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Trabalho da disciplina Direito Constitucional 2 do curso de Pós Graduação da ESMA-DF

Professora: Carla Patrícia


Brasília, 28 de fevereiro de 2020

A DEMOCRACIA BRASILEIRA E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE


Daniel Gallo Pereira

Resumo
A democracia de um Estado está intrinsicamente ligada as suas leis e ao seu
processo legislativo. Como conceito, a democracia sofreu constantes evoluções
filosóficas ao longo da história evolutiva da sociedade humana. Alguns filósofos
consideram as evoluções como reinvenção constante da democracia. O fato é que
houve um amadurecimento evolutivo do conceito, a democracia no seu aspecto
formal consolidou-se como um procedimento e no seu aspecto material consolidou-
se como direitos sociais fundamentais. Neste contexto, o recente Estado Democrático
Brasileiro, constituído pela Constituição de 1988, demandou um ajuste democrático
no controle de constitucionalidade de seu ordenamento. O controle de
constitucionalidade brasileiro influenciado pela evolução do pensamento filosófico a
cerca da democracia se tornou mais plural e participativo.
Palavras-chave:
Democracia. Controle de constitucionalidade. Filosofia jurídica. Constituição.

1. Introdução
A democracia é a maior expressão de cidadania de um povo. Na sua essência
estão os direitos à igualdade e à liberdade, admitindo a pluralidade de pensamento
com respeitos as diferenças. Ela é a base para uma sociedade humana e justa que se
organiza através de leis. Não existe democracia sem lei e sem um processo legislativo
participativo e plural. A lei encontra validade na constituição do Estado, e esta
validade legal é aferida por um processo de controle de constitucionalidade do
ordenamento legal. Portanto, o controle de constitucionalidade é instrumento
fundamental para a manutenção da cidadania e da democracia de um Estado.
O presente trabalho irá investigar a evolução do conceito jus filosófico de
democracia que se inova com evolução das sociedades ao longo do tempo. Em
seguida, irá verificar a adoção de institutos democráticos na Constituição da
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República Federativa do Brasil de 1988. Por fim, irá analisar o controle de


constitucionalidade brasileiro como instrumento de exercício da democracia e de
estabilidade política e jurídica.

2. Diferentes contribuições da filosofia jurídica na percepção de democracia


Conceituar a palavra democracia é uma árdua missão, pois ela carrega um
estereótipo popular contaminado desde a sua origem grega. Hoje, de uma forma mais
técnica, diversos jus-filósofos vão ao encontro com a ideia de Claude Lefort da
democracia ser uma constante invenção. Talvez, o termo mais adequado que
“constante invenção” seria o termo “constante inovação”, afinal inovar é tornar novo
o que já foi inventado.
Ao longo do tempo, à medida que o Estado moderno se desenvolvia como
modelo de sociedade, a democracia necessitou ser inovada constantemente. Segundo
Marilena Chauí, “A democracia é invenção porque, longe de ser a mera conservação
de direitos, é a criação ininterrupta de novos direitos, a subversão contínua dos
estabelecidos, a reinstituição permanente do social e do político” (STRECK;
MORAIS, 2014, p. 152).
A democracia surgiu na filosofia grega entre possíveis regimes de governo,
preconizados por Aristóteles. Segundo o pensamento de Aristóteles, haveria regimes
de governo primários que devido a vícios sociais correriam o risco de desviar para
tipos secundários. O risco da monarquia seria desviar à tirania, numa alusão ao
entendimento moderno, a tirania seria um regime de autoritarismo. A aristocracia
poderia desviar para a oligarquia. No mundo moderno e em áreas técnicas decisórias,
quando a tecnocracia não é participativa ela deriva para uma oligarquia do poder
técnico. Por fim, o regime de governo mais adequado seria a democracia “de primeira
espécie”. Ela seria fruto da derivação de um governo constituído por leis em que “A
primeira espécie de democracia é a que se determina sobretudo em função da
igualdade. Ora a lei de tal espécie de democracia confirma a igualdade: nem a classe
dos ricos nem a dos pobres é superior uma a outra...” (ARISTÓTELES, 1998, p. 289)
A análise aristotélica de democracia tem fundamentos na igualdade em lei e na
presunção de liberdade dos cidadãos em decidir por si dentro da lei. Estes conceitos
de liberdade e de igualdade na democracia foram essenciais à inovação de um ideário
democrático ao longo da história.
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No estereótipo popular de democracia, há conotações variadas com maior e


