela. Queria saber a opinião de Surita sobre isso. Quando a resposta
chegou começou a chorar em desespero, nunca imaginaria algo assim. Kiske vendo a reação de Sara
tomou a carta de suas mãos e leu:

“Depois que estávamos em Langdy e eu estava me recuperando, pedi a Ralf para escrever em meu
nome a hospedaria em Cotune. Eles nos contaram o triste fim de Iduna, foi depois de sabermos disse
67
que Ralf se afastou cada vez mais de nós até partir e o que me fez ter medo de perder você e Abner
também. Achamos, eu e Ralf, que deveríamos poupar você dessa notícia para que não sofresse mais.
Se possível, me perdoe.”

Tudo passou a fazer sentido, a superproteção de Surita, a decepção e isolamento de Ralf, não tocarem
mais no nome de Iduna como um grande tabu. Se sentiu traída e abandonada. Toda a tristeza e vazio
retornou. Nada do que tinha aprendido nas últimas semanas ajudava, estava novamente perdida, sem
rumo. Novamente a Divindade brincava com ela, com seus sentimentos e tirava dela algo precioso.
Dessa vez foi a confiança naquela que amava como a uma mãe e a esperança de ver a irmã
novamente.

Ela fizera de tudo para satisfazer Surita, sempre ao seu lado, amadureceu mais rápido do que deveria
para poder ser um apoio para ela, seguiu a profissão que a mãe adotiva sonhou para si e para ela.
Passou anos muitos difíceis na escola de curandeiros, sentindo-se só, isolada. Buscava a todo custo ser
a mulher que imaginava que a orgulharia e para quê? Ela desistiu da busca pelo pássaro de fogo por
ela e o que ganhou com isso? Em deixar todos os seus sonhos para trás e viver os de Surita? A tristeza
parecia que nunca mais a deixaria.

O guerreiro ficou sem saber como ajudar. O que poderia fazer para ver novamente o sorriso de Sara?
Entendia bem essa sensação de traição, em sua família foram muitas as histórias. Tinha que fazer
com que sua mulher voltasse a ter esperança, a acreditar num futuro melhor. Passou então a sair com
ela pelas ruas em busca de ouvir aqueles que ensinavam pelas ruas para tentar fazer aquele brilho no
olhar de Sara voltar.

Então, numa tarde ensolarada, viram um homem que aparentava ter uma idade semelhante à deles,
alto, cabelos pretos e curtos com olhos azuis amendoados numa pele quase tão clara quanto a de
Sara, falando para seus ouvintes, de repente o olhar dele cruza com o da jovem mulher e ele diz:

– Até quando você vai viver uma vida que não é sua?

68
Capítulo 17
Aquela pergunta ficou o dia todo ecoando na mente de Sara. Até parecia que aquele homem a
conhecia, sabia sobre seus conflitos. “Até quando você vai viver uma vida que não é sua?” Pergunta
difícil de responde quando não se tem ideia de quais são seus sonhos, seus objetivos, sua missão, seu
propósito. Era essa a busca daquela mulher, e talvez, de todas as pessoas. Porém a rotina, as
responsabilidades, os medos, os traumas engoliram o que um dia a motivou a seguir em frente. Sentia
que precisava retomar seu caminho. Qual caminho?

Sara precisava encontrar respostas. Talvez aquele homem poderia tê-las. No fundo ela tinha medo de
encontrá-las, estava num conflito muito grande entre a busca e continuar onde estava. Kiske sentiu a
perturbação no olhar inquieto da amada.

– O que está te inquietando?

– Tantas coisas… - Kiske a abraçou

– Que bom que tenho bastante tempo. - Sara riu

– Não quero mais trabalhar como curandeira, mas não sei que rumo tomar. Me sinto perdida, nem
sonho tenho mais. As vezes sinto que minha vida se resumiu a esperar a morte, mas isso é tão pouco.
Quero fazer mais, quero voltar a sentir a vida pulsando, quero.... Não sei o que quero...

Genevive se enroscou nas pernas da jovem, ronronando, como que dizendo “sempre estaremos aqui,
siga seu caminho.” O guerreiro compartilhava da dor e da aflição, não sabia bem como ajudá-la, mas
talvez o homem que fez a pergunta que perturbou Sara pudesse ajudar. Precisava encontrá-lo e levar
a jovem até ele.

