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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Instituto de Estudos Sociais e Políticos


Programa de Pós-Graduação em Ciências Política
Disciplina: Ideologias do Pensamento Político Brasileiro –
conservadorismos de Estado e sociedade (1945-2010)
Professor: Christian Edward Cyril Lynch
Aluno: Anderson Ribeiro da Silva

TRABALHO FINAL

O RETORNO AO ORGANICISMO: os conservadorismos e a


“naturalização” da participação política

Rio de Janeiro
2023
Resumo:

O presente trabalho tem como objetivo principal compreender como o pensamento


conservador ocidental se relaciona com a concepção organicista do Estado, de modo a
fornecer interpretações variadas sobre traços e nuances da democracia. Para isto, será
desenvolvida uma revisão bibliográfica, dividida em dois tópicos, com o intuito de perceber
diferentes formas do discurso conservador acerca da manutenção de práticas e instituições
sociais em detrimento da modernização política. Na primeira parte do trabalho será realizada
um breve estado da arte da concepção organicista, visando entender como a teoria
democrática moderna a absorveu para dar lugar à concepção individualista. Já no segundo
momento, com enfoque na tradição conservadora brasileira, o trabalho contará com uma
seleta de intelectuais do campo, com o intuito de analisar inclinações e percepções que
manifestem alinhamento com o organicismo. Em suma, será possível perceber, sobretudo na
abordagem de pensadores mais radicais, alusões a uma “naturalização” da política, de modo
que se concebe o organicismo como estanque dos avanços modernos.

Palavras-chave: Organicismo; Estado Moderno; Conservadorismo; Teoria Democrática;


Representação.

Abstract:

The main objective of the presente work is to understand how Western conservative thought
is related to the organicist conception of the State, in order to provide varied interpretations
about traces and nuances of democracy. For this purpose, a literature review will be
developed, divided into two topics, in order to understand diferente forms of the conservative
discourse about the maintenance of social practices and institutions to the detrimento of
political modernization. In the first part of the paper, a brief state of art of the organicist
conception will be carried out, aiming at understanding how modern democratic theory
absorbed it to give way to the individualista conception. In the second moment, focusing on
the Brazilian conservative tradition, the work will count on a selection of intellectuals from
the field, in order to analyze inclinations and perceptions that manifest alignment with
organicism. In short, it will be possible to perceive, especially in the approach of more radical
thinkers, allusions to a “naturalization” of politics, in such a way that organicism is conceived
as watertight from modern advances.

Keywords: Organicism; Modern State; Conservatism; Democratic Theory; Representation.


Introdução

Este artigo1 tem como objetivo dissertar sobre alguns dos prováveis elos do
pensamento conservador com a concepção organicista do estado. A justificativa central do
referido trabalho é tentar perceber como os matizes do organicismo são recrutados para
mobilizar discursos e ideias restritivas à participação política e à atividade deliberativa,
buscando definir a democracia em termos elitistas e centralizadores. A teoria democrática
prevê um longevo debate acerca das condições para garantir a preservação do regime, o que
sinaliza para a importância de aspectos como controle, ordem, segurança, dentre outros, para a
própria existência da democracia.
Não obstante, tal preocupação sempre esteve envolvida por questões de igual
relevância para o debate, tais como legitimidade, soberania, liberdade, justiça,
representatividade, etc. Isto posto, fica demonstrado que certas inquietações produzidas pelo
pensamento conservador não só estão contidas na teoria democrática como constituem traços
definidores do regime democrático. A origem desta verve conservadora da democracia pode
ser a concepção organicista do estado, oriunda da Antiguidade e que compreende a atividade
política como processo derivado das diversas formas sociais presentes em uma sociedade
civilizada.
O organicismo marca toda uma literatura produzida no Ocidente acerca do nascimento
do Estado até os marcos da Modernidade, momento em que o individualismo passa a influir
no entendimento coletivo sobre o pacto social. De acordo com a concepção organicista, o
estado civil é a resultante de formas sociais prévias, que serviram para modelar o
comportamento político dos cidadãos. Deste modo, as sociedades antigas pensavam o estado
civil como um reflexo das condutas políticas exercitadas anteriormente, a despeito de
qualquer traço de espontaneidade ou individualidade na formulação de bases institucionais.
A concepção individualista representa um rompimento com o organicismo,
descrevendo o Estado como um ente oriundo das deliberações racionais dos sujeitos, a partir
de então, capazes de apresentar termos e princípios para a consecução dos objetivos e
interesses gerais. Isto, no entanto, não irá representa uma franca superação do mote
organicista. O paradigma democrático depende de nuances que inspirem algum grau de ordem
social e capacidade administrativa, o que levanta uma interrogação: como fazer para

