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Tamara Quírico

INFERNO E PARADISO. DANTE, GIOTTO E AS REPRESENTAÇÕES DO JUÍZO FINAL


NA PINTURA TOSCANA DO SÉCULO XIV

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutor em História

Orientadora:
Professora Doutora Maria Beatriz de Mello e Souza

Rio de Janeiro
Ano de depósito 2009
Livros Grátis
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Tamara Quírico Moraes

INFERNO E PARADISO. DANTE, GIOTTO E AS REPRESENTAÇÕES DO JUÍZO FINAL


NA PINTURA TOSCANA DO SÉCULO XIV

Rio de Janeiro, de de 2009

_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Beatriz de Mello e Souza, IFCS/ UFRJ (orientadora)

_________________________________________
Prof. Dr. Francisco José Silva Gomes, IFCS/ UFRJ

_________________________________________
Prof. Dr. Luciano Migliaccio, FAU/ USP e IFCH/ UNICAMP

_________________________________________
Prof. Dr. Paulo Knauss de Mendonça, ICHF/ UFF

_________________________________________
Prof. Dr. Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, FFLCH/ USP

_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Andréia Cristina Frazão, IFCS/ UFRJ (suplente)

_________________________________________
Prof. Dr.ª Maria Cristina Correia Leandro Pereira, DTAM/ UFES (suplente)

II
Para meu avô, que adorava minhas esquisitices

E para Letícia, que teria lhe dado muitas alegrias

III
AGRADECIMENTOS

Para a realização desta tese, o auxílio de inúmeras pessoas foi imprescindível. A


eles, todo o meu reconhecimento e meu agradecimento.
Em primeiro lugar, naturalmente, à minha orientadora, Professora Maria Beatriz de
Mello e Souza, pelo incentivo, pela orientação sempre precisa para o pleno desenvolvimento
da pesquisa e pela generosidade com que compartilhou comigo seus conhecimentos.
Especialmente, porém, por sua amizade, e por ter me mostrado ser possível desenvolver uma
pesquisa sobre História da arte medieval no Brasil. É ótimo não se sentir uma voz isolada na
multidão…
Ao Professor Luciano Migliaccio, pelo apoio dado para o desenvolvimento de
minha pesquisa no exterior. Sem seu auxílio, talvez não tivesse sido possível o contato com a
Università degli Studi di Pisa e com o então diretor do Dipartimento di Storia delle arti visive
e dello spettacolo, Professor Antonio Pinelli. Agradeço também por suas diversas sugestões
de grande relevância no momento da qualificação desta tese. Sou grata, enfim, à nossa
amizade, cultivada desde os tempos do mestrado desenvolvido na UNICAMP.
À Professora Norma Côrtes, pelas palavras de incentivo no momento da
qualificação da tese, que me estimularam a seguir o caminho. Jamais me esquecerei do relato
de seu sonho com os diabos de meus juízos finais…
Ao Professor Francisco José Silva Gomes, por sua atenta leitura de partes do texto,
assim como por sua colaboração e sua solicitude para o andamento da pesquisa.
Ao Professor Carlos Roberto Nogueira, pela disposição em acompanhar meu
trabalho durante o Encontro Nacional da ANPUH, em 2005. As precisas observações feitas na
época, ainda no início da pesquisa, muito auxiliaram a reflexão para o posterior
encaminhamento da tese.
À Professora Andréa Daher, por ter feito importantes sugestões em meu projeto de
pesquisa enquanto cursei sua disciplina no PPGHIS. Agradeço da mesma forma ao Professor
Paulo Knauss, que me deu grande estímulo na pesquisa, e que, com o contato proporcionado
pela disciplina cursada da UFF em 2005, pôde me dar conselhos e sugestões de leitura
referentes à pesquisa que me fizeram refletir, e que por fim puderam ser aplicados à tese.
Ambos foram fundamentais ao me terem concedido seu apoio irrestrito nos momentos em que
foi necessário.
À Professora Lênia Márcia Mongelli que, sequer me conhecendo, tão prontamente
se dispôs a ler meu texto sobre a Peste Negra, fazendo comentários pontuais e de grande

IV
precisão, ajudando-me a ver alguns pequenos problemas que eu, após milhares de revisões, já
não conseguia mais perceber.
À CAPES, por ter me concedido a bolsa PDEE – Programa de doutorado com
estágio no exterior –, possibilitando desse modo a realização da pesquisa de campo na Itália
em 2006, período imprescindível de estudo e amadurecimento para que esse trabalho pudesse
ser plenamente desenvolvido.
Aos funcionários do Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS),
pelo apoio dado ao longo de todo o período de doutoramento. Agradeço particularmente a
Sandra Helena Ribeiro dos Santos, que me recebeu em todos os momentos com seu carinho e
sua amizade.
Na Itália, agradeço ao Professor Antonio Pinelli, que atuou como orientador de meu
projeto nos meses passados em Pisa, pelo apoio e pelas sugestões que me deu ao longo desse
período. Devo um agradecimento igualmente à Professora Gigetta Dalli Regoli, pelas diversas
indicações bibliográficas e pelas orientações dadas à minha pesquisa durante suas aulas de
arte medieval, que cursei com enorme interesse. Também o Professor Antonino Caleca se
demonstrou extremamente solícito em me receber, indicando-me não apenas uma bibliografia
de grande importância, como também os caminhos para se chegar aos melhores locais para
desenvolver minha pesquisa e obter as imagens necessárias. Agradeço também ao senhor
Federico Bianchi, do Laboratorio di elaborazione di immagini, do Dipartimento di Storia delle
arti visive e dello spettacolo da Università degli Studi di Pisa, pelo auxílio na digitalização e
tratamento de algumas muitas dezenas de imagens fundamentais para o desenvolvimento da
pesquisa na Itália, e especialmente no Brasil, quando não mais as poderia ver em seus locais
de origem. Diversas dessas imagens, como não poderia deixar de ser, ilustram esta tese. Sou
grata também ao Kunsthistorisches Institut, em Florença, e à École Française de Rome, que
me permitiram o acesso sem restrições às suas bibliotecas. Agradeço igualmente à Biblioteca
Vaticana que, embora não de forma tão solícita, propiciou-me o acesso ao Index of Christian
art, em que pude localizar uma série de pinturas que, pouco após minha chegada à Itália,
ainda não me eram conhecidas.
Agradeço ainda aos integrantes do grupo de discussão em rede Medieval Religion,
que ao longo dos anos de doutoramento foram de grande auxílio para sanar dúvidas e para me
sugerirem livros de fundamental importância para a pesquisa.
Aos amigos, que souberam ouvir com paciência minhas crises e meus dramas. À
Celma do Carmo de Souza Pinto, pela atenta leitura de capítulos e artigos, por seus
comentários e por suas palavras de incentivo e amizade nos momentos de maior desânimo.

V
Agradeço particularmente a Patricia Meneses e Matheus Figuinha, que foram de imensa ajuda
tanto no período transcorrido na Itália como após o meu retorno ao Brasil. Ambos, de fato,
ajudaram-me na pesquisa de campo ao redor da Toscana, buscando localizar as muitas
imagens necessárias para o desenvolvimento da tese – ainda que viajar pelos pequenos
comuni toscanos não fosse exatamente um grande sacrifício…; com sua amizade, tornaram a
saudade e a distância mais amenas. Após minha volta, tornaram-se meus olhos na Itália,
localizando fontes textuais e visuais que porventura descobria importantes para a pesquisa.
Sem eles, esta pesquisa talvez não tivesse se aprofundado tanto. Obrigada por me ajudarem a
decifrar Dante.
À minha família, que confiou em meu trabalho, soube sempre me apoiar nos
momentos de dificuldade, e compartilhou comigo minhas alegrias. Agradeço especialmente
aos meus pais que, com a educação que me deram e com seu incansável incentivo, fizeram-
me chegar até aqui.
Ao Daniel que, mais do que um marido, mostrou-se um verdadeiro companheiro:
ao me estimular a realizar a pesquisa na Itália, ainda que isso significasse uma separação de
vários meses e de milhares de quilômetros; ao me dar todo o apoio necessário nos momentos
mais difíceis, sabendo me acalmar e me consolar. A ele, todo o meu amor. Obrigada por ter
me suportado, em todos os sentidos.

VI
Je vais vous dire um grand secret, mon cher: n’attendez pas le
jugement dernier. Il a lieu tous les jours.

Albert Camus, La Chute

VII
RESUMO

INFERNO E PARADISO. DANTE, GIOTTO E AS REPRESENTAÇÕES DO JUÍZO FINAL


NA PINTURA TOSCANA DO SÉCULO XIV

Tamara Quírico

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Beatriz de Mello e Souza

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em


História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
História Social.

Este trabalho aborda a iconografia do Juízo final, focando especialmente as pinturas


– afrescos, mosaicos e painéis – executadas na região da Toscana entre os séculos XII e XV.
A partir das análises dos exemplos pintados até a primeira metade do Trecento, visa a discutir
as mudanças nos modos de representação do tema do Juízo final na pintura toscana do século
XIV. Para tanto, a análise se concentra em diversas questões históricas, dentro dos âmbitos
sociais, religiosos e artísticos, que de algum modo possam ter exercido influência nas
representações visuais do tema, um dos mais importantes para a cultura cristã. O Juízo final é,
com efeito, o tema escatológico por excelência, parte essencial de uma das mais fundamentais
questões que norteiam o Cristianismo: o destino do homem após a morte e após o fim do
mundo.

VIII
ABSTRACT

INFERNO AND PARADISO. DANTE, GIOTTO AND THE REPRESENTATIONS OF THE


LAST JUDGEMENT IN TUSCAN PAINTINGS OF THE 14TH CENTURY

Tamara Quírico

Under the supervision of Professor Maria Beatriz de Mello e Souza

This work studies the iconography of the Last Judgement, especially paintings –
frescos, mosaics and panels – made in the Tuscan region between the 12th and 15th centuries.
From the analyses of the examples painted until the first half of the Trecento, it aims to
discuss changes in the representation of the theme of the Last Judgement in Tuscan painting
of the 14th century. To achieve this objective, analysis focuses on several historic issues,
within social, religious and artistic realms, which may have had influence in the visual
representations of the theme, one of the most important to Christian culture. The Last
Judgement is, in fact, the eschatological theme par excellence, essential part of one of the
ultimate questions that directs Christianity: the destiny of man after death and after the end of
the world.

IX
LISTA DAS IMAGENS

1. Figuras no texto
Figura 01 – Coppo di Marcovaldo e seguidores. Batistério de San Giovanni, Florença, ca.
1270-90
Figura 02 – Coppo di Marcovaldo e seguidores. Batistério de San Giovanni, Florença, ca.
1270-90. Inferno
Figura 03 – Giotto. Capela Scrovegni, Pádua (Vêneto), 1305-07
Figura 04 – Seguidores de Giotto. Capela da Madalena, Palazzo del Bargello, Florença,
ca.1336-37. Paraíso
Figura 05 – Seguidores de Giotto. Capela da Madalena, Palazzo del Bargello, Florença,
ca.1336-37. Inferno
Figura 06 – Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Juízo final
Figura 07 – Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Inferno
Figura 08 – Nardo di Cione. Capela Strozzi, Igreja de Santa Maria Novella, Florença, ca.
1357
Figura 09 – Nardo di Cione. Capela Strozzi, Igreja de Santa Maria Novella, Florença, ca.
1357. Paraíso
Figura 10 – Nardo di Cione. Capela Strozzi, Igreja de Santa Maria Novella, Florença, ca.
1357. Inferno
Figura 11 – Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393
Figura 12 – Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Paraíso (antes da II
Guerra Mundial)
Figura 13 – Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Inferno

2. Slides na apresentação em Power Point no CD anexo


2. Mapa da Itália localizando as principais cidades que possuem pinturas com o tema do
Juízo final
3. Mapa da Toscana com algumas cidades que possuem pinturas com o tema do Juízo
final
4. Sarcófago com a separação entre ovelhas e bodes. Nova York, Metropolitan Museum,
fim do século III e início do IV
5. “Separação entre ovelhas e bodes”. Ravena, S. Apollinare Nuovo, ca. 500
6. Basílica, Sant’Angelo in Formis (Campânia), ca. 1080

X
7. Basílica, Sant’Angelo in Formis (Campânia), ca. 1080. Detalhe do Cristo juiz
8. Basílica, Sant’Angelo in Formis (Campânia), ca. 1080. Detalhe
9. Basílica, Sant’Angelo in Formis (Campânia), ca. 1080. Detalhes dos anjos
trombeteiros e ressurreição dos corpos
10. Basílica, Sant’Angelo in Formis (Campânia), ca. 1080. Detalhes dos anjos que trazem
as sentenças
11. Basílica, Sant’Angelo in Formis (Campânia), ca. 1080. Detalhe do Inferno
12. Basílica, Sant’Angelo in Formis (Campânia), ca. 1080. Detalhe do Paraíso
13. Santa Maria Assunta, Torcello (Vêneto), último quartel do século XII
14. Santa Maria Assunta, Torcello (Vêneto), último quartel do século XII. Detalhe do
Cristo juiz
15. Santa Maria Assunta, Torcello (Vêneto), último quartel do século XII. Detalhe
16. Santa Maria Assunta, Torcello (Vêneto), último quartel do século XII. Detalhes dos
anjos trombeteiros e da ressurreição dos corpos
17. Santa Maria Assunta, Torcello (Vêneto), último quartel do século XII. Detalhe da
psicostasia
18. Santa Maria Assunta, Torcello (Vêneto), último quartel do século XII. Detalhe do
Paraíso e do Seio de Abraão
19. Santa Maria Assunta, Torcello (Vêneto), último quartel do século XII. Detalhe do
Inferno
20. Coppo di Marcovaldo. Cúpula do Batistério, Florença, ca. 1270-90
21. Coppo di Marcovaldo. Batistério, Florença, ca. 1270-90. Cena do Juízo final
22. Coppo di Marcovaldo. Batistério, Florença, ca. 1270-90. Detalhe do Cristo juiz
23. Coppo di Marcovaldo. Batistério, Florença, ca. 1270-90. Detalhe da ressurreição dos
corpos
24. Coppo di Marcovaldo. Batistério, Florença, ca. 1270-90. Detalhe de Judas enforcado
no Inferno
25. Coppo di Marcovaldo. Batistério, Florença, ca. 1270-90. Detalhe do Paraíso
26. Coppo di Marcovaldo. Batistério, Florença, ca. 1270-90. Detalhe do Seio de Abraão
27. Coppo di Marcovaldo. Batistério, Florença, ca. 1270-90. Detalhe dos eleitos se
dirigindo ao Paraíso
28. Coppo di Marcovaldo. Batistério, Florença, ca. 1270-90. Detalhe do Inferno
29. Coppo di Marcovaldo. Batistério, Florença, ca. 1270-90. Detalhe do Diabo

XI
30. Coppo di Marcovaldo. Batistério, Florença, ca. 1270-90. Detalhe dos condenados se
dirigindo ao Inferno
31. Anônimo de Lucca. Museum of art, Cleveland, século XIII
32. Anônimo de Lucca. Museum of art, Cleveland, século XIII. Detalhe do Juízo final
33. Escola de Guido da Siena. Museo Diocesano, Grosseto, fim do século XIII
34. Escola de Guido da Siena. Museo Diocesano, Grosseto, fim do século XIII. Detalhe do
Cristo juiz
35. Escola de Guido da Siena. Museo Diocesano, Grosseto, fim do século XIII. Detalhe
36. Escola de Guido da Siena. Museo Diocesano, Grosseto, fim do século XIII. Detalhes
da ressurreição dos corpos
37. Escola de Guido da Siena. Museo Diocesano, Grosseto, fim do século XIII. Detalhes
do Paraíso e do Inferno
38. Santa Chiara, Assis (Úmbria), início do século XIV (?)
39. Santa Chiara, Assis (Úmbria), início do século XIV (?)
40. Giotto. Capela Scrovegni, Pádua (Vêneto), 1305-07
41. Giotto. Capela Scrovegni, Pádua (Vêneto), 1305-07. Detalhe do Cristo juiz
42. Giotto. Capela Scrovegni, Pádua (Vêneto), 1305-07. Detalhe
43. Giotto. Capela Scrovegni , Pádua (Vêneto), 1305-07. Detalhe dos eleitos e da
ressurreição dos corpos
44. Giotto. Capela Scrovegni , Pádua (Vêneto), 1305-07. Detalhe do Inferno
45. Giotto. Capela Scrovegni , Pádua (Vêneto), 1305-07. Detalhe do Diabo
46. Giotto. Capela Scrovegni , Pádua (Vêneto), 1305-07. Detalhes dos condenados
47. Jacopo di Mino del Pellicciaio (?). Capela funerária, Collegiata, Casole d’Elsa,
primeira metade do século XIV
48. Jacopo di Mino del Pellicciaio (?). Capela funerária, Collegiata, Casole d’Elsa,
primeira metade do século XIV
49. Jacopo di Mino del Pellicciaio (?). Capela funerária, Collegiata, Casole d’Elsa,
primeira metade do século XIV. Detalhe do Cristo juiz
50. Jacopo di Mino del Pellicciaio (?). Collegiata, Casole d’Elsa, primeira metade do
século XIV
51. Jacopo di Mino del Pellicciaio (?). Collegiata, Casole d’Elsa, primeira metade do
século XIV
52. Jacopo di Mino del Pellicciaio (?). Collegiata, Casole d’Elsa, primeira metade do
século XIV. Detalhe do Cristo juiz

XII
53. Lippo di Benvieni. Coleção privada, Panamá, primeira metade do século XIV (?)
54. Lippo di Benvieni. Coleção privada, Panamá, primeira metade do século XIV (?).
Detalhe do Cristo juiz
55. Mestre de San Martino alla Palma. Reconstrução do políptico, primeira metade do
século XIV (?)
56. Mestre de San Martino alla Palma. Historical Society, Nova York. Painel do Juízo
final, primeira metade do século XIV (?)
57. Mestre de San Martino alla Palma. Historical Society, Nova York. Painel do Juízo
final, primeira metade do século XIV (?). Detalhe do Cristo juiz
58. Mestre de San Martino alla Palma. Historical Society, Nova York. Painel do Juízo
final, primeira metade do século XIV (?). Detalhe dos anjos que trazem as sentenças
59. Maestro dell’effigi domenicane. Metropolitan Museum, Nova York, primeira metade
do século XIV
60. Maestro dell’effigi domenicane. Metropolitan Museum, Nova York, primeira metade
do século XIV. Detalhe do Juízo final
61. Maestro dell’effigi domenicane. Metropolitan Museum, Nova York, primeira metade
do século XIV. Detalhe do Cristo juiz
62. Maestro dell’effigi domenicane. Metropolitan Museum, Nova York, primeira metade
do século XIV. Detalhe dos anjos que trazem as sentenças
63. Seguidor de Segna. Musée des Tapisseries, Angers, ca. 1320
64. Seguidor de Segna. Musée des Tapisseries, Angers, ca. 1320. Detalhe do Cristo juiz
65. Maso di Banco. Capela dei Confessori, Santa Croce, Florença, 1336. Visão geral do
túmulo Bardi
66. Maso di Banco. Capela dei Confessori, Santa Croce, Florença, 1336
67. Maso di Banco. Capela dei Confessori, Santa Croce, Florença, 1336. Detalhe do Cristo
juiz
68. Seguidores de Giotto. Capela da Madalena, Palazzo del Bargello, Florença, ca.1336-
37. Paraíso
69. Seguidores de Giotto. Capela da Madalena, Palazzo del Bargello, Florença, ca.1336-
37. Juízo final
70. Seguidores de Giotto. Capela da Madalena, Palazzo del Bargello, Florença, ca.1336-
37. Detalhe do Diabo
71. Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Trionfo della Morte
72. Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Detalhe do Trionfo della Morte

XIII
73. Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Juízo final e Inferno
74. Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Juízo final
75. Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Juízo final. Detalhe do Cristo
juiz
76. Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Juízo final. Detalhe da
ressurreição dos corpos
77. Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Juízo final. Detalhe dos anjos
trombeteiros e dos anjos que trazem as sentenças
78. Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Inferno
79. Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Inferno. Detalhe do Diabo
80. Bonaccorso di Cino. Ospedale della Misericordia, Prato, 1345. Detalhe
81. Ambrogio Lorenzetti. “Alegoria da Redenção”, Siena, Pinacoteca Nazionale, ca. 1345
82. Ambrogio Lorenzetti. “Alegoria da Redenção”, Siena, Pinacoteca Nazionale, ca. 1345.
Detalhe do Juízo final
83. Andrea Orcagna. Santa Croce, Florença, ca. 1350. Fragmentos do Inferno
84. Andrea Orcagna. Santa Croce, Florença, ca. 1350. Detalhe do Diabo
85. Andrea Orcagna. Santa Croce, Florença, ca. 1350. Fragmento do Trionfo della Morte
86. Assistente de Bernardo Daddi. Galleria dell’Accademia, Florença, 1345
87. Assistente de Bernardo Daddi. Galleria dell’Accademia, Florença, 1345. Detalhe do
Juízo final
88. Assistente de Bernardo Daddi. Galleria dell’Accademia, Florença, 1345. Detalhe do
Cristo juiz
89. Assistente de Bernardo Daddi. Galleria dell’Accademia, Florença, 1345. Detalhe dos
anjos que trazem as sentenças
90. Nardo di Cione. Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357. Visão geral da Capela
Strozzi
91. Nardo di Cione. Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357. Juízo final
92. Nardo di Cione. Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357. Detalhe do Cristo juiz
93. Nardo di Cione. Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357. Detalhe da ressurreição dos
corpos
94. Nardo di Cione. Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357. Paraíso
95. Nardo di Cione. Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357. Inferno
96. Nardo di Cione. Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357. Detalhe do Diabo
97. Nardo di Cione. Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357. Detalhes dos condenados

XIV
98. Mestre da Misericordia dell’Accademia. “Juízo final, Vir dolorum entre os símbolos
da Paixão e lamento sobre o Cristo morto”, Pinacoteca Nazionale, Bolonha, 1360-65
99. Mestre da Misericordia dell’Accademia. “Juízo final, Vir dolorum entre os símbolos
da Paixão e lamento sobre o Cristo morto”, Pinacoteca Nazionale, Bolonha, 1360-65.
Detalhe
100.Mestre da Misericordia dell’Accademia. “Juízo final, Vir dolorum entre os símbolos
da Paixão e lamento sobre o Cristo morto”, Pinacoteca Nazionale, Bolonha, 1360-65.
Detalhe do Juízo final
101.Mestre da Misericordia dell’Accademia. “Juízo final, Vir dolorum entre os símbolos
da Paixão e lamento sobre o Cristo morto”, Pinacoteca Nazionale, Bolonha, 1360-65.
Detalhe do Cristo juiz
102.Mestre da Misericordia dell’Accademia. “Juízo final, Vir dolorum entre os símbolos
da Paixão e lamento sobre o Cristo morto”, Pinacoteca Nazionale, Bolonha, 1360-65.
Detalhe dos anjos que trazem as sentenças
103.Gherardo Starnina. Alte Pinakothek, Munique, ca. 1360
104.Gherardo Starnina. Alte Pinakothek, Munique, ca. 1360. Detalhe do Cristo juiz
105.Gherardo Starnina. Alte Pinakothek, Munique, ca. 1360. Detalhe da separação entre
eleitos e condenados
106.Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Juízo final
107.Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Detalhe do Cristo juiz
108.Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Detalhe dos pergaminhos
que trazem as sentenças
109.Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Paraíso
110.Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Inferno
111.Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Detalhe do Diabo
112.Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Detalhes dos condenados
113. Giovanni di Paolo. “Cristo penitente e Cristo triunfante”, Pinacoteca Nazionale,
Siena, primeira metade do século XV
114.Giovanni di Paolo. “Cristo penitente e Cristo triunfante”, Pinacoteca Nazionale, Siena,
primeira metade do século XV. Detalhe do Cristo penitente
115.Giovanni di Paolo. “Cristo penitente e Cristo triunfante”, Pinacoteca Nazionale, Siena,
primeira metade do século XV. Detalhe do Juízo final
116.Giovanni di Paolo. “Cristo penitente e Cristo triunfante”, Pinacoteca Nazionale, Siena,
primeira metade do século XV. Detalhe do Cristo juiz

XV
117.Giovanni di Paolo. “Cristo penitente e Cristo triunfante”, Pinacoteca Nazionale, Siena,
primeira metade do século XV. Detalhe da separação entre eleitos e condenados
118.Giovanni dal Ponte. Catedral, Pistóia, ca. 1420. Fragmento do Juízo final
119.Giovanni dal Ponte. Catedral, Pistóia, ca. 1420. Paredes do Juízo final e do Inferno
120.Giovanni dal Ponte. Catedral, Pistóia, ca. 1420. Detalhe de São João Batista, do anjo
trombeteiro e dos anjos com as Arma Christi
121.Giovanni dal Ponte. Catedral, Pistóia, ca. 1420. Detalhe de São João Batista e do anjo
trombeteiro
122.Giovanni dal Ponte. Catedral, Pistóia, ca. 1420. Fragmentos do Juízo final e do Inferno
123.Fra Angelico. Museo di San Marco (originalmente na Igreja de Santa Maria degli
Angeli), Florença, ca. 1431
124.Fra Angelico. Museo di San Marco, Florença, ca. 1431. Detalhe do Cristo juiz
125.Fra Angelico. Museo di San Marco, Florença, ca. 1431. Detalhe da ressurreição dos
corpos
126.Fra Angelico. Museo di San Marco, Florença, ca. 1431. Detalhes do Paraíso e do
Inferno
127.Fra Angelico. Museo di San Marco, Florença, ca. 1450. Fragmento do Armadio degli
Argenti
128.Fra Angelico. Museo di San Marco, Florença, ca. 1450. Fragmento do Armadio degli
Argenti. Detalhe do Cristo juiz
129.Fra Angelico. Staatliche Museum, Berlim, ca. 1450
130.Fra Angelico. Staatliche Museum, Berlim, ca. 1450. Detalhe do Cristo juiz
131.Fra Angelico. Staatliche Museum, Berlim, ca. 1450. Detalhe do Paraíso e do Inferno
132.Fra Angelico. Galleria Corsini, Roma, ca. 1450
133.Bicci di Lorenzo. San Francesco, Arezzo, 1447-1452
134.Bicci di Lorenzo. San Francesco, Arezzo, 1447-1452
135.Lorenzo di Pietro, il Vecchietta. Batistério, Siena, 1450-1453
136.Lorenzo di Pietro, il Vecchietta. Batistério, Siena, 1450-1453
137.Lorenzo di Pietro, il Vecchietta. Batistério, Siena, 1450-1453. Detalhe do Cristo juiz
138.Lorenzo di Pietro, il Vecchietta. Batistério, Siena, 1450-1453. Detalhe da entrada do
Inferno
139.Lorenzo di Pietro, il Vecchietta. Batistério, Siena, 1450-1453. Ressurreição dos corpos
140.Lorenzo di Pietro, il Vecchietta. Batistério, Siena, 1450-1453. Ressurreição dos corpos

XVI
141. Giovanni di Paolo. Pinacoteca Nazionale, Siena, ca. 1460-65. Predella e detalhe da
parte central
142. Giovanni di Paolo. Pinacoteca Nazionale, Siena, ca. 1460-65. Detalhe do Paraíso
143. Giovanni di Paolo. Pinacoteca Nazionale, Siena, ca. 1460-65. Detalhe do Inferno
145. Pietro Cavallini. Santa Cecilia in Trastevere, Roma (Lazio), fim do século XIII.
Fragmento remanescente e detalhe do Cristo juiz
146. Anônimo bolonhês. Pinacoteca Nazionale, Bolonha,
147. Dello, Nicola e Sansone Delli. Antiga catedral, Salamanca (Espanha), ca. 1439
148. Dello, Nicola e Sansone Delli. Antiga catedral, Salamanca (Espanha), ca. 1439.
Detalhe do Cristo juiz
149. Fra Angelico. Duomo, Orvieto (Úmbria), 1447-1450. Cristo juiz
150. Luca Signorelli. Duomo, Orvieto (Úmbria), 1499-1506. Coroação dos eleitos
151. Luca Signorelli. Duomo, Orvieto (Úmbria), 1499-1506. Os condenados
152. Luca Signorelli. Duomo, Orvieto (Úmbria), 1499-1506. Paraíso e Inferno
153. Fra Bartolomeo. Museo di San Marco (originalmente no Chiostro delle Ossa),
Florença, 1499-1500
154. Fra Bartolomeo. Museo di San Marco, Florença, 1499-1500. Detalhe do Cristo juiz
155. Michelangelo Buonarroti. Capela Sistina, Vaticano (Lazio), 1536-41
156. Michelangelo Buonarroti. Capela Sistina, Vaticano (Lazio), 1536-41. Detalhe do
Cristo juiz
158. Jan e Hubert Van Eyck. Crucificação e Juízo final. Nova York, Metropolitan Museum
of art, 1420/25
159. Rogier Van der Weyden. Hôtel-Dieu, Beaune, 1446-50
160. Rogier Van der Weyden. Hôtel-Dieu, Beaune, 1446-50. Detalhes do Paraíso e do
Inferno
161. Hans Memling. Porskie Museum, Gdansk, 1466-70
162. Hans Memling. Porskie Museum, Gdansk, 1466-70. Detalhes do Paraíso e do Inferno
164. Biblioteca Capitolare, Perugia, Missal de San Giovanni d’Acri, fim do século XIII (?)
165. Coleção privada, Nova York, Gradual, ca. 1270-80
166. Coleção privada, Nova York, Gradual, ca. 1270-80. Detalhe do Juízo final
167. Maestro dell’effigi domenicane. Quinze iluminuras para o Tratactus de virtutibus et
vitiis, meados do século XIV (?). Fólio 29, Juízo final
168. Mestre Florentino. Florença, Biblioteca Nazionale, ca. 1355. Fólio 64, Juízo final

XVII
169. Mestre Florentino. Florença, Biblioteca Nazionale, ca. 1355. Fólio 64, Juízo final.
Detalhe do Cristo juiz
170. Niccolò da Bologna. “Anunciação e Juízo final”, Bayerische Staatsbibliothek,
Munique, segunda metade do século XIV
171. Niccolò da Bologna. “Anunciação e Juízo final”, Bayerische Staatsbibliothek,
Munique, segunda metade do século XIV. Detalhe do Juízo final
172. Niccolò da Bologna. “Cenas da vida de Cristo”, Bayerische Staatsbibliothek,
Munique, segunda metade do século XIV
173. Niccolò da Bologna. “Cenas da vida de Cristo”, Bayerische Staatsbibliothek,
Munique, segunda metade do século XIV. Detalhe do Juízo final
174. Lorenzo Monaco (Piero di Giovanni). Metropolitan Museum, Nova York,
Antifonarium, ca. 1406-07
175. Lorenzo Monaco (Piero di Giovanni). Metropolitan Museum, Nova York,
Antifonarium, ca. 1406-07. Detalhe do Cristo juiz
176. Filippo di Matteo Torelli. Museo Nazionale del Bargello, Florença, após 1407
177. Bartolomeo di Fruosino. Bibliothèque Nationale, Paris, Fólio do Inferno, primeira
metade do século XV (?)
178. Bartolomeo di Fruosino. Bibliothèque Nationale, Paris, Fólio do Inferno, primeira
metade do século XV (?). Detalhe do Diabo
179. Filippo di Matteo Torelli. Biblioteca Laurenziana, Florença, Evangeliarium, 1466
180. Filippo di Matteo Torelli. Biblioteca Laurenziana, Florença, Evangeliarium, 1466.
Detalhe do Juízo final
182. Tímpano da portada central da igreja abacial de Sainte-Foy, Conques (França), início
do século XII
183. Tímpano da portada central da igreja abacial de Sainte-Foy, Conques (França), início
do século XII. Detalhe do Inferno
184. Tímpano da portada central da igreja abacial de Sainte-Foy, Conques (França), início
do século XII. Detalhe de Santa Fé intercedendo junto à mão de Deus
185. Tímpano da catedral de Saint-Lazare, Autun (França), 1130-1145
186. Tímpano da catedral de Saint-Lazare, Autun (França), 1130-1145. Detalhe da
psicostasia
187. Túmulo de Inês de Castro. Mosteiro de Alcobaça (Portugal), segunda metade do
século XIV
189. O gesto do Cristo juiz nas representações do tema antes de 1340

XVIII
190. Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Juízo final. Detalhe do Cristo
juiz
191. O gesto do Cristo juiz nas representações do tema após 1340

XIX
SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS IV

RESUMO VIII

ABSTRACT IX

LISTA DAS IMAGENS


1. Figuras no texto X
2. Slides na apresentação em Power Point no CD anexo X

APRESENTAÇÃO 22

INTRODUÇÃO – Discussão historiográfica: os problemas da atribuição e da datação –


o caso do ciclo do Trionfo della Morte no Camposanto de Pisa
1. Introdução 36
2. O ciclo do Juízo final de Taddeo di Bartolo em San Gimignano 38
3. O debate sobre a datação do ciclo do Trionfo della Morte no Camposanto de
Pisa 44
4. Os problemas da atribuição e da datação 52

CAPÍTULO I – Peste e escatologia. Os efeitos da expectativa da morte sobre a


religiosidade do século XIV
1. Introdução 62
2. Significações do Juízo final para as crenças cristãs 62
3. A Peste Negra e os indicadores demográficos 76
4. Conseqüências sobre as práticas religiosas 82
5. A Peste Negra interpretada em chave escatológica 89

CAPÍTULO II – A iconografia do Juízo final na Toscana


1. Introdução 110
2. A virada do milênio 111
3. Origens da iconografia do Juízo final 113
4. O Cristo juiz 121
5. A ressurreição dos corpos e a separação entre eleitos e condenados 130
6. A psicostasia 141

XX
7. A relação entre o tema do Juízo final e o tema da Paixão de Cristo 150

CAPÍTULO III – Dante, Giotto e as representações do Juízo final na Toscana


1. Introdução 160
2. O tema do tema do Juízo final nos ciclos de afrescos toscanos no século XIV:
revisão da tese de Millard Meiss 161
3. Mudanças nos modos de representação do tema do Juízo final 164
4. Hipóteses para as mudanças iconográficas 176
5. Dante e Giotto 187
6. Os mendicantes, a conversão dos leigos e o tema do Juízo final 216

CAPÍTULO IV – As funções do Juízo final como imagem religiosa


1. Introdução 221
2. Compreensão de uma imagem a partir de sua localização no edifício 223
3. Funções das imagens 236
4. Funções de imagens com o tema do Juízo final 246
5. Representações do Paraíso e do Inferno no contexto do Juízo final 250

CONCLUSÃO 277

ANEXO I – Citações bíblicas referentes ao retorno do Senhor, ao julgamento dos


homens e ao Além 282

ANEXO II – Cronologia de pinturas com o tema do Juízo final 300

ANEXO III – Tipologia do Cristo juiz 305

ANEXO IV – Imagens 310

REFERÊNCIAS
1. Fontes primárias 321
2. Fontes secundárias
2.1. Obras de referência 322
2.2. Livros ou estudos 323
2.3. Dissertações e teses 338
2.4. Periódicos 338
3. Referências eletrônicas 345

XXI
APRESENTAÇÃO

A
idéia de que Cristo retornaria ao fim dos tempos, para julgar os

homens, remonta às origens do Cristianismo. A Parúsia, ou segunda

vinda do Senhor, é mencionada em diversos trechos da Bíblia. Ela

significa que não apenas os corpos ressuscitarão no último dia, como também que todos

serão julgados pelo Cristo juiz. Essa noção de julgamento, assim como a decorrente

possibilidade de salvação após a morte, é um dos elementos primordiais a consolidar a

representação visual do Juízo final.

O Juízo final é um dos temas mais relevantes para os cristãos, como bem o indica o Credo de Nicéia

de 325. A importância do Juízo final é imensa, uma vez que “recapitula a história inteira do universo criado”,

como escreve Pamela Sheingorn1. É quando o objetivo final da religião cristã se concretiza, quando os eleitos

serão apartados em definitivo dos condenados e poderão gozar da eternidade ao lado do Criador. Em sociedades

em que o Cristianismo orientava a cultura e a concepção de mundo, como eram as do Ocidente medieval, pode-

se inferir a importância concedida ao Juízo final nesse período. O historiador francês Georges Duby, com efeito,

as define como uma

Sociedade fortemente hierarquizada, que atribuía ao invisível idêntica realidade e


ainda mais poder do que ao visível e não acreditava que a morte fosse o fim do
destino individual (…).2

E, conforme complementa Jacques Le Goff, provavelmente o mais importante medievalista vivo, “o Além é um

dos grandes horizontes das religiões e da sociedade. A vida do fiel muda quando pensa que nem tudo é decidido

com a morte”3. Os temas da morte e das possibilidades post-mortem, desse modo, são indissociáveis ao do Juízo

final tanto na iconografia como nas mentalidades e nas práticas cristãs.

Os rituais da Igreja indicam elementos de relevância para a compreensão do tema. É este o caso da

récita do Credo de Nicéia, que ocorre durante as missas. A oposição entre Paraíso e Inferno, por exemplo, fora

explicitada pelo Cristo que, crucificado, “desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia e subiu aos

1
“‘For God is such a Doomsman’: origins and development of the theme of Last Judgment”. In: BEVINGTON,
D. et alii. Homo, memento finis. The iconography of Just Judgment in Medieval art and drama. Kalamazoo:
Western Michigan University, 1985, p. 16. As traduções para o português ao longo de todo o texto foram
realizadas pela autora da pesquisa, exceto quando houver menção em contrário.
2
DUBY, G. et alii. História artística da Europa. A Idade Média, Tomo I (trad. Mário Correia). São Paulo: Paz
e Terra, 1997, p. 15.

XXII
céus”. O Credo segue afirmando que Ele “está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a

julgar os vivos e os mortos”4. Esse episódio da descida de Jesus Cristo ao mundo dos mortos e Sua posterior

ressurreição é de fundamental importância para o homem cristão, e será assim considerado por esta pesquisa: é

uma das provas da divindade do Cristo, e também a promessa da ressurreição de todos os homens no último dia

para o derradeiro julgamento. De fato, antes do sacrifício de Cristo e da posterior redenção da humanidade, o

Paraíso estava fechado. Por isso São Paulo exclama: “se Cristo não ressuscitou, é inútil nossa pregação e inútil

nossa fé”5.

Em virtude de sua relevância para o Cristianismo, não é difícil compreender o destaque do tema em

diferentes representações visuais desde o final do período romano. Uma das primeiras obras conhecidas a evocar

o Juízo final, de fato, é a figuração do Cristo pastor que separa o rebanho, em um sarcófago cristão, de fins do

século III e início do IV. O Juízo final possui, sem dúvida, uma grande importância para a cultura cristã, e sua

manifestação artística apresenta uma enorme permanência ao longo dos séculos. Além dos diversos exemplos

encontrados ao longo de toda a Idade Média, como os relevos das portadas das catedrais, assim como afrescos e

mosaicos, modelos posteriores também são numerosos em outras regiões: podem-se mencionar telas como as de

Jean Cousin (século XVI), Jacob Jordaens (1653), Peter Paul Rubens (ca. 1620), Peter Von Cornelius (1845),

John Martin (1853) e mesmo duas telas de origem russa: uma de Viktor Vasnetsov (1904), e uma de Wassily

Kandinsky – precursor do abstracionismo – pintada em 1910. Exemplos também não se restringem ao Ocidente:

com efeito, o Museu do Vaticano possui em seu acervo uma pintura vietnamita do século XVIII sobre o tema.

A elaboração da iconografia de um tema tão complexo quanto o do Juízo final não foi tarefa simples.

Vários problemas se impunham aos artistas ao abordar o tema. Por exemplo, como organizar um evento tão

vasto e complexo – que recapitula toda a história da humanidade, como afirma Sheingorn –, com tão grande

número de personagens e episódios individuais em uma única imagem? Como estabelecer uma coerência nessa

profusão de figuras, de modo que a mensagem pudesse ser facilmente apreendida pelos fiéis que observassem a

cena?

É preciso enfatizar um ponto: no caso de imagens religiosas de modo geral, deve-se

considerar que ela é dependente de um texto fundamental – a Bíblia, e do que aqui está escrito

não se pode escapar. Se as Escrituras narram, por exemplo, o episódio de Daniel na cova dos

3
La naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1996, p. 10.
4
“Tertia die resurrexit a mortuis, ascendit ad coelos, sedet ad dextram Dei Patris omnipotentis, inde venturus
est iudicare vivos et mortuos, Credo in Spiritum Sanctum, sanctam Ecclesian catholicam, sanctorum
communionem, remissionem peccatorum, carnis resurrectionem, et vitam aeternam”.

XXIII
leões, nenhum artista poderia supor ser possível representar outro animal que não um leão. A

gama de possibilidades que se coloca a partir desses elementos básicos – Daniel e leões –, no

entanto, é bastante variada: podem ser representados dois leões, um de cada lado de Daniel,

como será comum nas representações medievais do tema, particularmente nos capitéis, mas

poderiam ser incluídas dezenas de leões. Pode-se colocar Daniel simplesmente em pé entre os

leões, mas é possível igualmente representá-lo colocando suas mãos nas bocas desses animais,

tornando mais explícito o texto bíblico, que descreve como os animais não o atacam durante a

noite6. Percebe-se como o artista – ou o comitente da obra – possui uma certa liberdade em

relação ao texto. Não se trata, decerto, de liberdade de interpretação teológica, mas a

possibilidade de opção por composições iconográficas diversas. Essa liberdade visual que a

interpretação de um texto ou de um evento possui é essencial para a compreensão das

transformações iconográficas que ocorrem ao longo do tempo nas figurações de temas

diversos. É o que ocorre nas representações visuais do Juízo final, cerne para toda a

argumentação desta pesquisa.

O Juízo final, no entanto, não é descrito em uma passagem específica da Bíblia. Há

menções a ele em trechos tanto do Antigo como do Novo Testamentos, a partir dos quais se

pôde conceber uma imagem – mental e visual – do evento. É preciso considerar ainda que, a

rigor, a representação do tema do Juízo final não é nem imago (imagem de uma figura) nem

historia (narrativa de um fato passado), uma vez que não se refere a uma personagem

específica, e sim a toda a humanidade, nem se trata de um acontecimento passado, mas de

algo que ainda está por vir. Decorrem desses pontos as dificuldades de transposição do tema

5
1Cor 15, 14.
6
“Então o rei ordenou que trouxessem a Daniel, e lançaram-no na cova dos leões (…). E foi trazida uma pedra e
posta sobre a boca da cova; e o rei a selou com o seu anel e com o anel dos seus senhores, para que não se
mudasse a sentença acerca de Daniel (…). Pela manhã, ao romper do dia, levantou-se o rei, e foi com pressa à
cova dos leões. E, chegando-se à cova, chamou por Daniel com voz triste; e disse o rei a Daniel: ‘Daniel, servo
do Deus vivo, dar-se-ia o caso que o teu Deus, a quem tu continuamente serves, tenha podido livrar-te dos
leões?’. Então Daniel falou ao rei: ‘Ó rei, vive para sempre! O meu Deus enviou o seu anjo, e fechou a boca dos
leões, para que não me fizessem dano, porque foi achada em mim inocência diante dele; e também contra ti, ó
rei, não tenho cometido delito algum’”. Dan 6, 16-22.

XXIV
para uma representação visual.

Desde a aparição das primeiras manifestações visuais do tema, a forma de elaboração do Juízo final

foi sofrendo alterações. Mudanças suscitadas não apenas por questões artísticas, de modo a se buscar a melhor

forma de figuração do assunto, mas também por transformações mentais nas sociedades do Ocidente. Diversos

fatores poderiam ser citados para mostrar como modificações sociais e outros acontecimentos históricos – por

exemplo, o surto de peste no século XIV, que dizimou cerca de dois terços da população européia – acarretavam

novas idéias, mentalidades e crenças que, por sua vez, poderiam alterar a forma de conceber esse tema. A Peste

Negra foi um verdadeiro divisor de águas na história das mentalidades em relação a questões como morte,

escatologia e salvação. A partir da segunda metade do século XIV, quando o homem se deparou de modo mais

concreto com a possibilidade da morte iminente, a penitência ganhou novo ímpeto como forma de religiosidade.

A epidemia parece ter tido efeitos duradores sobre as sociedades medievais. Basta mencionar as bem conhecidas

manifestações dos Bianchi, que em 1399 – meio século, portanto, após o primeiro grande surto – promoveram

uma série de procissões, a partir do norte da Península Itálica e chegando ao menos até Roma; as pessoas que

participavam das procissões, além de pedirem por paz, clamavam pela misericórdia divina, para que a peste, que

parecia retornar com força, não chegasse às suas cidades.

A menção à Peste Negra é justificada: é a partir dela que o historiador americano Millard Meiss, em

1951, buscou explicar as mudanças na arte toscana da segunda metade do século XIV, e foi dessa premissa que

partiu também a presente pesquisa. Sem dúvida, muitos foram os artistas atingidos pela peste, dentre eles

grandes mestres como os irmãos Lorenzetti, Pietro (ca. 1280-1348) e Ambrogio (ca. 1290-1348). É possível

definir a geração de artistas que veio após o surto como uma espécie de “geração subtraída”, uma geração que,

ao contrário do que ocorrera ao longo de todo o período medieval, não possuía mais diretamente presente a

figura do mestre, apenas sua produção artística. Essa ausência terá influenciado o desenvolvimento artístico do

período, pela falta de um professor que pudesse ensinar e guiar os novos artistas7. Como escreve Sherwood

Fehm ao analisar a produção do pintor sienense Luca di Tommè (ca. 1330-1390), se pouco após a epidemia

ainda seria possível perceber nas obras desses artistas os novos elementos pictóricos trazidos por grandes mestres

como Giotto di Bondone (1267-1337) e os Lorenzetti, ao final da década de 1350 essas inovações parecem ter

sido abandonadas8. Os anos que precederam imediatamente e que se seguiram à grande epidemia foram talvez os

7
Afirma Meiss que “[a ausência dos grandes mestres] deu aos mestres sobreviventes, especialmente aos mais
jovens, uma súbita, inesperada independência e uma liberdade especial para o desenvolvimento de novos
estilos”. Painting in Florence and Siena after the Black Death. Princeton: Princeton University, 1964, p. 66.
8
Cf. Luca di Tommè. A Sienese fourteenth-century painter. Carbondale: Southern Illinois University, 1986, p.
05.

XXV
mais lúgubres para todos. A idéia mais difundia foi a de que a peste, “um inegável triunfo da morte”, foi causada

“pela corrupção moral do homem e pela cólera de Deus”9. A peste era vista especialmente como um castigo

divino.

Esta tese discute a iconografia do tema do Juízo final. De início a intenção era analisar as

possibilidades de influência da Peste Negra sobre essa iconografia. Entretanto, as pesquisas, levantamentos e

observações feitas ao longo do doutoramento mostraram outro quadro diverso, que foi discutido ao longo do

texto.

A pesquisa se desenvolveu a partir de pinturas realizadas na região da Toscana com o tema do

Juízo final. O trabalho teve como delimitação cronológica básica duas obras sobre o Juízo realizadas nessa

região: o mosaico atribuído a Coppo di Marcovaldo e seu ateliê, no interior da cúpula do Batistério de San

Giovanni, em Florença, realizado na segunda metade do século XIII (slides 20 a 30), e o painel de

Giovanni di Paolo, atualmente no acervo da Pinacoteca Nazionale, em Siena, pintado com toda

probabilidade entre 1460 e 1465 (slides 141 a 143). O mosaico florentino é, possivelmente, a mais antiga

pintura com o tema realizada na região. Entretanto, obras anteriores ao Duecento, e que não foram

executadas na Toscana, embora realizadas na Península Itálica, – o afresco de Sant’Angelo in Formis

(slides 06 a 12) e o mosaico de Torcello (slides 13 a 19) –, foram incluídas nas análises devido à sua

importância como modelos para obras posteriores; o afresco de Sant’Angelo in Formis, realizado por

volta de 1080, pode ser considerado o precursor de todas as outras pinturas estudadas por esta pesquisa,

uma vez que é a mais antiga obra com o tema do Juízo final na Península Itálica a ter chegado aos dias de

hoje.

Com essa demarcação temporal foi possível inferir as mudanças ocorridas na iconografia do

tema no período proposto. A pesquisa se interrompe no século XV porque, como afirma Hans Belting, a

partir desse momento começam a surgir outras preocupações com relação às pinturas que são estranhas

às concepções medievais sobre as imagens, ligando-se, outrossim, à emergência do humanismo. Como

escreve o autor, “a imagem se tornou um objeto de reflexão assim que convidou o observador a não

interpretar o tema de modo literal mas a olhar a idéia artística por trás da obra” 10. Decerto, não se

esquece que desde o século XIV a beleza do trabalho encomendado era uma das exigências usualmente

encontradas nos contratos, solicitando o comitente que a pintura a ser realizada fosse più bella che si può –

9
MEISS, M. Op. cit., p. 75.
10
Likeness and presence. A History of the image before the era of art (trad. E. Jephcott). Chicago e Londres:
University of Chicago, 1994, p. 472.

XXVI
a mais bela possível. Afinal, como recorda Borsook, a beleza “era o mais aparente atributo da

santidade”11 . A partir do Quattrocento, porém, começa-se a falar em arte, “que insere um novo nível de

significado entre a aparência visual da imagem e a compreensão do observador”12.

Questões referentes ao desenvolvimento da iconografia do Juízo final já foram discutidas pela autora

de modo sucinto na dissertação de mestrado desenvolvida entre 2001 e 2003 na Universidade Estadual de

Campinas13, cujo foco se concentrava na iconografia do Juízo final de Michelangelo, na Capela Sistina (slides

155 e 156). A discussão sobre a formatação de uma iconografia tão complexa como a do Juízo final remeteria a

uma imensa gama de questões que fugia ao escopo da pesquisa naquele momento – sua problemática, com

efeito, não poderia ser abarcada em poucas páginas. Elas foram comentadas tangencialmente apenas na medida

em que fossem consideradas relevantes para o estudo específico do Juízo sistino.

O presente trabalho foi centrado em algumas obras específicas: os afrescos realizados na

Capela da Madalena ou del Podestà, no Palazzo del Bargello, em Florença (slides 68 a 70), e o ciclo do

Trionfo della Morte executado no Camposanto de Pisa (slides 71 a 79). O debate com relação à datação

dessas pinturas – especialmente à do ciclo pisano, motivo de controvérsia até hoje entre os historiadores

da arte –, assim como a discussão sobre suas inovações iconográficas e compositivas, norteou o

desenvolvimento da pesquisa e a discussão das hipóteses apresentadas. Na análise das obras, não se pôde

menosprezar a importância de Dante Alighieri (1265-1321) e sua Commedia, cujo aporte sobre as

mudanças na tradição iconográfica do tema se mostrou maior do que havia sido estimado de início pela

autora deste trabalho.

Deve-se destacar que, embora diversos autores já tenham discutido as relações entre arte, religião e

sociedade, e mesmo a possível influência do surto de peste sobre a arte do século XIV na Itália, nenhum deles

discute particularmente o tema do Juízo final, menos ainda a problemática de sua representação. Meiss, detendo-

se sobre a influência da Peste Negra sobre a pintura de Siena e Florença, dedica não mais do que quatro páginas

ao tema do Juízo final. Diana Norman, por sua vez, discute em apenas um capítulo de seu livro Siena, Florence

and Padua: art, society and religion 1280-1400 (lançado em 1995) a problemática da peste, sem mencionar um

exemplo sequer sobre o tema do Juízo. As grandes exceções talvez sejam Yves Christe e Jérôme Baschet.

Christe é um dos grandes especialistas da atualidade com relação a representações do Apocalipse, e em diversos

11
The mural painters of Tuscany from Cimabue to Andrea del Sarto. Londres: Phaidon, 1960, p. 10.
12
BELTING, H. Op. cit., p. 16.
13
QUÍRICO, T. O Juízo final de Michelangelo. Questões iconográficas e a polêmica do Cinquecento sobre o
afresco sistino (dissertação de mestrado). Campinas: Unicamp, 2003.

XXVII
textos aborda questões referentes ao tema do Juízo final; em um livro trata especificamente de suas

representações na França e na Itália, embora, por se tratar de uma obra de divulgação, não aprofunde a

problemática dessas figurações. Baschet, por sua vez, se debruça especificamente nas discussões sobre os modos

de representação do Inferno – que se relacionam, sem dúvida, às figurações do Juízo final, mas cujas

especificidades impedem que o autor se aprofunde também em questões particulares sobre os modos de

representação do Juízo. Este é um dos principais diferenciais desta tese em relação a pesquisas anteriores, e onde

reside parte de seu ineditismo.

Assim, a importância da pesquisa ora apresentada está, de certo modo, no caráter

inédito de seu tema, cuja relevância, em última instância, não se restringe a um âmbito

regional ou mesmo temporal. O trabalho discute temas teológicos que são de longa

permanência, como o destino do homem, a vida após a morte, a ressurreição e a salvação. A

pesquisa é, nesse sentido, ainda bastante atual: basta mencionar que, em 2004, uma enquete

realizada pela revista americana Newsweek revelou que nada menos do que 17% dos norte-

americanos esperavam que o mundo acabasse ainda durante suas vidas – quase um quinto da

população aguardando o Juízo final para, no máximo, daqui a cinqüenta anos. Um dado

bastante expressivo e significativo14. Ele mostra a importância que a escatologia possui ainda

hoje para alguns segmentos das sociedades contemporâneas. Assim como ocorrera na Idade

Média após o surto de peste, muitos interpretaram os acontecimentos desde o 11 de setembro

de 2001 como um prenúncio do fim do mundo que se aproximaria.

Dessa forma, o medo do julgamento final e a expectativa da salvação eterna – ou

dos tormentos infinitos – que acompanhavam os cristãos do século XIV ao longo de toda sua

vida também serão melhor compreendidos com esse trabalho; as representações do tema no

período foram, com efeito, um reflexo desses anseios. Portanto, o trabalho também servirá

para uma melhor compreensão da sociedade mesma que criou e se perpetuou através dessas

obras, consideradas atualmente monumentos artísticos.

14
Cf. RICH, F. “Em filme, Bush tem direito divino ao poder”. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 02 de outubro
de 2004, p. A1.

XXVIII

Ao longo do texto são tratados diversos conceitos, que nortearam de algum modo

os desenvolvimentos do trabalho. Alguns deles serão apresentados agora, devido à grande

importância que possuem.

Deve-se primeiramente definir o conceito de mentalidade, particularmente relevante

para o tema em questão. Ele será utilizado ao longo da pesquisa de acordo com a acepção do

medievalista Jacques Paul, que segue por sua vez o pensamento de Le Goff. É definido como

(…) um conjunto de pressupostos que guiam as sensibilidades, a reflexão e os


comportamentos e que, desse modo, inscrevem-se nos discursos e nas ações, sejam
comuns ou excepcionais. Essas disposições, esses hábitos e mesmos esses elementos
de cultura consciente formam um tecido cerrado e durável (…). Enraizadas como
noções primeiras ou como referências de base, as estruturas mentais não são postas
15
em questão que em último lugar e ao fim de uma grave crise de consciência.

A idéia de castigo perene, essencial quando se trata das conseqüências do Juízo

final, conduz à discussão sobre o pecado, de fundamental importância para o Juízo final.

Como escrevem Carla Casagrande e Silvana Vecchio,

As fases da história da humanidade sucedem-se de acordo com os acontecimentos


cruciais da história do pecado: o ato de desobediência a Deus de Adão e Eva assinala
a passagem de um estado original de perfeição para uma condenação dominada pela
presença do pecado; a Encarnação desencadeia um processo de salvação, de
libertação do pecado; o fim dos tempos assinala a condenação definitiva dos
16
pecadores e a glória eterna dos não-pecadores.

O conceito de pecado, considerado pelos agentes sociais estudados na pesquisa, é

definido por Santo Agostinho em Contra Faustum: pecado é “uma palavra, uma ação ou um

desejo contrário à lei divina”17. A pesquisa também se apóia na acepção de Abelardo (século

XII) desenvolvida em sua Ética, como esclarecem Casagrande e Vecchio: “(…) o pecado

nasce, sempre e de todo modo, de um ato livre da vontade humana e já aparece completo em

sua culpabilidade, antes mesmo de se traduzir em ação exterior”18. Abelardo está colocando a

15
Apud MARTIN, H. Mentalités médiévales. XIe-XVe siècle. Paris: PUF, 1996, p. 07.
16
“Pecado”. In: SCHMITT, J.C. e LE GOFF, J. (org.). Dicionário temático do Ocidente medieval, volume II,
p. 337.
17
Idem, p. 343.
18
Idem, p. 342.

XXIX
consciência humana como o “único lugar onde é possível fundar a noção de pecado”19. É esta

livre escolha do indivíduo que concederá a grande proeminência às representações do Juízo

final a partir do século XIII: o sentido de memória e a função didática do tema não fariam

sentido sem a noção de livre arbítrio, a possibilidade de escolha entre fazer o bem ou pecar.

Serão abordados ainda conceitos como memória, fundamental para o homem

cristão. Como explica Patrick Geary, “sob numerosas formas, a memoria estava no centro do

cristianismo através de sua injunção eucarística: ‘Façam isto em minha memória’”20. O

conceito é utilizado de acordo com a definição de Geary, conforme a acepção agostiniana:

A memória era a memória do pecado e de Deus, a memória como distração e como


consciência, a ponte entre a perfeição intemporal do Criador e a natureza temporal e
21
múltipla da criatura humana imperfeita.

Ao enfatizar a representação do Inferno, como ocorre em várias obras – na segunda metade do

século XIV, particularmente, as pinturas toscanas concedem ao Inferno uma grande proeminência, ao representá-

lo como uma composição autônoma –, parece que a intenção da obra é incitar o fiel a rememorar suas faltas e, ao

reconhecer nos pecadores punidos na cena seus próprios pecados, perceber os castigos que mereceria.

Nesta pesquisa, deve-se esclarecer, será utilizada preferencialmente a palavra imagem no lugar de

arte, mais apropriada ao se tratar de obras medievais: por não estar associado unicamente a valores estéticos

como arte, o conceito imagem possibilita novas questões sobre “o funcionamento social, as funções ideológicas,

o poder das imagens do passado”, como explica Jean-Claude Schmitt22. O conceito de imagem é utilizado neste

trabalho segundo a acepção medieval, como explica Schmitt:

Esta noção está, com efeito, no centro da concepção medieval do mundo e do


homem: ela remete não somente aos objetos figurados (retábulos, esculturas, vitrais,
miniaturas etc.) (…). Ela se refere também à imaginatio, às ‘imagens mentais’ da
meditação e da memória, dos sonhos e das visões. Tão importantes na experiência
religiosa do Cristianismo e que são muitas vezes desenvolvidas em íntima relação
com as imagens materiais que serviam à devoção dos clérigos e dos fiéis.23

As imagens auxiliam na meditação dos devotos, conduzindo seus espíritos per visibilia ad invisibilia, segundo a

definição de São Paulo24.

19
Idem, p. 343.
20
“Memória”. In: SCHMITT, J.C. e LE GOFF, J. (org.). Dicionário temático do Ocidente medieval, volume I,
p. 167.
21
Ibidem.
22
“Imagem”. In: Idem, p. 592.
23
Idem, p. 593.
24
Apud DUBY, G. et alii. História artística da Europa, p. 16.

XXX
Empregando o termo imagem, ademais, abrangem-se, ainda segundo Schmitt, os três domínios da

imago medieval:

O das imagens materiais (imagines); o do imaginário (imaginatio), feito de imagens


mentais, oníricas e poéticas; e enfim o da antropologia e da teologia cristãs,
fundadas numa concepção do homem criado ad imaginem Dei e prometido à
salvação pela Encarnação do Cristo imago Patris.25

É preciso, nesse sentido, esclarecer também o conceito de imaginário, utilizado aqui de acordo com

a definição de Le Goff, e que é fundamental para um tema escatológico:

O imaginário pertence ao campo da representação mas ocupa nele a parte da


tradução não reprodutora, não simplesmente transposta em imagem do espírito mas
criadora, poética no sentido etimológico da palavra. Para evocar uma catedral
imaginária é preciso recorrer à literatura ou à arte (…). A fantasia – no sentido forte
da palavra – arrasta o imaginário para lá da representação, que é apenas intelectual
(…).26

Por fim, é preciso ressaltar outro ponto: Meiss destaca que a imaginação religiosa e, por conseguinte, a produção escrita derivada dessa
imaginação poderiam ter sido igualmente influenciadas por objetos artísticos, e não apenas o inverso. Afinal, como escreve uma vez
mais Le Goff, “o imaginário alimenta o homem e fá-lo agir. É um fenômeno coletivo, social e histórico. Uma história sem o imaginário é
uma história mutilada e descarnada”27 . Essas questões também serão desenvolvidas ao longo do texto.

A seguir, serão comentados brevemente os capítulos desta tese, de modo que o leitor possa melhor se

orientar ao longo da leitura. Na Introdução, “Discussão historiográfica: os problemas da atribuição e da datação

– o caso do ciclo do Trionfo della Morte no Camposanto de Pisa”, buscou-se discutir os problemas de atribuição

e datação das obras em função da importância que esses dois pontos têm na tese proposta. Com efeito, se a

percepção do ciclo de afrescos pintado por Taddeo di Bartolo em San Gimignano (slides 106 a 112) não é

alterada por sua datação variar em um arco de mais de vinte anos – entre 1393 até 1415/20 –, a situação muda

completamente quando se considera o ciclo do Camposanto de Pisa (slides 71 a 79), cuja datação varia entre

antes e depois do surto de Peste Negra de 1348; a datação dos afrescos pisanos se torna essencial quando se

considera que o afresco do Juízo final do Camposanto é um dos primeiros em que se percebem modificações nos

modos de representação do tema do Juízo final. Dessa forma, a datação permitiria inferir a importância – ou não

– da Peste Negra para as mudanças iconográficas no tema. Partindo-se da proposta de Millard Meiss, o capítulo

analisou os estudos de outros autores posteriores, particularmente Luciano Bellosi, mostrando assim os caminhos

percorridos que permitem definir, com toda probabilidade, não somente a datação como também a autoria do

ciclo pisano.

No primeiro capítulo, “Peste e escatologia. Os efeitos da expectativa da morte sobre a religiosidade do século XIV”, introduziu-se,
primeiramente, o tema fundamental desta pesquisa, o Juízo final, a partir da perspectiva teológica, esclarecendo os conceitos de

25
O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média (trad. J.R. Macedo). Bauru: EDUSC,
2007, p. 45.
26
O imaginário medieval (trad. Manuel Ruas). Lisboa: Estampa, 1994, p. 11 e 12.
27
Idem, p. 16.

XXXI
julgamentos individual e final. Quis-se, dessa forma, esclarecer como a cultura cristã medieval compreendia o tema, e como isto afetava
suas expectativas face à morte. Em seguida, discutiu-se como o grande surto de Peste Negra em 1348 criou um clima de pessimismo e
medo. O receio da possibilidade da morte iminente e da proximidade do fim dos tempos gerou mudanças nas práticas religiosas que, por
sua vez, poderiam ter tido influência nas alterações da iconografia do tema do Juízo final.

No segundo capítulo, “A iconografia do Juízo final na Toscana”, a partir de uma breve consideração

a respeito dos chamados terrores do ano mil, concedeu-se um panorama dos desenvolvimentos da iconografia do

Juízo final, discutindo brevemente obras que extrapolam os limites geográficos da pesquisa. Analisando, então,

de forma mais detida os exemplos realizados na Península Itálica a partir da mais antiga pintura conhecida com o

tema, foram definidos os tipos iconográficos mais comuns desde o ano mil, indicando possibilidades de

representação desses tipos. Foi discutido, enfim, em que consistem essas mudanças iconográficas nos exemplos

que se estendem até o fim do século XV, de modo a se mostrar a permanência desses novos tipos iconográficos.

No terceiro capítulo, “Dante, Giotto e as representações do Juízo final na Toscana”, fez-se uma

revisão da hipótese formulada por Millard Meiss, avançando novas possibilidades que possam ter engendrado

reformulações nos modos de representação do Juízo final. No entanto, concedeu-se particular ênfase ao que pode

ser considerado o principal modelo textual para explicar efetivamente as mudanças iconográficas no tema: a

Commedia dantesca. Mostraram-se elementos iconográficos e literários em comum entre o texto de Dante e as

representações posteriores ao poema. Do mesmo modo, foram considerados os elementos que porventura

poderiam ter servido de inspiração para Dante redigir a Commedia: a iconografia do mosaico do Batistério de

San Giovanni, em Florença (slides 20 a 30), e o contato próximo entre o poeta florentino e Giotto, no período em

que o artista trabalhava na Capela Scrovegni, em Pádua (slides 40 a 46). Discutiu-se, também, ainda que de

modo breve, a formação religiosa de Dante junto às ordens mendicantes, especialmente a dominicana, que

influenciou a posterior estruturação do poema. Considerou-se, enfim, sucintamente, a importância de

franciscanos e dominicanos para a cultura religiosa toscana de modo geral, e para a iconografia do Juízo final em

particular.

No quarto e último capítulo, “As funções do Juízo final como imagem religiosa”, por fim, foram discutidas as funções que imagens com
o tema do Juízo final – tanto os grandes ciclos de afrescos como os retábulos – poderiam ter na cultura medieval de modo geral, e em
particular na Toscana da segunda metade do século XIV. Pretendeu-se analisar também de que modo as mudanças na iconografia do
tema do Juízo final podem ter influenciado na recepção das imagens com o tema, e em que medida podem ter alterado as suas possíveis
funções.

XXXII
INTRODUÇÃO

DISCUSSÃO HISTORIOGRÁFICA: O CASO DO CICLO DO

TRIONFO DELLA MORTE NO CAMPOSANTO DE PISA

É preciso recordar, todavia, que as datações baseadas exclusivamente em fatos


estilísticos dão lugar a afirmações do tipo “x” antes de “y” e depois de “z”, ou seja, a
séries cronológicas relativas. É possível converter este “antes” e “depois” em
indicações cronológicas absolutas – por vezes até mesmo ad annum – somente
articulando a análise estilística a elementos de datação externa.

Carlo Ginzburg
1. Introdução

N
o campo da História da arte, muitas vezes duas

perguntas são colocadas inicialmente quando se está

diante de um objeto artístico: quem fez?, e quando fez? A

atribuição de uma obra a um determinado artista e o estabelecimento

da data precisa em que a executou – ou pelo menos o estabelecimento

de uma data bastante aproximativa – são de fato uma grande

preocupação não apenas para os historiadores da arte. Como escreve

a historiadora italiana Gigetta Dalli Regoli,

A atribuição, isto é o reconhecimento do autor de uma obra de arte, é uma das


componentes fundamentais do estudo da obra mesma. A integridade de um produto,
os materiais que o constituem, as modalidades de realização, as condições de
conservação, a destinação e as passagens de propriedade, o registro do apreço que o
mesmo teve ao longo do tempo, a responsabilidade de execução, são todos
elementos determinantes de um acontecimento histórico-crítico que trouxe o objeto
até os nossos dias.28

Deve-se considerar, no entanto, que nem sempre este é um problema tão fundamental quanto se

poderia imaginar em uma primeira análise mais superficial 29. Com efeito, se o historiador não pretende fazer um

estudo nos moldes de uma monografia biográfica, seguindo os modelos propostos pelo historiador da arte

Giorgio Vasari (1511-1574) no século XVI – nos quais a trajetória do artista e sua produção são, sem dúvida,

essenciais, e nos quais, portanto, as questões da atribuição e da cronologia se tornam primordiais –, mas se

preocupa especialmente com questões intrínsecas ao próprio objeto artístico, ou a questões históricas a ele

28
L’attribuzione dell’opera d’arte. Itinerari di ricerca fra dubbi e certezze. Pisa: Plus – Università di Pisa,
2003, p. 07.

XXXIII
relacionadas, pouca ou nenhuma diferença poderá fazer o conhecimento de que determinada obra deve ser

atribuída ao artista X ou ao Y, ou se a obra foi realizada em um ano específico ou uma década depois. Esta

pesquisa, que pretende discutir possíveis relações entre mudanças históricas, religiosas e sociais, e a iconografia

do tema do Juízo final, estaria a princípio enquadrada nessa última perspectiva.

Um estudo inserido na linha vasariana é o que propõe a historiadora americana Gail Elizabeth

Solberg em sua tese sobre o pintor Taddeo di Bartolo (ca. 1362-1422), defendida em 1991 na New York

University. Por se tratar essencialmente de uma análise da produção artística do pintor a partir de um percurso

biográfico, tanto a atribuição quanto a datação das obras se tornaram questões essenciais.

Pintor sienense de relativa importância, Taddeo é responsável pela execução de um dos grandes

ciclos de afrescos com o tema do Juízo final realizados na Toscana no século XIV – e, por isso, é um artista de

interesse para esta tese. Esse trabalho, executado na Collegiata da cidade de San Gimignano (slides 106 a 112) –

cidade próxima a Siena e de destaque no panorama histórico toscano ao menos até meados do século XIV –,

insere-se, portanto, dentro de uma grande tradição iconográfica que remontaria ao menos ao ano mil30. A datação

desses afrescos, no entanto, é motivo de discussão, uma vez que jamais foi localizado qualquer documento

relativo à comissão que pudesse comprovar a execução do ciclo, embora nenhuma dúvida haja quanto à

atribuição dos afrescos a Taddeo di Bartolo31.

A discussão sobre a datação do ciclo de San Gimignano é importante para esclarecer como a

problemática da cronologia e da atribuição de uma obra pode ser fundamental para não apenas confirmar uma

possível seqüência de criação de pinturas sobre o mesmo tema, como também – e especialmente – para averiguar

possíveis causas e vetores de influência inseridos nesta seqüência. Essa discussão ganha em dimensão quando

confrontada à problemática do ciclo do Camposanto de Pisa, que será tratada em seguida.

2. O ciclo do Juízo final de Taddeo di Bartolo em San Gimignano

29
Como escreve Carlo Ginzburg, “a datação [e a atribuição, poderia ser complementado] constitui obviamente
só o primeiro passo em direção a uma leitura histórica de uma obra de arte”. Indagações sobre Piero (trad. Luiz
Cappellano). São Paulo: Paz e Terra, 1989, p. 24.
30
Tanto o surgimento como o desenvolvimento do tema do Juízo final na tradição artística ocidental, e
particularmente toscana, serão discutidos no segundo capítulo desta tese. Com relação à representação do tema
no Oriente bizantino, ver os capítulos específicos no estudo de Yves Christe Il Giudizio universale nell’arte del
Medioevo (trad. Maria Grazia Balzarini). Milão: Jaca Book, 2000.
31
Ver a seguir.

XXXIV
E
m relação ao ciclo de afrescos de Taddeo di Bartolo na Collegiata (slides 106 a 112),

Solberg, autora também do mais recente trabalho dedicado ao artista32, propõe uma

nova datação dentro da cronologia artística do pintor. Os afrescos sempre foram

tradicionalmente datados por volta de 1393 em função de uma antiga inscrição sobre o

capitel da primeira pilastra da nave à direita – quando o observador se volta para a parede interna da fachada.

Segundo Solberg, uma vez que a inscrição estaria danificada, esta seria pouco confiável33. A inscrição,

infelizmente, está de fato ilegível exatamente na data: “THADEUS BARTHOLI DE SENIS PINXIT HANC

CAPELLAM MC...III” (Taddeo di Bartolo de Siena pintou nesta capela MC...III)34. Se ela não deixa dúvidas

com relação à autoria do ciclo, o mesmo não se pode dizer mais em relação à data. Entretanto, de acordo com

Girolamo della Valle, que escreveu em 1785 as chamadas Lettere Senesi, a data seria MCCCXCIII, 1393. No

entanto, por considerar a inscrição insuficiente, Solberg decidiu se apoiar unicamente em suas análises

estilísticas sobre Taddeo di Bartolo; afirma, em função disso, que o ciclo teria sido realizado entre 1410 e 1415,

uma vez que nesses anos há pouca documentação sobre o artista35.

A tese de Solberg parece, no entanto, frágil, quando contraposta a outras evidências

que não apenas a inscrição parcialmente danificada36. Há a já mencionada referência de

Girolamo della Valle quanto à data anteriormente legível nessa mesma inscrição,

presumivelmente ainda no século XVIII, quando o autor publica seu texto. Ademais, Giorgio

Vasari faz menção, na breve Vita de Taddeo di Bartolo, a um afresco seu que teria sido

realizado em Monte Oliveto:

(…) colocando o seu nome e o ano em que ela foi pintada, que foi o ano 1394. E por
volta dessa mesma época, trabalhou em Volterra alguns painéis a têmpera, e em
Monte Oliveto um painel, e no muro um Inferno em afresco, no qual seguiu a
invenção de Dante, no que tange à divisão dos pecados e à forma das penas: mas em
relação ao lugar ou não soube, ou não pôde, ou não quis imitá-lo.37

32
O outro estudo dedicado exclusivamente ao pintor remonta à década de 1960. É a monografia de Sibilla
Symeonides: Accademia Senese degli Intronati. Monografie d’Arte Senese VII. TADDEO DI BARTOLO.
Florença, 1965.
33
Cf. Taddeo di Bartolo. His life and work (tese de doutorado). Nova York: New York University, 1991, p.
237.
34
Cf. Idem, p. 788. A inscrição também pôde ser lida in loco pela autora da presente pesquisa.
35
“O vazio na documentação sobre Taddeo em 1415 torna este ano o período provável para sua execução”. Op.
cit., p. 237.
36
Sobre os problemas da análise estilística, e especialmente de afirmações baseadas unicamente nelas, ver a
seguir.
37
“(…) mettendovi il nome suo e l’anno ch’ella fu dipinta, che fu l’anno 1394. Et intorno a questi medesimi
tempi, lavorò in Volterra certe tavole a tempera, et in Monte Uliveto una tavola, e nel muro un Inferno a fresco,
nel quale seguì l’invenzione di Dante, quanto alla divisione de’ peccati e forma delle pene: ma nel sito o non

XXXV
Vasari aparentemente se baseia em Vincenzo Borghini, cronista que, em meados do século XVI, escreve sobre

obras realizadas em San Gimignano e Volterra. Em suas notas afirma que

No Monte Oliveto fora de Volterra existe um altar também de mão daquele Taddeo
di Bartolo de Siena, e no muro em afresco um Paraíso, Purgatório e Inferno, e no
Inferno quis exprimir a descrição de Dante, mas em relação à forma do lugar não dá
em nada.38

Solberg comenta que o Monte Oliveto mencionado em ambas as passagens poderia ser Monte

Uliveto di Barbiano di San Gimignano, localidade cerca de um quilômetro distante de San Gimignano, no

caminho entre Volterra e Colle Val d’Elsa39. Afirma, porém, que é mais provável que os autores estivessem se

referindo ao estabelecimento dos olivetanos de Sant’Andrea, fora dos muros de Volterra40. Há, de fato, um painel

feito por Taddeo di Bartolo nesse local, que Solberg, novamente baseada somente em análises estilísticas, data

por volta de 140541. Segundo a autora, poderia ser uma parte do painel a que Borghini se referiu, cercado pelo

ciclo de afrescos com a temática do Juízo final. Esse suposto ciclo de Sant’Andrea se perdeu. De qualquer modo,

para ela a localidade mencionada por Borghini e Vasari não é San Gimignano, visto que ao menos Vasari se

refere especificamente a esta cidade em outra passagem da Vita de Taddeo di Bartolo42.

Ora, se havia de fato o ciclo em Sant’Andrea, restaria esclarecer por que nem

Borghini, nem Vasari fazem menção aos afrescos da Collegiata de San Gimignano, uma

importante obra de Taddeo di Bartolo, e cuja atribuição estaria confirmada pela presença da

inscrição no capitel da coluna desde que as pinturas foram completadas. Não se poderia supor

um simples engano da parte de ambos os autores, que poderiam ter confundido San

Gimignano pela localidade próxima de Monte Uliveto di Barbiano di San Gimignano?

Decerto, outras objeções poderiam ser levantadas, especialmente em relação às

observações de Vasari. A primeira delas se relaciona ao fato de que o autor menciona apenas

seppe, o non potette, o non volle imitarlo”. Le vite dei più eccellenti pittori, scultori ed architetti, 3ª edição.
Roma: Newton & Compton, 1997, p. 258.
38
“In Monte Oliveto fuor di Volterra è un altare di mano pure di quel Taddeo di Bartolo da Siena, et nel muro
in fresco uno Paradiso, Purgatorio et Inferno, nel quale Inferno volse exprimere l’descriptione di Dante, ma in
quanto alla forma del sito non dà in nulla”. Apud SOLBERG, G.E. Op. cit., p. 238 e 239.
39
Cf. Idem, p. 240.
40
Cf. Ibidem.
41
Cf. Ibidem.
42
“Tornato poi in Toscana, lavorò in San Gimignano una tavola a tempera che tiene della maniera d’Ugolino
Sanese (…)” [“Tendo voltado depois à Toscana, executou em San Gimignano um painel a têmpera segundo a
maneira de Ugolino Sienense (…)”]. Op. cit., p. 258.

XXXVI
o afresco do Inferno, sem citar o conjunto com o Paraíso e o Juízo final; Borghini, por sua

vez, menciona um afresco sobre o Purgatório, que não deveria existir no ciclo de Taddeo43.

Ademais, Vasari – assim como Borghini – se refere “à divisão dos pecados e forma das

penas”, segundo ambos baseadas nas descrições feitas por Dante em sua Commedia.

Entretanto, a análise do afresco do Inferno mostra uma aproximação maior com o poeta

florentino principalmente na figura do Diabo, que devora três pecadores em cada uma de suas

cabeças. O diabo de Bartolo, assim como o de Dante, possui três cabeças, e cada uma devora

igualmente um condenado44.

Em relação às punições infernais propriamente ditas, no entanto, não parece haver

inspiração direta em Dante; as descrições presentes na Commedia são de grande

complexidade, e não simples de serem traduzidas em termos visuais – tanto é que poucos

artistas tentaram fazê-lo em obras de grandes dimensões, como Nardo di Cione na Capela

Strozzi, na Igreja de Santa Maria Novella, em Florença (slides 90 a 97). A opção da maior

parte dos artistas – e seguida por Taddeo di Bartolo –, em uma tradição que, visualmente,

remonta ao tímpano da portada principal da Igreja abacial de Sainte-Foy (slides 182 a 184),

em Conques, é a representação mais direta e evidente dos pecados capitais. Esse efeito é

conseguido através da associação entre o pecado cometido e o tipo de punição a que se é

submetido; desse modo, a visualização dos pecados ocorre de maneira mais explícita, e o fiel

43
Tratando-se de um ciclo sobre o Juízo final, o Purgatório não deveria, a princípio, estar presente, uma vez que,
segundo as concepções cristãs, trata-se de uma instância provisória de punição, e que deixaria de existir
exatamente no momento do julgamento último de toda a humanidade, quando, enfim, ela seria definitivamente
separada entre duas únicas localidades – Paraíso e Inferno, essas, sim, instâncias definitivas. Sobre esse tema, ver
o estudo de Jacques Le Goff: La naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1996. Pode-se supor também que
Borghini tenha confundido o afresco do Juízo final com o tema do Purgatório, o que, no entanto, parece pouco
provável. A suposição surge em função do fato de que, no final do século XIV, os afrescos do ciclo do Trionfo
della Morte do Camposanto de Pisa – formado, além do já mencionado tema do triunfo, pelos afrescos do Juízo
final, do Inferno e da Tebaide –, eram denominados Purgatório, Paraíso e Inferno. Nessa denominação, o
afresco da Tebaide provavelmente estaria excluído. Sobre esse tema, ver a seguir.
44
A problemática da representação visual do Diabo será discutida no terceiro capítulo, em que se tratará de
modo mais geral das relações entre a Commedia e os desenvolvimentos da iconografia e das composições do
tema do Juízo final.

XXXVII
compreende de modo mais efetivo as punições a que poderá ser submetido no Além45.

Vasari, no entanto, em sua descrição, não menciona a evidente representação dos

pecados capitais que, além de serem visualmente claros, são ademais explicitados por tarjetas

de identificação (la superbia, la vidia, la lussuria, la varitia – soberba, inveja, luxúria e

avareza); essa ausência de menção por parte de Vasari também poderia enfraquecer a tese de

que estivesse se referindo, em sua Vita, ao ciclo da Collegiata. As objeções podem, no

entanto, ser refutadas assumindo-se uma característica de Vasari ao escrever suas Vite: muitas

vezes o escritor aretino não conhecia pessoalmente as obras que cita em seu texto, mas apenas

através de descrições e menções de outras pessoas, que nem sempre poderiam ser

consideradas de todo confiáveis. Portanto, é plausível especular que Vasari talvez jamais

tenha ido a San Gimignano e visto o ciclo com seus próprios olhos, baseando-se, como já

comentado anteriormente, no texto de Borghini, que por sua vez já concederia uma descrição

equivocada do ciclo. Este fato, além do mais, também poderia explicar a já presumida

confusão entre as duas localidades.

Tendo em vista todas as observações comentadas acima, a cronologia proposta por

Solberg parece pouco provável. Pode-se estimar, portanto, uma datação bastante próxima à

tradicionalmente empregada para o ciclo da Collegiata de San Gimignano: o começo da

execução em 1392, tendo sido completado no máximo até o início de 1393. Isto se deve ao

fato de que, como comenta Solberg mesma,

Não há virtualmente qualquer falha na cronologia conhecida de Taddeo da última


década do Trecento até os primeiros anos do novo século exceto para os primeiros
46
anos da década de 1390.

É possível supor, tendo em vista esta “falha” cronológica, que Taddeo talvez tenha passado

uma temporada em Pisa em 1391, momento em que travou contato com o ciclo de afrescos do

45
Também Dante faz a associação entre pecado e punição na Commedia; essa relação, no entanto, está baseada
em uma tradição mais clássica, erudita, muito mais complexa, portanto, e que seria provavelmente de difícil
compreensão para uma população leiga e muitas vezes iletrada. Esse tópico será desenvolvido nos terceiro e
quarto capítulos desta tese.
46
Op. cit., p. 45.

XXXVIII
Camposanto, que trata em duas obras do tema do Juízo final e do Inferno, e que

presumivelmente exerceram influência sobre o artista no momento em que concebeu seu ciclo

de San Gimignano47.

O ano 1392 também é escasso em documentação sobre o artista. A única notícia

sobre ele consiste em um documento de 27 de janeiro que indica a substituição de Francesco

di Michele por Taddeo em um trabalho de pintura na catedral de Savona48. Solberg supõe que

nos últimos meses de 1392 o artista pudesse estar em Pádua, uma estadia citada por Vasari, da

qual, porém não restam obras49. Pode-se supor, entretanto, que durante esse espaço de tempo

o artista tenha retornado a San Gimignano e executado o ciclo da Collegiata. Se assim o foi,

certamente esse retorno ocorreu antes de março de 1393, uma vez que há um documento de

15 de março de 1393 que atesta o estabelecimento de Taddeo em Gênova50. Após julho de

1394, data da última menção a ele em Gênova, há documentação sobre o artista em Pisa para

os três anos seguintes51.

É preciso considerar, decerto, que, em termos históricos e artísticos, a diferença de

cerca de quinze ou vinte anos para a realização de uma pintura, em relação às diversas

datações propostas, pode não ser necessariamente de grande importância – ao menos,

novamente, que o historiador esteja trabalhando de acordo com uma linha vasariana em sua

pesquisa. Em relação especificamente ao ciclo de San Gimignano, não houve, de fato, nesse

meio tempo, algum fato histórica e artisticamente relevantes52 que pudesse implicar uma

47
Ver a seguir.
48
Cf. SOLBERG, G.E. Op. cit., p. 45.
49
Cf. Ibidem. Ao se trabalhar com o texto de Vasari, deve-se ter em mente sempre que, em muitos casos, suas
notícias sobre os artistas do século XIV não são muito confiáveis. Como escreve o historiador italiano Luciano
Bellosi, “ora, para os artistas do Trecento as notícias do Ghiberti são infinitamente mais verdadeiras do que as do
Vasari”. Buffalmacco e il trionfo della morte. Turim: Einaudi, 1974, p. XXII. Sobre Lorenzo Ghiberti, ver a
seguir.
50
Cf. SOLBERG, G.A. Op. cit., p. 50.
51
Cf. Idem, p. 67. Os primeiros trabalhos pisanos certamente executados por Taddeo di Bartolo datam de 1395,
e representam o início de uma série de pinturas que sugerem que o artista estaria trabalhando na cidade ao menos
até 1397. Cf. Idem, p. 68.
52
Supondo-se como correta a data de 1415, proposta por Solberg, é preciso considerar que, de qualquer modo, as
inovações de Brunelleschi e Donatello – que marcariam o início de uma renovação artística – ainda estariam
circunscritas a Florença, e Masaccio ainda não as teria introduzido em sua pintura.

XXXIX
mudança significativa na tradição iconográfica do tema do Juízo final – como pode ter

ocorrido, em contrapartida, em meados do século XIV53. Dois ciclos de afrescos, realizados

nesse período, apresentam já essas modificações: o ciclo realizado na Capela da Madalena ou

del Podestà, no Palazzo del Bargello, em Florença, e aquele executado no Camposanto de

Pisa. Embora ambos sejam fundamentais para a discussão aqui proposta, conforme será

discutido no terceiro capítulo da presente pesquisa, a historiografia se dedicou apenas ao ciclo

pisano 54. E é este que será tratado a seguir.

3. O debate sobre a datação do ciclo do Trionfo della Morte no Camposanto de Pisa

N
em sempre a atribuição de um trabalho a um

determinado artista deve ser desprezada, mesmo pelo

historiador que se debruça sobre outros problemas

ligados à obra. Determinar a autoria de um objeto pode significar,

igualmente, alterações em relação à sua delimitação cronológica, e

esta, por sua vez, poderá ter repercussões em diversas outras

problemáticas.

Essa questão é levantada em função de um ciclo de afrescos – fundamental para

toda a discussão desta tese –, cuja datação ante quem ou post quem giraria exatamente ao

redor do grande surto de Peste Negra em 1348 – o ciclo do Trionfo della Morte do

Camposanto de Pisa (slides 71 a 79), cuja datação varia em um arco temporal que vai de 1330

53
Com relação à cronologia, questão análoga é levantada por Ginzburg a respeito do ciclo executado por Piero
della Francesca na Igreja de San Francesco, em Arezzo: “o amplíssimo consenso obtido (…) em torno da
cronologia interna proposta por Longhi contrasta com a total divergência de opiniões entre os estudiosos no que
diz respeito ao início e à conclusão do ciclo em termos absolutos, ‘calendariais’. O objeto dessa divergência é
um punhado de anos – sete, oito, no máximo uma década. Mas trata-se de anos decisivos. Supor que a obra
maior de Piero tenha estado pronta antes (Longhi), depois (Battisti) ou antes e depois (Clark, Gilbert) da viagem
a Roma e da estada na corte de Pio II implica, cada vez mais, reconstituições muito diversas do itinerário
pictórico de Piero”. Op. cit., p. 64. Sobre a problemática da Peste Negra, ver a seguir.
54
Sobre os afrescos do Bargello, e uma discussão mais específica sobre as mudanças iconográficas do tema do
Juízo final, ver o terceiro capítulo desta tese.

XL
até ao menos 136555; isto, por sua vez, poderia significar também a alteração da atribuição da

obra: após os nomes de vários artistas que poderiam ter realizado o ciclo – como Andrea

Orcagna ou Ambrogio Lorenzetti –, os nomes mais citados desde meados do século XX são

os de Francesco Traini (ou Francesco di Traino, como o preferem chamar alguns historiadores

italianos) e, a partir de 1976, também o de Buonamico Buffalmacco.

O problema inicial que foi colocado em relação a esses afrescos se deve ao fato de que a Peste Negra

parece ter sido um grande marco histórico. Partindo-se do pressuposto que o surto de peste em 1348 foi um

grande divisor de águas para a Europa, e que parece efetivamente ter gerado mudanças significativas nas

mentalidades religiosas56, que se fizeram sentir ao menos até as primeiras décadas do século XV, seria possível

supor, como o fez o historiador americano Millard Meiss, que a grande epidemia tivesse gerado igualmente

mudanças profundas na arte, especialmente em relação aos modos de representação da realidade.

Em sua mais importante obra, Painting in Florence and Siena after the Black Death, publicada em

1951, Millard Meiss defende a idéia de que o surto de peste em 1348 teria afetado tão profundamente as cidades

toscanas de Florença e Siena a ponto de alterar também as concepções artísticas do período; o autor associa esse

fato a transformações nas sensibilidades culturais e religiosas que teriam ocorrido após essa data – fato que já

parece ter sido comprovado por diversos estudos57. Tratando especificamente do campo artístico, Meiss tomaria

como exemplo, dentre outros, um retábulo atribuído a Andrea Orcagna – o Retábulo do Redentor –, realizado em

1357 para a Capela Strozzi, na Igreja de Santa Maria Novella, em Florença, onde ainda hoje se encontra58. Nesse

retábulo, segundo o autor, estaria presente um abandono das inovações trazidas por Giotto di Bondone (1266-

1337) à arte toscana59, retornando a um esquema compositivo mais “primitivo”, mais de acordo com os padrões

do século XIII. Abandono, ainda segundo Meiss, gerado pelo clima de pessimismo e medo que se instalara após

o surto. Afirma ele que

55
A primeira menção aos afrescos – e que serve como terminus ante quem definitivo da conclusão do ciclo, ou
pelo menos de um de seus afrescos, tendo em vista que se refere apenas ao Inferno – vem de um texto de 1374,
uma data tardia demais para ser considerada na discussão da datação: “1374 Giullelmus tornator de capella
Sancte Margarite habuit a suprascripto domino Operario pro pretio unius speculi ponendi in pictoris inferni in
Camposanto… s. sex”. Apud MEISS, M. “The problem of Francesco Traini”. In: The Art Bulletin, 15, n.º 1,
março 1933, p. 152, nota 55.
56
Ver, a esse respeito, o primeiro capítulo desta tese.
57
Como exemplo, podem-se citar os recentes trabalhos de Samuel Cohn (Death and property in Siena, 1205-
1800. Strategies for the afterlife. Baltimore e Londres, 1988; The cult of remembrance and the Black Death.
Six Renaissance cities in central Italy. Baltimore e Londres: John Hopkins University, 1992; The Black Death
transformed. Disease and culture in early Renaissance Europe. Nova York: Oxford University, 2002)
58
Há uma reprodução da pintura no livro de Meiss.
59
Sobre Giotto, ver o segundo capítulo.

XLI
A representação na última parte do século XIV de temas como o da Trindade e do
Cristo em Majestade em vez do da Madonna com o Menino surge da intenção de
magnificar o reino do divino enquanto se reduz o do humano. Uma intenção
semelhante é evidente (…) na pintura da história sagrada, que acentua o milagroso
no lugar do natural, o misterioso em vez do familiar e humano60.

De acordo com a concepção de Meiss, seria apropriado que a arte renunciasse ao humanismo dos giottescos,

desprezando o mundo natural, e buscasse uma ênfase maior no espiritual.

Meiss também cita como exemplo do reflexo na arte provocado pela Peste Negra o ciclo do Trionfo

della Morte no Camposanto de Pisa, discutindo de forma breve em seu livro especificamente o afresco do Juízo

final. O modo de representação do tema, segundo o autor, estaria diretamente relacionado ao surto:

(…) a atitude do Cristo é radicalmente distinta. Pela primeira vez na representação


do Juízo Final dirige-se unicamente aos condenados, voltando-se para eles com um
semblante enfadado, alçando seu braço em um poderoso gesto de denúncia. A seu
lado a Virgem está também muito preocupada, ainda que mais compassiva com os
condenados, e os apóstolos não se sentam como testemunhas tensas e imparciais,
mas estão comovidos pela piedade e pelo medo ante a terrível sentença. Um dos
arcanjos, no centro da composição, expressa a inevitabilidade e a imparcialidade do
juízo, e outro retrocede, cheio de terror com uma mais humana consternação61.

De acordo com Meiss, se no fim do século XIII e início do XIV a

figura do Cristo juiz parece interagir tanto com os condenados quanto

com os eleitos, rechaçando uns e recebendo os outros, a partir da

segunda metade Ele parece se dirigir apenas aos condenados,

denunciando-os talvez como os responsáveis pela Peste Negra. Para

Meiss, os afrescos teriam sido pintados por Francesco Traini, o mais

importante pintor pisano do Trecento, “o único grande pintor toscano

no século XIV que não era florentino ou sienense”62; ainda de acordo

com Meiss, eles teriam sido realizados pouco após o grande surto de

1348, talvez já em 1350, expressando, portanto, de modo vívido uma

tragédia recém-ocorrida.

O principal problema da hipótese levantada por Meiss reside no fato de estar fundamentada

unicamente em análises estilísticas, que se iniciam com o tríptico de São Domingos realizado para a Igreja de

60
Painting in Florence and Siena after the Black Death. Princeton: Princeton University, 1978, p. 57.
61
Idem, p. 99 e 100.
62
“The problem of Francesco Traini”. In: Op. cit., p. 159.

XLII
Santa Caterina, em Pisa, e atualmente no acervo do Museo Nazionale di San Matteo, na mesma cidade; afirma o

autor que o painel seria “a mais notável realização do Trecento no uso de luz e sombra para produzir forma no

espaço”63; esse trabalho pode ser seguramente atribuído a Francesco Traini, por conta de uma inscrição nele

existente64. Comparando as supostas semelhanças estilísticas entre esse painel e os afrescos do Camposanto,

Meiss não tem dúvidas em atribuir esses últimos ao mesmo autor do painel de São Domingos.