menor intensidade do direito à igualdade e do direito à liberdade no regime de
governo. Contudo, as conotações convergem para o conflito do direito com a política
no regime de governo.
As conotações populares de democracia partem de uma interpretação literal
etimológica da palavra grega, significando o poder do povo (demos = povo e kratos
= poder). Apesar da palavra ser a união de apenas dois termos conotativos, as suas
variações são diversas: Quem é o povo? O que é o poder? Qual é o poder e de que
povo? Como o povo exerce o poder? Estas questões convergem para o regime de
governo de pessoas sobre as pessoas governadas e divergem em direitos no exercício
deste poder, na legitimação das regras e na materialidade dos objetos “direitos e
políticas”.
A obra de Montesquieu “No Espírito das Leis”, demonstra um consenso do
pensamento contratualista sobre a igualdade e a liberdade na democracia. No Estado
de Direito, as pessoas somente se tornam iguais perante as leis instituídas de forma
democrática e as pessoas somente se tornam livres se puderem fazer tudo o que as
leis permitem. O verdadeiro poder democrático estatal está na lei. A democracia é
um fruto de como o poder estatal que legisla, executa e julga as leis. A democracia
baseada em lei presume a legítima separação de poderes estatais.
(ALBUQUERQUE, 2011, p. 93 a p.108)
No final do século XIX, o Estado contratualista foi consolidado na força do
parlamento eleito com o voto: direto ou indireto, de forma censitário ou universal.
Os filósofos liberais da época discutiram a qualidade da democracia representativa
parlamentar. A discussão sobre a liberdade e a igualdade em direitos estava presente
no plano de fundo da discussão democrática.
Influenciados pelo liberalismo econômico, autores como John Stuart Mill e
Macpherson discorreram sobre a liberdade e a igualdade na democracia. A grande
questão era se a democracia representativa liberal significaria apenas liberdade de
mercado com as suas mazelas sociais do mais forte dominando o mais fraco, ou se
significaria a liberdade dos indivíduos possibilitando todos se desenvolverem
plenamente em suas capacidades.
John Stuart Mill defendia uma sociedade empenhada em garantir que todos os
seus membros sejam igualmente livres para concretizar suas capacidades. O modelo
defendido por John Stuart Mill era de uma democracia desenvolvimentista. A
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sociedade democrática seria consequência de um aperfeiçoamento/desenvolvimento


da capacidade dos indivíduos. A distribuição injusta de recursos “bens e riqueza”
teria razões históricas, ela não seria consequência do capitalismo liberal, e tenderia a
dissolver com o desenvolvimento das capacidades dos indivíduos.
Macpherson defendia um modelo de democracia representativa participativa em
sua essência, na qual existiria uma diminuição gradual dos pressupostos de mercado
e uma acessão gradual do direito ao desenvolvimento igualitário. Para tanto, deveria
haver precondições sociais da democracia: mudança da consciência do povo e
diminuição da desigualdade social e econômica. A desigualdade era mantida por um
sistema partidário não participativo politicamente que mantinha o status quo do
direito. Ele acentuava que havia um paradoxo no círculo vicioso da estrutura
partidária da democracia representativa: “não se pode conseguir mais participação
democrática sem haver uma prévia mudança da desigualdade social e sua
consciência, mas também não se consegue mudar ambas as condições sem um
aumento anterior da participação democrática.” (STRECK; MORAIS, 2014, p. 157).
No início do século XX, o positivismo jurídico possibilitou o formalismo
constitucional do direito, trazendo as discussões filosóficas sobre a democracia para
o cerne das leis formais. A positivação do texto normativo constitucional se tornou
referência para o exercício democrático do poder estatal. Entretanto, surgiram
questionamentos sobre a efetividade normativa do texto constitucional e
consequentemente da democracia. Os sociólogos céticos da democracia
constitucional criticavam o positivismo jurídico como forma de legitimação do status
quo de poder. As questões como a legitimidade da norma política democrática foram
debatidas pelos filósofos jurídicos do início do século.
Ferdinand Lassalle, na sua tese sobre a essência da Constituição, argumentou
que as questões constitucionais não são jurídicas e sim políticas. A real Constituição
de um Estado expressaria as suas relações dominantes de poder que seriam os fatores
reais de poder. A Constituição seria um mero pedaço de papel limitado na sua
compatibilidade com a Constituição real, formada pelos fatores reais de poder.
Konrad Hesse, em contra ponto afirmava que o poder seria uma disputa política
de grupos detentores dos fatores de poder: militar, social, econômico e intelectual.
Para que a Constituição possuísse real força normativa seria necessária legitimidade
concretizada na vontade democrática de ordem constitucional, uma vontade de
poder, melhor expressa como vontade de constituição. (HESSE, 1991)
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Destes filósofos, percebe-se uma nítida disputa de valores entre a política e o


