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RESENHA: O lobo da estepe (Só para os raros)

Por Caloan Guajardo

Foto disponível em http://1.bp.blogspot.com

O lobo da estepe
Hermann Hesse
Tradução e prefácio de Ivo Barroso.
35a edição. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Título original alemão: DER STEPPENWOLF.
ISBN 978-85-01-02028-4
238 páginas.

O leitor tem, na sua biblioteca, fragmentos de prismas que chama de livros. Eu poderia dizer
que eles são espelhos refletores de sua identidade verdadeira, entretanto usei "prismas" porque,
depois de ler esta obra, tento prevenir-me contra o impulso de reduzir a uma ou duas
dimensões meu próprio ser, sobretudo no universo literário. O espelho reproduz a imagem do
indivíduo e a limita a molduras e ângulos de visão, enquanto o prisma refrata essa imagem em
várias partes e direções.

O lobo da estepe foi escrito em 1927, por Hermann Hesse (1877-1962), quando tinha 50 anos,
a mesma idade do protagonista Harry Haller. Harry sente-se exausto aos 50, sente que já
viveu e sofreu demais. Sua primeira mulher teve um ataque de loucura e um dia o expulsou de
casa. Obviamente isso o traumatizou e ele, que sempre se dedicou aos deleites da vida
intelectual (um ótimo leitor, articulista, apreciador de música erudita), sempre introvertido,
acha difícil se socializar e também amar de novo. Por isso passa a definir-se como o Lobo da
Estepe. O lobo também vive numa comunidade estruturada mas emana uma solitária essência.
“Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio de
um mundo cujo objetivo não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! (...) Não
sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés
abarrotados, com sua música sufocante e vulgar (...). Sou, na verdade, o Lobo da
Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra
abrigo nem ar nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível”.
(páginas 40-41)

O autor nasceu em 2 de julho de 1877, na cidade de Cawl, na Alemanha e ganhou o Prêmio


Nobel de Literatura em 1946, porém sua vida não foi desde o início voltada para a literatura.
Ele teve uma educação severa e guiada por questões teológicas, uma vez que seus pais foram
missionários. Somente aos 19 anos ele pôde, de certa forma, romper esses laços e começou a
trabalhar numa loja de antigüidades e livros em Tübingen e Basileia.

Hesse põe-se inteiro neste livro. Suas crenças, seus gostos, suas interpretações da vida social.
Conhecer Harry Haller é como ter um mapa para a personalidade do Hermann Hesse - um
mapa desenhado numa mesa de bar, com todas as imprecisões da embriaguez e dos disfarces
ordinariamente usados nos alter ego, mas ainda assim um mapa. Apesar de expor o que pensa
sobre a guerra, a burguesia e o capitalismo em outros romances, é em O lobo da estepe que
ele se despe intelectualmente, faz um mea culpa, é franco sobre suas contradições mais
íntimas e se pergunta se, com meio século de vida, talvez já fosse o tempo ideal para explorar
partes suprimidas de sua persona – o Harry vulgar, o dançarino, o vulnerável, o social, o que
ouve música popular e até o que aprende a ver beleza e erotismo tanto na mulher quanto no
homem sem entrar em crise existencial.

Harry não está desesperado, nem deprimido. Ele já pensou no suicídio como já pensou na
estética dessa ou daquela poesia ou no próximo pão, todavia não planejava se matar. Ele
prefere a dor infernal de suas enfermidades ou a sublimidade, a elação de um ótimo vinho
acompanhado de um divino concerto de Mozart – o que ele não suporta são os dias calmos.
Ele é aposentado, mas até tem dinheiro. O que lhe sobra é o tédio.