Em diversas passagens do texto, entretanto, Meiss deve reconhecer igualmente marcantes diferenças
nas características de estilo entre o ciclo do Camposanto e o painel; essas variações, segundo ele, dar-se-iam em
função das técnicas de execução (afresco no primeiro caso e têmpera no segundo), além de variações no estado
de preservação das obras – o painel em 1933 estaria em excelente estado de conservação, ao contrário dos
afrescos –, assim como na marcada diferença de escala das figuras e das composições65. Há, no entanto, uma
séria objeção a essas idéias de Meiss, que já foram levantadas, dentre outros, pelo historiador italiano Luciano
Bellosi. Deve-se supor que um artista – um bom artista, um mestre, enfim, a ponto de receber uma encomenda do
porte do ciclo do Camposanto – tenha capacidade de realizar o que quiser na superfície que quiser, com a técnica
que desejar, e não que sofra com algum tipo de limitação técnica. Como explica Bellosi,
Cada artista conhecia as técnicas com que trabalhava infinitamente melhor do que
qualquer historiador da arte; o historiador da arte, por outro lado, gostaria de colocar
em dúvida que ele fosse senhor de uma técnica tal que o permitisse alcançar
qualquer efeito desejado. É como acusá-lo de não saber fazer em afresco o que teria
sabido fazer em têmpera; ou então lhe atribuir uma dupla vida estilística, para os
afrescos e para os painéis.66

Meiss continua sua análise baseando-se nas similitudes fisionômicas das figuras e dos animais

representados, mas especialmente nas semelhanças nos modos de se realizar os sombreados das figuras em

painéis e afrescos. Entretanto, ao comparar o trabalho de luz e sombra de uma figura do painel de São Domingos

ao do anjo que segura dois pergaminhos na parte central do afresco do Juízo final, deve admitir, por exemplo,

que parte do sombreado deste último foi “destruído por deterioração e retoques nos afrescos”67.

Há duas questões que poderiam ser levantadas nesse momento. A primeira delas é: pode-se confiar

em impressões baseadas em características estilísticas de obras que foram bastante danificadas? De fato, em seu

artigo o próprio Meiss cita documentos que demonstram que já em 1379 os afrescos do Camposanto estariam

sendo retocados68. Esses retoques continuaram ao longo dos anos (menções a eles são feitas em textos de 1386,

63
Idem, p. 107.
64
“HOC OPUS FACTUM FUIT TEMPORE DOMINI JOHANNIS COCI OPERARII OPERE MAIORIS
ECCLESIE SANCTE MARIE PRO COMUNI PISANO PRO ANIMA DOMINI ALBISI DE STATERIIS DE
PE… SUPRADICTE FRANCISCUS TRAINI PIN [XIT]” (grifo da autora). Apud Idem, p. 98, nota 06. Há uma
reprodução do painel no artigo supracitado.
65
Cf. Idem, p. 128.
66
Op. cit., p. 13.
67
“The problem of Francesco Traini”. In: Op. cit., p. 136.
68
Nessa data, Cecco di Pietro foi contratado “per rachonciare in campo santo le dipinture delonferno quaste per
li gharzoni” (“para rearrumar no campo santo as pinturas do Inferno gastas pelos garotos”). Apud Op. cit., p.
159. Esses gharzoni são jovens que provavelmente jogavam bola no Camposanto, e que com isso danificavam os

XLIII
1420, 1438, 1462, 1520 ou 1530, além de outras repinturas em épocas mais recentes69).

Apesar dos problemas com que o historiador se depara, é possível afirmar que a análise estilística

continua sendo válida, apesar dos desgastes que as obras sofrem naturalmente com o tempo. Afinal, há outros

detalhes que podem ser observados na obra, além do modelado. E, certamente, não se deseja aqui invalidar a

análise estilística, que pode ser efetivamente um instrumento importante na atribuição da obra. Na ausência de

qualquer tipo de documentação que possa trazer alguma luz à autoria de um trabalho – como pareceria ser, a

princípio, o caso do ciclo do Camposanto70 e em parte também do ciclo de San Gimignano, uma vez que a data

está danificada –, parece plausível e até mesmo necessário lançar mão de uma análise das características

estilísticas da obra, em uma tradição que, sem dúvida, remete às idéias defendidas por Giovanni Morelli no

século XIX71.

O problema é que se ater apenas a essa análise do estilo de um artista

pode não somente ser insuficiente, como também levar a graves

equívocos. Afinal, ela, em última instância, está baseada em

impressões pessoais, subjetivas, daquele que a realiza. Como afirma

Regoli:

(…) ainda que a identificação do autor se baseie em uma grande bagagem de


experiências e de estudo, parece fora de questão que no resultado tenham um papel
determinante fatores de que não é fácil avaliar o peso, como a peculiar
72
predisposição do crítico e a sua capacidade intuitiva.
Se, apesar de todos os problemas com relação às proximidades

estilísticas entre os painéis de Traini e o ciclo de Pisa, Meiss insiste

trabalhos ali executados. Desde 1300, e depois novamente em 1359, o governo pisano estabeleceu proibições aos
jogos com bola no Camposanto. Cf. Ibidem.
69
Cf. Idem, p. 159 e 160. É preciso ter em conta, ainda, a grande destruição na Segunda Guerra Mundial
causada por uma granada. Em 1944, com efeito, um grande incêndio decorrente da explosão derreteu o teto de
chumbo do Camposanto, que por sua vez escorreu sobre os afrescos. Intervenções na segunda metade do século
XX tentaram salvar os afrescos. Infelizmente, atualmente, poucos estão em condições razoáveis – como é o caso
do Trionfo della morte, do Juízo final e do Inferno. Infelizmente, mesmo nesses casos a superfície parece cada
vez mais deteriorada, e alguns historiadores crêem que em algumas décadas as obras terão desaparecido.
70
Ver a seguir o trabalho de Luciano Bellosi sobre o ciclo.
71
É exatamente o que faz Meiss, de modo a se certificar do autor do ciclo do Camposanto: “a pequena adorável
freira no painel de Princeton [Sant’Anna, Virgem e Menino Jesus] recordam a nobre – terceira a partir da
esquerda na fileira mais baixa dos eleitos no Juízo final – não apenas com relação às feições e o anormalmente
longo e curiosamente articulado pescoço, característico de um grande número de figuras de Traini, mas também
com relação ao gesto. Os braços estão cruzados sobre o peito; e as mãos (…) estão peculiarmente relaxadas. As
mesmas mãos vacilantes e um tanto achatadas são encontradas em muitos dos eleitos do Juízo final, no Jeremias
do painel [de São Domingos], e nas duas mulheres segurando cães no Triunfo da Morte. Essa mão é quase uma
assinatura para Traini”. “The problem of Francesco Traini”. In: Op. cit., p. 140.
72
Op. cit., p. 07 e 08.

XLIV
em atribuí-los ao mesmo autor, pode-se discutir um outro ponto, e

essa é a segunda questão levantada por toda essa análise: se há

problemas em se reconhecer de modo tranqüilo as mesmas qualidades

estilísticas nas obras, e se essas divergências devem ser explicadas

por problemas externos à criação artística mesma – como a

danificação do afresco –, ou ainda a uma incapacidade de adaptação

do artista a meios expressivos diferentes, não seria mais correto

supor atribuições diversas aos trabalhos? Uma hipótese que, embora

perfeitamente aceitável, não pôde sequer ser levantada por Meiss,

nem em 1933, e nem posteriormente, quando retoma a discussão,

tanto estava absorvido e convencido de suas crenças com relação à

autoria dos afrescos de Pisa. Afinal, sua análise parecia ser o ápice

de uma longa tradição crítica que se perpetuava havia ao menos

cinqüenta anos, e que parecia conduzir de modo definitivo à

atribuição trainiana dos afrescos. Havia, portanto, a predisposição

em atribuir o afresco a Francesco Traini. Isso o tornou cego a outras

possibilidades73.

A tese da autoria de Francesco Traini para o ciclo do Trionfo della Morte no Camposanto de Pisa, e

sua datação por volta de 1350, permaneceu praticamente inalterada até as últimas décadas do século XX, embora

houvesse outra linha crítica. Baseada nas idéias de Roberto Longhi – já mencionadas com relação ao comentário

de Meiss – e aceitas especialmente por estudiosos italianos, essa linha defendia a intervenção de um maestro

bolonhês na execução dos afrescos, que teriam sido realizados entre 1360 e 136574.

Mais recentemente, no entanto, Luciano Bellosi propôs, enfim, uma nova atribuição ao ciclo do

Camposanto. Em sua obra Buffalmacco e il trionfo della morte, publicada em 1974, o autor retorna a uma idéia

antiga, que remonta a Lorenzo Ghiberti, e que concede a autoria de ao menos alguns dos afrescos de Pisa a

73
Sobre essa tradição crítica de finais do século XIX e princípios do XX, ver a já mencionada obra de Bellosi
sobre o Camposanto.
74
Cf. BELLOSI, L. Op. cit., p. 03.

XLV
Buonamico Buffalmacco, artista florentino que trabalhou ativamente em várias cidades italianas ao longo da

primeira metade do século XIV, dentre as quais Pisa75.

Em sua análise dos afrescos, Bellosi também parte de um estudo estilístico. Por este, refuta de modo

bastante preciso muitos dos argumentos de Meiss. Após analisar alguns traços característicos do pintor76 que,

inicialmente, é denominado simplesmente como Maestro del Trionfo della Morte, Bellosi comenta:

Debruçamo-nos sobre o modo sumário, rápido de conduzir a pintura que caracteriza


o nosso artista. Esse é, a meu ver, o aspecto que mais o distingue do refinado pintor
pisano Francesco Traini. A atribuição dos afrescos do Camposanto a Traini foi,
creio, um dos maiores equívocos em que caiu a crítica moderna.77

As aproximações com figuras executadas por Buffalmacco, em contrapartida, parecem muito mais

convincentes do ponto de vista estilístico78. Bellosi chegou ao nome desse pintor florentino ao entrelaçar

informações fornecidas por Vasari na Vita do artista e de um documento de 1341, que indicaria que um certo

Bonamicum pictorem teria realizado alguns afrescos na catedral de Arezzo, felizmente ainda preservados. Bellosi

percebe grande semelhança estilística entre o autor dessa obra e a produção do pintor que executou o ciclo do

Trionfo della Morte em Pisa.

É nesse ponto, porém, que Bellosi mais se distancia da análise de Meiss, que permanece, como visto,

puramente na discussão estilística. Com efeito, a aproximação entre os estilos de ambos os afrescos não

indicaria, por si só, o autor do afresco, mas apenas que se tratava do mesmo pintor – afinal, a atribuição do

afresco de Arezzo a Buffalmacco não pode ser comprovada, embora seja de grande probabilidade. Essa falta de

certeza poderia comprometer a proposta de Bellosi. É preciso, assim, ir além da simples análise estilística.

É o que faz Bellosi. O historiador italiano parte para o estudo de uma documentação secundária,

75
Como escreve Meiss, “a tradição de que Buffalmacco trabalhou no Camposanto remonta a Ghiberti, que não
especifica, no entanto, quais afrescos ele teria pintado”. “The problem of Francesco Traini”. In: Op. cit., p. 164.
Ghiberti, de fato, afirma que Buffalmacco “fece in Pisa moltissimi lavorij. Dipinse in Campo Santo a Pisa
moltissime istorie”. Apud BELLOSI, L. Op. cit., p. 31. Vasari, na segunda edição de suas Vite, atribui a
Buffalmacco os afrescos da parede leste do Camposanto: “Buonamico fece, in testa dove è hoggi la sepoltura del
corte, tutta la passione di Cristo (…) e seguitando la storia fece la resurrezione e l’apparire di Cristo agli
Apostoli”. Apud MEISS, M. “The problem of Francesco Traini”. In: Op. cit., p. 163 e 164. O ciclo em discussão
foi realizado na parede sul do Camposanto.
76
Dois exemplos destacados por Bellosi: ao representar figuras com longos cabelos, o pintor gira ao redor da
orelha uma grande mecha de cabelos; ademais, para acentuar a expressão do olhar, o artista marca a pálpebra
inferior com uma grossa sombra escura, ressaltando assim, por contraste, o branco do olho. Cf. Op. cit., p. 11.
Nenhuma dessas características encontra um paralelo em Traini, a não ser em alguns afrescos no Batistério de
Parma, cuja atribuição a Traini, porém, também é contestada por Bellosi, uma vez que esses últimos foram
evidentemente realizados pelo mesmo artista que executou o ciclo do Camposanto de Pisa, devido às
proximidades estilísticas entre as obras. Sobre isso, a crítica parece de acordo.
77
Idem, p. 13. Bellosi, em contrapartida, afirma que, no Camposanto de Pisa, o afresco que mais se aproximaria
do estilo de Traini seria o da Crucificação, que a crítica moderna – e, por ironia, também Meiss – de maneira
unânime parece atribuir a um artista diferente daquele que executou o ciclo do Trionfo della morte. Cf. Idem, p.
14. Meiss afirma explicitamente que “a maior divergência em relação ao estilo de Traini aparece na
Crucificação”. “The problem of Francesco Traini”. In: Op. cit., p. 143

XLVI
como o poema Le mirabili et inaldite bellezze e adornamenti del Campo Santo di Pisa, de Michelangelo di

Cristofano da Volterra, escrito no final do século XV79. Cruzando as informações dadas por esse poema e as

fornecidas por Ghiberti, Bellosi conclui que, com maior probabilidade, o grupo de afrescos que inclui o Trionfo

della Morte, o Juízo final, o Inferno, a Tebaide, assim como a Ressurreição, a Verificação dos estigmas e a

Ascensão representaria as moltissime istorie que, segundo Ghiberti, Buffalmacco teria realizado no

Camposanto80.

Após as comparações estilísticas e a análise da documentação – ainda que indireta – trazida por

Bellosi, a atribuição do ciclo do Camposanto a Buonamico Buffalmacco parece ser quase certa.

Pode-se considerar, decerto, que em muitos casos poderia não fazer diferença a autoria de uma obra

para uma análise histórica. É o que explica Regoli sobre outro estudo de Luciano Bellosi:

Por vezes a proposta de atribuição pode resultar superada em poucos anos, mas a
linha interpretativa permanece geralmente fundada (…). É o caso daquela qualitativa
Flagelação do Oratorio dei Disciplinati de Perugia, que Luciano Bellosi resgatava
nos anos setenta de uma situação de obscuridade propondo reconhecer nela a
intervenção de Bramante (…): ainda que o autor da pintura tenha sido depois
convincentemente identificado por Francesco Mancini com aquele que era um nome
sem obras e hoje é uma identidade mais certa – Pietro di Galeotto – isto não invalida
a análise fornecida por Bellosi, e sobretudo a certeza da relação da pintura com um
mestre de formação umbro-urbinata.81

Não é esse o caso do ciclo do Trionfo della Morte do Camposanto de Pisa. A nova atribuição

concedida por Bellosi retira a autoria do afresco do círculo artístico pisano de Traini, de influência sienense, para

o círculo florentino de Buffalmacco, que possui, ademais, relações estreitas com a arte emiliana e

especificamente bolonhesa, como de resto já havia afirmado Longhi. Essa alteração, sobretudo, implica

mudanças também com relação à datação da obra, e esse é o ponto mais importante e que será discutido a seguir.

4. Os problemas da atribuição e da datação

78
Sobre os modos pelos quais Bellosi aproxima os afrescos de Pisa a Buffalmacco, ver Op. cit., p. 25 e 26.
79
Na primeira parte o autor, com efeito, descreve os afrescos da parede sul do Camposanto – onde está o ciclo
do Trionfo della Morte –, recordando que na sua decoração haviam participado Buffalmacco, Taddeo Gaddi e
Stefano.
80
Poder-se-ia questionar, no entanto, a validade das afirmativas de Ghiberti, um dos grandes pontos de apoio na
teoria de Bellosi. Para refutar dúvidas, o autor realiza um levantamento estatístico com relação às informações
fornecidas pelo autor florentino sobre o século XIV. Por este estudo, percebe-se que há uma probabilidade de
79% de que os dados sejam verdadeiros “sob qualquer ponto de vista”, e 21% de probabilidade de conterem ao
menos uma boa dose de verdade. Segundo Bellosi, “nenhuma daquelas informações examinadas resultou de todo
errônea”. Op. cit., p. 36. Os dados fornecidos por Ghiberti, portanto, teriam um grau de confiabilidade muito
maior do que as informações dadas, por exemplo, por Vasari no que se refere ao Trecento. Para as estatísticas
completas de Bellosi, ver o apêndice de seu livro. Idem, p. 113 a 120.
81
Op. cit., p. 09 e 10.

XLVII
E
screve Ginzburg – especificamente sobre a datação de

uma obra – que

Em realidade, na datação a corda da leitura estilística está sempre


presa, com resultados mais ou menos convincentes, aos pontos de
apoio documentais disponíveis. (Isto implica, ao meu ver, o tácito
reconhecimento da menor confiabilidade dos dados estilísticos quando se objetiva
uma datação pontual).82

Essa é uma problemática que diz respeito aos afrescos do Camposanto, na medida em que Meiss, também se

baseando nas supostas mudanças ocorridas na arte após o surto de peste, concede ao ciclo uma data posterior a

1348 – uma vez que a Peste Negra deveria ser necessariamente um evento post quem para sua execução.

Por que o problema da datação é posto agora? A questão é que Buonamico Buffalmacco é um pintor

relativamente pouco conhecido, e seus dados biográficos são bastante escassos, a ponto de se ter chegado a

considerá-lo apenas uma personagem do Decameron de Boccaccio, onde, com efeito, é citado. Sabe-se

atualmente que já era um pintor ativo no segundo decênio do século XIV; suas primeiras menções remontam a

1315, o que possivelmente o colocaria como um artista nascido ainda no século XIII. Mais importantes, porém,

para essa discussão, são as informações que dele provêm de Boccaccio; no Decameron, de fato, Buffalmacco

aparece como um homem do passado, portanto já falecido – com efeito, as notícias sobre ele cessam de todo em

1341, quando está documentado em Arezzo. Vale recordar que as histórias do texto se passam em 1348, e

Boccaccio, com toda probabilidade, não as teria iniciado antes dos anos 135083.

A se considerar, portanto, a atribuição do ciclo a Buffalmacco – e quanto a isso parece haver poucas

dúvidas atualmente – não apenas a datação dos afrescos deveria ser retrocedida, como ela necessariamente

deveria ser anterior a 1348, antes, portanto, do temível surto de peste. Exatamente o limite post quem definido

em 1951 por Millard Meiss. O próprio Meiss, entretanto, revisa na década de 1970 sua famosa tese, admitindo

que as mudanças estilísticas teriam de fato ocorrido antes de 1348, depois, porém, de 1340, data da primeira

grande epidemia de peste em Florença84. Para o historiador americano, portanto, as premissas de sua tese

82
Op. cit., p. 22.
83
Sobre a datação do Decameron, ver o resumo quanto a uma crítica mais recente em BATTAGLIA RICCI, L.
Ragionare nel giardino: Boccaccio e i cicli pittorici del Trionfo della morte. Roma, 1987, p. 19, nota 01. De
qualquer modo, os críticos tendem a crer que a redação do texto estaria em curso ainda em 1353; a mais antiga
menção a ele está em uma carta de 1360. Cf. BATTAGLIA RICCI, L. “Il ‘Trionfo della Morte’ del Camposanto
pisano e i letterati”. In: Storia ed arte nella piazza del Duomo. Conferenze 1992-1993. Quaderno n.º 4. Pisa:
Vigo Cursi, 1995, p. 200.
84
Essa revisão foi feita no seguinte artigo: “Notable disturbances in the classification of Tuscan Trecento
painting”. In: Burlington Magazine, 113, 1971. Assim se refere o cronista Giovanni Villani a respeito do evento
de 1340: “che incontanente cominciò grande mortalità, che quale si ponea malato, quasi nullo ne scampava; e
morinne più che il sesto di cittadini pure de’ migliori e più cari, maschi e femmine, che non rimase famiglia
ch’alcuno non ne morisse, e dove due o.ttre e più; e durò quella pestilenza infino al verno vegnente. E più di
XVM corpi tra maschi e femmine e fanciulli se ne sepellirono pure nella città, onde la città era tutta piena di

XLVIII
continuariam válidas, ainda que retrocedidas de alguns anos. Especificamente com relação aos afrescos do

Camposanto, entretanto, essa nova proposição de Meiss poderia não ser suficiente – com efeito, se as notícias

sobre o pintor se limitam a 1341, é possível que ele tenha morrido não muito depois, e assim poderia não ter sido

capaz de realizar o ciclo pisano – recorde-se que no início dessa década ele estaria em Arezzo –, que seria, desse

modo, anterior ao primeiro surto de 1340.

Buscando meios de corroborar uma datação tão anterior – embora ela já tivesse sido proposta

igualmente por outros historiadores, que, no entanto, não conseguiram explicá-la de modo convincente –,

Bellosi, lança mão de um estudo que nem sempre é recordado, mas que pode esclarecer um campo obscurecido

por falta de evidências: a análise do tipo de indumentária usado pelas figuras nas cenas. Como explica o autor,

A moda: outro elemento que não havia jamais sido levado em consideração. E, no
entanto, nos afrescos do Camposanto de Pisa ela tem uma parte macroscópica e é
aliás uma das maiores razões de seu fascínio. Ora, no Trecento como no Novecento,
ninguém se veste genericamente segundo a moda de seu tempo, mas de um preciso
momento do seu tempo. É próprio da moda superar-se continuamente e ainda que
alguém seja pouco atento a essas coisas, o seu traje de hoje não será jamais como
aquele de dez anos antes. Por que portanto não usar esse elemento, quando presente
em uma obra de arte, para estabelecer o tempo de execução?85

De fato, o gosto na moda sofre alterações, às vezes em poucos anos, certamente em algumas décadas,

e a comparação entre exemplos diversos pode ser de grande auxílio no estabelecimento de uma data, ainda que

aproximada, de uma obra. E, nos afrescos em questão, a moda parece ser efetivamente um ponto de grande

relevância, considerando-se não apenas os jovens que se divertem no jardim no afresco do Trionfo della Morte,

como também algumas personagens, distribuídas entre eleitos e condenados, figuradas no Juízo final. Todas

essas figuras parecem se vestir não apenas de acordo com o seu tempo, mas com a última moda de seu tempo.

Bellosi parte assim do princípio de que, se os afrescos tivessem sido realizados por volta de 1360,

como já havia sido proposto, as roupas representadas deveriam ser semelhantes aos trajes de outras obras do

pianto e di dolore, e non si intendea apena ad altro, ch’a sopellire morti” [“que repentinamente começou grande
mortalidade, [de modo] que quem caísse doente, quase ninguém escapava; e morreram mais do que a sexta parte
dos cidadãos mesmo dentre os melhores e mais queridos, homens e mulheres, [de modo] que não sobrou família
em que alguém não morresse, e em algumas dois ou três e mais ; e durou aquela pestilência até o inverno
seguinte. E mais de quinze mil corpos entre homens e mulheres e jovens foram sepultados na cidade, [de modo]
que a cidade estava toda cheia de pranto e de dor, e não se fazia outra [coisa] que não sepultar os mortos”.
Nuova cronica, volume III (org. Giuseppe Porta). Parma: Fondazione Pietro Bembo/ Ugo Guanda, 1991, p. 226.
As reações a essa epidemia foram assaz próximas às do surto de 1348: “per questa mortalità, a dì XVIII di
giugno, per consiglio del vescovo e di riligiosi si fece in Firenze generale processione, ove furono quase tutti i
cittadini sani maschi e femmine col corpo di Cristo ch’è a Santo Ambruogio, e con esso s’andò per tutta la terra
infino a ora di nona, con più di CL torchi accesi” [“por causa desta mortalidade, no dia 18 de junho, pelo
conselho do bispo e de religiosos se fez em Florença geral procissão, à qual foram quase todos os cidadãos sãos
homens e mulheres com o corpo de Cristo que fica em Santo Ambrósio, e com esse se andou por toda a terra até
a hora nona, com mais de 150 tochas acesas”]. Idem, p. 227. Sobre as reações à Peste Negra, ver o primeiro
capítulo da presente pesquisa.
85
Op. cit., p. XXII.

XLIX
mesmo período – e cuja datação, sem dúvida, fosse comprovada, e não simplesmente conjetural. Comparando,

desse modo, o ciclo pisano e os afrescos do Cappellone degli Spagnoli, na Igreja de Santa Maria Novella, em

Florença, e pintados por Andrea Bonaiuti entre 1366 e 1368, constata que “estamos (…) diante de dois modos de

vestir completamente diversos”86. É possível perceber que, entre a realização do ciclo do Camposanto e o do

Cappellone degli Spagnoli, a moda sofreu alterações. Analisando a indumentária em outras obras datadas,

Bellosi conclui que os primeiros indícios da moda presente no afresco de Buonaiuti aparecem em um painel de

Giovanni Baronzio, de 1345 – como, por exemplo, o becchetto, tipo de chapéu “sutil e muito longo que caía

sobre as costas”87. “É esse, em nosso conhecimento, a mais antiga pintura de data segura em que seja discernível

algum elemento da nova moda”88, afirma Bellosi. O ano de 1345 poderia, portanto, ser considerado, em

princípio, um limite ante quem para a execução dos afrescos do Camposanto89.

Qual seria então o limite post quem? Bellosi procede à mesma análise das indumentárias, e percebe

que a indumentária encontrada no ciclo do Camposanto começa a se tornar comum nos anos de 1330 90. Percebe,

enfim, que as roupas dos afrescos pisanos são bastante semelhantes àquelas encontradas nos afrescos de

Ambrogio Lorenzetti realizados no Palazzo Pubblico de Siena entre 1338 e 1340. Conclui, por isso, que os

afrescos do Camposanto foram provavelmente executados entre 1336 e 1340, no mais tardar até 1341, quando as

notícias sobre Buffalmacco desaparecem.

Buscando, por fim, corroborar essa datação com outro tipo de documentação, Bellosi apresenta um

documento de 1336 em que se afirma que Bonamicus pictor (…) de Florentia trabalhava em Pisa, e que estava

alojado na Capela de Santa Maria Maggiore, onde normalmente viviam os maestri que trabalhavam na Opera

della cattedrale, de que dependia também o Camposanto91. Embora seja uma notícia indireta, que a princípio

pouco diz, salvo que Buffalmacco se encontrava em Pisa nessa data, o cruzamento dos dados levantados pela

análise estilística por um lado, pelas informações de Ghiberti e de Michelangelo di Cristofano da Volterra de

outro, pelo estudo dos trajes e, por fim, por mais esse documento parecem apontar para uma única direção. No

atual estado da questão do conhecimento histórico, portanto, Buonamico Buffalmacco é o nome mais plausível

86
Idem, p. 43.
87
Ibidem.
88
Idem, p. 46.
89
Essas mudanças na indumentária parecem ter sido bastante marcantes – quiçá chocantes – para muitos no
século XIV, uma vez que muitos cronistas, os mais velhos especialmente, não deixaram de notar – e criticar – a
moda adotada pela juventude. Em Roma, a anônima Vita di Cola di Rienzo comenta essas mudanças após narrar
fatos ocorridos em 1338 e logo antes de tratar da morte de Robert d’Anjou, ocorrida em 1342. Outras crônicas,
como a do florentino Giovanni Villani, apontam essa mesma mudança nos tipos de indumentária, e todas
parecem verificar esse novo gosto a partir dos primeiros anos da década de 1340. Cf. Idem, p. 47 e 48.
90
Cf. Idem, p. 51.
91
Cf. Idem, p. 54.

L
para o Maestro del Trionfo della Morte; também parece haver agora poucas dúvidas com relação à datação dos

afrescos do Trionfo della Morte do Camposanto de Pisa: o artista os teria executado a partir de 1336. Será esta a

datação aceita e adotada pela presente pesquisa92.

As idéias de Bellosi, especificamente no que se refere à datação do

ciclo, vêm sendo debatidas mais recentemente por outros

historiadores, que buscam também análises de cunho sócio-político.

O historiador italiano Michele Luzzati, por exemplo, não contesta a

atribuição ou a datação propostas por Bellosi em sua pesquisa;

discorda, por outro lado, do fato de que ele estaria “sugerindo

implicitamente uma ‘comitência’ laica” dos afrescos93, ao destacar

que o ciclo pisano teria sido realizado no “decênio da esplêndida

senhoria do Conde Fazio Novello della Gherardesca”94. Luzzati

destaca que, se o Camposanto é um local religioso, “a autoridade

mais alta que aqui exerce seu poder é indiscutivelmente aquela do

titular da cátedra arquiepiscopal pisana”95.

Luzzati acompanha as atividades de Simone Saltarelli – o referido

arcebispo no período em que os afrescos foram, com toda

probabilidade, executados – desde sua nomeação como procurador-

geral da ordem dominicana junto à Sé Apostólica, em 1316. Segundo

o historiador italiano,

É presumível que tenha se tratado de uma recompensa pelo apoio dado pelos
representantes dos Dominicanos à eleição do Pontífice, eleito em Lyon um mês
92
Deve-se destacar que a análise dos trajes observados nos afrescos, feita por Bellosi, é criticada por alguns
historiadores, ou aceita com ressalvas por outros. Com efeito, escreve Chiara Frugoni que “permito-me observar
que os trajes na Idade Média se herdavam e que as atualizações não eram nem homogêneas nem fulminantes
como nos nossos tempos”. “Altri luoghi, cercando il paradiso (il ciclo di Buffalmacco nel Camposanto di Pisa e
la committenza domenicana)”. In: Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa. Série III, vol. XVIII, n.º 4.
Pisa, 1988, p. 1558, nota 03.
93
“Simone Saltarelli arcivescovo di Pisa (1323-1342) e gli affreschi del Maestro del Trionfo della morte”. In:
Idem, p. 1645.
94
BELLOSI, L. Op. cit., p. 91.
95
“Simone Saltarelli arcivescovo di Pisa (1323-1342) e gli affreschi del Maestro del Trionfo della morte”. In:
Op. cit., p. 1646.

LI
antes, e que na mesma cidade havia sido consagrado dois dias antes de Saltarelli ser
96
nomeado bispo.

Seu prestígio político junto ao papa era evidente; para Luzzati, o

arcebispo pisano foi certamente longa manus do pontífice nas lutas

políticas que ocorreram entre 1318 e 132297. Sua ação culminou na

entrega ao papa João XXII, em janeiro de 1330, do antipapa que se

estabelecera em Pisa em 132798.

Deve-se passar neste momento à análise da concepção temática e

iconográfica do ciclo que, por sua vez, remete à própria encomenda

das pinturas. É preciso ter em conta que Saltarelli foi uma

personalidade de destaque nos campos político e religioso de Pisa,

sem dúvida; poderia ele ter tido algum tipo de participação na

elaboração iconográfica do ciclo do Camposanto? Talvez; porém,

como escreve Luzzati, essa não seria, em princípio, função de um

administrador eclesiástico, ainda que de grande prestígio.

Nada nos consente em substância afirmar positivamente que os afrescos realizados


no Camposanto em torno ao quarto decênio do Trecento tenham sido por ele
99
pessoalmente comissionados e muito menos inspirados.

Deve-se ponderar, por outro lado, o fato de Saltarelli ser um

dominicano, e “a inspiração dominicana nos afrescos foi

repetidamente sublinhada, em particular com menções a fra

Domenico Cavalca”100. Desse modo, a formação religiosa de

Saltarelli – enquanto membro da ordem dominicana, e prior tanto do

convento de Santa Maria Novella em Florença como, posteriormente,

do convento de Santa Caterina em Pisa – indicaria a

96
Cf. Idem, p. 1651.
97
Cf. Idem, p. 1652.
98
Cf. Idem, p. 1655.
99
Idem, p. 1656 e 1657.

LII
“‘compatibilidade’, cronológica e ideológica, entre a realização

figurativa e as atitudes gerais dos homens e das instituições que

presidiram”101. Ainda que não tenha sido ele a elaborar o programa

iconográfico do ciclo, é certamente plausível que possa ter exercido

influência sobre o frade dominicano responsável pela elaboração.

É preciso considerar, enfim, que Simone Saltarelli era florentino, e

que se cercou de uma entourage quase que em totalidade provinda de

Florença. Em função disso, escreve Luzzati que seria bastante

“plausível que também para as atividades artísticas o arcebispo tenha

recorrido a mestres de sua cidade”102. Isto, por sua vez, poderia

conduzir uma vez mais à discussão da atribuição ao florentino

Buffalmacco, que se reforçaria por outro dado: Saltarelli, antes de ser

transferido para Pisa, estava encarregado da diocese de Parma103 –

localidade em cujo Batistério, segundo Bellosi, o artista havia

trabalhado104.

A historiadora italiana Maria Lucia Testi Cristiani, por sua vez,

propõe a presença de um segundo maestro na execução do ciclo, que

teria começado a ter uma participação mais efetiva na pintura ainda

no afresco do Trionfo della Morte, realizando por outro lado os

outros afrescos sozinhos105. Ela sugere, assim, a possibilidade de que

100
Idem, p. 1657.
101
Idem, p. 1647. Sobre a importância da ordem dominicana – em especial o convento de Santa Caterina – na
realização do ciclo do Camposanto de Pisa em particular, e na iconografia do tema do Juízo final na Toscana
entre os séculos XIII e XV, ver o terceiro capítulo desta tese.
102
Idem, p. 1650.
103
Cf. Idem, p. 152.
104
Cf. Op. cit., p. 11. Sobre as possíveis vias de inter-relação entre Simone Saltarelli e Buonamico Buffalmacco
– que vão além da presença de ambos em Parma –, ver o texto de Luzzati. “Simone Saltarelli arcivescovo di Pisa
(1323-1342) e gli affreschi del Maestro del Trionfo della morte”. In: Op. cit., p. 1658 a 1661.
105
A autora chega a essa conclusão analisando as sinópias dos afrescos, que se tornaram evidentes quando as
pinturas foram destacadas da parede após os danos da II Guerra Mundial. Cf. “Il ‘Trionfo della morte’ nel

LIII
a execução do ciclo, ainda que iniciada com Buffalmacco, possa ter

se prolongado não apenas ao longo dos anos 1340, mas até mesmo

após o surto de 1348.

Alguns problemas, no entanto, se colocam em relação a essa hipótese. O primeiro é a uniformidade

estilística das pinturas, incluindo aquelas que teriam sido realizadas pelo artista que Testi define como I Maestro.

Ademais, quem seria esse maestro? Buffalmacco, cujo estilo parece transparecer em todo o ciclo? Ou seria ele o

II Maestro, que substituiu o primeiro? E a questão da morte do pintor? Testi afirma, corretamente, que o fato de

a última menção ao artista remontar a 1341

Não autoriza em modo algum (…) a considerá-lo defunto em 1342, tendo por base
uma pura e simples ilação, ou seja de que ele é recordado no tempo passado (…) no
Decameron, composto porém após a Peste Negra de 1348, e presumivelmente entre
1349 e 1351. A única correta dedução a respeito é, quando muito, que Buffalmacco
morreu em um período impreciso, entre 1341 e 1349-51106.

Embora pareça uma proposta tentadora – especialmente quando se

desejaria explicar os afrescos pisanos em função do surto de Peste

Negra de 1348 –, deslocar a morte de Buffalmacco para um período

tão próximo à composição do Decameron pode ser um tanto forçada;

é provável que o artista tenha morrido antes de 1348, o que não

impediria, por outro lado, que tivesse executado o ciclo do

Camposanto na década de 1340.

O ponto que Testi não aborda, no entanto, e que é o mais importante

no que se refere a toda essa discussão, é o fato de que a concepção

dos afrescos certamente remonta a um período muito anterior a 1348;

se a comissão do ciclo for mesmo dada ao arcebispo de Pisa Simone

Saltarelli, também anterior a 1342, data de sua morte, conforme

Camposanto monumentale di Pisa – e la cultura artistica letteraria religiosa di metà Trecento”. In: Italia 1350-
1450: tra crisi, trasformazione, sviluppo. Atti del tredicesimo Convegno Internazionale di studio tenuto a
Pistoia. Pistóia: Editografica, 1991, p. 406 a 409.
106
Idem, p. 398.

LIV
defende Luzzati107. É claro, os afrescos poderiam ter sido

encomendados após 1340 – ano do primeiro grande surto de peste na

Toscana, o que relacionaria o tema do ciclo ao clima de pessimismo

gerado pela epidemia. Ainda assim, outro problema persiste: o que

faria Buffalmacco em 1336, ano em que certamente se encontrava em

Pisa desenvolvendo alguma obra relacionada aos trabalhos da

catedral?

A cronologia do ciclo do Camposanto se torna ainda mais importante quando se considera que os

afrescos parecem ter exercido grande influência sobre outros artistas – e é possível que essa influência tenha

extrapolado o campo pictórico. De fato, tradicionalmente se considerava que o maestro do Camposanto houvesse

se inspirado no Decameron de Boccaccio para a realização do afresco do Trionfo della Morte; percebe-se aqui

também a visão tradicional pela qual a literatura, o texto escrito, deveria ter necessariamente precedência em

relação ao documento visual. Esse é um posicionamento que dificilmente se mantém face às evidências. Com

efeito, como escreve Battaglia Ricci,

Difícil acreditar que de um texto vulgado possivelmente por volta da metade dos
anos Cinqüenta dependa, ainda que em parte, o autor de um ciclo que fez sucesso em
plenos anos Quarenta.108

Atualmente, considerando-se a possível datação do afresco – certamente anterior a 1348 –, compreende-se que,

nesse caso, o eixo de influência pode ter ocorrido no sentido inverso: possivelmente Boccaccio, ao ver o afresco,

teria se inspirado para compor sua obra mais famosa: de fato, no Decameron não somente os novellieri são dez –

três homens e sete mulheres –, assim como no grupo de jovens do Trionfo, como é no afresco que se instituiu,

pela primeira vez, a associação entre a fuga da morte e um jardim – recorde-se que, no texto de Boccaccio, é por

causa da mortandade provocada pelo surto de 1348 que os jovens decidem fugir da cidade, buscando refúgio em

locais amenos e ajardinados. Os afrescos do Camposanto – e se incluem aqui também os do Juízo final e do

Inferno – tiveram, porém, uma grande influência também nas artes visuais, o que será discutido nos próximos

capítulos.

O ciclo de Pisa parece, portanto, ser efetivamente uma obra

fundamental para a compreensão da iconografia do tema do Juízo

107
“Simone Saltarelli arcivescovo di Pisa (1323-1342) e gli affreschi del Maestro del Trionfo della morte”. In:
Op. cit..

LV
final no século XIV e mesmo no século XV. Se as novidades

iconográficas e compositivas não derivariam do surto de peste, a tese

proposta por Millard Meiss perderia sua força, embora não pudesse

ser completamente descartada; se uma mudança nos modos de

representação já tivesse se manifestado nos anos 1330 – por motivos

que serão esclarecidos e debatidos no terceiro capítulo desta tese –, é

possível que a grande epidemia de 1348 pudesse ter intensificado e

mesmo acelerado as mudanças iconográficas, estabelecidas, porém, a

partir de outras premissas que não a Peste Negra. Como escreve

Diana Norman,

Quaisquer que sejam as restrições quando examinada contra as evidências de casos


locais e particulares, a tese [de Meiss] como um todo insiste na importância vital da
109
relação entre prática artística e experiência concreta.

Experiência concreta que, neste caso, estaria ligada de algum modo à

religiosidade da Toscana do Trecento. Dessa forma, no próximo

capítulo serão discutidas as mudanças nas práticas religiosas que

essas crises possam ter engendrado, assim como suas relações com o

pensamento escatológico no século XIV.

Em seguida, os outros capítulos tratarão da iconografia do Juízo

final, discutindo os principais elementos que caracterizam o tema,

assim como algumas das mudanças que ocorrem após a realização do

afresco do Camposanto de Pisa.

108
“Il ‘Trionfo della Morte’ del Camposanto pisano e i letterati”. In: Op. cit., p. 200.
109
NORMAN, D. et alii. Siena, Florence and Padua: art, society and religion 1280-1400. Volume 1:
interpretative essays. Londres: Yale University, 1995, p. 195.

LVI
CAPÍTULO I

PESTE NEGRA E ESCATOLOGIA: OS EFEITOS DA EXPECTATIVA DA MORTE

SOBRE A RELIGIOSIDADE DO SÉCULO XIV

L’au-delà est un des grands horizons des religions et des societés. La vie du croyant
change quand il pense que tout n’est pas joué à la mort

Jacques Le Goff

1. Introdução

O
presente capítulo se inicia com breves considerações sobre o tema

cristão que é a base para esta pesquisa: o Juízo final. Partindo de uma

perspectiva teológica, busca esclarecer de forma sucinta os conceitos de

julgamentos individual e final, levando em conta também como a cultura cristã medieval

compreendia o tema e como isso afetava suas expectativas face à morte.

O capítulo, então, discute como a Peste Negra em 1348, assim como os surtos

recorrentes da epidemia até o fim do século, e mesmo posteriormente, criou um clima de

pessimismo e medo, e como o temor da morte iminente e também da proximidade do fim dos

tempos teve como conseqüências mudanças nas práticas religiosas.

2. Significações do Juízo final para as crenças cristãs

O
Cristianismo encontra em suas bases toda a tradição religiosa judaica,

herdando desta a concepção de um tempo histórico, linear, que conheceu

seu início no momento da criação do mundo, e que se dirige de maneira

inexorável para o fim. Como esclarece Georges Duby,

Para o cristianismo, a História é orientada. O mundo possui uma idade. Deus, em um


determinado momento, o criou (…). Alguns textos, aqueles da Escritura Santa,
permitem calcular as datas, aquela da criação, aquela da encarnação, portanto
discernir os ritmos da História. Estes mesmos textos (…), os Evangelhos, o
110
Apocalipse, anunciam que o mundo um dia acabará.

A noção do tempo histórico é uma das questões mais importantes para os cristãos. É essa

LVII
certeza de um início claramente marcado no Gênesis, e a espera de um fim que

indubitavelmente chegará, que norteia todas as concepções do Cristianismo. Como explica o

historiador suíço Yves Christe,

No Ocidente (…), onde o sentido histórico estava mais desenvolvido, era natural que
a Segunda Parúsia inquietasse os espíritos. A idéia de que a história teria um fim
111
estava de certo modo fundada sobre o sentimento de fragilidade das coisas (…).

De fato, o fim será marcado pela Parúsia, a segunda vinda de Cristo para julgar toda a

humanidade112. O retorno de Cristo ao final dos tempos é mencionado em trechos diversos do Novo Testamento,

como, por exemplo, em Mateus 16, 27113. Esta passagem de Mateus indica também de modo claro a noção de um

julgamento no fim dos tempos, baseado no comportamento individual de cada homem ao longo de sua vida114.

O que significa essa noção tão fundamental para o Cristianismo? É a crença de que, no momento da morte, a

alma é separada do corpo e é julgada de acordo com sua vida na terra; por esse julgamento, essa alma será

colocada em uma instância no Além, onde permanecerá até o momento do Juízo final, quando enfim, reunida

novamente ao seu corpo ressuscitado, terá seu local eterno determinado pelo Cristo115. Há uma noção

profundamente enraizada de que “o homem é o objeto de uma promessa de salvação, quer dizer de um retorno a

Deus. É a doutrina do reditus, do retorno, tão importante em Santo Tomás de Aquino”116.

Deve-se mencionar, porém, que o destino imediato da alma após a morte foi motivo de controvérsia

nos primeiros tempos do Cristianismo. Como indica R.P. Crouzel,

O dogma da Ressurreição é aceito por todos os ortodoxos, mas não há unanimidade


quanto à forma de concebê-la. A alma sobrevive entre a morte e a ressurreição ou
morre com o corpo para ressuscitar com ele? Essa segunda hipótese é professada por

110
L’an mil. Paris: Gallimard, 1980, p. 46.
111
Les grands portails romans. Etudes sur l’iconologie des téophanies romanes (tese de doutorado). Genebra:
Universidade de Genebra, 1969, p. 105.
112
Parúsia, em grego clássico παρουσια, em latim adventus, significava “estar presente” ou “chegar”. A partir
do século III a.C. passou a designar a chegada do Imperador romano a uma cidade ou província, implicando
também o início de um novo período para aquela localidade. Os primeiros cristãos absorveram o termo,
adaptando-o, porém, à sua própria doutrina: Parúsia será quando o Cristo retornar a esse mundo, no fim dos
séculos, iniciando um novo tempo. Cf. Escola Mater Ecclesiae. Curso de iniciação teológica. Rio de Janeiro,
s/d, p. 141. Além das expressões parúsia e advento, a segunda vinda de Cristo também é chamada de epifania
(epiphaneia) ou aparição (1Tim 6, 14; 2Tim 4, 1), e apocalipse (apokalypsis) ou revelação (1Pd 4, 13). O tempo
da segunda vinda é referido como “aquele Dia” (2Tim 4, 8), “o Dia do Senhor” (1Tes 5, 2), “o dia de Cristo
Jesus” (Fl 1, 6), “o dia do Filho do Homem” (Lc 17, 30), ou ainda como “o último dia” (Jo 6, 39-40). As citações
bíblicas incluídas nesta tese, salvo menção em contrário, foram retiradas da seguinte edição: Bíblia de
Jerusalém, 3ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2004.
113
Para esta e outras citações bíblicas, ver o anexo I desta tese.
114
Há uma série de passagens bíblicas que indica, de algum modo, o retorno de Cristo no fim dos tempos.
Entretanto, o primeiro a condensar todas essas descrições em uma visão harmoniosa da Parúsia foi Efraim, o
Sírio (ca. 306-373), em seu texto traduzido para o latim como Opuscula de extremo Judicio et gaudio beatorum.
Cf. OFFNER, R. Bernardo Daddi and his circle. Florença: Giunti, 2001, p. 541.
115
Cf. GARDINER, E. Visions of Heaven and Hell before Dante. Nova York: Italica, 1989, p. XII.
116
LE GOFF, J. Le Dieu du Moyen Âge. Entretiens avec Jean-Luc Pouthier. Paris: Bayard, 2003, p. 94 e 95.

LVIII
cristãos denominados Thnetopsychitas, ou seja, partidários de uma alma que
morre.117
Sem dúvida, prevaleceu a idéia de uma alma imortal, que sobreviveria ao corpo e que a ele

retornaria no momento da ressurreição dos corpos. Nesse ínterim, permaneceria em uma

localidade no Além, definida no momento da morte do corpo118. No entanto, é preciso ainda

indagar: por que Cristo julga os homens?

De acordo com as concepções cristãs, a encarnação de Cristo teria ocorrido com a

finalidade de resgatar a humanidade do pecado cometido por Adão; tendo sido expulsos do

Jardim do Éden, o Paraíso terreal, os homens não poderiam para lá retornar enquanto não

fossem redimidos de suas culpas:

Com efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a
ressurreição dos mortos. Pois assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos
receberão a vida.119

A remissão só poderia ocorrer com a mediação de Cristo entre Deus Pai e a humanidade arrependida,

de modo a se restabelecer os elos destruídos pelo pecado120. Entretanto, para que a intercessão fosse plenamente

alcançada, foi necessário que o Cristo se fizesse homem, e adquirisse a condição humana:

(…) A mediação moral requeria na pessoa de Jesus a união física de dois extremos –
Deus e o homem – que ele deveria reconciliar (…). Para que a redenção fosse feita
segundo as leis da justiça (…), era necessário que Deus se encarnasse, e que assim a
mediação, em sua pessoa, reunisse fisicamente a divindade e a humanidade. Ele é
mediador por sua humanidade; mas, sem a divindade, ele não poderia eficazmente
exercer sua mediação.121

Ou seja, como explica Jacques Le Goff, “Jesus se torna não somente o Deus dos homens, mas Deus feito

homem”122. A partir do século XIII, passou-se a insistir cada vez mais na questão de que Cristo julgará segundo

a carne, secundum carnem123. Yves Christe complementa: “Santo Tomás de Aquino precisa mesmo que Ele

julgará in natura humana porque, injustamente condenado enquanto homem, mereceu ser juiz de todos os

117
“Ciel, Purgatoire et Jugement, Enfer, dans les premiers siècles de l’Église”. In: Le Jugement, le Ciel et
l’Enfer dans l’histoire du christianisme. Actes de la 12ème rencontre d’Histoire religieuse. Angers: Université
d’Angers, 1989, p. 09.
118
Sobre esse ponto, ver a seguir.
119
1 Cor 15, 21-22.
120
“O mediador (…) é antes de tudo um elo moral entre seres que se encontram em desacordo. Seu papel é tentar
a reconciliação entre vontades adversas e restabelecer a união e o acordo”. Dictionnaire de théologie
catholique, v. 8. Paris: Letouzey, 1922, col. 1345.
121
Idem, col. 1346.
122
Op. cit., p. 33.
123
Cf. CHRISTE, Y. Il Giudizio universale nell’arte del Medioevo (trad. Maria Grazia Balzarini). Milão: Jaca
Book, 2000, p. 12.

LIX
homens ‘em sua natureza humana’”124.

A redenção, no entanto, só poderia ser plena com o sacrifício de Jesus: “Cristo morreu por nossos

pecados, segundo as Escrituras”125. Cristo morreu para livrar a humanidade da morte, do pecado de Adão. Não

por acaso, em inúmeras cenas de crucificação é possível discernir, à base da cruz, um crânio, identificado

usualmente como o de Adão:

O sangue de Jesus, crucificado no centro da Terra, precisamente no ponto onde havia


sido criado e sepultado Adão, caiu sobre o ‘crânio de Adão’, batizando o pai da
humanidade e resgatando-o de seus pecados.126
A Paixão, e a conseqüente morte na cruz, são “o ato essencial para a salvação de cada um”,

conforme esclarece novamente Le Goff127. De acordo com Hans Belting, Dante Alighieri, em

sua Commedia, fornece um argumento decisivo para a necessidade da Paixão de Cristo: Deus

se doou para tornar o homem “suficiente a relevar-se”, mostrando-se, dessa maneira, “mais

generoso do que se tivesse simplesmente perdoado. Para ‘riparar’ o homem, quis escolher um

caminho em que justiça e misericórdia se equilibrassem”128.

Devido ao fato de ter dado Seu sangue pela humanidade, de ter morrido para a

remissão dos pecados, Cristo é legitimado como o juiz dessa mesma humanidade; por ter

morrido para a salvação dos homens, Ele, mais do que todos, tem o direito de julgá-los. Por

isso, nas representações do Juízo final, a figura de Cristo usualmente ergue os braços para

124
Ibidem.
125
1 Cor 15, 3.
126
MAGLI, I. Gli uomini della penitenza. Pádua: Muzzio, 1995, p. 88. Na Idade Média, com efeito, difundiu-se
a idéia de que Cristo, como redentor dos pecados de Adão, teria sido crucificado no local exato de seu
sepultamento. A partir do pensamento de São Paulo, Cristo seria visto como o segundo Adão que, ao morrer,
redimiria o primeiro de suas culpas. O pecado de Adão é recordado inclusive em uma das mais populares visões
medievais do Além, a chamada Visão de Thurkill (ca. 1206), em que São Miguel explica ao visionário que o belo
homem que via no Paraíso, e que parecia sorrir com um dos olhos e chorar com o outro, era exatamente Adão, “o
primeiro pai da raça humana”. “A roupa que o cobre, mas não totalmente, é a veste da imortalidade e a roupa da
glória. Ele foi privado dela por sua primeira transgressão. Desde o tempo de Abel, seu filho justo, ele começou a
reconquistar essa veste e continua a fazê-lo por meio de seus filhos virtuosos (…). Quando o número de seus
filhos eleitos for completado, Adão estará completamente vestido pela veste da imortalidade e glória. Desse
modo o mundo chegará ao fim”. Apud GARDINER, E. Op. cit., p. 234. Como explica Gardiner, Adão “surge
brevemente nessa visão como um símbolo da lenta história evolutiva da salvação”, possível somente após o
sacrifício de Cristo. Idem, p. 258. Deve-se destacar ainda a grande popularidade de muitas dessas visões, que
conheceram desse modo uma larga difusão ao longo de todo o período medieval.
127
Op. cit., p. 33.
128
L’arte e il suo pubblico. Funzione e forme delle antichi immagini della Passione. Bolonha: Nuova Alpha,
1986, p. 05.

LX
expor Seus estigmas, evidente comprovação de Seu sacrifício por toda a humanidade129.

Como explica Yves Christe, “os estigmas das mãos e do flanco, após terem sido mostrados a

São Tomé, o são a todos os homens, como prova da identidade do Filho do Homem vitorioso

e de Jesus crucificado e ressuscitado”130. Essa seqüência lógica e linear proposta pela história

cristã é clara em ao menos uma pintura específica: com efeito, no painel Alegoria da

Redenção, pintado por Ambrogio Lorenzetti por volta de 1345, há, no canto esquerdo, a

representação da Criação do homem, do Pecado original e da Expulsão do Paraíso; ao centro,

surgindo acima de um amontoado de corpos, está o Cristo crucificado; à extrema direita,

enfim, está a cena do Juízo final131.

A morte e a ressurreição de Cristo possuem também outra significação de extrema

relevância; elas são, na verdade, a base de toda a religião cristã. Cristo, ao ser crucificado,

“desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia e subiu aos céus”, como é recitado

no Credo definido pelo Concílio de Nicéia em 325. Esse episódio da descida de Jesus Cristo

ao mundo dos mortos é de fundamental importância: a Sua ressurreição, de fato, é a prova

irrefutável de Sua divindade, e também a promessa da ressurreição de todos os homens no

último dia para o derradeiro julgamento: “(…) ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus. Está

sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos”,

como é afirmado novamente pelo Credo. Antes do sacrifício de Cristo e da posterior redenção

da humanidade, o Paraíso estava fechado. Por isso São Paulo exclama: “se Cristo não

ressuscitou, é inútil nossa pregação e inútil nossa fé”132. Percebe-se como o Juízo final está

presente na doutrina cristã essencial e também em seu rito mais importante, a própria missa,

que propõe a recitação do Credo e também a celebração da Eucaristia. Esta, ou seja, a

129
A relação entre a Paixão de Cristo e o Juízo final, e sua influência nas representações visuais do tema, será
discutida no segundo capítulo desta tese.
130
La vision de Matthieu. Origines et développement d’une image de la Seconde Parousie. Paris: Klincksieck,
1973, p. 39
131
Para uma análise mais acurada desse painel, ver o segundo capítulo desta tese, p. 152 e 153.

LXI
consagração do pão e do vinho, é a reencenação do sacrifício de Cristo, é a recordação diária

de que, se Ele morreu pela humanidade, também retornará para julgá-la, recompensando os

justos e punindo os pecadores.

Para onde se dirigiria a alma após a morte? Uma vez mais o Cristianismo, influenciado pela religião

judaica, absorve desta a concepção binária do Além, que indicaria, de início, a existência de uma possibilidade

dupla de destino após a morte – Paraíso ou Inferno. Esse modelo dualista está presente igualmente em outras

culturas que exerceram influência sobre a nascente religião cristã, como a romana. O Além romano, com efeito,

é formado pelo Hades e pelos Campos Elíseos, para onde se dirigiriam os grandes heróis mortos em combate; os

judeus, por outro lado, acreditavam na existência do Éden e do sheol, o inferno judaico133.

O Cristianismo, entretanto, afastou-se de ambas as tradições no que diz respeito à localização dessas

instâncias ultraterrenas. De fato, para os romanos tanto o Hades como os Campos Elíseos deveriam se encontrar

sob a terra; para os judeus, talvez justamente porque o sheol também estivesse sob a face da terra, o jardim do

Éden deveria ser localizado sobre ela – ele é, efetivamente, o paraíso terreal. Para os cristãos, por outro lado,

havia uma forte e marcada oposição entre suas duas localidades, Paraíso e Inferno, uma vez que existia a clara

distinção feita entre a Terra e o Céu, como oportunamente observa Le Goff: “o Inferno era a Terra e o mundo

infernal opunha-se ao mundo celeste (…)”134. E como escreveu precisamente Hugo de São Vítor em sua Summa

de sacramentis christianae fidei (século XII),

O Inferno é o lugar dos tormentos, o céu o lugar das alegrias. É justo que o local dos
tormentos esteja embaixo e o local das alegrias no alto, pois a falta pesa para baixo,
enquanto que a justiça eleva para o alto.135

Essa oposição alto-baixo, de resto, já havia sido explicitada pelo Cristo mesmo que, crucificado, “desceu à
mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia e subiu aos céus”, como é recitado uma vez mais no Credo de
Nicéia. E, conforme observa Mikhail Bakhtin,
Na imagem medieval do mundo, o acima e o abaixo, o mais alto e o

132
1Cor 15, 14. Hugo de São Vítor (ca. 1096-1141), em sua Summa de sacramentis christianae fidei, afirma que
nenhuma alma poderia ir para o Paraíso antes da descida de Cristo ao Inferno, “à mansão dos mortos”, devido à
culpa do pecado original. Cf. LE GOFF, J. La naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1996, p. 206.
133
Cf. Idem, p. 11.
134
Ibidem.
135
Apud Idem, p. 195. Mesmo no Inferno tradicionalmente se acreditava que existiria essa oposição alto-baixo.
Os locais das piores torturas deveriam se situar mais abaixo, como é descrito no Purgatório de São Patrick:
“indignados os demônios então se precipitavam nas profundezas em chamas e arrastaram o cavaleiro com eles. O
mais profundo ele ia o mais largo o poço ficava, e mais terríveis eram os castigos que via”. Apud GARDINER,
E. Op. cit., p. 142. Quanto mais abaixo, mais distante do Paraíso. Essa idéia seria retomada posteriormente por
Dante em sua Commedia. Aqui, será no centro da terra que se encontrará Lo ‘mperador del doloroso regno; de
modo análogo, no Paraíso, as almas dos eleitos estarão em um dos nove céus concêntricos, de acordo com seus
méritos. Os mais merecedores estarão acima de todos, e, portanto, mais próximos do Criador.

LXII
mais baixo, possuem um significado absoluto tanto no sentido de

espaço como de valores (…). Todo movimento importante era visto e

interpretado somente como ascendente ou descendente, ao longo de

uma linha vertical. Todas as metáforas de movimento no pensamento e

na arte medievais possuem esse caráter nitidamente definido e

surpreendentemente consistente.136

Havia, no entanto, divergências com relação à localização precisa da região infernal. No norte da

Europa, por exemplo, acreditava-se que o Inferno deveria ficar em uma ilha distante; porém, o que prevaleceu,

enfim, foi a crença em uma localização subterrânea para essa região, o que é explicitado pelo próprio nome:

Infernum, “quia inferius iacet”, o que se encontra embaixo, conforme esclarece São Gregório Magno137. Na

Itália, a expressão “navegar para a Sicília” era um eufemismo para dizer que alguém havia partido para o Além,

uma vez que se acreditava que as crateras dos vulcões sicilianos conduziriam diretamente para o interior da terra

e, portanto, à região infernal – uma concepção que decerto foi herdada da Antigüidade138.

Quem iria a julgamento no último dia? Segundo as concepções cristãs, toda a humanidade, sem

dúvida. Sendo assim, aqueles que, ao morrer, e após o julgamento individual, haviam entrado no Paraíso, assim

como aqueles que haviam sido enviados para o Inferno; esses dois grupos ressuscitariam apenas para a

confirmação da decisão que já havia sido tomada no momento de suas mortes. Também os que haviam sido

enviados para o Purgatório para tentar remir suas penas ressuscitariam para o decisivo encontro com o Cristo juiz

que decidiria, enfim, sua morada eterna139; por fim, aqueles que ainda estariam vivos no momento da Parúsia –

um último grupo muitas vezes esquecido por alguns autores140, mas que é fundamental para as concepções

cristãs; afinal, Cristo retornará para “julgar os vivos e os mortos”, conforme o Credo de Nicéia. Dessa forma,

seguindo os pensamento de São Gregório Magno e Isidoro de Sevilha, uma divisão se torna canônica no período

medieval, que indica haver quatro grupos de ressuscitados: os bons que não serão julgados (os que, conforme

136
Apud SHEINGORN, P. “‘Who can open the doors of his face?’. The iconography of Hell Mouth”. In:
DAVIDSON, C. e SEILER, T.H. (org.). The iconography of Hell. Kalamazoo: Western Michigan University,
1992, p. 06.
137
Apud Idem, p. 13, nota 10.
138
Cf. Idem, p. 02.
139
Sobre a remissão dos pecados, ver a seguir.

LXIII
mencionado, já estavam no Paraíso), os bons que serão julgados, os maus que serão julgados e condenados e os

maus que não serão julgados, porém condenados (por já terem sido condenados no momento da morte, ou por

estarem extra Ecclesiam, ou seja, os não-cristãos)141.

É necessário mencionar ainda que a utilização do termo “almas” para designar os seres humanos no

Juízo final não é correta, uma vez que esses são, na verdade, os corpos ressuscitados para o julgamento. Comenta

de fato Davidson que, em uma encenação inglesa, os demônios sabiam que o momento do julgamento final havia

chegado porque o Inferno havia sido esvaziado das almas dos condenados – que haviam claramente ressuscitado

para a confirmação de sua condenação eterna por parte do Cristo juiz142.

Como se daria esse julgamento? Ele avaliaria as ações dos homens, sem dúvida. Como explica

Giordano da Pisa em seu Quaresimale Fiorentino, coletânea de seus sermões proferidos entre 1305 e 1306, à

exceção dos atos das crianças menores de sete anos e “das obras dos sonhos dos loucos”, todas as ações serão

avaliadas pelo Cristo juiz:

Mas aqueles que tinham conhecimento, e por seu vício o perderam, suas obras serão
bem julgadas, não serão porém desculpadas. Mas todas as obras que são ditas ações
de homem, todas virão a este julgamento. Obras de homem são todas aquelas que se
fazem deliberadamente: todas as ações que o homem faz, as quais delibera com o
entendimento e com sua vontade, isto é todas as ações que vêm da razão do homem,
todas serão julgadas (…).143

Essa é uma noção que se consolida juntamente à crença no julgamento de toda a humanidade.

Entretanto, é preciso levantar outra questão: se o Purgatório, enquanto região geograficamente determinada do

Além cristão, “nasce” – como oportunamente define Le Goff em sua obra – apenas no século XII, como

justificar um julgamento final? Se, no momento da morte, acreditava-se que cada homem seria submetido a um

julgamento individual que determinaria seu destino – Inferno ou Paraíso – por que a necessidade de um novo

julgamento no fim dos tempos?

Nos primeiros séculos do Cristianismo alguns autores defendiam a noção de que as almas daqueles

140
Como por exemplo Clifford Davidson, que afirma que “três tipos de pessoas participarão portanto do Juízo
final”, ou seja, os que foram para o Paraíso, para o Inferno ou para o Purgatório. “The fate of the damned in
English art and drama”. In: Idem, p. 43.
141
Cf. DAHAN, G. “Le Jugement dernier vue par les commentateurs des Sentences”. In: CHRISTE, Y. (org.).
De l’art comme mystagogie: iconographie du Jugement dernier et des fins dernières à l’époque gothique.
Actes du colloque de la Fondation Hardt, 13-16 février 1994. Poitiers: CESCM, 1996, p. 32.
142
“All oure saules ar wente/ and none ar in hell”. Apud DAVIDSON, C. “The fate of the damned in English
art and drama”. In: DAVIDSON, C. e SEILER, T.H. (org.). Op. cit., p. 42.
143
“Ma di quelli ch’ebbero conoscimento, e per lor vizio l’hanno perduto, le costoro opere ben saranno
giudicate, non saranno però scusate. Ma tutte l’opere che sono dette opere d’uomo, tutte verranno a questo
giudicio. Opere d’uomo sono tutte quelle le quali si fanno diliberamente: tutte l’opere che l’uomo fa, le quali

LXIV
que não tivessem cometido nenhum pecado mortal permaneceriam em uma espécie de “receptáculo”,

aguardando desse modo o dia do julgamento final. Dentre essas almas, encontrar-se-iam aquelas dos homens que

não foram totalmente bons – e que por isso não seguiram diretamente para o Paraíso – nem totalmente maus –

não merecendo, portanto, a danação eterna. Por essa concepção, não haveria qualquer purificação da alma

pecadora no espaço de tempo entre a morte e o fim dos tempos; não haveria a possibilidade de remissão dos

pecados e, portanto, nem de se alcançar o Paraíso antes do Juízo final. A idéia mais difundida, e que acabou por

prevalecer na teologia, é, no entanto, bastante diversa.

A crença no Inferno como instância definitiva surgiu apenas no século XII, no momento em que o

Purgatório foi institucionalizado como dogma pela Igreja. Assim, enquanto Inferno e Paraíso seriam estáticos e

perpétuos, o Purgatório seria uma localidade temporal, transitória e de passagem, que existiria somente até o dia

do Juízo Final. Para lá se dirigiriam as almas dos homens que em vida pecaram, mas não cometeram um pecado

tão grave que pudesse impedir um perdão, ainda que não imediato. A salvação nesses casos ainda seria possível.

Assim, a noção mesma de Purgatório reforçaria a crença em um duplo julgamento, o primeiro no instante da

morte – o julgamento individual –, e o segundo, o julgamento final, apenas no fim dos tempos144. Desse modo,

afirma Le Goff que

A crença no Purgatório implica de início a crença na imortalidade e na ressurreição


de modo que possa acontecer algo de novo para um ser humano entre sua morte e
sua ressurreição (…).145
Na chamada Visão do monge de Evesham, por exemplo, escrita por volta de 1196, o visionário, após

passar pelo Inferno e conhecer algumas das punições impostas aos pecadores, comenta, ao chegar ao Paraíso,

que dentre as almas que lá se encontravam,

Eu vi muitas que havia conhecido anteriormente. Reconheci lá uma certa abadessa


que havia apenas chegado dos locais de punição (…). Também vi e reconheci lá um
certo prior que, após ser libertado de toda punição, estava regozijando em uma paz
feliz com os espíritos dos justos, na certa esperança da visão divina com que ele
estava para ser recompensado.146
Ou seja, o monge reconhecia algumas almas vistas anteriormente em um local de punição, demonstrando assim

que muitas não precisariam aguardar o momento do Juízo final para serem enfim perdoadas por suas culpas.

Deve-se considerar, no entanto, o fato de que mesmo antes da instituição da crença no Purgatório já

egli dilibera collo ‘ntendimento e col volere suo, cioè a dire tutte l’opere che vegnono da la ragione de l’omo
(…)”. Quaresimale fiorentino 1305-1306 (org. Carlo Delcorno). Florença: Sansoni, 1974, p. 54.
144
Cf. LE GOFF, Op. cit., p. 15.
145
Ibidem. O tempo transcorrido entre esses dois momentos – julgamentos individual e final – serve para a
mitigação das penas de cada indivíduo, ligando-se também à noção de responsabilidade individual, do livre
arbítrio de cada um. Cf. Ibidem.

LXV
havia a noção de pecado venial – ou seja, aquele que poderia vir a ser perdoado após um tempo de expiação147.

Já mencionado por Santo Agostinho e por São Gregório Magno, baseados por sua vez na leitura de São João148,

o pecado venial se tornaria, no século XII, uma das justificativas para a criação mesma do Purgatório.

Não havendo ainda o Purgatório, o cristão acreditava de qualquer modo na possibilidade de remissão

de alguns tipos de pecado; assim, difundia-se também a crença na existência de uma espécie de divisão infernal:

de um lado, o Inferno “definitivo”, para o qual iriam as almas sem possibilidade de salvação – especialmente os

pagãos, os ímpios e os infiéis –, e que seriam submetidas ao “tormento eterno”, conforme a descrição dada por

São Mateus. De outro lado, haveria um espaço transitório, para o qual se dirigiriam as almas que precisassem

expiar suas culpas por um determinado período antes de receberem o perdão e serem definitivamente

incorporadas ao grupo dos eleitos. Assim sendo, mesmo não existindo o Purgatório enquanto instância física e

temporal, havia ao menos o chamado fogo purgatório (ignis purgatoriae), o fogo de purgação através do qual as

almas expiariam seus pecados.

A existência do Inferno, de qualquer modo, não era posta em dúvida, nem o havia sido desde os

primeiros cristãos. Entretanto, não apenas o Inferno e o destino dos pecadores era motivo de discussão. Nos

primeiros séculos do Cristianismo, os autores debatiam igualmente o destino dos justos no Além antes do

julgamento final. Para onde iriam suas almas? Para o Paraíso, ou para uma instância provisória de espera? De

fato, a discussão do tema parecia crucial, especialmente para refutar idéias heréticas como as defendidas pelos

maniqueístas. Para eles, se o bom ladrão teria entrado no Paraíso logo após a sua morte, não faria sentido pensar

em ressurreição dos corpos, pois o destino post-mortem já estaria decidido no momento do trespasse. Contra os

maniqueístas, escrevia João Crisóstomo em 386, em seu comentário sobre o Gênesis, que “o paraíso no qual

entra o ladrão é certamente o paraíso terrestre, mas ele não corresponde à estadia definitiva dos eleitos que se

146
Apud GARDINER, E. Op. cit., p. 213.
147
Le Goff, no entanto, destaca: “A expressão pecado venial pertence em todo caso a esse conjunto de noções e
de palavras que emergem no século XII junto com o Purgatório e que com ele formam um sistema. A palavra
possui ainda o interesse de significar – sentido do qual os clérigos do século XII estavam bem conscientes –
dignos de venia, de perdão”. Op. cit., p. 294. Os termos empregados anteriormente para designar esse tipo de
pecado são pecados minutos (minuta), pequenos ou menores (parva, minora), ligeiros ou mais ligeiros (levia,
leviora), e, sobretudo, quotidianos (quotidiana). Cf. Idem, p. 293.
148
I João 5, 16-17. Essa passagem reforça também a idéia do sufrágio, através do qual os vivos poderiam ajudar
a diminuir as penas e o sofrimento das almas dos mortos, um tema que será bastante explorado em muitas das
visões do Além. Na Visão de Thurkill, por exemplo, “São Miguel informou ao homem [Thurkill] sobre os
espíritos e sobre quantas Missas cada espírito necessitava para ser libertado e aceito no templo [o Paraíso]”.
Apud GARDINER, E. Op. cit., p. 233. Também a Visão do monge de Evesham expressa idéia semelhante:
“havia, no entanto, uma grande e variada distinção entre os que eram torturados nesse local. A alguns era
permitida uma passagem rápida e fácil, de acordo com seus méritos e a assistência concedida a eles após sua
morte; enquanto aqueles culpados de crimes maiores, ou menos assistidos pelas Missas de seus amigos, eram

LXVI
situa, pelo contrário, no céu”149. Deve-se recordar que os movimentos religiosos que não acreditavam na

possibilidade de remissão dos pecados após a morte, e afirmavam por outro lado a existência apenas de

condenados e eleitos, eram considerados heréticos. Sem dúvida, se não houvesse expiação alguma dos pecados e

o destino final de cada um já estivesse determinado no momento de sua morte, desnecessário seria o julgamento

final150.

Com relação ao destino póstumo das almas dos eleitos no espaço de tempo entre o julgamento

individual e o final, a principal questão residiria na definição do termo paradisus, que parece não ficar clara na

maior parte dos textos escritos nos primeiros séculos do Cristianismo. Muitos, com efeito, utilizavam a palavra

tanto para definir o Éden, o paraíso terreal de onde Adão e Eva foram expulsos, quanto o Paraíso para onde iriam

os justos quando da Parúsia – o chamado reino dos céus. Enquanto, como visto, João Crisóstomo claramente

distinguia um do outro, Santo Ambrósio (morto em 397) ainda associava o Éden ao Paraíso definitivo151. Desde

o século II, no entanto, os apócrifos Apocalipse de São Pedro (redigido em meados do século II) e Apocalipse de

São Paulo (de fins do século IV) já afirmavam a existência de dois locais diversos respectivamente para o

Paraíso e o reino dos céus. O Apocalipse de São Pedro situa a estadia definitiva no reino eterno que havia sido

prometido pelo Cristo; em contrapartida, o destino provisório dos justos após a morte seria um jardim

paradisíaco152.

De acordo com Marcel Angheben, é o bizantino Moisés Bar Kefa que desenvolve, após a crise

iconoclasta, uma “visão mais precisa e coerente do Além”153, retomando as idéias dos apocalipses apócrifos:

existiria apenas um único Paraíso, aquele prometido ao bom ladrão por Cristo; afirma que esse local não se

encontra no céu, e é somente um lugar de espera, e que, portanto, ficará vazio após a ressurreição dos corpos no

fim dos tempos. Após o julgamento final, o destino dos justos será o reino dos céus, em que “gozarão das

delícias que lhes são destinadas, um reino que se encontra nem sobre a terra nem no céu, mas acima do céu”154.

punidos de forma mais severa e por um tempo mais longo. Mas para todos, o mais próximo estavam do fim do
lago menos severa era a tortura a que deveriam ainda ser submetidos”. Apud Idem, p. 207.
149
ANGHEBEN, M. “Les jugements derniers byzantins des XI-XII siècles et l’iconographie du jugement
imédiat”. In: Cahiers archéologiques, 50, 2002, p. 111.
150
Como consta de um tratado anônimo da primeira metade do século XII, a alguns desses heréticos era
atribuída a idéia de que “nada pode vir em auxílio aos mortos que, a partir do momento em que morrem, estão ou
condenados ou salvos”. Apud LE GOFF, J. Op. cit., p. 293.
151
Cf. ANGHEBEN, M. “Les jugements derniers byzantins des XI-XII siècles et l’iconographie du jugement
imédiat”. In: Op. cit, p. 111 e 112.
152
Cf. Idem, p. 132, nota 50.
153
Idem, p. 112.
154
Ibidem. Essas noções encontram respaldo mesmo nas visões medievais do Além. Por exemplo, na Visão de
Drythelm (século VII), o guia explica que “este local florido, em que você vê essas belas e jovens pessoas, tão
animadas e alegres, é o local de recepção das almas daqueles que partiram de seu corpo após cumprir boas ações,
mas que não são tão perfeitas a ponto de merecerem a admissão imediata no reino dos céus. No Dia do

LXVII
Deve-se ressaltar ainda outro ponto: caso o fiel morresse em pecado, a Igreja não

tinha dúvidas em afirmar que o falecido padeceria por toda a eternidade dos castigos infernais,

uma vez que havia morrido sem o perdão divino. No entanto, mesmo quando o moribundo

conseguia realizar a derradeira confissão, e recebesse desse modo a absolvição de seus

pecados, poderia ser ainda necessário pagar por suas penas, pelo mal cometido a outrem ou ao

próprio Deus; isto se deveria ao fato de que esse perdão não seria capaz de apagar por si só o

erro do fiel.

A sustentação para essa noção provém do próprio texto bíblico. De fato, algumas passagens da Bíblia

evidenciam as conseqüências do pecado, mesmo que tenha havido o perdão de Deus:

Davi disse a Natã: “pequei contra Iahweh!”. Então Natã disse a Davi: “por sua parte,
Iahweh perdoa a tua falta: não morrerás. Mas, por teres ultrajado a Iahweh com o teu
procedimento, o filho que tiveste morrerá”155.
O pecado, portanto, geraria a chamada pena temporal, que permaneceria mesmo após a remissão da

pena eterna, que levaria o fiel à condenação perene se não expurgada. Esta culpa, que não se apagaria

imediatamente, precisaria ser remida de outra forma, por meio de penitências, enquanto o fiel estivesse vivo;

caso a morte tivesse sobrevindo antes do cumprimento da penitência, esta deveria ser feita após a morte, no

Purgatório, ainda que por um breve período de tempo. Algumas visões ecoam de forma explícita essa mesma

noção. Um dos mais famosos textos, o Purgatório de São Patrick, afirma que

A penitência que empreendemos antes de nossa morte ou no momento de nossa


morte, mas que não completamos na terra, deve ser ainda cumprida com o
sofrimento nos locais de punição que você viu, de acordo com a natureza e a
magnitude do pecado. 156

Julgamento, porém, elas verão Cristo e participarão das alegrias de Seu reino; pois os que são perfeitos em
pensamento, palavra e ação entram imediatamente no reino dos céus assim que deixam seus corpos. Esse é o
local com o odor perfumado e luz brilhante em que você ouviu o som de um doce cantar”. Apud GARDINER, E.
Op. cit., p. 61. O texto evidencia, portanto, que não apenas há gradações entre os eleitos, como há alguns que
não são autorizados a entrar no reino dos céus, mas que não se encontram de qualquer modo no Purgatório.
Noção semelhante se encontra na Visão de Thurkill. No mesmo trecho em que São Miguel explica ao visionário
a importância das missas para as almas, o arcanjo esclarece ainda que “as almas que aguardavam a admissão [no
Paraíso] não sofriam punição, exceto o fato de que esperavam uma assistência especial de seus amigos”. Apud
Idem, p. 233. Essa visão se distancia das noções tradicionais sobre o Além no sentido de afirmar que mesmo as
almas dos justos poderiam usufruir os sufrágios dos vivos, de modo a poderem sair do Paraíso “provisório” e
ingressarem enfim no reino dos céus. Tradicionalmente, como visto, são as almas do Purgatório que poderiam
receber esses benefícios. Poder-se-ia indagar: considera-se aqui a impossibilidade de contemplação do Criador
uma punição, que poderia ser sufragada?
155
2Sm 12, 13-14. Noção semelhante se encontra na seguinte passagem: “Então Iahweh disse a Moisés e a
Aarão: ‘visto que não crestes em mim, de modo a me santificardes aos olhos dos israelitas, não fareis entrar esta
assembléia na terra que lhe dei’” (Nm 20, 12). De acordo com o texto bíblico sabe-se, com efeito, que, por conta
de seu erro, Moisés não pôde conduzir o povo de Deus à terra prometida, tarefa que caberia posteriormente a
Josué.
156
Apud GARDINER, E. Op. cit., p. 144.

LXVIII
Na Visão de Drythelm, escrita possivelmente no século VII157, encontra-se noção semelhante; há

aqui, ainda, uma menção a esse que pode ser considerado também um “precursor” do Purgatório. Assim explica

o guia do visionário Drythelm um local visitado anteriormente por eles:

Aquele vale tão terrível que você viu por causa das chamas que o consomem e frio
cortante é o local para pôr à prova e punir as almas daqueles que retardaram a
confissão e a correção de seus pecados, mas que eventualmente recorreram ao
arrependimento no momento da morte, e então partiram dessa vida. Entretanto,
porque finalmente se confessaram e se arrependeram no momento da morte, elas
serão recebidas no reino dos céus no Dia do Julgamento.158
Evidencia-se desse modo a necessidade de purgação mesmo após o arrependimento antes do trespasse.

De qualquer modo, o cristão podia se sentir, em geral, seguro de que, cumprindo suas obrigações e

permanecendo no caminho do Bem, ele ascenderia ao Paraíso após sua morte. Afinal, como já comentado, a

salvação de cada homem já estaria garantida em função do sacrifício do Cristo na cruz. O que aconteceria,

porém, quando uma série de fatalidades, e um evento específico em particular, passaram a ser interpretados não

somente como um castigo divino pelo pecado de toda a humanidade, como também um sinal de que o fim dos

tempos estaria próximo – e que, portanto, boa parte dessa humanidade estaria destinada ao Inferno? Esse

problema, que foi colocado e intensamente debatido no século XIV, especialmente após o surto de Peste Negra,

será discutido a seguir.

3. A Peste Negra e os indicadores demográficos

O
surto de peste em 1348, estima o geógrafo canadense Harold Foster, foi

provavelmente o segundo maior desastre na história do homem, ficando

atrás apenas da II Grande Guerra. Isto porque, de acordo com suas

concepções, os desastres deveriam ser medidos não apenas pelo número de vítimas que

causam mas também pelos danos físicos e emocionais que acarretam159. Ainda que se critique

o método empregado por ele, que busca quantificar emoções – tarefa assaz difícil de ser

empreendida, uma vez que sentimentos são por natureza subjetivos, e especialmente quando

157
O venerável Beda de fato já a menciona em sua Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, redigida em 731. Cf.
Idem, p. 243.
158
Apud Idem, p. 61. A mesma visão destaca ainda a importância de missas e sufrágios para a salvação dessas
almas: “muitas [almas], no entanto, são ajudadas antes do Dia do Julgamento pelas preces, esmolas e jejuns dos
vivos, e mais especialmente por meio das Missas”. Apud Ibidem.

LXIX
se trata de um acontecimento tão distante no tempo –, não há dúvidas de que a Peste Negra foi

um dos piores desastres já registrados pelo homem160.

Não se deseja aqui recapitular a origem da peste no século XIV; para isso há inúmeras

publicações, mais recentes ou não, que já discutiram o problema exaustivamente161. Basta

recordar brevemente que os testemunhos de época parecem ter atribuído, quase de modo

unânime, a origem da epidemia à Ásia central, “onde ela existia em estado endêmico”162. Na

Itália, a epidemia teria chegado com os navios genoveses vindos do Oriente; a doença se

alastraria após esses navios terem aportado em Pisa, como é destacado por alguns cronistas

coevos163.

A Peste Negra pode ter trazido consigo uma grande mudança nas mentalidades: com

efeito, as altas taxas de mortalidade parecem ter alterado na população a percepção quanto à

proximidade da morte; esta, de fato, era sentida pela maioria como iminente. Esta mudança,

por sua vez, poderia ter modificado os modos de busca pela salvação, que se tornaria para

muitos quase uma obsessão.

Estimar o número de mortos por conseqüência do surto não é tarefa simples; em

relação à Península Itálica há um consenso entre os estudiosos de que teria sido uma das

159
A pesquisa de Foster é comentada por LERNER, R.E. “Antichrists and Antichrist in Joachim of Fiore”. In:
Speculum, vol. 60, nº 03, 1985, p. 533.
160
Fazendo uma vez mais um paralelo com a história recente, escreve o historiador da arte italiano Lorenzo
Lorenzi, comentando as conseqüências da epidemia sobre Florença, que “tal desastre possui comparação com a
idade contemporânea somente com os efeitos da [bomba] atômica sobre Hiroshima e Nagasaki”. “La pittura di
morte a Firenze al tempo dei terribili fatti del 1348”. In: Città di vita, 51, nº 2, 1996, p. 141.
161
Como os estudos de BOWSKY, W.M. “The impact of the Black Death upon Sienese government and
society”. In: Speculum, vol. 39, nº 01, janeiro 1964; COHN, Jr, S.K. The Black Death transformed. Disease
and culture in early Renaissance Europe. Nova York: Oxford University, 2002; GOTTFRIED, R.S. The Black
Death. Natural and human disaster in medieval Europe. Londres, 1983; HERLIHY, D. The Black Death and
the transformation of the West. Cambridge (MS) e Londres: Harvard University, 1998; NAPHY, W. e
SPICER, A. La peste in Europa (trad. G. Arganese). Bolonha: Il Mulino, 2006; WILLIMAN, D. The Black
Death. The impact of the fourteenth-century plague. Nova York, 1982; VAN OS, H.W. “The Black Death and
Sienese painting”. In: Art History, 4, 1981. Muitos deles discutem de modo particular o contexto italiano.
162
WOLFF, P. Outono da Idade Média ou Primavera dos tempos modernos? (trad. C. Sarteschi). São Paulo:
Martins Fontes, 1988, p. 15.
163
“Negli anni 1348, alla entrata di gennaio, venne a Pisa due ghalee di Genovesi le quali vennono di Romania,
et chome furono gunti alla piaza del pesce, qualunque persona favellò a quelli delle decte due ghalee di subito si
era amalato et morto (…)” [“Em 1348, no início de janeiro, chegaram a Pisa duas galeras de genoveses que
vieram da Romênia, e como chegaram à praça do peixe, qualquer pessoa [que] falou com aqueles das ditas duas

LXX
regiões mais severamente afetadas pelo surto164. Os problemas se impõem primeiramente

devido à dificuldade de se determinar a população nas cidades antes da peste. Enrico Fiumi

estimou que, em seu ápice na Idade Média, toda a região da Toscana deveria ter

provavelmente dois milhões de habitantes165. Após a epidemia, a taxa populacional diminuiu

sensivelmente, e demorou muito para retomar os valores pré-peste, como será comentado em

seguida.

O que se pode afirmar é que houve, de fato, em 1348 uma mudança brusca nas taxas

de mortalidade. De acordo com Samuel Cohn, essa alteração pode ser verificada por meio de

documentos diversos: primeiramente, com os testamentos e outros documentos similares,

como doações para a Igreja; necrológios, obituários e crônicas que atestam as mortes em

comunidades monásticas e confrarias; benefícios que se tornam vagos após o primeiro grande

surto; taxas de mortalidade senhoriais; e, finalmente, registros de sepultamentos em

comunidades monásticas, distritos eclesiásticos e cidades como um todo166.

O mesmo autor, no entanto, chama a atenção para os riscos de se trabalhar com esse

tipo de documentação, uma vez que a maior parte dessas fontes não fornece as causas das

mortes de modo sistemático antes de pelo menos 1420. Na questão particular dos testamentos,

estes quase nunca especificavam os motivos do falecimento167. De fato, nesse caso específico

o importante era a proximidade da morte, e não as razões – naturais ou não – que a teriam

feito se aproximar. O que se pode constatar, no entanto, é que justamente nos meses em que a

epidemia se manifestava, as taxas de mortalidade atingiam picos absolutamente incompatíveis

com as médias anuais; a Peste Negra, sem dúvida, deve ter desempenhado grande papel nesse

contexto, ainda que não se possa descartar a convergência de doenças diversas que possam ter

galeras imediatamente adoeceu e morreu (…)”]. RANIERI SARDO. Cronica di Pisa (org. Ottavio Banti). Fonti
per la storia d’Italia, n.º 99. Roma: Istituto Storico Italiano per il Medioevo, 1963, p. 96.
164
Cf. BOWSKY, W.M. “The impact of the Black Death upon Sienese government and society”. In: Op. cit., p.
01. O mesmo afirma Samuel Cohn. Cf. Op. cit., p. 88
165
Cf. HERLIHY, D. Op. cit., p. 31.
166
Cf. Op. cit., p. 147.
167
Cf. Ibidem.

LXXI
exacerbado ainda mais esse quadro.

Estudando especificamente os efeitos da peste sobre a cidade de Siena, Bowsky

estimou a população dentro dos muros da cidade, pouco antes do surto, em mais de 50.000 –

sem quantificar, portanto, a população das Masse, região próxima a Siena, ao redor da cidade,

e de todo o contado168.

Qual teria sido, no entanto, a taxa de mortalidade nessa cidade, uma das mais

importantes em termos econômicos e culturais da Toscana? Há uma referência anônima do

século XIV que afirma que “em 1348 houve uma grande pestilência em Siena e por todo o

mundo, e durou três meses, junho, julho e agosto, e de [cada] quatro três morreram”169. O

cronista sienense Agnolo di Tura (que escreveu sobre os fatos ocorridos em Siena entre os

anos 1300 e 1351) afirma que

(…) com menos de vinte anos morreram em Siena 36 mil pessoas; e velhos e outra
gente no total de 52 mil. No total em Siena e nos burgos de Siena 28 mil pessoas, de
modo que no total tem-se que na cidade e nos burgos de Siena morreram 80 mil
pessoas, e perfaziam Siena e os burgos mais de 30 mil (sic) homens, e ficou Siena
com menos de 10 mil homens; e os que ficaram estavam como que desesperados e
170
quase fora de sentimento.
A estimativa de Agnolo é bastante alta – uma taxa de mortalidade de quase 84% – e

certamente exagerada, embora outros cronistas pareçam confirmá-la. É preciso considerar, no

entanto, que possivelmente o autor, escrevendo pouco após o surto, teria contabilizado entre

os mortos muitos que teriam na verdade fugido da cidade, e retornado a Siena apenas muito

depois171.

Para as outras cidades toscanas não há igualmente valorações confiáveis ou

168
Cf. “The impact of the Black Death upon Sienese government and society”. In: Op. cit., p. 11.
169
Apud Idem, p. 17.
170
“(…) che da vinti anni in giú morì in Siena 36 m persone; e’ vechi e altra gente in somma di 52 m. In tutto in
Siena e ne’ borghi di Siena morì 28 m persone, sichè in tutto si trova che ne la città e ne’ borghi di Siena morisse
80 m persone, chè in questo tempo facea Siena e li borghi più di 30 m (sic) omini, e rimase Siena a meno di X mila
omini; e quelli che rimasero erano come disperati e quase fuore di sentimento”. “Cronaca senese attribuita ad
Agnolo di Tura del Grasso detta La cronaca maggiore [1300-1351]”. In: LISINI, A. e IACOMETTI, F. (org.).
Rerum Italicarum sciptores. Cronache senesi, XV, 6,1, 1931-37, p. 555.
171
Cf. BOWSKY, W.M. “The impact of the Black Death upon Sienese government and society”. In: Op. cit., p.
17. A fuga para o campo parece ter sido uma solução empregada por muitos, visto que a mortalidade fora das
áreas urbanas seria consideravelmente menor. O relato do Decameron de Boccaccio mostra o isolamento a que
as pessoas se submetiam para escapar do contágio.

LXXII
definitivas. Fiumi estima, a partir de documentos de época, que em 1339 San Gimignano teria

cerca de 13.000 habitantes; em 1350 – data precisada pelo livro de bocas das terras e das vilas

– a população havia se reduzido a 3997172. A taxa de mortalidade em San Gimignano teria

sido, portanto, de cerca de 69,25%; Herlihy por outro lado estima uma taxa de 75,9% –

incluindo os arredores da cidade173. Nos campos de Pistóia, a população caiu de cerca de

37.600 pessoas por volta de 1244 para apenas 8700 em 1404, uma queda de 76%174. Ranieri

Sardo, que escreveu suas crônicas sobre a cidade de Pisa entre os anos 1354 e 1399, avaliou

que, na cidade, quatro de cada cinco habitantes teriam morrido durante os cinco meses da

primeira peste175.

Tratando-se especificamente de Florença, deve-se mencionar ainda a crônica de

Giovanni Morelli, comerciante florentino que, entre 1393 e 1421, manteve de modo

intermitente uma espécie de diário. Morelli estimou, em seus Ricordi, ainda no século XIV,

que a população de Florença havia atingido os 120.000 habitantes pouco antes do surto, e que

três quartos – ou 80.000 – teriam morrido em 1348176. Outro cronista florentino, Matteo

Villani – que morreria vítima do surto de 1363 – estimou que 60% dos habitantes de Florença

não resistiram ao surto de 1348177.

Percebe-se, enfim, que, ainda que não existam valores definitivos, a taxa de

mortalidade foi bastante alta em toda a região; o mesmo se pode dizer para muitas outras

172
FIUMI, E. Storia economica e sociale di S. Gimignano. Florença: Olschki, 1961, p. 174.
173
Cf. Op. cit., p. 97.
174
Cf. Idem, p. 98, nota 06.
175
“Et questa pistolenza durò insino al maggio (…); morirono de’ cincque e’ quattro, et sicchome fu in Pisa,
chosì fu per tucto l’altro mondo et u’ più e u’ meno, et di questo fu qui il principio” [“E esta pestilência durou
até maio (…); morreram de cinco quatro, e assim como foi em Pisa, assim foi por todo o outro mundo e em
alguns [lugares] mais e em alguns menos, e disso foi aqui o princípio”]. RANIERI SARDO. Op. cit., p. 96.
176
Cf. COHN Jr., S.K. Op. cit., p. 65.
177
Cf. BOWSKY, W.M. “The impact of the Black Death upon Sienese government and society”. In: Op. cit., p.
17. A história da família Villani mostra como as seguidas epidemias de Peste Negra poderiam afetar uma
família. O surto de 1348 já havia vitimado seu irmão, Giovanni. Matteo prossegue a crônica que seu irmão vinha
escrevendo sobre Florença; após a sua própria morte em 1363, sua crônica é finalizada com um breve relato de
seu filho Filippo.

LXXIII
regiões da Europa178. Estima-se que, em média, a taxa populacional tenha sido reduzida em

cerca de dois terços somente com o grande surto iniciado ainda em 1347, e que terminaria

apenas em 1349179. E é preciso considerar também que a peste teve efeitos duradouros sobre a

demografia européia. Se na Toscana havia cerca de dois milhões de habitantes antes de 1348,

como estimou Fiumi, a região só voltaria a um patamar demográfico semelhante após 1850180.

Para cidades como Siena, Volterra e San Gimignano, Bowsky afirma que apenas no século

XX a população conseguiu enfim retornar aos números de antes da peste181.

Tendo sido uma epidemia tão devastadora, e com longas e duradouras conseqüências

sobre as taxas demográficas européias, é pertinente indagar se a Peste Negra poderia ter

afetado igualmente setores fundamentais da vida européia. Afinal, é preciso recordar, como o

fazem Naphy e Spicer, que “a morte, quando é um fenômeno de massa, não produz somente

cadáveres”182. O que teria mudado após 1348?

4. Conseqüências da Peste Negra sobre as práticas religiosas

178
Para citar um exemplo fora da Península Itálica, pode-se mencionar o registro paroquial de Givry, na
Borgonha. Aqui, constatam-se trinta e nove falecimentos em 1345, vinte e cinco em 1346, quarenta e dois em
1347. Em 1348, no entanto, o número de óbitos saltou para 649 – sendo que 615 no período entre dois de agosto
e dezenove de novembro. Cf. WOLFF, P. Op. cit., p. 21. Pode-se mencionar ainda outro ponto: o historiador
Michael Goodich afirma que, entre os anos 1250 e 1360, o número de filhos por família diminuiu drasticamente
em algumas regiões européias, de 3,5 para 1,9. Cf. Violence and the miracle in the fourteenth century. Private
grief and public salvation. Chicago e Londres: Chicago University, 1995, p. 86.
179
O historiador Yves Renouard, no entanto, afirma que “(…) a proporção dos falecimentos devidos à peste em
relação ao conjunto da população parece ter oscilado entre dois terços e um oitavo conforme as regiões”. Apud
WOLFF, P. Op. cit., p. 20. É preciso, portanto, ter em mente que, ao mesmo tempo em que dizimava regiões
inteiras, a epidemia mal deixava seqüelas em outra, ainda que ambas fossem bastante próximas. Um caso
expressivo nesse sentido é o de Milão durante o surto de 1348.
180
Cf. HERLIHY, D. Op. cit., p. 32.
181
Op. cit., p. 09. Fiumi mostra que em 1950 “a população de San Gimignano está ainda abaixo das cifras do
período comunal”. Op. cit., p. 174. De fato, a cidade contava apenas com 11.062 habitantes nessa data, contra os
13.000 estimados em 1339. Esses números se tornam ainda mais antagônicos quando se considera que, até 1784,
os religiosos eram excluídos da contagem populacional. Cf. Ibidem. No caso específico de San Gimignano, é
preciso considerar também outros fatores que não apenas o surto de 1348. No levantamento feito em 1428, a
população havia se reduzido ainda mais: apenas 3138 habitantes. Além da recorrência de novos surtos até o fim
do século XIV, que certamente tiveram seu impacto, pode-se especular também o esvaziamento da cidade devido
à busca de novas oportunidades em cidades mais abastadas, como Florença. San Gimignano, com efeito, é
anexada à república florentina em 1353, devido à decadência econômica da cidade. Despovoamento e crise
econômica, em verdade, estão diretamente relacionados: como escreve Fiumi, “(…) é certo que a causa [da
decadência econômica] deve ser buscada, tanto em San Gimignano como em toda a Toscana, no gravíssimo
depauperamento demográfico das cidades e dos campos. O processo de unificação territorial do estado florentino
foi sem dúvida acelerado pelo despovoamento da região”. Idem, p. 170 e 171.