1
Ele é resultado do trabalho final da disciplina eletiva “Ideologias do Pensamento Político Brasileiro –
conservadorismos de Estado e sociedade (1945-2010)”, ministrada pelo Professor Dr. Christian Edward Cyril
Lynch, no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos
(PPGCP/IESP-UERJ).
conservar uma democracia? É claro que se pode recorrer instintivamente ao dispositivo da
mera abertura do regime para a participação política em sua plenitude – seja lá o que isso
possa significar. No entanto, uma democracia não é um simples repositório das vontades e
interesses dos indivíduos.
Em suma, a primeira parte do trabalho se reserva a fazer um breve e limitado estado da
arte da concepção organicista, visando aplainar o argumento a ser implementado no tópico
seguinte. O pensamento conservador, de uma forma geral, guarda conexões conhecidas com a
concepção organicista, o que acaba por influenciar nas aspirações mais questionáveis de
intelectuais do campo, que recorrem à “naturalização” da política como forma de conter as
supostas degenerações advindas do progresso. É um caminho que certos autores seguem, sem
ao menos perceber as ligações que a democracia possui, no sentido de concentrar disposições
e traços inerentes à sua própria manutenção.
Em face disso, o segundo item deste artigo se dedica à análise de alguns conceitos e
teses que se apresentam no campo conservador na tentativa de secundarizar o regime
democrático a algum ditame mediador das tensões sociais. Com enfoque na tradição
conservadora brasileira, foi montado um rol estrito de intelectuais, com os quais fora possível
extrair noções de interesse para o intuito central deste trabalho. A partir das propostas destes
autores, se buscará um elo com a concepção organicista, tentando entender o grau de
aproximação dos mesmos com a referida concepção e como a democracia é interpretada.
Nesta parte do artigo, três instituições se destacarão no intento de produzir um
contendor às hipotéticas crises da Modernidade e dos ventos democráticos. É possível
encontrar uma forte demonstração de inclinação a traços e elementos oriundos do império,
com o objetivo de submeter a prática deliberativa, própria das democracias, ao crivo e à
moderação de um poder com legitimidade natural, de modo que a legitimidade política ficaria
à mercê das coordenadas e imposições. A política deliberativa, em resumo, seria descrita
como um âmbito de instabilidades institucionais, que, portanto, dependeriam um ente de
permanente moderação.
A segunda instituição que o trabalho verificará será a Igreja Católica, instituição de
singular importância para a sustentação dos regimes monárquicos na Europa medieval. Para
certos autores do conservadorismo brasileiro, a Igreja é um ancoradouro das condutas naturais
e divinizadas, em detrimento das práticas e condutas seculares. A Modernidade é lida como
um marco no rompimento da civilização com os compromissos sagrados firmados pela Igreja,
antes representante máxima do cristianismo ocidental. Considerada um ente mantenedor da
orientação cristã dos cidadãos frente àquilo que poderia ser qualificada como a devassidão do
mundo moderno, a Igreja Católica é colocada como uma entidade habilitada para garantir a
ordem e o controle social.
As forças armadas também são apontadas como instituições superiores, capazes de
agir na salvaguarda dos interesses do país. Em uma perspectiva onde a primazia da república
seria a da segurança nacional, o culto aos militares contempla uma visão elitista da
democracia, de modo que, em face das forças serem instituições de estado, se preconizou
encará-las como organismos de salvação da população contra os conflitos, incluindo aí os de
mote político, pois seriam, em tese, fruto de distorções e influências advindas de correntes
supostamente alheias aos interesses nacionais. Ou seja, mais um instrumento de suspensão da
deliberação política em nome de interesses e vontades naturais, percebidas previamente.
A “naturalização” da política, portanto, corresponde aqui neste trabalho a uma
tendência entre conservadores mais radicalizados da condução da política ao âmbito do
conflito e, por conseguinte, á necessidade do controle e suspensão. Tratam-se de leituras e
compreensões da prática política em um regime democrático que supervaloriza a demanda
que estes mesmos regimes têm pela ordem, de modo que parecem sugerir que as democracias,
por estarem hipoteticamente fadadas à sedição, devem estar sob vigilância de entes e
instituições interventivas.
Isto posto, o objetivo do trabalho será o de identificar nuances e interpretações do
pensamento conservador que, no intuito de produzir algum nível de ordenamento social nas
democracias, contribuem para um cenário mais elitizado e mais inerte à participação política.
A despeito dos aspectos preservacionistas que a teoria democrática já conserva, é corrente
visualizar discursos e apologias a organismos e instrumentos de controle das tensões sociais,
revelando aí o real intuito: o de colocar a política sob o controle daqueles que seriam os
representantes da ordem social naturalmente legítima.

Concepção organicista: a busca dos conservadores pelo retorno à “naturalização” da


política

A filosofia política ocidental costuma ser dividida em duas grandes concepções: a


organicista e a individualista. Trata-se de uma divisão basilar que visa cindir, do ponto de
vista histórico e normativo, em dois espectros por onde a prática e a análise política teriam se
organizado para perceber – e orientar - o escopo da soberania e a natureza das instituições
políticas. Tal divisão remete a disposições conjunturais e estruturais sob as quais a atividade
política se apresentava, de modo que entendê-la constitui um facilitador para compreender as
transições que a civilização ocidental enfrentou até chegar à contemporaneidade.
A concepção organicista possui origens conhecidas no período clássico da Grécia
antiga, de onde Aristóteles desponta como seu principal teórico. O filósofo estagirita explica
em A Política como as distintas formas de experiência política dos cidadãos estavam ligadas,
evidenciando-as como processo naturais, já que as figuras do governante e do governado
coexistiriam (Pol., 1252a, 24-33), o que indica que ambos os papéis devem ser
experimentados pelos cidadãos para que possam desempenhá-los 2. O objetivo maior para o
qual os homens estariam destinados, segundo Aristóteles, era a vida em sociedade, posto que
a “cidade” representaria um ente natural, fruto da natureza política dos homens (Pol., 1253a,
1-7).
Portanto, Aristóteles funda esta concepção organicista do Estado, onde a pólis compõe
o todo das partes. Neste entendimento, o indivíduo só existe dentro da cidade, isto é, depende
da totalidade social, pois estes seriam percebidos como partes inerentes às outras formas de
socialização e experiência política (família, aldeia, cidade)3. O chamado “modelo
aristotélico”, como Norberto Bóbbio diria, pressupõe uma construção histórica do Estado, a
despeito de uma construção racional, de modo que a existência política dos indivíduos
demandava formas naturais que compunham as partes do todo do Estado(BOBBIO;
BOVERO, 1996, p. 40–41).
O modelo introduzido por Aristóteles previa que as formas políticas anteriores ao
Estado compunham um estágio pré-político determinado historicamente e pertencente a um
complexo de eventos evolutivos. No modelo aristotélico, “[...] entre a sociedade primitiva e
originária e a sociedade última e perfeita que é o Estado há uma relação de continuidade ou de
evolução ou de progressão [...]”, de modo que as formas anteriores não constituíam condições
prévias negligentes em relação ao Estado, pois este seria “[...] o desaguadouro natural, o ponto
de chegada necessário, a conclusão de certo modo quase predeterminada de uma série mais ou
menos longa de etapas obrigatórias” (Ibidem, pp. 42–43).