Posso compará-lo a uma outra personagem da literatura internacional: Alice, de Alice no País-
das-Maravilhas e Através do Espelho (escritos por Lewis Carroll). Alice inicia sua viagem
pelo País-das-Maravilhas quando encontra-se entediada no parque, pois sua irmã estava lendo
e não lhe dava atenção, o que a levou a seguir o Coelho Branco até sua toca, o portal para o
outro mundo. Harry começa a sua depois de caminhar, solitário e entediado, à noite, e
encontrar uma porta num muro que costumava às vezes apreciar, ao cruzar certos recantos
velhos e esquecidos da cidade. Acima dela um letreiro dizia:

“Teatro Mágico

Entrada só para os raros

Só para os raros”

Pouco depois de se afastar um pouco do lugar por não conseguir abrir a porta, o letreiro
mudou: “Só para loucos!”. Como Alice, Harry precisou de um guia que não falava muito,
apenas o incitava a curiosidade e mostrava o caminho: um vendedor ambulante e um cartaz
onde se lia:
“Noitada Anarquista!

Teatro Mágico!

Entrada só para ra...”

Harry quis ir ao tal Teatro Mágico imediatamente e, assim como Alice teve de pensar muito
para passar pela porta do Submundo, Harry recebeu como resposta “Não é para qualquer um”.
Insatisfeito, quis comprar algo do vendedor e recebeu um livreto chamado TRATADO DO
LOBO DA ESTEPE: Só para loucos.

Trata-se de uma jornada íntima, da auto-descoberta, por vias alegóricas, de um ser que só na
maturidade aprende a não ofender sua própria inteligência dividindo-se apenas em dois: o
bem (seu lado Homem) e o mal (seu sórdido lado Lobo da Estepe). O livreto é uma análise
profunda e psicanalítica dele mesmo, entregue por um estranho. Alguns personagens
aparecem para mostrar-lhe outras perspectivas do seu próprio eu; tais são Hermínia, Maria e
Pablo. São desdobramentos da essência do Harry.

Hermínia (seu próprio nome é uma variação de Hermann) e Maria são seu lado feminino.
Enquanto esta é seu lado mais mundano, a primeira é ele mesmo quase completamente,
apenas com uma dosagem significativamente menor de erudição. As duas são garotas de
programa. Maria é seu hedonismo sexual e se dá a Harry sem hesitar. Hermínia é seu par em
perspicácia, seduzia Harry aos poucos para ele se apaixonar por ela e então matá-la, como ela
mesma havia pedido. Pablo é o seu lado masculino despudorado, o homem ideal, bonito
inclusive, com “olhos de mestiço”, um homem que Harry gostaria de ser (e ter) mas não tem
coragem.

Pablo, o qual lhe foi apresentado por Hermínia, o conduz lá pelo fim do livro ao Teatro
Mágico, um centro recreativo ao qual se chega com o uso de drogas. Para ter completo acesso,
deve se livrar de todos os tabus e amarras, o equivalente a ir a um teatro real e deixar, na
entrada, além do casaco e chapéu, todo o resto que cobre o corpo. Lá tantas coisas acontecem
e o protagonista aproveita sua personalidade fragmentada dentro dos espelhos do Teatro para
reescrever sua história, como num mundo paralelo, atrás de tantas outras portas.

Por tudo isso, é difícil encaixar este romance numa estante específica. Sim, é Literatura
Estrangeira, mas deixá-lo lá, sem nenhuma outra pista sobre o que está em seu conteúdo, é
como pegar um CD do Mozart e colocá-lo na estante de Música Internacional, cercado por
Madonna e Marilyn Manson.

Este não é um romance estritamente psicológico, nem simbolista ou metafísico, muito menos
de auto-ajuda. Na verdade, não é uma leitura para qualquer um. Não aconselha-se, por
exemplo, aos utopistas e otimistas sujarem com seus dedos de algodão-doce as páginas deste
livro e nem a estas sujarem com introspecção os olhinhos de unicórnio dos que só consideram
importante a alegria patológica (histeria) e vêem no rebolar do quadril a salvação humana.
Este livro ficaria no centro da minha biblioteca e refrataria os inúmeros raios que compõem
minha identidade sobre todos os outros.

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