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Em The scarlet letter [A letra escarlate], Hawthorne põe o monstro no palco

central. A adúltera Hester Prynne, bebê no colo, é “a imagem da Maternidade


Divina”, que só “um papista em meio à multidão de puritanos reconheceria”.15
Em outras palavras, Hester é a Virgem católica expulsa a toque de caixa pelo
protestantismo. Que o tema da mãe em The scarlet letter tem algo a ver com a
mãe do próprio Hawthorne, fica claro a partir da cronologia da composição. Após
a morte de sua mãe, a 31 de julho de 1849, ele caiu doente com uma “febre
cerebral”, da qual se recuperou lentamente. Há um salto em seus cadernos de
anotações, de 30 de julho a 5 de setembro, durante o qual ele começou a
trabalhar em The scarlet letter. O livro foi concluído em fevereiro seguinte e
publicado naquele ano.
Em “The custom-house” [A alfândega], prefácio autobiográfico, Hawthorne
apresenta sua persona antagonista, um patriarca puritano, ‘ ‘aquele primeiro
ancestral” de sua família que ‘‘ainda me persegue”: ‘‘esse progenitor sério,
barbudo, de casaco de zibelina e chapéu funil — que veio tão antes, com sua
Bíblia e sua espada”.16 Em The scarlet letter, a persona sexual exilada da santa
mãe natural vai derrotar o despótico progenitor de Hawthorne, que traz uma
igreja sobre e dentro da cabeça. Tanto o prefácio como o romance têm duas
vezes o tamanho ideal. The scarlet letter é floreado em demasia. Sua
preocupação secreta está embutida, oculta, recoberta de camadas de
reconsiderações. A história é tão obsessivamente bordada quanto a própria letra
vermelha.

A história de adultério de Hawthorne não se parece com Madame Bovary e Ana


Karenina, romances sociais. The scarlet letter é um sonho tardo-romântico,
agitado por turbulência interna. Fiedler diz que ‘‘o ato carnal” do adultério é
‘‘privado de realidade por ser deslocado no tempo”, sendo, ‘‘no sentido
psicológico, pré-histórico”.17 Dá-se um impressionante desvio de afeto de
Hester para um dominador homoerótico, o ‘‘deformado” Roger Chillingworth. Por
que Hawthorne arrastou para dentro do romance essa supérflua personagem
me- fistofélica? A presença de Chillingworth é uma necessidade psicológica.
Juntando-o ao suposto adúltero Arthur Dimmesdale (eles vivem juntos,
‘‘dormindo e acordados”), Hawthorne deixa Hester e sua filha Pearl em um ‘
‘círculo mágico'', ou ‘‘círculo de reclusão”, um arquetípico temenos feminino em
que homem algum pode entrar.18 O velho Chillingworth é a mão fria, paralisante,
do pai e avós de Hawthorne. Hester é a mãe de Hawthorne divinizada, meio
Virgem, meio Madalena. Adultério é a ciumenta acusação do filho contra a mãe
que o abandona pelo pai. Hester é Antígona erguendo-se contra a cidade,
enquanto Dimmesdale é Edipo arruinado pelo incesto.
Hester é uma deusa errante que ainda traz a marca de suas origens asiáticas.
Tem uma ‘‘rica e voluptuosa característica oriental — um gosto pelo des-
lumbrantemente belo”, manifestado em seu trabalho de agulha. A letra escarlate,
inicial de adultério mas também do Alfa e Omega da divindade, é enfeitada com
‘‘elaborado bordado e fantásticos floreios de fio dourado”. Virgem bizantina ou
rainha renascentista, Hester denuncia as múltiplas repressões do puritanismo:
beleza, sexo, imaginação, arte. A Gretchen de Hawthorne cresceu em poder,
enquanto Fausto encolheu. Como o ministro velado, Dimmesdale é um homem
de Deus que busca a deusa. Tem a virilidade tão difusa como seu nome.* Com
seus tremores esbaforidos e sua ‘‘fraqueza infantil”, Dimmesdale é um homem-
heroína romântico, mais filho que amante. Mesmo aceitando- se o adultério como
fato, o ato sexual estropiou permanentemente o homem, um zangão estonteado
pela abelha rainha. Hester tem de exortá-lo: ‘‘Pregue! Escreva! Aja!”.19 Ela tem
energia porque é a natureza romântica, enquanto o patriarcado puritano está em
decadente declínio.