direito no cerne da Constituição democrática. No Estado Constitucional Democrático
de Direito, o elo que une a política e o direito é a Constituição. A Constituição
Democrática é em essência uma carta política de direitos. Na sua melhor acepção
democrática, a Constituição deve ser promulgada por um legítimo poder constituinte
originário em assembleia. A Constituição democrática funda o Estado de Direito;
divide os seus poderes; estabelece direitos fundamentais; regulamenta a
administração pública; estabelece as competências e procedimentos dos poderes
estatais.
De fato, há diferença entre a Constituição jurídica e a Constituição real. A
Constituição jurídica é o dever ser de uma nação e a Constituição real representa o
ser atual. Para que a Constituição jurídica concretize o seu ideário democrático é
necessária a vontade de constituição da nação, defendida por Konhad Hesse. É esta
vontade de seguir o ordenamento constitucional é que o legitima democraticamente.
As normas do dever ser constitucional distanciam-se do ser na realidade fática e
abstraem direitos individuais e coletivos. Elas apresentam uma possibilidade de
futuro que depende de vontade da nação para reconhecer o valor proposto pela
norma. Assim, um elemento essencial para democracia constitucional é o
reconhecimento da legitimidade das normas constitucionais.
A realidade fática social é intrinsicamente ligada a valores, pensamento e
comportamentos de grupos políticos. Estes grupos políticos se alternam na
sociedade, fazendo com que a realidade fática social momentânea nem sempre
representem os valores da maioria. Por isso, a Constituição jurídica “do dever ser”
independe da posição majoritária oportuna, ela é construída por uma racionalidade
abstrata de futuro que busca o bem comum. Ela demanda uma certa rigidez na sua
mutabilidade e depende do respeito e da vontade de constituição da nação que ela
constitui.
Para Noberto Bobbio, a democracia constitucional é estabelecida por um
conjunto de regras fundamentais que estabelece a “regra do jogo democrático”
definindo procedimentos e autorizando a tomada de decisões coletivas. Questões
como quem vota, onde se vota e qual o procedimento do voto são respondidas pelas
regras constitucionais do jogo. Além de “regras do jogo”, a democracia requer uma
grande dose de justiça social e a preservação do habitat nacional e das fontes de
recursos.
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Bobbio faz uma comparação crítica entre o modelo democrático real e o modelo
democrático ideal teórico em contrapontos. Na comparação ele destaca que os
protagonistas reais seriam os grupos ao invés de indivíduos; a forma de sociedade
seria centrífuga ao invés de centrípeta; o Poder estaria dominado pelas oligarquias ao
invés dos indivíduos nacionais; a representação de interesse atenderia a lógica
partidária ao invés da lógica geral; não havia uma ampla transparência nas decisões;
e o voto do representante seria mais por uma questão de troca do que de a legítima
opinião cidadã. Ele conclui a crítica de realidade, na perspectiva procedimental,
afirmando que o Estado Democrático moderno estaria fora do ideário democrático,
não cumprindo as promessas da democracia.
As distorções eram causas e consequências de obstáculos à democracia que
surgiram em decorrência das transformações na sociedade civil. Em destaque houve
uma complexa transformação social e econômica. A economia mudou de uma
economia familiar para uma economia de mercado e depois para uma economia
regulada/controlada. Antes, todos estavam aptos a decidir os problemas econômicos
e sociais, agora, uma nova e complexa sociedade demandava uma racionalidade
técnica para os problemas sociais e econômicos. A razão instrumental substituiu a
razão política, diminuindo a participação e a transparência. O estado deve decidir
dentro de normas técnicas muitas vezes não acessíveis a todas as pessoas. O Estado
deve agir em “segredo técnico” para não provocar escândalo aos não técnicos. Este
processo afastou a cidadania ativa nas decisões estatais e provocou uma apatia
participativa, esvaziando assim a democracia.
As críticas de Bobbio referentes aos desvios da tecnocracia estão atualmente
presente em algumas estruturas decisórias de Poder estatal. No caso brasileiro, a
tecnocracia destaca-se nas composições do Poder Judiciário. Ao contrário do Poder
Executivo e do Poder Legislativo, na base, os membros do Poder Judiciário
ingressam por concurso, e nos Tribunais, os membros ingressam por promoção da
base ou por indicação do quinto constitucional. Nos Tribunais superiores, apesar de
haver requisitos técnicos constitucionais, a investidura sofre maior influência
política, pois em regra a indicação cabe ao chefe do executivo referendada por uma
aprovação no Senado Federal.
No Poder Judiciário brasileiro, as “regras do jogo” destacadas por Bobbio não
deixam de ser democráticas, mas correm o risco de perder a legitimidade ao fugir do
ideário democrático participativo. Em tese, a democracia no Poder judiciário está na
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aplicação da Lei abstrata. Os membros do Poder Judiciário são meros intérpretes da