LXXIV
A
redução brusca e intensa da população teve possivelmente um imenso

impacto sobre os que sobreviveram; ela parecia trazer constantemente à

memória os horrores da peste. Há relatos que mostram ainda um certo

anestesiamento da população no que tange às perdas causadas pelo surto. Por exemplo,

escreve o cronista sienense Agnolo di Tura que

Eu, Agnolo di Tura, conhecido por il Grasso, enterrei meus cinco filhinhos com
minhas mãos (…); e não havia quem chorasse algum morto, uma vez que cada um
183
esperava a morte.
As descrições de época que chegaram aos dias de hoje trazem relatos terríveis e dolorosos

sobre a doença; a maioria dos infectados morria em poucos dias, após grande agonia184. O

cronista florentino Matteo Villani descreve a enfermidade da seguinte maneira:

(…) uma peste entre homens de todas as condições, de qualquer idade e sexo, que
começavam a cuspir sangue e morriam alguns subitamente, alguns em dois ou três
dias, e outros demoravam mais a morrer. E aconteceu que quem cuidasse do doente,
pegando a doença ou, infectado por aquela mesma corrupção, tornava-se
rapidamente doente e morria do mesmo modo; a muitos inchava a virilha, e a muitos
sob as axilas à direita e à esquerda, e a outros em outras partes do corpo, [de modo]
que se podia geralmente encontrar um inchaço singular em algum lugar do corpo
185
infectado.
Deve-se destacar a velocidade com que a doença se disseminava pela população, conforme

relata o próprio Villani186. O grau de contágio da enfermidade era tão intenso que o cronista

182
NAPHY, W. e SPICER, A. Op. cit., p. 31
183
“E io Agnolo di Tura, detto il Grasso, sotterai 5 miei figliuoli co’ le mie mani (…); e non era alcuno che
piangesse alcuno morto, inperochè ognuno aspettava la morte”. “Cronaca senese attribuita ad Agnolo di Tura
del Grasso detta La cronaca maggiore [1300-1351]”. In: LISINI, A. e IACOMETTI, F. (org.). Op. cit., p. 555.
184
Um cronista anônimo de Orvieto escreveu que “pela manhã eles estavam saudáveis, na manhã seguinte
estavam mortos”. Apud COHN, S.K. Op. cit., p. 109.
185
“(…) una pestilenzia tra li uomini d’ogni condizione di catuna età e sesso, che cominciavano a sputare
sangue, e morivano chi di sùbito, chi in due o in tre dì, e alquanti sostenevano più al morire. E aveniva, che.cchi
era a servire questi malati, appicandosi quella malatia, o infetti, di quella mesesima coruzione incontanente
malavano,e morivano per somigliante modo; e a’ più ingrossava l’anguinaia, e a molti sotto le ditella delle
braccia a destra e a sinistra, e altri in altre parti del corpo, che quasi generalmente alcuna enfiatura singulare
nel corpo infetto si dimostrava”. VILLANI, M. Cronica. Con la continuazione di Filippo Villani, volume I
(org. Giuseppe Porta). Parma: Fondazione Pietro Bembo/ Ugo Guanda, 1995, p. 09. Outros relatos mencionam
ainda lenticulae, possivelmente erupções ou manchas, por todo o corpo do doente, bem como pestilentialis
punturae, “pontos pestilentos”. Cf. HERLIHY, D. Op. cit., p. 29.
186
Outros cronistas constatam o mesmo fato, como Ranieri Sardo: “(…) qualunque persona favellò a quelli delle
decte due ghalee di subito si era amalato et morto, et qualunque favellava allo infermo o ttochasse di quegli
morti, di subito amalava et moriva. Et chosì fu sparto lo grande furore per tucta la cictà di Pisa, in tanto che
ogni persona moria” [“(…) qualquer pessoa [que] falou com aqueles das ditas duas galeras imediatamente
adoeceu e morreu, e qualquer um [que] falasse com o enfermo ou tocasse aqueles mortos, imediatamente adoecia
e morria. E assim se espalhou o grande furor por toda a cidade de Pisa, enquanto cada pessoa morria”]. Op. cit.,
p. 96.

LXXV
Jean de Venette acreditava que este se dava ex imaginatione187. E mesmo dentre os médicos

havia quem esperasse a contaminação pelo olhar188.

A diminuição populacional acarretada pelo surto de peste, além da dor da lembrança

constante da perda súbita de um ente querido, também trouxe consigo um problema grave

para as práticas cristãs. De acordo com Bowsky, os religiosos foram muito vitimados pela

doença e por seu alto grau de contágio, uma vez que eram freqüentemente chamados pelos

doentes com a perspectiva de uma morte bastante próxima. Deve-se considerar também que

os membros do clero regular (freis e monges, ordenados ou não) viviam em mosteiros ou

conventos extremamente populosos; vários dentre eles já eram de mais idade, e, portanto,

mais sensíveis a qualquer tipo de infecção 189. Nos Annales Camaldulenses do cenóbio

beneditino de Santa Maria degli Angeli, em Florença, consta que, por conseqüência da

epidemia de 1348, faleceram três quartos dos monges190, tendo permanecido apenas sete – e

em precárias condições de saúde191. O cronista irlandês John Clyn resumiu bem a questão: “o

confessor e o confessado eram levados juntos para o túmulo”192.

Houve, entretanto, uma contrapartida assaz lucrativa para os religiosos: com receio de

seu destino após a morte, muitos leigos doaram suas terras para os mosteiros e outras

instituições religiosas. Comenta Bowsky que

Tão numerosos foram os legados da peste que em outubro de 1348 o Conselho de


187
Também Agnolo di Tura comenta sobre essa forma de transmissão: “(…)questo morbo s’attachava coll’alito
e co’ la vista pareva, e così morivano (…)” [“(…) este mal parecia se disseminar pelo hálito e pela vista, e assim
morriam (…)”]. “Cronaca senese attribuita ad Agnolo di Tura del Grasso detta La cronaca maggiore [1300-
1351]”. In: Op. cit., p. 555.
188
Cf. COHN Jr., S.K. Op. cit., p. 114. Pode-se mencionar, por exemplo, o médico francês Guy de Chauliac,
testemunha dos surtos de 1348, 1358 e 1361 em Avignon. Ele escreve em 1361, pouco após uma nova epidemia,
que “a doença era extremamente contagiosa, especialmente por causa do sangue cuspido, de modo que um
pegava a doença do outro, não apenas através da proximidade como também pelo simples olhar do outro”. Apud
COHN Jr., S.K. Op. cit., p. 87.
189
Cf. BOWSKY, W.M. “The impact of the Black Death upon Sienese government and society”. In: Op. cit., p.
14 e 15.
190
“An ex sevissima peste hoc anno grassante praesertim in Florentina urbe obierit Silvester ignoramus; certum
est viginti et unum monachos Angelorum ex eo flagello sublatos e mundo”. ANDENNA, G. “Effetti della peste
nera sul reclutamento monastico e sul patrimonio ecclesiastico”. In: La Peste Nera. Dati di una realtà ed
elementi di una interpretazione. Atti del XXX Convegno storico internazionale. Spoleto: Centro italiano di studi
sull’Alto Medioevo, 1994, p. 319.
191
“Squallidi per multos menses postea permansere”, escreve a mesma crônica. Apud Ibidem.
192
Apud COHN Jr., S.K. Op. cit., p. 121. Diversos outros cronistas afirmam o mesmo. Cf. Ibidem.

LXXVI
Siena suspendeu por dois anos as apropriações anuais para os religiosos e suas
instituições porque estes, antes necessitados, agora estavam ‘imensamente
193
enriquecidos e na verdade mais gordos’ devido às heranças da peste.
Deve-se destacar, ainda, certa retomada do número de religiosos na maior parte das

ordens após o pico do primeiro grande surto. A mesma crônica florentina de Santa Maria

degli Angeli constata uma surpreendente entrada de noviços ao longo da década de 1350194. O

mesmo parece ter ocorrido entre os dominicanos e os franciscanos em Florença. Esse fato

poderia talvez ser explicado por uma provável renovação do fervor religioso por conseqüência

da peste – pode-se supor promessas de consagração dos filhos que não pereceram da doença à

Igreja ou ainda de uma conversão radical através do abandono do mundo e do ingresso em

uma ordem religiosa.

O historiador francês Charles Marie de la Roncière comenta que, em relação às

dioceses de Florença e Fiesole, o número de novas ordenações ocorridas no convento

franciscano de Fiesole, e que deveria suprir a demanda de ambas as localidades, não parece

ter aumentado de forma significativa após a epidemia de 1348. O autor mostra, com efeito,

que a média anual de ordenações entre 1329 e 1336 estava entre sete e dez; nos anos

imediatamente posteriores à peste (1350 e 1351), a média ficou entre quatro e treze; entre

1361 e 1362 a média anual aumentou para vinte novas ordenações, enquanto entre 1367 e

1370, a média anual de novas ordenações foi de quatorze195.

Embora a Peste Negra “aparentemente não determine nem desmoronamento nem

retomada” do número de religiosos, como escreve Roncière196, é importante destacar que,

entre 1329 e 1362 o número de ordenações praticamente dobrou; e, como novamente observa

193
BOWSKY, W.M. “The impact of the Black Death upon Sienese government and society”. In: Op. cit., p. 16.
Cohn afirma também que os testamentos podem ter sido a principal fonte de renda das instituições de caridade,
ao menos na metade do século XIII. The cult of remembrance and the Black Death. Six Renaissance cities in
central Italy. Baltimore e Londres: John Hopkins University, 1992, p. 02. Outros autores, no entanto, percebem
essa fonte de renda ainda no princípio do século XIV, como Banker. Cf. Idem, p. 307, nota 1.
194
“Brevi tempore familia ad Angelos innovatur tanto in numero ut de novis aptandis domiciliis Philippo priori
ingruerit necessitas, quod praestare non distulit”. Apud ANDENNA, G. “Effetti della peste nera sul
reclutamento monastico e sul patrimonio ecclesiastico”. In: Op. cit., p. 319.
195
“Les influences des franciscains dans la campagne de Florence au XIVe siècle (1280-1360)”. In: Mélanges de
l’École Française de Rome, Moyen Âge – Temps modernes, nº 87, 1975, p. 97.
196
Idem, p. 98.

LXXVII
o autor, “isto em uma região despovoada e por uma geração dizimada”, uma vez que, cumpre

lembrar, os noviços ordenados no início dos anos 1360 nasceram antes de 1345197, e viveram

os anos da Peste Negra ainda crianças. Esses novos ordenados podem ser considerados, sem

dúvida, verdadeiros sobreviventes de sua geração. Essa observação reforça a hipótese da

consagração desses jovens à vida religiosa por seus pais, como forma de agradecimento pela

sobrevivência da família ou ao menos de parte dela.

De qualquer modo, durante o primeiro surto, e ao menos por um curto período de anos

depois dessa manifestação, o número de religiosos havia diminuído de forma drástica, uma

vez que mesmo a possível maior entrada de noviços – que não deve ser considerada de modo

absoluto, mas apenas com relação à média de novos ingressos nos conventos ao longo dos

anos – não teria compensado as perdas humanas ocasionadas pela peste198.

A carência de religiosos precisou, entretanto, ser suprida de algum modo. O grande

problema que se impunha à Igreja concernia o extenso tempo necessário para a adequada

formação de um religioso. Muitos, de fato, passavam longos períodos em universidades para

adquirir um nível elevado de instrução199; é preciso considerar, ainda, que era necessário o

conhecimento de latim para o desenvolvimento das práticas litúrgicas, idioma a que poucos

poderiam ter tido acesso antes de ingressar nas fileiras religiosas200. Em tempos normais, uma

paróquia poderia talvez permanecer muitas semanas, ou mesmo muitos meses vazia até que

alguém viesse preencher a vaga deixada pela morte de um religioso. Como suprir a demanda

de inúmeros novos postos simultaneamente? Comentam Naphy e Spicer que

Uma paróquia vacante em 1348-49 pela morte de um pároco não poderia portanto
esperar que lhe mandassem um outro em breve tempo. E se ainda que houvesse um
disponível, teria sido provavelmente menos instruído, menos esperto e

197
Cf. Ibidem.
198
Fato novamente observado por Roncière: “percebe-se contudo que o impulso de vocações não é imediato.
Entre a peste e o momento de seu ponto máximo passam-se muitos anos durante os quais as entradas de noviços
não preenchem certamente os vazios deixados pela peste, visto que, ainda em 1351, o fluxo de noviços não
supera aquele que, vinte anos antes, permitia, sem mais, manter o efetivo franciscano”. Ibidem.
199
Cf. NAPHY, W. e SPICER, A. Op. cit., p. 32.
200
Cf. Ibidem.

LXXVIII
201
provavelmente muito mais jovem.
Observação semelhante é feita por Roncière em relação à Toscana: a formação menos

aprofundada dos noviços poderia explicar melhor o insucesso dos pregadores franciscanos

após 1350202.

A carência de religiosos logo após a epidemia de 1348 intensificou ainda outra

dificuldade trazida pelo surto: a morte sem a preparação devida, que necessitava do auxílio de

um religioso. Um cronista de Avignon relata em 1348 que

Parentes [doentes] eram cuidados como se fossem cães. Jogavam a comida e a


bebida na cama e depois fugiam de casa. Finalmente, quando morriam, camponeses
fortes vinham das montanhas da Provença, miseráveis e pobres e sujos, chamados
gavots [coveiros]. Pelo menos, em troca de um bom pagamento, carregavam o corpo
para o sepultamento. Nenhum parente ou amigo mostrava preocupação com relação
ao que pudesse estar acontecendo. Nenhum padre vinha ouvir a confissão do
203
moribundo ou administrar-lhe os sacramentos.
Nos ritos preparatórios para a morte, o religioso tradicionalmente visitava o

moribundo, ouvia sua derradeira confissão, dava-lhe o viaticum, a última comunhão, e

ministrava-lhe a extrema unção. Daniel Bornstein comenta que diversos sacramentos

costumavam ser menosprezados pela população, de modo geral na Idade Média, ou ao menos

tendiam a ser subempregados. Afirma o autor que

Em resumo, muitas pessoas passavam a vida sem serem confirmadas, casadas sem o
benefício do clero, e encontravam suas mortes sem receberem a extrema unção. Ao
204
contrário do batismo, esses sacramentos não eram considerados indispensáveis.
Os sacramentos, assim, não eram vistos como absolutamente imprescindíveis pelos

leigos – mas não pelos clérigos, deve-se ressaltar; a importância dos sacramentos é destacada

ao menos desde o quarto Concílio de Latrão, em 1215. Parecia haver, no entanto, mesmo

entre os leigos, ao menos a preocupação de morrer devidamente preparado. Afinal, os

sacramentos finais estavam relacionados a ritos que buscavam amenizar a culpa pelos erros

cometidos em vida e o medo de que o arrependimento pudesse ter vindo tarde demais. Como

escreve novamente Bornstein,

201
Ibidem.
202
Cf. “Les influences des franciscains dans la campagne de Florence au XIVe siècle (1280-1360)”. In: Op. cit.,
p. 100.
203
Apud HERLIHY, D. Op. cit., p. 62. O grifo no texto é da autora.
204
Op. cit., p. 16.

LXXIX
A extrema unção, por outro lado, parece não ter sido ignorada propositalmente,
embora a alta incidência de mortes súbitas significava que em muitos casos não
205
podia ser administrada.
E comenta Roncière que no século XIV

(…) o batismo das crianças era para todos um imperativo essencial (…). Na outra
extremidade da vida, o temor do julgamento próximo valoriza igualmente os
206
sacramentos dos moribundos.
O batismo dos recém-nascidos é compreendido na medida em que torna possível a ida para o

Paraíso; sem esse primeiro sacramento, de fato, não haveria a menor possibilidade de fugir do

Inferno – ou do Limbo, embora essa instância do Além jamais tenha sido oficializada pela

Igreja. A extrema unção, por outro lado, tornaria novamente real a possibilidade de se entrar

no Paraíso, na medida em que apagaria ao menos as faltas mais graves e os pecados mortais.

Este dado é fundamental: ele mostra a preocupação do povo pelo rito derradeiro, o que

poderia significar a diferença entre a condenação eterna e a possibilidade de uma remissão,

ainda que não imediata, dos pecados. Uma diferença que é explicitada em muitas

representações do Juízo final do período, em que se evidenciam dois cortejos distintos e

antagônicos: o dos eleitos que se voltam para o Paraíso, e o dos condenados que são

arrastados para o Inferno 207. Essa apreensão parece ter aumentado no século XIV (em especial

na segunda metade da centúria), ou ao menos a consciência de que a ausência desses ritos

finais poderia comprometer em definitivo a salvação post-mortem da alma do defunto. Como

escreve Carlos Roberto Nogueira, “através de imagens e de ritos a Igreja mantinha vívida a

ameaça do Inferno ante os olhos da população”208.

A importância atribuída a esses últimos ritos é efetivamente atestada em relatos

diversos. Jean-Claude Schmitt comenta o caso do já mencionado Giovanni Morelli que, em

1406, relata a morte prematura de seu filho, com apenas nove anos. Explica Schmitt que

A dor do pai é ainda aumentada pelo fato de que, por sua culpa, seu filho morreu
sem ter recebido os últimos sacramentos. Giovanni não conseguia admitir que

205
Idem, p. 15.
206
“Aspects de la religiosité populaire en Toscane: le contado florentin des années 1300”. In: GENSINI, S. La
Toscana nel secolo XIV. Caratteri di una civiltà regionale. Pisa: Pacini, 1988, p. 369.
207
As questões referentes à iconografia do Juízo final serão discutidas no próximo capítulo.
208
O diabo no imaginário cristão. Bauru: EDUSC, 2000, p. 46.

LXXX
Alberto ia morrer, pensava também que Deus perdoaria uma criança tão nova. Um
ano depois, ele se dá conta de que a piedade de seu filho no momento da agonia era
insuficiente, de que a “boa morte” cristã, mesmo para uma criança, supõe que
209
sejam cumpridos os ritos exigidos pela Igreja.
A permanência desses ritos se mantém, mesmo em períodos posteriores, o que denota

sua importância para a cultura cristã, mesmo fora de um âmbito sacerdotal. Em uma cena da

mais famosa peça de William Shakespeare (1562-1616), Hamlet se recusa a assassinar seu tio,

vingando a morte do pai, no momento em que ele está em orações, “quando se acha disposto e

preparado para o transe fatal”210.

Além da preparação para a morte, havia também o ritual de sepultamento, que visava à

preparação do descanso eterno do morto211. Com o surto, outro quadro passou a se apresentar.

Como escreve Giovanni Boccaccio, “conforme a ferocidade da peste aumentava, esses

costumes cessaram ou totalmente ou em parte, e novos tomaram seu lugar”212. E

complementa:

Agora um procedimento geral era seguido mais por medo do contágio que por
caridade pelo morto. Sozinhos ou com a ajuda de qualquer porteiro que pudessem
encontrar, arrastavam os corpos de suas casas e os empilhavam em frente então,
particularmente pela manhã, qualquer um fora [de casa] podia ver incontáveis
cadáveres, esquifes eram enviados e quando faltavam, pranchas comuns carregavam
os corpos. Mais de um esquife carregava dois ou três juntos (…). Incontáveis vezes
acontecia de dois padres que partiam com uma multidão para enterrar alguém serem
alcançados por três ou quatro esquifes levados por condutores, então enquanto os
padres acreditavam ter um corpo para sepultar, descobriam-se com seis, oito ou
mesmo mais. Nem eram esses mortos honrados com lágrimas, velas ou pranteadores.
Chegou-se ao ponto de que aos homens que morriam não era mostrado mais

209
Op. cit., p. 73. O grifo no texto é da autora desta tese. Schmitt complementa afirmando que, de acordo com a
crença medieval, “a inocência das crianças batizadas tinha fim aos sete anos, a ‘idade da razão’”. Por este
motivo, o filho de Giovanni Morelli devia ter se preparado; não tendo cumprido os ritos finais, a criança foi
condenada. Cf. Idem, p. 260, nota 47.
210
“Agora que está rezando, poderia cair sobre ele. (…) Mas assim irá ele direto para o céu e seria essa a minha
vingança? (…) Um infame assassina meu pai e eu, filho dele, envio o malfeitor para o céu (…). Ele surpreendeu
meu pai na grosseira fartura de inchado pão: com todas suas culpas em plena flor, tão louçãs quanto uma planta
no mês de maio! E quem, exceto Deus, sabe como saldou sua conta? De acordo com todos os indícios e segundo
nossas presunções, grave é sua situação. E fica cumprida a vingança, ferindo eu o delinqüente enquanto purifica
seu espírito, quando se acha preparado para o transe fatal? Não, volta para teu lugar, espada, e escolhe ocasião
mais terrível! (…) Precipita-o, então, de tal modo, que seus calcanhares dêem coices no céu e seja sua alma tão
negra e maldita quanto o inferno onde se precipita!”. Ato terceiro, cena III. A tradução foi retirada da seguinte
edição: SHAKESPEARE, W. Tragédias (trad. Carlos Medeiros e Oscar Mendes). Dados históricos e notas de
Carlos Medeiros. São Paulo: Abril, p. 272.
211
Deve-se considerar que em alguns casos os rituais eram realizados também por confrarias, irmandades ou
ordens terceiras; a esses ritos era conferido, portanto, também um valor social, e não apenas religioso. Ou seja,
buscava-se ser caridoso com os moribundos, de modo que o trespasse ocorresse de forma mais serena. Ressalte-
se, porém, que durante os surtos de peste, a questão religiosa se tornava preponderante, e a preocupação com a
preparação religiosa devida para a salvação da alma, o ponto fundamental.
212
Apud HERLIHY, D. Op. cit., p. 61.

LXXXI
213
interesse que a bodes mortos.
O cronista Stefani comparou os sepultamentos em massa, que ocorriam em função do surto de

1348, com uma lasanha, uma leve camada de terra servindo como o queijo que separava as

camadas de corpos214. Diversos outros cronistas observam o mesmo fato: o abandono dos

tradicionais ritos de sepultamento, o que teria ocorrido especialmente pelo medo de contágio.

Salus populi suprema lex215.

5. A Peste Negra interpretada em chave escatológica

A
s reações ao surto foram variadas, como é natural que ocorra em

qualquer evento: nem todos entenderam a epidemia como um sinal do

iminente fim do mundo216; mesmo entre aqueles que acreditavam na

proximidade do Juízo final havia grupos que não mostravam arrependimento nem buscavam

perdão pelas eventuais faltas cometidas. A explicação para esse fato pode residir em uma

alteração tanto na economia quanto nas estruturas mesmas da sociedade, mudanças estas

geradas pela peste.

Com efeito, em termos econômicos, de modo geral, a população vivia melhor após

1348. Para alguns, a peste foi sem dúvida um evento bastante proveitoso – afinal, havia

heranças a serem recebidas, e em muitos casos os herdeiros haviam diminuído

drasticamente217. Deve-se considerar ainda outro ponto: devido ao aumento da quantidade de

alimentos que passou a haver logo após a primeira grande mortandade – uma vez que havia

muito menos bocas a serem alimentadas –, e por causa da expectativa de uma morte que

213
Apud Ibidem.
214
Cf. COHN Jr., S.K. The Black Death transformed, p. 123.
215
Cf. HERLIHY, D. Op. cit., p. 63. O já mencionado médico Guy de Chauliac comenta que “como
conseqüência [da doença], as pessoas morriam sem assistência e eram enterradas sem padres”. Apud COHN Jr.,
S.K. Op. cit., p. 87. O relato de Guy mostra como, mesmo posteriormente, quando o índice de contaminação já
havia diminuído sensivelmente, e a peste parecia se tornar uma doença endêmica e relativamente controlada, as
pessoas eram abandonadas à própria sorte.
216
Ver a seguir.
217
Decerto, esse é um dado que favorece especialmente os ricos, pois, como bem o recorda Philippe Wolff, “era
preciso ter algo para herdar”. Op. cit., p. 25.

LXXXII
poderia estar bastante próxima, muitos começaram a levar uma vida de desregramentos218.

Carpe diem, esta parecia ser sua norma e conduta. Escreve sobre isso o cronista florentino

Matteo Villani a respeito de seus contemporâneos:

Acreditava-se que os homens, os quais por Sua graça Deus havia preservado a vida,
tendo visto o extermínio de seus próximos, e de todas as nações do mundo, ouvindo
[coisa] semelhante, se tornariam melhores, humildes, virtuosos e católicos, evitando
iniqüidades e pecados, e estivessem cheios de amor e caridade um pelo outro. Mas
no presente, cessada a mortalidade, aconteceu o contrário: que os homens se
encontrando menos numerosos, e mais ricos por heranças e sucessões de bens
terrenos, esquecendo as coisas passadas como se nunca tivessem existido, deram-se a
219
uma vida mais vergonhosa e desonesta do que antes.

Essa reação hedonista e o conseqüente abandono de uma religiosidade mais intensa pode ser

também explicada por uma aparente desestruturação das ordens religiosas. Com efeito,

embora a maior parte dos religiosos tenha se mantido firme a seus votos e suas obrigações,

certamente muitos outros fugiram, buscando um refúgio seguro longe da mortandade. Assim

“muitos, sentindo-se abandonados pelas instituições e pela hierarquia religiosa, dirigiram-se

conseqüentemente aos prazeres e às ocupações da vida terrena”220.

Sem dúvida, houve também reações opostas àquelas descritas por Villani. A peste

trouxe consigo igualmente um renovado fervor religioso e uma consciência maior das falhas e

dos pecados cometidos, bem como o desejo – e a necessidade – de se aplacar uma suposta ira

divina; esta mudança de atitude espiritual intensificou, dentre outros, procissões, promessas

de construção e de decoração de igrejas e hospitais221. Em outras palavras, a arquitetura dos

locais freqüentados por religiosos e leigos foi beneficiada pela peste, assim como a criação de

218
Como comenta Herlihy, “é claro que as mortalidades da peste lembravam aos sobreviventes de sua frágil
posição na vida, e incitavam alguns a passar suas horas remanescentes em folia”. Op. cit., p. 63 e 64.
219
“Credettesi che.lli uomini, i quali per grazia Idio avea riserbati in vita, avendo veduto lo sterminio di loro
prossimi, e tutte le nazioni del mondo, udito il simigliante, che divenissono di migliore condizione, umili,
vertudiosi, cattolici, guardassonsi dalle iniquità e da’ peccati, e fossono pieni d’amore e di carità l’uno contra
l’altro. Ma di presente, ristata la mortalità, aparve il contradio: che li uomini trovandosi pochi, e abondanti per
l’eredità e successioni de’ beni terreni, dimenticando le cose passate come state non fossono, si dierono a.ppiù
aconcia e disonesta vita che prima non avieno usata”. Cronica. Con la continuazione di Filippo Villani, 2
volumes (org. Giuseppe Porta). Parma: Fondazione Pietro Bembo/ Ugo Guanda, 1995, p. 15 e 16. Porém, como
escreve Herlihy, “as orgias que muitas testemunhas descrevem parecem também a celebração de uma vitória,
ainda que temporária, sobre a morte”. A filosofia desses homens parece ser “comam, bebam e sejam felizes, pois
amanhã morreremos”. Op. cit., p. 64.
220
NAPHY, W. e SPICER, A. Op. cit., p. 37.

LXXXIII
imagens diversas que seriam contempladas tanto por pessoas sãs como doentes222. E como já

foi comentado, muitos mosteiros aumentaram enormemente suas riquezas terrenas – não

apenas em dinheiro, como também em terras – após o surto de 1348; muitos homens, de fato,

temerosos com seu destino póstumo, preferiram aliviar suas culpas doando seus bens para a

Igreja.

Deve-se nesse ponto fazer uma observação. O aumento no número de doações às

instituições religiosas, embora pareça ser uma das primeiras grandes conseqüências da Peste

Negra sobre as camadas mais abastadas da população, não se limita aos períodos em que a

epidemia parecia grassar com maior ferocidade. Com efeito, havia a tendência – que pode ser

considerada natural – de um indivíduo se preocupar de modo mais efetivo com as

conseqüências de suas ações quando se atingia certa idade. Uma súbita “ostentação tardia” de

generosidade, como define Roncière, que poderia parecer extremamente suspeita223. E

complementa, a partir especificamente do caso de um mercador:

(…) o tempo passando, a idade chegando, o comerciante se põe a pensar na morte


que se aproxima, no julgamento final. Deus lhe aparece então mais distintamente
como um juiz, de quem o comerciante teme a severidade, porque o imagina de bom
grado munido de um registro onde estão postos sob cada nome as mentiras, os
subterfúgios, as astúcias, todos os pecados mortais da profissão; um registro que
224
imporá a sentença final: o inferno.
Percebe-se, tanto aqui como na preocupação com os ritos finais, como a doutrina cristã

com relação ao post-mortem estaria profundamente enraizada nas mentalidades nesse período;

ainda que não surgida de forma espontânea, mas em função dos pecados cometidos ao longo

da vida, e fruto mais do medo do Inferno do que de uma verdadeira piedade, esse tipo de

mudança não deixa de mostrar, mesmo que indiretamente, um sincero sentimento religioso.

Afinal, como observa Le Goff, um grande cinismo poderia coexistir com uma profunda

221
Cf. BOWSKY, W.M. “The impact of the Black Death upon Sienese government and society”. In: Op. cit., p.
14 e 15.
222
A decoração mutável dos edifícios religiosos no século XIV será comentada no quarto capítulo desta tese.
223
“La foi du marchand: Florence XIVe-milieu XVe siècle”. In: Le marchand au Moyen Âge. Société des
historiens médiévistes de l’enseignement public français, XIX Congrès. Reims: SHMES, 1992, p. 238.
224
Ibidem.

LXXXIV
religiosidade225.

As próprias atitudes desregradas de alguns poderiam ter suscitado reações e críticas

por parte de outros setores da sociedade, particularmente entre os religiosos; tais críticas, por

sua vez, poderiam afetar do mesmo modo aqueles temerosos por sua salvação. Percebe-se,

assim, como o surto parece efetivamente ter engendrado mudanças ao menos nos temores dos

cristãos, trazendo como conseqüência também modificações nas práticas religiosas

tradicionais do povo no século XIV.

Uma mudança pode ser percebida em relação aos sermões voltados para a população

leiga de modo geral. A partir de 1200 a pregação, especialmente devido ao empenho das

ordens mendicantes, foi se tornando cada vez mais freqüente. A influência desses sermões

sobre as camadas mais populares é imensa, o que deve ser atribuído especialmente ao uso do

vulgar, em vez do latim da elite eclesiástica. Como escreve Ida Magli,

O uso do vulgar na predicação popular faz com que se supere na consciência das
classes mais baixas o sentido desta angústia [a de que a diversidade das línguas era
uma conseqüência do pecado original, além de ser uma clara alusão à torre de
Babel], e cria um novo “valor” que se torna por si só o elemento unificador das
226
populações que surgem na ribalta da vida civil.
Este fator sem dúvida foi também essencial para uma maior participação popular na

religião cristã, que começa a se intensificar exatamente no século XIII. Se a preocupação com

a penitência parece ter sido uma constante nesses sermões227, no século XIV, especialmente a

partir da segunda metade, há uma forte tendência a uma ênfase mais escatológica, que se

prolonga pelo século XV – o exemplo mais notório, sem dúvida, é o do dominicano Girolamo

Savonarola (1452-1498) em Florença, embora não se possa esquecer também Jacopo

225
Apud Ibidem.
226
Gli uomini della penitenza. Pádua: Muzzio, 1995, p. 60. Embora desde 813, com o concílio de Tours, a
Igreja orientava os bispos a pregarem in rusticam romanam linguam, seu uso só se tornaria comum no século
XII, em reação especialmente aos movimentos heréticos, que pregavam usualmente em vulgar; esse fato sem
dúvida foi um estímulo a mais para que os religiosos também começassem a usar a língua do povo em seus
sermões. Cf. BOLZONI, L. La rete delle immagini. Predicazione volgare dalle origini a Bernardino da Siena.
Turim: Einaudi, 2002, p. 13. Como escreve Lina Bolzoni, essa nova pregação “se endereçava portanto
especialmente às massas citadinas usando o instrumento que havia garantido aos adversários grande capacidade
de penetração”. Ibidem.

LXXXV
Passavanti e Giordano da Pisa, que enfatizavam em alguns de seus sermões a necessidade de

arrependimento pela proximidade do fim, descrevendo também as punições que aguardariam

os condenados no Inferno228. Giordano, em seu Quaresimale Fiorentino, reafirmava também

a utilidade de se ter sempre em mente a memória do Juízo final e das penas futuras229.

É possível perceber também que, na segunda metade do século XIV, a quantidade de

procissões religiosas parece aumentar. As razões para isso são explicadas por Bornstein:

“naquelas ocasiões em que o bem-estar de uma comunidade era ameaçado, procissões

propiciatórias especiais eram organizadas”230. Após o primeiro grande surto de 1348,

inúmeros cortejos desse tipo parecem ter sido realizados buscando afastar a peste da cidade

atingida ou para aquietar a ira divina. Essa prática apresenta uma longa permanência. Pode-se

citar como exemplo a cidade de Perugia, cujos habitantes, em uma data tão tardia quanto

1476, organizaram procissões por cinco dias “para mitigar a ira divina que havia enviado a

peste à cidade”, por causa dos pecados dos peruginos231. Novos cortejos, liderados pelo

franciscano Bernardino da Feltre, foram organizadas quando, em 1486, uma nova epidemia

grassou a cidade232.

No final do século XIV, houve um grupo processional particular na Itália, que chamou

a atenção especialmente pela abrangência de sua atuação, e por diferenciar-se de modo radical

227
Escreve novamente Ida Magli que “a predicação popular, exatamente porque nasce do povo (…) e sob o
influxo de um ‘retorno’ ao Evangelho primitivo, assume um caráter ‘penitencial’, e tende a interpretar o
Evangelho com palavra anunciada e a se anunciar”. Op. cit., p. 111.
228
Sobre as preocupações escatológicas e apocalípticas no século XIV, ver a seguir.
229
“Sopra tutte le cose di questa vita è utile la memoria del giudicio e de le pene (…)”. Op. cit., p. 57.
230
Op. cit., p. 22.
231
Ibidem. O cronista de época Pietro Angelo di Giovanni assim descreveu essas procissões: “e così andaro 5 dì
a la fila con grandissima contritione e divotamente pregando eddio, che levi da noi questa pestilenzza, e anco
pregando la sua gloriosa madre con tutti li santi e sante de la corte celestiale, aciò che intercedano per noi,
grati a dio che esso revocasse ogni ria sentenzza e flagello, e non guardasse a li nostri peccati, e a le dette
processione for cavati el divoto Gonfalone de la Madona de S. Francesco e altre gonfalone e figure” [“e assim
andaram 5 dias em fila com grandíssima contrição e devotamente pregando a Deus, que levasse de nós essa
pestilência, e ainda pregando à sua gloriosa mãe com todos os santos e santas da corte celestial, de modo que
intercedessem por nós, gratos a Deus por revogar toda sentença e flagelo, e não olhasse os nossos pecados, e
para as ditas procissões foram feitos o devoto Gonfalone da Madonna de S. Francisco e outros gonfaloni e
figuras”]. Apud Ibidem, nota 40. Sobre a questão da punição por causa dos pecados, ver em seguida.
232
Cf. Ibidem.

LXXXVI
dos mais conhecidos grupos de flagelantes233. Trata-se do movimento dos Bianchi que, em

1399, percorreu inúmeras cidades italianas buscando o perdão divino. Em suas procissões,

que duravam nove dias e nas quais cantavam o Stabat Mater, pediam não apenas a

misericórdia divina como também a paz234.

A razão para a formação desse movimento parece ter sido, uma vez mais, a

recorrência da peste na Península Itálica. Em Gênova, um surto ocorrera em 1384235; em

1399, uma nova epidemia avançava pelo vale do rio Pó, no norte; nas regiões da Toscana e da

Úmbria, porém, essa mesma epidemia apenas se iniciava em 1399, o que poderia mostrar que,

inicialmente, as procissões dos Bianchi seriam caracterizadas mais pela esperança e pela

alegria, e não pelo medo do surto236. Pode-se, no entanto, especular que as procissões nessas

mesmas regiões tenham sido motivadas exatamente com o objetivo de evitar o alastramento

da peste através de suas cidades. Iniciado no norte da Itália, particularmente em Gênova, o

movimento dos Bianchi espalhou-se, ao longo do ano de 1399, ao menos até Roma, unindo

religiosos, nobres e a população de modo geral.

É difícil, no entanto, estimar a religiosidade dos povos medievais, especialmente das

camadas mais baixas e iletradas. Jean Delumeau afirma que ao longo de quase toda a Idade

Média apenas o clero e uma pequena elite laica praticava efetivamente a religião tal como era

reconhecida. O resto da população, especialmente nos campos, continuou ignorante em

relação às doutrinas mais básicas da fé cristã237. Esse quadro se alterou consideravelmente nos

séculos XII e especialmente XIII, quando começou a haver uma laicização progressiva das

práticas cristãs e, portanto, uma participação mais efetiva das chamadas massas iletradas na

233
Sobre os flagelantes, ver o texto mais adiante.
234
Essas procissões são descritas por Coluccio Salutati em seu Epistolario: “habentes enim crucifixum in
manibus per Christum Iesum et Alborum sanctissimam societatem pacem petunt, pacem orant, pacem replicant
et omnes simul una voce pacem vociferant, pacem clamant” [“com o crucifixo na mão, em nome de Jesus Cristo
e a mui santa companhia dos Bianchi eles rogavam por paz, oravam por paz, respondiam paz, e como se com
uma única voz gritavam por paz, clamavam por paz”]. Apud BORNSTEIN, D.E. Op. cit., p. 50
235
Cf. Idem, p. 61.
236
Cf. Idem, p. 83.
237
Cf. HERLIHY, D. Op. cit., p. 73.

LXXXVII
religião. Para analisar esta religiosidade, deve-se partir de estudos indiretos sobre práticas e

hábitos correlatos aos costumes eclesiásticos, como o faz David Herlihy.

Considerando especificamente a incidência de nomes com influência religiosa em

Florença, Herlihy comenta que, apesar dessa laicização, no século XIII os nomes ainda não

são predominantemente cristãos238. O autor analisa os nomes no chamado Libro di Montaperi,

registro dos soldados florentinos que lutaram contra Siena em 1260, relacionando os nomes

mais comuns entre 6207 soldados. Comenta o autor que

Com patronos celestiais associados apenas com um entre cinco homens florentinos,
não parece que o culto aos santos tivesse muito apelo na cidade ou no campo mesmo
239
em uma data tão tardia como 1260.
A situação começa a mudar nas décadas seguintes. Estudando os registros de enterros

entre 1290 e 1350 no convento de Santa Maria Novella, em Florença, Herlihy afirma que

“entre os vinte nomes mais comuns, nomes associados com um santo mostram um aumento

de quatro em 1260 para treze na geração anterior à peste”240. Não há dúvidas de que a

religiosidade do povo, ou ao menos a consciência dessa religião, aumentou no século XIV,

mesmo antes da peste. Este fator deve ser atribuído especialmente à atividade das ordens

mendicantes, que buscavam a conversão dessa massa iletrada241.

A uma constatação semelhante chega Roncière analisando outro tipo de

documentação. O autor francês observa que, por volta de 1300, os nomes são bastante

variados, em muitos casos relacionados a votos de bons augúrios (como Benvenuto,

Guadagno, Zucchero)242; quando há nomes ligados ao culto religioso, são santos “menores”,

238
Cf. Idem, p. 74.
239
Idem, p. 75. Como observa, porém, Roncière, “para o século XIII só é possível utilizar a onomástica com
precaução uma vez que o culto dos santos não possui ainda todo o seu alcance pastoral e que os nomes
permanecem sem uma real ressonância espiritual”. “Les influences des franciscains dans la campagne de
Florence au XIVe siècle (1280-1360)”. In: Op. cit., p. 71.
240
Op. cit., p. 76.
241
Comenta Schmitt que “maciça, sistemática, repetitiva, a nova pregação parece uma enorme máquina de
converter as almas”. Op. cit., p. 144.
242
“Orientations pastorales du clergé, fin du XIIIe -XIVe siècles: le témoignage de l’onomastique Toscane”. In:
Académie des Inscriptions et Belles-Lettres. Comptes rendus des séances de l’année 1983, janvier-mars. Paris,
1983, p. 45.

LXXXVIII
mais relacionados a um culto local243. O autor percebe, do mesmo modo, que entre 1310 e

1350 aumenta o número de crianças batizadas com nomes ligados a santos244; constata a

mesma alteração nas declarações fiscais de 1371, em que comparecem santos de grande

importância – como Pedro ou Paulo – ou ainda os nomes dos fundadores das duas grandes

ordens mendicantes, Domenico e Francesco245; há ainda casos em que a maior incidência de

determinados nomes poderia ser devida à proximidade com alguma instituição religiosa,

como ocorre novamente com o nome Francesco no contado florentino no século XIV246.

O que se observa particularmente após 1348 é uma mudança na escolha dos santos que

dariam seus nomes às crianças. A partir dessa data passou-se a dar preferência a nomes de

santos tradicionalmente associados à cura de enfermidades, como Santo Antônio de Pádua –

patrono daqueles que sofriam com qualquer tipo de febre –, ou ainda santos que poderiam ter

algum tipo de ligação com a peste247. Nesse último caso é possível mencionar um nome como

Sebastião, santo que pode ser particularmente relacionado à doença, uma vez que a flecha era

um símbolo tradicional de infecção, assim como as feridas causadas por estas mesmas flechas

poderiam recordar as bolhas originadas pela peste248. Herlihy cita ainda nomes como

Bartolomeu e Lourenço. A associação entre São Bartolomeu e a peste não parece ser tão

evidente. Seu martírio foi o esfolamento, a retirada de sua pele ainda em vida. Tendo em vista

que a peste se torna visível pelas marcas na pele, é possível que deste fato o autor tenha

estabelecido a ligação249. A associação que faz entre o nome de São Lourenço e a peste, no

entanto, parece menos convincente. Segundo Herlihy, assim como os infectados pela peste

243
Cf. Ibidem.
244
“Les influences des franciscains dans la campagne de Florence au XIVe siècle (1280-1360)”. In: Op. cit., p.
28.
245
“Orientations pastorales du clergé, fin du XIIIe -XIVe siècles: le témoignage de l’onomastique Toscane”. In:
Op. cit., p. 45.
246
Cf. “Les influences des franciscains dans la campagne de Florence au XIVe siècle (1280-1360)”. In: Op. cit.,
p. 34. Em alguns casos ocorreriam também, naturalmente, os equivalente femininos desses nomes.
247
Cf. HERLIHY, D. Op. cit, p. 78.
248
Há algumas pinturas do Trecento e do Quattrocento que mostram Cristo ou Deus Pai atacando do céu, com
flechas, a humanidade. Em algumas, a Virgem protege os homens com seu manto salvador.
249
Cf. Idem, p. 78.

LXXXIX
padeciam de dores agonizantes e terríveis, também São Lourenço, martirizado em uma grelha,

compreendia bem o sofrimento físico; devido à similitude de suas agonias, o santo poderia

proteger seus seguidores das dores que uma vez conhecera250. Ora, por esse raciocínio,

qualquer santo martirizado, sobretudo aqueles que sofreram na pele o martírio, poderia ser

relacionado à peste, uma vez que não há martírio sem dor ou sofrimento251.

Comenta Michael Goodich, enfim, que a epidemia em meados do século XIV

“encorajou a veneração a cerca de cinqüenta santos”252, pode-se supor não apenas por atuarem

como protetores da peste, mas também por servirem como modelos de resistência ao

sofrimento. Além de São Sebastião, podem-se mencionar São Remigio (a partir de 1349),

Santa Catarina de Siena (após o surto de 1373-74), Santa Catarina de Fierbois (em 1399),

assim como os santos Petronilla e Adriano 253. E não se pode esquecer o caso particular de São

Roque, cujo culto é diretamente associado à peste de 1348, uma vez que, de acordo com sua

lenda, o santo fora milagrosamente curado da doença por um anjo 254. Não por acaso, seu

principal atributo iconográfico é o bulbo que distingue a doença, e que surge normalmente em

uma de suas coxas nas representações que se multiplicam após 1348. A partir da segunda

metade do Trecento, São Roque passa tradicionalmente a acompanhar São Sebastião na

proteção da epidemia.

O surto de peste, enfim, parece ter gerado mudanças nas formas de espiritualidade de

uma população que se sentia ameaçada pela terrível epidemia. A partir da segunda metade do

século XIV, quando o homem se deparou de modo mais concreto com a possibilidade da

morte iminente, a penitência especialmente ganhou novo ímpeto como forma de religiosidade,

ligada a uma ênfase escatológica, visando à salvação no fim dos tempos. Escreve Goodich

que

250
Cf. Ibidem.
251
E não, por exemplo, um mártir que tenha sido degolado.
252
Op. cit., p. 117.
253
Cf. Idem, p. 117 a 119.

XC
Pode não ser possível estabelecer uma correlação clara entre estruturas mentais e
fatores como mudança demográfica, estrutura familiar, ou desarticulações climáticas
e econômicas. Entretanto, o surgimento de temas macabros na arte, a obsessão com a
morte, e o sentimento de solidão, “orfanização”, abandono, e melancolia tão
comumente observados pelos historiadores nesse período sugerem uma traumática
255
mudança na consciência.
Com efeito, a idéia mais difundida na época foi a de que a epidemia, “um inegável

triunfo da morte”, havia sido causada “pela corrupção moral do homem e pela cólera de

Deus”256. A peste era compreendida por seus contemporâneos como um castigo divino, um

inferno antes mesmo da morte, e que anteciparia os castigos eternos causados pelos pecados

cometidos em vida – deve-se mencionar que ao menos um tratado de época usou a bolha

formada normalmente pela doença como uma metáfora para o pecado, a “bolha de seus

vícios”257. O cronista florentino Giovanni Villani, por exemplo, ele mesmo vítima do surto de

1348, indagava se os desastres que ocorriam em seu tempo deviam ser atribuídos a fatores

outros que não a responsabilidade humana, ou se deviam ser interpretados como retribuição

divina aos pecados dos florentinos – “avareza, ganância e opressão do pobre pela usura”258.

Ao fim da reflexão, Villani não teve dúvidas de que se tratava da segunda opção. Se a peste

teria sido enviada por Deus, como realmente pareciam acreditar, como poderiam esperar o

regojizo da luz eterna após o Juízo final259? A condenação parecia iminente e inevitável.

É preciso ressaltar, no entanto, que a interpretação da peste como uma punição e como

254
Cf. GIORGI, R. Santi. Milão: Electa, 2002, p. 324.
255
Idem, p. 106.
256
MEISS, M. Op. cit., p. 75. É preciso considerar que, talvez devido a essa visão de Deus como o Pai punidor,
a população leiga tenha preferido recorrer aos santos; estes atuariam como os intercessores, evitando desse modo
uma solicitação diretamente ao Deus encolerizado.
257
Cf. COHN Jr., S.K. Op. cit., p. 99.
258
Cf. HERLIHY, D. Op. cit., p. 03. Um cronista francês escreveu que “uma vez que o povo não conhecia
remédio para o evento, muitos acreditaram se tratar de um milagre e da vingança de Deus”. Apud GOODICH,
M.E. Op. cit., p. 117.
259
Lerner menciona um cronista franciscano de Lübeck que afirmava ser a Peste Negra “uma punição divina
pela maldade humana e um sinal dos últimos dias”, complementando que quando estes dias viriam era do
conhecimento somente de Deus. Cf. Op. cit., p. 534. Também o movimento flagelante, que ressurge em 1348
por ocasião da epidemia, faz essa associação; basta considerar uma das laudas entoadas pelo grupo de Borgo San
Sepolcro em 1349: “Jo mandarò il mio flagello/ nel mondo a me ribello/ manderò el crudel coltello/ de moria
cum pestilentia (…)/ Grandene e fame e guerre assaie/ mandarò de molti guaie” [“Enviarei meu flagelo/ ao
mundo a mim rebelde/ enviarei a cruel faca/ de morte com pestilência (…)/ muita chuva de granizo e fome e
guerras/ enviarei muitos problemas”]. Apud DINZELBACHER, P. “La divinità uccidente”. In: La Peste Nera.
Dati di una realtà ed elementi di una interpretazione. Op. cit., p. 149. Sobre o movimento flagelante, ver a
seguir.

XCI
um prenúncio do fim dos tempos não é uma novidade do século XIV. A chamada Visão de

Wetti, por exemplo, escrita em uma data tão remota como 824, já fazia essa associação:

Então Wetti lhe perguntou [ao anjo que lhe servia de guia] porque um número tão
grande de pessoas morria no surto de peste. Ele disse, “é a punição dos pecadores
pelo grande número de pecados cometidos no mundo. E é um sinal anunciado por
260
Deus com o qual prediz a rápida aproximação do fim do mundo”.
A origem para essa interpretação remonta às Escrituras. Diversas são as passagens

bíblicas que, com efeito, relacionam algum tipo de flagelo a uma punição enviada por Deus.

O episódio mais difundido na Idade Média, sem dúvida, era o da liberação dos judeus no

Egito, em que Iahweh punia o faraó e o povo egípcio por não se submeterem aos Seus

comandos. Também um trecho do Deuteronômio é esclarecedor a esse respeito:

E [Iahweh] disse: Vou ocultar-lhes o meu rosto/ e ver qual será o seu futuro!/ Pois
são uma geração pervertida,/ são filhos que não têm fidelidade! (…)/ Vou lançar
males sobre eles,/ e contra eles esgotar as minhas flechas!/ Vão ficar enfraquecidos
pela fome,/ corroídos por febres e pestes violentas (…)./ Fora, a espada lhes tirará os
filhos/ e dentro o terror se instalará;/ perecerão todos: o jovem e a donzela,/ a criança
261
de peito e o velho encanecido.
Esses trechos justificariam a crença no castigo divino devido aos pecados dos homens

concretizado dessa forma. Efetivamente, nessa e em diversas outras passagens a origem do

flagelo ocorria por causa da desobediência do homem e de seus comportamentos considerados

pecaminosos. Escrevem Naphy e Spicer que “as pestes bíblicas podiam ser importantes

somente para compreender as causas da epidemia” no século XIV262. E complementam:

Por que as pessoas morriam aos milhares? O modelo interpretativo bíblico era
claríssimo. Deus estava encolerizado com Seu povo (…). A peste atingia (…) um
povo inteiro por toda sua pecaminosidade e, sobretudo, por um comportamento
263
religioso não correto.
A Visão de Wetti mencionada anteriormente ressalta ainda um outro ponto que deve

ser considerado: a “aproximação do fim do mundo”. Como visto, a Peste Negra dificultou

enormemente os ritos funerários. À falta de preparação para a morte, no entanto, se juntava

260
Apud GARDINER, E. Op. cit., p. 77. A associação entre a peste e a proximidade do fim dos tempos será
discutida em seguida.
261
32, 20 e 23-25. Ressalte-se aqui a ênfase dada às flechas como forma de punição divina. Como já comentado,
esse tipo de associação se relacionaria igualmente à peste, e justificaria posteriormente o culto de São Sebastião.
Essa mesma associação teve também grande importância para a iconografia da Peste Negra, conforme
comentado anteriormente, e como explicam Naphy e Spicer: “(…) qualquer que fosse a resposta fornecida por
‘esperto ou leigo de ciência médica’, a explicação última da causa da peste era óbvia (a cólera divina) e a
iconografia (as flechas) estava à mão de qualquer artista”. Op. cit., p. 11
262
Idem, p. 09.

XCII
ainda uma questão diferente: a situação de caos e desespero que se seguiu ao primeiro surto

de 1348 criou um crescente temor de que o fim dos dias estava se aproximando. Muitos

interpretaram a Peste Negra como um sinal do iminente término dos tempos. Previsões

milenaristas foram resgatadas; muitos acreditavam que a peste seria um prenúncio da chegada

do Anticristo 264. A morte sem os ritos funerários agravava a iminência do fim, especialmente

quando se interpretava a peste como uma punição enviada por Deus por causa dos pecados

dos homens. Esses ritos finais, como já comentado, tinham uma função muito importante;

eles, se não asseguravam, ao menos davam um conforto maior em relação ao destino póstumo

do morto. Sem a preparação devida, o homem morria em pecado – grave o suficiente para

justificar o surto de peste, deve-se recordar – e, acreditavam, seria provavelmente condenado

por toda a eternidade. A esperança do perdão das faltas no último dia, e o conforto da visão

beatífica do Criador após o Juízo final se perderiam. A contemplação do Criador era

substituída pela lembrança dos tormentos infernais descritos de forma minuciosa em sermões,

visões e imagens265.

Robert Lerner afirma que “indisputavelmente, muitos na Europa ocidental

interpretaram o surto como um sinal escatológico”266; a peste poderia ser um indicativo do

início do reinado do Anticristo – que viria antes da Parúsia. Diferentes sinais eram

tradicionalmente interpretados como alusivos à iminência do fim do mundo. Essa noção

encontra respaldo nas Escrituras; diversos trechos de fato trazem alguns indicativos a esse

respeito, como os evangelhos de Lucas e Mateus, que afirmam de modo explícito que esses

sinais antecederiam “a vinda do Filho do Homem”267. Afora o texto bíblico, o autor que maior

respaldo deu a esses sinais sem dúvida foi Santo Agostinho, ao afirmar que “o fim do mundo

263
Ibidem.
264
Ver a seguir.
265
A problemática das imagens, particularmente as representações do Juízo final, e sua relação com os sermões e
as visões serão discutidas no capítulo a seguir.
266
“Antichrists and Antichrist in Joachim of Fiore”. In: Op. cit., p. 534.
267
Como Mt 24, 29-30 e Lc 24, 11 e 25-27.

XCIII
seria anunciado por diversos desastres, naturais e sociais, o penúltimo dos quais seria a

chegada do Anticristo”268. Ao longo dos séculos, vários sinais foram interpretados como o

prenúncio do fim, já desde os primeiros tempos do Cristianismo; por exemplo, as

perseguições aos cristãos por parte dos romanos, o surgimento de diversos movimentos tidos

como heréticos e mesmo o fim do Império romano269.

Ora, em um momento em que a população sofria as conseqüências de uma doença

pouco compreendida, que gerou não apenas uma grande sensação de impotência diante da

força com que grassava a Europa, mas também uma crise social tanto pelo medo da doença

quanto pelos desregramentos de alguns grupos, como visto, seria natural encarar a epidemia

como um dos anúncios do fim dos tempos descritos por Santo Agostinho. A devastação

causada pela peste sem dúvida poderia ter sido interpretada nesse sentido.

Essa interpretação apocalíptica do surto pode ter sido reforçada também em função

dos já mencionados sermões populares que, no século XIV, passaram a enfatizar a iminência

do Juízo final. Sobre São Vicente Ferrer (1350-1419), por exemplo, que passou mais de vinte

anos viajando pela Europa, pregando o arrependimento dos pecados e a preparação para o

julgamento270, comenta-se que uma vez, pregando na cidade de Toulouse exatamente sobre o

tema do Juízo final, “tanto aterrorizou os espectadores que foram tomados por calafrios como

de febre”271. No contexto da Península Itálica, devem-se recordar os já mencionados sermões

de Giordano da Pisa e Jacopo Passavanti272.

A relação com o Juízo final pode ser estabelecida também por causa da ênfase

concedida à Paixão de Cristo nesses sermões, em particular ao Seu sofrimento na cruz,

268
FLANAGAN, S. “Twelfth-century apocaliptic imaginations and the coming of the Antichrist”. In: The
Journal of Religious History, vol. 24, nº 01, fevereiro 2000, p. 59.
269
Cf. Idem, p. 60.
270
Cf. “St. Vincent Ferrer”. In: Catholic encyclopedia. Disponível em:
< http://www.newadvent.org/cathen/15437a.htm>. Acesso em 04.09.2005.
271
A descrição é dada por H.D. Fages. Apud MAGLI, I. Op. cit., p. 61.
272
Os sermões na Península Itálica serão melhor comentados no terceiro capítulo desta pesquisa.

XCIV
conforme discutido na primeira parte deste capítulo273. E é preciso considerar ainda que, a

partir do século XIV, a associação entre a Paixão e o julgamento final passou a ser cada vez

mais enfatizada274.

Acreditando, portanto, que o surto seria o prenúncio do fim dos tempos, muitos

buscaram meios de expiar seus pecados ainda em vida. A confissão somente não seria mais

suficiente. Como explica Marc Oraison, o culpado “deve sofrer uma punição, a privação de

alguma coisa. Seja de ordem material, física ou psicológica, essa perda de alguma coisa deve

ser dolorosa”275. O pecador, ainda segundo o mesmo autor, poderia decidir pela autopunição:

“assim se comporta o ‘culpado interiorizado’ que, no segredo de seu quarto, flagela-se

cruelmente para expiar [seu pecado]” e diminuir a sua culpa276.

A chave para a compreensão das reações ao surto de peste parece, com efeito, residir não apenas no medo

da morte iminente, mas especialmente no sentimento de culpa que parece ter se abatido sobre uma parcela

considerável da população; esse sentimento, por sua vez, aumentaria também o medo da morte. Medo e culpa,

portanto, podem ser considerados como as duas faces de uma única moeda, unidas pelo receio do julgamento

post-mortem. A culpa, na verdade, acompanha o homem cristão há muito. A interpretação patrística salienta que

Adão, desobedecendo a Deus, come o fruto proibido e é expulso do Paraíso terrestre. “A culpabilidade está no

coração do homem”, afirma Oraison277. E assim como Deus castigou Adão e Eva então, agora igualmente parece

punir não somente alguns, mas toda a humanidade. Para tentar se redimir aos olhos do Criador, o homem precisa

buscar o arrependimento e se punir. Explica finalmente Oraison o princípio da expiação dos pecados:

É preciso que [o pecador] manifeste seu medo absoluto diante da cólera do deus que
irritou, e seu desejo intenso de acalmá-lo, por um sacrifício. Porque este é um dos
aspectos da idéia do sacrifício: fazer alguma coisa que o prive ou que lhe faça mal
para oferecer ao deus, de tal modo que sua cólera ou sua “fome de vingança” sejam
278
acalmadas.
Deve-se considerar ainda outro fator que poderia ter exercido influência nessa busca

273
A ênfase na Paixão também gera a criação de inúmeros crucifixos que, como esclarece Magli, “são cruzes que
não conhecem mais a imagem do Cristo sereno e glorioso das épocas precedentes, mas trazem de modo realista
em seus braços um homem de dores. As mudanças iconográficas, alimentadas pela devoção dos místicos que em
suas visões figuravam os menores detalhes da cena da Paixão, foram tais que em um dado momento o povo não
foi mais capaz de reconhecer as velhas figurações solenes e majestosas do Cristo”. Op. cit., p. 74.
274
Esse ponto também será melhor discutido no próximo capítulo.
275
La culpabilité. Paris: Seuil, 1974, p. 81.
276
Ibidem.
277
Idem, p. 56.
278
Idem, p. 81.

XCV
pela expiação de pecados e culpas: a difusão do conceito de Purgatório, assim como sua

crescente importância na cultura cristã, especialmente a partir do século XIII. De acordo com

o historiador John Henderson, a implícita noção que estaria por trás da concepção de

Purgatório seria a de que “reparar seus pecados nesse mundo seria preferível ao sofrimento no

próximo”279. Como discutido, o Purgatório foi concebido como uma das regiões do Além, na

qual a alma do defunto poderia passar um tempo mais ou menos longo de purificação e

expiação antes de entrar no Paraíso. Quase todos os textos que se referem a essa instância do

Além afirmam de modo explícito que o maior sofrimento pelo qual o homem pudesse passar

nessa vida não seria comparável ao menor dos castigos após a morte, ainda que por um breve

período. Sendo assim, ainda segundo Henderson, criou-se no século XIII “uma atmosfera

propícia para a adoção da flagelação voluntária por parte dos leigos”280. Afinal, como

explicam Le Goff e Truong, “a salvação, na cristandade, passa por uma penitência

corporal”281. E a autoflagelação era considerada o rito penitencial por excelência282.

Na segunda metade do século XIII, mas especialmente durante o século XIV, muitos

abandonaram o “segredo de seu quarto” – a flagelação, ou ao menos a mortificação do corpo,

era de fato prática comum entre ascetas e monges, e popularizou-se entre a população leiga no

século XIII283 –, e tornaram pública a sua busca radical pela remissão dos pecados e pelo

perdão divino. Os exemplos mais conhecidos – e também os mais sensacionalistas e

macabros, segundo Lerner284 – são sem dúvida as procissões dos flagelantes, ou disciplinati,

279
“Penitence and the laity in fifteenth-century Florence”. In: HENDERSON, J. e VERDON, T. (ed.)
Christianity and the Renaissance. Image and religious imagination in the Quattrocento. Syracuse e Nova
York: Siracuse University, 1990, p. 230.
280
Ibidem.
281
LE GOFF, J. e TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média (trad. M.F. Peres). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006, p. 11.
282
Cf. Idem, p. 57.
283
Le Goff e Truong recordam os casos emblemáticos de Luís IX e São Francisco de Assis. O primeiro “humilha
seu corpo até o mais alto grau que sua devoção lhe permite, de modo a fazer jus à salvação”. Sobre São
Francisco, comentam: “asceta, ele subjugou seu corpo em suas mortificações”. Idem, p. 12 e 13.
284
“Antichrists and Antichrist in Joachim of Fiore”. In: Op. cit., p. 534.

XCVI
como ficaram conhecidos os integrantes desse movimento na Itália285.

De acordo com Herman Haupt, “os flagelantes se sentiram chamados a preparar o

caminho para a vinda do reino de Deus”286. A interpretação mais freqüentemente dada a esse

movimento pelos historiadores é, portanto, a de um grupo com características marcadamente

milenaristas. Milenarismo é um termo que, não interpretado de modo literal, é considerado

normalmente como “a expectativa de um iminente aperfeiçoamento na terra, inspirado de

modo supernatural, antes do Juízo final”287. Os primeiros grupos de flagelantes surgiram por

volta de 1260, na Itália, liderados por Fra Raniero Fasani de Perugia, que criou a irmandade

Disciplinati di Gesù Cristo 288. A história de Fra Raniero demonstra bem as idéias que

norteavam esses grupos de flagelação: Raniero, que por dezoito anos teve o hábito de se

autoflagelar, teria tido uma obscura visão, pela qual ficava evidenciado que

Por causa dos inumeráveis pecados da humanidade – em particular sodomia, usura e


heresia – Deus queria destruir o mundo; a Virgem Maria, porém, desejava interceder
com seu filho, se os homens mostrassem seu arrependimento. A flagelação privada e
289
solitária de Raniero deveria agora se tornar pública e coletiva.
Se o corpo humano anteriormente era visto como instrumento de pecado, agora se tornava,

pelo contrário, um meio para se alcançar a redenção através da penitência. Se Cristo tanto

sofrera na cruz para remir os pecados da humanidade, seria natural que ela buscasse esse

mesmo sofrimento: “por isso Deus quis que Cristo assumisse a natureza humana e sofresse no

corpo, além de no espírito”.290

O ano 1260, não por coincidência, era a data que havia sido fixada pelos cálculos

285
Esses grupos também eram conhecidos por outros nomes na Itália, como battuti, scopatori e verberatori,
dentre outros. Cf. “Flagellants”. In: Catholic encyclopedia. Disponível em:
<http://www.newadvent.org/cathen/06089c.htm>. Acesso em 03.09.2005.
286
Apud LERNER, R. “Antichrists and Antichrist in Joachim of Fiore”. In: Op. cit., p. 535.
287
A definição é dada por Lerner. Idem, p. 537.
288
Deve-se destacar que, apenas um ano antes do início desse movimento, um terrível surto de peste havia
surgido em Perugia. Cf. “Flagellants”. In: Catholic encyclopedia. Loc cit.
289
BORNSTEIN, D.E. Op. cit, p. 36. Muitos peruginos seguiram Fra Raniero, adotando a flagelação pública
como ato penitencial. E embora muitos não se juntassem efetivamente ao grupo, a devoção era percebida como
um fenômeno geral. “Muitas lojas fecharam, famílias inimigas buscaram a reconciliação, e por seis semanas,
desde meados de abril até o fim do mês de maio, o teor da vida havia sido transformado”. Ibidem.
290
MAGLI, A., e PIAZZA, A.M.S. “Lo sviluppo delle laudi drammatiche in rapporto al concetto di spazio e di
tempo”. In: Le laudi drammatiche umbre dalle origini. Atti del V Convegno di Studio del Centro di studi sul
teatro medioevale e rinascimentale. Viterbo, 1980, p. 209 e 210.

XCVII
realizados a partir do pensamento de Joaquim de Fiore para o início do reino do Espírito

Santo291. De acordo com Fiore, a história humana estaria dividida em três eras,

correspondentes às três pessoas da Trindade: o primeiro tempo, iniciado com Adão e

permanecendo até a vinda de Cristo; o segundo, a partir de Cristo até o tempo do próprio

Joaquim; o último, por fim, seria iniciado com o retorno de Elias292. Como escreve Ida Magli,

Se o estado do primeiro tempo era sob o domínio da Lei, houve com o Evangelho o
advento do reino da Graça, e é já tempo para o reino do Espírito, que se
desenvolverá na plenitude da liberdade, porque diz o Apóstolo: “onde está o Espírito
293
do Senhor, lá está a liberdade”.
Para Joaquim de Fiore, a vinda do Anticristo era iminente – eventos contemporâneos

que mostrariam uma crise sem precedentes na história, como o ressurgimento do Islã sob

Saladino, seriam indicativos da sua vinda294; sua derrota levaria por fim a humanidade a um

novo estado, a era do Espírito Santo. Embora de cunho milenarista, as previsões de Joaquim

atribuíam a esse estado um período muito inferior a mil anos: seria apenas um breve tempo de

preparação anterior ao retorno final de Cristo.

Seria esperado, portanto, que no ano supostamente determinado para o início dessa era

surgissem grupos estreitamente ligados a uma expectativa apocalíptica. No entanto, como não

ocorrera de fato a descida do Espírito Santo passado o ano 1260, os movimentos dos

flagelantes, de certo modo, perderam força e se dissolveram, mas não de todo. Segundo

Magli, qualquer crise política ou religiosa era suficiente para que a tensão e a expectativa

apocalíptica ressurgissem, sobretudo na Península Itálica295. Com elas, ressurgiam também os

grupos de flagelação. Especialmente após o grande surto de 1348, os flagelantes reapareceram

com força na Itália, e rapidamente se espalharam para além dos Alpes, alcançando regiões tão

distantes como a Dinamarca296.

291
Cf. MAGLI, I. Op. cit., p. 44.
292
Cf. Idem, p. 43.
293
Idem, p. 44.
294
Cf. McGINN, B. Visions of the end. Apocalyptic traditions in the Middle ages. Nova York: Columbia
University, 1998, p. 128.
295
Cf. Op. cit., p. 44.
296
Cf. “Flagellants”. Catholic encyclopedia. Loc. cit.

XCVIII
Há, entretanto, diversos outros pesquisadores que contestam essa visão milenarista dos

grupos de flagelantes pelo fato de estar baseada em “evidências bastante escassas”, como

escreve Lerner em consonância com uma idéia defendida pelo historiador Richard A.

Kieckhefer297. De qualquer modo, ainda que não se considerem os flagelantes como

estritamente milenaristas, parece bastante forte a idéia de que interpretavam a flagelação

como uma forma de punição por suas faltas, ou mesmo de purgação – o que sem dúvida é

uma forma de se prepararem para o futuro julgamento, seja o individual no momento da morte

ou o final no último dia, esteja próximo ou não. A visão desses grupos, ademais – que se

flagelavam até que o sangue dolorosamente escorresse por seu corpo, em uma clara alusão ao

sangue de Cristo e por conseqüência a Seu sofrimento no momento da crucificação298 –

decerto causaria um grande impacto em uma população já abalada pela epidemia; ela poderia

desse modo sentir que de fato o fim dos tempos estaria se aproximando, tamanho o horror e o

sofrimento que se apresentavam diante de seus olhos.

Segundo Lerner, a flagelação possuía ainda outro propósito: “fazer penitência na

esperança de apaziguar a ira de Deus e por meio disso repelir a peste”299; diversos outros

grupos que se tornaram comuns na segunda metade do século XIV buscavam também esse

apaziguamento, embora sem infligir ao corpo castigos físicos – e é esse ponto o grande

diferencial entre os flagelantes e outros grupos religiosos, como os Bianchi, e o que os

tornariam, talvez, realmente milenaristas. Lerner, na verdade, vai mais além; o autor afirma

que “a maioria dos que pensavam no significado da peste eram milenaristas ou

quiliásticos”300.

Deve-se considerar, decerto, que há uma longa tradição de pensamentos apocalípticos

e de crenças na iminente vinda do Anticristo – que antecederia o retorno de Cristo –, que

297
“Antichrists and Antichrist in Joachim of Fiore”. In: Op. cit.¸ p. 535. Lerner também explica em seu texto os
motivos para considerar essas evidências bastante tênues. Ver Idem, p. 536 e 537.
298
Cf. MAGLI, I. Op. cit., p. 75.
299
“Antichrists and Antichrist in Joachim of Fiore”. In: Op. cit., p. 537.

XCIX
remonta às origens mesmas do Cristianismo. De fato, como escreve Sabina Flanagan,

“expectativas apocalípticas (…) são tão antigas como o próprio Cristianismo”301.

Efetivamente, apenas quando da Parúsia é que o objetivo final da religião se concretizará,

quando os eleitos serão apartados em definitivo dos condenados e poderão gozar da

eternidade ao lado da visão beatífica do Criador. Desde os primeiros séculos da era cristã se

acreditava que o fim era iminente. É óbvio, portanto, que este seja um tema de grande

permanência na cultura cristã, e que retorne com mais força em determinados períodos.

No século XII, por exemplo, Bernardo de Clairvaux comentava as idéias apocalípticas

de seu contemporâneo Norbert de Xanten. Escreve o abade cisterciense que

Quando lhe perguntei sobre o que pensava sobre o Anticristo, declarou-se certo de
que seria durante esta geração que ele seria revelado (…). Ele concluiu dizendo que
302
viveria para ver uma perseguição geral da Igreja.
Podem-se mencionar também diversos outros exemplos de autores com preocupações

apocalípticas e milenaristas; o mais famoso sem dúvida é, como já comentado, Joaquim de

Fiore, cujas idéias sobre uma nova era regida pelo Espírito Santo tiveram uma grande

permanência até o fim da Idade Média; certamente influenciaram o milenarismo da segunda

metade do século XIV. A mudança que talvez possa se fazer notar no período posterior a 1348

é a intensidade com que essas idéias ressurgiram e foram divulgadas, e também as formas

como a população reagiu a elas de um modo geral. Em resumo, preocupações apocalípticas

sempre existiram; o que ocorre é uma diferença em relação à expectativa do tempo que

restaria até o fim dos tempos. Alguns autores, com efeito, especialmente em momentos de

crise, tenderiam a esperar para logo a vinda do Anticristo, embora fosse sempre frisado que a

nenhum homem seria revelado o momento exato do fim.

Percebe-se, portanto, que a Peste Negra suscitou de fato mudanças duradouras nas

mentalidades religiosas do século XIV, devido a toda a expectativa apocalíptica gerada em

300
Ibidem.
301
Op. cit., p. 59.

C
torno da epidemia. Deve-se considerar ainda que novos surtos foram recorrentes até o fim do

século XIV, e mesmo posteriormente, embora não tenham tido a mesma força e, portanto,

nem as mesmas taxas de mortalidade do primeiro grande surto303. Essa recorrência decerto

trazia à lembrança dos cristãos os horrores dos surtos anteriores, particularmente o de 1348,

trazendo igualmente à tona os medos, as tensões e suas angústias, reforçando desse modo as

mudanças no comportamento religioso dessas sociedades.

É possível, decerto, especular que outros fatores que não apenas o surto de peste

poderiam ter gerado mudanças nos modos da vida religiosa no século XIV – compreendido de

fato por muitos historiadores como um momento de crise304. Fatores como a grande fome do

início do século ou o aumento dos crimes comuns. No entanto, ainda que modificações nas

mentalidades religiosas já pudessem efetivamente ser percebidas antes de 1348, nenhum

evento aparentemente deixou marcas tão profundas. A Peste Negra foi sem dúvida um dos

grandes divisores de águas na história das mentalidades em relação a questões como

penitência – um comportamento ou mesmo um ideal de vida que poderia evitar a peste –, e

também quanto a questões como as expectativas e o imaginário sobre a morte, a escatologia e

a salvação.

É essa importância da Peste Negra que justificou o peso a ela concedido por Meiss em

sua obra. Entretanto, conforme discutido na introdução a esta tese, as alterações que são

verificadas nos modos de representação das pinturas toscanas com o tema do Juízo final

ocorreram antes do surto de peste. O que se pode especular é que a epidemia possa ter

reforçado ou mesmo intensificado essas mudanças iconográficas, embora não tenha sido o

fator a gerar as modificações.

302
“Verum de Antichristo cum inquiterem quid sentiret, durante adhuc ea, quae nunc est, generatione
revelandum illum esse se certissime scire protestatus est (…). Ad summam tamen hoc asseruit, non visurum se
mortem, nisi prius videat generalem in Ecclesia persecutionem”. Apud Idem, p. 58.
303
A peste, na verdade, continuou se manifestando periodicamente até o século XVIII. Na Itália, após a primeira
grande epidemia em 1348, houve surtos periódicos em 1358, 1362, 1363, 1366, no início da década de 1370,
1373, 1383, 1384, 1400, 1439, 1451, 1452, 1458, 1476, 1494, 1622 e 1743, quando parece finalmente ter
desaparecido na cidade de Messina. Cf. COHN, Jr, S.K. Op. cit., p. 72 a 77.

CI

No próximo capítulo serão discutidos os principais elementos iconográficos que

compõem o tema do Juízo final, a partir dos diversos exemplos italianos, e particularmente

toscanos, desde o fim do século XI, até a segunda metade do século XV.

304
Michael Goodich apresenta vários desses fatores em seu livro Violence and the miracle.

CII
CAPÍTULO II

A ICONOGRAFIA DO JUÍZO FINAL NA TOSCANA

Tertia die resurrexit a mortuis, ascendit ad coelos, sedet ad dextram Dei Patris
omnipotentis, inde venturus est iudicare vivos et mortuos, Credo in Spiritum
Sanctum, sanctam Ecclesian catholicam, sanctorum communionem, remissionem
peccatorum, carnis resurrectionem, et vitam aeternam

Credo, Concílio de Nicéia

1. Introdução

E
ste capítulo se inicia a partir de uma breve consideração sobre a virada do primeiro

milênio e sobre os chamados terrores do ano mil. A menção ao milênio é justificada,

uma vez que a representação visual do Juízo final surgiu tardiamente no Ocidente, no

século IX. Ainda que se deva considerar com cuidado a problemática do medo que a

virada do milênio possa ter despertado na população, o fato de que imagens figurando o Juízo final tenham

começado a se popularizar exatamente próximas a esse momento não pode ser ignorado.

A segunda parte do capítulo fornece um conciso panorama dos desenvolvimentos da iconografia do

Juízo final, discutindo brevemente obras que extrapolam os limites geográfico e cronológico da pesquisa para

analisar, em seguida, os exemplos italianos a partir da mais antiga pintura conhecida com o tema na Península.

Com isso, definem-se os tipos iconográficos mais comuns desde o ano mil, indicando possibilidades de

representação desses tipos. Por fim, o capítulo discute em que consistem as mudanças na iconografia nos

exemplos que se estendem até a segunda metade do século XV, de modo a se mostrar a permanência desses

novos tipos iconográficos.

CIII
2. A virada do milênio

M
uitos historiadores discutem hoje uma tradição historiográfica que fala dos “terrores do ano mil”, considerando

fundamentalmente equivocados os pesquisadores que defendem um aumento das expectativas apocalípticas nos

séculos IX e X, assim como do receio de que a história cristã se encerrasse finalmente com a virada do primeiro

milênio. É preciso, no entanto, considerar alguns aspectos. Por exemplo, no ano 954, Adso, abade de Montier-

en-Der, escreve o Pequeno tratado sobre o Anticristo que, segundo Georges Duby, “era dirigido àqueles que se

preocupavam com o dia do julgamento”305. O fato de ter surgido um tratado sobre esse tema a menos de

cinqüenta anos da virada do milênio pode dar indicativos, se não do estado de espírito, ao menos das

expectativas de parte da população, possivelmente as camadas mais simples e menos letradas – ou absolutamente

iletradas. De fato, é preciso distinguir a religião cristã oficial da religiosidade popular: conforme já comentado

brevemente no primeiro capítulo, somente o clero e um pequeno grupo laico de elite praticava efetivamente a

religião tal como era reconhecida; para a grande massa populacional, por outro lado, superstições e mitos, em

muitos casos, pareciam ter um peso maior do que as noções oficiais difundidas pela Igreja. Prova dessas crenças

populares é o texto de Abbob, abade de Saint-Benoît-sur-Loire, escrito em 998:

Sobre o fim do mundo, ouvi ser pregado ao povo [em 975, aproximadamente] em
uma igreja que o Anticristo viria ao fim do ano mil e que o julgamento geral o
seguiria de pouco. Combati vigorosamente essa opinião, apoiando-me nos
Evangelhos, no Apocalipse e no Livro de Daniel.306

Percebem-se, portanto, as discrepâncias entre o pensamento de uma elite eclesiástica e as noções difundidas
entre a massa iletrada.
A Igreja, com efeito, afirmava há muito que a ninguém seria dado conhecer o momento do fim. O

desconhecimento dessa data já havia sido afirmado pelo Venerável Beda (ca. 673/ 735), por exemplo, que

discordava do cálculo realizado por alguns de seus contemporâneos, segundo o qual o mundo terminaria

exatamente na virada do ano 1000 ou mesmo em 1033 – ou seja, mil anos após a crucificação de Cristo. De

acordo com Beda, “não cabe a você conhecer os tempos e as estações”, indicando que apenas o Criador poderia

305
L’an mil. Paris: Gallimard, 1980, p. 43.
306
Apud Idem, p. 44 e 45.

CIV
saber de fato o dia do Juízo final307. Apesar disso, a interpretação milenarista do texto bíblico do Apocalipse 308

parecia ganhar força no momento em que os mil anos da Encarnação do Senhor se aproximavam. De acordo com

essa interpretação, o castigo do Mal seria realizado em duas etapas: Satanás primeiro seria reduzido à impotência

durante mil anos – o que teria ocorrido com o nascimento de Cristo; após esse período, ele se revoltaria uma

última vez antes da destruição definitiva de seu exército e de si próprio.

O fato de apenas uma crônica de época – redigida já no século XII – mencionar os “terrores do ano

mil”309 pareceria refutar essa noção. Entretanto, como afirma o próprio Duby, “na verdade, um tal silêncio não

significa grande coisa”310, uma vez que todos os textos foram escritos alguns anos após a virada do milênio.

Portanto, ainda de acordo com Duby, poderia ter parecido desnecessário aos cronistas mencionar um temor que,

afinal, teria se mostrado infundado311. Dentre esses textos, Duby menciona os Annales Benventani, redigidos de

forma irregular até 1130, os Annales Viridunenses, do mosteiro de Saint-Michel de Verdun, e que se

interrompem em 1034, e finalmente os cinco livros de Histoires de Raoul Glaber, entregues a Cluny por volta de

1048. Glaber, deve-se destacar, é considerado por Duby “o melhor testemunho de seu tempo, e de longe”312.

É preciso, no entanto, considerar ainda outro ponto: o próprio Glaber, em seu texto, que se iniciou

com relatos sobre o ano 900, percebeu que próximo ao ano mil podiam-se perceber sinais de corrupção “que

concordam com a profecia de João, segundo a qual Satã será libertado após os mil anos completados”313. Afinal,

a virada do milênio já havia passado, mas era preciso ser cauteloso ao menos até 1033, quando se completariam

os mil anos da Paixão do Senhor. Deve-se de fato recordar, como o faz Duby, que, para o Cristianismo do século

XI, a Páscoa possuía – como ainda possui – uma importância muito maior do que o Natal314. É, sem dúvida, a

principal festa do calendário litúrgico cristão. Portanto, é preciso considerar que, se os temores com a virada do

milênio devem ser de algum modo relativizados, também é necessário concordar com Duby, quando afirma que

“resta ao menos indubitável que, às vésperas do século XI, um sentimento de espera se encontrava estabelecido

no centro da consciência coletiva”315.

307
Cf. WARD, B., SLG. The Venerable Bede. Londres, Geoffrey Chapman, 1998, p. 33. O desconhecimento de
quando ocorreria o Juízo final é indicado nos textos escriturais mesmos, como em Mt 24, 36.
308
Ap 20, 1-3.
309
O texto de Sigebert de Gembloux menciona uma série de prodígios nessa data: um terrível terremoto, um
cometa e, por uma “fratura do céu”, o aparecimento da imagem de uma serpente, dentre outros fenômenos. Cf.
DUBY, G. Op. cit., p. 41.
310
Idem, p. 42.
311
Cf. Ibidem.
312
Idem, p. 26.
313
Apud Idem, p. 49.
314
Cf. Idem, p. 48.

CV
3. Origens da iconografia do Juízo final

É
importante, de início, ressaltar a diferença entre o tema do Juízo final e o tema do Apocalipse, por vezes

confundidos nas culturas modernas – uma confusão estranha ao período medieval, deve-se destacar316. Já Santo

Agostinho observava que era primordial distinguir essa “visão da permanência do Reino de Deus”, descrita no

Apocalipse, “de uma simples aparição no fim dos tempos”317. O Apocalipse e suas representações visuais, com

efeito, se referem a aparições do Cristo como Maiestas Domini, que poderiam ocorrer em qualquer tempo, e não

somente no último dia. A visão do Filho do Homem, conforme descrita no Apocalipse, não era interpretada, no

período, como uma visão do fim do mundo. Conforme esclarece Yves Christe, o Apocalipse era concebido “não

como uma revelação do fim dos tempos, mas como uma visão de glória situada no céu, acima, além ou fora do

tempo”318.

No contexto do Juízo final, não se negando que se trata do Maiestas Domini, deve-se considerar que

é, sem dúvida, uma aparição de todo particular: o Cristo que surge no fim dos tempos é o juiz que comparece

uma última vez, para julgar a humanidade. As visões do Juízo final estão “situadas historicamente, ou, mais

exatamente, reintroduzidas em uma perspectiva histórica, a da Segunda Parúsia”, esclarece novamente Christe319.

Escreve, enfim, o historiador suíço que, com o tempo, “visão divina e revelação final acabaram por se

confundir”320, o que justificaria as confusões entre os termos que por vezes ocorrem. Entretanto, deve-se

considerar outro ponto: se o Apocalipse pode não estar associado em termos teológicos ao Juízo final, não há

dúvidas de que, iconograficamente, esse texto bíblico forneceu elementos que foram incorporados às

315
Idem, p. 45.
316
Cf. CHRISTE, Y. Il Giudizio universale nell’arte del Medioevo (trad. M.G. Balzarini). Milão: Jaca Book,
2000, p. 09 e 10.
317
CHRISTE, Y. L’Apocalypse de Jean. Sens et développements de ses visions synthétiques. Paris: Picard,
1996, p. 27.
318
La vision de Matthieu. Origines et développement d’une image de la Seconde Parousie. Paris: Klincksieck,
1973, p. 12.
319
Idem, p. 13.
320
Il Giudizio universale nell’arte del Medioevo, p. 10. Essa associação com o Cristo em Majestade se
evidencia em algumas poucas representações do tema do Juízo final estudadas aqui. Ele surge coroado no
afresco de Buffalmacco, no crucifixo do Assistente de Bernardo Daddi, no afresco de Nardo di Cione e no painel
de Niccolò di Tommaso, em uma coleção privada de Livorno, de que não se obteve uma reprodução fotográfica.
Com exceção do painel de Livorno, os outros exemplos serão discutidos a seguir, junto às outras representações
do tema.

CVI
representações visuais do tema do Juízo final 321.

De acordo com Christe, nos primeiros séculos do Cristianismo se concedia uma ênfase maior às

“teofanias celestes”:

A aparição do Cristo devia exprimir sua presença, o triunfo da fé, a realidade dos
dogmas e não sua visão dramática, facie ad faciem, em um determinado momento da
história. O Juízo final que era conseqüência direta disso estava naturalmente
excluído da grande arte oficial que nas absides de Milão, de Roma, de Nápoles ou de
Ravena mostravam Deus no céu, rodeado por sua corte e discípulos. 322

Com efeito, conforme comentado na introdução ao capítulo, a representação de fato do Juízo final no

Ocidente surgiu tardiamente, no século IX, e somente conquistaria um destaque efetivo no século XIII323. É por

essa razão que, segundo Jérôme Baschet, “a história da representação do Juízo final se abre por uma longa

ausência”324. A exceção, talvez, seja o relevo do sarcófago de Agilbert (na cripta de Saint-Paul em Jouarre, Île-

de-France) que, executado por volta do ano 640, já apresentaria os ressuscitados ao lado do Cristo juiz325. Ainda

que seja necessário relativizar os chamados “terrores do ano mil”, é significativo que a representação visual do

Juízo final, como elemento integrado à decoração do espaço religioso, tenha começado a se popularizar

321
Elementos como os quatro animais que, em alguns exemplos, flanqueiam o Cristo; o trono sobre o qual o
Cristo se assenta e os livros da vida e da morte (Ap 20, 11-15); ou o arco-íris que surge ao redor do Cristo
entronizado, especialmente nos exemplos nórdicos (Ap 4, 2-7). Em verdade, o capítulo quatro do Apocalipse
como um todo fornece “uma imagem ideal do Reino de Deus e da Igreja. Prefigura o que será a glória e a
felicidade de seus membros após a ressurreição dos corpos e a visão do Cristo juiz triunfante da Segunda Vinda
(…).
Desde Anselmo, entendia-se que esses dois últimos capítulos [Ap 21 e 22] descreviam uma imagem da glória
dos justos após a ressurreição (…). Entretanto, no corpus do comentário ou nas glosas que seguem (…), repete-
se regularmente que esta visão pode igualmente se referir ao presente (…)”. CHRISTE, Y. L’Apocalypse de
Jean, p. 27 e 42.
322
Les grands portails romans. Études sur l’iconologie des téophanies romanes (tese de doutorado). Genebra:
Universidade de Genebra, 1969, p. 107.
323
Cf. CHRISTE, Y. Il Giudizio universale nell’arte del Medioevo, p. 07. É preciso destacar que a “ilustração
dos Salmos, particularmente no Ocidente (…), e a do Apocalipse apresentam por outro lado desde a época
carolíngia, se não representações completas do juízo universal, ao menos alusões inequívocas ao retorno do
Cristo e ao fim dos tempos, à ressurreição dos mortos, à separação entre bons e maus e aos suplícios infernais
(…). Tais tentaivas precoces permaneceram de qualquer modo confinadas a um âmbito particular, o do livro
miniado”. CHRISTE, Y. “Giudizio universale”. In: Enciclopedia dell’arte medievale, volume VI. Roma:
Istituto della enciclopedia italiana, 1995, p. 791. O exemplo ocidental mais antigo seria um relevo em marfim
executado por volta do ano 800, atualmente no Victoria and Albert Museum, em Londres. Na arte monumental, a
primeira representação conhecida teria sido o afresco no Convento de Saint Gall, na Suíça, enquanto os mais
antigos exemplos que chegaram aos dias atuais são o afresco em Müstair e o afresco na Igreja de Saint Georg em
Oberzell, em Reichenau, executado no início do século XII. Cf. OFFNER, R. Bernardo Daddi and his circle.
Florença: Giunti, 2001, p. 542.
324
Les justices de l’au-delà. Les représentations de l’enfer en France et en Italie (XIIe-XVe siècle). Roma: École
Française de Rome, 1993, p. 137. Os possíveis motivos para esse desenvolvimento tardio serão esclarecidos a
seguir.
325
Cf. CHRISTE, Y. “Giudizio universale”. In: Enciclopedia dell’arte medievale, p. 791. O surgimento de um
modelo oriental para o tema do Juízo final pode ser inferido a partir de uma cópia feita, no século IX, de uma
Ascensão realizada no século VI, assim como de fragmentos de um mosaico do mesmo período na Igreja de San
Michele, em Ravena, e atualmente no Kaiser-Friedrich Museum de Berlim, que representaria com toda
probabilidade um Juízo final. De qualquer modo, a primeira representação completa do tema surgiria somente no

CVII
exatamente nesse momento, quando, a exemplo do que ocorrera na Igreja de São João, em Müstair, por volta do

ano 800, ele passou a ser colocado na fachada interna das igrejas – embora, como destaca Christe, a iconografia

do tema aparentemente não tenha sofrido “qualquer brusco estímulo” devido à aproximação da virada do

milênio326. O Venerável Beda menciona a existência de uma representação do Juízo final na antiga Basílica de

São Pedro construída pelo Imperador Constantino em Roma, mas não há qualquer vestígio ou cópia dessa

imagem atualmente, de modo que não é possível saber a sua estrutura compositiva.

Por ser, entretanto, um dos temas mais relevantes para a história cristã, o Juízo final

deveria ser de algum modo rememorado, o que ocorreu desde os primórdios do Cristianismo.

Nesse período havia a idéia de uma divisão clara entre o Bem e o Mal. Sendo perseguidos

pelo Estado romano até 313, quando Constantino finalmente liberou o culto, seria

compreensível que os cristãos vissem os romanos não convertidos como representantes do

mal – eram os pagãos, os não batizados. Nessa perspectiva, acreditava-se que seria através do

batismo que o cristão seria salvo no momento do julgamento: a segunda vinda de Cristo

levaria ao término o mundo romano, atirando os pagãos aos castigos infernais por toda a

eternidade, enquanto os cristãos seriam finalmente salvos e conduzidos às benesses do

Paraíso. Como escreve Pamela Sheingorn,

Cristãos batizados que tinham de suportar as ameaças da descoberta e da perseguição


eram ao menos poupados do medo da danação eterna e podiam se sentir seguros na
certeza da vida eterna no Paraíso. O mal estava em grande parte fora da comunidade
327
cristã.

As primeiras representações visuais do Juízo final, ecoando talvez esse pensamento,

mostram Cristo não como juiz, mas sim como o Bom Pastor, que vem separar os bodes das

ovelhas – presumivelmente, os pagãos dos cristãos; uma imagem certamente inspirada, senão

derivada, do Evangelho de São Mateus328. Esse tema pode ser interpretado como um primeiro

século XI, em um Evangelho grego atualmente na Bibliothèque Nationale, em Paris. Cf. OFFNER, R. Op. cit.,
p. 542.
326
CHRISTE, Y. “Giudizio universale”. In: Enciclopedia dell’arte medievale, p. 805.
327
“‘For God is such a Doomsman’: origins and development of the theme of Last Judgment”. In:
BEVINGTON, D. et alii. Homo, memento finis. The iconography of Just Judgment in Medieval art and drama.
Kalamazoo: Western Michigan University, 1985, p. 18.
328
25, 31-34, 41 e 46. O texto de Mateus, por sua vez, teria por base um trecho de Ezequiel (34, 17 e 20-22), que
também trata da separação do rebanho.

CVIII
tipo iconográfico do Juízo final, embora não seja um julgamento como tradicionalmente é

entendido. Uma das primeiras obras conhecidas que evocam o tema é a representação do

Cristo pastor que separa o rebanho, de fins do século III e início do IV, eloqüentemente

localizada em um sarcófago cristão (slide 04). Outra representação do tema é o mosaico da

Igreja de Sant’Apollinare Nuovo, em Ravena (ca. 500), que integra a decoração da nave (slide

05). Não somente o Bom Pastor, mas também a parábola sobre as virgens sábias e as virgens

tolas329 foi utilizada como uma interpretação visual do Juízo final. Sheingorn menciona uma

pintura com o tema na catacumba de Santa Ciríaca (século IV), em Roma, em que, assim

como no exemplo do sarcófago apenas mencionado, as virgens estão separadas pelo noivo, as

sábias à direita, as tolas à esquerda330.

Entretanto, com a liberação do culto em 313 e, principalmente, com a oficialização

do Cristianismo como religião do Estado romano, no fim do século IV, perdeu-se a divisão

vista pelos cristãos entre o Bem e o Mal na sociedade. Pelo contrário, a Igreja, a partir desse

momento, se mesclava ao Império; com isso, os cristãos começaram a se perceber como

criaturas falhas e pecadoras, e, portanto, passíveis de castigos antes reservados apenas aos

pagãos. Sheingorn ressalta que, assim,

Em períodos posteriores [ao referido túmulo na catacumba de Santa Ciríaca], quando


os cristãos poderiam ser tanto sábios como tolos, e se imaginar tanto à direita como à
esquerda no Juízo final, cenas de julgamento não aparecem mais em contextos
331
funerários.

Não por isso, no entanto, o tema perderia sua importância. Pelo contrário, pois, como explica Baschet, a partir do

momento em que essa separação entre cristãos e pagãos desapareceu, “somente o Juízo final permitirá ver

329
Mt 25, 1-13.
330
“‘For God is such a Doomsman’: origins and development of the theme of Last Judgment”. In: Op. cit., p. 21.
331
Idem, p. 21. Essa preocupação, decerto, foi abandonada com os séculos. No século XIV, é possível encontrar
o relevo com uma representação bastante desenvolvida do tema do Juízo final no túmulo de Inês de Castro, no
Mosteiro de Alcobaça (slide 187), em Portugal. Embora não seja uma pintura, e fuja do limite geográfico desta
pesquisa, é uma obra que merece menção devido à representação elaborada da cena, que inclui a ressurreição dos
corpos, a separação entre eleitos – que se dirigem para a porta do Paraíso – e condenados – que são engolidos
pela boca do Inferno, além do próprio Cristo juiz entronizado. Mary Phillips Perry menciona também o sepulcro
de Henrique VII na Abadia de Westminster, na Inglaterra, executado já no século XVI, em que há a
representação da pesagem das almas – uma evidente alusão ao Juízo final. “On the Psychostasis in Christian art”.
In: Burlington magazine, volume XXII, outubro de 1912- março de 1913, p. 216. Sobre a pesagem das almas,
ver a seguir.