O clímax é a subida de Dimmesdale, à noite, no patíbulo de exposição ritual com


Hester e sua filha. Quando se dão as mãos, "uma tumultuosa onda de vida nova”,
‘‘uma torrente” de ‘‘calor vital” o invade: ‘‘Os três formavam uma corrente
elétrica”.20 Aceitação, pelo ministro, de responsabilidade moral? — sem valor,
em minha opinião, senão na época. Eu vejo a cena como um quadro de
matrilinhagem encenado no altar pagão da noite arcaica. O homem junta- se à
corrente elétrica da feminilidade. Rejuvenescido por uma onda de força feminina,
ele declara, na verdade: ‘‘Também eu nasci de uma mulher!”.
Como em The minister's black veil, atua aqui um disfarçado transexualis- mo. No
início da casa dos vinte anos, antes de isolar-se na casa da mãe por doze anos,
Hawthorne acrescentou um w ao sobrenome Hathorne. Esse w prefigura a letra
escarlate que, em ‘‘The custom-house”, ele tenta pregar no peito, mas deixa cair
no chão quando a sente queimá-lo com espectral mana. ‘‘Hawthorne” é o nome
de seu pai blasfemamente hermafroditizado. O w, creio, é de woman [mulher],
que Hawthorne injeta em seu patrimônio, no momento em que vai devolver a
mãe ao puritano século xvn, em The scarlet letter. A idéia romântica de um
sobrenome hermafrodita pode ter-lhe vindo do fato de que o nome de solteira de
sua mãe era Manning (de man, homem).
(...)
A crítica não percebe que a grande literatura americana do século xrx tem um
erotismo visual tão perverso quanto qualquer coisa da Paris decadentista.
Hester, avisando ao palpitante Dimmes- dale sobre o ‘‘olho mau” de
Chillingworth, tenta romper o sortilégio, ‘‘fixando seus profundos olhos nos do
ministro, e exercendo instintivamente um poder magnético” sobre ele.21 No
vampirismo romântico, o fascínio ocular acompanha as monstruosas divisões da
alma. Um sexo pode dividir-se num par conflitante, auto-erótico e autotorturante.
Dimmesdale está atado a Hester por culpa e dependência, mas não por cathexis
sexual. Seu verdadeiro amante é Chillingworth, a quem está amarrado em estéril
casamento sadomasoquista.

A nudez do estilo simples puritano e a ausência de obras de arte herdadas


depauperaram o olho americano, e agravaram o perigoso poder do visual,
quando ele chegou por meio do romantismo. Hawthorne ilustra a problemática
sexual do visual quando Hester é levada perante a multidão: ‘‘A infeliz ré
mantinha- se tão bem quanto podia uma mulher, sob a pesada carga de mil olhos
implacáveis, todos grudados nela, e concentrados em seu colo. Era quase
intolerável de suportar”.22 Hester como bode expiatório é o foco do erotismo
projetado. Os mil olhos obsessivamente fixos na letra escarlate estão ‘
‘concentrados em seu colo” porque os fluentes seios da mãe foram expulsos da
consciência puritana. Há um voyeurismo maciço de atração e repulsão. Sigamos
a linguagem de Hawthorne em todas as suas estranhas implicações. Hester
suporta a intoleravelmente “pesada carga” de olhos “grudados nela”.
Surrealisticamente, os mil olhos estão presos em seu colo, bolsas de fartos
significadas. De pé na plataforma que é o cenário de asserção hierárquica para
o Perseu de Cellini, o retrato de Dorian Gray e Hitler em Nuremberg, Hester é a
Artemis de Efeso em seu pedestal, a mãe-ídolo asiática de cem seios animais.
Shelley viu olhos de vampiro nos seios femininos. Hester, como a Rumor de
Virgílio estimulada pelo adultério, está lan- tejoulada de múltiplos olhos fixos.
Nesse momento crucial, a grotesca su- perornamentação de estilo de Hawthorne
é tão decadentista quanto a de Gustave Moreau.

Uma leitura arquetípica de The scarlet letter retira seu americanismo, seu senso
de lugar. Também suprime a trama. Mas os elementos americanos do
romantismo tardio de The scarlet letter são relativamente superficiais. A Nova
Inglaterra pré-revolucionária é simplesmente “o ancestral” na taquigrafia do
dialeto local. Não é mais autêntica que o medievalismo rangente de um romance
gótico. A trama é sempre negligível no romantismo. Trama é história, causa e
efeito desdobrando-se racionalmente no tempo, mas na poesia romântica a
história é irracionalmente impelida para trás, para o primevo. A trama
apresentada pelo Ancient mariner de Coleridge é falsa. O mesmo acontece com
The scarlet letter; que só pode ser lido pela trama se se ignoram os imensos
saltos emocionais e sexuais. The scarlet letter é uma visão arquetípica da mulher
perseguida movendo-se serenamente no círculo mágico de sua natureza sexual.
Dimmesda- le é um fílho-amante que anseia em vão por fundir-se com a mãe.
Pearl é o filho bebê purgado de sua masculinidade divisiva. Hester a duplica na
tensão da solidão. O tempo reduziu as pedras da adúltera a areia, em torno da
qual se forma uma pérola {pearl) perfeita. Para Hawthorne-enquanto-
Dimmesdale, a mãe está ao mesmo tempo muito perto e muito longe. The scarlet
letter formaliza a ambivalente relação adulta de Hawthorne com sua mãe, que
deve ser empurrada para a distância mental, a fim de que a imaginação
sobreviva.

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