2
A “cidade” é, para Aristóteles, o lugar natural para a vida política, para a qual o homem é o animal adequado.
Portanto, o homem é um “animal político”, já que possui a “[...] capacidade de falar de maneira sensata e de
refletir sobre seus atos” Ver mais em: CHÂTELET, F.; DUHAMEL, O.; PISIER-KOUCHNER, É. Gênese do
pensamento político: os conceitos fundamentais. Em: História das ideias políticas. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora
Zahar, 1985. p. 13–21.
3
O Prof. Dr. Marcelo da Costa Maciel destaca que o indivíduo aristotélico “¨[...] não é um ser autônomo, que se
basta a si mesmo, mas depende da totalidade social. Esta precisa estabelecer uma certa ordem no convívio de
muitos indivíduos e famílias”. Ver em: MACIEL, M. DA C. A contribuição do pensamento antigo e medieval
para o desenvolvimento da ciência política. Em: Curso de Ciência Política. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora
Elsevier, 2013. p. 1–24.
O que fica patente neste modelo é que não há uma divisão clara de um momento “pré-
político” para um outro momento em que se possa afirmar um estágio eminentemente
político. Isto muda significativamente no início da Era Moderna com o surgimento de
concepções do Estado de mote individualista. Segundo Bóbbio, o modelo referencial desta
nova interpretação é a produzida pelo filósofo britânico Thomas Hobbes. Em seu modelo, o
“estágio pré-político”, ou “estado de natureza”, constitui momento anterior ao “estado civil”,
promovendo assim uma cisão evidente entre uma condição pretérita em que os indivíduos
carecem de organização e instituições políticas e outra onde estes formam racionalmente suas
vontades e as cristalizam na figura do Estado (Ibidem, p. 44).
Tratar-se-ia do lançamento das bases do jusnaturalismo político moderno, marco,
segundo Bóbbio, dos primeiros grandes esforços de sistematização do direito e, por
conseguinte, de “tratamento racional do problema do Estado” (Ibidem, pp. 35–36). O modelo
hobbesiano preconizava um entendimento dicotômico do Estado, onde o homem “¨[...] ou
vive no estado de natureza ou vive no estado civil”, interpretação que introduzia uma mútua
noção antitética entre os termos (Ibidem, p. 38). Se no modelo aristotélico, a existência
política dos indivíduos dependia do reconhecimento do pertencimento à pólis, no modelo
hobbesiano os homens existem politicamente quando identificam a necessidade de formar a
sociedade em bases contratuais.
Esta noção anterior da concepção organicista - do Estado como ente natural e
resultante histórico de formas prévias de atividade políticas dos indivíduos - pareceu resistir
aos ventos modernos, encontrando espaços em interpretações distintas acerca da legitimidade
das democracias ocidentais. O âmbito em que os sujeitos se colocariam como indivíduos
habilitados para o exercício de uma cidadania universal, ou seja, o domínio público que se
abrira mediante a transição do ancien régime para o Estado Moderno, não surgiu sem ser
classificado por alguns intelectuais como esferas dependentes de clivagens estritas e de forte
controle das elites políticas.
Uma voz relevante no intento de assegurar algum grau de submissão do domínio
público a critérios pré-determinados da política foi a do filósofo e deputado por Bristol
Edmund Burke. Em seu laureado discurso aos eleitores de Bristol, Burke define o Parlamento
como um congresso de representantes capazes de chegar, por meio da deliberação, ao
interesse geral da nação. Em suma, Burke considerava o Parlamento “[...] uma assembleia
deliberativa de uma nação, com um interesse: o da totalidade, onde o que deve valer não são
os interesses e preconceitos locais, mas o bem geral que resulta da razão geral do todo”
(BURKE, 2001, p. 29, grifos do autor).
É de amplo conhecimento que a perspectiva de Burke dentro do debate democrático
conserva uma posição refratária aos avanços da política institucional e do entendimento sobre
a democracia representativa. Ainda que o princípio da independência do representante –
proposta por Burke - venha a se consolidar posteriormente como traço indispensável desta
forma moderna de democracia, a interpretação burkeana da representação política prezava
pela onipotência do legislador em detrimento dos cidadãos. Isto, porque o representante seria
o detentor da primazia da sabedoria frente às possíveis contingências das opiniões e desejos
dos indivíduos.
Como a teórica política estadunidense Hanna Fenichel Pitkin afirmaria, “para Burke, a
representação política é a representação do interesse, e o interesse tem uma realidade objetiva,
