Você está na página 1de 12

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

Reitoria
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Código: IH-1102
Disciplina: Metodologia de Pesquisa em Ciências Sociais T: 02 (2020.1)
Professores: Ana Paula Perrota, Mani Tebet, Moema Guedes, Josué Medeiros.
Aluno: Anderson Ribeiro da Silva

Apêndice metodológico

As ambiguidades da representação política: investigações sobre percepções de


superioridade

Toda e qualquer reflexão sobre o que se convencionou historicamente chamar de


democracia invariavelmente passou por discussões relativas ao exercício do poder. A
centralidade da tomada de decisão, sempre muito discutida, é, desde a Antiguidade, de maior
observância no que concerne às primeiras aspirações democráticas. Se por um lado era
possível definir outras formas de governo através da necessária desigualdade entre reis e
súditos ou de aristocratas e população, a democracia era aquela forma de governo que
evocava todos, embora fosse classificada como uma forma degenerada de governo, assim
Aristóteles tipificou (1998, p. 212).

Mas é também na Antiguidade onde já se sabia que a democracia dependia de


magistraturas específicas, chanceladas pelo restante da sociedade. Aristóteles (1998, p. 211-
212) já apontava que uma democracia, justamente para ser considerada sadia, teria de ser
estável. Sua estabilidade, consequentemente, demandaria uma convergência necessária com a
forma de governo aristocrática, dada seu zelo pela virtude. Este imbricamento entre a
democracia e a aristocracia, intitulado pelo filósofo como “regime constitucional”, conduzia a
uma virtude do meio, ou seja, punha a democracia dentro de condições mínimas de
viabilidade.

A defesa de Aristóteles por um governo do meio, isto é, uma república, já deixava


expressa preocupações remotas com o exercício dos diferentes tipos de magistraturas que
foram surgindo à medida que Atenas se desenvolvia e crescia demograficamente. Segundo o
filósofo (1998, p. 263), as virtudes e excelências aristocráticas contribuiriam para a condução
das democracias para uma “virtude cívica”, onde a cidadania seria exercitada, seja na conduta
ordinária na Ágora, seja na investidura de um cargo administrativo.

Já nos prelúdios da Era Moderna, a Europa recuperou o debate democrático, e é na


esteira deste debate que as questões a respeito da viabilidade da democracia ganharam um
elemento de suma importância para a consolidação das suas versões modernas. Um dos
contratualistas, Locke, por exemplo, localiza (LOCKE, p. 162) a centralidade do poder
legislativo, considerando que é deste poder que advém a legitimidade para a consecução de
uma comunidade política. Aos demais poderes ficou a responsabilidade pela zeladoria e
execução das normas produzidas pela comunidade.

Posteriormente, as discussões se dariam entorno do mandato legislativo. Quem deveria


cumprir esse papel? E quais seriam os termos para o cumprimento do mandato? É a partir
deste impasse que surgem duas grandes correntes de entendimento. Haveriam aqueles que
defenderiam, como aponta Bóbbio (1989, p. 44), um mandato delegado, ou seja, um mandato
que dependeria essencialmente das restrições impostas pelos eleitores, e haveriam também
aqueles que prezariam pelo mandato fiduciário, que consiste na concessão de autonomia para
o seu cumprimento.

As discussões sobre o mandato sinalizariam para a convergência entre a democracia e a


representação, refletindo as indagações já postas pelos antigos, de modo a colocar em rota de
colisão dois conceitos muitos marcantes da teoria democrática: a igualdade e a virtude. Em
seu cerne reside o apreço pela igualdade entre os homens, permitindo que todos pertençam à
sociedade, mas também reside a busca incessante pelo aperfeiçoamento dos indivíduos em
suas vidas social e política, visando uma cidadania plena.

Mas esta distinção histórica dos conceitos de democracia e de representação parecem


ter se ancorado sobre tais definições antigas, a tal ponto que mesmo na Modernidade e, desde
então, encontrariam fortes críticas a combinações entre si. Jean-Jacques Rousseau fora um
severo crítico da representação, apontando os eleitores como escravos no momento seguinte
ao ato de votar. No entanto, mesmo ele já assumia a impossibilidade de uma democracia
plena, dado que para uma grande civilização pouco seriam aqueles que estariam
integralmente cientes dos problemas da nação (BÓBBIO, p. 40).