Na manhã seguinte o casal saiu em busca do palestrante pelas ruas de Fey, o encontraram numa
pequena praça mais afastada da feira ensinando um pequeno grupo. Sara se juntou a eles. Ouviu
sobre como poderia e deveria ter o controle de sua história.

– Cada um de vocês tem o poder de mudar a própria vida, basta saberem quem são de verdade,
entender que fazem parte do Todo, da Divindade e ela de vocês. Para ter esse entendimento é preciso
conhecer o seu interior. Olhar para dentro de vocês e entender que são mais do que seus
pensamentos, suas dores e seus traumas. Quem de vocês se sente perdido?

Todos ali, inclusive Sara, levantaram a mão. É incrível perceber o quantas pessoas se sentiam como
ela e também procuravam se encontrar. Continuaram todos ali ouvindo sobre o caminho para dentro
de si, quais aspectos de suas vidas precisavam de maior atenção e a necessidade de maior contato
69
com a Divindade.

Essa parte para a jovem era mais difícil de lidar. Acreditava que, como sempre em sua vida, teria que
fazer tudo sozinha, afinal a religião nunca a ajudou, a Divindade sempre lhe virara as costas. Ela não
precisava desse contato, ela conseguiria encontrar seu caminho sozinha. Aquilo a incomodou de uma
tal forma que se levantou pronta para partir.

– Você vai embora, moça? - Perguntou o homem com seu semblante calmo e compreensivo.

– Se vocês vão ficar aqui só falando da Divindade e de como ela é maravilhosa sim, esperava outra
coisa. - Respondeu Sara com um tom agressivo

– Fique e te garanto que não vai se arrepender. Verá que tem muito mais por trás do que estou
falando. A propósito me chamo Baruk e você?

– Sara.

– Vai nos dar uma chance?

– Vou. - sentou-se novamente, parecendo uma criança que foi contrariada.

Continuou ouvindo os ensinamentos, mas sem grande atenção. Estava desconfiada que se tratasse
daqueles fanáticos que vira no passado. Ao final da palestra uma jovem se aproximou dela, era baixa
com longos cabelos cor de mel e amorosos olhos pretos. Contou que era Bryana, companheira de
Baruk, convidou Sara a continuar vindo as aulas, que ela aprenderia coisas que nunca imaginou que
poderiam sim mudar sua vida, porém ainda estava muito desconfiada, procurando as mais diversas
desculpas para não participar. Kiske que esteve ali todo o tempo para apoiar a sua companheira foi
tentar acalmar a situação

– Sara, minha querida, esses novos conhecimentos têm te feito tão bem. Por que não dar essa chance
a esse novo mestre? Posso cuidar de tudo enquanto está aqui, garanto que ficara tudo bem.

Em seu íntimo era tudo o que Sara queria, a forma e as coisas que Baruk ensinava falavam alto com
sua alma. Queria mergulhar fundo nesse novo mundo que se abria a ela. Aceitou o convite de Bryana
e prometeu que retornaria nas próximas aulas.

Nos encontros seguintes o grupo aprendeu sobre a energia que tudo emite e como através dela se
conectam entre si, sobre os tipos de personalidades e o caminho de evolução que cada ser pode e deve
seguir para ser mais maduro e responsável sobre sua vida. Começaram a identificar em si mesmos e
nos outros essas características e como essa informação transforma os relacionamentos. Conheceram
70
mais profundamente sobre como se formam as emoções e sentimentos e não se deixar serem guiados
por eles. Souberam que seus traumas do passado podem ter gerado bloqueios em sua mente que não
permitem que suas vidas mudem e as formas de desbloquearem esse fluxo de energia. Entenderam
que todos os seres humanos têm três áreas que precisam ser cuidadas com a mesma dedicação: seu
corpo, sua mente e seu espírito e que deixá-los em harmonia, mesmo não sendo uma tarefa fácil para
os iniciantes, não era impossível. Tiveram contato com as leis universais e como elas orientam o
caminho.

Baruk ensinava com amor e dedicação, passava o máximo de seu conhecimento de uma forma
simples que todos podiam entender com facilidade. Compartilhava com todos sua história, mostrando
que era possível sim ter uma vida mais fluida e em paz, mesmo que todos julgassem ser muito difícil
chegar no mesmo nível de serenidade que ele, bastava se persistente no caminho da evolução pessoal.
O mestre os guiava com tarefas simples, porém reveladoras, sempre deixando que o
comprometimento de cada um consigo fosse o principal orientador do processo. Faziam algumas
práticas que permitia que cada um tivesse suas próprias experiências. Foi em um dessas práticas que
Sara realmente teve uma grande lição.