impessoal e desvinculada” (PITKIN, 1967, p. 168, tradução nossa). A interpretação que Burke
faz da ideia de interesse pressupõe que haja uma esfera de critérios sociais e políticos
determinados de forma antecipada, dado que se trataria de dimensões da vida social que, ao
fim e ao cabo, correspondem a todos indistintamente. Mesmo traços mais contingenciais das
demandas dos eleitores seriam considerados pelo deputado por Bristol como questões
ambientadas dentro do dispositivo do interesse, que, em sentido amplo, resultariam em “[...]
interesses duráveis, facilmente identificáveis e [...] objetivos” (Ibidem, p. 175, tradução
nossa).
Uma contribuição mais recente para a composição de um ideário conservador da
democracia moderna é a de Carl Schmitt. O intelectual alemão, bastante lembrado por ter sido
membro do Partido Nazista, era alinhado ao realismo político 4 e manifestava um
entendimento reacionário da democracia parlamentar. Diferente de Burke, um liberal-
conservador, Schmitt evocava uma crítica severa ao liberalismo político, mirando contra a
“verdade relativa” que poderia ser extraída da deliberação parlamentar – fórmula estabelecida
na chamada “teoria do balanceamento”, condenada pelo jurista alemão (SCHMITT, 1996, p.
45).
Carl Schmitt entendia que a democracia representativa tinha por premissa a lei, de
modo que a deliberação legislativa configuraria um acordo que se expressaria na
4
Carl Schmitt considerava que a política era o campo onde se expressavam as distinções, encarnadas em sua
diferenciação primária, que seria o binômio “amigo/inimigo”. Para o jurista e filósofo alemão, a diferenciação
entre amigo e inimigo “[...] tem o sentido de designar o grau de intensidade extrema de uma ligação ou
separação, de uma associação ou dissociação [...]”, de modo que “o inimigo político não precisa ser moralmente
mau, não precisa ser esteticamente feio; não tem que surgir como concorrente econômico [...]”, já que o inimigo
é “[...] justamente o outro, o estrangeiro, bastando à sua existência que, num sentido particularmente intensivo,
ele seja existencialmente algo outro e estrangeiro [...]”, incorrendo na possibilidade de conflitos com ele, “[...] os
quais não podem ser decididos mediante normatização geral previamente estipulada, nem pelo veredicto de um
terceiro ‘desinteressado’, e, portanto, ´imparcial’”. Ver mais em: SCHMITT, C. O Conceito do Político/Teoria
do Partisan. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2008, p. 52.
racionalidade que as leis exigiriam dos homens. Esta tendência torna esta forma democrática
problemática, pois, de acordo com Schmitt, a autoridade da lei esvaziaria o poder político da
vontade geral. O que o jurista alemão pressupõe é que a decisão política seja um dispositivo
anterior à norma, isto é, que a realidade concreta do direito é quem produz sentido ao conceito
abstrato de lei, já que “a decisão é o veículo da secularização por meio da qual o direito
adquire visibilidade frente à crença no direito concebido como vontade sagrada da lei”
(CASTELO BRANCO, 2017, p. 1148).
A resposta de Carl Schmitt para o que considerava ser uma crise inevitável da
democracia parlamentar seria a dimensão do “mito”, ou seja, “[...] o critério para se identificar
se um povo ou outro grupo social tem uma missão histórica e se seu momento histórico já
chegou” (SCHMITT, 1996, p. 63). Trata-se de um meio por onde se estabelece uma crença
capaz de mobilizar as massas, desempenhando um “instinto vital”, a despeito do racionalismo
liberal, que proporia uma forma intelectual do exercício da autoridade. Carl Schmitt
considerou (Ibidem, p. 64) que a burguesia moderna estava fadada a um predomínio de classe
regido por uma “plutocracia demagógica”, isto é, a combinação entre “ceticismo, relativismo
e o sistema parlamentar”, o que a destituía da capacidade de chegar ao critério orgânico do
poder político.
É possível perceber, a partir de dois exemplos de origens filosóficas distintas, que a
perspectiva conservadora se estrutura mediante a recuperação de traços e características de
ordem organicista da sistematização do poder político e do Estado. A busca pela retomada do
aspecto orgânico da dimensão política, que parece estar explícito - seja nas considerações de
Burke sobre as clivagens políticas objetivas, seja nas de Carl Schmitt acerca do mito como
critério substantivo do poder político -, revelam um intento claro em readequar as condutas
políticas visando submetê-las à disposição das formações políticas prévias, previstas na
concepção organicista.

