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Capítulo III

O Poder Soberano
A soberania como poder político:

O poder soberano é, desde logo, poder político.

 Numa perspetiva substancialista, o poder é algo que se usa para adquirir outros bens.
Deste ponto de vista, o poder político caracterizar-se-ia pelo uso da força na
prossecução do interesse público.
 Numa perspetiva subjetivista, o poder é definível como a capacidade de um sujeito
alcançar certos efeitos.
 De acordo com a perspetiva relacional, o poder é a relação entre dois sujeitos que
implica a possibilidade de um deles obter do outro um comportamento determinado.

Conjugando as definições substancialista, subjetivista e relacional do poder político, podemos


dizer que este consiste, originariamente, na capacidade de impor pela força, aos indivíduos
membros de um grupo social, a adoção de um determinado comportamento.

Poder Político: desde o momento em que começamos a viver em comunidade usamos a força
e esta é usada não só para segurança, mas para organização.

Desde as comunidades primitivas existiam regras básicas de convivência que, quando


desrespeitadas, exigiam o uso da força para que as pessoas se comportem de forma
socialmente expectável;

O exercício da força consiste numa ultima ratio, sendo primeiro utilizados outros meios como
a persuasão, oferta de incentivos, ameaça de sanções… Não é frequente o confronto do
cidadão com o exercício efetivo da força física por parte do Estado, apesar desta conferir
credibilidade à atuação do poder público e contribuir para a sua eficácia.

No sistema político medieval, o poder político é exercido por um vasto conjunto de pessoas e
organizações (rei, senhores feudais, Igreja, ordens religiosas, corporações) – a mundividência
medieval reconhece a legitimidade da detenção e exercício do poder político por essas
entidades.

O Estado Moderno surge com a centralização do aparelho de poder, relativamente a cada


território, nas mãos de um homem: o rei ou o príncipe. De acordo com Jean Bodin, a soberania
é o “poder absoluto e perpétuo de uma República”. Define a soberania como um poder
independente a nível externo e supremo a nível interno. A independência externa implica a
rejeição completa das pretensões hegemónicas do Imperador ou do Papa (a soberania não
reconhece nenhum poder que a limite). A supremacia interna implica a desnecessidade do
consentimento de quem quer que seja para o exercício do poder. Segundo Bodin, trata-se
ainda de um poder absoluto, o que implica que o titular do mesmo não esteja sequer sujeito às
leis que emana (princeps a legibus soluto).

O que distingue, essencialmente, o poder soberano de outras formas de poder político é,


assim, o facto de ter monopolizado o uso da força num determinado território.
A relação entre poder soberano e poder político é que a primeira é uma subcategoria do
segundo, que se caracteriza por ser mais amplo;

A soberania e o Direito:

A soberania de um Estado adquire-se, antes de mais, pela posse e concentração dos meios
adequados à imposição da força exclusiva num território, isto é, pelo comando dos
instrumentos fácticos do poder: força militares e policiais, desde logo, mas também tribunais,
serviços de cobrança de impostos e criação de moeda, entre outros.

Mas, a evolução histórica implicou, pelo menos no mundo ocidental, que a soberania tivesse
uma expressão jurídica: a possibilidade de adotar atos jurídicos de autoridade. Atos jurídicos
de autoridade correspondem a declarações que produzem uma transformação na esfera
jurídica dos destinatários, designadamente nos seus direitos e deveres, sem necessidade do
seu consentimento. Podem estar em causa normas ou atos não normativos.

 As normas jurídicas conjugam as características da generalidade – os destinatários são


definidos por recurso a categorias amplas, não estando determinados à partida – e
abstração – destinam-se a regular situações futuras típicas, sendo por isso suscetíveis
de aplicação sucessiva no tempo.
 Os atos não normativos podem ser individuais, concretos ou ambos.

O Direito passou a ser usado como instrumento de poder político, embora contivesse a
virtualidade de impor limites ao exercício do poder. O uso que faz do Direito transforma o
poder político, de tal modo que podemos dizer do mesmo, como poder jurídico-político, que é
a capacidade de condicionar o comportamento dos elementos de um grupo social através da
manipulação da respetiva esfera jurídica, bem como da execução pela força das obrigações
assim impostas, de modo a produzir os resultados desejados pelos titulares do poder.

O poder político, desta forma, encontra-se na conjugação de um poder jurídico com um poder
social fáctico, podendo dizer-se com Zippelius que o Direito e o Estado “fazem parte um do
outro como as duas faces de uma medalha”. Podem ser identificados três pontos de contacto
particularmente relevantes entre o poder jurídico e o poder social fáctico:

1. Por um lado, o objetivo do poder jurídico é o de restringir o exercício dos poderes


sociais privados e, para tal, precisa de se traduzir num efetivo poder social público;
2. Por outro lado, a fundamentação do poder jurídico encontra-se em normas de
competência, mas a fundamentação última destas só pode encontrar-se na efetividade
de aplicação dessas normas que, em última instância depende da existência de um
poder social fáctico.
3. Finalmente, o exercício do poder jurídico, nomeadamente o conteúdo das normas,
pode ser determinado por poderes sociais de facto distintos dos titulares formais
daquele poder.