CIX
claramente em um mundo onde o bem e o mal se misturam e parecem indiscerníveis aos olhos dos mortais”332.

Se o Juízo final possui tamanha importância, por que não teria sido adequadamente representado

antes do século XIII? O desenvolvimento tardio de uma iconografia propriamente dita do tema pode ser

explicado por fatores diversos: Baschet esclarece primeiramente que

Foi na iconografia maniqueísta dos séculos III e IV que o Juízo final parece ter sido
desenvolvido de início (…). O fato de que a iconografia românica [séculos XI-XII]
se tenha constituído em reação aos maniqueístas poderia explicar a desconfiança
suscitada por um tema que sublinha o lugar do mal no universo.333

É preciso considerar, ademais, que, ao contrário de qualquer outro tema cristão, o Juízo final é um

evento que ainda ocorrerá; ele é anunciado pelas Escrituras, particularmente no Novo Testamento. Baschet

recorda ainda que esse julgamento possui uma “amplitude cósmica”, uma vez que engloba toda a humanidade,

vivos e mortos, desde o momento da Criação até o fim do mundo334. Esse ponto recorda, enfim, também a

complexidade do tema: de fato, além de não haver uma descrição precisa do evento, referências a ele podem ser

encontradas em diversas passagens do Antigo e do Novo Testamentos335, assim como em escritos dos Padres da

Igreja, sermões e textos diversos de cunho mais popular336. Além do mais, havia ainda a dificuldade de organizar

a cena visualmente, uma vez que eventos que ocorrem em momentos temporais diferentes, e que são descritos

seqüencialmente nos textos, deveriam ser mostrados simultaneamente nas representações visuais.

De qualquer modo, as cenas mais desenvolvidas do tema incluem muitas figuras: o Cristo juiz que

apresenta os estigmas, os anjos trombeteiros e os anjos que trazem as Arma Christi337 – e, em alguns poucos

casos, também os anjos que trazem os livros da Vida e da Morte, descritos nos textos escriturais338 –, a

ressurreição dos corpos, o ato do julgamento propriamente dito, muitas vezes representado pela pesagem das

almas (presidida usualmente por São Miguel), a intercessão da Virgem Maria e de São João Batista – a cena da

Deesis, de grande popularidade – e, por fim, a separação entre eleitos e condenados, que receberão as graças no

332
Op. cit., p. 136.
333
Idem, p. 137, nota 07.
334
Ibidem.
335
Para essas referências, ver o anexo I no final desta tese.
336
Conforme recorda Gilbert Dahan, referências ao Juízo final são encontradas principalmente nos comentários
ao Credo, nos comentários de passagens bíblicas que constituem testimonia sobre esse tema, comentários às
Sentenças de Pedro Lombardo (incluindo as sumas teológicas) e algumas questões quodlibéticas. Cf. “Le
Jugement dernier vue par les commentateurs des Sentences”. In: CHRISTE, Y. (org.). De l’art comme
mystagogie: iconographie du Jugement dernier et des fins dernières à l’époque gothique. Actes du colloque
de la Fondation Hardt, 13-16 février 1994. Poitiers: CESCM, 1996, p. 20.
337
A inclusão das Arma Christi – ou seja, dos símbolos da Paixão de Cristo – se deveria a especulações
exegéticas de Mt, 24, 30, que trata dos “sinais do Filho do Homem”.
338
Dn 7, 9-14, Dn 12, 1-3 e Ap 20, 11-15.

CX
Paraíso e as punições no Inferno, respectivamente339. São esses elementos que comporão a tradição iconográfica

do tema do Juízo final. Nem todos comparecerão em todas as cenas, decerto, embora a combinação de alguns

deles deverá forçosamente ocorrer para que a imagem possa ser reconhecida como uma representação do Juízo

final. Esses elementos, em geral, estão distribuídos na cena em faixas superpostas, nas quais os ressurrectos,

usualmente, ocupam a porção mais inferior, ladeados muitas vezes pelos locais que indicam o Paraíso e o

Inferno, enquanto as faixas superiores estão destinadas ao Cristo, aos anjos e aos santos. A partir do século XIV,

essas faixas muito marcadas (em alguns casos mesmo com linhas divisórias) foram eliminadas. Como explica

Richard Offner:

Somos confrontados com uma cena que se eleva acima do chão sólido em direção ao
ar vazio e que pode ser lida em um passar de olhos a partir da fonte da ação no topo
até o espetáculo que se expande de extremos felicidade e lamento abaixo, como no
afresco de Giotto na Capela Arena [Capela Scrovegni] em Pádua (…).340

A mesma estrutura se vê no afresco de Buffalmacco em Pisa (slide 74), assim como nos de Nardo di Cione de ca.

1357, executado na Capela Strozzi, na Igreja de Santa Maria Novella, em Florença (slide 91) e no de Taddeo di

Bartolo (ca. 1393) na Collegiata, em San Gimignano (slide 106), dentre outros exemplos que se seguiram nos

séculos XV e mesmo XVI, como o célebre afresco de Michelangelo na Capela Sistina, executado entre 1536 e

1541 (slide 155). Entretanto, mesmo nesses casos as diversas cenas que compõem o tema do Juízo final

continuam visualmente separadas em faixas horizontais341.

Em função de sua complexidade, e devido à necessidade de condensar uma série de cenas em uma

única imagem, a escala de uma pintura com o tema deveria, de acordo com Offner, forçosamente se tornar

gigantesca; isso explicaria, segundo o autor, a opção preferencial, a partir do século XI ao menos na Península

Itálica, não somente pelos muros das igrejas para a pintura do tema, como também pela “maior área disponível

na nave, no fim contra o sol poente”342, ou seja, na face interna da fachada dessas igrejas. Essa foi, sem dúvida,

uma importante solução para os problemas artísticos mencionados acima, e para o desenvolvimento iconográfico

do Juízo final. No entanto, ao transferir o tema para um painel, o que de resto será bastante comum não somente

na Península Itálica, como também em outras regiões da Europa, a imagem deveria necessariamente se

339
A discussão sobre as representações de Paraíso e Inferno será postergada para os terceiro e quarto capítulos,
devido à importância que possuem na discussão das hipóteses propostas por esta pesquisa.
340
Op. cit., p. 542.
341
Especificamente sobre o afresco de Michelangelo, ver QUÍRICO, T. O Juízo final de Michelangelo.
Questões iconográficas e a polêmica do Cinquecento sobre o afresco sistino (dissertação de mestrado).
Campinas: Programa de Pós-graduação em História/Unicamp, 2003.
342
OFFNER, R. Op. cit., p. 541. Sobre as significações para esse posicionamento do tema nas igrejas, ver o
quarto capítulo desta tese, páginas 247 a 249.

CXI
condensar, sacrificando “a amplitude própria do tema do Juízo final”343, e buscando os elementos mais

característicos e fundamentais para a compreensão da cena.

A psicostasia será considerada na medida em que é um elemento da iconografia do tema do Juízo

final que, embora de grande popularidade, não conheceu um particular desenvolvimento nas pinturas da

Península Itálica. A Deesis, por outro lado, não sofreu grandes variações em seus modos de figuração. É

importante destacar que essa cena poderia ser representada tendo, ao lado da Virgem Maria, São João Batista ou

São João Evangelista344. Nas áreas da atual França, o Evangelista era a personagem mais popular, especialmente

ao longo do século XIII; o Batista, por outro lado, foi a escolha mais usual tanto na Península Itálica como nas

áreas germânicas345. A partir do Trecento, no entanto, São João Batista suplantou quase completamente o

Evangelista em todas as figurações do Juízo final que incluíssem a Deesis. Assim explica Yves Christe essa

cena:

(…) por que razões a Virgem e o Precursor foram designados os intercessores


privilegiados da Segunda Parúsia bizantina? (…) A resposta (…) se encontra nos
Evangelhos da Infância [de Cristo] e no prólogo do Evangelho de São João. A
Virgem, enquanto Mãe de Deus, e João Batista são com efeito os primeiros homens
a reconhecer e a saudar a vinda do Verbo encarnado (…), a primeira na ocasião da
concepção; o segundo na ocasião da Visitação, nas entranhas de sua mãe (Lc 1, 41-
45). É portanto natural que após terem sido as primeiras testemunhas da Primeira
Parúsia, tenham sido designados os intercessores principais da Segunda, este papel
não sendo de fato mais do que uma especialização momentânea do papel que tiveram
como um instrumento e como testemunhas da Encarnação.346

Os outros componentes mais essenciais para a caracterização de uma representação visual do tema do

Juízo final – o Cristo juiz, a ressurreição dos corpos e a separação entre eleitos e condenados – serão discutidos a

seguir.

4. O Cristo juiz

U
m dos elementos fundamentais na iconografia do Juízo final é, sem dúvida, a figura do Cristo juiz. Se, por um

lado, o Cristo só pode ser interpretado como o juiz dentro de um contexto que pressupõe obrigatoriamente alguns

dos outros elementos mencionados acima, não é possível, de modo algum, a representação do julgamento final

sem a Sua presença. A importância de Sua figura pode ser atestada pelo fato de que os painéis (em que, como

343
Idem, p. 546.
344
Segundo Christe, na região da Inglaterra o intercessor preferencial junto ao Cristo juiz era São Pedro. Cf.
“Giudizio universale”. In: Enciclopedia dell’arte medievale, p. 796.
345
Cf. Ibidem.
346
La vision de Matthieu, p. 87. A presença de São João Evangelista, por outro lado, enfatizaria a associação
entre o Cristo juiz e o Cristo da Paixão, o Redentor, cujo sacrifício no Gólgota fora testemunhado exatamente

CXII
apenas comentado, há a necessidade de condensação do tema)

Dão proeminência menos à variedade dos eventos representados do que à pessoa


do próprio Cristo. Ele é mostrado em seu aspecto humano, porém mais
especialmente no papel da divindade que sofreu agonia humana pelo bem dos
homens.347

A escala do Cristo juiz nesses painéis, ademais, é sensivelmente maior do que a dos outros elementos, “e de fato

toda a cena nos é mostrada de sua altura e nível”348.

Na tradição iconográfica do tema, tanto nos painéis como na pintura mural, o Cristo se apresenta

normalmente em posição frontal, com os braços abertos de modo a exibir Seus estigmas. Uma pequena variação

pode ocorrer: em geral, a mão direita do Cristo349 – a mão próxima aos eleitos, deve-se recordar – mostra a

palma, enquanto a mão esquerda faz o gesto contrário. A aceitação dos eleitos e a rejeição dos condenados,

portanto, dá-se de forma sutil. Esse gesto é de grande importância. Para Baschet, com efeito, nesse caso a dupla

sentença estaria marcada em Seu corpo; o Cristo atua efetivamente como juiz, e essa “gestualidade introduz uma

ruptura sensível com a imagem de majestade”350, ou seja, com o Maiestas Domini das visões apocalípticas. E

complementa: “a oposição significando o acolhimento e a rejeição é decerto discreta, mas bastante significativa

na medida em que ela é trazida sobre o próprio corpo do Cristo”351.

Em alguns casos, no entanto, ambas as mãos exibem as palmas; nesses exemplos, talvez, desejava-se

enfatizar exatamente os estigmas, sinais inequívocos do sacrifício de Cristo pela humanidade – que expressam,

portanto, os motivos por que Ele se tornara o juiz de todos os homens no último dia352. É por isso que esse

segundo gesto também possui uma significação judiciária, ainda que implícita: segundo a definição de Baschet,

Os estigmas são então um sinal de salvação para os justos e de condenação para os


ímpios. Pela simples virtude de sua presença, eles dividem a humanidade entre
aqueles que reconheceram o sinal do Homem e aqueles que o ridicularizaram. A
separação não ocorre mais pela enunciação das sentenças (…), mas pela virtude de
um signo visual.353

Com relação à exibição de ambas as palmas, deve-se ainda destacar outro ponto. Esse gesto recorda a

atitude do orante, embora, como apenas mencionado, tenha a função primordial de exibir os sinais da Paixão.

Alguns autores, como Fournée, que criaram uma tipologia dos juízos finais a partir de uma noção de

temporalidade, defendem que essa atitude do Cristo corresponderia, em verdade, a um momento anterior ao

pela Virgem e pelo Evangelista. Cf. Idem, p. 59. Sobre a associação entre os temas do Juízo final e da Paixão de
Cristo, ver o tópico 07 do presente capítulo.
347
Idem, p. 550.
348
Ibidem.
349
Tomando-se como referência o próprio Cristo. Essa mão está do lado esquerdo da obra para o espectador.
350
Op. cit., p. 199.
351
Ibidem.
352
Sobre esse tópico, ver o primeiro capítulo desta tese.

CXIII
julgamento propriamente dito, momento em que o Juiz surgiria diante da humanidade e justificaria Sua

legitimidade pela apresentação dos estigmas. Essa análise, entretanto, parece equivocada, uma vez que, ainda

que seja possível distinguir fases distintas do julgamento, e que deverão ocorrer em momentos temporais

diversos, a representação visual do Juízo final necessariamente as condensa em uma única imagem, conforme

discutido anteriormente354.

Dentro dessas duas possibilidades de posicionamento das palmas, podem ocorrer ainda outras

variações com relação aos gestos dos braços: ambos podem estar levantados ou abaixados, ou ainda alternados;

neste caso, o mais usual é encontrar o braço direito do Cristo levantado, e o esquerdo abaixado. Explica Baschet

que, dessa forma, “a enunciação das sentenças joga com a oposição alto/ baixo (…)”355.

Nas pinturas italianas com representações do Juízo final, todos os modelos de gesto do Cristo juiz

acima mencionados são encontrados. O primeiro caso – o das palmas em posições invertidas – ocorre na Basílica

de Sant’Angelo in Formis (ca. 1080), na província de Cápua, na região da Campânia (slide 07) – embora não

esteja na região da Toscana, esse afresco se reveste de particular importância por ser a mais antiga representação

do tema em toda Península Itálica, devendo, portanto, ser estudado como o primeiro modelo figurativo.

Especificamente com relação à Toscana, o Cristo juiz faz o gesto duplo no mosaico do Batistério de San

Giovanni (ca. 1270-1290), em Florença (slide 22), no afresco de Giotto (ca. 1305-07) na Capela Scrovegni, em

Pádua (slide 41)356, no painel de Lippo di Benvieni, pintado na primeira metade do século XIV (slide 54), no

painel do Mestre de San Martino alla Palma, também da primeira metade do Trecento (slide 57), no painel do

Maestro dell’effigi domenicani, realizado igualmente na primeira metade do século XIV (slide 61) e, por fim, no

afresco de Maso di Banco (ca. 1336) no túmulo da família Bardi na Capela dei Confessori, no transepto esquerdo

da Igreja de Santa Croce, em Florença (slide 67). No afresco do arco cruzeiro da Collegiata de Casole d’Elsa

atribuído a Jacopo di Mino del Pellicciaio (primeira metade do século XIV), o Cristo juiz faz o gesto duplo, mas

as mãos, devido ao seu posicionamento, não exibem claramente nem as palmas, nem os dorsos (slide 52)357.

O Cristo exibe ambas as palmas no mosaico da Igreja de Santa Maria Assunta, em Torcello,

353
Op. cit., p. 165 e 166. Sobre a enunciação das sentenças, ver a seguir.
354
Também Baschet critica essa tipologia de juízos finais. Cf. Op. cit., p. 165, nota 91. A referência à obra de
Fournée é igualmente dada por Baschet na mesma nota.
355
Idem, p. 216.
356
Pádua também está situada fora da delimitação geográfica da pesquisa; o afresco, porém, integra o conjunto
de obras analisado por ter sido realizado pelo mais importante pintor toscano do período, refletindo, desse modo,
toda a formação artística toscana, e especificamente florentina, de Giotto. O afresco, ademais, é de grande
importância para a discussão da hipótese apresentada por esta pesquisa, e que será desenvolvida no próximo
capítulo.
357
Isso é claro na mão direita, e é perceptível na mão esquerda, embora desta sejam visíveis somente o polegar e
parte do dorso, devido à destruição de quase toda a pintura.

CXIV
executado no último quartel do século XII (slide 14)358, no painel do Anônimo de Lucca pintado ainda no século

XIII (slide 32), no painel atribuído a Guido da Siena e seus seguidores, de fins do Duecento (slide 34), no afresco

no transepto direito da Igreja de Santa Chiara, em Assis, pintado na primeira metade do século XIV (slide 39)359,

no afresco da capela funerária da Collegiata de Casole d’Elsa (primeira metade do século XIV), também

atribuído a Jacopo di Mino del Pellicciaio (slide 49) e no painel do Seguidor de Segna, de ca. 1320 (slide 64).

Deve-se destacar que, após 1340, surge na Toscana uma nova possibilidade de posicionamento das

mãos do Cristo juiz: com o ciclo do Camposanto de Pisa (slides 71 a 79), com efeito, o gesto do Cristo se altera

profundamente, como bem o descreveu Meiss360. Ele, de fato, não está mais frontal, ou apenas ligeiramente para

um dos lados, mas absolutamente voltado para a Sua esquerda, na direção do cortejo dos condenados; Seu braço

direito está levantado, quase como se desejasse castigar fisicamente, Ele próprio, aqueles que já se dirigem para

as punições eternas do Inferno. A mão esquerda, por outro lado, abre ainda mais o rasgo em Sua veste, em que

surge o quinto estigma da Paixão, exibindo-o claramente (slide 75). O Cristo juiz parece fazer recordar,

igualmente, o direito de julgamento que Ele tem sobre a humanidade, por todo o Seu sofrimento na cruz.

E é preciso mencionar, em relação ao posicionamento do Cristo pisano, a importância que parece ter

tido sobre representações posteriores; o gesto está repetido, com pequenas variações, no painel Juízo final, Vir

dolorum entre os símbolos da Paixão e lamento sobre o Cristo morto, pintado entre 1360 e 1365 pelo Mestre da

Misericordia dell’Accademia (slide 101), no ciclo de Taddeo di Bartolo em San Gimignano (slide 107), e ainda

em outros exemplos posteriores: no afresco de Bicci di Lorenzo (após 1447- antes de 1452) no arco cruzeiro da

Igreja de San Francesco, em Arezzo (slide 134), no afresco de Lorenzo di Pietro pintado em 1448 no teto do

Batistério, em Siena (slide 137), no pequeno painel de Fra Angelico no chamado Armadio degli argenti,

executado por volta de 1450 (slide 128), nos dois painéis pintados pelo próprio Fra Angelico por volta do mesmo

período (slides 130 e 132), no Cristo também realizado por Fra Angelico (1447-1450) no teto da Capela de San

Brizio, na Catedral de Orvieto – cujo ciclo seria completado por Luca Signorelli na virada do século (slide 149)

358
O caso de Torcello é o mesmo apenas mencionado de Sant’Angelo in Formis. Embora situado nessa
localidade próxima a Veneza, na região do Vêneto, o mosaico é fundamental para a discussão da iconografia do
tema do Juízo final na Península Itálica, uma vez que, de execução bizantina, pode mostrar os elementos
iconográficos dessa tradição, incorporados em seguida à tradição ocidental das representações do mesmo tema.
359
O afresco de Assis foi incluído devido não somente à relativa proximidade geográfica desta cidade com a
região da Toscana, mas especialmente por causa da importância que Assis teve como pólo artístico desde o fim
do século XIII, em função da decoração das Basílicas superior e inferior de San Francesco. É possível, desse
modo, que o afresco da Igreja de Santa Chiara, ainda que não tenha sido necessariamente executado por um
artista toscano, possa ter recebido influências de muitos desses artistas, que trabalhavam no canteiro de San
Francesco.
360
Cf. Painting in Florence and Siena after the Black Death. Princeton: Princeton University, 1964, p. 99 e
100. Para ler a citação completa, ver a introdução desta tese, página 46.

CXV
–, na grande predella de Giovanni di Paolo, realizada entre 1460 e 1465 (slide 141)361, no afresco de Fra

Bartolomeo pintado entre 1499 e 1500 (slide 154), e mesmo no afresco de Michelangelo na Capela Sistina, já no

século XVI (slide 156). A influência também pode ser percebida em ao menos três iluminuras: um fólio pintado

por um mestre florentino por volta de 1355 (slide 169) – cerca de vinte anos após a execução do Juízo final em

Pisa, portanto –, um fólio de um Antifonarium pintado por Lorenzo Mônaco por volta de 1406 ou 1407 (slide

175), e um fólio de um Evangeliarium pintado por Filippo di Matteo Torelli em 1466 (slide 180); no primeiro

caso, foi representado um pequeno Juízo final em que o gesto do Cristo recorda bastante o do painel de Fra

Angelico realizado para o Armadio degli argenti – seria possível talvez ver nessa iluminura uma primeira

pequena variação do modelo pisano (na medida em que o Cristo não enfatiza o estigma no flanco com a mão

esquerda, mas a estende à sua frente na direção dos condenados), e que serviria de base para Angelico e outros

artistas posteriores? Na segunda iluminura, o gesto segue um modelo mais próximo ao do Cristo do Camposanto.

Na terceira iluminura, por fim, em que a influência parece ter sido indireta, a figura do Cristo juiz é ainda mais

semelhante ao de Angelico no Armadio degli argenti.

Essa nova tipologia, ademais, atravessou fronteiras. De fato, há ao menos um exemplo fora da

Península Itálica em que o Cristo parece repetir o gesto presente no afresco do Camposanto pisano: na antiga

catedral de Salamanca, na Espanha, a parte superior da abside está decorada com um afresco do Juízo final no

qual o Cristo juiz, seminu, não somente reproduz o movimento dos braços do afresco de Pisa, como parece dar

um passo em direção aos condenados que estão abaixo, como se quisesse efetivamente atacá-los (slide 148). O

fato de ter sido executado por volta de 1439, juntamente com o retábulo que lhe está logo abaixo, por artistas

florentinos – os irmãos Dello, Nicola e Sansone Delli362 –, parece apontar claramente a inspiração para o gesto

do Cristo juiz.

Vale recordar que alguns dos exemplos apenas mencionados fogem à delimitação cronológica desta

pesquisa, que não avançará além da década de 1460; um deles está além da delimitação geográfica. Deve-se

ainda destacar que iluminuras também não serão discutidas por este trabalho. As pinturas que fogem ao escopo

da pesquisa foram citadas aqui somente com o propósito de reforçar a importância do afresco pisano de

Buonamico Buffalmacco como modelo para o posterior desenvolvimento iconográfico do tema do Juízo final na

Toscana.

É preciso destacar, no entanto, que o posicionamento tradicional do Cristo nas representações do

361
Esse painel de Giovanni di Paolo difere um pouco dos outros exemplos, uma vez que o corpo do Cristo,
usualmente virado para os condenados, está voltado para os eleitos, criando uma estranha contorção.

CXVI
Juízo final não foi abandonado; há exemplos ainda na segunda metade do século XIV e no século XV que o

mantêm, mas, proporcionalmente, os exemplos derivados do afresco de Pisa são bem mais numerosos: de

dezessete pinturas com o tema do Juízo final executados entre a segunda metade do século XIV e meados do

século XVI, na região da Toscana ou realizados por artistas toscanos, somente seis não seguem o novo modelo,

não levando em consideração as iluminuras com o tema. Desses, pelo menos um busca uma solução conciliatória

entre os dois tipos de movimentação do corpo do Cristo. Assim, o gesto tradicional é encontrado no painel

Alegoria da Redenção, de Ambrogio Lorenzetti, pintado por volta de 1345 (slide 82)363, no pequeno Juízo final

pintado na extremidade superior do crucifixo do Assistente de Bernardo Daddi (ca. 1345), possivelmente

executado para uma confraria de flagelantes de Florença (slide 88), no painel de Gherardo Starnina pintado por

volta de 1360 (slide 104), no painel Cristo penitente e Cristo triunfante, de Giovanni di Paolo, do início do

século XV (slide 116) e no primeiro painel com o tema do Juízo final realizado por Fra Angelico em 1431 (slide

124). O gesto parece reinterpretado no Cristo juiz do afresco de Nardo di Cione em Florença (slide 92),

buscando uma conciliação entre os dois modelos: o Cristo, embora não faça o “gesto de denúncia” descrito por

Meiss, está voltado somente para os condenados e, enquanto parece querer afastá-los com o gesto da mão

esquerda, faz o gesto da benção para os eleitos com a mão direita364.

Baschet comenta a problemática da representação do Cristo juiz por Buffalmacco, tentando explicar

não somente o gesto do Cristo, como também a iconografia absolutamente inédita de seu afresco do Juízo final.

Segundo o autor, no Camposanto de Pisa o Cristo e a Virgem – que está colocada ao Seu lado, dentro de uma

mandorla igual à de seu Filho – dividiriam a ação judiciária:

Se o Cristo encarna aqui a Justiça que condena, a Virgem representa a Misericórdia


que salva. A dupla Justiça/ Misericórdia explica então a dissociação do pólo divino:
em vez de os assumir conjuntamente, o Cristo delega um de seus dois princípios à
Virgem.365

Desse modo, o Cristo poderia se dedicar somente ao caráter punitivo do julgamento, uma vez que se torna o

362
Cf. “Ieronimus: un paseo por las dos catedrales salmantinas”. In: Patrimonio. Fundación del Patrimonio
Histórico de Castilla y León, n.º 32, janeiro/ fevereiro/ março de 2008, p. 15.
363
Chiara Frugoni defende uma datação em torno de 1336-1339 para esse painel, de modo a enfatizar as
“afinidades temáticas” com o ciclo realizado por Buffalmacco no mesmo período em Pisa. Cf. “Altri luoghi,
cercando il paradiso (il ciclo di Buffalmacco nel Camposanto di Pisa e la committenza domenicana)”. In: Annali
della Scuola Normale Superiore di Pisa. Série III, vol. XVIII, n.º 4. Pisa, 1988, p. 1630. Se, entretanto, é
correta sua suposição de que o painel seria um estudo para um afresco de grandes dimensões jamais realizado, é
plausível supor que a impossibilidade de sua execução se devesse à morte de Lorenzetti no surto de Peste Negra
de 1348. Seria mais provável, portanto, que a datação da pintura fosse colocada já na década de 1340, o que
tornaria mais viável também, na opinião da autora desta tese, as aproximações com o ciclo do Trionfo della
Morte de Buffalmacco. Especificamente sobre o painel de Lorenzetti, ver a seguir.
364
A importância do Juízo final do Camposanto de Pisa vai além do modo de representação do Cristo juiz. Este
ponto, entretanto, será desenvolvido e discutido no próximo capítulo. Para um resumo da tipologia dos gestos do
Cristo juiz, ver o anexo III desta tese.

CXVII
“ordenador de castigos”366. E, como destaca uma vez mais Baschet, embora o fato de Cristo se voltar para a

direita da cena – tendo como referência o observador – significar “decerto um abandono de sua posição de

imparcialidade”367, é preciso ter em conta que a figura mesma do Cristo não está mais no centro da imagem nos

afrescos pisanos, uma vez que a cena do Juízo final se desloca para a esquerda, de modo a se poder incluir a cena

do Inferno à direita. Dessa forma, o eixo mediano e divisor entre eleitos e condenados, de que o Cristo frontal

seria o marco, como ocorre em outras representações do tema, não existe mais.

É preciso ressaltar que ao menos outra pintura seguiria estrutura semelhante à do afresco pisano: no

painel de Niccolò di Tommaso em Livorno, a Virgem estaria igualmente sentada à direita do Cristo368. Há ainda

o painel do Anônimo bolonhês, executado no século XIV (slide 146), em que a Virgem, também do lado direito

do Cristo, é coroada por seu Filho. O autor dessa pintura, em verdade, parece mesclar, em uma única cena, três

temas diversos: Juízo final, Coroação da Virgem e Paraíso com a Corte celeste369.

Esse tipo de composição possivelmente teria por base representações do Paraíso, em que

tradicionalmente Maria e seu Filho seriam colocados lado a lado, no alto, acima de todos os outros santos; não

raro, a Virgem estaria sendo coroada pelo Cristo, como ocorre na pintura do Anônimo bolonhês. Exemplos do

tipo são encontrados nos ciclos de Nardo di Cione e de Taddeo di Bartolo, e justamente no afresco do Paraíso –

mas em nenhum dos dois Maria está sendo coroada. A equiparação de importância entre o Cristo e a Virgem em

uma cena do Juízo final, no entanto, será absolutamente rara. Não se deseja com isso afirmar que o papel da

Virgem esteja minimizado em outras imagens do tema; a cena da Deesis, com efeito, possui destaque em muitas

das pinturas discutidas por esta pesquisa. Entretanto, no momento do Juízo final o caráter judiciário deve

prevalecer sobre o misericordioso, uma vez que o momento para o arrependimento do cristão – e, portanto, para

a intercessão da Virgem e de São João Batista – já passou370.

O posicionamento pouco usual do Cristo juiz no ciclo do Camposanto de Pisa, portanto, segundo

Baschet, se justificaria em função da singular elaboração compositiva dos afrescos do Juízo final e do Inferno.

Esse gesto, forte e significativo – especialmente dentro do contexto do afresco pisano – foi absorvido pelos

artistas posteriores, conforme já comentado. A estrutura do ciclo, com a bipolaridade compositiva entre Juízo

365
Op. cit., p. 313 e 314.
366
Idem, p. 315.
367
Idem, p. 314.
368
Cf. OFFNER, R. Op. cit., p. 545. Essa obra, conforme comentado anteriormente, não foi localizada por esta
pesquisa para uma análise mais detalhada.
369
Embora essa pintura fuja à delimitação geográfica da pesquisa, merece menção pela singularidade de sua
composição. É preciso considerar, ademais, a relativa proximidade entre a Toscana e a cidade de Bolonha.
370
A Deesis ganha em sentido quando se pensa nas funções possíveis para imagens com o tema do Juízo final, o
que será discutido no quarto capítulo desta tese.

CXVIII
final e Inferno, e com a divisão eqüitativa de papéis entre a Virgem e o Cristo, entretanto, não o foi. Se

perceberam a força e o impacto visual que o gesto criaria na cena, a esses artistas escapou talvez sua significação

plena.

CXIX
5. A ressurreição dos corpos e a separação entre eleitos e condenados

A
lém do Cristo juiz, os outros dois elementos que indicam claramente o Juízo final são a ressurreição dos corpos e

a separação entre eleitos e condenados. Baschet sugere que as representações do tema apresentam uma estrutura

bipolar do Julgamento371, definida pela oposição entre um pólo celeste – o Cristo – e um pólo infernal. Essa

estrutura ocorreria mesmo quando não há a figuração efetiva do Inferno: de fato, há ao menos a indicação dessas

duas vias possíveis – de ascensão em direção ao Paraíso ou de queda em direção ao Inferno – através da

separação da humanidade em dois grupos, seja pela representação efetiva da separação, seja pelos gestos e

sentimentos que os corpos ressuscitados expressam – pois, em todos os exemplos discutidos aqui, as atitudes dos

ressurrectos já indicam claramente, em termos visuais, se estarão, em seguida, entre os eleitos ou entre os

condenados.

Ressurreição dos corpos e separação de eleitos e condenados não são elementos absolutamente

imprescindíveis na iconografia do Juízo final. Basta recordar que, de acordo com o que foi discutido

anteriormente com relação ao Cristo juiz, a indicação da separação dos ressuscitados nos dois grupos já seria

dada por meio do Seu gesto. Conforme recorda Offner, mesmo quando não há uma demonstração clara da

sentença por meio do posicionamento dos gestos das mãos de Cristo, ela poderia ser recordada por meio das

inscrições retiradas de duas passagens do Evangelho de Mateus372 – com algumas variações nas grafias das

palavras e na extensão do texto reproduzido –, escritas em pergaminhos geralmente carregados por anjos que

conduzem o veredicto pronunciado pelo juiz373

Os pergaminhos trazidos por anjos estão presentes no afresco de Sant’Angelo in Formis (slide 08)374,

no mosaico do batistério de Florença (slide 23) – embora aqui, deve-se ressaltar, há apenas o pergaminho

referente aos eleitos375 –, no afresco de Buffalmacco (slide 77), ainda que os textos atualmente não sejam mais

371
Cf. Op. cit., p. 174.
372
Na Vulgata, os trechos são os seguintes: “Venite benedicti Patris mei possidete paratum vobis regnum a
constitutione mundi” (Mt 25, 34), e “Discedite a me maledicti in ignem aeternum qui paratus est diabolo et
angelis eius” (Mt 25, 41). As passagens traduzidas se encontram no anexo I desta tese. A versão da Vulgata
utilizada está em: The Bible: Latin Vulgate. Disponível em: <http://www.fourmilab.ch/etexts/www/Vulgate/>.
Acesso em 08.04.2008. Essas mesmas palavras de incentivo são ditas por um anjo aos espíritos que passam do
Purgatório para o Paraíso terreal, na Commedia dantesca: “Guidavaci una voce che cantava/ di là; e noi, attenti
pur a lei,/ venimmo fuor là ove si montava./ ‘Venite, benedicti Patris mei’,/ sonò dentro a un lume che lì era,/ tal
che mi vinse e guardar nol potei” [Uma voz dirigia-nos, que cantava/ pra além do fogo; o Mestre acompanhei;/
saímos onde a rampa começava./ “Venite, benedicti Patris mei!”/ surgia de um lume tal que, pretendesse/ embora
o contemplar, não suportei”]. Purg. XXVII, 55-60. Todas as traduções do texto dantesco foram retiradas da
seguinte edição: DANTE ALIGHIERI. A Divina Comédia, 3 volumes. Edição bilíngüe (tradução e notas de
Italo Eugenio Mauro). São Paulo: 34, 1998.
373
Cf. OFFNER, R. Op. cit., p. 545.
374
Venite benedicti patris mei per(…) reg(…) e Ite maledicti in ignem eternum.
375
Venite beneditti patris mei possidete preparatum.

CXX
legíveis376, no painel do Maestro dell’effigi domenicani (slide 62)377, no crucifixo do Assistente de Bernardo

Daddi (slide 89)378, e no painel do Mestre da Misericordia dell’Accademia, mas aqui também os textos não são

mais legíveis (slide 102). No painel no Mestre de San Martino alla Palma, dois anjos trazem dois pergaminhos,

mas as inscrições não são legíveis379 (slide 58). No afresco de Taddeo di Bartolo há pergaminhos, que não são

trazidos por anjos, mas se colocam logo abaixo dos anjos trombeteiros, e que são indicados por Enoc, à

esquerda, e de Elias, à direita, profetas que estão figurados abaixo dos pergaminhos, ao lado dos anjos que

trazem as Arma Christi (slide 108); as inscrições são paráfrases das passagens de Mateus380. No painel de Fra

Angelico que integrava o Armadio degli Argenti os pergaminhos estão colocados na base da pintura,

respectivamente abaixo dos eleitos e dos condenados (slide 127)381. E, nos restos de afrescos de Giovanni dal

Ponte, em Pistóia, há uma solução de todo diversa: a frase Surgite Maleditti parece sair tanto de uma trombeta

carregada por um anjo, quanto da boca de um segundo anjo (slide 121).

Embora ressurreição dos corpos e separação dos grupos de ressurrectos não precisem estar presentes

simultaneamente – a alternância entre esses elementos será comum em particular nas pinturas de painéis, cujo

espaço para o desenvolvimento visual do tema é usualmente restrito, conforme comentado –, ao menos um deles

deverá comparecer. De acordo com Christe,

Numerosos Juízos universais, mesmo na grande arte monumental, não contemplam a cena da separação entre eleitos e condenados. A
ressurreição dos mortos, por outro lado, está quase sempre presente.382

Essa asserção, entretanto, não está correta, ao menos no que diz respeito às representações do tema na Toscana, e

pelo menos desde o século XIII. Em boa parte dos exemplos a separação entre eleitos e condenados possui uma

proeminência sensivelmente maior do que a ressurreição dos corpos: quando não completamente ausente, a

ressurreição é apenas indicada por alguns poucos túmulos que se abrem, pequenos demais, porém, para serem

notados de forma adequada em relação ao resto da cena.

É o que ocorre, por exemplo, no mosaico do Batistério de Florença (slide 21). Embora, como destaca

Ernest Hatch Wilkins, os túmulos sejam os primeiros elementos que o fiel vê ao dirigir o olhar para a área acima

376
Nas fotografias feitas antes da II Guerra Mundial, lêem-se as seguintes inscrições: Venite benedicti patris (…)
rēgnū qui p(…) e Ite maledicti iningne qui parat ē diabulo.
377
(…)nite beneditti patris mei epossidete e (…) maladetti in ignē aeternum.
378
Venite benedi(…) e Ite malade(…).
379
Aparentemente, não foi reproduzido nem o texto de Mateus nem qualquer outro, mas não é possível afirmar
isso com certeza.
380
Venite Benedicti a Possedere col Eterno La Gloria mia col Angeliche Milizie e Al fuoco Eterno omai atroce
morte e ogni speranza al tutto vi spogliate.
381
Venite benedicti patris mei pcpite regnum e Ite maledicti î ignem eternum.
382
Il Giudizio universale nell’arte del Medioevo, p. 11.

CXXI
da tribuna383, a sua visão é logo subjugada pela imponência do Cristo juiz, representado logo acima da

ressurreição dos corpos (slide 23). A discrepância entre as dimensões dos ressurrectos e do Cristo– o maior

elemento de toda a cena do Juízo final – é suficiente para concentrar n’Ele a atenção do observador. No afresco

de Giotto em Pádua (slide 40) ocorre algo próximo. Neste exemplo, a ressurreição dos corpos está deslocada

para a parte inferior esquerda, logo abaixo do cortejo dos eleitos que se dirigem ao Cristo juiz. Entretanto, as

dimensões dos ressurrectos são cerca de cinco vezes menores do que as dos eleitos logo acima (slide 43).

Embora esses corpos ressuscitados possuam tamanho equivalente aos condenados no Inferno, é preciso ter em

conta que, ao Inferno como um todo, Giotto dedicou quase metade do lado direito do afresco. Sendo assim, as

dimensões reduzidas dos condenados não prejudicam a priori uma leitura geral da cena infernal. A ressurreição

dos corpos, por outro lado, ocupa uma faixa mínima do lado esquerdo, e, visualmente, não atrai a atenção do

espectador (slide 42).

Solução semelhante foi realizada no afresco do Juízo final do ciclo de Nardo di Cione na Capela

Strozzi (slide 91): conforme será discutido no próximo capítulo, ao Inferno e ao Paraíso estão destinadas duas

paredes (slides 94 e 95), que ocupam, cada qual, uma área maior do que aquela reservada à cena do Juízo final

propriamente dita384. A ressurreição dos corpos comparece nessa que seria a cena central e principal. Entretanto,

a ela está reservada uma pequena área na extremidade inferior do afresco, nos cantos esquerdo e direito da cena,

ocupando cerca de um sétimo da altura total da cena (slide 93). Se, por um lado, é plausível considerar que o

diminuto tamanho poderia ser compensado pelo posicionamento mais próximo dos olhos dos fiéis, deve-se ter

em conta também que, à frente do afresco, está colocado o retábulo executado por Andrea Orcagna para a

capela385, e que, desde o início, foi projetado para ser colocado nesse posicionamento. É provável que tanto o

383
Cf. “Dante and the mosaics of his Bel San Giovanni”. In: Speculum, volume II, n.º 01, janeiro de 1927, p. 05.
384
Além da parede central, em que está o Juízo final, ser um pouco mais estreita do que as outras duas, há nela,
também, na área central, uma grande janela alongada em arco ogival, que ocupa boa parte da altura da parede,
obrigando a execução do Cristo juiz em meio-corpo, espremido acima da janela. Solução semelhante foi adotada
por Giotto em seu afresco em Pádua, embora aqui a janela esteja acima do Cristo, representado de corpo inteiro.
À primeira vista, parece estranha a presença de uma grande janela trífore no afresco da Capela Scrovegni.
Ocupando praticamente o terço superior do muro, a janela obriga a compressão de todos os elementos nos
restantes dois terços da superfície; de ambos os lados, puderam ser inseridos somente os dois anjos que
metaforicamente enrolam o céu, permitindo um primeiro vislumbre da Jerusalém Celeste (conforme Ap 6, 14),
assim como algumas fileiras de santos. Pareceria, em ambos os casos, mais acertada a exclusão da janela,
especialmente quando se recorda que Michelangelo, no século XVI, ao idealizar o seu Juízo final na Capela
Sistina, optou pelo fechamento da abertura central da superfície que seria recoberta pelo afresco. O caso da
Capela Scrovegni, entretanto, é diverso: Giotto, para a realização do ciclo, solicitou o alongamento do edifício,
assim como o fechamento de portas e janelas laterais, de modo a aumentar a área destinada aos afrescos. Foi por
sua opção, ademais, que a janela trífore foi aberta, de modo a se tornar “a principal fonte luminosa para todos os
afrescos”. GIZZI, C. “Giotto e Dante”. In: _____ (org.). Giotto e Dante. Milão: Skira, 2001, p. 49. Também no
caso de Nardo di Cione, a janela seria a principal fonte de luz para toda a Capela.
385
Já mencionado na introdução desta tese por ser o painel que serve de base para a análise de Meiss em seu
Painting in Florence and Siena after the Black Death.

CXXII
painel como o afresco tenham sido concebidos simultaneamente, uma vez que, além de serem contemporâneos,

não há, atrás do retábulo, nenhuma cena relevante na pintura de Nardo di Cione – a ressurreição dos corpos,

conforme comentado, está deslocada para os cantos. Entretanto, a visualização desta fica bastante prejudicada

em função do painel, que não somente oculta parcialmente a cena, como também atrai mais a atenção do

espectador do que a própria ressurreição dos corpos.

E é preciso considerar que, nos painéis, há, na maior parte dos casos, a opção em se privilegiar a

separação entre eleitos e condenados, e não a ressurreição dos corpos. Em muitos desses painéis, a ressurreição

sequer comparece, ou é apenas insinuada. Nas pinturas discutidas por esta tese, há duas exceções a esse modelo

preferencial, e nas quais a ressurreição dos corpos possui uma importância equivalente à separação entre eleitos e

condenados: o painel de Fra Angelico de 1431 (slide 125) – embora aqui não se trate mais da ressurreição, mas

dos túmulos vazios ao centro da composição, indicando tratar-se de um momento imediatamente posterior, em

que todos já ressuscitaram –, e a predella de Giovanni di Paolo de ca. 1460-1465 (slide 141). E, mesmo nesses

dois exemplos, esses elementos jamais se sobressaem às áreas reservadas às representações do Paraíso ou do

Inferno. A única pintura em que à ressurreição é concedida mais ênfase do que à separação ocorre no painel de

Gherardo Starnina de ca. 1360 (slide 105), em que os túmulos ocupam boa parte do primeiro plano e do terço

inferior da pintura. Aqui, não há a indicação do Paraíso ou do Inferno.

Há algumas possibilidades para se representar a separação, particularmente com relação ao grupo de

eleitos: os dois grupos podem se dirigir para os cantos da pintura, em direção ao Paraíso e ao Inferno, ou, criando

um movimento único, os condenados podem se dirigir para o canto direito, enquanto os eleitos, voltados para o

interior da cena (também para a direita, portanto), dirigem o olhar para o Cristo juiz no alto. Ambos os grupos

também podem estar estáticos, assim como se pode criar uma “assimetria” na composição, representando

somente o grupo dos eleitos. Na Península Itálica, percebe-se que, dessas soluções, a mais comum será, sem

dúvida, a do movimento em uma única direção.

Nas pinturas discutidas aqui, de fato, o movimento oposto dos grupos ocorre somente na pequena

cena do crucifixo do Assistente de Bernardo Daddi (slide 87), em que os eleitos são levados à presença de São

Pedro, que surge em meio-corpo à extrema esquerda; não há, porém, qualquer menção ao Paraíso. O santo

simbolizaria, ele próprio, o locus paradisíaco de que é o tradicional guardião. Os condenados, por sua vez, são

recebidos, à extrema direita, por um demônio negro em meio-corpo, com chifres e barba, também indicando, por

si só, o Inferno.

Os grupos estáticos estão presentes no afresco de Sant’Angelo in Formis (slide 08) – embora alguns

CXXIII
dos condenados olhem para baixo, onde está representado o Inferno –, e no afresco de Nardo di Cione na Capela

Strozzi (slide 91) – em que a indicação de salvação ou condenação está indicada não somente pelo

posicionamento na cena, mas também pelos gestos das figuras em cada grupo. Aparentemente o afresco de

Giovanni dal Ponte em Pistóia (slides 118 a 122) apresentaria essa mesma estrutura, uma vez que o grupo dos

condenados (que não foi destruído) mostra as figuras sem grande indicação de movimento, embora à extrema

direita da cena surjam dois demônios que começam a “fisgar” os condenados com ganchos.

O movimento em uma única direção, por outro lado, está presente em exemplos diversos: o mais

antigo se encontra no mosaico do batistério de Florença (slides 21, 24 e 26), embora o grupo dos eleitos, em

verdade, se subdivida em dois grupos: enquanto algumas figuras estão viradas para a direita e contemplam o

Cristo juiz no alto, outras figuras – menores do que as outras, parecendo jovens –, acompanham o anjo que as

guia para a porta do Paraíso, à esquerda. Esse movimento em uma única direção também ocorre no painel de

Lippo di Benvieni (slide 53) – em que os eleitos olham para o alto seguindo a indicação de um anjo, enquanto os

condenados são empurrados por um segundo anjo para dentro da boca do Inferno; no painel do Mestre de San

Martino alla Palma (slide 56) – em que os condenados, empurrados por um anjo, são agarrados por um demônio

negro com garras; no painel do Seguidor de Segna (slide 63) – no qual o grupo dos condenados, pouco

discerníveis pelo estado de conservação dessa parte do painel, é açoitado e empurrado por um demônio negro –,

assim como no painel do Maestro dell’effigi domenicani (slide 60) – em que os eleitos olham para o alto

seguindo o gesto da Virgem do grupo da Deesis: esta olha para o grupo e indica com as duas mãos o Cristo juiz,

enquanto os condenados, empurrados por um anjo, são açoitados por um demônio negro até caírem em um

buraco no solo do qual saem chamas e um par de asas de morcego de um demônio, indicando, assim, a entrada

do Inferno. Esse movimento também está presente no afresco de Buffalmacco (slide 74); no painel do Mestre da

Misericordia dell’Accademia (slide 100) – no qual o grupo de eleitos, ajoelhados, contempla o Cristo juiz no

alto, ao mesmo tempo em que os condenados são afastados por um anjo; no painel de Gherardo Starnina (slide

105) – e esta pintura possui a particularidade de mostrar os condenados que, embora tentem escapar para o

centro da pintura, enquanto olham para o alto, para o Cristo juiz, são arrastados de volta para a extremidade

direita por demônios negros, um deles com asas de morcego. O movimento comparece, igualmente, no painel

Cristo penitente e Cristo triunfante, de Giovanni di Paolo (slide 117) – em que, no caso dos eleitos, parece haver

uma mistura entre a ressurreição dos corpos e a separação dos grupos, uma vez que esses eleitos estão dentro de

uma caverna, como se tivessem apenas ressuscitado; no painel de Fra Angelico de 1431 (slide 123) – embora

aqui alguns dos eleitos, assim como ocorre no batistério de Florença, já comecem a se voltar para a esquerda da

CXXIV
cena, onde está representado o Paraíso, e são recebidos e abraçados por anjos. A mesma solução ocorre nos

painéis do mesmo Angelico do Armadio degli Argenti (slide 127) – embora aqui não haja a representação do

Paraíso à esquerda, nem do Inferno à direita –, e nos outros dois também pintados por volta de 1450 (slides 129 e

132). O movimento em uma única direção ocorre, enfim, no afresco de Bicci di Lorenzo em Arezzo (slide 134) e

no afresco de Lorenzo di Pietro em Siena (slide 136) – embora nesse último a maior parte dos eleitos não esboce

qualquer movimento em direção ao centro, enquanto o grupo dos condenados é arrastado por demônios para a

boca do Inferno.

Há três obras, entretanto, que não se enquadram em qualquer um dos três modelos apresentados

acima. No mosaico de Torcello (slide 15), o cortejo dos eleitos contempla o Cristo juiz, no alto – embora o

Paraíso, como seio de Abraão, esteja figurado abaixo do grupo386 –, mas não há a representação do cortejo de

condenados, e sim o interior do Inferno. Solução semelhante ocorre também no painel de Guido da Siena (slide

36), em que os eleitos, voltados para o interior da pintura, são recebidos às portas do Paraíso por São Pedro,

enquanto à direita da pintura está representada a área infernal387. Decerto, é preciso considerar que os corpos

ressuscitados que já se encontram fora dos túmulos se agrupam acima destes; o grupo que está à esquerda,

abaixo do cortejo dos eleitos, indica por suas atitudes que também é formado por aqueles que irão para o Paraíso

– especialmente pelo fato de serem liderados por um franciscano. Esse ponto é reforçado pelo fato de que os dois

grupos de ressurrectos se encontram em lados opostos dos painéis, próximos da entrada do Paraíso e do Inferno.

Eles, entretanto, não formam efetivamente o tipo iconográfico da separação entre eleitos e condenados. Por fim,

no afresco de Giotto em Pádua (slide 42), o grupo de eleitos se volta para o Cristo juiz, mas também não há o

equivalente grupo de condenados, e sim a representação do Inferno. Esta aparente assimetria na composição,

entretanto, será desenvolvida e discutida no próximo capítulo.

A explicação não somente para a preferência pela separação entre eleitos e condenados frente à

ressurreição dos corpos, mas também pelo movimento dos grupos de ressurrectos em uma única direção, é

fornecida por Baschet, que trabalha em sua obra a oposição nacionalista Itália/ França388: segundo o autor, o

modelo italiano do Juízo final – que engloba as pinturas discutidas por esta pesquisa – representaria não somente

o momento do julgamento e da separação da humanidade, como ocorreria tradicionalmente nos exemplos

386
Sobre as formas de representação do Paraíso, ver o quarto capítulo desta tese, p. 251 a 253.
387
A pintura de Guido da Siena seria o primeiro exemplo italiano em que há São Pedro que aguarda os eleitos
junto à porta do Paraíso, embora, segundo Offner, “exemplos de Pedro recebendo os eleitos já são encontrados
na arte bizantina do século XI como parte do Paraíso”. Op. cit., p. 549.
388
Considera-se aqui inadequado o uso de adjetivos nacionalistas ou estilísticos – como “iconografia românica”
e “modelo gótico”, também empregados por Baschet no mesmo texto – impostos à iconografia de modo

CXXV
franceses – especialmente os tímpanos das portadas das igrejas; para Baschet, ele indicaria também “o estado

atemporal que inaugura o Julgamento”. O modelo italiano, portanto, uniria “a representação do instante da

separação e aquela do Além”389. Essa ênfase na representação (inicialmente implícita) do Além, ademais,

poderia fornecer suficientes subsídios para justificar por que justamente na Península Itálica – e particularmente

na Toscana – a representação figurativa do tema do Juízo final conheceu um novo desenvolvimento,

precisamente nos modos de elaboração das duas instâncias ultraterrenas que permanecerão após o último dia:

Paraíso e Inferno. Esta questão, talvez o ponto de discussão mais importante para esta pesquisa, será

desenvolvida no próximo capítulo.

Buscando, enfim, uma explicação para a diferença de concepções entre os modelos italiano e francês

– na França, ao contrário do que ocorre na Itália, a opção preferencial é pelo movimento oposto dos grupos –,

Baschet comenta:

O fato de que o modelo gótico [francês] tenha sido feito principalmente nas imagens
colocadas no exterior das igrejas pode ter tido um papel: a função própria do
tímpano podia com efeito incitar a preferência por uma imagem mais clara (mais
disjuntiva) da separação, destinada à sociedade que desenvolvia suas atividades e
desfilava diante dela.390

É preciso considerar agora, brevemente, um afresco que, executado dentro dos limites cronológicos e

geográficos desta pesquisa, encontrou uma solução de todo particular para a representação do tema do Juízo

final, especialmente com relação à ressurreição dos corpos: o afresco de Maso di Banco executado por volta de

1336 na Capela dei Confessori (Capela Bardi), na Igreja de Santa Croce, em Florença (slides 65 a 67). Ele se

distingue de todos os outros exemplos discutidos nesta pesquisa por seu posicionamento dentro da capela e por

sua singular iconografia. Com relação à sua localização, ele forma um conjunto com o túmulo de Bettino dei

Bardi (ou Andrea, segundo outros historiadores), colocado na parede esquerda da capela, e que, de acordo com

Roberto Bartalini, poderia ser reconhecido também “como a atividade de escultor e de arquiteto de Maso”391. O

túmulo está apoiado no chão e, acima dele, desponta uma estrutura arquitetônica que, adossada à parede, forma

uma espécie de dossel para o sepulcro; na superfície mural delimitada pelo túmulo e pelo dossel Maso di Banco

afrescou a cena do Juízo.

anacrônico. Mais correto para o que propõe a presente pesquisa, que discutirá as possíveis funções de imagens
com o tema do Juízo final, é a distinção técnica entre relevos, afrescos e painéis.
389
Op. cit., p. 230.
390
Idem, p. 231, nota 245. Para uma análise mais pormenorizada dessas diferenças compositivas entre os
modelos italiano e francês, conforme define Baschet, ver as páginas 229 a 231 de seu livro. Para uma discussão
mais aprofundada das funções das imagens do Juízo final na Toscana do século XIV, ver o quarto capítulo desta
tese.
391
“Et in carne mea videbo Deum meum: Maso di Banco, la cappella dei Confessori e la committenza dei
Bardi”. In: Prospettiva, 98-99, 2000, p. 60.

CXXVI
Quanto à iconografia, percebe-se que o Cristo está com os gestos próprios do juiz, alternando, como

visto, o posicionamento das palmas das mãos, mas não há eleitos ou condenados a quem esses gestos pudessem

se dirigir; há somente uma única figura, ajoelhada e com as mãos postas, recortada contra um fundo desértico.

Essa imagem poderia estar aludindo ao juízo individual, que ocorre no momento imediato à morte, e que

concerne o julgamento da alma do morto; mas essa figura pintada, porém, se liga visualmente ao túmulo – real –

que lhe está imediatamente abaixo, de modo que seu corpo dele parece estar saindo. A impressão que se tem ao

observar o conjunto é a de que a figura está ressuscitando e se levantando do túmulo, conforme é visto em outras

representações do Juízo final, em que figuras e túmulos são pintados.

A iconografia do juízo individual, ademais, parece ser bastante diversa do que ocorre nesse afresco.

O elemento que indica de modo incontestável o fato de se tratar do julgamento de um indivíduo, e não o final, é

a presença de um defunto, seja no leito de morte, seja em qualquer outra situação que indique o momento do

trespasse. O julgamento propriamente dito poderia ser indicado tanto pela presença do demônio, de um lado, e de

santos que intercedem pelo morto, do outro, todos perante o juiz, assim como pela tradicional disputa entre anjos

e demônios pela alma do morto. Não raro não há a presença seja do Cristo, seja de Deus Pai.

Enrica Neri Lusanna afirma que o afresco de Maso di Banco na Capela Bardi seria uma resposta ao

debate sobre a visão post-mortem de Deus, se esta seria concedida aos justos imediatamente após a morte, ou se

ocorreria somente após o Juízo final. Essa controvérsia, que remontaria aos textos patrísticos, seria resolvida

somente com o papa Bento XII que, em 1336 – contemporaneamente à execução do afresco em Santa Croce,

portanto –, promulgaria a constituição Benedictus Deus, reconhecendo oficialmente a visio beatifica logo após a

morte de cada cristão392. De acordo com Lusanna, o afresco de Maso di Banco seria uma espécie de testemunha

ocular desse debate, e uma forma de homenagem ao papa pacificador393. O fato de pintura e constituição papal

serem contemporâneas, ainda segundo a autora, explicaria a confusão iconográfica: essa seria uma

Altura cronológica de tal modo precoce que o afresco representaria um estágio


germinal e ainda imperfeito de tal iconografia, a ponto de mesclar elementos do mais
conhecido ‘Juízo final’.394

Entretanto, desde o início do século XIV a representação do juízo individual já comparece na arte, o que é

atestado pela decoração do sarcófago do bispo Antonio d’Orso, morto em 1321, ainda hoje na Igreja de Santa

Maria del Fiore, em Florença395. Ainda na primeira metade do Trecento ela estaria, senão consolidada, ao menos

largamente desenvolvida. A resolução de Bento XII sobre a visio beatifica, desse modo, não seria a condição

392
Cf. Idem, p. 70.
393
Cf. Ibidem.
394
Ibidem.

CXXVII
sine qua non para o desenvolvimento do tema ou para que “em uma igreja importante se pudesse abertamente

fazer alusão a tal controversa questão”396.

Outros pontos da iconografia reforçam a tese de que a cena, ainda que pouco usual, representa de

forma inequívoca o Juízo final. Bartalini recorda, nesse sentido, a presença dos anjos trombeteiros. Afirma o

autor que para

Cada devoto trecentesco, cuja cultura escritural era de qualquer modo maior do que
a dos intérpretes modernos [da cena], aqueles anjos apenas poderiam evocar
imediatamente um texto notabilíssimo, isto é a Primeira Carta de São Paulo aos
Coríntios.397

O autor se refere a 1Cor 15, 51-52, que associa o soar das trombetas à ressurreição dos corpos no último dia,

portanto, no momento do julgamento final. É preciso considerar, ainda, a paisagem de fundo em que se desenrola

a cena, que se apresenta como um vale desértico. Bartalini reconhece nessa imagem a representação do Vale de

Josafá descrito em Joel398, no qual seria realizado o julgamento “de todas as nações”. Seria improvável, desse

modo, que o fiel, no século XIV, confundisse o afresco de Maso di Banco com uma representação do juízo

individual. Essa é, portanto, uma representação sui generis da ressurreição da carne, como de resto já havia sido

notado por Richard Offner, e mesmo por outros autores no século XIX399.

6. A psicostasia

D
eve-se destacar agora um elemento da iconografia do Juízo final que

chama atenção, na produção pictórica estudada aqui, especialmente

por sua ausência: a psicostasia, ou pesagem das almas. Com o

desenvolvimento do tema do Juízo final na arte, esse outro elemento foi incorporado às suas

representações. Embora sua origem remonte a uma antiga tradição pagã, a psicostasia acabou

sendo bem aceita pela Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente cristãos, uma vez que as

Escrituras mencionam, ainda que em poucas passagens, o julgamento dos homens através de

uma pesagem400. Suporte a esse tipo de representação foi ademais dado por Santo Agostinho:

“As boas e más ações serão como que pesadas em balanças, e se o mal preponderar o culpado

395
Cf. Idem, p. 78. Há uma reprodução do relevo no artigo de Bartalini.
396
Idem, p. 71.
397
Idem, p. 72.
398
Jl 4, 12.

CXXVIII
será arrastado para o Inferno”401.

As origens da psicostasia remontam a um período muito anterior ao Cristianismo. Ela é procedente,

possivelmente, do Egito antigo; uma representação da pesagem da alma existiria no Livro dos mortos desde antes

de 1400 a.C.402. Nessas cenas, o julgamento era realizado pela deusa Maat, relacionada à verdade e à justiça403.

Essa representação do julgamento se difundiu em outras culturas da Antigüidade; entre os gregos, por exemplo,

em que tradicionalmente o deus Hermes – ou Zeus – empunhava a balança. Ressalta, porém, Mary Phillips Perry

que

Na concepção grega da cena a palavra destino deve ser compreendida somente em


um sentido temporal; é o destino terrestre, o resultado dos eventos que ocorrem
naquele momento, que está em questão, e não o teste da ação humana por um padrão
moral.404

Uma concepção que também seria absorvida pelos romanos. Portanto, culturas já bastante próximas ao
Cristianismo – e das quais a nova religião sem dúvida sofreu influências – também possuíam a concepção de um
julgamento por meio de uma pesagem. Deve-se considerar, ademais, que a representação alegórica da justiça
com uma balança em suas mãos também era bastante familiar a gregos e romanos. Como explica Perry,
Se a Justiça decidia uma questão em uma balança, então poderia certamente ser um
modo adequado de expressar o ato da justiça divina, ao designar à alma sua posição
no grande julgamento.405

Existe, desse modo, mais de uma via possível para a assimilação desse tipo de representação na
cultura cristã. Embora a maior proximidade com as culturas gregas e romanas pudesse ser um indicativo a partir
de onde o tema possa ter sido absorvido, deve-se levar em consideração outro ponto: a psicostasia também
poderia ter sido transmitida à cristandade pelos cristãos egípcios, que migraram para o norte da Europa visando à
conversão do povo; ela pode, assim sendo, ter sido adaptada e difundida pelos monges irlandeses durante o
século VII.
De qualquer modo, outro ponto deve ser levantado: em algumas imagens gregas da psicostasia, em
vez de Hermes é possível encontrar a figura de Eros, como ocorre em um relevo atualmente no Museu de Belas-

399
Cf. Op. cit., p. 74.
400
Como em Dn 5, 27 e Jó 31, 6.
401
Apud MÂLE, E. The Gothic image. Religious art in France of the thirteenth century (trad. D. Nussey). Icon,
1972, p. 376. Também Lactâncio, no século IV expressa idéia semelhante: “portanto aqueles que conheceram
Deus serão julgados, e suas obras, ou seja suas más ações serão comparadas e pesadas contra as boas de modo
que se aquelas que são boas e justas forem mais [numerosas] e pesadas eles podem ser levados a uma vida de
bem-aventurança, mas se o mal exceder, eles poderão ser condenados à punição. Apud PERRY, M.P. “On the
Psychostasis in Christian art”. In: Op. cit., p. 104.
402
Cf. Idem, p. 94.
403
Essas noções denominavam o próprio local a que o morto era conduzido para o julgamento – o Salão da
Justiça e da Verdade Cf. Ibidem. Nessas representações da psicostasia, o coração do homem seria pesado contra
a pena de Maat. Se o coração pesasse mais do que a pena, o morto seria condenado e devorado por Ammit, o
deus-crocodilo. Em contrapartida, no caso de a balança não se movimentar, o morto, inocentado, seria conduzido
à presença de Osíris. Cf. WILKINSON, R.H. Reading Egyptian art. Londres: Thames & Hudson, 1996, p. 37.
404
Op. cit., p. 96. Como exemplo, a autora menciona dois trechos da Ilíada. Explica Erwin Panofsky que
“Hermes – ou, ocasionalmente, Zeus – segura os pratos dourados onde são colocadas duas figuras representando
a “sina da morte” dos heróis prestes a se enfrentarem em um combate mortal, e aquele cujo kήρ ou fatum descer
está condenado”. PANOFSKY, E. Early Netherlandish painting. Its origins and character, volume 1. Nova
York e Londres: Icon, 1971, p. 270.
405
Op. cit., p. 101.

CXXIX
artes de Boston406. Esse tipo de imagem, em que Eros – um jovem alado – tem em mãos uma balança, pode ter
sido a origem iconográfica para a representação da psicostasia cristã com São Miguel.
Por que São Miguel? De acordo com o texto bíblico, um anjo conduziu a alma de Lázaro ao seio de
Abraão – interpretado, como visto, como o Paraíso407 –, embora não se especifique seu nome; e, ainda segundo
as Escrituras, São Miguel liderou o combate contra Lúcifer, o anjo caído, e seus seguidores, expulsando-os do
Paraíso. Portanto, é possível que, por meio de uma associação entre as duas passagens, o arcanjo Miguel fosse
tido como a figura mais adequada para lutar – uma vez mais – contra Lúcifer, para poder conduzir finalmente a
alma do cristão ao Paraíso no fim dos tempos. Essa associação parece remontar aos princípios da própria religião
cristã. O apócrifo Apocalipse de Paulo, por exemplo, redigido possivelmente no século II, afirma que, após a
morte, a alma do justo seria levada diante do trono de Deus, quando a sentença seria pronunciada. Em seguida, a
voz de Deus encarregaria o arcanjo Miguel de conduzir essa alma ao Paraíso408. Deve-se considerar, ainda, que a
tradição cristã – cristalizada na Legenda Aurea de Jacobus de Voragine – também concede a São Miguel a
prerrogativa de ter conduzido a Virgem diante de seu Filho após sua Assunção409.
Na liturgia cristã ele tradicionalmente era reconhecido como Susceptor Animarum410, e preces
poderiam ser a ele dirigidas pelos fiéis para que suas almas chegassem ao Paraíso de maneira segura411. A
escolha de São Miguel para a cena da psicostasia é, portanto, justificada: na Idade Média ele foi considerado o
santo psicopompo, aquele que conduziria as almas para o outro mundo, e por isso sua importância no Juízo final.
A associação entre o arcanjo e a pesagem das almas ficou tão evidente a ponto de a balança se tornar um de seus
atributos iconográficos, junto com a armadura e a lança com que abate o demônio. De acordo com Perry, que
segue por sua vez Émile Mâle, a preferência pelo anjo guerreiro poderia derivar das encenações teatrais, tornadas
populares ao fim da Idade Média:
A encenação da Redenção era normalmente introduzida pela luta entre os anjos e a
expulsão de Satã do Paraíso, em que a roupa dos combatentes era aquela dos

406
Aqui, o deus do Amor, ladeado por duas mulheres, segura uma balança, em cujos pratos podem ser vistas
duas pequenas figuras de jovens masculinos.
407
Lc 16, 19-26. Destaque-se uma vez mais que os modos de representação do Paraíso na pintura serão
discutidos no quarto capítulo desta tese.
408
ANGHEBEN, M. “Les jugements derniers byzantins des XI-XII siècles et l’iconographie du jugement
imédiat”. Cahiers archéologiques, 50, 2002, p. 113. O encarregado de levar a alma do condenado ao Inferno
nesse Apocalipse não é Miguel, mas o anjo Tartarachus. Cf. GARDINER, E. Visions of Heaven and Hell
before Dante. Nova York: Italica, 1989, p. 24. Essa, aliás, costuma ser uma tradição cristã: São Miguel pode
presidir o julgamento, comandando também a separação entre condenados e eleitos, mas não leva as almas para
o Inferno, tarefa usualmente executada por um demônio. O texto do Apocalipse de Paulo, assim como de
diversas outras visões, pode ser encontrado no livro de Gardiner.
409
O apócrifo Apocalipse da Virgem, escrito possivelmente no século IX, narra também a viagem de Maria no
Além, em companhia de São Miguel. Cf. ANGHEBEN, M. Op. cit., p. 118. Para o texto da Legenda Aurea, ver
JACOBUS DE VORAGINE. The golden Legend, 2 volumes (trad. William Granger Ryan). Princeton:
Princeton University, 1995.
410
Cf. PERRY, M.P. Op. cit., p. 102.
411
Na liturgia funerária, com efeito, logo que a alma deixava o corpo, rogava-se para que ela fosse protegida dos
ataques dos demônios; em muitos exemplos, as preces eram dirigidas especificamente ao arcanjo Miguel. Cf.
ANGHEBEN, M. “L’iconographie du portail de l’ancienne cathédrale de Mâcon: une vision synchronique du
Jugement individuel et du Jugement dernier”. Les cahiers de Saint-Michel de Cuxa, XXXII, 2001, p. 76. Por
exemplo, essa prece retirada de um missal do século XIII da Notre-Dame de Paris: “Domine Jesu Christe rex
gloriae, libera animas omnium fidelium defunctorum (…) sed signifer sanctus Michael representet eas in lucem
sanctam quam olim Abrahae promisisti et semini ejus” [“Senhor Jesus Cristo rei da glória, liberta as almas de
todos os fiéis defuntos (…) mas o condutor São Miguel as apresente à luz santa que outrora prometeste a Abraão
e à sua descendência”]. Apud PERRY, M.P. Op. cit., p. 102. Essa tradição se mantém por longo tempo, como
pode ser comprovado por uma prece encontrada em um livro de sufrágios de 1433: “Princeps gloriosissime
Michael dux exercituum susceptor animarum, debellator malorum spirituum ecclesiae dei, post Christum, dux
admirabilis grandis excellentiae et virtutis omnes reclamantes ad te ab omni libera adversitate: et in cultu dei
facias proficere tuo precioso officio et dignissima pace (…)” [“Príncipe gloriosíssimo Miguel condutor dos
exércitos e guardião das almas, debelador dos maus espíritos da igreja de Deus, após Cristo, grande condutor
admirável de excelência e virtude todos rogam a ti para que a todos liberte das adversidades: e no culto de Deus
torne profícuo teu precioso ofício e digníssima paz (…)”]. Apud Ibidem.

CXXX
soldados do período412.
Com relação à balança, há uma grande variedade com relação ao que poderia ser

colocado nos pratos para ser pesado; em muitas representações, em ambos podem se

encontrar pequenas figuras humanas. O que representariam? Poder-se-ia supor a pesagem de

um justo contra um pecador, especialmente pelo fato de que suas atitudes pareceriam

indicativos de sua boa ou má consciência – usualmente uma delas parece regozijar, enquanto

a outra se desespera. Ademais, essas figuras geralmente são colocadas, respectivamente, à

direita e à esquerda da balança, tomando como referência São Miguel. Não é demais recordar

que o lado direito é o dos eleitos, o esquerdo dos condenados, conforme já explicitava o

Cristo nas Escrituras413.

Essa noção, no entanto, não parece ser a mais adequada; segui-la significaria a

aceitação de que o julgamento se daria de forma relativa, o padrão sendo uma pessoa, não um

parâmetro divino. Se forem considerados os textos que tratam da pesagem, percebe-se que o

que é pesado não é a pessoa, mas as suas ações boas e más. As figuras encontradas nesses

pratos poderiam, então, ser interpretadas como personificações dos vícios e virtudes daquele

que é julgado414.

Eventualmente, outras figuras podem ser encontradas nos pratos da balança – um

cálice, indicativo da “eficácia da graça sacramental na determinação da inclinação da

balança”415, pergaminhos ou livros, indicando as Sagradas Escrituras, ou ainda um cordeiro,

evidente alusão ao Cordeiro de Deus. Nesses casos, esses símbolos se encontram usualmente

no prato esquerdo, enquanto no direito ainda se visualiza uma pequena figura humana –

nesses exemplos, ela poderia efetivamente ser interpretada como o próprio morto sendo

412
Op. cit., p. 103, nota 36. A longa túnica parece ter sido a escolha preponderante no Ocidente ao menos até o
século XIII, quando se começou a representá-lo efetivamente como um guerreiro, trajando uma bela armadura.
Perry estima a proeminência da túnica até o século XV, mas há vários exemplos anteriores de representações do
arcanjo com uma armadura, de modo que essa datação tão tardia não parece ser sustentada.
413
Mt 25, 31- 46.
414
No painel de Rogier Van der Weyden no Hôtel-Dieu de Beaune, o pintor torna explícita essa interpretação:
acima das pequenas figuras, lêem-se as inscrições virtutes e peccata. Cf. PANOFSKY, E. Op. cit., p. 271.

CXXXI
julgado, e não uma personificação de vícios ou virtudes. Por outro lado, ressalta Panofsky que

esses símbolos de Graça poderiam ser contrapostos igualmente a outras representações não-

antropomórficas, como répteis, pedras de moinho ou máscaras diabólicas. Nesse caso, sem

dúvida, contrapõe-se o Bem ao Mal416.

Uma questão que também deve ser ressaltada diz respeito à significação do lado para o qual pende a

balança, que varia bastante nas diversas representações do tema da psicostasia. De acordo com Panofsky, na

tradição grega o guerreiro derrotado seria aquele cujo kήρ ou fatum, posto em um dos pratos da balança, tendesse

para baixo. Ainda segundo ele, nessas cenas clássicas de psicostasia há um duplo simbolismo: ao mesmo tempo

em que há a tendência a se conceber o que está mais elevado como melhor417, há outra interpretação que

indicaria que o lado da balança que pendesse para baixo seria o vencedor, uma vez que seria mais “pesado” do

que o outro. Escreve ainda Panofsky que

Em uma psicostasia clássica, em que os pratos estão carregados de morte, esses dois
simbolismos coincidiam porque o prato descendente anunciava a vitória da morte, e,
portanto, destruição enquanto o prato ascendente anunciava sua derrota e, portanto,
preservação [da vida do guerreiro]418.

Na escatologia cristã, no entanto, esse tipo de representação se tornou um problema. Ao contrapor na

balança o Bem e o Mal, considerou-se que o Bem devia suplantar o Mal se tornando mais pesado do que ele –

um indicativo do número maior de boas ações realizadas por aquele que estaria em julgamento; não era mais

fundamental a noção de que o melhor deveria ser mais elevado. Não à toa, em muitas representações da pesagem

das almas é possível entrever a figura de um demônio que busca de todo modo fazer com que o prato da balança

de seu lado – do Mal – tenda para baixo, em uma vã tentativa de suplantar o Bem. De modo análogo, em

algumas imagens a Virgem parece colocar um rosário no lado do Bem para que o prato da salvação se torne mais

pesado419.

Há, no entanto, diversos exemplos em que ocorre a situação inversa: o lado direito da balança está

mais elevado. É o que ocorre, por exemplo, no painel de Van der Weyden, mas poderiam ser citados modelos

415
PERRY, M.P. Op. cit., p. 209.
416
Cf. PANOFSKY, E. Op. cit., p. 217.
417
E sobre isso escreve Panofsky: “um sentimento natural concede uma significação positiva ao alto e uma
negativa ao baixo (todos usamos palavras como ‘alto’ e ‘baixo’, ‘elevado’ e ‘base’, ‘exaltado’ e ‘deprimido’,
‘superior’ e ‘inferior’ precisamente nesse sentido)”. Idem, p. 270.
418
Idem, p. 270 e 271.
419
Cf. DAVIDSON, C. “The fate of the damned in English art and drama”. In: DAVIDSON, C. e SEILER, T.H.
(org.). The iconography of Hell. Kalamazoo: Western Michigan University, 1992, p. 50. Destaque-se também
que essa atitude da Virgem Maria ressalta ainda mais seu papel como intercessora da humanidade perante o
Cristo juiz, assim como o rosário como auxiliar na salvação da alma sendo pesada demonstra o papel que as
orações poderiam exercer na salvação do indivíduo.

CXXXII
anteriores. Segundo Panofsky, o pintor poderia estar resgatando a noção de que o mais elevado é melhor420.

Embora não seja a interpretação iconográfica mais comum, essa forma de representação poderia indicar de

maneira mais precisa o destino do homem após a morte: “a virtude se eleva para a luz e o pecado afunda na

escuridão”421. Basta recordar a noção cristã de que o justo, após o julgamento final, deveria se dirigir para o

Paraíso ou reino dos céus que, por sua própria definição, deveria se encontrar acima dessa instância terreal422.

Como escreve Panofsky, a questão estaria relacionada especialmente a problemas compositivos, de

modo a se buscar uma melhor distribuição dos elementos na cena. Desse modo, em muitos casos o Bem poderia

estar do lado esquerdo da balança. Há exemplos, porém, em que a balança não parece se mover, ou

representações em que não é possível discernir nenhum tipo de figura nos pratos da balança; ambos os exemplos

se encontram no mosaico em Torcello (slide 17). Deve-se considerar nesse ponto que essa não é a questão

principal: o mais importante nas representações do Juízo final é a indicação do julgamento, que a balança, tão

emblemática nesse sentido, por si só já demonstra. A psicostasia, nesse ponto, tem uma importância imensa na

educação e na doutrinação dos fiéis423.

A psicostasia, no entanto, parece se tornar menos comum a partir do século XIV, desaparecendo

quase que por completo ao longo do século. Na Toscana do Trecento, há o exemplo do afresco do Camposanto

de Pisa (slide 74), em que a figura de São Miguel surge selecionando aqueles que deveriam ser conduzidos para

o lado direito da cena, para o grupo dos eleitos, indicando com o dedo a posição de um ressuscitado a ele

apresentado por um segundo anjo. Outro anjo empurra alguns condenados para longe. Também Panofsky, ao

comentar a inclusão da cena no painel de Van der Weyden, realizado já no século XV (slide 159), destaca que a

pesagem das almas era “um motivo ausente de quase todos os Juízos finais contemporâneas na arte do norte e,

onde ocorria, [estava] reduzido à insignificância”424. Embora a idéia do julgamento esteja claramente indicada

aqui, à balança, no entanto, não há qualquer menção. Destaque-se, porém, que ainda que não segure a balança, o

santo psicopompo continua tendo a mesma posição de destaque dos modelos anteriores; de fato, São Miguel

420
Cf. Op. cit., p. 271.
421
Ibidem.
422
Essas variações não são encontradas apenas na arte cristã; também na arte grega o movimento da balança
poderia ter a interpretação oposta à que esclareceu Panofsky. É o que ocorre no já citado relevo de Boston: a
interpretação tradicionalmente dada à cena é a de que o deus Eros estaria pesando para duas esposas a
continuação através delas da família na linhagem masculina – um tema de grande importância para a cultura
grega. Cf. PERRY, M.P. “On the Psychostasis in Christian art”. In: Op. cit., p. 96. No relevo, uma das mulheres
visivelmente está contente, enquanto a outra demonstra se lamentar; decerto, aquela que regozija o faz porque
seria capaz de garantir a continuidade de sua linhagem familiar segundo o julgamento do deus. Ora, nesse caso o
lado mais pesado da balança tende exatamente para essa figura feminina.
423
Sobre essa questão, ver o quarto capítulo desta tese.

CXXXIII
mantém-se logo abaixo do Cristo juiz, e marca de modo inequívoco a divisão definitiva entre eleitos e

condenados, cujos grupos se posicionam em cada um de seus lados, direito e esquerdo respectivamente.

Por que um tipo iconográfico que gozou de destaque nas representações do Juízo final parece

desaparecer dessas cenas na segunda metade do século XIV, ou pelo menos se torna bastante raro? É preciso

considerar que é a partir da primeira metade do Trecento que se começa a conceder uma progressiva

proeminência à região infernal nas representações do Juízo final. Ganhando tamanho destaque, é certo que os

elementos que compõem esse Inferno também adquiram uma proeminência maior425.

Pode-se, então, ponderar que, se as punições passaram a ser representadas de forma mais evidente e

expressiva, talvez não haja mais necessidade de indicar visualmente o julgamento através da balança. Este – ou

melhor, o seu resultado final – estaria explícito nas duas instâncias representadas com destaque: Paraíso e

Inferno. A função primordial da psicostasia, portanto, perderia o sentido.

Um problema, no entanto, permanece: na Península Itálica de modo geral, a

psicostasia não foi um tema comum nessas representações. Além do mosaico de Torcello

(slide 17), a pesagem das almas comparece somente no painel do Anônimo bolonhês (slide

146), e em nenhum dos grandes afrescos que decoravam as igrejas e que chegaram até os dias

atuais. Na maior parte dos exemplos estudados, a figura mesma de São Miguel sequer é

representada. Nas pinturas em que comparece, o que não será de qualquer modo usual, ele

surge como o anjo guerreiro que comanda o julgamento, indicando os locais de destino dos

ressuscitados, e eventualmente combatendo os demônios e os condenados que tentam

inutilmente ascender ao Paraíso. É o que ocorre no afresco de Buffalmacco em Pisa (slide 74),

no painel do Mestre da Misericordia dell’Accademia (slide 100), no painel Cristo penitente e

Cristo triunfante de Giovanni di Paolo (slide 117), no afresco de Lorenzo di Pietro em Siena

(slide 140), e no afresco de Fra Bartolomeo em Florença (slide 153).

É preciso ter em conta que os afrescos de Jacopo di Mino del Pellicciaio em Casole

d’Elsa (slides 50 a 52), da Igreja de Santa Chiara em Assis (slide 39), de Giotto no Palazzo

424
Op. cit., p. 269. Na pintura nórdica coeva, poder-se-ia encontrar São Miguel exercendo seu outro papel – o de
guerreiro, que expulsa os condenados para o Inferno, como ocorre no pequeno painel de Jan Van Eyck
atualmente no Metropolitan Museum de Nova York.
425
Sobre essa questão, ver os terceiro e quarto capítulos.

CXXXIV
del Bargello (slide 69), de Andrea Orcagna em Florença (slides 83 a 85), de Taddeo di

Bartolo em San Gimignano (slide 106) e de Giovanni dal Ponte em Pistóia (slide 118), estão

bastante danificados na região inferior – o afresco de Taddeo di Bartolo, recorde-se, foi

destruído na parte inferior para a realização de um São Sebastião por Benozzo Gozzoli –, de

modo que não é possível saber se haveria ou não a representação de São Miguel.

Considerando-se, porém, a tradição iconográfica na Península Itálica, essa hipótese parece

pouco provável. Por que a psicostasia teria sido praticamente ignorada não somente na

Toscana, mas na Península Itálica de um modo geral? Esta é uma questão ainda não resolvida,

e que deverá ser aprofundada em outro momento.

7. A relação entre o tema do Juízo final e o tema da Paixão de Cristo

N
as imagens que apresentam o Juízo final, recapitula-se “a história

inteira do universo criado”, como escreve acertadamente Pamela

Sheingorn426. O que é recapitulado, deve-se frisar, é a história cristã,

sem dúvida, usualmente dividida em ante legem (antes das leis de Moisés), sub legem (sob as

leis de Moisés) e sub gratia (sob a graça ou lei de Cristo). É por isso que o Juízo final fecha o

ciclo narrativo das passagens cristãs de Antigo e Novo Testamentos. Ele marca o fim da

história427.

Desde o século XI, com mais intensidade, porém, ao longo dos séculos XIII e XIV,

as práticas cristãs progressivamente enfatizaram a Paixão de Cristo e, especialmente, Seu

sofrimento na cruz, que pode ser relacionada, no Duecento e no Trecento, particularmente à

ordem franciscana428. Essa ênfase mostraria, para Le Goff, a “grande complexidade do

426
“‘For God is such a Doomsman’: origins and development of the theme of Last Judgment”. In:
BEVINGTON, D. et alii. Op. cit., p. 16.
427
Sobre essas questões, ver o tópico “Significações do Juízo final para as crenças cristãs”, no primeiro capítulo
desta tese, p. 62 a 76.
428
Ver a seguir.

CXXXV
monoteísmo cristão da Idade Média”429, uma vez que, conforme comentado no primeiro

capítulo, desde os primórdios do Cristianismo “a encarnação de Cristo é o fato

fundamental”430, mas ele só ganha dimensão plena com Seu sacrifício na cruz. Nesse período,

Ele se tornaria cada vez mais o Cristo da Paixão e do sofrimento (o que, segundo Le Goff,

explicaria o desenvolvimento da iconografia da Pietà e do Ecce Homo). E complementa: “o

Cristo do fim da Idade Média é então um Deus ambivalente: Ele é o Deus em majestade do

juízo final, e também o Deus crucificado da Paixão”431.

Essa ênfase foi adaptada à iconografia do Juízo final, em particular aos modos de

figuração do Cristo que, de Senhor Onipotente, o Cristo em Majestade que vem para julgar os

vivos e os mortos, passou a ser representado como sofredor, parcialmente desnudo, mostrando

os estigmas e cercado pelas Arma Christi, trazidas em muitos exemplos à cena por anjos.

Assim sendo, a Paixão de Cristo, ainda que não seja representada, é claramente evocada não

apenas pelas Arma Christi – que trazem à mente do fiel o martírio sofrido para a remissão dos

pecados dos homens –, mas especialmente pelo Cristo mesmo que, em glória, apresenta ao

fiel os estigmas, marcas inequívocas de Seu sacrifício pela humanidade. Aqui, sem dúvida,

pode-se trazer à mente o papel tradicionalmente desempenhado pelas imagens de devoção. De

fato, “a visão de Deus que sofreu como um homem pode comunicar mais de quanto seja capaz

de fazê-lo a teologia”432. Não há em praticamente nenhuma das imagens aqui estudadas,

decerto, a figuração explícita do Deus que sofreu como homem, mas isso é constantemente

recordado pela posição mesma do Cristo no Juízo final433.

A Paixão de Cristo, portanto, tem relação – teológica e iconográfica – direta com a

429
Le Dieu du Moyen Âge. Entretiens avec Jean-Luc Pouthier. Paris: Bayard, 2003, p. 61.
430
Idem, p. 62.
431
Ibidem.
432
BELTING, H. L’arte e il suo pubblico. Funzione e forme delle antichi immagini della Passione. Bolonha:
Nuova Alpha, 1986, p. 06.
433
Offner comenta que, em função das mudanças nos modos de figuração do Cristo, Ele começaria a “ser
apresentado não como o Juiz mas como o Redentor da humanidade”. Op. cit., p. 543. Ora, a ênfase na Paixão
não exclui nem diminui, em qualquer momento, o Seu papel de juiz. Pelo contrário, ela parece ressaltar essa
função, conforme já discutido tanto no primeiro capítulo desta tese, como neste.

CXXXVI
representação do Juízo final. Primeiramente, porque, como visto no primeiro capítulo desta

tese, o fato de Cristo ter morrido por toda a humanidade explica a Sua presença como juiz

dessa mesma humanidade no fim dos tempos. Isso se torna ainda mais claro quando se

recorda que “a penitência comporta em primeiro lugar a meditação sobre a Paixão”434. Pois,

sem dúvida, o arrependimento cristão – que levaria, por sua vez, à prática da penitência – tem

por base o fato de que Cristo morreu para remir as culpas do homem que, por fraqueza,

incorre novamente no pecado. Esses pecados, como visto, são representados simbolicamente

pelo pecado original cometido por Adão.

A pintura que provavelmente melhor indica essa relação histórica que vai desde a

Criação do homem até o Juízo final é o já mencionado painel Alegoria da Redenção, de

Ambrogio Lorenzetti (slides 81 e 82), infelizmente em péssimo estado de conservação, o que

impede uma leitura adequada mesmo por meio do exame direto da pintura. O painel

provavelmente seria o estudo para um afresco não executado – de acordo com Chiara Frugoni,

a idéia de um esboço seria reforçada pelo fato de que a pintura apresenta cartigli deixados em

branco, o que faz supor que, na imagem finalizada, inscrições seriam incluídas435. Conforme

brevemente comentado no primeiro capítulo, à esquerda estão as cenas da Criação, do Pecado

original e da Expulsão dos progenitores. Junto a Adão e Eva expulsos voa a figura negra da

Morte, que segura nas mãos sua foice. Ao centro, acima de uma pilha de cadáveres – cuja

solução está bastante próxima à de Buffalmacco no afresco do Trionfo della Morte em Pisa –

está o Cristo crucificado. E, acima de todos, está novamente a Morte, grande, negra e

ameaçadora. Como escreve Frugoni, esta é uma “extraordinária concepção, visto que a Morte

não triunfa somente sobre o monte de cadáveres que funciona como pedestal da cruz, mas

434
Laude Dugentesche. Introdução, seleção, notas e glossário de Giorgio Varanini. Pádua: Antenone, 1972, p.
XLI.
435
Cf. “Altri luoghi, cercando il paradiso (il ciclo di Buffalmacco nel Camposanto di Pisa e la committenza
domenicana)”. In: Op. cit., p. 1630, nota 137. Frugoni comenta também que, por outro lado, a pintura de
Lorenzetti poderia ser o painel frontal de um cassone – grande baú ornamentado, bastante comum na Península
Itálica nesse período, e considerado um dos principais móveis das residências –, embora essa possibilidade
pareça menos convincente. Cf. Ibidem.

CXXXVII
sobre o Redentor”436. Redentor que, entretanto, venceu esta mesma Morte ao ressuscitar no

terceiro dia. E, por tê-la vencido, retornará no último dia para julgar todos os homens, e

acolher a parcela da humanidade arrependida de seus pecados, conforme é mostrado na última

cena do painel – o próprio julgamento final, ainda que de modo simplificado.

Outras obras também associam a Crucificação ao Juízo final, ainda que não

evidenciem essa noção histórica cristã. É o que ocorre, por exemplo, no painel do Anônimo

de Lucca (slides 31 e 32): a pintura, com efeito, é um pequeno tríptico executado com toda

probabilidade para devoção privada; no painel central, está representada a Virgem com o

Menino Jesus em seu colo; o Juízo final ocupa a parte superior do painel direito, enquanto na

parte superior do painel esquerdo foi pintada a cena da crucificação de Cristo. Cristo juiz e

Cristo crucifixo, portanto, estão visualmente opostos, criando uma leitura que se relaciona

ainda ao painel central: o Menino Jesus, de fato, abraçado à Sua mãe, parece olhar para um

dos dois anjos que, nos cantos superiores da cena, trazem nas mãos um chicote – evidente

alusão à Flagelação na coluna de Sua futura Paixão. Assim, o Cristo feito homem pelo ventre

de Maria, crucificado, retornará um dia para julgar a humanidade.

Outra pintura possui uma estrutura bastante próxima à do Anônimo de Lucca.

Porém, no tríptico de Lippo di Benvieni (slide 53) – provavelmente também voltado a uma

devoção privada –, concede-se destaque proeminente não à Virgem com o Menino, mas à

cena do Juízo final, que ocupa o painel central. Porém, assim como ocorre no tríptico de

Lucca, também essa cena é associada à Crucificação, pintada no painel direito, e à Virgem

com o Menino, representados no painel esquerdo.

Em alguns polípticos, o mesmo ocorre. É o caso da pintura do Mestre de San

Martino alla Palma (slide 55). Em se aceitando a reconstrução proposta por Offner para o

políptico, a leitura interpretativa da pintura iniciaria com a cena da Virgem com o Menino, no

canto superior esquerdo, e se encerraria com a cena do Juízo final, no canto inferior direito.

436
Idem, p. 1631.
CXXXVIII
Entre os dois painéis, seis cenas da Paixão de Cristo, que começam com o beijo de Judas, e se

encerram com a deposição e o lamento sobre o Cristo morto.

Deve-se conceder particular atenção, porém, ao painel de Giovanni di Paolo de

início do século XV (slides 113 a 115), por ser ainda mais explícito do que os outros nessa

relação: a cena do Juízo final, com efeito, ocupa a metade direita da pintura, em cujo lado

esquerdo há a representação do Cristo flagelado que carrega a cruz. Não por acaso, o painel é

conhecido como Cristo penitente e Cristo triunfante. Ambas as imagens do Cristo possuem

um imenso destaque, ocupando boa parte da área do painel, de modo que os elementos que

identificam a cena à direita como um Juízo final são bastante simplificados e reduzidos em

tamanho – na parte inferior, há um grupo de quatro figuras que, por seu posicionamento na

cena e por suas atitudes, são identificadas como os eleitos, e três figuras que, golpeadas por

um demônio negro com asas de morcego, entram em uma espécie de caverna de onde saem

chamas; são os condenados que se dirigem para o Inferno. Imediatamente abaixo do Cristo,

um anjo – com toda probabilidade, conforme discutido no tópico anterior, São Miguel –

vestindo uma armadura parece acompanhar a divisão dos grupos, e dirige seu olhar para os

eleitos. A relação entre os dois lados do painel é evidente, e se insere dentro dessa discussão

mais ampla de valorização do tema da Paixão de Cristo, tornando explícita também a

justificativa para o Cristo ser o juiz da humanidade no fim dos tempos, conforme foi discutido

no primeiro capítulo.

Há ainda outra pintura em que essa mesma associação também é expressa formalmente: o painel

Juízo final, Vir dolorum entre os símbolos da Paixão e lamento sobre o Cristo morto, realizado pelo Mestre da

Misericordia dell’Accademia entre 1360 e 1365 (slides 98 a 100). A metade superior do painel é dedicada à cena

do Juízo final, também representada de modo simplificado: ao lado do Cristo juiz, os apóstolos e, à frente deles,

a Virgem e São João Batista compõem a cena da Deesis; no registro imediatamente inferior, anjos, guiados pela

figura central de São Miguel, procedem à separação entre condenados e eleitos; abaixo do Cristo, dois anjos

menores soam as trombetas, enquanto outros dois trazem algumas das Arma Christi (slide 100).

A grande particularidade dessa pintura está na metade inferior do painel, de modo análogo ao que

CXXXIX
ocorre no painel de Giovanni di Paolo: no centro há uma representação do Vir dolorum, ou Ecce homo: o Cristo

morto mostrado em meio-corpo dentro do túmulo. Ao seu redor, os diversos símbolos que marcam Sua Paixão,

incluindo o lamento no Monte das Oliveiras, o beijo de Judas, Pilatos e o galo, dentre vários outros. Na parte

inferior do painel, logo abaixo do Ecce homo, há o lamento sobre o Cristo morto, em que Maria, São João

Evangelista e Santa Maria Madalena, assim como duas outras figuras femininas, sustentam o corpo inerte de

Cristo (slide 99). Em todo o painel, forma-se um eixo mediano vertical – que parte do Cristo juiz, segue pela

figura de São Miguel e pelo Ecce homo, finalizando na figura de São João Evangelista junto ao Cristo morto – e

que conduz a linha interpretativa de toda a pintura.

A Paixão de Cristo também pode ser evocada, nas representações do tema do Juízo

final, por meio da cruz que, em não poucos exemplos, está colocada imediatamente abaixo do

Cristo juiz. Seja fixada atrás de um altar, seja trazida por um ou mais anjos, ela está presente

no mosaico de Torcello (slides 13 e 15), no painel de Guido da Siena (slides 33 e 35), no

fragmento de afresco da Igreja de Santa Chiara, em Assis (slides 38 e 39), no afresco de

Giotto em Pádua (slides 40 e 42), no tríptico de Lippo di Benvieni (slide 53), no painel do

Mestre de San Martino alla Palma (slide 56), no painel do seguidor de Segna (slide 63), na

Alegoria da Redenção, de Ambrogio Lorenzetti (slides 81 e 82), no crucifixo realizado pelo

Assistente de Bernardo Daddi (slide 87), nos painéis de Fra Angelico em Berlim (slide 129) e

em Roma (slide 132), e no afresco de Lorenzo di Pietro em Siena (slides 136 e 137)437.

A questão principal, porém, que a partir do século XIII indicará de maneira mais

evidente essa relação entre Paixão e Juízo final, é a ênfase maior que se dá aos estigmas nas

pinturas com o tema do Juízo. Pode-se argumentar que o Cristo foi figurado apresentando

Seus estigmas mesmo antes desse período438, o que realmente ocorre. A principal diferença

entre essas cenas e algumas das que explicitariam mais claramente a Paixão de Cristo está no

fato de que nestas últimas os estigmas não somente são mostrados, como deles escorre

437
A cruz também está colocada abaixo do Cristo no afresco de Fra Bartolomeo, trazida por um anjo que
também sustenta a lança. Essa pintura, porém, ultrapassa o limite cronológico desta tese, não sendo tratada, por
conseguinte, aqui.
438
Esse ponto já foi comentado anteriormente neste capítulo. Para um resumo da discussão, ver o anexo III desta
tese, que apresenta a tipologia do Cristo juiz nas cenas do Juízo final tratadas aqui.