A explicação conservadora para a sub-representação: o regime republicano brasileiro e


as reservas para a política institucional

O debate intelectual sobre a natureza do Estado e sua consequente influência nas


práticas políticas e nas instituições governamentais, desenvolvido pela teoria política moderna
europeia, como não poderia deixar de ser, refletiria sob as bases do republicanismo brasileiro.
A história do constitucionalismo no Brasil demonstra uma forte inclinação para os ideais
iluministas, conectada com o “conserto das nações”, de modo a sinalizar para a entrada do
país no mundo das democracias liberais, buscando a superação das amarras coloniais. Não
bastando conquistar sua independência de Portugal, o país precisava exibir um alinhamento
contundente com a modernização econômica e com a racionalização burocrática, em curso no
Velho Continente e nos Estados Unidos.
Ou seja, depois de uma brevíssima experiência como império, o Brasil faria sua
incursão na ordem social capitalista, desenhando uma república parlamentar e organizando as
bases da competição partidária. Fora certamente uma transição relevante, capaz de influir
decisivamente nos rumos do país dali em diante. No entanto – e também não poderia deixar
de ser diferente -, esta guinada seria objeto de críticas tão relevantes quanto, apontando para
deficiências estruturais que poderiam impossibilitar a vigência do regime democrático. A
crítica mais destacada ao republicanismo viria de autores e políticos situados dentro do
conservadorismo brasileiro.
O sociólogo Francisco José de Oliveira Vianna fora um daqueles que fizeram críticas
das mais fulcrais à incursão do Brasil ao republicanismo. Ele considerava aquele período (o
final do século XIX) um “momento” problemático para a promulgação de uma constituição
republicana pois entendia que, além de não haver uma classe social definida que estivesse
engajada em torno dos valores republicanos – a democracia francesa, o liberalismo inglês e o
federalismo americano -, as condições econômicas do período seriam frágeis, dado que o
modelo agrário-exportador, baseado na exploração da mão-de-obra escrava, havia acabado de
ser desarticulado com a Lei da Abolição, o que desmobilizara o “sistema de meios de vida” da
aristocracia nacional (OLIVEIRA VIANNA, 1939, p. 84–85, 87–89).
A consequência mais dramática deste quadro, para Oliveira Vianna, seria a mera
transição das elites agrícolas para a administração pública, o que corroboraria seu
entendimento de que a recente república brasileira estaria fadada à impossibilidade de formar
classes sociais capazes de pressionar as elites parlamentares, posto que, segundo ele, não
haveria “solidariedade de classe” em função da “[...] imensa dispersão demográfica do país
[...]” (Ibidem, p. 99–100, 105–106). É válido ressaltar que o autor pressupunha o fator racial
como critério para a emancipação política da sociedade brasileira, segundo ele, desprestigiada
em detrimento dos traços tipicamente anglo-saxônicos5.
A um primeiro exame, o questionamento de Oliveira Vianna sobre a constituição de
1891 está de acordo com as críticas mais correntes sobre o processo de industrialização e de
5
Oliveira Vianna classificava os quadros políticos da sociedade brasileira como “[...] tipos excepcionais, cujos
esforços se perdem no meio da indiferença, ou da inércia, ou do retraimento da maioria”. A acusação do
sociólogo é a de que no Brasil não havia o “[...] sentimento do interesse coletivo. Este sentimento tão profundo
nas raças germânicas em geral, especialmente na raça inglesa [...]”. Ver em: OLIVEIRA VIANNA, F. J. DE. O
Idealismo da Constituição. 2a ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. v. 141, p. 100.
adesão à república democrática. O sociólogo percebia o “regime político” apenas como esfera
auxiliar às reais transformações (sociais e econômicas), pois considerava que o ímpeto por
uma sociedade democrática era, “[...] antes de tudo um problema social e econômico e só
secundariamente um problema político e constitucional” (Ibidem, p. 111–112, grifos do
autor). Em face disso, Oliveira Vianna condena a democracia parlamentar por considerá-la
incipiente no que tange à construção de um “regime de opinião”, dado que, de acordo com o
sociólogo, os procedimentos típicos dos regimes democráticos – sufrágio universal, eleição
direta, etc. – não seriam efetivamente exercitados pela maioria da sociedade, impedindo que o
eleitorado desenvolvesse “independência de opinião” (Ibidem, p. 108, 112, grifo do autor).
É notável como Oliveira Vianna produz uma interpretação da transição do Brasil para
o modelo democrático que se assemelha com as de Carl Schmitt. Sua rejeição à democracia
parlamentar atesta um entendimento da legitimidade do poder político que dependeria de uma
fonte absoluta, o que fica mais patente com sua adesão à constituição de 1937, onde, segundo
ele, “[...] reagiu-se sim, contra a preponderância do Parlamento, ou, melhor da Câmara dos
Deputados” (Ibidem, p. 122). Trata-se, aqui, de uma interpretação que olha para o poder
político apenas sob a ótica da moderação de um líder político majoritário, em detrimento do
aspecto deliberativo, que costuma ser tão caro às democracias.
O que parece ficar demonstrado, a partir do exemplo de Oliveira Vianna, é que os
intelectuais conservadores brasileiros, com um alinhamento manifesto pelo regime imperial,
tenderam a se distanciar do centro do poder político, o que os escantearam. Como
consequência, muitos dos quadros políticos oriundos da direita tradicional enfrentariam
verdadeiros dilemas, tais como a escolha entre a adesão a pautas relativas ao universalismo de
procedimento ou o embarque no pragmatismo político. É o caso da UDN (União Democrática
Nacional), um dos partidos políticos que figuraram na primeira experiência democrática, entre
1945 e 1964.
De acordo com Edson de Oliveira Nunes (2017, p. 100–101, 108), o partido,
“mobilizado externamente”, enfrentou dificuldades para organizar suas duas grandes alas - os
“autênticos” e os “pragmáticos” -, o que culminou em um comportamento partidário errático,
a ponto de tornar o “[...] sentido do universalismo de procedimentos em algo suspeito”.
Segundo Nunes, a falta de coerência ideológica e programática fez com que a UDN, ao fim e
ao cabo, integrasse a trinca de partidos associados à lógica clientelista do regime democrático
fundado em 1945, estabelecendo “[...] uma coalizão de fato para patronagem” (NUNES,
2017, p. 112, grifo do autor).
O cerne da crítica conservadora ao regime democrático estava alinhado com uma dada
compreensão corrente sobre as origens da revolução burguesa na Europa. O espaço entre as
guerras religiosas e a Revolução Francesa revelaria um rumo atomizador das condutas sociais,
o que sinalizara para condições incontornáveis de capacidade da organização social e de
sistematização das tomadas de decisão, exigindo cada vez mais centralização e,
contraditoriamente, mais participação política. Como bem observaria Reinhart Koselleck, o
Estado Moderno se desenvolveu mediante duas fases – ele menciona que “[...] o ponto de
partida do Iluminismo foi o sistema absolutista, o do Absolutismo foram as guerras
religiosas” (KOSELLECK, 1999, p. 19).