Assim, o Direito é usado como intermediário entre os poderes soberanos e os cidadãos.


Apenas no caso de estes não cumprirem o Direito, intervirá, como ultima ratio, a força crua
que está na raiz da soberania.

A tradução jurídica da soberania implicou que se reconhecesse aos órgãos do Estado


competências, isto é, um conjunto de poderes, para a prática dos referidos atos de autoridade.
Naturalmente, num Estado soberano, a primeira das competências é a de definir quais são
essas competências. Fala-se aqui em omnipotência jurídica, o que se compreende se a
soberania for considerada um poder absoluto: o Estado poderia atribuir quaisquer
competências aos respetivos órgãos. Esta “competência das competências” exerce-se em
primeira linha através da aprovação de uma Constituição. É neste instrumento que ficam
previstos os órgãos do Estado e as competências de que estão dotados. O poder constituinte,
ou seja, o poder de elaborar a Constituição, é, portanto, o primeiro poder do Estado soberano.

As teorias legitimadoras do poder no Antigo Regime são, entretanto, ultrapassadas pelas


conceções liberais e, depois, democrático-liberais dos séculos XIX e XX. A soberania que residiu
no monarca, e depois no Estado, é assumida como pertencendo ao “povo”: artigo 3º nº 1 CRP.
Cabe ao povo o exercício do referido poder constituinte, o que consegue através da eleição de
representantes numa assembleia que elaborará a Constituição ou através da aprovação da
Constituição em referendo.

A soberania expressa-se no exercício dos poderes constituídos – órgãos criados pela


Constituição, de que se destacam os órgãos de soberania – das competências que lhes são aí
atribuídas, de tipo legislativo, administrativo, jurisdicional ou puramente político. A lei, o ato
administrativo e a decisão judicial são típicas em que se afirma a soberania do Estado e que,
por isso, são qualificados como atos jurídicos de autoridade. Em qualquer caso, tratando-se
quase sempre de atos que implicam a alteração ou a reafirmação dos direitos ou deveres dos
cidadãos, visam sempre a satisfação de necessidades públicas concretas.

Limites ao poder político soberano:

Para Bodin, a soberania não foi configurada como um poder ilimitado. Para este autor, o
Direito divino e o Direito natural, os princípios jurídicos universais e certas leis fundamentais
do reino constituíam limites que o poder soberano não poderia ultrapassar. A ideia de que a
soberania é um poder limitado, embora desconsiderada pelos monarcas absolutistas, veio a
ser retomada com as revoluções liberais que em documentos com a força de “Constituição”
dividiram os poderes antes concentrados no monarca por diversos órgãos de soberania,
concretizando o princípio da separação doe poderes.

Ao mesmo tempo, postularam regras inultrapassáveis para esses poderes constituídos. Estes
poderes, além de estarem submetidos às normas constitucionais, passaram a estar sujeitos às
regras que eles próprios emanam, nomeadamente no exercício da função legislativa. No século
XIX é clara e definitivamente ultrapassado o princípio princeps a legibus soluto: agora, todos os
órgãos do Estado estão sujeitos à Constituição e à lei. Deste modo, pode dizer-se que a
soberania está sujeita a limites jurídicos positivos, constituídos pelas normas de Direito
emanadas pelo poder constituinte ou pelos poderes constituídos. Esses poderes podem alterar
aquelas normas, mas têm de seguir, para o efeito, procedimentos de revisão que exigem a
participação de diversos órgãos do Estado e, portanto, do acordo destes. Finalmente, quer a
aprovação originária das normas constitucionais e ordinárias quer a sua revisão, estão sujeitas
a limites jurídicos suprapositivos e internacionais, bem como a limites fácticos ou sociológicos.
É o mesmo que dizer que a soberania está sujeita a estes limites.

Quando o poder soberano é exercido de forma originária, não se pode desconsiderar que a
Constituição que há de ser aprovada é elaborada para um determinado povo, com uma certa
História e uma particular cultura, que se encontra num determinado estádio de
desenvolvimento económico e social. A consagração de normas que implicassem uma rutura
total com essa história ou essa cultura ou que não tivessem em conta as possibilidades
económicas e sociais do momento poderia gerar uma reação popular contra a Constituição ou,
ao invés, poderia implicar a não aplicação efetiva das normas em causa.

Limites Fácticos Internos: limites que resultam do contexto interno em que o poder está a ser
exercido, resultam da própria comunidade em que o poder soberano é exercido. Exemplo:
quando uma Constituição é elaborada e aprovada; quando o poder de uma forma geral é
exercido destina-se a um determinado povo com uma certa história e a uma certa cultura,
situado num determinado patamar de desenvolvimento económico e social. Assim, se a
Constituição criada ou o exercício de poder conduzir a uma rutura total com essa historia e
cultura ou se não tiver o enquadramento económico e social poderá levar a uma reação
popular contra a Constituição ou à sua não aplicação;

Limites Fáticos Internacionais: um Estado encontra-se sempre em relação com outros Estados,
nomeadamente, aqueles mais próximos do ponto de vista geográfico, económico, militar ou
cultural, cujos interesses deve ter em conta, sob pena de se isolar na cena internacional ou, no
limite, gerar conflitos armados. direito internacional convencional; ius cogens.