CXL
sangue. É o que ocorre no painel do Anônimo de Lucca, (slide 32), no painel de Guido da

Siena (slide 34), no painel do Maestro dell’effigi domenicani (slide 61) e no painel Cristo

penitente e Cristo triunfante, de Giovanni di Paolo (slide 116).

O que deve ser destacado com relação a quase todas essas pinturas é que elas podem ser relacionadas

à ordem franciscana, excetuando-se a de Giovanni di Paolo e a do Maestro dell’effigi domenicani que,

surpreendentemente, se relaciona explicitamente à ordem dominicana. Em todas as outras pinturas se podem ver

representadas pequenas figuras – exceto em um caso, não adequadamente identificadas – que usam os trajes

franciscanos: na pintura do Anônimo de Lucca o próprio São Francisco é representado no painel oposto ao que

está a cena do Juízo final, logo abaixo do Cristo crucificado (slide 31); no painel de Guido da Siena, tanto no

grupo dos ressurrectos eleitos, como no grupo dos que já se dirigem ao Paraíso, encontram-se franciscanos – um

deles, liderando aqueles que ascendem as escadas em direção às portas do Paraíso, é recebido pelo próprio São

Pedro, que lhe dá a mão – provavelmente se trata, uma vez mais, de São Francisco (slide 37); e na pintura do

Mestre da Misericordia dell’Accademia há, no grupo dos eleitos, dois santos franciscanos ajoelhados, ao lado de

outros santos e beatos (destaca-se São Lourenço em primeiro plano, segurando a grelha); um dos franciscanos

está na primeira fileira, junto a São Lourenço e outro santo, visualmente mais próximo, porém, do anjo e de

Cristo (slide 100).

Percebe-se que todos os exemplos mencionados acima, em que os estigmas sangram, são painéis, e

não afrescos ou mosaicos. Essa especificidade provavelmente se deve às dificuldades de se poder visualizar o

sangue escorrendo em uma pintura de grandes dimensões. De fato, não se pode esquecer que, nas cenas que

representam o Juízo final, o Cristo juiz está posicionado na parte superior da obra, em geral acima de todos os

outros elementos. Em um afresco, a altura em que a figura do Cristo está, em relação ao fiel que o observa,

impediria a adequada visualização de um elemento tão diminuto como o sangue que flui dos estigmas, apesar das

dimensões do Cristo, em praticamente todos os exemplos estudados, sensivelmente maiores do que as das outras

figuras. Nos painéis, por outro lado, a proximidade entre o olhar do espectador e o suporte, propiciada pelas

dimensões da obra, facilitaria a identificação desses elementos. Desse modo, pode-se especular sobre as relações

entre o sangramento dos estigmas e as funções específicas desses elementos dentro de uma representação do

Juízo final. Relações análogas, em verdade, poderiam ser estabelecidas com os outros painéis aqui discutidos que

também estabelecem uma conexão entre a Paixão de Cristo e o Juízo final. Considerando-se que ao menos

algumas dessas pinturas foram realizadas, com toda probabilidade, visando a uma devoção privada, pode-se

inferir que buscassem incitar nos fiéis a meditação não somente sobre o sacrifício de Cristo pelos pecados dos

CXLI
homens, mas também sobre as conseqüências desses pecados no momento do julgamento final439.

A ênfase nos estigmas sangrando encontrada nos painéis pode se dever à crescente importância

concedida ao sangue de Cristo desde o século XIII nas celebrações eucarísticas, ainda que estas buscassem

enfatizar especialmente a elevação da hóstia consagrada440. Como explica Caroline Walker Bynum, “tão

importante era o sangue que o povo e seus padres denominavam sanguis um número impressionante de formas

diversas de matérias sagradas – pão, terra, madeira, e tecido”441. A relação entre esse “culto ao sangue” e as

representações pictóricas do tema do Juízo final, entretanto, deverá ser realizada em um momento posterior, por

fugir ao escopo desta pesquisa.

Há outra questão, porém, que também não foi discutida: porque muitos desses painéis com o tema do

Juízo final, em que se verifica o sangramento dos estigmas, podem ser relacionados de algum modo aos

franciscanos – conforme visto, somente uma das pinturas discutidas brevemente nesse tópico se ligaria à ordem

dominicana. Decerto, é preciso ter em conta o debate entre dominicanos e franciscanos a respeito do sangue de

Cristo, que se desenvolveu de forma paralela ao culto ao sangue apenas mencionado, e que seria resolvido

somente no século XV, mas que estava em seu auge no Trecento. Se a ênfase nos estigmas que sangram nos

painéis franciscanos pode indicar a importância concedida à questão do sangue por parte da ordem, por outro

lado permanece a dúvida dos motivos por que o mesmo ocorre em um painel dominicano. Essa discussão,

bastante interessante, também deverá ser desenvolvida em outra ocasião.

Ao concluir este capítulo, é possível perceber que há, na Península

Itálica, uma tradição iconográfica do tema do Juízo final que, desde o

grande afresco na Basílica de Sant’Angelo in Formis – como visto, a

mais antiga pintura com o tema a chegar aos dias atuais –, se

manteve praticamente uniforme, tanto nas grandes pinturas murais –

afrescos e mosaicos – como em painéis e mesmo iluminuras, até a

década de 1330. É preciso considerar, decerto, que essa tradição

439
Essas questões, entretanto, serão desenvolvidas no quarto capítulo desta tese.
440
Cf. BYNUM, C.W. Wonderful blood. Theology and practice in late Medieval Northern Germany and
beyond. Filadélfia: University of Pennsylvania, 2007, p. 04. A autora cita como exemplo Santa Catarina de Siena
(1347-1380) que, após comungar, costumava perceber a presença de sangue em sua boca. A santa, não por
acaso, era uma das principais defensoras dessa “piedade do sangue”.
441
Idem, p. 05.

CXLII
jamais foi de todo abandonada, mesmo após essa data – exemplos que

seguem o modelo tradicional podem ser localizados ao longo da

segunda metade do Trecento, e mesmo nos séculos XV e XVI. No

entanto, no próximo capítulo serão discutidos exatamente os motivos

que levaram às mudanças nos modos de representação do tema do

Juízo final, não somente com relação à alteração no gesto do Cristo

juiz, mas especialmente por conta do desenvolvimento da cena em

mais de uma composição, desmembrada em três painéis ou paredes.

Partindo das idéias desenvolvidas por Millard Meiss, já questionadas

na parte introdutória desta tese, serão propostas novas hipóteses que

justifiquem o original desenvolvimento iconográfico do tema do Juízo

final na Toscana do Trecento.

CXLIII
CAPÍTULO III

DANTE, GIOTTO, E AS REPRESENTAÇÕES DO JUÍZO FINAL NA TOSCANA

Credette Cimabue ne la pintura


tener lo campo, e ora ha Giotto il grido
sì che la fama di colui è scura.
Purgatorio, XI, 94-96

1. Introdução

O
presente capítulo busca esclarecer as mudanças ocorridas na

iconografia do tema do Juízo final na Toscana da década de 1330.

Partindo da análise de dois ciclos de afrescos – executados no Palazzo

del Bargello e no Camposanto de Pisa, e praticamente contemporâneos um ao outro –, que

seriam as primeiras pinturas em que se percebem variações iconográficas e compositivas

significativas no tema, avançam-se hipóteses que expliquem de alguma forma essas

modificações. No entanto, concede-se particular ênfase ao que pode ser visto como o principal

modelo textual para explicar efetivamente essas mudanças: a Commedia dantesca.

Mostrando-se elementos iconográficos em comum entre o texto de Dante e as

representações posteriores ao poema, consideram-se também os elementos que porventura

tenham servido de inspiração para Dante redigir a Commedia: o mosaico do Batistério de San

Giovanni, em Florença, e especialmente o contato próximo entre o poeta florentino e Giotto,

no período em que o artista trabalhava na Capela Scrovegni, em Pádua. A última parte do

capítulo discute, ainda que de modo breve, a formação religiosa de Dante junto às ordens

mendicantes, especialmente a dominicana, que influenciou a posterior estruturação do poema,

considerando, enfim, sucintamente, a importância de franciscanos e dominicanos para a

cultura religiosa toscana de modo geral, e para a iconografia do Juízo final em particular.

2. O tema do tema do Juízo final nos ciclos de afrescos toscanos no século XIV:

CXLIV
revisão da tese de Millard Meiss

A
partir das análises dos documentos iconográficos e textuais que

tratam de algum modo da arte e da sociedade toscanas do século XIV,

foi possível perceber uma fragilidade na premissa da tese de Millard

Meiss, apresentada na introdução desta tese, ao menos no que tange a iconografia do Juízo

final na pintura toscana desse período. Ao se verificar as diversas representações

iconográficas do tema – especialmente nos grandes afrescos que decoram as igrejas –

constatou-se que houve, de fato, uma mudança nos modos de representação. Esta deve ser

situada, no entanto, antes do divisor de águas proposto por Meiss em seu texto de 1951442 – a

Peste Negra de 1348 – e mesmo antes de 1340, data do primeiro grande surto da epidemia na

região, e aceita pelo próprio autor como o provável marco divisor após uma revisão de sua

tese inicial443.

Nos grandes afrescos toscanos com o tema do Juízo final, que tradicionalmente ocupavam toda a

parede interna da fachada das igrejas, percebe-se a existência de uma tradição iconográfica que remonta ao

afresco na Basílica de Sant’Angelo in Formis, de ca. 1080 (slides 06 a 12), e que se mantém com poucas

variações até o início do século XIV, com o afresco de Giotto na Capela Scrovegni (slides 40 a 46). As primeiras

variações iconográficas podem ser verificadas em dois ciclos de afrescos, ambos realizados com toda

probabilidade em datas bastante próximas: os afrescos na Capela da Madalena ou del Podestà, no Palazzo del

Bargello (slides 68 a 70), em Florença, e os afrescos do ciclo do Trionfo della Morte no Camposanto de Pisa

(slides 71 a 79). O primeiro ciclo, atribuído por Vasari em suas Vite a Giotto444, atualmente é considerado obra

de seguidores do mestre toscano, mas esta pesquisa conjetura ser possível que o ciclo tenha sido realizado a

partir de um modelo projetado por ele – um autor respeitado como Luciano Bellosi confirmava, ainda em 1981, a

442
Deve-se recordar que a edição utilizada nesta tese é a de 1964: MEISS, M. Painting in Florence and Siena
after the Black Death. Princeton: Princeton University, 1964.
443
A revisão, conforme já mencionado na introdução a esta tese, foi feita no seguinte artigo: “Notable
disturbances in the classification of Tuscan Trecento painting”. In: Burlington Magazine, 113, 1971.
444
Na Vita de Giotto, escreve ele que “Il quale fra gl’altri ritrasse, come ancor oggi si vede, nella capella del
palagio del podestà di Firenze, Dante Alighieri (…)” [“O qual retratou entre outros, como ainda hoje se vê, na
capela da potestade de Florença, Dante Alighieri (…)”]. VASARI, G. Le vite dei più eccellenti pittori, scultori
ed architetti, 3ª edição. Roma: Newton & Compton, 1997, p. 150. De acordo com o escritor aretino, Giotto teria
realizado ainda outras pinturas no Bargello: “E nella sala grande del Podestà di Firenze dipinse il Comune
rubato da molti (…)” [“E na sala grande da Potestade pintou o Comune sendo roubado por muitos (…)”]. Idem,
p. 159.

CXLV
atribuição dessas pinturas ao artista florentino, embora erroneamente identificasse o afresco do Paraíso como

uma representação do Juízo final445. Considerando-se que no início do ano de 1337, ainda em janeiro, ocorreu a

morte de Giotto, pode-se estabelecer esta data como limite ante quem ao menos para a concepção do ciclo do

Bargello. Com relação ao limite post quem, é preciso ter em conta que, segundo o cronista florentino Giovanni

Villani446, o Palazzo del Bargello foi parcialmente destruído em 28 de fevereiro de 1332: um incêndio “ardeu o

teto do velho palácio e as duas partes do novo, da primeira abóbada em diante”447. É provável, desse modo, que

também as pinturas murais que eventualmente ornassem a capela fossem destruídas, ou ao menos largamente

danificadas. Tanto é que o mesmo Villani completa, em seguida, que fora determinado que o palácio “fosse todo

refeito ao redor até os tetos”448.

Se em 1332, portanto, era cogitada a realização de uma nova decoração pictórica para a Capela da

Madalena, pode-se considerar, como o assume esta pesquisa, bastante plausível a escolha de Giotto para a

realização do trabalho. O Palazzo del Bargello, é preciso esclarecer, funcionava na época como sede do governo

de Florença; seria plenamente justificável, assim, a opção pelo maior e mais importante artista em atividade no

período para a decoração da capela da sede do governo florentino – esses afrescos, desse modo, possuiriam

particular e dupla importância: artística e política. Luigi Passerini contestava, em 1865, a participação de Giotto

no ciclo, considerando que uma inscrição na capela indicava que a execução dos afrescos teria sido realizada nos

últimos seis meses de 1337, enquanto Giotto morrera no início do mesmo ano. De acordo com Passerini, a

inscrição indicaria que os afrescos teriam sido concebidos e executados durante o governo de Fidismino di

messer Rodolfo da Varano449 – sabe-se, pelos Registri de’ Potestà di Firenze, que Varano ocupou o cargo nos

últimos seis meses de 1337; caso contrário, a inscrição teria de ser necessariamente outra450. Isso, entretanto, é

somente especulação do autor. E, mesmo considerando válida sua teoria, ela não inviabilizaria a hipótese da

445
“(…) Giotto trabalhava com seus ajudantes na capela do Bargello em Florença, cuja parte mais
autenticamente giottesca é o Juízo final da parede de fundo, atualmente quase ilegível (com exceção de algumas
estupendas cabeças dos beatos) (…)”. Giotto (trad. Maria José Molina). Florença: Scala, 1982, p. 79. Na parede
de fundo, conforme escreve Bellosi, foi representado o Paraíso, e não o Juízo final. Este ponto será discutido em
seguida.
446
Recorde-se que Villani foi uma das muitas vítimas do surto de Peste Negra em 1348, conforme comentado no
primeiro capítulo desta tese.
447
“(…) arse il tetto del vecchio palazzo e le due parti del nuovo, dalla prima volta in su”. Apud PASSERINI,
L. Del ritratto di Dante Alighieri che si vuole dipinto da Giotto nella Cappella del Potestà di Firenze.
Florença: Cellini, 1865, p. 05.
448
“(…) si rifacesse tutto in volta insino ai tetti”. Apud Ibidem.
449
A inscrição que se lê parcialmente em uma das pilastras é a seguinte: “HOC. OPVS. FACTVM FVIT.
TEMPORE. POTESTARIE. MAGNIFICI. ET. POTENTIS. MILITIS. DOMINI. FIDESMINI. DE VARANO.
CIVIS. CAMERINENSIS. HONORABILIS. POTESTATIS (…)”. Apud Idem, p. 12.
450
“(…) é certo que então a inscrição não teria deixado de notar isso [que os afrescos já estariam sendo
executados desde antes do governo de Varano], dizendo algo como: HOC OPVS INCEPTVM TEMPORE
POTESTARIE etc. COMPLETVM ou ABSOLVTVM FVIT TEMPORE POTESTARIE etc.”. Idem, p. 15.

CXLVI
concepção do ciclo poder ser atribuída a Giotto. Se no início de 1332 o palácio foi consumido por um incêndio, e

ao longo do mesmo ano foi decidida a reconstrução do Bargello, é possível que até 1335 não se encomendasse a

decoração da Capela da Madalena, uma vez que os trabalhos no próprio palácio poderiam ainda não estar

finalizados – o que explicaria a demora na realização das pinturas. Giotto poderia ter concebido a estrutura

compositiva do ciclo ainda em 1335 ou já em 1336, e sua morte talvez interrompesse momentaneamente os

trabalhos na capela, que teriam sido, então, retomados no segundo semestre de 1337.

Os afrescos do Camposanto de Pisa, por outro lado, foram no mínimo concebidos e largamente

executados provavelmente na segunda metade da década de 1330, mais especificamente entre 1336 e 1340/41,

conforme discutido na parte introdutória desta tese. Percebe-se que, em ambos os casos, ao menos a concepção

dos ciclos deve forçosamente ser colocada na década de 1330, antes, portanto, do primeiro grande surto de peste

na região da Toscana.

Como visto no capítulo anterior, a pintura monumental reservava ao Juízo final uma grande área, mas

restrita a uma única parede, geralmente a de ingresso da igreja, formando uma cena única. É o que se viu, por

exemplo, com o afresco da Basílica de Sant’Angelo in Formis (slides 06 a 12), com o mosaico da Igreja de Santa

Maria Assunta, em Torcello (slides 13 a 19), e com o afresco de Giotto na Capela Scrovegni (slides 40 a 46)451.

O que há de diverso entre as pinturas da Capela da Madalena e do Camposanto de Pisa e os modelos anteriores?

O problema começa a se esclarecer na definição mesma de ambas as obras: são ciclos de afrescos, e não pinturas

autônomas representando o Juízo final, independentes a priori de quaisquer outras imagens. Na década de 1330,

portanto, há, pela primeira vez, o desdobramento do tema do Juízo em mais de uma composição – cada uma

sobre uma parede distinta, ou separadas por molduras, mesmo que sobre o mesmo suporte –, conforme será

esclarecido a seguir.

3. Mudanças nos modos de representação do tema do Juízo final

N
o caso da Capela da Madalena, o afresco com o Juízo final propriamente dito se encontra em seu posicionamento

tradicional, ou seja, na parte interna da parede de ingresso do espaço religioso (slide 69). Extremamente

danificado, dele resta apenas parte da porção inferior, com os fragmentos da figuração do Inferno (slide 70). Na

parede oposta, na outra extremidade da capela, há a representação do Paraíso – melhor conservada, embora

também afetada por deteriorações e perdas diversas (slide 68); percebe-se, assim, pela primeira vez, como um

451
Os motivos para a escolha preferencial desse local para a pintura do Juízo final no interior das igrejas serão
esclarecidos no próximo capítulo, que discutirá as possíveis funções de imagens com o tema.

CXLVII
dos locais do Além adquire autonomia compositiva nesse tipo de iconografia.

Contra a hipótese avançada por esta tese – o desmembramento da

cena do Juízo final em mais de uma composição, e que no interior da

parede de ingresso da Capela da Madalena tivesse sido efetivamente

representado esse tema, a partir de uma concepção giottesca –, pode-

se argumentar que, devido ao estado deteriorado da composição, não

seja possível afirmar que esse afresco apresentasse efetivamente uma

representação do Juízo final. De fato, não há vestígios visuais que

dêem esse subsídio. O testemunho de Vasari sobre a participação de

Giotto na elaboração desses afrescos menciona apenas o suposto

retrato de Dante que estaria figurado no afresco do Paraíso452.

Poder-se-ia especular, como o faz Jérôme Baschet, que, uma vez que

a composição na parede de fundo da capela apresentasse o Paraíso, a

outra pudesse mostrar o Inferno – está lá sem dúvida uma figuração

de um demônio. Contra esse argumento, no entanto, colocam-se

problemas de composição do próprio afresco. Com efeito, a área da

parede é bastante grande, e é preciso supor que, fazendo contraste

com o afresco do Paraíso – que ocupa toda a extensão do muro –,

também esse afresco ocupasse toda a superfície mural oferecida.

Ademais, fosse toda a área reservada ao Inferno, é bastante provável

que o Diabo tivesse uma posição de destaque dentro da composição.

Entretanto, a ele está reservado pouco mais de um terço de toda a

superfície, na parte inferior do muro – por motivos que serão

esclarecidos em seguida, não há dúvidas de que o demônio

representado é Lúcifer, o rei do Inferno, e não um diabo qualquer,

CXLVIII
que estivesse punindo de alguma forma os condenados.

Decerto, poder-se-ia especular também que nesta parede da Capela da Madalena estivesse afrescado

somente um Inferno, conforme pintaria Nardo di Cione anos mais tarde453 na Igreja de Santa Maria Novella, em

Florença (slide 95), seguindo as indicações apresentadas por Dante em sua Commedia. Também aqui o Diabo é

proporcionalmente pequeno, em função da tentativa de uma representação precisa do Inferno dantesco. Se o grau

de deterioração do afresco do Bargello impede que se exclua em definitivo a possibilidade de aqui também se

estar representando o Inferno da Commedia – o que poderia justificar as dimensões do Diabo nessa pintura –,

parece, por outro lado, pouco provável que se escolhesse a representação do Inferno no contexto de uma capela

no palácio do governo, e na localização em que se encontra, como visto, tradicionalmente reservada ao tema do

Juízo final. O próprio Baschet – que considera haver na Capela da Madalena não o Juízo final, mas somente

Paraíso e Inferno se opondo face a face454, embora essa sua hipótese também não possa ser comprovada pela

ausência de documentação relativa à comissão ou à execução das pinturas na capela – acredita que “nem o

conjunto de suplícios visíveis, nem a estrutura geral do afresco parecem dever ser reportados ao Inferno [de

Dante]”455.

Se ao Diabo e ao Inferno como um todo, portanto, está reservada uma área relativamente reduzida,

supõe-se que, acima, houvesse outra composição que com eles formasse um conjunto coerente, criando uma

unidade compatível com a encontrada no afresco do Paraíso. Devido à localização do afresco no interior do

espaço religioso, e à tradição decorativa desse mesmo espaço que remontaria ao menos ao século IX – conforme

discutido no capítulo anterior –, é forçoso concluir que, com toda probabilidade, a composição em questão fosse

a de um Juízo final, em que o Inferno ainda a ele estivesse integrado, enquanto o Paraíso, desmembrado, fosse

representado em frente. Tem-se aqui, portanto, o primeiro testemunho visual de uma mudança iconográfica

significativa na longa tradição de representações do Juízo final na pintura ocidental.

Os afrescos do Camposanto de Pisa foram realizados quase certamente pelo artista

florentino Buonamico Buffalmacco, como já discutido. Provavelmente iniciado pouco depois

dos trabalhos na própria Capela da Madalena, é possível supor uma ligação, ainda que

indireta, entre eles. É necessário considerar, de início, a fama que Giotto havia alcançado

452
Ver citação acima, nota 03.
453
Sobre o afresco de Nardo di Cione e especialmente sobre Dante, ver a seguir.
454
Cf. Les justices de l’au-delà. Les représentations de l’enfer en France et en Italie (XIIe-XVe siècle). Roma:
École Française de Rome, 1993, p. 359.
455
Idem, p. 360.

CXLIX
ainda em vida456. Parece bastante plausível supor que, ao decidirem a realização do ciclo

pisano, que incluiria uma representação do Juízo final, Buffalmacco ou mesmo o comitente

tenham resolvido conhecer os trabalhos em andamento na capela do Palazzo del Bargello,

cuja decoração englobaria o mesmo tema do Juízo, levando-se em conta especialmente o fato

de estar sendo executado na sede do governo florentino, e por ter sido este ciclo concebido

pelo maior mestre florentino em atividade no período, no mais importante centro artístico da

região, de acordo com a hipótese assumida por esta pesquisa.

Em termos compositivos, o ciclo do Camposanto difere bastante do ciclo de Florença. Em Pisa, o

Juízo final se insere em uma estrutura diversa; o conjunto, de fato, inclui um afresco com o tema da Tebaide, e

outro representando o Trionfo della Morte, principal obra de todo o conjunto, e possivelmente o carro-chefe para

a interpretação de todo o ciclo. A essa composição seguia originalmente o afresco do Juízo final457. Também

aqui, no entanto, a representação difere da tradicional; ao contrário, porém, do que ocorrera na Capela da

Madalena, em Pisa é o Inferno que adquire autonomia – ainda que ao lado da figuração do Juízo final, na mesma

parede –, enquanto o Paraíso sequer é representado. À região infernal é concedida uma área equivalente ao do

Juízo final propriamente dito, sendo que o Diabo possui dimensões consideravelmente maiores do que o próprio

Cristo juiz458. É preciso frisar que, ao contrário dos afrescos giottescos do Palazzo del Bargello, o Juízo final e o

Inferno do Camposanto, a princípio, constituem uma única cena, delimitada inclusive por uma moldura única459.

Entretanto, como recorda Baschet, “a igual importância dada aos dois elementos autoriza uma leitura

456
O artista foi celebrado ainda em seu tempo como o grande renovador da pintura italiana. Além da famosa
menção a ele na Commedia – que será tratada em seguida –, Giotto foi louvado por Giovanni Boccaccio e
Cennino Cennini. Sobre ele, escreveu Boccaccio: “E per ciò, avendo egli quella arte ritornata in luce, che molti
secoli sotto gli error d’alcuni, che più a dilettar gli occhi degl’ignoranti che a compiacere allo ‘nteletto de’ savi
dipignendo, era stata sepulta, meritamente, uma delle luci della fiorentina gloria dir si puote” [“E, portanto,
podemos dizer que ele possuía aquela arte lançada novamente à luz, que devido aos erros de alguns, que
pretendiam pela pintura agradar aos olhos dos ignorantes mais do que comprazer o intelecto dos sábios, muitos
séculos haviam sepultado merecidamente uma das luzes da glória florentina”]. Decameron, VI, V, 6. Cennini,
por sua vez, escreveu em seu Il libro dell’arte que Giotto era o mestre absoluto da pintura, complementando:
“(…) il quale Giotto rimutò l’arte di dipignere di greco in latino, e ridusse al moderno; et ebbe l’arte più
compiuta ch’avessi mai nessuno (…)” [“(…) o qual Giotto traduziu a arte de pintar do grego para o latim e a
tornou moderna; e possuiu a arte mais completa que alguém jamais tivesse havido (…)”]. Apud SPIAZZI, A.M.
La Cappella degli Scrovegni a Padova. Milão: Electa, 1993, p. 08.
457
Deve-se recordar que, com os bombardeios ocorridos em julho de 1944, os afrescos do Camposanto foram
largamente danificados. O ciclo do Trionfo della Morte foi destacado da parede original, e recomposto em outro
local, dentro do próprio Camposanto.
458
Talvez o único outro exemplo em que o Diabo possui dimensões maiores do que o Cristo seja o Juízo final de
Tuscania, nos arredores de Roma, mas que, por fugir dos limites geográficos desta pesquisa, não será discutido
nesta tese.

CL
dissociada”, uma vez que “o inferno pode ser descrito por ele mesmo e não somente como uma parte do

Juízo”460.

A fortuna dos afrescos pisanos é grande; o ciclo parece, com efeito, ter exercido influência sobre toda

a tradição iconográfica toscana do Juízo final, ao menos até meados do século XV 461. A recepção possivelmente

foi imediata; em 1345, de fato, é realizado em Prato, no Ospedale della Misericordia, um afresco, executado por

Bonaccorso di Cino (slide 80). Os fragmentos remanescentes dessa pintura – um Juízo final – evidenciam que o

afresco pratense seria quase em sua totalidade uma cópia do Juízo pisano (slide 74)462. E poucos anos depois, por

volta de 1350, Andrea Orcagna retomaria, no muro direito da nave da Igreja de Santa Croce, em Florença,

praticamente o mesmo tema e uma seqüência compositiva próxima à do Camposanto de Pisa (slides 83 a 85).

Pouco, infelizmente, resta do ciclo de Santa Croce; os fragmentos remanescentes, porém, mostram a ascendência

de Buffalmacco sobre Orcagna463. As principais diferenças entre ambos os ciclos está na importância maior

concedida ao Juízo final nos afrescos de Santa Croce: segundo Baschet, ele ocuparia uma superfície quase duas

vezes maior do que o Inferno; o Juízo final seria, ademais, “o painel central de um tríptico pintado em afresco

por Orcagna, e cujos painéis laterais são consagrados ao Triunfo da morte e ao inferno”464. Em Pisa, como visto,

a cena da Tebaide completava o ciclo, formando uma espécie de “políptico” na parede sul do Camposanto.

A partir dos afrescos do Palazzo del Bargello e do Camposanto de

Pisa, parece ter se tornado comum, até o fim do século XIV, ao tratar

do tema do Juízo final nas decorações murais das igrejas, que se

optasse pelo desmembramento da composição em mais de uma

parede. Normalmente, tratando-se de uma igreja ou capela, o muro

459
Essa visão em conjunto de ambas as cenas atualmente está largamente prejudicada, se não de todo
inviabilizada. Devido ao já mencionado destaque dos afrescos por conseqüência dos bombardeios, Juízo final e
Inferno ocupam hoje em dia paredes diversas.
460
Op. cit., p. 309.
461
A influência, em um ponto particular da iconografia do tema, foi ainda além do Quattrocento. No capítulo
anterior, de fato, foi discutida sucintamente a importância do gesto do Cristo pisano nas representações do Juízo
final até o afresco de Michelangelo, no século XVI.
462
Cf. BELLOSI, L. Buffalmacco e il trionfo della morte. Turim: Einaudi, 1974, p. 40. Os fragmentos
mostram a parte inferior do afresco, com a ressurreição dos corpos e a separação entre condenados e eleitos.
Percebem-se os anjos que empurram os condenados para a direita da cena, o anjo que acolhe um eleito e o
conduz para o seu grupo seguindo o singular gesto de São Miguel, repetido a partir do modelo do Camposanto
de Pisa.
463
A semelhança entre os ciclos é tal que, por muito tempo, os historiadores atribuíram a execução dos afrescos
de Pisa ao próprio Orcagna, ou consideraram ainda que o ciclo florentino fosse anterior ao pisano – uma vez que
Orcagna sempre foi um artista mais conhecido do que Buffalmacco, que, aliás, era tido até recentemente apenas
como uma das personagens fictícias do Decameron de Boccaccio, conforme comentado na parte introdutória
desta tese.

CLI
central seria decorado com a cena do Juízo final em si, enquanto na

parede à esquerda do observador (à direita do Cristo, não se pode

esquecer) seria representado o Paraíso; o Inferno se oporia a ele,

figurado na parede em frente, à direita do afresco do Juízo final. O

Cristo juiz ocuparia seu posicionamento tradicional, no alto da cena,

e também o resto do afresco central seguiria a tradição compositiva

das figurações do Juízo final, já comentadas anteriormente. A

principal novidade é que, pela ausência do Paraíso e do Inferno na

pintura, as partes da ressurreição dos corpos, mas especialmente da

separação entre condenados e eleitos, adquirem uma maior dimensão.

O primeiro exemplo intacto desse novo modelo compositivo é o ciclo

de Nardo di Cione na Capela Strozzi, localizada no transepto

esquerdo da Igreja de Santa Maria Novella, em Florença, e finalizado

por volta de 1357 (slides 90 a 97). Nesse ciclo, o artista definiu

claramente o posicionamento de cada grupo, já no momento da

ressurreição: os eleitos ressurgem dos túmulos no chão à direita do

Cristo, sendo ajudados a sair dos sepulcros por um anjo, enquanto os

condenados, ressuscitando à esquerda do juiz, são já arrastados

grosseiramente por demônios (slide 93). Outro exemplo completo

desse modelo é o ciclo de Taddeo di Bartolo, na Collegiata de San

Gimignano, realizado já no fim do Trecento (slides 106 a 112)465.

Há, em Pistóia, fragmentos de um ciclo realizado por Giovanni dal

Ponte por volta de 1420, que ocuparia originalmente três paredes de

464
Op. cit., p. 359.
465
O afresco do Juízo final do ciclo da Collegiata seguiria possivelmente o mesmo esquema compositivo apenas
descrito. Entretanto, a parte inferior do afresco, em que estariam representadas a ressurreição dos corpos e a

CLII
uma capela lateral da catedral – a Capela de San Mattia, construída

provavelmente em torno de 1401 (slides 118 a 122); atualmente, há

restos de pintura na parede central e naquela à direita do

observador; a parede esquerda, se não foi totalmente destruída, está

oculta por trás de outra capela, construída em 1764, e refeita em

1839. Não há dúvidas de que o afresco central é um Juízo final,

embora dele reste somente parte do lado direito (slide 118): tem-se

certeza da presença do Cristo juiz (hoje destruído) no ponto mais alto

do fragmentado afresco porque, logo acima de um grupo de

ressuscitados, é claramente reconhecida a figura de São João Batista,

que dirige o olhar para cima, ao mesmo tempo em que estende o

braço direito – decerto, parte do grupo da Deesis, que contaria com a

Virgem do lado oposto (slide 121). Há, ademais, logo acima de São

João Batista, um anjo trombeteiro que, conforme discutido no

capítulo anterior, indicaria de modo inequívoco o momento do

julgamento final, e outros dois anjos que trariam as Arma Christi –

um deles carrega a coluna da flagelação, enquanto o outro está

parcialmente destruído, não podendo ser determinado o que trazia em

mãos (slide 120).

Também não é equivocado afirmar que o afresco que ocuparia a

parede direita da capela figurasse o Inferno: de fato, percebe-se

claramente que, ao lado da parede em que estaria representado o

Juízo final, há dois pequenos fragmentos que mostram corpos sendo

torturados – não há dúvidas quanto à execução do locus infernal, uma

separação dos homens, foi destruída para a execução, em 1465, de um afresco com o tema do martírio de São
Sebastião, realizado por Benozzo Gozzoli.

CLIII
vez que as frações remanescentes da parede central mostram

claramente a área dos ressuscitados condenados que, contemplando o

Cristo juiz, são já levados para o Inferno por alguns pequenos

demônios, seguindo o esquema do afresco de Nardo di Cione (slide

122). Desse modo, é plausível considerar que, na parede oposta,

estivesse representado o Paraíso, completando o ciclo com a

figuração tripartida do Juízo final.

É preciso considerar igualmente que, ainda que não haja indícios de

continuidade desse desmembramento em outros afrescos toscanos do

século XV466, ele é retomado de um modo diverso nos afrescos de

Luca Signorelli na Capela Nuova, na Catedral de Orvieto, na virada

do século XV para o XVI: integrando um ciclo mais amplo com as

Histórias do Anticristo, Signorelli representou na parede de fundo da

capela o Paraíso e o Inferno, separados por uma grande janela (slide

152); nos primeiros vãos das paredes esquerda e direita, em oposição

frontal, figuram, respectivamente, as cenas da Coroação dos eleitos e

d’Os condenados (slides 150 e 151), enquanto que no segundo vão, ao

lado dos condenados, foi representada a ampla cena com a

ressurreição dos corpos. No primeiro tramo da abóbada, afrescou-se

a Corte celestial; o Cristo juiz pintado por Fra Angelico em 1447 se

encontra logo acima do afresco figurando Paraíso e Inferno (slide

149). Deve-se recordar, enfim, um exemplo célebre, embora bastante

466
Ressalte-se, porém, que no Oratório de Santa Caterina, no santuário de Montovolo (localidade situada entre
Bolonha e Florença), há uma representação tripartida do Juízo final, realizada no início do século XVI. Nela,
assim como no ciclo de Taddeo di Bartolo em San Gimignano, na fachada interna, está a cena do Juízo final
propriamente dito, enquanto Paraíso e Inferno se colocam face a face nos muros laterais da primeira seção da
nave. Cf. BASCHET, J. Op. cit., p. 365, nota 31. Embora o ciclo fuja à delimitação cronológica desta tese, é um
exemplo bastante significativo da permanência desse modelo em uma área bastante próxima da Toscana.

CLIV
posterior: segundo alguns autores, o afresco de Michelangelo na

Capela Sistina (slide 155) deveria fazer par com um grande afresco

dedicado à representação da queda dos anjos rebeldes e do Inferno, e

que seria realizado na parede oposta à do Juízo final467.

Também em alguns painéis é possível perceber influências desse novo

modelo compositivo: com efeito, em algumas pinturas Inferno e

Paraíso são colocados nos painéis laterais, enquanto o central é

reservado ao Juízo final em si; essa solução nas pinturas sobre

madeira, por outro lado, não é comum na Península Itálica: dos

modelos considerados, de fato, somente Fra Angelico parece ter

seguido esse esquema, nos dois painéis executados por volta de 1450

(slides 129 e 132). No entanto, esse modelo pode ter ultrapassado os

limites geográficos propostos para essa pesquisa: há painéis nórdicos

com representações do tema em que também ao Paraíso e ao Inferno

são reservados os pequenos painéis laterais da composição. Os

principais exemplos, devido à importância de seus autores para a

História da arte, são o tríptico de Hans Memling, pintado entre 1466

e 1470 (slides 161 e 162), e o grande políptico de Rogier Van der

Weyden, executado entre 1446 e 1450 (slides 159 e 160),

praticamente contemporâneo aos painéis de Fra Angelico de ca.

1450.

A questão que se colocou no momento desse desdobramento temático se relaciona à composição de

cada afresco individualmente; ao se transferir o Inferno e o Paraíso, de cantos proporcionalmente pequenos da

composição do Juízo final para uma grande superfície mural, tornou-se necessário ampliar os modos de

467
Para um breve comentário sobre isso, ver QUÍRICO, T. O Juízo final de Michelangelo. Questões
iconográficas e a polêmica do Cinquecento sobre o afresco sistino (dissertação de mestrado). Campinas:
Programa de Pós-graduação em História/Unicamp, 2003.

CLV
elaboração desses temas; foi preciso desenvolver os elementos iconográficos não somente da cena do Juízo final,

que ganhou o espaço inferior da cena reservada anteriormente a Paraíso e Inferno, mas também de ambas as

regiões do Além. A cena principal, como já comentado, foi ocupada por uma representação mais elaborada da

separação entre eleitos e condenados; a ressurreição dos corpos, em vários casos, ficou restrita à base do registro

inferior, e pouco visível no conjunto da cena.

Com relação à figuração do Inferno, o afresco pisano parece ter sido novamente um modelo

iconográfico. Citando novamente o ciclo de Taddeo di Bartolo em San Gimignano, é possível perceber como, no

afresco do Inferno, muitos dos motivos iconográficos parecem retirados diretamente do Inferno do Camposanto,

ainda que, em alguns casos, inseridos em novos contextos. Há, com efeito, uma série de similaridades em

algumas das torturas encontradas em ambas as obras; ele também parece ter copiado alguns tipos de punição

apresentados no afresco de Buffalmacco, colocando-os, porém, como castigo para tipos diferentes de pecado.

Por exemplo, na região dos avaros Taddeo representou um esqueleto enforcado; em Pisa, esse tipo iconográfico

é encontrado na área reservada aos suicidas (slide 112)468. E, de novo, a influência dos afrescos do Camposanto

de Pisa parece ter sido duradoura, avançando mesmo pelo século XV. Fra Angelico executou outro painel, por

volta de 1431 (slides 123 a 126), e mais conhecido do que o que integrava o Armadio degli argenti, que também

se encontra atualmente no Museu de San Marco. Bellosi nota que nessa pintura a região infernal (slide 126) é

“uma verdadeira e própria antologia de motivos figurativos retirados do ‘Inferno’ de Pisa”469.

Jérôme Baschet insere o afresco do Juízo final do Camposanto de Pisa em uma “evolução” – para

usar seu próprio termo – que retroagiria ao afresco de Giotto em Pádua (slide 40). De acordo com o autor

francês, no Juízo final da Capela Scrovegni ocorreria o

Desaparecimento do paraíso, tradicionalmente colocado simetricamente ao inferno.


Desde então, o inferno não possui mais o defronte paradisíaco, e é ao próprio Cristo
que se oporá.470

Ora, no afresco paduano, se não há a tradicional iconografia do Paraíso que se encontra em modelos italianos

anteriores, em que é simbolizado pelo seio de Abraão, tem-se um grande cortejo dos eleitos, voltados para o

Cristo. Se esse grupo não pode e não deve ser interpretado como o Paraíso mesmo, a alusão a este é evidente; a

468
No afresco de San Gimignano dois demônios alimentam o esqueleto com moedas de ouro. Esta representação
é explicada por Gail Elizabeth Solberg: o pecador “presumivelmente trocou sua própria substância pelos bens
que estão no grande fardo preso em seu laço”. Taddeo di Bartolo. His life and work (tese de doutorado). Nova
York: New York University, 1991, p. 793.
469
Op. cit., p. 19, nota 14. Note-se que não se mencionou aqui o afresco de Nardo di Cione na Capela Strozzi
porque, conforme comentado anteriormente, o artista baseou sua representação na leitura da Commedia dantesca.
Esse ponto será desenvolvido em seguida.

CLVI
área ocupada por este cortejo, ademais, é equivalente àquela reservada ao Inferno (slide 42). A oposição entre as

duas instâncias do Além, portanto, se mantém de alguma forma. Poder-se-ia argumentar que a representação do

Paraíso estaria simplificada quando comparada à do Inferno; entretanto, é preciso considerar que, se não há a

representação tradicional do seio de Abraão como o Paraíso em si, também não há, na área do Inferno, o cortejo

dos condenados que a ele se dirigem. Nesse sentido, há a simplificação em ambas as áreas, um de cada lado,

visando a um equilíbrio visual.

Deve-se esclarecer nesse momento que não se está confundindo a representação do Paraíso – como

local de recompensas destinado aos eleitos – com a figuração do cortejo celestial que a ele se dirige. Do mesmo

modo, não se faz confusão aqui entre a representação efetiva do Paraíso e figuras emblemáticas – como São

Pedro ou Abraão. A questão que se coloca é que, se não há a figuração explícita do Paraíso enquanto locus, ele é

claramente insinuado seja pelo cortejo de eleitos, seja por São Pedro diante de uma porta, e simbolizado de

forma explícita pelo seio de Abrão – interpretado como o Paraíso por toda a tradição iconográfica medieval. Do

mesmo modo, a alusão ao Inferno é clara quando não há a representação efetiva do locus, mas somente do grupo

de condenados que a ele se dirige.

Retomando a discussão dos modos de figuração de Paraíso e Inferno, há ainda outro ponto a ser

considerado: o afresco paduano não seria o primeiro exemplo em que ocorre esse contraste nos modos de

representação dessas duas instâncias do Além, nas pinturas do Juízo final em que elas ainda estão englobadas em

uma cena única; sob esse prisma, o modelo identificado por esta tese, dentre as pinturas conhecidas, seria o

painel atribuído a Guido da Siena e seus seguidores (slide 33), realizado no fim do século XIII – pouco anterior,

portanto, ao afresco de Giotto em Pádua. Já no painel de Guido da Siena começa a haver uma maior

proeminência do Inferno com relação ao Paraíso; nele, de fato, embora as áreas reservadas a eleitos e

condenados se equivalham, há a mesma diferença fundamental observada no afresco paduano: representa-se o

interior do Inferno, incluindo o Diabo sentado sobre uma espécie de dragão e envolto por uma serpente,

enquanto ao Paraíso há apenas uma alusão através de sua porta de acesso, para a qual se dirige o grupo de eleitos

(slide 37). Ao contrário do que ocorre no afresco de Giotto, nesse caso, entretanto, Paraíso e Inferno não se

opõem diretamente: de fato, embora em lados opostos, a eles se contrapõe a ressurreição dos corpos, separada

em dois grupos, um deles acima do Inferno, o outro abaixo do Paraíso (slide 35)471.

470
“Image et événement: l’art sans la peste (c. 1348- c. 1400)?”. In: La Peste Nera. Dati di una realtà ed
elementi di una interpretazione. Atti del XXX Convegno storico internazionale. Spoleto: Centro italiano di studi
sull’Alto Medioevo, 1994, p. 30.
471
O mosaico do Batistério de San Giovanni, em Florença, contemporâneo ao painel de Guido da Siena, não foi
tratado aqui por incluir tanto os cortejos de eleitos e condenados como as representações de Paraíso e Inferno,

CLVII
Giotto, portanto, não seria o primeiro a “transgredir” a representação do tema do Juízo final com a

maior proeminência do Inferno, como afirmara Baschet. O autor, ademais, considera em sua discussão o afresco

pisano e aqueles que evidentemente nele se inspiraram: os afrescos de Orcagna na Igreja de Santa Croce. Ao

comentar também o afresco do Inferno executado por Giovanni da Modena por volta de 1404 na Igreja de San

Petronio, em Bolonha, não menciona que, a essa pintura, se opõe um grande afresco representando o Paraíso –

em Bolonha, deve-se destacar, não há o Juízo final. Não leva em conta, igualmente, os já mencionados grandes

ciclos de afrescos com o tema do Juízo final realizados na segunda metade do século XIV: o de Santa Maria

Novella, em Florença, e o da Collegiata de San Gimignano, nos quais se contrapõem, face a face, Paraíso e

Inferno em paredes opostas, conforme visto anteriormente. Essa omissão se torna ainda mais grave no momento

em que, em sua análise, Baschet discute outros ciclos de afrescos da Collegiata: as cenas do Antigo Testamento

pintadas por Taddeo Gaddi por volta de 1340/42, e as do Novo Testamento feitas por Bartolo di Fredi em 1367.

Tratando de quase toda a decoração da Collegiata de San Gimignano, parece estranho não haver qualquer

referência aos afrescos de Taddeo di Bartolo.

Baschet, enfim, não analisa nesse texto as pinturas da Capela da

Madalena no Palazzo del Bargello, em que há o inverso do que

ocorre na “evolução” por ele proposta: não o Inferno, mas o Paraíso,

ainda visível, adquire autonomia (slide 68). De qualquer modo,

mesmo após essa nova estrutura compositiva, com a solução

tripartida para a figuração do Juízo final, Paraíso e Inferno

continuam se opondo, como ocorria nos modelos anteriores. O Cristo

continua somente com seu papel de juiz. O caso particular do

Camposanto de Pisa, em que não há qualquer representação efetiva

do Paraíso, mas somente uma alusão por meio do grupo de santos

que acompanha o Cristo – e pelos eleitos que, à Sua direita, o

não se enquadrando, portanto, nessa discussão específica. Por ser uma obra-chave para o estudo da Commedia –
texto fundamental para esta pesquisa –, o mosaico será abordado em um momento posterior deste capítulo.
Deve-se recordar também que nesses modelos tratados especificamente aqui – o painel de Guido da Siena e o
afresco de Giotto em Pádua – a composição do Juízo final é única. Ou seja, a oposição entre Paraíso e Inferno
discutida ocorre dentro de uma estrutura compositiva que engloba todos os elementos iconográficos em um
único suporte, seja ele a parede da capela ou a madeira do painel. A discussão dos modos de representação nas
composições tripartidas se dará em outros momentos, ainda neste capítulo e no próximo.

CLVIII
contemplam no ato de julgar –, deve ser visto como uma exceção que

não ocorrerá nas representações posteriores. Apesar disso, é

necessário frisar uma vez mais que esta pesquisa considera o ciclo,

sem dúvida, um modelo para as representações posteriores do Juízo

final, na medida em que propõe o desmembramento compositivo do

tema em mais de uma cena. Do mesmo modo, o ciclo do Bargello,

igualmente tido como o outro grande modelo para os novos modos de

figuração do tema, também representa somente uma das instâncias do

Além.

Não se deseja aqui desmerecer a importância da pesquisa de Jérôme Baschet, sem dúvida autor

fundamental para o estudo da iconografia do Inferno na Itália dos séculos XII a XV. Entretanto, não parece

factível a sua proposta de mudança compositiva e iconográfica em uma linha que se iniciaria com o Giotto de

1305/07, ao menos da forma por ele estruturada. Os estudos e análises efetuados por esta pesquisa mostram que

essa mudança, que efetivamente há, deve ter ocorrido na década de 1330; em Giotto, sim, mas em sua pintura

provavelmente de 1335/36. O que se pode especular é que, ao idealizar os afrescos da Capela da Madalena no

Palazzo del Bargello, Giotto estivesse materializando algumas idéias que já lhe poderiam ter surgido no

momento da execução das pinturas de Pádua. Isso será discutido a seguir.

4. Hipóteses para as mudanças iconográficas

A
partir do que foi descrito acima, nota-se, portanto, que as mudanças iconográficas ocorrem antes dos grandes

surtos de peste na Toscana. Certamente, é preciso considerar que o início do século XIV é visto por muitos

historiadores como um momento de crises e transformações profundas nos campos religioso e social. A maior

participação leiga nos assuntos religiosos desde meados do século XIII decerto surtiu efeito nos modos de

doutrinação desses fiéis, e possivelmente também na forma de decoração dos espaços religiosos. E não se pode

ignorar o peso que guerras contínuas e, especialmente, a carestia de alimentos nas primeiras décadas do

Trecento472 possam ter tido sobre as populações européias, notadamente quando se percebe que muitos, à época,

472
Giovanni Villani, em sua Nuova Cronica, descreve, por exemplo, que entre 1328 e 1330 houve “(…) grande
caro di grano e vittuaglia in Firenze (…). E non fu solamente in Firenze, ma per tutta Toscana e in gran parte

CLIX
interpretaram esses problemas como um sinal do fim dos tempos. Nesse sentido, a interpretação escatológica

dada à Peste Negra de 1348, e discutida no primeiro capítulo desta tese, se insere em uma longa tradição

especulativa comum ao século XIV, e que remonta a tempos muito mais antigos. A Peste Negra, enfim, estaria

inserida em um contexto mais amplo de crise e, de acordo com Baschet, isso

Poderia fornecer uma das explicações possíveis ao paradoxal estatuto antecipador da


arte com relação à peste. Não é proibido de fato considerar a coincidência entre as
mutações artísticas ocorridas na primeira metade do século XIV, notadamente nos
anos 1330, e a acumulação progressiva de fatores de crise ao longo desse período. 473

Analisando-se as já mencionadas crônicas de Giovanni Villani, percebe-se que a muitos dos eventos narrados

pelo autor, seguem comentários que indicam que “foi sinal do juízo de Deus”, ou que seriam prenúncio de “de

futuros perigos e danos”474. Seria possível, portanto, que os contínuos problemas das primeiras décadas do século

XIV tenham influenciado as mudanças iconográficas no tema do Juízo final? Embora se esteja caminhando aqui

no campo da especulação, a resposta parece ser afirmativa. Tratando-se especificamente da Toscana, e em

especial Florença – pólo cultural da região e, como visto, a cidade em que parece ter surgido pela primeira vez

um novo padrão iconográfico para a representação do tema –, é possível encontrar algum fato que poderia ter

tido peso nessa nova iconografia?

Em primeiro de novembro de 1335, dì de la Tusanti475, – pouco antes, portanto, da data possível para a concepção tanto do
ciclo do Bargello como do Camposanto pisano – ocorreu uma grande inundação em Florença decorrente do transbordamento do rio
Arno, e que se estendeu por vários dias476. Segundo Giovanni Villani, em quatro de novembro a altura da água teria chegado, em

d’Italia; e fu sì crudele la carestia che’ Perugini, e’ Sanesi, e’ Lucchesi, e’ Pistolesi, e più altre terre di Toscana
per non potere sostentare cacciarono di loro terre tutti i poveri mendicanti” [“(…) grande carestia de grãos e
víveres em Florença (…). E não ocorreu somente em Florença, mas por toda a Toscana e em grande parte da
Itália; e foi tão cruel a carestia que peruginos, e sienenses, e luqueses, e pistoienses, e outras terras da Toscana
por não poder sustentar expulsaram de suas terras todos os pobres mendicantes”]. Nuova cronica, volume II
(org. Giuseppe Porta). Parma: Fondazione Pietro Bembo/ Ugo Guanda, 1991, p. 670 e 671. Os mendicantes
expulsos acabaram sendo acolhidos em Florença. Por causa da carestia, complementa Villani que “(…) perdévi il
Comune di Firenze in quegli due anni più di LXM fiorini d’oro per sostentare il popolo” [“(…) perdeu o Comune
de Florença naqueles dois anos mais de 60 mil florins de ouro para sustentar o povo”]. Idem, p. 671.
473
Image et événement: l’art sans la peste (c. 1348- c. 1400)?”. In: Op. cit., p. 42.
474
Sobre uma série de terremotos ocorridos na Península em 1298, escreve Villani que “(…) fu segno del
giudicio di Dio, del futuro pericolo, e aversitadi, che poco appresso si cominciò in più parti d’Italia” [“(…) foi
sinal do juízo de Deus, do futuro perigo e adversidades que pouco depois começaram em várias partes da
Itália”]. Op. cit., p. 45. A respeito de um cometa que surgiu no céu em 1301, comenta que “(…) i savi astrologi
dissono grandi significazioni di futuri pericoli e danni a la provincia d’Italia, e a la città di Firenze (…)” [“(…)
os sábios astrólogos falaram em grandes significações de futuros perigos e danos à província da Itália e à cidade
de Florença (…)”]. Idem, p. 74. Relata ainda que, em 1325, “(…) dì XXI di maggio, dopo Il suono de le tre
venne un grandissimo tremuoto in Firenze, ma durò poco, e la sera vegnente, XXII di maggio, uno grandissimo
raggio di vapore di fuoco si vide volare sopra la città, e chi sentì e vide i detti segni dubitò di futuro pericolo e
novità” [“(…) dia XXI de maio, após o soar das três houve um grandíssimo terremoto em Florença, mas durou
pouco, e (n)a noite seguinte, XXII de maio, um grandíssimo rastro de vapor de fogo voou sobre a cidade, e quem
sentiu e viu os tais sinais temeu por futuro perigo e novidade”]. Idem, p. 462. Ao comentar uma série de
incêndios ocorridos em Florença entre novembro de 1331 e janeiro de 1332, escreve que “(…) s’appresono per
mala provedenza e guardia” [“(…) interpretaram como má providência e guarda”]. Idem, p. 772.
475
“(…) dia de todos os santos (…)”. Nuova cronica, volume III (org. Giuseppe Porta). Parma: Fondazione
Pietro Bembo/ Ugo Guanda, 1991, p. 03.
476
Villani menciona o fato como tendo acontecido em 1333. Ottavio Banti, que organizou as crônicas de Ranieri
Sardo, afirma que a enchente ocorreu em 1335, data que será assumida por esta pesquisa. Cf. RANIERI

CLX
algumas áreas da cidade, a mais de dez braços de altura477; na catedral, “subiu a água até a parte de cima do altar”478, e danificou também
o Ponte Vecchio479. A extensão do desastre foi muito grande: Villani afirma que teriam morrido cerca de trezentas pessoas em Florença e
no condado, além dos prejuízos com a perda de rebanhos e de bens perecíveis, e com a própria destruição na cidade480 . Na opinião de
Villani, “reunindo todas as outras ditas adversidades [ocorridas em Florença desde o início do século XIV] em uma, não foram maiores
do que esta”481.

A enchente, de fato, foi tão forte a ponto de crônicas de Pisa – distante cerca de setenta quilômetros

de Florença, e cortada pelo mesmo rio – recordarem, no mesmo momento, inundação e destruição semelhantes

em sua cidade:

Nos anos do Senhor de 1336 houve tão grande chuva que o rio Arno engrossou de
modo tão forte no início a ponto de transbordar por toda Florença, e se rompeu uma
ponte de pedra devido à grande força da água, e chegou a Pisa a fúria da água do
Arno e se não fosse o grande espaço da largura do condado de Pisa, de modo que a
água encontrou por onde se espalhar, teria mal conduzido a cidade de Pisa. E subiu
tanto a água por Pisa que em muitos lugares os negócios se encheram de água e por
muitas ruas boiavam os barris cheios de vinho por Pisa, e não se podia andar pela
cidade se não com gôndolas e barcos e cascos e mesas e coisas semelhantes. E pelo
Valdiserchio de modo similar; e todos os homens, quem pôde, fugiu para as colinas e
houve quem subisse nas árvores e quem acima até os frutos nas quais a água havia
alcançado; e bastou esta água todo o dia sempre alta, e muita gente morreu, alguns
por causa da água e alguns por causa da fome, as gôndolas levavam os homens de
cima das árvores e os colocavam no plano; e os Scaccieri com uma gôndola imensa
andavam pelo Valdiserchio e recuperavam os homens de cima das árvores e os
levavam para as colinas, e lhes davam pão e vinho.482

SARDO. Cronica di Pisa (org. Ottavio Banti). Fonti per la storia d’Italia, n.º 99. Roma: Istituto Storico Italiano
per il Medioevo, 1963, p. 86, nota 02.
477
“(…) a dì IIII di novembre l’Arno giunse sì grosso a la città di Firenze, ch’elli coperse tutto il piano di San
Salvi e di Bisarno fuori di suo corso, in altezza in più parti sopra i campi ove braccia VI e dove VIII e dove più
di X braccia” [“(…) no dia quatro de novembro o Arno chegou tão grosso à cidade de Florença, que cobriu toda
a planície de San Salvi e de Bisarno fora de seu curso, em altura sobre os campos em algumas partes seis braços
e em outras oito e em outras mais de dez braços”]. Nuova cronica, volume III, p. 05.
478
“Nella chiesa e Duomo di San Giovanni salì l’acqua infino al piano di sopra de l’altare (…)”. Idem, p. 06.
479
“(…) e poi il ponte Vecchio è stipato per la preda de l’Arno di molto legname, sì che per istrettezza del corso
de l’Arno che v’è salì e valicò l’arcora del ponte, e per le case e botteghe che v’erano suso, e per soperchio
dell’acqua l’abatté e rovinò tutto, che non vi rimase che due pile di mezzo” [“(…) e então a ponte Velha foi
ocupada com os detritos trazidos pela força do Arno, porque devido à estreiteza do curso do Arno (o rio) subiu e
ultrapassou o arco da ponte, e arruinou pelo alagamento as casas e as lojas que havia sobre (a ponte), de modo
que não sobrou mais do que duas pilhas no meio”. Idem, p. 07.
480
“ Questo diluvio fece alla città e contado di Firenze infinito danno di persone intorno di IIIC, tra maschi e
femine, piccioli e grandi, ch’al principio si credea di più di IIIM, e di bestiame grande quantità, di rovina de’
ponti e di case e molina e gualchiere in grande numero, che nel contado non rimase ponte sopra nullo fiume e
fossato che non rovinasse (…). Sì che a stimare a valuta di moneta il danno de’ Fiorentini, io che vidi queste
cose per nullo numero le potrei né saprei adequare, né porrevi somma di stima; ma solo il Comune di Firenze sì
peggiorò di rovina di ponti e mura di Comune e vie, che píù di CLM di fiorini d’oro costaro a.rrifare” [“Este
dilúvio causou à cidade e ao condado de Florença infinito dano de pessoas em torno de trezentas, entre homens e
mulheres, pequenos e adultos, que no princípio se acreditava de mais de três mil, e de grande quantidade de
animais, de destruição de pontes e de casas e moinhos e teares em grande número, que no condado não ficou
ponte sobre rio algum e fosso que não estragasse (…). De modo que para estimar em termos de dinheiro o dano
dos florentinos, vi que estas coisas por número algum poderia nem saberia adequar, nem poderia estimar valor;
mas somente no Comune de Florença pontes e muros e ruas do Comune se arruinaram, de modo que refazê-los
custou mais de 150 mil florins de ouro”]. Idem, p. 09 e 10.
481
“(…) raccogliendo tutte l’altre dette aversitadi inn-una, non furono maggiori di questa”. Idem, p. 24.
482
“Negli anni Domini 1336 si fu sì grande la piova che ‘l fiume d’Arno ingrossò per modo tancto forte nel
principio che rribocchò per tucto Firenze et si ruppe uno ponte di pietra per la grande fortuna dell’acqua, et
venne a pPisa la furia dell’acqua d’Arno et se non fusso lo grande spatio della larghezza nello chontado di Pisa,
che ll’acqua trovò [u’]ssi spargere, ella arebbe male chondocto la città di Pisa. Et si alzò tancto l’acqua per
Pisa che in più luoghi lo bocteghe s’enpierono d’acqua et per molte strade andavano le botti piene di vino a
galla per Pisa, et non si poteva andare per la città se non cholle ghondole et barche e schafe o maide o deschi et

CLXI
Ao iniciar o relato específico sobre a enchente, Villani cita Mateus 25, 13: “vigiai, portanto, porque não sabeis nem o dia
nem a hora” – e o autor deixa claro no texto que se refere ao iudicio Dio483 . Assim como outros fenômenos naturais, vê-se que também
essa enchente foi interpretada em chave escatológica. Villani a menciona pela primeira vez ao tratar de eventos ocorridos em maio de
1333 – “um mês antes da festa de São João” 484 –, quando comenta a criação de duas brigadas de artesãos que, por um mês, festejaram
com jogos e folguedos pelas ruas de Florença. Escreve o autor que

(…) a dita alegria pouco depois se tornou pranto e dor, especialmente naquelas
contrade, por causa do dilúvio que ocorreu em Florença, e mais afetou lá do que
outra parte da cidade, como posteriormente faremos menção; e pareceu sinal ao
contrário da futura adversidade, como muitas vezes ocorre com as falas e falazes
felicidades temporais, que após a exagerada alegria segue o exagerado amargor.485

simile chose. Et per lo Valdiserchio per tutto lo simile; et tucti gli uomeni, chi potè, si fuggì a’ poggi et chi
montò su per li alberi e chi su per li fructi a cquegli che ll’acqua avea sopragunti; et bastò questa acqua tu dì
sempre alta, et molta gente morì, chi per l’acqua et chi di fame, andando le gondole levando gli uomeni di su gli
arbori et menargli al piano; et li Scaccieri co’ una gondula grandissima andavano per lo Valdiserchio et
ricoveravano li homini su per li albori et portavanoli alli poggi, et a chi davano pane e vino”. RANIERI
SARDO. Cronica di Pisa, p. 86 e 87. É preciso recordar que, embora a crônica se refira ao ano de 1336, a cheia
na verdade ocorreu em 1335, conforme apenas comentado; a contagem do tempo tanto na República pisana
como em Florença, cujo ano novo era celebrado em 25 de março – celebração da Encarnação de Cristo –, as
colocava um ano à frente das cidades italianas que seguiam Il corso della chiesa, “o curso da igreja”, conforme
explica Villani. Op. cit., p. 563. A enchente afetou também outras áreas banhadas pelo Arno: Villani relata que
ela “(…) sommerse molto del piano di Casentino, e poi tutto Il piano d’Arezzo, del Valdarno di sopra, per modo
che tutto il coperse e corse d’acqua (…). E seguendo il detto diluvio apresso la città verso ponente, tutto il piano
di Legnaia, e d’Ertignano, e di Settimo, d’Ormannoro, Campi, Brozzi, Sammoro, Peretola, e Micciole infino a
Signa, e del contado di Prato, coperse l’Arno (…). Per simile modo e maggiormente coperse l’Arno e guastò il
Valdarno di sotto, e Pontormo e Empoli e Santa Croce e Castelfranco, e gran parte de le mura di quelle terre
rovinaro, e tutto il piano di San Miniato e di Fucecchio e Montetopoli e di Marti al Ponte ad Era” [“(…)
submergiu muito da planície de Casentino, e depois toda a planície de Arezzo, de Valdarno de cima, de modo
que tudo cobriu e escorreu de água (…). E seguindo o dito dilúvio pela cidade em direção ao poente, toda a
planície de Legnaia, e de Ertignano, e de Settimo, de Ormannoro, Campi, Brozzi, Sammoro, Peretola, e Micciole
até Signa, e do condado de Prato, cobriu o Arno (…). De modo semelhante e mais intensamente cobriu o Arno e
arruinou Valdarno di sotto, e Pontormo e Empoli e Santa Croce e Castelfranco, e grande parte dos muros
daquelas terras se arruinaram, e toda a planície de San Miniato e de Fucecchio e Montetopoli e de Marti al Ponte
ad Era”]. Idem, p. 04, 08 e 09.
483
“(…) piacque a Dio, come disse per la bocca di Cristo nel suo Evangelio: ‘Vigilate, che.nnon sapete il dìe né
l’ora del iudicio Dio’, il quale volle mandare sopra la nostra città; onde quello dì de la Tusanti cominciòe a
piovere diversamente in Firenze ed intorno al paese e ne l’alpi e montagne, e così seguì al continuo IIII dì e IIII
notti, crescendo la piova isformatamente e oltre a modo usato, che pareano aperte le cataratte del cielo, e con la
detta pioggia continuando grandi e spessi e spaventevoli tuoni e baleni, e caggendo folgori assai; onde tutta
gente vivea in grande paura, sonando al continuo per la città tutte le campane delle chiese, infino che non alzòe
l’acqua; e in ciascuna casa bacini o paiuoli, con grandi strida gridandosi a Dio: ‘Misericordia, misericordia!’
per le genti che erano in pericolo (…)” [“(…) agradou a Deus, como disse pela boca de Cristo em seu
Evangelho: ‘Vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora do juízo de Deus’, o qual quis mandar sobre nossa
cidade; então naquele dia de Todos os Santos começou a chover diversamente em Florença e ao redor da região e
nos Alpes e montanhas, e assim seguiu de contínuo por quatro dias e quatro noites, crescendo a chuva sem
controle e além do modo normal, que pareciam abertas as cataratas do céu, e com a dita chuva continuando
grandes e freqüentes e assustadores trovões e raios, e caindo muitos raios; onde toda a gente vivia com grande
medo, soando continuamente pela cidade todos os sinos das igrejas, até que não subiu a água; e em cada casa
bacias ou panelas, com grande alarme gritando para Deus: ‘Misericórdia, misericórdia!’ para as pessoas que
estavam em perigo (…)”]. Nuova cronica, volume III, p. 03 e 04. A descrição do evento segue por mais vinte
páginas da edição da Crônica usada por esta pesquisa, não considerando as outras dezesseis páginas que tratam
das interpretações dadas à enchente pelos florentinos. Nenhum outro evento descrito por Villani mereceu
tamanho destaque, recordando que o cronista não escreveu sobre a peste de 1348, uma vez que ele próprio foi
vítima do surto.
484
“(…) uno mese innanzi la festa di san Giovanni (…)”. Nuova cronica, volume II, p. 784.
485
“(…) La detta allegrezza poco tempo appresso tornò in pianto e dolore, spezialmente in quelle contrade, per
cagione del diluvio che venne in Firenze, e più gravò là che in altra parte della città, come innanzi faremo
menzione; e parve segno per contrario della futura aversità, sì come le più volte aviene delle false e fallaci
felicità temporali, che dopo la soperchia allegrezza segue soperchio amarore”. Idem, p. 785.

CLXII
Após a longa descrição da enchente e de suas conseqüências para as cidades toscanas, particularmente Florença, Villani
inicia um novo tópico com uma indagação: se o “dilúvio veio por juízo de Deus ou por causa natural”486, afirmando que ele causou

(…) grande admiração e temor em toda gente, duvidando [que] não fosse juízo de
Deus por nossos pecados (…); por isso a maior parte do povo de Florença recorreu à
penitência e à comunhão, e foi bem feito para aplacar a ira de Deus (…). E portanto
que desta indagação se traga para os leitores, digamos que Deus tem senhoria de
mandar e submeter seus juízos ao mundo, e segundo o curso da natureza, e quando
deseja sobre a natureza, e ainda contra a natureza, enquanto onipotente senhor do
universo; e o faz por dois fins, ou por graciosa misericórdia, ou por execução de
justiça.487

O autor complementa:

E porém retornando ao propósito de nossa questão e sentença, e recolhendo os


supracitados exemplos verdadeiros e claros, todas as pestilências e batalhas, ruínas e
dilúvios, incêndios e perseguições, naufrágios e exílios ocorrem no mundo por
permissão da divina justiça para limpar os pecados, e por vezes pelo curso da
natureza, e por vezes sobre a natureza, conforme deseja e dispõe a divina potência. E
note ainda, leitor, que, na noite em que começou o dito dilúvio, um santo eremita que
estava em seu solitário eremitério acima da abadia de Valombrosa estando em
oração sentiu e visivelmente ouviu um barulho demoníaco parecendo de fileira de
cavaleiros armados, que cavalgassem com furor. E sentindo o dito barulho fez o sinal
da cruz, e foi ao portão, e viu a multidão dos ditos cavaleiros terríveis e negros; e
suplicando a alguém em nome de Deus que lhe dissesse o que aquilo significava, e
lhe disse: “Nós vamos submergir a cidade de Florença pelos seus pecados, se Deus o
conceder” (…). E porém não acreditem os florentinos que a presente pestilência, de
que é feita questão, lhes tenha ocorrido por outro [motivo] que o juízo de Deus (…)
para punir os nossos pecados, que são exagerados e desagradáveis a Deus.488

Percebe-se que, assim como ocorreria alguns anos depois com relação à Peste Negra – conforme discutido no primeiro
capítulo –, também a enchente não somente foi interpretada como um castigo divino e um prenúncio do fim dos tempos, como gerou
também reações características na população: o arrependimento pelos pecados, a penitência e a busca da misericórdia e do perdão
divinos. E, assim como cronistas que descreveram a epidemia de 1348 a relacionaram a outras catástrofes descritas na Bíblia

486
“D’una grande questione fatta in Firenze, se ‘l detto diluvio venne per iudicio di Dio o per corso naturale”.
Idem, p. 12.
487
“(…) grande ammirazione e tremore per tutte genti, dubitando non fosse iudicio di Dio per le nostre peccata
(…); per la qual cosa le piì delle genti di Firenze ricorsono a la penitenzia e comunicazione, e fu bene fatto per
apaciare l’ira di Dio (…). Ed acciò che di questa questione utile si tragga per li lettori, diciamo che Idio ha
signoria di mandare e premettere i suoi iudicii al mondo, e secondo corso di natura, e quando a.llui piace sopra
natura, e ancora contra natura, sì come omnipotente segnore de l’universo; e fallo a due fini, o per graziosa
misericordia, o per aseguizione di iustizia”. Idem, p. 12 e 17.
488
“E però tornando al proposito della nostra questione e a sentenzia, e racogliendo i sopradetti esempli veri e
chiari, tutte le pestilenzie e battaglie, rovine e diluvii, arsioni e persecuzioni, naufragii e esilii avengono al
mondo per permissione de la divina giustizia per pulire i peccati, e quando per corso di natura, e quando sopra
natura, come piace e dispone la divina potenzia. E nota ancora, lettore, che la notte che cominciò il detto
diluvio, uno santo eremita ch’era nel suo solitario romitoro di sopra a la badia di Valombrosa stando in
orazione sentì e visibilmente udì un fracasso di demonia di sembianza di schiere di cavalieri armati, che
cavalcassero a furore. E ciò sentendo il detto romito fecesi il segno della croce, e si fece al suo sportello, e vide
la moltitudine de’ detti cavalieri terribili e neri; e scongiurando alcuno da la parte di Dio che.lli dicesse che ciò
significava, e li disse: ‘Noi andiamo a somergere la città di Firenze per li loro peccati, se Idio il concederà’ (…).
E però non credano i Fiorentini che la presente pestilenzia, ond’è fatta questione, sia loro avenuto altro che per
giudicio di Dio (…) per punire i nostri peccati, i quali sono soperchi e dispiacevoli a Dio (…)”. Idem, p. 22 e
23. Villani cita alguns desses pecados: “fare frodolenti mercatantie e usure”; “vanagloria delle donne e
disordinate spese e ornamenti”; “golosità nostra di mangiare e bere disordinato”; “disordinate lussurie delli
uomini e delle donne”; “ingratitudine di non conoscere da Dio i nostri grandi beneficii e il nostro potente stato”
[“fazer comércio fraudulento e usura”; “vanglória das mulheres e despesas e ornamentos desordenados”; “nossa
gulodice de comer e beber de forma desordenada”; “desordenadas luxúrias de homens e mulheres”; “ingratidão
por não reconhecer (que veio) de Deus os nossos grandes benefícios e nosso poderoso estado”. Idem, p. 23.

CLXIII
conseqüentes de castigo divino, Villani igualmente fez a analogia entre a enchente de 1335 e vários eventos bíblicos489.
Por esses motivos, seria plausível especular que esse evento específico de 1335 pudesse ter suscitado o desejo de
reinterpretar o tema escatológico por excelência, o Juízo final, de modo mais amplo, específico e detalhado, ampliando, como visto, a
importância de Paraíso e Inferno? Como indicação positiva a essa indagação, valeria destacar aqui que duas das cidades mais afetadas
pela cheia do Arno – Florença e Pisa – foram exatamente as duas localidades em que surge a nova representação iconográfica do tema
do Juízo final.
Baschet, entretanto, ao discutir a relação entre arte e Peste Negra, discorda de tal possibilidade. Segundo o autor,

O desenvolvimento da iconografia do inferno não deve ser interpretado como o sinal


de uma acentuação do medo da danação. Porque a imagem do inferno não está
jamais isolada e o medo do inferno não é um fim em si.490

Para ele, esse medo da danação entraria em choque com um dos efeitos básicos esperados

para uma imagem do Inferno, o de “incitar o espectador a agir de forma cristã”491.

Certamente, este pode ser considerado o papel primordial desse tipo de representação. Não se

poderia considerar, porém, que faria sentido essa figuração se desenvolver em um momento

de crise, em que a preocupação com a condenação se intensificasse, visto que a enchente fora

interpretada à época como um castigo divino pelos pecados do povo? É possível, portanto,

que a interpretação escatológica dos eventos ocorridos nos primeiros anos do Trecento, e

particularmente da enchente de 1335, possa ter suscitado o desenvolvimento de uma nova

estrutura compositiva do tema do Juízo final.

Novos tipos iconográficos, entretanto, não teriam sido criados somente a partir de

um desastre natural, ou melhor, dos sentimentos religiosos despertados por essa calamidade.

Não se deseja aqui debater as possibilidades criativas do artista – ou mesmo do comitente da

obra –, nem mesmo a primazia da literatura sobre as artes plásticas, debate que se intensificou

precisamente nesse período. O que se deve considerar é que as obras que estão sendo

discutidas neste trabalho foram realizadas em locais de culto, públicos, submetidos, portanto,

ao controle mais rígido de uma hierarquia religiosa – como ademais já afirmara Luzzati com

489
Para a descrição que Villani faz desses eventos, ver Idem, p. 17 a 21. O autor também faz menção a outros
acontecimentos históricos: “delle quali pestilenzie assai chiaramente a’ buoni intenditori si possono
comprendere per questa cronica, e per altri libri che di ciò fanno menzione, le quali tutte sono state e sono per
lo giudicio di Dio per pulire li peccati” [“cujas pestilências tão claramente os bons entendedores podem
compreender por esta crônica, e por outros livros que a elas fazem menção, que todas ocorreram e ocorrem pelo
juízo de Deus para limpar os pecados”]. Idem, p. 22.
490
Image et événement: l’art sans la peste (c. 1348- c. 1400)?”. In: Op. cit., p. 32.
491
Ibidem.

CLXIV
relação aos afrescos pisanos492. Parece plausível que, ao admitir a introdução de novos

elementos a um tema de tamanha importância para a cultura cristã, a Igreja permitisse

elementos iconográficos já aproveitados de algum modo em uma tradição religiosa, como

ocorre, por exemplo, nas visões do Além ou nos sermões dos mendicantes; ainda que esses

motivos fossem de origem leiga – especialmente no que se refere aos elementos iconográficos

novos que irão compor as representações infernais a partir de meados do Trecento –, eles já

estariam, porém, incorporados de certa forma à religião oficial493.

Na primeira metade do século XIV – mais especificamente no período entre a execução do afresco de

Giotto na Capela Scrovegni, entre 1305 e 1307, e o ciclo giottesco no Palazzo del Bargello, concebido entre

1335 e 1337, ou seja, no tempo em que ocorreram as modificações no tema do Juízo final –, há um fato crucial

que deve necessariamente ser considerado nesta análise: a redação da Commedia dantesca. Conciliando de certo

modo as visões eclesiástica e laica do Além, o poema de Dante Alighieri pode, portanto, ter sido a principal

fonte para o desenvolvimento desses novos elementos iconográficos nas representações visuais do Juízo final.

Afinal, não se pode esquecer que, conforme define Battaglia Ricci, “a Commedia foi um evento cultural em grau

de modificar profundamente o imaginário coletivo”494.

Iniciada por volta de 1306 ou 1307, a Commedia só foi concluída por Dante pouco antes de sua

morte, em 1321495. No texto, o poeta florentino apresenta uma visão ampla das três localidades do Além cristão –

Inferno, Purgatório e Paraíso – sintetizando a doutrina da Igreja e crenças de cunho mais popular. Um exemplo

dessa mescla de percepções pode ser visto na subdivisão do último círculo do Inferno, onde são punidos os

traidores em quatro diferentes localidades: em Caina, os traidores de seus pais, em Antenora, aqueles que traem

seu partido ou sua cidade, em Tolomea, os traidores de seus convidados e hóspedes e, por fim, em Giudecca, os

que traem seus senhores e benfeitores. De acordo com Lino Pertile, na região de Tolomea Dante incluiu outra

categoria de pecadores que não era aceita pela teologia, bastante conhecida, porém, no âmbito da cultura

popular: os traidores cujas almas, por conta do pecado cometido, são mandadas para o Inferno, enquanto seus

492
“Simone Saltarelli arcivescovo di Pisa (1323-1342) e gli affreschi del Maestro del Trionfo della morte”. In:
Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa. Série III, volume XVIII, n.º 4. Pisa, 1988, p. 1646. Sobre isso,
ver a introdução desta tese, p. 57.
493
Esses elementos iconográficos serão tratados no quarto capítulo desta tese, uma vez que eles serão
fundamentais na discussão acerca das funções possíveis das imagens com o tema do Juízo final.
494
“Il ‘Trionfo della Morte’ del Camposanto pisano e i letterati”. In: Storia ed arte nella piazza del Duomo.
Conferenze 1992-1993. Quaderno n.º 4. Pisa: Vigo Cursi, 1995, p. 202.

CLXV
corpos continuam vivendo até o término normal de suas vidas, habitados e comandados por demônios496.

Dante fornece uma descrição do Além quase visual, tão rica em detalhes é: não é difícil, por meio da

leitura do poema, criar imagens mentais das cenas por ele concebidas. Esse talvez seja um dos grandes méritos

de Dante. Isto é claro especialmente no modo como estrutura e redige o cântico do Inferno; como explica

Baschet, “pela primeira vez o inferno está submetido a uma visibilidade completa e a um ordenamento

estético”497. O Inferno, após Dante, não seria mais “o caos indizível, este ribombar do impensável”498, como

ocorria nas anteriores descrições do Além. Desse modo, a Commedia não somente parece ter atingido o ponto

máximo de desenvolvimento dessas descrições, como também pode ter fornecido os elementos necessários para

a ampliação iconográfica não somente do Inferno, mas também, de certa maneira, do Paraíso, ainda que o aporte

não tenha sido o mesmo 499.

Por ter sido escrita na linguagem vernácula – “naquela língua que as crianças aprendem a usar de

quem os circunda quando começam a articular os sons”, como escreve Alighieri no De vulgari eloquentia500 –, e

não no erudito latim dos textos oficiais, a Commedia conheceu uma rápida difusão501; sua fortuna ainda no

século XIV foi imensa, tornando-se extremamente popular poucos anos após sua redação. De acordo com

Giorgio Petrocchi, os cantos foram sendo divulgados individualmente, após Dante os ter concluído. Sendo assim,

495
De acordo com Giorgio Petrocchi, o Inferno poderia ter sido redigido entre 1304 e 1306, porém mais
provavelmente entre 1306 e 1309; o Purgatorio teria sido iniciado em 1308; o Paradiso, por fim, já estaria sendo
escrito em 1316. Vita di Dante, 4ª edição. Roma e Bari: Laterza, 2004, p. 102, 147 e 190.
496
“Introduction to Inferno”. In: JACOFF, R. (org.). The Cambridge companion to Dante, segunda edição.
Cambridge: Cambridge Univeristy, 2007, p. 90, nota 03. O trecho mencionado pelo autor é o seguinte: “Cotal
vantaggio ha questa Tolomea,/ che spesse volte l’anima ci cade/ innanzi ch’Atropòs mossa le dea./ E perché tu
più volontier mi rade/ le ‘nvetriate lacrime dal volto,/ sappie che tosto che l’anima trade/ come fec’io, il corpo
suo l’è tolto/ da un demonio, che poscia il governa/ mentre che ‘l tempo suo tutto sia volto./ Ella ruina in sì fatta
cisterna;/ e forse pare ancor lo corpo suso/ dell’ombra che di qua dietro mi verna” [“É Ptoloméia que este dom
bafeja:/ muitas vezes de uma alma se aquinhoa/ antes que solta por Átropos seja./ E pra que tu do rosto meu, com
boa/ vontade, soltes meu pranto vidrado,/ dir-te-ei que, logo que uma alma atraiçoa,/ como eu fiz, o seu corpo lhe
é levado/ por um demônio que após o governa/ até o seu tempo todo consumado./ E ela cai nesta espécie de
cisterna;/ e talvez esteja inda no mundo belo/ o corpo deste que aqui agora inverna”]. Inf. XXXIII, 124-135.
497
Les justices de l’au-delà, p. 479.
498
Ibidem.
499
Sobre esse ponto, ver o quarto capítulo desta tese.
500
“(…) quam infantes adsuefiunt ab adsistentibus, cum primitus distinguere voces incipiunt”. De vulgari
eloquentia, I, I, 1. In: Dante online. Disponível em:
<http://www.danteonline.it/italiano/opere.asp?idope=3&idlang=OR>. Acesso em 25.04.2007.
501
Enquanto no Convivio Dante escreveu em italiano para defender a precedência do latim frente às línguas
vernáculas, no De vulgari eloquentia ele faz o oposto: escrevendo em latim, o autor, desde o início, insiste na
“maior nobreza do vernáculo, que todos, incluindo mulheres e crianças, aprendem de sua ama de leite”. Cf.
ASCOLI, A.R. “Dante before the Commedia”. In: JACOFF, R. (org.). Op. cit., p. 58. Assim escreve o poeta:
“Harum quoque duarum nobilior est vulgaris: tum quia prima fuit humano generi usitata; tum quia totus orbis
ipsa perfruitur, licet in diversas prolationes et vocabula sit divisa; tum quia naturalis est nobis, cum illa potius
artificialis existat. Et de hac nobiliori nostra est intentio pertractare” [“Dessas duas línguas a mais nobre é a
vulgar: inicialmente porque foi utilizada primeiro pelo gênero humano; depois porque o mundo inteiro se
beneficia dela, ainda que seja diferenciada em vocábulos e pronúncias diversas; enfim pelo fato de que nos é
natural, enquanto a outra é, pelo contrário, artificial”]. De vulgari eloquentia, I, I, 4. Disponível em: Loc. cit.

CLXVI
o Inferno teria sido provavelmente publicado na segunda metade de 1314, e o Purgatorio no outono de 1315502.

O canto do Paradiso certamente foi tornado público pouco depois da morte do poeta, ocorrida em 14 de

setembro de 1321503. A popularidade do poema pode ser atestada pelo grande número de cópias que

sobreviveram: segundo a Società Dantesca Italiana, são quase 800 manuscritos conhecidos da Commedia que

chegaram até os dias atuais. Em número de cópias, o texto dantesco perderia somente para a Bíblia504. Como

escreve Petrocchi,

Talvez a Commedia tenha sido um livro para poucos somente durante a vida do
poeta e nos primeiros anos sucessivos à [sua] morte, mas logo se torna por
excelência o “livro” do século.505

A sua difusão e fortuna também podem ser apreendidas pelos comentários sobre o poema que começaram a

surgir praticamente ao mesmo tempo em que o texto era divulgado: já por volta de 1322, com efeito, Jacopo,

filho de Dante, escreveu um comentário ao Inferno506.

Toda essa notoriedade pode ser explicada não apenas pelo uso do vernáculo; ao longo do texto, o

poeta incluiu “as histórias de homens e mulheres concretos, na maior parte florentinos e toscanos (…) e

conhecidos ao menos pelo nome por seus leitores”507, conferindo ao texto um caráter de atualidade que

despertaria maior empatia e interesse da parte de quem o lesse. E, ao estruturar o poema dessa forma, princípios

éticos e teológicos, cuja compreensão escaparia da maior parte dos leigos, foram explicados a partir do

conhecimento que os leitores possuíam da vida dessas personagens reais, e do fim que lhes é destinado após a

morte, uma vez que seus atos e os efeitos deles decorrentes “são menos abstratos do que casos hipotéticos” 508;

noções como causa e conseqüência poderiam desse modo se tornar claras pela leitura do poema dantesco. Deve-

se considerar, enfim, também o fato de que a Commedia se insere em uma longa tradição de descrição de viagens

ao Além, muito populares no período. O tema, portanto, assim como a estrutura narrativa do texto, eram já

familiares aos leitores do Trecento toscano. Dante certamente conhecia a maior parte dessas descrições do Além,

assim como outras histórias transmitidas somente de forma oral509. Como escreve Pertile,

Sua Comédia é o ponto de chegada dessa tradição milenar; é também um ponto de


partida tão total e definitivo que, ao absorver e superar tudo aquilo que o precedeu,

502
Cf. Op. cit., p. 190.
503
Cf. Idem, p. 224.
504
Cf. “Indice dei manoscritti”. In: Dante online. Disponível em:
<http://www.danteonline.it/italiano/codici_indice.htm>. Acesso em 25.04.2007.
505
Op. cit., p. 206. O exemplar mais antigo do poema conhecido atualmente é uma cópia realizada entre outubro
de 1330 e janeiro de 1331. Cf. Idem, p. 224.
506
Cf. Ibidem.
507
PERTILE, L. “Introduction to Inferno”. In: JACOFF, R. (org.). Op. cit., p. 75.
508
WILLIAMS, A.N. “The theology of the Comedy”. In: Idem, p. 205.
509
Cf. PERTILE, L. “Introduction to Inferno”. In: Idem, p. 69.

CLXVII
tornou impossível qualquer futura conseqüência.510

Não parece coincidência o fato de que as mudanças nos modos de representação visual do Juízo final

tenham ocorrido poucos anos após a divulgação da Commedia dantesca, especialmente quando se considera que

essas mudanças ocorreram, sobretudo, com a maior ênfase dada ao Paraíso e ao Inferno, as duas localidades do

Além exaustivamente descritas pelo texto. Do mesmo modo, não parece ser obra do acaso que tais mudanças

tenham surgido primeiramente em um afresco de Giotto. Serão esses pontos a serem desenvolvidos em seguida.

5. Dante e Giotto

P
ara discutir as mudanças ocorridas nos modos de representação do tema do Juízo final na década de 1330, de

acordo com a perspectiva proposta pela presente pesquisa, deve-se necessariamente considerar a amizade que

provavelmente unia Dante ao pintor florentino511; é admissível supor, desse modo, que Giotto não apenas tenha

tido um acesso mais direto ao texto de seu conterrâneo logo após sua redação, como tenha decidido citar

visualmente em Florença seu amigo exilado e já falecido, em uma espécie de homenagem póstuma,

representando, ainda que de modo limitado, alguns elementos do Inferno da Commedia512; a homenagem

também teria ocorrido pela inserção do retrato do próprio Dante entre os eleitos, no afresco do Paraíso, conforme

supunha Vasari. E, a partir dos afrescos florentinos de Giotto e dos pisanos de Buffalmacco, essa influência se

propagou entre outros artistas que atuaram na Toscana. Afinal, é preciso ter em conta que a influência do poema

dantesco sobre as pinturas em que fossem figurados o Inferno e o Paraíso já era considerada ao menos desde o

século XVI, como fica claro pelas descrições que do Inferno de Taddeo di Bartolo em San Gimignano fizeram

Vincenzo Borghini e Vasari513. É essa a idéia que fundamentará e norteará a hipótese discutida por esta tese.

É preciso neste ponto considerar outro aspecto da questão, que se liga diretamente a

Dante, a Giotto e ao tema discutido por esta pesquisa: desde antes da redação da Commedia, é

possível perceber um maior destaque do Inferno, principalmente, nas representações visuais

510
Ibidem.
511
Sobre isso escreve, por exemplo, Vasari: “Similmente l’anno innanzi com suo molto dispiacere morto Dante
suo amicissimo, andò a Lucca (…)” [“Da mesma forma no ano de 1322, tendo no ano anterior morrido seu
amicíssimo Dante, dirigiu-se (Giotto) a Lucca (…)”]. Op. cit., p. 155. E, ao se referir ao retrato do poeta que
Giotto teria realizado no Bargello, escreve uma vez mais Vasari que Dante era “coetaneo et amico suo
grandissimo” [“contemporâneo e seu amigo grandíssimo”]. Idem, p. 150. Apesar das não poucas incorreções no
texto vasariano, e a tendência que Vasari tinha de romancear algumas passagens da vida dos artistas biografados,
atualmente a maior parte dos estudiosos tem como certo, se não uma profunda amizade, ao menos um contato
mais próximo entre Dante e Giotto.
512
Ver a seguir.
513
Os trechos estão citados na introdução a esta pesquisa, p. 39.

CLXVIII
do Juízo final, conforme discutido anteriormente. De que modo se dava essa ênfase? A partir

de meados do século XIII passou-se não apenas a detalhar cada vez mais os castigos infernais,

como também a representar efetivamente o cenário do Inferno, destacando-o como locus do

Além cristão. De fato, em muitas imagens do tema anteriores ao Duecento, a área infernal era

apenas prenunciada por sua entrada – seja um caldeirão, uma caverna ou mesmo a boca de

Leviatã514. Nos casos em que o Inferno era realmente representado, pouco se mostrava dos

castigos515.

Na Toscana, a primeira obra em que possivelmente há o maior detalhamento da região infernal é o

mosaico atribuído a Coppo di Marcovaldo e a seu ateliê no teto do Batistério de San Giovanni, em Florença,

realizado no último quartel do século XIII (slides 28)516. No mosaico, o Inferno possui um destaque maior do que

o usual até então; a sua representação é caótica, contrastando singularmente com a estrutura harmoniosa dos

registros que indicam o Paraíso e a Corte celeste517; nesse contexto, não somente o registro infernal atrai de

modo mais intenso o olhar do espectador, como também a ênfase recai, sem dúvida, sobre a figura do Diabo, que

surge sobre o fundo de ouro do mosaico518. Ele é um monstro horrendo com barba, chifre e grandes orelhas, de

cada uma das quais sai uma serpente, que abocanha por sua vez um condenado. O próprio Diabo engole um

deles, de quem se vê somente a metade inferior do corpo. Castigos diversos são mostrados; no canto surge, pela

segunda vez nos exemplos discutidos por esta pesquisa, a figura de Judas que se enforca; ele é claramente

discernível pela inscrição a seu lado, Giuda519. Outra indicação precisa para a figura é o fato de que um demônio

próximo a ela, que puxa outro condenado – possivelmente para que também seja enforcado –, traz junto de si

uma bolsa, símbolo dos avaros e dos usurários, e do próprio Judas, que se vendeu por trinta moedas520.

514
Jó 40, 4-12.
515
Nesse sentido, deve-se destacar que, na tradição iconográfica do tema do Juízo final, a grande exceção é a
representação infernal no grandioso tímpano da Igreja abacial de Sainte-Foy, em Conques (slides 182 a 184), em
que se destaca não apenas a figura do Diabo, mas a representação minuciosa dos pecados capitais. Ainda que não
seja um exemplo realizado na Península Itálica – fugindo, portanto, da delimitação geográfica desta pesquisa –,
merece ser mencionado devido à excepcionalidade de sua composição. Sobre os motivos para a maior ênfase na
representação do Inferno, ver a discussão sobre as funções de imagens com o tema do Juízo final no quarto
capítulo desta tese.
516
No painel de Guido da Siena, praticamente contemporâneo ao mosaico florentino, vêem-se vários monstros e
serpentes que agarram alguns condenados, mas não há uma representação clara de castigos.
517
Baschet menciona especialmente o “alinhamento regular dos apóstolos”, que realçaria “a indistinção
infernal”. Les justices de l’au-delà, p. 223, nota 227.
518
Embora Baschet considere essa solução insatisfatória. Cf. Ibidem.
519
Judas enforcado está presente também no afresco de Sant’Angelo in Formis. Igualmente identificado por uma
inscrição, ele está nos braços do Diabo.
520
Segundo Anne Derbes e Mark Sandona, a associação entre Judas e a usura é feita em textos do século XIV.
Por exemplo, em um tratado sobre a usura, de Remigio de’ Girolami (morto em 1319), redigido em uma data

CLXIX
Não se pode subestimar a importância não somente desse mosaico com o tema do Juízo final, mas de

toda a decoração da cúpula do Batistério, para o desenvolvimento artístico de Florença. É preciso considerar, de

início, que esse edifício florentino foi, desde sua fundação, “o coração da vida eclesiástica da cidade”521, o que

lhe conferia uma importância imensa nos contextos político e religioso de Florença; por conseqüência, também a

sua decoração teria grande destaque no conjunto artístico da cidade. E, como destaca Ernest Hatch Wilkins, ao

contrário do que ocorre hoje, em que esses trabalhos são considerados por muitos como uma obra menor dentro

da riqueza artística de Florença, esses mosaicos “eram na infância e juventude de Dante os mais notáveis

trabalhos da arte moderna de Florença”522. A menção a Dante é justificada, uma vez que atualmente boa parte

dos pesquisadores concorda que o mosaico do Juízo final possa ter influenciado a redação da Commedia523. Este

ponto, entretanto, será retomado em seguida.

No início do século XIV, no afresco da Capela Scrovegni, em Pádua, é a vez de Giotto enfatizar a

região do Inferno, ainda que ela esteja colocada na metade inferior esquerda da composição. Embora, a

princípio, possa-se imaginar que essa localização pudesse indicar uma menor importância do registro infernal no

contexto da representação do Juízo final, ela cumpre um aspecto fundamental: de fato, esse local é o mais

próximo do olhar do espectador; ele seria, portanto, o mais adequado para a representação do Inferno dentro de

um contexto moralizante e didático em que se inseririam as possíveis funções das imagens com o tema do Juízo

final524.