Esta dissertação pretende analisar como a democracia representativa, paradigma


moderno, se tornou o objeto de críticas, por onde se convencionou imputar a ela as
responsabilidades pelas crises democráticas, que parecem perseguir o Ocidente na
contemporaneidade. Ainda que a ampliação de direitos, a criação de fóruns deliberativos e a
extensão do sufrágio universal tenha otimizado a democracia moderna, o paradigma
representativo ainda parece incomodar, de modo que cabe investigar os pontos de contato
deste conceito com a teoria democrática.

E como enfoque inicial deste projeto, partimos do “princípio da distinção”, proposto


por Bernard Manin. Para o teórico francês (1997, p. 134), a representação depende do método
eletivo, que por sua vez, possui uma contradição elementar, onde reside duas dimensões
antagônicas, quais sejam a “dimensão democrática” e a “dimensão aristocrática”. A dimensão
democrática se traduz na universalidade do voto, podendo contemplar todos os cidadãos
aptos. Já a dimensão aristocrática se apresenta pelas diversas condições de avaliação que o
eleitor dispõe para votar no candidato escolhido.

Dentre tais condições de avaliação do voto, vão haver condições objetivas e condições
subjetivas. No que tange às subjetivas, Manin (1997, p. 145) observa o que chama de
“percepção de superioridade” dos eleitores, ou seja, traços de distinção de difícil apreensão
que mobilizam os eleitores a fazerem uso do maior número de critérios à disposição. Tal
contribuição nos serve aqui para dedicar os esforços entorno do estudo das compreensões
revisitadas da representação política. Busca-se aqui refletir sobre possíveis distorções dessa
chave conceitual que estimulariam acusações muitas vezes distantes do debate concreto,
posto que o governo representativo ainda é um arranjo institucional em franco curso de
aperfeiçoamento.

Com os sucessivos teoremas produzidos nos momentos iniciais da Era Moderna,


culminando na Teoria Geral do Estado, formou-se um entendimento, mediante aporte da
doutrina liberal, de que o governo representativo era a resolução para esse impasse milenar. A
despeito das sucessivas guerras civis na França, outros países já demonstravam aderir ao
mandato representativo, como é o caso da monarquia constitucional inglesa. Mas
internamente, a tradição liberal não deixou de travar disputas sobre o sentido pleno da
representação.

Nos idos do século XVIII, democracias liberais surgiram dos dois lados do Oceano
Atlântico, sublinhando o caráter paradigmático do governo representativo. No entanto, as
duas maiores experiências democráticas que se iniciavam naquele período compartilhavam
definições distintas da ideia de “interesse”. Para os Federalistas, como Hanna Pitkin explicita
(1972, p. 191), os interesses são diversos e facciosos, portanto, difíceis de serem organizados
para contemplar o bem comum, de modo que os interesses seriam naturalmente antagônicos a
um interesse geral.

Essa concepção de um interesse variado e, consequentemente, faccioso, atende à


compreensão, a qual já nos referimos aqui, de que a representação não se confunde com a
democracia plena. James Madison, em seu décimo artigo (1840, p. 78), já havia reificado essa
máxima. O combate às facções previa um dispositivo necessário para a sobrevivência do
governo representativo. Em nome do equilíbrio do governo representativo por meio de uma
diversidade de partidos políticos, de modo a evitar alguma hegemonia partidária - e, portanto,
de interesses -, Madison admite o “impasse” como forma de controle (1972, p. 195).

No lado europeu, os Utilitaristas reconheciam os interesses individuais, mas tipificava


dentre duas formas básicas, sendo o “interesse público” aqueles tipos de interesses que
alinhados com um “interesse universal”, enquanto o “interesse particular” advinha de
intenções estritas dos indivíduos (PITKIN, p. 199). O ponto de contato dos utilitaristas com
os federalistas é a aceitação do representante como o personagem de evidente superioridade
para deliberar adequadamente sobre o bem comum (PITKIN, p. 193). A diferença aqui é que
os utilitaristas atribuíam ao legislador, seguindo um entendimento já previsto por Edmund
Burke, a autoridade plena de mediador dos interesses públicos e privados (PITKIN, p. 200).