Já estavam habituados a fazerem exercícios de respiração e relaxamento, então foram orientados a


visualizaram uma sequência de imagens específicas para encontrarem o seu principal trauma, o
maior bloqueio que tinham na sua história. Internamente Sara acreditava que veria a partida de Ralf
da vida deles, para ela foi esse o evento mais traumático que viveu. De alguma forma condiciou sua
mente a ver o que ela julgava ser necessário, no entanto, quando realmente se entregou a experiência
foi outra cena que apareceu em sua mente.

Sara estava em uma cozinha escura, reconheceu esse lugar do seu passado. Era a cozinha da
hospedaria de Cotune, ela procurava desesperadamente por Iduna. Não encontrava a irmã de criação
em parte alguma. Estava só, na escura e fria cozinha, o calor do fogo não conseguia atingir seu corpo.
A conhecida sensação de abandono retornou, a solidão tomou conta de seu coração. Uma presença.
Tinha voltado a ser uma menina e havia uma presença com ela que a enchia de amor e carinho, não
via ninguém, apenas sentiu aquele amor aquecer seu corpo frio.

As lágrimas eram incontroláveis, a jovem mulher abriu os olhos e entendeu. Assim como Iduna tinha
dito em seu sonho. Ao contrário do que pensava, Sara nunca esteve só, o amor, carinho e cuidado da
Divindade sempre estiveram com ela, desde o momento que deixou sua terra natal, até esse momento.
Quem se afastou foi a própria Sara, a Divindade apenas aguardou pacientemente o seu retorno. E
como era bom sentir aquele amor, aquela chama dentro de si novamente.

Cada um do grupo teve a sua revelação em particular e eles compartilharam as experiências,


trocaram abraços sob o olhar atento e amoroso de Baruk e Bryana, mas algo chamou a atenção desse
casal. Vultos estavam rondando o grupo. Eles já sabiam quem eram, apenas não entendiam o porquê.
.
71
A agitação que se apresentavam era incomum. Baruk olhou para Bryana que logo entendeu o que
deveria ser feito. Ela com todo afeto que lhe era peculiar, dispensou os alunos.

Ao chegar em casa, Sara foi contar a Kiske a experiência que vivera e como muita coisa fazia sentido
em sua vida de uma forma totalmente nova. Estava feliz, sorridente. Era aquilo que o guerreiro
esperava, era o que dava sentido a sua existência naquele momento, ver o sorriso sincero de sua
amada. O momento de ternura foi interrompido por batidas na porta. Kiske abriu.

– Precisamos muito conversar com vocês. - Eram Bryana e Baruk a porta.

Os dois casais sentaram a pequena mesa. Baruk explicou-lhes sobre uma antiga profecia que todos
sempre tiveram muita dificuldade de entender. Falava sobre como o fogo poderia destruir as
Sombras. Ninguém sabia como se daria isso, mesmo assim as criaturas acreditavam ter encontrado a
resposta e por isso estava atacando a esmo. Talvez tivessem informações mais completas ou então a
profecia que tinham conhecimento estava incompleta, não tinham como ter certeza, era uma profecia
que estava para completar seu primeiro milênio.

– Precisamos partir, estão chegando próximo a Mirad, a cidade escola. - Revelou Bryana

– Exatamente, como mago tenho que estar lá para defendê-la. - Completou Baruk – vejo seu potencial,
Sara. Gostaria que viessem conosco. Assim você pode dar sequência a seus estudos e, quem sabe se
tornar uma bruxa e os conhecimentos de luta de Kiske serão muito útil se precisarmos lutar.

– Eu não vi nenhum indício de ataque... - comentou Sara

– Eu tenho visto uma certa agitação nas Sombras. - Retrucou Kiske

– Eu acreditava que ver as sombras se mexer era normal, vejo isso acontecer há anos.

Kiske e Baruk trocaram olhares. Tudo o que o guerreiro não queria era que mais gente desconfiasse
do interesse desses seres em sua amada. Estar em Mirad poderia ser muito bom para eles, além de
Sara continuar os estudos que lhe faziam tão bem e ele, poderia ajudar na proteção de todos e
aprimorar suas técnicas de luta com as criaturas.