A influência do mosaico florentino é evidente na representação do Diabo giottesco: este não apenas

possui o mesmo tipo de barba e chifres, como de suas orelhas saem igualmente serpentes que agarram alguns dos

condenados525. O demônio, do mesmo modo, devora um. Assim como o Diabo do batistério, também o giottesco

próxima à construção e decoração da Capela Scrovegni. Cf. “Barren metal and the fruitful womb: the program of
Giotto’s Arena Chapel in Padua”. In: The Art Bulletin, volume LXXX, n.º 01, junho de 1998, p. 274.
521
CROCIANI, L. “The iconography of the Baptistery”. In: LORENZI, L. Devils in art. Florence, from the
Middle Ages to the Renaissance (trad. M. Roberts). Florença: Centro Di, 1997, p. 13.
522
“Dante and the mosaics of his Bel San Giovanni”. In: Speculum, volume II, n.º 01, janeiro de 1927, p. 02. O
autor comenta que as únicas obras realizadas em Florença que poderiam efetivamente rivalizar com a decoração
do Batistério foram feitas somente no fim do século XIII: o mosaico da abside da Igreja de San Miniato al Monte
e o mosaico com a coroação da Virgem, atualmente na catedral da cidade. “Não há registro de qualquer
seqüência de afresco florentino anterior a 1300; e mesmo retábulos eram poucos”, complementa. Ibidem.
523
Sobre isso, ver o artigo de Wilkins supracitado.
524
Ver o quarto capítulo desta tese.
525
Também o Diabo do painel de Guido da Siena, já mencionado, possui serpentes que saem de suas orelhas, o
que reforça sua importância como um modelo possível para o desenvolvimento da iconografia do tema. Neste
ponto, não há definição quanto à cronologia, não se sabendo se o painel de Grosseto é anterior ao mosaico
florentino, ou vice-versa. Ainda que o mosaico de Coppo di Marcovaldo seja pouco posterior ao de Guido da
Siena – o que poderia conferir a este a primazia na inclusão do tipo iconográfico das serpentes que saem das
orelhas do Diabo, é mais provável, porém, que Giotto tenha tomado conhecimento dele através da obra do
Batistério de San Giovanni, que, de resto, apresenta essas serpentes agarrando dois condenados, o que não ocorre
no painel de Guido da Siena.

CLXX
está sentado sobre dois monstros (serpentes no mosaico, dragões no afresco526), que se projetam de cada lado da

figura demoníaca, e devoram dois pecadores. Por fim, também o movimento dos braços de ambas as figuras se

assemelham, e suas mãos agarram, cada uma, um pecador.

No afresco paduano de Giotto, Corrado Gizzi identifica um dos pecadores como Judas, embora não

haja qualquer tarjeta ou inscrição, nem a bolsa de dinheiro527. Talvez o autor tenha somente associado o Judas

enforcado do mosaico florentino a essa figura giottesca, também enforcada, mas que possui, ademais, o ventre

aberto, do qual saem suas entranhas. Entretanto, é possível que Gizzi tenha se baseado em Anne Derbes e Mark

Sandona, que também interpretaram o enforcado com os intestinos expostos de Giotto como Judas528. Esses

autores, porém, respaldam sua hipótese a partir de fontes escriturais e teológicas, o que torna não somente a

identificação dessa figura como Judas, mas também a ascendência do mosaico florentino sobre o afresco

giottesco, nesse ponto específico, hipóteses mais plausíveis529.

Também nesse afresco da Capela Scrovegni há o maior detalhamento dos castigos, podendo-se

associar alguns deles às punições dos pecados capitais, como ocorre na representação dos condenados que, com

as mãos atadas atrás do corpo, têm um cano enfiado à boca por um demônio, a partir do qual, possivelmente,

comida lhe será contínua e eternamente fornecida – a punição pelo pecado da gula –, e notadamente no caso do

pecador que tem seu pênis pinçado por um alicate manuseado por um demônio, ou ainda nos condenados

pendurados pelos genitais, evidentes alusões à luxúria.

Retomando-se momentaneamente a discussão da primazia da literatura sobre a arte, ou vice-versa –

que não será desenvolvida por esta tese por fugir ao escopo principal da pesquisa –, percebe-se como nessa

questão específica parece ter ocorrido o caminho inverso ao tradicionalmente aceito; com efeito, é hoje um

consenso historiográfico o fato de que o Juízo final do Batistério de San Giovanni afetou de algum modo a

produção literária de Dante. Conforme comentado anteriormente, a maior parte dos historiadores assente com a

tese de que o mosaico florentino possa ter sido a principal fonte de influência sobre Dante ao pensar seu Inferno,

526
Ressalte-se que o Diabo do painel de Guido da Siena está sentado sobre um único dragão.
527
Cf. “Giotto e Dante”. In: _____ (org.). Giotto e Dante. Milão: Skira, 2001, p. 58.
528
Cf. “Barren metal and the fruitful womb: the program of Giotto’s Arena Chapel in Padua”. In: Op. cit., p. 280
e 281.
529
Nos Atos dos Apóstolos, com efeito, pode-se ler que “ele [Judas], era contado entre os nossos e recebera sua
parte nesse ministério. Ora, este homem adquiriu um terreno com o salário da iniqüidade e, caindo de cabeça
para baixo, arrebentou pelo meio, derramando-se todas as suas entranhas”. At 1, 17-18. Arator, no século VI,
também descreveu o mesmo: “viscera rupta cadunt, tenuesque elapsus in auras/ Fugit ab orbe cinis” [“suas
vísceras rompidas caíram, para ser sepultado em túmulo algum, e suas cinzas fugiram pelo mundo”]. Apud
Idem, p. 281. Referências à exposição das vísceras de Judas também podem ser encontradas em textos do século
XIII, como do Pseudo-Bernardo. Para uma citação desse autor, e referência a outros textos com a mesma
indicação, assim como a conexão dessa representação específica de Judas no afresco do Juízo final com relação à
interpretação geral do ciclo giottesco de Pádua, ver o artigo apenas citado.

CLXXI
e particularmente o Diabo, descritos em sua Commedia. Talvez o mosaico possa ter mesmo inspirado o poeta

florentino a redigir sua mais famosa obra. A ascendência do Juízo final do Batistério de Florença sobre Dante é

evidente especialmente na descrição do Diabo530, mas também em outros particulares: Wilkins menciona um

demônio que, na entrada do Inferno de Coppo di Marcovaldo, logo acima do grupo de condenados que para lá se

dirige, carrega sobre um ombro um pecador, uma imagem que seria bastante próxima a um trecho do Inferno:

“levando um pecador ainda o figuro/ sobre seu ombro agudo carregado,/ que por ambos os pés tinha seguro”531.

A diferença entre imagem e descrição poética está no fato de que, no mosaico, o demônio está agarrando o braço

do condenado532. Sem dúvida, é preciso ter em conta também a possibilidade de outras fontes visuais, atualmente

perdidas, que possam ter exercido alguma influência sobre Dante, assim como a possibilidade de uma “invenção

baseada puramente em fontes literárias ou no pensamento somente”533 – as imagens mentais discutidas por Jean-

Claude Schmitt. Com relação às fontes literárias, escreve Baschet, a respeito do desenvolvimento dos tipos

iconográficos nas representações do Inferno, que um exame atento de fontes visuais e textuais

Coloca em evidência convergências entre as diferentes fontes, e também indícios de


uma circulação de motivos entre a literatura das visões, os exempla, o teatro e a
iconografia (…). Praticamente não há motivo iconográfico em que não se possa
encontrar (…) um equivalente textual.534

Porém, como pondera uma vez mais Wilkins, “uma influência desses mosaicos, ainda que não exclusiva, pode

ter sido significante na formação de um conceito resultando da combinação de várias sugestões”535.

Ainda com relação ao provável aporte do mosaico do batistério sobre o poeta florentino, é preciso

considerar, uma vez mais, a amizade que possivelmente unia Dante e Giotto. Exilado, viajando constantemente

entre cidades do Vêneto e, de acordo com Petrocchi, especialmente entre Veneza, Pádua e outras cidades

próximas536, é possível conjeturar uma passagem do poeta por Pádua enquanto Giotto lá estivesse trabalhando –

530
Esse ponto será desenvolvido em seguida, momento em que se discutirá também a importância do Diabo de
Giotto, em particular, e de seu Inferno, de modo geral, sobre Dante.
531
“L’omero suo, ch’era aguto e superbo,/ carcava un peccator con ambo l’anche,/ e quei tenea de’ piè
ghermito ’l nerbo”. Inf. XXI, 34-36.
532
Para outras associações entre o poema e o mosaico, ver o artigo de Wilkins, que destaca ainda similaridades
entre o mosaico da tribuna do Batistério e o Paraíso dantesco. “Dante and the mosaics of his Bel San Giovanni”.
In: Op. cit., p. 03 a 10.
533
Idem, p. 07.
534
Op. cit., p. 503. Apesar disso, Baschet admite que, “se a devoração por um monstro é corrente nos textos,
nenhum deles de que tenhamos conhecimento descreve Satã mesmo devorando e excretando os danados”.
Ibidem, nota 08. Uma imagem próxima a esta é encontrada na Visão de Tgnudal, escrita no século XII.
Descreve-se aqui que uma besta monstruosa, sentada sobre um lago congelado, devora em sua garganta de fogo
as almas, digerindo-as e posteriormente as regurgitando. Essas almas possuem bicos pontudos com os quais
destroçam seu próprio corpo. Cf. LE GOFF, J. La naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1996, p. 256.
Essa visão possui ainda outro ponto de contato com a descrição dantesca do Diabo: tanto na visão como no
poema, associa-se a “besta monstruosa” a um lago congelado.
535
“Dante and the mosaics of his Bel San Giovanni”. In: Op. cit, p. 08.
536
Cf. Op. cit., p. 99.

CLXXII
mesmo que não fossem conhecidos, a notícia de que o principal artista florentino, seu conterrâneo, estivesse na

cidade provavelmente despertaria seu interesse; as relações de amizade entre eles permitiriam que Alighieri

tivesse acesso à capela ainda durante a execução do ciclo, de modo que também a imagem do Inferno giottesco –

já inspirado no mosaico que Dante tão bem conhecia – tivesse servido como fonte de inspiração para o poeta

florentino, a partir da observação dos elementos iconográficos inseridos no afresco. É preciso ter em conta, neste

momento, que o objetivo principal de Dante com a redação da Commedia era a conversão e a salvação do

homem, como fica claro na epístola redigida pelo poeta a Cangrande della Scala: “(…) tirar os vivos nesta vida

de seu estado de miséria e guiá-los até o estado de felicidade”537, ou seja, guiá-los até a salvação, ainda segundo

o poeta. Ora, é exatamente essa uma das funções primordiais que se espera de uma representação visual do tema

do Juízo final538. Desse modo, podem-se perceber as inter-relações que poderiam ter sido estabelecidas entre eles

a partir de temas que possuíssem objetivos em comum, sempre tendo em mente as especificidades da pintura e

da poesia.

E, de fato, uma viagem de Dante a Pádua nesses anos parece ter ocorrido. Como escreve Petrocchi,

“um comentador rigoroso como foi Benvenuto da Imola assinala a circunstância do encontro com Giotto em

Pádua, onde o poeta admiraria a Capela dos Scrovegni”539. Giorgio Ronconi, por outro lado, embora considere

provável o encontro dos dois artistas em Pádua, relativiza o suposto rigor de Benvenuto, ao afirmar que ele

Perde em credibilidade se considerado o hábito narrativo de Benvenuto, acostumado


a intercalar as notícias que encontrava nas crônicas do tempo com inserções de sabor
novelístico e a deixar mais atraente o seu fácil latim com gostosas anedotas que
adaptava às circunstâncias.540

Outros autores, ainda nos séculos XIV e XV, concordam com a idéia de que Dante teria se instalado por um

período mais longo em Pádua: dentre eles, Boccaccio e Fermo Giovanni Serravalle em seu comentário à

Commedia de 1416; mais recentemente, no século XIX, Andrea Goria e Pietro Selvatico, e, já no século XX,

Andrea Moschetti e Antonio Belloni, “motivo por que ninguém hoje possui dúvidas ou reservas, podendo-se

considerar tais concordâncias um documento válido”541. Se a permanência de Dante em Pádua não é prova de

que teria necessariamente se encontrado com Giotto enquanto trabalhava na Capela Scrovegni, sua estadia

537
“Removere viventes in hac vita de statu miseriae et perducere ad statum felicitatis”. Apud GIZZI, C. “Giotto
e Dante”. In: _____ (org.). Op. cit., p. 59.
538
Sobre as funções de imagens com o tema do Juízo final, ver o quarto capítulo desta tese.
539
PETROCCHI, G. Op. cit., p. 99. Assim escreveu Benvenuto: “Accidit autem semel, quod cum Giottus
pingeret Padue, adhuc satis iuvenis, unam cappellam in loco ubi fuit olim Theatrum sive Arena, Dantes pervenit
ad locum. Quem Giottus honorifice receptum duxit ad domum suam” [“Ocorreu então um dia, quando Giotto
pintava em Pádua, então bastante jovem, uma capela no lugar onde um tempo foi o Teatro ou a Arena, que Dante
chegou àquele lugar. Giotto o recebeu com muita honra e o conduziu à sua casa”]. Apud RIGON, A. “Padova
nell’età di Dante e di Giotto”. In: Padova e il suo territorio, n.° 90, 2001, p.
540
“Dante e Giotto agli Scrovegni”. In: Padova e il suo territorio, n.º 97, 2002, p. 34.

CLXXIII
decerto teria aumentado as chances do contato com o pintor florentino. Além de outros autores, Antonio Belloni

defende a tese do encontro de ambos em seu trabalho Nuove osservazioni sulla dimora di Dante in Padova,

publicado em 1921542.

A possibilidade não somente de um encontro, mas também de uma colaboração mais estreita entre

Dante e Giotto em Pádua se torna ainda mais forte quando se considera que alguns autores543 reconhecem uma

possível participação do poeta na idealização do programa iconográfico de ao menos outro projeto do pintor:

refere-se aqui às pinturas das quatro velas da abóbada que se localiza sobre o altar principal da Basílica inferior e

do transepto direito de Assis, executados talvez entre 1308 e 1311. Uma vez que o próprio programa

iconográfico dessas pinturas pode se relacionar de algum modo à Commedia, elas serão discutidas brevemente a

seguir.

A atribuição dessas pinturas a Giotto foi feita pela primeira vez por Vasari na Vita do artista544, uma

atribuição que se manteve até 1906, quando A. Venturi a contestou; a opinião de Venturi foi seguida por Bernard

Berenson e outros pesquisadores. Em 1958, porém, foi a vez do crítico alemão Gosebruch retomar a original

atribuição vasariana545, opinião que, de modo geral, se mantém até hoje entre os historiadores da arte.

Segundo Corrado Gizzi, que segue por sua vez uma tradição historiográfica que remonta ao menos a

1926, o programa iconográfico desses afrescos teria tirado partido do texto do Arbor vitae crucifixae Jesu,

redigido pelo franciscano Ubertino da Casale em 1305. De acordo com Elvio Lunghi, o idealizador desse

programa poderia ter retirado do Arbor vitae “no sentido literal soluções compositivas e figuras simbólicas”546.

Conforme recorda Gizzi, Ubertino da Casale, devido aos conflitos internos da ordem franciscana,

passou alguns anos no Convento franciscano de Santa Croce, em Florença, onde, com toda probabilidade, travou

contato com Pietro di Giovanni Olivi, leitor de teologia no studium desde 1287 e “líder indiscutível dos

Espirituais”, como afirma Massimiliano Rosito547. O período de Olivi em Santa Croce, ainda que não tenha sido

muito longo, foi “suficiente para deixar uma marca profunda no franciscanismo florentino”548. Não se pode

esquecer, no contexto desta pesquisa, que Olivi foi largamente influenciado pelo pensamento escatológico de

541
GIZZI, C. “Giotto e Dante”. In: _____ (org.). Op. cit., p. 60.
542
Cf. Ibidem.
543
Para o elenco de alguns desses autores, ver o artigo de Gizzi.
544
“Finite le sopra dette storie, dipinse nel medesimo luogo, ma nella chiesa di sotto, le facciate di sopra dalle
bande dell’altar maggiore, e tutti quattro gl’angoli della volta di sopra, dove è il corpo di S. Francesco, e tutte
con invenzioni capricciose e belle (…)” [“Terminadas as ditas histórias, pintou no mesmo lugar, mas na igreja
inferior, as fachadas de cima nas bandas do altar principal, e todos os quatro ângulos da abóbada de cima, onde
está o corpo de S. Francisco, e todas com invenções caprichosas e belas (…)”]. Op. cit., p. 152.
545
Cf. GIZZI, C. “Giotto e Dante”. In: _____ (org.). Op. cit., p. 37 e 38.
546
Apud Idem, p. 38.
547
“Il polittico Baroncelli. Giotto, Dante e i Maestri spirituali”. In: GIZZI, C. (org.). Op. cit., p. 109.

CLXXIV
Joaquim de Fiore, baseado no qual o frei redigiria um de seus mais relevantes textos, Lectura super

Apochalypsim549. E, segundo Gizzi, “é supérfluo recordar a enorme importância da permanência e do

ensinamento de ambos [Olivi e Ubertino] em Santa Croce sobre o franciscanismo em geral e sobre o espiritual

em particular”550.

Como Dante poderia se encaixar nesse cenário? É preciso ter em conta, nesse momento, a formação

religiosa do poeta florentino, que provavelmente freqüentou tanto o studium dominicano de Santa Maria Novella

como o de Santa Croce551; este último, possivelmente no período em que Ubertino ali se encontrava. É

admissível, portanto, que o poeta o tivesse conhecido pessoalmente; certamente os seus ensinamentos lhe seriam

familiares. Diversos pesquisadores552 admitem hoje a ascendência do texto do Arbor vitae na redação da

Commedia mesma. Isso seria evidente, segundo Gizzi, por ser possível reconhecer o pensamento de Ubertino na

concepção dantesca a respeito da história da Igreja,

Que, em suas linhas gerais, é reconduzível à concepção franciscana espiritual [à qual


Ubertino estava ligado]. Somente assim se explica a apresentação da Cúria romana
como “meretrix magna”, com que fornicaram os príncipes da terra; da cátedra de
Pedro vaga na presença do filho de Deus; da Igreja que será libertada do adultério.
Em conclusão, Dante compartilha com os Espirituais o ideal de uma Igreja
pobre e perseguida, Cristo seu esposo crucificado.553

E, como recorda Marino Damiata,

Huck (…) encontra a influência de Ubertino na condenação que Dante pronuncia


sobre a simonia e o nepotismo, na recusa de Clementino V e no simbolismo dos
números, nos violentos ataques contra Bonifácio VIII. 554

É razoável, desse modo, especular que Dante, colaborando na elaboração da iconografia dos referidos afrescos

giottescos em Assis, recordasse os ensinamentos de Ubertino da Casale assimilados durante o período de estudos

em Santa Croce, e que estava, de algum modo, empregando também na redação da Commedia. Esse programa

iconográfico, desse modo, seria a interpretação dantesca do pensamento de Ubertino, que seria consolidado na

548
Ibidem.
549
Cf. Ibidem.
550
GIZZI, C. “Giotto e Dante”. In: Idem, p. 38.
551
No Convivio, Dante escreve que “e da questo imaginare cominciai ad andare là dov'ella si dimostrava
veracemente, cioè nelle scuole delli religiosi e alle disputazioni delli filosofanti” [e a partir deste imaginar
comecei a ir lá onde ela se demonstrava verdadeiramente, isto é nas escolas dos religiosos e às disputas dos
filósofos]. Convivio, II, XII, 7. In: Dante online. Disponível em:
<http://www.danteonline.it/italiano/home_ita.asp>. Acesso em 25.04.2007. Esse ponto será melhor
desenvolvido a seguir.
552
Alguns deles são mencionados por Gizzi em seu texto.
553
Ibidem.
554
DAMIATA, M. “Dante, l’universo francescano e Ubertino da Casale”. In: Studi francescani, ano 86, 1989,
n.º 1-2, p. 19. Outros pontos de contato entre os pensamentos de Dante e de Ubertino são discutidos ao longo do
artigo. Para uma análise mais acurada e pontual de “traços de Ubertino” na Commedia, conforme definição de
Damiata, ver a quarta parte do referido artigo.

CLXXV
redação do Arbor vitae555.

Se, portanto, existe a possibilidade de Dante ter participado do desenvolvimento do programa

iconográfico de afrescos de Giotto em Assis, é aceitável que o poeta pudesse ter exercido alguma influência no

ciclo giottesco da Capela Scrovegni, realizado pouco antes da provável data de execução das pinturas de Assis;

se não em todos os afrescos, uma vez que o pintor provavelmente teria iniciado os trabalhos antes da chegada do

poeta a Pádua, ao menos no afresco do Juízo final, o último a ser executado. É possível ainda aventar aqui outra

discussão: a de que, no momento do contato e do estabelecimento de inter-relações entre Dante e Giotto em

Pádua, não há mais a disputa entre literatura e pintura quanto à primazia de valores ou de concepções; nesse

momento, ambas parecem metaforicamente caminhar lado a lado, a partir das discussões e trocas entre os dois

artistas. Dante mesmo situaria Giotto em uma posição equivalente à sua: “julgava assim Cimabue da pintura/ o

campo ter que ora por Giotto é tido,/ que a fama do primeiro se torna obscura./ Assim tirou de um o outro Guido/

da língua a glória, e talvez já é chegado/ quem do ninho eles dois terá varrido”556. Dante os coloca, desse modo,

como os grandes renovadores da arte, o primeiro no campo da poesia, o segundo no da pintura. Exilado um – e

redigindo seu mais importante poema –, desenvolvendo uma de suas mais grandiosas obras o outro, é plausível

especular que Dante e Giotto, encontrando-se em Pádua, tenham discutido mais de uma vez a respeito do tema

do Juízo final ou, mais especificamente, sobre o destino individual após a morte – questão fundamental tanto nas

figurações do julgamento final, decerto, mas também na Commedia, conforme já comentado.

Há ainda uma questão mais específica, e que se relacionaria à própria interpretação do ciclo de

Pádua: a relação entre usura e sexualidade, particularmente a fecundidade. Como escrevem Derbes e Sandona, “a

ligação entre usura e fertilidade nos parece crítica para a significação da capela”557, na medida em que, de acordo

com sua interpretação para o programa iconográfico, a ganância e a avareza – de que, recorde-se, a usura é um

tipo específico – de Judas se contraporiam à fertilidade do ventre de Maria, responsável em última instância pela

remissão dos pecados e pela salvação da humanidade558. Ainda de acordo com os mesmos autores, a fecundidade

era compreendida como a antítese da usura ao longo da Idade Média. Essa associação era feita porque, como

explica Alessandro Bonini – que escrevia provavelmente nos mesmos anos em que Giotto trabalhava em Pádua –

“entende-se [por usura] que dinheiro gera dinheiro. Mas o dinheiro, por meio dessa atividade, se reproduz como

555
Para referências sobre estudos mais específicos dos afrescos de Assis, ver o artigo de Gizzi.
556
“Credette Cimabue ne la pintura/ tener lo campo, e ora ha Giotto il grido/ sì che la fama di colui è scura./
Così ha tolto l’uno a l’altro Guido/ la gloria della lingua: e forse è nato/ chi l’uno e l’altro caccerà del nido”.
Purg. XI, 94-99.
557
“Barren metal and the fruitful womb: the program of Giotto’s Arena Chapel in Padua”. In: Op. cit., p. 278.

CLXXVI
que por impregnação e parto”559. A origem dessa associação remontaria a Aristóteles, como esclarece Odd

Langholm:

Tokos em grego significa descendência, assim como usura, sugerindo portanto uma
poderosa similaridade: usura é aquela forma de aquisição que consiste em fazer o
dinheiro procriar dinheiro e é contra a natureza porque somente organismos naturais
podem procriar uma descendência.560

Essa relação entre usura e sexualidade também pode ser encontrada ao menos em um dos diversos

temas que povoam o Inferno de Giotto: próximo à cabeça do Diabo, à direita, um homem estende para uma

mulher um saco de dinheiro; uma vez que as duas figuras estão logo abaixo daqueles que são pendurados pelas

genitais, pode-se presumir que também elas estejam associadas de algum modo à luxúria. Assim, é provável que

o dinheiro esteja sendo dado à mulher em troca de favores sexuais, o que indicaria a prostituição feminina, que

também era, no período, especificamente relcionada à usura561.

A associação entre usura e sexualidade, discutida talvez por Dante e Giotto, já havia sido feita por

Remigio de’ Girolami (1235-1319) em seu tratado De peccato usure, mencionado anteriormente. O autor

começa seu texto discutindo precisamente essa relação (especificamente sobre a usura e a sodomia). É provável

que Remigio, um frade dominicano e aluno de Tomás de Aquino, tenha sido mestre de Dante no studium do

Convento de Santa Maria Novella562. Seria plausível aventar a hipótese de pintor e poeta terem discutido

largamente sobre o tema da usura, capital para a interpretação de todo o ciclo da Capela Scrovegni, e que, tendo

amadurecido os ensinamentos de Remigio a partir das discussões com Giotto, Dante desenvolvesse suas

conclusões na redação da Commedia. Não por acaso, o poeta florentino colocaria usurários e sodomitas no

mesmo círculo de seu Inferno, nos cantos XV, XVI e XVII563.

Ainda com relação à possível influência de Dante na elaboração da iconografia do Juízo final da

Capela Scrovegni, é preciso destacar outro elemento, que é, possivelmente, o motivo iconográfico mais

heterodoxo do afresco paduano: a singular figura de Enrico Scrovegni que, ajoelhado, oferece à Virgem e a

outros dois santos uma miniatura da própria Capela Scrovegni. Embora o tema de um doador ofertando uma

igreja ao Cristo ou à Virgem remonte pelo menos ao século VI – exemplos desse período existem na Igreja de

558
Nesse sentido, seria fundamental a oposição que ocorre no arco triunfal da capela entre as cenas do Pacto de
Judas e da Visitação. Para um melhor desenvolvimento do tópico, e a importância do tema da usura para a
compreensão do programa iconográfico dentro do contexto da família Scrovegni, ver o artigo acima citado.
559
Apud DERBES, A., e SANDONA, M. “Barren metal and the fruitful womb: the program of Giotto’s Arena
Chapel in Padua”. In: Op. cit., p..
560
Apud Idem, p. Para um maior desenvolvimento dessas idéias, ver o referido artigo.
561
Cf. Idem, p. 284.
562
Ver a seguir.
563
Os sodomitas estão em Inf. XV, 100-124, e XVI, 1-27, enquanto os usurários estão em Inf. XVII, 43-78.

CLXXVII
San Vitale, em Ravena, e na Igreja de San Lorenzo fuori le mura, em Roma564 –, ele não comparece nas

representações do Juízo final até o afresco de Giotto, e nem se tornará elemento recorrente em nenhuma outra

pintura do tema estudada aqui. A pintura giottesca é, nesse sentido, única565. Com o afresco paduano, pode-se

dizer que não somente a iconografia como também a própria interpretação tradicional do tema foram rompidas.

Aqui, de fato, há, pela primeira vez, a inclusão de um pecador que, ofertando um modelo de capela ou igreja à

Virgem, esperaria, sem dúvida, algum tipo de retribuição566; mais precisamente, a intercessão junto ao Cristo juiz

pela salvação de sua alma. Embora esta expectativa não esteja clara no afresco, é esta a interpretação corrente

desse tipo de gesto. Isto fica explícito com o abade Suger, de Saint Denis, que, no século XII, ofereceu não um

modelo, mas a própria igreja – a nova Basílica de Saint Denis – ordenando inclusive que fosse inscrito em suas

portas que

Pelo esplendor da igreja que fez prosperar e o exaltou, Suger trabalhou para o
esplendor da igreja. Dando a vós uma parte do que é vosso, ó mártir Dionísio, ele
roga que possa obter uma parte do Paraíso.567

A origem desse tema remonta à Roma antiga; é na Ásia Menor que surge, pela primeira vez, a

representação de um imperador apresentando um templo para uma divindade pagã568. Assim como ocorria com

os imperadores romanos, também Enrico se coloca, no afresco, em uma posição quase principesca, com a serena

tranqüilidade daqueles que têm certeza de sua absolvição: a Virgem recebe de Enrico a oferta, e em sinal de

condescendência estende sua mão àquele ajoelhado à sua frente, que com a mão direita retribui o gesto.

A cena, ademais, embora quase central no esquema compositivo do afresco, está ligeiramente

deslocada para a metade esquerda; a figura de Enrico praticamente se coloca, em termos visuais, à frente do

cortejo dos eleitos que se voltam para o Cristo juiz. Reforçando este ponto, uma das primeiras figuras do grupo –

um religioso – dirige o olhar não para Cristo, mas para o próprio Enrico. Há, enfim, como define Chiara Frugoni,

564
Cf. SHORR, D.C. “The role of the Virgin in Giotto’s Last Judgment”. In: The Art Bulletin, vol. XXXVIII,
n.º 4, dezembro de 1956, p. 208, nota 05.
565
No afresco do Juízo final de Taddeo di Bartolo em San Gimignano há a inclusão de uma pequena figura no
canto inferior esquerdo, não identificada. Alguns historiadores crêem ver na figura o retrato de Beata Simona,
enquanto outros a interpretam como o doador do ciclo. É, de qualquer modo, um tipo de figuração de todo
diverso do que faz Giotto em Pádua, que foge por completo do esquema tradicional do doador ajoelhado em
contemplação.
566
Enrico, não se pode esquecer, mandou construir a capela em Pádua visando precisamente a expurgar os
pecados de seu pai, de que o próprio Enrico continuava a se beneficiar pelo usufruto da fortuna de sua família,
acumulada em grande parte graças à usura de Reginaldo. Seu pai faleceu provavelmente por volta de 1290, e a
partir de 1297 não há mais evidências da prática de usura pelos Scrovegni; pouco depois, em 1300, Enrico
comprou as terras onde seria construída a capela. Cf. DERBES, A. e SANDONA, M. “Barren metal and the
fruitful womb: the program of Giotto’s Arena Chapel in Padua”. In: Op. cit., p. 276. Há, entretanto,
controvérsias se a capela indicaria de fato um arrependimento de Enrico.
567
Apud SHORR, D.C. “The role of the Virgin in Giotto’s Last Judgment”. In: Op. cit., p. 208, nota 05.
568
Cf. Ibidem.

CLXXVIII
um “sábio jogo de proporções” no afresco, que “indica a importância das personagens” na cena569. De fato,

conforme visto no segundo capítulo desta tese, os corpos ressuscitados, assim como os condenados no Inferno,

possuem dimensões muito reduzidas, quando comparados aos eleitos que se encontram no cortejo que se dirige

para o Cristo juiz, pintados quase em tamanho natural. Enrico, assim como o religioso a seu lado, que sustenta o

peso do modelo da capela, possuem as mesmas dimensões dos eleitos. A mensagem do afresco, portanto, é clara:

embora pecador, Enrico parece ter poucas dúvidas de seus merecimentos e de sua salvação futura; apesar da

usura de sua família, apesar dos vícios, ele está do lado das virtudes e dos virtuosos que estarão no Paraíso, ao

lado direito do Cristo juiz no último dia.

Seria possível que o motivo iconográfico da oferta do modelo da capela à Virgem pudesse ter surgido

durante os encontros entre Dante e Giotto em Pádua, a partir das recomendações de Enrico Scrovegni para a

elaboração do programa iconográfico da capela? Esse tema acentua a questão da responsabilidade particular de

cada indivíduo no processo de salvação – o livre-arbítrio. A representação mesma das personificações dos vícios

e das virtudes, nas paredes laterais da capela, logo abaixo do ciclo principal executado por Giotto, indicaria e

também reforçaria claramente essa questão: essas personificações, de fato, mostrariam um caminho de escolhas

pessoais, que conduziriam, eventualmente, ao Paraíso ou ao Inferno. Não por acaso, o grupo das virtudes está

colocado na parede mais próxima aos eleitos do afresco do Juízo final, enquanto os vícios, na parede oposta,

indicam de forma inexorável o caminho para o Inferno. Como explica Claudio Bellinati, na cena de Judas

recebendo as moedas no arco triunfal da capela

Começa o tema de todas as paixões humanas, ou Vícios, na parte inferior da parede


da Capela, até a danação dos perniciosos no Juízo final. De forma análoga, o
encontro humilde e afeiçoado entre Maria e Isabel é o ponto de partida das Virtudes,
que levam à bem-aventurança eterna novamente representada no Juízo final.570

Deste modo, as personificações das Virtudes, que partem do encontro da Virgem com sua prima, culminam com

os eleitos do Juízo final, visualmente liderados por Enrico Scrovegni, que, assim como Santa Isabel na parede

oposta, também se encontra com a Virgem.

O caminho de escolhas pessoais, deve-se recordar, é também um dos temas fundamentais da

Commedia, que mostra como as opções feitas por cada indivíduo durante suas vidas determinaram, ao final do

percurso, sua localização no Além. É plausível, assim sendo, considerar que a sugestão da inclusão do motivo

iconográfico de Enrico entregando o modelo da capela à Virgem tenha partido de Dante, não somente por causa

da questão do livre-arbítrio, como também pela própria origem imperial do tema e pela postura principesca de

569
Gli affreschi della Cappella Scrovegni a Padova. Turim: Einaudi, 2005, p. 21.
570
Giotto: the Scrovegni Chapel. Vianello, 2007, p. 70.

CLXXIX
Enrico no afresco – o que será explicado a seguir.

Se, por um lado, o afresco giottesco e os debates entre pintor e poeta podem ter inspirado a redação

da Commedia pouco tempo depois da passagem de Dante pela Capela Scrovegni571, é possível especular também

que o encontro com o poeta florentino nos primeiros anos do século XIV, e mesmo a posterior leitura do poema

dantesco anos depois, tenham despertado em Giotto algum pensamento que amadureceria somente na década de

1330, mas que já se mostraria esboçado mesmo em Pádua.

Esse ponto poderia explicar a própria escolha não somente do tema do Juízo final para adornar a

Capela da Madalena, no Palazzo del Bargello, como também a opção de representar o Paraíso em destaque na

parede oposta. A interpretação proposta por esta tese para esses afrescos, relacionando-os à sua localização na

sede do governo florentino, é a de que o governante de Florença se colocaria na posição de juiz dos habitantes da

cidade, e por meio dele se poderiam atingir as benesses, não do Paraíso, mas da vida terrena, por meio da justiça

que a ele caberia enquanto potestade da cidade. Ele seria na terra, no presente, a imagem do Cristo juiz que

retornaria futuramente, no fim dos tempos.

A noção de um salvador terreno – posição em que se colocaria o governante florentino, ainda de

acordo com a interpretação proposta por esta pesquisa para o ciclo do Bargello – que viria para restaurar “Roma,

que seu Império fez jucundo”572, e para combater a Igreja corrupta de seu tempo, é desenvolvida por Dante em

trechos diversos da Commedia. Para Dante, a restauração de um império universal seria ponto fundamental para

a felicidade humana573. De acordo com as concepções do poeta, os homens precisariam ser salvos não apenas a

partir de uma vontade própria, mas também por meio de agentes externos; o imperador seria esse agente574. Uma

vez que o conceito de império ou de monarquia é compreendido por Dante como “um comando dirigindo todos

os outros comandos, a jurisdição englobando e autorizando todas as outras jurisdições”, uma “autoridade

universal”, em suma575, ele pode ser aplicado também, como o faz esta pesquisa, ao governante de Florença,

justificando também as interpretações propostas para o ciclo do Bargello.

Uma passagem do poema, em particular, poderia explicar a inclusão do tema do Juízo final com o

571
Gizzi avança a hipótese de que a redação do Inferno já estivesse quase pronta quando Giotto trabalhava no
afresco do Juízo final, tendo-se desculpado com o poeta “por não ter levado em conta, no momento de afrescar o
Juízo Universal, do conteúdo do Inferno. O canto, de fato, não estava ainda terminado, por isso ainda não lhe era
ainda conhecido o esquema geral”. “Giotto e Dante”. In: _____ (org.). Op. cit., p. 60. Em função da cronologia
proposta por Petrocchi para a redação da Commedia, entretanto, e largamente aceita pela maior parte dos
estudiosos do poema dantesco, essa possibilidade parece inviável. Mais plausível seria, outrossim, a hipótese
proposta por esta pesquisa.
572
“Soleva Roma, che 'l buon mondo feo”. Purg. XVI, 106.
573
Cf. DAVIS, C.T. “Dante and the empire”. In: JACOFF, R. (org.). Op. cit., p. 258.
574
Cf. Idem, p. 257.
575
Idem, p. 258.

CLXXX
Paraíso em destaque na Capela da Madalena: “Mas o alto Poder que, com Cipião,/ de Roma a mundial glória

defendeu,/ virá ao socorro, em minha previsão”576. Como explica Charles Till Davis,

Então, presumivelmente, o imperium, vencido pelos heróis republicanos como


Cipião e aperfeiçoado por Augusto, será restaurado por um futuro imperador. Talvez
ele também preparará o mundo para a segunda vinda de Cristo, assim como Augusto
o preparou para sua primeira vinda.577

Esse, não se pode esquecer, foi um dos principais motivos para o banimento de Dante. Assim, o governante de

Florença se colocaria, por meio do ciclo do Bargello, como aquele que trouxe a paz e a justiça à cidade, enquanto

prepararia o caminho para a vinda de Cristo Salvador no último dia578.

Há ainda outra influência possível da Commedia sobre o afresco do Bargello: de acordo com alguns

autores, seria possível reconhecer algumas das figuras na cena do Paraíso como personalidades florentinas da

época – como o retrato do próprio Dante, identificado como tal ao menos desde os tempos de Vasari. Se isso de

fato ocorreu, seria plausível especular que Giotto também pudesse ter inserido retratos de pessoas conhecidas no

trecho do Inferno no afresco do Juízo final, de modo análogo ao que fez Dante em seu canto na Commedia.

Assim, do mesmo modo que no poema dantesco, o reconhecimento de algumas personagens reais no Inferno

giottesco traria à mente do fiel os pecados pelos quais essas figuras eram conhecidas na época, e a associação

com a punição equivalente se completaria de forma mais adequada579. A representação do Diabo conforme a

descrição do poeta580 poderia reforçar essa hipótese: se Giotto seguiu a Commedia neste aspecto iconográfico

específico, por que não o poderia fazer também com outros elementos apresentados ou propostos por Dante?

Infelizmente, o pouco que resta do afresco do Juízo final no Palazzo del Bargello impede uma análise mais

precisa da cena, que poderia corroborar essa hipótese apresentada581.

Outros pontos de influências, entretanto, são igualmente percebidos entre a Commedia e os dois

afrescos com o tema do Juízo final de Giotto. Os diálogos entre ambos os artistas também seriam visíveis no

detalhamento da região infernal do afresco da Capela Scrovegni. Segundo Valerio Mariani, “não por sugestão,

576
“Ma l'alta provedenza, che con Scipio/ difese a Roma la gloria del mondo,/ soccorrà tosto, sì com'io
concipio”. Par. XXVII, 61-63.
577
“Dante and the empire”. In: JACOFF, R. (org.). Op. cit., p. 263.
578
Davis sublinha também que, para Dante, “a legitimidade do governo de Roma foi afirmado tanto pelo registro
do Cristo no censo romano sob Augusto como por sua execução nas mãos do governador romano Pilatos sob
Tibério. Roma, portanto, preparou o caminho para a disseminação do evangelho de Cristo e participou em sua
expiação do pecado original do homem”. Idem, p. 267.
579
Cf. MARIANI, V. “Dante e Giotto”. In: GIZZI, C. (org.). Op. cit., p. 88. Sobre essa associação na
Commedia, ver supra, p. 187. Ver também o próximo capítulo.
580
Ver a seguir.
581
Ressalte-se, porém, que o mais usual, especialmente com relação ao Inferno, será evitar a inclusão de figuras
conhecidas. Sobre isso, ver a seguir, ainda neste capítulo.

CLXXXI
mas por evidente analogia, contemplando o Inferno de Giotto revemos os demônios de Dante”582. A influência

do Inferno de Giotto executado em Pádua, para ele, seria evidente em alguns trechos do mesmo cântico da

Commedia. O autor cita como exemplo a passagem do canto XXI já mencionada por Wilkins com relação às

associações entre a Commedia e o mosaico do Batistério florentino583. Desse modo, não se pode esquecer, nessa

rede de relações, também a obra de Coppo di Marcovaldo. Sem dúvida, a descrição do Diabo dantesco, embora

não seja um espelho do demônio de Coppo e, por analogia, também do giottesco, a estes pode ser remetido:

Mas foi o meu assombro inda crescente/ quando três caras vi na sua cabeça:/ toda
vermelha era a que tinha à frente,/ e das outras, cada qual egressa/ do meio do
ombro, que em cima se ajeita/ de cada lado e junta-se com essa,/ branco-amarelo era
a cor da direita/ e, a da esquerda, a daquela gente estranha/ que chega de onde o Nilo
ao vale deita./ Um par de grandes asas acompanha/ cada uma, com tal ave
consoantes:/ – vela de mar vira eu jamais tamanha –/ essas, sem penas, semelhavam
antes/ às dos morcegos, e ele as abanava,/ assim que, co’ os três ventos resultantes,/
as águas de Cocito congelava./ Por seis olhos chorava, e dos três mentos/ sangrenta
baba co’ o pranto pingava. 584

Se não há serpentes saindo das orelhas do Diabo, Dante descreve três cabeças devorando três pecadores, de

forma análoga ao que ocorre no batistério florentino: “em cada boca um pecador, com cruentos/ dentes, moía a

feição de gramadeira,/ aos três prestando, de vez, seus tormentos”585. À diferença da descrição dantesca, duas das

bocas que devoram os condenados são as das serpentes que saem das orelhas da cabeça única do Diabo; a

afinidade, porém, entre imagem e descrição poética, é evidente. E talvez as imagens de Judas enforcado no

mosaico florentino e no afresco paduano possam ter inspirado Dante a colocá-lo sendo devorado pela cabeça

central do Diabo, como o maior de todos os pecadores, por ter traído o Cristo:

Para o da frente, a mordida era ligeira/ pena, em confronto com a gadanhada/ que por
vez lhe arrancava a pele inteira./ ‘Esse, que sofre aí pena dobrada,/ é Judas Iscariote’,
disse o guia,/ ‘co’ as pernas fora e a cabeça abocada’.586

Com efeito, ao mesmo parece aludir o Judas do batistério, uma vez que é o único pecador mencionado com uma

inscrição específica no mosaico. E pode ser mais do que coincidência o fato de que tanto no Juízo final do

582
Idem, p. 89.
583
“L’omero suo, ch’era acuto e superbo/ carcava un peccator con ambo l’anche/ e quei tenea de’ pie’ ghermito
‘l nerbo”. Inf. XXI, 34-36.
584
“Oh quanto parve a me gran maraviglia/ quand’io vidi tre facce a la sua testa!/ L’una dinanzi, e quella era
vermiglia;/ l’altr’eran due, che s’aggiugnieno a questa/ sovresso ‘l mezzo di ciascuna spalla,/ e sé giugnieno al
loco de la cresta:/ e la destra parea tra Bianca e gialla;/ la sinistra a vedere era tal, quali/ vegnon di là onde ‘l
Nilo s’avvalla./ Sotto ciascuna uscivan due grand’ali,/ quanto si convenia a tanto uccello:/ vele di mar non
vid’io mai cotali./ Non avean penne, ma di vipistrello/ era lor modo; e quelle svolazzava,/ sì che tre venti si
movean da ello:/ quindi Cocito tutto s’aggelava./ Con sei occhi piangea, e per tre menti/ gocciava ‘l pianto e
sanguinosa bava”. Inf. XXXIV, 37-54.
585
“Da ogne bocca dirompea co’ denti/ un peccatore, a guisa di maciulla,/ sì che tre ne facea così dolenti”. Inf.
XXIV, 55-57
586
“A quel dinanzi il mordere era nulla/ verso ‘l graffiar,/ che talvolta la schiena/ rimanea de la pelle tutta
brulla./ ‘Quell’anima là sù c’ha maggior pena’,/ disse ‘l maestro, ‘è Giuda Scariotto,/ che ‘l capo ha dentro e
fuor le gambe mena”. Inf. XXXIV, 58-63.

CLXXXII
batistério, como no da Capela Scrovegni, do pecador central se veja somente a metade inferior, enquanto a

cabeça é “abocada” pelo demônio, conforme descreveria Dante em seu poema pouco depois, enquanto dos

outros dois pecadores são os membros inferiores os primeiros a serem devorados, o que também é seguido pelo

poeta florentino587.

A influência da Commedia sobre as representações posteriores do Juízo final, por sua vez, parece

evidente em especial nas figurações do Diabo: a partir do segundo quartel do século XIV, muitos têm as asas de

morcego descritas pelo poeta florentino – modo de representação do demônio surgido na Europa no século XIII e

que, segundo Lorenzo Lorenzi, seria derivado, em última instância, da arte chinesa do período Chou (séculos XII

a III a.C.)588; o autor, no entanto, não explica como poderia ter ocorrido a transposição de um elemento tão

antigo, de uma cultura tão distante, para a Europa medieval. De acordo com Jürgis Baltrüšaitis, representações

de demônios alados teriam surgido por volta de 1220 – o primeiro exemplo conhecido estaria no Saltério de

Branca de Castilha (ca. 1223)589. Provavelmente essa opção teria por base uma interpretação do Evangelho

segundo São Lucas, em que o demônio teria mostrado a Jesus os reinos deste mundo590. As asas de morcego, por

sua vez, aparecem no Saltério de Edmond de Laci (morto em 1258)591. Segundo Carlos Roberto Nogueira, a

explicação para essa opção iconográfica derivaria do fato de que, por serem anjos caídos, não poderiam ter asas

de um pássaro, “que voa à luz do dia”; mais indicado seria, pelo contrário, as asas de um morcego, por ser um

animal que “ama as trevas e, de um modo absolutamente diabólico, vive de cabeça para baixo”592.

Muitas das figuras de Diabo inseridas nas pinturas com o tema do Juízo final estudadas por esta

pesquisa possuem, ademais, três cabeças, cada uma das quais devora um pecador. Em pelo menos dois modelos,

o pecador central é explicitamente referido como Judas, conforme a descrição de Dante593. Novamente, o

primeiro exemplo em que ocorrem essas características é o afresco do Palazzo del Bargello: apesar dos grandes

danos, a figura do Diabo se encontra relativamente bem preservada; vêem-se claramente as grandes asas de

morcego – realçadas pelo tom avermelhado que ainda possuem, enquanto o resto da figura se evidencia

587
“De li altri due c’hanno il capo di sotto” [“Dos outros dois, o que a cabeça arria”], escreve o poeta na
Commedia. Inf. XXXIV, 61.
588
Op. cit., p. 49.
589
Cf. Ibidem.
590
“E o diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo”. Lc
4: 5.
591
Cf. LORENZI, L. Op. cit., p. 49.
592
O diabo no imaginário cristão. Bauru: EDUSC, 2000, p. 67.
593
É o que ocorre nos afrescos de Andrea Orcagna e Taddeo di Bartolo. Pode-se supor que os outros
condenados, embora não possuam inscrições – ou estas não sejam mais legíveis –, sejam Cássio e Bruto, os
traidores de César, conforme descreve a Commedia: “De li altri due c’hanno il capo di sotto,/ quel che pende dal
nero ceffo è Brutto:/ vedi come si storce! e non fa motto!;/ e l’altro è Cassio che par sì membrutto’” [“Dos

CLXXXIII
principalmente pelas linhas de contorno – e as três faces devorando três pecadores. Decerto, é preciso recordar

que Dante não é o primeiro a sugerir um Diabo tricéfalo, uno e trino simultaneamente, assim como a Trindade

divina, sendo visto, em verdade, como uma paródia dessa Trindade Santíssima: de fato, a tradição medieval

concebia que no espírito do mal

Houvesse três faculdades ou atributos opostos àqueles que se dividem entre as três
pessoas divinas, assim era natural que para representar o príncipe dos demônios se
recorresse a uma figuração apta a fazer frente àquela com que se representava o
Deus trino e uno.594

Para Dante, à “Divina Potestade”, ao “supremo saber” e ao “primo amor”595, estariam contrapostos a impotência,

a ignorância e o ódio do Diabo.

No Inferno do Camposanto de Pisa, praticamente contemporâneo ao ciclo do Bargello, como visto, o

Diabo, por sua vez, difere da descrição dantesca – não há as asas de morcego, por exemplo596 –, mas há algumas

alusões à Commedia, especialmente a representação de Maomé em um dos círculos, próximo à boca do Inferno;

o profeta é reconhecível não apenas pelo turbante que usa sobre a cabeça, mas principalmente por uma inscrição

posta contígua à sua cabeça, ainda hoje parcialmente legível (Maometto). Referências evidentes ao texto

dantesco, entretanto, eram as diversas inscrições que, até o fim do século XIX, podiam ser lidas tanto no afresco

do Juízo final como no do Inferno: muitas delas são transcrições literais da Commedia, como os versos de

Purgatorio XIV, 145-151, que se liam abaixo do Inferno597, e especialmente a passagem lasciate ogne speranza,

voi ch’intrate, o mesmo texto que o poeta leu sobre a porta do Inferno ao nele ingressar com seu mestre

Vergílio598.

Outras representações são referências ainda mais explícitas à Commedia: o ciclo de Nardo di Cione

na Igreja de Santa Maria Novella apresenta, no afresco do Inferno, quase todos os elementos descritos por Dante

em seu Além infernal; reconhecem-se não somente os círculos, como também os diversos tipos iconográficos.

Alguns historiadores afirmam o mesmo para o Paraíso, particularmente na hierarquia dos santos apresentada por

outros dois, o que a cabeça arria/ da bocarra da cara preta é Bruto,/ que se contorce e cala todavia;/ Cássio é o
outro, de corpo tão hirsuto”] Inf. XXXIV, 64-67.
594
CONSOLI, C. “”Il Giudizio Finale del Battistero di Firenze e il suo pubblico”. In: Quaderni medievali, nº
09, junho de 1980, p. 67.
595
Inf. III, 5-6.
596
As aproximações entre o Diabo pisano e o dantesco serão melhor desenvolvidas a seguir.
597
Cf. BASCHET, J. Op. cit., p. 317.
598
“‘Per me si va ne la città dolente,/ per me si va ne l’etterno dolore,/ per me si va tra la perduta gente./
Giustizia mosse il mio alto fattore:/ fecemi la divina podestate,/ la somma sapienza e’l primo amore./ Dinanzi a
me non fuor cose create/ se non etterne, e io etterno duro./ Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate’./ Queste
parole di colore oscuro/ vid’io scritte al sommo d’una porta (…)” [“Vai-se por mim à cidade dolente,/ vai-se por
mim à sempiterna dor,/ vai-se por mim entre a perdida gente./ Moveu justiça o meu alto feitor,/ fez-me a Divina
Potestade, mais/ o supremo saber e o primo amor./ Antes de mim não foi criado mais/ nada senão eterno, e eterna

CLXXXIV
Nardo di Cione.

Discutindo especificamente o afresco de Buffalmacco, Baschet tenta minimizar o aporte de Dante

sobre a pintura do Camposanto de Pisa. Analisando de início o Diabo pisano (slide 79) – segundo o próprio autor

o primeiro diabo tricéfalo a ser integrado a uma composição do Juízo final599 –, Baschet argumenta que

“Buffalmacco não retoma o motivo tipicamente dantesco dos três pares de asas”600. Ora, observando as várias

outras figurações de diabos tricéfalos que podem ser localizados na pintura toscana nos séculos XIV e XV,

percebe-se que somente o de Andrea Orcagna, na Igreja de Santa Croce, mostra os três pares de asas (slide 84);

no Diabo do Palazzo del Bargello, são visíveis somente dois pares de asas (slide 70); e mesmo no Diabo do

afresco de Nardo di Cione, não parece ser possível ver mais do que um par de asas (slide 96)601, que será, de

resto, uma solução comumente adotada por outros artistas, como ocorre no ciclo da Collegiata de San

Gimignano (slide 111). Assim como será comum representar o Diabo sem qualquer par de asas, como no próprio

afresco de Buffalmacco (slide 79), e nos painéis de Fra Angelico em Florença (ca. 1431) e em Berlim (ca. 1450)

(slides 126 e 131). E é preciso destacar outro ponto, que refuta o argumento de Baschet: mesmo quando

trabalhando em uma iluminura específica sobre o Inferno dantesco, o artista poderia escolher não pintar os três

pares de asas. É o que se pode ver, por exemplo, em um fólio da Commedia executado por Bartolomeo di

Fruosino entre 1336 ou 1339 e 1441 (slide 178). Na iluminura, que apresenta o Inferno em uma única cena, o

Diabo, claramente, possui somente um par de asas de morcegos.

É preciso considerar que o número de asas na figura do Diabo se deva mais a problemas de ordem

compositiva do que por vontade consciente de se afastar ou não do modelo dantesco: é, com efeito, problemático

inserir três pares de asas que sejam claramente visíveis, sem comprometer, por outro lado, a visualização quer do

corpo do Diabo, quer do locus infernal. Buscando aperfeiçoar a clareza do Inferno – cujas figurações não

ocupariam uma área muito extensa especialmente nos painéis, mas também, proporcionalmente, nos afrescos em

que há uma composição única para o tema do Juízo final –, os artistas podem ter optado pela representação de

menos pares de asas do que fora descrito por Dante, o que não excluiria a influência do poema dantesco sobre as

pinturas do tema. E, embora a questão de espaço não fosse primordial nos afrescos com três composições

diversas, constituindo um ciclo com o tema do Juízo final (em que uma delas representaria unicamente o

eu duro./ Deixai toda esperança, ó vós que entrais./ Essas palavras vi, num tom escuro/ escritas sobre o alto de
uma porta (…)”]. Inf. III, 1-11.
599
Cf. Op. cit., p. 318.
600
Ibidem.
601
A área reservada ao Diabo, nesse afresco, é justamente a parte mais danificada da pintura, o que impede uma
adequada interpretação da figura. Lorenzo Lorenzi afirma haver seis pares de asas nessa figura, o que não pôde

CLXXXV
Inferno), uma vez que a superfície mural é bem mais extensa em todos os exemplos apresentados aqui, também é

possível que a opção por menos pares de asas se deva ao desejo de detalhar mais o Inferno em si, e não o Diabo.

Baschet trata, em seguida, das diferenças nos modos de representação de Maomé: “em Buffalmacco,

Maomé é arrastado em direção à boca [do Inferno], enquanto em Dante seu busto está fendido em dois (pena

aplicada aos simoníacos no afresco)”602. A simples inclusão da figura de Maomé no afresco pisano, no entanto,

já não poderia ser considerada suficiente influência da Commedia? Em nenhum dos exemplos anteriores ao

poema, em que já há um maior detalhamento do Inferno (mosaico do batistério de Florença, painel de Guido da

Siena, afresco da Capela Scrovegni), é possível discernir uma figura que pudesse ser associada diretamente ao

profeta muçulmano. Não parece ser coincidência que essa explícita alusão a Maomé ocorra pela primeira vez

justamente em uma das primeiras representações conhecidas do Inferno posteriores a Dante (devido ao grau de

deterioração do afresco giottesco no Bargello, não é possível saber se aqui também teria havido originalmente a

inclusão de Maomé).

Baschet, enfim, tenta minimizar a possível influência de Dante sobre o afresco do Camposanto de

Pisa mostrando como a representação simplificada de Buffalmacco se contraporia a outras imagens que

seguiriam de modo mais fiel as indicações do poeta na Commedia. O autor, em verdade, cria um falso problema,

buscando comparar imagens absolutamente diversas entre si – e que, portanto, dificilmente poderiam ser

aproximadas: um afresco em que o Inferno se integra a um ciclo com a representação do tema do Juízo final, e

iluminuras que ilustram um manuscrito da Commedia. O modo como o autor coloca o exemplo específico que

cita – a figura de Maomé – é suficiente para compreender isso. Baschet escreve que “a ilustração do canto

XXVIII segue exatamente as indicações de Dante”603. O autor tenta estabelecer comparações, desse modo, entre

um afresco que deve representar em uma única cena o Inferno como um todo, e uma iluminura que mostra

somente um canto da Commedia – ou seja, que ilustra um pormenor do Inferno dantesco. Dificilmente tamanha

precisão teria sido mantida caso o ilustrador necessitasse mostrar em uma única iluminura todo o cântico

infernal. É o que ocorre no já mencionado fólio pintado por Bartolomeo di Fruosino (slide 177). Embora sejam

reconhecíveis os principais castigos descritos por Dante, a simplificação compositiva é evidente. E, mesmo

assim, a imagem se torna confusa à primeira vista.

O mesmo ocorre com o Inferno executado por Nardo di Cione na Capela Strozzi, em que há,

evidentemente, uma imagem mais sintética do Inferno dantesco. Comenta Baschet que “a fidelidade ao texto não

absolutamente ser observado por esta pesquisa. Cf. Op. cit., p. 44. Talvez o autor tenha tido acesso a
reproduções fotográficas mais antigas do afresco, quando estivesse melhor preservado.
602
Op. cit., p. 320.

CLXXXVI
exclui certas adaptações”, mencionando o fato de que Dante e Vergílio não estão figurados no afresco, “nem por

conseqüência os episódios que relatam as circunstâncias de seu périplo (em particular os dois primeiros

cantos)”604. Uma vez mais, o autor parece criar um falso problema. Com efeito, não se pode esquecer que essa

representação na Igreja de Santa Maria Novella está ligada a um ciclo mais amplo sobre o Juízo final, em que,

sem dúvida, não haverá mais a distinção entre vivos e mortos – conforme acontece no poema dantesco. Como,

de resto, destaca o próprio Baschet em seguida, “a viagem de Dante é, com efeito, considerável somente no

tempo que precede o Julgamento”. Há, portanto, “uma adaptação ao valor eterno que impõe o Juízo final”605.

A iluminura de Fruosino e o afresco de Nardo di Cione trazem à tona outra questão: as dificuldades

de se transpor de forma fidedigna o texto dantesco para uma representação visual. O excesso de detalhes poderia

impedir a leitura adequada das imagens, por maior que fosse a superfície sobre a qual a pintura tivesse sido

executada. No caso específico do afresco florentino, é preciso ter em conta, ademais, que muitas das punições

descritas por Dante no Inferno e no Purgatorio possuem origens clássicas ou são interpretações de metáforas, o

que poderia dificultar a identificação do pecado e, por conseqüência, a compreensão da cena por um público

leigo. Pertile cita alguns exemplos: a metafórica tempestade de paixão que possuía os luxuriosos enquanto vivos

foi transformada em uma tempestade “real” que os atormentará eternamente606; a falsa distorção por meio da

qual os adivinhos, olhando para o passado, de forma fraudulenta afirmavam estar prevendo o futuro, tornou-se,

no Inferno dantesco, a condição eterna de seus corpos607. Difícil, portanto, seria a identificação dessas punições

com os pecados referentes por parte de quem não conhecesse o poema ou as interpretações dadas ao texto. Nardo

di Cione, em seu afresco do Inferno, contorna esse problema através de outro artifício: o artista inclui legendas,

ao lado das cenas, escritas em vernáculo, que evidenciam as punições, o que facilitaria o entendimento ao menos

603
Ibidem, nota 66. O grifo no texto é da autora desta tese.
604
Idem, p. 362.
605
Ibidem.
606
“La bufera infernal, che mai non resta,/ mena li spirti con la sua rapina;/ voltando e percotendo li molesta./
Quando giungon davanti a la ruina,/ quivi le strida, il compianto, il lamento;/ bestemmian quivi la virtù divina./
Intesi ch’a così fatto tormento/ enno dannati i peccator carnali,/ che la ragion sommettono al talento./ E come li
stornei ne portan l’ali/ nel freddo tempo, a schiera larga e piena,/ così quel fiato li spiriti mali/ di qua, di là, di
giù, di sù li mena;/ nulla speranza li conforta mai,/ non che di posa, ma di minor pena” [“A procela infernal, que
nunca assenta,/ essas almas arrasta em sua rapina,/ volteando e percutindo as atormenta./ Quando chegam em
face à sua ruína,/ aí pranto e lamento e dor clamante,/ aí blasfêmias contra a lei divina./ Entendi que essa é a pena
resultante/ da transgressão carnal, que desafia/ a razão, e a submete a seu talante./ Como estorninhos que, na
estação fria,/ suas asas vão levando, em chusma plena,/ aqui as almas carrega a ventania,/ e a revolver pra cá e
pra lá as condena;/ nem a esperança lhes concede alento,/ não já de pouso, mas de menor pena”]. Inf. V, 31-45.
607
“Come ‘l viso mi scese in lor più basso,/ mirabilmente apparve esser travolto/ ciascun tra ‘l mento e ‘l
principio del casso,/ chè da le reni era tornato ‘l volto,/ e in dietro venir li convenia,/ perché ‘l veder dinanzi era
lor tolto” [“Quando, abaixando a vista, olhei direito,/ vi que espantosamente era torcido/ cada um, do queixo ao
princípio do peito;/ para as costas seu rosto era volvido,/ e só andar para trás ele podia,/ pois que de olhar pra
frente era impedido”]. Inf. XX, 10-15. Ambos os exemplos mencionados foram retirados do texto de Pertile
“Introduction to Inferno”. In: JACOFF, R. (org.). Op. cit., p. 75.

CLXXXVII
da parcela da população leiga letrada, ainda que esta pudesse ser não muito expressiva608.

A maior parte dos artistas, de qualquer modo, parece ter optado por simplificar as descrições da

Commedia, mesmo a do Diabo. Assim, dificilmente se encontra, nessas imagens, o Diabo com as três faces de

cores diferentes, conforme narra Dante; embora quase todos sejam representados com as três cabeças, há uma

uniformização tanto no formato quanto nas cores em cada pintura – ressalte-se, porém, que não se desenvolve

um modelo de Diabo, tendo em vista que cada artista cria sua representação particular dessa figura, a partir da

descrição dantesca. Da mesma forma, ele não é mostrado com metade do corpo coberto de gelo: “e agora o rei

do triste reino eu vejo,/ de meio peito do gelo montante”609. Visualmente, parecia mais eficaz representá-lo de

corpo inteiro, por vezes defecando suas vítimas previamente engolidas – ou talvez as deglutindo, nos exemplos

em que, no lugar dos genitais, há outra singular e inquietante cabeça. É o que ocorre, por exemplo, no Diabo

afrescado por Taddeo di Bartolo em San Gimignano (slide 111). Segundo Nogueira, essa segunda face

“representaria o deslocamento do centro da inteligência e atenção, nos anjos caídos, da cabeça para os órgãos

inferiores”610.

É possível que não seja coincidência que justamente o ciclo de Santa Maria Novella tenha

reinterpretado de modo tão literal o texto dantesco. Dante, de fato, segundo uma hipótese bastante séria e

provável, teria sido aluno do convento dominicano em Florença; viria daí, portanto, ao menos parte de sua

formação teológica – não se pode esquecer, com efeito, sua passagem também pelo Convento franciscano de

Santa Croce –, e certamente sua influência tomista, aparentes no texto da Commedia. De acordo com Umberto

Baldini, “a Remigio de’ Girolami [já mencionado anteriormente] caberia o mérito de tê-lo introduzido nas obras

de Santo Tomás de Aquino”611. Como escreve o mesmo autor, a decoração da Capela Strozzi – o ciclo do Juízo

final em particular – seria

Página não tanto de história como de impostação teológica bíblica e, sobretudo,


afirmação e exaltação de um pensamento humano contemporâneo empenhado na
busca pela justiça divina e aqui adequado pela poesia de Dante, homenagem e
condescendência ao seu gênio humano e cristão, que aqui em Santa Maria Novella
se cultivou e cresceu e aqui, portanto, teve, traduzida, uma de suas primeiras
codificações.612

Entretanto, Baschet ressalta que, em 1335, o capítulo provincial, realizado no próprio Convento de

608
Também Taddeo di Bartolo inclui inscrições em vernáculo em seu afresco do Inferno em San Gimignano,
assim como Buffalmacco que, como visto, inseriu, dentre outros, trechos da própria Commedia. O uso de
legendas nas pinturas com o tema do Juízo final será discutido no quarto capítulo desta tese.
609
“Lo ‘mperador del doloroso regno/ da mezzo ‘l petto uscìa fuor de la ghiaccia”. Inf. XXXIV 28-29. Exceção
feita ao afresco de Nardo di Cione (slide 96) e ao painel de Fra Angelico realizado em 1431 (slide 126).
610
Op. cit., p. 63.
611
BALDINI, U. (org.). Santa Maria Novella. La basilica, il convento, i chiostri monumentali. Florença:
Nardini, 1981, p. 20.

CLXXXVIII
Santa Maria Novella, teria proibido aos religiosos a leitura de Dante613. Essa questão poderia comprometer a

hipótese levantada por esta pesquisa? Parece que não. Pois, mesmo que em meados e no fim da década de 1330

os textos de Dante fossem vistos com reticências pelos religiosos do convento, apenas vinte anos depois a

situação já teria se alterado a ponto de propiciar a realização de um ciclo com o tema do Juízo final em que o

Inferno claramente se baseia no poema dantesco. Baschet, seguindo outros dois pesquisadores, pondera que essa

opção iconográfica teria sido dos membros da família Strozzi, responsáveis pela encomenda do ciclo e por toda a

decoração da capela, “o que não teria sido o caso se os Dominicanos tivessem sido os comanditários diretos da

obra”614. Ora, mesmo que leigos encomendassem pinturas dentro de igrejas e conventos, o que era bastante

comum, é preciso ter em conta que, para que elas fossem de fato executadas, a temática e mesmo a iconografia

deveriam passar necessariamente pelo crivo dos responsáveis pelo estabelecimento religioso. Dessa forma,

parece improvável que, no caso do ciclo de Nardo di Cione, não houvesse a anuência por parte dos dominicanos

para a execução das pinturas do modo como foram feitas, ou seja, com a inclusão de uma visão do Inferno

dantesco.

E é preciso ter em conta, principalmente, o fato de que, no ciclo do Trionfo della Morte pisano,

executado em data próxima a essa proibição da leitura de Dante, há a inserção, como visto, de inscrições com

trechos da Commedia nos afrescos do Juízo final e do Inferno. Conforme comentado na introdução desta tese, é

bastante provável que o ciclo do Camposanto de Pisa tenha resultado de uma comissão dominicana. Assim, essa

proibição também não parece ter tido influência sobre os dominicanos que teriam desenvolvido o esquema do

ciclo.

A formação dominicana de Dante parece fechar um círculo de influências em algumas das

representações do tema do Juízo final na Toscana de finais do Duecento e do Trecento. Não se pode esquecer,

nesse contexto, a importância e a influência que o Convento de Santa Caterina – de onde provavelmente partiu a

elaboração iconográfica do ciclo do Trionfo della Morte – possuía em Pisa na primeira metade do século XIV.

Fundado em 1221, ele se tornou, a partir ao menos dos anos 1270, um importante centro cultural na cidade,

quando, “talvez por intervenção do próprio Tomás de Aquino, matérias filosóficas e literárias se colocam lado a

lado ao ensinamento da teologia”615; o convento também se afirma, nesse período, como um grande comitente de

obras artísticas, e desenvolve relações intensas com a vida de Pisa, propiciadas, de resto, pelo fato de que, entre

612
Idem, p. 13 e 14.
613
Op. cit., p. 362.
614
Ibidem, nota 26.
615
BOLZONI, L. La rete delle immagini. Predicazione volgare dalle origini a Bernardino da Siena. Turim:
Einaudi, 2002, p. 10.

CLXXXIX
1299 e 1342, todos os bispos da cidade são dominicanos616. Não se pode esquecer, principalmente, o fato de que

o arcebispo pisano no período de execução do ciclo – portanto, quem possivelmente seria responsável pela

comitência da obra, tendo talvez também participação em sua elaboração iconográfica, juntamente com

Domenico Cavalca – era Simone Saltarelli que, como visto na introdução desta pesquisa, havia sido prior desse

convento. Assim sendo, é presumível que a iconografia mesma das figurações do Juízo final e do Inferno tenha

sido submetida a um controle dominicano. Como escreve uma vez mais Baschet,

Mais do que a um texto em particular, prefere-se ligar a realização dessa obra [o


ciclo pisano], altamente pensada e fortemente didática, à cultura dominicana
representada pelo convento de Santa Catarina.617

É possível, no entanto, que a influência dominicana na representação do Juízo final já estivesse

presente desde finais do século XIII. Se não especificamente como os atores responsáveis pela execução de

algumas obras, os dominicanos poderiam estar presentes ao menos como elementos iconográficos destacados

dessas mesmas pinturas. De fato, ao se analisar o mosaico no batistério florentino, percebe-se uma peculiaridade:

no grupo dos eleitos, evidenciam-se as figuras de um dominicano em primeiro plano, e de um franciscano mais

atrás. A figura do dominicano está em posição de destaque em relação ao franciscano; o primeiro, com efeito,

surge não apenas em primeiro plano, como se apresenta de corpo inteiro. Do segundo, em contrapartida, vê-se

somente a cabeça618. O dominicano, ademais, forma um grupo com duas outras figuras que, como ele, estão à

frente dos eleitos: um soberano e um leigo com grande barba. É “evidente a valorização do frade predicador na

tríade em primeiro plano, índice de uma acentuação imediata dos relativos valores emblemáticos”619. Explica

ainda Annarosa Garzelli que isso significa,

Em outros termos: o poder monárquico, um representante (civil) dos poderes


citadinos e uma das duas grandes ordens religiosas recentes, aquela mais
freqüentemente investida de prerrogativas na defesa da integridade da fé.620

O destaque concedido a um membro da ordem dominicana na figuração do mosaico não é suficiente

para a determinação do comitente da obra, é claro. É um forte indicativo, no entanto, da crescente importância da

ordem no contexto florentino na segunda metade do século XIII, e da possível influência que possa ter tido na

616
Cf. Idem, p. 10 e 11.
617
Idem, p. 348.
618
É explícita, no entanto, a valorização de ambas as ordens mendicantes, especialmente ao se considerar outro
detalhe: em contraposição aos mendicantes se dirigindo ao Paraíso, encontram-se dois membros de outras ordens
religiosas no grupo dos danados que se dirigem ao Inferno – pelos trajes negro e branco, supõe-se que sejam um
beneditino e um cisterciense.
619
GARZELLI, A. “Per una lettura del Giudizio universale nel Battistero di Firenze”. In: Romanico
mediopadano e romanico europeo. Atti del Convegno internazionale. Modena, 1977, p. 400.
620
Ibidem.

CXC
elaboração da iconografia da obra621.

6. Os mendicantes, a conversão dos leigos e o tema do Juízo final

preciso considerar, agora, também outro ponto: segundo Baschet, uma lógica didática

É visando à conversão mais efetiva dos leigos, desenvolvida desde o século XIII nos

círculos mendicantes de modo geral, e no meio dominicano de forma particular,

especialmente por meio dos sermões em vulgar, teria sido a principal responsável pela

mudança nos modos de representação do tema do Juízo final, como se constata em Pisa622. Nesse sentido, o ciclo

do Camposanto pode ser considerado uma grande incitação à penitência; uma imagem, poder-se-ia dizer,

vulgarizada como os sermões, e que, com um maior apelo popular, buscava incitar nos fiéis o medo da

danação623. Muitas das coletâneas de sermões, proferidos particularmente durante o período da Quaresma, tratam

de algum modo do Juízo final e da necessidade de penitência. A denúncia do pecado, com efeito, domina o

conjunto de pregações mendicantes. É o caso do Quaresimale Fiorentino, do dominicano Giordano da Pisa624,

compilação dos sermões proferidos em 1305 e 1306, em que o autor não apenas faz uma clara associação entre

pecado e pena, como reforça também a importância do visual para a doutrinação dos fiéis. Essa noção

provavelmente influenciou a concepção dos afrescos pisanos.

Quanto a Dante, é preciso considerar que, ainda que já estivesse exilado no momento em que os

sermões foram publicados – recorde-se que Alighieri foi banido de Florença em 1302, enquanto a compilação do

Quaresimale foi feita em 1306 –, o poeta poderia ter tido contato com linhas de pensamento semelhantes às de

Giordano, que decerto circulavam pelo studium de Santa Maria Novella mesmo antes da virada do século. Ele

pode, assim sendo, ter adaptado de algum modo essas concepções à sua Commedia: a associação visual

defendida por Giordano é substituída, como visto, pelo conhecimento das faltas cometidas pelas personagens

históricas citadas; a empatia seria frisada pelo reconhecimento dessas personagens e pela proximidade –

temporal, social e geográfica – com os leitores da Commedia. Essa relação entre Dante e Giordano da Pisa,

percebida por esta pesquisa, ainda não foi explorada por outros pesquisadores.

Essa importância do visual poderia explicar um ponto levantado por Baschet a respeito do Inferno de

621
A presença dominicana no mosaico, nesse sentido, é também um meio de se estabelecer a cronologia do
mosaico. Com efeito, a influência da ordem começa a se intensificar após 1264, e especialmente após 1268, em
seguida à derrota do partido gibelino, momento em que ambas as partes, guelfos e gibelinos, buscarão formas de
acordo e pacificação. Os dominicanos terão papel de destaque nessas tentativas de paz. Cf. Idem, p. 401.
622
Op. cit., p. 349.
623
Sobre esse ponto, ver o próximo capítulo.
624
Quaresimale fiorentino 1305-1306 (org. Carlo Delcorno). Florença: Sansoni, 1974.

CXCI
Nardo di Cione: a ausência de menções aos indivíduos cujos destinos são descritos por Dante em seu poema625, o

que eliminaria, segundo o autor, “um aspecto fundamental do poema de Dante”. E complementa:

Nardo e os Dominicanos mantêm as categorias genéricas e eliminam os exemplos


particulares, quer se tratassem de contemporâneos ou de figuras exemplares como
Judas.626

A visualização da punição e a legenda explicando o tipo de pecador que é castigado daquela forma tornariam

dispensável a associação direta com figuras históricas. E essa opção será seguida também por outros artistas

empenhados na figuração das penas infernais627.

Outra questão importante deve ser colocada também: o desenvolvimento do tema do Juízo final, com

a maior particularização de Inferno e Paraíso, não se restringe somente às artes visuais. De fato, a primeira

metade do século XIV foi um período fértil para a composição de laude, surgidas dentro das confrarias umbras

no século XIII, e ligadas inicialmente ao movimento dos Disciplinati de 1260628. O tema dessas laudas, em não

poucos casos, era precisamente o Juízo final, que “surge cedo nessa tradição italiana”, de acordo com Baschet629.

Se no Laudario de Cortona – coletânea datada do fim do século XIII, é uma das mais antigas a chegar aos dias

atuais – o texto pouco se afasta da narrativa do Evangelho de Mateus, outras coletâneas, como o Laudario de

Pisa, composto entre 1305 e 1315, já concedem uma maior proeminência ao destino post-mortem,

particularmente dos danados: enquanto os condenados imploram pelo perdão divino, o Cristo juiz, ao pronunciar

seu veredicto, faz menção a diversas categorias de pecados630.

No Laudario de Perugia, composto com toda probabilidade no segundo quartel do século XIV, há

uma lauda particular, L’Anticristo e il Giudizio Finale, em que já há uma descrição minuciosa do Juízo final.

Dezenove estrofes desenvolvem em etapas os episódios a ele relativos. E, assim como ocorre nas pinturas do

mesmo período, percebe-se claramente a maior ênfase nos condenados: enquanto três estrofes bastam a anunciar

o destino dos justos, são necessárias sete para que o mesmo seja feito com os condenados; a essas estrofes se

seguem outras trinta que tratam somente dos danados, que pedem a intercessão da Virgem junto ao Cristo juiz631.

Ainda que, segundo Baschet, uma descrição tão minuciosa seja excepcional para esse período, não se pode

considerar, sem dúvida, a proximidade das datas de composição dessa lauda, da elaboração das pinturas com o

tema do Juízo final analisadas aqui e da redação da Commedia somente uma coincidência. E, nesse contexto, é

625
Op. cit., p. 363.
626
Ibidem.
627
Esse ponto também será melhor desenvolvido no próximo capítulo.
628
Sobre os Disciplinati, ver o primeiro capítulo desta tese, p. 104 a 106.
629
Op. cit., p. 452.
630
Cf. Ibidem.

CXCII
preciso ter em conta ainda que, de acordo com Giovanni Villani, em primeiro de maio de 1304 foi encenado um

espetáculo em Florença que, recordando as mascaradas carnavalescas, mostrava, em barcos sobre o rio Arno, as

penas que demônios aplicariam aos condenados no Inferno632.

O que precisa ser destacado – e este ponto parece reforçar o círculo de inter-relações proposto por

esta pesquisa – é o fato de que muitas dessas laudas parecem ter sido redigidas dentro dos âmbitos mendicantes

de franciscanos e dominicanos633. Baschet destaca uma diferença fundamental entre as laudas franciscanas e as

dominicanas: enquanto as primeiras possuiriam “uma orientação fortemente lírica” e emotiva, aquelas que

sofreram influência dominicana teriam “uma forma mais dramática e um conteúdo mais didático”634. Ou seja,

seriam concebidas com a mesma intenção pedagógica que as pregações e, em última análise, também as pinturas

sobre o Juízo final realizadas no mesmo período – ou, pelo menos, o ciclo do Trionfo della Morte do

Camposanto de Pisa635.

Desse modo, pode-se concluir que as conexões entre a Commedia de Dante e a iconografia do Juízo

final parecem estreitamente ligadas às ordens mendicantes, aos dominicanos em particular, em um círculo de

inter-relações que parecem vir ao menos desde a segunda metade do século XIII, e que parece ter repercutido nas

631
Cf. Idem, p. 453. As diferenças nos modos de representação de Paraíso e Inferno, nas pinturas e nos ciclos
com o tema do Juízo final, serão adequadamente desenvolvidas no próximo capítulo.
632
“(…) come per antico aveano per costume quegli di borgo San Friano di fare più nuovi e diversi giuochi, sì
mandarono un bando che chiunque volesse sapere novelle dell’altro mondo dovesse essere il dì di calen di
maggio in su ‘l ponte alla Carraia, e d’intorno a l’Arno; e ordinarono in Arno sopra barche e navicelle palchi, e
fecionvi la somiglianza dello ‘nferno con fuochi e altre pene e martori, e uomini contrafatti a demonia, orriboli
a vedere, e altri i quali aveano figure d’anime ignude, che pareano persone, e mettevangli in quegli diversi
tormenti con grandissima grida, e strida, e tempesta, la quale parea idiosa e spaventevole a udire e a vedere”
[“(…) como tinham por costume antigo aqueles do burgo San Friano fazer novos e diversos jogos, mandaram
um aviso de que quem quisesse saber novidades do outro mundo estivesse no dia primeiro de maio sobre a ponte
em Carraia, e ao redor do Arno; e ordenaram no Arno sobre barcos e barquetas palcos, e fizeram à semelhança
do Inferno com fogos e outras penas e martírios, e homens vestidos de demônios, horríveis de se ver, e outros
que tinham figuras de almas nuas, que pareciam pessoas, e aplicavam naqueles diversos tormentos com muito
grito, alarme e tempestade, que parecia espantoso de se ouvir e ver”]. Nuova cronica, volume II, p. 131. Ainda
segundo Villani, a curiosidade do povo florentino era tal que, devido à grande concentração de pessoas sobre a
ponte, esta acabou desabando, fazendo com que muitos fossem conhecer mais cedo, e pessoalmente, as penas do
Inferno: “(…) e ‘l ponte alla Carraia, il quale era allora di legname da pila a pila, si caricò sì di gente che
rovinò in più parti, e cadde colla gente che v’era suso; onde molte genti vi morirono e annegarono, e molti se ne
guastarono le persone, sì che il giuoco da beffe avenne col vero, e com’era Ito il bando, molti n’andarono per
morte a sapere novelle dell’altro mondo, con grande pianto e dolore a tutta la cittade, che ciascuno vi credea
avere perduto il figliuolo o ‘l fratello; e fu questo segno del futuro danno che in corto tempo dovea venire a la
nostra cittade per lo soperchio delle peccata de’ cittadini, sì come appresso faremo menzione”. Idem, p. 131 e
132. Note-se que também esse evento Villani relaciona aos pecados dos florentinos, como “sinal do futuro dano
que em curto tempo devia vir à nossa cidade”.
633
Cf. BASCHET, J. Op. cit., p. 455.
634
Ibidem.
635
Essa ênfase no Juízo final em fontes textuais se manterá ao longo dos séculos XIV e XV, conforme se
observou também nas pinturas. De fato, o tema se fará presente em diversas Sacre Rappresentazioni do
Quattrocento, como na Rappresentazione del Di del Giudizio, composta em meados do século XV por Feo
Belcari, e na Festa del Giudizio, escrita provavelmente em Bolonha em 1482. Cf. Idem, p. 456 e nota 18.

CXCIII
figurações do tema do Juízo final pelo menos até meados do século XV636.

No próximo capítulo, serão discutidas as possíveis funções das imagens durante o período medieval.

Será dada particular ênfase às pinturas que representam o tema do Juízo final, buscando, por fim, relacionar

essas mesmas funções ao desenvolvimento iconográfico de Paraíso e Inferno, e como isso se relaciona a

mudanças sociais e religiosas da Toscana do período.

636
E quiçá textuais também, embora essa aproximação entre textos requeresse outro estudo que fugiria ao escopo
da presente pesquisa.

CXCIV
CAPÍTULO IV

AS FUNÇÕES DO JUÍZO FINAL COMO IMAGEM RELIGIOSA

Homo, memento finis, et in aeternum non peccabis.


Ecl 7, 36

1. Introdução

A
o menos desde o século XVI os historiadores questionam o problema

do uso de imagens e objetos, considerados atualmente como

artísticos, para a construção do conhecimento histórico637. A visão

tradicional – que de certo modo ainda se mantém em alguns setores – era a de que a escrita

seria sempre o foco primordial; os chamados “textos figurativos” se limitariam a copiar desses

escritos os temas. Se ao menos até as primeiras décadas do século XX as imagens eram

entendidas especialmente como complemento, uma forma de corroborar uma informação

advinda de uma fonte escrita, atualmente já se percebe o uso potencial e autônomo dessas

mesmas imagens; entende-se que é possível compreender melhor a história através de objetos

artísticos – objetos admirados e analisados na atualidade principalmente por suas qualidades

estéticas –, uma vez que se percebe que esses objetos são um fato social construído. Abre-se o

campo, desse modo, para outras formas de conhecimento histórico.

As fontes visuais devem ser incluídas, portanto, entre as fontes historiográficas

essenciais; por possuírem origem diversa daquelas escritas, elas permitem perceber outras

formas de manifestação da vida social, assim como novos atores sociais. Isto revela a

diversidade das experiências possíveis; é o que permite reconhecer que as sociedades são

caracterizadas por diferentes tipos de expressão, que indicam, por sua vez, a multiplicidade

desses mesmos atores sociais. O uso de outras fontes permite, enfim, que se reconheça a

mudança do caráter do discurso em função do meio pelo qual é expresso; possibilita que se

CXCV
tenha não uma visão completa, mas uma noção menos fragmentada de uma determinada

sociedade. Como escreve o historiador inglês Peter Burke, “pinturas, estátuas, publicações e

assim por diante permitem a nós, posteridade, compartilhar as experiências não-verbais ou o

conhecimento de culturas passadas”638. A questão do uso das imagens por historiadores,

portanto, vem se tornando cada vez mais importante nas discussões históricas.

Muitos pesquisadores defendem uma suposta prevalência das imagens sobre outras

formas de manifestações culturais a partir de meados do século XX. Seguindo Jean-Claude

Schmitt, considera-se que essa visão parece ignorar que as sociedades cristãs medievais já

situavam “as imagens no centro de seus modos de pensar e de agir”639, questão que norteará

os desenvolvimentos desse capítulo. De qualquer modo, essa suposta preponderância visual

nas culturas contemporâneas vem não somente aumentando o valor dado às imagens enquanto

documentos, como também justificando o desenvolvimento de um novo campo de pesquisa

denominado estudos visuais ou cultura visual, cujo enfoque residiria principalmente na

cultura de massa do século XX e do início do XXI, em particular a partir da década de 1960.

Embora os autores640 que trabalhem nesse campo não excluam a priori a produção de

imagens de outras épocas – basta mencionar que o autor que de certo modo inaugura o campo,

Michael Baxandall, analisa a produção pictórica da Itália do século XV –, o modo como este

campo é discutido não parece dar margem à inclusão dessas imagens.

Apesar do enfoque contemporâneo dado pela maior parte desses autores, é possível

aplicar ao menos algumas das análises por eles propostas para imagens de outros períodos

637
Para um amplo histórico sobre essa discussão ver HASKELL, F. History and its images. Art and
interpretation of the past. New Haven e Londres: Yale University, 1995.
638
BURKE, P. Testemunha ocular. História e imagem (trad. V.M. Santos). Bauru: EDUSC, 2005, p. 16 e 17.
639
O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média (trad. J.R. Macedo). Bauru: EDUSC,
2007, p. 11.
640
Como ELKINS, J. Visual culture. A skeptical introduction. Nova York e Londres: Routledge, 2003;
LEPPERT, R. Art and the committed eye. The cultural functions of imagery. Oxford: Westview, 1996;
MIRZOEFF, N. An introduction to visual culture. Londres e Nova York: Routledge, 1999; STURKEN, M e
CARTWRIGHT, L. Practices of looking. An introduction to visual culture. Oxford: Oxford University, 2001,
dentre outros.

CXCVI
históricos – novamente, o texto mesmo de Baxandall641 parece corroborar essa idéia. Nos

casos em discussão pela presente tese, obras com o tema do Juízo final poderiam em última

instância ser consideradas uma grande forma não somente de ilustração, mas também de

difusão da doutrina cristã: seja um bom cristão e receba como recompensa as benesses do

Paraíso; peque e veja na obra as futuras conseqüências de seus atos…

2. Compreensão de uma imagem a partir de sua localização no edifício

A
adequada percepção de uma imagem – e por conseqüência também a

compreensão de seus significados – estará sujeita, sem dúvida, ao

momento histórico em que ela estará sendo discutida. Não se pode

esperar que uma mesma imagem seja percebida de igual modo por um cristão do século XIV

e por um cristão do século XX. De modo análogo, essa mesma compreensão dependerá não

somente de como será vista, mas igualmente de quem a vê – ou melhor, dos conhecimentos

prévios que aquele que vê a imagem possui. Sendo assim, um cristão do século XIV

necessariamente compreenderá uma pintura religiosa de forma diversa de um muçulmano do

mesmo período. Como escreve Richard Leppert,

Os observadores são participantes ativos na determinação do significado. Para ‘ver’


(isto é, ‘perceber’), tenho de conhecer algo. No nível mais básico isto requer que eu
642
reconheça o que estou vendo, embora o mero reconhecimento não me leve longe.

Comentam ainda acertadamente Sturken e Cartwright que “significados são afetados pela

orientação social do observador e pelo contexto em que se vê”643.

Para melhor esclarecer essa questão, pode-se tomar como exemplo o ciclo de

afrescos com o tema do Juízo final de Taddeo di Bartolo (slides 106 a 112): ele ganha, com

efeito, em sentido quando visto em seu contexto original, no interior da Collegiata de San

641
Painting and experience in fifteenth-century Italy. A primer in the social history of pictorial style, 2ª
edição. Oxford e Nova York: Oxford University, 1988. A primeira edição do texto é de 1972.
642
Op. cit., p. 06.
643
Op. cit., p. 47.

CXCVII
Gimignano, onde ocupa a parede interna da fachada, bem como as duas paredes da nave

central, fechadas originalmente por uma estrutura gradeada, formando uma capela. A escala

monumental da obra intensifica o impacto sobre o observador. Ademais, a imagem do Juízo

final será melhor compreendida em relação ao resto da decoração da igreja – o que indica a

importância dos programas iconográficos que regiam a elaboração das pinturas nesses espaços

religiosos. Afinal, como explica Jérôme Baschet, as imagens não podem ser analisadas de

forma isolada, pois “deve-se tentar restituir uma realidade espacial, na qual se organizam

constelações de imagens”644. É por isso que o autor francês define as igrejas como lieu

d’images: “um objeto total, complexo, no qual as imagens se ligam entre si, se fundem com o

lugar, e participam em sua função que é celebrar o culto de Deus e dos santos”645. As

imagens, de fato, existem em um lugar específico. Segundo Lina Bolzoni,

É este o primeiro sentido do desenvolvimento dos ciclos de afrescos: oferecem


dentro de uma arquitetura, isto é, dentro de um espaço tridimensional ordenado,
646
séries de imagens ordenadas também elas em um ou vários percursos.

Essas imagens, organizadas em uma determinada seqüência, desenvolvem, em

geral, uma narrativa. No caso da Collegiata, a decoração da igreja expõe, efetivamente, a

história cristã com afrescos representando cenas do Antigo e do Novo Testamentos. Não se

pode esquecer que a história, na concepção medieval, seria em verdade o “movimento da

vontade de Deus através do tempo”647. Essa concepção da igreja como microcosmos surgiu

primeiramente na cultura cristã oriental. Este fato se relacionava diretamente à decoração do

espaço sagrado, como explica com precisão André Grabar:

Este tipo de decoração foi planejado para igrejas de planta centrada com uma cúpula
central. E assim como estas eram concebidas como microcosmos, reproduções em
escala reduzida do Cosmos, também as pinturas nas paredes e abóbadas eram

644
Lieu sacré, lieu d’images. Les fresques de Bominaco (Abruzzo, 1263): thème, parcours, fonctions. Roma:
École Française de Rome, 1991, p. 05.
645
E, como recorda ainda Baschet, “a disposição das cenas não responde somente ao princípio de encadeamento
narrativo: a posição de uma imagem pode também ser calculada de modo a se estabelecer uma relação
significante com outras cenas”. Idem, p. 06 e 07.
646
“Costruire immagini. L’arte della memoria tra letteratura e arti figurative”. In: BOLZONI, L. e CORSI, P.
(org.). La cultura della memoria. Bolonia: Il Mulino, 1992, p. 60.
647
DERBES, A. e SANDONA, M. “Barren metal and the fruitful womb: the program of Giotto’s Arena Chapel
in Padua”. In: The Art Bulletin, volume LXXX, n.º 1, junho de 1998, p. 274.

CXCVIII
projetadas segundo um plano sistemático para a instrução dos fiéis. Na cúpula e em
sua subestrutura eram mostradas as mais santas figuras do mundo invisível; no coro,
os mistérios sagrados pertencentes ao mesmo mundo tornados inteligíveis; em
abóbadas secundárias e paredes, os eventos da vida de Cristo na terra,
correspondendo aos diversos estágios da redenção do homem, de que a Missa
solenizada na igreja era testemunha. Esta ilustração iconográfica da Missa era parte
de uma disposição plástica do Universo Ideal e correspondia a uma noção cara aos
bizantinos – de que a liturgia da Igreja não era mais do que um correlativo terreno da
interminável Missa solenizada no céu pelos anjos, que, apenas após a redenção da
humanidade pelo Verbo tornado Carne, poderia tornar sua natureza conhecida ao
homem. Portanto os ciclos dos Evangelhos representados nas igrejas bizantinas
medievais eram lembretes do retorno do homem à união com Deus e do direito que
648
ele possuía de um lugar no Universo de Deus, como representado em cada igreja.

Neste contexto, não é difícil perceber a importância do Juízo final, que encerra a história do

universo e dos homens, propiciando, como escreve Grabar, o retorno dos eleitos à união com

Deus – ou, aos condenados, a privação eterna desta mesma união. Como explica Giorgio

Segato especificamente com relação ao ciclo de Giotto na Capela Scrovegni (slides 40 a 46),

Culpas e méritos conduzem ao prêmio ou à condenação no momento do triunfo do


Cristo juiz (…): então os anúncios, as antecipações do Antigo Testamento nas
janelinhas quadrilobadas, e as mensagens evangélicas, os exemplos dos santos e dos
Padres não são mais narrativa e sim referências para efetivas escolhas
649
comportamentais.

Essa noção apenas explicada por Grabar, como se pode inferir, foi também

assimilada e adaptada pela tradição ocidental. Assim, o ciclo com o tema do Juízo final de

Taddeo di Bartolo em San Gimignano (slides 106 a 112) conclui, conforme apenas

comentado, o programa decorativo da Collegiata, os ciclos de afrescos com a temática do

Antigo e do Novo Testamentos, que haviam sido realizados anteriormente por Barna da Siena

e Bartolo di Fredi nas paredes da nave650. O ciclo de San Gimignano, decerto, faz parte de

uma tradição toscana em que há essa inter-relação na decoração do espaço sagrado, em que as

narrativas dos Antigo e Novo Testamentos culminam com a representação do Juízo final. O

648
GRABAR, E. Byzantine painting (trad. S. Gilbert). Nova York, Skira, 1953, p. 26.
649
“Giotto a Padova. Un viaggio giubilare come spirale della salvezza”. In: GIZZI, C. (org.). Giotto e Dante.
Milão: Skira, 2001, p. 138.
650
Cf. SOLBERG. G.E. Taddeo di Bartolo. His life and work (tese de doutorado). Nova York: New York
University, 1991, p. 237. Borsook busca explicar os motivos por que artistas de destaque no cenário artístico
sienense se deslocaram para San Gimignano para pintar esses ciclos: “A peste de 1348, porém, dizimou e
empobreceu os sienenses de tal modo que além desses dois projetos [a fachada do Batistério e a loggia
construído na Piazza del Campo] toda grande atividade construtiva na cidade ficou paralisada por mais de um
século. Entre 1348 e 1400 nenhum grande esquema mural parece ter sido encomendado na cidade. Os melhores

CXCIX
mesmo ocorre com o afresco na Basílica de Sant’Angelo in Formis (slides 06 a 12) e também

no já mencionado ciclo de Giotto em Pádua. No primeiro caso há, assim como em San

Gimignano, a seqüência de cenas do Antigo e do Novo Testamentos; no segundo, narram-se

as vidas da Virgem e do Cristo. Não há a representação do Antigo Testamento – embora,

segundo Segato, as histórias de São Joaquim e Santa Ana no início do ciclo resumissem todas

as histórias veterotestamentárias651; a cena do Juízo final, porém, se apresenta da mesma

forma como a conclusão lógica para as histórias narradas nas paredes laterais da capela – que,

no caso específico da vida de Cristo, são as próprias cenas do Novo Testamento, narradas até

o episódio de Pentecostes652. De acordo com Hans Belting, o ciclo da Capela Scrovegni

apresenta outra particularidade: as pinturas murais estariam “visíveis de um único ponto de

observação”, oferecendo, desse modo, “ao observador a história sagrada pela primeira vez

como uma seqüência de experiências visuais que o fiel poderia fazer pessoalmente”653. No

mosaico do Batistério de San Giovanni, em Florença (slides 20 a 30), por fim, a cena do Juízo

final, voltada para o oeste, ocupa três faces da cúpula octogonal, enquanto nas outras cinco,

divididas cada uma em quatro faixas horizontais e nas quais são representadas quinze cenas,

estão figuradas cenas do Gênesis até o Dilúvio, a vida de José, a vida de Cristo e a vida de

São João Batista. As faixas superiores de todas as faces representam as nove ordens

pintores como Barna e Bartolo di Fredi encontraram trabalho em outros lugares”. The mural painters of
Tuscany from Cimabue to Andrea del Sarto. Londres: Phaidon, 1960, p. 23.
651
“As figuras de Joaquim e Ana (…) sintetizam em sua história pessoal todo o Antigo Testamento e a longa
viagem desde a criação do homem até o nascimento de Cristo: as dúvidas, as hesitações, os distanciamentos, a
prece, as visões, prodígios, os anúncios, a aliança”. “Giotto a Padova. Un viaggio giubilare come spirale della
salvezza”. In: GIZZI, C. (org.). Op. cit., p. 138.
652
Destaca Bernardine Barnes, entretanto, que é preciso considerar também que a cena do Juízo final
interromperia, de certo modo, a leitura das narrativas das paredes das igrejas, seja porque estaria colocada entre
duas cenas seqüenciais do ciclo, seja porque excederia a escala dessas imagens; normalmente ocorreriam ambas
as situações, enfatiza uma vez mais a autora. Cf. Michelangelo’s Last Judgment: the Renaissance response.
Berkeley: University of California, 1998, p. 08. A intenção, sem dúvida, seria a de apresentar uma imagem
poderosa – o que é intensificado por suas dimensões – de modo a exercer uma atração e um fascínio maiores nos
espectadores.
653
L’arte e il suo pubblico. Funzione e forme delle antichi immagini della Passione. Bolonha: Nuova Alpha,
1986, p. 22.