Pondo o debate da representação política sob o prisma de seus postulados clássicos, é


possível supor que havia um senso de urgência no que concerne ao modelo idealizado de
governo democrático. Seja ao visar o equilíbrio e o controle, como fora o caso da Convenção
da Filadélfia, ou ao contemplar uma solução para garantir a independência do mandato
parlamentar, no caso dos utilitaristas, podemos afirmar que as transformações sociais que
transfiguravam a vida pública europeia e se espraiavam pelo mundo influenciaram na
simplificação da representação para a teoria democrática moderna.
Quem pode nos ajudar a entender esse momento civilizacional e a posição do referido
debate é Boaventura de Sousa Santos. Para o sociólogo português (2008, p. 21), a
“racionalidade científica” se consolidou como um modelo global que ordenava, mediante as
ciências naturais nos idos do século XVI, os estatutos epistemológicos das Humanidades. O
racionalismo cartesiano, a exemplo, surge como um dos referenciais teórico-metodológico
que promove o universo científico ao patamar de ditame do conhecimento verdadeiro.

Essa notada urgência moderna em distinguir o conhecimento científico dos demais


tipos de conhecimento advêm da necessidade de se ter “[...] como pressuposto metateórico
uma ideia de ordem e de estabilidade do mundo, a ideia de que o passado se repete no futuro”
(SANTOS, p. 30). Isso ocorre porque a ciência moderna passa a se debruçar sobre as
regularidades encontradas na natureza, excluindo das análises causas e intenções, resultando
no rompimento do conhecimento científico com os sensos comuns (SANTOS, p. 30).

Esta assepsia epistemológica parece refletir significativamente nos estudos relativos à


teoria democrática, dado o surgimento, no plano social, de um “determinismo mecanicista”
(SANTOS, p. 31). A transição das investigações das leis da natureza para as das leis da
sociedade era irreversível, tendo na ascensão das burguesias o mote para evidenciar
descrições qualificadas das transformações advindas. O positivismo oitocentista resulta
justamente dessa "emergência das ciências sociais” do século XIX, visando produzir
instrumentos que permitissem investigar regularidades dos processos sociais, de modo a
viabilizar previsões (SANTOS, p. 33).

Entre as duas variantes apontadas por Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 33-34),
que expressam visões conflitantes sobre a relação dos estudos sociais com as ciências
naturais, coabita o reconhecimento da distinção básica “sujeito/objeto”, cômputo elementar
da racionalidade das ciências naturais (SANTOS, p. 39). Tal reconhecimento da segunda
variante, considerada por Boaventura como a variante marginal, é justamente a sua negação,
posto que faz uso da distinção para qualificar o sujeito como o dotado de especificidade, em
detrimento da natureza (SANTOS, p. 39). A variante marginal, embora conflitante,
demonstra uma relação de dependência com a distinção básica.

Será sobre os auspícios do ascendente desenvolvimento tecnológico e da racionalização


científica que o debate normativo da democracia evoluirá, compartilhando com o estatuto
epistemológico positivista traços de controle e simplificação dos conceitos, em busca de
resultados e soluções para os desconfortos do crescimento urbano e visando dar conta das
ascendentes classes burguesas. O governo representativo, sob a perspectiva da racionalidade
burguesa, será concebido como o procedimento conciliador da democracia com a
representação política, em nome da estabilidade e da ordem.

Quando Boaventura se refere a um “paradigma emergente”, ele sugere um consequente


esgarçamento da distinção básica do paradigma dominante, a partir de uma nova ciência, uma
ciência pós-moderna que permita situar o sujeito no centro das análises das ciências sociais,
contraindo a natureza para dentro da natureza humana (SANTOS, p. 72). Para a teoria
política, é significativo pôr em evidência a urgência de regimes representativos calcados na
premissa da estabilidade e do controle. Isto nos revela como, possivelmente, vinculou-se a
representação política ao mero estabelecimento da moderação de conflitos.

Uma certa compreensão limítrofe da representação política parece estar vinculada às


premissas simplificadoras e coisificadoras da ciência moderna. A Modernidade, ao assumir a
representação como um mal menor em relação às indisposições dos interesses facciosos,
parece ter contribuído para a redução do conceito, o que explicaria as sucessivas críticas às
limitações do governo representativo. Seria possível afirmar que a representação estaria à
serviço da teoria democrática à medida em que contribui para a contenção dos males da
própria democracia.

Um caminho apontado por Boaventura (2008, p. 73), que pode nos ajudar a desobstruir
o nosso trajeto investigativo, é a “situação comunicativa”, termo emprestado de Jurgen
Habermas que define o conhecimento como uma resultante de saberes locais, comunitários,
individuais e heurísticos. Para nós, este convite aos sensos comuns para comporem os saberes
científicos sinalizam que a representação pode ser compreendida de maneiras distintas, a
ponto de produzir-se, a partir das maturações das instituições e dos procedimentos
democráticos, concepções diversas sobre o conceito.