Sara estava muito contente com o convite, mesmo não acreditando que poderia ser uma bruxa. Se via
como uma menina imatura e fraca, esse potencial que Baruk via nela não era real, como uma
camponesa que vinha de um lugar sem nome se tornaria uma bruxa? Sabia que tinha bastante
conhecimento e estava aprendendo muito com seu mestre, no entanto seu maior objetivo era para se
sentir melhor consigo, resolver suas próprias questões. Por outro lado, essa nova visão da Divindade,
esse sentimento que aquecia sua alma a impulsionava a seguir.
72
Estando tudo certo entre os dois casais, iniciaram os preparativos para partir. Baruk ainda teria que
explicar tudo a seus alunos e indicar um novo professor a eles, então decidiram partir em dois dias.
No entanto, as criaturas das sombras não dariam esse tempo a eles e coordenaram com os dragões
um ataque a Fey.

Na manhã seguinte cinco dos maiores dragões começaram a sobrevoar a cidade causando o tumulto
que Sara já vivera e não trazia boas recordações, ficou paralisada. Uma de suas piores lembranças
tomava vida novamente. Kiske se apressou em proteger Genevive, Draco e Thyri, puxou a mulher pelo
braço e saiu em disparada procurando por Bryana e Baruk para poderem decidir o que fazer.

Os encontrou ajudando a população a se proteger e convocando todos os magos e bruxas para uma
possível luta. Ficaram felizes quando viram o guerreiro. Se certificaram que Sara estava em segurança
e se colocaram em posição defensiva. Os monstros pousaram sobre os muros da cidade esperando
algo que ninguém sabia o que era.

Enquanto isso, a mais jovem discípula da magia da natureza continuava paralisada de medo, olhou
para seus tesouros bem guardados por Kiske e sentiu uma chama crescer em seu peito tomando
conta de todo o seu corpo. De repente Thyri, antes bastante agitada se calou, Genevive eriçou todos os
seus pelos, pois os lindos olhos verdes de Sara se tornaram cor de fogo e ela parecia em transe.

Sem nenhuma explicação os cinco dragões levantaram voo e partiram, deixando todos boquiabertos.
O que teria suspendido o ataque iminente? Era o que todos se perguntavam.

73
Capítulo 18

Os casais partiram de Fey rumo a Mirad, ainda não entendiam o que teria feito com que os dragões
desistissem do ataque. Baruk, que já havia enfrentado diversas vezes essas criaturas, nunca tinha
presenciado um fato desse nem relatos semelhantes haviam entre os magos e bruxos. O comum era
uma luta árdua, com muitas baixas e destruição. Notou apenas uma energia diferente pouco antes
dos cinco espécimes levantarem voo.

Kiske, apesar de aliviado, também se perguntava o que teria ocorrido. Conversou muito com Sara a
esse respeito, mas a jovem não estivera fora da hospedaria em momento algum, não tinha como
ajudá-lo a entender. Presenciou apenas uma vez um ataque quando saiu de Mystra. Tudo que ela se
lembrava daquela manha era do seu medo paralisante. Sabia que teria que enfrentar esse
sentimento. Confiava no processo de aprendizado e evolução que estava vivendo desde que chegou
em Fey por isso sabia que esse com diversos outros sentimentos ruins e traumas iriam ser
contornados.

Pouco mais de uma semana depois de saírem da capital da província chegaram a cidade escola. Para
surpresa de Sara, não haviam muros, as casas eram muito semelhantes entre si todas construções
apenas com o pavimento térreo, paredes coloridas e telhado da mesma cor marrom, janelas ao lado
das portas com o topo arredondado. Além da cor de cada uma, os entalhes nas portas eram
diferentes entre si.

– Cada mago e cada bruxa tem uma aptidão especial e os entalhes representam isso. - Explicou
Bryana

– Você também é uma aprendiz? - Questionou Sara

– Na verdade estou a pouco tempo de ser ordenada. Estou em missão com Baruk nos últimos anos.
Poucos tem procurado o caminho da magia da natureza. Viajamos pelo reino mostrando para as
pessoas a importância desse conhecimento para que todos tenhamos uma vida melhor.