O historiador alemão descreve a transição de uma moral política objetiva, através da
qual os sujeitos estabelecem as premissas de suas posições como súditos, para uma moral
subjetiva, relativa à sua existência no domínio privado, brecha concedida pelo estado
absolutista. Segundo Koselleck, a “[...] necessidade de estabelecer uma paz duradoura incita o
Estado a conceder um foro interior [...]”, o que configuraria as bases para as revoltas que
antecederiam a Revolução Francesa(Ibidem, p. 38). Esta dinâmica histórica consolidaria a
democracia moderna, assim como de acordo com sua definição antiga aristotélica, um regime
fadado a crises e sedições, já que possuía em sua origem um intento à revolução. Assim
define o filósofo francês Jacques Rancière, ao afirmar que, quando, ao romper “[...] as velhas
solidariedades que monarquia, nobreza e Igreja haviam tecido, a revolução protestante
dissolveu o laço social e atomizou os indivíduos” (RANCIÈRE, 2014, p. 25).
Este esquema descritivo das democracias modernas é largamente considerado pelos
intelectuais conservadores brasileiros para explicitar uma hipotética necessidade de
restabelecer instituições e concepções sociais alinhadas com a história pré-moderna. Assim
Plínio Correa de Oliveira percebia o conjunto das transformações sociais modernas, dando
tons dramáticos para alguns deles – a “pseudo-reforma” (Reforma Protestante), a Revolução
Francesa e o Comunismo -, classificando-os como “[...] episódios de uma só revolução [...]”
que conspirariam para criminalizar toda forma de desigualdade (OLIVEIRA, 1959, p. 2).
Para o professor de História da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, a
“revolução” seria o grande problema da civilização ocidental por concentrar cinco fatores: é
universal, pois afeta todos os indivíduos; é única, já que integra todas as formas de
transformação da cristandade ocidental; é total, por se impôr a todos os campos da existência
social; é dominante, por conspirar para a soma de desvirtuamentos em oposição à civilização
cristã e; é processiva, dado que seria um processo inevitável rumo à crise e à autodestruição
(Ibidem, p. 3–5)
Oliveira deixa claro qual é a instituição social capaz de servir como estanque aos
avanços da Modernidade. A Igreja Católica é situada como um ente habilitado para recuperar
a essência e a estética ocidental, fazendo frente às transformações produzidas pela sociedade
burguesa, majoritariamente protestante. O que parece estar tela, mediante a intepretação de
Oliveira é o entendimento da ideia de legitimidade política dependente de uma fonte
específica e moralmente superior, independente de qualquer mecanismo de aferição da
vontade coletiva. Esta forma de perceber a política pode ser identificada em intelectuais
conservadores brasileiros de diferentes matizes.
É o exemplo de João Camillo de Oliveira Torres, que pressupunha uma “legitimidade
objetiva”, isto é, uma dimensão efetiva da legitimidade política que superasse as
instabilidades de um governo republicano – a “legitimidade subjetiva” (TORRES, 1964, p.
15–16). Para Torres, a verdadeira forma de legitimar uma autoridade política é o império,
classificado por ele como uma “monarquia de base popular”, indicando uma esfera objetiva
de afirmação da vontade política da nação, em detrimento das camadas e possibilidades de
formação deliberada dos interesses dos cidadãos (Ibidem, p. 16).
Em outra oportunidade, Torres afirmaria que o poder monárquico se expressaria como
poder em sua “plenitude soberana”, enquanto a democracia constituiria a “limitação do poder”
(Idem, 2017, p. 52). Trata-se de uma constante entre os autores conservadores, de modo que a
fonte do poder político é compreendida como uma esfera pré-determinada, em que uma dada
classe – seja de aristocratas, oligarcas ou sacerdotes – desempenha o poder, produzindo os
elementos de um regime político. Esta fórmula tem como substância a inexistência de uma
sociedade civil capaz de deliberar em seu nome, o que parece estabelecer um paradoxo: uma
sociedade sempre dependerá de um poder moderador para produzir a legitimidade política?
Além de um ideário conservador de mote moderado - como representado por Oliveira
Vianna e por João Camillo de Oliveira Torres, que se limitaram a cotejar o retorno ao Império
e a observar os limites do modelo republicano -, ou mais radicalizado - como visto através de
Plínio de Correia Oliveira, que elegia o cristianismo ocidental como o fenômeno habilitado
para fornecer coesão social e a Igreja Católica como o corpo dotado de legitimidade política -,
há também uma abordagem estatista (embora com ecos na sociedade civil) que reserva o
poder moderador às Forças Armadas. Talvez o real diferencial diante das duas propostas de
foco do poder político seja o fato de que as Forças Armadas funcionem como um “garantidor”
do regime republicano.
Um intelectual alinhado com o dito “conservadorismo geopolítico” foi Juarez Távora,
militar do Exército Brasileiro e político influente. O autor definia o “interesse nacional” como
uma tríade de objetivos permanente, quer sejam a “autodeterminação”, a “integração
nacional” e a “prosperidade e o prestígio” (TÁVORA, 1959, p. 25–26). Tais fatores estariam
submetidos à “segurança nacional”, dimensão que constitui “[...] condição social que os
líderes nacionais julgam necessário manter ou criar para o bem-estar contínuo da Nação [...]”,
ou seja, serviria de fator regente dos demais critérios de realização da soberania nacional
(WILLIAMS apud TÁVORA, p. 27).
O que fica patente é a necessidade de uma afirmação da soberania nacional como
critério primário para a legitimação da república, mais uma vez, excluindo o aspecto
deliberativo da equação. Outro intelectual que normaliza a conduta política dos militares é
Paulo Mercadante. Embora faça uma interpretação desiludida do papel das Forças Armadas
na política, Mercadante descreve o “movimento de abril” como um movimento oriundo do
“[...] ressentimento das classes médias [...]” com a conciliação política anterior
(MERCADANTE, 1980, p. 18). O movimento de 1964 seria fruto de “[...] uma ruptura com
as normas do direito público [...]” e do “[...] rompimento com a cordialidade brasileira”, tendo
por inspiração uma “[...] radicalização da ideia ética”, ou seja, os tratados constitucionais e os
acordos republicanos foram postos em suspenso em face da “[...] manifestação de um
sentimento ético levado ao máximo” (Ibidem, p. 16–17).
Em todo caso, a intelectualidade conservadora brasileira demonstra um forte
alinhamento (e uma radicalização, em alguns casos) com a natureza organicista do
conservadorismo ocidental. Ainda que seja indevido afirmar que a concepção organicista
viesse a ser impeditiva para a atividade deliberativa, as dimensões pré-determinadas dos
critérios políticos que a compõem apresentam um veio por onde os discursos conservadores
refinam suas premissas mantenedoras do ordenamento social. Reforça-se uma compreensão
de que a política é, ao fim e ao cabo, advinda da natureza humana, objeto das experiências e
reproduções sociais das práticas políticas, ignorando a capacidade dos cidadãos de definir as
bases e princípios que organizam a atividade política.