norma legal. Entretanto, em prol da segurança jurídica e da aceitabilidade racional, a
uniformização da jurisprudência e a adoção da teoria dos precedentes reduz a
liberdade de interpretação legal na base da pirâmide judiciária. Independentes de
serem justas, os precedentes e a jurisprudência são normas criadas pela tecnocracia
jurídica e impostas direta ou indiretamente a atuação dos magistrados.
A ameaça de falta de legitimidade democrática no direito e na aplicação do
direito é estudada pelos filósofos alemães contemporâneos, Jürgen Habermas e Peter
Häberle.
Para Habermas não há direito sem democracia e nem democracia sem direito. A
prática democrática de decisão está ligada ao direito e à Lei. A racionalidade da
jurisdição depende da legitimidade do direito vigente. A legitimidade do direito
vigente depende de um processo legislativo democrático, o qual não se encontra ao
alcance do Poder Judiciário. Do ponto de vista constitucional democrático, discurso
político jurídico “a norma” e a prática da jurisdição “a aplicação” se encontram na
jurisprudência aplicada. Sobre a problemática relação entre justiça e legislação, na
perspectiva do direito democrático, cabe questionar a legitimidade do controle
judicial da constitucionalidade. (HABERMAS, 1997, p. 287).
As críticas à jurisdição constitucional giram em torno da distribuição de
competências democráticas entre os Poderes legislativo e judiciário. O Direito
precisa de uma justificativa moral racional para permanecer como instrumento
legítimo de Poder. No caso da competência legislativa, a legitimidade vem da
compreensão de vontade da maioria. No caso da competência judiciária, a
legitimidade vem da aceitação racional da decisão. Por isso, no pensamento de
Harbermas, a comunicação é essencial para legitimar democraticamente o controle
judicial de constitucionalidade das normas. A teoria do discurso, o respeito a
autonomia política e a autonomia privada, e a fundamentação jurídica e moral do
controle são elementos que legitimam o controle judicial de constitucionalidade.
Na obra “Hermenêutica Constitucional: Sociedade Aberta dos Intérpretes da
Constituição — contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da
Constituição” Peter Häberle propõe a legitimidade através da pluralidade
participativa na interpretação do Direito. A legitimação da democracia no mundo
contemporâneo seria uma consequência da participação pluralista no processo de
interpretação da Constituição. “Numa sociedade aberta, ela se desenvolve também
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por meio de formas refinadas de mediação do processo público pluralista da política


e da práxis cotidiana...” (HÄBERLE, 2002, p. 36)
No âmbito legislativo, a Lei 9.868/99, ao institucionalizar a figura do
amicus curiae na jurisdição constitucional brasileira, representa um
eloquente exemplo da forte influência da doutrina de Häberle que propugna
por uma interpretação aberta e pluralista da Constituição.
(MENDES, 2009)