Os novatos foram acomodados numa casa alojamento onde os recém-chegados ficavam até
definirem se seguiriam mesmo pelo caminho da magia ou retornariam para suas rotinas. Ali só
ficava que estivesse disposto a evoluir, sem cobranças, pressão ou qualquer tipo de obrigação. Os
místicos falavam num conceito novo para Sara, o livre-arbítrio, quando suas escolhas apontam seu
caminho.

A comunidade que ali vivia dedicava sua vida a evoluir de todas as formas, fosse no seu processo
individual ou coletivo. Estavam juntos para poderem trocas experiências, ensinar os recém-chegados
74
e apoiar todo o trabalho dos magos e bruxas que saiam em missões por Espéria.

Na manhã seguinte, Kiske se apresentou ao conselho local para se juntar a guarda enquanto Sara
retomava seu aprendizado com Baruk. Ela tinha muitas perguntas

– Baruk, você me ensinou que tudo é energia e podemos mudar nossa vida e ajudar as pessoas
apenas elevando a vibração. Por que, então, bruxas e magos usam ervas com o mesmo objetivo?

– Algumas pessoas simplesmente não entendem, por não querer ou não acreditar, mesmo que nossa
crença não interfira no fato que tudo é energia e vibração. Então usamos de coisas matérias como
ervas, cristais, poções para materializar a fé. Assim quem precisa de ajudar acredita de todo o coração
que é aquilo que vai mudar a condição que a fez procurar ajuda. Com isso conseguimos que a energia
que essa pessoa mude e ela conquiste o que precisa para si.

– Isso não é enganar essas pessoas?

– Muito pelo contrário, a maioria das pessoas não está pronta para esse tipo de conhecimento. Ou
não estão dispostas a realmente mudar seu interior, lidar com seus traumas, bloqueios, emoções. Por
isso não merecem ajuda?

– Todos merecem – interrompeu Sara

– Exatamente, então nós entramos na realidade de crenças dessa pessoa para ajudá-la. Oferecemos
algo que ela possa acreditar já que ela não consegue acreditar em si mesma ainda.

Aquilo mexeu com o interior da aprendiz, ela mesma não acreditava muito em si mesma, não via o
seu potencial, como Baruk disse. No fundo se via como uma fraude e tinha medo de não corresponder
as expectativas que eram colocadas sobre ela. Assim como sempre acreditou não ter correspondido as
expectativas de ninguém que passou por sua vida, desde sua família até seus antigos doentes. Sara se
julgava uma fraude.

Baruk sabia desse sentimento de Sara, em sua trajetória aprendeu a conhecer as pessoas, entender
seu funcionamento e orientá-las, de maneira individual, como lidar com esses sentimentos. Sabia que
Sara precisaria de orientação, mas a chama de sua missão já ardia no coração da jovem a muito
tempo, ela apenas precisava descobrir quem era em essência para retomar seu chamado.

A vida estava melhor para Sara, especialmente depois de se reconectar com a Divindade. Agora que
podia sentir o amor do Todo por ela todas as situações ficaram mais fáceis de serem vividas. Já tinha
aprendido como estão todos os seres conectados entre si e com a Divindade, mas agora podia sentir
que fazia parte dessa conexão. Buscava ser melhor a cada dia, se dedicava as suas tarefas de aprendiz
75
com afinco. Trocava experiências com outros aprendizes, ouvia ensinamentos de outros mestres.

Passou a ter facilidade em conhecer as pessoas, não como Baruk, mas entendia melhor como entrar
nas crenças das pessoas e orientá-las a melhorar suas vidas. Passou a se compadecer das histórias
que ouvia, mas aprendeu a não trazer para sua vida aquelas dores que não lhe pertenciam e assim
não sofrer dores que não são suas. Aprendeu que cada um dá o melhor de si pelo outro, no entanto
tem situações que o melhor que elas podem fazer não é tudo o que esse outro precisa. Assim
conseguiu perdoar Surita e Ralf, entendendo que eles fizeram o melhor deles por ela e por Abner.

Passou a olhar para sua história e ver que houve momentos que tudo que ela podia fazer foi feito,
porém o “tudo” que tinha era bem pouco. Foi quando passou a se olhar com mais carinho, se
respeitar mais, se amar mais e ser mais gentil consigo. Assim, nutrindo esses sentimentos por si,
poderia transbordá-los para o mundo. Esse caminho não era fácil, nem todos os momentos conseguia
fazer tudo o que era necessário por si mesma, então se lembrava da frase do mestre:

– Um pouquinho melhor a cada dia.