Uma outra contribuição relevante para este estudo é o que Ruth Benedict profere em
suas investigações sobre os costumes. Se Boaventura de Sousa Santos descreve uma revisão
dos postulados epistemológicos e metodológicos das ciências sociais modernas, buscando
uma “pluralidade metodológica” ao compreender os diversos tipos de conhecimentos que os
seres humanos são capazes de produzir, Ruth Benedict irá reforçar a importância da história
para a análise antropológica.

Ruth Benedict é discípula de Franz Boas, este que é apontado como um dos maiores
representantes da “escola histórico-cultural norte-americana". A referida tradição é
notabilizada por introduzir a “cultura” como objeto de análise das investigações
antropológicas, em detrimento das doutrinas antropológicas europeias, de mote estrutural-
funcionalista. Tais matizes investigativos europeus consideravam a “cultura” um traço
irrelevante da vida social para fins de pesquisa, posto que eram subjetivos, conflitando com a
autonomia de uma “consciência racional” objetiva (DE OLIVEIRA, p. 7-8).

A tradição culturalista, da qual Benedict é herdeira, recompõe a dimensão do “tempo”


na pesquisa antropológica. Como consequência, a “escola boasiana” recuperou a “história”,
possibilitando assim, descrições sobre o indivíduo a partir da história das civilizações
humanas (DE OLIVEIRA, p. 8). Este esforço do culturalismo norte-americano pela
relativização da antropologia, que ingressa no século XX ainda sob os auspícios do
evolucionismo, reflete a preocupação de Ruth Benedict (2000, p. 16-17) com a perpetuação
da “excepcionalidade” da civilização ocidental.

A acusação que a antropóloga norte-americana faz à expansão ocidental compreende


um isolamento coexistencial em relação às demais tribos. A “civilização branca” havia
chegado a tal monta dos seus processos de desenvolvimento que teria atingido uma aparente
uniformidade de costumes e comportamentos ao redor do mundo. Segundo Ruth Benedict
(2000, p. 16), a civilização ocidental se posicionou como a “variação” admissível para
formatar o estatuto epistemológico da antropologia no que concerne às outras comunidades
humanas, o que, nas palavras da própria, “[...] nos dominaram o espírito.”

Essa reincorporação da dimensão temporal nos estudos antropológicos que a tradição


culturalista propôs também nos ajuda a perceber a representação política moderna como
derivada das transformações burguesas, que parecem ter, contraditoriamente, reforçado a
distância da democracia ao tentar conciliá-las, visando o controle. As concepções clássicas do
governo representativo, aparentemente, refletiram essa expressão imponente da ciência
moderna, o que teria cooperado para o esvaziamento do conceito da representação perante a
teoria democrática.

Uma constatação feita por Ruth Benedict pode auxiliar-nos a entender, assim como
Boaventura de Sousa Santos, como pode se ter forjado discursos de rejeição ao governo
representativo. A antropóloga assinala que os conhecimentos produzidos no âmbito das
transformações modernas consolidaram uma “universalidade maciça” que operou
seguramente como estanque das percepções dos homens ocidentais sobre os outros universos
culturais (BENEDICT, p. 19).
Consequentemente, com a acelerada expansão do mundo ocidental, muitas civilizações
começaram a entrar em permanente contato, contribuindo sensivelmente para os
nacionalismos e preconceitos de raça. A antropóloga norte-americana demarca uma crítica ao
que ela considera ser uma das “respostas” da antropologia. Em clara referência aos estudos
estrutural-funcionalistas, repele uma “natureza da hereditariedade” por entender que o real
cimento da vida em sociedade é a “cultura”, e não o “parentesco” (BENEDICT, p. 27-28).

É a partir dos estudos culturais que, segundo Ruth Benedict (2000, p. 36), seria possível
atentar para os “grandes arcos” de conhecimentos em que se alinham os “interesses
possíveis” que os ciclos da vida humana produzem. Tais interesses constituem as
significações que os indivíduos, em sociedade, fomentam acerca das suas condutas, de modo
a produzir sentidos estritos às condutas. Estes arcos de interesses possíveis, segundo a
antropóloga, se expressam nas “instituições culturais” (BENEDICT, p. 36).

