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A DANÇA

DAS
CABEÇAS
por Jr. Black

uma ínfima homenagem


ao amigo imenso
A indicação de tio Eduardo era clara.

- Procure por Cêça. Ela tem uma lojinha de flores no


Mercado do Cordeiro. Chegue lá que ela vai te dizer como
fazer direitinho.

Inácio tinha uma amante em Roda de Fogo. Uma more-


na nova, bonita e bem-apanhada. Era batata. Ele cairia
por lá na próxima sexta-feira e, no sábado de manhã, se
encontraria com a tal Cêça, mulher de muitos saberes e
mãe espiritual de muita gente.

O caso era que sua filha mais velha, Madalena, vinha en-
doidando, segundo uma das tias. A mãe ainda não tinha
dado conta do fato, mas os vizinhos já falavam às claras
pelas ruas do bairro.

Inácio, cabra enrolado e desorganizado, que vivia de pa-


gar pensão, fazer alguns bicos e arregar dormida na casa
dos pariceiros, e até de algumas ex-mulheres ou namo-
radas, tinha tantos filhos que não sabia mais quantos.
Parou de contar no décimo.

Já tinha trabalhado no Porto do Recife, sido monitor de


obra terceirizado pela Compesa, coordenou alguns rapas
da prefeitura contra ambulantes na Dantas Barreto e
pelo centro da cidade, foi garçom, motorista de cami-
nhão e vigia de um galpão de uma empresa que vendia
postes. Conheceu muita

gente. Gostava de trabalhar, mas seus males eram dois:


mulher e violão. Tudo largava e depois recomeçava do
zero. Imprevidente que era, o futuro nunca lhe amedron-
tou, e por isso sempre viveu afundado por demais no
presente.

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Agora, meio solitário, mais para lá do que para cá, em
franca decadência do corpo, buscava juntar os cacos de
sua passagem neste planeta e começava pelos meninos a
tomar postura de reconquistá-los e botar as duas mãos
sobre a terra para “se alevantar”. Pedido de madrinha.

Madalena era a quarta destes todos. Sua primeira filha


de um casamento que durara quatro anos. Quatro anos
felizes vividos em Jardim São Paulo. Seu melhor ca-
samento, costumava dizer aos amigos quando tomava
uma. Ela estava na faculdade, mulher feita e estudio-
sa. Era o orgulho do pai. A primeira rama da família a
ingressar no terceiro grau. Uma felicidade secreta, sua
predileta entre os herdeiros.

Por isso, quando soube do que estava acontecendo, tratou


logo de consultar uma mestra, uma ialorixá, mesmo
estando afastado do bombo e tendo retirado sua folha
quando ela havia nascido há 23 anos. A mãe, uma cristã
muito fervorosa, tinha lhe pedido por tudo que não fosse
nunca mais à nenhuma casa “onde a histeria reinasse
frente a Deus”, e ele a atendeu por achar que tratava-se
de amor.

Com o passar do tempo, a mulher se transformara em


uma fundamentalista histérica. Quase não conseguia
mais articular nada além de dogmas e mais dogmas,
tornando a convivência entre os dois insuportável, ainda
mesmo depois de separados.

Fazia alguns anos não botava os olhos na filha direito por


leviano descuido. Não recordava mais de quando tinha
assuntado a última vez com ela, nem do último passeio.
Os filhos crescem rápido demais e qualquer verão ou
chuva ausente pode fazer uma diferença medonha. Iná-

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cio sabia dessa lição como ninguém, mas agora estava
disposto a correr atrás do tempo perdido numa corrida
louca e sem chegada.

Então, após uns telefonemas, conseguiram se encontrar.


O pai e a filha. Estavam na beira-mar, depois da praia
do Pina. Uma lua despontava no horizonte reclamando a
atenção de todos naquele começo de noite. Conversavam
ainda timidamente dentro do carro parado na avenida
da Brasília, agora Formosa, de frente aos diques.

- Filha, eu sei que você frequenta a gira. Olhe, eu... - Não,


pai, eu só fui uma vez prum trabalho de faculdade - in-
terrompeu com surpresa a mulher.

- Menininha, escute. Já falei de você para uma iaiá pode-


rosa. Me reencontrei com Luziara depois de muitos anos.
Ambas me disseram, não precisa mentir.

Madalena levantou o rosto e olhou na cara do pai, como


que mais surpresa ainda com o que tinha escutado. Fez-
se uma pausa, ela engoliu o ar e depois falou, entre alívio
e certa alegria.

- Papai, eu nunca pensei que o senhor soubesse dessas


coisas.

Inácio estava muito emocionado. Continuou com calma. -


Minha filha, eu fui criado em Beberibe. Seu pai com sete
anos de idade já sentava a mão no ilú feito ogã velho.

E emendou.

- Agora se acalme, olhe para mim de novo e diga se num


é verdade.

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A filha tinha um brilho nos olhos e confirmou tudo ba-
lançando a cabeça.

O pai aproveitou o momento e se danou a relembrar seu


passado, como que rejuntando pedrinha por pedrinha o
castelinho do afeto entre os dois. Castelinho esse que se
encontrava meio caído.