Mesmo com todo esse novo conhecimento e nova forma de ver a sua história ainda tinha muitos
conflitos em sua memória que tinha medo e dificuldade de encarar. As lições de Baruk sobre as
memórias inconscientes ajudavam fazer Sara entender o que acontecia, mas não como concertar
tudo.

– Agora você está pronta para eu lhe ensinar uma ferramenta para lidar com isso.

Assim a jovem aprendiz teve acesso a um conhecimento milenar e extremamente simples, ela
precisava fazer sua criança interior deixá-la limpar suas dores esquecidas na mente inconsciente
para evoluir. Aplicando a técnica que aprendeu passou a sentir uma mudança interna mais intensa.
Viveu uma experiência indescritível. Em um de seus momentos de meditação visualizou uma menina
triste, reconheceu-se naquela criança, era sua imagem com toda a dor e sofrimento que tinha vivido.

-Você vai me machucar mais – disse a menina.

-Não, eu quero curá-la – respondeu Sara

-Mas essas feridas existem por sua causa, por suas decisões, por como você deixou que me
machucassem…

-Eu amadureci, aprendia a não deixar mais que nos firam. Agora preciso curar você para seguir em
frente.

76
-Mas e se você não conseguir? Não quero mais sentir essas dores, muito menos dores novas.

-Veja quantas feridas já viraram cicatrizes. - A menininha olhou para si e percebeu que muitas feridas
que antes sangravam já não existiam mais – Confie em mim…

-Vou tentar. - E a visão se foi.

Os seres sombrios sentiram a mudança na vibração que Sara emitia e sabiam que não podiam
permitir que isso ocorresse, seus servos, mesmo os valentes dragões, não queriam enfrentá-la depois
que sentiram o potencial real existente em seu interior.

As sombras teriam que atacar sozinhas e passaram a se aproveitar dos momentos que Sara saia para
poder meditar e se conectar consigo e com a Divindade para plantar duvidas em seu coração. Assim a
jovem foi perdendo a fé em si, questionava suas transformações. Voltou a se sentir apartada da
Divindade e sua principal dúvida veio à tona em uma frase: Quem sou eu de verdade?

77
Capítulo 19
Na capital geral, Féta, o Círculo Superior soube dos recentes ataques na província de Sandanez e da
aproximação das sombras a Mirad. O conselho deliberou sobre que atitude tomar e enviaram o mago
Aucert e a bruxa Gaya para investigar. Aucert iria a Fey e Gaya a cidade escola. Houve grande agitação
entre a comunidade da província com as notícias.

Conforme se aproximava de Mirad, Gaya sentia em seu coração que grandes coisas ela testemunharia,
como de hábito, sabia que deveria interferir o mínimo possível. Logo que chegou, se reuniu com o
conselho local, porém poucas informações conseguiu ali. Todos percebiam a presença das Sombras
como nunca antes, mas ninguém foi fortemente atacado, ao menos não era do conhecimento deles. A
bruxa precisaria conversar com os mestres e aprendizes pessoalmente para entender o que havia.

Depois de visitar quase todos, estava exausta e percebeu o quanto era infrutífero. Sabia que era hora
de esperar que o fluxo da vida a levasse à resposta. Recebeu uma carta de Aucert que também pouco
descobriu. Seu relato não era em nada diferente das notícias que chegaram ao Círculo Superior: cinco
dos maiores dragões de Espéria armavam o que seria o pior ataque da história, o vapor saindo com
velocidade de suas narinas e, sem ninguém entender, se levantaram voo. Sabendo que nenhuma
notícia nova chegaria tão cedo, foi meditar a beira do lago. Precisava se conectar com seu espírito
para ter clareza dos seus próximos passos.

Sara preparava a terra da frente do novo lar para plantar flores, uma vez que se estabeleceu como
aprendiz e Kiske passou a pertencer a guarda puderam ocupar uma casa com porta sem entalhes.
Eles seriam acrescentados assim que descobrisse sua aptidão e sua missão. De repente viu ao longe
uma mulher, conhecia aquele andar de autoridade, sabia quem era aquela bruxa. Foi sua voz que a
colocou nessa jornada rumo ao desconhecido anos atrás. Agora teria as respostas.