Do pensamento filosófico sobre a democracia ao longo do tempo, percebe-se um


amadurecimento contínuo do conceito, uma inovação recorrente, unindo a política e
o direito. A democracia como política é formal e consiste em procedimentos para
legislar e decidir com a participação popular, a legitimidade do processo e a liberdade
de escolha. A democracia como direito é material e consiste na justiça social, na
igualdade em direitos e na liberdade exercê-los.
Resumindo, alguns elementos essenciais do conceito de democracia destacam-
se do pensamento jus filosófico: a) igualdade perante a Lei; b) liberdade na Lei; c)
legitimação do processo para a validade da Lei; e d) participação social plural no
processo de criação, alteração e interpretação da Lei.

3. A democracia na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988


No Brasil, a Constituição de 1988 instituiu um Estado Democrático do ponto de
vista formal e material. A Constituição tem como proposito a justiça social pela
democracia, implementando a igualdade, a liberdade, a legitimidade da participação
popular. A democracia constitucional, como um processo de participação popular no
exercício do Poder, é disposta no comando do parágrafo único do art.1º “Todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”. Do ponto de vista material, a justiça
social e a igualdade estão dispostas ao longo do texto constitucional sempre
equilibrando a autonomia pública com a autonomia privada e os direitos coletivos
com as liberdades individuais.
A democracia formal presume participação social no processo de criação,
alteração e interpretação constitucional. Ela teve seu marco inicial na outorga
constitucional pela Assembleia Constituinte em 1988 que foi composta por
parlamentares eleitos pelo voto popular. As demais alterações constitucionais foram
efetivadas pelos representantes eleitos democraticamente, seguindo um processo
emenda constitucional previsto na Constituição. A interpretação constitucional em
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última instância ficou a cargo do Supremo Tribunal Federal (STF) e está passando
por um processo democratização ao aderir institutos de participação social.
A Constituição de 1988 dispõe diversos institutos que efetivam a democracia
material de uma forma plural, estimulando a diversidade de pensamentos e ideias na
sociedade. O artigo 1°, inciso V traz o pluralismo político; o parágrafo único do artigo
170 trata da pluralidade da atividade econômica “É assegurado a todos o livre
exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de
órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”; o artigo 206 apresenta o
pluralismo no ensino “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino;”.
O controle do poder estatal é um elemento essencial na manutenção do ideário
democrático. Para exercê-lo, a Constituição separou os poderes estatais em funções
típicas e atípicas de cada poder (legislar, julgar e administrar) e delegou o controle
mútuo entre si. Ela delegou ao Poder Judiciário o controle da constitucionalidade de
normas do legislativo e de atos do executivo, tendo como o seu órgão máximo o
Supremo Tribunal Federal (STF). O STF é um tribunal de formação política que
possui duas atribuições judicantes ao ser: o órgão de cúpula do Poder Judiciário e a
corte constitucional da República Federativa Brasileira.
Como órgão de cúpula do Poder Judiciário, o STF executa a unificação
jurisprudencial do controle de constitucionalidade difuso em atividade judicante. Ele
pode julgar casos paradigmas concretos de repercussão geral e estabelecer
precedentes vinculantes ao Poder Judiciário. No modelo difuso, ao julgar a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo vinculando como precedente
jurisprudencial, a decisão do STF pode ser declarada como tese, produzindo efeitos
abstratos erga omnes.
Como corte constitucional, o STF exerce o controle de constitucionalidade
através da atividade judicante concentrada abstrata, podendo declarar uma lei ou ato
normativo inconstitucional, ou podendo dar uma interpretação própria do texto
normativo conforme a constituição, ou até mesmo determinar condutas no caso de
lacunas normativas. Ademais, o STF pode modular os efeitos da decisão de controle
de constitucionalidade, possibilitando a adequação temporal da validade da norma.
Com esta amplitude de atuação no controle concentrado abstrato, além de legislar
negativamente ao retirar a validade de uma norma do ordenamento jurídico, o STF
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pode impor condutas vinculantes ao ordenamento jurídico. Esta imposição de