Ruth Benedict (2000, p. 36) compara a cultura à língua, pois as considera dependentes
de universos lexicais necessariamente limitados pelos arcos de interesses possíveis das
civilizações. Estas limitações de significado acabam por influir no “condicionamento” das
condutas e obrigações que os indivíduos tem de cumprir perante os demais (BENEDICT, p.
37). Os condicionamentos, estimulados pelos interesses possíveis, seriam oriundos
justamente das instituições culturais, que perpetuam e produzem plasticidade às
manifestações culturais.

Pensando o governo representativo como produto das transformações modernas, que


resultaram na hegemonia do racionalismo ocidental, é possível que o horizonte de interesses
possíveis das ciências modernas e, por conseguinte, da teoria política moderna estivessem
assentados sob a perseguição tenaz por explicações atemporais do funcionamento da
sociedade em suas diversas camadas. No caso específico, a compreensão esvaziada da
representação política poderia estar à serviço da resposta a condutas básicas da vida política
moderna.

O governo representativo, alinhado com as aspirações das ciências modernas, se


converteria em paradigma democrático a ser espraiado nas esteiras da globalização, o que
certamente o pôs em condições prementes de críticas. Suas limitações, que respondem a
traços culturais das sociedades burguesas, inevitavelmente seriam postas em questão à
medida em que as pontes de contato com outros processos civilizacionais expusessem suas
contradições.
Mantendo a dimensão temporal nesta investigação, nos valemos dos métodos de análise
de conjuntura política que Antonio Gramsci criou. Filósofo marxista, fora adepto do
“materialismo histórico”, de onde bebe para formatar seu esquema de análise das relações de
forças de uma dada sociedade. A história, aqui, é de suma importância para que possamos
perceber como determinadas condições sociais podem ou não se apresentar como viáveis para
a superação da ordem social em vigor.

Para isso, Gramsci nos adverte tacitamente sobre o que considera ser dois princípios
para uma justa análise das relações de poder:

“[...] 1) o de que nenhuma sociedade se põe tarefas para cuja solução


ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou que pelo
menos não estejam em via de aparecer e se desenvolver; 2) e o de que
nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes que se
tenham desenvolvido todas as formas de vida implícitas em suas
relações [...]” (GRAMSCI, p. 36).
O que o filósofo italiano empreende mediante estes princípios são as bases para uma
“metodologia histórica” que permita identificar e tipificar os diferentes movimentos que
correspondem à estrutura social de uma dada sociedade. Segundo Gramsci, existem os
“movimentos orgânicos”, que dizem respeito às condições estruturais de uma civilização, e os
“movimentos de conjuntura”, que respondem às dimensões mais ocasionais e imediatas da
vida política (GRAMSCI, p. 37).

Tais distinções dos movimentos amparam as investigações sobre as condições pelas


quais os processos revolucionários se desenvolvem ao longo da história de uma civilização.
Gramsci menciona, como exemplo, o caso da indefinição dos historiadores em precisar os
marcos da Revolução Francesa. Gramsci (2012, p. 39-40) nos relata que o debate é
frequentemente posto em análise por conta da imprecisão para definir quando a Revolução
Francesa fora concluída e quais “ondas” se desenrolaram até a conclusão do processo
revolucionário.

No que concerne especificamente às “relações de força”, Gramsci, preocupado com a


notada redundância que verificava em muitas análises, identificou momentos distintos de
relações de força e suas importâncias para uma interpretação qualificada. Ele lista as
“relações de forças sociais”, que dizem respeito ao “grau de desenvolvimento das forças
materiais de produção” (GRAMSCI, p. 40-41); as “relações de forças políticas”, que tratam
da “[...] avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado
pelos vários grupos sociais” (GRAMSCI, p. 41); e as “relações de forças militares”, que
correspondem, em suma, à “oportunidade concreta” de transformações sociais (GRAMSCI,
p. 43).

Dentre as três condições de análise das relações de forças, a análise das relações de
forças políticas nos é interessante, dado o afirmado pelo próprio Gramsci (2012, p. 43),
quando diz que os desenvolvimentos históricos ocorrem “com a mediação do segundo.” No
âmbito deste segundo momento, Gramsci (2012, p. 41) visualiza três graus de análise, a
saber: o econômico-corporativo, onde ainda não há uma unidade de grupos sociais variados,
nem lugar político efetivo; o de solidariedade entre grupos sociais, onde aparece a figura do
Estado para viabilizar uma igualdade político-jurídica em relação às classes dominantes, e a
de superação do ciclo corporativo, fase estritamente política, de disputa ideológica pela
hegemonia.