A aprendiz, num ímpeto de coragem e fé, seguiu a bruxa a distância. Gaya percebeu a presença de
alguns vultos a seguindo, sabia quem eram criaturas inumadas, que sobreviviam de roubar o melhor
de suas vítimas, se divertiam plantando duvidas no coração humano os afastando da Divindade e
tirando o bem mais precioso de uma pessoa: sua conexão com sua essência. Mesmo assim, não
mudou seus planos, eles não pareciam oferecer risco a ela, nem se atreveriam, a bruxa a muito tempo
sabia quem era e seu papel na teia da vida para sucumbir a um ataque das sombras.

Vendo Gaya se acomodar, Sara respirou fundo e sentou-se ao seu lado.

-Quem…. Espere, me lembro de você. É a neta de Mariah? Sara?

-Sim, senhora.

78
-Criança, eu nunca mais tive notícias suas ou de sua avó! - Disse abraçando a menina. Sentiu em seu
olhar que os anos foram duros com ela.

-Não falo com Mariah desde que parti com a senhora.

-Mas vejo que resistiu as dores do caminho, como eu sabia que faria.

-Em muitos momentos eu quis, quis muito, voltar para casa, apenas não consegui…

-O que arde em seu peito é maior que essa vontade, não? - Sara concordou com um aceno. - Quem é
seu mestre, Sara?

-Baruk.

-Ótimo! Um grande mago! Creio que um dia ele fara parte do Círculo Superior, se ele quiser, depende
dele.

-Dele?

-Sim, o processo de evolução é pessoal, nossas escolhas determinam o caminho. Como vamos seguir
nossa missão é decisão é de cada um.

-Eu não sei qual minha missão…

-Sabe, só não quer aceitar. Por que? - Sara se lembrou do pássaro de seus sonhos, do seu amor por
ajudar as pessoas e respondeu

-Por que não acredito ser capaz… - nesse instante Gaya viu. Não era a ela que as Sombras perseguiam,
era Sara. Eles tentavam se aproximar da jovem aprendiz

-Um passo de cada vez… você vai descobriu quem é. Não é isso que você quer?

-Como sabe?

-Ah, minha criança… é o que todo aprendiz quer… - riu a velha bruxa.

Depois daquela tarde Gaya sabia exatamente o que fazer.

Sara estava mais confusa do que nunca. Sentia que não tinha forças para nada, seus aprendizados até
ali de nada valiam, nada adiantava. Nem Gaya a ajudara, como seguir? Não podia voltar, tinha
79
chegado muito longe no caminho, estava sem forças…. Sabia que nesse momento só um lugar teria
paz, no abraço casa de Kiske, no ronronar de Genevive, na maciez de Draco e no canto de Thyri.
Voltou para casa procurando um momento sem dor.

Batiam à porta, Baruk imaginou que sua aprendiz poderia precisar de auxílio e abriu a porta. Os olhos
amarelos de Gaya o olhavam com um ar misterioso

-Precisamos conversar

-Sim. Entre, senhora.

-Baruk, entre nós não é preciso formalidades. Não sou mais sua mestra, somos pares desde que você
descobriu quem é. - disse a bruxa se acomodando

-No que posso lhe ajudar?

-Precisamos conversar sobre sua aprendiz, Sara, e a antiga profecia.

Chegando em casa, Sara a encontrou vazia. Estava só com seus medos, sua dor… A opressão em seu
peito era muito grande. E chorou. Não imaginava que ainda poderia chorar tanto, parecia que tudo
voltou. A dor, o sofrimento, a solidão, tudo que acreditou ter deixado para trás quando se reconectou
com a Divindade voltou. Com uma força avassaladora, queria desistir, voltar para sua terra natal e
fingir que nunca tinha saído de lá, mas como deixar para trás tudo o que construiu.

As sombras estavam conseguindo entrar na casa de Sara. Sentiam seu sofrimento, sua baixa vibração
e acreditavam que estavam vencendo. Derrotariam finalmente a única pessoa em milênios que
poderia expulsá-las de volta ao limbo. Aqueles seres exultavam.

A aprendiz sabia qual era o único lugar que poderia renovar suas forças. Levantou-se e saiu sem nem
pestanejar.

-Não sabia de nada disso, Gaya. Sara nunca me contou…. - respondeu Baruk, espantado com a
revelação.