conduta no ordenamento jurídico pelo STF é uma atividade judicante com efeitos de
legislação positiva.
Por exemplo, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão (ADO) 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, e do Mandado de
Injunção (MI) 4733, relatado pelo ministro Edson Fachin, o STF entendeu que houve
omissão do Estado em não tipificar o crime de homofobia e transfobia. Para suprir a
lacuna que fere direitos fundamentais constitucionais, o STF determinou com força
vinculante o enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido
na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989), até que o Congresso Nacional edite lei sobre a
matéria.
As Ações Declaratórias de Constitucionalidade e de Inconstitucionalidade,
assim como as ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental,
possuem natureza processual de ações objetiva. Nas ações objetivas não há
julgamento entre sujeitos definidos como parte e contra parte. Nestas ações, o
julgamento objetivo é puramente material e a decisão é declarativa. Devido ao
interesse coletivo geral, nestas ações é permitido ao magistrado constitucional não
ficar restrito aos pedidos dos legitimados que iniciaram a ação.
Diante da capacidade do STF de legislar negativamente e positivamente via
controle de constitucionalidade, faz-se necessário questionar a democracia formal e
material do controle de constitucionalidade na ótica dos requisitos democráticos: a)
igualdade perante a Lei; b) liberdade na Lei; c) legitimação do processo para a
validade da Lei; e d) participação social no processo de criação, alteração e
interpretação da Lei.

4. A democracia no controle de constitucionalidade brasileiro


No brasil, o sistema de jurisdição constitucional tem exercido um importante
papel na democracia. Através de decisões de controle de constitucionalidade o STF
tem preenchido uma lacuna legislativa entre a Política e o Direito brasileiro. O
controle de constitucionalidade iniciado pelos legitimados constitucionais é ativo em
prol à democracia. O racional decisório do STF aprimora a democracia constitucional
em duas situações: a) ao tomar decisões que concretizam o ideário democrático da
igualdade material e b) ao tomar decisões sobre matéria constitucional omissa do
Poder Legislativo em pautas democráticas.
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O ponto comum destas situações é conflito entre a Política e o Direito. Este


conflito é da natureza da carta constitucional e está presente no jogo democrático
dentro do parlamento e dentro do STF. O poder legislativo não legisla pautas
polêmicas para não prejudicar a imagem dos parlamentares, deixando assim lacunas
legislativas relevantes para a sociedade. No parlamento representativo democrático,
haverá sempre uma legislação materialmente antidemocrática pressionada por
opinião pública da maioria, pressão majoritária. Afinal, a legislação majoritária
pressionada por aspectos eleitorais pode contrariar princípios constitucionais
democráticos. Então, nestes casos, o STF, se provocado pelos legitimados
constitucionais no controle de constitucionalidade abstrato, tem o dever de defender
os princípios constitucionais democráticos.
Atualmente, em países democráticos com controles de constitucionalidade
ocorre um fenômeno de direcionamento de pautas políticas para o poder judiciário.
É um processo com dois efeitos, o esvaziamento da atividade política partidária no
parlamento e a hipertrofia das decisões de cunho político no controle de
constitucionalidade.
No Brasil, a pluralidade partidária e a exposição pública das decisões do STF
são causas catalizadoras do fenômeno da judicialização da política. A pluralidade
partidária do presidencialismo de coalizão, adotado no brasil, enfraqueceu a
representatividade política ideológica dos partidos no parlamento. Os partidos
minoritários encontram um bloqueio para discutir suas pautas no parlamento. O
caminho mais fácil de discutir as suas pautas é no STF a luz das disposições
democráticas constitucionais. Nesta situação, os partidos minoritários transferem a
discussão política legislativa para uma em ação objetiva de controle de
constitucionalidade no STF. Com isso, os partidos minoritários revertem a sua
desvantagem representativa no parlamento e equilibram a discussão na corte
constitucional.
A outra causa catalizadora da judicialização da política no Brasil é a exposição
pública midiática das decisões do STF. Após o julgamento da ação penal 470 no STF,
popularmente conhecida como “julgamento do mensalão”, transmitido em tempo
real pela TV Justiça, as decisões do STF tomaram espaço na mídia pública. Membros
da corte constitucional passaram ocupar as pautas jornalísticas diversas. Com a
exposição pública, a arena judiciária brasileira tornou oportuna e conveniente para
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discutir e divulgar as pautas políticas partidárias. A exposição pública midiática das