Limites Jurídicos Suprapositivos: os poderes constituídos e constituintes estão limitados por


princípios fundamentais do Direito, mesmo que não tenham sido por estes poderes aprovados,
são os valores ou ideias que traduzem a própria essência do Direito, que não precisam de estar
escritos para valer e são retirados da consciência jurídica geral. O poder soberano nunca pode
ser exercido contra estes princípios sobre pena de se tornar ilegítimo.

Limites Jurídicos Internacionais: há as normas imperativas do Direito Internacional, ou seja,


normas que vinculam os Estados e que estes não podem violar, mesmo que não tenham
consentido em vincular-se a elas. Embora estas ainda não tenham sido rigorosamente
delimitadas, protegem um número importante de direitos fundamentais da pessoa humana,
proíbem genocídios, tortura, escravatura, discriminação racial, entre outros.

O Direito Internacional, que rege tradicionalmente as relações entre Estados, assume uma
nova função: regular as relações entre cada Estado e a respetiva população. Tal resulta de os
sujeitos estatais assumirem o compromisso, através da celebração de convenções
internacionais, de não violarem os direitos humanos fundamentais.

Desafios contemporâneos à soberania dos Estados:

Hoje o poder político é partilhado por um conjunto vasto de órgãos e, mais do que isso, por
um conjunto amplo de entidades públicas, nacionais e internacionais, com personalidade
jurídica distinta do Estado. Pode-se, deste modo, questionar se o Estado continua a ser o poder
supremo e independente num território e, portanto, um poder soberano.

A partilha de poder político foi assumida como consequência necessária, em primeiro lugar, do
princípio da separação de poderes. O abuso do poder verificado no Antigo Regime levou à
consagração desse princípio e à consequente divisão do poder: o parlamento exerce a função
legislativa, o governo exerce a função administrativa e os tribunais exerce a função
jurisdicional. Acresce que, ainda dentro da pessoa coletiva do Estado, foram sendo
desconcentrados poderes em órgãos situados em patamares hierárquicos inferiores (ex.
tribunais de comarca ou os chefes de repartição de finanças). Por outro lado, naqueles Estados
que assumiram a forma federal (como os EUA), a essa separação horizontal dos poderes
acresceu uma sua separação vertical: entre o Estado federal e os Estados federados. O mesmo
sucede em outros Estados, unitários, que acabam por descentralizar poderes para entidades
situadas em níveis territoriais ou institucionais inferiores e com personalidade jurídica própria,
de que são exemplo em Portugal as regiões autónomas, as autarquias locais e as associações
públicas.

Pode concluir-se que os poderes públicos são exercidos, em cada Estado, por milhares de
órgãos e entidades públicas diferentes.

No seguimento do ensino de Zippelius pensamos que fará sentido continuar a afirmar a


existência de um poder soberano. Toda a questão está em saber se a Constituição e, em
segunda linha, as leis atribuíram competências a órgãos do Estado e de outras pessoas
coletivas de forma a possibilitar uma atuação conjunta coerente e, nas hipóteses de uma
atuação contraditória, permitir destrinçar que atos prevalecem sobre outros. Uma “ordenação
escalonada das competências” atribuídas e uma hierarquia dos atos jurídico-públicos são, por
conseguinte, indispensáveis na configuração de um “sistema de ação comum orientado
juridicamente”. Caso contrário, não podíamos afirmar a existência de um ordenamento
jurídico português.

No nosso sistema constitucional, os poderes soberanos mais importantes e que controlam os


instrumentos fácticos do poder são os seguintes: o Presidente da República, a Assembleia da
República, o Governo e os Tribunais: artigo 110 nº1 da CRP.

Na distribuição de poderes do Estado por órgãos seus ou por entidades infraestatais, assume
um papel especial o princípio da subsidiariedade: fixe o critério que deve ser seguido nessa
distribuição: os poderes públicos devem ser exercidos por aquelas entidades que se
encontrem mais próximas dos problemas a resolver ou das populações interessadas, salvo se o
seu exercício por entidades situadas em patamares superiores for mais eficaz ou mais
eficiente. Consagrado nos artigos 6º nº1 e 7º nº6.

A perda do exercício de poderes clássicos do Estado para entidades situadas no patamar


internacional constitui um segundo desafio à manutenção da sua soberania. Sobretudo após a
Segunda Guerra Mundial surgiram as centenas de organizações intergovernamentais hoje em
funcionamento, permitindo institucionalizar as relações de cooperação dos Estados nos mais
diversos domínios, implicando ao mesmo tempo a transferência do local de decisão política do
plano nacional para o plano internacional. As decisões das organizações internacionais, na
verdade, vinculam os Estados-membros e implicam a abdicação, nessas matérias, da adoção
de atos de conteúdo diferente.

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