-Temo que ela não se lembre do que a profecia disse. Eu me recordo com tanta exatidão por ter sido a
única que fiz em minha trajetória.

-Precisamos falar com ela. E se as Sombras estão tão empenhadas em derrubá-la, só existe um lugar
que ela pode estar. - Disse o mago – Vamos, precisamos ajudá-la

80
-Talvez, apenas testemunhar… - sussurrou a velha bruxa

Foram a pequena queda d’água que a aprendiz de bruxa amava. Lá a encontraram de joelhos, as
sombras estavam muito próximas do seu corpo, sua energia estava baixa. Baruk se preparou para
correr, mas foi impedido por Gaya.

-Cada uma vive o seu processo, Baruk.

O jovem mestre entendeu o que sua antiga mestra disse e, como ela, esperou. Cada indivíduo tem seus
medos, seus traumas e suas dores a trabalhar, cabe aos mestres apenas passar o ensinamento e dar
orientações de como trilhar o caminho, porém é o aprendiz quem dá os passos. Era o momento de
Sara enfrentar sua pior batalha, contra as suas sombras. Ela teria que se encontrar, se reconhecer e
descobrir quem era para vencer. Ninguém poderia fazer isso por ela.

Sara começou a sentir um calor em seu peito crescer e percorrer toda sua coluna, do ponto mais
baixo ao mais alto. Essa energia se espalhou pelo seu corpo, crescendo a cada respiração, a cada
lágrima que se formava em seus olhos. Ouviu a voz de sua criança interior dizendo “Confio em você”.
Levantou a cabeça, seus olhos tinham cor de fogo.

Gaya e Baruk assistiram as Sombras não conseguirem atacar ou recuar, podiam sentir o desespero
que sentiam ao ver uma bola de fogo se formar em frente a jovem e tomar a forma de um grande
pássaro de fogo. Sara ficou em pé e levantou seus braços, o que fez com que o pássaro estendesse
suas asas em chamas. Era a imagem mais linda que poderiam ver. A voz da jovem ecoava por todos os
cantos do reino

-Agora eu sei quem eu sou e vocês, seres sombrios, não podem mais me fazer mal. Conheçam a
sacerdotisa da Phoenix e sintam o poder do fogo transformador que temos!

As sombras desapareceram. A sacerdotisa abaixou os braços, fez uma reverência de gratidão aquele
lindo pássaro que a tanto tempo conhecia e ele se desfez no ar. Virou-se e viu Gaya e Baruk
maravilhados.

-Fico feliz por você saber quem é. - disse Baruk

-Sem seu auxílio e ensinamentos isso não teria sido possível. - Disse Sara o abraçando.

-Sua missão chegou ao fim, Sara, você venceu as sombras. - Disse a bruxa – e a profecia se cumpriu.

-Está enganada, Gaya, as minhas sombras se foram. Existem muitas outras a iluminar com o fogo da
Phoenix. A minha grande jornada começa agora.
81
Posfácio

Oiê! Espero que você tenha gostado de acompanhar a história da Sara. Foi escrita com muito carinho.

Agora é a hora de eu me apresentar. Eu sou Renata Noronha, tenho 42 anos, sou mãe de 3 filhos,
médica, filha, esposa, irmã, amiga…. Enfim, assim como você tenho muitos papéis sociais que durante
muito tempo fizeram com que eu acreditasse que eu sou tudo isso e mais alguma coisa. Porém,
durante a minha jornada aprendi que sou muito mais que isso.

A história que acabou de ler é baseada na minha vida, desde a minha infância até eu descobrir a
minha verdadeira identidade. Como você pode ver, não foi um caminho fácil, tive muitos traumas,
bloqueios e medos para ressignificar em minha vida. Agora, sinto que preciso ajudar você a trilhar
esse caminho, assim como Baruk e Gaya fizeram com a Sara.

Viver esse processo de autoconhecimento sozinha é muito difícil. Ter uma rede de pessoas que te
entendem, acolhem e te apoiam é muito importante. Um guia então, imprescindível! E pensando nisso
que hoje atendo ao meu chamado e ajudo pessoas como você, que passam pelas dificuldades que
passei, a fazer um mergulho profundo em si mesmas.

Depois de se conhecer, e descobrir quem é você na teia da vida, tenho certeza que o fogo da Phoenix
também vai arder em você para que tenha uma vida mais plena.

82

Você também pode gostar