decisões do STF acelerou o processo, expondo as pautas destes partidos na mídia.
... Surge, assim, o perigo de se produzir uma apatia nas forças sociais,
que passariam a ficar à espera de juízes providenciais. Na outra face da moeda,
a transferência do debate público para o Judiciário traz uma dose excessiva de
politização dos tribunais, dando lugar a paixões em um ambiente que deve ser
presidido pela razão. No movimento seguinte, processos passam a tramitar nas
manchetes de jornais — e não na imprensa oficial — e juízes trocam a
racionalidade plácida da argumentação jurídica por embates próprios da
discussão parlamentar, movida por visões políticas contrapostas e
concorrentes. (BARROSO, 2017, p.234)

A expansão do papel do STF no controle de constitucionalidade de cunho


político promove uma delicada questão da relação da corte com a opinião pública.
Afinal, todo o poder político deve ser exercido em nome do povo, mas não de forma
populista. O STF, para fazer valer a Constituição no seu ideário democrático de
igualdade, deve tomar decisões impopulares, quando for o caso. Nas decisões contra
majoritárias e impopulares, há o risco de abalar a confiança dos cidadãos no STF, e
por consequência reduzir a percepção de legitimidade da corte.
Muitas vezes, a decisão correta e justa não é a mais popular. E o populismo
judicial é tão ruim quanto qualquer outro. Um Tribunal digno desse nome não
pode decidir pensando nas manchetes do dia seguinte ou reagindo às do dia
anterior. Faz parte da sabedoria política universal que tentar agradar a todos é
o caminho certo para o fracasso. Sem cair nessa armadilha, o STF tem servido
bem à democracia brasileira e merece o reconhecimento da sociedade.
(BARROSO, 2014)

Para mitigar o efeito negativo do fenômeno da judicialização constitucional das


questões políticas, a doutrina processual constitucional brasileira e próprio STF têm
aprimorado os elementos democráticos no processo de controle de
constitucionalidade. Neste sentido, destaca-se a influência das doutrinas alemãs dos
filósofos contemporâneos Jürgen Habermas e Peter Häberle.
A contribuição filosófica doutrinária de Habermas para o exercício democrático
no processo de controle de constitucionalidade brasileiro está presente na
comunicação do racional decisório que promove o reconhecimento de legitimidade
como elemento democrático. O reconhecimento de legitimidade jurídica do STF está
na aceitação da Constituição. O reconhecimento da legitimidade política do STF está
aceitação do seu racional decisório. Mesmo que a decisão impopular contrariar os
interesses majoritários da nação, se o racional decisório for amplamente aceito como
justo, a decisão terá o reconhecimento da legitimidade popular.
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A doutrina de Häberle influenciou diretamente o processo de controle de