CC
angélicas654.

Para uma plena compreensão de uma imagem com o tema do Juízo final no interior

de uma igreja ou de outro edifício – embora essa discussão pudesse ser estendida a qualquer

imagem religiosa – é preciso, portanto, que o observador possua conhecimentos básicos sobre

a doutrina e a exegese cristãs, e também sobre as histórias bíblicas, de modo a poder

reconhecer nas paredes as cenas retratadas e compreender que o Juízo final fecha esse ciclo

narrativo mais amplo. É importante, ademais, conhecer a localização original da

representação que se observa e sua relação com outras imagens a ela próximas – o que é

essencial quando a imagem em questão é uma pintura ou escultura colocadas em um museu,

retiradas, portanto, de seu contexto original. Deve-se ter em conta, desse modo, o programa

iconográfico que provavelmente teria sido concebido na origem, e não as fragmentações

posteriores e/ ou deslocamentos para outros locais que não o original.

A Toscana, entretanto, apresenta ainda outra particularidade com relação à

decoração do espaço religioso: desde o século XIII tornara-se freqüente que, ao elaborar seus

testamentos, muitos destinassem uma parcela de seu espólio para a realização de uma pintura

ou escultura de caráter devocional em alguma igreja. Em geral, era especificado não somente

o tema – normalmente o santo pelo qual o falecido tinha particular devoção – como também o

local exato em uma igreja determinada em que a pintura deveria ser feita. Se em muitos casos

eram encomendados painéis ou estátuas para a ornamentação de altares – bens móveis, de

fato, em geral poderiam ser mais numerosos do que afrescos, não somente por sua mobilidade

como por seu custo, usualmente inferior –, em vários outros era requisitada a elaboração de

uma pintura mural655. Dessa forma, aos ciclos narrativos não raro se juntavam também

654
Cf. WILKINS, E.H. “Dante and the mosaics of his Bel San Giovanni”. In: Speculum, volume II, n.º 01,
janeiro de 1927, p. 01.
655
É preciso destacar, entretanto, os estudos de Samuel Cohn sobre seis cidades da Itália central. Eles indicam
que, se no século XIII poderiam se encontrar nos testamentos pedidos para a realização de pinturas ou esculturas
para adornar altares, solicitações para compra de óleo para iluminação dessas mesmas obras ou ainda ex votos,
especialmente em Florença, Arezzo e Perugia, ao final do Duecento e ao longo de toda a primeira metade do
Trecento, ao menos até a década de 1360, essas comissões desapareceram quase que por completo do “massivo

CCI
Imagens de personagens sacros que, realizados por iniciativa privada, parecem
multiplicar-se de modo absolutamente desordenado ao longo de paredes e pilastras,
sem um fio lógico que as una, sem uma moldura que as ligue ou uma continuidade
656
formal que as suporte.

Estudos realizados sobre a prática testamentária nos séculos XIII e XIV indicam

que o número de imagens encomendadas poderia superar em muito o espaço disponível

nessas igrejas. Não há como ter certeza quanto ao número de imagens efetivamente

executadas a partir de ditames testamentários, mas, segundo Michele Bacci, é provável que

houvesse uma renovação periódica dessas pinturas com o tempo, seja porque a devoção a

determinado santo houvesse diminuído – e a sua imagem, portanto, poderia ser substituída

pela de outro santo cuja popularidade houvesse aumentado no mesmo período –, seja porque

alguém, ao escrever um testamento mais recente, tivesse determinado o pagamento de uma

soma mais vultosa para a realização de sua pintura devocional657.

Poder-se-ia, então, especular como uma imagem do Juízo final se relacionaria a

essa decoração mutável do edifício religioso. É preciso considerar nesse momento que

imagens, ainda que ganhem em sentido se estiverem inseridas dentro de um programa

iconográfico, devem ser também auto-suficientes. Ou seja, elas independeriam a priori de

qualquer outra imagem próxima para possuir um significado pleno. Além do mais, no caso

específico dos afrescos discutidos nesta tese, eles se localizam em edifícios cuja decoração

não seria constantemente modificada por desejos devocionais da população. Dentre as igrejas

discutidas aqui, somente a de Santa Maria Novella se encaixaria adequadamente nesse

número de testamentos cujos pergaminhos ficaram abarrotados com numerosos legados de caridade de valores
desprezíveis escritos em uma única linha”. The cult of remembrance and the Black Death. Six Renaissance
cities in central Italy. Baltimore e Londres: John Hopkins University, 1992, p. 113. Segundo o autor, essa
mudança poderia ser explicada especialmente pela força das pregações das ordens mendicantes, assim como a
influência dessas sobre a população de modo geral. De fato, a orientação desses grupos era a de se redigirem
“testamentos que liquidavam uma propriedade do testador e então a dispersava em somas irrisórias por
numerosas causas pias”. Idem, p. 112. O objetivo principal desse tipo de pensamento seria evitar qualquer traço
de “orgulho terreno”, que poderia, por sua vez, ser associado à vanitas.
656
BACCI, M. Investimenti per l’aldilà. Arte e raccomandazione dell’anima nel Medioevo. Roma e Bari:
Laterza, 2003, p. 35.
657
Cf. Ibidem.

CCII
perfil658. A interpretação do ciclo de Nardo di Cione (slides 90 a 97), entretanto, não seria

afetada por isso, tendo em vista seu posicionamento dentro da igreja659.

Esse último ponto levanta outra questão. É preciso ter em conta, ao estudar uma imagem, que as

expectativas com relação às funções de representações com o mesmo tema poderiam variar bastante de acordo

com seu posicionamento dentro de um edifício. Assim, se os ciclos de Taddeo di Bartolo e de Nardo di Cione

possuem um mesmo aspecto compositivo básico – ambos se estendem por três paredes adjacentes, com a cena

do Juízo final ao centro, e tendo Inferno e Paraíso face a face em paredes opostas –, a significação específica de

ambos deverá forçosamente ser diversa em função de sua localização no interior da igreja. O afresco do Juízo

final de Taddeo, conforme comentado anteriormente, seria visto especialmente no momento da saída da igreja,

por estar localizado na parede interna da fachada; por conta desse posicionamento a sua mensagem estaria “mais

acessível ao povo, em função de sua função pedagógica”660.

O ciclo de Nardo di Cione, em contrapartida, teria uma visibilidade muito mais restrita, por ter sido

executado em uma capela privada – da família Strozzi – que se encontra no transepto esquerdo da Igreja de Santa

Maria Novella. Em tal posicionamento, de acordo com Christe, o tema teria como “espectadores privilegiados os

cônegos e seu círculo”661, além dos próprios membros da família que provavelmente freqüentariam a capela.

Essa restrição se deve às destinações específicas de cada área da igreja, conforme explicou Guillelmi Duranti, o

mais respeitado liturgista do século XIII, em seu Rationale divinorum officiorum:

O santuário está de fato para o estado de quem é virgem, o coro para os continentes,
o corpo para os conjugados. Em verdade o santuário é mais estreito do que o coro e
o coro do corpo porque aqueles que observam a virgindade são em número menor
do que os continentes e estes últimos dos conjugados; o lugar do santuário é portanto
mais sagrado do que o coro, e o coro do que o corpo, porque o estado de quem é
virgem possui maior dignidade do que aquele dos continentes, que por sua vez é
mais digno do que aquele dos conjugados.662

658
A esse respeito, é interessante a descrição da igreja – antes das sistemazioni realizadas por Vasari no século
XVI – feita por Martin Wackernagel em 1980 e citada por Cohn: “o que encontramos hoje desde a reorganização
feita por Vasari assim como [desde] a purista restauração neogótica de cerca 1860 é uma organização de interior
espaçosa, claramente compreensível (…). Isto, entretanto, é o completo oposto da condição anterior (…). Altares
e túmulos também apareciam por todo o espaço da igreja em uma distribuição assimétrica sem planejamento e
variedade de formas. A igreja era portanto um organismo multipartido, formidável e ricamente ramificado, cuja
proliferada abundância de formas estava conscientemente entrelaçada e interligada a uma variedade de cores não
menos rica. (…). A isso eram adicionados por toda parte brasões dos doadores e estandartes ou outros objetos
memoriais dobrados sobre muitos túmulos (…). A aparência de sua presente condição, fragmentária e indistinta,
fornece somente uma pálida sugestão do rico esplendor original desse espaço. E a desordem de formas e cores na
imagem total do interior da igreja permanece totalmente inconcebível”. Apud Op. cit., p. 377, nota 147.
659
Sobre isso, ver a seguir.
660
CHRISTE, Y. Il Giudizio universale nell’arte del Medioevo (trad. M. G. Balzarini). Milão: Jaca Book,
2000, p. 08. Sobre a função pedagógica das imagens no período medieval, ver a discussão a seguir.
661
Ibidem.
662
Apud BACCI, M. Op. cit., p. 26.

CCIII
Desse modo, a área em que está a Capela Strozzi estaria reservada especialmente aos religiosos que

participariam dos ofícios. Mesmo que o fiel leigo pudesse se aproximar da área do transepto, dificilmente

conseguiria uma visualização adequada das pinturas na capela; se tanto – e isto não pode ser considerado uma

coincidência – os fiéis teriam uma vista parcial do afresco do Inferno.

Deve-se considerar, ainda dentro do contexto de uma igreja, as representações localizadas no arco de

ingresso da abside – o arco cruzeiro –, como ocorre no afresco de Bicci di Lorenzo na Igreja de San Francesco,

em Arezzo (1447-1452) (slides 133 e 134), ou no afresco atribuído a Jacopo di Mino del Pellicciaio na

Collegiata de Casole d’Elsa (slides 50 a 52). Em ambos os casos, os espectadores teriam oportunidade de

contemplar a representação visual do Juízo final durante as cerimônias religiosas. Uma explicação possível para

esse posicionamento poderia residir no simbolismo associado à divisão da igreja em nave e coro. O arco

cruzeiro, com efeito, separa a área reservada ao clero daquela destinada ao leigo; simbolicamente, marcaria

também uma divisão mais ampla, a separação da Igreja militante na terra e a Igreja expectante (as almas no

Purgatório) da Igreja triunfante no Paraíso. O Juízo final, de fato, é o marco divisor entre essas instâncias663.

Ressalte-se também o caso particular do mosaico do Batistério de San Giovanni, em Florença (slide

21), executado, como visto, na parte interna da cúpula octogonal do edifício. No contexto decorativo da cúpula,

não apenas o Cristo juiz é o elemento de maior destaque, uma vez que ocupa praticamente três quartos de toda a

altura da cúpula – enquanto, para as outras cenas, essa mesma área é dividida em quatro faixas horizontais –,

como a cena mesma do Juízo final se localiza no ponto de maior destaque e honra, imediatamente acima do arco

cruzeiro que delimita a área do altar principal, e acima da fonte batismal. Desse modo, assim como nos exemplos

em que a cena é representada no arco cruzeiro, também aqui ela seria vista pelo fiel especialmente no transcorrer

dos ofícios. Não somente: de acordo com Lamberto Crociani, o Juízo final seria não apenas a primeira como a

única cena a ser vista pelos recém-batizados ao saírem das águas batismais e se dirigirem à abside para

receberem a Confirmação664. “A síntese de suas catequeses e os modelos para suas vidas como iniciados podem

ser vistos somente quando eles se voltam da abside em direção à porta ‘do Paraíso’”665. Desse modo, aos neófitos

era mostrada “sua condição como Crianças da Luz, no início de uma jornada que poderia levá-los ao Paraíso ou

663
Na Península Itálica, o primeiro exemplo de um Juízo final pintado no arco triunfal seria o da Igreja de Santa
Maria Maggiore, em Tuscania, ao norte de Roma. Cf. BASCHET, J. Les justices de l’au-delà. Les
représentations de l’enfer en France et en Italie (XIIe-XVe siècle). Roma: École Française de Rome, 1993, p. 211,
nota 205.
664
“The iconography of the Baptistery”. In: LORENZI, L. Devils in art. Florence, from the Middle Ages to the
Renaissance (trad. M. Roberts). Florença: Centro Di, 1997, p. 15.
665
Ibidem.

CCIV
ao Inferno”666, representados na cena do Juízo final.

Por fim, é preciso recordar, dentre os exemplos estudados por esta pesquisa, os afrescos do

Camposanto de Pisa (slides 71 a 79), os únicos executados em um local específico para sepultamento. O

Camposanto, porém, cumpria também outras funções dentro da vida da cidade. Um documento de 1343, com

efeito, faz referência a alguns ritos ali realizados por confrarias de flagelantes. Como escreve Lina Bolzoni,

Podemos portanto pensar que procissões penitenciais acontecessem no Camposanto,


ao longo do percurso indicado pelos afrescos, segundo tempos e modalidades que
faziam com que cada elemento da mensagem transmitida se exprimisse
profundamente na mente e também no corpo, na carne dos participantes.667

Esse mesmo percurso também seria realizado pelo fiel comum que se dirigisse ao

Camposanto para sepultar seus mortos ou simplesmente para orar por eles. Sobre isso, escreve

Emilio Tolaini que

Era especialmente no ciclo afrescado Trionfo-Giudizio-Tebaide, emotivamente o


mais intenso [dentre os ciclos pictóricos pisanos], que o visitante encontrava uma
resposta à sua ânsia de conhecer o próprio destino após a morte, um estímulo à sua
reflexão sobre o pecado, um peremptório convite ao seu arrependimento.668

Especialmente os afrescos do Trionfo e do Inferno exercem com maior intensidade

esse poder de persuasão sobre o fiel. Afinal, segundo Tolaini, “o conceito de punição era

simples, sem nuances”669. É certo, porém, que eles adquirem uma força visual exacerbada

quando é feita a leitura de todo o conjunto: pode-se perceber com clareza como os

desregramentos da vida – a que se seguirão, sem sombra de dúvida, a morte e a conseqüente

decomposição do corpo físico, e, portanto, também a impossibilidade de remediar erros

cometidos em vida (Trionfo) –, após o julgamento de Cristo no último dia (Juízo final), levam

de forma inequívoca à condenação eterna (Inferno); o ciclo se encerra, enfim, com a indicação

de uma forma de vida alternativa, que conduziria à salvação (Tebaide), ainda que não seja

representado efetivamente o Paraíso. Como escreve Chiara Frugoni,

666
Idem, p. 15 e 17. A importância das representações de Paraíso e Inferno será discutida mais adiante neste
capítulo.
667
La rete delle immagini. Predicazione volgare dalle origini a Bernardino da Siena. Turim: Einaudi, 2002, p.
37 e 38.
668
“Lo specchio dell’Inferno nel Campo Santo di Pisa, um passo dell’Aretino e una nota di Francesco da Buti”.
In: Critica d’arte, LXV, n.º 16, 2002, p. 34.

CCV
Depois do Trionfo, do Juízo e do Inferno, que têm como discurso dominante o
terror (…), chega-se, com a Tebaide, finalmente a um ‘discurso em positivo’, dado
que as Vidas dos Santos Padres [o texto vulgarizado das Vidas foi escrito por
Domenico Cavalca] querem sugerir exemplos de virtude, garantidores finalmente
do paraíso (…). De fato os Santos Padres recebem a eterna beatitude porque
abandonam de todo o século, tratam o corpo como um obstáculo a vencer,
‘renunciando a toda coisa dileta’, transcorrendo a vida em ‘ânsias e ‘suspiros’.670

O propósito didático, aqui, é evidente, enfatizado, de resto, também pelas muitas inscrições

que acompanhavam os afrescos, legíveis ainda no fim do século XIX:

O teu coração deve tremer fortemente/ Ó pecador, porque não tens temor/ Pensando
naquele grande dia da sentença/ Onde te convirás representar./ Aqui então não
poderás contrastar/ Nem juiz encontrar para tua defesa.671

No ciclo do Camposanto, com efeito, as inscrições é que fariam, para o público letrado, a exortação ao

arrependimento672.

A localização da pintura dentro do edifício também deve ser analisada em função de sua própria

estrutura arquitetônica. Basta mencionar, nesse sentido, o exemplo de Giotto em Pádua: originalmente, o Cristo

juiz do afresco era iluminado, em determinados momentos do dia, por um facho de luz proveniente de uma

abertura na parede oposta, em cujo batente o artista retratou Deus Pai. Essa pequena janela poderia ser

considerada a “porta” do Paraíso, e o facho de luz a fonte divina que iluminaria o Cristo no momento do Juízo

final. O efeito de luz sobre o afresco deveria ser estupendo, como explica Giorgio Ronconi:

Esta luz, dirigindo-se sobre o Cristo, tornava mais esplendente a mandorla nas cores
do arco-íris que o envolvia, irradiando-se particularmente dos três pequenos
espelhos redondos postos sobre a auréola de seu rosto, bem evidenciados pelo
recente restauro.673

Vale recordar aqui, também, o preceito evangélico tão explorado pelo Abade Suger (1081-1151): o de Cristo

como Luz do mundo, que se torna presente na igreja.

669
Ibidem.
670
“Altri luoghi, cercando il Paradiso (il ciclo di Buffalmacco nel Camposanto di Pisa e la committenza
domenicana)”. In: Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa. Série III, vol. XVIII, n.º 4. Pisa, 1988, p.
1585.
671
“Il cuor ti devere’ forte tremare/ O peccator, perché non hai temença/ Pensando quel gran dì della sentença/
Dove ti converrà representare./ Quivi non poterai tu contrastare/ Né judice trovar per tua difensa”. Apud Idem,
p. 1571. Esse soneto estava colocado originalmente sob o afresco do Juízo final.
672
Sobre a importância das inscrições, assim como uma discussão a respeito de São Gregório Magno e a função
didática da arte medieval, ver mais adiante neste mesmo capítulo.
673
“Dante e Giotto agli Scrovegni”. In: Padova e il suo territorio, n.º 97, 2002, p. 35. Corrado Gizzi mostra
ainda outras particularidades que se devem à estrutura do edifício: “a parte do afresco em que é representado
Enrico Scrovegni que oferece a capela à Virgem, sob o Cristo juiz, nos dias das mais importantes festividades da
Virgem – 25 de março, Anunciação; 15 de agosto, Assunção, 8 de setembro, Natividade de Maria – nas
primeiras horas da manhã é iluminada pela luz que penetra de uma pequena abertura que se abre sobre a janela
imediatamente à esquerda da porta de entrada. Além das supracitadas festividades marianas, ao meio-dia do

CCVI
Enfim, é necessário investigar igualmente as especificidades dos locais em que são realizadas as

pinturas. Ou seja, não basta saber em que lugar do edifício elas se encontram, mas também em que tipo de

edifício elas foram executadas. Nos exemplos discutidos nesta tese, o tema do Juízo final é representado em

locais tão diversos como catedrais, igrejas abaciais, paróquias, collegiate (igrejas formadas segundo o modelo

das catedrais, mas cujos membros formariam um colégio674), batistérios, capelas – sejam públicas ou privadas –,

capelas funerárias, capelas palacianas e mesmo cemitérios e túmulos individuais; e não podem ser esquecidos os

inúmeros painéis que, além de serem encontrados em qualquer um desses edifícios, poderiam estar presentes

também nas residências dos fiéis. Uma vez mais, as possibilidades de funções poderiam se alterar conforme o

tipo de edifício a que se destinava a imagem.

Deve-se considerar, por fim, que essas obras serão apenas compreendidas em sua totalidade se o

observador conhecer a situação religiosa da Toscana do século XIV; será possível, assim, entender de forma

mais adequada as funções desempenhadas por esse tipo de imagem nessa cultura específica. Conforme

comentado, as percepções dessas imagens hoje diferem largamente, sem dúvida, dos modos de assimilação das

mesmas no Trecento. É necessário, ademais, ter um domínio da iconografia do tema do Juízo final de modo

geral, assim como dos diferentes tipos iconográficos acrescentados à estrutura inicial desse tema ao longo do

tempo.

É preciso, no entanto, ressaltar que aquele que não compreende a iconografia do

Juízo final, seu significado e sua importância no contexto religioso cristão, particularmente

durante a Idade Média e mais ainda para a Toscana do Trecento, ainda assim poderá ser capaz

de apreciar a obra por suas qualidades artísticas; a apreciação estética, em um nível mais

básico, independe, de fato, do significado mesmo da obra. O apreciador não poderá,

entretanto, ir além disso, pois a obra possui uma significação fundamental que, como visto,

deve ser encontrada fora de si própria. Uma pintura de uma mulher com uma criança no colo

pode, com efeito, ser admirada por suas qualidades estéticas, pela delicadeza da pincelada,

pela beleza do desenho; essa mesma pintura, entretanto, ganha enormemente em significação

quando se reconhecem nas personagens a Virgem Maria e o Menino Jesus, mesmo que o

Natal, o fiel que se coloque de frente para o altar, é iluminado pela luz que penetra da janela, à esquerda da cena
da Natividade”. “Giotto e Dante”. In: _____ (org.). Op. cit., p. 59.

CCVII
observador não seja cristão ou esteja inserido nessa tradição cultural judaico-cristã. As

imagens criadas pelo homem ao longo de sua trajetória são parte de toda uma tradição, não

podendo ser plenamente compreendidas sem um conhecimento dessa mesma cultura. “Para

interpretar a mensagem, é necessário familiarizar-se com os códigos culturais”, afirma

Burke675. Sem um conhecimento dessa tradição religiosa cristã, a Última ceia de Leonardo

torna-se apenas mais uma cena de banquete, ou de um jantar entre amigos.

Mesmo quem reconhecesse o tema, porém, poderia estar limitado na compreensão

plena da obra. Na Idade Média, com efeito, defendia-se a existência de quatro níveis possíveis

de leitura e de interpretação de um mesmo texto: o literal, o alegórico, o moral e o anagógico.

Esses quatro níveis já eram empregados pelos primeiros Padres da Igreja para explicar os

quatro significados interpretativos possíveis das Escrituras676; eles poderiam, entretanto, ser

aplicados também não somente a outros textos como a imagens, particularmente quando estas

estivessem acompanhadas de epígrafes. A capacidade de ir além das leituras mais básicas

dependeria, decerto, do nível de instrução do observador – o que corroboraria a definição de

Sturken e de Cartwright de que a compreensão de uma imagem estaria diretamente

relacionada à “orientação social” desse observador, especialmente no período medieval.

674
Cf. “Collegiate”. In: Catholic Encyclopedia. Disponível em:
<http://www.newadvent.org/cathen/04114a.htm>. Acesso em 19.06.2007.
675
Op. cit., p. 46. Nesta tese, o valor estético das pinturas – inegável em inúmeros exemplos – não será
abordado, por fugir do escopo da pesquisa. Entretanto, deve-se recordar, como o faz Schmitt, que “o preço dos
materiais e do trabalho, o brilho dos dourados, das gemas e das cores, a afirmação da beleza da obra concorriam
simultaneamente para engrandecer a obra de Deus e o prestígio de um rico e poderoso financiador: todas essas
qualidades realçavam o valor estético da obra, que era considerado inseparável de suas funções religiosas e
sociais”. Op. cit., p. 44.
676
O texto escritural por excelência que exemplificaria esses quatro níveis é o Salmo 113 (114), cantado durante
o Êxodo do Egito. “De acordo com essa leitura, o evento histórico do Êxodo (o sentido literal do salmo) significa
ao mesmo tempo a libertação espiritual de Cristo da morte (o alegórico), libertação das amarras do pecado (o
moral), e a expectativa da glória futura (o anagógico)”. HAWKINS, P.S. “Dante and the Bible”. In: JACOFF, R.
(org.). The Cambridge companion to Dante, segunda edição. Cambridge: Cambridge University, 2007, p. 131.
O próprio Dante, em uma epístola para o Can Grande, defenderia a aplicação desses quatro níveis para a
compreensão plena de sua Commedia. Cf. Idem, p. 138.

CCVIII
3. Funções das imagens

P
ode-se indagar quais seriam os objetivos dessas obras. Toda imagem

religiosa possui funções particulares. Como esclarece Baxandall, o

termo pintura religiosa “significa que as pinturas existiam para cumprir

fins institucionais, para auxiliar atividades intelectuais e espirituais específicas”677. Nesse

sentido, Schmitt afirma que “a função dessas imagens é dar significado ao drama

escatológico, marcando suas etapas”678, e explica Paolo Rossi que as imagens deveriam “fixar

conceitos na memória, agir sobre a vontade e modificar por conseqüência os

comportamentos”679. No período medieval, elas difundiam os princípios religiosos das

sociedades, doutrinando aqueles que não conseguiriam ter acesso a outras fontes de

conhecimento. Uma noção que encontra respaldo na máxima de São Gregório Magno

difundida no século VII, e que norteou a compreensão da arte medieval desde então:

(...) o que a escrita é para os que sabem ler, a pintura é para os iletrados que a vêem,
pois nela os ignorantes vêem aquilo que devem seguir; nela lêem aqueles que
desconhecem as letras. Assim, especialmente para os gentios, uma pintura toma o
lugar da leitura.680

A discussão sobre a importância das imagens no contexto religioso cristão,

seguindo as indicações de Gregório Magno, é retomada continuamente ao longo de todo o

período medieval, sem grandes modificações com relação ao que afirmara em 599 e uma vez

677
Op. cit., p. 40.
678
Op. cit., p. 14.
679
“Le arti della memoria: rinascite e trasfigurazioni”. In: BOLZONI, L. e CORSI, P. (org.). Op. cit., p. 25.
680
“Nam quod legentibus scriptura, hoc idiotis praestat pictura cernentibus, quia in ipsa ignorantes uident quod
debeant, in ipsa legunt qui litteras nesciunt; unde praecipue gentibus pro lectione pictura est”. Apud
DUGGAN, L.G. “Was art really the ‘book of the illiterate’?”. In: Word and Image, vol. 05, n.º 03, 1989, p. 227
e 228, nota 01. O trecho provém de uma carta escrita ao bispo Serenus de Marselha, provavelmente em outubro
de 600, a respeito de atividades iconoclastas que o bispo vinha desenvolvendo em sua diocese, sem o
conhecimento ou a aprovação do papa. Gregório escrevera uma primeira carta ao bispo Serenus, possivelmente
em julho de 599 sobre o mesmo tema, em que afirmava que “Idcirco enim pictura in ecclesis adhibetur, ut qui
litteras nesciunt saltem in parietibus uidendo legant, quae legere in codicibus non ualent” [“Pinturas são usadas
nas igrejas de modo que os ignorantes das letras possam pelo menos ler nas paredes por meio da visão aquilo que
não podem ler nos livros”]. Apud Ibidem. O fato de Gregório ter necessitado escrever uma segunda carta, muito
mais extensa e contundente do que a primeira, sobre o papel da arte religiosa é uma clara indicação de que o
bispo rejeitara as recomendações feitas pelo papa anteriormente. A transcrição completa da primeira carta, assim
como a da parte mais relevante da segunda, podem ser encontradas em CHAZELLE, C.M. “Pictures, books, and
the illiterate: Pope Gregory I’s letters to Serenus of Marseilles”. In: Word and Image, vol. 06, n.º 2, 1990, p.
139 e 140.

CCIX
mais no ano 600681. Em uma época mais próxima cronologicamente ao período estudado nesta

tese, há dois autores de capital importância que discutiram o papel da arte religiosa: São

Boaventura (1218-1274) e Santo Tomás de Aquino (1227-1274). Boaventura, em seus

comentários às Sentenças de Pedro Lombardo, definiu três funções para a pintura. Elas

poderiam, primeiramente, instruir, pois foram feitas “para a simplicidade dos ignorantes”;

poderiam despertar a devoção dos fiéis, “pois nossa emoção é despertada mais pelo que é

visto do que pelo que é ouvido”; as imagens, por fim, atuariam diretamente na memorização

de fatos, “pois aquilo que é somente ouvido é esquecido mais facilmente do que aquilo que é

visto”682. Vale destacar aqui que, embora o Juízo final, em sentido estrito, não seja um fato

que pudesse ser memorizado, por ser um evento futuro, é preciso ter em conta que, segundo

Schmitt, as imagens dizem respeito também ao “domínio do imaterial, e mais precisamente da

imaginação”683. Assim, todo o contexto religioso em que se inserem as imagens com o tema

do Juízo possibilita a sua assimilação e memorização por parte dos fiéis684.

As definições de Boaventura são assaz próximas às de Tomás de Aquino que,

comentando a mesma passagem das Sentenças, defende também o triplo uso das imagens:

Houve três razões para a instituição de imagens nas igrejas. Primeiro, para a
instrução das pessoas simples, porque podem ser instruídas por elas como que por
livros. Segundo, de modo que o mistério da Encarnação e os exemplos dos santos
possam estar mais ativos em nossa memória em função de estarem sendo
representados diariamente para nossos olhos. Terceiro, para excitar sentimentos de
devoção, esses sendo despertados mais efetivamente por coisas vistas do que por
685
coisas ouvidas.

681
Para uma visão da permanência da máxima gregoriana ao longo da Idade Média, ver o artigo de Lawrence
Duggan. O autor recorda que mesmo no século XVI, com o Concílio de Trento, essa questão se mantinha ainda
atual, especialmente com relação à oposição católica à doutrina protestante, que negava o valor das imagens nos
edifícios religiosos. Sobre essa questão específica, ver também o quarto capítulo de QUÍRICO, T. O Juízo final
de Michelangelo. Questões iconográficas e a polêmica do Cinquecento sobre o afresco sistino (dissertação de
mestrado). Campinas: Programa de Pós-graduação em História/Unicamp, 2003. Para uma discussão acerca da
recepção dos textos gregorianos no Ocidente, assim como uma análise mais detalhada dos debates que
culminaram com a aceitação das imagens nos edifícios religiosos, ver o livro de Schmitt O corpo das imagens,
especialmente o capítulo “De Nicéia II a Tomás de Aquino: a emancipação da imagem religiosa no Ocidente”.
682
Lib. III, dist. IX, art. I, q. 2, concl.
683
Op. cit., p. 12.
684
Essa questão será desenvolvida ao longo do capítulo.
685
“Fuit autem triplex ratio institutionis imaginibum in Ecclesia. Primo ad instructionem rudium qui eis quasi
quibusdam libris edocentur. Secundo ut incarnationnis mysterium et sanctorum exempla magis in memoria
nostra essent, dum quotidie oculis repraesentantur. Tertio ad excitandum devotionis affectum qui ex visis
efficacius incitantur quam ex auditis”. Commentum in IV Sent., lib. III, dist. IX, art. 2, sol. 2 ad 3um. Essas

CCX
Também Gregório, de resto, destacava em sua carta de 600 a possibilidade de uma pintura

poder despertar sentimentos de devoção, embora esses sentimentos, para ele, devessem

necessariamente ser dirigidos à “Trindade onipotente e santa”686. Boaventura e Tomás de

Aquino, como visto, não limitam nesse ponto o papel das imagens, e se pode inferir a

possibilidade de uma pintura despertar sentimentos devotos vários, seja direcionados para a

Trindade como para um santo eventualmente representado na cena687.

Pode-se criticar a máxima de São Gregório Magno, considerando que as imagens

medievais poderiam ser excessivamente complexas para que fossem compreendidas de forma

adequada por um povo rude e iletrado. Devido a essa complexidade, esses observadores não

seriam capazes de ir além do significado literal daquela determinada imagem – apenas sendo

capaz de reconhecer, no máximo, que a pintura de uma mulher com uma criança no colo se

refere especificamente à Virgem com o Menino, e não a figuras quaisquer. Essa crítica já era

feita por Petrarca que, em 1370, em seu testamento, deixou de herança uma pintura de Giotto

afirmando que “sua beleza maravilha os mestres da arte, embora os ignorantes não possam

entendê-la”688. Deve-se, porém, ter em conta o que recorda Burke:

Tanto a iconografia quanto as doutrinas que ela ilustrava poderiam ter sido
explicadas oralmente pelo clero, a imagem em si agindo como um lembrete e um
reforço da mensagem falada, em vez de se constituir em uma única fonte de

idéias repercutiram em outros pensadores da época. Giovanni da Genova, por exemplo, no fim do século XIII,
explicava em seu Catholicon os objetivos das imagens nas igrejas, repetindo quase literalmente o texto de Tomás
de Aquino: “Item scire te volo quod triplex fuit ratio institutionis imaginum in ecclesia. Prima ad instructionem
rudium, qui eis quase quibusdam libris edoceri videntur. Secunda ut incarnationis mysterium et sanctorum
exempla magis in memoria nostra essent dum quotidie oculis nostris representantur. Tertia as excitandum
devotionis affectum, qui ex visis efficacius excitatur quam ex auditis” [“Saiba que houve três razões para a
instituição de imagens nas igrejas. Primeiro, para a instrução das pessoas simples, porque são instruídas por eles
como que por livros. Segundo, de modo que o mistério da Encarnação e os exemplos dos santos possam estar
mais ativos em nossa memória por estarem sendo apresentados diariamente aos nossos olhos. Terceiro, para
excitar sentimentos de devoção, esses sendo despertados mais efetivamente por coisas vistas do que por coisas
ouvidas”]. Apud BAXANDALL, M. Op. cit., p. 41 e 161.
686
“Sed hoc soliicite fraternitas tua admoneat ut ex uisione rei gestae ardorem compuctionis percipiant et in
adoratione solius omnipotentis sanctae trinitatis humiliter prosternantur” [“Mas deixe sua fraternidade avisar [a
comunidade] de modo que a partir da visão de acontecimentos passados sintam compunção e se prostrem
humildemente em adoração à única Trindade onipotente e santa”]. Apud CHAZELLE, C.M. “Pictures, books,
and the illiterate: Pope Gregory I’s letters to Serenus of Marseilles”. In: Op. cit., p. 140.
687
Sobre esse ponto relacionado à representação do Juízo final, ver a seguir.
688
Apud DUGGAN, L.G. “Was art really the ‘book of the illiterate’?”. In: Op. cit., p. 235.

CCXI
689
informação.

É precisamente isso que, desde o século XIII, farão os pregadores mendicantes durante os

seus sermões690.

Sem dúvida, um ponto que deve ser constantemente frisado ao se discutir o papel

das imagens na instrução dos fiéis leigos é o fato de que elas seriam capazes de atuar

plenamente apenas aliadas a outra base de formação. Elas funcionariam como lembretes, mas

os leigos só poderiam ser lembrados daquilo que já conhecessem – a imaginatio, ou seja, a

imagem mental formada a partir das explicações dos religiosos, e não o conhecimento do

texto bíblico em si, deve-se ressaltar. Esse fato, em verdade, já estaria indicado também na

segunda carta de São Gregório ao bispo Serenus, ao escrever que as imagens “foram feitas

para a edificação das pessoas ignorantes, de modo que os ignorantes das letras que

contemplarem essas histórias possam aprender o que lhes foi dito”691. As histórias, portanto,

já lhes teriam sido ensinadas, ou em um momento anterior ou simultaneamente à ação de

contemplar as imagens692. É o que, de resto, também destacava São João Damasceno no

século VIII: “uma imagem é, afinal, um lembrete: é para os iletrados o que um livro é para os

letrados, e o que a palavra é para a audição, a imagem é para a visão”693. Imagens não podem

trazer, por si só, novas informações compreensíveis ao público. Como destacado

689
Op. cit., p. 60. Esse ponto, decerto, se aplica especialmente a imagens localizadas em igrejas ou outros locais
públicos, de fácil e amplo acesso, embora seja preciso considerar que o leigo também poderia recordar as
explicações quando contemplasse uma imagem devocional privada em sua residência. Exemplos de painéis
privados com a representação do tema do Juízo final foram discutidos no segundo capítulo da presente pesquisa.
690
Essa questão será desenvolvida em outro ponto deste capítulo.
691
“(…) quae ad aedificationem imperiti populi factae fuerant, ut nescientes litteras ipsam historiam
intendentes, quid dictum sit discerent (…)”. Apud CHAZELLE, C.M. “Pictures, books, and the illiterate: Pope
Gregory I’s letters to Serenus of Marseilles”. In: Op. cit., p. 140. O grifo na citação no corpo do texto foi feito
pela autora desta tese. Gregório já indicara essa questão na primeira carta, em que escreveu que os iletrados, ao
ver as histórias pintadas nas igrejas, scientiam historiae colligerent, ou seja, poderiam reunir um conhecimento
sobre a história: “(…) quatenus et litterarum nescii haberent, unde scientiam historiae colligerent (…)” [“(…)
de modo que pessoas ignorantes das letras possam ter algo, de modo que possam reunir um conhecimento sobre
a história (…)”]. Apud Idem, 139. O trecho da carta, em outras palavras, é ambíguo, pois expressa a
possibilidade de aumentar a ciência sobre determinado fato conhecido previamente. Cf. Idem, p. 141.
692
Celia Chazelle, no entanto, pondera que por “o que lhes foi dito” Gregório pudesse se referir ao segundo
mandamento mencionado na carta pouco antes, “que é o tema básico sobre o qual Gregório declara que Serenus
deveria falar”. Segundo a autora, portanto, a afirmação poderia ser uma “reiteração da asserção anterior, na
mesma carta, de que as pinturas ensinam os ignorantes a adorar somente a Deus”. Idem, p. 142.
693
Apud DUGGAN, L.G. “Was art really the ‘book of the illiterate’?”. In: Op. cit., p. 248.

CCXII
anteriormente, sem um conhecimento prévio a Última ceia de Leonardo se tornaria

incompreensível em seu pleno significado religioso. Uma representação do Juízo final seria

somente um amontoado de corpos ao redor de uma figura central. É o que explica Gombrich

com relação a um relevo representando o martírio de São Lourenço:

Sem a ajuda da palavra falada, os iletrados, é claro, não poderiam saber que o
sofredor não é um malfeitor mas um santo marcado pelo símbolo da auréola, ou que
os gestos feitos pelos observadores [da cena] indicam compaixão. Porém, se a
imagem por si só não poderia contar ao fiel uma história de que ele jamais havia
ouvido falar, ela era admiravelmente adequada para recordá-lo de histórias que lhe
694
haviam sido contadas em sermões ou lições.

Para dirimir as dúvidas que a população leiga e iletrada certamente teria com relação à

exegese cristã, haveria os religiosos para esclarecerem didaticamente as dúvidas, o que seria

melhor realizado com o apoio das imagens. Como esclarece Longère a respeito do ciclo do

Trionfo della Morte no Camposanto de Pisa, “para os analfabetos bastará, ao lado das

recordações das pregações ouvidas, a força comunicativa da figura pintada”695.

É necessário, porém, destacar outra questão. A partir do século XII começou a

aumentar de forma consistente o número de leigos alfabetizados. Para o clero, no entanto, a

capacidade de leitura dos leigos não seria suficiente para permitir a compreensão adequada do

texto; para tanto, as imagens continuariam desempenhando um papel primordial. É nesse

sentido, provavelmente, que Honório de Autun (morto em 1156), reformulando a sentença de

Gregório Magno, escreveria que as imagens, nas igrejas, funcionariam como laicorum

litteratura, literatura dos leigos, substituindo, desse modo, illiterati por laici696. Acreditava-se

na época, portanto, que não bastaria saber ler; a interpretação adequada das Escrituras

requeria uma cultura religiosa inacessível ao leigo, que continuaria necessitando não somente

das imagens, mas também do apoio de um religioso que poderia traduzi-la de forma correta ao

homem comum. Tanto letrados como iletrados, então, continuariam sendo doutrinados por

694
Apud Idem, p. 243.
695
Apud FRUGONI, C. “Altri luoghi, cercando il paradiso (il ciclo di Buffalmacco nel Camposanto di Pisa e la
committenza domenicana)”. In: Op. cit., p. 1572, nota 25.
696
Cf. DUGGAN, L.G. “Was art really the ‘book of the illiterate’?”. In: Op. cit., p. 231.

CCXIII
meio de ensinamentos orais, respaldados, corroborados e frisados por meio das imagens que

se referissem ao mesmo tema em discussão.

A necessidade de algum eclesiástico explicando a imagem para a sua adequada

compreensão parece explícita em Santo Tomás de Aquino que, ao discutir as funções

esperadas de uma imagem, enfatiza o fato de que os leigos podem ser instruídos pelas

imagens como pelos livros. O santo não afirma, em momento algum, que eles seriam capazes

de ler e compreendê-las por si só. Santo Tomás coloca os leigos, portanto, de forma passiva

diante das imagens, necessitando de um religioso que os guie na interpretação correta do

tema697. Essa guia, aliás, seria considerada imprescindível, uma vez que “uma exegese pessoal

das imagens seria um ato de perigosa soberba, quase de herética tentação. O olho que vê os

afrescos deve se nutrir da memória das palavras do pregador”698.

Deve-se ter em conta, por outro lado, que mesmo os iletrados estariam já

habituados às imagens religiosas, uma vez que não apenas participariam desde cedo das

missas, como também ouviam freqüentemente as pregações dos religiosos pelas ruas e praças

da cidade. Em não poucos casos, esses pregadores faziam uso de imagens conhecidas durante

seus sermões. Emblemático é o caso de frei Bernardino da Siena, pregador franciscano que,

no século XV, conforme explica Bolzoni,

Faz várias vezes referência às pinturas que seus ouvintes podiam ver nas estradas,
nas igrejas, nos palácios de sua cidade. A cada vez o faz segundo uma estratégia
precisa: o olhar do espectador é guiado de modo a obrigá-lo a perceber a imagem
segundo a ótica que Bernardino constrói. Neste ponto a imagem vem associada com
algum dos conteúdos da pregação, ou mesmo com toda sua estrutura. Uma
conotação emotiva (em geral o sublinhar de um gesto, associado a um sentimento)
pode fazer a mediação, ou então uma interpretação moral, que transforma a imagem
em um exemplum, ou ainda uma complexa leitura alegórica. Com instrumentos
diversos Bernardino se propõe um único objetivo: guiar a recepção das imagens e
conjuntamente condicioná-la também no futuro, criar uma espécie de automatismo
na resposta do observador. Deste modo a pregação poderá durar e agir para além do
tempo efêmero da pregação: os percursos citadinos, as pinturas que assinalam os
lugares mais significativos, se transformarão de fato em um teatro da memória dos
699
ensinamentos que Bernardino transmitiu.

697
Cf. Idem, p. 232.
698
BOLZONI, L. La rete delle immagini, p. 15.
699
Idem, p. XXIV e XXV.

CCXIV
Particularmente com relação ao tema do Juízo final, deve-se recordar, uma vez mais, que

muitos desses pregadores enfatizavam constantemente a necessidade de arrependimento

porque o fim dos dias estaria se aproximando, e ao menos um deles – o dominicano Jacopo

Passavanti – descreveu em detalhes não somente o julgamento final, como especialmente as

punições infernais700. Mesmo para um iletrado, portanto, os significados fundamentais da

imagem poderiam eventualmente ser compreendidos sem grande dificuldade, uma vez que já

teriam sido traduzidos e explicados em outros momentos.

É preciso considerar, ademais, outro ponto. Muitos dos elementos incorporados a

essas imagens religiosas possuem um apelo popular bastante forte, o que não apenas atrairia

mais a atenção do fiel, como facilitaria também a compreensão da cena. Para citar apenas um

exemplo, pode-se mencionar a ressurreição dos corpos no afresco do Juízo final do

Camposanto de Pisa (slide 76). No momento em que os ressuscitados saem de seus túmulos,

são já recebidos por anjos que, a partir da indicação dada por São Miguel pelos gestos de suas

mãos – uma das quais carrega uma espada – conduzem os ressurrectos para o grupo de eleitos

que se dirigem ao Paraíso ou para os condenados que serão conduzidos ao Inferno. Para

explicitar que essa separação não tem relação com o lado da cena em que o corpo ressuscita –

recordando que, nesse afresco, a ressurreição ocorre na parte inferior central da pintura, entre

os grupos dos eleitos e dos condenados –, há um ressurrecto que sai de um túmulo que se

encontra mais próximo aos eleitos e é puxado pela veste por um anjo que lhe assinala o canto

oposto – o dos condenados. Outro corpo, recém-saído de um túmulo e amparado por um anjo

que dirige o olhar a São Miguel, será conduzido em seguida para o cortejo dos eleitos, uma

ação inequivocamente expressa pelo gesto do arcanjo, que aponta o grupo na extremidade

700
O texto Specchio della vera penitenza, do frei, é reproduzido em: VARANINI, G. E BALDASSARI, G.
(org.). Racconti esemplari di predicatori del Due e Trecento, volume 4, tomo II. Roma: Salerno, 1993

CCXV
oposta da cena701. Desse modo, a idéia do julgamento de cada indivíduo de acordo com suas

ações em vida se torna mais clara para os leigos e os iletrados.

Ao se considerar, por fim, uma imagem e as formas possíveis de interpretá-la, é

preciso ter em conta também que o sentido alegórico poderia remeter, em não poucos

exemplos, a temas e representações a princípio completamente diferentes, ainda que, como é

comum na tradição cristã, um seja visto como pré-figuração do outro. Assim, como recorda

Meyer Schapiro, uma cena do sacrifício de Abraão aludiria necessariamente, para o

espectador medieval, à Crucificação. Se em algumas bíblias moralizadas do século XIII essa

relação se tornava explícita pela representação das duas cenas lado a lado,

Por vezes o contexto, a localização dessa cena do Antigo Testamento em um


manuscrito do Evangelho ou em uma cruz ou altar, seria suficiente para voltar a
702
mente do espectador para Cristo.

Essa interpretação, por sua vez, só seria possível a partir dos comentários e explicações dos

exegetas em missas e sermões. Isso, porém, é necessário frisar, não se aplica a representações

visuais do Juízo final, que, ainda que possa remeter a outros temas cristãos, notadamente a

Paixão de Cristo703, alude tão-somente ao seu próprio assunto – o do julgamento de toda a

humanidade no fim dos tempos.

As imagens, portanto, apenas em poucos casos poderiam atuar sozinhas. De modo

geral, sua significação, sem dúvida, será totalmente alcançada somente se o observador for

capaz de ir além da própria obra. A imagem não pode, de fato, ser estudada de modo pleno

sem a escrita.

Decerto, é plausível especular sobre uma relação entre um texto e uma imagem que

trate do mesmo tema; a partir do século XIII, a ligação poderia ser realizada entre as imagens

e textos já anteriormente mencionados, mas também entre imagens e pregações – vide o

701
Essa iconografia presente no Camposanto pisano, conforme discutido no segundo capítulo, pode ser
considerada uma reinterpretação da psicostasia, tema recorrente nas representações do Juízo final ao longo da
Idade Média.
702
Words and pictures. On the literal and the symbolic in the illustration of a text. Haia e Paris: Mouton, 1973,
p. 14.

CCXVI
exemplo apenas citado de Jacopo Passavanti e sua descrição do Juízo final – e as laudas.

Tanto essas pregações como as laudas visavam a um público leigo – um público mais amplo,

portanto – e por isso tratavam dos temas não apenas em língua vernácula, de fácil

compreensão, mas também de forma mais patética, buscando uma emotividade mais intensa

por parte do público que as ouvisse. Em alguns casos, é possível, de fato, estabelecer de modo

claro essas relações. Quanto às pregações, isso já foi sucintamente discutido. Especificamente

sobre as laudas, o historiador da arte italiano Pietro Scarpellini desenvolve essa analogia em

um artigo dedicado particularmente às representações – visuais e literárias – da Paixão de

Cristo704. No entanto, como nota o próprio Scarpellini, é “ilusório esperar encontrar textos

figurativos onde seja possível instituir uma precisa, unívoca relação de dependência com um

texto literário ou vice-versa”705, uma vez que cada meio expressivo possui formas de

desenvolvimento particulares; deve-se considerar, ademais, que não existe uma única fonte da

qual se poderia tirar inspiração para a realização da obra.

O caso de um afresco, de uma tela, de um painel que traduzam pontualmente,


fielmente, os temas de uma lauda em formas visíveis, que resultariam em quase um
706
equivalente preciso, talvez não exista, como não existe o contrário.

Uma imagem, portanto, dificilmente poderá ser considerada a

ilustração – ou tradução – precisa de um texto específico. Deve-se

notar por fim que Scarpellini chama a atenção para outro ponto: é

difícil – se não praticamente impossível – na maior parte dos casos

estabelecer a “paternidade”, a origem de um motivo que será

desenvolvido tanto nos textos como nas imagens.

No caso específico da elaboração de uma representação

visual do Juízo final, a questão é ainda mais complexa, conforme já

703
Isso já foi discutido no segundo capítulo desta tese.
704
“Echi della lauda nella pittura umbra del XIII e XIV secolo”. In: Le laudi drammatiche umbre dalle
origini. Atti del V Convegno di Studio del Centro di studi sul teatro medioevale e rinascimentale. Viterbo, 1980,
p. 165 a 185.
705
Idem, p. 166.

CCXVII
discutido no segundo capítulo da presente pesquisa: com efeito, é

preciso levar em consideração o fato de que, embora seja um dos

temas de maior importância para os cristãos, não há um texto único

que sirva de base para a descrição da cena, e, desse modo, para o

desenvolvimento iconográfico do tema. Daí deriva a primeira

complexidade: há fontes textuais variadas, muitas vezes extremamente

diversas entre si, a partir das quais é possível criar uma única

imagem707. Ademais, a iconografia desse tema terá recebido

influências também de tradições orais, de cunho mais popular e

difundidas muitas vezes pelas pregações das ordens mendicantes, que

se difundiram, como visto, a partir do século XIII. Por outro lado – e

esse é o ponto que gera uma segunda complexidade – é preciso ter em

conta que, sem um texto de base, a imagem do Juízo final jamais

poderia ter sido desenvolvida. Mais: sem esse texto de apoio, ela

jamais seria plenamente compreendida.

É preciso ter em conta, por fim, que a linguagem das Escrituras é

fundamentalmente visionária e metafórica, o que poderia dificultar a sua representação

figurativa de modo claro e inequívoco para os fiéis. Ademais, os textos escriturais que tratam

do julgamento por vir708 não apresentam uma ordem de eventos estabelecida, a partir da qual

seja possível retirar uma composição específica e ordenada. Isso obrigou os artistas a buscar

formas de representação que simplificassem a visualização da cena. Dessa forma,

representações do Juízo final não podem, stricto sensu, ser consideradas narrativas.

As imagens religiosas, portanto, podem utilizar meios expressivos visuais diversos

706
Ibidem.
707
O primeiro texto, decerto, é a Bíblia. Deve-se considerar ainda textos apócrifos – como os evangelhos de
Pedro e Paulo – e as diversas visões do Além.
708
Ver o anexo I desta tese.

CCXVIII
que não possuem necessariamente um equivalente direto na Bíblia; e é preciso considerar que,

por sua vez, esses meios expressivos visuais podem influenciar textos que tratem do mesmo

tema. É possível que isso tenha ocorrido, como visto no terceiro capítulo, na inspiração

mesma para a redação da Commedia dantesca. Dessa maneira, traduzidas para o homem

comum, essas obras são capazes de cumprir suas funções primordiais: o ensino, a doutrinação,

a conversão.

4. Funções de imagens com o tema do Juízo final

I
ndo-se além da questão didática, qual o papel específico que se esperaria de

uma obra representando o Juízo final na Idade Média? Doutrinar, sim, mas a

respeito exatamente de quê? A resposta pode ser encontrada nos textos

medievais mesmos. Com efeito, como escreveu São Hugo de Lincoln (ca. 1135-1200) ao Rei

João, referindo-se possivelmente a tímpanos com representações do Juízo final,

(…) A consciência do homem deveria continuamente lembrá-lo das


lamentações e dos tormentos intermináveis dessas misérias. Dever-se-ia manter
a lembrança dessas dores eternas na mente do homem todo o tempo. (…)
imagens assim eram muito corretamente colocadas na entrada das igrejas.
Assim, o povo entrando para rezar por suas necessidades seria lembrado dessa
necessidade maior do que todas.709

As representações do Juízo final possuem, portanto, uma função social (e individual) bastante peculiar:

elas deveriam suscitar nos fiéis o temor do julgamento – e, nesse sentido, a inclusão da cena da psicostasia,

seja da forma tradicional, seja do modo como a Península Itálica parece tê-la reinterpretado, poderia

atuar como um elemento essencial: em termos iconográficos, o fiel veria o momento no qual sua sorte

eterna estaria sendo determinada, o instante em que o destino, literalmente, penderia na balança710. Ao

ver esse tipo de representação, o homem cristão teria maior consciência de que um “final feliz”, ou seja, a

ida ao Paraíso, não estaria necessariamente garantido e que “para aqueles que falhavam havia um local

709
Apud SHEINGORN, P. “‘For God is such a Doomsman’: origins and development of the theme of Last
Judgment”. In: BEVINGTON, D. et alii. Homo, memento finis. The iconography of Just Judgment in Medieval
art and drama. Kalamazoo: Western Michigan University, 1985, p. 39.
710
Cf. Idem, p. 45.

CCXIX
preparado com os maiores dissabores”711. O ponto principal, portanto, é que a psicostasia deve ser um

memento para o fiel; ela deve recordá-lo de que o julgamento, em algum momento, ocorrerá, e que suas

atitudes atuais serão enfim pesadas pelo Cristo juiz, ainda que se considere que o termo “pesar” possa ter

um sentido simbólico mais do que literal. A noção de memento parece ser, de fato, primordial.

Deve-se destacar ainda outro aspecto que mostra a importância desse tipo

iconográfico nas figurações do Juízo final. A psicostasia costuma ter um local de destaque na

estrutura das obras que a representam: usualmente em uma posição central, muitas vezes logo

abaixo da figura do Cristo juiz, atuando mesmo como o marco divisor entre eleitos e

condenados na maior parte dos casos. Pode-se também aumentar o impacto sobre aquele que

vê a cena com alguns elementos mais populares, como o demônio que tenta fazer com que a

balança penda para o seu lado, buscando deste modo distorcer a justiça divina. Ademais, a

inclusão mesma da figura do diabo por si só já torna a imagem mais dramática, especialmente

quando, como ocorre no tímpano da Igreja de Saint-Lazare, em Autun (slides 185 e 186), as

figuras demoníacas parecem particularmente excitadas com o julgamento, antevendo talvez o

grande número de condenados que deverão ser conduzidos aos abismos infernais. A pesagem

das almas, portanto, é um elemento de grande importância nas representações visuais do Juízo

final: ela simboliza “o inevitável julgamento que virá, seja individual ou final”712.

Papel semelhante se pode afirmar com relação à representação das próprias punições

infernais, como será melhor comentado a seguir. Sobre o medo do julgamento, comenta o historiador

francês Émile Male, tratando especificamente dos relevos esculpidos nos tímpanos das catedrais francesas:

As cenas do Juízo final esculpidas nos pórticos das igrejas moviam as almas dos
homens mais profundamente do que podemos imaginar. Elas não eram vistas
com mentes livres de ansiedade, pois os fiéis, passando pela porta, acreditavam
que a cena sobre suas cabeças poderia a qualquer momento tornar-se um fato,
e a trombeta do anjo soar em seus ouvidos.713

711
DAVIDSON, C. “The fate of the damned in English art and drama”. In: DAVIDSON, C. e SEILER, T.H.
(org.). The iconography of Hell. Kalamazoo: Western Michigan University, 1992, p. 50.
712
PERRY, M.P. “On the Psychostasis in Christian art”. In: Burlington magazine, volume XXII, outubro de
1912- março de 1913, p. 216.
713
MÂLE, E. The Gothic image. Religious art in France of the thirteenth century (trad. Dora Nussey). Icon,
1972, p. 355 e 356.

CCXX
Como forma de reforçar essa idéia, muitas das pinturas com o tema, assim como os tímpanos,

foram realizadas na parede oposta à abside e ao altar. Deve-se recordar que as igrejas, desde os primeiros

tempos, seguiam preferencialmente a orientação leste-oeste. A abside com o altar colocada na extremidade

leste foi uma forma encontrada pelos primeiros cristãos para relacionar o sol nascente a Cristo, a luz do

mundo, conforme afirmado pelas Escrituras714. Em contraste, o sol poente, no mundo ocidental, era

entendido como uma metáfora do fim e da morte. Mais do que apropriado pareceria então uma

representação do Juízo final nessa parede, seja em relevo no tímpano da portada, seja como pintura no

interior, como seria mais comum nas igrejas da Península Itálica715. As pinturas preenchiam função

semelhante à dos tímpanos externos. Segundo Otto Demus,

[As pinturas] ocupariam normalmente toda a parede, um poderoso lembrete


sobre as Últimas Coisas [morte, julgamento, Paraíso e Inferno] para a
congregação, enquanto deixava a Igreja.716

A pequena diferença de posicionamento entre pinturas e tímpanos traz sem dúvida

mudanças com relação às significações e às funções específicas da cena. Sendo colocada na

face interna da parede de entrada, a pintura seria vista especialmente quando da saída do fiel

da igreja, e possivelmente se esperaria que sua mensagem fosse levada com ele; esta seria

uma forma de fazê-lo meditar sobre as questões referentes ao fim dos tempos em sua vida

quotidiana; como escreve Yves Christe, seria uma recordação para os fiéis de que “se não

modificarem seu comportamento, se não se arrependerem de seus pecados, lhes esperará um

julgamento assaz severo”717. Nos tímpanos, por outro lado, o tema do Juízo final seria

714
Há diversas passagens bíblicas que se referem a Cristo como luz, especialmente a seguinte passagem de João:
“Então Jesus tornou a falar-lhes, dizendo: eu sou a luz do mundo; quem me segue, de modo algum andará em
trevas, mas terá a luz da vida”. 8, 12
715
Podem-se citar como exemplos o afresco em Sant’Angelo in Formis, o mosaico em Torcello, o afresco de
Giotto em Pádua e o afresco de Taddeo di Bartolo em San Gimignano. A primeira menção a respeito de uma
orientação ad Orientem para as igrejas ocorreu provavelmente no ano 325, quando o Concílio definiu que
“ecclesiarum situs plerimque talis erat, ut fideles facie altare versa orantes orientem solem, symbolum Christi
qui est sol iustitia et lux mundi interentur” [“a posição das igrejas era de tal modo que o maior número de fiéis
orasse para o altar voltados para o sol Oriente, símbolo do Cristo que é o sol da justiça e a luz do mundo”]. Apud
GASPANI, A. Astonomia e geometria nelle antiche chiese alpine. Aosta: Priuli & Verlucca, 2000, p. 25.
Também nas Constituições Apostólicas do século V há indicações semelhantes, mencionando que os edifício
religiosos deveriam ser construídos com as “cabeças” voltadas para o leste. Agradeço a Carlo Valdameri, do
grupo de discussão em rede Medieval Religion, pelas indicações sobre o tema.
716
Apud SHEINGORN, P. “‘For God is such a Doomsman’: origins and development of the theme of Last
Judgment”. In: BEVINGTON, D. et alii. Op. cit., p. 40.
717
Op. cit., p. 07.

CCXXI
recordado pelo cristão especialmente durante sua permanência no interior da igreja, uma vez

que seria visto no momento do ingresso no espaço religioso. De uma forma ou de outra, a

intenção desse tipo de imagem seria a de auxiliar o fiel a se preparar de forma mais adequada

para a morte e para o posterior juízo, ao fazê-lo meditar sobre os destinos possíveis após a

morte e também após o fim dos tempos, visando a mudanças de comportamento enquanto

ainda houvesse tempo, como fica claro pela inscrição que se encontra no tímpano do portal de

Conques: O peccatores transmutetis nisi mores durum iudicium scitote futurum718. O

comportamento durante a vida, em suma, determinaria o resultado do Juízo final, embora se

deva recordar que a morte individual não traz consigo, como conseqüência imediata, o juízo

coletivo.

Esse papel de aviso e de preparação para a morte pode ter sido exacerbado ao longo do tempo,

influenciando a forma mesma como o Juízo final seria representado; isto poderia ser relacionado em

especial à progressivamente maior participação leiga na religião cristã, que vinha ocorrendo ao menos

desde o século XII, e que se intensificou nos séculos XIII e XIV.

Como comentado brevemente no segundo capítulo, o tema do Juízo final possui

algum destaque na arte ocidental pelo menos desde o século XI, especialmente com os relevos

nas portadas de igrejas. Na Península Itálica, viu-se também, é desse período igualmente a

mais antiga representação do tema, o afresco na Basílica de Sant’Angelo in Formis (slides 06

a 12). Nesse momento, conforme discutido no mesmo capítulo, a composição costumava

sofrer poucas variações: no centro o Cristo juiz; de um lado os eleitos que vão para o Paraíso,

de outro os condenados que se dirigem para o Inferno; ao redor do Cristo, grupos de santos.

Nessas imagens mais antigas do Juízo final, Paraíso e Inferno são, em geral, apenas sugeridos,

e não efetivamente representados – o primeiro simbolizado com a imagem do seio de Abraão

ou do cortejo de eleitos diante de uma porta, o segundo aludido pela Boca do Inferno; o

destaque, nesses exemplos, recairia especialmente sobre o julgamento, sobre a separação entre

718
“Ó pecadores transformem-se senão as atitudes farão conhecer severo juízo futuro”. Apud Ibidem.

CCXXII
eleitos e condenados. Essas representações possuiriam especialmente uma função de

memória, de recordar os fiéis de que haverá um julgamento futuro, e que devem, portanto, se

preparar para ele719. A imagem, dessa forma, reforçava a pregação dirigida ao povo, como a

de Giordano da Pisa, que enfatizava que “sobre todas as coisas da vida é útil a memória do

juízo e das penas”720.

No momento em que a Inferno e Paraíso passou a ser dado um destaque visual

maior, até que se chegou ao desmembramento completo de ambas as instâncias como cenas

autônomas e complementares ao Juízo final mesmo, criou-se também uma mensagem mais

direta e efetiva: a imagem agora não apenas recordava o fiel de que em um momento futuro

haverá um julgamento; mostravam-se também as possibilidades – irreversíveis, deve-se

destacar – de destino após esse mesmo julgamento. De fato, como explica Lina Bolzoni,

As imagens mostram ao espectador o futuro eterno do juízo divino (o presente


eterno dos mortos): neste ele pode projetar o próprio passado e o próprio presente,
721
de modo a modificar o próprio futuro.

A visão externa do outro, seja eleito ou condenado, levaria à visão interiorizada de si próprio,

de seu passado e de seu presente. Será este o ponto desenvolvido a seguir.

4. Representações do Paraíso e do Inferno no contexto do Juízo final

A
s figurações de Paraíso e Inferno possuem áreas equivalentes em

quase todas as representações do Juízo final, seja em painéis ou

afrescos em que o tema é desenvolvido em uma cena única, seja em

pinturas em que há o seu desmembramento em mais de uma composição – as exceções mais

719
Como explica Patrick Geary, “sob numerosas formas, a memoria estava no centro do cristianismo através de
sua injunção eucarística: ‘Façam isto em minha memória’”. “Memória”. In: SCHMITT, J.C. e LE GOFF, J.
(org.). Dicionário temático do Ocidente medieval, volume I. Bauru: EDUSC, 2002, p. 167.
720
“Sopra tutte le cose di questa vita è utile la memoria del giudicio e de le pene (…)”. Quaresimale fiorentino
1305-1306 (org. Carlo Delcorno). Florença: Sansoni, 1974, p. 57.
721
“Un codice trecentesco delle immagini: scrittura e pittura nei testi domenicani e negli affreschi del
Camposanto di Pisa”. In: FRANCESCHETTI, A. (org.) Letteratura italiana e arti figurative. Atti del XII
Convegno dell’Associazione internazionale per gli studi di lingua e lettratura italiana. Florença: Leo S. Olschki,
1988, p. 354 e 355.

CCXXIII
importantes, sem dúvida, são justamente as pinturas em que ocorrem as primeiras mudanças

nos modos de representação do tema do Juízo final: os ciclos do Palazzo del Bargello e do

Camposanto de Pisa: no primeiro caso, conforme discutido anteriormente, o Inferno é

representado, embora evidentemente sem o mesmo destaque concedido ao Paraíso, figurado

isolado em uma parede destinada apenas a essa composição; no segundo exemplo, como

visto, há somente o Inferno. Percebem-se, porém, nas outras pinturas, diferenças notáveis nos

modos como as duas instâncias são figuradas.

Deve-se analisar, primeiramente, as representações em que há uma composição

única para o Juízo final, em que as localidades do Além estão englobadas. Segundo Jérôme

Baschet, há quatro modos de figuração do Paraíso: o jardim paradisíaco, o seio de Abraão ou

dos três patriarcas, a Jerusalém celeste e a corte celeste722. Nas representações do Juízo final,

não é comum a escolha da Jerusalém celeste como indicação do Paraíso: como explica

Baschet,

No contexto do Juízo universal a arquitetura celeste sofre geralmente uma contração,


a ponto de ser difícil reconduzi-la a uma definição precisa, embora as suas
723
conotações de beleza e de ordem estejam manifestas.

Em geral, a simplificação implica a figuração somente de uma porta, que condensaria em si a

indicação tanto da entrada de uma cidade como de uma igreja – não se pode esquecer que, ao

menos desde o século XII, o abade Suger associava a arquitetura da Basílica de Saint-Denis à

imagem mesma da Jerusalém celeste. Uma representação mais explícita nesse sentido ocorre

especialmente nas pinturas nórdicas feitas no século XV, como nos painéis de Van der

Weyden e Hans Memling, em que a arquitetura paradisíaca evoca de forma explícita “as

722
Explica Baschet que “no latim bíblico, o termo paradisus designa essencialmente o jardim do Éden, enquanto
o destino celeste anunciado pelo Cristo é definido como Regnum Dei ou Regnum coelorum (Mt 25, 1-46), ou
sancta civitas Ierusalem nova (Ap 21, 2) ou sinus Abrahae (Lc 16, 22). Em seguida, progressivamente, junto aos
teólogos e aos predicadores, paradisus se tornou um equivalente freqüente dessas expressões para designar o
local oposto ao destino infernal dos pecadores”. “Paradiso”. In: Enciclopedia dell’arte medievale, volume IX.
Roma: Istituto della enciclopedia italiana, 1998, p. 169.
723
Idem, p. 172.

CCXXIV
amplas naves góticas da época”724.

O jardim paradisíaco, por sua vez, estaria relacionado ao sentido original do termo

paradisus: recinto, jardim ou, conforme define Santo Agostinho em De Genesi ad litteram,

nemorosus locus, “lugar repleto de árvores”725. Segundo Viviana Cerutti, o jardim

paradisíaco, embora “existente na tradição iconográfica desde a época paleocristã, não foi

representado muito freqüentemente nos Juízos Universais”726. Para a autora, somente no

século XV os escritores religiosos “recuperaram a imagem do Éden e do Paraíso-jardim”727.

E, de fato, apenas a partir do Quattrocento são encontrados na Toscana modelos em que o

Paraíso é apresentado como um jardim florido e cercado por vegetação: os painéis de Fra

Angelico pintados por volta de 1431 (slide 126) e de 1450 (slide 131), e a predella de

Giovanni di Paolo executada em torno de 1460 (slide 142). Em diversos casos as árvores são

os únicos elementos que indicariam o Paraíso e, por conseguinte, a idéia de jardim, como

ocorre em Sant’Angelo in Formis (slide 12). O conceito do jardim paradisíaco, por outro lado,

está usualmente associado a outro tipo iconográfico que indica o Paraíso – o seio de Abraão.

É o que ocorre nos mosaicos de Torcello (slide 18) e do batistério de Florença (slides 25 e

26), em que, ao lado de Abraão e dos outros patriarcas (no caso do mosaico florentino), são

representadas árvores de formatos diversos. Essas obras, recorde-se, seguem modelos

bizantinos, conforme já explicitado. O seio de Abraão foi incorporado à tradição iconográfica

do Juízo final a partir de meados do século X, no Oriente (como ocorre em um afresco na

necrópole de Göreme, na Capadócia), e somente no fim do século XI no Ocidente, tornando-

724
Ibidem.
725
“Si enim proprie quidem nemorosus locus (…) merito paradisus dici potest”. XII, 34, 65. Disponível em:
<http://www.sant-agostino.it/latino/genesi_lettera/index2.htm>. Acesso em 18.09.2007. Se paradisus se refere
especialmente ao Jardim do Éden, “a representação do paraíso celeste como lugar de vegetação manifesta uma
relação essencial entre paraíso celeste e paraíso terrestre”. Cf. BASCHET, J. “Paradiso”. In: Op. cit., p. 169.
726
“Gli abiti di uma corte celeste del Quattrocento. L”iconografia del Paradiso nel Giudizio Universale di
Giovanni di Paolo”. In: Iconographica, I, 2002, p. 119.
727
Ibidem.

CCXXV
se a principal forma de figuração do Paraíso ao menos até o princípio do século XIV728.

Desse modo, nas obras de influência bizantina – o mosaico de Torcello e o do

batistério de Florença – o Paraíso é sugerido, como apenas comentado, como o seio de

Abraão, juntamente com os outros patriarcas, geralmente em um ambiente ajardinado,

fechado pela porta de entrada do Paraíso; do lado de fora, o cortejo de eleitos, guiado por

anjos, se dirige a essa porta. Percebe-se como, de certa forma, essa iconografia incorpora três

modos de figuração do Paraíso.

Nas pinturas de matriz mais caracteristicamente ocidental, por outro lado, encontra-

se usualmente apenas o cortejo de eleitos se dirigindo ao Paraíso; sabe-se que são os eleitos

porque, além de estarem à direita do Cristo, dirigem usualmente não somente o olhar, como

também gestos de devoção, ao Cristo juiz e aos santos que O ladeiam. Em alguns casos, há

uma sugestão mais precisa devido à inserção da porta de entrada ao Paraíso. No painel de

Guido da Siena, por exemplo, conforme visto, há não somente a porta, mas também São

Pedro que recebe o grupo diante da entrada (slide 37). Não há, porém, indicação do Paraíso

per se, nem das recompensas destinadas aos bem-aventurados729.

Em contraposição aos modos de figuração do Paraíso, o Inferno parece usualmente

ter sido interpretado de forma mais detalhada730. Desde o momento em que passou a integrar

propriamente a composição do Juízo final – e não sendo apenas sugerido por meio da boca

infernal –, as punições do Inferno foram, de modo gradativo, sendo visualmente descritas com

mais minúcia, buscando-se também a associação entre os pecados cometidos em vida e as

728
A iconografia do seio de Abraão surgiu em âmbito bizantino associado, obviamente, à parábola de Lázaro,
como atesta um códice de ca. 886, das Homilias de Gregório de Nicéia. Como explica Baschet, “o seio de
Abraão se tornou uma evocação privilegiada do destino paradisíaco dos justos em particular na liturgia dos
defuntos: nos mais antigos rituais funerários (séculos VII-VIII) e durante toda a Idade Média se rezava para que
a alma dos defuntos tivesse acesso ao repouso no seio do patriarca ou dos patriarcas”. “Paradiso”. In: Op. cit., p.
169.
729
Exemplos foram mencionados no segundo capítulo desta tese, na discussão sobre o grupo de eleitos. Ver p.
130 a 141.
730
A ênfase no Inferno pode ser constatada pela complexidade mesma que se encontra nessas representações
infernais. Solberg, por exemplo, ao descrever o ciclo de Taddeo di Bartolo na Collegiata de San Gimignano,

CCXXVI
punições infligidas após a morte731. O conceito de memória continua sendo válido, mas

passou a ser utilizado especialmente conforme a acepção agostiniana, esclarecida por Patrick

Geary:

A memória era a memória do pecado e de Deus, a memória como distração e como


consciência, a ponte entre a perfeição intemporal do Criador e a natureza temporal e
múltipla da criatura humana imperfeita.732

Ao enfatizar a representação do Inferno, como ocorre em várias obras, parece que uma de

suas funções seria a de incitar o fiel a rememorar suas faltas e, ao reconhecer nos pecadores

punidos na cena seus próprios pecados, perceber os castigos que mereceria.

Poder-se-ia especular que, no momento em que houve o desmembramento do tema

do Juízo final, e as instâncias do Além adquiriram autonomia compositiva, esse panorama se

alteraria. De fato, se agora haveria uma área consideravelmente maior para a representação do

Paraíso, era plausível esperar um desenvolvimento iconográfico mais detalhado dessa

instância do Além. Isso, entretanto, não ocorreu – ou, pelo menos, não de modo equivalente

ao que aconteceu na área infernal. A partir de meados do século XIV percebe-se uma maior

proeminência na representação dos pecados capitais no Inferno. Isto já ocorria em obras

anteriores, como no afresco de Giotto na Capela Scrovegni (slides 44 e 46), em que vários dos

pecados já são passíveis de identificação, mas em períodos posteriores o destaque passou a ser

cada vez maior. A historiadora americana Gail Elizabeth Solberg comenta que, nos ciclos do

Camposanto de Pisa (slide 78) e da Collegiata de San Gimignano (slides 110 e 112), os

artistas buscaram um maior rigor na representação desses pecados, devido possivelmente às

dimensões que o Inferno ganhava como obra autônoma733 – e, talvez, também em função da

preocupação didática e da busca de intimidação dos fiéis; as pinturas deixariam de ser

somente uma incitação à confissão, mas passariam a indicar também ao espectador de forma

dedica pouco mais de uma página ao afresco do Juízo final; quase duas páginas ao do Paraíso, necessitando,
porém, de quase quatro páginas para a descrição da região infernal. SOLBERG, G.E. Op. cit., p. 788 a 796.
731
Ver a seguir.
732
“Memória”. In: SCHMITT, J.C. e LE GOFF, J. (org.). Dicionário temático do Ocidente medieval, volume
I, p. 167.

CCXXVII
clara quais pecados ele deveria evitar734. Explica ainda Baschet que, desse modo,

O afresco prolonga a interrogação do confessor: em cada lugar do inferno, a ameaça


incita o espectador a se perguntar se ele é passível de um tal castigo. Ao apresentar
as diferentes causas possíveis da danação, com a ajuda de categorias familiares,
aumenta-se assim a possibilidade de uma identificação do espectador com as figuras
735
dos danados, que é a condição para a eficácia da imagem.

Sobretudo, não se trata mais de um memento do julgamento; é a explicitação da forma mais

direta possível dos dois destinos póstumos possíveis do homem, com todas as suas

conseqüências. Sendo esse o caso, é preciso considerar ainda que essa nova forma de

representação parece se tornar um modelo, mesmo quando as obras são realizadas em

dimensões menores – em que, portanto, as regiões dos eleitos e dos condenados, e

especialmente as punições desses últimos, não possuem um grande destaque visual. É o que

ocorre nos três painéis já mencionados de Fra Angelico de ca. 1431 (slide 126) e de ca. 1450

(slides 131 e 132), e mesmo nos painéis nórdicos de Hans Memling (slide 162) e Rogier Van

der Weyden (slide 160).

Percebe-se também que, nos ciclos com o tema do Juízo final executados na

segunda metade do Trecento, há uma preocupação maior de facilitar a identificação da

imagem por parte dos fiéis. Isso ocorre não apenas com a inserção de elementos iconográficos

de maior apelo popular, mas também por meio da escrita. No afresco de Taddeo, por exemplo,

não apenas há a reprodução dos pecados capitais, como eles são explicitamente indicados por

inscrições: la superbia, la vidia, la lussuria, la varitia – soberba, inveja, luxúria e avareza; o

historiador italiano Peccori identificava em 1853 outras inscrições: em uma delas podia ser

lida a palavra gola, em outra a expressão gli accidiosi; isso indicaria que algumas das

legendas da pintura foram destruídas com o passar do tempo736, certamente por terem sido

pintadas a secco depois da conclusão do afresco. Alguns pecadores específicos também são

733
Op. cit., p. 813.
734
Cf. BASCHET, J. Op. cit., p. 343.
735
Idem, p. 343 e 344. A questão da identificação do fiel com os pecadores punidos nas imagens será
desenvolvida em outro ponto deste capítulo.

CCXXVIII
identificados por essas inscrições: avaro, golosi, usuraio, além de outros tipos de pecado

como o falso testimonio, que também poderiam ser incluídos em algumas das categorias de

pecados capitais.

Opção semelhante fez, conforme visto anteriormente, Nardo di Cione em seu ciclo

na Capela Strozzi (slides 90 a 97). Para tornar mais claro o Inferno dantesco, o artista incluiu

sentenças que explicavam quais pecadores eram punidos naqueles círculos específicos: Qui

sono puniti gli impostori e gli indovini; Qui si puniscono coloro che poeťero (sic) consiglio

fraudolento; Qui sono puniti gli iracondi e accidiosi, dentre outras. Incluiu também tipos

específicos de pecadores, uma vez mais os identificando por meio de inscrições: ippocriti,

alchimisti, eresiarchi. E, originalmente, o Inferno do Camposanto também possuiria

inscrições para identificar seis dos pecados capitais737; a soberba, segundo Baschet, estaria

representada na figura mesma do Diabo, assim como nas figuras por ele punidas738.

Percebe-se, portanto, que, ao menos nos exemplos dos ciclos de Pisa, de San

Gimignano e da Capela Strozzi – mas a questão poderia ser estendida a inúmeras outras obras

que também possuem inscrições –, a imagem pode ser lida e interpretada de modo mais

literal, através dos tituli que definem os pecadores; a imagem se tornaria um iconotexto, de

acordo com a definição do historiador da arte Peter Wagner739. À parcela da população

letrada, mesmo que não necessariamente expressiva, a compreensão da obra ficaria ainda

mais simples e evidente tendo em vista o fato de que as legendas foram escritas não em latim,

mas na língua vernácula habitual ao povo740. E, retomando por um momento a discussão com

relação à máxima de São Gregório, os letrados poderiam ler para os analfabetos essas

736
Cf. NORMAN, D. “The case of beata Simona: iconography, historiography and misogyny in three paintings
by Taddeo di Bartolo”. In: Art History, volume 18, n.º 2, junho 1995, p. 182.
737
Cf. BASCHET, J. Op. cit., p. 304.
738
Cf. Idem, p. 298.
739
Cf. BURKE, P. Op. cit., p. 49.
740
É o que esclarece Longère sobre os afrescos pisanos: “No Camposanto o jogo das imagens se exercita
evidentemente em sua plenitude somente nos confrontos com o público que sabe ler”. Apud FRUGONI, C.
“Altri luoghi, cercando il paradiso (il ciclo di Buffalmacco nel Camposanto di Pisa e la committenza
domenicana)”. In: Op. cit., p. 1572, nota 25.

CCXXIX
inscrições, reforçando desse modo a percepção e a compreensão que os iletrados poderiam ter

da cena.

Particularmente no ciclo pisano, as inscrições não se resumiam à identificação dos

diversos tipos de pecadores representados no afresco do Inferno; havia um memento constante

dirigido aos fiéis, através das inscrições que ainda eram legíveis no fim do século XIX: tanto

no afresco do Trionfo, como nos do Juízo final e do Inferno, havia a ênfase, por meio dos

textos, na necessidade de se olhar atentamente as imagens para absorver de modo adequado o

seu conteúdo, técnica recorrente nos preceitos da ars memoria difundidos no século XIV.

Como explica uma vez mais Bolzoni,

A fixação do olhar, bem endereçada, é a condição para que a imagem sensível,


externa, se transforme em imagem interior, capaz de guiar até a transformação
741
moral.

É o que se pode perceber por meio da inscrição que correspondia à separação entre eleitos e

condenados no afresco do Juízo final:

Alma sábia, se bem olhares fixamente/ o futuro tempo do juízo divino/ e os bons que
são eleitos ao Paraíso/ e os reis danados ao suplício eterno,/ a vida tua no mundo
742
será perfeita/ seguindo a virtude [e] abandonando o vício.

Complementa, por fim, Bolzoni que a imagem,

No momento em que se torna ‘moralizada’ e interior, se carrega de uma dimensão


exemplar, colocando-se assim em um espaço em que passado, presente e futuro
743
coincidem.

Assim sendo, a elaboração do ciclo foi um processo extremamente complexo, pelo qual,

através de palavras e imagens, buscava-se “construir uma precisa modalidade de recepção por

parte do público”744. Deve-se destacar também que, no ciclo do Camposanto, havia

originalmente epígrafes tanto em vulgar como em latim. Percebe-se, assim, como os fiéis – a

quem a obra se destinava – eram divididos em pelo menos três categorias: os analfabetos,

741
Apud Idem, p. 1563.
742
“Anima savia, se ben miri fiso/ il futuro eterno del divin giudicio/ et li boni che son electi al Paradiso/ et li rei
dannati allo eterno supplicio,/ la vita tua nel mondo serà perfecta/ sequendo la vertù lassando il vitio”. Apud
BOLZONI, L. “Un codice trecentesco delle immagini: scrittura e pittura nei testi domenicani e negli affreschi
del Camposanto di Pisa”. In: FRANCESCHETTI, A. (org.). Op. cit., p. 354.

CCXXX
aqueles que saberiam ler somente o vulgar, e aqueles que leriam também o latim745. Dessa

forma, a obra propiciaria níveis diversos de comunicação, “selecionando as mensagens

diversas que uma mesma imagem pode transmitir de acordo com o nível cultural (e social) do

destinatário”746.

No entanto, mesmo aqueles que não conseguissem ler as diversas inscrições, ou não

tivessem alguém por perto para as ler para eles, poderiam ser capazes de compreender a

mensagem da obra. Vários desses afrescos mostram, com efeito, a associação didática entre os

tipos de pecados e as penas específicas a eles aplicadas, prática corrente nas representações do

tema do Juízo final, e já presente em modelos anteriores747.

Essa associação já era expressa nas visões do Além, e foi posteriormente

incorporada às tradições visuais. Nos relatos sobre as punições das almas, com efeito,

encontra-se, muitas vezes, uma relação direta e evidente entre o castigo infligido e pecados

bastante específicos cometidos em vida. O historiador Michael Goodich, por exemplo,

menciona um relato do século XIII que narra a história de um clérigo que passava por uma

floresta na qual seu defunto senhor costumava caçar:

Envolto por uma densa nuvem, foi separado de seus companheiros e levado pelo
cavalo para um grande palácio no qual seu senhor estava sentado em uma cadeira em
chamas, usando uma coroa flamejante, sofrendo pelas mãos de suas próprias vítimas.
Ele gritou de seu trono infernal, “eu sou quem você procura e este é o meu trono e a
coroa pesa mais do que o mundo todo”. Os cervos que o chifravam eram os mesmos
que ele havia esfolado e de que havia retirado os chifres na mesma floresta. Os dois
cães caçadores negros que dilaceravam sua pele pertenceram a dois homens que
havia enforcado porque se recusaram a permitir que seus cães caçassem para ele na
floresta. E o jovem que o golpeava em seu trono, agarrando sua coroa e
esfaqueando-o no coração, era o mesmo homem que ele havia matado com suas
próprias mãos na floresta. A floresta agora servia de local para seu próprio castigo
retribuidor.748
Como se pode perceber, o pecador nesse relato é atormentado por aqueles a quem condenou em vida, e os

castigos estão diretamente relacionados a esses eventos específicos. A expressão “castigo retribuidor”, no

743
Ibidem.
744
BOLZONI, L. La rete delle immagini, p. 22
745
Cf. Idem, p. 23.
746
Idem, p. 22.
747
Isso, deve-se recordar, não pode ser aplicado ao afresco de Nardo di Cione que, como visto, interpretou de
modo literal o texto dantesco.

CCXXXI
texto, é sem dúvida bastante significativa.

Ao se buscar uma representação visual das punições nas regiões infernais, tamanha

especificidade foi usualmente abandonada; com efeito, a obra se dirigiria a um público mais

amplo, e se deveriam buscar pecados mais gerais, que fossem de mais fácil reconhecimento e,

portanto, compreensão. Daí venha talvez a ênfase na representação dos pecados capitais, cujas

características seriam bem conhecidas pelos fiéis. Desse modo, a mensagem seria mais

facilmente apreendida.

É possível que a representação iconográfica dos pecados capitais tenha derivado

dos penitenciais, que foram bastante comuns ao menos até o fim do século XII, e que

continuaram exercendo influência sobre os manuais de confissão posteriores. De fato, nesses

chamados Libri paenitentialis havia uma tendência, desde seu surgimento, no século VI, a se

aplicar a chamada cura pelo contrário, baseada em um antigo provérbio: “curem-se os

contrários com os seus opostos”749. Se o penitente havia cometido o pecado da gula, que

fizesse jejum; se havia praticado a luxúria, que buscasse a castidade; e assim por diante.

A questão que pode ser colocada é a de que se alguém está no Inferno, é porque não

conseguiu expiar os seus pecados em vida; ou seja, não teria conseguido seguir a cura pelo

remédio contrário. Assim, é possível conjeturar a possibilidade de se exacerbar os pecados no

Além. Se alguém foi condenado por um determinado pecado, que sofra por causa desse

pecado, por causa das conseqüências desse pecado e mesmo em função desses pecados por

toda a eternidade750.

A associação entre o pecado e o tipo de purgação, como visto, está presente em

diversas visões medievais do Além; em muitas, porém, a punição não é explicada ou

748
Violence and the miracle in the fourteenth century. Private grief and public salvation. Chicago e Londres:
Chicago University, 1995, p. 109.
749
“Contraria contrariis sanantur”. Cf. MCNEILL, J.T. “La medicina per il peccato prescritta nei Penitenziali”.
In: MUZZARELLI, M.G. (org.). Una componente della mentalità occidentale: i Penitenziali nell’alto medio
evo. Bologna: Pàtron, 1980, p. 215.
750
Ver a seguir.

CCXXXII
simplesmente não é possível estabelecer uma relação direta entre esta e os pecados cometidos

em vida. O Apocalipse de São Paulo (fim do século IV), por exemplo, menciona

continuamente ao longo do texto que os pecadores “pagam suas penas sem cessar”,

esclarecendo qual o pecado cometido. Não há, no entanto, relação entre o tipo de pecado e a

punição, embora o texto afirme igualmente de um pecador que “agora ele é recompensado de

acordo com sua iniqüidade e suas ações”751.

Deve-se considerar, certamente, que o Apocalipse de São Paulo é uma das mais

antigas descrições do Além que chegou aos dias atuais; visões posteriores concederiam muitas

vezes uma atenção maior não apenas ao pecado, mas ao esclarecimento também dos motivos

porque alguém que tivesse em vida cometido esse pecado deveria ser punido daquela

forma752. A Visão de Tundale (1149), por exemplo, descreve as punições sofridas

especialmente pelos monges luxuriosos, embora não se limite a eles, incluindo qualquer

pessoa que tenha tido uma vida desregrada no campo sexual:

Seus genitais são consumidos por dores diversas uma vez que não observaram
limites. Como afiaram suas línguas como serpentes, e então sofrem essas chamas.
Também seus genitais, que não se retraíram da proibida luxúria das relações sexuais,
são ou cortados fora ou produzem bestas ferozes para aumentar sua dor (…). Embora
essa dor seja especialmente para aquele que são chamados a serem religiosos e não o
são; no entanto aqueles que se corrompem pela luxúria imoderada também sofrem
essa punição. Por essa razão [explica o guia a Tundale] você não poderá evitar esse
castigo, uma vez que enquanto você estava em seu corpo não temeu ter relações
753
sexuais sem moderação.

A Visão de Thurkill (ca. 1206), por outro lado, assim descreve a punição de um usurário:

Depois que os demônios haviam observado os gestos desse homem desprezível por
algum tempo, o dinheiro repentinamente se tornou quente e queimou o miserável de
uma forma lastimável. Ele foi forçado a colocar os pedaços de moeda ardentes em
sua boca e em seguida a engoli-los (…). Eles [dois demônios] o obrigaram a vomitar
com muito maior tortura o dinheiro que havia engolido com grande agonia. Após
vomitá-lo, o demônio lhe ordenou que coletasse as moedas novamente, de modo que

751
Apud GARDINER, E. Visions of Heaven and Hell before Dante. Nova York: Italica, 1989, p. 38.
752
A Visão do monge de Evesham (1196), no entanto, limita-se a afirmar que “qualquer pessoa que eu via, e por
quaisquer pecados fossem punidas, eu percebia claramente tanto a natureza do pecado e o grau de sua punição”.
Apud Idem, p. 204. No Apocalipse de São Pedro, por outro lado, como visto um dos mais antigos textos sobre
visões do Além (escrito provavelmente em meados do século II), afirma-se que “aqueles que blasfemaram o
caminho da honradez serão pendurados por suas línguas”, uma clara associação entre o pecado – cometido por
meio da fala – e a punição – centrada na língua pela qual o falar é possível. Apud Idem, p. 06.
753
Apud Idem, p. 171.

CCXXXIII
754
pudesse ser alimentado novamente da mesma forma com o dinheiro.

E não se pode esquecer, por fim, nesse breve panorama, a Commedia dantesca, que sintetiza

de certo modo todos os outros exemplos.

A punição, assim, está de alguma forma relacionada ao tipo de pecado cometido em

vida. Muitas das descrições e das associações encontram um equivalente visual nas

representações do Inferno da tradição medieval, embora não se deseje discutir aqui qual

modelo teria surgido inicialmente. Por exemplo, no afresco de Taddeo di Bartolo, o homem

identificado como sottomutto (sodomita) é castigado por uma estaca que é colocada em seu

ânus por um demônio, que sai por sua boca, entrando em seguida na boca de um segundo

homem. O sodomita é por fim assado em uma chama posta sob ele além de, aparentemente,

ter seu calcanhar “pinçado” por um demônio 755. No Inferno pisano há uma representação

bastante semelhante a essa na extremidade inferior da obra. No afresco de Giotto, em Pádua,

as punições aos luxuriosos se concentram na região dos órgãos genitais – algumas figuras são

penduradas por eles, enquanto um homem tem seu pênis “pinçado” por um demônio.

No caso dos gulosos as figuras foram postas, tanto no afresco de San Gimignano

como no do Camposanto de Pisa, diante de uma farta mesa, impedidas pelos demônios de

devorar o banquete que lhes é apresentado – o chamado suplício de Tântalo; em Pádua, pelo

contrário, aos gulosos são continuamente fornecidos alimentos através de um cano que lhes é

enfiado na boca. Talvez nos dois primeiros exemplos mencionados se perceba com maior

clareza a noção que se encontra nos livros penitenciais – contraria contrariis sanantur. Nesse

caso, porém, jamais haverá a possibilidade de cura756. Por fim, Taddeo di Bartolo representou

o avaro sendo enforcado com um saco de dinheiro, enquanto o usurário é obrigado a engolir

754
Apud Idem, p. 230.
755
Essa representação da figura assada teria surgido pela primeira vez no mosaico do Batistério de San Giovanni,
em Florença. Cf. BASCHET, J. Op. cit., p. 223. O motivo do homem empalado, por outro lado, seria recorrente
na Península Itálica tanto nas pinturas – o primeiro exemplo estaria no afresco pisano de Buffalmacco – quanto
nas encenações teatrais, como ocorre na peça L’Anticristo e il Giudizio finale. Cf. Idem, p. 502.

CCXXXIV
moedas de ouro – ou seria em brasa, conforme a Visão de Thurkill? – que são defecadas em

sua boca por um demônio. Percebe-se então que, através dos elementos iconográficos que

compõem a imagem, a mensagem específica da obra – quais pecados cometidos em vida

mereceriam que formas de punição no Além – se torna clara, independente da classe social a

que pertence o observador ou de sua capacidade de leitura; a imagem, desse modo, consegue

desempenhar de modo inequívoco suas funções primordiais, conforme discutido

anteriormente: o ensino, a doutrinação, a conversão.

No Inferno, portanto, os castigos continuaram sendo minuciosamente descritos,

potencializando a mensagem da cena não somente pela inclusão das inscrições, como também

pelo tamanho da composição. Não há no Paraíso, em contrapartida, o equivalente das

benesses sendo apresentadas757. Pelo contrário, nos exemplos de afrescos remanescentes em

que foi feito esse desmembramento das instâncias do Além – os ciclos de Nardo di Cione e de

Taddeo di Bartolo, além do afresco atribuído a Giotto no Palazzo del Bargello – a

representação do Paraíso se dá como o grande cortejo celeste. De fato, como escreve Christe,

essa figuração do Paraíso “tendia a se confundir com a representação da festa de todos os

santos”758: fileiras de santos que contemplam o Cristo e a Virgem posicionados lado a lado e

acima de todos os outros santos, nos exemplos de San Gimignano e de Santa Maria Novella

(slides 94 e 109), ou somente o Cristo, no exemplo do Bargello (slide 68). Parece haver aqui

uma interpretação das concepções tomísticas: Santo Tomás, com efeito, afirmava que o

Paraíso seria um lugar de luz, sem plantas e animais, caracterizado somente pela passiva

contemplação dos beatos759. Desaparece o seio de Abraão, mas, especialmente, não há mais

756
Comenta Gardiner que “essas visões também parecem ter sido influenciadas pela literatura penitencial que era
de grande importância especialmente na primitiva tradição irlandesa, a que muitas dessas visões estão
associadas”. Op. cit., p. XIII.
757
Como destaca Barnes, “a idéia de uma santa população existindo em uma vida após a morte gloriosa recebia
menos ênfase do que a condenação da baixeza moral e do mal”. Op. cit., p. 29.
758
“Giudizio universale”. In: Enciclopedia dell’arte medievale, volume VI. Roma: Istituto della enciclopedia
italiana, 1995, p. 798.
759
Cf. CERUTTI, V. “Gli abiti di uma corte celeste del Quattrocento. L”iconografia del Paradiso nel Giudizio
Universale di Giovanni di Paolo”. In: Op. cit., p. 125, nota 145.