O que Gramsci nos apresenta com estes três graus de análise do segundo momento das
relações de força é, aparentemente, o percurso por onde as sociedades burguesas europeias
consolidaram sua ascensão. Depois de se estabelecerem economicamente e de conquistarem
algum espaço de relevante participação política, embarcam na fase estritamente política, onde
operam para permitir a liberalização econômica, superando as amarras do feudalismo,
essencialmente agrário.

Este percurso da ascensão burguesa é também o percurso por onde o governo


representativo se apresenta como alternativa viável de administração do poder e da vida
produtiva dos países. Pois é justamente na esteira das revoluções burguesas que o verbo
“representar” começa a ganhar sentido próprio de agência política. É o que constata Hanna
Pitkin (2006, p. 23) quando afirma que “[...] cavaleiros e burgueses eram vistos como os
servidores, ou delegados, ou procuradores de suas comunidades”, de modo que “[...] não
eram chamados de representantes porque a palavra ainda não tinha aquele significado.”

Daí podemos considerar que a representação moderna está em estrita consonância com
as aspirações burguesas. Novamente recorrendo ao caso inglês, à medida em que a câmara
dos Comuns começou a operar como um corpo unificado, nos idos do século XV, eles
passaram a ser chamados “membros” do Parlamento, interpretando, em conjunto, por
“procuradores e delegados de todos os condados [...] e de todas as pessoas do país”
(CHRIMES apud PITKIN, p. 23).

É claro que aqui estamos nos referindo ao prelúdio do conceito de representação, dado
que aqui marca o ato de representar em sua compreensão coletiva, ainda sem definir o
membro do Parlamento como agente político de um grupo de eleitores (PITKIN, p. 27). Mas
é emblemático como a representação moderna nasce em consonância com a ascensão
burguesa, de modo que podemos considerar, a partir do que fora postulado pelo “método
histórico” de Gramsci, que a representação política constitui, possivelmente, uma das
expressões ideológicas da burguesia.

As democracias modernas nascem como procedimentos a serviço da estabilidade


institucional e do controle das tensões entre os grupos sociais. A representação, portanto,
constitui o método que viabiliza o ideal democrático da igualdade, conciliando-a com sua
“dimensão aristocrática”, assim apontado por Bernard Manin. A herança do paradigma da
democracia representativa é ladeada pelos intentos em responder a já crescente demanda por
participação política.

É partindo dos primórdios da democracia moderna, escrutinando as bases do governo


representativo, que pretendemos nesse projeto de dissertação estudar as nuances deste
imbricamento conceitual e seus ecos no mundo contemporâneo. Neste sentido, é de grande
contribuição pôr em relevo a democracia e a representação política, pondo suas bases
normativas em conflito com dimensões históricas e comparativas, visando depreender sobre
as reais expectativas acerca da representação nos dias correntes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. A Política. 1 Ed. Belo Horizonte, Editora Vega, 1998.


BOBBIO, Norberto. “O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo”, 4 ed., Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1989.
BENEDICT, R. “A ciência do costume” in Padrões de cultura. Lisboa, Edição Livros do
Brasil Lisboa, 2000.
BURKE, Edmund. Discurso aos eleitores de Bristol. In: WEFFORT, F. (Org.). Clássicos da
Política (V.2). São Paulo: Ática, 1990.
DE OLIVEIRA, R. C. Tempo e tradição: interpretando a antropologia. Brasília. Série
Antropológica, n. 41, 1984.
GRAMSCI, A. “Breves notas sobre a política de Maquiavel” in Cadernos do cárcere -
Volume III: Maquiavél - Notas sobre o Estado e a Política. 5. edição, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2012.
LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. 3. edição, Petrópolis,
Editora Vozes, 2001.
MADISON, James. O Federalista: Artigo 10. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J.
Villeneuve e Comp., 1840.
MANIN, Bernard. The principles of representative government. 1. ed. Cambridge:
Cambridge University Press, 1997.
PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e ideias. Revista Lua Nova.
São Paulo, n. 67, p. 15-47, 2006.
______. The conception of representation. 1. ed. Berkeley e Los Angeles: University of
California Press, 1972.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as Ciências. 5. Edição, São Paulo,
Editora Cortez, 2008.
URBINATI, Nádia. “Representação como advocacy: um estudo sobre deliberação
democrática”, Revista Política e Sociedade. Florianópolis, v. 9, n. 16, abril 2010. Disponível
em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/13388/12305>. Acesso em: 2
ago. 2018.

Você também pode gostar