constitucionalidade brasileiro em relação a participação democrática na
hermenêutica constitucional. A Constituição é viva, sendo reinterpretada
constantemente, conforme a evolução dos novos padrões de valoração social. Na
obra “Hermenêutica Constitucional: Sociedade Aberta dos Intérpretes da
Constituição — contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da
Constituição”, Peter Häberle propõe uma democracia participativa na interpretação
Constitucional coerente com a constante evolução social valorativa.
Gilmar Mendes, resume a influência de Peter Häberle no processo de controle
de constitucionalidade brasileiro em quatro tópicos temáticos: 1) Amicus curiae e
audiências públicas; 2) Pensamento de possibilidades; 3) Tempo e Constituição: a
mutação constitucional; 4) Estado constitucional cooperativo. (MENDES, 2009) Os
três primeiros afetam diretamente a democracia participativa no controle de
constitucionalidade brasileiro.
Os institutos Amicus Curiae e Audiência Pública foram aderidos ao processo de
controle constitucional brasileiro. A intervenção do Amicus Curiae no processo
constitucional encontra fundamento legal no art. 9º da Lei 9.868/1999, permitindo ao
STF, em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato,
requisite informações adicionais, designe peritos ou comissão de peritos para que
emitam parecer sobre a questão constitucional em debate, e realize audiências
públicas destinadas a colher o depoimento de pessoas com experiência e autoridade
na matéria. A audiência pública, atualmente presente no regimento interno do STF,
permite instrução de qualquer processo no âmbito do tribunal que discuta matéria
relativa à aplicação de normas constitucionais.
Para dar mais transparência nestes processos participativos. O Regimento
Interno do STF dispõe que as audiências públicas sejam transmitidas pela TV Justiça
e pela Rádio Justiça, tornando-as de conhecimento geral, irrestrito e imediato pela
sociedade brasileira. E a intervenção do Amicus Curiae é passível de sustentação oral
no plenário da corte, possibilitando um amplo debate participativo com diferentes
segmentos da sociedade afetos ao controle de constitucionalidade em questão.
... Peter Häberle defende a necessidade de que os instrumentos de informação
dos juízes constitucionais sejam ampliados, especialmente no que se refere às
audiências públicas e às “intervenções de eventuais interessados”,
assegurando-se novas formas de participação das potências públicas
pluralistas como intérpretes em sentido amplo da Constituição. (MENDES,
2009)
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A temática do Pensamento de possibilidades de Häberle refere-se a Constituição


ser viva. Nas palavras de MENDES “um projeto em contínuo desenvolvimento,
representativo de conquistas e experiências e ao mesmo tempo aberto à evolução e à
utopia.” (MENDES, 2009). A Constituição deve estar aberta múltiplas alternativas e
possibilidades de evoluções valorativas sociais, em especial referentes a direitos
fundamentais. O pensamento do possível pluralista em alternativas abre um espaço
democrático para novas ideias e realidades sociais.
Não basta o pensamento de possibilidades e alternativas para futuro, deve haver
institutos de adequação constitucional ao “Tempo”. Esta é a temática de Tempo e
Constituição: a mutação constitucional, ou seja, deve haver a evolução constitucional
interpretativa, sem mudança do texto, ao longo do tempo. A realidade de hoje pode
corrigir a de ontem, de forma aderente aos novos valores sociais. Assim, toda norma
do deve ser deve ser pensada em possibilidades e alternativas de futuro e interpretada
com os valores sociais do presente. Um projeto constitucional de futuro preserva uma
força regulatória pluralista entre gerações.
Diante da aderência dos conceitos democráticos de legitimidade Habermas e da
participação social plural de Häberle, não resta dúvidas que o processo de controle
de constitucionalidade brasileiro busca medidas democráticas para atenuar o conflito
natural entre a Política e o Direito.

5. Considerações finais
O controle de constitucionalidade brasileiro sofreu um processo de
amadurecimento democrático após a Constituição cidadã de 1988. As leis
processuais e o regimento interno do STF editados e alterados nos últimos anos
permitiram um amadurecimento democrático do processo de controle constitucional.
Foram incluídos institutos participativos e plurais na formação do racional decisório
nas ações de controle de constitucionalidade abstratas. É importante destacar a
inclusão do Amicus Curiae e da Audiência Pública no processo de controle de
constitucionalidade.
A influencia doutrinária jus filosófica dos alemães Jürgen Habermas e Peter
Häberle foi determinante para este amadurecimento do controle de
constitucionalidade. Ela tem sido vetor da evolução normativa dos processos de
controle de constitucionalidade brasileiros em busca do ideário democrático.
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Referências
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Francisco (orgs). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, p. 87-121, 2011.

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BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro.


Saraiva Educação SA, 2017.

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MENDES, Gilmar Ferreira; DO VALE, André Rufino. O pensamento de Peter Häberle na


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estado. Livraria do Advogado, Revista Atualizada, Apple Books 2014.

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