Conclusão

A concepção organicista do estado definia a existência do indivíduo mediante uma


trajetória de experiências e acúmulos da atividade política e da vida social, culminando na
vida comunitária e no aprendizado dos processos de deliberação. O aspecto reprodutor da
natureza política dos homens servia para descrever os cidadãos como personagens que se
poriam habilitados à atividade política a partir das suas predisposições anteriores, o que não
inclui uma dimensão onde estes poderiam ser capazes de, através de processo de criação
autêntico, suscitar uma esfera de tomada de decisão e de organização da ordem social.
Como já citado aqui, uma concepção individualista do estado surgiria apenas nos
marcos da era moderna, fruto das tensões internas entre os movimentos absolutistas e
iluministas. O estado moderno seria concebido à luz da emancipação dos indivíduos das
determinações prévias de formação social, configurando um cenário em que os homens
seriam partícipes e definidores intelectuais do arcabouço jurídico-normativo da sociedade
civil. A concepção individualista – que tem nos intelectuais do Contrato Social sua
representação mais evidente – colocou os sujeitos em uma posição ativa frente à consolidação
do estado, tornando-os plenamente habilitados para delinear as bases do estado político.
As teorias do pacto social revelariam uma disposição em que os sujeitos seriam
responsáveis pela conciliação das tensões estruturais da sociedade, constituindo um momento
contratual, a partir do qual os indivíduos se colocariam em condições relativas (ou formais) de
igualdade. Abriu-se, portanto, um novo horizonte de perspectivas acerca das funções sociais
que os indivíduos poderiam desempenhar, não sendo diferente com as funções relacionadas à
esfera política. Os critérios para a construção de agendas políticas e demandas sociais
estariam, cada vez mais, sendo orientadas por dimensões subjetivas da realidade social,
dependendo de clivagens políticas que seguiriam surgindo e se acirrando.
No entanto, como se tratam de concepções, elas tendem a existir independentemente
das aplicações e instituições sociais, de modo que, mesmo no âmbito da modernidade, o
organicismo seguiu revelando nuances que qualificam a democracia moderna. O dispositivo
da independência do representante, por exemplo, é um critério indispensável para a
representação política, o que pressupõe que toda democracia demanda um grau de
seletividade na composição das lideranças políticas. Embora a distinção do representante
possa sinalizar como uma dada forma de dimensão organicista no bojo da política moderna,
ela revela, acima de tudo, que a atividade deliberativa depende de momentos de autorização,
momentos de decisão política que somente um político profissional6 poderia atender.
A necessidade que as democracias modernas tem de expressarem a legitimidade
política mediante procedimentos aferidores da vontade popular e autorizadores da decisão