E o homem contou da primeira vez em que se sentiu em-


balado pelo toque, embebido pelo dendê de uma festança
em nome de Xangô numa roça em Jardim Piedade, ainda
adolescente. De quando em outra vez ouviu o Exu de
um terreiro na UR3 dar-lhe um boa noite, quando fora
deixar uma namorada antiga na segurança do lar depois
de uma saída para jantar. Recordou de outro momento,
com Madalena bebezinha no braço, quando foi bater
num batizado de Zé Pilintra em Campo Grande, perto de
onde morara seu avô, só para espiar o povo do centro e
se encontrar com um grande amigo que tinha ido morar
no Rio de Janeiro e que estava de volta de passagem pelo
Recife.

- Tu se lembra disso, menininha? - e riu desabridamente


com a filha dentro do carro.

- Porra, painho, assim também. Lembro não - ela res-


pondeu e tirou da bolsa um exemplar bem desgastado
de um Rita Laura Segato sobre o Xangô do Recife, para
mostrar lhe.

Ao que Inácio exclamou.

- Vixe, Maria, e tem livro sobre isso, é? Na minha época


tinha disso não.

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O homem deu uma folheada no livreto segurando a capa
roída pelo tempo e pela traça com todo cuidado. Tentou
ler uma ou outra passagem, mas com a luz fraquinha do
interior do automóvel ficou bastante difícil seguir. Ele
então devolveu-o para a filha que se aparentava mais
leve e mais tranquila ainda.

Madalena disse que gostava muito de ouvir sobre Ieman-


já e que tinha chorado demais na primeira vez em que
foi ver uma panelada dela na praia. Que tinha frequen-
tado um terreiro na Mustardinha por quase dois anos,
mas que agora visitava outro, onde se sentia muito mais
à vontade e onde já tinha velhas amizades na nova famí-
lia de santo. Que realmente sua primeira vez tinha sido
para realizar um breve estudo com amigas da faculdade,
mas que logo depois tinha sentido algo no peito que a
fizera se apaixonar por tudo aquilo. Uma sensação de
brasilidade e pertencimento que nunca tinha experi-
mentado. No momento, ela estava para decidir se faria a
cabeça ou não por lá num futuro próximo.

A moça também se regalara da situação e abriu-se de tal


modo, que falou de vários outros assuntos seus, os mais
diversos. Que adorava música eletrônica, que pensava
muito em fazer uma tatuagem e, inclusive, que nunca ti-
nha namorado um homem e que tinha uma amiga mais
que especial que se chamava Danila.

Inácio se recostou mais no banco e, olhando para a filha,


bem em seus olhos, questionou.

- Está tudo certo, menininha, você é jovem. O que eu


quero saber é o que te aperreia?

- Nada, painho. Tive alguns sonhos somente.

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- Eu sei, Madalena. Sei como é que é.

Tendo dito isso com muita convicção e calma, deu um


abraço demorado na filha, como se lhe dissesse que ele
estaria com ela sempre que ela precisasse. Ainda mais a
partir daquele momento. Um recomeço.

- Você é meu melhor recado neste mundo, menininha.


Ainda falaram sobre muitas coisas durante um bom tem-
po. Riram de novo, choraram juntos. Inácio lembrou-se,
de repente, que a mãe sempre dissera que a menina era
ele de saia.

Depois foram embora. O pai deixou a filha em casa e


por um momento pareceu que tinha visto uma fresta da
Glória nos céus, sentindo ele uma felicidade profunda,
uma chama cálida e duradoura no coração, enquanto
dirigia de volta prum quarto alugado numa pensão em
Casa Amarela.

Algumas semanas após o episódio, pai e filha estavam


juntos novamente. Inácio, Madalena e sua namorada
Danila. Estavam na praia tomando banho de mar, um
banho refrescante em Boa Viagem. Havia um sol para
cada um no Recife naquele final de semana.

Inácio se afastou um pouco para deixar o casal mais à


vontade por um momento. O homem olhou para o al-
to-mar e ficou pensando no recomeço em prática, nas
voltas que a vida dava. Estava feliz, contemplativo, vendo
a filha ali, feliz e viva, banhando-se na praia. Ninguém
era ou estava louco, nem nada. Nada disso. Madrinha
Luziara já tinha lhe assegurado. Pensou no tempo que
perdera com todos os outros filhos, mesmo aqueles dos
quais não tinha tanta certeza de ser o genitor. Lembrou

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do tio Eduardo lhe ensinando, ainda criança, que não
havia Deus tão certo que habitasse apenas uma morada,
que carregasse um único nome ou vestisse somente um
traje, enquanto levava a mão à cabeça, sempre molhando
-a com água salgada.

Abriu um sorriso discreto. Um sorriso para si mesmo.


Teve um insight reconfortante e sentiu uma corrente
bem fria passar por entre suas pernas quando escutou
claramente, assim do nada, uma voz feminina falar-lhe
ao ouvido, enquanto mirava Madalena preparar-se para
sumir noutro mergulho dentro das águas.

- Repare. Sua filha é linda como um golfinho.

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