CCXXXV
quaisquer menções ao jardim paradisíaco ou à Jerusalém celeste, que ainda compareciam até

o fim do século XIII. Não há, ademais, representação evidente das recompensas que

aguardariam aqueles escolhidos pelo Cristo juiz, ainda que, como recorda Cinzia Consoli, a

teologia pudesse “oferecer boas idéias ao artista”760. O mesmo se pode afirmar com relação às

visões do Além que incluem passagens das personagens pelo Paraíso761. Por que isso ocorre?

É possível conjeturar que a própria situação política da

Toscana dos séculos XIII e XIV tenha exercido influência sobre essa

ênfase no Inferno nas representações visuais do tema do Juízo final.

Havia nesse período uma espécie de culto à violência, explicado pela

historiadora francesa Élizabeth Crouzet-Pavan. A autora cita como

exemplo a crônica do florentino Dino Compagni (ca. 1260-1324), que

“conta como, dia após dia, o ódio e as batalhas de ruas, a vingança e

as dilacerações do corpo civil animavam Florença”762. Cita ainda

que, ao menos desde os últimos quartéis do século XIII, tornara-se

comum nos comuni italianos a representação figurativa, “no mais

público dos espaços públicos”763 – ou seja, nas praças ou nos

palácios de governo –, dos condenados por crimes chocantes, dos

traidores e dos derrotados políticos. “A falta era estigmatizada em

todo seu horror, a vergonha e a memória eram conservadas,

perpetuadas (…)”764. Essas representações seriam renovadas

periodicamente, conforme novos criminosos fossem julgados, de modo

a manter sempre vívida a memória das punições.

760
“Il Giudizio Finale del Battistero di Firenze e il suo pubblico”. In: Quaderni medievali, n.º 09, junho de
1980, p. 81. Para várias descrições do Paraíso nas visões do Além, ver também o já mencionado livro de
Gardiner.
761
Para várias descrições dessas visões, ver o livro de Gardiner.
762
Enfers et paradis. L’Italie de Dante et Giotto, 2ª edição. Paris: Albin Michel, 2004, p. 12.
763
Idem, p. 76.
764
Ibidem.

CCXXXVI
A violência, ainda para Crouzet-Pavan, foi nesse período

Uma forma comum de expressão do político, o uso dominante de uma cultura, em


suma uma prática necessária e identificadora. Nesse sentido, a violência e o conflito
765
surgem como o motor sempre ativo da história da Itália no século XIII.

Ainda relacionado a isso, é preciso recordar também que as punições

eram realizadas de modo a poderem se tornar espetáculos públicos,

com o objetivo de incutir medo naqueles que as observavam766.

Dessa forma, essa realidade teria sido incorporada à

tradição iconográfica do Inferno. Ao menos em um dos exemplos

analisados nesta tese, é evidente a influência que a vida

contemporânea teve sobre a representação visual do Juízo final,

particularmente no que se refere a esse espetáculo da violência. No

afresco de Giotto, em Pádua, são mostrados instrumentos de tortura

judicial coevos, e as punições representadas são as mesmas

concedidas aos infratores da época. Torturas como o esmagamento de

ossos, mãos decepadas e esmagamento da espinha. Há também nesse

afresco outras alusões a castigos comuns na Toscana do Trecento,

como figuras penduradas de cabeça para baixo, o que era

considerado uma forma bastante vergonhosa de punição capital na

época767. Aos fiéis, capazes de identificar os objetos e de recordar a

dor causada nos condenados a sofrer esses suplícios, as punições se

tornavam bastante reais e ainda mais convincentes, ainda que, para o

observador moderno, tenha havido a diluição do impacto em virtude

765
Idem, p. 90. A autora, decerto, não defende em seu livro que a violência nasceu no século XIII. Explica ela
que “os conflitos que marcam e transformam a sociedade italiana, fazendo do século XIII o tempo das
perturbações civis, nascem certamente nas últimas décadas do século XII”. Idem, p. 122. Os motivos desse
aumento da violência poderiam se encontrar no crescimento das cidades. A partir de 1170, de fato, “o
movimento de inurbamento se acelera” de forma mais ou menos constante em quase todos os centros urbanos da
Itália central, não importando se grandes ou pequenos. Idem, p. 126.
766
Cf. BARNES, B.A. Op. cit., p. 18.

CCXXXVII
da perda do conhecimento de quais torturas se aplicariam a quais

crimes.

Visando, portanto, a uma facilidade de reconhecimento por parte dos fiéis que se

deparassem com as cenas infernais, foi necessário que as figurações do Inferno, por mais

irreais que fossem, partissem da realidade deste mundo: para esse aspecto da iconografia, o

conhecido se torna mais eficaz do que o imaginário. Tomem-se, por exemplo, os instrumentos

de tortura utilizados pelos demônios. Ao contrário do que se poderia talvez imaginar, em

muitos dos exemplos, literários ou visuais, são utensílios comuns, utilizados habitualmente

pelo povo medieval em suas atividades quotidianas. Como explica Barbara Palmer,

São as ferramentas da terra, transferidas por suas ligações semânticas dos


implementos necessários para a realização de um trabalho e o conceito de trabalho
sendo tortura literal.768

Assim, instrumentos utilizados habitualmente na agricultura, como arados e forcados,

transformaram-se em meios para a tortura nas regiões infernais; serrotes são usados para

desmembrar corpos, como no afresco de Giotto na Capela Scrovegni (slide 46), em que

“operam um ataque à integridade do corpo”769; ganchos de cozinha bastante comuns no

período, que eram utilizados para provar a comida enquanto esta cozinhava em grandes

caldeirões, passaram a ser utilizados pelos demônios para tomar conta dos condenados no

Inferno. Em muitas representações esses mesmos ganchos foram utilizados para dar estocadas

no que parece estar sendo cozinhado nos caldeirões infernais, bastante semelhantes aos

empregados em qualquer casa da época. Ironicamente, a “comida” preparada agora seriam os

próprios torturados, que se debateriam dolorosamente sem nada poder fazer. Ao menos esse

tipo de imagem teria possivelmente um impacto maior sobre o público feminino, que se

767
Cf. Ibidem.
768
“The inhabitants of Hell: devils”. In: DAVIDSON, C. e SEILER, T.H. (org.). Op. cit., p. 25. Não somente os
instrumentos agrários, porém. Como escreve Gardiner, “as imagens evocadas para as descrições do inferno são
comumente relacionadas a imagens masculinas de trabalho fornecidas pela nascente economia industrial. Forjas,
fornalhas, martelos, fumaça e metais ferventes se combinam para apresentar uma imagem que certamente seria
infernal para uma audiência rural, aristocrática e agrária”. Op. cit., p. XVIII.
769
BASCHET, J. Op. cit., p. 224.

CCXXXVIII
ocupava desses afazeres domésticos. Comenta Davidson ainda que, no século XIV, inventou-

se um novo tipo de fornalha, assim como as técnicas para se fazer ferro fundido. “Quase

imediatamente (…) a tecnologia do alto-forno foi adaptada à iconografia do inferno e às

punições dos viciosos e dos condenados”770.

Essa associação com objetos quotidianos não se limitava às

pinturas, comparecendo também ao menos em um sermão no início do

século XIV. Giordano da Pisa, de fato, em seu Quaresimale

Fiorentino, afirma que “são condenados à panela e ao fogo e à fritura

eternos do inferno, de modo que jamais terá fim aquela fritura e não

virá odor, mas fedor”771. E, como destaca Baschet, “a imagem da

cozinha possui aqui, sobretudo, um valor metafórico na medida em

que prolonga a comparação do homem a um peixe pego pelo

anzol”772. O destaque a atividades e objetos quotidianos nas

pregações pode ter exercido de algum modo influência nas

representações pictóricas do Inferno, do mesmo modo que o inverso

pode ter ocorrido, ainda que não haja subsídios para corroborar essa

possibilidade.

Os conflitos sociais e interfamiliares, que se tornaram tão

comuns nas cidades italianas no século XIII, trouxeram também

movimentações religiosas diversas, que visavam à pacificação desses

centros urbanos. De acordo com Crouzet-Pavan, “a predicação das

ordens mendicantes intervém nesse contexto”773. E explica:

Milagres verdadeiros e falsos, fenômenos sobrenaturais se misturam e inflamam as


770
“The fate of the damned in English art and drama”. In: DAVIDSON, C. e SEILER, T.H. (org.). Op. cit., p.
54.
771
“Sono obligati a la padella e al fuoco e al frittume eternale del ninferno, che mmai non avra fine quel
frittume e non ne verrà odore, ma puzza”. Apud BASCHET, J. Op. cit., p. 334, nota 108.
772
Ibidem.
773
Op. cit., p. 153.

CCXXXIX
expectativas que as pregações suscitam. As crônicas falam do extraordinário fervor
que, como uma onda, se expande. A maior parte das cidades confia então seus
774
assuntos políticos aos frades que reformam os estatutos comunais.

Segundo a autora, por conta dessas mudanças também os modos de

devoção foram se transformando: ela se tornaria, com o tempo,

penitencial e moralizadora. Esse caráter penitencial, por sua vez,

poderá ter exercido influência na representação visual do Juízo final,

passando-se a conceder a ênfase cada vez maior aos castigos

infernais que seriam conseqüência de um não-arrependimento ou de

um arrependimento tardio, que seria responsável, por sua vez, por

uma penitência não adequadamente realizada, sobrevindo a morte

antes da expiação completa da falta775.

Há, ainda, outra possibilidade de explicação para a iconografia do Paraíso, singular

quando confrontada com a elaboração do Inferno não somente no mesmo momento, como em

exemplos que integram o mesmo ciclo de afrescos. De fato, se há inúmeras formas de

punições possíveis – o mal possui uma “diversidade sem fim”, escreve Crouzet-Pavan776 –,

haveria uma única recompensa para os eleitos, tão especial a ponto de contrabalançar essa

disparidade iconográfica: a contemplação eterna do Criador. Isso é descrito por autores

diversos, e mesmo Dante em sua Commedia explicita que os céus de seu Paradiso se referem

a graus diversos de beatitude; quanto mais distante do centro inundado de luz, menor a bem-

aventurança do eleito; nas pinturas, isso é representado colocando os santos e os outros eleitos

em faixas superpostas, com o Cristo no alto, no centro, por vezes acompanhado da Virgem. É

o que ocorre, como visto, no afresco do Palazzo del Bargello (slide 68), no de Nardo di Cione

na Capela Strozzi (slide 94), assim como no de Taddeo di Bartolo em San Gimignano (slide

774
Ibidem.
775
Deve-se recordar também que essa onda de fervor e devoção, que se cristalizou em meados do século XIII, é
um dos fatores que explica, em 1260, as procissões dos flagelantes, conforme discutido no primeiro capítulo
desta tese.
776
Op. cit., p. 117.

CCXL
109). Se iconograficamente, portanto, a representação do Paraíso possui um interesse menor

do que a do Inferno, teologicamente ela apresentaria a maior de todas as recompensas

possíveis. Ademais, como destaca Baschet,

A corte celeste mostra a imagem ordenada da Igreja triunfante e exalta a promessa


de uma agregação à comunidade dos santos e de uma reunião com Deus em uma
777
relação direta suscetível de evocar a visão beatífica.

É preciso considerar ainda outro ponto. Conforme citado anteriormente, afirmou Baschet que

O desenvolvimento da iconografia do inferno não deve ser interpretado como o sinal


de uma acentuação do medo da danação. Porque a imagem do inferno não está
jamais isolada e o medo do inferno não é um fim em si.778

Essa ênfase maior no Inferno, entretanto, poderia estar relacionada também à necessidade de levar o fiel à

conversão pelo medo. Como escreve o próprio Baschet, “o Inferno é um espelho que reflete para o sujeito

a imagem de um eu culpado” 779 . De fato, era fundamental, ao contemplar uma representação do Inferno,

que o espectador se reconhecesse como uma vítima potencial dos castigos que eram figurados na cena. Se

também era de grande importância que o fiel se visse igualmente como candidato às recompensas dos

justos, parece claro que, para esse mesmo fiel, a visualização das punições teria um impacto muito maior.

Esse ponto reforça outras questões. As razões para a crescente importância do Inferno nas

composições do Juízo final podem residir também no progressivo aumento da participação leiga nos

assuntos religiosos, assim como nas pregações das ordens mendicantes, que buscavam uma conversão dos

fiéis por meio de imagens mentais – e visuais – mais fortes. Incultos e iletrados, muitos – senão a maioria –

deveriam ser persuadidos sobre qual caminho seguir mais pelo medo do que pelo simples convencimento,

especialmente em um momento em que a liberdade popular em relação aos assuntos religiosos se tornava

maior. É o que afirmou Giordano da Pisa em um de seus sermões, já citado anteriormente: “sobre todas

as coisas da vida é útil a memória do juízo e das penas, uma vez que parece que os pecadores se

arrependem do mal a não ser por medo” 780. Segundo Santo Anselmo (1033-1109), apenas quando tomado

777
“Paradiso”. In: Op. cit., p. 174.
778
“Image et événement: l’art sans la peste (c. 1348- c. 1400)?”. In: La Peste Nera. Dati di una realtà ed
elementi di una interpretazione. Atti del XXX Convegno storico internazionale. Spoleto: Centro italiano di studi
sull’Alto Medioevo, 1994, p. 32.
779
Apud MARTIN, H. Mentalités médiévales. XIe-XVe siècle. Paris: PUF, 1996, p. 87.
780
“Sopra tutte le cose di questa vita è utile la memoria del giudicio e de le pene, imperò che i peccatori non
pare che .ssi rimangano dal male se non per paura”. Op. cit., p. 57.

CCXLI
pelo medo da condenação eterna é que o homem poderia ser efetivamente levado ao arrependimento781.

Como indica Bernardine Barnes ao comentar o afresco de Giotto na Capela Scrovegni, “essa região

inferior do afresco [o Inferno] foi realizada para fascinar e ser estudada, certamente com a esperança de

que alguma lição pudesse ser aprendida” 782 .

Nessas pinturas com o tema do Juízo final, há ainda um detalhe a mais: a área reservada ao

Inferno, tradicionalmente a parte inferior do espaço, localiza-se muitas vezes mais próxima da altura dos

olhos dos fiéis – no caso dos grandes afrescos –, permitindo desse modo um contato visual mais direto e

imediato. As conseqüências que isso poderia ter sobre a obra são comentadas por Barnes, em relação

especificamente ao afresco de Giotto na Capela Scrovegni:

A face de Satã está completamente obliterada por arranhões, e a maior parte


dos pequenos demônios foram similarmente desfigurados. Pinturas do período
que representavam demônios em qualquer lugar ao alcance dos pios muitas
vezes sofreram tal abuso. 783

Danos semelhantes podem ser constatados na predella de Giovanni di Paolo de ca. 1460: a região infernal

como um todo apresenta danos causados por arranhões diversos, concentrados especialmente sobre as

faces das figuras demoníacas (slide 143).

Concedendo especial atenção ao Inferno, poder-se-ia enfatizar também o papel intercessor da

própria Igreja – apenas através dela poderia ser possível escapar da condenação para além dos tempos.

Essa é uma questão de grande relevância quando se discutem as funções de uma imagem com o tema do

Juízo final. A elaboração particularizada dos castigos teria, assim, a função de assustar o fiel e prepará-lo

para o juízo. Conforme a afirmação das Escrituras, é necessário estar sempre atento, pois não se sabe

quando chegará o fim dos tempos e, por conseqüência, o julgamento final784. Deve-se considerar, por outro

lado, os exemplos em que se inclui São Pedro na entrada do Paraíso, como o painel de Guido da Siena

(slide 37). Nesses casos, essa ênfase no poder da Igreja ocorre pela própria figura do santo, como explica

Baschet: “a representação de Pedro diante da porta do paraíso possui uma significação institucional: a

781
Cf. SHEINGORN, P. “‘For God is such a Doomsman’: origins and development of the theme of Last
Judgment”. In: BEVINGTON, D. et alii. Op. cit., p. 38. E em busca desse convencimento escreveu Santo
Anselmo em sua Prece a Santo Estevão: “Uma prisão sem aberturas reparadoras;/ naquela prisão há grandes
tormentos, (…)/ Tormentos sem fim, sem intervalo, sem alívio,/ torturas horríveis que jamais diminuem,/ onde
ninguém tem piedade”. Apud Idem, p. 42.
782
Op. cit., p. 18.
783
Ibidem.
784
Há diversos textos escriturais que tratam desse tema, como, por exemplo, Mc 13, 33-37. A Idade Média
privilegiou, quanto a isso, especialmente a parábola das virgens prudentes e das virgens insensatas, descrita em
Mt 25, 1-13. Nessa passagem, o noivo que está para chegar era interpretado, no período medieval, como Cristo.

CCXLII
visualização do poder das chaves ilustra o poder de intercessão da Igreja”785.

A idéia da pintura como um espelho que reflete a imagem do pecador, conforme comentado

por Baschet, parece ter sido interpretada de forma literal no Camposanto de Pisa. De acordo com Emilio

Tolaini, um espelho real teria sido inserido no canto inferior direito do afresco do Inferno, no círculo dos

luxuriosos,

No qual o visitante era induzido a descobrir refletida a própria imagem, e


portanto a se encontrar projetado no interior daquela visão aterradora; de
espectador dos tormentos se transformava de repente em protagonista.786

Essa solução é inédita, não encontrando equivalente em quaisquer outras representações conhecidas do

Inferno. Não havia mais a projeção mental de uma possibilidade post-mortem; não havia mais a

possibilidade de auto-reconhecimento entre um dos pecadores. O fiel, agora, estava incluído, ele próprio,

dentre aqueles punidos eternamente no Inferno. O auto-reconhecimento, agora, se tornou visível, e não

mais somente mental. A particularidade desse afresco se encontrar em um local destinado ao

sepultamento dos mortos criaria, sem dúvida, um efeito de todo particular sobre o fiel que caminhasse

pelo Camposanto.

Giorgio Trenta, em 1891, teria sido o primeiro a destacar a existência de um espelho real

inserido no intonaco do afresco do Inferno787. Em 1894, o mesmo autor publicou um documento inédito

que tratava de um “Guglielmo tornatore della cappella di Santa Margherita”, que em 31 de janeiro de

1374 teria recebido uma quantia para executar um espelho a ser colocado no Inferno do Camposanto,

possivelmente já uma reposição do espelho original788.

Segundo Tolaini, de fato, o espelho não teria durado muito, tendo sido roubado ou quebrado

em ao menos duas ocasiões – fato que decerto é um forte indicativo das reações dos fiéis que na época

contemplavam a pintura. Desistindo-se finalmente de repô-lo, Giovanni d’Antonio Buzzini, il Sollazino,

785
Lieu sacré, lieu d’images, p. 79.
786
“Lo specchio dell’Inferno nel Campo Santo di Pisa, um passo dell’Aretino e una nota di Francesco da Buti”.
In: Op. cit., p. 34.
787
O autor desenvolveu essa tese em seu texto de 1891 “L’Inferno di Andrea Orcagna, affresco che trovasi nel
Camposanto Pisano, in relazione coll’“Inferno” di Dante”, e também em “L’Inferno e gli altri affreschi del
Camposanto di Pisa attribuiti agli Orcagna, a Buffalmacco, al Lorenzetti, e a Giotto, restituiti ai loro veri auori,
con documenti inediti”, publicado em 1894. Cf. Idem, p. 37.
788
“1374 Giullelmus tornator de capella Sancte Margarite habuit a suprascripto domino Operario pro pretio
unius speculi ponendi in pictoris inferni in Camposanto… s. sex”. Apud MEISS, M. “The problem of Francesco
Traini”. In: The Art Bulletin, 15, n.º 1, março 1933, p. 152, nota 55. A citação é a mesma empregada para a
definição do terminus ante quem definitivo para a realização do ciclo do Trionfo, conforme discutido na
introdução desta tese.

CCXLIII
pintou em seu lugar, em 1530, um espelho falso, que passou a refletir a imagem de um dos luxuriosos da

cena789. Desse modo, a intenção e a mensagem permaneceram, embora, sem dúvida, fortemente diluídas.

De acordo com o raciocínio desenvolvido até agora, o mais importante não seriam as

recompensas que os cristãos poderiam receber no Paraíso, mas sim os castigos eternos a que certamente

seriam submetidos após o julgamento se não modificassem a tempo seu comportamento em vida. É o que

escreve Chiara Frugoni a respeito do ciclo do Trionfo della Morte no Camposanto de Pisa:

Se [o ciclo] deseja orientar [o fiel] como fim último ao céu e ao paraíso, o faz
alcançar somente através do duplo terror inspirado pela visão do corpo desfeito
[no Trionfo] e das penas atrozes que a alma deve sofrer no inferno. 790

A representação de horríveis torturas poderia tirar a mente do fiel de seu natural torpor, permitindo a

tomada de atitudes que evitariam a condenação, retomando uma vez mais o que escrevera Santo Anselmo.

Evocam-se aqui as palavras do Eclesiástico: “Em todas as tuas obras, lembra-te do fim, e jamais

pecarás”791. Mais do que lembrar o fim, o que poderia evitar o pecado seriam as possibilidades de tortura

após o fim, na eternidade das penas infernais, que os fiéis teriam em mente de forma constante. E, nesse

sentido, as imagens representando essas torturas funcionariam como um reforço muito mais ativo e

efetivo do que qualquer outra descrição, como já o haviam afirmado, de resto, São Boaventura e Santo

Tomás de Aquino. Eloqüente, nesse sentido, era uma das inscrições que acompanhava originalmente o

afresco do Inferno pisano:

Ó pecador que nessa vida estás/ Evolvido estás pelas coisas mundanas/ Ponha a
mente fixa nestas ásperas figuras/ Que neste obscuro Inferno criam problemas./
Assim como elas são assim serás/ Se não te arrependes do mal que fizeste.792

Percebe-se, uma vez mais, a importância das inscrições para a adequada interpretação dessas imagens.

Pois, como esclarece Baschet, “uma coisa é ver a imagem do inferno; e é outra imaginar a si próprio

789
Cf. Idem, p. 35. Foi esse mesmo pintor quem refez a figura do Diabo e as quatro áreas inferiores do afresco
do Inferno, embora estes últimos já tivessem sido repintados em algum momento no século XV. De acordo com
Tolaini, a única parte original do Diabo seriam os “nós e rótulas” que recobrem o seu corpo, e que seriam os
sinais distintivos da fraude e do dano segundo Dante. Cf. Idem, p. 41, nota 08.
790
“Altri luoghi, cercando il paradiso (il ciclo di Buffalmacco nel Camposanto di Pisa e la committenza
domenicana)”. In: Op. cit., p. 1570.
791
Ecl 7, 36.
792
“O peccator che in questa vita stai/ Involto se’ nelle mondane cure/ Pon mente fiso ad queste aspre figure/
Che in questo obscuro Inferno traggien guai./ Chosi’ com’elle son così serrai/ Se non ti penti del mal che ipso
hai”. Apud FRUGONI, C. “Altri luoghi, cercando il paradiso (il ciclo di Buffalmacco nel Camposanto di Pisa e
la committenza domenicana)”. In: Op. cit., p. 1570. Complementa ainda Frugoni que, com as novas mudanças
sociais nos séculos XIII e XIV, “as alegrias do paraíso se tornaram esmaecidas e longínquas, e a Igreja foi
obrigada a aceitar essa nova idiossincrasia e a exorcizar as paixões terrenas por meio do espetáculo de horror da

CCXLIV
relacionado a tal destino”. Os comentários incluídos nos afrescos “se encarregam de excluir uma

possibilidade de uma percepção distanciada da imagem”793, reforçando a idéia de que o espectador pode

ser – ou se tornar – uma vítima potencial dos demônios.

O Juízo final, desse modo, com as representações desenvolvidas de Paraíso e Inferno, pode ser

considerado tema fundamental para a reflexão humana794. Assim, a meticulosidade empregada na

descrição das punições infernais (que enfatizariam o medo da danação especialmente quando a

representação do Inferno estivesse associada ao tema mais amplo do Juízo final, seja nos ciclos de

afrescos, seja em uma cena única), incitariam “o espectador a agir de forma cristã” – conforme já o

afirmara Baschet –, de modo a se conseguir evitar a condenação para além dos tempos. Afinal, como

recorda Christe

(…) estas revelações de um futuro ainda distante escondiam em realidade uma


mensagem atual destinada a cada indivíduo, como já ocorria em Isidoro de
Sevilha (560- ca. 636): que cada um medite sobre o próprio fim, uma vez que
quando deixar o mundo, para ele será já o fim do mundo.795

E, nesse ponto, pode-se considerar que também a composição simplificada do

Paraíso nos ciclos de afrescos se ligaria a esse esquema mais amplo: a vasta galeria de santos

que se abria diante dos olhos dos fiéis tornaria mais fácil a prece por um santo intercessor que,

talvez, pudesse estar representado entre os outros, uma vez que eram incluídos por vezes

nessas grandes cenas aqueles santos mais populares – identificados por seus atributos

iconográficos –, ou o santo a quem a igreja em que se encontra a representação do Juízo final

é dedicada. De uma forma ou de outra, seriam os santos de maior apelo aos fiéis que

contemplassem a obra. Um exemplo que pode ser mencionado – ainda que fuja das

delimitações cronológica e geográfica desta pesquisa – é o tímpano da Igreja abacial de

Sainte-Foy, em Conques (slides 182 a 184). Santa Fé comparece não junto ao cortejo de

carne desfeita e da angústia das penas eternas”. Idem, p. 1571. Destaque-se aqui também, por fim, o colocar a
mente fixa mencionado por Bolzoni. Ver supra, p. 258.
793
Les justices de l’au-delà, p. 329 e 330.
794
Essa postura também está presente nos dramas encenados no fim da Idade Média. O drama Castle of
Perseverance, por exemplo, cita literalmente a passagem do Eclesiástico: “Homo, memento finis, et in aeternum
non peccabis”. Apud BEVINGTON, D. “‘Man, thinke on thine endinge day’: stage pictures of Just Judgment in
The Castle of Perseverance”. In: _____ et alii. Op. cit., p. 150.
795
“Paradiso”. In: Op. cit., p. 804.

CCXLV
eleitos, mas próxima à ressurreição dos corpos, na parte inferior esquerda, logo acima da

representação do seio de Abraão. A santa está ajoelhada, seu rosto quase tocando o chão, e

está com as mãos postas. À sua frente surge o braço de Deus, reconhecível por causa da

auréola cruciforme colocada atrás da mão que, estendida, quase encosta na parte de cima da

cabeça da santa; a auréola a toca (slide 184). A própria santa é facilmente identificada porque

está figurada ao lado da representação do edifício religioso real, onde se encontra o tímpano,

simbolizado por arcos e pelos grilhões dos prisioneiros que ela libertara, que ficavam

efetivamente na igreja, ao lado da estátua da santa796.

A presença desses santos nas representações poderia suscitar a devoção dos

espectadores, de modo que estes lhes dirigissem preces visando à sua intercessão para o

perdão de suas faltas. Na religiosidade laica do século XIV havia, de fato, um

Forte senso de reciprocidade entre, por um lado, o poder espiritual da própria


imagem e, por outro, o comprometimento e o fervor religiosos dos devotos das
imagens. Esta reciprocidade surgiu na crença mesma na intercessão dos santos.
Assim, alguém rezaria para que o santo intercedesse diante de Deus a seu favor. Em
797
troca, o requerente prometeria realizar alguns atos pios.

Como comenta Bossy, desde o século XIII o culto aos santos havia sofrido uma alteração: quando o fiel

tivesse recebido seu nome como uma forma de homenagem, o santo se tornaria, mais do que um patronus,

um patrinus, um “padrinho de grau superior, alguém com quem podia conversar” 798. Deve-se recordar

aqui que, como no século XIV se intensificou a visão de Deus como o Pai punidor – especialmente após o

surto de Peste Negra –, a população leiga poderia preferir recorrer aos santos, que atuariam, conforme

visto, como os intercessores, evitando, assim, uma solicitação diretamente ao Deus encolerizado. Este

ponto justificaria a importância desses santos nas pinturas com o tema do Juízo final.

É preciso, entretanto, ponderar outra questão. As representações visuais do Juízo final são

diversas de outras imagens religiosas ao menos em dois pontos: essas últimas narram histórias e eventos

passados – retirados das Escrituras, Evangelhos apócrifos ou lendas populares; boa parte delas poderia

796
Cf. SCHMITT, J.C. O corpo das imagens, p. 193. Para uma análise da relação entre essa figuração no
tímpano do Juízo final e o culto promovido pela Igreja de Sante-Foy à estátua da santa, ver o texto de Schmitt.
797
NORMAN, D. et alii. Siena, Florence and Padua: art, society and religion 1280-1400. Volume 1:
interpretative essays. Londres: Yale University, 1995, p. 181.

CCXLVI
ser classificada como imagem devocional, seja representando o Cristo, a Virgem ou um santo, e mesmo

cenas religiosas diversas. O Juízo final é um tema diferente: conforme comentado no segundo capítulo, ele

se refere a um evento futuro, que ninguém sabe exatamente como irá ocorrer; é um evento que ocorrerá

para todos, não somente para aqueles representados nas cenas, mas para cada pessoa que se coloca diante

da cena – e mesmo para aquelas que jamais contemplaram uma representação do tema. Nos exemplos de

figurações do Juízo final, desse modo, a narrativa não está encerrada: como escreve Barnes, “somente o

espectador poderia resolver a questão em aberto que uma imagem do Juízo final representa” 799. A questão

não respondida é, uma vez mais, a destinação post-mortem de cada um dos espectadores da cena.

O tema do Juízo final, ademais, ganha maior proeminência em relação às figuras

representadas, ao contrário do que ocorre em outros tipos de imagem. Uma primeira razão poderia ser o

fato de que há um grande número de figuras, o que em alguns casos impossibilitaria a individualização de

personagens secundárias, ainda que possam ser claramente identificadas como santos. Sem dúvida, as

figuras principais são perfeitamente discerníveis, especialmente o Cristo juiz, mas também alguma outra

personagem santa que possa despertar um particular sentimento devoto no fiel, como a Virgem Maria,

São João Batista ou mesmo o arcanjo Miguel ou outros santos que, como apenas visto, poderiam exercer

uma maior atração sobre os fiéis que observassem a cena. A devoção a essas figuras, no entanto, estaria

relacionada necessariamente ao tema principal, que é o julgamento final e o destino post-mortem; a

devoção do fiel seria dirigida especialmente a preces visando à intercessão desses santos para que

pudessem evitar sua condenação futura – e é por isso que é particularmente comum na Península Itálica a

cena da Deesis, em que a Virgem Maria e São João Batista (ou São João Evangelista, como ocorre em

alguns exemplos, conforme visto no segundo capítulo) atuariam explicitamente como intercessores da

humanidade diante do Cristo juiz. Seria ainda mais natural, portanto, esperar do patrinus o auxílio que

seria necessário no momento do julgamento final, especialmente se ele estivesse representado na cena que

se apresentaria diante dos olhos do fiel. A iconografia e a composição de uma pintura com o tema do Juízo

final, com seus elementos particularizados e identificáveis pelos fiéis, e com os possíveis desmembramentos

compositivos, estão intimamente relacionadas, desse modo, às funções específicas esperadas das imagens

com esse tema, discutidas ao longo de todo o presente capítulo.

798
Apud BERNARDI, C. “Il teatro delle immagini. Messe in scena del sacro nel culto medievale”. In:
BURRESI, M. e CALECA, A. (org.). Cimabue a Pisa. La pittura toscana del Duecento da Giunta a Giotto. Pisa:
Pacini, 2005, p. 52.
799
Op. cit., p. 07.

CCXLVII

Percebe-se, assim como as representações de temas religiosos diversos – analisou-

se a figuração do Juízo final, mas a discussão poderia ser ampliada para qualquer tema – são

capazes de dizer muito a respeito da religiosidade e das expectativas face à morte de uma

determinada sociedade. Como escreve Peter Burke,

Imagens têm sido utilizadas com freqüência como um meio de doutrinação, como
objetos de cultos, como estímulo à meditação e como armas em controvérsias.
Portanto, elas também são um meio através do qual historiadores podem recuperar
experiências religiosas passadas, contanto que eles estejam aptos a interpretar a
iconografia.800

Assim como as obras medievais, diversos outros tipos de imagem podem cumprir

função semelhante: informar não apenas sobre os temas representados nessas obras, as

condições sob as quais determinados tipos de imagem foram produzidos, mas também sobre

as sociedades que criaram essas mesmas imagens801. Compreende-se, portanto, a importância

das imagens para uma formação histórica mais completa e abrangente. Independente do

período de que se esteja tratando, é fundamental que o historiador perceba que “a cultura

histórica não se concebe sem imagem”802.

800
Op. cit., p. 58.
801
Como escreve novamente Peter Burke, “imagens de haréns de autoria de europeus do século XIX (aquelas
pintadas por Ingres, por exemplo) nos dizem pouco ou nada sobre o mundo doméstico do Islã, mas revelam
muito a respeito do mundo de fantasia dos europeus que criaram essas imagens, adquiriram-nas ou as puderam
observar em exposições ou em livros”. Idem, p. 38.
802
RAYNAUD, C. Le commentaire de document figuré en histoire médiévale. Paris: Armand Colin Masson,
1997, p. 07.

CCXLVIII
CONCLUSÃO

C
om a finalização deste trabalho, espera-se ter conseguido apresentar um panorama

não somente da iconografia de pinturas com o tema do Juízo final na região da

Toscana, desde o último quartel do século XIII até meados do século XV, como

mostrar as modificações que ocorreram tanto na iconografia como nos esquemas

compositivos dessas pinturas – mosaicos, retábulos e, especialmente, afrescos. Espera-se também que os

desenvolvimentos das hipóteses apresentadas ao longo do texto tenham sido suficientes para esclarecer o leitor

sobre os motivos que teriam levado a essas mudanças no segundo quartel do Trecento.

Viu-se que esta pesquisa partiu da premissa do historiador americano Millard Meiss que, em seu mais importante trabalho, associava as
mudanças nas artes florentina e sienense da segunda metade do século XIV ao grande surto de Peste Negra de 1348. Para o autor, como
visto, as proporções catastróficas do evento justificariam o desenvolvimento de novos padrões artísticos, em função de modificações
profundas nas sociedades e culturas de ambas as cidades por ele estudadas, conseqüentes da epidemia.
Parecendo uma premissa viável, a presente pesquisa adotou inicialmente a hipótese de que, se a Peste Negra foi de fato um grande
divisor de águas para a história da Europa medieval, alterando de maneira profunda e definitiva os vários setores dessas sociedades, o
surto também poderia ter sido um fator preponderante para as mudanças nos modos de figuração do Juízo final nas pinturas toscanas
com o tema. Afinal, se a peste fora eminentemente interpretada em chave escatológica, considerada um castigo divino e um prenúncio
do fim dos tempos que se aproximava, seria viável esperar que a representação do tema escatológico por excelência – o Juízo final –
sofresse influências dessas mesmas expectativas escatológicas.

Entretanto, as análises feitas ao longo do doutoramento mostraram que essas modificações – que sem

dúvida ocorreram – teriam necessariamente de ser deslocadas para um período anterior ao surto de peste. Com

efeito, as pinturas em que são percebidas pela primeira vez inovações iconográficas e compositivas – os ciclos da

Capela da Madalena no Palazzo del Bargello, em Florença (slides 68 a 70), e do Trionfo della Morte, no

Camposanto de Pisa (71 a 79) – foram executadas ainda na década de 1330, não se podendo nem mesmo assumir

a revisão da hipótese proposta pelo próprio Meiss anos mais tarde, quando passou a relacionar as mudanças no

ciclo pisano ao primeiro surto de peste que assolou a região toscana em 1340.

Se foi verificada a possibilidade de aplicação das premissas da tese de Meiss a outra catástrofe – a

grande enchente do rio Arno que, em 1335, inundou as cidades de Florença e Pisa –, percebeu-se que outro fator

parece ter sido preponderante nos novos desenvolvimentos iconográficos das pinturas estudadas aqui: a redação

da Commedia de Dante Alighieri nas primeiras décadas do século XIV. A partir desta nova hipótese –

considerada desde o início dos estudos, mas que adquiriu uma dimensão e uma importância que não eram

esperadas –, discutiu-se a provável amizade entre Dante e Giotto, e a possibilidade de que ela tenha sido

fundamental tanto para a consolidação das idéias que Dante expressaria em seu mais famoso poema, como para

que, na década de 1330, o pintor florentino reinterpretasse o tema do Juízo final na Capela da Madalena, no

Palazzo del Bargello.

Decerto, a Commedia – embora um “evento cultural em grau de modificar profundamente o

CCXLIX
imaginário coletivo”, conforme a definição de Battaglia Ricci803 – não é um fenômeno isolado, e se vários dos

elementos que constituem o texto poderiam explicar as novidades iconográficas e compositivas nas pinturas do

Juízo final na Toscana do Trecento, ela se insere em um contexto muito mais amplo que não pôde ser ignorado.

Nesse conjunto de fatores, foi preciso levar em consideração a formação religiosa de Dante, que passou por um

período de estudos tanto no Convento franciscano de Santa Croce como no Convento dominicano de Santa

Maria Novella, ambos em Florença. A menção às ordens mendicantes não é em vão. Ao longo da pesquisa,

verificou-se a importância de ambas para o desenvolvimento de pinturas sobre o Juízo final: de fato, grande parte

das igrejas em que os afrescos com o tema foram executados se liga a uma das duas ordens; a mesma relação

pôde ser estabelecida em diversos dos painéis analisados. Particularmente com uma das obras centrais para esta

pesquisa – o ciclo do Trionfo della Morte –, a relação parece ser ainda mais estreita, uma vez que, atualmente, é

quase um consenso entre os historiadores de que sua execução se deveu a uma comissão dominicana, provável

responsável também pela elaboração iconográfica do ciclo. E foi possível verificar, nesses afrescos pisanos, o

aporte da Commedia especialmente nas inscrições que originalmente acompanhavam as pinturas, assim como em

alguns elementos iconográficos particulares, como, por exemplo, a inédita inserção, até aquele momento, de

Maomé no Inferno.

Se for aceita a influência dos dominicanos em Pisa, é plausível também que o aporte mendicante

sobre imagens anteriores com o tema já ocorresse, ainda que de forma indireta. Viu-se que o mosaico florentino

no Batistério de San Giovanni apresenta franciscanos e dominicanos – e particularmente estes últimos – com

grande destaque no grupo de eleitos. É admissível, portanto, que a ordem possa ter tido alguma participação na

elaboração do mosaico, que, anos mais tarde, como discutido, seria lembrado por Giotto no desenvolvimento de

seu Juízo final na Capela Scrovegni, assim como influenciaria de modo decisivo Dante no momento da

concepção de seu Inferno.

Viu-se também como, a partir da Commedia, pode ter sido concedida uma proeminência cada vez

maior às representações de Paraíso e Inferno nos grandes afrescos com a representação do Juízo final.

Entretanto, esse maior destaque pôde ser explicado igualmente pela ênfase nas funções específicas das imagens

com o tema, que podem se relacionar, por sua vez, ao trabalho de conversão das ordens mendicantes por meio

das laudas e das pregações em vulgar. Estas pregações, realizadas em locais públicos e dirigidas eminentemente

para um público leigo, não raro eram centradas em descrições minuciosas das punições infernais. As laudas,

cantadas fundamentalmente por confrarias leigas ligadas aos mendicantes, também buscavam a mesma ênfase.

803
“Il ‘Trionfo della Morte’ del Camposanto pisano e i letterati”. In: Storia ed arte nella piazza del Duomo.

CCL
As relações aqui podem ter sido recíprocas: do mesmo modo como as pregações e as laudas passaram a

influenciar a concepção das imagens, também estas tiveram um aporte sobre os mendicantes que poderiam

redigir as laudas – vide Jacopone da Todi – e que pregavam ao público leigo; viu-se o caso específico de

Bernardino da Siena que, com freqüência, fazia uso de imagens bem conhecidas de seus espectadores para

enfatizar alguma idéia.

O desenvolvimento da pesquisa, assim sendo, acabou mostrando uma série de inter-relações entre as

ordens mendicantes e as mudanças nos modos de elaboração de pinturas com o tema do Juízo final no século

XIV; a tese mostrou, particularmente, os elos entre dominicanos e Dante, cuja influência seria estendida até

Giotto – tanto no afresco do Juízo final da Capela Scrovegni como no ciclo do Palazzo del Bargello – e, em

seguida, até Buffalmacco e, a partir daí, para os outros artistas que empreenderiam a tarefa de execução de obras

com o tema. Essas inter-relações são provavelmente os elementos que conferem, à pesquisa que ora se conclui,

seu caráter inédito. Apesar da crescente importância das ordens mendicantes ser continuamente estudada por

pesquisadores das mais diversas áreas; apesar da consolidação cada vez maior da hipótese de uma comissão

dominicana no ciclo do Trionfo della Morte, em Pisa; apesar dos estudos que denotam a ascendência dessas

ordens mendicantes sobre a formação religiosa de Dante; apesar do quase consenso sobre a importância do

mosaico do Batistério de San Giovanni, em Florença, para a posterior redação da Commedia dantesca; apesar

dos estudos que indicam o aporte de Dante e de sua Commedia para a iconografia do Inferno, principalmente, a

partir do século XIV; apesar da hipótese de uma amizade entre Dante e Giotto ser cada vez mais aceita entre os

pesquisadores; e apesar da unanimidade em torno da importância de Giotto para os desenvolvimentos artísticos a

ele posteriores, nenhuma pesquisa, até o presente momento, buscara, a partir de todos esses estudos, consolidar

essa rede de influências mútuas que, sem dúvida, levou, no Trecento, às significativas mudanças nos modos de

representação do Juízo final na pintura toscana do século XIV. Esta pesquisa espera poder preencher essa lacuna

na imensa gama de estudos sobre a arte toscana dos séculos XIII, XIV e XV, período fundamental para a arte

italiana como um todo, uma vez que seus reflexos nas produções artísticas posteriores foram duradouros.

Conferenze 1992-1993. Quaderno n.º 4. Pisa: Vigo Cursi, 1995, p. 202.

CCLI
ANEXO I

CITAÇÕES BÍBLICAS REFERENTES AO RETORNO DO SENHOR, AO JULGAMENTO DOS

HOMENS E AO ALÉM

19, 25-27: Pois eu sei que meu redentor está vivo, que no último dia eu me levantarei da terra, que de

novo eu serei envolvido por minha pele e que em minha carne, eu verei meu Deus. Aquele que eu vir será para

mim, aquele que meus olhos contemplarem não será um estranho. Dentro de mim consomem-se os meus rins804.

31, 6: Que Deus me pese numa balança exata e reconhecerá minha integridade.

40, 4-12: Quem jamais o despojou de sua couraça? Quem penetrou na dupla fila dos seus dentes?

Quem abriu as portas da sua boca? Os seus dentes infundem terror! (…) Da sua boca saem chamas como

centelhas ardentes, as suas narinas jorram fumo, como uma marmita que ferve ao fogo. O seu hálito queima

como brasa e a sua boca lança chamas.

Salmos

1, 5-6: Por isso os ímpios não ficarão de pé no Julgamento, nem os pecadores no conselho dos justos.

Sim, Iahweh conhece o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios perece.

7, 7-10: Levanta-te com tua ira, Iahweh! Ergue-te contra o excesso dos meus adversários! Vigia a

meu lado; tu que ordenas o julgamento! Que a assembléia dos povos te cerque; assenta sobre ela, no mais alto.

(Iahweh é o juiz dos povos). Julga-me, Iahweh, conforme a minha justiça, e segundo a minha integridade. Põe

fim à maldade dos ímpios e confirma o justo, pois tu sondas os corações e os rins, Deus justo!

9, 8-9, 17 e 20: Eis que Iahweh sentou-se para sempre, para o julgamento firmou o seu trono. Ele

julga o mundo com justiça, governa os povos com retidão (…). Iahweh se manifestou fazendo justiça, apanhou o

ímpio em sua armadilha (…). Levanta-te, Iahweh, não triunfe um mortal! Que os povos sejam julgados em tua

804
Com relação ao trecho apenas citado, a edição da Bíblia de Jerusalém utilizada por esta pesquisa comenta que
“a Vulgata por muito tempo influenciou a exegese católica para uma tradução que um melhor conhecimento da
evolução das idéias teológicas de Israel tornou improvável”, propondo uma nova tradução para a passagem: “eu
sei que meu Defensor está vivo e que no fim se levantará sobre o pó: quando tiverem arrancado esta minha pele,
fora da minha carne verei a Deus. Aquele que eu vir será para mim, aquele que meus olhos contemplarem não
será um estranho. Dentro de mim consomem-se os meus rins”. Optou-se pela tradução da Vulgata por ser essa a
versão conhecida e difundida no período em discussão. O texto original é o seguinte: “scio enim quod redemptor
meus vivat et in novissimo de terra surrecturus sim et rursum circumdabor pelle mea et in carne mea videbo
Deum quem visurus sum ego ipse et oculi mei conspecturi sunt et non alius reposita est haec spes mea in sinu
meo”. The Bible: Latin Vulgate. Disponível em: <http://www.fourmilab.ch/etexts/www/Vulgate/>. Acesso em
08.04.2008.

CCLII
frente!.

10 (11), 5-7: Iahweh examina o justo e o ímpio, ele odeia quem ama a violência: fará chover, sobre os

ímpios, brasas, fogo e enxofre e vento de tempestade, é a parte que lhes cabe. Sim, Iahweh é justo, ele ama a

justiça, e os corações retos contemplarão sua face.

15 (16), 8-11: Ponho Iahweh à minha frente sem cessar, com ele à minha direita eu não vacilarei. Por

isso meu coração se alegra, minhas entranhas exultam e minha carne repousa em segurança; pois não

abandonarás minha vida no Xeol, nem deixarás que teu fiel veja a cova! Ensinar-me-ás o caminho da vida, cheio

de alegrias em tua presença e delícias à tua direita, perpetuamente.

17 (18), 25-28: Iahweh me retribui segundo minha justiça, minha pureza, que ele vê com seus olhos.

Com o fiel tu és fiel, com o íntegro és íntegro, puro com quem é puro, mas com o perverso te mostras astuto;

pois tu salvas o povo pobre e rebaixas os olhos altivos.

20 (21), 9-10: Tua mão encontrará teus inimigos todos, tua direita encontrará os que te odeiam; deles

fará uma fornalha no dia da tua face [i.e., no dia do Juízo final]; Iahweh os engolirá em sua ira, o fogo os

devorará.

31 (32), 10: São muitos os tormentos do ímpio, mas o amor envolve quem confia em Iahweh.

49 (50), 2-6: Fala Iahweh, o Deus dos deuses, convocando a terra, do nascente ao poente. De Sião,

beleza perfeita, Deus resplandece, o nosso Deus vem, e não se calará. À sua frente um fogo devora, e ao seu

redor tempestade violenta; do alto ele convoca o céu e a terra, para julgar o seu povo. “Reuni junto a mim os

meus fiéis, que selaram minha aliança com sacrifício!”. O céu anuncia sua justiça, pois o próprio Deus julgará.

74 (75), 3-4: No momento que tiver decidido, eu próprio julgarei com retidão; trema a terra e seus

habitantes todos; eu mesmo firmei suas colunas.

75 (76), 8-10: Tu és terrível! Quem subsiste à tua frente, quando ficas irado? Do céu fazes ouvir a

sentença: a terra treme e permanece calada quando Deus se levanta para julgar e salvar todos os pobres da terra.

88 (89), 14-15: Tens braço poderoso, tua mão é forte, e tua direita elevada; Justiça e Direito são a

base do teu trono, Amor e Verdade precedem a tua face.

95 (96), 12-13: Que o campo exulte, e o que nele existe! As árvores da selva gritem de alegria, diante

de Iahweh, pois ele vem, pois ele vem para julgar a terra: ele julgará o mundo com justiça, e as nações com sua

verdade.

96 (97), 1-6: Iahweh é rei! Que a terra exulte, as ilhas numerosas fiquem alegres! Envolvem-no

Trevas e Nuvens, Justiça e Direito sustentam o seu trono. À frente dele avança o fogo, devorando seus

CCLIII
adversários ao redor; seus relâmpagos iluminam o mundo e, vendo-os, a terra estremece. As montanhas se

derretem como cera frente ao Senhor da terra inteira; o céu proclama sua justiça e os povos todos vêem sua

glória.

97 (98), 8-9: Batam palmas os rios todos e as montanhas gritem de alegria diante de Iahweh, pois ele

vem para julgar a terra: ele julgará o mundo com justiça e os povos com retidão!

141 (140), 6-7: Eles estão entregues ao poder da Rocha, seu juiz, eles que tinham prazer quando me

ouviam dizer: “como pedra do moinho rebentada por terra, estão espalhados nossos ossos à boca do Inferno”805.

Eclesiástico

7, 36: Em tudo o que fazes, lembra-te de teu fim e jamais pecarás.

Isaías

6, 1-3: No ano em que faleceu o rei Ozias, vi o Senhor sentado sobre um trono alto e elevado. A

cauda da sua veste enchia o santuário. Acima dele, em pé, estavam serafins, cada um com seis asas: com duas

cobriam a face, com duas cobriam os pés e com duas voavam.

24, 1, 3 e 21-23: Eis que Iahweh vai assolar a terra e devastá-la, porá em confusão a sua superfície e

dispersará os seus habitantes (…). Certamente a terra será devastada, certamente ela será despojada, pois foi

Iahweh quem pronunciou esta sentença (…). E acontecerá naquele dia: que Iahweh visitará o exército do alto, no

alto, e os reis da terra, na terra. Eles serão reunidos, como bandos de prisioneiros destinados à cova; serão

encerrados no cárcere; depois de longo tempo, serão chamados a contas. A lua ficará confusa, o sol se cobrirá de

vergonha, porque Iahweh dos Exércitos reina no monte Sião e em Jerusalém, e a Glória resplandece diante dos

anciãos.

26, 9-11 e 19-21: Minha alma suspira por ti de noite, sim, no meu íntimo, meu espírito te busca, pois

quando teus julgamentos se manifestam na terra, os habitantes do mundo aprendem a justiça. De fato, se o ímpio

recebe graça, sem que aprenda a justiça, mesmo na terra da retidão, ele pratica o mal, sem ver a majestade de

Iahweh. Iahweh, tua mão está levantada, mas eles não a vêem! Eles verão o teu zelo pelo teu povo e se

confundirão; sim, o fogo preparado para teus adversários os consumirá (…). Os teus mortos tornarão a viver, os

805
Na edição da Bíblia de Jerusalém usada por esta pesquisa, o trecho final se refere a “boca do Xeol”, que é
precisamente o Inferno judaico. Na Vulgata, por outro lado, se lê: “sublati sunt iuxta petram iudices eorum et
audient verba mea quoniam decora sunt sicut agricola cum scindit terram sic dissipata sunt ossa nostra in ore
inferi”. Ou seja, a referência ao Inferno é explícita. Optou-se, desse modo, pelo texto da Vulgata, uma vez mais

CCLIV
teus cadáveres ressurgirão. Despertai e cantai, vós que habitais o pó, porque teu orvalho será orvalho luminoso, e

a terra dará à luz sombras. Eia, povo meu, entra nos teus aposentos e fecha tuas portas sobre ti; esconde-te por

um pouco de tempo, até que a cólera tenha passado. Porque Iahweh está para sair do seu domicílio, a fim de

punir o crime dos habitantes da terra; e a terra descobrirá seus crimes de sangue, ela não continuará a esconder

seus cadáveres.

27, 1 e 12-13: Naquele dia, punirá Iahweh, com a sua espada dura, grande e forte, Leviatã, serpente

escorregadia, leviatã, serpente tortuosa, matará o monstro que habita o mar (…). Sucederá que naquele dia

Iahweh fará uma debulha, desde a corrente do Rio até o canal do Egito, e vós, israelitas, sereis respigados um por

um. Sucederá que naquele dia se tocará uma grande trombeta, e os que andam perdidos na terra da Assíria, bem

como os que estão desterrados na terra do Egito, virão e adorarão Iahweh no monte santo, Em Jerusalém.

Ezequiel

34, 17 e 20-22: Quanto a vós, minhas ovelhas, assim diz o Senhor Iahweh: Eis que julgarei entre

ovelha e ovelha, entre carneiros e bodes (…). Pois bem, assim diz o Senhor Iahweh: Eis que julgarei entre a

ovelha gorda e a ovelha magra. Visto que empurrastes com os ombros e com os lados, escorneastes as ovelhas

abatidas, a ponto de afugentá-las para longe, eu mesmo trarei salvação ao meu rebanho, de modo que não mais

sejam saqueadas. Sim, eu mesmo julgarei entre uma ovelha e outra.

37, 1 e 4-14: A mão de Iahweh veio sobre mim e me conduziu para fora pelo espírito de Iahweh e me

pousou no meio de um vale que estava cheio de ossos (…). Então me disse: “Profetiza a respeito destes ossos e

dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra de Iahweh. Assim fala o Senhor Iahweh a estes ossos: Eis que vou fazer

com que sejais penetrados pelo espírito e vivereis. Cobrir-vos-ei de tendões, farei com que sejais cobertos de

carne e vos revestirei de pele. Porei em vós o meu espírito e vivereis. Então sabereis que sou Iahweh”. Profetizei,

de acordo com as ordens que recebi. Enquanto eu profetizava, houve um ruído e depois um tremor e os ossos se

aproximaram uns dos outros. Vi então que estavam cobertos de tendões, estavam cobertos de carne e revestidos

de pele por cima, mas não havia espírito neles. Então me disse: “Profetiza ao espírito, profetiza, filho do homem,

e dize-lhe: Assim diz o Senhor Iahweh: Espírito, vem dos quatro ventos e sopra sobre estes mortos para que

vivam”. Profetizei de acordo com o que ele me ordenou, o espírito penetrou-os e eles viveram, firmando-se sobre

os seus pés como um imenso exército.

Então ele me disse: Filho do homem, estes ossos representam toda a casa de Israel, que está a dizer:

por ser a versão conhecida e difundida no período em discussão nesta tese. The Bible: Latin Vulgate.

CCLV
“Os nossos ossos estão secos, a nossa esperança está desfeita. Para nós está tudo acabado”. Pois bem, profetiza e

dize-lhe: Assim diz o Senhor Iahweh: Eis que abrirei os vossos túmulos e vos farei subir dos vossos túmulos, ó

meu povo, e vos reconduzirei para a terra de Israel. Então sabereis que sou Iahweh, quando abrir vossos túmulos

e vos fizer subir de dentro deles, ó meu povo. Porei o meu espírito dentro de vós e vivereis: eu vos reporei em

vossa terra e sabereis que eu, Iahweh, falei e hei de fazer, oráculo de Iahweh.

Daniel

5, 27: Teqel – tu foste pesado na balança e foste julgado deficiente806.

7, 9-14: Eu continuava contemplando, quando foram preparados alguns tronos e um Ancião sentou-

se. Suas vestes eram brancas como a neve; e os cabelos de sua cabeça, alvos como a lã. Seu trono eram chamas

de fogo com rodas de fogo ardente. Um rio de fogo corria, irrompendo diante dele. Mil milhares o serviam, e

miríades e miríades o assistiam. O tribunal tomou assento e os livros foram abertos. Eu continuava olhando,

então, por causa do ruído das palavras arrogantes que proferia aquele chifre, quando vi que a fera fora morta, e

seu cadáver destruído e entregue ao abrasamento do fogo. Das outras feras também foi retirado o poder, mas elas

receberam um prolongamento de vida, até uma data e tempo determinados. Eu continuava contemplando, nas

minhas visões noturnas, quando notei, vindo sobre as nuvens, um como Filho de Homem. Ele adiantou-se e até

ao Ancião e foi introduzido à sua presença. A ele foi outorgado o poder, a honra e o reino, e todos os povos,

nações e línguas o serviram. Seu império e império eterno que jamais passará, e seu reino jamais será destruído.

12,1-3: Nesse tempo levantar-se-á Miguel, o grande Príncipe, que se conserva junto dos filhos do teu

povo. Será um tempo de tal angústia qual jamais terá havido até aquele tempo, desde que as nações existem. Mas

nesse tempo o teu povo escapará, isto é, todos os que se encontrarem inscritos no Livro.

E muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o

opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão, como o resplendor do firmamento; e os

que ensinam a muitos a justiça serão como as estrelas, por toda a eternidade.

Joel

2, 1-2 e 10: Tocai a trombeta em Sião, daí alarme em minha montanha santa! Tremam todos os

habitantes da terra, porque está chegando o dia de Iahweh! Sim, está próximo um dia de trevas e de escuridão,

um dia de nuvens e de obscuridade! (…) Diante dele a terra se comove, os céus tremem, o sol e a lua escurecem

Disponível em: Loc. cit.

CCLVI
e as estrelas perdem o seu brilho!

3, 3-4: “Porei sinais nos céus e na terra, sangue, fogo e colunas de fumaça”. O sol se transformará em

trevas, a lua em sangue, antes que chegue o dia de Iahweh, grande e terrível!

4, 12: Que partam e subam, as nações, ao vale de Josafá! Sim, ali eu me sentarei para julgar todas as

nações dos arredores.

Amós

8, 9 e 13-14: Acontecerá naquele dia, – oráculo do Senhor Iahweh – que eu farei o sol declinar em

pleno meio-dia e escurecerei a terra em um dia de luz (…). Naquele dia definharão pela sede as belas virgens e

os jovens. Aqueles que juram pelo Pecado de Samaria e aqueles que dizem: “Viva o teu Deuz, Dã!” e “Viva o

caminho de Bersabéia!” cairão e não mais se levantarão.

9, 1-2 e 9-10: Vi o Senhor, que estava de pé junto ao altar e ele disse: “Bate no capitel para que

tremam os umbrais! Quebra-os na cabeça deles todos: o que sobrar deles, eu os matarei à espada; nenhum deles

poderá fugir, nenhum deles poderá escapar! Se penetrarem no Xeol, lá minha mão os prenderá; se subirem aos

céus, de lá os farei descer (…). Porque eis que eu mesmo ordenarei e sacudirei a casa de Israel entre todas as

nações, como se sacode com a peneira, sem que caia um grão por terra. Pela espada morrerão todos os pecadores

do meu povo, aqueles que diziam: “A calamidade não avançará, não nos atingirá!”

Evangelho segundo Mateus

13, 24-30 e 36-43: Propôs-lhes outra parábola: “O Reino dos Céus é semelhante ao homem que

semeou boa semente no seu campo. Enquanto todos dormiam, veio seu inimigo e semeou o joio no meio do trigo

e foi-se embora. Quando o trigo cresceu e começou a granar, apareceu também o joio. Os servos do proprietário

foram procurá-lo e lhe disseram: ‘Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Como então está cheio de

joio?’. Ao que este respondeu: ‘Um inimigo é que fez isso’. Os servos perguntaram-lhe: ‘Queres, então, que

vamos arrancá-lo?’. Ele respondeu: ‘Não, para não acontecer que, ao arrancar o joio, com ele arranqueis também

o trigo. Deixai-os crescer juntos até a colheita. No tempo da colheita, direi aos ceifeiros: Arrancai primeiro o joio

e atai-o em feixes para ser queimado; quanto ao trigo, recolhei-o no meu celeiro’” (…).

“Explica-nos a parábola do joio no campo”. Ele, respondeu: “O que semeia a boa semente é o Filho

do Homem. O campo é o mundo. A boa semente são as pessoas do reino. O joio são as pessoas do Maligno. O

806
“(…) e foste julgado muito leve”, segundo outras versões.

CCLVII
inimigo que o semeou é o Diabo. A colheita é o fim do mundo. Os ceifadores são os anjos. Da mesma forma que

se junta o joio e se queima no fogo, assim será no fim do mundo: o Filho do Homem enviará seus anjos e eles

apanharão de seu Reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade e os lançarão na fornalha ardente. Ali

haverá choro e ranger de dentes. Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai. O que tem ouvidos,

ouça!’”.

13, 47-50: O Reino dos Céus é ainda semelhante à rede lançada ao mar, que apanha de tudo. Quando

está cheia, puxam-na para a praia e, sentados, juntam o que é bom em vasilhas, mas o que não presta, deitam

fora. Assim será no fim do mundo: virão os anjos e separarão os maus dos justos e os lançarão na fornalha

ardente. Ali haverá choro e ranger de dentes.

16, 27: Pois o Filho do Homem há de vir na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a

cada um de acordo com o seu comportamento.

19, 28-29: Em verdade eu vos digo, a vós que me seguistes: quando as coisas forem renovadas, e o

Filho do Homem se assentar no seu trono de glória, vos assentareis, vós também, em doze tronos para julgar as

doze tribos de Israel. E quem quer que tenha deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos, ou terras por causa

do meu nome, receberá muito mais; e terá em herança a vida eterna.

22, 30-32: Com efeito, na ressurreição, nem eles se casam e nem elas se dão em casamento, mas são

todos como os anjos no céu. Quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que Deus vos declarou: Eu sou o

Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó? Ora, ele não é Deus de mortos, mas sim de vivos.

24, 27-36: Pois assim como o relâmpago parte do oriente e brilha até o poente, assim será a vinda do

Filho do Homem. Onde estiver o cadáver, aí se ajuntarão os abutres.

Logo após a tribulação daqueles dias, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas

cairão do céu e os poderes do céu serão abalados. Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem e todas as

tribos da terra baterão no peito e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu com poder e grande

glória. Ele enviará os seus anjos que, ao som da grande trombeta, reunirão os seus eleitos dos quatro ventos, de

uma extremidade até a outra extremidade do céu.

Aprendei da figueira esta parábola: quando o seu ramo se torna tenro e as suas folhas começam a

brotar, sabeis que o verão está próximo. Da mesma forma também vós, quando virdes todas essas coisas, sabei

que ele está próximo, às portas. Em verdade vos digo que esta geração não passará sem que tudo isso aconteça.

Passarão o céu e a terra. Minhas palavras, porém, não passarão. Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os

anjos dos céus, nem o Filho, mas só o Pai.

CCLVIII
25, 1-13: Então o Reino dos Céus será semelhante a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas,

saíram ao encontro do noivo. Cinco, eram insensatas e cinco, prudentes. As insensatas, ao pegarem as lâmpadas,

não levaram azeite consigo, enquanto as prudentes levaram vasos de azeite com suas lâmpadas. Atrasando o

noivo, todas elas acabaram cochilando e dormindo. À meia-noite, ouviu-se um grito: “O noivo vem aí! Saí ao

seu encontro!”. Todas as virgens levantaram-se, então, e trataram de aprontar as lâmpadas. As insensatas

disseram às prudentes: “Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas apagam-se”. As prudentes

responderam: “De modo algum, o azeite poderia não bastar para nós e para vós. Ide antes aos que o vendem e

comprai para vós”. Enquanto foram comprar o azeite, o noivo chegou e as que estavam prontas entraram com ele

para o banquete de núpcias. E fechou-se a porta. Finalmente, chegaram as outras virgens, dizendo: “Senhor,

Senhor, abre-nos!”. Mas ele respondeu: “Em verdade vos digo: não vos conheço!”. Vigiai, portanto, porque não

sabeis nem o dia nem a hora.

25, 31-34, 41 e 46: Quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os anjos com ele, então se

assentará no trono da sua glória. E serão reunidas em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns

dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos bodes, e porá as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda.

Então dirá o rei aos que estiverem à sua direita: “Vinde, benditos do meu Pai, recebei por herança o Reino

preparado para vós desde a fundação do mundo (…)”. Em seguida, dirá aos que estiverem à sua esquerda:

“Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos (…)”. E irão estes

para o castigo eterno enquanto os justos irão para a vida eterna.

Evangelho segundo Marcos

12, 25-27 (cf. Mt 22, 30-32): Pois quando ressuscitarem dos mortos, nem eles se casam, nem elas se

dão em casamento, mas serão como anjos nos céus. Quanto aos mortos que hão de ressurgir, não lestes no livro

de Moisés, no trecho sobre a sarça, como Deus lhe disse: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de

Jacó? Ora, ele não é Deus de mortos, mas sim de vivos.

13, 24-27 (cf. Mt 24, 29-31): Naqueles dias, porém, depois daquela tribulação, o sol escurecerá, a lua

não dará sua claridade, as estrelas estarão caindo do céu, e os poderes que estão nos céus serão abalados. E verão

o Filho do Homem vindo entre nuvens com grande poder e glória. Então ele enviará os anjos e reunirá seus

eleitos, dos quatro ventos, da extremidade da terra à extremidade do céu.

13, 33-37: Atenção, e vigiai, pois não sabeis quando será o momento. Será como um homem que

partiu de viagem: deixou sua casa, deu autoridade a seus servos, distribuiu a cada um sua responsabilidade e ao

CCLIX
porteiro ordenou que vigiasse. Vigiai, portanto, porque não sabeis quando o senhor da casa voltará: à tarde, à

meia-noite, ao canto do galo, ou de manhã, para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo. E o que vos

digo, digo a todos: vigiai!

Evangelho segundo Lucas

16, 19-26: Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e cada dia se banqueteava com

requinte. Um pobre, chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto de úlceras. Desejava saciar-se do que caía da

mesa do rico… E até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu que o pobre morreu e foi levado pelos

anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado.

Na mansão dos mortos, em meio a tormentos, levantou os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro em

seu seio. Então exclamou: “Pai Abraão, tem piedade de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para

me refrescar a língua, pois estou atormentado nesta chama”. Abraão respondeu: “Filho, lembra-te de que

recebeste teus bens durante tua vida, e Lázaro por sua vez os males; agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu

és atormentado. E além do mais, entre nós e vós existe um grande abismo, a fim de que aqueles que quiserem

passar daqui para junto de vós não o possam, nem tampouco atravessem de lá até nós”.

21, 25-33 (cf. Mt 24, 27-36): Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; e na terra, as nações estarão

em angústia, inquietas pelo bramido do mar e das ondas; os homens desfalecerão de medo, na expectativa do quê

ameaçará o mundo habitado, pois os poderes dos céus serão abalados. E, então, verão o Filho do Homem vindo

numa nuvem com poder e grande glória. Quando começarem a acontecer essas coisas, erguei-vos e levantai a

cabeça, pois está próxima a vossa libertação.

Em seguida contou-lhes uma parábola: “Vede a figueira e as árvores todas. Quando brotam, olhando-

as, sabeis que o verão está próximo. Da mesma forma também vós, quando virdes essas coisas acontecerem,

sabei que o Reino de Deus está próximo. Em verdade vos digo que esta geração não passará sem que tudo

aconteça. O céu e a terra passarão; minhas palavras, porém, não passarão”.

Evangelho segundo João

5, 21-23, 25-26 e 28-29: Como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho dá a vida a

quem quer. Porque o Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo julgamento, a fim de que todos honrem o

Filho, como honram o Pai. Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou (…). Em verdade, em

verdade, vos digo: quem escuta a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não vem a

CCLX
julgamento, mas passou da morte à vida. Em verdade, em verdade, vos digo: vem a hora – e é agora – em que os

mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que ouvirem, viverão (…). Não vos admireis com isto: vem a hora

em que todos os que repousam nos sepulcros ouvirão a sua voz e sairão; os que tiverem feito o bem, para uma

ressurreição de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de julgamento.

Atos dos apóstolos

1, 10-11: Estando a olhar atentamente para o céu, enquanto ele se ia, dois homens vestidos de branco

encontraram-se junto deles e lhes disseram: “Homens da Galiléia, por que estais aí a olhar para o céu? Este

Jesus, que foi arrebatado dentre vós para o céu, assim virá, do mesmo modo como o vistes partir para o céu”.

2, 19-20: E farei aparecer prodígios em cima, no céu, e sinais embaixo, sobre a terra. O sol se mudará

em escuridão e a lua em sangue, antes que venha o dia do Senhor, o grande Dia.

10, 42: E ordenou-nos que proclamássemos ao Povo e déssemos testemunho de que ele é o juiz dos

vivos e dos mortos, como tal constituído por Deus.

17, 30-31: Por isso, não levando em conta os tempos da ignorância, Deus agora notifica aos homens

que todos e em toda parte se arrependam, porque ele fixou um dia no qual julgará o mundo com justiça por meio

do homem a quem designou, dano-lhe crédito diante de todos, ao ressuscitá-lo dentre os mortos.

Epístola aos Romanos

14, 9-10 e 12: Com efeito, Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e dos vivos. Por que

julgas teu irmão? E tu, por que o desprezas? Pois todos nós compareceremos ao tribunal de Deus (…). Assim,

cada um de nós prestará contas a Deus de si próprio.

Primeira aos Coríntios

15, 51-53: Eis que vos dou a conhecer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos

transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim, a trombeta tocará, e os

mortos ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Com efeito, é necessário que este ser corruptível

revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade.

Epístola aos Colossenses

3, 1-4: Se, pois, ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à

CCLXI
direita de Deus. Pensai nas coisas do alto, e não nas da terra, pois morrestes e a vossa vida está escondida com

Cristo em Deus: quando Cristo, que é vossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados

em glória.

Primeira aos Tessalonicenses

4, 13-17: Irmãos, não queremos que ignoreis o que se refere aos mortos, para não ficardes como os

outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em

Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia. Pois isto vos declaramos, segundo a palavra do Senhor: que os

vivos, os que ainda estivermos aqui para a vinda do Senhor, não passaremos à frente dos que morreram. Quando

o Senhor, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, descer do céu, então os mortos em Cristo

ressuscitarão primeiro; em seguida nós, os vivos que estivermos lá, seremos arrebatados com eles nas nuvens

para o encontro com o Senhor, nos ares. E assim estaremos para sempre com o Senhor.

5, 2 e 6: No tocante ao tempo e ao prazo, meus irmãos, é escusado escrever-vos, porque vós sabeis,

perfeitamente, que o Dia do Senhor virá como ladrão noturno (…). Portanto, não durmamos, a exemplo dos

outros; mas vigiemos e sejamos sóbrios.

5, 9-10: Portanto, não nos destinou Deus para a ira, mas sim para alcançarmos a salvação, por nosso

Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós, a fim de que, na vigília ou no sono, vivamos em união com ele.

Segunda aos Tessalonicenses

1, 6-10: Justo é que Deus pague com tribulação aos que vos oprimem, e que a vós, os oprimidos, vos

dê o repouso juntamente conosco, para quando se revelar o Senhor Jesus, vindo do céu, com os anjos do seu

poder, no meio de uma chama ardente, para vingar-se daqueles que não conhecem a Deus, e que não obedecem

ao Evangelho de nosso Senhor Jesus. O castigo deles será a ruína eterna, longe da face do Senhor e do esplendor

de sua majestade, quando ele vier, naquele Dia, para ser glorificado na pessoa dos seus santos, e para ser

admirado na pessoa de todos os que creram – e vós acreditastes em nosso testemunho!

Epístola aos Hebreus

9, 27-28: E como é fato que os homens devem morrer uma só vês, depois do que vem um julgamento,

do mesmo modo Cristo foi oferecido uma vez por todas para tirar os pecados da multidão. Ele aparecerá a

segunda vez, com exclusão do pecado, àqueles que o esperam para lhes dar a salvação.

CCLXII
Primeira epístola de São João

5, 16-17: Se alguém vê o seu irmão cometer um pecado que não conduz à morte, que ele ore, e Deus

dará a vida a este irmão, se, de fato, o pecado cometido não conduz à morte. Existe um pecado que conduz à

morte, mas não é a respeito deste que digo que ore. Toda iniqüidade é pecado, mas há um pecado que não

conduz à morte.

Apocalipse

4, 2-7: Fui imediatamente movido pelo Espírito: eis que havia um trono no céu, e no trono, Alguém

sentado… O que estava sentado tinha o aspecto de uma pedra de jaspe e cornalina, e um arco-íris envolvia o

trono com reflexos de esmeralda. Ao redor desse trono estavam dispostos vinte e quatro tronos, e neles

assentavam-se vinte e quatro Anciãos, vestidos de branco e com coroas de ouro na cabeça.

20, 1-4: Vi então um Anjo descer do céu, trazendo na mão a chave do Abismo e uma grande corrente.

Ele agarrou o Dragão, a antiga Serpente – que é o Diabo, Satanás – acorrentou-o por mil anos e o atirou dentro

do Abismo, fechando-o e lacrando-o com um selo para que não seduzisse mais as nações até que os mil anos

estivessem terminados. Depois disso, ele deverá ser solto por pouco tempo.

20, 11-15: Vi depois um grande trono branco e aquele que nele se assenta. O céu e a terra fugiram de

sua presença, sem deixar vestígios. Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono, e abriram-se

livros. Também foi aberto outro livro, o da vida. Os mortos foram então julgados conforme sua conduta, a partir

do que estava escrito nos livros.

O mar devolveu os mortos que nele jaziam, a Morte e o Hades entregaram os mortos que neles

estavam, e cada um foi julgado conforme sua conduta. A Morte e o Hades foram então lançados no lago de fogo.

Esta é a segunda morte: o lago de fogo. E quem não se achava inscrito no livro da vida foi também lançado no

lago de fogo.

21, 8: Quanto aos covardes, porém, e aos infiéis, aos corruptos, aos assassinos, aos impudicos, aos

magos, aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua porção se encontra no lago ardente de fogo e enxofre, que é a

segunda morte.

CCLXIII
ANEXO II

CRONOLOGIA DE PINTURAS COM O TEMA DO JUÍZO FINAL

DATA CIDADE LOCAL LOCALIZAÇÃO NO AUTOR TÉCNICA/ MATERIAL N.º SLIDE


EDIFÍCIO
ca. 1080 Sant’Angelo in Basílica Fachada interna - Afresco 06 a 12
1. Formis (Cápua)
Último Torcello Igreja de Santa Maria Fachada interna - Mosaico 13 a 19
2. quartel (Veneza) Assunta
s. XII
Fim s. Florença Batistério Teto Coppo di Marcovaldo e Mosaico 20 a 30
3. XIII seguidores
s. XIII Cleveland Museum of art - Anônimo de Lucca Painel 31 e 32
4. (Originalmente
em Lucca)
Fim s. Grosseto Museu diocesano - Escola de Guido da Siena Painel 33 a 37
5. XIII
Fim s. Assis Igreja de Santa Transepto direito - Afresco 38 e 39
6. XIII/ Chiara
início s.
XIV
Fim s. Berlim Bodemuseum (Antigo - Deodato Orlandi Painel Não localizado
7. XIII/ (Originalmente Kaiser Friedrich
início s. em Lucca) Museum)
XIV
1305-07 Pádua Capela Scrovegni Fachada interna Giotto Afresco 40 a 46
8.
1300- Munique Alte Pinakothek - Mestre do coro de Painel Não localizado
9. 1320 Sant’Agostino
1º Florença Galleria - Pacino di Bonaguida Painel (“Arbor vitae”) Não incluído
10. quartel dell’Accademia
s. XIV
s. XIV Siena Confraternita della Sacristia - Fragmentos de afresco Não localizado
11. Madonna
1ª Casole d’Elsa Collegiata Teto de capela funerária Jacopo di Mino del Pellicciaio Afresco 47 a 49
12. metade (?)
s. XIV
1ª Casole d’Elsa Collegiata Arco cruzeiro Jacopo di Mino del Pellicciaio Afresco 50 a 52
13. metade (?)
s. XIV
1ª Panamá Coleção privada - Lippo di Bienvieni Painel 53 e 54
14. metade
s.XIV
(?)
1ª Nova York Lehman Philip - - - Não localizado
15. metade Collection
s.XIV
1ª Nova York Historical Society - Mestre de San Martino alla Painel 55 a 58
16. metade Palma
s.XIV
1ª Nova York Metropolitan - Maestro dell’effigi Painel 59 a 62
17. metade Museum domenicani
s.XIV
ca. 1320 Angers Musée des - Seguidor de Segna Painel 63 e 64
18. Tapisseries
1336 Florença Igreja de Santa Croce Capela Bardi, túmulo de Maso di Banco Afresco 65 a 67
19. Bardi di Vernio
ca. Florença Museo del Bargello Capela da Madalena Giotto e seguidores Ciclo de afrescos 68 a 70
20. 1336-37
1336-40 Pisa Camposanto Originalmente na parede sul Buonamico Buffalmacco Ciclo de afrescos 71 a 79
21.
1345 Prato Ospedale della - Bonaccorso di Cino Fragmentos de afresco 80
22. Misericordia

CCLXIV
ca. 1345 Siena Pinacoteca Nazionale - Ambrogio Lorenzetti Painel (“Alegoria da 81 e 82
23. Redenção”)
ca. 1350 Florença Igreja de Santa Croce Originalmente na nave Andrea Orcagna Fragmentos de afrescos 83 a 85
24.
ca. 1345 Florença Galleria - Assistente de Bernardo Daddi Crucifixo pintado 86 a 89
25. dell’Accademia
2.ª Livorno Coleção Larderel - Niccolò di Tommaso Painel Não localizado
26. metade
s. XIV
ca. 1357 Florença Igreja de Santa Maria Capela Strozzi Nardo di Cione Ciclo de afrescos 90 a 97
27. Novella
1360-65 Bolonha Pinacoteca Nazionale - Mestre da Misericordia Painel 98 a 102
28. dell’Accademia
ca. 1360 Munique Alte Pinakothek - Gherardo Starnina Painel 103 a 105
29.
ca. 1370 Novoli (perto de Torre degli Agli - Antonio Veneziano Afresco Destruído
30. Florença)
ca. 1393 San Gimignano Collegiata Capela na fachada interna Taddeo di Bartolo Ciclo de afrescos 106 a 112
31.
Fim s. Florença Igreja de San Carlo - Niccolò di Piero Gerini Painel Não localizado
32. XIV (?)
ca. 1401 Siena Duomo - Taddeo di Bartolo Afresco Destruído
33.
Início s. Asciano Abbazia di Monte - Taddeo di Bartolo (?) Afresco Destruído
34. XV Oliveto Maggiore
Início s. Siena Pinacoteca Nazionale - Giovanni di Paolo Painel (“Cristo Penitente e 113 a 117
35. XV Cristo Triunfante”)
ca. 1420 Pistóia Duomo Capela no lado direito Giovanni dal Ponte Fragmentos de afresco 118 a 122
36.
1431 Florença Convento de San - Fra Angelico Painel 123 a 126
37. Marco (originalmente
na Igreja de Santa
Maria degli Angeli)
1450 Florença Convento de San Armadio degli argenti Fra Angelico Painel 127 e 128
38. Marco
ca. 1450 Berlim Staatliche Museum - Fra Angelico Painel 129 a 131
39.
ca. 1450 Roma Galleria Corsini - Fra Angelico Painel 132
40.
Após Arezzo Igreja de San Arco cruzeiro Bicci di Lorenzo Afresco 133 e 134
41. 1447- Francesco
antes de
1452
1448 Siena Igreja de Santa Maria - Lorenzo di Pietro, il Afresco Não localizado
42. Annunziata Vecchietta
1450-53 Siena Batistério Teto Lorenzo di Pietro, il Afresco 135 a 140
43. Vecchietta
Meados Siena Ospedale di Santa - Domenico di Bartolo Afresco Não localizado
44. s. XV Maria della Scala
1460-65 Siena Pinacoteca Nazionale Giovanni di Paolo Predella de painel 141 a 143
45.
2ª Siena Igreja - Girolamo di Benvenuto Afresco Não localizado
46. metade dell’Osservanza
s. XV

CCLXV
ANEXO III

TIPOLOGIA DOS GESTOS DO CRISTO JUIZ

OBS: relação direita/ esquerda se dá a partir do corpo do Cristo, e não do posicionamento do

espectador

DATA CIDADE LOCAL POSICIONAMENTO POSICIONAMENTO POSICIONAMENTO N.º SLIDE


DO CRISTO DOS BRAÇOS DAS MÃOS
ca. 1080 Sant’Angelo in Basílica Frontal Abaixados Mãos invertidas 06 a 12
1. Formis (Cápua)
Último Torcello Igreja de Santa Frontal Abaixados Exibe as palmas 13 a 19
2. quartel s. XII (Veneza) Maria Assunta
s. XIII Cleveland Museum of art Frontal Levantados Exibe as palmas 20 a 30
3. (Originalmente (sangue escorre dos
em Lucca) estigmas)
Fim s. XIII Florença Batistério Frontal Levantados Mãos invertidas 31 e 32
4.
Fim s. XIII Grosseto Museu diocesano Frontal (cabeça para Levantados (mão direita Exibe as palmas 33 a 37
5. lado direito, olhar para um pouco mais elevada) (sangue escorre dos
frente) estigmas)
Fim s. XIII/ Assis Igreja de Santa Frontal Alternados (mão direita Exibe as palmas 38 e 39
6. início s. XIV Chiara abaixada)
Fim s. XIII/ Berlim Bodemuseum - - - Não localizado
7. início s. XIV (Originalmente (Antigo Kaiser
em Lucca) Friedrich Museum)
1305-07 Pádua Capela Scrovegni Frontal (ligeiramente Abaixados (mão direita Mãos invertidas 40 a 46
8. deslocado para a direita; um pouco mais
olha para a direita) abaixada)
1300-1320 Munique Alte Pinakothek - - - Não localizado
9.
1º quartel s. Florença Galleria - - - Não incluído
10. XIV dell’Accademia
s. XIV Siena Confraternita della - - - Não localizado
11. Madonna
1ª metade s. Casole d’Elsa Collegiata Frontal Alternados Mãos invertidas 47 a 49
12. XIV
1ª metade s. Casole d’Elsa Collegiata Frontal Alternados Exibe as palmas 50 a 52
13. XIV
1ª metade Panamá Coleção privada Frontal Abaixados Mãos invertidas 53 e 54
14. s.XIV (?)
1ª metade Nova York Lehman Philip - - - Não localizado
15. s.XIV Collection
1ª metade Nova York Historical Society Frontal Levantados Mãos invertidas 55 a 58
16. s.XIV
1ª metade Nova York Metropolitan Frontal Abaixados Mãos invertidas 59 a 62
17. s.XIV Museum (sangue escorre dos
estigmas)
ca. 1320 Angers Musée des Frontal Alternados Exibe as palmas 63 e 64
18. Tapisseries
1336 Florença Igreja de Santa Frontal Abaixados Mãos invertidas 65 a 67
19. Croce
ca. 1336-37 Florença Museo del Bargello - - - 68 a 70
20.
1336-40 Pisa Camposanto Voltado para a esquerda Em cata-vento - 71 a 79
21.
1345 Prato Ospedale della - - - 80
22. Misericordia
ca. 1345 Siena Pinacoteca Frontal Abaixados ? 81 e 82
23. Nazionale

CCLXVI
ca. 1345 Florença Galleria Frontal Abaixados Mãos invertidas 83 a 85
24. dell’Accademia
ca. 1350 Florença Igreja de Santa - - - 86 a 89
25. Croce
Meados s. Livorno Coleção Larderel - - - Não localizado
26. XIV
ca. 1357 Florença Igreja de Santa Frontal (rosto voltado Abaixados Mão direita faz gesto da 90 a 97
27. Maria Novella para a esquerda) benção, mão esquerda
exibe o dorso
1360-65 Bolonha Pinacoteca Voltado para a esquerda 98 a 102
28. Nazionale
ca. 1360 Munique Alte Pinakothek Frontal Alternados Exibe as palmas 103 a 105
29.
ca. 1370 Novoli (perto de Torre degli Agli - - - Destruído
30. Florença)
ca. 1393 San Gimignano Collegiata Voltado para a esquerda Em cata-vento - 106 a 112
31.
Fim s. XIV Florença Igreja de San Carlo - - - Não localizado
32. (?)
ca. 1401 Siena Duomo - - - Destruído
33.
Início s. XV Asciano Abbazia di Monte - - - Destruído
34. Oliveto Maggiore
Início s. XV Siena Pinacoteca Frontal Levantados Exibe as palmas 113 a 117
35. Nazionale (sangue escorre dos
estigmas)
ca. 1420 Pistóia Duomo - - - 118 a 122
36.
1431 Florença Convento de San Frontal Levantados (braço Mãos alternadas (mão 123 a 126
37. Marco direito mais elevado) direita para cima,
(originalmente na esquerda para baixo)
Igreja de Santa
Maria degli Angeli)
1450 Florença Convento de San Voltado para a esquerda Braço direito levantado, - 127 e 128
38. Marco braço esquerdo para
frente
ca. 1450 Berlim Staatliche Museum Voltado para a esquerda Braço direito levantado, - 129 a 131
39. braço esquerdo para
frente
ca. 1450 Roma Galleria Corsini Voltado para a esquerda Braço direito levantado, - 132
40. braço esquerdo para
frente
Após 1447- Arezzo Igreja de San Voltado para a esquerda Braço direito levantado, - 133 e 134
41. antes de Francesco braço esquerdo para
1452 frente
1448 Siena Igreja de Santa - - - Não localizado
42. Maria Annunziata
1450-53 Siena Batistério Voltado para a esquerda Braço direito levantado, - 135 a 140
43. braço esquerdo para
frente
Meados s. Siena Ospedale di Santa Não localizado
44. XV Maria della Scala
1460-65 Siena Pinacoteca Voltado para a esquerda 141 a 143
45. Nazionale
2ª metade s. Siena Igreja Não localizado
46. XV dell’Osservanza

CCLXVII
Figura 01 – Coppo di Marcovaldo e seguidores. Batistério de San Giovanni, Florença, ca. 1270-90

Figura 02 – Coppo di Marcovaldo e seguidores. Batistério de San Giovanni, Florença, ca. 1270-90. Inferno

CCLXVIII
Figura 03 – Giotto. Capela Scrovegni, Pádua (Vêneto), 1305-07

CCLXIX
Figura 04 – Seguidores de Giotto. Capela da Madalena, Palazzo del Bargello, Florença, ca.1336-37. Paraíso

CCLXX
Figura 05 – Seguidores de Giotto. Capela da Madalena, Palazzo del Bargello, Florença, ca.1336-37. Inferno

CCLXXI
Figura 06 – Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Juízo final.

Figura 07 – Buonamico Buffalmacco. Camposanto, Pisa, 1336-40. Inferno

CCLXXII
Figura 08 – Nardo di Cione. Capela Strozzi, Igreja de Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357

CCLXXIII
Figura 09 – Nardo di Cione. Capela Strozzi, Igreja de Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357. Paraíso

CCLXXIV
Figura 10 – Nardo di Cione. Capela Strozzi, Igreja de Santa Maria Novella, Florença, ca. 1357. Inferno

CCLXXV
Figura 11 – Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393

CCLXXVI
Figura 12 – Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Paraíso (antes da II Guerra Mundial)

CCLXXVII
Figura 13 – Taddeo di Bartolo. Collegiata, San Gimignano, ca. 1393. Inferno

CCLXXVIII
REFERÊNCIAS

Os números entre colchetes indicam a data de publicação da primeira edição, quando

esta é conhecida.

1. Fontes primárias

BACCI, P. Documenti toscani per la storia dell’arte, 2 volumes. Florença, 1910-1912

_____. Fonti e commenti per la storia dell’arte senese. Siena, 1944

BARTHOLOMAEIS, V. (org.). Laude drammatiche e rappresentazioni sacre, 3 volumes. Florença: Felice le


Monnier, 1943

BOCCACCIO, G. The Decameron. The bibliophilist society, s/d

_____. Decameron (org. Vittore Branca), 2 volumes. Turim: Einaudi, 1992

BORGHESE, S. e BIANCHI, L. Nuovi documenti per la storia dell’arte senese. Siena, 1898

“Cronaca fiorentina di Marchionne di Coppo Stefani”. In: MURATORI, L.A. (org.) Rerum italicarum
scriptores, XXX, 1, 1903

“Cronaca senese attribuita ad Agnolo di Tura del Grasso detta La cronaca maggiore [1300-1351]”. In: LISINI,
A. e IACOMETTI, F. (org.). Rerum Italicarum sciptores. Cronache senesi, XV, 6,1, 1931-37

DANTE ALIGHIERI. A Divina Comédia (trad. J.P.X. Pinheiro e introdução de Otto Maria Carpeaux). Rio de
Janeiro: Calçadense, s/d

_____. A Divina Comédia, 3 volumes. Edição bilíngüe (tradução e notas de Italo Eugenio Mauro). São Paulo:
34, 1998

_____. La Divina Commedia. Commento scartazziniano di Giuseppe Vandelli, 21ª edição completa. Milão:
Ulrico Hoepli, 1989 [

GIORDANO DA PISA. “Esempi”. In: VARANINI, G. E BALDASSARI, G. (org.) Racconti esemplari di


predicatori del Due e Trecento, volume 4, tomo II. Roma: Salerno, 1993

_____. Quaresimale fiorentino 1305-1306 (org. Carlo Delcorno). Florença: Sansoni, 1974

JACOBUS DE VORAGINE. The golden Legend, 2 volumes (trad. William Granger Ryan). Princeton:
Princeton University, 1995

JACOPONE DA TODI. Laude (org. Franco Mancini). Roma: Giuseppe Laterza & Figli, 1974

Laude Dugentesche. Introdução, seleção, notas e glossário de Giorgio Varanini. Pádua: Antenone, 1972

Le laudi drammatiche umbre dalle origini. Atti del V Convegno di Studio del Centro di studi sul teatro
medioevale e rinascimentale. Viterbo, 1980

MILANESI, G. Documenti per la storia dell’arte senese, 3 volumes. Siena, 1854-56

_____. Nuovi documenti per la storia dell’arte toscana. Roma, 1893

PASSAVANTI, J. “Molti begli esempli”. In: LUCA, G. (org.). Prosatori minori del Trecento. Milão: Riccardo
Ricciardi, 1954

CCLXXIX
_____. “Specchio di vera penitenza”. In: VARANINI, G. E BALDASSARI, G. (org.). Racconti esemplari di
predicatori del Due e Trecento, volume 4, tomo II. Roma: Salerno, 1993

RANIERI SARDO. Cronica di Pisa (org. Ottavio Banti). Fonti per la storia d’Italia, n.º 99. Roma: Istituto
Storico Italiano per il Medioevo, 1963

SÃO BOAVENTURA. Breviloquium. Partie 7: Le Jugement Dernier (texto latino e tradução francesa). Paris:
Éditions franciscaines, 1967

SHAKESPEARE, W. Tragédias (trad. Carlos Medeiros e Oscar Mendes). Dados históricos e notas de Carlos
Medeiros. São Paulo: Abril,

TOMÁS DE AQUINO. Sobre o ensino (De Magistro). Os sete pecados capitais (trad. E intr. Luiz Jean
Lauand). São Paulo: Martins Fontes, 2001

VASARI, G. Le vite dei più eccellenti pittori, scultori ed architetti, 3ª edição. Roma: Newton & Compton,
1997

VILLANI, G. Nuova cronica, 3 volumes (org. Giuseppe Porta). Parma: Fondazione Pietro Bembo/ Ugo
Guanda, 1991

VILLANI, M. Cronica. Con la continuazione di Filippo Villani, 2 volumes (org. Giuseppe Porta). Parma:
Fondazione Pietro Bembo/ Ugo Guanda, 1995

2. Fontes secundárias
2.1.Obras de referência

CHEVALIER, J e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos, 18ª edição (trad. Angela Melim et alii). Rio de
Janeiro: José Olympio, 2003

Enciclopedia dell’arte medievale. Roma: Istituto della enciclopedia italiana, 1995

FERGUSON, G. Signs and symbols in Christian art. Nova York: Oxford University, 1961

FRIES, H. (org.). Dicionário de teologia. Conceitos fundamentais da teologia atual, volumes II e III (trad.
Teólogos do Pont. Col. Pio brasileiro de Roma). São Paulo: Edições Loyola, 1970

HALL, J. Dictionary of subjects and symbols in art. Nova York: Harper and Row, 1979

The dictionary of art, 34 volumes (org. Jane Turner). Nova York: Grove, 1996

Dictionnaire de théologie catholique. Paris: Letouzey, 1922

2.2. Livros ou estudos

ANTAL, F. Florentine painting and its social background. Londres, 1948

APOLLONIO, M. e ROTONDI, P. Temi danteschi ad Orvieto (immagini danteschi nelle arti). Milão: Arti
Grafiche Ricordi, 1965

ARASSE, D. Faire croire. Modalités de la diffusion et de la réception des messages religieux du XIIe au XVe
siécle. Rome: École Française de Rome, 1981

ARGAN, G.C. Storia dell’arte italiana, v. 2 e 3, 19ª edição. Florença: Sansoni, 1984

CCLXXX
ARNOULD, E.J. Le manuel des pechés. Étude de littérature religieuse anglo-normande (XIII siècle). Paris:
Librairie Droz, s.d.

ASCANI, V. Pinacoteca Nazionale, Siena. Roma: Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato, 1997

BACCI, M. Investimenti per l’aldilà. Bari: Laterza, 2003

_____. Lo spazio dell’anima. Vita di una chiesa medievale. Bari: Laterza, 2005

BAILEY, A.E. (org.). The arts and religion. The Ayer lectures of the Colgate-Rochester Divinity school, 1943.
Nova York: Macmilklan, 1944

BALDINI, U. (org.). Santa Maria Novella. La basilica, il convento, i chiostri monumentali. Florença: Nardini,
1981

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais.


Brasília: UNB,1996

BALESTRACCI, D. e PICCINNI, G. Siena nel Trecento. Assetto urbano e strutture edilizie. Florença, 1977

BALZANI, U. Le cronache italiane nel Medioevo, 3ª edição. Milão, 1909

BANKER, J.R. Death in the community. Memorialization and confraternities in an Italian commune in the late
Middle Ages. Athens e Londres: University of Georgia, 1988

BARNES, B.A. Michelangelo’s Last Judgment: the Renaissance response. Berkeley: University of
California, 1998

BASCHET, J. e SCHMITT, J.C. (org.). L’image. Fonction et usages des images dans l’Occident médiéval.
Actes du 6e “International workshops on Medieval societies”, Centre Ettore Majorana (Erice, Sicile, 17-23
octobre 1992). Paris: Le Léopard d’or, 1996

BASCHET, J. Les justices de l’au-delà. Les représentations de l’enfer en France et en Italie (XIIe-XVe siècle).
Roma: École Française de Rome, 1993

_____. Lieu sacré, lieu d’images. Les fresques de Bominaco (Abruzzo, 1263): thème, parcours, fonctions.
Roma: École Française de Rome, 1991

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