6
O sociólogo alemão Max Weber afirmaria que “o desenvolvimento da política no sentido de um
‘empreendimento’ que exigia um treinamento na luta pelo poder e nos métodos desta, tal como o desenvolveu o
partidarismo moderno, resultou na divisão dos funcionários em duas categorias [...]”. Seria o “funcionário de
carreira” e o “funcionário político”, em que o segundo corresponde a um tipo de quadro funcional que abriga
agentes profissionalizados da política, aos moldes da modernização capitalista. Ver em: WEBER, M. A política
como profissão e vocação. Em: LASSMAN, P.; SPEIRS, R. (Eds.). Escritos Políticos. 1. ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2014. p. 409.
política demonstram a dependência do regime de certos critérios objetivos da realidade social.
Ainda que se possa buscar definir clivagens de ordem cultural, simbólica ou pós-materialista,
a autorização eleitoral sempre se apresentará como um dispositivo sintetizador das vontades e
dos interesses coletivos, de modo a produzir uma resposta que tenderá a se esvair na sucessão
de ocorrências da agenda política.
É de comum entendimento que a escolha eleitoral representa apenas a reunião de
diversos interesses em uma candidatura, constituindo apenas a combinação momentânea de
tais interesses. Isto, naturalmente, abre margem para que os cidadãos possam realinhar seus
interesses e redefinir suas escolhas políticas e seus vínculos ideológico-partidários. O que
parece ficar patente, no entanto, é o recorrente retorno da atividade política ao seu aspecto
sintético, onde se deve achar um consenso entre as distintas disposições. Este patamar de
aglutinação das preferências eleitorais exibe, aparentemente, a exigência de uma formulação
objetiva dos interesses, o que parece demonstrar que as democracias sempre dependerão de
algum grau de definição prévia de interesses, ainda que a atividade deliberativa não se esgote
na política institucional.
É habitual verificar no pensamento conservador ocidental uma inclinação à
salvaguarda das elites políticas em face da preservação do regime. Este posicionamento é
frequentemente lido como uma preocupação que desprestigiaria o necessário escrutínio das
autoridades e deixaria em segundo plano a questão da participação política. Não obstante, é
válido ressaltar que é no cerne da própria teoria democrática que emerge discussões sobre a
manutenção do regime em detrimento das turbulências inerentes ao mesmo. Desta forma, a
democracia se vê constantemente colocando defronte aspectos tais como participação e
controle, legitimidade e autoridade, soberania e coletividade, dentre outros, de modo que
vestígios da concepção organicista podem ser percebidos mesmo na Modernidade.
A busca pelo retorno a critérios naturais da atividade política revela, nada mais do que
uma constante das democracias que é o do controle de suas próprias degenerações. Isto é
importante de ser citado se considerado que há dentro do pensamento conservador aqueles
que consideram a plena observância dos aspectos orgânicos da organização social, em
detrimento da participação política e da afirmação autônoma do juízo. Para além da defesa de
condutas moderadas frentes a insurreições e conflitos sociais, é possível notar em diversas
contribuições do ideário conservador uma inclinação eloquente visando o retorno às bases
políticas pré-modernas, revelando, em suma, uma clara rejeição dos cânones democráticos.
No enfoque ao conservadorismo brasileiro, é notório a admoestação que se faz ao
ideário republicano, tendo na alça de mira as deficiências estruturais do país, qualificando-as
como impedimentos irreversíveis no que tange à transição do Brasil para o paradigma
democrático. Talvez a mais emblemática das acusações seja a da impossibilidade de
aculturação e politização dos brasileiros em face do recente regime parlamentar implementado
no final do século XIX. Como citado anteriormente neste trabalho, a resposta de Oliveira
Vianna para a hipotética incapacidade dos brasileiros de compartilhar valores e sentimentos
com os anglo-saxões seria o dispositivo do poder moderador, que serviria como contendor às
investidas da elite parlamentar.
Deste modo, para Oliveira Vianna, o poder moderador teria uma importância que,
aparentemente, superaria a harmonia da separação dos poderes. Ele seria um agente
mantenedor da ordem social, a despeito de qualquer distúrbio produzido pelas elites políticas.
Fica patente a tentativa de submeter a atividade deliberativa à influência de um poder
decisório, ignorando as perdas advindas da supressão dos espaços deliberativos e confinando
a vida política ao crivo do moderador. Trata-se de uma leitura da realidade política brasileira
que considerava o grau embrionário de desenvolvimento econômico e da ínfima classe média
urbana, de modo a compreender de forma pessimista um cenário de expansão dos direitos
civis e políticos.
O pano de fundo do recurso ao poder moderador, ao que tudo indica, é o esforço de
assegurar algum elemento afinado com as práticas políticas imperiais, isto é, a um regime pré-
moderno, possivelmente com o intuito de servir de estanque aos avanços do republicanismo.
Outrossim, a Igreja Católica é situada como instituição habilitada para assegurar o
cristianismo ocidental, colocando-se defronte às sucessivas transformações modernas. A
manifesta defesa à instituição religiosa revela uma sublinhada preocupação com o
individualismo e com organização social voltada para o consumo, o que corrobora com esta
inclinação do conservadorismo na busca pelo elo com as referências do período medieval.
Uma defesa mais contemporânea que os conservadores costumam operar é a feita em
favor das forças armadas. Os militares figuram como membros do aparato estatal que gozam
de independência das supostas distorções da política institucional, portanto, se apresentando
como classe naturalmente disposta para pacificar o país e garantir a soberania nacional. O
cerne do discurso, mais uma vez, segue sendo o da manutenção de uma esfera de decisão que
não sofra influência da classe política e da administração executiva.
Em suma, o conservadorismo representa um segmento importante dentro da teoria
democrática, dado que há uma histórica dedicação no que concerne à manutenção do regime.
Não obstante, é possível identificar dimensões do pensamento conservador que resvalam em
tentativas explícitas de vincular as práticas democráticas a ditames estritos, a critérios
objetivados, às expensas da deliberação democrática e da formação autônoma do juízo. A
“naturalização” da política, ao fim e ao cabo, pressupõe um conjunto de compreensões que
tomam a política como um dado exclusivo da natureza e que, portanto, reserva à esta a única
tarefa de garantir a estabilidade do regime, a despeito de problemáticas tais como a
legitimidade, a individualidade e a justiça.

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